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http://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/saude_desenvolvimento
Canoas, v. 8, n. 3, 2020
Artigo de Revisão
Fatores de vulnerabilidades em itinerários terapêuticos de doenças raras: uma revisão integrativa
Factores de vulnerabilidad en itinerarios terapéuticos para enfermedades raras: una revisión integradora
http://dx.doi.org/10.18316/sdh .v8i3.6014
Raquiel Naiele Ramos Felipe1, Caroline Filla Resultados e discussão: Os resultados, a partir
Rosaneli2, Thiago Rocha da Cunha3, Claudia da análise qualitativa dos estudos selecionados,
Jaqueline Martinez Munhoz4. possibilitaram identificar os seguintes fatores
de vulnerabilidades: falta de informações;
despreparo profissional; dificuldade de se chegar
RESUMO a um diagnóstico; longos caminhos percorridos/
diversos serviços de saúde; faltam privacidade
Objetivo: O artigo preocupa-se em ampliar a
e autonomia na participação em pesquisas de
compreensão sobre conflitos éticos vivenciados
doenças raras; dificuldades de tratamentos e/
por pacientes de doenças raras, identificando
ou tratamentos de auto custo; dificuldades
os principais fatores de vulnerabilidades em
financeiras/empobrecimento; falta de organização
itinerários terapêuticos de pessoas que vivem
e estrutura dos serviços de saúde; acolhimento
nessa condição. Método: Para tanto, realizou-se
diferenciado seja por discriminação, privações
uma revisão integrativa da literatura desenvolvida
e/ou estigmatização, e sofrimento emocional.
nas bases de dados internacionais, publicada
Conclusão: Ao discutir essas diferentes
entre os anos de 2000 a 2016, compreendendo
dimensões da vulnerabilidade a partir do campo
os idiomas português, inglês e espanhol.
da bioética, o artigo concluí pela necessidade
de abordar os itinerários terapêuticos a partir de
novas perspectivas interdisciplinares, buscando
1
Mestre em Bioética pela PUCPR. Docente da garantir o respeito ao direito à vida, à saúde e à
Universidade do Estado de Mato Grosso campus proteção da dignidade das pessoas que vivem
Tangara da Serra. com doenças raras.
2
Pós-doutora pela Cátedra Unesco de Bioética da UnB. Palavras-chave: Doença Rara; Vulnerabilidade;
Docente do Programa de Pós-graduação em Bioética Itinerário Terapêutico; Bioética.
da PUCPR.
3
Pós-doutor pela Cátedra Unesco de Bioética da UnB.
Coordenador do Programa de Pós-graduação em ABSTRACT
Bioética da PUCPR. Objective: The article is concerned with broadening
4
Pós-Doutora pela Universidade de Évora, Portugal. Docente the understanding of ethical conflicts experienced
da UFMT campus Sinop. by rare disease patients, identifying the main
vulnerability factors in the therapeutic itineraries of
Autor correspondente: PUCPR. Escola Ciências da Vida. people living in this condition. Method: For that,
Programa de Pós-graduação em Bioética. Rua Imaculada an integrative review of the literature developed
Conceição, 1155, Prado Velho, Curitiba, Paraná. in the international databases, published
E-mail: caroline.rosaneli@gmail.com between the years 2000 to 2016, comprising
Portuguese, English and Spanish languages
Submetido: 15/08/2019 was carried out. Results and discussion: The
Aceito: 26/04/2020 results, based on the qualitative analysis of the
selected studies, made it possible to identify the clínicos, sanitários e epidemiológicos, mas
following vulnerability factors: lack of information; também - ou sobretudo - éticos. Estes itinerários
Professional unpreparedness; Difficulty in são caracterizados por uma sucessão de etapas,
reaching a diagnosis; Long paths covered / various representando o caminho, muitas vezes longo,
health services; Lack of privacy and autonomy in percorrido na busca por um diagnóstico e
participating in rare disease research; Difficulties tratamentos possíveis.
of treatments and / or treatments of auto cost;
A vulnerabilidade, entendida como uma
Financial difficulties / impoverishment; Lack of
característica “que pode ser aplicada a qualquer
organization and structure of health services;
ser vivo que, enquanto tal, pode ser “ferido”5,
Discrimination, deprivation and / or stigmatization,
torna-se um problema especial para as pessoas
and emotional distress. Conclusion: In discussing
que vivem com DR, uma vez que nestas pessoas
these different dimensions of vulnerability from
a “ferida” não é uma possibilidade, mas um fato.
the field of bioethics, the article concludes by the
need to address of therapeutic itineraries from new Embora o conceito de vulnerabilidade
interdisciplinary perspectives, seeking to ensure seja demasiadamente amplo e constantemente
respect for the right to life, health and protection of modificável, aqui será empregada a ideia da
the dignity of People living with rare diseases. vulnerabilidade correlacionada a indivíduos e
Keywords: Rare Disease; Vulnerability; grupos com maior grau e condições de exposição ou
Therapeutic Itinerary; Bioethics. susceptibilidade a ferir-se do que outros6, seguindo,
a indicação adotada pela Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH)7.
INTRODUÇÃO Ao transitar em meio às temáticas
Conforme a Portaria nº 199 de 30 de envolvendo os itinerários terapêuticos em DR a
janeiro de 2014 do Ministério da Saúde, não há partir do campo teórico e normativo da bioética,
definido um número exato de Doenças Raras busca-se apontar para problemas significativos
(DR) conhecidas, chegando a cerca de seis a que envolvem aspectos como o respeito à
oito mil tipos diferentes, onde 80% são advindas dignidade humana, o direito à saúde, a proteção
de problemas genéticos e as demais de causas de vulneráveis e o envolvimento coletivo por meio
externas1, acometendo em torno de 13 a 16 de processos solidários8, 9,10.
milhões de pacientes no Brasil2, e de acordo com Desta forma, este estudo teve por objetivo
dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), ampliar a compreensão sobre conflitos éticos
chegam a aproximadamente 400 milhões de envolvendo doenças raras, identificando os fatores
pessoas afetadas em todo o planeta3. de vulnerabilidades em itinerários terapêuticos de
O próprio nome “doença rara” traz consigo pacientes que vivem nessa condição.
a designação de raridade, ou seja, de algo que é
infrequente, que foge à norma, marcando de modo
muito particular a vida das pessoas que vivenciam MÉTODOS
ou convivem com uma DR. A raridade dessas Trata-se de uma revisão integrativa da
doenças resulta em consequências que agravam literatura, que é uma abordagem a qual permite
não apenas as situações biológicas relacionadas a combinação de diversas metodologias,
aos diagnósticos tardios, longos tempos de espera, proporcionando a síntese de conhecimento e a
atendimentos inadequados as suas necessidades, incorporação da aplicabilidade de resultados de
mas, também, “revela-se no corpo, implica olhares estudos significativos na prática, com etapas pré-
furtivos, contatos evitados, oportunidades perdidas, determinadas, tal como definidas por Whittemore
gera estigma, cria vidas escondidas, cotidianos que e Knafl11. Inicialmente foram definidos o tema da
giram em volta da doença”4. pesquisa, a pergunta norteadora e os descritores
Assim, compreender as vulnerabilidades para realização do levantamento bibliográfico.
nos itinerários terapêuticos (IT) percorridos por A pergunta foi definida do seguinte modo: quais
pessoas que vivem com doenças raras torna-se os fatores de vulnerabilidades em itinerários
um desafio que envolve não apenas aspectos terapêuticos de pacientes com doenças raras?
Para o levantamento do material bibliográfico, completo; publicados entre os anos de 2000 a
as buscas se deram no período de dezembro 2016; compreendendo os idiomas português,
do ano de 2016 a janeiro de 2017, utilizando as inglês e espanhol. Os estudos duplicados,
seguintes combinações de descritores: “doença” os que não se encontravam relacionados
AND “rara” AND “vulnerabilidade”; “doença rara” diretamente com itinerários terapêuticos,
AND “vulnerabilidade”; e “doença rara” AND estudos que tratassem estritamente do aspecto
“itinerário terapêutico”. As palavras chave e clínico da doença, estudos que contemplassem
suas combinações foram buscadas nos idiomas doenças não raras e publicações relacionadas às
português, inglês e espanhol nas bases de especificidades descritivas das doenças foram
dados Pubmed, Scielo e Lilacs, e somente em excluídos desta análise.
português, na base do Scholar Google (devido
à demasiada abrangência da base). A partir
destes, foram encontrados um total de 626 RESULTADOS
estudos, sendo realizada então, a leitura de
seus títulos e eventualmente seus resumos para A aplicação do método resultou em um total
identificar especificamente o assunto em questão: final de 13 estudos que foram integrados a revisão,
vulnerabilidades em itinerários terapêuticos em onde dois (2) se deram a partir dos descritores
doenças raras. “doença, rara AND vulnerabilidade”, sete (7) em
“doença rara AND vulnerabilidade” e seis (6) em
Para tanto, foram definidos os seguintes “doença rara AND itinerário terapêutico”, sendo
critérios de inclusão: estudos contemplando o que dois destes apareceram repetidamente nas
problema, ou seja, fatores de vulnerabilidade duas últimas combinações, conforme apresentado
relacionados ao itinerário terapêutico de doenças na figura 1.
raras; publicações disponíveis on-line e em texto
Quadro 1. Caracterização dos estudos quanto aos títulos, autores, ano de publicação e periódicos ou
instituições publicadas.
Fonte: os autores.
* Os estudos se encontram numerados conforme numerações dispostas nos quadros anteriores.
175
Neste sentido, conviver com uma DR passam a serem vistos por estes como pessoas
contempla se deparar com a falta de organização/ incapazes, sendo privados de fazer atividades que
estrutura de serviços de saúde e do meio uma pessoa “normal” (sem uma DR) faria.
ambiente, provocando insatisfação com o meio
Diante do exposto, solidifica-se a relevância
onde vivem17,22. Para Unesco7 o referido segue-se
da bioética frente as trajetórias em DR, em
novamente de forma conflituosa com o estipulado
especial a Bioética da Proteção, por relacionar-se
pela DUBDH em seu artigo 14º, que faz menção
diretamente a “problemas morais envolvidos pela
a Responsabilidade Social como um de seus
vulneração humana, ou seja, a condição existencial
princípios, ao qual prevê o acesso a cuidados de
dos humanos que não estão submetidos somente
saúde de qualidade, bem como a melhoria das
a riscos de vulneração, mas a danos e carências
condições de vida e do meio ambiente, pois a
concretas”. A Bioética da Proteção acolhe conflitos
saúde é tida como um bem-estar social e humano.
e contextos da saúde pública, compartilhando
problemas da humanidade em geral, em
especial aos que sofrem por exclusão social
Vulnerabilidade moral
e são feridos no princípio de justiça, bem como
A vulnerabilidade moral, em sua da qualidade e sacralidade da vida29. A bioética
designação aqui empregada, envolve problemas tem como finalidade “estimular o senso moral
que abrangem indivíduos e grupos que por sua individual e coletivo da humanidade a crescer em
condição (de raridade) são de alguma forma conhecimento, admiração, amor e respeito pela
excluídos, “estigmatizados, discriminados vida” e pela saúde de outrem9.
negativamente e/ou não reconhecidos em sua Notadamente, o cenário neste estudo mostra
dignidade e direitos enquanto agentes morais”, a violação dos direitos humanos vivenciada por
ou seja, que são moralmente mais suscetíveis ao estas pessoas. Assim, percebe-se a necessidade
sofrimento do que outros28. de que esses pacientes sejam assistidos e
Possuir uma DR desencadeia, em muitos garantidos “pelo Estado Brasileiro, a igualdade de
pacientes, a presença de vulnerabilidades morais, oportunidades, sem avaliações equivocadas de
diante de desconfortos emocionais em decorrência merecimento ou de responsabilidade pessoal”8.
de toda a trajetória vivenciada, trajetória esta Cabe ao Estado esta preocupação com a saúde e a
que pode vir acompanhada de acolhimento busca por sua preservação, o que é imprescindível
diferenciado, seja pelos serviços de saúde, pelos à dignidade humana30.
próprios familiares e por toda a sociedade em Ponderando assuntos como os casos
geral, que de uma forma ou de outra acabam por das DR, a Bioética da Proteção pode contribuir
tratar pacientes com certa discriminação e/ou significativamente, tendo ela o intuito de provocar
estigmatização (principalmente quando os efeitos reflexões acerca de meios de sobrevivência com
das patologias são visíveis) ou até mesmo gerar qualidade de vida, demonstrando preocupações
privações de atividades diárias. Conforme pode com cada ser e com seus sofrimentos, suas
ser observado no trecho a seguir: “Os pais buscam limitações e assuntos referentes à mortalidade e
acolher, com certa tranquilidade, os olhares e meios de sobrevivência pessoal, representando
impressões das outras pessoas que não convivem assim a bioética como ética da vida. Podendo ser
com ele, na tentativa de minimizar os desconfortos pensada ainda como uma forma que visa o auxílio
em relação ao ser diferente, reduzindo, assim, aos que não possuem capacidade para atingir
sofrimentos relacionados a uma situação de não uma vida digna, moralmente correta, e essencial
enquadramento do filho aos padrões impostos para a convivência humana, conforme indicado
como normais, tanto pelos profissionais de saúde pelos direitos humanos29.
quanto pela sociedade em geral”13.
Outro importante aporte pode ainda aqui ser
Complementando o acima disposto empregada, a Bioética de Intervenção, que em sua
Martins em um estudo realizado com pacientes
22
perspectiva ampla, busca pela aplicação de valores
de osteogênese imperfeita (OI), apontam que éticos diante de questões sociais envolvidas
alguns pacientes entrevistados consideram que no processo de doença, de forma coletiva ou
“os limites são impostos mais pela família e pela individual, que resultem em boas consequências,
sociedade do que pela própria doença”, e que
bem como valoriza de forma moral a resolução políticas públicas possam ser inseridas e/
de conflitos diante de seus contextos gerais ou que as já existentes sejam implantadas de
e suas contraposições. Utiliza-se dos direitos forma direcionada às necessidades de pessoas
humanos contemporâneos como meio norteador, que vivem com DR, possibilitando assim, a
“argumentando pelo reconhecimento do direito garantia do direito à vida e à saúde para este
coletivo à igualdade e pelo direito de indivíduos, grupo sensivelmente vulnerabilizado por fatores
grupos e segmentos à equidade nas garantias biológicos, sociais e morais.
legais e no acesso real aos direitos humanos”. Nela
Finalmente, ao considerar sobre estas
estão inseridos assuntos de cidadania, e direitos
dimensões éticas pouco exploradas pela literatura
das pessoas e das sociedades e não somente das
científica, aponta-se para a necessidade de
garantias asseguradas pelo Estado31.
que novas pesquisas sejam realizadas neste
Perante tamanha complexidade do assunto, âmbito, as quais possam vir a dar subsídios para
estudos voltados às DR vêm crescendo em identificação de possíveis mecanismos efetivos de
nível mundial, o que aumenta a relevância deste enfrentamento destas e de outras vulnerabilidades
estudo, permitindo a possibilidade de analisar enfrentadas nestas árduas trajetórias terapêuticas.
a luz da bioética, ainda pouco explorada, e que
podem vir a contribuir consideravelmente no
auxílio à garantia dos direitos humanos de uma REFERÊNCIAS
população vulnerabilizada diante da raridade de
1. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de
suas patologias.
Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Es-
pecializada e Temática. Coordenação Geral de
Média e Alta Complexidade. Diretrizes para Aten-
CONSIDERAÇÕES FINAIS ção Integral às Pessoas com Doenças Raras no
Sistema Único de Saúde – SUS/Ministério da
Embora infrequentes, as DR geram conflitos
Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Depar-
éticos diários na vida de seus pacientes, agravam
tamento de Atenção Especializada e Temática.
as dificuldades de acesso às redes de saúde e aos Coordenação Geral de Média e Alta Complexi-
cuidados que lhes são necessários, fazendo com dade – Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 41 p.
que pacientes e seus acompanhantes percorram
longas trajetórias na busca por atendimentos, 2. Barbosa RLO. Raro em um dia de conscientiza-
direcionamentos adequados ou respostas aos ção mundial. In Dia Mundial das Doenças Raras
2013 - Ação do Deputado Federal Romário na
seus conflitos, tornando-os ainda mais vulneráveis
Câmara. Centro de Documentação e Informação.
diante da situação vivenciada.
Coordenação Edições Câmara, Brasília – 2013.
Os resultados deste estudo possibilitaram 3. Brasil. Portal Brasil. Doenças raras ainda repre-
identificar as especificidades de diferentes fatores sentam desafio para saúde pública. Mar. 2015.
de vulnerabilidades, como a falta de informações; [Acesso em: 20 jul 2017]. Disponível em: <http://
despreparo profissional; dificuldade de se chegar www.brasil.gov.br/saude/2015/03/doencas-raras
a um diagnóstico; longos caminhos percorridos/ -ainda-representam-desafio-para-saude-publica>
diversos serviços de saúde; falta de privacidade
4. Portugal S. Para um começo de reflexão sobre
e autonomia na participação em pesquisas de
o cuidado das Doenças Raras. In Dia Mundial
doenças raras; dificuldades de tratamentos e/ das Doenças Raras 2013 - Ação do Deputado
ou tratamentos de auto custo; dificuldades Federal Romário na Câmara. Centro de Docu-
financeiras/empobrecimento; falta de organização mentação e Informação. Coordenação Edições
e estrutura dos serviços de saúde; acolhimento Câmara, Brasília – 2013.
diferenciado sejam por discriminação, privações
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e/ou estigmatização; e sofrimento emocional.
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