Você está na página 1de 5

A psicanálise como ela é na terapêutica

Bernardino Horne

Apresentarei, condensadamente, os dois anos de duração de uma psicanálise aplicada à


terapêutica. Trata-se de um sujeito adolescente, que chegou logo depois do desencadeamento de
uma forte crise fóbica que ele chamou de pânico.

Tinha sofrido um assalto ao sair da escola e não podia ficar sozinho, dormir sozinho nem se
concentrar para dar continuidade a seus estudos.

Dividirei seu tratamento em 3 momentos.

Primeiro momento: a crise

"U" chegou a análise em estado de urgência. A angústia dominava sua vida e tomava a família
toda. Em relação ao diagnóstico, pensei que poderia tratar-se de uma crise fóbica em um
adolescente neurótico. Podería também ser um caso que se agrupa como inclassificavel ou o início
de um processo psicótico.

Inclinei-me, em princípio, a pensar em uma ativação fóbica em um sujeito neurótico.Tive


momentos de incerteza. A hipótese de uma falha paterna, freqüente nestes sintomas, foi a
perspectiva que orientou no primeiro momento. Miller (1) diz que para poder ir mais alem do
Pai, Lacan teve de restituirlo ao seu lugar. Este caminho deve repetirse no tratamento.

O analista oferece sessões durante a crise. O terror sem nome vai sendo arrodeado pela fala. O
sujeito-suposto-saber, ou seja, a transferência barra o pânico. O semblante sustentado não
implicava dar sessões como uma mãe desesperada. Configurava um semblante paterno, como
pai concernido, porém, firme. A demanda de cura, foi acolhida dentro de certos parâmetros. Isto
implica, necessariamente, um corte no gozo.

Falava de seus medos de forma repetitiva. A primeira mudança neste discurso foi quando, ao
perceber que poderia perder o ano de estudo, começou a falar de suas dificuldades de ficar
estudando na sua casa com todos fora. Trabalhou seus temores e encontrou soluções práticas.
Acompanhei de perto os esforços que "U" fez para não perder o ano.

A família e a psicóloga do colégio foram de muita ajuda nesse momento.

2º momento: A transferência

A transferência abre no discurso uma dialética entre o amor e o horror ao saber. Por um lado,
como o band-aid na maçã de nosso cartaz, tampa a fenda, fecha o inconsciente. Por outro, faz
uma ponte para o desejo de saber, que sustenta o sujeito do discurso analítico.

Durante este período, "U" se deu conta que seu problema provinha de seus pensamentos. A
neurose de transferência permitiu localizar um temor de um lugar exterior para algo de sua
mente, algo dele.

A presença da dúvida, herdeira da evitação fóbica, não lhe permitia se aproximar da experiência
do verdadeiro. Tudo sempre poderia ser falso. Se, por um lado, pensava se tratar de uma questão
referente ao saber, por outro duvidava. Suas defesas eram rígidas e repetitivas. Mediante a
anulação e o isolamento extremo das relações entre os elementos significantes se esforçava para
controlar a angustia e as fobias. Isto implica um ataque ao saber. Uma intervenção decisiva do
analista foi a de sancionar, afirmativamente, que sua questão estava no campo do saber, abolindo
a dúvida. Um significante Um, forte, que produz a divisão do sujeito.

Isto contribuiu a estabelecer a transferência e crer na possibilidade de haver uma razão para seu
estado. Isto já é a presença do sujeito-suposto-saber que acende o desejo de saber dessa razão.
Jacques-Alain Miller, no prefácio de Joyce avec Lacan (2), diz que a psicanálise opera
introduzindo o sujeito suposto saber no gozo autista do sintoma . Sem ele o sintoma é gozo puro
de uma escrita.

3º momento: A letra

"U" teve lembranças da infância. Duas foram destacadas, no contexto da orientação do


tratamento. Em criança, como o pai viajava muito, a mãe o levava à sua cama por medo de
assaltantes. A outra, lembrança, de relatos, era que a mãe, órfã quando menina, teve muitos
medos noturnos e, de ficar sozinha.

Nesse momento, o assunto deu seu lugar no discurso, a duas novas questões.

Uma preocupação com o corpo, que o levou a fazer esportes, e uma paixão pelos animais. Por
isto viajava a uma fazenda, o que ajudou "U" a separar-se da mãe. Pensou fazer o vestibular de
Veterinária e "viver numa fazenda". A vida dos animais e a convivência com meninos e meninas
de sua idade ajudaram "U" para que suas fantasias sexuais formassem fantasmas e desejos que
foram tecendo cadeias, para alcançar junto ao punto fixo do sintoma, o nó do sinthoma.

Naturalmente, o tema da mãe retornou em novas associações. Em uma delas se enxergou como
um ursinho de pelúcia, para a mãe poder dormir. O analista confirmou: "O ursinho de pelúcia da
mamãe!".

Presentificou-se, na sessão, sua posição de gozo como objeto da mãe. Quando "U" articulou sua
posição passiva no contexto fantasmático, se trata de una interpretação do inconsciente, reagiu e
lutou para tomar forma ativa. A atividade, para Freud (3), é ligada ao sistema muscular. Em uma
análise pura, a exigência epistêmica obrigaria a falar da letra de gozo encontrada, assim como de
"tomar consciência" do saber sobre o mecanismo próprio do ato, que implica a mudança no ser.
"U", diretamente, sem falar muito do assunto, mudou seu comportamento e a qualidade de suas
defesas. Uma identificação ao sinthoma sem episteme, "de fato". Destrava-se o uso sexual do
fantasma que, funcionando como véu, como janela, cobre o sintoma e forma o sinthoma. O
sinthoma permite a identificação e o sintoma, não. Pela entrada do fantasma sobre o sintoma
redistribue-se o gozo. O sinthoma oferece uma saída melhor que o sintoma, na economia de gozo
desse falasser. Trata-se de uma criação do sujeito.

A intervenção sobre o ursinho, permite a "U" outorgar consistência imaginária ao desejo e à sua
posição masculina. Ele fez psicanálise porque fracassou a função sexual do fantasma. Um
problema do sujeito com a causa. A psicanálise permitiu a estruturação do nó fantasmático e seu
uso, em consonância com o gozo do corpo, desde a sexuação como masculino. Agora, ele pode
ser o que ele é. A parte imaginária do nó é da ordem narcísica e não sabemos muito dela.

Aprovado no vestibular para Direito, pensou que seria melhor comprar uma fazenda do que
trabalhar como veterinário. Foi uma forma de humor sobre si próprio.

"U" achou que podia terminar seu tratamento. Concordei. Tinham se passado dois anos e dois
meses.

A mãe, que encontrei recentemente, falou, grata, que ele continuava muito bem.
Comentários

1. A clínica borromea permite dar conta de casos que a clínica estrutural não abrange. Na
Conversação de Arcachon (4), Jacques-Alain Miller abre uma leitura, que continua nas
Conversações seguintes e em seu próprio Curso "Orientação Lacaniana do Campo Freudiano",
que o leva a propor separar, desde uma perspectiva radicalmente psicanalítica, a psicoterapia, da
psicanálise aplicada à terapêutica (5).

O triunfo da psicanálise, demonstrando a eficácia da palavra na cura, arrasta sua própria


perdição. A palavra, na psicanálise, aponta ao real verdadeiramente real, ao real sem lei,
enquanto a palavra das psicoterapias procura o sentido.

Vou lembrar duas citações de Lacan. A primeira, em "Função e campo da fala" (6) diz que a
psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente.

A segunda, no "Prefácio à edição inglesa do Seminário XI" (7) diz:

"Cuando el espacio de un lapsus, ya no tiene ningun alcance de sentido (o interpretación), tan sólo entonces
puede uno estar seguro de que está en el inconsciente. Uno lo sabe, uno mismo (soi)".

Se a psicanálise é uma, cabe diferenciar internamente as operações da psicanálise pura e aplicada


e especialmente pensar na diferença entre a aplicação terapêutica da psicanálise e as
psicoterapias.

A este respeito, Maria de Souza, em issofala nº 3 (8), diz que a introdução do conceito de sinthoma,
por Jacques-Alain Miller, inaugura a terceira série do Curso de Orientação Lacaniana, que apaga
a distinção estrutural entre psicanálise pura e aplicada. Ela diz:

"A partir de então, a psicanálise pura passa a ser definida pelo algoritmo da transferência. Assim
sendo, a psicanálise pura é uma prática que tem como ponto de partida um algoritmo de saber.
A questão se desloca, então, para o ponto de saber quando esse algoritmo é instaurado".

O tratamento que apresento oferece para o debate uma entrada em análise e algumas manobras
de sua aplicação à terapêutica.

2. Voltemos ao material clínico:

O analista interpretou em forma de S1, a defesa da dúvida, que funcionava a serviço da anulação
e do isolamento. Como semblante paterno, confirma que a questão está na esfera do saber. Esta
interpretação, creo que a unica do analista ainda que fora do discurso analítico, se soporta em um
eixo que acompanha o tratamento que é a instalação do campo fálico desde o Nome do Pai. O
discurso do saber verdadeiro, inaugura um novo desejo no analisante e um novo amor. O desejo
de saber e o amor ao saber, próprio do discurso do analista.

Outra intervenção forte foi a de reafirmar o nome de gozo e a verdade de sua posição fixa de
gozo. Claro que não devemos injetar na cadeia significante do analisante nossa significação de
um ursinho de pelúcia. Nada de sentido. Pelo contrário, o analista deve facilitar a consistência
imaginária própria ao paciente. A perspectiva de seu gozo permite ao paciente, mediante a
formação reativa, uma afirmação de sua posição masculina no mundo e uma abertura à realidade
sexual fantasmática. Cria um sinthoma que muda a crua e direta satisfação pulsional, pela
inclusão da distância e da circulação fantasmática. Um núcleo de gozo na carne toma forma em
uma cena fantasmática. Falar de consistência imaginária quer dizer que o valor da cena somente
e acessível para ele; mas, como nos sonhos, tem seu umbigo. Esse é o lugar do S1 real. Do real
sem lei.
O Nome do Pai permite a "U" ser homem, ainda que um pouco medroso, e colocar-se no fantasma
como sujeito. Seu objeto sexual fantasmático certamente deverá conter alguma marca, "ursinho
de pelúcia". Assim, sua mulher será seu sinthoma. O uso do fantasma é crucial na adolescência,
onde começam a dar-se as condições biológicas para a vida sexual. Carlo Viganó, em suas
palestras no Brasil e em diversos textos, chama a atenção sobre a questão do uso do fantasma na
passagem da puberdade à adolescência (9).

Lembro que Lacan também afirma que o uso do fantasma permite à plataforma giratória fóbica
inclinar-se à estrutura neurótica ou a perversão (10).

Em outra perspectiva, considerei que sua posição de gozo implicava acatar o imperativo
categórico: "Goza ursinho!". O "Supereu humor" apresenta o gozo como o paraíso e se diverte em
dar ao sujeito o direito de uma Demanda incondicional. O traço de humor que apareceu em "U"
falava de um saber fazer com o Supereu materno devorador. Mas atenção, a falha paterna da
modernidade não exclui o trabalho sobre a fantasmática de triunfo sobre o pai.

Em outras palavras, tratava-se de um adolescente fixado em posição de objeto da mãe. O pânico


de ser devorado pela mãe, sem intervenção paterna, era grito de auxílio e de gozo e, se me
permitem uma imagem abrahamniana, de retenção anal de si próprio. O ursinho de pelúcia fala
de uma posição sintomática de gozo mortífero, no sentido de quietude, paralisia. Em posição de
objeto da falta materna, fica como o objeto (a) que cobre o barramento do grande Outro.

O pânico se estabelece pelo sintoma cru, pelo significante supereu, na hiancia, que ordena: goza!
A sexuação implica a criação do fantasma. Por isto, a definição da posição sexual implica um
fantasma governado por um S1, e assim se abre a possibilidade da criação de um sinthoma.

O fantasma como defesa fundamental (11), que toma forma como sujeito e objeto no campo fálico
(15), se organiza na ordem da mentira (12). A defesa maníaca opera pela negação do verdadeiro,
. O fantasma faz acreditar na existência da relação sexual.

Diferentemente das psicoterapias, a psicanálise implica em uma entrada no real sem explicação.
As intervenções que o analista realiza fora do discurso analítico se fundamentam em uma relação
ao real que o analista acompanha pela sua própria experiência de analisante.

É neste real que se sustenta o discurso da psicanálise. Nele fazem nó: o desejo do analista, cuja
política implica em querer estabelecer a diferença absoluta entre (a) e (-j); o desejo do analisante
de estabelecer uma relação ao saber na dialética do amor e do horror e o sujeito suposto saber, o
terceiro elemento, "de veia", diz Lacan na "Proposição" (14).

Miller sustentou em um primeiro momento de seu ensino (15) que o desejo de saber era o desejo
do analista. Posteriormente (16) muda de idéia. O desejo de saber será o desejo do analisante, de
dar nome ao enigma, e o do analista o de estabelecer a diferença absoluta.

A fantasia fundamental como cena de um significante primordial no campo fálico, cria, por
somação, um novo espaço topológico: o sinthoma, que é o sintoma, mas o fantasma no discurso
analítico (16).

Este material clínico se oferece a vários níveis de debate que abrange o tema de nosso Encontro.
Bibliografia

1. Miller, Jaques-Alain. " Breve introducción al más allá del Edipo" en Del Edipo a la Sexuación,
de Miller, Jacques-alain y otros Autores. p.17. Ed Paidos. Coleccion del Instituto Clínico de
Buenos Aires. Buenos Aires, 2001

2. Miller, Jacques-Alain. Joyce avec Lacan. p. 11. Bibliotheque des Analytica. Navarin Editeur. Paris,
1987.

3. Freud, Sigmund. Obras completas. Tomo II. Una teoria sexual y otros ensayos. Santiago Rueda
Editor -Buenos Aires - 1956.

4. Miller, Jacques-Alain e outros autores. "Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica".
p.189, Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.

5. Miller, Jacques-Alain. La Cause Freudiene, Revista da E. C. F. números 48-49.

6. Lacan, Jacques."Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". Escritos, p. 229,


Campo Freudiano do Brasil, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998.

7. Lacan, Jacques. "Prefácio à edição inglesa do Seminário XI". Intervenciones y Textos 2 p. 59 Ed.
Manantial Argentina, 1988.

8. Souza, Maria de. issofala No 3 - Revista digital de psicanálise da Escola Brasileira de Psicanálise.
e-mail: AMP-veredas@yahoogrupos.com.br

9. Vigano, Carlo. Issofala xx. e varios textos de circulação interna na nas


Bibliotecas da Escola.

10. Lacan, Jacques. Lição inédita de 7.5. 1969, do Seminário XVI, D’un Autre à l’autre

11. Miller, Jacques-Alain. "El fantasma como defensa fundamental. Marginalia de Milan sobre.
Uno por Uno", Revista Mundial de psicoanálisis, No 38, Buenos Aires, Argentina. Invierno de
1994.

12. Naveau, Pierre. "O fantasma mente". Opção Lacaniana - Revista de Psicanálise No 11, São
Paulo. Novembro 1994.

13. Horne, Bernardino. "Fragmentos de uma vida psicanalítica. Da IPA a Lacan". "Essa sombra
espessa". Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1999.

14. Lacan, Jacques. "Proposição de 9 de outubro de 1967". Opção Lacaniana Revista Brasileira de
Psicanálise. No 17. p.5. São Paulo. 1995.

15. Miller, Jacques-Alain. El deseo de saber. Freudiana, Revista de Psicoanalisis. No 1. Escuela


Europea de Psicoanálisis. Catalunya. España 1991.

16. Miller, Jacques-Alain. El Peso de los ideales. Introducción al post analítico. Colección Orientación
lacaniana. Ed. Eol-Paidos. 1999. Buenos Aires, Argentina.

Você também pode gostar