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EDITORA
INTRODUÇÃO
Outrora os seres humanos eram encarados como fazendo parte da criação divina,
sendo considerados pela maioria das pessoas como filhos de Deus, depois como fazendo
parte de uma religião, sendo considerados como filhos da Igreja, obtendo a misericórdia
e a bênção divina, depois sendo considerados como fazendo parte de um país,
adquirindo direitos. Depois de filhos de Deus, que lhe permitia a misericórdia divina e o
dever do amor entre os seres humanos, passaram a ser encarados cidadãos, no espaço
público, e portanto não apenas religioso, detentores de direitos, e a filiação deixou de
ser religiosa para ser político-jurídica (ou também, e sobretudo, político-jurídica). No
entanto, atualmente o espaço público passou a ser também virtual, do “espaço público”
passámos ao ”ciberespaço”, e de “cidadãos” passámos a ser “internautas”. Isso fez
surgir um novo tipo de cidadania, a cibercidadania, em que a voz dos cidadãos se
faz ouvir sobretudo através da Internet. Nos tempos de hoje a sociedade está cada vez
mais mediatizada pela Internet, pois tudo se diz e faz através dela, e em muitos casos
apenas através dela : informações, trabalho, negócios, compras, divertimentos, política,
religião, cultura, amizades, amores, etc.
Na Internet há a destacar principalmente as redes sociais, pois são o meio de
comunicação mais utilizado. As redes sociais passaram a definir o mundo de hoje, e
muitos dos que a elas não aderiram, ou que deixaram de as ter, são encarados com
estranheza, como se fossem ascetas, párias da sociedade, pessoas à margem e
desvinculadas do mundo “real”, isto é, virtual. O peso das redes sociais no mundo de
hoje é de tal maneira importante, que até os políticos as utilizam. Assim, por exemplo o
antigo presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump foi eleito recorrendo
principalmente às redes sociais para fazer a sua campanha eleitoral. Em Portugal, por
exemplo, em Agosto de 2021 a Conferência Episcopal Portuguesa viu-se obrigada a
intervir por causa de uma polémica surgida nas redes sociais sobre a leitura de um texto
da Bíblia, numa missa transmitida pela RTP, uma carta do apóstolo Paulo (Efésios 5,
22-23). Nessa carta o apóstolo Paulo diz que as mulheres devem ser submissas aos
maridos, e a transmissão dessa missa pela televisão portuguesa foi feita na mesma
ocasião em que os Talibãs no Afeganistão tinham tomado de novo o poder, os quais,
como é sabido, discriminam muito as mulheres. A polémica foi gerada nas redes sociais,
e a Conferência Episcopal Portuguesa deu portanto uma grande importância às redes
sociais.
O Homem é um ser social, mas conforme lembra Kant, é dotado de uma
“sociabilidade insociável”, socialmente insociável, ou dito de outra forma,
insociavelmente sociável. 1
Conforme também lembra Schopenhauer, e que permite
compreender melhor a afirmação de Kant, os seres humanos devem manter entre si uma
distância moderada para que a convivência seja possível : nem demasiado juntos uns
dos outros, nem demasiado distantes. 2
Através das redes sociais, aparentemente as pessoas estão mais distantes, pois
não se encontram fisicamente juntas umas com as outras, mas por outro lado,
aparentemente estão mais próximas, pois é muito mais fácil comunicarem umas com as
outras, diretamente, sem intermediários, e mesmo com pessoas que vivem longe
geograficamente. Ora, as redes sociais puseram as pessoas mais próximas ou mais
distantes umas das outras ? as chamadas “redes sociais” são realmente sociais ?
A redes sociais têm várias vantagens, mas também várias desvantagens e
problemas, de que iremos falar ao longo deste livro. Através das redes sociais as pessoas
comunicam mais umas com as outras, mas isso não significa que comuniquem melhor,
antes pelo contrário. Através das redes sociais as pessoas estão mais informadas, mas
isso não significa que estejam bem informadas, antes pelo contrário. Através das redes
sociais há muitos contactos entre as pessoas, mas isso não significa que as pessoas
tenham mais e melhores amizades, no verdadeiro sentido do conceito de amizade.
As redes sociais estão muito marcadas por esta ambivalência : por um lado
permitem que as pessoas sejam mais elas mesmas, devido ao anonimato e ao facto de
não se encontrarem frente a frente fisicamente umas com as outras, permitindo-lhes por
isso dizerem o que sentem e o que pensam (por exemplo através dos comentários
ofensivos ou dos discursos de ódio). Por outro lado, as redes sociais permitem que as
pessoas se escondam e construam sobre si, para os outros utilizadores, uma imagem
idealizada, fazendo-se passar por quem não são, de modo a cativarem melhor os outros
(por exemplo nas amizades e nos amores virtuais).
Nunca as pessoas comunicaram tanto umas com as outras como nas redes
sociais, mas por outro lado nunca se sentiram tão sós, por passarem tantas horas
seguidas presas e alienadas a uma realidade virtual. Nunca houve tanta informação
como nas redes sociais, mas por outro lado nunca houve tanta desinformação e tanta
poluição informativa. Os utilizadores das redes sociais são apanhados por muitas
armadilhas da comunicação e da informação, pois nem tudo o que se quer comunicar é
1
Kant, Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolítico, Lisboa, Ed. Didática Editora,
1999, pp. 13-14.
2
Arthur Schopenhauer, Parerga e paralipomena, volume II, capítulo XXXI, seção 396, Porto Alegre, Ed.
Zouk, p. 28.
comunicação, nem tudo o que se quer informar é informação, a comunicação é por
vezes anti comunicação, e a informação é por vezes contra informação. O carater
público das redes sociais, isto é, o facto de serem mensagens todos e para todos, é uma
ilusão, pois nessa terra de ninguém que são as redes sociais, domina sobretudo o
egoísmo, o individualismo, o narcisismo, em que cada utilizador só pensa em ver e
exibir a sua opinião e os seus sentimentos, estabelecendo-se uma concorrência
desenfreada, não ao serviço do bem público, mas sim de si próprio, em que muitas vezes
parece que vale tudo, nem que os seus utilizadores tenham de se esconder atrás do ecrã
do computador, usarem um perfil ou um nome falso. Através das redes sociais,
conforme veremos ao longo deste livro, a comunicação acaba por ser uma ficção, uma
ligação imaginária, pois uma grande parte dessas pessoas nunca saem do mundo virtual,
vivendo uma vida irreal, assim como a informação, que também é muitas vezes falsa.
Os conteúdos do presente apresentam aquilo consideramos ser o mundo
problemático das redes sociais. Isso implica que há diversos mundos nas redes sociais, e
que um deles é um mundo problemático, e ao nos referirmos a “um deles” significa
portanto que não generalizamos. Nem toda a gente utiliza mal as redes sociais, e
conforme já dissemos, as redes sociais têm muitos aspetos positivos, mas há um grande
número dos seus utilizadores que a utilizam de forma descontrolada, exagerada,
irracional, irreal. Nas redes sociais há muitas duplas personalidades, muitos perfis
falsos, muitas mentiras, muitas deturpações da realidade, muita agressividade verbal,
egocentrismo, dependência, comportamento aditivo, mania, obsessão, depressão, baixa
auto estima, exibicionismo, voyeurismo, etc. Nas redes sociais o objetivo principal de
muitos utilizadores é o alarmismo, o sensacionalismo, a busca constante de atenção dos
outros a todo o custo, muitas vezes ultrapassando certos limites. Embora esses
comportamentos também existam fora das redes sociais, estas permitem aumentar e
mostrar esses comportamentos, em muitos casos facilitam-nos e incentivam-nos, sob o
pretexto da chamada liberdade de expressão.
Este livro tem portanto como objetivo falar sobre o mau uso das redes sociais,
mostrando em que consiste esse mau uso, e fazendo uma reflexão sobre ele. A
designação de “mau uso” possa ser considerada como um pleonasmo, pois o uso das
redes sociais é para muitas pessoas avaliado sempre como mau, chegando ao ponto de
muitas delas recusarem-se a ter redes sociais, e por conseguinte para essas pessoas não
tem sentido distinguir entre mau uso e bom uso. Existem as seguintes possibilidades
quanto à sua avaliação: o uso das redes sociais é sempre bom, logo não tem sentido falar
em mau uso; o seu uso é por um lado mau e por outro lado bom; o bom uso é afetado
pelo mau uso logo também entra no mau uso; o bom uso não é afetado; o bom uso afeta
em parte, e em parte não. Seja como for, embora reconheçamos que o uso das redes
sociais é também um bom uso, o mau uso das redes sociais está bastante generalizado, e
é aliás o uso predominante. Este livro mostra portanto as dificuldades, os problemas e as
desvantagens das redes sociais, ou seja, o seu mau uso, fazendo consequentemente
apelo a uma ética da comunicação e a uma melhor utilização das redes sociais.
Este livro é principalmente um resultado da experiência pessoal do seu autor nas
redes sociais, e de conversas com pessoas que tiveram ou têm também experiência nas
redes sociais. Não se baseia em reflexões de nenhum tratado específico sobre o tema,
nem em mestres e especialistas. O conhecimento atento do mundo de hoje, a análise
dos factos que a atualidade fornece, e a minha experiência pessoal com as redes sociais,
constituíram fundamentalmente o que foi necessário para a escrita deste livro. No
entanto, há que salientar também o importante contributo de algumas leituras que fiz de
alguns livros e artigos, que estão referidos na bibliografia deste livro, assim como outras
referências bibliográficas.
Finalmente há que salientar que ao falarmos neste livro sobre as redes sociais,
referimo-nos ao Facebook, ao Twitter, ao TikTok, ao Youtube, ao Linkedin, ao
Instagram, ao Pinterest, ao Google+, ao Tumblr, ao My Space, ao Mirc, ao Orkut, ao
Badoo, etc. Estes são exemplos das redes sociais mais utilizadas, e que são
consideradas geralmente as mais importantes. No entanto, a rede social mais utilizada
no mundo atualmente é o Facebook, que apesar de ter surgido na mesma época que o
Orkut, alcançou sua popularidade mundial depois do Orkut e do Twitter, e que devido
ao facto de ser a mais utilizada pelo público, é a principal rede social de referência deste
livro.
HOSTILIDADE E VIOLÊNCIA VERBAL
OS COMENTÁRIOS OFENSIVOS ENTRE OS UTILIZADORES
É muito habitual os utilizadores das redes sociais falarem sobre temas políticos,
económicos, morais, religiosos, urbanísticos, estéticos, ou sobre temas banais (futebol,
carros, gastronomia, etc.), até mesmo sobre a forma como uma pessoa está vestida, nas
fotos colocadas nas redes sociais, ou ainda sobre outras fotografias, que originam por
vezes muitos comentários entre os utilizadores das redes sociais, nomeadamente
determinadas formas de fazerem esses comentários. Referimo-nos aqui a comentários
entre utilizadores desconhecidos, ou entre conhecidos e amigos, uns reais e outros
virtuais, sobre aquilo que cada um deles diz nos textos e fotos que publica.
Esta situação acontece muito em utilizadores que tendem sistematicamente a
desestabilizar uma discussão, a atrapalhar o que o outro diz, e a provocar e a enfurecer
outros utilizadores das redes sociais. Há várias formas de o fazer : lançar a isca (uma
pequena mensagem incendiária, para provocar uma discussão polémica, mas não se
envolver na discussão); colocar notícias ou outro tipo de texto que sejam polémicos,
apenas para observar a reação dos membros de uma determinada página das redes
sociais; envolver-se nas discussões; levar a pessoa que é alvo do comentário a perder o
bom senso na discussão, fazendo-a descer a um nível baixo e conseguir que essa pessoa
se auto difame; repetir um conjunto de comentários provocantes que leve o seu
interlocutor à exaustão e a sair vencido da discussão, por já não aguentar mais tantos
comentários; um comentador fazer uso do seu bom nível intelectual em determinada
matéria diante dos utilizadores de uma determinada página, exibindo referências e
contradizendo os argumentos de outros comentadores, expondo-os ao ridículo de modo
a fazer notar a sua falta de conhecimentos em determinadas matérias; levantar questões
pertinentes ao tema, onde se esteja melhor preparado, mesmo que isso implique desviar-
se do cerne da questão, para continuar a exibir os sus dotes intelectuais; repetir um
conjunto de falácias que distorçam a argumentação; dizer que o outro interlocutor disse
coisas que não disse; distorcer os comentários, fazendo ver determinadas coisas que o
outro interlocutor não tinha a intenção de dizer; fazer afirmações descontextualizadas;
acusar o ofendido de ser aquilo que o ofensor é ou faz, considerando que é um erro ser
ou fazer isso, como se ele também não o fosse ou não o fizesse, de modo que, portanto,
quem faz esse comentário tire de si a identificação como tal; ludibriar os leitores,
colocando textos ou fotografias enganadoras, e material de natureza duvidosa, etc.
Há um truque nas redes sociais, muito utilizado principalmente no Facebook,
que consiste em colocar uma mensagem ofensiva de alguém, sobre os comentários dos
seus contactos e amigos. Parece que foi esse alguém que o escreveu, mas não foi. A
pessoa utilizada não vê, mas os seus contactos e amigos veem e pensam que foi essa
pessoa que o fez. Esta situação pode causar muitos mal-entendidos. Os comentários
muitas vezes também estão cheios de mal entendidos, pois o utilizador da rede social
queria dizer uma determinada coisa e foi mal interpretado. É bastante frequente certos
comentadores quererem apenas chamar a atenção, provocarem somente polémica, e
semearem a discórdia. Muitos comentadores nas redes sociais desafiam-se uns aos
outros a fazerem determinadas “proezas” e o objetivo é superar e aumentar a capacidade
de provocação lançada por outro comentador. Nestes casos, os comentadores testam os
seus próprios limites, havendo uma busca constante de aprovação e de valorização por
parte dos outros comentadores, principalmente quando estão perante amigos, com o
objetivo de demonstrarem que são “destemidos”, “poderosos”, “inteligentes”, que para
eles tudo é possível e que nada de mal lhes acontece mesmos quando ultrapassam esses
limites.
O objetivo de muitos comentadores nas redes sociais é apenas dar a sua opinião,
mais do que ouvir a alheia, vivem centrados em si mesmos, e a opinião dos outros é
somente uma oportunidade para expressarem a sua própria opinião, cada um só se ouve
a si próprio, ou só ouve quem diz o mesmo que ele, e entra facilmente em conflito com
quem discorda. Há muitos utilizadores das redes sociais que andam sempre à procura
dos enganos dos outros utilizadores em determinadas coisas que dizem (sobre notícias
de acontecimentos do dia a dia, sobre informações de caráter enciclopédico, etc.), e têm
muito o gosto e o hábito de os corrigir. Muitos dos que são corrigidos ficam zangados
ou envergonhados por terem sido corrigidos e alguns sentem-se humilhados.
Geralmente as pessoas não gostam de serem chamadas à atenção em público, muito
menos num meio com um público tão vasto como o das redes sociais, e isso também
provoca conflitos.
As redes sociais estão cheias de presunçosos e de sabichões, qualquer criatura
insignificante pode chamar a atenção, e aparece toda a idiotice. Muitos dos seus
utilizadores, devido à liberdade de escreverem sobre os mais variados assuntos e de o
poderem exibir, falam sempre sobre tudo, estão sempre em cima dos acontecimentos,
acham que sabem de tudo, mas não compreendem nem falam de nada em profundidade,
caindo na mera superficialidade, por vezes com uma máscara ou um artifício de
profundidade. Sempre houve pessoas presunçosas e muito convencidas de que tinham
razão, mas nunca se lhes tinha dado a palavra publicamente como acontece agora com
as redes sociais. Ao contrário dos procedimentos tradicionais sobre a formação da
opinião pública, as redes sociais derrubam indiretamente o pressuposto da competência
numa determinada matéria, a partir do momento em que todo e qualquer utilizador das
redes sociais pode ser considerado competente para julgar ou expressar uma
consideração. Alguns pensam que por terem alcançado uma formação numa
determinada área estão desde logo habilitados a exprimir considerações sobre tudo, e ao
circularem nas redes sociais manifestam as suas considerações com muita altivez e
arrogância, armando-se em sabichões sobre determinada matéria, como se fossem
especialistas sobre aquilo de que falam. Há casos em que um verdadeiro especialista
num determinado assunto é confrontado por um indivíduo que não percebe nada desse
assunto, mas este apesar de não saber nada do assunto recebe com desagrado as
observações do especialista (ou de alguém que percebe do assunto), e apesar de
ignorante não manifesta o mínimo de humildade, e em vez disso zanga-se e contesta,
respondendo que o que diz é um exercício do direito à liberdade de expressão e de
opinião.
Por exemplo, uns negam a existência ou o perigo do novo coronavírus, outros
defendem a sua existência e o seu perigo, e atacam quem o nega, ou vice-versa. Uns
negam a existência das alterações climáticas e o seu perigo, outros defendem a sua
existência. Há os que dizem que na Ciência não há verdade. Há os que pensam que as
suas opiniões têm tanto valor como as verdades da Ciência. Há os que não sabem de
Filosofia mas corrigem os outros como se soubessem muito. Há os que dizem coisas
erradas, e ainda levam a mal quando são corrigidos. Poucos indivíduos são capaz de
reconhecerem os seus erros, e em vez de agradecerem a quem os informou, ficam
ofendidos e ofendem. Muitos comentadores dos textos que aparecem nas redes sociais
fazem apreciações descabidas, comentários despropositados, dizem falsidades, coisas
sem nexo, banalidades, mas mesmo assim acham-se muito sabedores.
O mal não está apenas naquilo que dizem mas na forma como o dizem, pois não
recorrem a nenhuma argumentação, e em vez disso colocam por exemplo um desenho
irónico, ou apresentam argumentação fraca. Os comentários de muitos dos utilizadores
das redes sociais, estão cheios de muita argumentação falaciosa, e nesta argumentação
uma das técnicas mais usadas é a chamada falácia ad hominem (contra o homem).
Assim, por não se ter ou já não se ter mais argumentos, em vez de se atacar ou refutar a
tese do comentador, ataca-se o próprio comentador que a defende, com alusões ou
referências diretas a características pessoais, que poderão centrar-se por exemplo na sua
classe social, no seu partido político, na sua religião, na sua profissão, na sua orientação
sexual, etc. Muitas vezes os objetivos desses comentários consistem em desviar a
atenção daquilo que está a ser discutido. Assim, por exemplo nos comentários entre os
utilizadores que já se conhecem pessoalmente, ou sobre outros utilizadores que não se
conhecem pessoalmente mas cuja vida pessoal o comentador conhece, ou que é
conhecida publicamente, aparecem muitas vezes determinados comentários atacando,
desvalorizando ou ridicularizando aquilo que o outro comentador diz, chamando a
atenção para o facto de o outro comentador ou da pessoa criticada ser um ex presidiário,
um ex toxicodependente, um homem casado que tem amantes, etc. Mesmo que o outro
comentador ou a pessoa cuja vida pessoal é referida tenha razão naquilo que disse, o seu
opositor centra-se na sua vida pessoal como forma de o atacar.
Outra técnica usada acontece quando um dos interlocutores não consegue
argumentar, e leva então a discussão para a ironia. Alguns textos são irónicos, mas há
muitos tipos de ironia, que uns poderão considerar ofensiva e outros não, considerando-
a uma mera brincadeira. O outro comentador poderia entrar no jogo, e brincar também,
mas não o faz, e fica muito ofendido. Alguns comentadores não acatam as ironias, ficam
muito incomodados e ofendem-se facilmente. Por vezes alguns textos ou comentários de
certos comentadores, apesar de serem uma mera brincadeira, são imediatamente
encarados por outros comentadores como sendo agressivos. Portanto, por vezes o
problema não está apenas nas pessoas que fazem os comentários, mas também nas
pessoas que são alvo desses comentários, ou nas pessoas que não sendo alvo desses
comentários se apressam a atacar quem os fez.
Tanto os indivíduos cujos textos são comentados como os indivíduos que leem
os comentários são demasiado suscetíveis, e por vezes acontece mesmo que os
indivíduos que não têm nada a ver com a discussão, e que portanto não são visados, se
metem na discussão, pois também se ofendem demasiado facilmente com tudo, por
vezes por serem demasiado moralistas, ou por não serem nada moralistas. Outros
comentadores são demasiado suscetíveis por considerarem que há determinadas
matérias que são intocáveis, e que é uma falta de respeito criticá-las. Assim, por
exemplo em discussões sobre religião, muitos crentes sentem-se imediatamente
ofendidos, e a “sacralidade” da sua crença religiosa é um dos argumentos que costumam
utilizar para não serem confrontados com ideias contrárias (por exemplo sobre a
proibição de transfusões de sangue entre as Testemunhas de Jeová). Muitos crentes
religiosos apresentam o “argumento” da ofensa : “sinto-me ofendido”, por se tratar de
uma crença religiosa, como se as convicções religiosas não pudessem ser discutidas e
criticadas, ao contrário das outras convicções, como por exemplo as políticas.
Até mesmo em certas páginas das redes sociais cujos utilizadores têm interesses
comuns, e que foram criadas para esses utilizadores, verifica-se uma enorme falta de
respeito desses utilizadores uns pelos outros. Seria de esperar que nessas páginas, em
que existem pessoas com os mesmos gostos, e as mesmas formas de estar na vida, essas
pessoas não fossem tão agressivas umas com as outras, mas por vezes acontece
precisamente o contrário, como por exemplo em páginas nas redes sociais para pessoas
da mesma ideologia política, da mesma crença religiosa, ou da mesma orientação
sexual. Há muitas vezes uma grande insegurança na parte dessas pessoas, como por
exemplo nos homossexuais, que libertam as suas frustrações e a sua homofobia
internalizada, e se atacam uns aos outros, descarregando dentro das páginas das redes
sociais a hostilidade vinda da sociedade, atacando-se a si próprios por tudo e por nada.
Muitos dos comentários dos utilizadores das redes sociais, sejam quais forem os
temas, são insultuosos, vergonhosos, agressivos, os comentadores ficam muito
exaltados, e não são capazes de manter a serenidade nem de terem uma conversa séria.
São discussões em que cada pessoa diz o que quer, aquilo que lhe apetece, ou o que lhe
convém dizer, sem pensar no que diz, estando ali apenas para vencer a discussão, para
descarregar as suas frustrações, a sua raiva, ou para se exibir, nada a fazendo mudar,
mesmo que a argumentação do outro interlocutor seja uma boa argumentação e tenha
lógica aquilo que ele diz. Essa atitude acontece por exemplo nas discussões sobre
religião, pois ainda que um ateu tenha bons argumentos contra a existência de Deus,
nada fará mudar uma pessoa fanática religiosa, que se move não pela razão mas sim
pelas emoções.
Em alguns casos o comentador age sozinho, mas também pode acontecer seguir-
se um conjunto de comentários, uns atrás dos outros, em que acaba por se formar um
grupo virtual, que reage agressivamente àquilo que a outra pessoa disse, a insultam e a
ridicularizam. Isso acontece por exemplo entre adolescentes, que acabam muitas vezes
por ridicularizarem nas redes sociais um colega de Escola, e sempre que este aparece a
comentar qualquer coisa nas redes sociais, atacam-no verbalmente (e por vezes
fisicamente, fora das redes sociais). Em certos fóruns de discussão na Internet, para se
ter “mais razão” (com se aquilo que é dito por mais pessoas faça com que seja mais
razoável o que é dito), há técnicas em que o comentador obtém comentadores falsos,
isto é, indivíduos forjados por um único indivíduo, respondendo este através de vários
comentadores, que são falsos, pois são a mesma pessoa (este recurso é conhecido por
“clone”), fazendo as vítimas serem massacradas “por todos”, para dar mais peso aos
ataques que um determinado indivíduo faz.
Outros tipos de comentários nas redes sociais são aqueles que são feitos não
sobre os utilizadores desconhecidos e o que eles dizem mas sim sobre figuras públicas
(políticos, escritores, artistas, músicos, cantores, futebolistas, etc.). Temos assim por
exemplo um cantor que tenha feito uma cirurgia plástica ao nariz, e que coloca as suas
fotos nas redes sociais, e que é alvo de comentários depreciativos. Temos também por
exemplo alguém do Jet Set que tenha feito uma cirurgia plástica, que ao colocar nas
redes sociais fotos do seu novo visual, é alvo de ridicularização, piadas, comentários
depreciativos e desrespeitosos. No caso das redes sociais, a situação é muito pior do que
se a divulgação tivesse feita através de outros meios, pois os seus utilizadores vão
partilhando uns aos outros determinadas fotografias, como por exemplo da presença de
figuras públicas num determinado evento social, e como são de figuras públicas, a lei
não penaliza a divulgação dessas fotografias, muito menos quando foi a própria pessoa
que as colocou nas redes sociais.
Ainda sobre figuras públicas, um dos melhores exemplos são os comentários
abusivos, depreciativos e agressivos sobre o desempenho dos jogadores de futebol.
Existem jogadores de futebol famosos que abandonaram as redes sociais, devido aos
comentários ofensivos de adeptos do clube onde jogavam, ou de adeptos de clubes
rivais, mas pior do que isso é o facto de alguns jogadores terem abandonado o próprio
futebol, devido aos comentários ofensivos de que eram vítimas continuamente nas redes
sociais. Isso aconteceu por exemplo com o jogador Josh Hope, da Tamânia, na
Austrália, que fazia parte da equipa Melbourne Victory, que decidiu abandonar a sua
carreira. As redes sociais tinham muitos comentários agressivos sobre o seu
desempenho desportivo, apesar dele ser um brilhante jogador. Este jogador passou
pouco a pouco a ficar com ansiedade, medo de ir treinar, medo de entrar em campo e
poder cometer algum erro futebolístico (ou não necessariamente um erro, mas algum
desempenho que não agradasse aos adeptos do seu clube ou dos clubes rivais). Os
comentários ofensivos nas redes sociais começaram a afetar não apenas o seu
desempenho desportivo em campo mas também a sua saúde mental. Além disso, os
comentários nas redes sociais passaram a ser não apenas sobre o seu desempenho
desportivo, mas também comentários sobre coisas pessoais : sobre a sua aparência
física, nomeadamente sobre o seu penteado. Passou também a receber ameaças físicas, e
algumas de morte, e esse jogador não encontrou outra alternativa senão deixar uma
brilhante carreira no futebol.
Para certos utilizadores das redes sociais os comentários aos comentários que
outros fazem é uma diversão, um divertimento, uma maneira de obterem prazer na
indignação de outros utilizadores, ou de observarem a sua fragilidade mental e
emocional. Isso não significa necessariamente que os atingidos sejam pessoas frágeis no
seu dia a dia, mas o conteúdo de determinados comentários nas redes sociais, a forma
como são feitos esses comentários, a sua insistência, e as técnicas de ridicularizar
acabam por os fragilizar. Uma forma de evitar isso é a vítima bloquear o comentador
agressivo, mas por outro lado a pessoa atingida sente-se injustiçada e sente-se no seu
direito de responder. Outra forma de evitar isso é a pessoa que é alvo desses
comentários sair desse grupo na rede social, mas isso pode também ser interpretado
como acatamento das acusações, ou como um ato de cobardia. Outra forma de proteção
é a pessoa que é vítima de comentários ofensivos não permitir que ninguém publique
ou transfira nada para a sua página nas redes sociais, mas isso não impede que essa
pessoa continue a ser vítima desses comentários em páginas temáticas das redes sociais,
ou nas páginas de outros utilizadores.
O ASSÉDIO VIRTUAL
O assédio virtual designa-se também por cyberbullying, que é uma palavra que é
formada pelas palavras cyber (diminutivo de cybernetic, isto é, algo que possui
tecnologia avançada) e bullying (uma palavra originária da palavra inglesa bully que
significa valentão, brigão). A palavra bullying significa intimidar, amedrontar, agredir
verbalmente ou fisicamente, e aplica-se portanto também à palavra assédio.
O assédio ou bullying presencial tem os seus intervenientes juntos um do outro,
e é praticado por um indivíduo ou mais indivíduos, contra outro indivíduo ou mais
indivíduos, num espaço concreto, ao ar livre ou dentro de um edifício, podendo portanto
acontecer no dia a dia, por exemplo entre alunos de uma Escola, ou entre colegas de
trabalho. No que diz respeito ao estado de espírito, o assédio ou bullying, do lado do
emissor, caracteriza-se pela sua intenção, deliberação e persistência, e do lado do
recetor, caracteriza-se pela sua indesejabilidade.
As práticas do assédio, nuns casos virtual e noutros casos presencial, consistem
em perturbar, perseguir, incomodar, importunar, e tem as seguintes características :
assédio verbal (insultar, humilhar e apelidar alguém pejorativamente); assédio moral
(difamar, caluniar, difundir rumores); assédio psicológico (perseguir, amedrontar,
aterrorizar, intimidar, manipular, chantagear); assédio físico (ameaças e agressão
corporal); assédio material (furtar, roubar, destruir os bens pessoais de outrem); assédio
sexual (abuso e agressão).
Uma das formas de assédio a salientar é o moral, que é praticado por um
supervisor, direto ou indireto, no local de trabalho, expondo o trabalhador a situações
intimidantes e repetitivas, durante o tempo de trabalho, perante os colegas, ou em
privado, por exemplo no escritório do chefe. Outra forma de assédio a salientar é o
sexual, que se caracteriza por qualquer ação ou comportamento sexual que acontece
sem o consentimento da outra pessoa. Esse tipo de assédio engloba uma série de
comportamentos, que vão desde o contato físico até a um comentário com conotação
sexual. Com muita frequência, temos o assédio verbal, que pode acontecer em diversos
contextos e pode envolver tanto pessoas próximas como desconhecidas. Esta forma de
assédio caracteriza-se por constantes ridicularizações, vaias, insultos, provocações ou
ameaças a uma pessoa.
O assédio virtual é uma extensão destas formas de assédio, e distingue-se delas
por não ser presencial. Diferentemente das outras formas de assédio, o assédio virtual
ou cyberbulying é feito através da Internet, nomeadamente através das redes sociais
(exceto a agressão física e o dano a bens materiais), através de certas páginas, fóruns de
discussão, blogues, mas também através de correio eletrónico, ou através do telefone,
principalmente o telemóvel. Através do correio eletrónico ou do telefone/telemóvel
geralmente não há público a assistir, e não está permanentemente disponível como nas
redes sociais.
O assédio virtual através de correio eletrónico pode ser por exemplo uma pessoa
enviar continuamente e-mails a outra pessoa, com motivos amorosos ou sexuais, através
dos quais o destinatário recebe propostas de namoro, de casamento, ou de prática
sexual. Podem ser também e-mails de ódio, intimidantes ou ameaçadores em relação ao
destinatário, como forma de chantagem, em que por exemplo o autor do assédio diz à
pessoa assediada constantemente que só parará de a contactar se ela lhe der dinheiro
(neste caso os motivos podem ser passionais ou financeiros, ou os dois juntos). No
entanto, os motivos financeiros também aparecem no assédio independentemente de
outras motivações, como por exemplo nas rivalidades entre comerciantes, ou entre
famílias, por exemplo devido a problemas de partilha de heranças. Existem também, por
exemplo, motivos clubísticos : enviar mensagens de e-mail ofensivas a jogadores ou a
treinadores de futebol, por fãs de clubes rivais, e também pelos seus próprios fãs devido
ao facto de estarem insatisfeitos com o desempenho do jogador ou do treinador.
O texto do correio de ódio muitas vezes contém palavrões, ou pode
simplesmente conter uma mensagem negativa ou desafiante. O remetente pode também
enviar e-mails anónimos ou fazer-se passar por outro indivíduo (outro utilizador das
redes sociais, ou um indivíduo fictício) a fim de não ser identificado. Através do envio
de e-mails contínuos, o remetente satura a caixa de correio eletrónico do destinatário,
pressionando-o, e por vezes envia-lhe mensagens com vírus, danificando o software do
destinatário. Diferentemente das redes sociais, estas mensagens são privadas, mas
também são uma forma de assédio virtual.
O assédio que é feito través das redes sociais caracteriza-se pela facilidade e pela
rapidez, tal como os e-mails, mas permite alcançar grandes audiências, devido à
possibilidade de anonimato do agressor e dos outros utilizadores, e pelo facto da vítima
poder estar sujeita à agressão 24 horas por dia e em qualquer contexto em que se
encontre. Enquanto no dia a dia as provocações e as agressões verbais podem ocorrer
numa certa hora, e num certo espaço, o assédio virtual extravasa as barreiras
geográficas, pois o agressor tem a possibilidade de perseguir o seu alvo quer ele se
encontre na mesma zona geográfica, no mesmo país, ou numa zona geográfica e num
país diferente. Por outro lado, enquanto as agressões verbais do dia a dia podem
acontecer ocasionalmente, no espaço da Internet podem ser feitas de forma contínua por
duas razões : por um lado devido à maior frequência com que o agressor o pode fazer,
bastando-lhe recorrer à Internet, e por outro lado devido ao facto de escrever um texto
ou um comentário que pode ficar permanentemente disponível para o público. Em
suma, o assédio ou bullying tradicional está restrito a um espaço determinado, acontece
pontualmente, como por exemplo no espaço de convívio dentro de uma Escola, entre
alunos, enquanto através da Internet quem o vê não são apenas os alunos dessa Escola,
mas toda a gente, e fica visível durante o tempo todo.
Há também algumas situações em que o contacto, mesmo através das redes
sociais, pode ser privado, como por exemplo um homem acompanhar uma mulher em
todas as redes sociais e insistir em conversar com ela, através de mensagens privadas,
através do envio e troca de mensagens de texto ou imagens com conteúdo sexualmente
explícito. Este tipo de atitude é uma consequência do machismo da nossa sociedade, que
tem como pressuposto a ideia de que as mulheres estão sempre disponíveis ou que
devem estar sempre disponíveis para as solicitações dos homens. Por isso, muitas
mulheres que recusam costumam receber respostas ofensivas dos homens, que insistem
e não as largam.
Conforme referimos, os telefonemas contínuos a uma pessoa, ou o envio
insistente de mensagens escritas através do telemóvel, são também uma forma de
assédio virtual. Tanto o correio eletrónico, como o contacto por telemóvel, ou as
mensagens pessoais através das redes sociais, são privados, mas não os textos colocados
nas redes sociais, que toda a gente pode ler. Muitas pessoas que participam também em
fóruns de discussão na Internet vêem-se continuamente perseguidas por utilizadores que
fazem comentários ofensivos, tornando as vítimas alvo de ridicularização contínua e de
declarações falsas com o objetivo de serem constantemente humilhadas. Muitos
assediadores têm blogues na Internet, e divulgam mesmo dados pessoais das vítimas,
como nome, endereço, ou local de trabalho ou de estudo, em sites ou fóruns de
discussão, ou publicam material em seu nome, que as difama ou ridiculariza.
Assim, por exemplo muitos homens que não aceitam que uma mulher tivesse
terminado o namoro ou o casamento com eles, continuam a persegui-las, não apenas
enviando-lhes e-mails, mensagens escritas através do telemóvel, ou fazendo-lhes
telefonemas, mas colocando fotos ou vídeos da sua ex namorada, companheira ou
esposa, nas redes sociais, violando o direito à imagemm. Há mesmo homens que
ameaçam essas mulheres dizendo-lhe que colocarão fotos íntimas delas nas redes
sociais, ou fotos de outras situações da sua vida privada, se as mulheres não lhe derem
dinheiro. O agressor tem com objetivo vingar-se, envergonhar, perseguir, e utiliza então
todos os pretextos, como por exemplo as características físicas pessoais da vítima, com
o objetivo de enxovalhar a sua imagem e afetar a sua autoestima.
O assédio virtual acontece muito para com pessoas mais vulneráveis,
principalmente para com pessoas do sexo feminino, conforme já referimos, e também
entre adolescentes. O diminuição da influência da socialização familiar, devido ao facto
de nos tempos de hoje ambos os pais estarem todo o dia a trabalhar e passarem pouco
tempo com os filhos, e de haver menos gente na família, com muitos avós vivendo nas
suas próprias casas ou em lares, conduzem a uma autonomia muito maior dos
adolescentes. Entre adolescentes, estudantes e jovens em geral, esses conflitos são muito
comuns, por fazerem também parte da sua afirmação e da chamada “rebeldia juvenil”.
Por outro lado, atualmente quase todos os jovens têm um computador, ou um
telemóvel, e não conseguem passar sem eles, por isso estão mais ligados às relações
virtuais e mais vulneráveis ao assédio virtual. Para essa maior vulnerabilidade, contribui
também o facto de os adolescentes apresentarem características específicas, como por
exemplo o desenvolvimento rápido da sua identidade, da sua habilidade social, maior
aptidão e destreza digital, e a maior escolaridade nos tempos de hoje que lhes permite
também maior habilidade informática.
A curiosidade e a necessidade de explorar múltiplos contextos, não apenas
sociais mas também virtuais, e diversos estilos relacionais, traz aos adolescentes uma
maior exposição a diferentes relações interpessoais. Por conseguinte, a Internet
participa cada vez mais da socialização dos adolescentes, que são o grupo etário que
passa mais tempo nas redes sociais, e nelas expõe coisas pessoais. As redes sociais estão
profundamente integradas no quotidiano dos adolescentes, sendo então cada vez maior o
número de informações pessoais que são partilhadas entre eles.
Mas por outro lado, devido ao facto de serem ainda adolescentes, estes são os
mais propensos não apenas a receberem mas também a cometerem atos de assédio.
Sendo isso particularmente visível na tendência de muitos adolescentes para
comportamentos de indisciplina, como é próprio da sua idade, isso acontece também na
intimidação e na humilhação através redes sociais, e por vezes por motivos fúteis. Por
exemplo, teve grande impacto há uns anos o caso de uma adolescente britânica de 14
anos, Hannah Smith, que partilhou nas redes sociais o seu problema : ter um eczema
(inflamação na pele). Em vez de receber apoio, foi vítima de piadas dos seus colegas, e
até de indivíduos desconhecidos. Essa adolescente passou a ser continuamente
assediada nas redes sociais devido a esse pormenor físico, as piadas eram muitas e de
carater persistente, levando-a a cometer suicídio.
A lei sobre o assédio virtual, em Portugal, encontra-se definida pela lei tutelar
educativa (Lei nº. 166/1999, 14 de Setembro) a nível jurídico relativo aos menores, e
educacional através do Estatuto do Aluno e Ética Escolar (Lei nº. 51/2012, 5 de
Setembro). A nível geral, o assédio virtual pode constituir um delito penal, tipificado no
artigo 131 da lei 26.904, que entrou em vigor em 2013. Pode ter como consequência
penas de prisão que vão de seis meses a quatro anos, e sanções de entre seis meses a 24
meses.
Existem no entanto muitas questões em aberto sobre a criminalização do assédio
virtual. Nem sempre o remetente está identificado, pois é muito comum enviar e-mails
anónimos ou fazer-se passar por outra pessoa, seja um indivíduo diferente ou fictício, a
fim de evitar ser identificado, pois a natureza de determinadas mensagens, como por
exemplo de e-mail, resultaria em acusações criminais se o remetente fosse identificado.
Ora, existem determinadas técnicas informáticas, especialmente para quem sabe bem
lidar com a Internet, que fazem com que seja difícil ou impossível saber quem é o
remetente dessas mensagens.
Outro problema que se coloca para criminalizar o assediador é o seguinte : se
por um lado este fenómeno é entendido como um conjunto de comportamentos, por
outro, lado existem dúvidas sobre a quantidade de comportamentos necessários, para
que esses comportamentos se possam considerar assédio virtual. Embora a repetição
desses comportamentos seja uma das característica principais do assédio virtual,
mantém-se a indefinição acerca da sua duração : esse comportamento deverá durar
semanas ? meses ? anos? e quantos ? É difícil perceber onde está o limite entre o lícito
e o ilícito. Contudo, não será legítimo impor um limite temporal necessário para a
experiência do assédio virtual, nem um número mínimo/máximo de comportamentos.
Em vez disso, dever-se-á optar por uma definição suficientemente abrangente de modo
a incluir todas as experiências de assédio virtual. A vítima é quem está mais apta a
avaliar se a persistência, duração, intensidade e tipo dos comportamentos são suficientes
para se sentir assediada, e a ter medo, ansiedade, insegurança, embora isso seja
subjetivo e varie de vítima para vítima. No entanto, é sobretudo o seu caráter intrusivo e
agressivo que deve permitir discernir o comportamento ilícito, independentemente da
quantidade de vezes com que é feito.
OS DISCURSOS DE ÓDIO
OS AMORES VIRTUAIS
Nos tempos de hoje há muita gente que procura também experiências sexuais
recorrendo à Internet e muito especificamente às redes sociais. Há muitos indivíduos
que recorrem a esses meios porque sentem necessidade de enriquecer o seu erotismo
pessoal, experimentarem formas alternativas de sexualidade, muitas delas impossíveis
de concretizar na vida real, por impedimentos morais, ou por viverem em localidades
distantes ou em meios geográficos pequenos onde o possam encontrar. Há também
muitos indivíduos que recorrem à Internet e particularmente às redes sociais para terem
experiências sexuais, devido à sua timidez para o procurarem presencialmente, e de
modo a superarem os seus conflitos e os preconceitos sociais. Há ainda indivíduos que
dizem que querem sair da sua rotina sexual, tendo novas experiências sexuais, que
determinados sites e redes sociais permitem facilmente. A Internet, e dentro dela certas
redes sociais, permitem ter determinadas experiências sexuais como o exibicionismo, o
voyeurismo, a homossexualidade, a transsexualidade, a bissexualidade, o
sadomasoquismo, o sexo a três, o sexo em grupo, o role play, etc., mesmo online, que
muitos indivíduos não conseguem realizar na vida real mas que realizam
imaginariamente através do computador, vendo através da câmara outros indivíduos
realizarem, naquele exato momento, apesar de estar cada um em sua casa, ou vendo
através de uma gravação, como sucede na visualização de sites eróticos.
Nas redes sociais pode-se também encontrar pessoas não apenas para ter sexo,
mas há redes sociais vocacionadas especificamente para a prática do sexo, como por
exemplo a rede social portuguesa CRsex, onde os utilizadores podem partilhar
experiências e conhecimentos, receber notícias sobre práticas sexuais, conhecer outras
pessoas, ao mesmo tempo que é uma plataforma para conteúdos ligados ao sexo,
nomeadamente workshops, dados por especialistas de diferentes áreas, tendo a
sexualidade como ponto de partida. Essa e outras redes sociais dão acesso a sexo fora
das redes sociais, e as redes sociais são uma forma dos seus utilizadores se encontrarem
fora delas, mas há também utilizadores que utilizam as redes sociais de outra forma, isto
é, observando e fazendo sexo “dentro” das próprias redes sociais.
Temos assim o chamado sexo virtual, que é também denominado sexo por
computador, sexo na Internet, Netsex, ou sexo cibernético, que é um encontro sexual em
que duas ou mais pessoas ligadas remotamente através de computadores, enviam uma
(s) à outras (s) mensagens escritas, visuais e auditivas, sexualmente explícitas,
descrevendo ou estimulando uma experiência sexual. O sexo virtual é realizado em
salas de conversação na Internet, tais como o IRC, talkers, ou web chats, e em sistemas
de mensagens instantâneas (SMS) eróticas através do telemóvel, de troca de vídeos
eróticos, de fotos eróticas, de jogos eróticos, etc. O uso de salas de conversação online
(chats), em que cada um dos utilizadores usa um nick (um nome fictício), é o mais
comum na procura do sexo virtual.
O sexo virtual também pode ser praticado usando a câmara do computador, que
existem em sistemas de conversação como o Skype, em certos jogos online, ou em
espaços virtuais como por exemplo o Second Life. O aumento das webcams, que são
usadas também em algumas redes sociais, dá ao sexo virtual um aspeto mais visual, pois
permite que muitas pessoas tirem a roupa e se mostrem nuas, ou que se mostrem a
masturbarem-se, ou a praticarem sexo com alguém para outros verem através da câmara
do computador, satisfazendo o desejo de exibicionismo e de voyeurismo. Os microfones
instalados nos computadores também permitem experiências eróticas auditivas, tais
como suspiros, respiração ofegante, gemidos, gritos, determinados vocábulos, chamar
nomes, etc., que em determinados indivíduos provocam excitação sexual. Muitos
utilizadores desses sites e dessas redes sociais, ao verem ou ouvirem outros a praticarem
sexo, masturbam-se, e alguns fazem-nos também diante das câmaras, ou ligam o
microfone do computador para outros verem e ouvirem. O Skype, a WhatsApp, e
determinadas redes sociais como por exemplo o Facebook, permitem que os seus
utilizadores enviem mensagens, liguem a câmara e o microfone, para terem essas
experiências sexuais, vazias de conteúdo real mas para muitos compensadoras da sua
ausência na via real.
Nunca foi tão banal, tão fácil, tão vulgar, tão rápido e tão imediato, praticar sexo
como nos tempos de hoje, graças às novas tecnologias, nomeadamente através de
determinados sites e de algumas redes sociais. Muitos indivíduos não recorrem à
Internet e especialmente às redes sociais para praticarem sexo apenas virtual, mas para
poderem conhecer alguém e praticarem sexo na vida real, conforme já foi referido. No
entanto, a procura de sexo através da Internet está cheia de falsidades : muitos
indivíduos enviam uns aos outros fotos falsas, para os aliciarem, e os convencerem
melhor a encontrarem-se pessoalmente, e outros enviam fotos que já têm alguns anos.
Há muitos que mentem na idade, e o anonimato e a distância através da Internet facilita
o à vontade para dizerem essa e muitas outras mentiras. Muitos entram em chats
eróticos com dois nicks diferentes para confundir os interlocutores. Muitos entram nas
salas de conversação com o nick de outros indivíduos, propositadamente, fazendo-se
passar por outro indivíduo. Muitos marcam encontros sexuais sem terem sequer visto a
outra pessoa numa foto, são os chamados encontros sexuais às cegas (os blind date).
Muitos marcam encontros sexuais, mas a finalidade da pessoa com quem marcaram o
encontro não era o sexo, mas sim o roubo, como tem acontecido com muitos indivíduos
que foram vítimas de indivíduos desconhecidos que entraram na sua casa supostamente
para terem sexo, mas a quem lhes roubaram dinheiro ou outros valores pessoais, e que
em alguns casos foram também vítimas de violência física.
Nas conversas através de programas de conversação online, para combinarem
encontros sexuais, há muitos indivíduos que dão moradas falsas, e quando um indivíduo
vai ter com o outro indivíduo não o encontra no local combinado, tendo-se tratado
portanto de um embuste. Outros indivíduos ficam à janela a ver quem vem, e ao ver que
a pessoa não lhes agrada, não lhes abre a porta. Outros indivíduos marcam encontros
para terem sexo, mas depois faltam aos encontros marcados. Há também muitos desses
indivíduos, apesar terem uma longa conversação para terem sexo, não avançam para
algo real, não se encontram pessoalmente, apesar de passarem muito tempo a teclar.
Após uma longa conversa erótica nunca se chegam a encontrar, e desligam de repente a
conversa, saem do chat, sem qualquer respeito pela pessoa com quem estavam a
conversar, pois aquilo que queriam não era um encontro real, mas apenas uma conversa
excitante, ou em alguns casos uma conversa que satisfizesse a sua curiosidade.
Os utilizadores das aplicações de conversação dessas redes sociais geralmente
não têm qualquer informação sobre a pessoa com quem estão a falar, pois em muitos
casos o principal objetivo é a simulação de uma experiência sexual. Por exemplo nos
fetiches de dominação-submissão, o dominador manda o submisso fazer o que ele
manda (ajoelhar-se, pôr as mãos atrás das costas, beijar o chão como se beijasse os pés
do dominador, etc.), mas tudo se passa diante do ecrã do computador, em que um vê o
outro fazer o que ele manda fazer. Outro exemplo relatado pelos seus praticantes, do
qual se vangloriam, é o facto de se masturbarem-se em frente à câmara do computador,
e verem-se uns aos outros a fazê-lo, e só isso dá-lhes prazer.
Nessas experiências não existe qualquer contacto físico, é tudo sexo virtual, mas
mesmo assim há muitos indivíduos que preferem o sexo virtual ao sexo presencial,
porque consideram que é mais estimulante para a imaginação e para o desejo, e alguns
deles atingem mais facilmente e mais intensamente o prazer através do sexo virtual.
Esta prática torna-se num substituto do sexo real e em muitos casos faz com que não se
dê atenção ao parceiro da vida real (o companheiro, o namorado, o cônjuge), nem se
tenha relações sexuais com ele, e nem a outros possíveis parceiros presenciais, devido
ao facto dessas pessoas passarem muito tempo no sexo virtual. Devido à prática
frequente e em alguns casos demasiada do sexo virtual, há mesmo indivíduos que
deixam de conseguir atingir o orgasmo sem ser através do sexo virtual, e alguns
consideram que esta é praticamente a única forma de sentirem excitação e obterem
prazer sexual. Muitos indivíduos, em vez de estarem sexualmente com alguém na vida
real, preferem estar em frente do computador, e dedicar todo o tempo a conversas
excitantes e à masturbação, através de determinadas redes sociais que permitem sexo
virtual como o principal meio de estimulação sexual. Esta prática afasta muitos
indivíduos da vida real, é uma das principais causas da crise da relação entre muitos
casais, e a causa de muitos divórcios.
Do ponto de vista psicológico o sexo virtual pode levar à alienação e à
despersonalização, quando ultrapassa a distância entre fantasia e mundo real, e quando
se torna a única forma de experiência sexual, não porque os indivíduos não consigam
experiências sexuais fora do mundo online, mas sim por se terem tornado demasiado
dependentes do mundo online. Assim, em vez da intimidade entre duas pessoas
presencialmente, o sexo virtual cria um mundo em que o indivíduo fica fechado no seu
mundo, em casa, sozinho, em frente a um computador, encerrado em prazeres
individuais e não partilhados, pois a outra pessoa realmente não está junto de si, levando
portanto a uma falsa sensação de intimidade entre as pessoas. Esta modalidade de sexo
torna-se oca, sem conteúdo, mas satisfatória para muitos indivíduos, ou porque não têm
outra modalidade, por exemplo devido à sua timidez, ou devido ao facto de viverem
geograficamente em meios isolados, ou porque apesar de poderem ter outra modalidade
de sexo preferem esta.
O sexo virtual traz consigo outros problemas. Um deles é a dependência, pois há
muitos utilizadores que recorrem a ele compulsivamente, e passam a ter mais sexo
virtual do que sexo na vida real, e alguns nem sequer têm sexo na vida real devido ao
facto de estarem viciados no sexo virtual, passando demasiadas horas em frente do
computador, a conversarem com outro indivíduo que está noutro computador. Há
indivíduos que passam horas seguidas a terem uma conversa excitante, e a
masturbarem-se em frente do computador, vivendo uma vida sexual vazia de conteúdo
real, mas só isso os excita sexualmente, e portanto não é apenas porque são tímidos ou
não conseguem encontrar alguém na vida real, mas sim porque, conforme já referimos,
sentem gosto no sexo virtual.
Outro problema ligados à pratica do sexo virtual, é o tráfico do cibersexo, em
que as vítimas são transportadas por traficantes para locais presenciais específicos, que
são locais com webcams e outros dispositivos conectados à Internet, com software de
streaming (uma forma de distribuição digital em oposição à descarga de dados), que
permite mais facilmente a visualização de sexo ao vivo naquele instante, num local
distante. As vítimas são então forçadas a realizar atos sexuais entre elas ou com outras
pessoas, por vezes com os próprios traficantes, em vídeos ao vivo, que são transmitidos
através da câmara de certos sites e de algumas redes sociais.
A perda da privacidade é outro risco, como sucede por exemplo com o Grindr
(um aplicativo de rede social para homossexuais e bissexuais), que permite saber a
localização exata de homossexuais ou bissexuais nas proximidades onde a pessoa se
encontra, e quantos existem (por exemplo numa rua, num condomínio, numa empresa,
num restaurante), bastando que estejam registados e que estejam online. Essa rede
social é um risco para a privacidade, mas também para a segurança desses indivíduos,
principalmente em países onde a homossexualidade é crime e é punida, pois podem
encontrar falsos interessados, tratando-se apenas de uma armadilha para os encontrar.
Alguns pesquisadores têm demonstrado como conseguem localizar qualquer
pessoa através da rede social do Grindr, em muito pouco tempo, criando contas falsas.
com localizações enganosas. Esses pesquisadores conseguiram localizar essas pessoas,
mesmo que o seu utilizador tivesse desligado a função que mostra a sua distância para o
potencial parceiro sexual. É também muito frequente os utilizadores do Grindr, quando
estão online, ao estarem por exemplo num restaurante, a procurarem parceiros sexuais,
ou a falarem com algum deles, outros utilizadores dessa rede social ficarem a saber que
há outro homossexual no restaurante, pois o mecanismo eletrónico dessa rede social
capta imediatamente a presença de um utilizador, permitindo automaticamente que
outro utilizador saiba que está perto dele um potencial interessado, e quem é essa
pessoa, como por exemplo a sua fotografia, o que acontece como forma de atrair
indivíduos interessados.
O contacto entre indivíduos que se conhecem, ou mesmo o contacto entre
indivíduos que não se conhecem (uma amizade virtual, um amor virtual), podem acabar
em chantagem, pois para isso basta que se partilhem fotografias ou vídeos íntimos de
cariz sexual, através de certas redes sociais, que podem depois ser utilizados para
extorquir dinheiro em troca da sua não divulgação. Há utilizadores que partilham
informações com indivíduos desconhecidos, e quando o material é enviado diretamente
(por exemplo fotos pessoais), perde-se o controle sobre aquilo que é enviado, e essas
fotos podem acabar nas mãos de qualquer pessoa.
Há indivíduos que na sequência de trocas de fotos para encontros sexuais,
publicam em determinados sites ou redes sociais fotos do corpo nu de alguém, para a
humilhar, ou para se vingarem de algo que os tenha desgostado, por exemplo o não
cumprimento de um dos parceiros daquilo que tinha sido combinado. Há também
indivíduos que exigem a uma pessoa ter sexo com ela, dizendo-lhe que se ela se recusar
publicarão fotografias ou vídeos íntimos dessa pessoa (que muitas vezes foram gravados
sem essa pessoas saber que estava a ser filmada). Há também a publicação de fotos de
mulheres nuas, que antigos companheiros, namorados ou maridos colocam em blogues,
sites e redes sociais, por ciúme, por vingança, etc., depois de elas terem terminado a
relação que mantinham com eles. Há também indivíduos que o fazem para exibirem
perante amigos a “mulher fabulosa” com quem andam ou andaram a ter relações
sexuais, para se vangloriarem da sua masculinidade e do facto de terem ou de terem tido
uma mulher tão atraente e “boa sexualmente”. Tudo isto traz como consequência a
perda de privacidade, perda essa que não refere apenas ao sexo mas a muitas outras
informações pessoais, que também são publicadas e partilhadas em sites, blogues, e
redes sociais. Devido à sua importância, dedicaremos todo o capítulo seguinte ao tema
da perda da privacidade.
A PERDA DA PRIVACIDADE
As redes sociais são hoje o principal meio através do qual bastantes pessoas
constroem uma imagem de si próprias e onde a generalidade das pessoas publica
somente os aspetos da realidade que lhes são favoráveis. As redes sociais são uma das
melhores oportunidades para as pessoas mostrarem aos outros uma visão idealizada das
suas vidas, aparentando uma vida cor de rosa, uma vida perfeita. Existe hoje uma
espécie de show do eu, em que as pessoas expostas são também elas próprias que se
expõem, com muita facilidade, através de fotografias que publicam nas redes sociais,
mostrando o seu dia a dia em casa, no trabalho, no lazer, em situações de intimidade
amorosa, uma foto sua na praia ou na piscina, a ida a um restaurante famoso, a última
viagem, a noite divertidíssima numa discoteca ao lado dos amigos, a sua gravidez, uma
foto do seu filho recém-nascido, uma foto das flores enviadas pelo namorado ou pelo
marido, etc. Estes e outros exemplos revelam um narcisismo e uma vaidade por vezes
obsessiva, em que se chega a cair mesmo no ridículo, sem que muitos utilizadores das
redes sociais tenham consciência do ridículo da sua auto exibição, e mesmo que tenham
consciência disso, não se incomodam.
Muitos utilizadores das redes sociais chegam a publicar fotos de si próprios
vestidos com roupas caras, tiradas nos provadores de roupas de lojas de roupa muito
cara, apesar de não a terem comprado. Já em 1967 Guy Debord dizia que estamos
vivendo numa sociedade do espetáculo, “em que a sociedade do espetáculo é a
afirmação da aparência, o que aparece é bom, o que é bom aparece, e que a sua função é
chegar nele próprio”.6 Nesta obra Debord fala sobre a questão do ter em vez do ser, pois
as pessoas cada vez mais querem ter um carro, uma casa, tecnologias de última marca,
aparelhagens, roupas caras, etc., para se mostrarem e darem uma aparência de poder, em
que quem mais tem e mais aparece é o melhor, e em que o mais importante é ostentar o
que se tem. Para muitos indivíduos não basta ter, o importante é mostrar aos outros
indivíduos que se tem determinadas coisas (uma vivenda, um carro caro, etc.), e sentem
mais prazer por terem algo, ao mostrarem que o têm. Em alguns casos não se tem mas
finge-se que se tem, publicando-se nas redes sociais fotos falsas de praias ditas
paradisíacas, em países exóticos, como se esses indivíduos tivessem lá estado, mas que
foram tiradas em praias do país onde esses indivíduos vivem.
A autoexposição da privacidade, real ou fictícia, banalizou-se através dos novos
meios de comunicação: os blogues, os programas de conversação como os chats, os
fóruns de discussão, os vídeos pessoais a circularem na Internet, como por exemplo no
YouTube, no TikTok, no Facebook, ou no Twitter. Os próprios órgãos de comunicação
social tradicionais passaram a praticar também a exposição da privacidade, tendo aliás
como objetivo principal fazerem programas em que mostram a privacidade, como os
programas de televisão de reality shows como o Big Brother, ou através da rádio, pois
há programas de rádio em qualquer pessoa pode telefonar para os estúdios da rádio e
relatar os seus problemas pessoais, e isso ser transmitido em direto para todos os
ouvintes.
6
Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Lisboa, Ed. Antígona, 2012, p. 16.
determinados programas televisivos e radiofónicos, das “revistas de cor-de-rosa”, e
sobretudo através das redes sociais, são os próprios indivíduos que expõem facilmente a
sua vida privada, por necessidade de descarga das suas tensões psicológicas, por
necessidade de lhes deem atenção ou por necessidade de terem protagonismo. Tudo se
passa como se a vida privada do homem comum seja hoje numa espécie de espetáculo,
que é apresentado em qualquer espaço público, situação esta que leva a generalidade
dos indivíduos a ser invadida no dia a dias pela privacidade de outros indivíduos,
incluindo dos que não são figuras públicas, mesmo que os que são alvo da exposição
dessa privacidade não o queiram. Apesar de não querermos ser incomodados com
trivialidades sobre a vida dos outros, muitas vezes é difícil evitar isso, pois somos
invadidos por notícias sobre essas mesmas trivialidades. Mesmo que nós próprios não
queiramos receber o espetáculo da privacidade, somos quase obrigados a recebê-lo no
dia a dia, pois tornou-se banal encontrarmos expostos nas ruas e nas montras das lojas
diversas revistas e jornais exibindo nas capas dessas revistas e desses jornais a vida
privada de outras pessoas, tanto de figuras públicas como de cidadãos comuns. Através
desses e de outros meios, muitas pessoas hoje publicitam ou deixam publicitar a sua
privacidade: os seus dados pessoais, familiares, as suas preferências, os seus gostos e
ideais, as suas tendências, os seus planos de vida e os seus sonhos, e é nas redes sociais
que isso mais acontece. Muitos utilizadores colocam aí todas essas coisas para os outros
utilizadores verem, não apenas os seus amigos, mas também os utilizadores que não
conhecem, satisfazendo a grande necessidade que têm de se mostrarem em público.
Alguns utilizadores das redes sociais fazem isso por vaidade, outros por necessidade de
que lhes deem atenção, outros por gosto de exibicionismo, outros com o objetivo de
serem populares e famosos.
Por outro lado, essa atitude acontece também porque a sociedade de hoje, direta
ou indiretamente, influencia, suscita e solicita a revelação fácil e indiferenciada da
privacidade. Dado que tudo se tornou mais visível através dos meios de comunicação
social, e dado que tudo se tornou ainda mais visível através das redes sociais, tudo se
tornou mais acessível por qualquer indivíduo, vendo o que os outros fazem e dizem,
entrando-se numa cadeia comunicacional em que por vezes se compete na exposição da
vida privada. A Globalização no mundo de hoje acabou por produzir efeitos nunca
dantes vistos nem imaginados, a todos os níveis. Com os meios de comunicação de
massa e as alterações produzidas pelas novas tecnologias, nomeadamente a Internet, e
nela as redes sociais, as barreiras geográficas deram lugar a um mundo universal, em
que todas as pessoas podem ter acesso às mesmas informações sobre tudo ou sobre uma
determinada pessoa, mesmo que essa pessoa não seja um político ou uma pessoa
famosa, e por vezes sem que a pessoa a quem essas informações dizem respeito saiba
dessa divulgação ou sem que tenha controlo sobre quando, como e a quem se podem
divulgar.
Não é apenas mostrando a vida privada nas redes sociais que se pode
desenvolver um comportamento obsessivo em relação à privacidade, pois a observação
da vida privada também é igualmente uma obsessão de muitos utilizadores das redes
sociais. A curiosidade sobre a vida de outras pessoas sempre despertou prazer na
Humanidade, por isso as “revistas cor de rosa” e determinados programas de televisão
expõem a privacidade de muitas pessoas. Não existe problema em olhar os perfis de
outras pessoas nas redes sociais, mas uma coisa é ter interesse no que outros utilizadores
publicam, outra é passar o tempo todo a perseguir a vida das pessoas, tornando-se num
stalker. O comportamento stalker consiste no ato de vigiar, buscar e perseguir a vida de
outra pessoa, por exemplo um(a) antigo(a) companheiro (a) ou namorado (a), feito
principalmente por pessoas que querem saber e controlar com frequência a vida de
outras pessoas. O hábito de stalkear pode ser progressivo e acarretar graves
consequências. Em algumas situações, pode fazer com que a pessoa que stalkeia adote
ações abusivas e altamente invasivas.
Essa atitude é muito facilitada pelo mecanismo eletrónico da Internet, como por
exemplo os motores de busca. As pegadas digitais de todos os seus utilizadores ficam
gravados na rede, e através destes serviços o grau de alcance daquilo que se localiza é
cada vez maior. Existem filtros de diversos tipos, através de palavras, tipos de arquivo,
números, localização espacial, entre outros, que vão proporcionando a construção de
perfis do seu utilizador e que praticamente impossibilitam a sua privacidade. Um dos
casos mais importantes são os chamados cookies, que são programas instalados em
computadores, usados para finalidades profissionais e pessoais, e que registam as
operações efetuadas pelos utentes. Os cookies dão a possibilidade de se desenhar o
perfil dos utilizadores dos computadores, através dos sites que visitam e da duração
dessas visitas. O envio maciço de spam para as caixas de correio eletrónico constitui
também uma pressão sobre a privacidade dos destinatários, sem estes terem a
possibilidade de reagir e responder a quem os enviou. Quem envia estas e outras
mensagens conhece o endereço do correio eletrónico do destinatário, embora este não
conheça o endereço do correio eletrónico de quem os enviou, e mesmo que responda à
mensagem, a resposta vem sempre devolvida, pois informaticamente o sistema está
preparado para que seja impossível a resposta ser entregue.
A fronteira entre o que pode ser tornado público e o que tem a ver com a
privacidade não é compreendida nem respeitada por todos. À medida que vamos
navegando nas redes sociais, vamos produzindo um enorme conjunto de conteúdos e
deixamos, ativa ou passivamente, um rasto de informações, que outros utilizadores
podem utilizar. Graças à evolução tecnológica, esta pegada digital assume-se cada vez
mais como ilimitada e contínua. Há muitas páginas pessoais, muitos blogues, muitas
bases de dados e muitos sites que são pirateados. As redes sociais hoje em dia são um
dos locais mais procurados para as intromissões na privacidade de outros indivíduos.
Qualquer pessoa pode fotografar outra pessoa, conhecida ou não conhecida, e pôr essa
fotografia a circular nas redes sociais, e sem que a pessoa fotografada o saiba ou o
consinta. Há pessoas que expõem fotografias suas nas redes sociais, mas a segurança
não é avaliada com a exposição e por conseguinte a fotografia da pessoa pode ser
utilizada para fins diversos.
Os “gostos” (que nas redes sociais são também designados por “likes”, e no
Brasil por “curtidas”), consistem na valorização de um texto, de uma foto, de um vídeo,
de uma pintura, de um comentário, ou de outra publicação de determinado utilizador,
através de clique num pequenino desenho de um punho com o polegar levantado, em
sinal de aprovação ou gosto, ou de um clique num coração como sinal de que se ama o
que foi publicado. Conforme cada clique nesse sinal de aprovação que está junto da
publicação, fica registado o número de pessoas que o fizeram.
Muitas dessas publicações são de textos sobre política, religião, etc., escritos e
comentados pelos utilizadores das redes sociais, ou partilhados de outras fontes, como
por exemplo de jornais e revistas. Tal como referimos a propósito da exposição da vida
privada, muitos utilizadores das redes sociais publicam também relatos e fotos de
eventos onde estiveram, tais como viagens, casamentos, festas, espetáculos, cocktails,
piqueniques, etc., e até mesmo de eventos onde não estiveram, ou de locais onde nunca
foram. Por vezes o objetivo não é tanto a confissão da sua vida, mas a publicação de
textos e de fotos apenas para receberem “gostos”, isto é, aprovações, aplausos e elogios.
As redes sociais criaram e aumentaram também a competição entre as pessoas, para
mostrarem e verem quem tem mais coisas, como por exemplo, uma carro de última
marca, quem mais viajou, etc., mas também para se ver quem recebe mais gostos
naquilo que publica.
Da parte do leitor dessas publicações há diferentes motivos ao colocar um
“gosto”. Há quem que coloque um “gosto” nos textos mesmo sem os terem lido,
fazendo-o apenas por gostarem da própria pessoa que os colocou, ou por se
identificarem com essa pessoa e a sua maneira de pensar, ou ainda porque o texto é de
um amigo ou de um familiar. Há “gostos” na publicação de alguém que um utilizador
ama, com quem está relacionado maritalmente, ou por quem tem um interesse afetivo,
ou para chamar a atenção, ou se mostrar presente. Há outros utilizadores que o fazem
com segundas intenções (por exemplo um vendedor para com um potencial cliente, de
modo a cativá-lo). Sucede também, por vezes, alguém receber um “gosto” de um
indivíduo anónimo, apenas porque este recebeu também um “gosto” numa publicação
que o outro utilizador fez. Há também muitos utilizadores que colocam um “gosto” na
publicação apenas porque essa publicação já tem muitos “gostos”.
Da parte de quem coloca as publicações, há também uma procura de “gostos”.
As conexões sociais entre os seres humanos podem-se expressar de muitas e variadas
maneiras, incluindo através das redes sociais, mas mais do que uma conexão social,
trata-se frequentemente da busca de reconhecimento, por vezes de forma obsessiva nas
redes sociais. Tal como a exposição da vida privada por muitos dos utilizadores das
redes sociais, os “gostos” promovem uma cultura narcísica do indivíduo, na qual ele
expõe as coisas positivas e negativas sobre si, as suas conquistas e as suas vitórias, os
seus problemas e as suas fraquezas, as suas felicidades e infelicidades. Nas redes sociais
existe a tendência de muitos dos seus utilizadores para criarem um perfil valorizável
por outros utilizadores, através de uma imagem sobre si que nem sempre corresponde à
realidade, cujo objetivo é captar a aprovação e a admiração dos outros. Na busca de
reconhecimento nas redes sociais, muitos dos seus utilizadores deformam a realidade
naquilo que dizem sobre si, outros deformam o conteúdo do texto que publicam, por
vezes retirado fora de contexto, ou contendo apenas uma parte do todo, com o objetivo
das pessoas gostarem da sua publicação, colocando junto dela o sinal de “gosto”.
Há dois tipos de texto que podem obter um “gosto” : os que foram escritos pelos
próprios utilizadores, e os que não foram escritos por eles mas que eles subscrevem ao
publicá-los nas redes sociais, mas ambos os textos podem obter “gostos”. Há muitas
pessoas que não os publicam para obterem “gostos”, mas apenas pelo desejo de
informarem, ou como forma de empenho na defesa de causas sociais e políticas, mas
certamente que essas pessoas também não ficarão indiferente aos “gostos” recebidos
nos textos que publicaram. Há também muitas pessoas que publicam textos nas redes
sociais apenas pelo prazer de os publicarem, mas em muitas pessoas o principal prazer
é o de obterem “gostos” nas suas publicações. Por outro lado, há também utilizadores
das redes sociais que buscam “gostos” numa determinada publicação, para que a
publicação tenha um maior número de seguidores. Acontece ainda uma coisa
semelhante aos “gostos” nas publicações : a busca de seguidores do seu autor, pois
muitos utilizadores incentivam outros utilizadores a segui-los, e há mesmo utilizadores
que compram seguidores. Ao publicarem textos, fotos, vídeos, etc., muitos utilizadores
nada mais fazem do que procurarem seguidores e conquistarem fãs.
Quer na busca de “gostos” pelos textos ou imagens que colocam, quer na busca
de seguidores, muitos dos utilizadores das redes sociais procuram o reconhecimento de
outros utilizadores, querem ser vistos, amados e elogiados por aquilo que dizem, por
aquilo que são ou aparentam ser, e por textos e imagens que colocam mesmo quando
esses textos e imagens não são da sua autoria, procurando receber um “gosto” não na
publicação mas na pessoa que os colocou (textos literários muito belos, textos
sensacionalistas, textos a suscitarem a simpatia e a compaixão, etc.)
Subjacente a esta atitude está uma forma de carência afetiva, um amor próprio,
como na exposição da vida privada, que leva à procura constante de “gostos”, os quais
fazem com que muitos utilizadores se sintam amados, lisonjeados, orgulhosos. Receber
um “gosto” nas redes sociais não é a mesma coisa que receber de alguém um gesto de
amor, de amizade, ou de ternura na vida real, mas para muitos utilizadores isso dá-lhes
prazer, consolo, faz-lhes bem ao ego. Para muitos é uma compensação pelo facto de
não terem a aprovação e a atenção dos outros (ou de a terem muito pouco), na vida fora
das redes sociais.
Há muitos utilizadores, principalmente os mais jovens, que competem entre si
para verem quem recebe mais “gostos”, sentem uma certa pressão na corrida aos
“gostos”, e querem ter mais “gostos” que os outros utilizadores, pois os “gostos” fazem
com que se sintam populares, famosos e importantes. Por essa razão muitos utilizadores
das redes sociais ficam ansiosos ao compararem-se com outros utilizadores,
nomeadamente com o número de “gostos” que recebem, e esse número de “gostos”
para muitos utilizadores é de tal maneira importante que muitos que apagam
publicações suas que se tornaram impopulares, ou porque não se conseguem defender
dos comentários negativos que recebem, ou porque têm receio, ou porque acabam por
menosprezar a importância do texto que colocaram, e alguns indiretamente dando razão
aos que criticaram o texto que colocaram nas redes sociais, como se o objetivo não fosse
o conteúdo do texto, mas sim a reação a esse conteúdo.
A sensação de estarem sempre a serem observados e julgados pelo público
exerce uma enorme influência, e a falta de “gostos” faz com que muitos utilizadores
baixem a sua auto estima. Há mesmo utilizadores que ficam aborrecidos quando um
utilizador deixa de ser seu seguidor, pois é como se esse utilizador deixasse de gostar
deles ou de os admirar. Há muitos utilizadores das redes sociais que, dado o facto de a
sua publicação estar tão visível, são demasiado vulneráveis à aprovação dos outros, e
ficam muito dependentes daquilo que os outros pensam sobre a publicação ou seu autor.
Dado que nas redes sociais se está perante um público muito vasto, e dado que as redes
sociais são um mundo onde as críticas são constantes, muitos dos seus utilizadores
sentem uma enorme necessidade de aceitação, aprovação, atenção, por isso é tão
importante para eles receberem “gostos” pelos seus textos, pelas suas fotos e pelos seus
vídeos, e obterem seguidores. Cada “gosto” é um reforço da auto estima dos
utilizadores, por isso alguns deles ficam obcecados e ansiosos na expetativa de “gostos”,
e angustiados quando não recebem nenhum “gosto”, ou tristes quando o número de
“gostos” que obtém não é o que esperavam receber.
No entanto, em muitos casos os “gostos” são falsos. Já atrás referimos o facto de
muitos utilizadores colocarem “gostos” em textos que nem sequer leram (apenas porque
gostam ou conhecem a pessoa que os colocou, ou por serem textos de um amigo, de um
familiar, de um cliente, etc.). Outra coisa muito importante, que tem a ver com a pouca
ou nenhuma verdade dos “gostos” é o facto de muitos utilizadores gostarem apenas de
publicações que já têm um grande número de gostos, e deixarem-se portanto levar na
onda dos muitos “gostos” . O número de “gostos” que uma publicação obteve tem
grande influência na prática de colocar nela um “gosto”, os utilizadores têm a tendência
para colocarem mais “gostos” em quem tem mais “gostos”, sendo portanto um “gosto”
que não corresponde sinceramente a um “gosto”, mas que é devido à influência social e
ao impacto positivo causado pela publicação. Também nas fotografias e nos vídeos, há
muita gente que coloca um “gosto” não necessariamente pelo seu conteúdo, mas porque
já houve muitos utilizadores que também colocaram um “gosto”. Em vez de se
concentrarem na qualidade do conteúdo daquilo que foi publicado nas redes sociais,
muitos dos seus utilizadores concentram-se mais na popularidade da publicação. Esses
utilizadores dão mais atenção ao facto de serem publicações muito elogiadas, dão valor
à publicação não devido ao seu conteúdo, mas devido ao facto de haver muita gente a
gostar dessa publicação, desencadeando-se portanto uma atitude de “rebanho” em que
vão atrás uns dos outros. Muitas vezes os utilizadores nem sequer leem o texto, mas
colocam-lhe na mesma um “gosto”, pois partem do pressuposto de que se há muita
gente a gostar daquele texto, é porque esse texto é bom.
O texto pode ter pouco valor, como muitas vezes acontece, mas para muitos
utilizadores o que conta é a sua popularidade. Nem sempre os muitos “gostos”
significam que o texto tenha qualidade, e por outro lado, conforme já referimos, muitas
vezes há “gostos” falsos, falsidade essa que é de vários tipos. Assim, o facto de haver
textos ou outras coisas publicadas nas redes sociais que obtiveram muitos “gostos” não
significa que tenha de facto havido muita gente a gostar dessas publicações, pois há
redes sociais, como a Bubblenews, que permitem que os seus utilizadores ganhem
dinheiro em cada “gosto” que fazem numa publicação, incentivando o uso dessas redes
sociais ao pagarem pelos “gostos” recebidos, cujo objetivo é o dessas redes sociais
terem um público muito vasto, e por conseguinte atraírem mais empresas para
publicarem anúncios e os proprietários dessas redes sociais ganharem dinheiro com isso.
Outro exemplo importante de “gostos” falsos é o da compra de “gostos” na rede
social do Instagram, compra essa feita por artistas que nela colocam pinturas e outros
trabalhos artísticos, para através de “gostos”, apesar destes serem falsos, darem a
sensação de que são artistas muito populares, e assim obterem mais facilmente
compradores para as suas obras de arte. Ainda a propósito de artistas, outro exemplo é o
de algumas performances artísticas e musicais colocadas na rede social do Youtube
cujos utilizadores pedem aos seus amigos, aos seus colegas de turma na Escola ou na
Universidade, à sua família, aos seus colegas de trabalho, ou aos colegas de grupos
recreativos, para colocarem “gostos” na sua exibição artística ou musical.
Assim, “A” é amigo de “B”, e pede a “B” para este dizer aos seus amigos para
colocarem “gostos” numa música, numa dança, e no caso do Instagram, numa pintura,
colocada por “A”. Mas “A” pode também ter um amigo “C” a quem pede o mesmo, e
assim sucessivamente, e isso faz com que muitos “gostos” sejam falsos, pois quem
colocou um “gosto” na publicação colocou-o apenas por pedido ou sugestão de um
amigo, mesmo sem conhecer o conjunto do trabalho artístico ou o autor desse trabalho,
e em alguns casos até mesmo sem gostar da obra de arte onde colocou o “gosto”.
Ao longo do tempo muitos dos utilizadores das redes sociais vão acumulando
falsos admiradores, através dos “gostos” que vão obtendo nas suas exibições, e através
de seguidores, de modo a exercerem influência sobre o público, pois além da
performance artística, da pintura, da fotografa, da música, da dança, etc., fica também
visível o número de “gostos”. Muitos desses “gostos” e seguidores são meros
instrumentos para a obtenção de fama, mas uma fama fabricada, que dá aos utilizadores
das redes sociais uma falsa imagem de popularidade sobre a pessoa que tem muitos
“gostos”.
Conforme já referimos, muitos utilizadores das redes sociais preocupam-se
demasiado em saber se outros utilizadores gostaram ou não do que publicaram, e estão
sempre à procura de aprovação até mesmo na simples obtenção de um “gosto” colocado
num texto ou num comentário ao texto. Ora, essa necessidade de ser valorizado,
elogiado, amado, por vezes transforma-se mesmo numa obsessão. Há indivíduos que
sofrem de baixa auto estima, e encontram nos “gostos” às suas publicações nas redes
sociais uma compensação, mas dado que essa necessidade nunca está satisfeita, ficam
ansiosos, numa busca constante de “gostos”. Esta atitude é semelhante à experiência
realizada por B.F. Skinner, intitulada “caixa de Skinner”, em que este psicólogo
comportamental montou uma caixa que mantinha ratos presos que recebiam
recompensas (um reforço positivo) sempre que realizavam algo específico. Quando
recebem um “gosto” os utilizadores têm um reforço positivo, e continuam a colocar
mais textos que receberão mais “gostos” e que os farão a continuar a pôr mais textos.
Ao usarem assim as redes sociais, muitos dos seus utilizadores são como as cobaias de
Skinner, e sem se aperceberem, vão perdendo a sua liberdade.
AS PARTILHAS E OUTRAS APROPRIAÇÕES ILEGAIS
PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO
7
Charles DARWIN, A expressão das emoções nos homens e nos animais, São Paulo, Ed. Companhia das
Letras, 2000, p. 23.
não se veem através da escrita, e mesmo que o indivíduo se mostre através da câmara do
computador, alguns destes pormenores são difíceis de ver.
No que diz respeito à comunicação não verbal, o melhor exemplo são os lapsos
de linguagem. Um definição para lapso de linguagem encontra-se descrita por Hotopf:
“Um lapso de linguagem, de acordo com o Shorter Oxford Dictionary, é um desvio, ou
erro não intencional, na escrita, na fala, etc.”.8 Uma outra definição afirma : “Um lapso
de linguagem (…) é um desvio involuntário no desempenho do falante a partir de uma
intenção fonológica, gramatical ou lexical que esteja em andamento”. 9 É de salientar
que ambas as definições apresentam as ideias de não-intencional, e de voluntário,
como caracterização dos lapsos de linguagem.
8
W.H.N. HOTOPF, “Semantic similarity as a factor in whole-word slip of the tongue”, in FROMKIN, V.,
(Ed.), Errors in Linguistic Performance : Slips of the Tongue, Ear, Pen, and Hand, London, Ed. Academic
Press, 1980, , p. 104.
9
BOOMER & LAVER, “Slips of the Tongue”, in FROMKIN V., (Ed.), Speech errors as linguistic evidence ,
Mouton, Ed. The Hague, 1973, p. 123.
10
Sigmund FREUD, Psicopatologia da vida quotidiana, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2007. p.38.
Falamos aqui da comunicação em que o indivíduo, apesar de consciente dos seus
atos, não tem autocontrole nem liberdade na comunicação sobre ela. Nesta atitude, em
que o indivíduo deixa portanto escapar o seu estado de espírito, o indivíduo pode ou
não dar-se conta desse facto. Na realidade, isso não é integralmente inteligível, nem
integralmente transparente, oferece-se e recusa-se, exprime-se ou não se quer exprimir,
manifesta-se e dissimula-se, confusamente. Os outros indivíduos podem constatar a
autoexposição desse nosso estado de espírito, e nós não nos apercebermos nem dessa
autoexposição nem do facto de os outros indivíduos a estarem a constatar. Nesse caso
não existe conflito, pois não sabemos que isso está a acontecer em nós, nem que os
outros o estão a constatar. Ora, referimo-nos aqui à comunicação de estados de espírito
feita pelo próprio indivíduo, sobre si próprio: por um lado, porque o indivíduo não
queria que isso lhe acontecesse mas acontece-lhe, e por outro lado, porque os outros
indivíduos reparam isso nele (determinados gestos, tiques ou olhares), e esse indivíduo
vê que os outros reparam, e mesmo assim não consegue resolver a situação, ao contrário
do que deseja.
A passagem das interações sociais do mundo real para o mundo virtual origina a
ausência da linguagem corporal, pois quando comunicamos com alguém não o fazemos
apenas com palavras, todo o nosso corpo comunica, os gestos e as expressões que
fazemos são um complemento da comunicação verbal, muitas vezes dizemos uma coisa
e o nosso corpo comunica outra, como por exemplo quando um amigo ou um familiar
nos diz estar bem mas não está, pois a sua linguagem corporal diz-nos o contrário. As
pessoas hoje comunicam muito online, é frequente os jovens estarem lado a lado, junto
uns dos outros, mas não conversarem entre si, pois estão agarrados ao telemóvel,
enviando constantemente mensagens para outras pessoas, e além da perda do convívio
entre si perdem a capacidade de reconhecer e exprimir emoções corporais. A linguagem
não verbal, nomeadamente a linguagem corporal, é tão importante como a escrita e a
falada, mas está em risco de perder a sua importância, prejudicando a capacidade das
pessoas exprimirem e reconhecerem emoções, e nos tempo de hoje a excessiva
comunicação através das redes sociais é o principal responsável por isso.
O EMPOBRECIMENTO DA LÍNGUA
A riqueza de uma língua está na sua complexidade, nas suas regras, na sua
conjugação verbal, nas suas nuances, nos seus múltiplos pormenores, nos seu múltiplos
sinónimos, nas suas diferentes formas de escrever-se a mesma ideia, etc. À semelhança
da riqueza de uma boa obra de arte do ponto de vista técnico e estilístico, a riqueza de
uma língua está na sua intensidade, na sua expressividade, e na sua complexidade. A
língua não é um mero transmissor de ideias, não é uma simples ferramenta, pois contém
uma enorme riqueza morfológica e semântica, e as formas de dizer as coisas são muito
diversas, ricas e complexas. A língua é uma das maiores construções culturais da
Humanidade, devido à musicalidade das palavras, às regras gramaticais, às muitas
subtilezas empregues, à sua beleza, etc. A extinção de uma língua é portanto uma
grande perda cultural para a Humanidade.
A criatividade e a inovação na forma de comunicar para um público vasto,
através dos avanços tecnológicos, nomeadamente através dos órgãos de comunicação
social (televisão, rádio, etc.), tornaram a comunicação mais rápida e fácil. O telefone
tornou também mais rápida a comunicação pessoal. A nível escrito o ser humano deixou
de utilizar apenas a tinta e o papel, passando a utilizar também as máquinas de
dactilografar. Atualmente, as máquinas de dactilografar foram substituídas por
computadores, que permitem mais facilmente escrever e enviar um texto. Por seu turno,
os telemóveis e as várias aplicações de conversação e escrita através da Internet, tais
como o Facebook, o Skype, o WhatsApp, entre outros, tornaram-se importantes meios
de comunicação e informação nos tempos de hoje. Muitas são as vantagens que estes
novos meios de comunicação oferecem aos seus utilizadores, tais como a comunicação
para quem se encontra muito distantes geograficamente, o facto de ser uma
comunicação feita de forma rápida, e o facto de ser económica.
11
VV., The Merriam-Webster Dictionary, Ed. Merriam.Webster, Springfield, 2016, p. 735
curtas mensagens escritas. Entre todos estes meios de comunicar, os mais populares são
o Mirc, o Skype, o WhatsApp, o Facebook e o Twitter.
PROBLEMAS DE INFORMAÇÃO
13
Gilles Lipovetsky, A era do vazio, Lisboa, Ed. Antígona, 1988
O EXCESSO DE INFORMAÇÃO
A informação tem sido considerada tradicionalmente como uma coisa boa, que
se reflete em considerações tais como : “quanto mais informação, melhor”,
“conhecimento é poder”, “mais informado, melhor informado”. Por conseguinte, as
indústrias de publicações têm vindo a criar ao longo do tempo jornais e revistas, que
progressivamente se tornaram excessivos. No meio jornalístico profissional existe
também uma onda crescente de novas publicações, conhecida como “jornalismo de
informação”, que é um mundo de notícias contínuas, umas atrás das outras, numa
enorme competição entre os jornais e os jornalistas sobre a quantidade e a rapidez com
que as noticias são dadas, de modo a estarem sempre em cima do acontecimento e
conseguirem serem os primeiros a difundi-las.
Por outro lado, as novas tecnologias facilitaram muito o acesso à informação,
que deixou de ser portanto apanágio de uma minoria escolarizada. Atualmente quase 98
% da população sabe ler e escrever, e ter acesso à escolarização e à informação deixou
de ser uma forma de estatuto social. A estratificação da sociedade deixou de ter como
critério o acesso à informação, pois por um lado hoje quase toda a gente saber ler e
escrever, e por outro lado toda a gente tem acesso aos meios de comunicação social,
principalmente à televisão. Em todas as ruas, lojas, cafés e restaurantes, estamos
constantemente a ser invadidos com notícias. As ruas têm cartazes informativos e ecrãs
gigantes, onde também se informa o transeunte das notícias do dia, as estações do
metropolitano têm painéis onde passam também notícias, e nas ruas encontramos
quiosques onde basta passar e ler os títulos dos jornais aí expostos, e muitos cafés e
restaurantes têm a televisão ligada, onde frequentemente são transmitidos noticiários.
Assim, quem vá a um café ou comer a um restaurante, acaba por ouvir também as
notícias do dia a dia, transmitidas pela televisão do café ou do restaurante. Além disso,
existe hoje um aumento dos canais disponíveis de informações recebidas, não apenas
através dos meios mais antigos, como os jornais e as revistas em papel, ou através da
televisão e da rádio, mas também através da Internet, nas notícias dadas pelo Google, e
alguns jornais e revistas passaram a ser simultaneamente eletrónicos, e outros
exclusivamente eletrónicos.
Através das redes sociais, a informação também se tornou muito mais
disponível. Nos tempos de hoje mais de 60% das pessoas acedem a notícias através das
redes sociais, um número bastante elevado em comparação com os jornais e as revistas
tradicionais. Por um lado toda a gente passou a receber informação, e por outro lado
toda a gente passou a poder transmiti-la, toda a gente passou a ser recetor e emissor, e
portanto toda a gente, de certa forma, passou a ser jornalista. O cidadão comum passou
a enviar para as redações dos jornais fotos e relatos de acontecimentos, ou a enviar para
as televisões filmagens de acontecimentos, em vez de serem os jornalistas profissionais
a buscarem-nos. No entanto, e muito mais do que isso, muita gente coloca notícias nas
redes sociais, e há muitos indivíduos que fazem isso como uma forma de afirmação
pessoal e de protagonismo, ou para causarem sensacionalismo, não o fazendo portanto
apenas pelo desejo de informar. Assim, os critérios informativos de validação dos
conteúdos desaparecerem, já não há autoridades de validação do conteúdo informativo,
ao contrário que geralmente sucedia com os jornais e as revistas.
A prestação de informação é, da parte dos órgãos de comunicação social, uma
necessidade (por interesses económicos, por competição, etc.), mas também se tornou
numa necessidade de quem a recebe. A informação nos tempos de hoje tornou-se
mesmo uma forma de consumismo, e assim como há em muitas pessoas uma
necessidade compulsiva de comprar tudo e de consumir coisas insignificantes, como se
isso lhes desse um certo poder, também há em muitas pessoas uma necessidade, e em
alguns casos mais do que uma necessidade, uma compulsão de consumir notícias. Existe
em muitos indivíduos uma grande avidez por novidades, para eles o que interessa é
sempre a próxima novidade, o próximo assunto, a próxima notícia. Trata-se ou de mera
curiosidade, ou da busca de conflito, ou do desejo real de saber como vai o mundo, para
as pessoas se sentirem mais seguras, precavendo-se para com eventuais catástrofes, e
outras situações de insegurança que podem chegar a qualquer momento, ou para
discutirem os assuntos que a todos dizem respeito. Outras notícias são meras notícias,
informações banais, e outras importantes, ou importantes para uns e não importantes
para outros.
Mas muitas vezes não são assuntos que a todos dizem respeito, mas assuntos de
interesse pouco relevante. Muitas pessoas não conseguem estar paradas, sentem
necessidade de estarem sempre ativas, querem ver tudo, ouvir tudo, saber tudo,
transmitir tudo, e fazem-no também com notícias, com factos, mesmo com factos falsos,
ou com notícias em forma de espetáculo, notícias sensacionalistas, e alimentam disso o
seu dia a dia. Há em muitas pessoas não apenas uma natural necessidade de estarem
informadas, mas também uma compulsão para buscarem informações. À velocidade
com que tudo decorre nos tempos de hoje e com que tudo é transmitido, muita gente
tem a sensação de estar continuamente desatualizada, e a sensação de ter de saber de
tudo e ao mesmo tempo de não conseguir absorver tanta informação, por isso muita
gente tem também a sensação de constante falta de conhecimentos, por não conseguir
acompanhar tudo. Há pessoas que sofrem com isso, sentem-se angustiadas por não
conseguirem consumir e processar tantas informações, e outras pessoas têm uma
necessidade descontrolada de estarem sempre informadas o tempo todo, por isso nunca
se sente plenamente satisfeitas, pois é difícil estar-se sempre atualizado e poder-se saber
tudo o que se passa a nível nacional e internacional.
Esta atitude é denominada “síndrome de FOMO” (do Inglês : “fear of missing
out”), isto é, o medo de perder algo, ou o medo de ficar fora do que se passa no mundo,
assim como de ficar fora do mudo tecnológico e de não acompanhar o seu
desenvolvimento. Muitas pessoas padecem da necessidade de se manterem
constantemente atualizadas, sob pena de sentirem que estão a ficar de fora do próprio
mundo, que nos tempos de hoje está cada vez mais mediatizado e globalizado. Muitas
pessoas sentem-se excluídas do mundo se não puderem acompanhar o que vai no
mundo, e andam constantemente em busca de notícias, para se sentirem mais integradas
no mundo, e preencherem muitas vezes o vazio das suas vidas. Muita gente, como
forma de esquecer os seus próprios problemas, vive dos problemas dos outros, dos
problemas nacionais e internacionais, e esses problemas fazem com que muitas delas
sintam que têm menos problemas, ou que sintam que não são só elas que têm
problemas. A baixa autoestima, o défice de satisfação em necessidades psicológicas, o
vazio e a solidão faz com que muitas pessoas passem os dias presas à televisão, à rádio,
aos jornais, sobre o que vai acontecendo no mundo, preenchendo o seu vazio e a sua
solidão até mesmo com notícias banais. Muitas pessoas não conseguem tirar os olhos
dos ecrãs da televisão, dos tabloides e dos monitores dos computadores, e outras
consultam com muita frequência no telemóvel as notícias do Google, tornam-se
dependentes dos acontecimentos e das respetivas notícias.
Essa compulsão em aceder a notícias sobre tudo e todos, transmitidas por
televisões, TV com centenas de canais de todo o mundo, rádios, jornais, revistas, é um
facto do mundo contemporâneo. No entanto, através da Internet, sobretudo com as redes
sociais, essa atitude aumentou muito. As notícias, assim como textos informativos sobre
os mais diversos temas, tornaram-se de acesso fácil, rápido e económico, graças às
novas tecnologias, através de tablets, smartphones, computadores pessoais, telemóveis,
etc. As redes sociais são um dos principais veículos de informação nos tempos de hoje,
pois todos os dias somos invadidos com uma enxurrada de informações, através do
Facebook, do Twitter e do Google +, etc. Os utilizadores das redes sociais tornaram-se
também “jornalistas”, pois criam e partilham conteúdos informativos uns com os outros,
e isso aumenta ainda mais o problema da sobrecarga de informações, que já existe
noutros meios de comunicação social. Essas informações, noticiadas por todo e
qualquer indivíduo, têm muitas visões e perspetivas diferentes sobre os assuntos, sendo
por vezes difícil distinguir informação de opinião. Apesar de democratizar a
informação, a Internet também gera muito ruído, e com tantas opiniões discordantes
sobre um determinado assunto nas redes sociais, o resultado muitas vezes é o conflito.
Isso acontece porque as opiniões se baseiam, principalmente, em experiências pessoais,
e são pouco objetivas. Uma grande parte dessas informações chama a atenção e parece
ser muito interessante à primeira vista, mas muitas dessas informações não têm
importância nenhuma.
A Internet, principalmente as redes sociais, originam o excesso de informação e
de conhecimentos. Mesmo que uma pessoa não queira, basta entrar numa das redes
sociais, para ser continuamente invadida por textos sobre acontecimentos do dia a dia,
ou por textos sobre os mais variados temas : costumes, História, Política, Guerra,
Desporto, Natureza, Ciência, Literatura, Arte, etc. Muitas pessoas já não leem livros,
pois leem tudo na Internet, e as redes sociais também trazem muitas informações sobre
diversos temas, assim como notícias. Muitos utilizadores das redes sociais, além de
notícias, colocam nelas também textos sobre assuntos de cultura geral, gerando uma
onda de saber pronto a consumir, uma espécie de saber enciclopédico.
Como consequência temos uma sobrecarga informativa, que ultrapassa a
capacidade que o ser humano tem de receber tanta informação e tantos conhecimentos, e
de mentalmente os digerir e pensar. Há milhões de novos dados que são gerados todos
os dias através da Internet : notícias, reportagens, avisos, informações, curiosidades,
vídeos no Youtube, posts nas redes sociais, etc., etc. Estamos tão mergulhados nas
tecnologias que muitas vezes nem nos apercebemos sobre o quanto elas nos podem
sobrecarregar. Esta sobrecarga inclui a sobrecarga informativa, a sobrecarga sensorial, a
sobrecarga de comunicação e a sobrecarga de conhecimento. Esse problema não se
refere apenas à grande quantidade mas também à má qualidade da informação, que
resulta portanto numa “poluição de informação”. Essa poluição são as informações
irrelevantes, imprecisas, redundantes, desatualizadas, repetitivas, descontextualizadas,
não solicitadas, indesejadas, desnecessárias, medíocres, incontroláveis, perturbadoras,
de qualidade reduzida, originando a chamada “infoxicação”. O conceito de
“infoxicação” é um conceito criado e desenvolvido por Alfons Cornellà 14 para se referir
à relação entre o excesso de informação e a intoxicação. Trata-se portanto de um
neologismo criado em referência à dificuldade de gerir a imensa informação com que
somos invadidos diariamente. A poluição da informação é o equivalente digital à
poluição ambiental, é uma crise de proporções globais, semelhante às ameaças
experimentadas pelo meio ambiente.
Um dos exemplos mais atuais foi o excesso de informação causado pela
pandemia do novo coronavírus. Com esta pandemia apareceram inúmeras informações
nos órgãos de comunicação social tradicionais, mas principalmente nas redes sociais,
provocando grande alarido e muito alarmismo. Ora, tudo isso gerou informações que
contribuíram para a infoxicação. Fomos constantemente “bombardeados” por notícias,
reportagens, comentários, programas especiais, convidados e “especialistas” sobre o
novo coronavírus, e durante muitos meses seguidos falava-se sempre, e em alguns casos
apenas, nesse assunto. A informação era excessiva e causou um clima tóxico e
stressante, para muitas pessoas mais nocivo do que o próprio vírus. O excesso de
informação deve-se também à velocidade e à facilidade com que se propagam as
notícias no mundo de hoje, que acontecem à semelhança do próprio vírus. Para a
invasão do novo coronavírus há o sistema imunitário para o combater, mas para a
invasão do vírus das notícias muita gente não estava preparada nem sabia como o evitar
e o gerir.
Existe uma grande dificuldade de assimilar todo o conteúdo informativo ao qual
somos expostos diariamente, os muitos comentários nas redes sociais sobre as
informações. A necessidade que muita gente tem de fazer o seu ponto de vista
14
Alfons Cornellà, Les autopistes de la informació, Barcelona, Ed. Pòrtic, 1996.
sobressair, sobre as notícias, origina também uma sensação de caos (muita gente a fazê-
lo, sobre toda e qualquer notícia, como querem, quando querem). Jamais a quantidade
significou qualidade, quanto mais quantidade informativa (de que as redes sociais são o
principal exemplo), menos qualidade informativa, Assim como no dia a dia somos
inundados com muitos convites e incentivos para consumirmos produtos, de que a
publicidade um dos principais exemplos, somos também convidados e incentivados a
consumirmos informações, cada vez mais informações, mas não conseguimos responder
a tantos estímulos, tanto apelos, tantos incentivos, tantos convites. O nosso cérebro não
consegue tratar tantos dados, e a sobrecarga de informação origina erros cognitivos e
pode mesmo afetar a nossa memória. Os seres humanos têm uma capacidade limitada
para armazenar informações na sua memória. A exposição excessiva aos órgãos de
comunicação social, e atualmente às redes sociais, reduz a capacidade de processar
informações e esgota o cérebro humano. A nossa memória desempenha um papel
crítico, mas a nossa capacidade de filtrar informações e de lembrar o que é valioso, é
limitada. O excesso de informação afeta a memória, afeta a criatividade, e afeta a
capacidade de reflexão. Os seres humanos só podem processar informações limitadas
antes que a qualidade das suas decisões se comece a deteriorar, e portanto o excesso de
informações pode prejudicar também a tomada de decisões. Com tantas informações,
aparece também a dificuldade de distinguir o que é relevante do que não é relevante.
A redes sociais produzem muito ruído informativo, pois há muita gente a falar
ao mesmo tempo. Não temos tempo nem capacidade para assimilar e gerir tanta
informação, que nos causa uma espécie de paralisia e impotência para processarmos e
compreendermos tantos dados. O nosso cérebro não tem capacidade para receber tanta
informação, e por outro lado não sabemos o que fazer com ela. Muitas informações são
meras distrações, repetições, propaganda, provocações, e por vezes já não somos
capazes de distinguir se é uma coisa ou se é outra, e distinguirmos entre informação e
ruído informativo. Muitas pessoas ao confrontarem-se no dia a dia com o excesso de
informação acabam por se sentirem cansadas, confusas, stressadas, irritadas,
paralisadas, ansiosas, cheias de dúvidas, e angustiadas.
A banalização da informação, de que as redes sociais são um dos principais
fatores nos tempos de hoje, traz como consequência a atitude indiferente em relação a
temas que são importantes, tais como descobertas científicas, problemas de saúde,
questões de política, etc., e consequentemente a ausência de espírito crítico. A poluição
da informação torna também as pessoas menos sensíveis às notícias, pois já nem as
coisas que dantes eram polémicas causam polémica. Isto não se deve apenas ao facto de
nos tempos de hoje haver maior abertura de espírito e menos preconceitos, mas sim ao
facto de muitas pessoas já não quererem saber de muita coisa que as incomodava, pois
já leram muitas coisas, já ouviram muitas coisas, e portanto as coisas que causariam
polémica tornaram-se uma banalidade, sobretudo através das redes sociais. No meio de
tanta informação por vezes parece que vale tudo, até mesmo as notícias falsas, conforme
veremos no capítulo seguinte.
AS NOTÍCIAS FALSAS
16
Hannah Arendt, Verdade e Política, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 1995, p. 25.
A CONSTRUÇÃO FICCIONAL DA
REALIDADE
O EU FICTÍCIO
A DEPENDÊNCIA
O STRESSE E A ANSIEDADE
A DEPRESSÃO
O uso excessivo das redes sociais também está ligado à depressão. O Homem é
um ser social, mas a vida moderna tende a isolar as pessoas cada vez mais umas das
outras. Muitas pessoas que se sentem sozinhas e deprimidas procuram uma forma de
compensação através das redes sociais, criando um mundo virtual para consolar a sua
tristeza e a sua insatisfação com a realidade concreta do dia a dia. No entanto, apesar
das redes sociais servirem para muitas pessoas como uma forma de comunicação e de
escape, o seu uso pode piorar o problema da solidão, pois a tendência em muitas
pessoas é a de se afastarem cada vez mais das outras pessoas.
Muitas pessoas por se sentirem isoladas socialmente no dia a dia recorrem às
redes sociais, mas a sua utilização excessiva faz com que fiquem ainda mais isoladas do
mundo real, pois quanto mais tempo permanecem nas redes sociais menos tempo ou
disposição têm para estarem com os outros nas relações concretas e presenciais. A
interação social online pode substituir as interações presenciais para algumas pessoas,
em vez de agir como um suplemento, mas isso pode ter um impacto negativo nas
capacidades sociais de muitas pessoas, e fazer com que tenham sentimentos de solidão.
Muitas pessoas vão para as redes sociais porque estão sozinhas e deprimidas, mas por
outro lado ainda ficam mais sozinhas e deprimidas ao irem para as redes sociais. O uso
excessivo das redes sociais por um lado tem muitas vezes como origem a depressão,
mas por outro lado pode também causar depressão em quem não tinha depressão, pois
quem é dependente delas muitas vezes deixa de lado os seus compromissos, afasta-se
das pessoas, deixa de praticar os seus hobbies, e há mesmo alguns utilizadores ficam
acordados durante a noite, presos à Internet, o que é prejudicial para o seu bem estar
físico e psicológico. Alguns autores introduziram termos como a “depressão do
Facebook” ou o “toque fantasma” para descreverem novos sintomas ou problemas
psicológicos provocadas pelo uso excessivo das redes sociais. Por exemplo, a
“depressão do Facebook” consiste numa tristeza ou angústia profundas por não se estar
constantemente em contacto com os outros, sentir que se está desligado do mundo. Por
seu turno, o “toque fantasma” é descrito como a sensação de se ouvir o telemóvel tocar
ou a vibrar quando na realidade não toca nem vibra.
As redes sociais, em muitos casos, trazem alegria e prazer, mas também
provocam raiva, inveja principalmente porque muitos indivíduos acreditam que os
outros indivíduos são mais felizes do que eles. Fotos de viagens ao exterior, mulheres
com corpos belos, pessoas exibindo roupas de marca e famosos no seu dia a dia
glamouroso, publicações de férias caras, novas casas, novos carros, relacionamentos
felizes, e sucessos no âmbito profissional (mesmo que alguns deles sejam mentira)
podem despertar sentimentos de inveja, baixa autoestima e depressão. Muitos
indivíduos estão sempre a comparar as suas vidas com as dos outros, e perante a
exibição nas redes sociais de “vidas felizes”, muitos utilizadores ficam com um olhar
negativo sobre si mesmos, aumentando a sua sensação de incapacidade.
Até mesmo o facto de alguns utilizadores receberam muitos “gostos” nos seus
textos e partilhas nas redes sociais, pode levar à inveja de outros utilizadores, por não
receberem nenhum ou quase nenhum “gosto”, e em alguns casos pode também levar à
depressão. Buscando reconhecimento e validação nas redes sociais, há pessoas que
ficam aborrecidas quando não recebem tantos símbolos de “gosto” e tantos bons
comentários conforme esperavam, essas pessoas estão demasiado à mercê de
reconhecimento e validação, e sendo isso para muitas pessoas feito através das redes
sociais, ficam tristes quando não o têm . Há pessoas mais propensas a terem essa atitude
devido à sua baixa autoestima, à sua insatisfação pessoal, à sua carência de afeto, que
tentam preencher com o sinal de “gosto” , as partilhas das suas publicações e os
comentários elogiosos.
A comparação feita por muitos utilizadores entre a vida virtual e real, e da sua
vida com a de outros utilizadores, faz com tenham a sensação de que lhes falta algo, e
que se sintam infelizes e deprimidos. Há mesmo indivíduos que pouco a pouco entram
em depressão depois de receberem críticas sobre uma característica física sua, sobretudo
quando essas críticas são feitas de maneira tão pública como a das redes sociais. Em
muitos indivíduos esse tipo de críticas enfraquece a sua autoestima e provoca-lhes
insegurança e depressão, por exemplo em mulheres jovens que sentem a pressão social
para terem um corpo belo e perfeito. Um dos grupos mais vulneráveis são também os
adolescentes, pois têm ainda poucas defesas psicológicas para lidarem com tanta
pressão. Apesar dessa pressão poder acontecer em todas as idades, são os indivíduos
mais jovens as principais vítimas, pois são os que mais utilizam as redes sociais.
A interação com as redes sociais pode causar mesmo uma simples mudança de
humor que, de início, parece algo inofensivo, mas que com o tempo ganha proporção e
pode-se transformar num distúrbio emocional. As redes sociais influenciam
negativamente o humor, e causam sentimentos negativos também através das notícias
que deixam certas pessoas muito abaladas. Por fim, há que lembrar o facto de que as
hostilidades nas redes sociais (os comentários ofensivos entre os seus utilizadores, o
assédio virtual, e os discursos de ódio), de que já falámos mais atrás, podem também
originar raiva, tristeza e depressão.
PROBLEMAS ECONÓMICOS
A FRAUDE
A PUBLICIDADE ENGANOSA
17
Anne Weber, “Manual on Hate Speech”, Council of Europe, Brussels, Publishing Editions Council of
Europe, p. 12
ódio. Atualmente a maioria das democracias tem leis que restringem ou proíbem os
discursos de ódio. No entanto, os Estados Unidos não têm leis de discursos de ódio,
dado que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu que as leis que criminalizam
os discursos de ódio violam o direito à liberdade de expressão contida na Primeira
Emenda da Constituição desse país.
Noutros países, principalmente nos europeus, há certos comentários nas redes
sociais, sobre determinados textos que são colocados nas suas páginas, ou sobre
determinados comentários feitos por outros utilizadores, ou sobre os utilizadores que
colocam esses textos ou esses comentários, são considerados crime : calúnias (imputar
falsamente a prática de algum crime a terceiros); divulgação de informações (fotos,
vídeos íntimos, etc.); que exponham publicamente factos da vida privada de outra
pessoa, sem a sua autorização; informações falsas sobre uma pessoa, que sejam
prejudiciais para a sua honra; difamação; injúrias; insultos graves.
O crime de difamação é um dos mais comuns, e é sempre feito de forma indireta,
isto é, alguém é ofendido ou acusado por uma pessoa que se dirige a terceiros. O
Código Penal Português, no seu artigo 180, no capítulo VI, intitulado : “Dos crimes
contra a honra” afirma que de uma forma geral poderá ser culpado quem : se dirigir a
terceiros e incriminar ou responsabilizar alguém, mesmo sob forma de suspeita,
ofendendo dessa forma a sua honra; se dirigir a terceiros e formular juízos sobre
alguém, ofendendo dessa forma a sua honra; reproduzir de alguma forma as ofensas à
honra de alguém, mesmo que inicialmente feitas por outra pessoa. No caso da ofensa ser
feita através de um meio que potencie a sua divulgação pública, como por exemplo a
Internet, a lei considera essa situação mais grave, e por isso a criminalização e a
penalização são mais elevadas.
A nova Lei dos Serviços Digitais (DAS) apresentada em 2020 pela Comissão
Europeia ao Conselho e ao Parlamento Europeu, define que “o que é ilegal offline
também deveria ser online”. Mais recentemente, segundo a Comissão Europeia,
plataformas digitais como o Facebook e o Twitter podem ser obrigadas a partilhar dados
com autoridades reguladoras da União Europeia, perante “preocupações concretas”
sobre desinformação, e as novas regras comunitárias passaram a incidir sobre
“conteúdos ilegais e prejudiciais”. Assim, as autoridades reguladoras na União
Europeia, nomeadamente de cada Estado membro, deverão investigar preocupações
concretas e atuar no combate à desinformação.
Por último, há também que referir a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na
Era Digital, que foi aprovada na Assembleia da República, promulgada pelo presidente
da República, e que entrou em vigor em 2021. Esta lei gerou muita controvérsia, não
reuniu a aprovação entre os especialistas, e alguns não hesitaram em considerá-la um
regresso à censura do período antes da revolução do 25 de Abril (o regime político do
Estado Novo). Assim, por exemplo o artigo sexto dessa lei estipulou o apoio do Estado
“à criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social
devidamente registados” e “incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades
fidedignas dotadas do estatuto de entidade pública”.
Por um lado, se os Governos nada fizerem, são acusados de permitirem muitos
dos problemas provenientes do mau uso das redes sociais, principalmente os discursos
de ódio, as notícias falsas, a difamação, o assédio, a invasão da privacidade, etc. Por
outro lado, se os Governos atuarem, são acusados de interferirem nas liberdades dos
cidadãos, principalmente no direito à liberdade de expressão, e de exercerem censura.
Este é portanto um problema de difícil resolução, principalmente quando as autoridades
tiverem de definir o que deve ou não ser censurado. É certo que deve haver liberdade de
expressão, mas a liberdade de expressão deve ter limites. Ora, deve-se limitar o quê ? de
que maneira ? havendo uma comissão para verificar, quem verifica os verificadores ?
São estes os principais problemas, de responsabilidade do poder político, que atua por
vezes negligentemente, e outras vezes autoritariamente, cuja resolução é portanto algo
muito subjetivo, dependendo da cultura de cada país, da época, da orientação política
dos Governos e da maioria na União Europeia, assim como da interpretação pessoal de
quem, a nível jurídico, aplica a lei.
EPÍLOGO
Assim que muitas pessoas perceberam que ao dizerem mal de alguém ou de algo
a certas pessoas, ou fazerem outras coisas que só o conseguem fazer a certas pessoas, o
podiam fazer a todas as pessoas através das redes sociais, foi fácil passarem a fazê-lo. O
enorme número do público recetor de comentários e críticas, a facilidade do acesso à
Internet, a rapidez com que as publicações se espalham, o alcance nacional e
internacional das publicações colocados por qualquer indivíduo nas redes sociais, a
possibilidade do anonimato, a impunidade sob pretexto do chamado “direito à liberdade
de expressão”, passaram a permitir facilmente que muitas coisas que dantes não se dizia
em público agora sejam dita. A fala nunca foi tão livre e menos intermediada como nos
tempos de hoje. Dantes as pessoas escreviam coisas para os jornais, que eram
previamente visionadas pelos diretores e chefes de redação dos jornais. Agora não é
assim, pois praticamente não há controle dos textos e comentários, a democratização da
comunicação permite que todos possam dizer o que sentem e pensam (e que por vezes
não sentem nem pensam, mas que dizem apenas para provocarem polémica ou para se
exibirem), e que o possam fazer para toda a gente ler. Praticamente não há limitação de
publicar textos como no caso dos livros ou da publicação de mensagens através dos
órgãos de comunicação social tradicionais. Nos jornais não entra qualquer pessoa, nos
estúdios da televisão e da rádio também não, mas nas redes sociais, sim. Qualquer
pessoa com aceso à Internet pode criar um perfil, escrever, comentar, anunciar, criticar,
partilhar, sem que seja requerida grande habilidade tecnológica.
Além da proteção de que os computadores servem de escudo, muitos
utilizadores das redes sociais consideram que não é preciso reflexão sobre o que estão
prestes a fazer, entram pelas redes sociais adentro, navegam livremente, escolhem as
páginas que querem, e acham que estão num espaço totalmente livre, que é de todos,
para fazerem e dizerem tudo o que quiserem. Na origem dessa atitude está o pressuposto
de que a Internet é uma Terra de Ninguém onde vale tudo. Sempre houve atos de
violência verbal, intolerância e discriminação a longo da História, mas nunca como nas
redes sociais. No anonimato permitido pelas redes sociais, há poucas possibilidades das
normas sociais verificarem e deterem as hostilidades, o assédio, os discursos de ódio, e
outros problemas como os descritos ao longo deste livro. Muitos utilizadores das redes
sociais escondem-se, não se sabe onde vivem, nem quem são, e portanto não têm receio
de retaliação. Durante o dia, na vida concreta e real, as pessoas curvam-se perante as
regras da sociedade, mas ao entrarem nas redes sociais é como entrarem dentro de outro
mundo, não o mundo do dia a dia, mas um mundo através de uma caixa, em que se pode
estar e participar sem se ser visto. As redes sociais possibilitam uma alternativa às
normas da sociedade do dia a dia, e longe do olhar das outras pessoas muitos dos seus
utilizadores soltam-se, de forma persistente, assediante, e por vezes violenta
verbalmente. Quase toda a gente se acha uma autoridade numa matéria, quase toda a
gente acha que tem razão, quase toda a gente se acha no seu direito de fazer o que quer,
de dizer o que quer, quando quer, como quer, a quem quer, apresentando simplesmente
como justificação o direito à liberdade de expressão.
O direito à liberdade de expressão está assegurado por vários tratados
internacionais. Devido a estes tratados, e à Constituição de cada país onde o direito à
liberdade de expressão é garantido, vários setores da opinião pública e algumas
associações defendem o direito dos indivíduos publicarem o que publicam nas redes
sociais. Assim, por exemplo, em Janeiro de 2020 várias associações de defesa das
liberdades digitais realizaram um Fórum internacional para se oporem à adoção de leis
que visam combater os discursos de ódio nas redes sociais. Segundo essas associações,
a possibilidade de as plataformas das redes sociais terem de pagar uma multa por
permitirem a publicação desses discursos leva-as a censurarem demasiado os textos que
são colocados nas redes sociais.
Por seu turno, alguns estudiosos têm criticado também a limitação dos
comentários e dos discursos de ódio, pois segundo eles, as leis contra esses comentários
e os discursos de ódio constituem uma discriminação de pontos de vista, e restringi-los
baseia-se em bases concetuais e empíricas questionáveis. Segundo esses defensores
daquilo que consideram ser a “liberdade de expressão”, permitir esses comentários e os
chamados discursos de ódio fornecem um visão mais precisa da condição humana, uma
oportunidade para mudar a mente das pessoas e identificar certas pessoas que podem
precisar de ser evitada em certas circunstâncias. Segundo esses indivíduos, os valores
iluministas como o da tolerância, que protegiam o direito à liberdade de expressão,
estão sob ameaça.
Um dos fundamentos filosóficos da defesa da liberdade de expressão é o da
metáfora do “mercado das ideias políticas”. Os defensores da liberdade de expressão
defendem que um mercado livre de ideias certamente ajudará a promover a descoberta
da verdade, e que a colisão das opiniões contrárias é a melhor maneira de fazer triunfar
a verdade, e que a verdade não aparece plenamente senão no seu confronto com o erro,
conforme afirma o filósofo John Stuart Mill, na sua obra Da liberdade.
No entanto, esses defensores da liberdade de expressão ignoram que Stuart Mill
defendeu também que certas condições tinham de ser estabelecidas para que realmente
um mercado livre de ideias levasse à descoberta da verdade, pois segundo Mill, as
pessoas tinham de ser respeitadoras e educadas. Não tem sentido pensar que
descobriremos a verdade permitindo que as pessoas expressem toda as opiniões que
quiserem. Muitos defensores da liberdade de expressão defendem que o próprio
discurso de ódio deve ser permitido, se não corre-se o risco de se perderem outras
liberdades.
Ora, ao contrário de quem assim pensa, consideramos que pode-se muito bem
concordar ou discordar de uma ideia, crença, ou forma de vida, sem se cair em discursos
de ódio e outros comentários ofensivos. O objetivo dos contestatários da proibição dos
discursos de ódio não é garantir a liberdade de expressão, isto é, o direito de expressar
as suas opiniões sem censura ou penalização legal, mas sim garantir-lhes licença para
falarem impunemente, e portanto, não se trata de liberdade de expressão, mas de
liberdade das consequências dessa liberdade.
Um cidadão sentindo-se lesado por aquilo que se publica nas redes sociais pode
exercer o seu direito de resposta nas redes sociais, mas por vezes é difícil que a sua
resposta apague o atentado contra o seu bom nome e a sua imagem (que nem em todos
os países é crime, e que por outro lado é difícil de apreciar). Quem faz a gestão das
redes sociais acaba por banir a conta de certos utilizadores, devido aos insultos, às
falsidades, às difamações, e às ameaças, mas o facto já foi consumado, e mesmo que as
redes sociais apaguem a conta desses utilizadores, os insultos ficaram feitos, as mentiras
espalharam-se, as ameaças realizaram-se, levando as suas vítimas a viverem por vezes
num clima de medo .
Ao permitirem a publicação de discursos de ódio, de comentários ofensivos, de
notícias falsas, de assédio virtual, e de incitamentos à violência, sem intervirem, e em
alguns casos só resolverem esse problema mais tarde, as redes sociais agravam esse
problema. Se a liberdade de expressão for sem limites, espalham-se insultos e notícias
falsas, e a sua difusão pode ter um impacto negativo na vida de muitas pessoas, e na
sociedade. A liberdade de expressão não é um direito absoluto, e não pode ser permitida
em casos de insultos, falsidades, ameaças, difamações, calúnias, e apelos à violência
física. A proibição dessas publicações é uma forma de garantir a própria liberdade de
expressão, pois essas publicações não têm como objetivo o diálogo. O discurso de ódio
quer silenciar a vítima, não permitir que ela se expresse livremente, na sua crença
religiosa, no seu ateísmo, na sua convicção política, na sua identidade cultural, na sua
orientação sexual, etc., fazendo-se uso da liberdade de expressão, para atacar outra
liberdade de expressão.
A liberdade de expressão deve ser limitada, conforme já a Declaração dos
Direitos Humanos de 1789 afirmava: “Liberdade é ser capaz de fazer qualquer coisa que
não prejudique os outros; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não
tem limites, exceto aqueles que asseguram aos demais membros da sociedade o gozo
desses mesmos direitos. (...)“ A livre comunicação de pensamentos e opiniões é um dos
mais preciosos direitos humanos; qualquer cidadão pode, portanto, falar, escrever,
imprimir livremente, excetuando o abuso dessa liberdade nos casos determinados pela
lei ”. (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, artigos 4 e 11).
A propósito da liberdade de expressão colocam-se dois campos opostos. Um
exige limites à liberdade de expressão, porque segundo os seus defensores uma
liberdade só é real quando é limitada, e o outro quere-a ilimitada, dado que segundo os
seus defensores devido ao facto de se limitar a liberdade de expressão podem-se
cometer abusos. Este debate é muito atual. Por exemplo, em Setembro de 2005 o jornal
dinamarquês Jyllands-Posten publicou caricaturas do profeta Maomé, que foram
republicadas mundialmente em alguns jornais. Essas caricaturas causaram indignação
em várias comunidades muçulmanas, e originaram manifestações de protesto, algumas
delas violentas. Por outro lado, houve também manifestações a favor da liberdade de
expressão das caricaturas.
O direito à liberdade de expressão é limitado por outros direitos, como por
exemplo o direito à privacidade ou o direito à honra pessoal. A liberdade cessa, como
afirma o artigo 4 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde começa a
dos outros (“A liberdade consiste em fazer tudo que não prejudique os outros”). O
direito à liberdade de expressão é um facto, mas também existe o direito das pessoas de
não serem invadidas por hostilidades, assédio virtual, discursos de ódio e notícias falsas.
O direito de criticar os outros, através da liberdade de expressão, não significa
ridicularizá-los ou desrespeitá-los. Mesmo se discordaremos de certos atos ou de certas
ideias dos outros indivíduos, essa discordância e a forma como é feita têm limites.
Muitos indivíduos pensam que se alguém defende a tolerância, deve ser
tolerante até o fim, e não se impor restrições à liberdade de expressão, porque a partir do
momento em que coloca um limite na tolerância, segundo esses indivíduos quem o faz
nega-se a si mesmo mostrando-se intolerante. Por isso, segundo esses indivíduos, a
tolerância à liberdade de expressão deveria ser absoluta, pois se assim não fosse não
seria tolerância. Essa tolerância não poderia ter limites, sob pena de ser imediatamente
destruída. A tolerância para com a liberdade de expressão deveria ser ilimitada, e
portanto apenas a tolerância absoluta à liberdade de expressão seria realmente
tolerância,
No entanto, a tolerância para com a liberdade de expressão pode pôr em perigo
a liberdade de outros indivíduos, pois em caso contrário, inevitavelmente seríamos
levados a encontrar quem considere legítimo impor de forma brutal as suas convicções
políticas ou religiosas. Ser intolerante para com a intolerância, para com quem não
permite a liberdade de consciência e de crenças alheias, não é ser intolerante, é ser
coerente, pois isso implica que há pelo menos uma verdade que pode ser imposta, isto é,
a de que todos os seres humanos são livres. A tolerância tem limites, e o primeiro
grande limite é não permitir a ausência de liberdade de outros seres humanos.
A liberdade de expressão, pela qual devemos lutar, tem as suas limitações, pois
em caso contrário cairíamos no tolerantismo, isto é, a tolerância absoluta, que incluiria
a tolerância do desrespeito pelos direitos de outros seres humanos. Se nenhuma
liberdade de expressão estiver errada, então tudo é tolerável, e a ausência de ideais, de
convicções fortes, torna-nos indiferentes. Quando se tolera tudo, deixa de ter sentido
falar em tolerância, dado que a tolerância para ser tolerância tem de atuar dentro de
limites. A perda de referências torna a tolerância sem sentido, pois deixa de se saber o
que é e o que não é tolerável. Se toda a liberdade de expressão for tolerável, não há nada
a tolerar, porque não há razão para tolerar certas coisas em detrimento de outras. Em
nome da tolerância aceitaríamos tudo, sem determinar o valor do que toleramos. A
ausência de critérios nos quais basear os nossos julgamentos sobre o que deve ou não
deve ser tolerado, significaria indiferença. Ora, se houver indiferença, não se deve falar
em tolerância, pois a tolerância pressupõe que há coisas com as quais não se concorda.
Uma coisa é a tolerância, outra coisa é o tolerantismo; uma coisa é a liberdade, outra
coisa é o libertarianismo. Nem tudo é tolerável, justamente porque existem
comportamentos que não devem ser tolerados e, portanto, não devemos cair no
tolerantismo ou no libertarianismo.
Para não se cair no tolerantismo, delimitar o que se pode tolerar não é fácil, pois
para algumas pessoas certas tolerâncias já são tolerantismo. Como delimitar? Segundo
John Rawls, na sua obra Liberalismo político, a liberdade de consciência é limitada
pelo interesse comum pela ordem e segurança públicas. Mas esses limites, apresentados
de forma tão geral, parecem muito abstratos e indefinidos, pela forma como cada
Governo pode interpretar o interesse comum pela ordem e segurança públicas. John
Rawls afirma que se trata de limites razoáveis e que a manutenção da ordem e da
segurança públicas é um direito do Governo, necessário para garantir com
imparcialidade as condições de cooperação social. No entanto, a experiência histórica
mostra-nos como governos autoritários e até democráticos têm usado esse argumento
para negar ou limitar demais os direitos e as liberdades.
Para outros autores, a liberdade e o conceito de tolerância são limitados pelo
princípio de não prejudicar os outros indivíduos. Este princípio já foi definido por Stuart
Mill, na sua obra Da liberdade, segundo o qual a única justificação para uma
interferência na liberdade de uma pessoa é a prevenção de danos causados a outros
indivíduos (para evitar prejudicar os outros). Este princípio é justificado pelo respeito
que devemos ter pela liberdade dos outros indivíduos, para que eles possam livremente
ter a oportunidade de escolher entre as diferentes opções. No entanto, o problema surge
quando falamos sobre dano, pois o significado do conceito de dano não é claro. É um
dano físico, psicológico, moral, cultural, social ou económico? Por outro lado, o que é
considerado dano para algumas pessoas, para outras pessoas ou para outras culturas, não
o é.
Em resposta a isso propomos o critério da violação dos Direitos Humanos, como
o limite mais elementar da tolerância, mesmo que também nos tornemos intolerantes,
mas neste caso somos intolerantes para preservar os direitos. Seguindo este princípio, é
intolerável admitir a violação de direitos, pois pressupõe a violação do princípio do
respeito pelas pessoas. Se por um lado a tolerância significa admitir e permitir o que se
desaprova, por outro lado não se devem tolerar ações que envolvam a violação de
direitos, pois devemos respeitar os indivíduos cujos direitos são violentados, como é o
caso da violação feita sob a justificação do “direito à liberdade de expressão”.
BIBLIOGRAFIA
AS RELAÇÕES AFETIVAS
As amizades virtuais
Os amores virtuais
O sexo virtual
A PERDA DA PRIVACIDADE
A exposição da privacidade pelos próprios utilizadores
A violação da privacidade por outros utilizadores
OS GOSTOS E AS PARTILHAS
A obsessão pelos gostos e os gostos falsos
As partilhas e outras apropriações ilegais
PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO
A falta de comunicação não verbal
O empobrecimento da língua
PROBLEMAS DE INFORMAÇÃO
O excesso de informação
As notícias falsas
PROBLEMAS ECONÓMICOS
A fraude
A publicidade enganosa
Epílogo
Bibliografia
Índice