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A SAÚDE PSICOMOTORA

Ricardo C. S. Alves
Rio de Janeiro, 2020.

A Psicomotricidade é uma área que tem como objeto de estudo o ser


humano em sua integralidade, por isso, já se diferencia da maioria das
áreas que se ocupam da saúde desse ser humano.

As abordagens da maioria das áreas da saúde são pela via orgânica,


pelo corpo anatômico, e não pelo ser humano como um todo, daí a
grande diferença entre essas áreas e a Psicomotricidade.

Não é simples entender isso, pois vivemos há séculos, num mundo


dualista, que não só distingue o ser humano em partes, mas também o
separa da natureza.

Não é fácil pensar em integralidade, quando em nosso DNA, está


impresso um cartesianismo. Não é fácil entender a saúde com uma
possibilidade de integralidade, quando ela se traduz em bio-psico-
socio-motor, enfim, em um sujeito esquartejado pelos serviços sociais,
educacionais e de saúde em nossa cultura.

Levin (p. 28 1997), um grande amigo e Psicomotricista nos diz em uma


de suas obras que “o motor por sí só não estabelece laço social. Não
há desenvolvimento fora do discurso, justamente porque não há
estrutura”. Portanto, o caminho de investimento no sujeito para uma
saúde integral, passa pelo entendimento do que seja este sujeito,
como acontece sua construção em função de sua integralidade.

Sabemos que a noção de unidade corporal não é inata. O bebê nasce


fragmentado em seus campos sensorial e motor. O outro é quem
unifica esse órgão (o novo ser bebê), une e humaniza esses fragmentos
e aos poucos vai dando um sentido a esse corpo.

Para a Psicomotricidade, nesse corpo fragmentado, há um


aparecimento gradativo de um sujeito, em sua dimensão dramática,
subjetivante, onde o aspecto sensório motor é estimulado em
gestualidade e cenas de organização motora com o outro. Ele recebe
por vias aferentes, os estímulos externos e internos, mas não consegue
responder, pois as vias eferentes não estão amadurecidas e por isso
não tem uma resposta e sim apenas reações.

Quem unifica esse aparelho sensório-motor fragmentado em sua


origem é o OUTRO, denominado inicialmente de função materna e logo
depois de função paterna. Trata-se por isso, de um processo educativo
vivenciado por todos os envolvidos, numa poesia melódica que
inaugura ao mesmo tempo, UM FILHO, UMA MÃE E UM PAI.

Esse outro irá antecipar um sujeito que ainda não existe, está
fragmentado, irá gradativamente inventando saberes que darão um
sentido aos movimentos desse bebê, ou seja, o bebê vai se tornando
um portador de um suposto saber, subjetivado nas cenas relacionais
dele com o outro. Este processo educativo de ambos – o bebê e o
outro, onde um educa uma filiação e o outro educa uma maternagem,
é composto de linguagens resignificadas a cada instante, em cada cena
de forma transgeracional.

Nessa unificação do aparelho sensório-motor o prazer, o lúdico, a arte,


devem ser estimulados no bebê, pois caso contrário, todas essas
atividades humanas podem não ser reconhecidas por esse sujeito em
seu amadurecimento.

A unificação desses fragmentos é mantida por uma repetição de


movimentos, cenas e contatos, e é exatamente essa repetição, que
causa a naturalização da experiência. O processo educativo tem
significado então, quando vai ficando natural para a criança aquele
gesto, ou um comportamento.

Nós frequentemente nos esquecemos de que não somos uma síntese


bioquímica, que há muito mais coisas em nossa composição, como
saudade, desejo, dor, afeto, etc. e quando deixamos de significar,
associar, ou refletir, saímos do humano gradativamente. Por outro
lado, cada vez mais, desde sua origem, o outro não tem sido o mesmo
para os bebês.
Em nossa civilização ocidental, cada vez mais os pais deixam de exercer
a unificação dos fragmentos corporais dos nossos bebês. Os cuidadores
estão deixando de existir e assumindo o papel de mantenedores. Com
isso, como eles não podem se doar ao filho como gostariam, pois não
dispõem mais de tempo para isto, colocam-no nas escolas e compram o
que podem e o que não podem para esse filho, tentando suprir esse
cuidado que não existe mais. Isso acontece hoje, na maioria de nossas
famílias.

Em meu livro, o Corpo do Professor eu digo que quando uma criança


chega a escola muito cedo, o professor pode passar a ser esse grande
outro que os pais não puderam ser, pelo menos por algum tempo dessa
infância.

A criança sai de um ambiente familiar e entra em um ambiente


completamente novo. Na maioria das vezes cedo demais para absorver
tantas mudanças. Ele vivencia tantas perdas e tantos ganhos nesse
exato momento, que pode perfeitamente entrar em um colapso, maior
do que ele possa suportar, ampliando exponencialmente o desamparo
que ele se encontra.

Entram nesse instante, as primeiras estimulações a fragilidades desse


pequeno ser, tanto no seu desenvolvimento quanto na sua estrutura,
que segundo vários autores como Freud, Lacan, Lapierré, Aucouturrier,
Wallon, entre outros, há em curso uma fragmentação desse ser em
processo de humanização e de asujeitamento, que dependendo da fase
em que se encontre, esta fragmentação necessitaria inicialmente de
uma estabilidade emocional na relação familiar extremamente segura.

Por outro lado, precisaríamos de educadores conhecedores desses


pontos para receber esta criança com consciência, tanto desta
fragmentação, quanto da humanização e do asujeitamento de um ser
em início de vida.

Infelizmente não é o que temos presenciado nas escolas, onde os


docentes não receberam tal formação e permanecem olhando e
intervindo num corpo, e não em um ser humano, permanecem ainda
com estratégias cartesianas e com um olhar dualista ao processo de
aprendizagem.

Na maioria das instituições escolares o desenvolvimento céfalo-caudal,


por exemplo, é contrariado com inúmeras e incansáveis atividades que
envolvem a motricidade fina, no início da vida de uma criança, quando
ela ainda está se organizando nas estruturas psicomotoras que são o
verdadeiro alicerce ao ser humano.

Tudo isso reverbera em seu desenvolvimento e o que é pior, em sua


estruturação.

Uma vez quando meu filho caçula era um bebê ainda, dei um livro do
Winnicott para o pediatra dele. Após a leitura, passamos a conversar
bastante sobre o inicio da vida de uma criança. Ele me convidou para
dar uma palestra aos Residentes em pediatria em um Hospital que ele
dirigia. Foi uma experiência incrível. Eles não tinham no currículo do
curso de medicina, a disciplina de Psicomotricidade, mas daquele dia
em diante, Eu, o Pediatra e os cerca de 20 residentes em pediatria que
estavam presentes, tínhamos a certeza de que essa seria uma grande
oportunidade da medicina e especificamente da pediatria, olhar mais
amplamente para a chegada de um novo ser humano à vida.

Bom, continuando, Eu diria que a chegada à adolescência pode então


representar uma interrogação bem maior do que normalmente
deveria, pois os modelos de Outro, representados inicialmente pelos
pais e possivelmente depois, pelos professores, podem ter ficado
incompreensíveis demais para a unificação de tais fragmentos daquele
bebê e serão bem necessários para uma organização integral desse ser
humano.

A saúde psicomotora então, pode-se dizer que é uma forma de se olhar


o ser humano em sua ação, sob uma ótica “Pluridimensional” em uma
perspectiva integrativa, holística.

Em outro ponto de reflexão, em relação à deficiência, por exemplo:


Quando o filho esperado não corresponde ao que foi antecipado pelos
pais, não é re-conhecido nessa filiação, questiona a função parental de
tal forma que a própria genealogia é questionada, assim como o
domínio familiar e a herança simbólica gerada por esse filho. Como
unificar fragmentos de um corpo não reconhecido?

Nesse momento podemos dizer que a saúde psicomotora se resume


em retirar a deficiência, a dificuldade, e a desorganização, da
passividade na qual este sujeito é constantemente colocado ou visto
pelo outro. Estando no mesmo lugar este sujeito só poderá reproduzir
sempre a mesma coisa.

Para LEVIN (2005, p. 96) Lutamos para gerar sentidos cênicos e para
que o destino não seja o órgão ou a síndrome, mas o trânsito
realizado pela infância.

Em um trabalho psicomotor conseguimos ver o fazer do sujeito que não


fazia nada ao olhar do outro. Entramos em contato com ele e não com
sua deficiência, fazendo com que esse seu corpo seja habitado por uma
poética da representação. Conseguimos muitas vezes, com isso, que
haja uma possível retomada da filiação perdida, pois os pais iniciam
uma trajetória de enxergar um corpo poético, com possibilidades de
produzir coisas, com possibilidades de ocupar um lugar na
transgeracionalidade, antes impensável.

Assim como com a deficiência, a saúde psicomotora intervém no ser


humano idoso em suas potências simbólicas muito além da boa
aparência e da cultura corporal da pele lisa, como já nos disse Paula
Sibília.

A desmaturação declinativa decorrente da idade é trabalhada na


Psicomotricidade por meio do investimento nas estruturas
psicomotoras que ao longo dos anos vão se desmaturando e também
pela valorização das potencialidades do ser humano idoso.
Não investimos no músculo, ou na estabilidade corporal, investimos na
tonicidade, na imagem corporal, no desejo do idoso de se manter
humanamente ativo.
Referências
ALVES., R. C. S. O corpo do professor. Ed. CVR. Curitiba, PR, 2013.
____________. A Saúde Psicomotora. atospsicomotricidade.com.br, 2022.
LEVIN, E. O Desenvolvimento Psicomotor diante da modernidade. Estilos clin. vol.5
no.8 São Paulo 2000.
__________. Clínica e Educação com as Crianças do Outro Espelho, Vozes, RJ,
2005.
LEVIN, E. A comunidade infectada, Texto publicado em mídias sociais, Argentina, 6
de abril de 2020.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2. ed. Rio de Janeiro,
Contraponto, 2016.

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