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MAUS TRATOS AO IDOSO

INTRODUÇÃO
Maus-tratos (MT) em idosos é uma situação
frequente, apesar de menos divulgada e conhe-cida do que o ideal. Trata-se de
problema de saú-de pública, com consequências individuais e para a sociedade, sendo
considerada a condição ge-riátrica prevalente mais passível de medidas pre-ventivas.
Estima-se que 1 em cada 10 idosos venha a sofrer algum tipo de abuso por alguém “de
confiança” a cada ano, embora o número de casos relatados a autoridades seja bem
menor. Outros dados mostram que o número de casos não rela-tados pode ser ainda
maior, chegando a um caso relatado a cada 24 ocorrências. Causas para sub-notificação
incluem ausência de ferramentas adequadas de rastreio, ausência de treinamento
formal e ações educativas em relação aos sinais de MT, bem como ausência de
habilidades de reconhecimento e para reportar as ocorrências. As consequências
negativas associadas a MT são: aumento de mortalidade (2-3 vezes maior risco de
morte), maior incidência de demência (desfecho e fator de risco) e depressão. Outros
desfechos negativos são idas frequentes a setores de emergência, hospitalização e
institucionaliza-ção. Estima-se custo anual de USD 5,3 bilhões nos Estados Unidos, com
tendência a crescimen-to desse valor com o envelhecimento da popula-ção. Os
abusadores costumam ser pessoas próxi-mas à vítima, como cônjuge ou filho adulto, em
cerca de 25% dos casos.
Muitas vezes as vítimas de MT são incapazes
de denunciar por razões como isolamento social, presença de doença grave, demência
ou podem mesmo evitar a denúncia por medo de represálias, sensação de culpa, desejo
de proteger o abusador, crenças culturais ou medo de institucionalização, contribuindo
para a subnotificação e o sub-reco-nhecimento de casos. Enquanto isso, entre pro-
fissionais de atendimento a idosos, é possível citar os seguintes fatores: falta de
conscientização acerca de MT, treinamento inadequado, infor-mação insuficiente sobre
recursos disponíveis para lidar com MT, falta de tempo para conduzir uma avaliação
detalhada, preocupação sobre en-volvimento com o sistema legal e desejo de não
quebrar o segredo médico. Ademais, é frequente a dúvida se as lesões vistas são
causadas por abu-so ou sequelas de acidentes ou outras morbidades, contribuindo para
a subnotificação. São definidos como “ações intencionais que
causam dano ou sério risco a um idoso, causado por cuidador ou outra pessoa em
relação de con-fiança com o mesmo, ou falha do cuidador na satisfação das
necessidades básicas e de proteção do paciente”. A Tabela 1 apresenta os fatores de
risco para MT. Apesar de frequentes, MT em idosos é tema
ainda subnotificado e, consequentemente, subes-timado. Pesquisa em bases de dados
científicos mostra precisão menor em relação à definição do tema, bem como número
de publicações bastan-te inferior quando se compara ao tema de MT em crianças, por
exemplo. O conceito de polivi-timização tem sido incorporado à seara de MT em idosos.
Trata-se de casos em que há ocorrên-cia simultânea ou sequencial de diferentes tipos
de MT contra um indivíduo ou quando um mes-mo tipo de abuso é cometido
sequencialmente por diferentes pessoas. A proposta deste capítulo é mostrar os prin-
cipais aspectos relacionados com MT em idosos, sem a pretensão de esgotamento do
tema, mas principalmente no intuito de fornecer maior es-tofo teórico para aplicar na
prática diária e pro-mover a conscientização sobre tema tão relevan-te mas,
infelizmente, ainda negligenciado.

SUBTIPOS
Os tipos de MT mais frequentemente descri-tos são: abuso sexual, emocional ou
psicológico, negligência, exploração financeira e abuso físico, podendo ainda ser citado
o abandono. Abuso físico consiste na inflição de dor ou dano
físico ao idoso, podendo resultar em contusões, hematomas, ferimentos, entre outros.
Abuso sexual ocorre quando há toque ou atividade sexual não consentida com idosos,
que são comumente vul-neráveis e inaptos para entender ou dar consenti-mento, ou
em caso de atos forçados. MT psicoló-gicos incluem ataques verbais, ameaças, assédio
ou intimidação, frequentemente levando a resig-nação, desesperança, medo, ansiedade
e compor-tamento arredio. Negligência ocorre quando da falha do cuidador ou do
próprio idoso (autonegli-gência) em prover suas necessidades básicas de vida, levando-
o a situações de risco e vulnerabili-dade. Abuso financeiro ocorre pelo mau uso ou uso
indevido dos recursos do idoso para vantagem de terceiro ou benefícios indevidos.

Negligência
A negligência é definida como a falha em pro-ver cuidados básicos a um paciente cujos
cuidado e atendimento das necessidades de vida foram terceirizados, podendo ser ativa
ou passiva, in-tencional ou não intencional. É o tipo mais co-mum, reconhecido e
reportado de MT, com po-tencial para danos importantes ao paciente, como risco de
morte triplicado para suas vítimas. Bar-reiras à adequada notificação incluem desconhe-
cimento sobre o tema, falta de tempo, medo de retaliações etc. As vítimas geralmente
são frágeis e reticentes em denunciar o sofrimento a que são expostos, frequentemente
por medo ou vergonha. Conscientização sobre sinais de negligência
e alto índice de suspeição são necessários para reconhecimento dos casos. Indícios
comuns in-cluem sinais de desnutrição, desidratação, higie-ne precária e vestimentas
inadequadas, muitas vezes acompanhadas de úlceras por pressão em casos de pacientes
mais fragilizados. Outro sinal que deve sempre ser valorizado é a queda ines-perada e
progressiva do estado de saúde de um indivíduo. Fatores de risco para negligência in-
cluem: interdependência paciente-cuidador, iso-lamento social e coabitação. São
características do cuidador que favorecem negligência e abuso: doença mental, retardo
de desenvolvimento, de-mência, abuso de substâncias, deficiência física, dependência
financeira da vítima e falta de co-nhecimento ou experiência como cuidador.

Rastreio
É recomendado o questionamento sobre MT em pacientes idosos, sendo parte da
avaliação rotineira. Paciente e cuidador devem ser entre-vistados separadamente
quando possível. Ficar
atento a possível relutância por parte do cuidador para deixar o paciente sozinho, pois
pode ser um indicador de MT. Sugestões de perguntas para pacientes ao ras-trear
negligência e abuso:
ƒ Você se sente seguro? ƒ Sente que suas necessidades são atendidas? ƒ Alguém já
machucou ou vem machucando você?
ƒ Tem sido ignorado ou deixado sozinho? ƒ Seu cuidador depende de você financeira-
mente?
ƒ O cuidador tem histórico de abuso de subs-tância?
ƒ O cuidador tem histórico de doença mental? Sugestões de perguntas para um suposto
agressor ao rastrear negligência ou abuso:
ƒ Que tipo de ajuda o idoso necessita? ƒ O que o idoso é capaz de fazer sozinho? ƒ Quais
suas expectativas sobre o idoso? Sen-te-se capaz de atendê-las?
ƒ Sente-se frustrado como cuidador? ƒ Há algo que precise para cuidar melhor des-sa
pessoa?

Exame físico
Avaliação física pode auxiliar na suspeita de
negligência (e de autonegligência); sinais suges-tivos são relacionados com higiene
precária: unhas mal cuidadas e sujas, má higiene cutânea, cabelos desgrenhados,
dentição precária, lesões sugestivas de câncer de pele não tratadas ou não investiga-
das, dermatite de fraldas, intertrigo, lesões asso-ciadas a maceração cutânea, úlceras
por pressão, entre outras.

Autonegligência
Embora a autonegligência não seja citada en-tre as formas de MT em muitos textos, é
um dos tipos mais prevalentes, associado a elevação da morbimortalidade, sendo fator
de risco indepen-dente para óbito. Assim como outras síndromes geriátricas, a
autonegligência ocorre em um con-tínuo de gravidade e tende a se agravar ao longo do
tempo se não for reconhecida e remediada.
Não há etiologia bem definida, mas traços de personalidade, alterações de
comportamento e transtorno psiquiátrico prévio são citados como possíveis
associações. O desenvolvimento pro-gressivo de disfunção executiva tem sido descri-to
como importante precedente para o desenvol-vimento de autonegligência. Nesse
sentido, transtornos mentais como esquizofrenia, demên-cia, abuso de álcool e
transtornos psicóticos são frequentemente descritos em pacientes portado-res dessa
condição. Fatores de risco relacionados são idade avan-çada, sexo masculino, déficit
cognitivo, depressão, delirium, doenças clínicas (p. ex., acidente vas-cular cerebral,
fratura de quadril), dependência social e funcional, eventos estressores (p. ex., luto),
histórico de isolamento social e abuso de álcool e substâncias. Outros fatores citados
são etnia afro-americana e baixo nível socioeconômico, embora esteja presente em
todo espectro demo-gráfico e de estrato socioeconômico.

Definição
A autonegligência seria definida como o com-portamento de uma pessoa idosa que
ameaça a si própria, sua saúde e sua segurança. Geralmen-te se manifesta através da
recusa ou falha em prover a si mesmo cuidados com alimentação, roupas, higiene, bem
como questões de seguran-ça. Outra definição propõem identificar autone-gligência
quando presente pelo menos uma das seguintes situações: descuido persistente com a
higiene pessoal ou do ambiente; recusa repetida de serviços ou tratamentos que
poderiam melho-rar sua qualidade de vida; e ameaça à própria segurança por
comportamentos de risco. Em relação à gravidade do quadro, três do-mínios de
indicadores são descritos: 1) higiene pessoal (p. ex., cabelo descuidado, roupas sujas,
pele e unhas em condições precárias); 2) funcio-nalidade (p. ex., declínio cognitivo e em
ativida-des da vida diária); e 3) ambiente negligenciado (evidência de incapacidade para
cuidar da casa e dos recursos existentes).

Modelo

A Figura 1 apresenta um modelo que corre-laciona diversos aspectos da


autonegligência.

Avaliação e abordagem
Emprego de avaliação geriátrica ampla com
análise médica, funcional e psicossocial é conside-rado fundamental. Informações sobre
as habilida-des funcionais do idoso devem ser buscadas, sen-do muitas vezes
necessárias informações de terceiros como vizinhos, locatários, amigos, fami-liares etc.
A avaliação proposta inclui o rastreio através de checklist simplificado, composto por
duas questões: 1) o indivíduo entende suas circuns-tâncias? 2) o indivíduo está falhando
em autocui-dado e autoproteção? Cada uma dessas questões deve ser respondida em
relação aos seguintes do-mínios: atividades da vida diária (básicas e instru-mentais),
controle e organização da casa ou habi-tação, e autoproteção. A Figura 2 apresenta uma
proposta de abordagem para autonegligência.

MAUS-TRATOS FÍSICOS E EXAME FÍSICO

Exame físico da pele, aliado a história clínica


detalhada, é capaz de fornecer indícios de MT físicos. Lembrar que a pele do idoso sofre
alterações relacionadas com o envelhecimento, apresentan-do-se mais fina, com maior
fragilidade capilar,
ƒ Demência ƒ Depressão ƒ Diabetes
cicatrização lentificada, além de sinais de fotoex-posição prolongada ao longo da vida.
Lembrar ainda que o uso de medicamentos pode influenciar alguns achados, como
antiagregantes plaquetários e anticoagulantes, que deixam os pacientes mais propensos
ao surgimento de equimoses e pequenos hematomas por vezes espontâneos.
Frequentemente, sinais físicos de MT são in-terpretados erroneamente como sequelas
relacio-nadas com envelhecimento, medicamentos, outras doenças, como contusões e
úlceras, ou eventos acidentais como quedas. Os tipos de MT mais associados a achados
físicos são abuso físico, ne-gligência, autonegligência e abuso sexual. Avalia-ção física
detalhada com achados suspeitos aliada a história clínica vaga ou inconsistente
fornecem pistas necessárias à identificação de MT. Diferenciar padrões de lesões
acidentais das
provocadas é importante para suspeitar de MT. Púrpuras senis são associadas ao
envelhecimento e ocorrem em áreas fotoexpostas, geralmente na região dorsal e
interna de mãos e braços. Hema-tomas devem ser avaliados, podendo ocorrer em locais
distais a contusões provocadas por extra-vasamento de sangue. Dados mostram que
90% das contusões acidentais ocorrem em extremidades, enquanto lesões provocadas
são vistas em pescoço, orelhas, genitália, nádegas, planta dos pés. Múltiplas lesões
aparentando “idades” dife-rentes, algumas recentes outras em cicatrização, reforçam a
suspeita de MT. Lesões sugestivas de serem causadas por objetos como cintos e sapatos
também devem levantar a suspeita de MT. Outro dado descrito é que em torno de 90%
dos idosos vítimas de MT se recordam do evento que origi-nou pelo menos uma lesão,
enquanto entre idosos com lesões acidentais esse percentual é de 25%. Lesões de
defesa são vistas com frequência em
punhos e antebraços, chamando mais a atenção se múltiplas, correspondendo à
tentativa de se desvencilhar de agressões. Outro tipo de lesão comum em MT são
queimaduras (calor, química, elétrica, radiação), sendo as mais comuns por água quente
e por radiação solar, sendo frequente a associação a negligência ou supervisão
inadequa-da. Em pacientes vítimas de queimadura por água quente e capazes de algum
tipo de defesa, lesões em padrão de esguicho ou respingos são encon-tradas, bem como
padrão em luva ou bota sugere imersão forçada de um determinado membro em água
quente. Queimaduras por objetos quentes como cigarro e ferro deixam lesões de
formato reconhecível. O exame físico é apenas parte do quebra-cabeças. Considerar
aspectos fisiológicos, funcionalidade, histórico médico e possíveis me-canismos de
lesão. Lembrar que o mecanismo de lesão deve ser compatível com a história clínica
relatada. As Figuras 3 a 6 apresentam lesões sus-peitas para negligência e MT físicos.

AVALIAÇÃO
Quando ocorre a suspeita de MT deve ser
coletada história clínica detalhada, com particu-lar atenção a aspectos culturais e
psicossociais. Assim, aspectos detalhados de exame físico geral e cutâneo que possam
corroborar com a suspei-ta devem ser documentados, bem como avaliação de
funcionalidade, aspectos do comportamento do paciente, como reage aos
questionamentos, dinâmica e conflitos familiares. A documentação fotográfica é
particularmente importante em ca-sos de lesões ao exame físico. Profissionais de saúde
eventualmente relutam
em reportar MT devido a uma série de razões: sutileza dos sinais clínicos, negação pela
própria vítima e desconhecimento sobre procedimentos de denúncia da suspeição.
Também podem con-tribuir: preocupação quanto a prejuízos na rela-ção médico-
paciente, receio de retaliação pelo
abusador, limitações de tempo, dúvidas sobre a efetividade de fazer a denúncia e a falsa
premissa de que se fazem necessárias evidências inequívo-cas, não bastando somente
a suspeita, para for-malizar a denúncia.

Avaliação clínica
Diversos instrumentos se propõem ao rastreio
e à identificação de MT, cada um com vantagens e desvantagens em aspectos como
tempo e facilida-de para aplicação, confiabilidade interaplicadores, validade em
diferentes populações e cenários, entre outros. No entanto, tal heterogeneidade não
invalida seu uso como tentativa de rastreio e, se bem utilizados, podem ser de grande
auxílio na identificação de casos de MT. Entre os instrumentos citados estão Conflict
Tactics Scale, Elder Abuse Assessment Instrument, Brief Abuse Screen for the Elderly,
Geriatric Mis-treatment Scale, entre outros. Aqui serão descri-tos brevemente dois
desses instrumentos, sem prejuízo ou demérito em relação aos demais. Desenvolvido
em 2008, o instrumento Elder
Abuse Suspicion Index (EASI) consiste em seis questões para rastreio de MT (Tabela 2) e
encon-tra-se validado para uso em idosos cognitivamen-te preservados. As cinco
primeiras questões são respondidas pelo paciente e a sexta pergunta pelo aplicador do
instrumento. Qualquer resposta positiva, exceto para a primeira questão, enseja
investigação adicional. A utilização da abordagem pelo SOAP (sub-jective, objective,
assessing, plan) pode ser aplica-da na identificação e no manejo de pacientes vítimas de
MT. Dados subjetivos (S) são as afir-mações feitas pelo paciente e pelo cuidador, in-
cluindo motivo da consulta, queixa principal, dados pertinentes de história clínica,
revisão de sistemas, histórico médico, familiar e social – nessa fase podem ser
identificados indícios de MT. Dados objetivos (O) são os sinais indicativos de MT
identificados pelo profissional atendente quando do exame físico, bem como a
observação

TABELA 2 Questões do Elder Abuse Suspicion Index


1. Você depende de terceiros para alguma das seguintes atividades: tomar banho, vestir-
se, fazer compras, ir ao banco ou fazer refeições?
2. Alguém o proibiu de pegar comida, roupas, medicamentos, óculos, aparelhos
auditivos, ter acesso a cuidados médicos ou de estar com pessoas com as quais você
gostaria?
3. Tem se sentido triste por algo dito por alguém que o fez se sentir envergonhado ou
ameaçado? 4. Alguém tentou forçá-lo a assinar papéis ou usar seu dinheiro contra sua
vontade? 5. Alguém o assustou, o tocou contra sua vontade ou o machucou? 6.
Profissional: maus-tratos podem estar associados a pouco contato visual,
comportamento arredio, desnutrição, higiene ruim, cortes, contusões, roupas
inadequadas, problemas com medicação. Você notou algo disso?
das interações entre o idoso e seu cuidador. A avaliação (A) inclui a etapa de raciocínio
crítico sobre o caso, com a formulação de hipóteses diag-nósticas e diagnósticos
diferenciais. A etapa de planejamento (P) consiste das intervenções pro-gramadas para
a resolução dos problemas iden-tificados. Seja qual for a abordagem escolhida para a
avaliação, após identificação de casos suspeitos devem ser buscados meios e ações para
manu-tenção da segurança do paciente. Serviços comu-nitários e na rede de saúde
primária, suporte social alternativo com familiares e amigos, for-necimento de contatos
em serviços de segurança e apoio e fornecimento de meios de transporte em caso de
necessidade devem ser identificados
para auxílio nessa etapa de planejamento e inter-venção. Caso o contato com o possível
abusador continue a ocorrer, estratégias de vigilância e redução de danos devem ser
programadas. Além disso, uma estratégia de seguimento ao paciente deve ser planejada
e implementada o mais bre-vemente possível. Expressões vagas ou aparentemente
descone-xas podem ser um pedido de ajuda pelo idoso e a valorização e investigação de
tais expressões podem ser a porta de entrada para que o idoso exponha sua real
situação. É importante entre-vistar o idoso separadamente, para que ele possa expor
livremente alguma situação, bem como a entrevista com o cuidador deve ocorrer de
forma a permitir que ele exponha sua visão. Eventual-mente, a utilização de visitas
domiciliares pode ser reveladora.

Cuidadores
É comum que as pessoas esqueçam que cui-dadores também necessitam de assistência,
bem como de suporte para conseguirem prover o me-lhor cuidado a idosos vulneráveis.
Setenta e cin-co por cento dos cuidadores são familiares, 70% do sexo feminino, muitos
realizando suas funções sem suporte algum e com necessidades físicas e psicológicas
ignoradas e não atendidas. Nesse sentido, é importante frisar que tal situação leva ao
aumento do risco de MT, na medida em que fragiliza o cuidador que pode
eventualmente in-correr em MT. Cuidadores estão expostos a situações estres-santes,
doenças, outros papéis e preocupações familiares que competem com o ato de cuidar
de um idoso, muitas vezes não conseguem conciliar emprego externo e cuidado com o
paciente, cul-minando em demissão e consequências financei-ras. A maioria dos
cuidadores têm pouco ou nenhum preparo específico antes de assumir tal papel.
Setenta por cento dos cuidadores familia-res encaram tal tarefa como obrigação, em
gran-de parte das vezes sem possibilidade de alívio ou descanso e frequentemente
assumindo o cuidado de forma solitária, sem auxílio dos demais fami-liares, que
poderiam se revezar nos cuidados. A presença de demência no idoso eleva a so-brecarga
sobre o cuidador, tendo em vista a ne-cessidade de supervisão constante ou quase cons-
tante, maior frequência de incontinência, problemas comportamentais como
agressividade, com ameaça à segurança. Com isso, tal sobrecar-ga leva muitas vezes a
isolamento geográfico e social, tendo em vista a impossibilidade de o cuidador manter
atividades externas e de inte-resse próprio. Tais aspectos podem ser exacerba-dos por
questões culturais e socioeconômicos, acarretando queda tanto na qualidade do cuida-
do dispensado como na qualidade de vida do cuidador.

PREVENÇÃO
As medidas de prevenção são fundamentais para diminuir a prevalência de MT em
idosos. Trata-se do conjunto de ações mais efetivo e im-portante na redução do impacto
que o problema pode causar. Estratégias para prevenção incluem: discussão e
conscientização acerca de ageísmo; divulgação de indicadores subjetivos e objetivos de
MT; incrementar o rastreio de MT nos diver-sos cenários clínicos; estabelecer detecção
e pre-venção de MT em idosos como rotina no cuida-do de sáude. O termo ageísmo foi
cunhado em 1969 e se refere ao comportamento de discriminação con-tra idosos
simplesmente pela idade e pelo pro-TABELA 5 Indicadores de maus-tratos Físicos
Sexual Psicológico Financeiro Negligência Abandono
cesso de envelhecimento em si. Pode levar a de-satenção e negligência com problemas
de saúde dos idosos, bem como aceitação e equalização do envelhecimento como
condição de estado de saúde inferior. O ageísmo tem sido ligado a de-clínio funcional,
depressão, isolamento, incre-mentando o risco de MT e mortalidade precoce,
relacionando de forma errônea o achado de sinais de MT com o envelhecimento em si
e mascaran-do uma possível suspeição da situação real que ocasionou os sinais
encontrados. Quando da avaliação inicial do idoso suspei-to de MT, alguns sinais e
lesões podem já ter desaparecido, estando em estágio subclínico de difícil identificação,
requerendo maior índice de suspeição e detalhamento na avaliação clínica e física. Os
principais indicadores de MT, que de-vem ser conhecidos e pesquisados estão descritos
na Tabela 5. A otimização do rastreio de MT em idosos
deve lançar mão de ferramentas de avaliação abrangentes, sendo a avaliação geriátrica
ampla (AGA) de conhecimento dos profissionais que lidam comumente com idosos,
capaz de fornecer um perfil detalhado do estado de saúde e funcio-nalidade do paciente
através da avaliação da saú-de física e mental, bem-estar, aspectos psicosso-ciais e
domínios cognitivos, áreas diretamente relacionadas com o risco de MT. Em conjunto,
uma avaliação periódica de fatores de risco para MT permite melhor vigilância
Medidas propostas para combate aos MT in-cluem: campanhas informativas e de
conscienti-zação sobre o tema; treinamento educativo dire-cionado a profissionais que
lidam diretamente com idosos, focando no papel dos cuidadores acerca da abordagem
de casos suspeitos; divulgação de informação legal acerca da proteção do idoso.
Profissionais de saúde se encontram em po-sição vital para o rastreio e prevenção de
MT. A avaliação funcional, cognitiva e de bem-estar psi-cossocial é fundamental para
entender e identifi-car possíveis fatores predisponentes e precipitan-tes associados à
ocorrência de MT. Estima-se que a presença de 3 a 4 fatores de risco leve a aumen-to
de 4 vezes no risco de um idoso sofrer MT, com elevação exponencial para mais de 20
vezes em relação a idosos sem fatores de risco naqueles com 5 ou mais fatores de risco
presentes. Detecção e intervenção precoces, como tratamento efetivo de problemas
subjacentes, disponibilização de serviços comunitários e envolvimento de familia-res
podem retardar e evitar casos de MT. Ferramentas de rastreio de MT em idosos de-vem
ser capazes de prover avaliação multidiscipli-nar objetiva; no entanto a definição de uma
ferra-menta ideal ainda é uma necessidade e testagens adicionais dos instrumentos
propostos são neces-sárias para atestar sua validade e confiabilidade. Setores de
emergência são locais onde vítimas
de MT são atendidas com frequência e por essa razão o rastreio e a vigilância têm maior
chance de identificar casos. Nesse contexto, alterações radiológicas descritas podem
auxiliar na suspei-ta inicial de MT (Tabela 6).

TABELA 6 Achados radiográficos Achados radiográficos sugestivos de maus-tratos


Injúrias incompatíveis com o mecanismo reportado
Injúrias em diversos estágios de recuperação, particularmente em regiões maxilofaciais
e extremidades superiores
Padrões de lesão incomuns em casos acidentais (p. ex., fratura de diáfise ulnar)
PANORAMA NACIONAL A identificação de sinais de violência contra
pessoas idosas, frequentemente negligenciada,
deve ser notificada por meio de ficha de notifi-cação compulsória. O preenchimento
possibilita auxiliar as vítimas na defesa de seus direitos, res-guarda os profissionais para
que não se configu-re omissão e ainda contribui para o registro epi-demiológico desses
agravos externos à saúde. A notificação compulsória é registrada na Vigilân-cia de
Violência Interpessoal e Autoprovocada do Sistema de Informação de Agravos de Notifi-
cação (VIVA-SINAN) do Ministério da Saúde. O art. 19 da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto
do
Idoso) prevê que casos de suspeita ou confirma-ção de violência praticada contra idosos
serão objeto de notificação compulsória pelos serviços de saúde públicos e privados à
autoridade sani-tária, bem como serão obrigatoriamente comu-nicados por eles a
quaisquer dos seguintes órgãos: Conselho Municipal ou Estadual dos Direitos do Idoso,
Delegacias de Polícia e Ministério Público. Qualquer pessoa pode fazer a denúncia de
MT. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direi-tos Humanos disponibiliza
ferramentas para facilitar o registro da denúncia:
ƒ Disque 100, com discagem gratuita e funcio-namento 24 horas/dia.
ƒ Aplicativo Proteja Brasil, que pode ser baixa-do gratuitamente para o celular.
ƒ Ouvidoria On-line, em que se registra a de-núncia preenchendo o formulário
disponível em http://www.humanizaredes.gov.br/ouvi-doria-online/.
As denúncias são analisadas e encaminhadas
aos órgãos competentes para que sejam realizadas as devidas apurações. Dados
referentes ao ano de 2018 das denúncias de violência contra idosos
pelo Disque 100 mostram que negligência, abuso financeiro, violências psicológica e
física foram as formas de MT mais denunciadas (Figura 7).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
MT em idosos é um tema relevante, porém
pouco discutido e com baixo nível de conheci-mento e conscientização por profissionais
de saúde e pela população em geral. Melhorias nes-se sentido ensejam treinamento
específico aos profissionais envolvidos e aperfeiçoamento nas estruturas e fluxos de
acolhimento de denúncias. Diante da importância da temática e com o ob-jetivo de
sensibilizar a sociedade para o comba-te das diversas formas de violência cometida
contra o idoso, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Rede Internacional
de Pre-venção à Violência à Pessoa Idosa (INPES), ins-tituiu em 2006 a data de 15 de
junho como Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa. Para o
sucesso na abordagem de MT torna-se
essencial o envolvimento de profissionais de di-ferentes áreas, sendo de particular
importância o serviço social e a enfermagem, além da equipe médica. Tais profissionais
devem rastrear e avaliar os abusos em potencial. Pode ser difícil firmar o diagnóstico de
MT, mas conhecer sinais e sinto-mas e manter alto índice de suspeição pode aju-dar a
identificar vítimas e abusadores. O conhe-cimento dos t ipos de abuso, fluxos de
atendimento, serviços envolvidos na assistência aos idosos e leis de proteção é de
fundamental importância. Em conjunto a equipe terá melhores condições de identificar
casos e fornecer suporte aos idosos. Para tanto, a avaliação do idoso pelos componentes
da equipe permite diferentes olha-res sobre cada caso, com preenchimento de lacu-nas
que atendimentos isolados poderiam deixar.
Além disso, é necessário que se fortaleça ins-titucionalmente e em nível de órgãos de
governo a cultura de combate aos MT em idosos. Serviços de abrigo para vítimas,
equipes formadas para avaliar a capacidade de idosos viverem e se man-terem sozinhos,
bem como a criação de fluxos e instâncias de suporte a pacientes, cuidadores e
profissionais de saúde envolvidos na linha de frente no contato com o problema.
Ratifica-se finalmente que medidas de prevenção e rastreio devem ser as principais a
serem implementadas e disseminadas nos diversos cenários, sem pre-juízo das medidas
de saneamento e remediação de casos já estabelecidos. Detectar a ocorrência de
violência não é na
maioria das vezes uma tarefa fácil. Essa violência costuma ser velada e ocultada pelos
seus prota-gonistas, vítimas e agressores. Porém, identificar a violência é uma
necessidade e responsabilidade de todos, incluindo profissionais de saúde, que devem
estar conscientes de que enfrentarão de-safios e que precisarão superar dificuldades
para assegurar a atenção integral à saúde do idoso.

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