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PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, v. 7, nº 2, p. 93-95, Jul./Dez.

2006 93

A personalidade fóbica: avaliação psicológica a partir das bases


psicanalíticas

Julia Targa

Trinca, W. (2006). A personalidade fóbica: uma aproximação psicanalítica (148 p.). São Paulo: Vetor.

O autor desenvolveu esse livro com o objetivo ge- clássica incentivou a busca dos psicanalistas na rela-
ral de descrever a personalidade fóbica por meio da ção mãe–criança, sem descartar as alegações da vin-
psicanálise. Em paralelo, seus objetivos particula- culação das fobias com os impulsos libidinais e
res eram de investigar a ocorrência de processos destrutivos. Para Anna Freud, as fobias emergem
inconscientes comuns a todos ou à maioria dos ca- quando, na relação mãe–criança, o aparelho estrutu-
sos atendidos; investigar a ocorrência de processos ral se desenvolveu suficientemente para propiciar o
inconscientes específicos à personalidade fóbica, como uso de defesas como o deslocamento, a projeção e a
mecanismos geradores de distúrbios particularizados regressão. Os autores kleinianos acreditam que as fo-
no âmbito desse tipo de personalidade; e investigar a bias são defesas contra estados psicóticos, atuando
existência de uma organização inconsciente típica da para impedir a eclosão de angústias geradas pela in-
personalidade fóbica cujas características poderiam capacidade do ego de lidar com impulsos destrutivos
ser descritas em termos de uma síntese multifatorial. e de reparar os objetos destruídos. Segundo o autor,
A obra está dividida em sete capítulos e foi elaborada dois trabalhos de Ribeiro (1968) merecem mais aten-
a partir do atendimento de quatorze mulheres; assim, ção, pois, para ele, a atuação de mecanismos esqui-
no decorrer de cada capítulo os casos são apresenta- zóides conduz ataques ao pensamento verbal, ao
dos com as revisões bibliográficas que inspiraram o aparelho perceptivo e a outros setores da estrutura do
autor. self. Entretanto, além da psicanálise, outras visões psi-
No primeiro capítulo, chamado, Um lugar para a codinâmicas das fobias se destacam na literatura. No
personalidade fóbica, o autor retoma teorias, em es- entanto, devido à sua base psicanalítica, o autor acre-
pecial, as de Freud em relação à fobia, relembrando dita que as evitações fóbicas servem para prevenir
que, em 1894, a classificou como pertencente ao gru- novos desapontamentos e novas desilusões.
po das neuroses de angústia. Posteriormente, devido A pesquisa desenvolvida pelo autor é posta em
à análise de um caso, relacionou-a ao complexo de detalhes no segundo capítulo, intitulado Realização
Édipo, classificando-a no grupo de histeria de angús- de pesquisa, em que foi verificada, por meio do mé-
tia, ou seja, o paciente tenta livrar-se da angústia à todo psicanalítico, a hipótese mais geral de que a per-
custa de inibições e de restrições a que se submete. sonalidade fóbica se organiza a partir de constelações
Essas evitações, segundo Freud, são defesas para de fatores básicos relacionados a mecanismos primi-
impedir que o conteúdo recalcado, sob a forma de tivos da personalidade. Os objetivos previamente men-
libido livre, se manifeste na consciência. Freud defen- cionados foram verificados com sujeitos indicados por
deu, em decorrência, que as fobias são processos re- profissionais da área. Por conveniência, optou-se por
sultantes dessa defesa. Por fim, em 1926, Freud sujeitos do sexo feminino, com idades entre 18 e 50
argumentou que as fobias são sintomas substitutivos anos, e todos foram submetidos a uma entrevista diag-
da satisfação instintiva recalcada, portanto correspon- nóstica. A rotina da pesquisa compôs a seguinte se-
dem a sintomas de angústias inconscientes recalca- qüência: atendimento, transcrição de sessões (não
das. Entretanto, diversos trabalhos foram publicados, foram gravadas), análise das descrições; categoriza-
apresentando diferentes concepções de fobia. Trinca ção dos conteúdos referentes à cada paciente, sínte-
acredita que, de um modo geral, a teoria freudiana ses parciais de conteúdos referentes a conjunto de

Endereço para correspondência:


julia_targa@yahoo.it
94 Julia Targa

pacientes e compreensão integrada de conjunto, en- mentos de ser de determinado modo e não de outro.
volvendo todos os casos. Esse trabalho foi realizado Ainda que seu equilíbrio seja relativamente precário,
pelo autor, que atendeu nove, dos quatorze sujeitos, e, segundo o autor, uma pessoa manterá a ligação com o
também, por alunos do curso de pós-graduação em centro de sustentação interna e não se tornará fóbica,
psicologia, do Instituto de Psicologia da Universidade mas, se esse centro vital for posto em xeque, a deses-
de São Paulo. Segundo o autor, a perspectiva psica- tabilização resultante tenderá à fobia, e, quando isso
nalítica que norteou o estudo, permitiu que se fizesse se verifica, por sentir que lhe falta sustentação inter-
uso dos ensinamentos de Freud, Klein, Bion e Winni- na, a pessoa entra em estado de angústia e pavor,
cott, atingindo assim o propósito de empregar o méto- imaginando que tudo se arruína, transmitindo a im-
do psicanalítico como instrumento de pesquisa clínica, pressão que a vida está para afundar. O autor acredi-
destinada ao conhecimento da dinâmica profunda de ta que a personalidade fóbica decorre de renúncias à
um grupo selecionado de pessoas. autenticidade feitas em alguns momentos da vida. Nos
As Características da personalidade fóbica são fóbicos, as emoções se apresentam em avassalador
apresentadas no terceiro capítulo, em que, sem maio- estado bruto e original, não sendo possível transfor-
res menções, o autor aplica a teoria do continente pri- má-las favoráveis a eles. Ainda assim, expõe que es-
mário na análise de caso dos sujeitos. O autor não sas descrições correspondem necessariamente à
exclui outras teorias para o mesmo fim, apenas regis- personalidade fóbica, mas, no entanto, existem per-
tra sua preferência por essa teoria e, tendo-a como sonalidades a que se aplicam requisitos como estes e
base, verificou se entre as pacientes, havia uma an- nem por isso são consideradas fóbicas. Contudo, há
gústia comparada a um buraco negro, que tende a um requisito que distingue o fóbico do não-fóbico, que
engolir o que ainda se mantém estável, levando as é a angústia de dissipação do self, que se trata de
pacientes ao pavor de morte que ronda por toda a uma angústia básica de inexistência, desintegração,
parte. A classificação dada pelo autor para o termo terror em face de ameaça onipresente da morte, aos
buraco negro é a de que ele é infinito, indeterminado quais passam ao vácuo da inexistência. A personalida-
e, no entanto, mortífero; é um desenfoque de contato de fóbica usa preferencialmente determinados objetos
com o centro de sustentação interna, aquela fonte que para serem depositários de suas angústias, e o autor
informa a cada pessoa quem ela verdadeiramente é, menciona apenas duas grandes categorias, que são
quais são seus genuínos sentimentos e pensamentos. os lugares fechados e os lugares amplos e abertos.
O autor constatou que uma fragilidade básica domina Outro tema abordado neste capítulo é o pânico, que é
a personalidade fóbica, e essa fragilidade faz com que, apresentado como sendo um estado mental de caos,
quando algo de difícil ou negativo se faz presente, a no qual a própria pessoa se sente em caos, em grande
solução entre num beco sem saída, complicando o desestruturação interna, causando afrouxamento e
contato com as emoções. De acordo com a tese do desaparecimento das noções fundamentais da rea-
autor, a aflição que o fóbico sente ao imaginar que lidade.
contato significa contato com desgraças dificulta a A Síntese das idéias sobre a personalidade fó-
relação de objetos e a integração do self. Trinca acre- bica é apresentada no quinto capítulo, em que o autor
dita que a personalidade fóbica deseja um trabalho evidencia que a psicanálise oferece uma aproxima-
especial diante da dor, pois afigura-se tão frágil e im- ção à compreensão da origem do distúrbio fóbico por
potente que não consegue suportar a realidade, ima- meio da teoria da relação mãe e bebê, pois a mãe
ginada, assim, terrível e catastrófica. Uma das pode atuar como continente primário, acalmando-lhe
características da personalidade fóbica, segudo o au- as turbulências e angústias inimagináveis, proporcio-
tor, é que o outro exerce função capital de funcionar nando-lhe experiências de existir. Ao lado disso, a
por ela, substituindo-a em tudo quanto nela for men- personalidade fóbica repete, ainda, angústias, fanta-
talmente esvaziado e empobrecido. sias inconscientes e defesas primitivas relacionadas à
No quarto capítulo, Rupturas no self, o autor ex- essa época. Trinca acrescenta que no fóbico, o medo
plica que a personalidade fóbica origina-se de ruptu- de dispersão do continente interno cai no centro da
ras mais ou menos intensas que se dão no centro de angústia de dissipação do self, causando dúvidas so-
sustentação interna. Esse é um centro de equilíbrio no bre a validade da própria percepção do mundo. Nes-
self que responde, entre outros aspectos, por senti- se capítulo também é apresentado a matriz de

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Resenha: A personalidade fóbica: avaliação psicológica a partir das bases psicanalíticas 95

confiança básica, que é uma impressão íntima de que ra a personalidade fóbica não seja reconhecida pelas
algo na pessoa e no mundo externo vale a pena, fa- classificações de doenças mentais, não deixa de ser
zendo-a encontrar meios de enfrentar as situações uma lacuna pouco explorada na literatura psiquiátrica
mais difíceis. e psicanalítica. O autor comprovou a teoria de Segal
No sexto capítulo, A função da análise, o autor (1983) de que a reação fóbica é uma defesa contra a
aponta que ela auxilia o paciente no momento em que angústia, derivada do instinto de morte, e diferenciou
o analista se coloca como um intermediário entre o a personalidade fóbica do melancólico, sendo que o
fóbico e as emoções que sente; ou seja, a capacidade primeiro tende a um deserto interior resultante de es-
do analista de conter as emoções sobrevindas na re- vaziamentos e de organizações que atingem o conti-
lação, dirigi-las e transformá-las em conhecimento é nente interno, o centro de sustentação interna, os
um resgate efetivo do princípio que esteve deficitário contornos e os núcleos do self. Mais ainda, nos me-
no continente primário do paciente, assim sendo, o
lancólicos as perdas são relacionadas à incapacidade
analista colabora na transformação de um universo
de manutenção de vínculos com objetos primários; en-
mental primitivo em um universo no qual as emoções
tretanto, em ambas, a personalidade se enfraquece e
são simbolizadas e a vida assume determinada forma
se desvitaliza. O autor encerra evidenciando que a
pessoal. A turbulência psíquica que aflige os fóbicos
fobia é a mais atual das perturbações mentais, aquela
desapareceria se ele conseguisse pensar, pois a mor-
tiferacidade com que tratam as mais simples coisas que tem mais em comum com o espírito dominante da
da vida é que os angustia. O autor acredita, portanto, nossa época.
que a personalidade fóbica evolui na análise quando Por fim, este é um livro que tenta preencher uma
consegue viver uma relação de confiança com o que lacuna na literatura psicanalítica, aclarando a perso-
lhe é significativo e lhe proporciona experiências de nalidade fóbica e relacionando-a com os casos estu-
auto-sustentação emocional. dados pelo autor. Devido à exímia revisão bibliográfica,
As Discussões e conclusões gerais foram feitas a aproximação com o tema se dá de forma descom-
no sétimo capítulo, em que o autor conclui que, embo- plicada, facilitando, assim, sua compreensão.
Recebido em: outubro de 2006
Aprovado em: novembro de 2006

Sobre a autora
Julia Targa é acadêmica do segundo semestre do curso de Psicologia da Universidade São Francisco e bolsista de Iniciação Científica
PIBIC/CNPq.

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