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INTRODUÇÃO

Projeções para as próximas décadas sinalizam que, em 2050, os idosos serão 30% da
população total do Brasil. Essa transição epidemiológica causará grande impacto na
incidência de fraturas por fragilidade, particularmente comuns nos idosos, devido à
baixa massa óssea e ao risco aumentado de queda.

O planejamento de estratégias preventivas e de abordagem otimizada das fraturas é


uma urgência em saúde pública, pois o manejo adequado reduz incapacidade,
dependência e mortalidade, bem como os custos para os cofres públicos, e pode, ainda,
diminuir significativamente a ocorrência de novos rompimentos ósseos.

A fratura por fragilidade é definida como aquela que ocorre como resultado de um
trauma de baixo impacto (p. ex., queda da própria altura), comumente em vértebras,
punhos, fêmur proximal e úmero proximal (NICE, 2012). É mais prevalente entre as
mulheres; no entanto, a mortalidade após fratura de fêmur é maior entre os homens
(Roberts e Goldacre, 2003).

Além da idade, vários outros fatores contribuem para o aumento do risco de fratura por
fragilidade, destacando-se a história familiar de fratura de fêmur e, em especial, a
história individual pregressa de outras fraturas, pois uma fratura prévia aumenta
significativamente o risco de uma nova fratura. Apesar de esse risco já ser extensamente
comprovado – e de quase metade dos pacientes com fratura de fêmur relatarem
histórico pregresso (Edwards et al., 2007) –, apenas uma minoria dos pacientes recebe
tratamento específico, que poderia reduzir em até 50% tais ocorrências.

Neste capítulo, será abordada a importância do geriatra no gerenciamento da equipe


multiprofissional que atua na fase aguda da fratura de fêmur, seguindo uma tendência
mundial sustentada por êxitos em vários desfechos, como independência e queda de
taxa de mortalidade. Os tópicos que a seguir abordam liderança da equipe, garantindo
otimização do tempo entre internação e cirurgia; viabilidade de reabilitação precoce,
com controle álgico e prevenção de delirium; planejamento de alta hospitalar, com
equipe de transição de cuidados; e encaminhamento para serviço de prevenção
secundária de fratura.

IDOSO COM FRATURA DE FÊMUR


O idoso que sofre uma fratura de fêmur tem um perfil geriátrico caracterizado por estar
na oitava década de vida, ser predominantemente do sexo feminino, apresentar
múltiplas comorbidades, relatar polifarmácia (Vidán et al., 2005) e, em
aproximadamente 30% dos casos, apresentar alteração cognitiva prévia (Mukka et al.,
2017). A osteoporose está presente em aproximadamente 51,3% de pacientes com
sarcopenia, um marcador de pior prognóstico mediante um estresse agudo (Reiss et al.,
2019).

Há diversos fatores, muitas vezes interligados, que podem levar à queda, como questões
ambientais e intrínsecas ao paciente. O motivo de essa situação culminar em fratura
pode ser secundário a uma condição aguda (p. ex., acidente vascular cerebral, infecções,
distúrbios hidreletrolíticos) e/ou a um efeito adverso medicamentoso, devendo ser
investigado e tratado logo na admissão do paciente no pronto-socorro.

A seguir, serão abordados os principais aspectos do pré-operatório diferenciado na


abordagem ortogeriátrica.

Avaliação e manejo dos riscos


Conhecer os riscos cirúrgicos do paciente e minimizá-los em um curto intervalo de
tempo, na tentativa de torná-lo mais apto para a cirurgia, é um desafio para geriatras.
Além dos fatores de risco já consagrados, como os cardiovasculares, pulmonares e
renais, há outros que devem ser reconhecidos no idoso (Tabela 14.1; Chow et al., 2012).

Tempo cirúrgico
Cada dia de atraso no procedimento cirúrgico expõe o paciente vulnerável hospitalizado
a uma série de complicações, como imobilidade, perda de massa muscular,
broncoaspiração, infecção urinária, delirium, entre outras. A cirurgia precoce,
principalmente nas 24 h imediatamente seguintes à admissão, diminui a mortalidade
em curto e longo prazos – 30 dias e 1 ano, respectivamente – após a fratura (Simunovic
et al. 2010).

É recomendável que o procedimento aconteça no máximo nas 48 h iniciais após a


ocorrência da fratura. São poucos os motivos que levam ao adiamento do
procedimento, e estes devem ser reconhecidos o quanto antes, abordados e
controlados idealmente nas primeiras 24 h da admissão, a exemplo de anemia,
anticoagulação, hipovolemia, desequilíbrio eletrolítico, diabetes descompensada,
insuficiência cardíaca descompensada, arritmia ou isquemia cardíaca corrigível, infecção
pulmonar aguda e exacerbação das condições crônicas pulmonares (NICE, 2012).

Tabela 14.1 Fatores de risco, implicações e condutas no idoso.


Risco

Implicações

Fatores de risco

Conduta

Delirium

Alta mortalidade e complicações; aumento do tempo de internação; piora funcional;


aumento do risco de institucionalização pós-alta

Alterações cognitivas e comportamentais prévias; distúrbios hidreletrolíticos e


metabólicos; anemia; hipoxia; doença renal; comprometimento funcional; alterações
sensoriais; dor; polifarmácia; risco de retenção urinária ou fecal; uso de cateteres

Evitar uso de medicações anticolinérgicas, H1 agonistas e iniciar benzodiazepínico para


tratar dor; corrigir déficits sensoriais, quando possível, com óculos e próteses auditivas;
evitar cateteres e sondas; minimizar o tempo de internação hospitalar; restrição ao leito

Funcional

Grande preditor de mortalidade em 6 meses; superior à idade na mortalidade em 30


dias; preditor do risco de institucionalização;

aumento do risco de delirium; infecções por Staphylococcus aureus MR

Perguntas de rastreio:
Consegue sair da cama ou da cadeira sozinho?

Consegue se vestir ou tomar banho sem ajuda?

É capaz de preparar sua própria refeição?

Vai às compras sozinho?

Iniciar o mais breve possível, ainda no pré-operatório, reabilitação; permitir que o


paciente execute, se possível, as atividades prévias e de autocuidado, diminuindo a
chance de dependência funcional; não retardar o procedimento cirúrgico

Nutricional

Aumenta o risco de eventos adversos no pós-operatório; aumenta infecções (sítio


cirúrgico, pneumonia e infecção urinária);

aumenta complicações da ferida

Risco grave:

IMC < 18 kg/m2

Albumina< 3 g/d (na ausência de disfunção hepática e renal)

Perda de peso não intencional de 10 a 15% nos últimos 6 meses

É mandatório acompanhamento nutricional quando houver risco grave de desnutrição;


suplementação oral nos pacientes que não atingirem a meta e/ou apresentarem
cirurgias ortopédicas, demência inicial a moderada, disfagia de origem central;
suplementação folato, vitamina B12 e tiamina em etilistas mal nutridos
Medicamentoso

Polifarmácia aumenta o risco de comprometimento cognitivo, morbidade, mortalidade


e adequação na reconciliação medicamentosa; o prejuízo nas funções renal e hepática
em idosos aumenta o risco de efeitos adversos e toxicidade medicamentosa;

algumas medicações interagem e aumentam o risco pré-operatório

Polifarmácia; multimorbidade; alteração de função renal; alteração cognitiva prévia

Suspender medicações não essenciais; evitar a introdução de benzodiazepínicos; evitar


o uso de medicamentos com efeito anticolinérgico; continuação do uso de
medicamentos com potencial de abstinência, incluindo inibidores seletivos da
recaptação de serotonina, antidepressivos tricíclicos, benzodiazepínicos, antipsicóticos,
inibidores da monoamina oxidase, betabloqueadores, clonidina, estatinas e
corticosteroides

Transfusão sanguínea
Existe uma tendência, embora ainda sem consenso, com base em uma revisão
sistemática que sugere que a transfusão sanguínea mais restritiva – ou seja, com valores
de hemoglobina abaixo de 8,0 mg∕d ou na presença de sintomas – não muda desfechos
como mortalidade, morbidade perioperatória e recuperação funcional, quando
comparada com a transfusão sanguínea mais liberal – ou seja, valores abaixo de 10 mg∕d
(Brunskill et al., 2015).

Anticoagulação
O idoso que usa previamente anticoagulante e sofre fratura de fêmur proximal demanda
manejo para minimizar risco de sangramento na cirurgia e de tromboembolismo venoso
(TEV). Há várias recomendações que diferem em relação à correção da anticoagulação
com antídotos e ao valor limite de razão normalizada internacional (INR, do inglês
international normalized ratio) para o procedimento (Wendl-Soeldner et al., 2014;
Grandone et al., 2019). O que em geral se sugere no Protocolo de Fratura de Fêmur em
Idosos da DIGG, à parte de cenários de exceção de sangramento ativo, é:
Varfarina: suspende-se a medicação e, caso o INR da admissão hospitalar esteja acima
de 1,7, sugere-se correção com vitamina K

Dabigatrana: suspende-se a medicação e a cirurgia pode ser realizada 24 h após a última


dose. Bloqueio neuroaxial pode ser feito, a critério da equipe da anestesiologia, após 26
h da suspensão do medicamento

Rivaroxabana: suspende-se a medicação e a cirurgia pode realizada de 24 a 36 h após a


última dose, e de 48 a 72 h em pacientes com insuficiência renal. Não é recomendado
bloqueio neuroaxial.

Geralmente, após 6 a 12 h do procedimento cirúrgico, é iniciada profilaxia de


tromboembolismo venoso (TEV), com heparina de baixo peso molecular ou heparina
não fracionada, caso o clearance de creatinina seja abaixo de 30 m/min. A reintrodução
do anticoagulante prévio é reavaliada após as condições do pós-operatório, como
sangramento e disfunção renal, entre outros.

O tempo de profilaxia de TEV após a alta hospitalar varia de 7 a 35 dias nos estudos. No
Protocolo de Fratura de Fêmur em Idosos da DIGG, a escolha do tempo e da medicação
para profilaxia é individualizada em cada paciente, de acordo com mobilidade,
condições clínicas e sociais. Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) fornece
heparina de baixo peso molecular pelos 10 dias iniciais após a alta hospitalar.

Antiagregação
A utilização prévia dos antiagregantes plaquetários mais empregados na esfera da
saúde, como ácido acetilsalicílico e clopidogrel, não justifica o adiamento do
procedimento cirúrgico, pois não altera mortalidade e sangramento perioperatório. Fica
a critério da equipe da anestesiologia realizar o bloqueio neuroaxial (Mattesi et al., 2016;
Devereaux et al., 2014).

Antibioticoprofilaxia
A profilaxia antibiótica para cirurgias ortopédicas eletivas com implantes ou
manipulação óssea e próteses é em geral realizada com cefazolina 2 g por via
intravenosa (IV) até 60 min antes da incisão cirúrgica, seguida de 1 g IV a cada 8 h no
pós-operatório até 24 h – ou seja, mais duas doses no pós-operatório (Brasil, 2018). A
escolha do antibiótico também pode variar de acordo com o protocolo de cada
instituição. O uso de vancomicina em dose única de 15 mg/kg IV (máximo 2 g) e
clindamicina na dose de 900 mg IV a cada 6 h até as 24 h iniciais também é preconizado
(Butcher et al., 2011).

ABORDAGEM DA OSTEOPOROSE
Ainda é comum, no meio da saúde, que o diagnóstico de osteoporose seja estabelecido
na internação hospitalar em função de uma fratura por fragilidade. O geriatra deve estar
atento para que causas de osteoporose secundária, como neoplásicas,
osteometabólicas e medicamentosas não sejam negligenciadas durante a internação.
Preconizamos que o tratamento da osteoporose seja introduzido o mais precocemente
possível, e o acompanhamento com foco na prevenção secundária de novas fraturas
seja sinalizado à equipe de cuidados pós-alta.

ORGANIZAÇÃO DE CUIDADOS
A fratura de fêmur no idoso envolve a necessidade de atenção multidisciplinar.
Fisioterapeutas, geriatras, nutricionistas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais,
fonoaudiólogos, entre outros profissionais devem eleger as prioridades do plano
terapêutico e trabalhar em conjunto para a reabilitação.

A demanda de cuidados pós-fratura de fêmur é alta e exige uma mudança na dinâmica


familiar e social. No Brasil, o número de instituições pós-alta com objetivo de
reabilitação por um período determinado está aumentando, objetivando reintegrar o
idoso na sua rotina pré-fratura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modelo de atenção conjunta entre geriatras e ortopedistas foi desenvolvido pela
primeira vez no Reino Unido, no final da década de 1950. Em 1974, Devas descreveu o
funcionamento das chamadas Unidades Ortogeriátricas, cujo objetivo era cuidar de
idosos que foram admitidos em caráter de urgência no hospital com fratura de quadril
(Devas, 1974). A importância dessa cogestão foi demonstrada em um estudo no qual se
descobriu que, quando geriatras ficaram responsáveis pela gestão de cuidados, os
resultados foram melhores do que quando eles apenas forneceram as recomendações
para os cuidados (Stuck et al., 1993).

Desde 2015, a disciplina de Geriatria e Gerontologia da Universidade Federal de São


Paulo (Unifesp) tem um protocolo assistencial em ortogeriatria. Entendemos que a
multidisciplinaridade é a ferramenta para o melhor manejo desses pacientes e que,
ainda que se adaptando à realidade de cada estrutura em saúde, a gestão ortogeriátrica
é capaz de mudar desfechos clínicos, sociais e econômicos na população idosa com
fratura por fragilidade.

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