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15/03/2024, 17:53 UNINTER

INTRODUÇÃO À PSICANÁLISE
AULA 6

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Profª Giseli Cipriano Rodacoski

CONVERSA INICIAL

Olá! Anteriormente, falamos sobre algumas das definições de psicanálise, as regras fundamentais

do método psicanalítico, a concepção de aparelho psíquico e as linhas de progresso em terapia

psicanalítica, considerando a possibilidade de os pacientes terem autonomia ou fragilidade

emocional. A partir de então, podemos pensar no limite da psicanálise como método clássico e

entender algumas de suas interfaces com outros métodos terapêuticos e com as linhas assumidas por

psicanalistas pós-freudianos.

Na aula de hoje, vamos analisar alguns exemplos práticos, com situações da vida cotidiana e

relacionar com a teoria e o método psicanalítico com o objetivo de diferenciar e definir limites da

psicanálise, ou seja, saber o que caracteriza e o que descaracteriza o método psicanalítico e quais são

as premissas fundamentais da psicanálise.

TEMA 1 – A EXPERIÊNCIA DO DESAMPARO

Costumamos perguntar aos outros: com o que você trabalha? Um psicanalista poderia responder,

entre outras coisas, que trabalha com a questão do desamparo das pessoas. São muitos os exemplos
que podemos utilizar aqui para ilustrar o mal-estar decorrente da vivência, sensação ou do medo do

desamparo.

Quando as pessoas se percebem vulneráveis, impotentes diante de uma situação que não
conseguem controlar, geralmente, se referem a esse mal-estar (sensação de desamparo) como
ansiedade ou angústia. Há um medo na pessoa de ser tão insignificante a ponto de ser descartada,

desnecessária e indesejada. Situações como essa se apresentam na vida cotidiana em diferentes


intensidades, tais como:

tenho medo de ser traído(a), abandonado(a);

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as pessoas com quem convivo não são de confiança – na verdade, me sinto sozinho(a);

posso perder o emprego, pois sinto que não tenho valor nessa empresa;
não conseguirei ser aprovado(a) nesse exame;

eles não lembraram de me chamar, não sentiram a minha falta;

parece que o mundo está indo e eu estou ficando para trás; e

minha vida acabou, não tenho (ou não sou) mais nada.

A sensação relatada pelas pessoas é decorrente da experiência de insignificância, de não ser

capaz, de não ser útil, de não ser preferido ou suficientemente amado.

Para evitar essa sensação de mal-estar, o nosso aparelho psíquico reage de forma adaptativa,

para manter a sua integridade e recuperar a homeostase – dito de outra maneira, são reações

psíquicas saudáveis para a sobrevivência psíquica e serão mais bem estudadas em temas como

constituição do sujeito e em mecanismos de defesa.

No entanto, considerando as sequências de coisas que se sucedem (as vicissitudes) ao longo do

desenvolvimento, as reações psíquicas podem levar a uma estruturação mais saudável ou menos

saudável do sujeito, por exemplo, uma psicose.

Todos temos experiência de desamparo, por isso costumamos dizer que as personalidades

neuróticas são as mais típicas, ou seja, neurotípicas. São aquelas personalidades que sofrem a questão
do desamparo, se percebem vulneráveis, sabem de seus limites, inquietam-se pelas suas inseguranças

e buscam constantemente a minimização de um mal-estar. Dito de outra maneira, anseiam por

recuperar aquela sensação deliciosa de amparo.

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Crédito: Bowen Clausen Photography/Shutterstock.

Mas em que momento de vida o amparo foi percebido pelo ser humano como algo importante,

necessário e desejado? Ao observar os bebês recém-nascidos, podemos constatar que eles só

sobrevivem porque são amparados por alguém, mas também podemos observar que eles, os bebês,

não têm a menor noção dessa dependência.

Ou seja, eles não percebem nada no mundo além do seu próprio corpo e das suas próprias

sensações. Ainda que os bebês se alimentem no seio materno ou sejam segurados no colo por um

adulto, que tenham todas as suas necessidades atendidas por um outro ser humano, eles não são

gratos por isso. Pelo contrário, eles consideram que são autossuficientes e nem percebem que existe

um mundo inteiro além do seu próprio corpo.

Então, vamos recuperar aquela pergunta: em que momento de vida o amparo foi percebido pelo
ser humano como algo importante, necessário e desejado?

Com base na teoria psicanalítica, apenas quando o bebê começa a perceber que existe um
mundo externo (além do seu próprio mundo interno) é que essa sensação de desamparo se instala.

Há uma desilusão com relação à autossuficiência e com o outro, que não é capaz de lhe garantir a
condição de ausência de tensões. O princípio da realidade se impõe ao princípio do prazer.

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Crédito: anythings/Shutterstock.

Crédito: Daniel Cozma/Shutterstock.

Esse primeiro período, da ilusão de ser tudo, de ser autossuficiente, termina justamente quando o
bebê percebe que ele não é total, que existe um mundo externo, que ele depende do outro e que ele

não consegue controlar esse outro.

Percebam que essa experiência é bem semelhante às queixas dos adultos nos exemplos dados:
sensação de ser vulnerável, impotente diante de uma situação que não consegue controlar.

TEMA 2 – TRAUMA OU CONDIÇÃO HUMANA?


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As primeiras experiências infantis têm um efeito de trauma ao longo da vida, mas a experiência

com o desamparo não é vivida apenas uma vez durante o período infantil. O desamparo é

inicialmente percebido naquele período, mas acompanha o ser humano durante toda a vida.

Pode ser que você já tenha ouvido a expressão "trauma do nascimento". Mas que trauma é esse?
Podemos considerar o quanto de desprazer está envolvido no processo de sair do útero materno, ser

exposto à luz, ter oxigênio expandindo os pulmões e toda a estranheza da estimulação tátil-
cinestésica no corpinho do bebê recém-nascido.

Lacan, em 1949, escreveu sobre o processo que se dá entre a imaturidade biológica ao

nascimento até a constituição do psiquismo. Esse tema é extenso e requer dedicação exclusiva para

abordagem detalhada no estudo sobre a constituição do sujeito.

Na teoria sobre o Estádio do Espelho (Lacan, 1949; Lacan 1953-1954), podemos compreender a

concepção lacaniana sobre a metamorfose no mundo interno do bebê desde a angústia do

despedaçamento ao nascer até a integração de sua imagem corporal. E em psicanálise não se está

dando ênfase à concepção cognitiva de se reconhecer diante de um espelho, e sim de saber quem se

é diante do outro.

São muitas as experiências de desamparo que se dão em meio a situações de amparo, de modo

que, ao longo da vida, a relação é de ambivalência, tanto em relação às emoções, amor e ódio,
quanto nas relações com o outro: autonomia e dependência.

A condição humana é de vulnerabilidade, considerando as questões de finitude e fragilidade,


basta ser humano para ser vulnerável. Sanches (2018) parte da premissa de que as questões que nos

tornam vulneráveis são comuns a todos, no entanto, quando há exposição permanente a riscos, em
relação aos quais a pessoa não pode se defender, ela passa a ser não apenas vulnerável, mas também

vulnerada.

Isso é o que acontece com alguns grupos afetados diretamente por circunstâncias desfavoráveis,
tais como: pobreza, falta de educação, dificuldades geográficas, doenças crônicas, violência e outros
infortúnios que os tornam ainda mais vulneráveis, sendo esse um tema atual de bastante relevância

social que tem sido muito publicado em bioética:

Identificar o processo de vulneração que transforma vulneráveis em “vulnerados” é o primeiro passo

para impedir que passem da condição de ser vulnerável para a situação de estar vulnerável, o que

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exige compreensão ampla sobre instâncias e fatores como Estado, comunidade, sistemas

econômicos e sociais, cultura e a própria moralidade vigente no contexto em que se expressa a


vulnerabilidade. Todos esses fatores podem colocar o indivíduo ou o grupo em situação de

vulnerabilidade concreta. Portanto, do ponto de vista científico, a compreensão sobre o processo de


vulneração exige esforço interdisciplinar entre diversas áreas, incluindo as ciências da saúde, sociais

e humanas. (Sanches et al., 2018, p. 40)

O psicanalista precisa ter habilidade de análise social para compreender os determinantes do

desamparo, se são estruturantes do psiquismo do sujeito ou se são fatores de risco que não levam a

emancipação do sujeito, e sim à sua aniquilação.

Falando especificamente da vulnerabilidade e do desamparo que na constituição do sujeito é

estruturante, podemos estudar em Winnicott com mais profundidade a relevância do cuidado

materno primário, especialmente no entendimento do conceito de "mãe suficientemente boa"

caracterizada pela função da pessoa que oferece oportunamente ao bebê o que ele precisa, mas

também falha e se corrige continuamente: "comunicação do amor, assentada pelo fato de haver ali

um ser humano que se preocupa" (Winnicott, 2006, p. 87).

Não se trata de uma mãe boazinha ao bebê afastando-se de si, mas, sim, de se apresentar como

mãe sem deixar de ser mulher, na medida em que a mãe também é vulnerável, tem falhas, é filha, tem

desamparos, emoções ambivalentes de amor e ódio, mas que se preocupa e se volta ao bebê

tomando-o como parte do mundo dela e, desta forma, emprestando a esse pequeno ser um mundo

externo que ele ainda não tem, até que possa ter.

Por outro lado, falando da vulnerabilidade social como conceito estudado pela bioética (Sanches

et al., 2018), a díade mãe-bebê pode não ter a proteção social necessária para viver esse drama
normal da maternagem, que, por si só, já é um fator de estresse para o psiquismo do ser humano.
Estas são questões importantes a considerar quando pensamos nos limites e interfaces da psicanálise.

TEMA 3 – DESAMPARO ESTRUTURAL E SOCIAL

Se o psicanalista trabalha com a análise do inconsciente, de que maneira poderia se ocupar do

desamparo e da vulnerabilidade social, da negligência do poder público e de outras questões


coletivas?

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Quando pensamos que as experiências significativas infantis tendem a ser introjetadas e

repetidas ao longo da vida, podemos supor que entendam que a precariedade do cuidado é uma

condição existencial, ou seja, que é assim mesmo. É possível que uma pessoa repita no social aquele

padrão que viveu na sua experiência singular com as figuras parentais e, desta forma, não vai

estranhar a violência social quando já está identificada com o lugar de ser violentada. Muitas vezes,

naturalizando ou ainda romantizando essa condição: "meu pai me batia e eu não morri, isso só me

deixou mais forte".

É importante pensar a questão do desamparo sob todos os ângulos. O desamparo estrutural,

vital, processual na constituição do sujeito; e o desamparo social que é repetido em diversos âmbitos
ao longo da vida, muitas vezes como forma de elaboração do desamparo estrutural malsucedido.

Podemos observar exemplos de desamparo social somados a desamparos estruturais em que o

que resulta como sintoma é a não capacidade de escuta, a massificação, negação da subjetividade e

da singularidade que levam frequentemente à marginalização e segregação social.

O artigo "Branco sobre o branco: psicanálise, educação especial inclusão escolar" (Vasques, 2018)

relata um exemplo de situação do cotidiano escolar em que a perspectiva psicanalítica ampliou as

possibilidades em que antes havia limites na ação pedagógica para inclusão e escolarização de

crianças com autismo e psicose.

A psicanálise há muito tempo abandonou a busca pela cura, pois essa busca atendia muito mais

ao desejo de satisfação do analista do que beneficiava os pacientes. Tampouco a psicanálise se ocupa


de facilitar ou obter ajustamentos, adaptações sociais e sensação de bem-estar.

A essência da psicanálise é ouvir, dar voz, tratar o outro como um sujeito de direitos. Vamos a um
exemplo prático:

Um garoto de 8 anos estava em consulta médica ambulatorial no hospital pediátrico, com sua

mãe, pois iria ser internado nos próximos dias para submeter-se a uma cirurgia no aparelho digestivo.

Muito inteligente, atento, educado, adequado e receptivo, o garoto cumprimentou o médico,

sentou-se no consultório ao lado de sua mãe e participou passivamente da consulta onde foi tratado
sobre seu caso, mas apenas sua mãe e o médico falaram. A ele foram direcionadas poucas perguntas

em que a resposta era apenas sim ou não. Você está com frio, quer que desligue o ar-condicionado? E
mesmo quando lhe explicavam alguma coisa ao final o médico perguntava: ficou claro, você

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entendeu? E ele dizia que sim, pois de fato havia entendido, apesar de ter outras perguntas que não

eram o tema do momento.

Ao final do atendimento médico, como parte do protocolo, o garoto foi encaminhado ao

psicoterapeuta que logo depois das apresentações pessoais e acolhimento na sala de atendimento,
lhe fez as seguintes perguntas:

Psic.: O que você veio fazer no hospital?

Paciente: Vou fazer uma cirurgia.

Psic.: E como será?

Paciente: Não sei, o médico explicou agora, mas eu estava com a cabeça lotada e não consegui

guardar.

Percebam que a atenção hospitalar por muito tempo foi feita dessa maneira Iatrogênica, por ser

biomédico, ou seja, com foco no corpo biológico com comunicações racionais sobre as condutas.

Atualmente, a atenção à saúde mental tem sido cada vez mais considerada e indispensável e

tanto nos hospitais, nas escolas, em empresas e em outras instituições, a capacidade de escuta da

subjetividade tem sido garantida.

Quando pensamos que as pessoas querem saber de coisas, nós oferecemos um monte de

informações a elas. No exemplo anterior, fica claro que em momentos de medo, ansiedade e

apreensão, como no caso de um período pré-cirurgia, é importante dar vazão ao que a pessoa pensa

sobre as coisas, para então o médico validar o que está de acordo com o processo e/ou apresentar
fatos novos para preencher as lacunas que fossem demandas do sujeito desejante.

A formação e atuação interprofissional tem potência para transformar as habilidades de

comunicação dos profissionais por meio da troca de saberes e práticas, e a psicanálise tem muito a
contribuir para melhorar a qualidade da prestação de serviços especialmente na área jurídica, da

saúde e educação.

Desta maneira, o psicanalista pode contribuir para induzir a formação de laços sociais, de ampliar

a capacidade de escuta e consideração da subjetividade em todos os contextos de atuação.

TEMA 4 – COERÊNCIA DO ANALISTA

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A preocupação em resolver o problema é uma ansiedade perigosa que pode levar o terapeuta a

atuações racionais, diretivas e relacionadas com outros métodos que não os psicanalíticos.

Deixa de ser psicanálise quando não se respeita a associação livre, quando o "psicanalista"

assume o comando e faz orientações, direciona o diálogo, dá conselhos e julga condutas, quando dá
sentido e significado à experiência do paciente sem que tenha sido um processo de elaboração do

próprio paciente.

Mas por que o "psicanalista" faz isso? Sem dúvida, o faz por um processo insuficiente de análise

pessoal. Tem muitas coisas que na vida a gente sabe que não deve fazer, mas faz mesmo assim. Isso

mostra o quanto o saber teórico não é suficiente para determinar uma conduta.

Isso não quer dizer que as terapias diretivas estão erradas, pelo contrário. As terapias diretivas

são necessárias e relevantes, no entanto, não são psicanálise. Os efeitos da Terapia Cognitivo

Comportamental (TCC) têm sido publicados como evidências científicas e devemos reconhecer com

um método terapêutico válido e eficaz, mas é diferente da psicanálise.

Quando o terapeuta se diz psicanalista, é preciso ser fiel ao método psicanalítico. Assim como

Freud, que era médico neurologista e psicanalista, sentiu necessidade de deixar de se apresentar

como médico neurologista para assumir sua identidade de psicanalista, pois o método de intervenção

da neurologia e da psicanálise são distintos, assim como o são os métodos da psicanálise e das
demais psicoterapias.

Regras fundamentais da psicanálise:


Associação Livre (para o paciente); e

Atenção Flutuante (para o psicanalista).


Conceitos fundamentais da psicanálise:

Inconsciente;
Repetição;

Transferência; e
Pulsão.

Formação do Analista:
Estudos teóricos;

Análise pessoal; e
Supervisão da prática clínica.

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TEMA 5 – PSICANÁLISE SELVAGEM

O principal instrumento de trabalho do psicanalista é o seu próprio aparelho psíquico, por isso é
indispensável o processo de análise pessoal para que o analista não pratique uma psicanálise

selvagem.

Na tradução pela editora Imago no Brasil, a expressão ficou "Psicanálise Silvestre", no entanto,

não atende ao que se espera expressar no texto original de Freud, conforme pode ser compreendido

pela leitura do artigo na íntegra (Freud, 1910/1986, p. 205-213), em que Freud apresenta exemplos de

situações clínicas em que o psicanalista faz intervenções dizendo coisas à paciente com base em sua

própria motivação e necessidade e, com isso, comete erros técnicos.

Em um dos exemplos, Freud relata o caso de um jovem médico que disse à paciente que a causa
da ansiedade era a falta de satisfação sexual e lhe recomendou três maneiras de tratamento: "ela

devia ou voltar para o marido, ou ter um amante, ou obter satisfação consigo mesma". Freud

considera que, no caso citado, o doutor compreendeu mal as teorias psicanalíticas e ainda

demonstrou que o sentido que ele tem de "vida sexual" é popular, significa necessidade de coito e

produção de orgasmo (Freud, 1910/1986, p. 207).

Freud também adverte ao fato de alguns psicanalistas entenderem que é preciso explicar coisas

ao paciente:

É ideia há muito superada, e que se funda em aparências superficiais, a de que o paciente sofre de
uma espécie de ignorância, e que se alguém consegue remover esta ignorância dando a ele a

informação (acerca da conexão causal de sua doença com sua vida, acerca de suas experiências de
meninice, e assim por diante) ele deve recuperar-se. (Freud, 1910/1986, p. 211)

Apenas no trecho citado anteriormente já podemos identificar algo bastante recorrente

atualmente e que comprometem o método psicanalítico. Alguns terapeutas se sentem tentados a dar
palestras ao paciente durante a sessão. Caracterizando o fato de situações em que mais o terapeuta

fala do que o paciente. E o fazem apresentando relações de causa e efeito: “isso acontece hoje por
causa daquela situação na infância”.

Situações de certezas, explicações racionais, curas por meio de uma ou outra devoção distanciam
a terapia do método psicanalítico, pois demonstram a intencionalidade de livrar o sujeito do mal-

estar, oferecendo algo que complete a sua falta, enquanto a intencionalidade da psicanálise é
justamente ser capaz de suportar a falta.
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A função adaptativa do ser humano leva a buscar algo que complete a falta, e essa tentativa de

cura pode levar o ser humano a idealizar, se identificar com o que considera ideal e entregar-se a uma

relação que seja complementar, protetiva e poderosa, para compensar a fragilidade do eu. Lacan

criou a expressão "Nome do Pai" para se referir ao significante ordenador de outros significantes em

cadeia, desempenha o papel da Lei.

O Nome do pai é um operador psíquico do qual o neurótico pôde se servir em sua constituição
(Lustoza, 2018, p. 332). Como função estruturante, faz parte da constituição do sujeito, no entanto,

quando patológico, como sintoma, impõe limites à vida do sujeito que se sente preso a uma relação

de dependência.

Idealizar algo, uma história ou alguém, e se identificar à imagem e semelhança deste, é muito

gostoso. Nos dá uma filiação, um aconchego, uma sensação de segurança por ser protegido por algo

ou alguém poderoso que não tem defeitos nem falhas e, por isso, nunca irá nos faltar.

Se considerarmos a função de acolhimento, de holding, alinhado ao que entendemos por ética

do cuidado, é muito bom ter um protetor assim. A máxima dessa experiência é entregar teu destino à

Deus. É algo reconfortante, acolhedor, apaziguador, que nos abranda a dor de uma ferida aberta que

dói cada vez que nos percebemos incapazes, indefesos, pequenos. Deus é um pai que não abandona.

Outra situação a ser considerada é que nem todas as pessoas têm a mesma relação com Deus,
com as coisas e pessoas das quais dependem ou idealizam. É um erro técnico o psicanalista levar para

a sessão que Deus é amor, porque aquele paciente pode ter outra história com Deus. Não nos cabe
sair em defesa de Deus, ou dos pais, mas, sim, analisar o que levou àquelas representações na história

de vida do paciente. De modo que não faz nenhum sentido dar conselhos e nem aulas sobre o que
consideramos ser "o mais certo".

A psicanálise se ocupará de analisar a construção de significantes. O curso que você está fazendo,
para o qual se matriculou, é um significante. Que lugar tem a psicanálise (como significante) na sua

história de vida?

Nossa vida é sempre uma busca, não há mal nenhum em ser assim. Há risco! Podemos eleger

como cura algo ou alguém nocivo. Mas o que importa saber aqui, na condição de futuros
psicanalistas, é que tudo isso é apenas a parte de nadar contra a maré, ou seja, a luta por encontrar

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algum modo de vida que nos afaste da sensação de desamparo. São defesas, ou nosso modo de

sobreviver psiquicamente.

Sugerimos aqui a observação do discurso das pessoas ao relatarem sobre as suas motivações

para fortalecer a relação com Deus. Geralmente, são narcísicas: eu quero me sentir bem, eu quero
proteção, eu quero a graça de ... E em seguindo esse Ser Ideal, ele nos manda amar o próximo. Ou

seja, você pede que eu te ame, e eu digo que você vai alcançar essa sensação amando o próximo.

Isso nos remete ao que Freud escreveu no texto "Sobre o Narcisismo: Uma Introdução" (Freud,

1914/1986, p. 101): "Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último

recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se,

em consequência da frustração, formos incapazes de amar".

Há de se fazer uma leitura crítica e não dogmática da relação entre psicanálise e religiões, pois

podemos cometer o erro de identificar apenas afinidades ou apenas diversidades quando o que há

são pontos convergentes e outros divergentes.

Também é preciso contextualizar, se estamos falando do Antigo ou do Novo Testamento e se

estamos falando da psicanálise de 1900 ou da psicanálise contemporânea. Isso porque o Deus do

Novo Testamento é muito mais acolhedor do que era no Antigo Testamento, e a psicanálise de 1900

se destinava apenas a pacientes neuróticos, ao passo que atualmente temos psicanalistas atuando
com acolhimento em processos de luto, em prevenção do suicídio e em atendimentos de casos de

perversão e psicoses.

O que não mudou na psicanálise foi a direção de cura. Tanto quanto possível, o sujeito será

confrontado com sua condição e deverá assumir sua autonomia e emancipação. Ainda que em
algumas situações sejam amparadas a sua desorganização: Função de holding, na clínica em

Winnicott. Função continente do analista, na clínica em Bion.

Mesmo respeitados e acolhidos, como processo psicoterapêutico, o desamparo e a dependência


não devem ser reforçados. Em algumas situações, os pacientes podem falar coisas como: "Se não
fosse pelo senhor, doutor, eu não sei o que seria de mim de mim. O senhor é tudo para mim"; "Vou

entregar minha vida a Deus e esperar, pois o meu destino pertence a ele e eu não posso nada.".

Ou pelo narcisismo do analista que poderia fazê-lo atuar no sentido de estimular ser idealizado e
elogiado pelo paciente, ou pela devoção a um Deus-Pai que tudo provê aos seus filhos, o psicanalista

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ao reforçar as afirmações do paciente, poderia obter como resultado a diminuição da ansiedade do

paciente, que sairia feliz do consultório. Mas isso também não é psicanálise! É um erro técnico do

psicanalista a sugestão de defesas, apesar de ser este um método de outras psicoterapias.

A relação entre psicanálise e as religiões só é convergente até um ponto, pois se para a religião a
cura está na entrega e fidelidade, para a psicanálise a cura está em suportar o desamparo para então

assumir-se. Identificar-se com um Deus superpoderoso é confortável, necessário, estruturante, mas


mantém a pessoa na zona de conforto de ter a segurança do apego e da proteção. Ou seja, faz parte

do processo, mas fica no meio do caminho.

A proposta da psicanálise é ir além. Não é possível curar a angústia, pois ela é a própria pulsão

que não nos permite a zona de conforto da proteção e nos impele ao movimento de busca. Um dito

popular sobre esse movimento pulsional é: “É na crise que se cresce".

A religião tem uma função social e cultural de dar sentido à existência e é necessária e saudável

para a saúde mental das pessoas. No seu sentido mais extenso, religião tem a função de religar, de

unir, de vincular.

Podemos compreender que todos estamos vinculados a uma história, fazemos parte de um

percurso, somos seres sociais, constituímos uma teia de acontecimentos e essa condição nos coloca

em uma relação de irmandade. Temos ancestrais e descendentes. Somos parte disso e por esse ponto
de vista podemos nos sentir pertencendo a algo maior, que nos deu origem, que nos determina e,

neste contexto, também somos determinantes do futuro. Essa reflexão é inclusiva porque faz sentido
para todas as religiões. Quando há segregação entre as religiões, o sentido de religar já fica

comprometido.

A todo momento, a ânsia pelo prazer busca voltar ao primordial, ao que é igual, comum, ao que

não tem conflito, mas tanto na vida cotidiana quanto nas religiões e na psicanálise o conflito existe,
pois ele constitui a existência humana.

A psicanálise como método não almeja a homeostase, mas, sim, a compreensão do que dói, do
que amarra, do que leva à compulsão pela repetição, do que compromete, vai analisar o significante,

monitorar os mecanismos de defesa, enfrentar o medo de encarar o desamparo, pois apostamos que
o medo impede a travessia e a emancipação se dá apenas pela travessia.

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NA PRÁTICA

Para evitar o desprazer decorrente da sensação do desamparo na vida diária, costumamos

romantizar as experiências difíceis. Ao final de um ano difícil, costumamos ver “memes” relacionando

o sobrevivente de um ano difícil e pandêmico a um herói.

Ao passar pela experiência de gestação, parto e puerpério, a mulher com o filho nos braços que

só lhe demanda sem nada reconhecer costuma orgulhar-se de ser mãe com a clássica frase: "ser mãe

é padecer no paraíso".

Essa romantização ajuda a simbolizar a dura realidade de ter que dar sem ter. Realidade esta que
pode ser assistida no filme "A Filha Perdida", protagonizado pela atriz Olivia Colman, no papel de

Leda, mãe de 2 filhas. O filme retrata os aspectos agressivos da maternidade habitualmente inibidos
por ação da repressão cultural, que, no lugar, enaltece a mãe e a maternidade a um lugar mágico,

romântico e sublime.

Como estamos em um momento introdutório aos temas psicanalíticos, sugerimos uma

interpretação do filme sem os termos técnicos da área, apenas com a análise crítica do papel social e

ambivalente da maternidade na relação com os filhos. Disponível em: <https://www.youtube.com/wat

ch?v=1hMTU3senks>. Acesso em: 21 jan. 2021.

Neste exemplo prático, podemos relacionar vários conteúdos desta aula, especialmente a

questão do desamparo, tanto vivida pelas crianças quanto pelas mães. Com isso, podemos
compreender que o impulso por sair e não se haver com a situação que leva à experiência do
desamparo é uma tensão que mobiliza a conduta e que só não a ativa por ação repressora do

superego e medição do ego: culpa, reparação.

FINALIZANDO

A psicanálise tem uma intencionalidade e um método. Para ser um psicanalista, este método, que
não se dissocia da teoria, precisa ser coerente e, portanto, é fundamental que se conheça os

fundamentos da técnica e os discuta criticamente, pois eles só podem ser compreendidos se forem
considerados em sua construção história.

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Nesta aula, foram apresentadas reflexões críticas sobre desamparo e idealizações, como reações

psíquicas ao desamparo, e o papel do analista que, se fiel ao método psicanalítico, faz com o paciente

uma travessia que passa pelo medo de enfrentar o desamparo até que, passada a zona do

desconhecido, alcance uma nova condição que o torne capaz de assumir-se mesmo com suas falhas.

E se não, ficará no meio do caminho, reforçando defesas e resistências, buscando adaptações

para diminuir ansiedade e recuperar o bem-estar, mas, neste caso, não exercerá o método
psicanalítico.

E, ainda, algo iatrogênico, ou seja, que na tentativa de fazer o bem pode provocar o mal. É o

exercício do que Freud chamou de Psicanálise Selvagem, que acontece quando o analista não fez seu

próprio processo de análise pessoal. E a angústia do paciente o angustia, e, em relação transferencial,

o analista, em total erro técnico, é agressivo com o paciente por meio de intervenções

preconceituosas, irônicas ou sádicas, que podem causar extremo prejuízo à saúde mental das pessoas

que nele confiaram.

A psicanálise tem regras fundamentais, minimamente: associação livre e atenção flutuante e,

apesar de não ter regulamentação legal no Brasil para o exercício da ocupação do analista, há uma

tradição ética em respeitar o tripé para o processo de formação do analista, sendo indispensável que

se tenha aprofundamento nos estudos de textos clássicos e contemporâneos, que se invista em

análise pessoa, pois o aparelho psíquico do analista é o seu principal instrumento de trabalho, e que,

ao iniciar a prática clínica, submeta seus atendimentos à supervisão com um psicanalista mais
experiente.

REFERÊNCIAS

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