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CUIDAR CLÍNICO, SUBJETIVIDADE E ENFERMAGEM: NOVOS OLHARES NA

PERSPECTIVA DA CLÍNICA DO SUJEITO1


CLINICAL CARE, SUBJECTIVITY AND NURSING: NEW VIEWS IN THE
PERSPECTIVE OF THE CLINIC OF SUBJECT
 ATENCIÓN CLÍNICA, SUBJETIVDAD Y ENFERMERÍA: NUEVAS MIRADAS EN LA
PERSPECTIVA DE LA CLÍNICA DEL SUJETO

Lia Carneiro Silveira2


Karla Corrêa Lima Miranda2
Ana Paula Rigon Francischetti Garcia3
Arisa Nara Saldanha de Almeida4

Resumo: O presente trabalho visa refletir acerca do cuidado clínico de enfermagem em saúde
mental na perspectiva da clínica do sujeito. Desde a emergência da proposta da reforma psiquiátrica
brasileira em meados dos anos 80, estudos apontam para a grande dificuldade do enfermeiro em
delimitar seu papel nos serviços pós-manicomiais. Ao ser destituída suas funções de controle e
vigilância que tão bem se adequavam ao manicômio, a enfermagem se viu inserida em uma equipe
multidisciplinar, sem muita segurança de quais seriam suas ferramentas a partir de então.
Entendemos que os enfermeiros precisam buscar estratégias de atuação que não repliquem as
características do modelo manicomial sem, no entanto, perder a especificidade de sua atuação no
campo da saúde mental. Esta, frequentemente, requer do profissional o uso de referenciais que
abordem a subjetividade do paciente, indo alem de uma abordagem do corpo orgânico. Parte-se do
princípio de que, o cuidado clínico de enfermagem nesse campo deve transcender a abordagem de
necessidades humanas básicas, situando-se em relação ao sujeito, entendido como ser dividido pela
linguagem, reconhecendo a singularidade de sua relação com aquilo que o aflige. Descritores:
Cuidado, Clínica, Enfermagem; Saúde Mental; Psicanálise.

Abstract: The present work aims to reflect the clinical nursing care in mental health in the
perspective of the clinic of subject. To transcend a clinic of care that answers the human needs it is
advisable that such concept is articulated to the subject's approach and the recognition of its
singularity. Several authors point for the nurse's great difficulty in defining their role in the current
mental health services. Nursing needs to look for performance strategies that don't repeat the
asylum model tools, without also moving away from an ethical commitment with the autonomy of
the subjects who needs care. Descriptors: Nursing Care; Mental Health; Nurse-Patient Relations.

Resumen: El trabajo refleja sobre la atención clínica enfermería en de salud mental en la


perspectiva de la clínica del sujeto. Por lo tanto, para trascender a una clínica de atención que
responda a las necesidades humanas se recomendable que este concepto sea articulado al abordaje
del sujeto y al reconocimiento de su singularidad. Varios autores señalan la dificultad del enfermero
en definir su función en los actuales servicios de salud mental. La enfermería tiene que encontrar
estrategias para que la práctica del enfermero no aplique una vez más las herramientas del modelo
asilar-manicomial, sin caer en el riesgo de alejarse del compromiso ético con la autonomía de las

11
O texto é parte do projeto de pesquisa de mesmo nome desenvolvido pelas autoras. Publicação no prelo.
2
Doutora em Enfermagem. Docente do Curso Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos de Saúde (CMACCLIS). Universidade
Estadual do Ceará (UECE). Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: silveiralia@gmail.com, karlamiranda@terra.com.br.
3
Mestre em Enfermagem. Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP, Brasil.
E-mail: apgarcia@fcm.unicamp.br.
4
Mestranda do CMACCLIS - UECE. Bolsista CAPES. Fortaleza - CE, Brasil. E-mail: arisinha2003@yahoo.com.br.

1
personas que los cuidan. Descriptores: Atención de enfermería; Salud Mental; Relaciones
Enfermero-Paciente.

INTRODUÇÃO
A ciência moderna tem sido responsável por consideráveis avanços em vários âmbitos
da vida humana. A revolução informática que se avizinha é um exemplo de quão longe estes
avanços podem nos levar. No que se refere especificamente à saúde, podemos mencionar as
inovações nas áreas de diagnóstico e terapêutica como um maior refinamento farmacológico, a
codificação do genoma humano e os métodos de controle epidemiológico. No entanto, a despeito
desses avanços, a ciência está longe de alcançar seu ideal positivo de domínio da natureza e alcance
da felicidade humana.
É cada vez mais alarmante a tradução do sofrimento psíquico em quadros clínicos
psiquiátricos. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde(1), no mundo inteiro 121 milhões de
pessoas sofrem de depressão, 70 milhões de problemas relacionados ao abuso de álcool e 24
milhões de esquizofrenia. Com a psicanálise podemos afirmar que esse “sofrimento” não é uma
especificidade de nossa época. Trata-se, antes, de um aspecto inerente à própria entrada do ser
humano no processo civilizatório, que requer de cada sujeito o abandono de uma parcela de
satisfação pulsional em nome da possibilidade de convivência social. Uma espécie de “preço a
pagar” cobrado pela cultura que instaura a partir a falta e a angústia de ter que conviver com ela.
No entanto, as condições de vida contemporâneas engendradas no sistema capitalista
tendem a fazer um uso específico desse sofrimento, incitando uma busca desenfreada por objetos
que venham preencher o vazio que está por trás da dor, gerando novas ou outras formas de mal-
estar. No plano da clínica, esse sofrimento tem frequentemente se traduzido em quadros
psiquiátricos como transtorno do pânico, depressão, anorexia, tentativa de suicídio, dentre outros. A
resposta a todos esses males é anunciada pela ciência – principalmente a psiquiatria – através da
explicação neuroquímica e da oferta de determinados objetos – principalmente medicamentos – que
supostamente aplacariam o sofrimento, aliviando o vazio e a sensação de inadequação frente às
cobranças sociais. Ao mesmo tempo, assistimos a uma exigência para que o corpo efetive sua
capacidade de gozo máximo, seja no trabalho, no amor ou no lazer. Aquele que não atinge os
patamares elevados de produção é considerado, segundo o jargão americano, um looser.
Trata-se de um corpo que entra em falência, por não dar conta de um excesso. É como
se existisse uma falta de instrumentos simbólicos para dar conta dessa intensidade. É a passagem ao
ato no corpo que muitas vezes explica manifestações sintomáticas corporais sem nenhuma
explicação orgânica. Temos uma subjetividade contemporânea marcada pela compulsividade, ou
pela despossessão, surgida quando perdemos a possibilidade de ter, minimamente o domínio sobre

2
nós mesmos. Assim, o mal-estar na atualidade está centradas em experiências cumulativas onde a
capacidade de metaforizar e simbolizar não foram possíveis, gerando sofrimento. (2).
Podemos afirmar que a leitura contemporânea desse mal-estar caracteriza-se pelo fato
de estar centrado “positivamente” na ênfase dada ao corpo, como queixa, e à ação centrada na
medicalização. Entretanto, outras categorias que nos permitiriam abordar esse sofrimento psíquico
são ‘negativizadas’, com um esvaziamento do recurso à fala daquele que sofre(2).
A enfermagem em saúde mental aparece como uma das especialidades requisitadas a
abordar essa questão, especialmente nos serviços propostos pela reforma psiquiátrica brasileira.
Com a reformulação da rede de serviços em saúde mental as práticas da enfermagem psiquiátrica
tributárias do espaço hospitalar passam a ser questionadas. Os serviços extra-hospitalares
caracterizam-se na maioria das vezes por serem serviços abertos, pautados por uma lógica de
respeito à cidadania do doente que não se coaduna mais com atitudes de vigilância e
disciplinarização, marcas do modelo hospitalocentrico.
Nessa nova proposta, as idéias de desinstitucionalização exigiram profundas transformações
nas práticas desenvolvidas e o enfermeiro é requisitado a ocupar um lugar em meio a equipe
terapêutica. No entanto, percebemos que essas mudanças nos lançam no plano de profundas
instabilidades, pois a formação em enfermagem, ainda bastante arraigada no modelo biomédico,
não fornece as ferramentas necessárias para uma atuação desse tipo. As saída encontradas vão desde
a centralização em ações administrativos-burocráticas, onde o enfermeiro se afasta do cuidado
direto ao cliente, passando pela ênfase no cuidado corporal (medicação, higiene, dentre outras) onde
se perde a especificidade do cuidado em saúde mental, indo até a busca de novas tecnologias que
permitam a abordagem das questões subjetivas.

É nessa terceira via que se insere este estudo, tendo como objetivo refletir acerca das
contribuições de algumas ferramentas teóricas da clínica do sujeito para o exercício do cuidado
clínico de enfermagem em saúde mental. Chamamos de “clínica do sujeito” aquela de cunho
psicanalítico que considera o sujeito enquanto dividido por sua entrada na civilização através da
linguagem, dotando-o ao mesmo tempo de um saber inconsciente acerca daquilo que o aflige.
Trata-se, portanto, de um trabalho de reflexão teórica desenvolvido em três momentos.
Em primeiro lugar relatamos a construção histórica-conceitual da abordagem ao sofrimento
psíquico na enfermagem em saúde mental delimitando os acontecimentos históricos e as influencias
teóricas que marcam sua trajetória. Em seguida situamos, a partir do referencial psicanalítico, a
especificidade do sofrimento psíquico entendido como sintoma, articulando-a a alguns conceitos
fundamentais como inconsciente, sujeito e desejo. Por fim, analisamos algumas contribuições
desses conceitos oriundos da psicanálise para o desenvolvimento da clínica de enfermagem em

3
saúde mental pensando possibilidades de atuação que transcendam o cuidado exclusivamente com o
corpo orgânico.

Enfermagem em saúde mental e a abordagem ao sofrimento psíquico: trajetória histórica e


conceitual
Quando refletimos acerca de como a enfermagem tem lidado com a apresentação das
diversas formas de sofrimento psíquico nos serviços de saúde, percebemos que as práticas clínicas
variam ao longo da história de acordo com as influências teóricas que as perpassam. Inicialmente
podemos apontar uma prática predominantemente centrada no modelo médico-psiquiátrico. As
características da enfermagem desenvolvida nesse modelo já foram exaustivamente destacadas e
encontram uma boa descrição no estudo de Miranda(4): o enfermeiro é o perfeito executor do
“serviço sujo das pequenas e cotidianas atrocidades do espaço asilar: amarrar, conter, gritar,
ofender, impor-se pela robustez física, proibir, aplicar medidas terapêuticas psiquiátricas prescritas,
tudo em nome da pseudo ordem do hospital”.
Reconhecendo a necessidade de romper com essa posição, os ideais da reforma
psiquiátrica em meados da década de 1980 bradavam que não bastava destruir os muros do hospício.
Era necessário também modificar as relações que o saber psiquiátrico mantinha com os que buscavam
sua prática, deslocando a ênfase do cuidado da doença para a “existência-sofrimento dos sujeitos”.
Apesar de passadas quase três décadas desde então, percebemos que, mesmo nos serviços criados no
período pós-reforma, a prática de enfermagem centrada no modelo psiquiátrico não se extinguiu. No
máximo podemos afirmar que ela foi deslocada, tendo em vista que a proposta de um serviço aberto e
de gestão horizontalizada dificulta a simples transposição das ações executadas nos hospícios.
Dificulta, mas não impede totalmente, pois entendemos que pelo menos um aspecto preponderante no
modelo médico-psiquiátrico continua a espreita: o fato de que a pessoa que busca o cuidado em saúde
mental muitas vezes ainda é considerada numa posição de objeto, alheia a tudo que diz respeito ao seu
desejo.
Certamente não se trata de negar os avanços no que diz respeito à redelimitação das
relações de trabalho e dos espaços de gestão proporcionados pelo modelo da atenção psicossocial.
Mas, principalmente no que diz respeito a atuação clínica, a prática de enfermagem em saúde mental
ainda continua obtendo suas bases principalmente do modelo médico e em sua conseqüente
medicalização. Resta-nos uma atuação centrada no cuidado com o corpo e com a adequação dos
comportamentos. Nesse modelo trata de traduzir os sintomas apresentados pelas pessoas em
dificuldades como: estabelecer relações interpessoais efetivas; realizar atividades de vida diária ou
desempenhar atividades de vida prática. A atuação de enfermagem resvala para um papel de
“maternagem” que pouco contribui para a autonomia dos pacientes.(5)

4
No âmbito das tecnologias utilizadas para o exercício da clínica de enfermagem junto ao
paciente em sofrimento psíquico, a enfermagem conta com uma ferramenta: o relacionamento
terapêutico ou relacionamento interpessoal enfermeiro-cliente. Apontado na década de 50 como
uma intervenção da enfermeira psiquiátrica, o relacionamento terapêutico apresentou-se como uma
ferramenta que permitia ao enfermeiro deixar de limitar-se aos cuidados físicos e passar a abordar o
próprio sofrimento psíquico enquanto fenômeno da enfermagem.
No entanto, consideramos que as fontes teóricas que predominaram na teorização e
implementação do relacionamento terapêutico na enfermagem tenderam predominantemente para o
âmbito daquilo que Lacan chamou “terapias do ego”. Esse termo foi utilizado por ele para se referir
às abordagens que menosprezavam a força instituinte da descoberta freudiana do inconsciente e por
buscarem uma adequação da pessoa ao contexto social, tornando-a mais “madura” e “saudável”.
Podemos observar essa tendência no material didático ainda hoje utilizado na formação
do enfermeiro. Os trabalhos de Hildegard Peplau e de Joyce Travelbee têm sido as principais
referências citadas pelos autores que abordam o relacionamento terapêutico hoje (6). A ênfase nessas
abordagens é do uso terapêutico que a enfermeira pode fazer de seu próprio eu para proporcionar
uma mudança de atitude do paciente frente ao seu problema. Na teoria de Travelbee esse “Uso
Terapêutico do Eu” é descrito como sendo “a capacidade de usar a própria personalidade
conscientemente e em plena lucidez na tentativa de estabelecer um relacionamento e de estruturar as
intervenções de enfermagem”(6). Sendo assim esse processo requereria do profissional algumas
habilidades como autenticidade, harmonia e, principalmente empatia – descrita como a “capacidade
de perceber corretamente a vivência interna de uma pessoa num dado momento”(6).
Entendemos que uma clínica de enfermagem desenvolvida sob o signo destas
concepções tem um caráter claramente adaptativo e objetificante à medida que considera:
a) O enfermeiro como alguém cuja personalidade pode se
“desenvolver” ao ponto do mesmo passar a ocupar um papel “corretivo”, capaz de alterar o
funcionamento psíquico de outrem;
b) O paciente como alguém que enfrenta dificuldades (afetivas, de
trabalho ou de inserção social) por que ainda não desenvolveu completamente seu eu, ou seja, está
em uma relação de defasagem com relação ao profissional que já teria atingido uma relativa
“maturidade psíquica”.
c) Centra a atuação de enfermagem na modelização do paciente a um
ideal de normalidade propagado, excluindo totalmente a questão do seu desejo e de sua posição
subjetiva.
No entanto, malgrado todas as críticas que podemos tecer às concepções teóricas que
fundamentam o relacionamento terapêutico na enfermagem, consideramos que se algo dessa prática

5
deve ser resgatado é exatamente a consideração da interação do profissional de enfermagem e
cliente como um possível espaço de intervenção e escuta, uma vez que reconhecemos que a
enfermagem é a profissão cuja característica prioritária é a permanência junto ao paciente onde se
desenvolve o cuidar.
O Sujeito do Inconsciente
Quando assumimos que o mal-estar não tem relação direta com um comprometimento
ou mau funcionamento fisiológico, este é tomado como um sintoma a ser investigado e, mais ainda,
decifrado. Neste sentido é importante reconhecer que o sintoma responde a uma formação dita
inconsciente, constituído para dizer sobre o que sofre o sujeito que, neste mau, não consegue
reconhecer-se diretamente(3).
Desta forma, para transcender uma clínica do cuidado que responda ao “acolhimento
com garantias” é recomendável que tal conceito seja articulado a leitura do sintoma e ao
reconhecimento da singularidade do sujeito. Para garantirmos essa clínica, consideramos que alguns
critérios precisam ser delimitados:
a) Em primeiro lugar, essa ética rompe com uma perspectiva cartesiana do sujeito do
conhecimento. Considera que, desde que entramos no mundo da linguagem o sujeito não comporta
apenas o aspecto racional e consciente, mas também uma outra cena: o inconsciente(10-11).
b) Implica também em reconhecer que não lidamos apenas com necessidades bio-
fisiológicas, mas com a dimensão do desejo e no que ela implica de articulação com o Outro. Nessa
perspectiva, as intervenções de enfermagem extrapolam seu caráter instrumental e, necessariamente
vão ser perpassadas por uma articulação com ferramentas de escuta, onde a palavra é a principal
matéria prima.
c) O objetivo central dessa “clínica do sujeito” se desloca do foco na cura, passando
para uma perspectiva de desconstrução/reconstrução de sentidos, atrelada à ética de sustentação do
desejo. Reconhecer a articulação entre ação e desejo traz consigo a implicação que as escolhas que
determinam o encaminhamento da vida são marcadas pela incidência de um sujeito dividido pela
própria inscrição inconsciente e tal inscrição se faz suportada pela entrada na linguagem.
d) Considera que o conflito vivenciado pelo sujeito está no centro da formação do
sintoma, porém tal conflito é necessário para a estruturação psíquica e a emergência deste sujeito(12).
Ao admitir que o cuidado de enfermagem pode ser pautado por uma clínica que
compreende a inscrição do sujeito do inconsciente é fundamental a discussão do inconsciente como
categoria teórica e clínica, bem como a apreensão das formações inconscientes.
Ter como meta o acesso ao inconsciente para desenvolver o cuidado de enfermagem
requer a construção de estratégias, técnicas e posterior leitura dos efeitos que tal registro implica nas

6
escolhas de vida de um indivíduo, bem como sua articulação no processo saúde-doença das pessoas
em sofrimento psíquico.
A articulação do inconsciente ao processo saúde-doença pode ser apreendido por meio
das manifestações de tal registro, marcadas no corpo sob a forma de sintoma, nas recordações, nas
escolhas de vida do sujeito, enfim, na história de vida de cada homem. Como podemos apreender
com Lacan(13):

O inconsciente é esse capítulo de minha história que é marcado por um branco ou


ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas pode ser resgatada, na
maioria das vezes, já que está escrita em outro lugar. A saber: nos monumentos - e
esse é o meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico
mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez
recolhida, pode ser destruída sem perda grave; nos documentos de arquivo,
igualmente - e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto
eles, quando não lhe conheço a procedência; na evolução semântica - e isso
corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem
como o estilo da minha vida e a meu caráter; nas tradições também, ou seja, nas
lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história; nos vestígios, enfim,
que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo
adulterado nos capítulos que o engendram e cujo sentido minha exegese
restabelecerá(13).

Podemos perceber, então, que o termo sujeito empregado aqui não tem como finalidade
designar a pessoa que sofre, nem tem o caráter de marcar a substancialidade do ser humano. É uma
posição que marca o desconhecimento do homem de sua própria condição de sofredor e pode ser
observado como um efeito, resultado de sua divisão pela linguagem. Assim, é o processo de entrada
na linguagem que possibilita a emergência desse sujeito.
Antes mesmo de nascer, todos nós já temos um lugar reservado na linguagem que nos
antecede. São histórias que se conta de geração em geração, o nome que os pais escolhem e os
planejamentos que esses fazem para o futuro filho. Tudo isso nos antecede e delimita, de certa
forma, o mundo no qual iremos chegar. Além disso, chegamos para esta jornada ainda muito
despreparados, desprovidos das ferramentas que precisamos para sobreviver. Em meio a nossa luta
pela sobrevivência, é nesse Outro que vamos buscar os significantes com que nomeamos nossa
fome, nossa sede, nosso medo e (...) nosso desejo. Sendo assim, podemos afirmar com Lacan, que
nascemos alienados a tudo isto que nos precede, a isto que ele deu o nome de ‘Outro’ (A), escrito
em letra maiúscula para diferenciar do ‘outro’, nosso semelhante com quem estabelecemos relações
imaginárias.
A alienação está relacionada com o fato de que foi justamente o desejo do outro que
possibilitou minha existência. Pode ser que esse desejo seja o de ter um filho ou qualquer outra
coisa que venha nesse lugar. Mas foi preciso que um outro desejasse. Segundo Fink (14), esse desejo

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continua a agir mesmo após o nascimento da criança, possibilitando que ela se constitua num sujeito
de linguagem, “nesse sentido, o sujeito é causado pelo desejo do outro”.
Para que exista um sujeito é preciso ainda que ocorra uma segunda operação, chamada
de separação. Ela implica que o sujeito possa reconhecer o outro também como faltante, ou seja,
como algo que também se revela desejante (por exemplo, perceber que a mãe tem outras ocupações
além dele, que ela volta sua atenção para o pai, para o trabalho, etc.). Nessas idas e vindas o sujeito
percebe que a mãe não é completa, que a ela também faltam coisas que busca alcançar. Esse ponto
fraco aparece justamente porque o outro também tem que recorrer à linguagem, impossível de dizer
tudo.
Essa linguagem não diz tudo por que inexiste o conjunto de todos os significantes
(Outro). Logo, todas as palavras de uma língua são incompletas para conseguir expressar o que o
sujeito (S) do inconsciente demanda. Diante disso, o sujeito é levado a tentar preencher a falta do
Outro se perguntando: mas o que é que ele quer de mim?
E, a partir daí, o sujeito segue procurando responder a esta questão, tomando o outro por
objeto do seu próprio desejo e se colocando como o objeto que poderia tamponar a falta do outro
também desejante. Mas esse momento é hipotético e irrealizável, visto que o desejo, enquanto efeito
de linguagem, já anuncia a impossibilidade da simbolização totalizada, ou seja, de dar significantes
a tudo que o implica. Rompe-se a ilusão de totalidade e essa ruptura é uma divisão com resto: “esse
resto, esse Outro derradeiro, esse irracional, essa prova e garantia única, afinal, da alteridade do
Outro, é o a”(15).
Segundo Fink(14), o sujeito passa a se apegar ao objeto a (desejo do Outro como causa
do desejo do S) como forma de ignorar sua divisão e é esse mecanismo que Lacan vai chamar de
fantasia, formalizando-o no matema $ ◊ a (sujeito dividido em relação ao objeto a). É nessa relação
complexa, que Lacan descreve como “envolvimento-desenvolvimento-conjunção-disjunção”, que o
sujeito obtém uma sensação fantasmática de completude, preenchimento e bem-estar. Assim, é na
escuta da fantasia que o analista percebe como o sujeito gostaria de estar posicionado com relação
ao desejo do Outro.
Para Quinet(16), “a fantasia é o quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do
desejo do outro; é sua forma de tapar cenicamente o furo no Outro (S(A)) – a incompletude do todo
da linguagem - que lhe retorna como castração (-).” Além disso, é uma imagem construída sobre
uma frase, ou seja, ela não é apenas imaginária, mas contem uma estrutura significante. É essa
estrutura significante que vai permitir ao sujeito considerar-se o “diretor da cena”, saindo da mera
condição de alienado, marionete do desejo do Outro.
Criada a cena, é como se ela fosse um quadro que o sujeito põe sobre sua janela. “A
tendência do neurótico é colocar um quadro em sua janela e constituir, assim, a sua realidade a

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partir de sua fantasia sem, no entanto, dar-se conta disso” (16). Seria possível uma paisagem além do
quadro? Ou seja, uma realidade isenta da Fantasia?
Lacan se refere à “travessia da fantasia” como sendo a função da análise: “restabelecer
ao Outro o estatuto do lugar da palavra é o ponto de partida necessário onde cada coisa em nossa
experiência analítica pode retomar seu justo lugar”(17). Em outras palavras: O sujeito assume uma
nova posição em relação ao Outro como linguagem e ao Outro como desejo (14). Entretanto, retirado
o quadro (ou pelo menos deslocado) resta ainda a janela (enquadre imaginário) que por sua vez é
determinada pelo simbólico. Isso confere caráter equívoco à realidade, “pois ela é estruturada com a
equivocidade própria do significante”(16).

O cuidado clinico de enfermagem em saúde mental

A referencia ao termo “cuidado clínico” requer, necessariamente, que explicitemos os


conceitos de cuidado e de clínica a que nos referimos. Historicamente, o cuidar vem sendo tomado
pela enfermagem como sinônimo de acolher o paciente com garantias, sejam elas, garantias de
alimento, de medicação, de sono e privacidade (8). Nessa perspectiva, o enfermeiro situa-se como
aquele que detêm as respostas para as necessidades do outro.
Entendemos que, em saúde mental, faz-se necessário operar um deslocamento desse
lugar de especialista, permitindo ao sujeito se apropriar de suas questões. Sendo assim, propomos
um retorno à origem do termo cuidar que, conforme apontado por Foucault (9) é concebido pelos
gregos como “Epiméleia heautoû”ou “cuidado de si”.
O cuidado de si é primeiramente, uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas,
de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. Em segundo lugar, a epiméleia
heautoû, é também uma certa forma de atenção, de olhar [...] “é preciso converter o olhar, do
exterior, dos outros, do mundo, para si mesmo. Estar atento ao que se pensa e ao que se passa no
pensamento”. Em terceiro lugar também designa algumas ações, “ações que são exercidas de si para
consigo, ações pelas quais assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos
transfiguramos”.
Apesar de compreender uma relação com o outro, este não é o fim do cuidado de si.
Tampouco o agente dessa prática é um outro que vem prestar ajuda ou socorro. O cuidado de si está
relacionado às práticas que o próprio sujeito desenvolve para consigo, visando apropriar-se de si
mesmo, de suas vontades, de seus desejos, de seus apetites. Só assim ele poderia relacionar-se com
os outros, governar, dominar a Pólis. O percurso desse aprendizado deve envolver um outro: o
mestre. Entretanto, sua pedagogia se distancia muito desse ideal da ajuda e do bem-estar. Pelo
contrário, o mestre é aquele responsável por inquietar, por despertar.

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O cuidado de si não está necessariamente pautado por ações de zelo, simpatia ou
afeição. Não se trata de evitar o confronto, eliminar a dor, mas sim, fortalecer a si mesmo para com
ela lidar: O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens,
cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um
princípio de permanente inquietude no curso da vida14.
 Sendo assim, as ações de enfermagem não se restringem, apenas, ao uso do raciocínio

clínico, do diagnóstico, da prescrição de cuidados e da avaliação da terapêutica instituída. Deve

envolver questões que digam respeito às relações que cada um estabelece consigo e com o outro; às

formas que o sujeito encontra de se apropriar de sua história de vida, de seus signos e de seus

sintomas; as maneiras com as quais ele significa a própria vida. Entendemos ser importante realizar

uma articulação entre a história do sujeito e sua constituição subjetiva como ser de linguagem.

Há no entanto, uma razão mais essencial que os paradoxos da história moral: o momento

cartesiano que desqualifica a epiméleia heautoû em favor do gnôthi seautón:

- privilegia o conhecimento de si como forma de consciência colocando a evidência da existência

do sujeito no princípio do acesso ao ser, como acesso fundamental à verdade.

- espiritualidade: não pode haver acesso à verdade sem uma transformação do sujeito, um efeito de

retorno da verdade sobre o sujeito

O autor ressalta que apesar do ocidente ter focado seu interesse no “conhece-te a ti
mesmo” (remetendo a um domínio de si, muito valorizado pelas terapias do eu) o “cuidado de si” é,
ao contrário, um princípio de agitação, de movimento, “de permanente inquietude no curso da
existência”. Trata-se de uma questão das relações que se estabelecem entre o sujeito e a verdade: “a
questão do preço que o sujeito tem que pagar para dizer o verdadeiro e a questão do efeito que tem
sobre o sujeito o fato de que ele disse, de que pode dizer e disse, a verdade sobre si próprio”(9).

Aqui enfatizamos um retorno ao conceito original do termo Kliné, apreendido na


perspectiva de “um ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do
sujeito”(7).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho permitiu uma reflexão em torno das possibilidades que a clínica do
sujeito pode estar contribuindo nesse processo de cuidar clínico, seu significado entre os sujeitos na
relação do cuidado, como também, no respeito ao outro, ao seu saber e à sua condição de
participante nesse processo.
É interessante que a enfermagem trace estratégias para o desenvolvimento de
tecnologias próprias e eficientes, que permitam uma maior qualidade na atuação profissional. Por
isso, é indispensável à interseção dessa ciência tradicional com alguns outros campos do
conhecimento, a fim de possibilitar novas concepções e práticas. Uma das abordagens que se
debruça sobre o sofrimento psíquico e tem a intervenção baseada na potencialização do sujeito, é a
psicanálise.
Na clínica do sujeito, o que importa é a realidade do sujeito, não a realidade em si.
Nessa perspectiva, a escuta passa a ser uma estratégia para o desenvolvimento do cuidado clínico
em enfermagem, enfocando nesse processo a responsabilização do sujeito à medida que esclarece
que cada um possui em si mesmo as respostas de seus problemas.
Acreditamos que o enfermeiro pode estar muito mais sensível para a produção de
conteúdos a partir da fala dos sujeitos, promovendo um cuidado clínico mais comprometido com a
potencialização da vida. Além disso, entendemos que esse assunto não se esgota com este estudo,
tendo em vista a insuficiência de debates sobre o tema na produção de conhecimento da
enfermagem e da clínica do sujeito. No entanto, ao final desta experiência, pudemos perceber que
este estudo pode contribuir de alguma forma para facilitar a busca de caminhos estratégicos para um
agir mais crítico no âmbito do cuidar clínico de enfermagem.

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11) Lacan J. A ciência e a verdade. In: Lacan J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1998d.
p. 869-892.
12) Lacan J. O seminário livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1997.
13) Lacan J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Lacan J. Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1998a. p. 238-325.
14) Fink B. O Sujeito Lacaniano - entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998.
15) Lacan J. O Seminário: angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
16) Quinet A. Um Olhar a mais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2002.
17) Lacan J. Seminario 14 - La logica del fantasma. Mimeografado. (Trabalho original publicado
em 1967).

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