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DR.

JOSÉ PEDRO RODRIGUES GONÇALVES

SAÚDE E SUA COMPLEXIDADE

Trabalho apresentado à Academia de


Medicina de Mato Grosso visando
admissão à Cadeira Nº 3

Cuiabá – MT - Janeiro de 2015


SAÚDE E SUA COMPLEXIDADE

Dr. José Pedro Rodrigues Gonçalves1


INTRODUÇÃO

A ideia deste trabalho, que é uma extensão de minha Tese de


Doutorado, onde abordei a ontologia do cuidado, é discutir o
conceito/noção/definição de saúde e suas implicações na concepção de
políticas de saúde que possam dar conta de atender às necessidades
sanitárias de uma população. Utilizo o conjunto conceito/noção/definição
por entender que saúde é um termo que ainda permanece em uma semi-
obscuridade por conta de sua extrema complexidade, especialmente pela
forma como foi construído o pensamento ocidental, disciplinar e linear,
baseado em uma certeza iniciada por René Descartes e consolidada pelas
idéias de Auguste Comte.
Utilizarei a interdisciplinaridade como caminho metodológico e
epistemológico de modo a englobar em um único texto grande parte dos
aspectos que caracterizam a saúde em uma ou outra disciplina,
indispensáveis à compreensão final do trabalho.
Existem várias definições, conceituações e noções de saúde no
repertório do conhecimento da sociedade. Algumas são de cunho científico,
outras simplesmente didáticas, mas aquela que mais representa a idéia que a
sociedade em geral tem sobre saúde a apresenta como aquilo que vem
depois do tratamento da doença, ou seja, o resultado da atenção médica.
Dessa forma, impregnou-se no imaginário social que a saúde só é alcançada
com assistência médica, é dependente da medicina e de toda a parafernália
que ela utiliza no seu cotidiano. Atualmente, aquela pessoa que não é
submetida a algum “aparelho”, que não faz algum tipo de exame, mesmo
que desnecessário, tem o sentimento de que não recebeu uma boa atenção à
saúde. Tem sido esta a percepção que muitos têm a respeito de saúde e
também é o que a mídia veicula cotidianamente. Um subproduto deste
comportamento se manifesta na elevada taxa de medicalização a que as
pessoas são submetidas.
Tomando essa ideia como ponto de partida, pode-se deduzir que,
para garantir à população condições de boa assistência no que se refere à
sua saúde, é necessário que se tenha hospitais de primeiro mundo, como se
costuma dizer. Na tentativa de garantir a tal “boa saúde”, as autoridades
1
Médico Cardiologista, Mestre em Sociologia Política e Doutor em Ciências
Humanas.
governamentais investem em modelos de atenção voltados para a
complexidade, para a hospitalização e, agora na moda, UTIs, as Unidades
de Terapia Intensiva.
Com raras exceções, esse mesmo viés vem sendo repassado aos
estudantes nas Faculdades de Medicina de todo o Brasil, que incorporaram
esse paradigma e o praticam, seguindo detalhadamente o modelo
hospitalocêntrico com todas as suas consequências negativas para a maioria
da população brasileira. Ao se olhar o hospital como referência da atenção à
saúde, esqueceu-se de atender aquilo que é básico em qualquer sistema de
saúde, a descentralização da atenção. Descentralizar a atenção à saúde
representa colocar, lá onde as pessoas moram, especialmente as mais
carentes, os equipamentos sociais geradores de condições de sobrevivência
e de qualidade de vida para essas pessoas. Na falta dessas condições, uma
simples diarreia, que pode ser tratada apenas com orientação e cuidados
alimentares, acaba se tornando caso de internação em UTI pela desidratação
que pode provocar, ampliando o risco de morrer por alteração no equilíbrio
interno das pessoas, especialmente crianças, os maiores alvos desta doença.
Na maioria das vezes, a diarreia é originada pela falta de
saneamento básico, na ausência de aporte de água tratada, que seguramente
é o que mais acontece nas periferias urbanas de qualquer cidade deste País.
Ao localizar no hospital o foco principal da atenção à saúde, todas
as outras ações, que são de maior importância na garantia de saúde e de
qualidade de vida, tornam-se coisas secundárias e não consideradas ou, as
vezes, pouco consideradas nas chamadas políticas de saúde. Quando elas
aparecem, servem de álibi para a utilização dos recursos da saúde para
outros fins.

CONCEPÇÕES DE SAÚDE

Afinal, o que é saúde?


Até hoje ainda não se tem uma definição clara e precisa sobre o que
é saúde. Definir é um termo latino que quer dizer delimitar. Como posso
delimitar algo cuja complexidade e amplitude é quase impossível de ser
compreendida? Assim, não é e nem deve ser necessária uma definição, pois
isso seria um enquadramento do processo de viver. Mesmo não
concordando com a necessidade de uma definição de saúde, aceito uma
noção de saúde, isto é, um constructo que possa direcionar a nossa
percepção sobre saúde, sem a obrigação de uma conceituação precisa,
definitiva. Afinal, saúde não pode e nem deve ser igual para todos os seres
humanos deste planeta, já que cada população vive em lugares e situações
diferentes.
A saúde, enquanto um fenômeno a ser explicado, é dotada de uma
complexidade que não permite que ela seja percebida em uma única
dimensão. Isto gera uma nova complexidade, pois é necessário entendê-la
como algo que permeia, que participa, que está inserida em muitas
dimensões, sejam elas quais forem e que tenhamos colocado em nosso foco
de observação. Dessa forma tentaremos demonstrar didaticamente,
desmembrando alguns de seus elementos mais importantes, sempre levando
em conta o fato de que isto atende exclusivamente interesses didáticos para
melhor compreensão deste fenômeno.
A antropologia busca explicar a saúde como reflexo da situação
cultural, social, econômica e política de cada população, não sendo a
mesma coisa para todas as sociedades, nem para todas as pessoas.
Dependendo de cada época, de cada lugar, de cada cultura, os
valores mudam e com isso também pode mudar os conceitos para cada
situação vivida pelas pessoas. O mesmo vale para a concepção de doença,
que pode ser percebida de forma diferente em cada lugar, grupo social e/ou
cultura.
Algumas situações demonstram que o significado de saúde e/ou
doença pode estar relacionado com a situação política local. Moacyr Scliar
(2007), em um excelente artigo sobre a História do Conceito de Saúde,
mostra que até o desejo de fuga de escravos era considerado doença mental
e foi diagnosticada com o nome de “drapetomania” (do grego drapetes,
escravo).
Scliar esclarece que esse diagnóstico foi proposto em 1851 por
Samuel A. Cartwright, médico do Estado da Louisiana, durante o período
escravagista nos Estados Unidos. O tratamento era o açoite, também
aplicado à outra doença “descoberta” pelo doutor Cartwright, a “disestesia
etiópica”, que era a falta de motivação para o trabalho entre os negros
escravizados.
Na mitologia grega, Saúde é Hígia (a deusa da saúde) uma das
filhas de Asclépio (HACQUARD, 1996), que para os latinos é conhecido
como Esculápio, juntamente com sua irmã Panaceia, a deusa da cura de
todos os males através das plantas.
O filho de Apolo e Corônis, Asclépio, possuía vários filhos,
entre os quais os dois médicos Podalírio e Macáon, que
aparecem na Ilíada e as sempre jovens Panacéia e Higia.
Como se vê, uma constelação em defesa da saúde: dois
médicos, uma panacéia e uma higia, isto é, a própria
saúde·… (BRANDÂO, 1987, p. 90).

Ainda, segundo Brandão, Asclépio desenvolveu na Grécia uma


escola de medicina cujos métodos principais eram baseados na magia,
entretanto, ele preparou as bases para uma medicina mais científica, que
foram se desenvolvendo pelos seus descendentes chamados Asclepíades,
cuja figura mais importante foi Hipócrates, considerado até hoje como o Pai
da Medicina.
Por essa época, acreditava-se que todas as doenças tinham origem
em problemas de natureza mental ou psíquica. Desse modo, primeiramente
tratava-se a mente para então tratar o corpo. Ao centrar a origem das
doenças na mente, os médicos gregos utilizavam métodos de tratamento
essencialmente espirituais, “daí a importância atribuída à nooterapia2, que
purifica e reforma psíquica e fisicamente o homem inteiro” (BRANDÃO,
1987, p. 92).
Na entrada no Templo onde Asclépio morava e exercia seu ofício
de curar havia uma inscrição onde se lia:
Puro deve ser aquele que entra no Templo perfumado.
E pureza significa ter pensamentos sadios. (BRANDÃO, 1987, p.
92).

Em razão dessa necessidade de cultivar a pureza de pensamento,


“procurava-se, a todo custo, através do gnôthi s'autón (conhece-te a ti
mesmo) que o homem "acordasse" para sua identidade real” (BRANDÃO,
1987, p. 92).
Provavelmente o provérbio tão conhecido entre nós – mens sana in
corpore sano – tem origem nos versos de um poeta latino do século I-II D.C,
Décimo Júnio Juvenal que, provavelmente teve inspiração nessa visão
asclepiana de medicina:
Orandum est ut sit mens sana in corpore sano (Sat. X, 356).
"O que se deve pedir é que haja uma mente sã num corpo
são". (BRANDÃO, 1987, p. 93).

Os conceitos de saúde e doença também são encontrados na obra


de Platão, tanto doença da alma como do corpo.
Platão percebia o Universo como um Ser Vivo autêntico, com
corpo e alma. O ser humano está integrado neste mundo, não de modo
isolado, mas compondo com ele uma unidade indissociável, fazendo parte

2
A cura pela mente
dele e marcando a identidade entre o homem e o Cosmos, entre o Todo e as
suas partes.
Platão admite que, na alma, a saúde consiste numa boa
ordem, o bom equilíbrio das suas crenças, saberes,
sentimentos e impulsos, em suma, o equilíbrio psíquico e
moral que denominará sofrosine3 (VALLS, 1994).

A sofrosine de Platão também foi referência para Foucault (2006)


em “A Ética do Cuidado de Si como Prática de Liberdade“. Nesse texto,
Foucault trata do “exercício de si sobre si mesmo” que uma pessoa deve
elaborar para “se transformar e atingir um certo modo de ser”.
Segundo Foucault, a liberdade é a condição ontológica da ética e,
esta, é a forma de a liberdade se refletir e se assumir como tal.
Para ser livre o ser humano deve ocupar-se de si para não ser
dominado por nenhum de seus apetites e prazeres, um dos quais tem
dominado atualmente o ser humano de forma quase incontrolável, as novas
tecnologias, que torna as pessoas colonizadas pela técnica, como, por
exemplo, os smartphones que passaram a controlar a vida de muita gente e
as tornam incapazes de viver sem tais equipamentos, conforme muitos
enfatizam.
Cuidar de si, ocupar-se consigo mesmo já foi, algumas vezes,
apresentado como uma forma de egoísmo ou de um interesse individual,
contrariando aquilo que, hoje em dia, se assume como politicamente
correto, o necessário interesse que se deve ter em relação aos outros ou,
conforme Foucault, o necessário sacrifício de si mesmo. Entretanto é
preciso chamar atenção para o fato de que politicamente correto implica em
uma dominação, um totalitarismo absoluto na medida em que se obriga
alguém a adotar posturas determinadas por uma convenção cuja origem é
incerta e determina uma uniformização de condutas, algo incompatível com
a ética da liberdade.
Não é possível cuidar de si mesmo sem se conhecer, logo, o
autoconhecimento é uma necessidade e condição de possibilidade para o
autocuidado, o que denota a possibilidade de se tornar livre na medida em
que esse cuidar-se implica na superação e dominação dos apetites que
podem arrebatar qualquer pessoa. Daí Foucault afirmar que o cuidado de si
é uma prática de liberdade. Livrar-se daquilo que pode prejudicar de algum
modo a vida saudável ou a convivência entre pessoas, certamente é uma

3
Temperança. Virtude da serenidade, equivale ao autodomínio, à harmonia
individual.
forma de liberdade inquestionável. O vício, já ensinava Sócrates (PLATÃO,
2007) em seu diálogo com Alcibíades, é a escravidão, portanto, livramos
dos vícios através do cuidado de si mesmo é uma forma de liberdade.
Nesse diálogo Sócrates ensina Alcibíades que para podermos
cuidar de nós próprios é necessário que nos conheçamos profundamente,
pois só cada um conhecendo o que é, como é e o que pensa, pode realmente
cuidar de si a partir desse conhecimento de si.
Revel (2005) afirma que o cuidado de si é uma retomada do
epimeleia heautou, o que corresponde a um ideal ético de transformar a
vida pessoal em um objeto da tekhnê, ou seja, tornar a própria vida em uma
obra de arte. Não em, apenas, um projeto de conhecimento sobre a vida,
mas uma preocupação que cada um deve ter por si mesmo de modo
continuado. Trata-se de uma vigilância permanente, ampla e focada na
preocupação com todos os distúrbios do corpo e da alma, das relações com
os outros, respeitando a si mesmo de uma maneira ampla, incluindo aí até a
privação de prazeres de natureza sexual, se necessário, limitando seu uso
exclusivamente à procriação. Para que se pudesse chegar à esta situação
onde a vigilância sobre si e sobre seu próprio corpo era necessário o
autoconhecimento, sintetizado na frase gnôthi s'autón (conhece-te a ti
mesmo).
Se a vida de cada pessoa se torna uma obra de arte no entender de
Sócrates e de Foucault, o comportamento ético torna-se um imperativo
quase absoluto, algo também proposto por Kant (2012) em sua
“Fundamentação da Metafísica dos Costumes”.
O que deve resultar desta prática é uma convivência harmônica
entre as pessoas, de modo a compor uma sociedade onde cada um, não só
respeita e reconhece o outro como legítimo outro na convivência, como
também cuida desse outro como cuida de si mesmo. Sem esta base de
cuidado não se tem saúde.
Para a sociologia a saúde representa o resultado de interações de
natureza humano-social, consignadas como modo de vida, como a forma
com que as pessoas e os grupos sociais se organizam e se interagem de
modo a construir um espaço de viver compatível com cada organização,
cultura, decisões políticas e econômicas. A saúde é percebida, então, como
um processo mais amplo que incorpora a dimensão de grupos sociais, não
mais delimitadas pelo espaço do corpo humano, o território da doença.
Ayres (2007, p. 50) esclarece que saúde não pertence ao âmbito de
[...] regularidades dadas que nos permitem definir um modo
de fazer algo, mas diz respeito à própria busca de que algo
fazer. Estamos sempre em movimento, em transformação, em
devir, e porque somos finitos no tempo e no espaço e não
temos a possibilidade de compreensão da totalidade de nossa
existência, individual ou coletiva, é que estamos sempre, a
partir de cada nova experiência vivida, em contato com o
desconhecido e buscando reconstruir o sentido de nossas
experiências.

Comungo com este autor a sua percepção de que saúde é um


“contínuo e inexorável contato com o novo [que] desacomoda-nos e
reacomoda-nos ininterruptamente no modo como compreendemos a nós
mesmos, nosso mundo e nossas relações”.
Trata-se de um processo adaptativo, na maioria das vezes
extremamente sutil que não conseguimos perceber, mas que sempre nos
leva a essa reacomodação proposta por Ayres. Não se trata de uma
reacomodação definitiva, permanente, mas, sempre, um processo, o que já
tratei (e Ayres também) a partir da proposta de Heidegger (2009) que
assume o ser humano como um projeto, um vir-a-ser eterno. Somos um
constructo, algo inacabado e em permanente construção, mesmo do ponto
de vista biológico estamos eternamente em renovação, já que nossas células
se renovam constantemente.
Em trabalho anterior (GONÇALVES, 2012) destaquei que é na
dimensão social, onde o conviver humano se localiza e trava seus conflitos
e esperanças, ou seja, o ser que somos exercita o seu andar a vida em busca
da plenitude de sua condição humana. Na dimensão ambiental é onde os
seres vivos exercitam seus processos adaptativos em busca de melhor
adequação aos ecossistemas. Também devemos incluir aí o respeito aos
valores humanos e a busca do conhecimento que permita ampliar esses
valores na medida em que conhecer melhor a humanidade e suas inter-
relações pode melhorar a convivência entre as pessoas.
Como Ayres (2007, p. 50), a esse conjunto de processos que
correlacionamos o sentido maior “da expressão saúde, que encontramos
coletivamente, em diferentes épocas e grupos sociais, e entre os diferentes
indivíduos em um dado tempo e local”.
Segundo Palomino Moral e colaboradores (2014), o conceito de
saúde sofreu [e ainda sofre] um processo de revisão permanente. A partir de
meados do Século XX a concepção de saúde foi-se distanciando da busca
das causas da doença centradas no indivíduo e se aproximando dos
determinantes sociais, como os principais moduladores do fenômeno saúde
e doença.
Para esses autores fica evidente que a saúde e a qualidade de vida
são resultados sociais diretamente relacionados com as condições gerais da
vida das pessoas e com o modo como exercita o seu viver. Nas últimas
décadas têm sido efetuados muitos esforços para compreender como os
determinantes sociais intervêm e como produzem os resultados na saúde.
Embora alguns autores considerem a saúde um fato social, Gadamer (2006)
percebe a saúde um fato bem mais do que um fato determinado pelas
ciências naturais, é também um fato psicológico-moral.
Para San Martin (1986, p. 17):
Na prática, a saúde do indivíduo depende da forma pela qual
satisfaça suas necessidades elementares de adaptação, o que
depende, em grande parte, do que ofereça a organização
social.

Esta forma de conceber saúde me parece muita adequada e ela


assemelha a forma como a percebo, algo como uma conquista, um processo
em permanente construção e que depende das condições de como e onde se
vive. Atender as necessidades de uma pessoa deve ser algo essencial, até
porque necessidade, segundo Cunha (2000) quer dizer: imperioso,
indispensável.
Lalande (1999, p. 726) utilizando uma visão lógica e metafísica
mostra que o termo necessário é:
Noção intelectual fundamental, oposta a contingente e
correlativa à noção de possível. É tradicional dar do sentido
desta palavra uma fórmula geral: é necessário aquilo que não
pode ser de outra forma. Mas esta fórmula tem apenas
unidade verbal; ela muda muito de significação conforme
aquilo a que se aplica.

Este mesmo autor explica, também, que necessário é tudo aquilo


que é moralmente obrigatório. Se for obrigatório moralmente também o
deverá ser juridicamente.
A palavra necessidade, como vimos, diz respeito ao atendimento de
tudo aquilo que possibilita ao ser humana a plenitude de sua condição
humana, ou seja, a ter de fato tudo o que lhe é imprescindível para ter uma
vida plena. Mas o que significa ter uma vida plena?
Para tentar responde a essa indagação, vamos decodificar aquilo
que foi proposto por Maslow (1968) e aceito pela comunidade científica
como algo indiscutível, a hierarquia das necessidades humanas.
Maslow apresenta uma pirâmide (Fig. 1) que tem na base - o
primeiro nível, o nível da fisiologia - aquilo que é imprescindível para a
sobrevivência de qualquer pessoa e tudo o que é essencial para que ela
aconteça. Assim temos: respiração, comida, água, sexo, sono, homeostase,
excreção. Sem o atendimento destas necessidades básicas, não só não
teremos saúde, mas, certamente, não teremos vida.

No segundo nível, o da segurança, Maslow coloca a segurança, ou


seja, a garantia de que teremos alguma proteção contra a nossa
vulnerabilidade física, moral, social e patrimonial, coisas que permitem a
nossa defesa, em um sentido amplo, contra aquilo que possa ofender ferir,
magoar ou tirar de nós algo que nos pertença, como: a segurança de nosso
corpo; de nosso emprego; de qualquer recurso que nos auxilie de algum
modo; da moralidade, o que tem a ver com a nossa dignidade; de nossa
família e de nossa propriedade.
No terceiro nível, que Maslow chama de nível do
amor/relacionamento, encontramos as questões de natureza subjetiva:
amizade, família sob o ponto de vista relacional/afetivo e a intimidade
sexual.
O nível da estima é o quarto e nele se localizam tudo o que diz
respeito àquilo que nos garante como indivíduo: a autoestima, a confiança
que depositamos em nós mesmos e que permitem as nossas conquistas e o
respeito dos outros, bem como o respeito que devemos ter pelos outros.
O último nível, o quinto proposto por Maslow, trata das realizações
pessoais. É a esfera da moralidade, da criatividade, da espontaneidade, da
solução de problemas, da ausência de preconceitos e da aceitação dos fatos
como eles realmente são. Analisando a hierarquia das necessidades
humanas, configuradas nesta pirâmide, podemos perceber que estão
contempladas as dimensões que podem determinar uma condição de
equilíbrio entre o ser humano e o seu entorno fisco, social, relacional, etc., e
na Pirâmide está contemplada a homeostasia4 que quer dizer:
[...] o conjunto de fenômenos de autorregulação que levam à
preservação da constância quanto às propriedades e à
composição do meio interno de um organismo. O conceito
foi criado pelo fisiologista norte-americano Walter Bradford
Cannon (1871-1945).

Para Morin (2001) à medida que um organismo vivo evolui, e aqui


estamos tratando do organismo humano, as faltas, as carências e as
necessidades ampliam-se em vez de suprimir. Para ele é exatamente “a
conjugação da carência heterótrofa5 e da solução biófaga constitui a
locomotora dos desenvolvimentos animais” (MORIN, 2001, p. 237).
Este processo de desenvolvimento nada mais é do que a adaptação
permanente a uma nova situação, o que constitui o processo evolutivo de
todos os seres vivos, até alcançar uma situação ideal – a plenitude de seu
ciclo de vida, o que chamo de saúde.
Assim, concebo saúde como a plenitude da condição humana,
pois só se tem saúde em seu sentido mais amplo ao se conseguir atender
a todas as necessidades humanas. Esta é a minha forma de entender
saúde, embora, do ponto de vista formal, de acordo com a Organização
Mundial de Saúde – OMS – “Saúde é um completo estado de bem estar
físico, mental e social e não a simples ausência de uma doença” (ANVISA,
2009, p. 4). Embora este conceito seja criticado pela sua impossibilidade de
realização, ele continua sendo utilizado até como um marco de referência
didática.
Segre e Ferraz (1997, p. 540) também colocam objeções à esta
definição da OMS:

4
Disponível em: http://conceito.de/. Acesso em 20 jan. 2015.
5
Se aplica al organismo que es incapaz de elaborar su propia materia orgánica a
partir de sustancias inorgánicas y se nutre de sustancias elaboradas por otros
seres vivos: los animales son seres heterótrofos. Disponível em:
http://es.thefreedictionary.com. Acesso em 21 jan, 2015.
A definição de saúde da OMS está ultrapassada por que ainda
faz destaque entre o físico, o mental e o social. Mesmo a
expressão "medicina psicossomática", encontra-se superada,
eis que, graças à vivência psicanalítica, percebe-se a
inexistência de uma clivagem entre mente e soma, sendo o
social também inter-agente, de forma nem sempre muito
clara, com os dois aspectos mencionados (SEGRE e
FERRAZ, 1997, p. 540).

Para contribuir com esta reflexão, vamos apresentar algumas


percepções sobre saúde compiladas de vários autores importantes no
referencial teórico, em seus aspectos epidemiológicos, epistemológicos,
filosóficos e antropológicos.
Para Jaspers (1998, p. 62), é uma: “representação da perfeição
humana, que se designa por saúde”. O mesmo que chamo de plenitude da
condição humana.
Karl Jaspers, médico e filósofo alemão, pensou a saúde para muito
além do limite do corpo e procurou responder a pergunta essencial da
filosofia – o que é? Ao perceber a saúde como uma representação da
perfeição humana, Jaspers coloca o ser humano como alguém que busca o
aperfeiçoamento próprio de modo a atingir um telos, ou seja, um objetivo
máximo de perfeição que ele chama de saúde. Esta visão de Jaspers se
assemelha a visão de Heidegger que percebe o ser humano como um
projeto lançado no mundo e em permanente evolução. Estes dois
pensadores trocaram, correspondências após se conhecerem no aniversário
de 61 anos de Husserl. Por causa da visão compartilhada de seus
pensamentos, tornaram-se grandes amigos.
Jaspers (1998) ainda faz uma crítica ao pensamento de Descartes,
especialmente à visão cartesiana de mundo, afirmando que ele não
compreendeu a ciência moderna e prosseguiu em uma visão antiga de
mundo com um conteúdo pobre, o que levou muitos investigadores da
natureza a entender mal a sua própria ação.
Provavelmente esta percepção cartesiana de mundo também
influenciou os pensadores que tentaram dar uma definição de saúde que
pudesse sintetizar em uma frase todo o conteúdo de algo que vai muito
além dos limites de um texto ou de um corpo humano.
Canguilhem (2005, p. 35) apresenta uma série de percepções sobre
saúde que penso ser conveniente e importante apresentar aqui:
[...] algumas reflexões sobre a saúde sem lembrar a definição
proposta, há meio século, por um célebre cirurgião, professor
na Faculdade de Medicina, de 1925 a 1940: “A saúde é a vida
no silêncio dos órgãos”. Talvez tenha sido logo após as
conversações mantidas entre colegas, no Collège de France,
que Paul Valéry respondeu a René Leriche escrevendo: “A
saúde é o estado no qual as funções necessárias se realizam
insensivelmente ou com prazer” (Mauvaises pensées et
autres, 1942). Algum tempo antes, Charles Daremberg, em
uma coletânea de artigos, La medicine, histoire et doctrines
(1865), escrevera: “No estado de saúde, não sentimos os
movimentos da vida, todas as funções se realizam em
silêncio”.

Lucien Sfez (1996, p. 46), em seu livro “A Saúde Perfeita”, afirma


que existe “um equilíbrio harmônico que bem podemos chamar de saúde”.
Quando se pensa em equilíbrio, devemos pressupor algo que não tem
imobilidade, ou seja, está em permanente movimento, em equilíbrio
dinâmico que podemos comparar com os movimentos do mar. Em nenhum
instante as águas do mar estão paradas, sem movimento e se observarmos
na praia, veremos que cada uma das ondas que atinge as areias da praia tem
um limite diferente da anterior e da próxima. Sempre nesse interminável
movimento que se mantém equilibrado.
Sfez entende que esse equilíbrio se dá em função da relação entre o
ser humano e os demais seres da natureza, ou seja, o nosso entorno, o
ambiente externo ao nosso corpo. Então, utilizando a proposição do
equilíbrio harmônico que se dá entre os seres da natureza, de acordo com
Sfez, é possível afirmar que esse equilíbrio é uma comunhão 6 que
demonstra algo para além dos limites do corpo e que não pode ser
tocado/maculado, ou seja, qualquer ação sobre esse equilíbrio pode
provocar uma alteração cujo resultado pode ser a doença. É esse equilíbrio
harmônico que podemos chamar de saúde. Tocar nesse equilíbrio pode
significar o que Nicolescu (1999) aponta como “aquilo que não pode ser
tocado sem sujar”, que é a tradução mais simples do que é sagrado.
A saúde humana deve ser percebida como algo realmente sagrado,
algo pelo qual todos os seres humanos deveriam ter compreensão e respeito,
especialmente aqueles que são pagos para cuidar da saúde de todos – os
governantes.
Para se ter saúde é necessário pensar para muito além do corpo,
pois o que determina ser ou não saudável é a busca permanente desse
equilíbrio de que fala Sfez. O viver humano compõe uma infinidade de
6
Participação em comum.
dimensões, tanto objetivas como subjetivas, além da dimensão cultural.
Percebe-se, então, que acabamos por retornar à ideia de equilíbrio, algo que
parece ser comum a muitos dos que pensam saúde de um modo que
contemple o ser humano no mundo e não apenas a saúde do corpo. Disto
resulta outra preocupação que demandam novas reflexões. Como atingir tal
estado de saúde proposto nesta visão?

A DIMENSÃO POLÍTICA DA SAÚDE

O que fazer, então, para que uma determinada população ou, pelo
menos, parte dela possa obter este ponto de chegada a que chamo saúde?
Para isso é necessário estabelecer políticas públicas que possam
permitir, pelo menos, a aproximação ou, em outro caso, possibilitar que as
pessoas, por seu próprio empenho e conhecimento, consiga alcançar tal
desiderato. Para uma melhor governança, a administração pública divide a
região (Estado, Município, etc.) em subáreas ou setores para melhor gerir
cada um desses setores.
Mário Chaves (1998, p. 6) em um excelente artigo “Complexidade
e Transdisciplinaridade: uma abordagem multidimensional do setor saúde”
esclarece que:
O setor saúde, como os demais setores da sociedade, tem
fronteiras imprecisas. É um dos setores sociais, ligado
intimamente a outros setores sociais, como educação,
trabalho e seguridade social, e dependente dos setores
econômicos. A expressão setor saúde é usada principalmente
para o nível macro, nível de país. Seu objetivo é proporcionar
à população de um país o nível mais alto de saúde que é
possível alcançar num dado momento histórico com os
recursos disponíveis. Saúde é parte integrante do bem - estar
social. Os indicadores de saúde, por conseguinte, são
componentes essenciais de indicadores mais complexos de
qualidade de vida.

Para facilitar a compreensão deste setor, Chaves apresenta um


circulo (Figura 2) dividido em oito áreas que se intercomunicam de modo a
compor um todo interligado. Cada uma destas áreas compõe uma dimensão
do setor saúde.
Assim temos: a dimensão ética, a ecológica, a epidemiológica, a
dimensão estratégica, a dimensão educacional, a psico-sociocultural e a
dimensão transcendental ou ecumênica, que para Chaves ganha importância
porque:
A religiosidade é parte da natureza humana, em que o
sagrado e o profano [...] convivem, se complementam, fazem
parte de nós mesmos, de nossa estrutura arquetípica. É tão
variada a gama de medidas e práticas de saúde usadas pela
população, fora da racionalidade terapêutica da chamada
medicina ocidental ou medicina oficial, que nos parece
conveniente, dentro da complexidade, incluir nesta dimensão
tanto as práticas de saúde com base em fé religiosa, como
aquelas outras que nossa mentalidade cartesiana, se recusa a
aceitar, ou mesmo examinar, com a simples afirmação de não
ter base científica (CHAVES, 1998, p. 13).

FIGURA 2 – Dimensões do Setor Saúde (CHAVES, 1998).

Mais importante do que a figura proposta por Chaves, é a


possibilidade que ela nos oferece para compreender que todas essas
dimensões não estão isoladas uma das outras. Ao contrário, elas se
articulam, como na figura, para compor o que Chaves chama de “realidade
transetorial”, que é o espaço de viver das pessoas e de outras formas de vida
que conosco interagem de alguma forma. É nesse espaço onde vivemos que
tudo acontece, onde a ética, a epidemiologia a educação e as demais
dimensões estão inextricavelmente interligadas e presentes
permanentemente em nossas vidas e, muitas vezes, nem tomamos
conhecimento disso. Não é apenas no que chamo de território da doença, o
corpo, que o fenômeno saúde se manifesta, mas no espaço que compõe o
que Heidegger chama de ser-no-mundo, nós como parte integrante e
indissociável de tudo o que nos cerca.
Feitas essas considerações, podemos então discutir políticas de
saúde. Mas o que é política?
O termo política é derivado do grego Politheia, que indicava todos
os procedimentos relativos à polis, ou cidade-estado. Por extensão, poderia
significar tanto: Estado quanto Sociedade, Comunidade, Coletividade e
outras definições referentes à vida urbana.
Para Bobbio (1998, p. 954), política deriva:
[...] do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa
tudo o que se refere à cidade e, consequentemente, o que é
urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo
Política se expandiu graças à influência da grande obra de
Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada
como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão
do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a
significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto
é, de reflexão, não importa se com intenções meramente
descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente
discrimináveis, sobre as coisas da cidade.

No uso comum, é às vezes um tanto pejorativo. Entretanto, política,


como substantivo ou adjetivo, compreende as ações, comportamentos,
intuitos, manobras, entendimentos e desentendimentos dos homens (os
políticos) para conquistar o poder, ou uma parcela dele, ou um lugar nesse
poder. Também pressupõe capacidade de escolher a melhor alternativa,
entre muitas, e que seja aquela que se enquadra nos preceitos éticos.
Em uma visão mais erudita, a política é considerada como a arte de
conquistar, manter e exercer o poder, o governo. Esta é a noção dada por
Nicolau Maquiavel (1974). Também se pode compreender política como a
orientação ou a atitude de um governo em relação a certos assuntos e
problemas de interesse público: política financeira, política educacional,
política social, política de saúde, por exemplo.
Para muitos pensadores, “política é a ciência moral normativa do
governo da sociedade civil” (LIMA, 1999, p. 136). A maioria dos
pensadores contemporâneos se divide em dois grupos: uns aceitam que
política é a Ciência do Estado, outros entendem que é a Ciência do Poder.
Mas neste trabalho o que importa é compreender política como a
possibilidade/capacidade de escolher, entre várias alternativas, aquela que,
eticamente, possa atender as necessidades/desejos de uma sociedade ou
grupo social.
Quando coloco o termo possibilidade acoplado ao termo
capacidade, estou querendo dizer que, além de ser possível, é necessário e
imprescindível que haja capacidade para esta escolha. Do contrário
permaneceremos na mesmice que até hoje prevalece do setor saúde –
políticas que atendem apenas os interesses de quem as formula, deixando de
lado o grupo social ou a sociedade para a qual realmente deveria atender.
Uma pessoa pode ter a possibilidade de decidir sobre questões
importantes que possam resultar em situações onde a saúde possa ser
possível para todos, ou pelo menos para a maioria. Entretanto, se esta
pessoa tem a possibilidade, mas lhe falta a capacidade de compreender o
que deve ser feito, provavelmente sua decisão poderá ser totalmente
negativa para aqueles que necessitam de uma situação de vida onde possam
ter saúde. Assim, possibilidade acoplada à capacidade oferecem condições
para decisões concretas que possam beneficiar as pessoas.
Outra questão referente à formulação de políticas é que, para se
formular uma política, seja ela qual for, é fundamental que se entenda de
forma profunda a respeito daquilo que se está propondo. Na grande maioria
das vezes, só o fato de ser um profissional de saúde, geralmente médico,
não significa que conheça aquilo do que deve tratar – formulação de
políticas que atendam àquelas necessidades/desejos da população. Aqui
também acoplo dois termos – necessidades/desejos – pois é essencial que
apesar de alguma coisa ser necessária, sob a ponto de vista do gestor, ela
pode não ser do desejo daquele grupo social. E isso deve necessariamente
ser respeitado, afinal, pressupomos que vivemos em um país democrático
onde a maioria decide o que quer e como quer.
Então, o que é uma política de saúde? Quais são as diretrizes, os
parâmetros, os objetivos e as metas de uma política de saúde?
Trata-se de um conjunto de ações voltadas para garantir condições
de vida saudável às pessoas que vivem em uma determinada localidade -
bairro, município, estado ou mesmo o próprio país, ou seja, uma condição
tal que as pessoas dificilmente possam adoecer.
Como se faz isso?
Diminuindo os fatores de risco de doença como: falta de
saneamento básico; água tratada, eu disse tratada; rede de esgoto;
condições adequadas de moradia; acesso à educação; emprego e salário
justo; centros de saúde, etc. Depois disso tudo, bem depois, finalmente
cuidados médicos hospitalares para aqueles que vierem a adoecer, incluindo
aí a violência urbana, acidentes de trânsito, acidentes ofídicos, doenças
crônico-degenerativas e tantas outras enfermidades, mas que constituem a
menor parte dos problemas de adoecimento.
Se tivermos isso tudo ou, pelo menos, parte disso, talvez não se
tivesse tantas internações nem a necessidade de tantos hospitais e de tantos
leitos de UTIs. Estes elementos da rede de atenção e de cuidados em saúde
representam investimentos que devem ser obrigação dos governantes, não
só pelo alcance sócio-humano que dão conta de atender, mas também por
representarem muito pouco se comparados aos gastos de uma política de
saúde centrada no hospital.
Por que isso não é feito?
Primeiramente pelo fato de muito pouca gente entender de saúde,
que é um conhecimento antagônico e complementar ao conhecimento da
doença. Conhecer doença é o saber da maioria dos médicos. Em seguida
vem o aspecto político partidário da indicação de gestores do setor saúde,
quando os escolhidos, com raras exceções, o são mais pela ligação político-
partidária do que pela competência ou conhecimento técnico-científico.
Afinal o conhecimento científico existe para melhorar a qualidade de vida
das pessoas. À esse conhecimento deve ser dada uma função prática e útil,
não algo que deve permanecer nas enciclopédias ou academias.
Há uma confusão a respeito de política e decisão política. Há os
que acreditam que decisão política é aquela tomada por um político que
ocupa uma função pública. Como foi visto anteriormente, política é a
possibilidade/capacidade de escolher, entre várias alternativas, aquela que,
eticamente, possa atender as necessidades/desejos de uma sociedade ou
grupo social. Logo, só pode tomara decisão sobre política de saúde quem
realmente conhece o assunto, ou que seja assessorado por uma equipe que
tenha essa capacidade. Entretanto a história mostra que muito poucas vezes
isso aconteceu.
Outro ponto realmente importante é o fato de existir,
constitucionalmente, um Sistema Único de Saúde – SUS, que não tem sido
compreendido pelos gestores, que desconhecem a noção de sistema ou, se
conhecem, não a levam em consideração.
Para compreender o SUS é necessário pensar o Estado, no caso o
Setor Saúde, como uma orquestra onde o Secretário de Estado deve se
comportar como o regente. Para que se tenha uma harmonia entre os
músicos é fundamental que se afinem os instrumentos e haja uma sincronia
entre eles. Do contrário só teremos ruídos e não uma música harmoniosa e
suave aos nossos ouvidos.
Historicamente a prática tem mostrado que as Secretarias de Estado
se comportam como uma instituição que supre as deficiências dos
municípios no que se refere ao atendimento de demandas de saúde,
especificamente, tratamento de doenças; não na coordenação das secretarias
municipais. O que deve ser feito é buscar a capacitação dos secretários
municipais e suas equipes para que compreendam o que deve ser feito,
oferecendo suporte técnico educacional, capacitação profissional e técnica,
além de acompanhar cada município como uma entidade independente e
que deve assumir suas funções constitucionais.
Este papel coordenador e orientador, na maioria das vezes, não tem
sido assumido pelas Secretarias de Estado por razões que são
tradicionalmente conhecidas e se assentam em conflitos políticos
partidários, desconhecendo que essas instituições só existem para atender
demandas da população e não dos partidos políticos dos governantes. Falta,
pelo menos, compreensão do papel de cada instituição e seu espaço de
atuação, que deve ser desenvolvido com respeito e sincronizado aos demais
setores, com a coordenação/supervisão da Secretaria de Estado. Devemos
lembrar que supervisão é o ato de orientar, guiar, motivar e gerar resultados
entre as equipes.
Existem princípios fundamentais que, se observados, podem
facilitar a formulação de políticas de saúde adequadas a cada situação local
ou regional. Por exemplo: se observarmos as vulnerabilidades inerentes à
condição humana e, delas, partirmos para evitar as mais prementes, teremos
um ponto de partida adequando para dar inicio às formulações da política
que pretendemos implantar.
Em trabalho anterior (Tese de Doutorado) apresentei uma proposta
de se observar as principais vulnerabilidades a que todos estamos
submetidos. São elas:
A - Vulnerabilidade genética: em situações específicas, pais
portadores de uma carga genética apresentam probabilidade elevada de
passar aos seus descendentes algumas doenças (ex: anemia falciforme,
Distrofia muscular de Duchene e hemofilia, etc.).
B - Vulnerabilidade imunológica: vacinação contra doenças
imunopreviníveis.
C - Vulnerabilidade a traumas físicos: prevenir acidentes de toda
ordem.
D - Vulnerabilidade é a psicológica: Apoio psicológico,
especialmente aos estudantes.
E - Vulnerabilidade a agentes biológicos: tratamento e prevenção
de doenças transmissíveis (ex. dengue, malária, etc.).
F – Vulnerabilidade a uma ordem política, social e econômica .
Essa ordem é originada nas políticas públicas definidoras de
ações/atividades que podem gerar riscos de várias naturezas à qualidade de
saúde/vida das pessoas. Exemplo: atividades potencialmente poluidoras que
são permitidas sem a devida proteção às populações passiveis de
contaminação.
Utilizando cada uma dessas vulnerabilidades como ponto de
partida, tende a facilitar a formulação de políticas que se adéquam à cada
situação local ou regional.
Certamente se, na formulação de políticas públicas em geral e na
política de saúde em particular, forem tomadas as medidas cabíveis, os
agravos à saúde serão minimizados ao máximo.
A intenção deste trabalho não é formular uma política de saúde,
apenas discutir a sua necessidade e possibilidade, tentando oferecer alguns
caminhos que possam facilitar a sua formulação.

CONCLUSÃO

Partindo da concepção de saúde a ser adotada como paradigma ou


marco de referência, pode-se levar ao planejamento e formulação de
políticas que possam se adequar a cada situação alvo.
Se a concepção de saúde estiver confinada ao limite do corpo
humano, o território da doença, as políticas de saúde e seus resultados
estarão concentrados no tratamento de doenças, sem levar muito em conta
as suas causas e as razões pelas quais essas doenças existem.
Vimos que pensar a saúde em uma visão ampliada, permite
perceber a sua complexidade e dimensão, além de compreender que não se
trata de algo definido e definitivo, mas uma construção que acompanha pari
passu a caminhada do ser humano na sua existência. Perceber saúde desta
forma pode facilitar a incorporação de uma visão mais política dos
processos de busca de uma saúde coletiva e que não esteja exclusivamente
centrada no indivíduo, mas nas comunidades de indivíduos que convivem
em determinadas áreas com características próprias e que, muitas vezes, são
diferentes em cada espaço de vida.
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