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1. Apresentação
2. I O que as bolhas ocultam
1. Como opera a homofilia
2. Distinções entre redes sociais e motores de busca
3. Outros lados da questão
4. O que fazer para furar as bolhas
3. II A propagação de notícias falsas
1. 0 que é novo
2. As variações das Notícias Falsas (NFs)
3. Pesquisas para amparar ações eficazes
4. Como se livrar das NFs?
4. III Uma era da pós-verdade?
1. A pós-verdade no tsunami das fake news
2. A guerra na ciência
5. IV A reivindicação da verdade no jornalismo
1. Imprecisões entre a verdade e a inverdade
6. V A verdade fatual e o jornalismo
1. 0 que é verdade fatual
2. A verdade na cena da política
7. VI Outras verdades
1. As verdades provisórias da ciência
2. 0 pensamento da verdade na filosofia
3. As verdades possíveis da arte e da literatura
8. Referências
9. Coleção Interrogações
10. Sobre a autora
A PÓS-VERDADE É VERDADEIRA OU FALSA?
Lucia Santaella
2018
LUm Estaçao
I ÍM das Letras
Dfle Cores
S231p
Santaella, Lucia
96 p.; e PUB.
Inclui bibliografia.
CDD 070
2018-1446
CDU 070
1. Jornalismo 070
2. Jornalismo 070
www.facebook.com/estacaodasletrasecoreseditora/
(Nietzsche)
Apresentação
A propagação de notícias falsas
Uma era da pós-verdade?
A reivindicação da verdade no jornalismo
A verdade fatual e o jornalismo
Outras verdades
Coleção Interrogações
Sobre a autora
Apresentação
Náo pode haver dúvida de que as tecnologias das redes digitais abriram
caminhos para a democratização do uso e consumo das mídias,
mudando sobremaneira o que, na era pré-redes, se costumava chamar de
espaço público e formação de opinião. De um número comparativamente
pequeno de fontes de informação destinadas a uma massa de receptores,
hoje a multiplicação de plataformas para redes sociais, blogs, sites e outras
conveniências, permite a qualquer um, de forma praticamente gratuita,
disseminar quaisquer tipos de conteúdo para quaisquer outros usuários que,
podem, inclusive, mudar instantaneamente seu papel de receptor para
aquele de emissor em um jogo de vai e vem ininterrupto.
Nesse livro e no Ted protagonizado pelo autor que corre pela internet,
Pariser chama a atenção para o fato de que o Google personaliza o que
cada usuário obtém como resposta às suas buscas. Quando milhares de
usuários podem estar fazendo uma mesma busca ao mesmo tempo, o que
pode explicar esse aparente milagre? Ora, mais e mais, o monitor de nossos
computadores é uma espécie de espelho unilateral que reflete tão só e
apenas nossos próprios interesses, enquanto os algoritmos observam tudo o
que clicamos. Essa é a resposta de Pariser e todo o seu livro gira em torno
desse estranho voyeurismo que não serve apenas a interesses sexuais, mas,
sobretudo, a interesses políticos e mercadológicos. Em suma,
Tudo o que você gosta de ver e ouvir em serviços de streaming, quem você
curte nas redes sociais, o que você compra nas lojas online, o que você joga
no seu videogame, suas viagens, seus desejos, suas conversas por email ou
mesmo no whatsapp; tudo isso está sendo
monitorado 24h pelo grande olho da rede. Essa grande máquina social
invisível, fruto da enorme personalização dos ambientes online, usa todos
os dados coletados da sua vida digital para te oferecer tudo aquilo que ela
considera relevante para você. (...) O problema é que esta personalização
extrema da nossa vida conectada provoca o que alguns estudiosos chamam
de "câmaras de eco" ou "salas espelhadas", onde tudo o que vemos
e consumimos é reflexo de nós mesmos. (MANSERA, 2015)
Uma espécie de prova de que é assim que as coisas funcionam veio com os
acontecimentos políticos de 2016. Quem havia tomado conhecimento do
livro de Pariser, estava melhor preparado para a grande surpresa do que
estavam os incautos. Além de “câmera de eco”, um termo que já costumava
ser empregado para se referir às mídias tradicionais e que foi também
transferido para o universo online, outra expressão que vem sendo usada
para o fenômeno das bolhas é “molduras ideológicas”. Ainda outro nome
que também aparece é “ciberbalcanização”, cunhada pelos pesquisadores do
MIT, Van Alstyne e Brynjolfsson. Este termo se refere à região da Europa
que foi historicamente subdividida por diferenças de linguagens, religiões e
culturas. Diante disso, desde 2016, não cessam de aparecer matérias em tom
sensacionalista para demonizar a internet:
Para cada site que você pode visitar, existem pelo menos 400 outros que
não consegue acessar. Eles existem, estão lá, mas são invisíveis. Estão
presos num buraco negro digital maior do que a própria internet. A cada vez
que você interage com um amigo nas redes sociais, vários outros são
ignorados e têm as mensagens enterradas num enorme cemitério online. E,
quando você faz uma pesquisa no Google, não recebe os resultados de fato -
e sim uma versão maquiada, previamente modificada de acordo com
critérios secretos. Sim, tudo isso é verdade - e não é nenhuma grande
conspiração. Acontece todos os dias sem que você perceba. Pegue seu
chapéu de Indiana Jones e vamos explorar a web perdida.
(GRAVATÁ, 2016)
Isso náo significa negar que estamos agora vivendo em bolhas filtradas, nas
quais impera a homofilia. Esta leva à aceitação automática apenas daquilo
que funciona como espelho de nós mesmos o que produz a impressão
equivocada, 3 tida como legítima, de que nossas idéias são as corretas e
aquelas que predominam. Embora haja uma tendência do ser humano para
buscar e escolher aquilo que mais sintoniza com suas crenças, desde a era
da cultura de massas, cujo império hegemônico dominou até os anos 1970,
passamos a sofrer os impactos de uma mudança de escala no acesso à
informação. Essas mudanças estão se intensificando crescentemente em
meio à avalanche ininterrupta de informação que recebemos nesta era
digital.
Diante disso, o outro lado da moeda também deve ser considerado. Quer
dizer, a formação de bolhas não depende apenas de escolhas, mas são
também formas de filtragem que, inclusive, de um lado, neutralizam a
ansiedade que o excesso informacional tende a provocar, de outro, também
ajudam a administrar as invasões à privacidade. O problema é que estamos
em meio a contradições irresolvíveis, pois, ao mesmo tempo que as bolhas
tendem a diminuir as instabilidades provocados pelo acúmulo de
informação, quanto mais impermeáveis elas se tornam, tanto mais agenciam
a proliferação de paisagens falsas que provocam efeitos sensíveis na vida
real, especialmente na política, campo sobre o qual recaem as maiores
preocupações acerca das fake news (notícias falsas), como será discutido no
próximo capítulo. Isso se torna ainda mais preocupante diante de pesquisas
reveladoras de que, nos domínios que estão fora do discurso político, há
menos evidências de interferências das bolhas. Sistemas de recomendação,
por exemplo, apresentam mais diversidade de efeitos sobre as compras do
usuário (HOSANAGER et al., 2013), uma diversidade que não se repete
quando se trata de conteúdo político. Isso relativiza a crença de que a lógica
do mercado seja aquela que ocupa o papel de antagonista principal ao uso
saudável das redes.
Tem sido bastante citado pelos especialistas, o livro Net Smart: How to
Thrive Online (Net inteligente: como prosperar online), de um dos
mais conhecidos gurus do universo digital, Howard Rheingold (2012). A
partir da longa e larga experiência do autor com o funcionamento,
especialmente social, das redes, o livro está recheado de indicações de
caminhos na direção de um uso inteligente, humano e razoável desse meio
complexo. Para isso, o primeiro passo é abandonar a posição de receptores
passivos. Neste ponto, é fundamental a diferença que se estabelece entre a
interatividade meramente reativa e a interatividade participativa (PRIMO,
2000). Esta implica pensar sobre o que estamos fazendo, quais são nossos
objetivos, que contribuições essa atividade pode trazer. Para isso, não é
preciso transformar o uso das redes em uma atividade sisuda. São muitas as
possibilidades que a internet oferece, inclusive a do entretenimento
prazeroso que não precisa ser abandonado. O importante é ter algum tipo de
controle sobre a distração alienada e sobre o desenvolvimento de hábitos
saudáveis. Segundo Rheingold, saudável é aquilo que conduz
ao crescimento da confiança, da colaboração e da inteligência por meio das
redes. Isso envolve dois tipos de competência, tanto a competência técnica
para o uso das ferramentas disponíveis quanto a competência para a
interação e o engajamento social.
Dentro no mesmo espírito foi também lançado no Brasil o livro Como sair
das bolhas (FERRARI, 2018), com sinalizações dos caminhos e dos
meios disponíveis para furar as bolhas e delas escapar para desdobrar
pontos de vista e, sobretudo, responsabilizar-se por aquilo em que se crê
(SANTAELLA, 2018a). Existe nas redes um grande número de publicações
com aconselhamentos de modos profícuos para furar as bolhas. Schreder
(2018) nos apresenta três: (a) conheça seus vizinhos nas redes; (b)
mantenha uma dieta midiática equilibrada; (c) navegue pelo feed de outras
pessoas. Um site2 dedicado ao tema avança para cinco modos, enquanto
Seiter (2017) vai ainda além, ao apresentar doze modos cujo conteúdo está
mais voltado para combater preconceitos contra a diversidade racial.
0 que é novo
O que difere agora é o modo como as notícias sâo produzidas, disseminadas
e interpretadas. Tradicionalmente, na era hegemônica da comunicação
de massas, as notícias eram fabricadas em fontes restritas, relativamente
confiáveis na medida em que deveríam seguir práticas baseadas em códigos
estritos de deontologia, ou seja, o conjunto de deveres, princípios e normas
adotadas por um determinado grupo profissional, nesse caso, a profissão de
jornalista. A partir da emergência da internet, da cultura digital e das redes
sociais, surgiram novos modos de publicar, compartilhar e consumir
informação e notícias que são pouco submetidos a regulações ou padrões
editoriais.
Outro caso é aquele das notícias híbridas, quer dizer, matérias muitas vezes
corretas, mas atrapalhadas pela falsidade sensacionalista das chamadas. E
bastante conhecida a força que os títulos e as imagens têm para fisgar a
atenção dos usuários das redes. Não é senão ao poder das imagens que se
deve o enorme sucesso do Instagram. No caso dos títulos, quanto mais
sensacional ele for, mais atração produzirá. Portanto, mesmo um jornalismo
que se pretende confiável pode cair na armadilha da falsificação.
O que se pode inferir das discussões levadas a cabo sobre o tema é que a
falsidade funciona em toda a sua potência propagadora porque as
pessoas tendem irrefreavelmente a se recolher dentro das bolhas de seus
preconceitos. Tornam-se, assim, presas fáceis de interesses dos quais nao
conseguem se dar conta. Por estarem retidas dentro de suas próprias
cavernas platônicas tornam-se incapazes de furar o bolsâo de suas crenças
fixas para enxergar algumas clareiras fora delas. Portanto, são as bolhas que
expandem o poder exercido pelas NFs. A rigor, as bolhas não são as
causadoras diretas das NFs. Elas as incubam e ajudam no seu processo de
propagação. As pegadas, que vamos deixando no uso que fazemos das
redes, fornecem insights valiosos tanto para o marketing quanto para as
campanhas eleitorais.
“News”, por sua vez, foram definidas de modo amplo. Em lugar de tomar
como ponto de partida as fontes institucionais, foram consideradas
como notícias tudo aquilo que é publicado assertivamente, no Twitter, como
sendo notícia, suplementado por fontes confiáveis. Rumores, por outro lado,
são inerentemente sociais e envolvem o compartilhamento entre as pessoas
com a alegação de ser notícia. Cascadas de rumores têm início quando uma
afirmação, tanto verbal quanto fotográfica ou por meio de um link, é feita
sobre um tópico desencadeando uma ou mais cascadas e criando um padrão
de propagação de rumores.
Por fim, a pesquisa ainda revelou que os humanos são muito mais
responsáveis do que os robôs pela proliferação de notícias falsas. Não é
difícil supor que isso se dá porque os robôs não são acionados por emoções,
a grande gasolina que move o psiquismo humano. Ao final, os
pesquisadores aconselham que compreender como as notícias falsas se
propagam é um passo importante para saber como se livrar delas, uma
tarefa substancial quando se pensa que a verdade e a precisão estão
implicadas em quase todas as atividades humanas.
Roteiro de como criar urna noticia falsa como demonstrativo de quão fácil é
realizar essa atividade: www.react365.com
Boyd (2017) é bastante radical nos seus julgamentos. De fato, desde 2016,
as NFs se tornaram uma obsessão e os especialistas estão prontos para
colocar a culpa na estupidez humana. A pesquisadora, entretanto, considera
insuficiente o solucionismo em voga: mais especialistas são necessários
para rotular o falso, é preciso investir na educação para e nas mídias, as
mídias sociais têm a obrigação de deter a propagação das NFs. Ela não crê
que isso seja suficiente para segurar a avalanche. Além da rotulação do
falso é preciso ligar um sistema de alerta para o fato de que aquilo que está
em questão é a capacidade humana de fazer sentido, confiar e compreender
o papel de cada um e de todos em um mundo em metamorfose.
Tocando na mesma tecla, para Frias Filho (2018, p. 44), “o mais eficiente
anteparo contra as fake news - a melhor barreira de proteção da veracidade -
(C continua sendo a educação básica de qualidade, apta a estimular o
discernimento na escolha das leituras e um saudável ceticismo na forma de
absorvê-las”. Portanto, tanto contra as bolhas, que servem de alimento para
as FNs, quanto contra a sua cega disseminação não pode haver melhor
proteção do que o processo educativo pessoal, coletivo e público.
Para o Dicionário, por sua vez, a “pós-verdade” deve ser entendida em dois
$ sentidos diferentes: de um lado, o significado “depois que a verdade tenha
se tornado conhecida”, de outro lado, o significado inaugurado pelo artigo
de Tesich, a saber, o fato de que a verdade se tornou irrelevante (ibid.).
Assim, no seu sentido expandido, o prefixo “pós” não mais significa apenas
“depois de um evento ou situação específica” como, por exemplo, na
expressão “pós-guerra”, mas também implica “um tempo em que um
conceito se tornou irrelevante ou sem importância”, com foi o caso de pós-
nacional, em 1945 (ibid.).
No extrato que foi publicado de seu novo livro 21 Lessons for the 21st
century\ aparece a seguinte declaração do famoso escritor Yuval Noah
Harari: “Nao importa o lado em que nos colocamos, parece que, de fato,
estamos vivendo em urna terrificante era da pós-verdade, quando não
apenas incidentes militares, mas historias e naçóes inteiras podem ser
falsas”. Entretanto, Harari relativiza esse desastre ao chamar atenção ao
fato, para ele inexorável, de que nos humanos
Como teste dessa teoria, Fisher et al. (ibid.) fizeram experimentos nos quais
adultos participavam online de conversações políticas polarizadas sobre
temas polêmicos. Um grupo de participantes foi estimulado a discutir para
ganhar em um ambiente competitivo. O outro grupo foi encorajado a
discutir para aprender. Os resultados do primeiro grupo apenas confirmaram
suas certezas, enquanto, no segundo grupo, os resultados tomaram a direção
da compreensão. Entretanto, depois do experimento, a pergunta sobre
crença em uma verdade objetiva, que foi dirigida aos participantes de
ambos os lados, obteve como resultado que as pessoas “ficaram mais
objetivistas após discutirem para ganhar do que ficaram após argumentar
para aprender” (ibid., p. 69). Assim, o modo de discussão adotado muda
nossa compreensão acerca de uma questão.
Quanto mais argumentamos para vencer, mais sentimos que há uma única
resposta objetivamente correta e que todas as outras estão equivocadas. Em
▼ contrapartida, quanto mais argumentamos para aprender, mais sentimos
que não há uma única verdade objetiva e que diferentes respostas podem
estar igualmente corretas (ibid.).
A guerra na ciência
O ponto de partida para se compreender minimamente de onde vêm as
atuais controvérsias encontra-se na reviravolta provocada pela obra A
estrutura das revoluções científicas de Thomas Kuhn (1962) nas
precedentes concepções da história e filosofia da ciência. Antes de Kuhn, a
ciência era concebida como reunião de fatos, teorias e métodos, cujo
desenvolvimento se dá de forma gradativa, através de contribuições
isoladas que vão se adicionando cumulativamente ao estoque de
conhecimento e técnicas existentes. Assim, a história da ciência se
preocupava com os obstáculos e avanços no desenvolvimento científico,
registrando autoria e cronologia de descobertas e denunciando os erros,
superstições e mitos que impediam uma acumulação mais rápida do
conhecimento. Foi justamente contra essa visão linear e progressiva que a
obra de Kuhn se insurgiu, produzindo uma verdadeira revolução
na historiografia da ciência.
A tese kuhniana, em síntese, é a de que o avanço científico ocorre por
saltos, ou seja, por episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais
as realizações científicas universalmente reconhecidas entram em crise,
sendo substituídas total ou parcialmente por outras, que se mostram
incompatíveis com o que antes era aceito como inquestionável. As
realizações científicas universalmente reconhecidas podem ser
compreendidas sob o nome de paradigmas, e os episódios de
desenvolvimento não-cumulativo que colocam esse -reconhecimento em
crise, como mudanças de paradigma. O termo paradigma suscitou muitas
discussões que levaram Kuhn a substituí-lo por “matriz disciplinar”.
Em um outro artigo ainda mais incisivo, sob o título de “In defense of post-
truth” (Em defesa da pós-verdade), Fuller (2017) lança seus ataques contra
os filósofos, ao declarar que “os filósofos veem a verdade por aquilo que
ela é: o nome de urna marca sempre em busca de um produto que todos sâo
compelidos a comprar”. E por isso que “os filósofos apelam para a verdade
quando tentam persuadir não filósofos, estejam eles em tribunais ou em
salas de aula”, continua o autor para completar com a afirmação de que “a
verdade acaba sendo qualquer coisa que é decidida pelo juiz que está no
poder no caso em questão”.
IV A reivindicação da verdade no
jornalismo
Sempre foi tarefa precipua do jornalismo reivindicar para si a veracidade
dos fatos noticiados, fatos no sentido de acontecimentos existentes, quer
dizer, situações que ocorreram ou estão ocorrendo. Diante da torrente de
notícias, muitas vezes enganadoras, que hoje engrossa e viaja a velocidades
inéditas pelas redes, essa tradicional tarefa do jornalismo veio à tona com
força jamais vista. Contudo, não faltam críticos que têm alertado para falhas
cometidas pelo jornalismo convencional, esse mesmo jornalismo que hoje
aponta dedos acusatorios para as redes sociais como se o seu próprio
passado não apresentasse máculas.
Alguns dos autores que assinaram artigos no dossiê da Revista Usp 116
(2018), dedicado ao tema da pós-verdade e o jornalismo, náo deixam
de relembrar justamente casos pregressos do jornalismo institucional
situados longe da veracidade dos fatos. Genesini (2018, p. 48) aponta para a
ingenuidade daqueles que sustentam que as notícias falsas são responsáveis
por estarmos vivendo em um mundo pós-verdadeiro. “O real é que tal
mundo nunca existiu. A impossível e improvável expectativa de que algum
dia as notícias falsas desaparecerão não trará de volta o nirvana de uma
verdade perdida que nunca houve”.
Pode-se fazer minguar uma culpa muito grande falando baixo e pouco dela
ou inflar uma culpa muito pequena falando alto e insistentemente nela.
Pode-se "relacionar", "envolver" ou "ligar" fortemente alguém a alguém
mesmo que essa ligação seja tênue e fortuita, com a mera justaposição de
matérias. Pode-se descontextualizar um fato para fazê-lo parecer o que não
é, condenar à não existência midiática alguém que vive de voto, brincar
com a inversão da relevância do que alguém disse ou deixou de dizer até
fazer do sujeito o avesso de si mesmo. Pode-se promover o linchamento
moral de quem não declamar pela cartilha "correta" até que a mentira deixe
de ser uma questão moral e se transforme numa questão de sobrevivência.
a maioria das fake news não pode ser classificada simplesmente como falsa
ou verdadeira. 0 que pode reduzir seu efeito danoso são análises e pontos de
vistas diversos e bem fundamentados. Não há pessoa ou instituição que faça
isso com mais autoridade e mérito do que o bom - e mesmo o médio e
medíocre jornalismo. Portanto, a solução para o problema das fake news e
do Facebook não é menos, mas é mais jornalismo. Hannah Arendt,
se estivesse viva, certamente concordaria.
Por isso, “a marca distintiva da verdade fatual consiste em que seu contrário
não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre
a veracidade pessoal, e sim a falsidade deliberada, a mentira”. Não se pode
negar que o erro também é possível no que diz respeito à verdade factual.
Afinal, errar é humano, como professa o falibilismo que rege a filosofia
peirciana, o que não
O que tudo isso me leva a advogar, apoiada em Arendt, é que existe urna
verdade fatual, ou seja, há uma correspondência que deve ser buscada, na
medida do possível, entre os acontecimentos e os discursos que os
reportam. Uma correspondência que precisa ser rigorosamente buscada a
despeito dos ardis da linguagem. Caso contrário, o jornalismo e a
historiografia perderiam sua razão de ser e as interpretações não passariam
de um troca-troca de jogos de linguagem. Embora os jogos sejam
constitutivos dos discursos, todo discurso está determinado por aquilo que
ele visa reportar. No caso da verdade fatual, que podemos também chamar
de semiose indiciai, aquilo que é reportado, de fato, aconteceu no mundo
dos vivos. E quando o discurso ignora, desrespeita, distorce, manipula os
fatos, entramos, sem dúvida no universo da pós-verdade. Isso significa que,
para responder à questão colocada no título deste pequeno " livro, no campo
da verdade factual, a pós-verdade é e sempre foi verdadeira. Quer dizer,
deve haver uma verdade, aquela dos fatos ocorridos, que as fake news estão
hoje levando à derrocada, o que legitima a denominação de “pós-verdade”.
E por isso que existe hoje tanto movimento voltado para a checagem dos
fatos, justo porque eles existem. Alguns têm considerado que as
inúmeras instituições voltadas para essa atividade representam uma espécie
de revanche do jornalismo convencional contra as redes sociais. Se
levarmos em conta que a verdade fatual tem por base um dado de
existência, tal julgamento não convém.
VI Outras verdades
Dou início a este capítulo ainda na companhia de Hannah Arendt, quando,
ecoando Nietzsche, afirma que “entre os modos existenciais de dizer a
verdade sobrelevam-se a solidão do filósofo, o isolamento do cientista e do
artista, a imparcialidade do historiador e do juiz e a independência do
descobridor de fatos, da testemunha e do relator” (ARENDT, 1972, p. 320).
Arendt faz a distinção entre verdade fatual e verdade racional. Esta última
deve se referir tanto ao universo da ciência quanto ao da filosofia. Embora
ambas trabalhem com a razão, assim o fazem de modo diverso, uma
distinção que busco caracterizar como as verdades provisórias da ciência e a
reflexão sobre a verdade na filosofia. O que une ambas, a semiótica
peirciana nos ajuda a esclarecer. A classificação mais geral, que Peirce
estabeleceu dos tipos de referência de que as linguagens são capazes,
apresenta uma distinção entre (a) referências possíveis (a serem apreciadas
mais à frente), (b) existenciais e (c) gerais. Das existenciais provêm as
verdades de fato, esboçadas no capítulo anterior. Das gerais provêm as
verdades racionais. As verdades de fato mantêm uma relação dual entre os
fatos e a expressão que recebem em discursos que os indicam e que os dão a
conhecer. Entre o discurso e os fatos que eles indicam, há uma relação dual,
existencial. De outro lado, as relações entre a verdade racional e seu objeto
são muito mais complexas. No caso da ciência, elas são mediadas por
sistemas codificados de leis que são expressas em teorias caracterizadas
por redes de conceitos interligados, métodos para atingir seus
objetivos, procedimentos, protocolos e justificativas. Comecemos, portanto,
pela ciência.
Justamente porque lida apenas com verdades provisórias é que não cabem à
ciência os rótulos de pós-verdade, como também não cabem à filosofia.
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ou-fake-novo-servico-de-checagem-de-conteudos-suspeitos.ghtml?
utm_source=facebook&utm_medium=share-bar-
desktop&utm_campaign=share-bar
6 https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,arte-da-
mentira,10000075581
7 https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth
8 https://www.theguardian.com/culture/2018/aug/05/yuval-noah-
harari-extract-fake-news-sapiens-homo-deus
9 https://iainews.iai.tv/articles/issue-54-the-limits-of-reason-auid-791
Coleção Interrogações
Vivemos saturados de informações em sociedades arquicomplexas. Desde
as labutas da vida cotidiana até as tarefas mais especializadas, tudo parece
ter perdido a solidez em um emaranhado de incertezas. Interrogações não
faltam ao amanhecer de cada dia. Esta coleção, que A Estação das Letras e
Cores Editora lança ao público em geral, busca colocar em discussão
questões candentes com que a realidade social, na teia entrecruzada de seus
fios políticos, culturais, tecnológicos, psíquicos e educacionais, está nos
desafiando. Estratégias responsivas não são possíveis sem que os impasses
sejam devidamente pensados. Não se trata de buscar respostas acabadas,
mas sim desenvolver o apetite pela reflexão capaz de alimentar o
pensamento crítico.
Sobre a autora
Lucia Santaella é pesquisadora 1 A do CNPq, professora titular na pós-
graduação em Comunicação e Semiótica e coordenadora da pós-graduação
em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUCSP). Doutora em
Teoria Literária pela PUCSP e Livre-docente em Ciências da Comunicação
pela USP. Foi professora convidada em várias universidades no exterior. Já
levou à defesa 248 mestres e doutores. Publicou 46 livros e organizou 19,
além da publicação de mais de 400 artigos no Brasil e no exterior. Recebeu
os prêmios Jabuti (2002, 2009, 2011, 2014), o prêmio Sérgio Motta (2005)
e o prêmio Luiz Beltrão (2010).