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CLÍNICA e desconexão no autismo

João Paulo Desconci

Quando Jean-Claude Maleval pergunta sobre o “Por que da hipótese de uma


estrutura autística?” (MALEVAL, 2015), não nos passa desapercebido o termo
'estrutura'. Isso não é fortuito enquanto orientado por Jacques Lacan, para quem, as
estruturas diferem-se entre a inscrição da metáfora paterna e sua foraclusão, para
neurose e psicose, respectivamente. Sabendo disso, a discussão trata do que, na história,
separou o conceito de autismo do diagnóstico da psicose infantil, para além dos
impasses de classificação da psiquiatria e dos DSMs, pensando na clínica frente à
segregação e o ódio.

Na causa do autismo, seus defensores indicam que o nome de psicose é


estigmatizante, uma vez que se liga às hipóteses psicogenéticas sustentadas pela ciência
e se restringem às disfunções neurobiológicas, quando sua etiologia permanece
desconhecida.

Mesmo que o autismo, de Kanner ou de Asperger, tenha derivado da


esquizofrenia de Bleuler, e apesar de compartilharem os sintomas negativos e
cognitivos, a psiquiatria contemporânea considera que os sintomas positivos da psicose
(delírios e alucinações) pertencem somente a ela.
Fonte: do autor.

Então, se a intersecção de conjuntos dos sintomas sobrepõe os diagnósticos, a


diferença entre eles, do lado do autismo, está caracterizada por Kanner, como um
“desejo todo-poderoso de solidão e imutabilidade” (KANNER, (1983[1943]), pg.163),
modo de evitação da angústia que, em contrapartida, desconecta.

Fonte: do autor.

Mais ainda: a psicose desencadeia mas o autismo estaria presente desde o


nascimento. Do lado da esquizofrenia há a remissão e a recidiva, enquanto que isso não
acontece no autismo: seu funcionamento específico é permanente e, até onde se sabe,
vai da Síndrome de Kanner para a de Asperger.

Também a ironia psicótica se opõe às regras absolutas e à compreensão literal do


autista. Justo que sua relação com a linguagem está dada, apesar do peculiar, e sua
escrita admite outro uso que não o da psicose. Para os autistas, os escritos servem para
se fazerem reconhecer como inteligentes e para demandar consideração de sua
diferença. Do outro lado, para os psicóticos, a maior parte não se afirma psicótico,
mesmo sendo loucos literários, e visam anunciar suas descobertas delirantes pelas quais,
de acordo com a estrutura, são perseguidos. Além do mais, os textos autistas denotam
terem sido escritos a duas vozes, ao se apoiarem em alguém mais próximo que facilita
sua condução.

Fonte: do autor.

Portanto, a retirada do autismo do campo das psicoses reside num fato clínico
capital: “a existência de uma estrutura psicótica independente dos enquadres clínicos”
(MALEVAL, 2015, pg.13). Se por um lado, que o autismo apresente distúrbios da
clínica da foraclusão do Nome-do-Pai, nada se caracteriza como a Síndrome do
Automatismo Mental – isto é, nem um delírio crônico, estruturado pela
persecutoriedade ou megalomania. E, corroborando com Robert e Rosine LeFort na
proposição de uma quarta estrutura, Maleval pergunta: “haveria uma maneira de compor
com a hiância do Outro sem passar pela fantasia neurótica, o fetiche perverso ou o
delírio psicótico?” (MALEVAL, 2015, pg.16).

É, exatamente, a partir de Clérambault, fundador da descrição do Automatismo


Mental, que Lacan admite seu encontro com Freud e sua entrada na psicanálise, após
sua tese de doutoramento. Justamente, localizando a função do Outro e reconhecendo o
“mais próximo do que se pode construir de uma análise estrutural do que qualquer
esforço clínico na psiquiatria francesa” [daquela época] (LACAN, 1998[1966], pg.69).
É que, como diz o autor, “uma clínica mais fina deve ser convocada” (MALEVAL,
2015, pg.5).

Indicando diretamente as exigências simbólicas que Freud revelou no


inconsciente e que sua última tópica ligou ao instinto de morte e à teoria das pulsões,
Lacan apontou que a revogação disso é acompanhada de uma renegação dos princípios
clínicos que, não por acaso, limitam a busca, no sujeito da experiência analítica, do que
se situa além da fala, ou seja, o real do gozo.

Segundo Tendlarz (2014), o gozo é sempre auto erótico, autista, e assim, mais
além do tipo de laço que prevalece na contemporaneidade. A expressão “autismo
generalizado” nomeia o gozo, supõe o laço social, mas sem que essa generalização
implique um diagnóstico, indicando que, em sentido amplo, é uma categoria transclínica
e o estado nativo do sujeito a quem se acrescenta o laço social.

Assim, podemos nos perguntar: o que o Autismo ensina à Psicanálise em


tempos de (des)conexões? Se a clínica do autismo aponta para a recusa do significante e
suas consequências, uma vez que a Ciência e a Psiquiatria do mesmo modo o recusam,
seriam elas, a Ciência e a Psiquiatria, igualmente autistas?

Em diferença à clínica descritiva e fenomenológica da psiquiatria clássica é que


a abordagem estrutural desloca, no nível do sujeito e a partir do significante como
rudimento e algoritmo fundamental, o entendimento de sua relação com a linguagem,
para além de sua função de comunicação mais restrita, até uma topologia do gozo,
possível a partir da escrita e da letra, para além da fala.

Nesse sentido, a psicanálise traz contribuições surpreendentes ao entendimento


sobre a retenção dos objetos – e no autismo, especialmente o objeto voz, bem como no
que, do gozo, isso implica: desde a primazia do signo até as ultimíssimas elaborações
sobre o ensino da psicanálise, onde os usos da letra no nível do algoritmo – dos
matemas aos nós, nos permite conceber o parlêtre (par – letra).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KANNER, L. (1983[1943]) Autistic disturbance of affective contact. In: L'autisme infantile. Paris: PUF, pp.163.
MALEVAL, J.-C. (2015) Por que a hipótese de uma estrutura autística?' In: Opção Lacaniana Online nova série,
ano.6, n.8, nov/2015. encontrado em 7 de dezembro de 2017:
TENDLARZ, S.E. (2014) Crianças autistas. In: Almanaque on-line, Revista Eletrônica do IPSM-MG. Ano 8, n.14,
jan a jun de 2014. encontrado em 7 de dezembro de 2017: http://almanaquepsicanalise.com.br/criancas-autistas.

http://ebp.org.br/sp/jornadas/viii-jornadas/apresentacao-viii-jornadas

Participantes da mesa Gozo e laço social, 27/10/2018

Maria Bernadette Sant'Ana Pitteri – "Falocentrismo e gozo autoerótico – onde o laço social?"
Giovanna Quaglia – "Conexão assexuada"
Felipe Ortolani – "Navegar é preciso, conectar é vital"
João Paulo Desconci – "Clínica e desconexão no autismo"

ANOTAÇÕES

Inerente, para não dizer estrutural (Valéria), sobre a continuidade da estrutura à topologia.
As bonecas japonesas como objetos autísticos, o pornô e o corpo das mulheres – Gozo e Política
Gozo perdido e perambulando por aí (Bernadete) e o Gozo Sem-Terra
Psicanálise e Feminismo X Fascismo
Repúdio à função fálica, falo como significante assemantico (anulado?) – castração e objeto a
Repúdio e aceitação
Gadjets, o saber no bolso – Ciência
Ligado/desligado, para Freud
Resistências em circuitos paralelos ou contínuos – E/OU
Orientalização/Ocidentalização – Epistemologias do Sul

Pergunta (Valéria)

A estrutura é a clínica – Semana do Autismo em Bogotá


Nosologia X Direção do Tratamento
Sintoma charlatão
A distinção do autismo
FORACLUSÃO DA SEXUAÇÃO, ≠ sexual, A mulher
Desaparecimento da letra japonesa
Autismo nativo do ser (Um) X diagnóstico
Objetos autísticos
Identificação no nível do contágio
DISTINÇÃO, particular (minorias) e singular (sinthoma)

"ao desejar, faz-se laço" (Bernadete)

Matema/Letra
Busca pela escrita absoluta
Mallarmé
Debussy
Nijinski
Marco inicial da Arte Moderna

Matema e Poema

O recurso teórico é que permite ler a época (ex. energética, economia para Freud)
Modo de produção no nível epistêmico

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