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Uma perspectiva Winnicottiana na pandemia

Dentro da linha da pesquisa psicanalítica, reconhece-se


Winnicott como um herético, por considerar as relações com o
ambiente externo como condição sine qua non no
desenvolvimento maturacional e um fator relevante até o final
da vida. Numa linha da ordem dos limites espaciais e de
complexidade crescente, o ambiente abarca desde o útero da
mãe, a mãe, o pai, a família, escola até a sociedade. A ênfase
desta perspectiva recai sobre como a qualidade do ambiente
pode impactar benignamente aquilo que o indivíduo possui
potencialmente e vem a desenvolver, ou, pelo contrário,
impactar disruptivamente por provocar traumas, interrompendo
este processo. Os efeitos traumáticos por falhas ambientais
serão mais impactantes quanto maior for a dependência do
ambiente em que se expressa a falta de aquisição de recursos
maturacionais do indivíduo ao longo deste processo. Sob este
ponto de vista, esta é a condição do bebê, cujo contexto inicial
deve ser de cuidados absolutos na sustentação, diante da
inexistência natural de recursos de quem ainda nem sabe de si.
Por outro lado, ou seja, o não natural, portanto patológico, seria
a perpetuação de grande dependência, portanto pouca
autonomia, a despeito de um crescimento fisiológico ou mesmo
grandes conquistas da ordem cognitiva.

Submetidos ao fator temporal de extensão, quer seja da


situação pandêmica, quer seja das consequências, justifica-se
articular uma reflexão a respeito de denominadores comuns no
que se refere às condições maturacionais do indivíduo e
respectivas contribuições nas possibilidades de enfrentamento
da situação. Assim, parto desta ideia para entender o que facilita
ou dificulta o enfrentamento da situação pandêmica do
coronavírus.

Entendido dentro da linha maturacional formulada por


Winnicott, o coronavírus seria um evento acidental e externo que
escapa do controle do que pertence ao previsível dentro do
âmbito humano. Uma contingência que remete à ordem do que
se entende como falha ambiental, uma vez que a mudança é
abrupta e rompe a continuidade sustentada e estável das
condições de vida normal. A chegada e difusão do coronavírus
abalam a manutenção das mesmas condições vigentes
anteriormente, no que diz respeito a uma certa normalidade
tanto de circulação em sociedade como de sentimento de
segurança e confiança na globalização, na saúde, na ciência, nas
instituições. Sobretudo, fere a crença incrustada no homem
moderno, que costuma esbravejar do cimo da vida tornada
maximamente previsível e segura no transcurso dos exitosos
séculos da razão.

Em termos psicológicos individuais ou coletivos, a


pandemia, por isso, constitui-se em uma invasão. Nos termos de
Winnicott, um impingment. Em inglês, este termo tem base
etimológica no latim impingere.  Na língua portuguesa, o
significado é daquilo que é impingido, ou seja, o que é aceito
contra a vontade. A falha ambiental é compreendida por
caracterizar uma deprivação, num contexto em que se está
deprivado das condições suficientemente boas anteriores. A
aplicação conceitual, dentro da linha do amadurecimento
emocional de Winnicott, remete ao trauma de uma quebra no
cuidado provisionado pelo ambiente que numa etapa anterior
era satisfatório. Agora, o ambiente falha em sustentar de forma
estável, confiável e previsível e é sentido como perigoso por
oferecer riscos à existência. Se existe a perda da liberdade em
transitar, também existe um padrão constante de perigo
eminente. Assim que, atualmente, em face do coronavírus, há
uma substancial redução espacial, um regresso por ficar em casa
e, no mais, a cumprir determinados rituais higiênicos de cuidado.
Lá fora, como disse uma paciente, fica o bicho papão. Sob
qualquer aspecto que o evento e seus impactos forem
analisados, sabe-se que estarão envolvidos sentimentos
poderosos no sentido da ameaça à segurança e do medo, cuja
intensidade pode alcançar o pânico.

Ainda assim, temos uma situação que perdurará por tempo


indefinido, o que, por si só, também constitui um fator invasivo
pela perpetuação deste sentimento de ameaça. Uma luz no final
do túnel, em termos de descobertas medicinais, ainda está
distante no chegar-se a conclusões e formular-se um dead
line confiável, delimitado, certo, que proveja o retorno à
circulação, trabalho, encontros sociais, festejos, rituais religiosos,
escolas, viagens e tantas outras modalidades em que se compõe
a vida enriquecida em sociedade. Em países menos
desenvolvidos, basicamente mais pobres ou caracteristicamente
desiguais em distribuição de renda, como o Brasil, o quadro é o
mesmo no que tange à completa indiferença de sentido virótica.
Sempre em busca de obter algum controle sobre a segurança
perdida, isto implica em inquietude por vezes preconceituosa ou
pouco empática para os que podem ficar isolados, e de
indignação revoltada para os que não podem, pois encontram-se
na encruzilhada entre morrer de coronavírus ou de fome. Daí o
desdobramento em outras considerações sobre o
enfrentamento que se referem a outros tipos de comorbidade -
a econômica, social, cultural e política. Detêm-se aqui as
questões emocionais, não porque estejam dissociadas das
demais, mas por força da escolha.

A ideia que quero explorar dentro deste quadro


circunstancial é o quanto isto impacta não só o dia a dia objetivo,
mas que, sobretudo, tem desdobramentos bastante agudos em
termos subjetivos. Mesmo que o coronavírus se enquadre no
que é reconhecidamente externo e alheio ao controle humano,
tal como qualquer acidente, como apontado por Winnicott, o
adoecimento, ou mesmo a ameaça do adoecimento pelo vírus, a
mortalidade, ou a aproximação desta experiência última,
configuram-se em dados básicos que necessariamente passam
pela questão da existência individual e das questões corporais,
portanto do psicossoma. O animal humano dota sentido ao que
lhe acontece, e portanto elabora imaginativamente suas funções
vitais. Se a saúde corporal serve como reasseguramento da
saúde emocional, o contrário também é válido. A doença ou o
perigo de adoecimento impactam a saúde emocional.

Seguindo o norte da linha do amadurecimento emocional,


chega-se então à ideia central de uma comorbidade
maturacional, em contraponto ao modo de adaptar-se, ou não, à
situação. Um primeiro momento, algo de temporário em termos
de desorganização emocional ou mesmo de negação, é mais do
que esperado em situações inusitadas. É da ordem do normal
ser afetado por tal situação, e portanto imediatamente existe
uma participação reativa neste enfrentamento. Vale aqui o
contraponto em entender-se, então, aqueles que observa-se
estarem alienados e não afetados pelo evento, uma vez que, na
ordem característica da defesa primitiva que desenvolveram,
encontram-se impermeáveis e isolados ao que acontece em seu
redor. Daí que muitos daqueles que podem ser descritos desta
forma nem se deram conta do evento do coronavírus, pois
continuam em seu isolamento anterior, que os defende de
qualquer alteração ambiental. Neste quadro do espectro das
psicoses mais graves, tudo continuará como antes, desde que
providas as mesmas condições ambientais de cuidados
anteriores. Para além deste quadro emocional extremo,
esperam-se efeitos emocionais que podem ser diferentes, a
depender das condições emocionais individuais. Aqui formula-se
a associação do grau de impacto e reações com o sentido de
comorbidade, ou seja, no que predispõe o indivíduo a
desenvolver outras doenças em meio à epidemia, e por isso
recrudescer o sofrimento e colocar em xeque a capacidade ou
qualidade adaptativa.

A premissa vale-se de um quadro classificatório das


patologias elaborado por Winnicott, sobretudo no que diz
respeito a identificar na pessoa quais são os recursos
maturacionais, existentes ou ausentes, integrados à sua
personalidade de modo a sustentar a adversidade. Um primeiro
critério formula-se tendo como central a ideia de ter-se
conquistado ou não o sentido de individualidade, de sentido de
existência, de reconhecer-se como Um separado do Outro. Esta
conquista é essencial no que se refere às possibilidades de
autonomia e, por consequência, ao não estar colado ou seguir
pautado pelas referências ambientais externas. Significa ter um
mundo interno próprio, e por isso ter uma posição da qual
emanam considerações sobre o que afeta e o que lhe afeta nas
relações com o não eu, o mundo externo. Casos graves
compreendem justamente o não alcance desta posição unitária,
ou distorções nos modos parciais desta conquista, expressos
nos modos entendidos como border line.
Seguindo este critério basal, segue a assertiva a respeito do
indivíduo saudável formulada por Winnicott. Nesta, o indivíduo
saudável é aquele cujo alcance em termos de maturidade
emocional lhe permita adaptar-se a situações de forma
conciliatória, mas preservando a pessoalidade de suas
contribuições. Dentro da situação atual, seria afirmar uma
capacidade construída de adaptar-se à situação imposta pelo
coronavírus, não apenas de forma reativa, mas de modo a
sustentar com autonomia e de modo criativo o ambiente. Daí
trazer no dia a dia contribuições criativas para si, para os seus e
para a sociedade em meio à situação. É possível acompanhar, via
mídia social, um tanto destas produções criativas, quer seja com
humor, com arte, com crítica, com reflexões, e assim por diante.
Mesmo assim, ainda tem aqueles que não participam das redes
mas conservam esta porção criativa ativa em seu dia a dia, não
apregoadas, mas seguidas no cotidiano.

Em oposição, está o indivíduo que reage submetendo-se de


modo reativo passivo. O coronavírus, nestes casos, ganha o
status mor, ou seja, engole a vida. Pouco sobra que não seja
negar, protestar ou reclamar, que, de modo menos direto, ainda
assim expressam a prevalência do que domina a vida sob a
égide do sentimento de ameaça. Entende-se que é possível
esperar de uma deprivação consequências emocionais tais como
organizações defensivas da ordem da tendência antissocial,
depressão ou mesmo sinais de regressão, um ir para trás.

Examinada de forma mais específica, diz-se que a


tendência antissocial constitui a posição do indivíduo que se
manifesta através de um comportamento sem parâmetros
morais ou empáticos, em detrimento da realidade da situação,
por sentir-se prejudicado pelo ambiente. Em suma, o ambiente
lhe deve, portanto segue com as dificuldades de enxergar o que
está em jogo, uma vez absorvido em suas próprias perdas.
Grosso modo, nesta circunstância específica pandêmica, esta
condição abarca o agir de forma a negar o que está
acontecendo, atribuir um sentido maior e ideológico ao vírus em
face da perda ambiental, evocar ou colar num sentido especial
de modo a invocar uma espécie de certeza onipotente, de modo
a reivindicar o ambiente perdido. Crimes e ideologias em todas
as direções-religiosas, políticas, materiais - podem ser as escoras
daquilo que ameaça soçobrar e tudo que se pode engendrar
nesta posição são as reivindicações manifestas sobre a perda
ocorrida. Um exemplo encontro no manifesto de um jovem, de
aproximadamente 30 anos, que afirma categoricamente, em alto
e bom som, como de hábito assegurado em sua irresponsável
manifestação através das mídias sociais, que não lhe importaria
se seus pais e avós morressem infectados do Covid-19, desde
que milhões de brasileiros fossem salvos pelo retorno das
atividades econômicas. Num exame mais acurado desta
afirmativa, depara-se com a posição ideológica desumanizada
deste indivíduo, que se diz disposto a sacrificar seus familiares
em razão de milhares de desconhecidos. Ainda mais, perde sua
própria humanidade (ou nunca teve?). Afinal, quem foi que
garantiu a ele que não será uma vítima?

Aqueles que normalmente seguem suas vidas, mas reagem


depressivamente, podem ter origens diferentes no que diz
respeito às suas reações emocionais. Podem deprimir pelo
sofrimento e rebaixar a própria vitalidade, imersos em conflitos
diante das perdas substanciais provocadas pelo coronavírus.
Vivem com dificuldades de administrar a raiva de tudo o que a
situação impõe - a perda do trabalho, a redução espacial da
liberdade, o confinamento familiar, a perda dos encontros
sociais, a perda cultural, e assim por diante. Enfim, reagem muito
mais compativelmente ao que significa perder algo, e por entrar
em conflito com a parte que lhes toca sobre a condução das
coisas, e por isto sofrerem. Podem, assim, reagir com um humor
deprimido ou entrar num processo de luto que com o tempo,
pode ser redimido. Outros, no entanto, mais dentro daquela
parcela populacional dos 10% dos anteriormente deprimidos
aferida pela OMS, podem circunstancialmente sucumbir num
processo mais recrudescido de depressão. O coronavírus pode
ser alçado à comprovação de que nada faz sentido na vida, uma
confirmação da formulação desesperançada e melancólica de
quem anteriormente suspeitava disto. O mundo é mau.
Sintomas hipocondríacos de todas as ordens, ou mesmo
acompanhando os sintomas fisiológicos característicos do vírus,
podem se manifestar expressando o drama da batalha interna
emocional entre o bem e o mal. Nestes casos, a hipocondria
pode recrudescer, pois pega carona no coronavírus, e por isso
ganha realidade no que é sentido difusamente em tempos mais
normais. Alguns, espantosamente, podem ter uma reação
inversa. Uma reação oriunda da confirmação profética: eu sabia
disto! Sabem muito mais como lidar com a situação e melhoram
de humor à medida que veem confirmadas suas suspeitas. Lars
Von Triers exemplifica isto em seu filme “Melancolia”.

Sobre a regressão, em termos gerais, a situação fala de uma


regressão ao início, onde tudo começou. Tudo começa em casa
como diz Winnicott, e é para a segurança do lar que se retorna
(deixo aqui de lado todas as considerações a respeito da
qualidade existente ou não deste lar). Também é reconhecível o
quanto esta circunstância especial remete à volta a uma posição
emocional mais regredida, em que se deposita confiança e
esperança na liderança científica e governamental no traçar
estratégias organizadoras, orientadoras e diretivas do que deve
ser feito. Grosso modo, retoma-se algo de uma relação com o
que se espera do pai cuidador. A diferença no nível desta
regressão generalizada repousa individualmente na existência
ou não de uma bússola interna, a tal da posição no que se refere
aos ditames da condução da própria vida. Mesmo consideradas
as opiniões, diretrizes, orientações, os modos de isolar-se, tomar
os devidos cuidados ou retomar a circulação são absolutamente
pessoais. Caso contrário, o que se vê manifestado na colagem
sem filtro pessoal, é a transferência da administração do
sentimento de pânico depositado na autoridade externa. A
regressão a uma dependência infantil refere-se à busca pelo
sentimento de segurança provisionada no ambiente externo.
Ainda que este não seja o assunto aqui tratado, pode-se inferir o
quão perigosos podem ser os desdobramentos de depositar na
autoridade o controle e monitoramento da situação, sem a
modulação autônoma parcialmente ativa na sustentação das
próprias decisões.

Importante deste quadro de referências aqui brevemente


traçado é compreender que as modificações ambientais
implicam e requisitam o uso de recursos que em tempos
normais podem não ser necessários, ou também não ser
considerados saudáveis. Nada é linear no que tange aos
inúmeros fatores e aspectos que compõem e atuam num ser
humano.

Danit Zeava Falbel Pondé

Psicanalista, mestre e doutora em filosofia da psicanálise e coordenadora


do grupo de pesquisa A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade
no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São
Paulo/PUC-SP – LABÔ.

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