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Douglas Barros

QUEM FOI FREUD?


1º Aula1

“Se esperar mais um pouco, conseguirei descrever o


processo psíquico dos sonhos de tal modo que nele se inclua
o processo de for mação dos sintomas histér icos....”
(Freud a Fliess em janeiro de 1899)

Douglas Barros: psicanalista e participante do Fórum do Cam-


po Lacaniano. É doutor em ética e filosofia política pela Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado
ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado
ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Professor na pós graduação em filosofia da Unifai. Tem
experiência em filosofia. Autor dos livros Lugar de negro, lugar
de branco? Esboço para uma crítica à metafisica racial, Hegel
e o sentido do político entre outros

1 Este ensaio será utilizado como material complementar no cur-

so Quem foi Freud? Seu conteúdo pode ser livremente reproduzido


desde que citada a fonte.
Ato 1: O sonhar

S abemos, ou deveríamos saber, que durante os séculos


XVIII e XIX a ciência se emancipou da filosofia,
essa autonomia estabeleceu critérios metodológicos
entronando a utilidade como ferramenta central.
Curiosamente, caimos na dúvida: até que ponto a ciência
e seus critérios de cientificidade não estão atrelados à
esfera da mercantilização do mundo?... “deixemos isso
pra lá!”.
Seja como for, desde então o uso de um saber, sua
instrumentalização, advém da validade ou não validade de
um conhecimento adquirido. Seja como for, as verdades
buscadas pelos diversos sistemas metafísicos deixaram de
importar àquele que se propõe fazer ciência. A ciência
na metade do século XIX ganhou uma feição pragmática
e positiva e é nesse momento que Freud se inclina a ela.
Não podemos duvidar: desde o início de sua carreira,
como médico e pesquisador, Freud buscou um
conhecimento que fosse válido como estatuto científico.
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A opção do então jovem médico estava ligada à realidade
social da ciência moderna. Uma ciência que revolucionava
a Europa de um modo concreto; diminuía distâncias,
transformava a noite em dia com a eletricidade, e, do
ponto de vista da medicina, refletia sobre as causas das
patologias, atrelados à relação causal dos fenômenos
físico-químicos, tudo de maneira inédita. A etiologia dos
sintomas – busca das causas e descrição dos fenômenos –
se tornava central à prática medicinal.
Assim, com suas enguias, no laboratório de Carl
Claus, Freud teve uma intuição radical sobre o poder
de verdade da ciência e da técnica: elas poderiam em si
mesmas tornarem-se críticas ao poder. Sua decisão foi
pelo realismo da ciência: uma decisão enfim materialista.
Entre 1874 e 1891, Freud, convidado a se retirar do
laboratório de Claus, porque ele não tinha grana para
bancar suas pesquisas, passou a atuar como psicoterapeuta.
Era a virada em seu destino que tanto necessitávamos.
Na publicação de seu esquecido “Sobre a concepção das
afasias”, uma monografia sobre neurologia, vemos uma

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aproximação explícita com os problemas que serão
evocados com o desenvolvimento da psicanálise.
Nessa pequena monografia Freud, embebido pelo
fisicalismo, começa a perceber a centralidade da
linguagem no aparelho psíquico. Ao retomar o esquema
de Wernicke, se dava conta que o aparato da linguagem
tem uma relação totalizante com a atividade cerebral.
Isso possibilita a conclusão de que há um aparelho de
linguagem que repousa sobre um domínio cortical
contínuo1.
Mais do que se interessar pelos efeitos dos traumas, ali
ele se orienta pelas causas, e inicia sua revolução sobre
a ideia de sujeito. É justamente disso que se trata: ao
investigar as causas dos traumas, ao se debruçar sobre o
que forja a relação dos sintomas com o cérebro, a ideia de
um sujeito todo poderoso, capaz de assumir o destino de
seus afetos e desejos, se perde. Freud, no seu caminho,
vai aos poucos percebendo que muitos traumas psíquicos
tinham origens arcaicas na formação do indivíduo e eram

1 FREUD, S. Sobre a concepção das afasias. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.


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determinados pelas origens dessa formação organizados
na linguagem.
É nessa curva de sua formação que o problema do
inconsciente começa a ser esboçado. Vale lembrar que
durante boa parte do século XX, a psicanálise freudiana
foi tida como um mapa significativo: uma estrutura dos
conceitos que teriam no inconsciente um objeto deduzido
e induzido. Essa posição não só não levava em conta sua
revolução conceitual semiológica como deixava de lado
as formações do inconsciente como sintomas que se
expressam através de fenômenos ao sujeito.
Ou seja, quero dizer que o inconsciente não existe
em si mesmo, como uma estrutura fechada, o que existe
são os fenômenos do inconsciente: as operações que se
processam e escapam ao indivíduo consciente. E por
isso, o inconsciente é sempre paradoxal pois sempre
uma tensão entre forças que se relacionam havendo uma
lógica dialética subjacente ao pensamento freudiano.
Ora, se a ciência se estabelecia pela descrição dos
fenômenos e a correlação entre eles e seus conceitos na

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repetição que forja a experiência, Freud, mergulhado nos
problemas de sua época, que envolviam inclusive o caso
da epidemia de histeria, vai reconhecer que sua busca visa
à descrição de fenômenos cujas causas não se revelam na
aparência dos sintomas. E nesse ponto decisivo que há
uma virada da neurologia à psicanálise: o aparelho da
linguagem se resolve com o aparelho psíquico.
Não nos deixa menos espantados o fato de que uma
pergunta emerge e deixa Freud desconcertado: como
é possível descrever um fenômeno, cuja sua existência
não pode ser dada nas relações imediatas ao fenômeno
sintomático? Logo ele chega à conclusão de que a
experiência revelada pelo sintoma implicará à busca
de certas “generalizações”2 para sua compreensão.
Generalizações anteriores aos efeitos do sintoma.
Assim, à luz de fenômenos concretos, sintomas
histéricos que envolviam a somatização – isto é, estado
emocional conflitante manifesto por dores físicas –, Freud

2 Optei pela utilização das aspas devido ao sentido grosseiro que este
termo hoje suscita nos meios acadêmicos e científicos.
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se direcionará às suas causas e perceberá aos poucos que
tais sintomas manifestos são de origem inconsciente. É
curioso relembrar que em 1883, ainda noivo de Martha
Bernays, Freud desenvolveu um intenso interesse pelos
sonhos chegando a enviar-lhe uma carta na qual lhe dizia
ter um “caderno pessoal de sonhos”.
À medida que sua prática no consultório se desenvolvia,
cada vez mais passou a se interessar também pelos sonhos
de seus pacientes. Interessante notar que onze anos depois
dessa confissão à sua noiva, Freud enviou outra carta,
dessa vez a Josef Breuer dizendo que havia desenvolvido
um modo de interpretação dos sonhos. O que guiava
Freud era a noção de que as causas dos sintomas presentes
eram geradas por acontecimentos passados nem sempre
vislumbrados, ou mesmo inconscientemente esquecidos,
por seus pacientes. O inconsciente se desmonstrava no
fenômeno sintomático originado pelo trauma.
O fato é que – com sua prática clínica, sua reflexão
sobre a dinâmica das psiconeuroses em conjunto com sua
etiologia da histeria e suas críticas à teoria da sedução –,
o sonho aos poucos foi visto como o lugar no qual havia o
reequilíbrio da psique através da realização de um desejo
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inconsciente. Em seguida isso seria estendido à ideia
de fantasia e ao aparecimento dos sintomas. Em 1897,
Freud parecia já ter concluído o percurso necessário a
entronar o sonho como um dado central às manifestações
fenomênicas do inconsciente; em seus escritos pessoais
já aparecia de maneira vertiginosa o mito edipiano como
um organizador das relações subjetivas. Interessante
perceber que ao abandonar a teoria da sedução entra em
cena o complexo edipiano quase como uma resposta.
Não tenha pressa, hipotético-leitor! Iremos falar com
cautela disso.
Seja como for, em 1898 uma primeira versão do
livro Die Traumdeutung3 (A interpretação dos sonhos)
é esboçada tentando retirar das sombras fenômenos
que ultrapassavam os sujeitos. Durante a escrita do
livro, Freud foi tomado, na sua experiência clínica, por
diversos sobressaltos que quase o fizeram abandonar sua
escrita; começou a perceber que existiam lembranças
encobridoras de traumas que regulavam de maneira
inconsciente as memorias de seus pacientes. Percebeu

3 Minha versão é a da Cia. das letras.


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igualmente que os atos falhos não são simplesmente
lapsos inocentes, mas se referem há algo da ordem do
desejo.Toda essa percepção clínica, no entanto, o ajudou a
preparar aquele que seria A psicopatologia da vida cotidiana.
Nessa época chegou a enviar uma carta a Fliess
declarando faltar estímulo à publicação do livro. No
entanto, meses depois sua prática clínica o reconciliou
com a Interpretação dos sonhos. Em maio de 1899,
Freud passou a se esforçar ao máximo na sua redação e já
em setembro o manuscrito tinha sido despachado indo à
luz em novembro do mesmo ano. Se inauguraria a partir
de então uma verdadeira revolução na concepção daquilo
que forja a nossa subjetividade. O trabalho do sonho, a
formação dele e sua interpretação revelariam quão sólida
era a tese da realização de um desejo inconsciente no
mundo onírico.
Era impossível a Freud avançar na compreensão das
psiconeuroses sem antes entender do que se tratavam
os sonhos. Na estrutura da obra nós encontramos 223
sonhos: 47 do próprio Freud e 176 de seus pacientes.
Para trilhar esse caminho mantendo suas teses, Freud

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investigará grande parte da literatura anterior que tratou
o sonho, com sua tendência crítica aponta erros comuns
às diversas especulações, como segue:
É difícil escrever uma história do estudo cientifico
dos problemas dos sonhos porque, por mais valiosos que
tenha sido esse estudo em alguns pontos, não se pode
traçar nenhuma linha de progresso em qualquer direção
específica (FREUD 1999 p. 58).
A utilização da ampla conceitualização em torno
do sonho, exposta na literatura cientifica, entretanto,
dão a Freud um modelo que contribui para assegurar
posteriormente suas asserções. Interessante lembrar
que Freud só escreve esse capítulo por insistência de
Fliess chegando inclusive a chamar o primeiro capítulo
de compilação enfadonha. Se observarmos, porém, com
algum cuidado esse capítulo perceberemos que ele foi
central para desvanecer as críticas e sedimentar a forma
de apropriação do problema do sonho por Freud.
Ciente de suas descobertas clínicas, ele propõe um
esboço que prioriza a problematização de vários elementos
do sonho expondo diversos conhecimentos da literatura

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que, no fim, servirão para evidenciar a originalidade de
sua abordagem. O primeiro capitulo é, portanto, um
esboço longo que expõe diversas teorias na literatura.
Com elas, Freud faz digressões que suscitam dúvidas e
aceitação quando validadas pela experimentação clínica.
Ao contrapor ideias de diversos pensadores, com atitude
crítica, ele abre caminhos para expor sua teoria de base
empírica respaldada pela relação com seus pacientes e
sua análise teórica dos conteúdos oníricos.
Dentro da relação dos sonhos com a vida de vigília, o
pensador elabora uma série de pequenas viagens “oníricas”
que aos poucos demonstram sua concepção sobre o
problema do sonho. A pertinência nas considerações
acaba por nos envolver nas conceitualizações que
abarcam o sonho e abrem campo para o entendimento
do inconsciente.
Ninguém que se ocupe de sonhos pode, creio eu, deixar
de descobrir que é fato muito comum um sonho dar mostras
de conhecimentos e lembranças que o sujeito, em estado
de vigília, não está ciente de possuir. Em meu trabalho
psicanalítico [...] tenho condições, várias vezes por

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semana, de provar aos pacientes com base em seus sonhos,
que eles de fato estão bem familiarizados com citações,
palavras obscenas etc. (FREUD 1999 p. 71).
Essa conclusão revela o traço constitutivo do
inconsciente como um fenômeno organizado pelo estado
onírico. A experiência do Inconsciente forjada através do
sonho, com sua gama de desejos que buscam a satisfação,
revela o lado oculto da relação com o psiquismo. Ao expor
a memória nos sonhos, Freud mostra como o conteúdo
do sonho deriva da experiência não totalmente abarcada
pela relação que o indivíduo tem com ela. Quer dizer,
há sempre algo de nossa experiência que nos escapa;
há sempre um traço que, aparentemente irrelevante,
é capturado por nós de maneira inconsciente. Além
disso, a percepção da relação do sonho com o estado de
vigília e a memória que ele carrega revela, na prática da
interpretação, elementos esquecidos que dizem muito a
respeito não só do sujeito como da formação dos seus
sintomas.
Interessante como aqui se abre de maneira vertiginosa
a possibilidade da análise: a concatenação da memória, ao
ser procurada pela tentativa de interpretação psicanalítica
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– quer dizer, forçar-se o paciente à lembrança –, revela
a peculiaridade da memória onírica. Freud nos ensina
como aqui reside imenso conteúdo memorialístico que
remete a lembranças não apenas de dias anteriores ao
sonho como de tempos imemoriáveis ligados à infância
do sujeito.
A grandeza dessa faculdade onírica só pode ser
observada com a prática analítica, é ela que permite a
verificação de conteúdos da infância, das lembranças
integrais de fatos vividos na existência ao revelar os
conteúdos latentes do sonho. E nesse percurso que
Freud chega à conclusão que o modo como a memória
se comporta nos sonhos é, sem sombra de dúvida, da
maior importância para qualquer teoria da memória em
geral. So que ao revelar a importância da lembrança dos
sonhos, Freud não esquece o seu negativo: o que significa
o esquecimento dos sonhos após o despertar? É nesse
momento que ele estabelece uma resposta crucial para a
relação do sonho com o inconsciente.
Certas características especificas das lembranças

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dos sonhos foram acertadamente ressaltadas em época
recente [...] como o fato de que quando um sonho
parece pela manhã ter sido esquecido, ainda assim pode
ser recordado no decorrer do dia, caso seu conteúdo,
embora esquecido, seja evocado por alguma concepção
casual.
Expondo pontos que convergem para experiência
clínica, Freud tece um caminho primordial às suas
descobertas.A dúvida sobre o fenômeno do esquecimento
ao acordar revela, como resposta freudiana, uma
resistência anímica no estado de vigília que faz com que
os conteúdos sonhados sejam esquecidos. Isso ocorre
porque durante o estado onírico a censura endopsíquica
tem sua resistência baixa. Freud revela, portanto, o
traço de sua primeira tópica que organizará sua teoria
do aparelho psíquico: as instâncias do consciente, pré-
consciente e inconsciente.
Para Freud durante o sonho temos duas atividades
anímicas isoladas. A primeira é a produção dos
pensamentos oníricos – inteiramente racionais, eles não
se tornaram conscientes e, contudo, não precisam ser
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tratados como problemas; a segunda função da atividade
anímica é a transformação dos pensamentos inconscientes
no conteúdo do sonho. Peculiar à vida onírica é irracional,
permanece esquecido e incompleto, não pensa, não
calcula e nem julga. São esses pensamentos inconscientes
que carregam a estrutura do desejo censurado no estado
de vigília.
Ocorre que durante o sono, a resistência anímica
que faz parte da censura, e vincula-se à consciência,
despende de pouca energia deixando brechas nas
quais as transformações do pensamento inconsciente
no conteúdo do sonho emergem. O resultado é que a
censura endopsíquica baixa durante o sono permite que
os desejos censurados no estado de vigília venham à
tona não inteiramente expostos. Quando despertamos,
porém, todas as formas da censura retornam, mas não só:
retornam com maior vigor fazendo com que no despertar
nos esqueçamos do conteúdo sonhado porque seu núcleo
enquanto desejo pode ser traumático à constituição
egóica.
Dito isso, vou agora para o último ponto de nosso

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capítulo sobre o sonhar freudiano: Freud ao buscar
demonstrar ao leitor seu método interpretativo se
agarrará ao que se tornaria um dos sonhos mais famosos
da literatura mundial: “o sonho da injeção de Irma”. Na
exposição se coloca de maneira interessante o método de
análise interpretativa: primeiro, há um relato preliminar
– um resumo detalhado do contexto recente e dos
antigos lugares, acontecimentos e encontros casuais com
pessoas que irão povoar o sonho; segundo, o relato do
sonho em si; por fim, a análise do sonho baseada em
associações evocadas a partir de cada elemento do sonho
será pontuada de observações teóricas.
Ainda em 1900, Freud escreve a Fliess salientando o
fato de que esse sonho foi o responsável pela fundação da
psicanálise, então, justifico-me expondo sua narração de
maneira integral:
Um grande salão − numerosos convidados, que estávamos
a receber. − Entre eles, estava Irma. Imediatamente levei-a
para um lado,como se para responder a sua carta e repreendê-
la por não haver aceitado ainda a minha ‘solução’. Disse-
lhe o seguinte: “Se você ainda sente dores, é realmente por

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culpa sua.” Respondeu: “Se o senhor pudesse imaginar que
dores tenho agora na garganta, no estômago e no abdome...
− estão me sufocando...” Fiquei alarmado e olhei para ela.
Estava pálida e inchada. Pensei comigo mesmo que, afinal
de contas, deixara de localizar algum mal orgânico. Levei-a
até a janela e examinei-lhe a garganta, tendo dado mostras
de resistência, como as mulheres com dentaduras postiças.
Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade
de ela fazer aquilo. − Em seguida, abriu a boca como devia e
no lado direito descobri uma grande placa branca; em outro
lugar, localizei extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre
algumas notáveis estruturas crespas que, evidentemente,
estavam modeladas nos cornetos do nariz. − Imediatamente
chamei o Dr. M e ele repetiu o exame e confirmou-o... O Dr.
M tinha uma aparência muito diferente da comum; estava
muito pálido, claudicava e tinha o queixo escanhoado...
Meu amigo Otto estava também agora de pé ao lado dela, e
meu amigo Leopold auscultava-a através do corpete e dizia:
‘Ela tem uma área surda bem embaixo, à esquerda.’Também
indicou que uma porção da pele no ombro esquerdo estava
infiltrada. (Notei isso, da mesma forma que ele, apesar do
vestido.)... M. disse: ‘Não há dúvida que é uma infecção,
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mas não tem importância; sobrevirá a disenteria e a
toxina será eliminada.’... Estávamos diretamente cônscios,
também, da origem da infecção. Não muito antes, quando
ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto aplicara-
lhe uma injeção de um preparado de propil, propilos...
ácido propiônico...trimetilamina (e eu via diante de mim
a fórmula desse preparado em grossos caracteres)... Injeções
dessa natureza não devem ser feitas tão impensadamente...
E provavelmente a seringa não devia estar limpa (FREUD,
1972 [1900], p. 115).
É com o sonho sobre Irma que Freud irá rebater, antes
e depois dele, à ideia de que o sonho seria uma atividade
fragmentada do cérebro, é com ele especificamente que
ele concluirá que o sonho é sempre a realização de um
desejo do dia anterior. No sonho de Irma se coloca até
mesmo o desejo do analista de vê-la curada sem ocultar
o conteúdo erótico contido na enorme injeção suja!
Evidentemente, essa ideia de que o sonho é a realização de
desejos vai imediatamente evocar sua tese contrária que
é: o que significam então os sonhos de angústia? É contra
essa objeção que Freud vai formular a tese conhecida: a
da necessidade de separar o conteúdo manifesto do conteúdo
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latente.
O conteúdo latente só pode ser desvendado na
progressiva análise a partir das associações evocadas no
espaço clínico a partir daqueles conteúdos manifestos
no sonho. O fato é que o conteúdo manifesto é uma
deformação do conteúdo latente revelado na análise, o que
implica dizer que essa deformação radicada no conteúdo
manifesto se revela uma defesa contra a raiz traumática
de um desejo que escapa não inteiramente à censura.
Dito de outro modo, há uma censura inconsciente a uma
demanda desejante que deforma o desejo para torná-lo
aceitável egoicamente. E é por isso que um sonho de
angústia ou doloroso pode ser a realização de um desejo
deformado.
Caro leitor, seja como for, aqui temos apenas uma
primeira introdução do alcance do significado do sonho
não só para a história da psicanálise como também
para aquilo que forja a noção de sujeito. A revelação
do inconsciente sua hipótese “sugere uma posição de
ignorância especial do sujeito diante daquilo que o

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determina, uma vez que algumas conexões essenciais do
sintoma são recalcadas”4. Se antes o que havia era a ideia
de um sujeito todo poderoso no leme de suas decisões, a
porta onírica revelou que somos atravessados por afetos,
sentimentos e sensações aparentemente inexplicáveis
que fogem ao nosso controle. Hoje isso parece até óbvio,
mas essa ferida narcísica está longe de cicatrizar...

4 LINA, C. E. S. O sonho da injeção de Irma: a inauguração da Psicanáli-


se nas falhas do saber. Dissertação (Mestrado em psicologia) Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas de Minas Gerais, UFMG, p.11, 2010.

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