Você está na página 1de 10

Os trabalhos devem ser enviados à Seção de Publicações e Traduções da APC, pelo e-

mail apconline@brturbo.com.br.

Título: JOGOS DE LITORAL NA DIREÇÃO DO TRATAMENTO DE CRIANÇAS


EM ESTADOS AUTÍSTICOS

AUTOR: Julieta Jerusalinsky

MINI-CURRÍCULO: psicanalista, especialista em clínica com bebês, mestre e doutora


em psicologia clínica pela PUC-sp, membro do Centro Lydia Coriat e da APPOA,
professora do COGEAE-PUC/SP, autora dos livros: Enquanto o futuro não vem – a
psicanálise na clínica com bebês (Ágalma, 2003, 3ª edição); A criação da criança -
brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê (Ágalma, 2011).

e-mail: julietajerusalinsky@gmail.com
tel: (011) 38652370

Resumo: Partindo da concepção de estrutura psíquica não decidida na infância o


trabalho considera a diferença entre ser e estar relativa aos quadros psicopatológicos da
criança e, consequentemente, de uma clínica que aposta nas operações constituintes do
sujeito. Para tanto traz o testemunho de intervenção a partir dos jogos constituintes do
sujeito na direção do tratamento de crianças com quadros de autismo. Marca
especialmente a concepção de jogos de litoral e a passagem de gozo a saber que eles
possibilitam na relação da criança com o Outro encarnado como momento decisivo na
constituição psíquica e no tratamento – questão desenvolvida na pesquisa de doutorado
"a crianção da criança: letra e gozo nos primórdios do psiquismo".

palavras-chaves: autismo, brincar, psicanálise, gozo, jogos de litoral.

Abstract: Premised on the concept of psychic structure undecided in childhood, this


dissertation explores the difference between “ser e estar” (permanent and temporal
aspects of being) as it pertains to child psychopathology. Case vignettes focused on the
games that constitute the subject in the treatment of autistic children are presented. The
concept of shoreline games is discussed, as well as the passage from jouissance to
knowledge they enable in the child’s relationship to the embodied Other as a critical
moment in psychic constitution and in treatment.

Keywords: autism, play, psychoanalysis, jouissance, shoreline games.


O tratamento de crianças com quadros de autismo relança uma questão
fundamental acerca da constituição do sujeito: o que possibilita a articulação do
padecido no real do corpo a uma ordem significante?
O funcionamento psíquico no campo da palavra e na função significante não está
garantido e pode não operar, tal como revela a clínica com crianças em estados
autísticos. Isto leva a trabalhar acerca do que possibilita que as primeiras inscrições
constituintes do psiquismo operem permitindo realizar tal articulação.
Se as crianças em estado autístico repetem certas estereotipias, é bem verdade
que nem sempre para todas são as mesmas. Isso deixa em relevo como alguma inscrição
ocorreu e ela é repetida, porém, em lugar de que tal inscrição possa articular-se a uma
lógica significante, em lugar de que possa dar lugar ar uma série simbólica a partir de
um traço primordial, tal inscrição recai como a repetição de um automatismo que
mantém a criança refém de uma auto-estimulação infinita no registro contínuo do real.
Se é no balanceio, na agitação motora ou no bater-se; no fixar o olhar sobre uma luz, no
movimento das mãos, ou no sacolejar um objeto; se é no chupar o lábio, a língua ou
morder a mão; no tapar os ouvidos ou no fazer-se sons guturais; muda ali uma zona
corporal preferencialmente implicada na manutenção desse gozo, o que, em todo caso,
aponta ao resto de uma inscrição, mas que prima pela falta de extensão pulsional,
produzindo um achatamento sobre a zona de satisfação, por uma repetição que realiza a
demanda de exclusão 1 do Outro de seu circuito de satisfação.
Assim a criança em estado autístico não está em uma espécie de “estado
natural”. Se sua produção a situa não só fora da função da palavra (como na psicose),
mas também de seu campo2 , em todo caso, isso é uma resposta, é um modo de defesa,
uma economia de gozo estabelecida a partir de inscrições primordiais. Ocorre que tais
inscrições, em lugar de permitirem a passagem do gozo do corpo ao da articulação
significante, marcam a exclusão da criança desse campo.
Se a psicose implica uma forclusão do nome-do-pai, que tem como
conseqüências clínicas uma errância ou fixidez no funcionamento significante e que, à
medida em que a criança fala, coloca em questão quem é o sujeito da enunciação; o
autismo, por sua vez, coloca em cena um olhar, uma fonação, um movimento
psicomotor que implica uma demanda de exclusão do Outro, uma economia de gozo,
um circuito pulsional exilado de uma articulação ao campo do significante.
Daí que essa clínica implique crianças com graves estereotipias que fixam
automatismos nos quais se recorta um fragmento perceptivo repetindo ao infinito esse
puro real. Há algumas crianças que vão um pouco além: elas guiam suas ações por uma
certa regularidade lógica do real, ao, por exemplo, montarem complicados objetos
respeitando seu funcionamento mecânico, mas sem conseguirem desdobrar a mais
mínima cena de brincar simbólico com os mesmos; ou montarem quebra-cabeças de
várias peças percebendo de forma altamente eficaz as menores variações de cor e forma
das minúsculas peças que estavam em cantos opostos da mesa, encaixando-as com
rapidez, mas sendo capazes de colocar o pé no meio da testa do personagem do quebra-
cabeça se as correspondências de cor e forma forem compatíveis, em um absoluto
fracasso imaginário-figurativo; elas repetem com perfeição algumas sequências fônicas,
mas, geralmente, sem que se produza para elas a passagem da phone (emissão de um
som) à dimensão da Vox (como emissão de um som que tem o sentido de um
chamado)3 , não se articula a passagem do registro real da voz à sua articulação no
campo imaginário e simbólico como convocatória dirigida ao outro.
Se na atual psicopatologia tem se apagado o quadro de psicoses infantis e
estendido o espectro do autismo, consideramos que esta diferença clínica é fundamental
para o estabelecimento da direção da cura, isto é, para a decisão do clínico acerca das
intervenções necessárias ao tratamento.
Se na psicose torna-se fundamental intervir sobre a dimensão metafórica da
linguagem, sobre a possibilidade de que a palavra possa operar na lógica do
significante, ou seja, ser articulada e deslocada para produzir os efeitos de significação
que permitem ao sujeito representar-se no ato de enunciação; no autismo o ponto inicial
de intervenção diz respeito à passagem da repetição estereotipada no real a um gozo que
possa atrelar-se ao campo do Outro, ao campo da linguagem, em seu circuito de
satisfação.
Se diante de quadros de psicose infantil, intervimos, por meio do brincar, na
articulação e deslizamento significante, se operamos no estabelecimento de uma borda
entre fantasia e realidade, no autismo os jogos de litoral têm se revelado fundamental
ferramenta clínica justamente porque eles incidem nessa articulação primordial entre
corpo e linguagem.
Assim, na clínica com crianças intervimos clinicamente a fim de propiciar certas
operações constituintes do sujeito. Por isso, antes de avançar, cabe fazer algumas
considerações acerca do autismo e seu diagnóstico na infância.
Se o diagnóstico tem alguma utilidade o é na medida em que oferece ferramentas
para a intervenção clínica. Isto porque, em psicanálise, as estruturas clínicas não são de
interesse como uma questão inerente ao "ser". A intervenção psicanalítica revela como
os sintomas clínicos podem ser rearranjados na medida em que há uma abertura do
aparelho psíquico que, de tempos em tempos, sofre inscrições e reinscrições, tal como
aponta Freud4 . Mesmo que o sintoma fundamental do sujeito não se modifique, mesmo
que nem sempre seja possível passar a outra coisa, a extensão que ele assume e o uso
que pode se fazer do mesmo não são questões menores ao longo de um tratamento.
Mas, quando se trata da infância, tal questão se radicaliza, pois, ainda que o
aparelho psíquico se encontre, ao longo da vida, aberto a sucessivas inscrições e
reinscrições, temos bons motivos para acreditar que não há período em que a
capacidade de receber e reproduzir impressões seja maior do que precisamente durante
os anos da infância.5 Isto já é apontado por Freud, ao afirmar que é próprio da infância
o polimorfismo das vicissitudes pulsionais6 , ou seja, o fato de o sujeito na infância não
ter fixada a sua economia de gozo por um exercício sexuado a partir de seu fantasma
(fantasia) fundamental.
Daí que se situe a estrutura psíquica não decidida na infância 7 , pois, ainda que
haja uma estrutura simbólica que anteceda e sobredetermine simbolicamente o sujeito,
isso não equivale a dizer que sua estrutura psíquica já estaria decidida, pois será preciso
uma diacronia, será preciso uma passagem de tempo, para que esta estrutura simbólica
que o antecede produza seus efeitos de inscrição e para que, a partir de tais inscrições,
ele possa começar a produzir as suas singulares respostas subjetivas.
Conceber o tempo como uma importante variável a ser considerada no que diz
respeito às inscrições psíquicas não é a mesma coisa que achatar a diferença entre adulto
e criança a uma concepção desenvolvimentista. A constituição do sujeito exige a
inscrição de diferentes momentos lógicos que não estão garantidos pela passagem do
tempo, por uma simples cronologia. No entanto, continua sendo necessária uma
diacronia para que se precipitem os efeitos de inscrição que constituirão o sujeito
psíquico. É preciso também o transcurso de um tempo para que as inscrições que nele se
precipitaram possam ser por ele postas à prova por meio de uma experiência que o
implique subjetivamente. Portanto a estrutura psíquica está sujeita não só à estrutura
simbólica que a antecede, mas também à contingência de certos acontecimentos diante
dos quais o sujeito produzirá suas singulares respostas, implicando-se subjetivamente na
produção de uma experiência.
Certamente as condições orgânicas de um bebê têm aí sua importância. O
equipamento neuroanatômico e a carga genética com que se nasce têm diferenças e a
permeabilidade a inscrições significantes nem sempre é a mesma. Ou seja, há patologias
orgânicas que fazem maior obstáculo a tais inscrições e seu funcionamento, mas
também é preciso considerar que grande parte desse funcionamento não está
previamente decidido, será estabelecido pelas experiências de vida e, portanto, se o real
orgânico pode estabelecer aí seus limites, também é preciso considerar que a sua própria
configuração depende, em parte, das inscrições que um bebê recebe a partir da relação
com o Outro. Portanto, se o real orgânico tem aí o seu peso, nem tudo está por ele
estabelecido de forma antecipada. Há uma única forma para que a criança possa vir a se
constituir como sujeito do desejo: é preciso apostar em sua constituição, caso contrário
ela fica, de partida, impedida por falta desse investimento, produzindo, então, o efeito
de uma profecia auto-realizável da patologia8 . Isto é algo que a clínica com crianças
com graves problemas orgânicos atendidas no Centro Lydia Coriat tem nos ensinado.
Conceber na infância uma estrutura psíquica não decidida faz com que não seja
indiferente o momento da vida em que uma intervenção clínica ocorre, na medida em
que nosso psiquismo tende a uma fixação de seu funcionamento. Daí que seja tão
importante a detecção precoce de sintomas que apontam risco na constituição psíquica
de um bebê e pequena criança, permitindo intervir quando há sofrimento em lugar de
deixar o tempo passar.
Ao falar de diagnóstico na infância vale a diferença entre SER e ESTAR que
tanto o espanhol quanto o português permitem denotar. O diagnóstico permite pôr em
movimento importantes operações na direção da cura e, justamente por isso, ao longo
do tratamento, uma criança que estava em estado autístico pode deixar de está-lo,
mudando de sintoma fundamental, ou pode, em certas ocasiões, ainda que não de modo
regular, apresentar produções de outra ordem que não a de uma demanda de exclusão do
Outro.
Daí que as categorias nosográficas sejam, em certo sentido, tão antinômicas da
infância, na medida em que intervir na infância dá lugar a uma mobilidade do sintoma
fundamental ainda não decidido. Por isso, na clínica psicanalítica, procuramos intervir
ao detectarmos que algo não vai bem na constituição da criança, ainda que o quadro
psicopatológico não esteja plenamente fechado em todos os seus traços
patognomônicos. Assim, diagnosticar serve para considerar o que é preciso operar na
intervenção clínica, possibilitando uma mobilidade do que cristaliza a criança em um
padecimento, não para enquadrar antecipadamente a criança em uma categoria
psicopatológica.
Na clínica com crianças em estados autísticos deparamos com estereotipias que
fixam a criança à repetição de automatismos no real à revelia de uma produção de
brincar que articule esse real ao registro imaginário e ao simbólico. Crianças que
sacodem o lápis em lugar de desenhar; giram as rodas do carrinho em lugar de empurrá-
lo fazendo “brrr!”. Não só carecem da produção de cenas de faz-de-conta, nas quais
possam desdobrar no campo ficcional suas séries simbólicas produzindo suas singulares
respostas subjetivas. O obstáculo se apresenta em um ponto anterior, carecem até
mesmo da produção de pequenas cenas que, nem que seja fragmentariamente,
reproduzam acontecimentos do dia-a-dia por meio dos rituais lúdicos.
Como articular essa passagem? Como fazer para que o objeto possa ser ali uma
metáfora da relação com o Outro, para que sirva de apoio para um fantasiar? Possa ter
pelo menos alguma consistência imaginária e dar lugar a articulação de uma mínima
diferença simbólica em lugar de ser pura coisa, puro das-ding?
O fato de que uma criança não fale, que esteja em profundo mutismo, faz com que
muitas vezes os outros entrem em um estado de verborragia. Isso parece responder
muito mais à angústia que se desperta nos outros do que ao que pode operar para a
criança uma passagem ao campo e função da palavra. Nessa situação a criança costuma
ficar absolutamente indiferente diante dessa “massa sonora” que cai como puro ruído ou
precisa esquivar-se ativamente dessa “avalanche de palavras” tapando os ouvidos ou
produzindo sons superpostos a ela.
Não é porque se fale e se fale que a linguagem marca o corpo.
Como a linguagem produz efeitos constituintes?
A clínica com bebês traz aí suas contribuições a esse campo: a linguagem
interessa na medida em que ela permite representar o que afeta o real do corpo. Interessa
na medida em que permite a articular pelo significante uma descontinuidade que afeta o
gozo do corpo.
Uma vez que o bebê não tem instintivamente um saber acerca do que lhe convém,
torna-se decisivo para a constituição desse saber de que forma aquilo que ele padece em
seu corpo poderá vir a ser representado. Quem primeiramente se vê arrastado a ocupar-
se disso é quem exerce a função materna. A mãe, ao exercer sua função, realiza a
travessia, franqueia para e com o bebê, a passagem entre o gozo do vivo e a inserção na
linguagem.
É a mãe quem permite a produção de um funcionamento subjetivado diante do
que acomete o organismo do bebê. Ela se ocupa de seu funcionamento corporal, ela
acompanha seus ritmos, suas cadências, suas intensidades, atrelando sorrateiramente
estes automatismos orgânicos a um encadeamento significante, desde o qual sustenta
seus cuidados. Por isso a função materna implica realizar um fino trabalho de bordado
entre corpo e linguagem, implica instaurar sorrateiramente no bebê um gozo que, onde
se pretende autoerótico, já leva a marca do Outro, já se inscreve como Outro-erotismo9 .
Para que esta passagem ocorra é absolutamente necessário que um Outro
encarnado se veja afetado, em sua economia de gozo, pelo que afeta o corpo do bebê.
Resulta central aí que ocorra entre a mãe e o bebê uma montagem por meio da qual a
paixão sofrida por uma pessoa tenha constituído o gozo de uma outra.10
É na medida em que a mãe se vê afetada em seu próprio corpo pelo que afeta o
corpo do bebê que ela pode oferecer-lhe a sua representação. Ele é quem padece a dor e
ela é quem diz “ai!”, ele é quem come a papinha e é ela quem diz “humm!”. Assim a
mãe, nessa identificação, “empresta” ao bebê uma representação sobre esse afeto,
possibilitando-lhe passar do gozo ao saber, do corpo à linguagem. Uma vez que o bebê
opera essa passagem ela reconhece ao bebê o saber sobre tal produção, ou seja, ela não
se apropria do corpo do bebê.
É preciso apontar que a mãe não faz isso de modo abnegado e tampouco
masoquista, ela extrai um gozo dessa operação. Ao propiciar ao seu bebê uma satisfação
na qual busca poupar-lhe o esforço, a mãe, por sua vez, se identifica ao gozo da
passividade do bebê. Assim, ela goza do gozo do seu bebê, furtivamente tem acesso aí a
um gozo Outro e, ao mesmo tempo, com isso, ela sorrateiramente franqueia para o bebê
a passagem do gozo do vivo à linguagem. 11
Isto implica considerar que é no litoral com o gozo que a linguagem interessa e
que sua transmissão não tem como operar se o que se passa no organismo do bebê não
diz respeito à economia de gozo de um Outro encarnado.
Encontramos aqui a radicalidade com que a não correspondência entre corpo e
sujeito comparece na primeira infância. É preciso que o funcionamento corporal do
bebê afete a economia de gozo do Outro encarnado para que, a partir de tal percurso
pulsional no laço com o Outro, o bebê possa ter acesso a uma representação do que o
acomete no real de seu corpo e, ao deter tal saber, possa constituir esse corpo como o
seu.
É por isso que, quando este funcionamento não se instaurou para a criança, o
psicanalista irá intervir sustentando estas operações constituintes do psiquismo. No
tratamento de crianças em estados autísticos, é fundamental que o clínico possa partir
desses automatismos que a criança coloca em cena, identificando-se a eles, a fim de que
ele possa passar a ser necessário à produção desse gozo. Somente a partir daí é possível
atrelar sorrateiramente essa repetição a variações rítmicas e a pequenas
descontinuidades do movimento no espaço introduzidas pelo significante que vêm fazer
escansões que incidem no real e dos quais a satisfação da criança não terá mais como
prescindir.
Lembro, nesse sentido, de um menininho de três anos e meio em estado autístico
(no qual já não está mais) que tomava minha mão como pura coisa para que eu fizesse
girar um peão. Fui acompanhando tal giro com uma cantiga 12 , apressando o compasso
da mesma ou diminuindo-o de modo a que o fim da cantiga coincidisse com o fim do
movimento. Perdi a conta dessa repetição, tomada em seu continuo infinito. O fato é
que, a certa altura, ele passou a me olhar esperando que eu começasse a cantiga para
soltar o peão e iniciar seu movimento, ou a suspender o movimento do mesmo quando a
música terminava. Esses pequenos gestos colocam em cena que o traço que interessava
já não estava mais no campo da pura repetição real do movimento do objeto, mas no
campo da sustentação desse movimento na série simbólica ofertada por Outro.
Por isso, no tratamento de crianças em estados autísticos, revela-se a decisiva
importância do significante posto a operar de modo atrelado ao que afeta a economia de
gozo. Diante da surpresa, do inesperado do acontecimento, do que rompe a suposta
continuidade do real. O opa! pode tornar-se tanto mais decisivo do que a avalanche de
palavras: Opa!, Caiu... peguei!, cadê...achou, e.... já!, Epa lelê!, Oooô!, esses breves
significantes, essas articulações na fronteira da alíngua que franqueiam a passagem
entre o gozo do vivo e o gozo linguageiro, possibilitam à criança passar a sustentar-se, a
atrelar-se a uma articulação simbólica diante desses pontos em que emerge a
aleatoriedade do real.
Daí que os jogos constituintes do sujeito sejam uma fundamental ferramenta
clínica quando o que está em jogo são as primeiras operações lógicas da constituição
psíquica. A experiência clínica revela seus efeitos decisivos na direção da cura, não só
de bebês acometidos de problemas em sua constituição, mas também na de crianças em
estado autístico.
Diferentemente do brincar simbólico, por excelência uma produção da criança –
com seu início marcado no jogo do fort-da13 e seu ápice no faz-de-conta –, os jogos
constituintes são sustentados no laço do bebê com o Outro encarnado.
No fort-da é a criança quem produz uma série presença-ausência. Ela faz
aparecer e desaparecer o carretel e, mais do que isso, ela nomeia tal jogo por uma
oposição significante entre o fort e o da. Com ele a criança arma uma passagem da
passividade à atividade na medida em que, em lugar de padecer da ausência materna,
produz esse jogo em ausência da mãe. O jogo do fort-da revela o quanto a possibilidade
de que emerja um sujeito não se dá nem pela pura continuidade, nem pela simples
descontinuidade em si, mas pela possibilidade de articular uma série presença-ausência.
Ao articular tal série a criança não fica, nem na posição de objeto deixado por outro,
nem na posição de experimentar uma queda psíquica diante da falta da mãe, mas na
posição de poder entreter-se, ou seja, de sustentar-se, como sujeito, com seu brincar,
entre os significantes.
Porém, para que este jogo possa chegar a ser produzido pela criança, será preciso
que, antes disso, haja um Outro encarnado que sustente essa série para ela. Portanto, os
jogos constituintes do sujeito são, em tempos lógicos da constituição psíquica,
precursores do fort-da.
Tais jogos, diferentemente do fort-da, se produzem no laço com o Outro
encarnado, em presença deste. É este Outro/outro que sustenta para o bebê a série
presença-ausência ao recuperar-lhe os objetos que o bebê lança e, ao dizer-lhe, diante do
paninho posto e retirado “cadê?...achou!!” tendo o cuidado de fazer coincidir sua
enunciação com a ação da criança. Estes dois jogos – o de lançar para que outro
recupere e o cadê-achou – são precursores diretos do fort-da. Antes deles podemos
encontrar uma série de outros jogos constituintes do sujeito e, nos primórdios da
constituição, os denomidandos de jogos de litoral.14
Jogos de borda, jogos de superfície, de esburacamento, são denominações que
aparecem quando se situam os tempos correlativos aos primórdios do brincar. 15
Se tanto interessa ao bebê a superfície e o buraco é porque o que está em jogo aí,
nos primórdios da constituição do sujeito, é o traçado de uma borda, que, com tais
jogos, retoma a inscrição das zonas erógenas inscrevendo, pela letra, descontinuidade
sobre os orifícios reais do organismo, produzindo um corpo que, posteriormente, se
lança ao espaço e às suas delimitações simbólicas.
Lacan, no texto "Lituraterra",16 coloca que é a letra, como inscrição psíquica, que
faz borda entre o gozo e o saber. Consideramos que o que está em jogo já nesses
primeiros jogos constituintes é a própria inscrição da letra, que traça o litoral entre um e
outro sem jamais esgotar sua descontinuidade. Jogar com a letra que faz litoral entre o
gozo e o saber – aí, mais do que em uma cortante linha de fronteira, se produz um ir e
vir que, tal como as ondas na areia, avançam e recuam permanentemente redesenhando,
rearticulando a relação de litoral entre duas substâncias de diferentes ordens. O que está
em jogo no brincar sustentado entre o bebê e a mãe é um intenso trabalho de construir
litoral.
Para o humano as bordas não estão dadas. Sobre as descontinuidades do real é
preciso que se inscreva uma alternância simbólica, e é sobre tais descontinuidades que
se joga eroticamente o jogo de presença e ausência sobre as bordas do corpo.
A criança, enquanto mama, puxa o cabelo da mãe, enfia os dedos na própria boca,
furunga na boca da mãe. A mãe lhe diz: Ai! Opa! Nham!!!
Nos jogos de litoral, enquanto constituintes do sujeito, encontramos justamente
essa característica – um jogo e um imenso trabalho de produzir litoral ao gozo do bebê
que é ofertado e sustentado pela mãe, mas, uma vez que o bebê nele engaja o gozo de
seu corpo, a mãe prontamente lhe atribui a autoria e o saber sobre tal jogo.
Comparece aí a articulação, a borda entre gozo e saber que vai se inscrevendo na
medida em que a mãe e o bebê, nesses jogos de litoral, circulam incessantemente pela
posição de objeto e sujeito. Ora detendo um saber, ora engajando seu corpo no gozo
propiciado pelo outro. Isto é central para a constituição e para que posteriormente possa
devir o jogo do Fort-Da. A mãe faz cócegas no bebê, ele ri, ela ri, e ele ri do riso dela,
eles se engajam gozozamente nessa produção. Quem é sujeito e quem é objeto? Há um
eclipsamento aí. A mãe se vê afetada em sua economia de gozo pelo que afeta o bebê,
ela goza do gozo dele e ele do dela. Uma vez que o bebê está engajado aí com seu gozo
a mãe passa a atribuir ao bebê o saber sobre tal produção: olha só do que você sabe
brincar! –afirma.
Então, quando esse brincar se relança, qual é traço que se repete e desde o qual se
comemora a repetição de um gozo nesse jogo de litoral?
Certa menina, já não mais no tempo de ser bebê, e sim no de, como criança,
ativamente recuperar seus significantes em uma série, convidava a mãe a brincar de
"há,há,há". Isso denota o quanto o que permite articular a satisfação pulsional nesse
jogo não se resume ao dedo que furunga entre as costelas, mas implica esse riso desde o
qual se partilha o gozo com a mãe. Aí o traço que se repete não recai no automatismo do
real. O "há,há,há" com que ela nomina esse jogo opera como letra no litoral: com uma
face que se volta ao gozo e outra que se articula no significante.

Nos jogos precursores do Fort-Da e no Fort-Da propriamente dito, em geral


coloca-se em relevo o estabelecimento de uma borda relativa à dimensão espacial (no
território do corpo, na geografia da casa). Este é um aspecto central no que diz respeito
ao estabelecimento de um litoral entre gozo e saber. No entanto, há outro aspecto no
qual este litoral também opera: a dimensão temporal.
Todo o intenso trabalho materno do bordejamento do corpo que se instaura em
relação à superfície e aos seus buracos, erotizando e delimitando espacialmente zonas
nesse corpo, também inscreve um ritmo, uma temporalidade no funcionamento
corporal.17 Espaço e tempo, ambos estão implicados na inscrição do litoral produzido
nos jogos constituintes.
Se o Fort-Da joga com a borda entre o "aqui e o lá", em termos espaciais, o "um,
dois, três eeee.. já!" joga com a fina lâmina que separa (entre o eeee arrastado e o já) a
espera da precipitação no ato, a expectativa da realização 18 . Exemplo disso é a mãe que,
movendo a mão em direção ao bebê, anuncia: olha a aranha descendo, vem chegando,
vem chegando, eeeee.... chegou! – fazendo cócegas no bebê.
Nestes jogos temporais o Outro introduz a expectativa da realização do lado da
criança como uma certeza antecipada, mas, quando a criança se engaja na realização do
ato esperado, isso toma a todos de surpresa. Ora, o que surpreenderia, sendo que é um
ato esperado? Na medida em que a criança engaja seu gozo em tal produção, o Outro
encarnado passa a atribuir à criança o saber sobre tal produção, passa, então, da posição
de ser quem sustentava uma certeza antecipada para a de surpreendido diante da
realização de um suposto sujeito ao qual atribuem a autoria do ato. 19 Opera-se aí a
inscrição e a ultrapassagem da margem em que a criança, antes implicada no gozo do
brincar, passa a ser também detentora de um saber.
Esses jogos de temporalidade intersubjetiva frequentemente primam por sua
ausência em crianças em grave padecimento psíquico. Encontramos crianças que não
antecipam o gozo que está por vir diante de alguém que sustentaria o arco da promessa
de realização. Por outro lado, frequentemente encontramos, e não por coincidência, pais
que padecem e temem por atrasos das produções do filho e clamam por sua adequação
cronológica às pautas de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que não costumam
tomar como realizações de um sujeito tais produções. Em lugar de experimentarem a
surpresa com a criança, ao atribuir-lhe autoria sobre o seu ato, permanecem no espanto
de um suposto sem-sentido. O gozo aí transborda, mas não se articula sua borda em
relação à produção de um saber.
Quando se fala de clínica com crianças, frequentemente é evocado o termo
infância, como momento da vida relativa ao infans – enquanto aquele que ainda não
fala. Que a criança não circula pela linguagem com a mesma desenvoltura de um adulto
é certo. No entanto, é na linguagem que ela já tem um lugar demarcado, a partir do qual
precisará realizar a travessia do ser falado a devir enquanto falasser.
Mas o que fazer quando essa travessia está obstaculizada? O que fazemos na
clínica com aqueles que ainda não falam? Ora, em primeiro lugar procuramos introduzir
o brincar e, em seus primórdios, os jogos de litoral. Na medida em que eles são a
primeira produção que permite atrelar o gozo do vivo à linguagem, que permitem que,
entre um significante e outro a criança não caia no puro real ou que se cole ao objeto
que cai como resto, mas que possa articular-se ali como sujeito, entreter-se no jogo,
entreter-se entre significantes, inicialmente atrelado à uma série simbólica que Outro
sustenta para ela diante do que a afeta em seu gozo.
Tal é a importância dos jogos de litoral na direção da cura de crianças em estados
autísticos.

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS:

ASSOUN, P.L. (1983). O olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

BERGÈS, J. (1988a). O corpo e o olhar do Outro. In: Escritos da criança – 2. 2. ed. Porto
Alegre: Centro Lydia Coriat, 1997. p. 51-65.

BERNARDINO, L M. F. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico.


São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

FREUD, S. (1896a). Carta 52 a Fliess. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 1.

______. (1905a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1977. v. 7, p. 123-152.

______. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 18, p. 11-
85.

JERUSALINSKY, A. Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem. In:


Psicose – Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 9. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, novembro de 1993.

______. La educación es terapéutica? (Parte I). In: Escritos de la infancia – 4. Buenos


Aires: F.E.P.I - Centro Lydia Coriat, 1994. p.11-16.

______. Autismo: la infancia de lo real. In: La clínica del autismo. Buenos Aires:
Edicciones Kliné, 1994,127-135.

JERUSALINSKY, J. Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar


com bebês. Salvador: Ágalma, 2002.

______. Prosódia e enunciação na clínica com bebês: quando a entoação diz mais do
que se queria dizer. In: VORCARO, A. (Org.). Quem fala na língua? Sobre as
psicopatologias da fala. Salvador: Ágalma, 2004. p. 206-228.
______. A criação da criança: letra e gozo nos primórdios do psiquismo. Tese de
doutorado em psicologia clínica: PUC-SP, 2009.

______. A criação da criança: brincar gozo e fala entre a mãe e o bebê. Salvador:
Ágalma, no prelo.

LACAN, J. (1971). Lituraterra, aula 7 do seminário 18. Che vuoi?, Porto Alegre, ano 1,
n. 1, 1986, p. 17-32.

______. (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.

MELMAN, C. Questions de clinique psychanalytique. Seminaire de L’annèe 1985-6, 10


de outubro de 1985. Paris: AFI.

PEAGUDA , S. Juegos precursores del Fort-da. In: Escritos de la infancia – 8. Buenos


Aires: FEPI – Centro Lydia Coriat, 1999. p. 35-41.

1 Tomamos aqui como referência o modo de defesa autístico, como relativo a uma quarta estrutura clínica
proposto por Alfredo Jerusalinsky no texto Autismo: la infancia de lo real, p. 128.
2 Idem.
3 Questão abordada por Assoun (1983). O olhar e a voz; Julieta Jerusalinsky (2004). Prosódia e

enunciação na clínica com bebês: quando a entoação diz mais do que se queria dizer.
4 Sigmund Freud. (1896). Carta 52 a Fliess.
5 Sigmund Freud (1905). Três ensaios sobre a sexualidade.
6 Idem
7 Alfredo Jerusalinsky. Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem. In: Psicose – Revista

da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 9. Porto Alegre: Artes e Ofícios, novembro de 1993, p.
72; Leda Bernardino. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004.
8 Julieta Jerusalinsky Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês.
9 Charles Melman (1985a). Questions de clinique psychanalytique.
10 Jacques Lacan (1972-1973). O seminário. Livro 20. Mais ainda .
11 Questão desenvolvida na tese de doutorado A criação da criança – letra e gozo nos primórdios do

psiquismo, 2009.
12 “Roda mundo, roda gigante/Roda moinho, roda pião/ O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu

coração” estrofe da música Roda Viva de Chico Buarque de Holanda, 1967.


13 Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer.
14 Questão desenvolvida na tese de doutorado A criação da criança – letra e gozo nos primórdios do

psiquismo, 2009.
15 Alfredo Jerusalinsky. La educación es terapéutica? (Parte I), p. 11-16.
16 Jacques Lacan (1971). Lituraterra, aula 7do seminário 18.
17 Jean Bergès (1988a). O corpo e o olhar do Outro, p. 54.
18 Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês,

p. 296.
19 Idem, p. 160-166.

Você também pode gostar