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1. Apresentação
2. I O que as bolhas ocultam
1. Como opera a homofilia
2. Distinções entre redes sociais e motores de busca
3. Outros lados da questão
4. O que fazer para furar as bolhas
3. II A propagação de notícias falsas
1. 0 que é novo
2. As variações das Notícias Falsas (NFs)
3. Pesquisas para amparar ações eficazes
4. Como se livrar das NFs?
4. III Uma era da pós-verdade?
1. A pós-verdade no tsunami das fake news
2. A guerra na ciência
5. IV A reivindicação da verdade no jornalismo
1. Imprecisões entre a verdade e a inverdade
6. V A verdade fatual e o jornalismo
1. 0 que é verdade fatual
2. A verdade na cena da política
7. VI Outras verdades
1. As verdades provisórias da ciência
2. 0 pensamento da verdade na filosofia
3. As verdades possíveis da arte e da literatura
8. Referências
9. Coleção Interrogações
10. Sobre a autora
A PÓS-VERDADE É VERDADEIRA OU FALSA?
Lucia Santaella
2018
LUm Estaçao
I ÍM das Letras
Dfle Cores
S231p
Santaella, Lucia
96 p.; e PUB.
Inclui bibliografia.
CDD 070
2018-1446
CDU 070
2. Jornalismo 070
www.facebook.com/estacaodasletrasecoreseditora/
(Nietzsche)
Apresentação
A propagação de notícias falsas
Uma era da pós-verdade?
A reivindicação da verdade no jornalismo
A verdade fatual e o jornalismo
Outras verdades
Coleção Interrogações
Sobre a autora
Apresentação
Náo pode haver dúvida de que as tecnologias das redes digitais abriram
caminhos para a democratização do uso e consumo das mídias,
mudando sobremaneira o que, na era pré-redes, se costumava chamar de
espaço público e formação de opinião. De um número comparativamente
pequeno de fontes de informação destinadas a uma massa de receptores, hoje
a multiplicação de plataformas para redes sociais, blogs, sites e outras
conveniências, permite a qualquer um, de forma praticamente gratuita,
disseminar quaisquer tipos de conteúdo para quaisquer outros usuários que,
podem, inclusive, mudar instantaneamente seu papel de receptor para aquele
de emissor em um jogo de vai e vem ininterrupto.
Nesse livro e no Ted protagonizado pelo autor que corre pela internet, Pariser
chama a atenção para o fato de que o Google personaliza o que cada usuário
obtém como resposta às suas buscas. Quando milhares de usuários podem
estar fazendo uma mesma busca ao mesmo tempo, o que pode explicar esse
aparente milagre? Ora, mais e mais, o monitor de nossos computadores é uma
espécie de espelho unilateral que reflete tão só e apenas nossos
próprios interesses, enquanto os algoritmos observam tudo o que clicamos.
Essa é a resposta de Pariser e todo o seu livro gira em torno desse estranho
voyeurismo que não serve apenas a interesses sexuais, mas, sobretudo, a
interesses políticos e mercadológicos. Em suma,
Tudo o que você gosta de ver e ouvir em serviços de streaming, quem você
curte nas redes sociais, o que você compra nas lojas online, o que você joga
no seu videogame, suas viagens, seus desejos, suas conversas por email ou
mesmo no whatsapp; tudo isso está sendo
monitorado 24h pelo grande olho da rede. Essa grande máquina social
invisível, fruto da enorme personalização dos ambientes online, usa todos os
dados coletados da sua vida digital para te oferecer tudo aquilo que ela
considera relevante para você. (...) O problema é que esta personalização
extrema da nossa vida conectada provoca o que alguns estudiosos chamam de
"câmaras de eco" ou "salas espelhadas", onde tudo o que vemos
e consumimos é reflexo de nós mesmos. (MANSERA, 2015)
Uma espécie de prova de que é assim que as coisas funcionam veio com os
acontecimentos políticos de 2016. Quem havia tomado conhecimento do
livro de Pariser, estava melhor preparado para a grande surpresa do que
estavam os incautos. Além de “câmera de eco”, um termo que já costumava
ser empregado para se referir às mídias tradicionais e que foi também
transferido para o universo online, outra expressão que vem sendo usada para
o fenômeno das bolhas é “molduras ideológicas”. Ainda outro nome que
também aparece é “ciberbalcanização”, cunhada pelos pesquisadores do MIT,
Van Alstyne e Brynjolfsson. Este termo se refere à região da Europa que foi
historicamente subdividida por diferenças de linguagens, religiões e culturas.
Diante disso, desde 2016, não cessam de aparecer matérias em tom
sensacionalista para demonizar a internet:
Para cada site que você pode visitar, existem pelo menos 400 outros que não
consegue acessar. Eles existem, estão lá, mas são invisíveis. Estão presos
num buraco negro digital maior do que a própria internet. A cada vez que
você interage com um amigo nas redes sociais, vários outros são ignorados e
têm as mensagens enterradas num enorme cemitério online. E, quando você
faz uma pesquisa no Google, não recebe os resultados de fato - e sim uma
versão maquiada, previamente modificada de acordo com critérios secretos.
Sim, tudo isso é verdade - e não é nenhuma grande conspiração. Acontece
todos os dias sem que você perceba. Pegue seu chapéu de Indiana Jones e
vamos explorar a web perdida. (GRAVATÁ, 2016)
As bolhas, portanto, são constituídas por pessoas que possuem a mesma visão
de mundo, valores similares e o senso de humor em idêntica sintonia. Isso se
constitui em um ambiente ideal para a proliferação de memes e de
trolagem, esta última uma espécie de trote que visa levar as pessoas a
tomarem a sério uma brincadeira enganadora até o ponto de se sentirem
lesadas, quando se comprova a funcionalidade da trolagem. Esses tipos de
humor com propósito de enganar são peças fáceis para se tornarem viráis,
especialmente porque empregam como coadjuvantes imagens, legendas e
chamadas sensacionalistas.
Portanto, pessoas que procuram notícias e informações nas mídias sociais têm
mais risco de cair na armadilha das bolhas coletivas do que aquelas que usam
os motores de busca. Essa diferença também evidencia um crescimento
das bolhas coletivas compartilhadas por indivíduos com a mesma forma
mental. Dada a importância do consumo de notícias para o desenvolvimento
do discurso cívico, essa evidência é especialmente relevante para a hipótese
da influência das bolhas no fortalecimento de preconceitos.
Diante disso, o outro lado da moeda também deve ser considerado. Quer
dizer, a formação de bolhas não depende apenas de escolhas, mas são
também formas de filtragem que, inclusive, de um lado, neutralizam a
ansiedade que o excesso informacional tende a provocar, de outro, também
ajudam a administrar as invasões à privacidade. O problema é que estamos
em meio a contradições irresolvíveis, pois, ao mesmo tempo que as bolhas
tendem a diminuir as instabilidades provocados pelo acúmulo de informação,
quanto mais impermeáveis elas se tornam, tanto mais agenciam a proliferação
de paisagens falsas que provocam efeitos sensíveis na vida real,
especialmente na política, campo sobre o qual recaem as maiores
preocupações acerca das fake news (notícias falsas), como será discutido no
próximo capítulo. Isso se torna ainda mais preocupante diante de pesquisas
reveladoras de que, nos domínios que estão fora do discurso político, há
menos evidências de interferências das bolhas. Sistemas de recomendação,
por exemplo, apresentam mais diversidade de efeitos sobre as compras do
usuário (HOSANAGER et al., 2013), uma diversidade que não se repete
quando se trata de conteúdo político. Isso relativiza a crença de que a lógica
do mercado seja aquela que ocupa o papel de antagonista principal ao uso
saudável das redes.
Tem sido bastante citado pelos especialistas, o livro Net Smart: How to
Thrive Online (Net inteligente: como prosperar online), de um dos
mais conhecidos gurus do universo digital, Howard Rheingold (2012). A
partir da longa e larga experiência do autor com o funcionamento,
especialmente social, das redes, o livro está recheado de indicações de
caminhos na direção de um uso inteligente, humano e razoável desse meio
complexo. Para isso, o primeiro passo é abandonar a posição de receptores
passivos. Neste ponto, é fundamental a diferença que se estabelece entre a
interatividade meramente reativa e a interatividade participativa (PRIMO,
2000). Esta implica pensar sobre o que estamos fazendo, quais são nossos
objetivos, que contribuições essa atividade pode trazer. Para isso, não é
preciso transformar o uso das redes em uma atividade sisuda. São muitas as
possibilidades que a internet oferece, inclusive a do entretenimento prazeroso
que não precisa ser abandonado. O importante é ter algum tipo de controle
sobre a distração alienada e sobre o desenvolvimento de hábitos saudáveis.
Segundo Rheingold, saudável é aquilo que conduz ao crescimento da
confiança, da colaboração e da inteligência por meio das redes. Isso envolve
dois tipos de competência, tanto a competência técnica para o uso das
ferramentas disponíveis quanto a competência para a interação e
o engajamento social.
Dentro no mesmo espírito foi também lançado no Brasil o livro Como sair
das bolhas (FERRARI, 2018), com sinalizações dos caminhos e dos
meios disponíveis para furar as bolhas e delas escapar para desdobrar pontos
de vista e, sobretudo, responsabilizar-se por aquilo em que se crê
(SANTAELLA, 2018a). Existe nas redes um grande número de publicações
com aconselhamentos de modos profícuos para furar as bolhas. Schreder
(2018) nos apresenta três: (a) conheça seus vizinhos nas redes; (b) mantenha
uma dieta midiática equilibrada; (c) navegue pelo feed de outras pessoas. Um
site2 dedicado ao tema avança para cinco modos, enquanto Seiter (2017) vai
ainda além, ao apresentar doze modos cujo conteúdo está mais voltado para
combater preconceitos contra a diversidade racial.
Durante algum tempo também se acreditou que a educação para e nas mídias
deveria estar sob a responsabilidade de setores estritamente educativos. Isso
mudou drasticamente, pois o maior papel cabe agora à sociedade civil,
por meio do engajamento de um número cada vez maior de setores, projetos
e participantes. E por isso também que não basta considerar os intermediários
da informação, seja nas mídias tradicionais ou nas novas mídias, como os
únicos responsáveis pelos problemas. Ao contrário, é uma tarefa coletiva,
nada fácil, que reclama por ações criativas como antídotos à propaganda
enganadora, às falas de ódio, aos conteúdos preconceituosos e às notícias
falsas.
Muitos comentadores têm chamado atenção para o fato de que a falsidade das
notícias não é um fenômeno inteiramente novo, pois já existia no tempo
dos gregos (MORGAN, 2018) e, mais recentemente, desde que o tema entrou
em pauta, não têm faltado artigos sobre o histórico das notícias falsas através
do tempo (MALIK, 2017, ver também VICTOR, 2017; HARARI, 2018),
inclusive um artigo oportuno com a indicação de livros cuja leitura é
substancial para a verificação bem fundamentada de que notícias falsas
sempre existiram sobretudo em momentos históricos cruciais (MILLER,
2017).
0 que é novo
O que difere agora é o modo como as notícias sâo produzidas, disseminadas e
interpretadas. Tradicionalmente, na era hegemônica da comunicação
de massas, as notícias eram fabricadas em fontes restritas, relativamente
confiáveis na medida em que deveríam seguir práticas baseadas em códigos
estritos de deontologia, ou seja, o conjunto de deveres, princípios e normas
adotadas por um determinado grupo profissional, nesse caso, a profissão de
jornalista. A partir da emergência da internet, da cultura digital e das redes
sociais, surgiram novos modos de publicar, compartilhar e consumir
informação e notícias que são pouco submetidos a regulações ou padrões
editoriais.
Outro caso é aquele das notícias híbridas, quer dizer, matérias muitas vezes
corretas, mas atrapalhadas pela falsidade sensacionalista das chamadas. E
bastante conhecida a força que os títulos e as imagens têm para fisgar a
atenção dos usuários das redes. Não é senão ao poder das imagens que se
deve o enorme sucesso do Instagram. No caso dos títulos, quanto mais
sensacional ele for, mais atração produzirá. Portanto, mesmo um jornalismo
que se pretende confiável pode cair na armadilha da falsificação.
Há ainda o exemplo das mensagens que sâo construídas com algum engenho
para confirmar parcialidades e preconceitos. Seu alvo é sempre dirigido
àqueles que se regozijam no conforto da rigidez de seus modos de pensar e
sentir, como garantias para maneiras de agir imutáveis.
O tipo mais prejudicial nesse elenco falsificador encontra-se nas propagandas
intencionalmente enganadoras com a finalidade de promover pontos de
vista tendenciosos, quase sempre para alimentar causas e programas políticos.
De fato, a área mais afetada pelas NFs é inegavelmente a da política,
justamente esse campo de atuação e decisão de que dependem os destinos da
democracia nesta era do pós-digital. A democracia implica que as pessoas
estejam devidamente informadas sobre temas candentes de modo a serem
capazes de debater e tomar decisões.
O que se pode inferir das discussões levadas a cabo sobre o tema é que a
falsidade funciona em toda a sua potência propagadora porque as
pessoas tendem irrefreavelmente a se recolher dentro das bolhas de seus
preconceitos. Tornam-se, assim, presas fáceis de interesses dos quais nao
conseguem se dar conta. Por estarem retidas dentro de suas próprias cavernas
platônicas tornam-se incapazes de furar o bolsâo de suas crenças fixas para
enxergar algumas clareiras fora delas. Portanto, são as bolhas que expandem
o poder exercido pelas NFs. A rigor, as bolhas não são as causadoras diretas
das NFs. Elas as incubam e ajudam no seu processo de propagação. As
pegadas, que vamos deixando no uso que fazemos das redes, fornecem
insights valiosos tanto para o marketing quanto para as campanhas eleitorais.
“News”, por sua vez, foram definidas de modo amplo. Em lugar de tomar
como ponto de partida as fontes institucionais, foram consideradas
como notícias tudo aquilo que é publicado assertivamente, no Twitter, como
sendo notícia, suplementado por fontes confiáveis. Rumores, por outro lado,
são inerentemente sociais e envolvem o compartilhamento entre as pessoas
com a alegação de ser notícia. Cascadas de rumores têm início quando uma
afirmação, tanto verbal quanto fotográfica ou por meio de um link, é feita
sobre um tópico desencadeando uma ou mais cascadas e criando um padrão
de propagação de rumores.
Roteiro de como criar urna noticia falsa como demonstrativo de quão fácil é
realizar essa atividade: www.react365.com
Boyd (2017) é bastante radical nos seus julgamentos. De fato, desde 2016, as
NFs se tornaram uma obsessão e os especialistas estão prontos para colocar
a culpa na estupidez humana. A pesquisadora, entretanto, considera
insuficiente o solucionismo em voga: mais especialistas são necessários para
rotular o falso, é preciso investir na educação para e nas mídias, as mídias
sociais têm a obrigação de deter a propagação das NFs. Ela não crê que isso
seja suficiente para segurar a avalanche. Além da rotulação do falso é preciso
ligar um sistema de alerta para o fato de que aquilo que está em questão é a
capacidade humana de fazer sentido, confiar e compreender o papel de cada
um e de todos em um mundo em metamorfose.
Tocando na mesma tecla, para Frias Filho (2018, p. 44), “o mais eficiente
anteparo contra as fake news - a melhor barreira de proteção da veracidade -
(C continua sendo a educação básica de qualidade, apta a estimular o
discernimento na escolha das leituras e um saudável ceticismo na forma de
absorvê-las”. Portanto, tanto contra as bolhas, que servem de alimento para as
FNs, quanto contra a sua cega disseminação não pode haver melhor proteção
do que o processo educativo pessoal, coletivo e público.
Para o Dicionário, por sua vez, a “pós-verdade” deve ser entendida em dois $
sentidos diferentes: de um lado, o significado “depois que a verdade tenha
se tornado conhecida”, de outro lado, o significado inaugurado pelo artigo
de Tesich, a saber, o fato de que a verdade se tornou irrelevante (ibid.).
Assim, no seu sentido expandido, o prefixo “pós” não mais significa apenas
“depois de um evento ou situação específica” como, por exemplo, na
expressão “pós-guerra”, mas também implica “um tempo em que um
conceito se tornou irrelevante ou sem importância”, com foi o caso de pós-
nacional, em 1945 (ibid.).
No extrato que foi publicado de seu novo livro 21 Lessons for the 21st
century\ aparece a seguinte declaração do famoso escritor Yuval Noah
Harari: “Nao importa o lado em que nos colocamos, parece que, de fato,
estamos vivendo em urna terrificante era da pós-verdade, quando não apenas
incidentes militares, mas historias e naçóes inteiras podem ser falsas”.
Entretanto, Harari relativiza esse desastre ao chamar atenção ao fato, para ele
inexorável, de que nos humanos
Isso tudo não revela outra coisa senão a crise de valores provocada, entre
outros fatores, pela sobredeterminação que a emoção exerce na
racionalidade humana, pela ausência do debate público e de formas de
consenso que as redes sociais pulverizaram, em suma, problemas que o ajuste
de algoritmos, por si só, não consegue resolver e que, ao fim e ao cabo,
evidenciam o sintoma maior, para o qual muitos especialistas têm chamado
atenção: o desfalque das democracias -representativas.
Como teste dessa teoria, Fisher et al. (ibid.) fizeram experimentos nos quais
adultos participavam online de conversações políticas polarizadas sobre
temas polêmicos. Um grupo de participantes foi estimulado a discutir para
ganhar em um ambiente competitivo. O outro grupo foi encorajado a discutir
para aprender. Os resultados do primeiro grupo apenas confirmaram suas
certezas, enquanto, no segundo grupo, os resultados tomaram a direção da
compreensão. Entretanto, depois do experimento, a pergunta sobre crença em
uma verdade objetiva, que foi dirigida aos participantes de ambos os lados,
obteve como resultado que as pessoas “ficaram mais objetivistas após
discutirem para ganhar do que ficaram após argumentar para aprender” (ibid.,
p. 69). Assim, o modo de discussão adotado muda nossa compreensão acerca
de uma questão.
Quanto mais argumentamos para vencer, mais sentimos que há uma única
resposta objetivamente correta e que todas as outras estão equivocadas. Em
▼ contrapartida, quanto mais argumentamos para aprender, mais sentimos
que não há uma única verdade objetiva e que diferentes respostas podem
estar igualmente corretas (ibid.).
A guerra na ciência
O ponto de partida para se compreender minimamente de onde vêm as atuais
controvérsias encontra-se na reviravolta provocada pela obra A estrutura das
revoluções científicas de Thomas Kuhn (1962) nas precedentes concepções
da história e filosofia da ciência. Antes de Kuhn, a ciência era concebida
como reunião de fatos, teorias e métodos, cujo desenvolvimento se dá de
forma gradativa, através de contribuições isoladas que vão se
adicionando cumulativamente ao estoque de conhecimento e técnicas
existentes. Assim, a história da ciência se preocupava com os obstáculos e
avanços no desenvolvimento científico, registrando autoria e cronologia de
descobertas e denunciando os erros, superstições e mitos que impediam uma
acumulação mais rápida do conhecimento. Foi justamente contra essa visão
linear e progressiva que a obra de Kuhn se insurgiu, produzindo uma
verdadeira revolução na historiografia da ciência.
Em um outro artigo ainda mais incisivo, sob o título de “In defense of post-
truth” (Em defesa da pós-verdade), Fuller (2017) lança seus ataques contra os
filósofos, ao declarar que “os filósofos veem a verdade por aquilo que ela é:
o nome de urna marca sempre em busca de um produto que todos sâo
compelidos a comprar”. E por isso que “os filósofos apelam para a verdade
quando tentam persuadir não filósofos, estejam eles em tribunais ou em salas
de aula”, continua o autor para completar com a afirmação de que “a verdade
acaba sendo qualquer coisa que é decidida pelo juiz que está no poder no
caso em questão”.
IV A reivindicação da verdade no
jornalismo
Sempre foi tarefa precipua do jornalismo reivindicar para si a veracidade dos
fatos noticiados, fatos no sentido de acontecimentos existentes, quer
dizer, situações que ocorreram ou estão ocorrendo. Diante da torrente de
notícias, muitas vezes enganadoras, que hoje engrossa e viaja a velocidades
inéditas pelas redes, essa tradicional tarefa do jornalismo veio à tona com
força jamais vista. Contudo, não faltam críticos que têm alertado para falhas
cometidas pelo jornalismo convencional, esse mesmo jornalismo que hoje
aponta dedos acusatorios para as redes sociais como se o seu próprio passado
não apresentasse máculas.
Alguns dos autores que assinaram artigos no dossiê da Revista Usp 116
(2018), dedicado ao tema da pós-verdade e o jornalismo, náo deixam
de relembrar justamente casos pregressos do jornalismo institucional situados
longe da veracidade dos fatos. Genesini (2018, p. 48) aponta para a
ingenuidade daqueles que sustentam que as notícias falsas são responsáveis
por estarmos vivendo em um mundo pós-verdadeiro. “O real é que tal mundo
nunca existiu. A impossível e improvável expectativa de que algum dia as
notícias falsas desaparecerão não trará de volta o nirvana de uma verdade
perdida que nunca houve”.
Genesini (2018, p. 55) entra no mesmo coro, opinando que a saída não é
exigir que haja mais intervenção e regulação de autoridades externas.
“Aceitamos como razoável quando o controle começa, mas nunca sabemos
onde e quando acaba. O risco de transformar-se em censura e cerceamento à
liberdade de expressão é real e sempre presente”.
Chapman (apud SUDHIR, 2017) também comenta que está se tornando cada
vez mais difícil distinguir entre fato e opinião já que, nas redes, o relato
dos fatos comumente fica mesclado a inserções de pessoalidade e marcas
de subjetividade disfarçadas ou explícitas que só os especialistas em análise
do discurso podem diagnosticar com agudeza. Realmente, como lembra
Genesini (ibid., p. 52), a questão crucial é intrincada. “A parte da ‘verdade’
que pode ser efetivamente verificada, preto no branco, é pequena. A verdade
efetivamente factual é, feliz ou infelizmente, limitada e incapaz de refletir
aspectos relevantes da realidade”. Mais do que isso:
Fica clara a dificuldade em carimbar muitas afirmações taxativamente de
verdadeiras e falsas. Muitos enunciados têm contexto, têm timing, têm
subtextos, usam números e estatísticas como argumento para sustentar um
ponto de vista. Em alguns casos é possível ser exato. Em muitos outros, o
trabalho de checagem é muito mais de análise e agregação de
informações que um veredito final (ibid., p. 53).
Pode-se fazer minguar uma culpa muito grande falando baixo e pouco dela
ou inflar uma culpa muito pequena falando alto e insistentemente nela. Pode-
se "relacionar", "envolver" ou "ligar" fortemente alguém a alguém mesmo
que essa ligação seja tênue e fortuita, com a mera justaposição de matérias.
Pode-se descontextualizar um fato para fazê-lo parecer o que não é, condenar
à não existência midiática alguém que vive de voto, brincar com a
inversão da relevância do que alguém disse ou deixou de dizer até fazer do
sujeito o avesso de si mesmo. Pode-se promover o linchamento moral de
quem não declamar pela cartilha "correta" até que a mentira deixe de ser uma
questão moral e se transforme numa questão de sobrevivência.
a maioria das fake news não pode ser classificada simplesmente como falsa
ou verdadeira. 0 que pode reduzir seu efeito danoso são análises e pontos de
vistas diversos e bem fundamentados. Não há pessoa ou instituição que faça
isso com mais autoridade e mérito do que o bom - e mesmo o médio e
medíocre jornalismo. Portanto, a solução para o problema das fake news e do
Facebook não é menos, mas é mais jornalismo. Hannah Arendt, se estivesse
viva, certamente concordaria.
Embora todo discurso seja por natureza interpretativo e traga, mesmo que
involuntariamente, marcas da pessoalidade de quem o enuncia, o fato,
o acontecimento, a situação a que o discurso se reporta são
indestrutíveis. Inegavelmente, ocorreram. A tarefa do jornalismo é reportar,
trazê-los à luz por meio de interpretações tanto quanto possível lúcidas. Mas,
infelizmente, a verdade dos fatos pode ser tripudiada, vilipendiada,
manipulada até se converter em mentira deslavada. E por isso que não passa
de idiotice proclamar a existência de fatos alternativos, como quis a
conselheira de Trump, a Sra. Kellyanne Conway que, diante da chuvarada de
críticas, corrigiu a tolice por “fatos adicionais ou informação alternativa”.
Fatos adicionais sempre há. Quanto à informação alternativa, a questão é
mais complexa, pois depende do recorte da realidade que é selecionado e que,
muitas vezes, pode deliberadamente levar a distorções. O que é ainda mais
complexo e precisa ser considerado é que toda ocorrência ou situação
existente atualiza uma dentre outras potencialidades 3 inerentes. Para Arendt,
os fatos são contingentes porque poderiam sempre ter sido diferentes. Mas,
uma vez dada a ocorrência, trata-se de fait accompli (fato consumado). Não
há como mudar o passado a bel prazer a não ser pela mentira ou pelas falhas
da memória.
Por isso, “a marca distintiva da verdade fatual consiste em que seu contrário
não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre
a veracidade pessoal, e sim a falsidade deliberada, a mentira”. Não se pode
negar que o erro também é possível no que diz respeito à verdade factual.
Afinal, errar é humano, como professa o falibilismo que rege a filosofia
peirciana, o que não
O que tudo isso me leva a advogar, apoiada em Arendt, é que existe urna
verdade fatual, ou seja, há uma correspondência que deve ser buscada, na
medida do possível, entre os acontecimentos e os discursos que os reportam.
Uma correspondência que precisa ser rigorosamente buscada a despeito dos
ardis da linguagem. Caso contrário, o jornalismo e a historiografia perderiam
sua razão de ser e as interpretações não passariam de um troca-troca de jogos
de linguagem. Embora os jogos sejam constitutivos dos discursos, todo
discurso está determinado por aquilo que ele visa reportar. No caso da
verdade fatual, que podemos também chamar de semiose indiciai, aquilo que
é reportado, de fato, aconteceu no mundo dos vivos. E quando o discurso
ignora, desrespeita, distorce, manipula os fatos, entramos, sem dúvida no
universo da pós-verdade. Isso significa que, para responder à questão
colocada no título deste pequeno " livro, no campo da verdade factual, a pós-
verdade é e sempre foi verdadeira. Quer dizer, deve haver uma verdade,
aquela dos fatos ocorridos, que as fake news estão hoje levando à derrocada,
o que legitima a denominação de “pós-verdade”.
E por isso que existe hoje tanto movimento voltado para a checagem dos
fatos, justo porque eles existem. Alguns têm considerado que as
inúmeras instituições voltadas para essa atividade representam uma espécie
de revanche do jornalismo convencional contra as redes sociais. Se levarmos
em conta que a verdade fatual tem por base um dado de existência, tal
julgamento não convém.
VI Outras verdades
Dou início a este capítulo ainda na companhia de Hannah Arendt, quando,
ecoando Nietzsche, afirma que “entre os modos existenciais de dizer a
verdade sobrelevam-se a solidão do filósofo, o isolamento do cientista e do
artista, a imparcialidade do historiador e do juiz e a independência do
descobridor de fatos, da testemunha e do relator” (ARENDT, 1972, p. 320).
Uma leitura semiótica da frase acima nos redireciona para tipos diferenciados
de verdade. O historiador, o juiz, o descobridor de fatos, a testemunha e
o relator estão, de urna forma ou de outra, ligados e responsabilizados pela
verdade dos fatos, ou seja, aquela que, no capítulo anterior, foi caracterizada
sob a égide de uma relação indexical em que o discurso verbal ou híbrido dá
expressão a ocorrências vividas. Esse não é o caso do cientista, nem é o do
filósofo e nem é igualmente o do artista.
Arendt faz a distinção entre verdade fatual e verdade racional. Esta última
deve se referir tanto ao universo da ciência quanto ao da filosofia. Embora
ambas trabalhem com a razão, assim o fazem de modo diverso, uma distinção
que busco caracterizar como as verdades provisórias da ciência e a reflexão
sobre a verdade na filosofia. O que une ambas, a semiótica peirciana nos
ajuda a esclarecer. A classificação mais geral, que Peirce estabeleceu dos
tipos de referência de que as linguagens são capazes, apresenta uma distinção
entre (a) referências possíveis (a serem apreciadas mais à frente), (b)
existenciais e (c) gerais. Das existenciais provêm as verdades de fato,
esboçadas no capítulo anterior. Das gerais provêm as verdades racionais. As
verdades de fato mantêm uma relação dual entre os fatos e a expressão que
recebem em discursos que os indicam e que os dão a conhecer. Entre o
discurso e os fatos que eles indicam, há uma relação dual, existencial. De
outro lado, as relações entre a verdade racional e seu objeto são muito mais
complexas. No caso da ciência, elas são mediadas por sistemas codificados
de leis que são expressas em teorias caracterizadas por redes de conceitos
interligados, métodos para atingir seus objetivos, procedimentos, protocolos e
justificativas. Comecemos, portanto, pela ciência.
Isso significa que, na ciência, toda verdade é provisória. Isto porque a ciência
é alimentada pela pesquisa e pela investigação cujo objetivo não é chegar
à verdade total e para sempre verdadeira, mas sim, atingir, como diria Peirce,
um novo estado da crença que, mais cedo ou mais tarde, levará a uma nova
dúvida, e assim por diante. Uma investigação pode ser considerada finalizada
quando ela é capaz de resolver uma dúvida ou problema, quer dizer, ao obter
uma nova crença sobre a questão proposta, sem que isso signifique o ganho
de uma verdade para sempre inquestionável.
Justamente porque lida apenas com verdades provisórias é que não cabem à
ciência os rótulos de pós-verdade, como também não cabem à filosofia.
Rorty foi um grande admirador de Dewey e deste tomou como princípio que
“a filosofia não pode oferecer nada mais que hipóteses, e essas hipóteses
têm valor apenas à medida que tornam as mentes humanas mais sensíveis à
vida ao seu redor” (DEWEY apud RORTY, 2005, p. xiii).
Karl Marx, atento ao papel que as artes desempenham na educação dos cinco
sentidos, considerava que a afirmação humana no mundo objetivo não se
da “apenas no pensar, mas também com todos os sentidos”. Para isso, são as
artes que entram em cena.
Referências
ARENDT, Hannh. Verdade e política. In: Entre o passado e o futuro. Sâo
Paulo: Perspectiva, pp. 282-325, 1972.
BAKER, Erik & ORESKES, Naomi. It’s no game: post-truth and the
obligations of science studies. Social Epistemology Review and Reply
Collective 6(8), pp. 1-10, 2017a. https://social-
epistemology.com/2017/07/10/its-no-game-post-truth-and-the-obligations-of-
science-studies-erik-baker-and-naomi-oreskes/.
Acesso: 02/02/2018.
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3 https://www.webwise.ie/teachers/what-is-fake-news/
4 http://www.childnet.com/blog/fake-news-and-critical-thinking
5 https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/07/30/g1-lanca-fato-
ou-fake-novo-servico-de-checagem-de-conteudos-suspeitos.ghtml?
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6 https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,arte-da-
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7 https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth
8 https://www.theguardian.com/culture/2018/aug/05/yuval-noah-
harari-extract-fake-news-sapiens-homo-deus
9 https://iainews.iai.tv/articles/issue-54-the-limits-of-reason-auid-791
Coleção Interrogações
Vivemos saturados de informações em sociedades arquicomplexas. Desde as
labutas da vida cotidiana até as tarefas mais especializadas, tudo parece
ter perdido a solidez em um emaranhado de incertezas. Interrogações não
faltam ao amanhecer de cada dia. Esta coleção, que A Estação das Letras e
Cores Editora lança ao público em geral, busca colocar em discussão
questões candentes com que a realidade social, na teia entrecruzada de seus
fios políticos, culturais, tecnológicos, psíquicos e educacionais, está nos
desafiando. Estratégias responsivas não são possíveis sem que os impasses
sejam devidamente pensados. Não se trata de buscar respostas acabadas, mas
sim desenvolver o apetite pela reflexão capaz de alimentar o pensamento
crítico.
Sobre a autora
Lucia Santaella é pesquisadora 1 A do CNPq, professora titular na pós-
graduação em Comunicação e Semiótica e coordenadora da pós-graduação
em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUCSP). Doutora em
Teoria Literária pela PUCSP e Livre-docente em Ciências da Comunicação
pela USP. Foi professora convidada em várias universidades no exterior. Já
levou à defesa 248 mestres e doutores. Publicou 46 livros e organizou 19,
além da publicação de mais de 400 artigos no Brasil e no exterior. Recebeu
os prêmios Jabuti (2002, 2009, 2011, 2014), o prêmio Sérgio Motta (2005) e
o prêmio Luiz Beltrão (2010).