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Colóquio do LEPSI do IP/FE-USP - Autismo: controvérsias na psicanálise Página 1 de 4

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On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

Autismo: controvérsias na psicanálise

Fulvio Holanda Rocha

RESUMO

Discute-se introdutoriamente a polêmica diferenciação entre autismo e psicose infantil no interior do referencial
psicanalítico lacaniano. Este campo teórico se divide no tocante à defesa da inclusão estrutural do autismo como
uma psicose.

Palavras-chave: Autismo, psicose, estruturas clínicas.

ABSTRACT

In an introductory way, the controversy differentiation between autism and infantile psychosis is discussed
within the referential of Lacan’s psychoanalysis. This theoretical field is divided regarding the structural inclusion
of autism as a psychosis.

Keywords: Autism, psychosis, clinical structures.

O que queremos dizer ao denominar uma criança de autista? O que a faz diferente das outras crianças? Há
motivos para dizer psicose e autismo ou, relativamente a estrutura, são equivalentes? Enfim, como definir a
psicose e o autismo na infância? É preciso iniciar afirmando que não são respostas fáceis, visto que discorrer
sobre este tema implica se deparar com um contexto fortemente polêmico. A situação chega ao ponto que
muitas vezes é difícil acreditar que os pesquisadores falem das mesmas crianças, principalmente no tocante às
autistas (Kupfer, 1999; Stefan, 1998). Ainda se mantém vivo o histórico debate acerca da etiologia psicogênica
ou organogênica, a despeito das tentativas de superá-lo, bem como há divergências acerca da definição e do
diagnóstico, repartindo o campo entre psiquiatras, neurologistas, psicólogos e psicanalistas, para citar somente
estes. Poderíamos apontar que grande parte destas controvérsias se deve ao fato de se ter por base uma
descrição fenomenológica, na qual, apresentando-se este ou aquele comportamento, o diagnóstico é
estabelecido. Este diagnóstico fenomenológico faz com que as taxas de prevalência para o autismo infantil
oscilem drasticamente, indo de 1 até 20 em cada 10.000 crianças. Também verificamos que a comparação das
diferentes abordagens psicológicas do autismo infantil, obriga que estipulemos critérios bastante gerais na
caracterização das crianças (Bosa & Callias, 2000; Canelas Neto, 2000).

Todavia, mesmo se reportando somente à psicanálise, tampouco obteremos uniformidade. Encontraremos aqui
tantas definições, quantas leituras da invenção freudiana (Tendlarz, 1996; Volnovich, 1993). Sendo mais
específico ainda, entre os psicanalistas lacanianos – o que implica partir da concepção estrutural da
subjetividade – constatamos quanto está distante o consenso sobre o diagnóstico diferencial entre psicose
1
infantil e autismo . Tendo como fundamento a mesma teoria, estes autores chegam a conclusões variadas que,
tomando como eixo o debate sobre a estrutura, podem ser esquematizadas basicamente em três posições: os
defensores da unidade estrutural; os que apontam o autismo como uma estrutura subjetiva diferente e os que o
definem como uma a-estrutura.

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No primeiro caso, considera-se que já estaria assentado a identidade estrutural entre o autismo e a psicose e,
por conseguinte, o mecanismo psíquico posto em jogo. Este seria a foraclusão do significante Nome-do-Pai, ou,
em outros termos da teoria lacaniana, haveria o processo de alienação, mas fracassaria a separação. A
foraclusão foi proposta por Lacan (1955-56/1959) na esteira da indagação freudiana sobre um mecanismo
psíquico da psicose que fosse distinto do neurótico e do perverso. O mecanismo foraclusivo incide sobre o
significante Nome-do-Pai, impedindo a inscrição de um elemento terceiro para estabilizar a relação imaginária.
Assim, a metáfora paterna – a substituição dos significantes do desejo materno pelo do Nome-do-Pai,
produzindo o falo como referente a balizar as significações – está impossibilitada. Em 1964, período importante
em seu ensino, Lacan (1964) redimensiona as proposições anteriores sobre a constituição subjetiva. Agora,
formula a operação de alienação e de separação. Naquela, o sujeito surge na medida em que se faz representar
pelo significante surgido no campo do Outro. Porém, o sentido de seu ser está coagulado, petrificado no
significante. Na separação, recobrem-se duas faltas: a do sujeito e a do Outro. Diante disto, há uma queda do
objeto causa do desejo, ao qual o sujeito se identifica enquanto desejado pelo Outro. Consequentemente,
emerge um sujeito do inconsciente, cujo desejo é o desejo do Outro. Porém, a psicose se situaria antes da
operação de separação.

Portanto, a criança (psicótica ou autista) encarnaria no real a posição de objeto a no fantasma materno. Logo,
estaria na linguagem, mas passivamente, onde se apresentaria um Outro absoluto, visto que não poria em jogo
a sua falta. Contudo, entre os que defendem esta tese da consonância estrutural, há algumas desarmonias.
Cordié (1994) indica que nestas condições a própria alienação estaria alterada. Sobre o autismo: Soler (1999)
fala de um aquém da alienação; Stefan (1998) defende a importância de se pesquisar aí as especificidades da
foraclusão relativamente à da esquizofrenia e à da paranóia; e Nominé (1999) fala de uma radical ausência de
alteridade. Também há uma certa vacilação em incluir o autismo como um subtipo caracterizado ou como um
estado, uma forma que um dos subtipos da psicose poderia assumir. No caso de ser um estado, seria algo mais
próximo de um agravamento sintomático, sendo assim, mais contingencial do que estrutural.

No segundo, propõe-se que a formulação de uma estrutura clínica diferente poderia responder melhor às
vicissitudes específicas das crianças autistas. Jerusalinsky (1993) propõe o mecanismo psíquico de exclusão
para o autismo, diferindo-o da foraclusão. Isto denotaria uma relação peculiar com o Outro, que demandaria
nada à criança autista, o que é diferente de não demandar. Logo, existiria Outro. Mas, o autor aponta na
impossibilidade do usufruto dos efeitos da inscrição do Nome-do-Pai, o ponto comum com a psicose, o que
diferiria seria a forma de se instituir o impedimento. Kupfer (1999) defende que, no autismo, falha a captação
do infans no desejo materno, pois a encarnação do lugar de Outro primordial não existiria. Laznik-Penot
(1997/1998) também defende que o autismo está aquém da alienação, mas em seu caso, isto significaria a
existência de uma outra estrutura. O autismo representaria a não instauração da relação simbólica fundamental
(presenca-ausência), visto que o Outro sequer teria se apresentado, enquanto na psicose, o Outro seria só
presença. Daí, propõe o mecanismo de elisão, evitamento, que seria mais arcaico do que o psicótico. A defesa
da existência de uma estrutura diferente no autismo, em geral, se baseia na tese de que aqui falha a captação
primeira do sujeito no significante, que deveria ser promovida pelo Outro primordial (materno).

Entretanto, para outros psicanalistas de orientação lacaniana, esta falha primordial, tornaria o autismo uma a-
estrutura. Para Yankelevich (1995), no autismo também haveria um mecanismo mais primitivo do que a
foraclusão psicótica, bem como inexistiria o Outro. Lopes (1995) também defende que o autismo está aquém da
alienação, sendo que aponta como resultado a impossibilidade de constituição de uma estrutura, mas, ao
mesmo tempo, reconhecendo que há relação do sujeito ao Outro. Já para Vinheiro (1995), não existiria nenhum
laço ao Outro, sendo por isto que o autismo seria uma a-estrutura.

Desta forma, constatamos que a mesma referência teórica serve de base a ilações, não só divergentes, mas
também opostas, bem como há discordância entre aqueles que compartem a mesma opinião sobre as diferenças
estruturais na psicose e no autismo.

Todavia, parece-nos possível estabelecer, em meio a toda esta diversidade, dois pontos de convergência. O
primeiro é a afirmação, unânime a qualquer uma destas alternativas sobre a estruturação das crianças autistas
e das psicóticas, de que não há nada a aproximá-las de um sujeito do desejo, do inconsciente, ou seja, sujeito
divido ante a falta do Outro. Isto já estava posto na própria teoria lacaniana sobre a psicose. Assim, parece-nos
ser possível encontrar uma condição geral (obviamente, bem ampla) de que as crianças no autismo ou na
psicose, representam a impossibilidade de fazer uso da medida fálica, pela não inscrição do significante Nome-
do-Pai. Embora, não decidamos aí se há uma foraclusão, uma variante desta ou mesmo outro mecanismo. De
qualquer forma, isto impede a queda do objeto a em uma operação de separação. Portanto, as considerações
sobre a especificidade do autismo não estão situadas, aqui, entre a subjetivação do psicótico e do neurótico.

Ao contrário, o que há é a reivindicação – também expressa por todos esses autores, independente da posição
sobre a estrutura – de que o autismo se localiza em um certo tempo prévio ao da psicose, sendo este, o
segundo ponto de acordo. Mesmo entre aqueles que defendem a unidade estrutural dos dois quadros psíquicos,
podemos verificar o uso de expressões para se referir ao quadro autístico, como: estado "extremo", tempo
"prévio", "anterior", "precoce"; de maneira que o autismo se situa como a forma mais primitiva da psicose. Mas,
tomando todos os autores citados, esta relação de anteposição pode ser verificada, quando propõem que o
autismo: antecede a esquizofrenia ou a paranóia; se refere à falha na simbolização primordial; é definido como
aquém da alienação significante; é situado como vicissitude da etapa mais primeva da organização libidinal
(narcisismo primário, auto-erotismo…). Mas, essencialmente, ao se referirem, de forma unânime, ao autismo
como uma problemática pré-especular, ao passo que, a psicose seria, especular. Deste modo, o autismo
antecederia sempre à psicose (ao menos tomando como paradigma a paranóia).

Esta consensualidade destoa de maneira radical do desacordo que assinalamos inicialmente. Poderíamos
levantar a hipótese de que, de alguma forma, todas essas tentativas de definição da psicose infantil e do
autismo são herdeiras, em maior ou menor medida, do ato inaugural de Kanner. Com o autismo, Kanner faz
mais do que criar uma outra categoria psicopatológica. Seu ato funda uma psiquiatria propriamente infantil, não

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mais seguindo parâmetros adultiformes (Volnovich, 1993). Segundo Cavalcanti e Rocha (2001), de imediato, os
distúrbios autísticos do contato afetivo foram inseridos nas investigações de vários teóricos, fundamentalmente
por psicanalistas interessados no estudo acerca dos primórdios da constituição do psiquismo, mediante a
pesquisa sobre as relações mãe-bebê e sobre a clínica da primeira infância. Mas, ao mesmo tempo, Kanner
trouxe uma série de polêmicas perdurantes, em vários pontos, até os dias de hoje. Mas, conforme Cavalcanti e
Rocha (2001), muitas destas controvérsias de Kanner expressavam as contradições impostas por um
descompasso entre seus achados clínicos e a teoria em que se apoiava, enquanto esta impedia de considerar a
linguagem e a subjetividade nos autistas, as descrições clínicas apontavam para a existência delas, mesmo que
incipientemente.

Neste sentido, a afirmação de Tendlarz (1996) de que, apesar de defender a existência de uma única estrutura,
mantém a categoria autismo devido a razões clínicas, talvez seja um valioso indicativo dos motivos da
simultaneidade de tantas divergências entre estes teóricos e da defesa desses aspectos comuns. Pareceria que
os psicanalistas lacanianos; diante da constatação clínica de que as dificuldades de certas crianças apontam
para um impedimento ainda mais radical de se valer dos meios culturais, simbólicos para balizar mesmo seu
isolamento, enfim, para impasses anteriores aos que a clínica da psicose infantil habitualmente traz; são
levados a propor (consensualmente) a primariedade do autismo.

Porém, pareceria que, compelidos pelos conceitos e modelos da teoria lacaniana, os psicanalistas acabam por
conceber qualquer anterioridade em relação à psicose nos limites do humano, expressos geralmente nos mitos
de origem. Talvez, por isso, de um lado, recorra-se a tentativas de situar o autista no limiar da subjetivação
(sujeito inconstituído, em constituição…); ou mesmo, afirme-se a inexistência de qualquer possibilidade de
sujeito, reduzindo-o a não ser mais que um vivo; assim como, proponha-se a inexistência de Outro. Mas, de
outro lado, as mesmas crianças são descritas como evitando, desviando-se de sinais da presença do Outro – no
que se pode ver patentemente na surdez específica à voz humana que muitas delas apresentam –, bem como
se valendo de um mecanismo psíquico de evitamento, elisão, ou de exclusão. Ora, mas isto não implica que ao
menos há algo aí, o que já é ser diferente de nada? Mas, também afirmar que o autista mantém-se no tempo
anteprimeiro da constituição, não é descartar a hipótese de que haja ali uma outra subjetivação? Já não há
nestas características um claro indicativo de que o Outro se constituiu? Se não, por que fazer excluir o Outro ou,
quiçá, se fazer excluir? Portanto, apesar de certas descrições apontarem para um fora da linguagem, pela
inexistência de um Outro, as descrições clínicas não são condizentes com um fora do humano.

Possivelmente, o enorme desafio que aí se apresenta, deva-se à confluência de duas dificuldades: as que são
próprias à subjetivação das crianças autistas e as postas pelos limites teóricos. O desdobramento desta hipótese
nos levaria a questionar a possibilidade de se colocar o autismo no cerne dos mitos de origem ou se seria mais
producente estender a ficção teórica, situando o autismo um pouco após a Origem, como, afinal, fez Lacan
(1955-56) para abordar a psicose. Assim, talvez se arrefeça o fascínio turvejante que suscita o tema da origem.

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1 Uma outra discussão bastante viva na psicopatologia psicanalítica da infância gira em torno das peculiaridades
da psicose infantil relativamente à do adulto, sendo que, o ponto central aí é a afirmação sobre a
transitoriedade dos quadros psíquicos infantis.

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