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526 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Abandono de tratamento: itinerários


terapêuticos de pacientes com HIV/Aids
Abandonment of treatment: therapeutic itineraries of HIV/Aids
patients

Marilza Rodrigues1, Ivia Maksud2

RESUMO A pesquisa objetiva compreender o ‘abandono de tratamento’ – situações de descon-


tinuidade do medicamento e/ou ruptura de vínculos entre pacientes, profissionais e serviço
de saúde. Buscou-se compreender como pacientes de uma unidade básica de saúde perce-
bem e significam a experiência em questão e como o serviço de saúde a enfrenta. A partir da
literatura das ciências sociais em saúde, foram elaborados quatro eixos de análise. Os dados
apontam lacunas nas ações de saúde e fragilidade dos profissionais em lidar com situações
de vulnerabilidade. Recomenda-se aos gestores e serviços, portanto, a qualificação da equipe
profissional e a atividade de ‘busca ativa’ aos pacientes considerados faltosos.

PALAVRAS-CHAVE HIV. Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Terapêutica. Serviços de


saúde. Adesão à medicação.

ABSTRACT The objective of this research is to understand the ‘abandonment of treatment’ – situ-
ations of discontinuation of medication and/or of breaking of bonds between patients, profes-
sionals, and health services. It aims to understand how patients from a basic health care unit see
and signify this experience and how health care service faces it. Based on Social Sciences litera-
ture on Health, four axes of analysis were developed. The data shows gaps in health actions and
the fragility of professionals in dealing with situations of vulnerability. Therefore, the qualifica-
tion of the professional staff and actions for the ‘active search’ of missing patients are advisable.

KEYWORDS HIV. Acquired Immunodeficiency Syndrome. Therapeutics. Health services.


Medication adherence.

1 Prefeitura do Rio de
Janeiro, Secretaria
Municipal de Saúde do Rio
de Janeiro – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
marilzaecr@hotmail.com

2 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Instituto
Nacional de Saúde da
Mulher, da Criança e do
Adolescente Fernandes
Figueira (IFF) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
iviamaksud@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 113, P. 526-538, ABR-JUN 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711314
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Introdução cuidado para a saúde. Ela ajudou a interpre-


tar os dados e a compreender as necessida-
Ao longo das últimas décadas, apesar de signi- des de saúde colocadas em jogo: a quem e
ficativas mudanças ocorridas no tratamento do como os sujeitos recorrem para ter resoluti-
Vírus da Imunodeficiência Humana/Acquired vidade em suas demandas e de quais recur-
Immunodeficiency Syndrome (HIV/Aids) no sos dispõem para concretizar seu direito à
Brasil, como a oferta universal da medicação saúde (ALVES; SOUZA, 1999; GERHARDT, 2009; HELMAN,
antirretroviral, a disponibilização de exames 2009; BELLATO ET AL., 2011).
sofisticados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) Estudos prévios que tentaram compre-
e direitos a benefícios sociais, não é incomum ender os motivos para a descontinuidade
que pacientes, em algum momento do seu per- do tratamento para controle do HIV/Aids
curso terapêutico, passem pela experiência do chamam atenção para diversos aspectos,
‘abandono de tratamento’. sugerindo que esse é um tema complexo
Em 2009, o Ministério da Saúde sugeria para ser reduzido a uma visão monolítica.
como critérios para ‘abandono de tratamen- Cardoso e Arruda (2005), por exemplo, consi-
to’ casos em que pacientes não compareces- deram que o diagnóstico do HIV/Aids reper-
sem ao serviço por três meses após retirar cute de diversas maneiras de acordo com os
seus medicamentos ou que não compareces- inúmeros acontecimentos que fazem parte
sem às consultas em um intervalo maior do da trajetória do paciente. Também, situações
que seis meses. Os manuais programáticos de tensões e dilemas particulares podem
ressaltam que, para melhor prognóstico do contribuir para a descontinuidade do trata-
tratamento, é necessária a adesão rigorosa mento. Conforme esses autores mostraram,
aos antirretrovirais, tendo em vista que a ir- algumas das razões pelas quais os pacientes
regularidade na tomada do medicamento ou decidirão sobre o abandono ou não do trata-
seu abandono aumenta a “probabilidade da mento estão ligadas a fatores como ‘esquema
replicação do HIV, bem como a dissemina- terapêutico’, ‘momento da evolução da
ção de vírus multirresistente” (COSTA; MORAES; doença’, ‘grau de apoio familiar’ e as próprias
OLIVEIRA, 2014, P. 677). Apesar de esforços como representações sociais que a soropositivida-
esses, as razões que motivam o abandono em de tem para esses sujeitos.
si são complexas e variadas. Alguns estudos consideram que algum
Entender o que se configura como uma grau de não aderência em qualquer trata-
‘não adesão’ ou ‘abandono’, acionando a li- mento é universal e ocorre tanto em países
teratura das ciências humanas em saúde, é a ricos como em países pobres (NEMES; JORDAN,
proposta deste artigo, que busca compreen- 2000; PAULILO; NARCISO, 2001). Além disso, a lite-
der como ‘pacientes’ percebem e significam ratura revela que o período inicial do tra-
a experiência do abandono de tratamen- tamento tende a ser a fase mais vulnerável
to e como o serviço de saúde se organiza para que ocorra abandono. Se, por um lado,
para enfrentá-lo. A definição de abandono os efeitos colaterais dos antirretrovirais são
adotada para esta discussão abarca tanto a fatores mais comuns encontrados na litera-
interrupção da ingestão do medicamento tura, por outro, também é possível explorar
antirretroviral por parte dos pacientes como os frágeis vínculos das pessoas com os servi-
seu afastamento do acompanhamento am- ços de saúde. Nemes et al. (2009) sugerem, por
bulatorial (exames, consultas e orientações exemplo, que a adesão ao tratamento tende
da equipe profissional). a ser menor quando o serviço se apresenta
A escolha da literatura sobre itinerários desorganizado e quando os pacientes faltam
terapêuticos como suporte teórico pareceu muitas vezes às suas consultas (NEMES; JORDAN,
adequada como analisador de trajetórias do 2000). Vem sendo discutida e reforçada por

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vários autores a importância de implemen- Para realizar a análise dos dados, utiliza-
tar estratégias que facilitem o diálogo entre ram-se as sugestões de autores que trabalham
profissionais e entre profissionais e pacien- com análise de conteúdo em sua modalidade
tes. Essa iniciativa tem-se colocado como temática, e originalmente também benefi-
oportunidade de construção de vínculo e ciou-se da construção gráfica do itinerário
confiança, aspectos fundamentais nas inter- terapêutico dos pacientes entrevistados
venções de adesão ao tratamento HIV/Aids (POPE; MAYS, 2009; MINAYO, 2008). Para sistematizar
(SILVA ET AL., 2015; CARDOSO; ARRUDA, 2005). os dados, realizaram-se leitura e releitura
do material de campo e retomaram-se as
hipóteses e objetivos iniciais da pesquisa.
Metodologia Identificou-se um conjunto de informações
que foram organizados a partir dos seguintes
A pesquisa foi realizada em uma unidade eixos: 1) Entrar no serviço de saúde; 2) Estar
básica de saúde do SUS no município do Rio no serviço de saúde; 3) Deixar o serviço de
de Janeiro. O serviço de saúde foi escolhido saúde e 4) Retornar ao serviço de saúde.
por pertencer à rede pública, estar situado Realizaram-se interpretações e correlações
em local de fácil acesso, desenvolver progra- com os referenciais teóricos e com a biblio-
mas com propostas para o cuidado integral grafia levantada.
em saúde e atividades integradas de pesqui-
sa, ensino ou extensão nas universidades. O campo de pesquisa
Quanto aos critérios para a escolha dos su-
jeitos de pesquisa, pretendeu-se abordar As primeiras impressões sobre o local da
pacientes com HIV/Aids que não mais com- pesquisa decorreram de uma postura de
pareciam às consultas médicas, realizavam atenção tanto ao que as pessoas faziam assim
exames ou acessavam medicamentos. Foram como o que diziam (BECKER, 2007). Dessa forma,
incluídos entre os sujeitos de pesquisa pro- aproximou-se da pessoa que se constituiria
fissionais de saúde em exercício de suas ati- na principal informante da pesquisa: uma
vidades funcionais. médica pediatra designada pela direção do
O projeto de pesquisa foi submetido a dois serviço até a chegada da médica infecto-
comitês de ética em pesquisa: ao Comitê de logista responsável pelo atendimento dos
Ética em Pesquisa da Universidade Federal pacientes com HIV/Aids que viria a ser, pos-
Fluminense, sob o nº 12383, sendo aprova- teriormente, mais uma interlocutora.
do em 17 de abril de 2013; e ao Comitê de O atendimento aos pacientes que vivem
Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal com HIV/Aids no serviço acessado teve
de Saúde e Defesa Civil – RJ, sob o nº 12/12, início no ano de 1994, quando era realizado
sendo aprovado em 29 de junho de 2012. por um médico clínico e, eventualmente, por
O trabalho de campo ocorreu entre os meses um pneumologista. Em 1997, um infectolo-
de julho e dezembro de 2012 e conteve observa- gista foi designado para o serviço, assumin-
ção participante, registros em diário de campo, do a coordenação do programa de Aids. Com
conversas informais e entrevistas, estas últimas o aumento da demanda de atendimentos,
gravadas e transcritas para posterior análise. outra infectologista foi contratada, assumin-
Com exceção de duas, as entrevistas foram re- do a coordenação do programa, em 2001,
alizadas no próprio serviço de saúde. O nome após a saída do primeiro infectologista.
da instituição foi omitido, e foram atribuídos A chamada ‘porta de entrada’ do serviço
nomes fictícios aos interlocutores para preser- (ou seja, como as pessoas chegam até a
var suas identidades. A referida pesquisa não unidade antes de se tornarem pacientes) se
contou com suporte financeiro. dá por meio da ‘estratégia de acolhimento’,

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conjunto de exercícios e práticas profis- preenchidos: faltavam dados como endereço


sionais pautados em recomendações e di- e/ou nome de genitora, bairro e data de nas-
retrizes estabelecidas nas atuais políticas cimento. Ao longo da pesquisa, observou-se
de saúde que visam atender o paciente de que os espaços em branco gradualmente iam
‘modo humanizado’ e com ‘resolutividade’. sendo complementados pela profissional de
Em dois turnos (manhã/tarde), pacientes saúde que ajudava a levantar informações
que se dirigem ao serviço são direcionados nos prontuários dos pacientes. Interessava
por equipe responsável para os respectivos recuperar, sobretudo, seu endereço, telefo-
setores para atendimento de suas demandas. ne e data do abandono, ou seja, o registro da
A unidade de saúde atualmente é caracteri- última vez que os pacientes haviam compa-
zada por ser uma unidade mista onde con- recido ao serviço.
vivem o Programa de Saúde da Família, com Houve outras dificuldades para acessar
sua equipe de agentes comunitários, e posto pacientes com HIV/Aids que abandonaram
de saúde tradicional. o serviço: informações desatualizadas (o pa-
O caminho para localizar os entrevistados ciente muda endereço e/ou o número do te-
que serão apresentados a seguir foi percorri- lefone e não comunica a alteração ao serviço;
do a partir de levantamento no livro de ma- o paciente não possui em seu prontuário
trícula dos pacientes que haviam desistido registro de telefone por não ter a linha tele-
do tratamento: para o serviço em questão, fônica ou se recusa a informar o número da
aqueles que não comparecem a nenhuma linha; o telefone registrado no serviço apre-
consulta com infectologista por período de senta defeito ou está fora de área ou caixa
seis meses são considerados ‘em abandono postal no momento da tentativa de contato;
do tratamento’, e seus prontuários são reti- preenchimento incorreto dos prontuários
rados do arquivo e transferidos para caixas pelos profissionais de saúde – número de
que são acondicionadas em local determina- telefone ou endereço incompletos). Alguns
do pela administração do serviço. prontuários continham informações até
Naquele período, a referida caixa estava mesmo equivocadas: registro de abandono
alocada em espaço desativado destinado à quando o paciente foi a óbito ou registro de
guarda de materiais com defeito, objetos fora óbito quando o paciente foi transferido para
de uso, além de prontuários de outros pro- outro serviço de saúde.
gramas da instituição. No momento inicial Diante da imprecisão acerca das informa-
da pesquisa, as chaves estavam desapareci- ções fornecidas, constatou-se o quão difícil
das por uma semana, mostrando-se um lugar é, para o serviço de saúde, dimensionar a
de difícil acesso. A realização da pesquisa situação de abandono de tratamento dos pa-
contribuiu para que fosse aberta pela pri- cientes com HIV/Aids.
meira vez a caixa na qual foram depositados O local de pesquisa foi frequentado
os prontuários de pacientes do programa do mais amiúde pela pesquisadora principal,
HIV/Aids ‘que estavam em abandono’. Esse tomando parte na vida daquele lugar: ob-
cenário mostrou que as informações sobre servando pessoas, circulando pelos corre-
pacientes em abandono do tratamento não dores, lendo avisos e cartazes nos murais,
foram tampouco digitalizadas em meio ele- mantendo-se atenta às entrelinhas de con-
trônico. De posse do livro, identificaram-se versas entre pacientes que aguardavam
vários pacientes que se afastaram da unidade atendimento na sala de espera, participando
de tratamento por tempo superior a seis dos eventos e atividades do serviço etc. Essa
meses. Ao lado de seus nomes, constava a iniciativa possibilitou a convivência mais in-
palavra ‘abandono’ e o período de afastamen- formal com várias pessoas e o conhecimento
to do serviço. Nem todas os espaços estavam de particularidades sobre aquele serviço que

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certamente em outras condições não brota- não trabalhavam. Uma paciente declarou-se
riam com tanta espontaneidade. evangélica; e três, católicos. Não foi possível
Essa convivência possibilitou o agenda- classificar as práticas religiosas dos demais
mento das entrevistas com os profissionais de pacientes. Dos profissionais de saúde entre-
saúde. A nutricionista foi a primeira profis- vistados, um homem e três mulheres tinham
sional acessada. Mais adiante, abordaram-se, idades entre 45 anos e 60 anos, sendo dois de
nesta ordem: a infectologista, a farmacêutica cor branca, um negro e um pardo. Dois pro-
e o enfermeiro, que exercia o cargo de gestor. fissionais consideravam-se agnósticos, um
Do contato com a infectologista, foi possível kardecista e um não informou. Em relação
pensar estratégias variadas para acessar os à escolaridade, dois possuíam nível superior
pacientes. Aqueles que porventura procuras- completo e dois cursaram pós-graduação.
sem o serviço para retornar ao tratamento, Quanto à formação e tempo de experiência
após contato de rotina com a infectologista, com HIV/Aids, os dados variaram: enfer-
também seriam direcionados à pesquisado- meiro, médica, nutricionista e farmacêutica,
ra. Dessa combinação de estratégias, com com experiência de 7 a 26 anos na atenção ao
maior fluidez, contataram-se, com sucesso, HIV/Aids.
pacientes com HIV/Aids que passaram pela
experiência de abandonar o medicamento, Entrando no serviço de saúde
equipe profissional e o serviço de saúde.
O acesso ao sistema de saúde dos pacientes
entrevistados apresentou singulares traje-
Resultados e discussão tórias marcadas por momentos vivenciados
com mais ou menos dificuldades em busca
de cuidados de saúde a partir do resultado
Os interlocutores positivo para o HIV/Aids. Alguns entrevista-
dos, mesmo se sentindo em uma situação de
Todos os pacientes entrevistados – três mu- exposição ao HIV/Aids, protelaram buscar
lheres e cinco homens – confirmaram ter o serviço de saúde para testar-se quanto ao
experimentado alguma forma de abandono estado sorológico para o HIV. Outros bus-
do tratamento. Possuíam idade superior a 18 caram o serviço de saúde por se percebe-
anos. Apenas um possuía diagnóstico de HIV rem com sintomas que indicavam mudança
recente, correspondente a um período infe- no seu estado de saúde; outros procuram
rior a um ano. Cinco pacientes não tinham o serviço por terem estabelecido relação
indicação para uso do antirretroviral, e três sexual com pessoa sabidamente soroposi-
relataram que antes de abandonarem o tra- tiva ou por desconfiança do parceiro estar
tamento faziam uso desse tipo de medicação. infectado com HIV/Aids. Em muitos casos,
No período em que estiveram afastados do a parcialidade das informações contribuiu
tratamento, os sujeitos foram acometidos para retardar o diagnóstico do HIV/Aids e
por doenças oportunistas e decidiram buscar precipitar a condição de adoecimento.
ajuda com infectologista, retornando ao uso Tais dados corroboram o que se encon-
regular da medicação. trou na literatura. Para Bellato et al. (2011),
Um paciente possuía curso superior a condição crônica transita por diferentes
completo, dois possuíam ensino médio, temporalidades, com períodos de agudiza-
quatro possuíam ensino fundamental e ção e silenciamento da doença. Os períodos
um paciente não forneceu este dado. Um de agudização são marcados, em geral, por
paciente estava aposentado por invalidez, um ritmo acelerado de busca por cuidados
quatro tinham vinculo empregatícios e três dentro e fora do sistema de saúde.

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Apenas dois pacientes acessaram o centro seu acesso ao serviço e ações de saúde,
de saúde mais próximo ao local em que re- sem cumprir as exigências do protocolo de
sidiam. Os demais utilizaram o serviço de entrada no serviço de saúde que costumeira-
urgência/emergência de hospitais públi- mente é cobrado dos demais pacientes que
cos ou privados e o Centro de Testagem buscam cuidados de saúde no SUS.
e Aconselhamento (CTA). Além disso, os Ao conseguirem acessar os serviços de
dados confirmam pesquisas anteriores que saúde, os interlocutores se depararam com
mostram que a rede básica de serviços de protocolos e rotinas rígidas que, segundo
saúde não tem conseguido absorver em pri- Mattos (2008), frequentemente desconsi-
meiro plano as pessoas que se descobrem deram as demandas trazidas pelos pacien-
soropositivas. Dos oito pacientes entrevista- tes. Os profissionais de saúde, por sua vez,
dos, apenas dois relataram acessar o centro também não conseguem escutar e apreender
de saúde próximo ao local que residiam no o contexto de vida dos pacientes de modo a
intuito de ter o diagnóstico de sua situação identificar outras necessidades de saúde, li-
de saúde. Os demais utilizaram os serviços mitando-se a focar pontualmente e de modo
de urgência/emergência dos hospitais públi- fragmentado suas queixas. Mesmo após a
cos ou privados ou CTAs. entrada no sistema, os sujeitos relataram,
O conjunto de entrevistas mostrou que então, várias dificuldades para marcar con-
o acesso ao serviço para o atendimento das sultas, exames de rotina, exames mais com-
necessidades do paciente não se dá somente plexos e consultas com especialistas.
pelo fluxo institucionalizado no âmbito do No percurso em busca de cuidados de
SUS. Em concordância com Cohn et al. (1991), saúde, os entrevistados não só usaram a rede
a presente pesquisa mostrou que a popula- de serviços do SUS, mas também buscaram
ção estrutura suas próprias estratégias de o apoio em outras redes de atenção, como
acesso aos serviços a partir do conhecimento a religião e o saber popular. Loyola (1983) já
e da percepção para identificar suas neces- havia identificado que a filiação religiosa
sidades. Ao reconhecer que a insuficiência pode se imiscuir às práticas terapêuticas.
do modelo de atenção em vigência pode ser Neste estudo, chegou-se a conclusões apro-
superada com manobras que podem ajudá-lo ximadas, isto é, os pacientes demonstraram
a ter acesso a terapêuticas e ações que julga em seus itinerários que recorriam concomi-
importantes para o seu cuidado, o paciente tantemente ao médico e às orações.
acaba por definir um caminho próprio para
tentar resolver sua demanda. Diante dos Estando no serviço de saúde
obstáculos para acessar de fato o serviço
para serem atendidos em suas necessidades Foi possível constatar, tanto por meio dos
de saúde, os próprios pacientes tentam con- relatos sobre as experiências dos pacientes
torná-los valendo-se da sua percepção para, como dos profissionais de saúde, o reconhe-
à sua maneira, conquistar o direito à saúde: cimento de uma política de enfrentamento
“Eu procurei uma pessoa conhecida que traba- da epidemia que tem ampliado o acesso
lhava na recepção do posto de saúde imediata- de pacientes a diversos tipos de serviços,
mente abri prontuário e passei pela doutora” desde o básico, como o atendimento médico,
(Rosa, paciente soropositiva desde 1997, exames, medicamentos específicos, até os
afastou-se do tratamento por seis meses, re- recursos de alta complexidade, como exame
tornando adoecida de herpes zoster). de genotipagem. Por outro lado, uma polí-
No exemplo acima, a paciente, ao se valer tica de desinvestimento tem trazido limita-
do conhecimento pessoal com profissional ções aos pacientes entrevistados, como, por
de saúde, conseguiu garantir imediatamente exemplo, demora dos resultados de exames

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de rotina, falta de leitos para internação e re- profissionais de saúde. A atitude acolhedo-
médios para doenças oportunistas e efeitos ra da equipe profissional é importante para
colaterais. A garantia do acesso aos medica- alavancar mudança no comportamento do
mentos encontra seus entraves no cotidiano paciente ante o adoecimento. Estudos con-
da gestão, como se pode ver na interpre- firmam “a dificuldade de alguns profissio-
tação de um profissional de saúde/gestor nais para escutar e valorizar a demanda do
entrevistado: paciente” (SILVA ET AL., 2015 P. 221). Na pesquisa
realizada, pode-se ver o relato abaixo nessa
A gente tem que lembrar que é um coquetel, e eu mesma direção.
tenho que ter no mínimo três e no máximo cin-
co drogas para dispensar. Não adianta ter o pa- Fui encaminhada para fazer cirurgia e não co-
ciente que utiliza cinco drogas e eu só tenho três muniquei ao médico que era portadora do HIV,
drogas no almoxarifado, às vezes eu tenho uma mesmo com a imunidade baixa. Tinha medo de
determinada droga para seis meses, porém a que contar, pois já havia sido discriminada, então
eu preciso hoje eu não tenho nem para um mês. optei a não revelar; eu precisava do tratamento.
(Antonio, gestor e profissional de saúde). (Joana, soropositiva desde 1999, abandonou
o tratamento por seis anos, retornou após
Em busca de remédios, exames, consul- realizar cirurgia e ter complicações devido à
tas, leitos para internação e outros recursos, baixa imunidade).
o paciente segue construindo seu itinerário
terapêutico. Os relatos apresentados com- Os itinerários dos pacientes mostram
portam caminhos próprios em busca de várias histórias de insatisfação com o atendi-
cuidados de saúde. A continuidade do tra- mento dos profissionais de saúde e, em espe-
tamento ambulatorial é marcada pelo ritual cial, dos médicos.
das visitas regulares do paciente ao seu
médico assistente. No serviço investigado, Escutar a bronca da doutora é duro; um homem
todos os pacientes com HIV/Aids são aten- do meu tamanho esculachado. Sai arrasado.
didos por uma única infectologista. Ao final Você tem problema por todo lado, em casa, com
de cada consulta, os pacientes são reagen- a família, aí você não volta [...] abandona. (Raul,
dados a cada três meses. No caso de ocorrer 38 anos, afastado do tratamento há um ano.
intercorrência em relação ao tratamento Agendou consulta, mas não retornou ao tra-
do HIV/Aids, antes do período agendado, tamento no período da pesquisa).
o paciente poderá se dirigir à infectologis-
ta solicitando atendimento extra. De modo É razoável supor que a tensão gerada nesse
geral, durante cada consulta, espera-se que o encontro contribua para que o paciente não
paciente tenha oportunidade de expor ques- consiga argumentar ou minta ao profissional
tões que julga importante em relação ao seu a respeito de sua insatisfação com a atenção
tratamento de saúde; e do médico se espera recebida. Na maioria das vezes, o paciente
que esteja preparado para ouvir o paciente, se afasta do serviço e abandona o tratamen-
no sentido mais amplo, de modo a atender às to sem ao menos informar ao médico. Essa
suas necessidades. Na prática, essas expecta- foi a decisão também tomada por Raul. Por
tivas nem sempre se realizam, e episódios de outro lado, os profissionais de saúde, por
frustração foram relatados pelos pacientes: vezes, também são vistos como aliados frágeis
medo, vergonha e culpa foram sentimentos perante a estrutura do serviço, como pode ser
expostos pela maioria desses pacientes que visto em relatos tanto de pacientes quanto de
não encontraram brechas no espaço tera- gestores: “O sistema não dá suporte à doutora”
pêutico para discutir suas questões com os (Omar, 32 anos, abandonou o tratamento por

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duas vezes, no dia da entrevista agendou nova uso. Apesar do reconhecimento de sua po-
consulta de retorno). tência, os pacientes entrevistados expressa-
ram inúmeras dificuldades em relação aos
O capital intelectual que a gente tem é muito seus efeitos colaterais diante do uso pro-
fragilizado ainda, a gente tem muitas dificulda- longado, bem como medo do agravamento
des porque a maioria dos profissionais que estão da doença. Considerando as diretrizes de
dentro das nossas unidades têm o nível funda- tratamento médico disponibilizadas pelo
mental e ficam o dia inteiro dispensando medica- Ministério da Saúde à época da pesquisa,
mento. Então essa multidão de drogas, que eles nem todos os pacientes infectados pelo vírus
não trabalham só com Aids, eles trabalham com HIV precisavam usar medicação, mas pre-
todas as outras doenças, isso traz uma certa con- cisariam ser acompanhados regularmente
fusão. Se o profissional não sabe qual o remédio por meio de consultas e exames. Observa-se
que está dentro da geladeira dele para orientar que, em geral, os esforços dos pacientes para
ao paciente, fica muito mais difícil. (Antonio, a busca por serviços de saúde e/ou cuidados
gestor e profissional de saúde). profissionais se apresentaram de modo mais
esporádico nesse período dito ‘assintomáti-
Bonet (2004) mostrou que mesmo que haja co’. Os pacientes não compareciam às con-
um esforço dos profissionais em se preocu- sultas e nem realizavam exames de rotina
par com o paciente, é mais comum que sigam com frequência porque ‘se sentiam bem’.
o modelo da biomedicina que tem como foco O recebimento da prescrição para o uso
a doença. De forma parecida, Santos (2007) do medicamento antirretroviral costuma
observou o imperativo do cuidado do vírus. ser um momento crítico para os sujeitos. Há
Na pesquisa realizada, também se observou nesse momento necessidade de reorganiza-
que a solicitação de exames e diagnósti- ção do cotidiano, gerenciamento da tomada
co de doenças suplanta a compreensão do dos remédios obedecendo a horários, doses
modo de vida do paciente, o significado de certas, preocupação com o sigilo, efeitos co-
suas experiências de vida e o contexto do laterais do medicamento e outras. Essas mu-
seu tratamento. Para alguns profissionais de danças dialogam com um quadro maior de
saúde ouvidos na pesquisa, essa discussão referência, que situa os sujeitos em termos de
sobre o cuidado ofertado pelos profissionais pertencimento social, estilo de vida e capital
de saúde aos pacientes levanta um ponto simbólico. A nova informação implica a as-
importante: a fragilidade da formação aca- similação de uma nova condição, um novo
dêmica, sinalizada inclusive pelos próprios saber sobre si que para alguns dos informan-
médicos. Silva et al. (2015) sugerem aos pa- tes significou a confirmação da condição de
cientes e equipe profissional que encontrem doente de Aids e morte eminente, mesmo
nos serviços de saúde espaços de acolhimen- sem apresentar sintomas (MAKSUD, 2009). O
to, tendo em vista que a relação paciente e medo dos pacientes vivenciarem situações
equipe profissional é um processo relacio- de preconceito e discriminação leva alguns
nal e deve considerar suas subjetividades. a silenciarem diante das famílias e amigos
Nesse sentido, o cuidado deveria considerar sobre qualquer circunstância que envolva o
o paciente como um todo, sem focar apenas seu tratamento. O tratamento do HIV/Aids
o cuidado do vírus HIV, como também pode gerar modelos explicativos distintos
mostrou Santos (2007). para um e outro grupo. Nem sempre pacien-
Durante a pesquisa, o medicamento an- tes e profissionais de saúde partilham das
tirretroviral foi mencionado com destaque mesmas crenças e concepções em relação à
tanto pelos pacientes que a utilizavam como doença e ao tratamento, de tal forma que se
por aqueles que não tinham indicação para alcance uma relação de negociação.

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Deixando o serviço de saúde quantidade de comprimidos ingeridos dia-


riamente, a periodicidade das consultas, o
O abandono do tratamento, embora seja estigma da doença Aids, o medo da morte,
prática recorrente, não é um assunto muito depressão e influência de más amizades.
discutido entre os profissionais de saúde. No Ademais, ao contrário do que as orientações
cotidiano, os profissionais produzem infor- médicas poderiam supor, há, segundo os en-
mações (prontuários, banco de dados para trevistados, benefícios para aqueles que de-
controle do acesso ao medicamento antirre- cidiram suspender seu tratamento.
troviral, consulta) que poderiam ajudar a dis-
cussão sobre esse tema e alavancar propostas Essa sumida me faz um pouco esquecer. Vir fa-
de intervenção. Todavia a variedade de in- zer exame, lembra que sou soropositivo, lembra
formações produzida acaba subutilizada: um que vou ficar doente. O abandono pode não fazer
ou outro profissional tenta se aproximar do bem fisiologicamente, mais psicologicamente,
tema por intermédio de iniciativas incipien- faz. (Irlan, 31 anos, abandonou o tratamento
tes, revelando mais um esforço pessoal do por diversas vezes ao longo de oito anos).
que uma estratégia do serviço.
De forma geral, os relatos dos pacientes Durante o período de abandono do tra-
entrevistados convergem para uma questão tamento, Irlan e outros entrevistados de-
importante: a inexistência de proposta sistema- dicaram parte do tempo na tentativa de
tizada para acolher pacientes com má adesão reaproximação dos familiares, investiram
ao tratamento e prevenção do abandono. na troca de emprego, na prática de atividade
A decisão de abandonar o tratamento física e outros. Percebe-se que as situações
parece ter sido difícil para os entrevistados. descritas passam longe do cenário de uma
Todos, sem exceção, não discutiram com pessoa adoecida. Essa constatação também
familiares, amigos e conhecidos, tampouco foi encontrada no trabalho de Gonçalves et al.
com o médico, sua decisão de abandonar (1999) sobre adesão à terapêutica da tuberculo-
o tratamento. Temiam ser pressionados se (TB) em Pelotas (RS). Os autores mostram
para retornarem ao tratamento: “Mentia. A que o ‘papel’ desempenhado na maior parte
família e os amigos perguntavam se eu apa- da vida dos indivíduos que abandonaram o
nhava os remédios, respondia que sim, mas tratamento para TB não foi o de ‘doente’.
tinha abandonado” (Leonardo, 49 anos, soro- Nos percursos relatados pelos entrevistados
positivo desde 2005, abandonou o tratamen- durante o período de abandono do tratamento,
to no mês de outubro/2011, retornando em foram raros os momentos em que estes exter-
setembro/2012 após dois meses internado naram necessidades de saúde que precisaram
no Hospital Miguel Couto). de intervenção do profissional de saúde. Nos
Por outro lado, a perspectiva de ter sua casos em que isso ocorreu, foram situações
doença conhecida publicamente expõe o pa- pontuais que o próprio paciente resolveu com
ciente ao medo de ser discriminado e sofrer cuidados do seu próprio repertório.
preconceito, e, consequentemente, os leva a
buscar estratégias para as interações cotidia- Retornando ao serviço de saúde
nas, como mostram Silva et al. (2015). Os va-
riados relatos dos entrevistados mostraram Os dados evidenciaram que a iniciativa de
outros fatores que contribuem para o aban- fazer contato com paciente em abandono do
dono do tratamento, a partir de suas lentes, tratamento por telefone ou mesmo por ae-
tais como: falta de apoio emocional e finan- rograma para saber notícias e estimular seu
ceiro das famílias, a não aceitação da doença retorno não tem sido uma prática dos pro-
Aids, efeitos colaterais dos antirretrovirais, a fissionais do serviço pesquisado. A ‘busca de

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Abandono de tratamento: itinerários terapêuticos de pacientes com HIV/Aids 535

faltosos’ é uma estratégia recomendada pelo se está bem, come, trabalha tem disposição você
Ministério da Saúde, no entanto nenhum dos não tá nem aí, é difícil pensar. Para a médica,
informantes da pesquisa recebeu contato ela só fala que tem que tomar remédio. Comecei
do serviço dessa natureza. Somente uma tomar o remédio da Aids e o da tuberculose. No
paciente que na época havia abandonado início foi difícil, tomava oito comprimidos, depois
também o tratamento de Tuberculose (TB) foi diminuindo, fiquei com quatro. À medida que
foi procurada pelo serviço. É importante melhorava, comecei por minha conta a diminuir
destacar que, no serviço de saúde pesquisa- a quantidade e depois tinha dia que esquecia
do, o tratamento de TB é o único programa mesmo. Distraía com o trabalho, e a hora do
que tem orientação diferenciada no tocante remédio passava. Parei com o remédio e não
à busca de pacientes em abandono: um pro- voltei para consulta. No fundo a gente sabe que
fissional é designado para monitoramento o vírus que está dentro da gente é uma bomba
do programa, acionando o agente de saúde relógio. Voltei, é a segunda vez que abandono e
para contatar os pacientes faltosos. O estudo volto. Fico com medo. Eu sei que a qualquer hora
realizado por Silva et al. (2015) sobre comor- a gente pode adoecer, ter que ficar internado e
bidade TB/HIV faz referência à importância morrer. A pressão está dentro da gente, isso
atribuída pelos pacientes ao apoio recebido atormenta e não diz respeito a ninguém, somente
do serviço de saúde. Nesse sentido, quando a mim. (Leonardo, paciente em abandono do
a paciente entrevistada lembra do chamado tratamento pela segunda vez há 10 meses).
para retorno ao serviço/tratamento, fica
também evidenciado seu reconhecimento Na fala de Leonardo, reconhecem-se
pelas ações realizadas pela equipe de saúde. elementos que dão significado à sua expe-
O ambulatório de HIV/Aids onde os pa- riência de estar soropositivo e que consti-
cientes eram atendidos antes de abandona- tuem sinal de alerta para o profissional de
rem o tratamento é o local procurado em caso saúde investir em estratégias para prevenir
de decisão de retorno aos cuidados de saúde. a descontinuidade do tratamento (CARDOSO;
Quando se dá, este retorno passa, paradoxal- ARRUDA, 2005). A fala da infectologista revela
mente, pelo processo de agravamento do seu sua reação diante dos pacientes considera-
quadro de saúde. Todos os oito pacientes da dos em situação de abandono do tratamento
pesquisa retornaram adoecidos ao serviço pelo serviço e confirma a preocupação dos
de saúde buscando agendar consulta para pacientes entrevistados:
tratamento (sete pacientes compareceram à
consulta agendada). Como a maioria das en- Quem morre de medo de mim, é porque tá de-
trevistas para a pesquisa ocorreu no próprio vendo. Todos eles ficam com o rabinho entre as
ambulatório, foi possível observar um certo pernas, porque os que abandonaram o tratamen-
sentimento de ansiedade dos pacientes para to são aqueles que mais levaram broncas. Eles
o encontro com a médica infectologista. têm tratamento e não querem. Tem hora que sou
Observou-se que o reencontro dos pa- muito dura, tem hora que eu esculacho. (Dora,
cientes que haviam abandonado o tratamen- médica infectologista).
to com a infectologista – após a decisão de
retomá-lo – era carregado de tensão. Todos Essa postura da profissional de saúde,
os pacientes tinham em mente que ‘levariam contudo, era entendida de diferentes formas
uma bronca’ da profissional de saúde por pelos pacientes. Para alguns, pareceu pouco
terem se ausentado do tratamento. amistosa, afirmando a pouca escuta da infec-
tologista para o que pensa e sente o paciente.
Eu nunca levei o tratamento a sério. Às vezes não Para outros, significava empenho em diag-
acredito, eu até queria fazer novo exame. Quando nosticar e tratar o mal-estar que lhes afligia.

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Considerando a subjetividade das pessoas e Por outro lado, os profissionais de saúde


a complexidade do vivenciar o HIV/Aids, os desse serviço também mostram suas fragi-
sentimentos que afloram tanto nos pacien- lidades quando reconhecem que sua forma-
tes como nos profissionais de saúde muitas ção acadêmica não prepara para as situações
vezes determinam a forma de agir e reagir complexas que envolvem o cuidar do pacien-
às situações. É dessa forma que a postura te com HIV/Aids. Além disso, questões asso-
austera da infectologista é rechaçada por ciadas à gestão também são pontuadas pelos
alguns pacientes enquanto para outros, sua profissionais: agenda lotada, falta de tempo,
‘bronca’ é entendida como preocupação e estrutura deficiente com número reduzido
cuidado com o paciente que não cumpre sua de consultórios, pouco espaço, ventilação
responsabilidade com o tratamento. inadequada, número de profissionais insu-
No decorrer dos itinerários terapêuti- ficiente etc. são exemplos acionados como
cos dos pacientes, é possível afirmar que as justificativa para gerenciar situações de
pessoas tomam suas decisões e criam formas crise, limitando-se a ‘apagar incêndio’. Nesse
próprias para administrar os riscos. Em sentido, o cuidado ao paciente que retorna
várias narrativas, constataram-se pacientes após o abandono passa por essas representa-
por conta própria diminuírem a dosagem ções, como pode-se ver abaixo.
da medicação prescrita, faltar à consulta e
não realizar exames solicitados, entre outras Interfere principalmente quando o paciente é an-
estratégias. Os estudos sobre adesão ao tra- tigo que você já tem uma relação. Você fica preo-
tamento do HIV/Aids sinalizam vários obs- cupada. Interfere porque depois ele volta doente,
táculos, como: contradições, distanciamento a maioria não volta bem, só quando está doen-
e negação do paciente em aceitar o diagnós- te, porque está doente. Então, atendimento sem
tico de HIV/Aids (SILVA ET AL., 2015). hora marcada, urgência, preocupação. Não tem
O retorno ao serviço após o período do local para internação, se você precisar. Não tem
abandono é marcado por histórias que trazem para onde encaminhar. Eu tenho que dar conta da
a percepção dos informantes sobre o viver emergência aqui dentro. A rede não me dá am-
com HIV em diferentes espaços da vida e di- paro para fazer internação num serviço adequa-
ferentes formas de lidar com as situações que do. Então isso me estressa, me estressa demais.
foram sendo apresentadas ao longo do percur- (Dora, Médica Infectologista).
so. Observando por essa perspectiva, a fala de
Leonardo é exemplar e ajuda a inferir que em Algumas dificuldades sinalizadas no
suas idas e vindas construiu um vínculo frágil cotidiano profissional se constituíram em
com seu tratamento, mas de certa forma vem obstáculos vivenciados na trajetória dos pa-
aprendendo a monitorar-se quando avalia que cientes, no entanto estes, ao decidirem retor-
estar bem é manter-se bem-disposto e traba- nar ao tratamento, de algum modo, buscaram
lhando. Cabe evidenciar que Leonardo foi o reconstituir seu vínculo com o tratamento
único informante que se manteve em abando- médico e com o serviço de saúde. Nesse
no do tratamento até o momento que se esteve contexto, parece que as circunstâncias e as
no campo de pesquisa. A compreensão sobre necessidades do paciente vão direcionan-
sua doença e sobre o tratamento se revela na do seu engajamento novamente ao serviço,
analogia que faz entre a previsão do tempo e retomando e criando novos vínculos com a
as condições de saúde: “a senhora quando está equipe profissional. A literatura disponível
um dia bonito, com sol, a senhora se preocupa em sobre a temática evidencia um esforço do
carregar guarda-chuva? Claro que não, não vai ‘paciente não aderente ao tratamento’ para
chover!” (Leonardo, paciente em abandono do se adaptar às exigências da condição soro-
tratamento pela segunda vez há 10 meses). positiva, porém, esse esforço nem sempre

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Abandono de tratamento: itinerários terapêuticos de pacientes com HIV/Aids 537

é bem-sucedido. Portanto, como mostram não se conseguiu visualizar na fala dos en-
Cardoso e Arruda (2004), ao oscilar períodos trevistados referências sobre engajamento
de adesão e não adesão, esses pacientes de- social e político visando influenciar a qua-
nunciam o modo instável e provisório, bem lidade da atenção nos serviços de saúde.
como os desafios, da rotina de um tratamen- Assim, entende-se que as críticas direcio-
to para o HIV/Aids (CARDOSO; ARRUDA, 2005). nadas à equipe de saúde e ao serviço se
constituíram apenas como desabafo dos
pacientes. É possível também pensar a fra-
Conclusões gilidade dos profissionais de saúde diante
do reconhecimento de tais limitações e
O conceito de itinerário terapêutico contri- desafios. O ambulatório de HIV/Aids é um
buiu para evidenciar uma série de lacunas espaço de atendimento contínuo e pro-
do serviço de saúde que parecem dificultar longado, e, por esse motivo, ao lidarem no
a oferta de um cuidado integral. Possibilitou cotidiano com as circunstâncias ligadas ao
ainda apreender dados que mostram como os viver com HIV/Aids, os profissionais de
pacientes vivem e convivem com HIV/Aids saúde podem ser levados a situações de
em seu cotidiano, a quem e como recorrem desgaste emocional e adoecimento.
para ter resolutividade em suas demandas, e Ao considerar todos esses aspectos, e para
de quais recursos dispõem para concretizar o superar possíveis desafios, recomenda-se
seu direito à saúde. As experiências descritas aos gestores e serviços, portanto, especial
confirmam a complexidade do tema abando- atenção no que concerne à qualificação da
no do tratamento e a necessidade de siste- equipe profissional em dois pontos: 1) es-
matizar cuidados de saúde tanto nas práticas pecificidades no cuidado aos pacientes con-
terapêuticas dos profissionais como no per- siderados mais vulneráveis e 2) atividades
curso terapêutico percorrido pelos pacientes. gerenciais de ‘busca ativa’ dos serviços aos
Os resultados da pesquisa chamam pacientes considerados faltosos.
atenção para a importância da valorização Conclui-se, por fim, que a construção desse
do protagonismo do paciente no tratamento. fato – o ‘abandono do tratamento’ –, tal como
Quando estimulados a falar acerca de suas apreendido pela pesquisa, extrapola sobrema-
expectativas em relação ao atendimento neira as diretrizes preconizadas pelos docu-
ofertado no serviço de saúde, muitos as- mentos oficiais acerca da ‘falta de adesão’.
pectos relacionados com os novos hábitos
adquiridos no período de abandono do tra-
tamento, como prática de exercício físico Colaboradores
e mudança de emprego, vieram à tona. A
análise dessas informações e dados revelam Marilza Rodrigues realizou a pesquisa, ana-
que a valorização de práticas de autocuidado lisou os dados e redigiu o artigo. Ivia Maksud
é um ponto a ser sublinhado. Por outro lado, orientou a pesquisa e redigiu o artigo. s

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538 RODRIGUES, M.; MAKSUD, I.

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Recebido para publicação em dezembro de 2016


HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Versão final em maio de 2017
Conflito de interesses: inexistente
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Suporte financeiro: não houve

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