Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
e na Perversão1
Marco Antonio Coutinho Jorge
Psiquiatra. Psicanalista. Diretor do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro. Doutor em
Comunicação pela UFRJ. Professor-adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. Membro correspondente da
Association Insistance (Paris/Bruxelles).
1 Trabalho apresentado no XIII Fórum Internacional de Psicanálise - As Múltiplas Faces da Perversão, realizado
em Belo Horizonte, de 24 a 28 de Agosto de 2004. Texto estabelecido, a partir da exposição oral, por
Alexandre Louzada.
2 FREUD, ‘A perda da realidade na neurose e na psicose”, in Obras completas, v.XIX. Rio de Janeiro: Imago,
1976, p. 229.
3 FREUD, S., “Sobre a gênese do fetichismo”, in Revista Internacional da História da Psicanálise, n.2, Rio de
à fantasia o lugar que ela tem no psi Do lado desta temos o princípio de
quismo. prazer, dominado pela fantasia, e do
Não é sem motivo que Lacan conce lado da pulsão de morte, o mais além
berá o fim da análise como ligado à ques do princípio de prazer.
tão da fantasia, mencionando a sua tra Tudo isso ocorre nas neuroses e nas
vessia. A fantasia é uma espécie de matriz perversões. Em ambas, há ação do
psíquica que funciona mediatizando o Nome-do-Pai, há recalque originário e,
encontro do sujeito com o real. Ela é uma por conseguinte, a instauração da ma
matriz simbólico-imaginária que permite triz psíquica chamada fantasia incons
ao sujeito fazer face ao real do gozo. ciente fundamental.
Se tomarmos a noção de pulsão de No caso da psicose, essa constelação
morte na obra de Freud - que foi, na não ocorre, porque a foraclusão do signi
verdade, valorizada por Lacan -, vere ficante Nome-do-Pai produz uma falha
mos que o que ele chama de morte é o no recalque originário de tal modo que
que Lacan chama de o gozo. essa fantasia não se instaura e, por que
Há um vetor que rege nosso psi ela não se instaura, o psicótico tenderá
quismo. Para Freud, esse vetor único, a, no melhor dos casos, a produzir um
fundamental, se chama pulsão de mor delírio que preencherá essa lacuna, esse
te. Na leitura que faz de Mais Além do vazio. Esse vazio é a própria psicose.
Principio do Prazer (1920), Lacan afir
ma que toda pulsão é pulsão de morte. Neurose e Perversão
Freud disse exatamente a mesma coisa
com outras palavras. Tomemos, agora, a fórmula da fan
Felizmente, muitos de nós não vi tasia para tentar ler nela a diferença que
vemos submetidos a esse vetor, que, por há entre neurose e perversão: $oa.
definição, é mortífero. Alguma coisa Podemos ver nela dois pólos: se a
acontece que nos permite lidar de uma fantasia é a articulação entre o incons
forma diferente com esse alvo da pul ciente e a pulsão, podemos situar, no
são de morte: o gozo. Essa alguma coi lado do $, o pólo inconsciente, e no lado
sa se chama fantasia. do objeto a, o pólo pulsional. No pri
Ela surge a partir de uma operação meiro temos o sujeito, que é barrado
chamada recalque originário, operação pela linguagem, pelo significante, en
agenciada por um significante, o signi- tre Sj e S2, e no segundo, o elemento
ficante Nome-do-Pai. O recalque ori que é aquilo que se inscreve na fanta
ginário resulta sobre o psiquismo da cri sia como mais-gozar, como a inscrição
ança a imediata instauração dessa ma do gozo que era absoluto, mortífero e
triz psíquica: a fantasia. Esta, por sua que, na fantasia, se transforma num
vez, fará com que aquilo que era em- gozo limitado: o gozo fálico. Este é o
puxo-ao-gozo, como diz Lacan - pul gozo submetido à linguagem, ao falo.
são de morte, empuxo na direção da Podemos, também, dizer que o pólo
morte -, seja freado e passe a ser uma inconsciente é o pólo simbólico, e o
região na qual a pulsão de morte é se- pólo pulsional é o pólo real da fanta
xualizada. Nessa região, a fantasia pas sia. Do lado do primeiro - do $, do
sa a dominar pelo menos um trajeto inconsciente, do simbólico - podemos
dessa pulsão de morte. E o que Freud situar o amor e do outro lado - do ob
chama de pulsão de vida e que, para jeto a, da pulsão, do real - podemos si
nós, é a pulsão sexual. tuar o gozo.
tenção de um traço que é forte na psi e num mesmo sujeito, ela também apa
cose: o gozo. Isso se inscreve na per rece na cultura. A cultura traduz essas
versão, mas não como na psicose. Ins fixações. A história da música popular
creve-se de outra maneira, pela presen- recente é um bom exemplo disso.
tificação do objeto a, do objeto mais- Em 1966, em Liverpool, nasceram
gozar. dois grandes grupos de rock: os Beatles
Na neurose, há também essa saída, e os Rolling Stones. Os Beatles tive
há um corte em relação à psicose. A ram uma existência efêmera, foram um
dimensão que dominará, porém, é a cometa que atravessou a existência da
do simbólico e, portanto, a dimensão música e deixou rastros em todos nós.
do amor ao Pai, que vem, como radical Os Rolling Stones existem até hoje,
alteridade, frear o empuxo ao gozo. E dando shows no mundo inteiro, gra
a criança neurótica se atém a esse ele vando discos etc. O que me chama a
mento que a salvou. A fantasia amo atenção é que os Beatles foram um gru
rosa é uma salvação. po que cantou essencialmente o amor.
Freud desenvolve essa idéia prin Por exemplo, “All you need is love”,
cipalmente num artigo do ciclo da fan para tomar uma canção deles que é pa
tasia, chamado Fantasias Histéricas e sua radigmática dessa posição. Já a canção
Relação com a Bissexualidade (1908). paradigmática dos Rolling Stones é “Sa-
Trata-se de um texto sobre a relação tisfaction”: “I canzt get no satisfaction,
entre pulsão e fantasia. E muito curio But Pll try, but Pll try, but Pll try”. É a
so que ele seja do primeiro dualismo própria pulsão falando...
pulsional e ainda não tenha a articula Talvez esses grupos - e a presença
ção entre pulsão de vida e aquela de deles em nossa vida e em nossa cultura
morte. E possível, porém, encontrar - signifiquem que o amor é mais frágil
todos os elementos sustentando que a que o gozo, que o gozo é a busca da
fantasia freia o empuxo ao gozo da pul satisfação absoluta que se repete com
são de morte. uma intensidade impressionante, na
O problema é que, como tudo no medida em que há esse vetor insistente
nosso psiquismo, a fantasia tem dois la em nós. Tudo indica que Mick Jagger
dos: ela é uma salvação, mas também é cantará e dançará até os 80 anos. E
uma patogenia. Pelo próprio fato de nós com ele, o que é interessante.
que ela nos salvou da derrelição abso Mas vamos também cantar com
luta na qual estamos fadados pela pul os Beatles. Poucos de nós sabem de cor
são de morte, vamos nos agarrar a ela a letra de uma música dos Rolling Sto
com unhas e dentes. Isso é o que Freud nes, mas muitos aprenderam inglês com
chama de “fixação”. Agarramo-nos à os versos de John Lennon e a música
fantasia com tanta intensidade, que ela dos Beatles.
passa a ser um núcleo da nossa vida, e Mas a música não é o único exem
passamos a produzir uma série de coi plo cultural que temos das fixações nos
sas chamadas “sintomas”, que são a per pólos da fantasia. O pólo do amor se
petuação constante da nossa relação traduz também pela religião no qual há
com a fantasia. Ela tem, então, uma uma fixação nele por meio dela. E o
dupla face: uma face de salvação e uma pólo do gozo se traduz pela pujança do
face de produção patológica. capitalismo.
E assim como há uma báscula en E possível perceber certa rivalida
tre amor e gozo nas estruturas clínicas de entre religião e capitalismo, que se
expressa até pela arquitetura das cida um lugar da fantasia. E acredito que,
des. Em Salvador, Belo Horizonte, no na cultura, há, hoje, dois discursos que
Rio de Janeiro, é possível ver templos sustentam esse lugar: a psicanálise e a
religiosos de novas seitas evangélicas arte. A arte é também um discurso
construídos em frente aos grandes sho poderoso que tenta sustentar esse lugar
pping centers. Um espelha o outro, bri do vazio e da falta.
gando por primazia. Passamos, ali, no
meio desses desfiladeiros de fixações de
amor, na religião - porque a religião é Keytvords
uma fixação no amor: “Amai-vos uns Pantasy — Unconscious - Drive — Neu-
aos outros” -, e de gozo, no capitalis rosis
mo, com aqueles objetos todos que nos
são oferecidos e vendidos de uma ma Abstract
neira tão excessiva. The author starts from a new concept of
Mas não é só a neurose e a perver fantasy: the articulation of the unconscious
são que se traduzem na nossa cultura, a with the drive or, in other words, from the
psicose também o faz. E parece que ela language to the sexuality. Two different
o faz pela ciência. E preciso que nós, points are in the lacanian materna of fan
analistas, possamos dizer, com todas as tasy: the one ofthe unconscious ($) and
letras, que a ciência está louca. A ci the one ofthe drive (a). Neurosis andper-
ência enlouqueceu, perdeu os limites. versions are broached in its fundamental
Hoje, ela mistura espécies, clona os ani positions: in neurosis, the fantasy oflove
mais a bel-prazer e quer fazer isso com fulfillness. This one is much valued and
o ser humano. O ápice dessa loucura, corresponds to the fixation of the subject
desconfio, é seu intento de transformar in the first unconscious point. In perver-
a reprodução sexuada em reprodução sion, the fantasy of the pleased fulfillness
assexuada. Isso é loucura. Não éà toa is dominated and corresponds to the fixa
que, na cultura, existe a figura do cien tion of the subject in the pulsional point.
tista maluco. O cientista maluco é um Positions offantasy’s fixation are eç/ually
traço da linguagem no inconsciente que indicated in culture, taken in moebian
denuncia que a ciência tem uma forte continuance of the structure of language
tendência à loucura, patente hoje em of the subject
dia.
Evidentemente que fomos adverti
dos quanto a isso desde a época em que
o homem foi a Lua. Ali, começava uma
grande loucura, porque ir à Lua, é cla Bibliografia
ro, é coisa de lunático.
FREUD, S. “O delírio e os sonhos na ‘Gradiva
A psicanálise propõe um quarto
de W. Jensen”, in Obras completas, v. IX. Bue
lugar da fantasia, diferente daqueles tra nos Aires: Amorrortu, 1996.
duzidos pela religião, pelo capitalismo FREUD, S. “As fantasias histéricas e sua relação
e pela ciência. Nem a fixação no amor, com a bissexualidade”, in Obras completas, v.IX.
nem a fixação no gozo fálico, nem a Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Pontuações psicanalíticas sobre
fixação no gozo absoluto. Ela propõe
um caso de paranóia (Dementia paranoides)
um lugar do desejo, que é aquele lugar, descrito autobiograficamente”, in Obras
no materna da fantasia, entre $ e a pe completas, v.XII. Buenos Aires: Amorrortu,
queno. Porque aquilo ali é um lugar, é 1996.