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A posição autista-contígua
e a comunicação não verbal
na clínica psicanalítica
The autistic-contiguous position
and the non-verbal communication
in psychoanalytical clinics
Julia Braga do Patrocínio Fernandes
Carlos Augusto Peixoto Junior
Resumo
O objetivo deste artigo é explorar o conceito de posição autista-contígua, formulado por
Thomas Ogden. Com o aumento considerável de pacientes ditos não neuróticos, o analista se
viu compelido a ampliar suas capacidades de escuta e atentar para outras formas de comuni-
cação que não passam necessariamente pela linguagem verbal. A partir do enfoque oferecido
pela teoria das relações objetais, abordamos a gênese da comunicação humana e o modo pelo
qual seus aspectos não verbais permanecem ativos na vida adulta, oferecendo subsídios para
uma compreensão ampliada daquilo que se deseja comunicar na relação analítica.
Palavras-chave:
Posição, Comunicação, Psicanálise, Relações objetais.
Ogden também aponta para os modos reverie materna, tal como exposto por Bion,
de defesa específicos da experiência autista- também indica que a capacidade da mãe para
contígua. Eles são dirigidos ao reestabeleci- sonhar o seu bebê, outra experiência funda-
mento da continuidade da delimitação de mentalmente não verbal, é essencial para a
superfície sensorial e à ritmicidade ordena- constituição psíquica dele.
da, sobre as quais a integridade inicial do self
repousa. Observam-se pacientes que tentam O espaço analítico
manter essa coesão corporal através de ativi- e a comunicação não verbal
dades musculares rítmicas, incluindo longos A partir das concepções de Ogden sobre a
períodos de exercícios físicos como andar de posição autista-contígua, abordaremos agora
bicicleta, nadar, entre outros. como o analista ouve aquilo que o paciente
Esther Bick (1968, 1986) criou o termo deseja comunicar, mas que se encontra fora
“formação de segunda pele” (second skin for- do registro simbólico e da esfera verbal. Para
mation) para designar o modo como o indi- isso, delinearemos as nuances do que usual-
víduo cria um substituto para a sensação de mente chamamos de espaço analítico, onde
deterioração da coesão da superfície da pele. todas as sensações, todos os pensamentos e
O sujeito cria soluções excessivas e disfun- todos os sentimentos são depositados, não
cionais para evitar experiências de separação apenas pelo paciente, mas também, ao me-
e perda. nos em parte, pelo próprio analista.
Meltzer (1975) utilizou o termo “iden- Segundo Civitarese (2008), autores como
tificação adesiva” para designar justamen- Winnicott (1956) e Bleger (1967) podem ser
te a aderência defensiva ao objeto com a considerados aqueles que mais contribuíram
intenção de aplacar a ansiedade de desin- para a teoria moderna a respeito do setting.
tegração, típicas nesses casos. Qualidades Enquanto para Winnicott, em muitos casos,
parciais do objeto, como odor, voz ou ele- o setting é mais importante do que a inter-
mentos visuais, podem se tornar um recur- pretação propriamente dita, sendo visto
so de estimulação sensorial ao qual o sujeito como um componente do sistema analista/
pode se apegar. Assim, o que se nota é que ambiente em casos de deficiências primárias
função interna de conter as partes do self, a do ego, Bleger afirma que sua importância
capacidade para estar só ou de consolar a si reside nas constantes dentro das quais se de-
mesmo pode não se desenvolver suficiente- senrola a terapia analítica. Ele nos apresenta
mente (Civitarese, 2008). a hipótese intrigante de que a principal fun-
O conceito de posição autista-contígua ção da interpretação reside não tanto em tor-
nos oferece, portanto, uma interessante nar consciente o que está inconsciente, mas
perspectiva da comunicação não verbal que em preservar o setting. Se Winnicott enxer-
constantemente se estabelece entre pacien- ga setting e interpretação como ferramentas
te e analista. Este deverá estar atento para distintas do processo analítico, Bleger, por
essa forma de experiência, principalmente sua vez, as vê como complementares.
com pacientes muito regredidos, os quais Ele considera que devemos incluir no en-
expressam por recursos não verbais aquilo quadramento psicanalítico
que desejam comunicar. Isso se assemelha à
vivência primitiva da díade mãe-bebê, des- [...] o papel do analista, o conjunto de fato-
crita por Winnicott como uma experiência res espaciais (ambiente) e temporais, e parte
de mutualidade, onde a mãe consegue com- da técnica (na qual incluímos o estabeleci-
preender as necessidades do seu bebê através mento e a manutenção de horários, honorá-
de uma sintonia afetiva e sensorial, que está rios, interrupções planejadas, etc.) (Bleger,
aquém da linguagem verbal. O conceito de 1967, p. 311).
Por esse motivo, o autor afirma que a in- quizoide. Segundo Ogden, além do medo e
terpretação deve atender a manutenção des- da expectativa provocada pelo mundo dos
se espaço, incluindo questões relacionadas objetos externos – que são extremamente
ao contrato analítico, para que o paciente perigosos e tirânicos – há um estado predo-
sinta-se seguro e amparado pelas molduras minantemente sensorial que próprio a uma
que servem como contenção. O que defini- dimensão pré-simbólica, autocentrada, que
tivamente aproxima Bleger de Winnicott é esbarra nos limites da representação psí-
a tese de que o enquadramento (setting) re- quica. Como vimos anteriormente, o modo
monta à simbiose vivida entre mãe e bebê, ou autista-contíguo se constitui a partir de uma
seja, o que é depositado nele remete ao esta- experiência rudimentar, já em seu nível rela-
do de não diferenciação outrora vivenciado cional, mas ainda não propriamente objetal.
pela díade. Sendo assim, o sujeito que vive a condição
Thomas Ogden, em seu livro Projective esquizoide torna
identification and psychotherapeutic tech-
nique (1982), nos mostra como, através da [...] o presente uma mera ‘re-atuação’ (re-
identificação projetiva, conteúdos não as- -enactment) do passado, usando objetos ex-
similados pelo paciente em sua vida infan- ternos como acessórios para a re-criação do
til reaparecem na relação com o analista, e drama interno de um tempo perdido (Og-
como o analista, por sua vez, precisa ampliar den, 1989, p. 85-86).
sua capacidade de acolhimento e elaboração
para devolver esses conteúdos de forma mais De acordo com Fairbairn e Klein, o sujei-
assimilável ao paciente. to esquizoide tem como principais recursos
O trabalho do analista, nesse caso, cer- defensivos a cisão do ego (splitting) e a iden-
tamente não exclui o uso da interpretação tificação projetiva. Essas serão, por sua vez,
verbal. Porém, o foco nessas circunstâncias as armas com as quais ele se defenderá do
recairá sobre o esforço do terapeuta para mundo externo e dos objetos persecutórios à
achar uma forma de falar com e estar com o sua volta, para que seu mundo interno possa
paciente. O reconhecimento da importância ser preservado. Esse modo de defesa se con-
da identificação projetiva no setting marca o figura como um recurso extremamente pri-
início de uma posição diferenciada do ana- mitivo, o que dá a suas relações objetais um
lista em relação ao paciente e ao próprio en- caráter primário, em que o objeto não pode-
quadre psicanalítico. Ele passa a exercer jun- rá ser visto e tratado como total. Fairbairn
to ao analisando uma função de construção ressalta que certo grau de cisão do ego sem-
psíquica, experiencial e histórica, ao mesmo pre estará presente em níveis mais ou menos
tempo que os significados semânticos e os profundos em todo o ser humano e retoma o
conteúdos interpretativos perdem seu pro- pensamento de Klein quando afirma que “a
tagonismo, dando lugar a modos singulares posição básica da psique é invariavelmente
de comunicação em que sobressaem ritmos, uma posição esquizoide” (Fairbairn, [1940]
tonalidades, silêncios, etc. 1980, p. 7). Na relação com o analista será
A partir das teses de Fairbairn (1952) so- possível verificar o grau de profundidade
bre a condição esquizoide da personalidade, em que se encontra a cisão do ego através
Ogden nos mostra como a posição autista- do tipo de relação que se estabelecerá entre
contígua pode ser pensada como “a zona o par analítico.
vulnerável” ou “o lado mais obscuro” da or- Diferentemente de Klein e Fairbairn,
ganização da personalidade esquizoide. Ele Ogden considera que os fenômenos esqui-
acrescenta às formulações de Fairbairn um zoides possuem sua raiz em um momento
novo aspecto presente na personalidade es- mais primitivo do que aquele identificado
pelos dois primeiros autores. Para Ogden, Nesse sentido, as concepções de Bleger
a origem da condição esquizoide reside nos e Winnicott sobre o setting se complemen-
modos autista-contíguos, onde a relação tam. Se, por um lado, faz-se necessário que o
com o objeto existe apenas em potencial. analista seja maleável, servindo de objeto/re-
Michael Balint, em 1955, já apontava para ceptáculo dos medos, traumas e angústias do
o desafio imposto por tais pacientes à psica- paciente, por outro, os padrões determina-
nálise, mostrando como os termos técnicos dos pelo enquadramento analítico também
que utilizamos para descrever o período ini- servirão para manter os ritmos de segurança,
cial da vida mental se referem a experiências vistos como uma distribuição harmoniosa e
subjetivas da esfera oral. Nesse sentido, ele regular do ambiente analítico.
afirma a necessidade de dirigirmos nosso
conhecimento a esses fenômenos muito ini- Considerações finais
ciais, localizando-os em esferas relaciona- O que se torna evidente na concepção desses
das aos sentimentos de calor, movimentos autores é que a fantasia de fusão no decorrer
e barulhos rítmicos, balbucios indefinidos, da vida é importante para a saúde mental, de
sabores e cheiros, contato próximo corporal, modo que todos concordariam em afirmar
sensações musculares e táteis, especialmente que uma verdadeira relação afetiva não pode
nas mãos, etc. (Balint, 1955). existir se não for baseada também em uma
Desde os estudos com crianças autistas fantasia de fusão.
feitos por Meltzer (1975), Tustin (1972, 1981, Para Civitarese (2008) o que protege o in-
1986), Bick (1968, 1986), Mahler (1952) e divíduo da patologia é, em última instância,
Marcelli (1983, 1986) até os estudos referen- a sua capacidade de alternar entre continui-
tes à condição esquizoide formulados por dade e descontinuidade. Assim, é possível
Fairbairn (1952), Winnicott (1960, 1974) e constatar a função continente da fusão tan-
Guntrip (1969), pode-se observar que a rela- to no desenvolvimento infantil com a mãe
ção entre paciente e analista nesses casos se quanto na relação com o analista.
configura de uma maneira bastante diferente Ao afirmar que “[...] qualquer separa-
daquelas anteriormente descritas pela psica- ção só pode existir em uma relação dialéti-
nálise clássica. ca com a fusão”, Civitarese ([2008] 2010, p.
Além disso, os modos de comunicação 48) se aproxima da concepção winnicottiana
presentes nas sessões com pacientes desse de que só será possível conquistar alguma
tipo ultrapassam a barreira da linguagem independência se houver a possibilidade de
verbal, colocando em destaque outras pos- viver estados simbióticos e de dependência
sibilidades de escuta clínica por parte do absoluta com um objeto primordial. Essa al-
analista. Dessa forma, não é só o pacien- ternância dará ao sujeito a capacidade para
te regredido ou severamente traumatizado viver a separação de forma tranquila, e não
que recorre a outros recursos de comunica- devastadora e aniquilante.
ção – geralmente de maneira inconsciente. Há em Winnicott a ideia de que o isola-
Também o analista passa a buscar em suas mento pessoal é uma faceta essencial da ex-
experiências pessoal e intersubjetiva recur- periência de estar vivo, ou seja, uma condi-
sos não convencionais para ouvir, elaborar, ção necessária para a saúde psicológica. Para
representar e, por fim, devolver algum ma- que essa experiência ocorra, é preciso que o
terial ao paciente. Nesse movimento, antes bebê tenha podido vivenciar a dialética de es-
de tudo, ele revive junto com o paciente um tar-em-um e estar separado do objeto.
momento simbiótico – ou na linguagem de Ogden, retomando o pensamento winni-
Ogden, uma experiência autista-contígua – cottiano sobre o isolamento pessoal, destaca
permitido pelo espaço analítico. outra forma de isolamento, mais primitivo,
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