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A lógica das entradas em análise

Éric Laurent

As três conferências que apresentamos a seguir foram ditadas


no Ateneo Veneto de Venecia nos dias 18, 19 e 20 de março de
1994 e publicadas no nº 16 da revista La Psicoanalisis.

I
As questões éticas se impõem também no final da análise quando se avalia sua
incidência na experiência analítica. O ensino de Lacan é o que permite situar, nessa
perspectiva, um problema que pode parecer técnico e ligado à aplicação do princípio
terapêutico freudiano.
Início e conclusão da cura – temas do congresso de Turín e do VIII Encontro
Internacional de Paris, respectivamente – não se contrapõem. Lacan os coloca sob a
mesma perspectiva afirmando que a análise termina de acordo com o início do qual
se originou.
Assim como toda a infância do sujeito pode estar resguardada pela mais ínfima
lembrança infantil, encontramos também, no aprés-coup da conclusão da análise, que
tudo já estava ali desde a primeira sessão.
É uma maneira de compreender a metáfora freudiana do jogo de xadrez – o mais
lógico dos jogos, ao menos no Ocidente – para designar a colocação em cena e a
conclusão da experiência analítica. Qualquer pessoa que tenha jogado um pouco de
xadrez sabe que a eleição entre diversas formas de começar, ofensiva ou defensiva,
depende da maneira na qual se queira jogar o final da partida. É necessário impor a
própria lógica ao outro jogador se antecipando, ao final, à sua estratégia.
Haver escolhido uma metáfora lógica corresponde a uma característica da psicanálise
que Freud indica em “O método psicanalítico de Freud”1 quando, falando em terceira
pessoa, apresenta sua descoberta a um público muito amplo.
Freud apresenta a diferença, ainda atual, entre a psicanálise e outras formas de
psicoterapia pelo fato de a eficácia terapêutica daquela não se basear no poder de
sugestão. As formas de psicoterapia reconhecidas no estado italiano (familiar,
cognitiva, comportamental ou sistêmica) se inspiram na prescrição ou no conselho do
médico; a psicanálise, ao contrário, opta por não exercer o poder de sugestão, o
poder da ordem, de conselho, da direção.
Nenhuma sugestão, assim o quer Freud, mas sim uma lógica para a qual é
necessário “deixar-se levar”, expressão por ele utilizada.
Como obter, então, esse “deixar-se levar”? Se essa lógica é aceitável para quem vem
solicitar uma análise é porque, desde o início, tanto o paciente quanto o analista estão
submetidos à lógica da associação qualificada por Freud como "livre". É uma
referência irônica ao associacionismo da psicologia universitária da época; ironia que
nos escapa por não termos o mesmo corpus de referência: o associacionismo de
Wundt que foi imposto, forçado e cujas consequências foram sofridas por todos os
laboratórios universitários da época.
Em outras palavras, o cognitivismo dominante se contrapõe a um significante novo, a
associação livre, que Freud formula como "...comunicar tudo o que lhe vier à cabeça,
mesmo que o considere secundário, impertinente ou incoerente".
Acima de tudo, Freud exige que “…não excluam da comunicação nenhuma ideia ou
nenhuma ocorrência, por lhes parecer vergonhosa ou dolorosa sua comunicação” 2.
É a primeira formulação dos preceitos técnicos de Freud.
Sublinhemos, por ora, que a primeira intervenção de Lacan no campo da psicanálise
foi feita para refutar a significação dominante nos anos 50, segundo a qual esse
abandono levaria, quase automaticamente, à revelação do inconsciente graças a uma
espécie de automatismo funcional. A análise das resistências, que visa à sua redução
progressiva, desenvolve-se a partir dessa sensibilidade técnica. Lacan se opõe a um
ponto fundamental: o horizonte de verdade sob o qual se desenvolve a obra de Freud,
que abrange o campo de incidência da natureza humana, suas relações com a ordem
simbólica, o advento de seu sentido a partir das instâncias mais radicais da
simbolização do ser.
Não é por meio de um mecanismo de liberação funcional, quase biológico, que se
advém a um sentido que toca a instância mais fundamental da simbolização. Esta é
uma primeira resposta à questão de como as análises começam. Em outras palavras,
as análises começam quando a verdade é colocada em jogo nas relações de cada
um com a ordem simbólica, através da jornada do significado dos símbolos. Essa é a
primeira perspectiva que Lacan traz em: "Intervenção sobre a transferência" de 1950,
onde, a respeito do caso Dora, coloca o começo da análise no plano da afirmação da
verdade. Nesse primeiro teste, Freud não se mostra hipócrita em relação ao pai de
Dora: "Durante as sessões de tratamento, Dora repetidamente criticou amargamente
o pai, dizendo que ele era pouco sincero, pensava apenas em sua própria satisfação
e possuía o dom de representar as coisas como lhe convinham, críticas que se
intensificavam especialmente nas ocasiões em que o pai se sentia pior e corria para
B...” 3.
Freud, que havia curado o pai de Dora e que havia sido consultado dois anos antes
pelas perturbações relacionadas ao sintoma histérico da jovenzinha, não recua em
afirmar a veracidade desta descrição: "Em geral não era possível defender o pai
contra essas recriminações e era fácil ver qual delas era a mais justificada” 4. Freud,
então, não se entrincheira no sigilo profissional para evitar julgar o pai e retém como
verdadeiro o julgamento de falso caráter.
É a partir dessa colocação em jogo da verdade que os sintomas psicanalíticos podem
ser diferentes dos sintomas médicos e reconhecidos em sua peculiaridade: para nós
o sintoma analítico supõe, pelo que tem de fundamentalmente imaginário, a
representação fragmentada do corpo introduzida na poderosa combinação da
linguagem.
Estão juntos, verdade e combinação, nessa mínima sobredeterminação representada
por um duplo sentido que só pode ser instalado por meio da linguagem que gera os
mal-entendidos. No caso de Dora, o mal-entendido levará à tosse e à rouquidão,
assim como ao significante estruturado no traço de falsidade do pai, afortunado por
ter dinheiro, mas desafortunado por ser impotente.
A colocação em jogo da verdade e do mal-entendido parece paradoxal, pois em
âmbitos diferentes do nosso, por exemplo na filosofia da lógica, a verdade é posta em
jogo através da redução do equívoco. Em seu texto inaugural de 1892, "Sentido e
Significado", Frege distingue o mal-entendido do sentido para isolar a unicidade do
referente. O exemplo do princeps é o seguinte: "estrela da manhã" e "estrela da
noite"; a primeira “estrela” visível à noite e a última pela manhã são, na verdade, um
mesmo corpo celeste. A verdade das afirmações que se referem ao planeta implica a
redução do mal-entendido.
O discurso analítico, ao contrário, estabelece no mesmo momento equívoco e
verdade, à medida em que é o equívoco o que permite tomar o sintoma na
combinação da linguagem.
Vejamos, por exemplo, um sujeito obsessivo que vem se lamentar por estar sempre
atrasado, nas suas obrigações e na sua vida em geral, sem entender por que certos
sonhos que aparecem durante entrevistas preliminares com o analista têm um
conteúdo incestuoso em relação à sua tia. Com grande surpresa, ele se pergunta: Por
que a tia? Há uma homofonia na língua francesa entre l'attente e la tante. A partir
desse primeiro movimento, que é a combinação de verdade e equívoco, o sujeito é
introduzido no lugar onde opera o poder combinatório da linguagem e de onde se
pergunta qual é o gozo da espera. Resta saber como fazemos para que o sujeito
consinta dar lugar a essa verdade que fala por sua boca para fazer sentido.
O termo "consentimento" é usado por Lacan em referência ao cardeal Newman. No
"Ensaio para uma gramática do consentimento" de 1870, Newman questiona o
consentimento ao qual estava vinculado como militante da persuasão e, além disso,
cardeal convertido à Igreja Anglicana (a cisma preocupa a Igreja Anglicana até o final
do Renascimento). Pode-se ironizar o consentimento de Newman, mas permanece
um grande mistério ao qual não se devem fechar os olhos. Também o encontramos
naquelas escolas analíticas que usam a metáfora do contrato e da aliança
terapêutica.
Por que obtemos consentimento? E antes de obtê-lo, por que essas entrevistas
preliminares? Durante as entrevistas o sujeito recusa-se a admitir a verdade e só ao
final consente.
A aliança com um profissional é uma perspectiva na qual se tenta obter do sujeito que
ele se torne objeto, que fale de si como se fosse outro. As terapias cognitivas,
comportamentais, sistêmicas, recorrendo cada vez mais a instrumentos técnicos,
tendem a fazer o sujeito falar de si com notável objetividade.
Por exemplo, o bio-feedback em escolas cognitivistas onde a autoimagem é
objetivada – observando-se a si mesmo ou a membros da família em vídeo - é usado
para encorajar ou promover a autorrepresentação à distância.
Ou melhor, a objetivação do corpo pelo imaginário; os órgãos visíveis, por exemplo,
na curva das funções cardíacas, nos gráficos da pressão arterial e em todas as
formas possíveis da colocação em imagem de si mesmo. São imagens que fascinam
e que o progresso tecnológico alimenta desmesuradamente a ponto de os sistemas
de saúde dos países civilizados serem ameaçados pelo custo da enorme quantidade
de ecografias inúteis produzidas por puro fascínio pela autorrepresentação.
Existe todo um campo em que a objetivação de si mesmo pode ser considerada um
caminho terapêutico que determina um certo número de efeitos indiscutíveis e não
podemos simplesmente descrevê-los como ineficazes. O ensino de Lacan, que segue
a orientação de Freud, renuncia a essa possibilidade, à eficácia da objetivação, em
nome de uma outra perspectiva. Não se trata de uma nova objetividade (enquanto se
pode falar de uma nova realidade), mas de obter uma nova subjetividade, uma nova
subjetivação.
Em "Função e campo da palavra e da linguagem na psicanálise", escrito dois anos
depois de "Intervenção sobre a transferência", no comentário sobre o início da análise
do Homem dos Ratos, Lacan coloca a análise em uma nova perspectiva dialética,
tendo-a correlacionado a um aspecto deixado de lado neste texto. A partir das
primeiras sessões de O Homem dos Ratos, publicadas por volta daqueles anos e que
não lhe foram disponibilizadas em 1951, Lacan examina uma crítica segundo a qual
Freud não teria sido um terapeuta rigoroso, argumentando que era preciso superá-lo
para permitir o progresso da psicanálise. Essa crítica baseava-se no fato de que
Freud teria concordado em dar explicações ao Homem dos Ratos quando este lhe
confidenciou seu fantasma secreto na segunda sessão, transgredindo assim a regra
de não atender ao pedido do paciente.
Lacan demonstra como Freud obteve o relato do fantasma do Homem dos Ratos
aplicando exatamente as consequências de seu horizonte de verdade. Vamos reler a
passagem de Freud6
“… e o capitão contou ter lido que no Oriente era aplicada uma punição singularmente
terrível. Chegando aqui, o paciente se interrompeu, e levantando-se do divã (...),
pediu-me que o dispensasse da descrição daquele castigo. Assegurei-lhe que, de
minha parte, não tinha tendência a ser cruel e que, claro, não queria atormentá-lo,
mas que não poderia conceder-lhe o que me pedia, pois vencer a resistência era um
mandato inescapável da cura. (No início daquela sessão eu havia explicado a ele o
conceito de resistência ao ter ele me advertido sobre quanto esforço teria que ser
feito para me comunicar essa vivência). Então eu disse a ele que faria o possível para
facilitar a tarefa, tentando adivinhar o que ele se limitara me dizer, sem entrar em
detalhes, e lhe perguntei se ele estava se referindo ao empalamento. 'Não, não é
isso. O condenado era amarrado...'. (Ele se expressou de forma tão imprecisa que no
momento não consegui adivinhar em que posição). ‘Era adaptado um recipiente às
suas nádegas e nele foram colocados vários ratos, que depois iam se introduzindo...".
Aqui pude completar: 'No ânus...' Em todos os momentos importantes do relato podia
observar nele uma expressão singular que só poderia ser interpretada como um sinal
de horror diante de um prazer do qual ele não tinha a menor consciência". Parece-me
que a tradução de Lacan “o horror de um gozo ignorado” é mais eficaz do que a
tradução do texto freudiano na edição francesa, escolhida simplesmente para ignorar
à de Lacan.
Continuo a leitura de Freud: “Com dificuldade ele continuou: ‘Naquele exato momento
surgiu em mim a ideia de que isso estava acontecendo com uma pessoa que me era
querida'. A observação clínica da máscara de gozo do Homem dos Ratos permite a
Freud situar de imediato todo o paradoxo da questão psicanalítica: o fato de que no
próprio momento em que o sujeito oferece, com o relato, a verdade do que sente,
comprova com isso, diz Lacan, um gozo ignorado. Nesse texto, Lacan destaca
sobretudo que a satisfação se situa no plano imaginário e a verdade no eixo
simbólico; essa satisfação particular no imaginário não é ignorada por Freud que não
escolhe a vertente sedutora . “Não lhe escapa o efeito atual da repetição desse relato,
nem, portanto, a identificação do analista com o 'capitão cruel' que forçou esse relato
na memória do sujeito, nem tampouco, portanto, o alcance dos esclarecimentos
teóricos cuja vestimenta requer do sujeito para continuar seu discurso” 7.
Estamos aqui introduzidos no paradoxo da cena analítica: no momento em que se dá
o advento do sentido que tem efeitos de verdade, esse sentido assume a conotação
de gozo e toda a colocação em jogo está nesse enodamento de entrada. Como a
correspondência entre “l´attente e la tante” aponta que para esse sujeito o gozo
(“jouissance”) e o sentido em jogo (“jouis-sense”) estão imediatamente enodados. Em
outras palavras, para nós não é possível fazer a verdade jogar contra o gozo,
contrapondo-o a ela, como sempre faz a filosofia.
O título do recente encontro de Madri “O verdadeiro, o falso e o resto na experiência
analítica” representa, no fundo, uma forma de abordar o mesmo tema do Congresso
de Turim: “Como se iniciam as análises”. A dimensão do verdadeiro e do falso se
estabelece no mesmo momento em que nos encarregamos do resto do gozo.
No caso do Homem dos Ratos como no caso de Dora, no mesmo momento do
advento da verdade surge uma carga de gozo pelo fato de o sujeito permitir que a
verdade fale por sua boca. Deixar a verdade falar pela boca permite a Dora
sistematizar os sintomas que têm a ver com a rouquidão. Para o Homem dos Ratos,
deixar falar a verdade significa medo em relação à mulher amada, o auge desse
sentimento indizível é o que Lacan define como "implicar o sujeito em sua
mensagem". Para nós, a verdade está enodada ao sujeito pela carga de gozo que
comporta, e aqui nos separamos do tratamento pré-psicanalítico da verdade que
coloca em contraposição verdade e gozo. Na conferência de encerramento das
Jornadas de Madrid, J-A. Miller colocava toda a história da filosofia na perspectiva
dessa contraposição entre verdade e gozo, verdade e poder, enfatizando que a
verdade sempre teve um caminho de impotência. Essa oposição já havia sido intuída
por Nietzsche quando se rebelou contra a impotência da verdade, ou a impotência a
que a verdade conduz.
Enquanto todo o movimento na história da filosofia esteve alinhado com a verdade
contra o gozo, seu recurso à "vontade de poder" representou a luta contra o prestígio
da verdade para enfrentar a questão feminina e suas próprias dificuldades em relação
ao desejo feminino.
A psicanálise confirma, surpreendentemente, que desde o início da experiência
analítica verdade e gozo são inseparáveis; nós os encontramos no final da análise e
isso corresponde à sua natureza interminável. No início temos uma espécie de aposta
pela verdade contra um gozo embaraçoso; a análise não conclui por que há um gozo
que consiste em dizer a verdade. Lacan nos anos 1970 destaca que as análises
duram porque há um gozo interno ao próprio processo analítico, uma implicação do
sujeito na mensagem da própria verdade que aparece até a colocação em ordem das
coordenadas da experiência analítica. É nessa perspectiva que os convido a reler A
Direção do Tratamento, que é para nós um clássico desde o início da análise. É um
texto do final da década de 1950, no qual Lacan indica que a retificação subjetiva é
outra forma de dizer a implicação do sujeito em sua própria mensagem como
pressuposto indispensável para o desenvolvimento da análise.
Quando Dora reclama de "ser...", Freud concorda com essa afirmação. “Quando uma
série de ideias corretamente fundamentadas e irrepreensíveis aparece no tratamento
psicanalítico, surge também um momento de perplexidade para o médico, podendo o
paciente tirar certa vantagem ao perguntar: “Isto é inteiramente bem pensado e
verdadeiro, não acha? O que você gostaria de mudar do que eu lhe disse?" 8
É justamente esse “o que você quer mudar?” que Lacan interpreta com a ajuda do
conceito hegeliano de “alma bela”. A " alma bela " não é uma alma estúpida, pelo
contrário, é uma figura extremamente rigorosa e reta do luteranismo prussiano. Hegel
demonstra que a "alma bela", impecável e justa participa da desordem que denuncia.
Não se deve esquecer que a queda da posição de " alma bela " não é simplesmente
uma demonstração, uma oposição, é uma lição de filosofia moral que não se obtém
senão com a condição de que o sujeito se envolva em sua própria mensagem. Não
podemos alcançá-lo simplesmente em nome da verdade; mas só podemos alcançá-la
se, depois de ter obtido o enodamento entre gozo e verdade, se colocar em jogo um
gozo desconhecido pelo sujeito.
O gozo ou o sentido de gozar de que falava Lacan nos anos 1960 é escrito de outra
maneira que jouissance: no momento em que aparece, torna-se jouis-sense. Em certo
sentido, a retificação subjetiva, a primeira metáfora que queremos obter para começar
a psicanálise, pode ser escrita assim:
Trata-se, na verdade, da colocação em jogo das relações do sujeito com o simbólico e
equivale a:
Ou podemos escrevê-lo substituindo o gozo desconhecido do sujeito por um efeito de
sentido de gozar, sem efeito de verdade:
Essa é a grandeza do título de um filme de Visconti: Senso que liga o sensual ao
sentido completamente vazio da ridícula história de uma mulher que destrói sua vida
por um gigolô barato, um menino inconsistente.
A oscilação imparável deste caminho ao gozo, tendo como pano de fundo um sem
sentido absoluto da história deste casal, mostra a diferença entre o filme e o livro que
Visconti usou para fazê-lo8.
Trata-se de obter uma primeira substituição nessa forma dupla, que permita integrar
as diferentes maneiras pelas quais Lacan, ao examinar os casos de Freud, localiza o
momento do início, o que é difícil de situar.
Nesta primeira palestra quero sublinhar que o analista não pode confiar na colocação
em jogo da verdade, mas deve também colocar imediatamente em jogo o resto que
acompanha a verdade. Esse resto se materializa no uso correto da resposta do
analista à demanda do sujeito:
sua não resposta introduz uma significação da verdade como horizonte ou limite da
significação, mas ao mesmo tempo, através do silêncio, introduz a ligação entre a
verdade e a morte, entre a verdade e a cadaverização da sua posição.
Em Função e campo da palavra e da linguagem, Lacan aponta o sentido mortal que
revela na palavra um centro externo à linguagem, ao qual dá a forma topológica do
touro, cuja exterioridade periférica e central constituem uma região única de gozo
apresentada pelo analisante. O analista responde através da introdução de um ponto
que podemos classificar como vazio e em torno do qual o discurso desliza. Esta é a
introdução em reserva do lugar da referência última à linguagem: a morte, como
aquilo que, naquela época, designava a potência da combinatória da linguagem. O
silêncio do analista representa o objeto em sua inércia e ao mesmo tempo em sua
consistência lógica. O silêncio do analista não é um silêncio de abstenção. Nos anos
cinquenta, Lacan fala de um silêncio de pacto, não de contrato, que chama de “dom
simbólico da fala, prenhe de pacto secreto10. “Prenhe” é um termo escolhido por
Lacan para designar os fantasmas da gravidez anal do Homem dos Ratos. O silêncio
analítico de Freud – que pode muito bem incluir recomendações técnicas, mas que se
mantém fundamentalmente como silêncio sobre a verdade – é um silêncio ativo e o
encontramos junto com a inércia do que escapa à verdade e se estabelece na
consistência lógica desse objeto.
Para descrever a entrada em análise, Lacan optou por utilizar a metáfora do bridge,
não só porque jogava mais bridge do que xadrez, mas também porque é o jogo do
bridge que permite compreender a substituição entre a morte e o morto. De fato, no
bridge pode-se jogar com um parceiro ausente quando, terminada a rodada das
declarações, um dos componentes de uma das duplas, denominado “o morto”, vai
embora deixando as suas cartas na mesa. Temos a figura do consentimento, ou seja,
da morte indicada na pura combinatória das cartas que ficam sobre a mesa. A
grandeza desses dois jogos reside na domesticação da morte que aparece sob a
rubrica da significação do horizonte da morte, ou então como pura potência da
combinatória. É por isso que o dom simbólico da palavra, o pacto analítico pelo qual
começam as análises, é indissociavelmente a máscara da inércia que resiste à
verdade e ao poder da combinatória: os três enodados juntos.
II
As três respostas que demos ontem à pergunta: Como começam as análises?
referiam-se à implicação subjetiva que sinaliza a introdução de um novo espaço; ao
inconsciente e seu resto (o isso, ça).
Voltemos ao ponto do envolvimento subjetivo. Vejamos como Lacan no segundo
capítulo de A direção do tratamento questiona o lugar e a função da interpretação na
psicanálise. O título do capítulo é: Qual é o lugar da interpretação?, mas outro tipo de
título permanece oculto: a psicanálise começa com uma primeira interpretação, qual?
A direção do tratamento foi escrito em 1958, num contexto caracterizado por um
interesse exclusivo na análise das resistências. O texto clássico daqueles anos é o de
Greenson (psiquiatra de Marilyn Monroe), a quem Lacan desconsiderou totalmente,
preferindo polemizar com o trio anna-freudiano: Hartmann, Kris e Loewenstein, que
deu base à corrente da Ego Psychology. Lacan, de fato, se refere a Kris quando
indica qual é o lugar da interpretação na perspectiva da análise das resistências e
diante da denúncia da insuficiência de Freud em nome dos avanços obtidos pela Ego
Psychology. Para sublinhar a brecha entre a origem freudiana e o estado da técnica
psicanalítica, ele relê Freud mais uma vez, como o fez ao longo de todo o seu ensino.
O caso Dora e o do Homem dos Ratos são, pela primeira vez, colocados frente a
frente para destacar as características comuns no início da análise. “Ha muito tempo
destaquei o procedimento hegeliano dessa inversão das posições da 'alma bela' em
relação à realidade que ela acusa (...) Mas aqui se detém o caminho que deverá
percorrer com o outro.” 11
Este texto se baseia no esquema L, esquema fundamental até o diagrama do desejo,
que aparecerá no texto de 1960 Subversão do sujeito e dialética do desejo. De fato,
pode-se argumentar que em A direção do tratamento encontramos a articulação entre
o esquema L e o diagrama do desejo.
O primeiro movimento do procedimento hegeliano em Freud consiste em fazer um
trecho junto ao outro imaginário, revelando então a lamentação daquele que fala.
Logo em seguida, insere-se outra coisa que Lacan destaca afirmando que Freud
renuncia a um poder (ao qual se deve este primeiro movimento); o tema fundamental
de A direção do tratamento é justamente a negação do poder. Há algum tempo, para
indicar o que é e como se caracteriza o desejo do analista, afirmava J-A. Miller que
este consiste em escolher sempre o caminho da renúncia ao poder. Entre duas
soluções, o desejo do analista é exercer sempre a renúncia ao exercício do poder
para fazer agir outra coisa. Isso poderia construir um teste para os analistas.
Essa renúncia ao poder é o que Lacan qualifica, em Televisão, como: a posição do
santo. Não só na tradição cristã, o santo é aquele que renuncia, por exemplo, à
pregação ou à direção da consciência, para escolher a via do silêncio e da oração.
Em um de seus seminários, Lacan se refere ao Tao para fazer entender o não-agir,
que não é uma posição passiva em nenhum caso. O fascínio ocidental pela atividade
dificulta a compreensão do que é a renúncia para além de um procedimento
propriamente técnico. O santo que se retrai da ação sabe utilizar o que um filósofo
francês chamou de "a propensão das coisas". Reencontramos ali um eco da crítica
heideggeriana da ação técnica: a usura de todas as matérias, inclusive a matéria-
prima "homem", em benefício da produção técnica e da possibilidade absoluta de
fabricar tudo está secretamente determinada pelo vazio total em que a essência e a
substância do real são suspensas. É na perspectiva da reflexão heideggeriana: o
isolamento diante de todas as ações cujo objeto é isolar a causa secreta, ou melhor, o
lugar da causa, o vazio no qual o ser está suspenso. Essa matéria do real reivindica o
que para Lacan é a matéria do sujeito: o fantasma, palavra também utilizada por
Heidegger para indicar a tela colocada sobre o vazio.
A arte do psicanalista, seu Tao, é fazer aparecer o vazio secreto do qual toda
atividade está suspensa, cada ação com um objeto que o analisante coloca sobre o
eixo imaginário. Enquanto para o filósofo o vazio é a verdade concebida como aleteia,
privação, como esquecimento do esquecimento, para o psicanalista o vazio que deve
ser revelado é o gozo secreto que está em jogo, o lugar do gozo ausente no universo
dos nomes próprios e, antes de tudo, no universo de todas as ações com um objeto,
que visa obter o sinal do desejo do Outro. Para Heidegger querer alcançar, por parte
do sujeito, um sinal do lugar do Outro, para além de todos os objetos, é a busca da
vontade da vontade.
Entre o procedimento hegeliano – Lacan o chama de retificação subjetiva – e a
renúncia ao exercício do poder, o vazio secreto aparece em dois momentos.
O primeiro: a queda das ilusões sobre si mesmo faz aparecer o lugar do Outro e a
demanda que parte da implicação subjetiva do sujeito, em seu próprio gozo,
permanece no eixo imaginário. No segundo momento, o vazio do gozo aparece a
partir do eixo simbólico: é o gozo que falta no universo dos nomes próprios que
designam exatamente o lugar do Outro no eixo simbólico. "Digo que numa direção do
tratamento que se ordena, como acabo de demonstrar, segundo um processo que vai
desde a retificação das relações do sujeito com o real, até o desenvolvimento da
transferência, e depois a interpretação, onde foram entregues a Freud as descobertas
fundamentais, sobre quais ainda vivemos em relação à dinâmica e à estrutura da
neurose obsessiva12. Esta é a perspectiva na qual ele se orienta; devemos entender
essa afirmação lacaniana como significante que deve ser interpretado apenas quando
a análise já foi amplamente desenvolvida, ou está próxima do fim. Isso apresenta, de
início, certa dificuldade.
A primeira diz respeito à transferência, que para Lacan é a emergência do sujeito
suposto ao saber. Lembro-me do escândalo causado por essa definição epistêmica
que não parte da afetividade. É uma concepção que não é facilmente transferível para
aqueles que não se dedicaram a um estudo preciso dos textos de Lacan, exceto se
estudaram teologia, porque o amor de Deus tem muito a ver com o que não se sabe e
não se pode saber e que é, aponto, o inconsciente.
Desde o início de seu ensino, Lacan afirma a necessidade do amor transferencial: em
Intervenção sobre a transferência ele destaca o prestígio que Dora teria atribuído a
Freud se ele tivesse interpretado seu amor pela Sra. K. É a interpretação preliminar
que provoca o amor, é a interpretação correta que faz surgir ao sujeito suposto saber
e que provoca o amor. Definir a transferência a partir do sujeito suposto saber permite
evitar duas armadilhas: que o analista se faça de sábio ao encher o analisante com o
uso do saber; a aparição do sujeito suposto saber produz um efeito de verdade e
acarreta a suspensão do saber. É coerente com a recomendação freudiana de
suspender todo saber preliminar no início do caso.
No início da cura, quando o paciente chega à consulta do analista, o saber trabalha e
o fatiga. É um sujeito obrigado ao trabalho do saber, constrangido ao esgotamento
sintomático causado pela demanda. No caso de Dora é o esgotamento da demanda
dirigida ao pai, e para o Homem dos Ratos o esgotamento do transe obsessivo que o
leva a Freud.
A primeira coisa a fazer é levar esse saber à posição de verdade, tirando-o do lugar
do trabalho, ou seja, colocando-o no lugar da preguiça (a expressão é de J-A. Miller).
A partir deste momento é possível reconstruir o saber. Existe uma expressão muito na
moda para ir em busca de uma análise "Gostaria de fazer um trabalho com você". A
subjacente perspectiva luterana, segundo a qual cada coisa, para estar justificada,
deve desenvolver-se conforme a modalidade de trabalho é contrariada, porque
sobretudo análise não é um trabalho. É um trabalho do analisante, mas supõe um ato
preliminar que não consiste em deitá-lo no divã, mas em fazer aparecer o vazio total
sobre o qual está suspensa a essência (e as próprias ações baseadas nas
identificações do Eu). Esse procedimento hegeliano como procedimento de
interpretação pode ser escrito como saber em posição de verdade. “É também que
essa retificação em Freud é dialética, e parte dos dizeres do sujeito para voltar a
eles...” 13. Isso parece contradizer a distinção entre retificação e interpretação, mas
esclarece-se escrevendo retificação e interpretação como os dois eixos do esquema
L.
Procuremos agora a quarta resposta à pergunta: como começam as análises?
Poder-se-ia responder: quando aparece o gozo vazio que sustenta a ação do sujeito.
A divisão do sujeito posto em ação por si mesmo é o que Lacan expressa da seguinte
forma: “partir dos dizeres do sujeito para retornar a eles”. A língua italiana destaca o
equívoco entre godimento (gozo) e "eu minto" que permitiu a Lacan questionar o
conceito e o uso analítico da identificação. No Seminário IX, a relação entre
identificação, vazio e o lugar do sujeito para além de qualquer identificação, parte do
exame do paradoxo do mentiroso.
É preciso, antes de tudo, conceber o "eu penso" como um paradoxo estruturado da
mesma forma que o "eu minto", paradoxo estoico inventado para complicar a tese dos
aristotélicos sobre o universal. Aristóteles reduziu cada forma de julgamento a um
quadrúpede formado pela afirmativa universal, as proposições negativas universais, a
particular negativa e a afirmativa; todas são deduzidas da admissão preliminar de um
universal, de um todo. Por que os estoicos inventaram, para complicar a relação do
sujeito com o universal, a figura do cretense Epimênides que afirma que todos os
cretenses são mentirosos? Separar o enunciado da posição do enunciador resulta em
um paradoxo que denuncia a identificação de Epimênides no registro do universal: se
todos os cretenses mentem, onde identificar Epimênides o cretense? Não é possível
decidir sobre a natureza de seu enunciado e é por isso que a relação do traço
universal com a identificação está no cerne da questão psicanalítica. O belo título do
filme de Antonioni, Identificação de uma Mulher, aponta para um problema: se uma
mulher é inconsistente, ou seja, não pode ser reduzida a um traço universal, como
defini-la? O paradoxo do mentiroso questiona exatamente este ponto: a
inconsistência do Outro e a identificação.
Com a afirmação do cristianismo desapareceu o gosto dos antigos pelo paradoxo.
São Paulo, de fato, referindo-se a Epimênides, escreve em uma de suas epístolas
que os pagãos sabem que o que dizem é falso; além do mais, um de seus filósofos
diz que ele mesmo mente. Surpreende a total ausência do gosto pelo paradoxo em
São Paulo, que era um dos apóstolos mais inteligentes, mas no fundo é
compreensível porque para ele a verdade já estava em outro lugar e ele acreditava ao
pé da letra o fato de que Cristo é a verdade e o caminho. Na rua da verdade a
possibilidade de paradoxo é menor e o problema não é o universal, a causa
aristotélica: o lugar da verdade é agora o lugar da encarnação e da palavra como tal e
tem sido a escolástica, muito tempo depois, a que descobriu toda a importância do
paradoxo.
Um texto de Alexandre Koyré sobre Epimênides, publicado em 1947 -que Lacan leu
com Kojève, compatriota e amigo de Koyré- mostra que a estrutura desse paradoxo é
comum a vários outros. Por exemplo, o paradoxo do barbeiro que em um país barbeia
todos os homens que não se barbeiam sozinhos. O barbeiro se barbeia sozinho?
Como pode-se defini-lo?
Sua estrutura consiste sempre em definir um todo que compreende um determinado
número de elementos e pode implicar a afirmação, com um movimento autorreflexivo,
sobre um desses elementos; um dos elementos do conjunto implica um julgamento
sobre todos. Para suprimir o paradoxo é necessário proibir os julgamentos que dizem
respeito ao todo. Em outras palavras, o julgamento: "todos os cretenses" deve ser
proibido a Epimênides, porque são questões que não podem ser colocadas com
validade e certos verbos não podem ser conjugados na primeira pessoa.
O esquema do paradoxo é o da causa de si, ou melhor, é o do suicídio. É uma bela
definição para um lógico, que pode se aproximar da definição lacaniana de suicídio,
válida tanto para a neurose quanto para a psicose: golpear em si mesmo a própria
causa. Koyré distingue o absurdo do sem sentido; O “eu minto” de Epimênides é da
ordem do sem sentido porque, na realidade, nenhum conceito se aplica a si mesmo,
assim como o conceito de “cretense” não pode ser aplicado a um elemento de todos
os cretenses: há uma lacuna entre “cada” e o “um". Esse tipo de paradoxo apareceu
com força total quando a lógica moderna se ocupou dos conjuntos infinitos; eu
assinalei o impacto que Russell teve com seu paradoxo sobre a lógica dos conjuntos
de Frege.

Considerar conjuntos infinitos desloca questões do tipo: um conjunto pode conter a si


mesmo como elemento? Russell conclui que nada do que implica no "cada" de uma
coleção deve ser um membro dessa coleção. Se a suposição de que uma coleção
para um "cada" implica que ela possui membros que não podem ser definidos exceto
em termos desse "cada", então essa coleção não forma um todo. É um pensamento
abstrato, mas a relação com a psicanálise é fundamental.
No caso clínico apresentado ontem por Graziella Vannini, o deslocamento do colar, a
série: ouro, marfim, em seguida o colar falso faz aparecer uma instância que poderia
constituir um conjunto identificador cujo nome de gozo é o objeto oral: o fantasma é
indicado nos enunciados que têm esse objeto como objeto oral. A unidade, o todo,
aquilo que assegura o todo dessa instância reunida a partir do traço da oralidade, é o
sujeito. Mas o sujeito faz parte desse conjunto? A identificação do sujeito é
coexistente com os termos do conjunto ou é externa? O sujeito é para nós, ao mesmo
tempo, aquilo que encontra sua representação nos significantes em jogo, mas
também no gozo que unifica esse circuito.
Se o sujeito é o "todo" que permite falar dessa série, é necessário, contudo, que não
seja membro desse conjunto, de tal forma que, inclusive para ele, pode-se afirmar
que nada do que implica o todo deve ser um membro de uma coleção.
Koyré observa que o “eu minto” deve ser estruturado como um x que libera um lugar
vazio. Se digo: "eu durmo", o lugar do sujeito se atualiza no "eu", por meio de um
sujeito que diz "eu". Koyré propõe reescrever o "eu minto": a afirmação y que faz com
que x seja falso. Esta frase pode então ser verdadeira ou falsa, se houver uma
afirmação y.
Mas no "eu minto" não pode haver sujeito, porque segundo a regra que define nosso
universal ("todos os cretenses mentem"), um elemento do conjunto não pode fazer
uma declaração sobre o predicado geral do todo. Portanto, diz Koyré, o paradoxo se
dissolve porque não é uma observação que tenha valor. No lugar do sujeito -que
reencontramos na frase "eu durmo"- há um vazio, um sujeito inexistente.
Considerações análogas são feitas por Lacan a partir do "eu penso", que fundamenta
a identificação preliminar do sujeito; seu "eu penso" é uma declaração falsa, porque o
"eu penso" -que parece coexistir com ele e através do qual, pensando com todos os
outros, ele se identifica com o Outro- é na realidade um vazio do sujeito, é o sujeito
como carente de todo pensamento. O "eu penso" não tem mais sentido do que o "eu
minto", porque é impossível situar e demonstra (e nisso está o interesse que Lacan vê
na análise dos paradoxos) o caráter ilusório da reflexividade; esse lugar de x mostra
uma espécie de estado zero do sujeito, preliminar a qualquer identificação.
Coloquei o índice zero por necessidade do nosso percurso, mas Lacan o escreve
diretamente, sem índice. É interessante, de toda forma, distinguir um estado
preliminar em que o "eu penso" faz surgir um vazio ocupado por um "eu sou": "sou
aquele ou aquela que leva o colar, que tem ou não tem o falo, que se sustenta em um
fantasma, por exemplo: escópico, que tem sido o guardião da mentira familiar”. Mas
longe de definir meu ser, essa primeira identificação define, melhor dizendo, o sujeito
na medida em que assegura o "todo" da identificação.
"Eu sou" (preliminar); ; ;
O "eu penso" faz aparecer um "eu sou" do gozo, mas retroativamente, onde era "eu"?
Onde era esse "eu" que não podia ser no "todo" do pensamento? O "eu sou"
preliminar (que é um x vazio) refere-se a um "eu penso" que supera um "eu sou", mas
já que "eu sou" entra novamente nos pensamentos, é uma identificação da qual
temos uma iteração sucessiva que sempre se afasta mais da matriz inicial e em todo
caso sempre mantém sua memória, a lembrança.
O estado zero do sujeito, preliminar à sequência de "eu minto", é idêntico ao estado
de "eu gozo"; Lacan faz valer essa equivalência e, utilizando um jogo de palavras da
língua francesa, reformula o imperativo Jouis! (goza) ao qual o sujeito responde j'ouis
(escuto); produto desta ordem de divisão.
O "eu penso", portanto, é preliminar e mostra, em uma estrutura paradoxal, um lugar
vazio no qual se enodam o traço da possibilidade de representação e o lugar de gozo
preliminar. Este é o ponto designado como o lugar da função do nome próprio e a
análise, procedendo através das cadeias associativas, inclui sempre esta função de
nome próprio. É para Lacan o ponto radical, que é necessário supor na origem do
inconsciente como arcaico, na origem do inconsciente como falante; para que o
sujeito possa se alcançar, ele só pode avançar escorregando continuamente nos
enunciados e elidindo-se do nome daquilo que é.
O uso da metáfora dessa série é o momento em que Lacan se separa de uma
concessão dialética da evolução da cura e, comentando a análise do pequeno Hans,
apresenta a cura como uma exploração sistemática, uma série.
Com o uso da série, Lacan dá um primeiro matema que permite entender como um
desenvolvimento psicanalítico pode ser concebido fora de um desenvolvimento linear
e, no entanto, pode ter um limite, seja qual for a repetição ou iteração (incluindo a
infinita ou supostamente infinita). Obviamente há uma certa dificuldade em admitir e
situar corretamente as séries infinitas com limites que no século XVII foram
representadas pela colocação em jogo das proposições de Leibniz sobre a mônada e
dos cálculos de Newton segundo os quais um deslocamento ao infinito pode ser
considerado como um tamanho limitado e manuseável.
A vantagem da metáfora da série reside no fato de que implica a possibilidade de
repetição infinita sem que isso seja uma evolução, ao mesmo tempo em que permite
um deslocamento do momento original que permite reencontrar, ao final, seu ponto de
partida termo: o "eu sou". Não mais um universal que acabaria incluindo a si mesmo.
A fórmula do fantasma que Lacan indicou a respeito de uma personagem da corte de
Luís XIV que se vestia de mulher era: “Sou aquele que pensa quando sou vestido de
mulher”, é a definição de “eu penso” ligada ao fantasma. A saída da análise é um "eu
sou" transparente ao pensamento do fantasma porque o estado produzido pela
destituição subjetiva lhe permite livrar-se da ilusão do "eu penso". É um “estou vestido
de mulher” e a partir daí, o sujeito deduz uma certeza sobre sua própria ação que não
supõe nenhuma reflexividade do “eu penso”.
Pode-se, então, considerar porque uma psicanálise começa não apenas por colocar
em causa a identificação imaginária, mas também por um universal de identificação
simbólica.
O lógico americano Peirce - diferentemente dos estoicos, mas igualmente crítico em
seu confronto com o universal aristotélico - observa que nenhuma definição de uma
totalidade a priori pode impedir a indagação pragmática. Uma desconfiança, portanto,
em relação ao "todo" em nome da investigação. Peirce inventa um quadrante
retomado por Lacan, dividido em quatro casas dentro das quais joga as quatro
grandes propostas aristotélicas: a universal afirmativa, a negativa e as duas
particulares.
A ideia de Peirce é que nas casas 1 e 4 cada traço é vertical e isso é perfeitamente
verificado mesmo que não haja traços na segunda. O fato de não haver traços não
impede que cada traço seja vertical. Para a demonstração é necessário simplesmente
considerar (deixo de lado o resto) que a universal afirmativa seja perfeitamente
compatível com uma ausência de identificação. A partir daqui temos uma variedade
de tudo, para o qual cada ponto de uma área não realiza a definição daquilo que faz o
todo dessa zona. Temos uma totalidade em que uma determinada área é, de fato, um
vazio ao invés de ter uma definição positiva.
É precisamente a relação do "todo" do universal com suas realizações que introduz
uma separação entre a existência e julgamento universal. Como o "eu minto"
desenvolvia uma existência que deveria fugir para o universal introduzindo um resto;
da mesma forma, essa definição do universal pode incluir uma área na qual ele não
existe. Esse novo estatuto de "todo" é um dos pontos essenciais da lógica
contemporânea.
Hillary Putnam, um filósofo americano muito divertido e original, que foi chefe do
departamento de lógica de Harvard, questiona o estatuto da necessidade em um
artigo muito sério que leva o título de uma conhecida canção de amor: “It ain’t
necessarily so”. Segundo Putnam, não é necessário que o universal aristotélico seja
definido a priori para incluir a possibilidade de existência; pelo contrário, é possível
definir as existências que escapam à definição da universal positiva, que podem, não
obstante, ser incluídas na mesma série.
Este simples quadrante nos permite perceber o que afirma o teorema de Gödel,
segundo o qual, qualquer que seja o enunciado ou o teorema existente em um
sistema formal, sempre podem ser descobertas verdades que não podem ser
demonstradas no interior do sistema. Se admitirmos que um traço vertical é um
teorema ou um traço de saber, para encontrar o conjunto de todas essas verdades é
necessário incluir uma área na qual a existência, em nome de tal saber já definido,
não se verifica.
Nossa concepção do sujeito prevê a possibilidade de passar dos teoremas do
existente, de seu sistema fantasmático, a uma nova existência, a um encontro. Dizer
que o fantasma é um axioma do sujeito, reduzindo todas as suas ações a um axioma
ou a uma série de axiomas, pode levar a uma falsa consequência. Tendo, de uma vez
por todas, os possíveis teoremas do assunto, só restaria dizer: "Bem, eu sou assim" e
com isso a análise não levaria a nenhuma descoberta. É absolutamente necessário
correlacionar a afirmação segundo a qual o fantasma é um axioma do sujeito com o
fato de que o universal, o para cada um, não pode ser reduzido ao conjunto de
enunciados dedutíveis a priori. Apoiando-se no que da existência escapa ao
universal, deve-se permitir que o sujeito saia do universal de seu fantasma. É por
meio da crítica do "eu penso" à maneira da universal aristotélica que a travessia do
fantasma, essa autoaplicação do fantasma, torna-se logicamente possível.
Putnam sustentava que seu interesse pelos jogos de linguagem de Wittgenstein não
residia na ruína de todos os conceitos transformados em puros semblantes, mas sim
que o jogo de linguagem não significava mais do que isso: não necessariamente o
universal deve estar presente em todas as realizações em que se manifesta e não
precisamos buscar a essência de um conceito segundo uma definição a priori. Lacan
propõe uma concepção da experiência psicanalítica baseada nessa ideia moderna de
“todo” que constitui o universal aristotélico com uma lista de meros exemplos que,
obedecendo a certos teoremas, deixam sempre a possibilidade de espreitar a
verdade.
Encontramos a extração do gozo de partida -o lugar vazio do "eu sou" que permite ao
sujeito a perda fundamental que o liberta do erotismo e o precipita na cadeia dos
significados- no desdobramento total do "tudo". Todos os enunciados, todos os
enunciados fantasmáticos, protegem até ao fim este lugar do vazio que secretamente
organizava todas as identificações imaginárias e simbólicas do sujeito.
Espero ter conseguido demonstrar que a retificação subjetiva, interpretação e
travessia do fantasma têm a mesma estrutura.

III
Nas conferências anteriores abordamos o problema do início da análise seguindo a
orientação dos nexos reais e simbólicos: na primeira, o envolvimento do sujeito em
seu próprio gozo e na segunda, a articulação do gozo com o vazio do estado inicial do
sujeito.
Hoje veremos como o algoritmo do estado inicial do sujeito permitiu a Lacan isolar o
algoritmo do início da análise indicado na Proposição.
Em “Observação sobre o relato de Daniel Lagache”, Lacan enfatiza que no sujeito
empenhado em uma análise “Não subsiste (...) senão aquele ser cujo advento só se
capta deixando de ser” 14, é uma forma de indicar a separação de um lugar original
que não seria acessível sem uma primeira identificação; o ser que não é mais cai sob
a barra.
A partir desse lugar perdido, Lacan indica a lógica do procedimento analítico: "Mas
esse lugar originário do sujeito, como eu o recuperaria nessa elisão que o constitui
como ausência? Como eu reconheceria esse vazio como a coisa mais próxima..." 15.

O termo "coisa" remete ao aforismo freudiano da falta essencial do sujeito, segundo a


qual a descoberta do objeto é sempre a redescoberta do objeto perdido, o reencontro
do lugar perdido do sujeito. Indicando em "a coisa" o lugar originário do sujeito, Lacan
relaciona o vazio do sujeito com a falta de um objeto e indica, assim, o lugar da
articulação (que se tornará borda, uma vez elaborado o instrumento topológico).
Impossível, então, reencontrar esse lugar que não passa de um corte, uma elisão, e
essa frase mostra de maneira interessante que o termo elisão pode ser sinônimo de
corte.
Se o horizonte da análise se define a partir da reconquista daquele lugar inicial, o
caminho é o de “encontrar nele as marcas de resposta que foram potentes em fazer o
seu grito chamado” 16.
É necessário destacar os termos, pois essas marcas são os mestres significantes da
mãe que transformará o grito em um chamado dirigido ao Outro que até então não
estava inscrito na cadeia significante. Por exemplo, um paciente lembra que quando
criança gritava tanto que seus pais ficaram anos sem falar, pois a mãe, interpretando
esse grito, deixou uma marca dizendo-lhe: "Ele tem o diabo no corpo!" O paciente
passou a vida demonstrando que isso era verdade. Ele sofria de uma doença de pele
psicossomática, uma psoríase muito reativa e sensível, que o deixou como uma
espécie de marca mais além do significante.
Na marca inscreve-se a onipotência da resposta do Outro materno em transformar o
grito em chamado, onde o significante e a marca estão indissociavelmente ligados. É
a marca que Lacan encoraja seus alunos a encontrar na famosa "Nota Italiana" sobre
o passe, a marca mais além das identificações.
Há uma espécie de genialidade nas deformações morfológicas identificadoras nos
retratos do pintor Francis Bacon, onde as marcas sobre corpo estão circundadas por
traços que ilustram ou questionam essa ação do significante sobre o corpo. A
representação do Édipo feita por Bacon é uma forma de poder inferir “Assim,
circunscritas na realidade, com o traço significante, essas marcas onde se inscreve a
onipotência da resposta17 e onde podemos ver a marca clara do traço significante.
O deslocamento da análise, o deslocamento do sujeito nas cadeias significantes que
custodiam para ele a pegada do poder transformado em significante mestre, retoca o
eu e a ilusão do eu até o momento da virada pela qual Lacan se interessa no texto
citado. Mais que um giro, trata-se de uma inversão, tendo em vista que se fala da
oscilação do espelho. Se isso nos interessa é porque, como mostra a "Observação
sobre o relato de Daniel Lagache", o sucesso do processo -quando o lugar inicial se
revela como o do corpo real, o corpo autoerótico, do corpo sempre perdido que não
teria conhecido aquela primeira marca que inscreve o Outro- permite ao sujeito
recuperar suas flores. As flores deste esquema têm muito a ver com as flores de
Psyche que Lacan comenta em seu seminário sobre "A transferência", ou seja, com a
relação entre o falo e o buquê de flores que figuram no quadro encomendado a
Masson (podem vê-lo no álbum publicado por Judith Miller com a carta que Lacan
enviou a André Masson para agradecê-lo pelo quadro recebido na véspera do
seminário).
O buquê de flores colocado entre as mãos da mãe da paciente, no caso clínico
apresentado por Graziella Vannini, destaca esse lugar e essa função que não está
indicada em nenhum vocabulário de símbolos e que pressupõe um lugar da
linguagem em que o mito individual se une ao uso do ritual. Assim, o ritual essencial
da confraria de São Roque previa que seu chefe oferecesse um buquê de flores ao
Doge, por ocasião de sua visita. O buquê de flores recuperado no corpo é uma forma
de descrever o último tempo, em que a perda da entrada se recupera por meio de um
gozo redescoberto. É por isso que Lacan poderá sair do modelo escópico dos anos
sessenta e falar de um saldo cínico, vale dizer, de um gozo permitido que surge no
mesmo momento em que advém o recobrimento do corpo real e o corpo imaginário.
Mas o corpo morto está perdido para sempre e é a dissolução do que para Lacan era
a ilusão do eu. Lacan escreve: “…. a própria presença, especular, do indivíduo diante
do outro, embora cubra sua realidade, revela sua ilusão egóica diante do olhar de
uma consciência do corpo como transida...” 18
; a pouco difundida expressão francesa “comme transie” (como transida) é baseada
no prefixo “trans”, o trespassado, aquele que passou mais além, tanto que é assim
nas tumbas medievais “transido” era um dos nomes do corpo representado no túmulo.
Nessa figura retórica da consciência do corpo trespassado, Lacan aponta um
paradoxo: a recuperação final do gozo é acompanhada de uma perda fundamental
em relação ao vivente e, após essa perda do corpo, fica somente o que pode ser
alcançado através de uma borda. Mais tarde ele vai chamá-lo de “mais de gozar” que,
como a mais-valia, é o que sobra quando levaram tudo.
Porém, "...o poder do objeto a (...) faz entrar no leque das vaidades seu reflexo nos
objetos a' da concorrência omnivalente"19. Esta frase já pode comentar o quadro dos
dois embaixadores de Hans Holbein, o Jovem, que ilustrara a capa do Seminário XI.
Nesse quadro aparece, em anamorfose, o objeto representado pela caveira que,
contrapondo-se com os objetos abundantes nas prateleiras, permite apreender o
corpo como morto. J-A. Miller colocou em evidência que para poder ver, saindo do
cômodo, o particular anamórfico, é necessário já tê-lo visto como uma mancha entre
os demais objetos do mundo. A saída da análise tem como metáfora a saída do
cômodo e, consequentemente, a aparição da dissolução do corpo que anula a ilusão
do eu e permite atravessar o plano das identificações. Ao entrar em análise, o sujeito
deve ter dito que algo de gozo não funcionava, não entrava em seu mundo.
Como começam as análises? Uma quinta resposta é quando o analista se depara
com uma coisa sem forma, branca, cuja forma ninguém pode descrever. É nesse
ponto que a análise pode se firmar, um ponto no qual se enodam
contemporaneamente o não representável no campo das representações e das
identificações. A partir desse ponto podemos compreender a dificuldade do que
Lacan define como nome próprio e a relação entre um nome próprio e marca, a letra
que aparece nessa marca.
No sonho do paciente da doutora Vannini aparecia um "pão branco", mas vocês
também podem pensar em todos os pacientes que vieram solicitar uma análise: cada
vez se reencontra essa presença, em um sonho, em qualquer fenômeno já visto,
inclusive em algum episódio de confusão obtundatória. Há sempre o rastro de um
objeto que não tem lugar no mundo do sujeito e é nesse rastro que se apreende a
afinidade entre o nome próprio e a marca. Esse ponto que designa diretamente o
significante como objeto, o significante e seu gozo, é o lugar onde figura que está ali
para ser lido antes que o significante o identifique, e que é o resto da ação do
significante, sua marca, sua letra.
Na Proposição de Outubro de 1967, Lacan propõe o algoritmo do início da análise
que transforma o da alienação do início. Para entender como Lacan conseguiu
escrever o significante da transferência e um sujeito por baixo da barra definido por
uma série de identificações, é necessária uma etapa preliminar, ou seja, a escrita que
evidencia impecavelmente o movimento de alienação:
É uma escrita verdadeiramente minimalista, reduzida, domesticada, que apresenta
toda a referência retórica prévia, em que o estado originário, o do corpo real, o lugar
evanescente do sujeito, se reduz à instalação do sujeito na cadeia significante,
dividido entre o significante mestre, que o faz desaparecer, e o segundo ao qual se
agarra.
Vamos escrever o algoritmo da transferência comentando o que Lacan escreve:
“Reconhece-se na primeira linha o significante S da transferência, isto é, de um
sujeito, com sua implicação de um significante que chamaremos de qualquer, ou seja,
que só supõe a particularidade no sentido de Aristóteles (sempre bem-vindo), que por
este fato supõe ainda outras coisas, se é nomeável com um nome próprio não é que
se distinga pelo saber, como veremos a seguir” 20.
Neste pequeno parágrafo inocente encontramos concentradas todas as dificuldades:
a articulação significante do nome próprio, sua particularidade e sua relação com o
saber. O tom é tão alusivo ao ponto de permitir uma discussão mesmo depois de
trinta anos.
Qual é o ponto? Temos uma função do significante, esse estranho significante da
transferência, que implica um significante qualquer, razão pela qual se esperaria um
significante sem particularidade. Ao contrário, diz Lacan, o qualquer pressupõe toda a
teoria da particularidade. Mesmo sendo um nome próprio, como pode ser relacionado
ao saber? A articulação se verifica no momento em que o sujeito que se apresenta
diante de vocês possui um saber inconsciente que o faz trabalhar:
O algoritmo descreve a oscilação do saber inconsciente que está inicialmente em uma
posição de trabalho -poderíamos dizer em uma posição normal-; em um segundo
momento se desloca por baixo da barra, no lugar que mais tarde será chamado de
lugar da verdade, designando o lugar vazio do sujeito. Este sujeito é o nome de todos
os significantes que o designam e ao mesmo tempo se exclui desta totalidade
constituída - segundo o tipo de lógica que já vimos - e está ali a título de significação
em reserva, sob a barra.
Apresenta-se um fenômeno misterioso pelo qual, a partir da transferência, o sujeito
vai para o lugar desse significante que se exclui de qualquer indicação do significante.
E é interessante que embaixo encontremos letras e mais embaixo números. A
indicação através de uma letra destaca, com efeito, a relação da letra com o nome
próprio. É diferente em relação aos signos das sucessivas identificações que, estas
sim, podem ser indicadas por uma numeração.
Essa escrita, pouco utilizada por Lacan, desenvolve o lugar do sujeito, que ontem
chamamos de lugar originário indicado pelo índice zero. Deveríamos tê-lo indicado
com mais precisão com uma letra. Com essa anotação, Lacan mostra que se o sujeito
é nomeável com um nome próprio, não se distingue pelo saber.
Como articular o nome próprio com o saber que ainda por se descobrir e que, por
enquanto, está por baixo da barra? Fazendo aparecer no início da análise - por
retificação subjetiva ou a interpretação - o vazio da coisa, a coisa branca em meio às
identificações. Assim, emerge esse lugar do nome próprio, esse significante que é
qualquer, porque ainda não recebeu seu índice e que funciona, com efeito, como
nome próprio. O analista, enquanto significante qualquer, começa por ocupar o lugar
do nome próprio, ou seja, da marca que o sujeito recebe do significante.
O que é o significante da transferência? Seria um significante mestre ou um
significante localizável? Tem havido debates muito acalorados sobre isso no âmbito
lacaniano. Qual uso pode ser feito dele? Se o significante qualquer é o lugar do nome
próprio, então poderíamos dizer que o significante da transferência é a demanda, é o
significante que marca quando nos dirigimos ao Outro. Para poder perguntar o porquê
-"por que eu sou assim?"; “por que me fizeram assim?” - deverá haver um rastro do
significante do Outro do sujeito, Qual é o meu nome próprio?
Nesse ponto, no vetor da primeira linha acima pode ser escrito o estabelecimento de
uma demanda que mantém certa relação com o saber.
Vejamos agora a particularidade em Aristóteles em relação a um ponto estudado e
desenvolvido por São Tomás de Aquino. É interessante porque, como já recordei, em
seu ensino Lacan refuta constantemente o universal aristotélico em todas as suas
formas, tanto questionando a concepção freudiana do pai -um pai para todos os
filhos- fundada no universal aristotélico.
Como se explica, então, esta homenagem a Aristóteles? Em Aristóteles, o universal
não funciona sempre. Aubenque, um filósofo francês, escreveu um tratado sobre a
prudência em Aristóteles onde destaca que é um campo da ação, especialmente no
campo da decisão humana em que a verdade lógica do discurso, ou seja, a dimensão
em que o logos pode desenvolver o universal, não funcionam.
Lacan levou em conta esse aspecto em Aristóteles e J-A. Miller mostrou como, nessa
perspectiva, pode haver um universal do homo philosophicus, mas não do homo
prudens, ou do homem de ação que, não tendo uma essência, mantém o nome
próprio. O que existe dos homens prudentes é apenas a lista de homens prudentes
de Atenas e, mesmo não faltando o saber para nomear sua essência como homens
prudentes, podem ser reconhecidos e designados por outros homens através do
procedimento democrático. Aristóteles coloca em evidência um campo em que o
nome próprio e o saber não coincidem e onde o nome próprio resiste e designa um
resto, uma particularidade que não pode ser explicada por outra: uma lista de homens
prudentes feita por homens totalmente diferentes. E isso que J-A. Miller colocou em
evidência a respeito da lista de analistas desejada por Lacan: os A.E. -analistas da
Escola- não chegam a poder ser reduzidos a um critério, a um traço identificador
universal, mas, melhor dizendo, fazem parte de uma lista heterogênea. Essa
perspectiva é muito útil para ler o parágrafo sobre o início da análise, onde vemos um
nome próprio se instalar no discurso analítico:
No lugar do significante qualquer -assinalado por uma letra e não por um índice-
encontramos o nome próprio do sujeito que é sua divisão; o saber na forma mais
reduzida, ou seja, saber liberto de sua suposição, e sob a barra. Finalmente, no lugar
da demanda, encontramos que o que causa a transferência e a saída da transferência
não é mais a demanda, mas a resposta, a resposta de gozo: e, portanto, o que me
divide. O que há de precioso no algoritmo do início é a articulação entre nome próprio
e saber. “Embaixo da barra, mas reduzido ao padrão de suposição do primeiro
significante: o s representa o sujeito que resulta dele, implicando no parêntese o
saber, supostamente presente, dos significantes no inconsciente, significação que
ocupa o lugar do referente, ainda latente naquela relação terceira que o vincula à
dupla significante-significado” 21.
Vejamos como Lacan força o algoritmo saussuriano -significante sobre significado -
introduzindo, porque corresponde a uma necessidade da psicanálise, aquilo que
jamais pode ser figurado, ou seja, o referente: a significação de um referente ainda
latente. De fato, somente se admitirmos que a significação deve ser disjunta do
significado é que poderemos justificar a operação psicanalítica.
“Vê-se que se a psicanálise consiste em manter uma situação pactuada entre dois
parceiros que nela se assumem como o psicanalisante e o psicanalista, ela só
poderia se desenvolver à custa do constituinte ternário que é o significante introduzido
no discurso que se estabelece, o qual tem um nome: o sujeito suposto saber,
formação não de artifício, mas de veia, desvinculado do psicanalisante” 22.
A "formação" é uma forma de indicar o que Lacan destaca de maneira retórica no
decorrer do seminário sobre "A Transferência": o analista retém uma significação, é o
depositário das identificações do sujeito em seu gozo. Entendido como ambiguidade
de gozo e sentido. É difícil não se apoiar nesse termo uma vez que Lacan o indicou,
porque é visível; uma maneira de separar-se dessa escrita e escrevê-lo como o
fizemos antes: essa significação, em reserva, da qual o psicanalista é o depositário, é
com efeito o referente oculto, o referente que é o próprio gozo. O linguista se contenta
em ter significação e significado porque deve esvaziar a linguagem de sua
significação de gozo. Essa é a própria operação linguística que J. C. Milner tão bem
descreveu em sua obra "O amor pela linguagem", evidenciando que o linguista ama a
linguagem com a condição de esvaziá-la de toda significação de gozo. O analista, ao
contrário, não ama a língua porque se torna depositário do gozo-sentido, provocando
o amor transferencial.
Isso é possível criando esse depósito de reserva que não está no lugar do analista,
mas entre analista e analisante.
Essa significação em reserva surge conjuntamente como saber e gozo e como
expressão do sujeito suposto saber, é o nó, ou melhor, o nome da hipótese pela qual
o nome próprio é interrogado e interrogável pelo saber.
Representa uma superação da precedente concepção de Lacan, segundo a qual a
análise operava desde um lugar de verdade, enquanto agora nesse lugar saber e
nome próprio se relacionam entre si.
A introdução de um novo par ordenado levanta novamente a questão da aposta da
psicanálise. Até aqui era a verdade que media, dividia, distribuía os enunciados, era
difícil integrar o resto da operação, mas uma vez que se parte da articulação do saber
e do nome próprio -e não de um traço universalmente verdadeiro ou falso- se vai de
enunciados decidíveis ou indecidíveis, universais ou existenciais. Não se trata mais
de avaliar o desenvolvimento da análise a partir da oposição entre verdade e gozo,
mas do que é decidível na relação entre saber e nome próprio.
É aqui que podemos apreender o que levou Lacan a poder formular o enigmático
enunciado segundo a qual o desejo do analista tem a ver com o transfinito.
Esse enunciado indica que o desejo do analista e o analista devem ser considerados
na modalidade do todo que supõe a crítica feita a Gödel no campo da lógica sobre a
crítica dos enunciados universais nos quais o existencial poderia enunciar
propriedades infinitas. A lógica contemporânea por trás de afirmações mais gerais
confirma que, após a introdução dos números transfinitos de Cantor, é muito difícil
dizer a qual infinito se referiria uma quantificação que dissesse respeito a todos os
conjuntos. A contribuição de Gödel é ter dissolvido a miragem da completude
absoluta; se Hilbert estivesse certo - e seu programa de contabilizar todas as
matemáticas a partir de um número limitado de ações tivesse sido realizado -
teríamos obtido uma mecanização completa das matemáticas.
Gödel também revelou que as matemáticas resistem muito bem aos paradoxos e que,
no fundo, são problemas epistemológicos mais importantes do que a completude e a
consistência. A distinção entre verdade e a prova permite renovar a concessão
platônica ensinando a possibilidade de descoberta de um objeto novo além de todos
os teoremas previamente conhecidos. E cada função e teorema sempre tem
exceções. Esse lugar da exceção e da possível descoberta que Lacan descreve, por
exemplo, em sua lógica da sexuação quando afirma que existe um x que não
obedece ao universal da castração e que, portanto, parece introduzir um estranho
lugar de exceção. A reflexão de Gödel aponta para a exceção sempre possível.
É a refutação de um universal que excluiria a descoberta e a exceção. Nesse sentido,
um lógico pode dizer que o progresso científico não é axiomático, mas conceitual de
uma teoria incompleta. Por exemplo, a uma teoria da castração que não dá conta da
exceção, deveria ser acrescentado um novo princípio para reabsorver a exceção em
seu próprio interior, mas não é possível fazê-lo de forma alguma, porque desde a
teoria de entrada, as manipulações metateóricas que o permitiriam são inacessíveis.
Isso faz com que os lógicos e os matemáticos contemporâneos rejeitem, ao mesmo
tempo, o horizonte da completude axiomática e, ao contrário, aceitem o dever
conceitual de fornecer a prova da necessidade do objeto matemático.
Lado a lado com as verdades eternas da matemática estão as verdades mais
transitórias, não reutilizáveis, cuja existência tem sido negligenciada porque o
interesse foi direcionado exclusivamente aos fundamentos e à universalidade. Dizer
que o desejo do analista tem a ver com o transfinito é dizer em outras palavras que o
desejo do analista implica renunciar ao poder de sempre acrescentar novos axiomas
para dar conta dos paradoxos do desejo e do gozo. Dentro de uma teoria considerada
como um conjunto infinito de enunciados, é possível que esse infinito seja um nome e
seja administrável dentro da operação psicanalítica. Sobre esse argumento, há um
artigo de J-A. Miller que comenta como para o psicanalista é o transfinito o que
constrói o marco de saber essencial para o espaço e para o modo em que opera o
psicanalista. Nós, lacanianos, damos mais ênfase à lógica, mas não devemos nos
enganar; a perspectiva que é uma perspectiva contra o logicismo: o fato de que o
Outro exista «constitui essencialmente essa margem que todo o pensamento evitou,
saltou, rodeou ou tapou enquanto consegue aparentemente sustentar-se num círculo:
seja dialético ou matemático. Por isso levamos de bom grado aqueles que nos
seguem aos lugares onde a lógica se confunde com a disjunção que explode do
imaginário ao simbólico, não para nos entregarmos aos paradoxos que aí se
engendram, nem a qualquer pretensa crise do pensamento, mas para reduzir, pelo
contrário, o seu falso brilho à lacuna que designam” 23.
Ora, se interessa-se pela lógica e pelos paradoxos que gera, o psicanalista, por sua
posição, deve combater e refutar o universal. Cada estrutura da particularidade do
sujeito e do sujeito do gozo é um universal, seja puramente o da razão, deve
encontrar-se frente à objeção psicanalítica. A tentativa de Habermas de reabsorver a
particularidade do gozo na ação comunicacional contra o obstáculo da certeza do ato
analítico, que permite ao sujeito reencontrar a parte perdida da causa que o divide
para sempre, que não é reabsorvida na razão universal para configurar uma lista
consistente e completa como Hilbert teria gostado muito. Terminarei citando o grande
poeta Mallarmé:
Froide d'oubli et de désuetude
pas tant
qu'elle n'énumère
sur quelque surface vacant et supérieure
le heurt successif
sidéralment
d'un compte total en formation
(Fria pelo esquecimento e pela falta de uso, não tanto que enumera sobre alguma
superfície vazia e superior o choque sucessivo, de maneira sideral, de uma conta total
em formação)
O que é esta lei? É a combinação de lugar do Outro como feminino. Se quiserem, é a
Parca. Mallarmé inclusive mais que Valery é o poeta da causa, oprimido pelo peso do
universal. Em seu último texto: "Uma jogada de dados nunca abolirá o acaso” 24 não
abole nunca o caso, mas sua obra e a tentativa de se colocar no mesmo plano do
caso restaurando o lugar do acaso em um mundo sempre ameaçado de sucumbir aos
golpes da mecânica universal. Mallarmé é o Gödel da poesia, é ele quem tentou usar
todos os recursos da linguagem para fazer valer seu ódio pela enumeração sobre
uma superfície vazia e superior, para uma conta total em formação.
Uma psicanálise deveria levar a esse mesmo ponto, ou seja, a poder viver a própria
vida abandonando esse afã de uma superfície vazia e superior, seja a do céu e das
estrelas, seja a de qualquer ideal cansativo, o do universal da ciência: viver a própria
vida sem ter nada a ver com uma conta total em formação.

Debate
Chiara Mangiarotti - Gostaria que você retomasse o algoritmo do início da análise e
ao sujeito suposto saber. Você disse que sob a barra está o referente latente e acima
da barra está o significante qualquer encarnado no analista que se torna depositário
das identificações do sujeito que vão construir o referente latente. Agora eu gostaria
de saber como esse referente latente sob a barra passa para cima no discurso do
analista como objeto a, no desejo encarnado do analista.
Por outro lado, você colocou o significante da transferência como uma demanda que
o sujeito dirige ao significante qualquer do analista para saber quem ele é.
Se se trata de um significante e de um significante particular do sujeito, parece-me
que não pode ser apenas uma demanda, mas deve ser identificada com um
significante preciso.
Eric Laurent -O que está em jogo é justamente como o significante passa de baixo
para cima.
Acima encontramos o significante da transferência marcado com o índice de uma letra
e temos a significação do sujeito suposto ao significante ao qual Lacan, modificando o
algoritmo de Saussure, acrescenta o terceiro termo do triângulo semântico,
significante, significado, referente. Buscando esclarecer essa passagem de Lacan,
disse que no lugar marcado ou indicado como o do analista há um nome próprio
enquanto ele escreve uma marca, ou seja, algo da ordem de uma letra e não do
significante. A aposta não é torná-lo equivalente a ela, mas sim examinar como no
processo analítico essa marca, esse nome próprio pode ser alcançado pela via do
saber. Por isso dei o exemplo do quadro de Los Embaixadores. Mas podemos pegar
Bacon que teve a formidável ideia de representar Édipo como um homem com o pé
enfaixado cercado por uma cerca e nas suas costas uma porta indicada com uma
flecha que se abre sobre o fundo preto.
No quadro de Holbein, o Jovem, o espectador vê a caveira ao sair do cômodo. No
quadro de Bacon, a porta indica o caminho que o espectador deve seguir: é o lugar
de onde sai a mãe que o deixou ali com seu pé enfaixado e sua homossexualidade.
Este é o suporte que encontro no Seminário XI: o nome próprio é a mancha de
partida.
O que é isso? Eu quero interrogá-lo com o saber. O trabalho analítico consiste em
apresentar o nome próprio ao analista e interrogá-lo. O analista encarna esse lugar e
retém a significação que, de maneira retórica, equivale a dizer: perguntemos juntos o
que a mancha significa e vejamos como pode ser descrito esse nome próprio. Lacan
se interessa por todas as teorias do nome próprio, independentemente da descrição
que se possa fazer dele e criticou Russell e sua teoria dos nomes próprios antes
mesmo de conhecer a crítica lógica feita por Kripke em "Meaning and Necessity" que
faz valer, desde uma perspectiva contemporânea e lógica, a crítica à redução do
nome próprio como índice absoluto. Portanto, pode-se dizer que Sócrates, como
nome próprio, é muito diferente de todas as descrições que foram feitas: o homem
cujos discursos foram escritos por Platão, o homem condenado à morte por Atenas.
Russell, por outro lado, tendia a reduzir o nome próprio pela descrição ou pelo
demonstrativo puro.
Os dois termos não podem ser invertidos, o saber não reabsorverá totalmente o nome
próprio, porque ao final da análise entre saber e identificação fica um impossível: não
me reconhecerei no saber que tenho de mim mesmo. Ainda bem, porque senão
viveria segundo a modalidade de uma conta total em formação.
Há outro aspecto em que o saber que opera no registro normal de funcionamento do
inconsciente, o local de trabalho, oscila para baixo. Para que ocorra a oscilação, é
necessário que o analista ocupe esse lugar; agora o que estava em cima desliza para
baixo. Proceder à lenta enumeração de identificações não permite igualar a marca e o
saber. Para concluir, para decidir, para que o sujeito encontre seu nome e se autorize,
é sempre necessário um salto conclusivo. É o paradoxo de Aquiles e a tartaruga de
que J-A. Miller falou recentemente. Você acha que eu respondi?
Chiara Mangiarotti -Sim, mas também perguntei como o objeto a passa do estado
latente ao plano superior.
Eric Laurent -De acordo. Admitamos que a primeira operação consiste em instalar, ao
mesmo tempo, gozo e gozo-sentido. É o artifício analítico que permite reencontrar o
gozo por meio desse sentido-gozado em reserva; eis que agora ele aparece de
repente, como ocorre no Homem dos Ratos. Portanto, o que a análise torna eficaz é a
supressão disso; é o mesmo que dizer que o objeto a está acima, dizer que o sujeito
suposto ao saber está suprimido. Conjuntamente com o desenvolvimento da
psicanálise, é possível isolar o: "eu sou aquele ou aquela que goza dessa maneira"; a
referência latente se separa e se torna atual. Tornando-se atual não se inscreve mais
no lugar da significação, mas ocupa o lugar de um significante impossível, impossível
de isolar, portanto, em uma função.
Sua pergunta é muito importante em relação ao significante da transferência. Dizer
que o objeto a está no lugar do semblante equivale a dizer que o objeto a é a prova
do fantasma, a matéria do sujeito. O sujeito pode descobrir, por exemplo, que sua
identificação mais importante é a de um animal assassinado por um pai açougueiro e
desde o dia em que vibrou com a dor do animal, experimentou em que registro se
ofereceu como vítima ao longo de sua vida diante dos golpes do Outro.
Mishima descreve sua identificação fundamental como São Sebastião atravessado
pelas flechas. Descobre seu corpo fragmentado, sua homossexualidade e fará de
tudo para inventar um calvário de São Sebastião em chave japonesa, sublimando em
sua obra sua própria posição sexuada e finalmente realizando seu fantasma de forma
perversa e extraordinária.
Se tivesse feito uma análise, teria encontrado este texto: "sou o que quer inventar um
São Sebastião japonês e toda minha vida será isso." Por que o objeto a resiste ao
significante? Justamente por isso, Mishima mobilizou toda a força da língua japonesa
e todos os recursos da sublimação linguística, mas nada permanece menos neste
homem jovem do que uma paixão irredutível, mortífera, extremamente ativa: um resto
que nunca admite ser jogado fora. No lugar da significação latente estará o resto que
escapa ao significante.
Sobre o "Homem dos miolos frescos" Lacan fala do símbolo daquele que vive a ideia
e todos vivemos do resto que anima nossas ideias.
De nada valem os nossos pensamentos, o que é feito para viver e o que foge aos
nossos pensamentos assim como aquilo que se permite não viver sobre a conta
total na formação dos nossos pensamentos. Da mesma forma, o significante da
transferência indica um significante particular, mas mais profundamente é uma
espécie de possibilidade originária para o significante: produz a neurose. Na
verdade, é um significante encarnado em um ser vivo que produz o sintoma
neurótico, na medida em que já é uma demanda que tem a ver com o sexo. Pode-se
dizer que o significante da transferência é o primeiro significante mestre. Por
exemplo, no caso apresentado por Francesca Duro, a trabalhadora se apresenta:
sou uma trabalhadora ou uma preguiçosa? Sou digna ou indigna? Aqui está um
significante que é levado ao Outro, mas o que está dentro, no fundo, é a questão da
neurose: sou homem ou mulher? E o significante da transferência está em primeiro
lugar, portanto pode ser especificado, mas em sua profundidade designa mais
precisamente uma possibilidade do significante: a possibilidade que designa o termo
de neurose. Este é o ponto de vista de Lacan. Em 1909 Ferenczi havia chamado
transferência à sucessão de identificações e Melanie Klein, retomando essa
perspectiva, destaca que para escapar da angústia, o núcleo da angústia, o sujeito
se identifica tendo como operador o não da negação, o que lhe permitirá dizer: “Eu
não sou isso, eu não sou aquilo”. Dessa forma, permite passar de uma identificação
a outra e depois se espalhar pelo mundo, o que Lacan retoma quando afirma que a
neurose é uma demanda e o desejo é um movimento que não adere ao significante,
mas o subjaz. Nesse sentido, o significante da transferência é a questão da
neurose: quem sou eu?, mas é também o vetor do desejo que como função e vetor
existe na neurose: impedido, impossível, insatisfeito.
Poder-se-ia dizer que o significante da transferência é para o desejo o que o
fantasma é para o gozo. O que aponta o lugar na cadeia significante e ao mesmo
tempo lhe escapa.

Tradução espanhol-português: Victoria Carmín Musachi.


Revisão da tradução: Blanca Musachi
Não revisado pelo autor.
De uso exclusivo dos participantes do Seminário A Construção do Caso Clínico.

Notas

1 S. Freud, “El método psicoanalítico de Freud”, em: Obras Completas, Biblioteca


Nueva, Madrid, 1973, pág. 1003-1006.
2 Ibid., pág. 1004
3 S. Freud, “Análisis fragmentario de una histeria”, em: op.cit., Tomo I, pág. 950.
4 Ibid., pág. 950.
5 J. Lacan, “La ciencia y la verdad”, em: Escritos 1, Siglo Veintiuno Editores, 1979,
pág. 347.
6 S. Freud, “Análisis de un caso de neurosis obsesiva», em: op.cit., Tomo II, pág.
1446.
7 J. Lacan, “Función y campo de la palabra y del lenguaje en psicoanálisis”, em:
Escritos 1, op. cit., pág. 109.
8 S. Freud, “Análisis fragmentario de una histeria”, em: op. cit., Tomo I, pág.950.
9 C. Boito, Senso, Venezia 1866.
10 J. Lacan, “Función y campo de la palabra y del lenguaje en psicoanálisis”, em:
Escritos 1, op. cit., pág. 109.
11 J. Lacan, “La dirección de la cura y los principios de su poder”, em: Escritos
1, op. cit., pág. 228
12 Ibid., pág. 230.
13 Ibid., pág. 233.
14 J. Lacan, “Observación sobre el informe de Daniel Lagache”, em: Escritos 2, op.
cit., pág. 300.
15 Ibid., pág. 301.
16 Ibid., pág. 301.
17 Ibid., pág. 301.
18 Ibid., pág. 303.
19 Ibid., pág. 303.
20 J. Lacan, “Proposición del 9 de octubre de Í967”, em: “Momentos cruciales de la
experiencia analítica”, Manantial, Buenos Aires, 1987, pág. 13.
21 Ibid., pág. 13.
22 Ibid., pág. 13.
23J. Lacan, “Subversión del sujeto y dialéctica del deseo en el inconsciente freudiano”,
en: Escritos 1, op. cit., pág. 333.
24 Citado em: Julia Kristeva, La rivoluzione del linguaggio poético, Marsilio, Venezia
1979, pág. 299.

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