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A Travessia da Fantasia na Neurose

e na Perversão1
Marco Antonio Coutinho Jorge
Psiquiatra. Psicanalista. Diretor do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro. Doutor em
Comunicação pela UFRJ. Professor-adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. Membro correspondente da
Association Insistance (Paris/Bruxelles).

Palavra-Chave: Fantasia - Inconsciente - Pulsão - Neurose

Resumo: Parte-se de uma nova conceituação da fantasia: a articulação do inconsciente com a


pulsão ou, em outras palavras, da linguagem com a sexualidade. Dois pólos distintos são situa­
dos no materna lacaniano da fantasia. Aquele do inconsciente (S) e o da pulsão (a). Neurose e
perversão são abordadas em posições fundamentais: na neurose, a fantasia de completude amo­
rosa. Ela é prevalente e corresponde à fixação do sujeito no seu pólo inconsciente. Na perver­
são, a fantasia de completude gozosa é dominante e corresponde à fixação do sujeito no seu
pólo pulsional. Posições de fixação da fantasia são igualmente indicadas na cultura, tomadas
em sua continuidade moebiana com a estrutura de linguagem do sujeito.

A descoberta da psicanálise é a des­ Freud tinha duas mesas de trabalho di­


coberta do inconsciente e Freud a apre­ ferentes, uma para cada obra, e descan­
senta em três grandes livros inaugurais: sava de uma escrevendo a outra. Essa
A Interpretação dos Sonhos (1900), A Psi- é uma observação interessante, porque
copatologia da Vida Cotidiana (1901) e os Três Ensaios é a obra na qual Freud
Chistes e sua Relação com o Inconsciente introduz, pela primeira vez, o conceito
(1905). Esses três livros - segundo La- de pulsão, ou seja, é um livro que trata
can, três obras canônicas em matéria de da questão da sexualidade e do gozo.
inconsciente - expõem a estrutura do in­ E como se Freud descansasse desse li­
consciente tal como ela é: articulada com vro, escrevendo outro, mais prazeroso,
a linguagem. E o inconsciente que apa­ que é o livro dos chistes, livro que apre­
rece na descoberta da psicanálise. senta especialmente a estrutura do sim­
Em 1905, ano da escrita do livro bólico, ou seja, da linguagem. Incons­
dos chistes, Freud escreve um outro li­ ciente e pulsão, então, são os dois con­
vro fundamental: Três Ensaios sobre a ceitos fundamentais da psicanálise que
Teoria da Sexualidade. Octave Manno- são trazidos nos primeiros anos da des­
ni chama a atenção para o fato de que coberta freudiana.

1 Trabalho apresentado no XIII Fórum Internacional de Psicanálise - As Múltiplas Faces da Perversão, realizado
em Belo Horizonte, de 24 a 28 de Agosto de 2004. Texto estabelecido, a partir da exposição oral, por
Alexandre Louzada.

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O Ciclo da Fantasia que Freud, pela primeira vez, consegue


trazer à luz a lógica do delírio paranói­
Logo em seguida, de 1907 a 1911, co. Depois de um longo período de ela­
podemos isolar um período, na obra de boração sobre a questão a fantasia na
Freud, que parece ser dedicado à fanta­ neurose é que ele pôde, então, se de­
sia. Chamemo-lo de ciclo da fantasia. bruçar sobre aquela do delírio na psi­
Delírios e Sonhos na Gradiva, de Jensen cose e extrair a sua lógica inerente.
(1907) inicia uma série de artigos de­ Essa diferença entre fantasia e de­
dicados à questão da fantasia sob inú­ lírio parece denunciar, em Freud, uma
meros aspectos e prismas diferentes: a nítida distinção estrutural-clínica en­
fantasia na sua relação com o sintoma, tre neurose e psicose. Essa distinção,
a fantasia na sua relação com a criação que nesse momento aparece de forma
literária, a fantasia na sua relação com conceituai, ligada aos conceitos funda­
o romance familiar, as teorias sexuais in­ mentais, após o advento da segunda
fantis etc. São vários artigos que cons­ tópica, na década de 20, será trabalha­
tituem uma espécie de núcleo do de­ da diretamente ligada à clínica, nos
senvolvimento da fantasia em Freud, dois importantíssimos artigos Neurose e
que, durante esses anos, parece ter se Psicose e A Perda da Realidade na Neu­
debruçado, exclusivamente, sobre o rose e na Psicose, ambos de 1924.
tema. No primeiro artigo, Neurose e Psi­
Esse ciclo se encerra em 1911, com cose, Freud conclui que a diferença en­
a escrita de Formulações sobre os Dois tre neurose e psicose é que na segunda
Princípios do Funcionamento Mental, haveria uma perda da realidade. Dois
que, embora não se encontre no grupo ou três meses depois, porém, ele escre­
de artigos metapsicológicos, é um arti­ ve o segundo artigo e o inicia corrigin­
go que traz a metapsicologia da fanta­ do sua afirmação:
sia.
E importante notar que Freud ca­ Recentemente indiquei como uma das
minha do inconsciente, chega até a pul- características que diferenciam uma
são e, muito rapidamente, trabalhará neurose de uma psicose o fato de em
a fantasia. Essa percepção traz algo uma neurose o eu, em sua dependên­
bastante novo que desenvolvo a seguir: cia da realidade, suprimir um frag­
a concepção da fantasia como sendo a mento do isso (da vida pulsional), ao
articulação entre o inconsciente e a passo que, em uma psicose, esse mes­
pulsão. Essa parece ser uma nova for­ mo eu, a serviço do isso, se afasta de
ma de definir a fantasia, que nos faz ver um fragmento da realidade. Assim,
fatos novos. A fantasia é a articulação para uma neurose o fator decisivo se­
entre inconsciente e pulsão, ou, nos ria a predominância da influência da
termos de Lacan, a fantasia é a articu­ realidade, enquanto para uma psico­
lação entre o simbólico e o real. se, esse fator seria a predominância
E preciso chamar a atenção para o do isso. Na psicose a perda de reali­
fato de que, em 1911, Freud não escre­ dade estaria necessariamente presen­
ve somente o artigo das Formulações, a te, ao passo que na neurose, segundo
metapsicologia da fantasia, mas, tam­ pareceria, essa perda seria evitada.
bém, outro ensaio magistral, o Caso Isso, porém, não concorda em abso­
Schreber, ambos publicados no mesmo luto com a observação que todos nós
número da revista Imago. E nesse caso podemos fazer, de que toda neurose

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perturba de algum modo a relação do ras, conferência publicada na Revista


paciente com a realidade servindo-lhe Internacional da História da Psicanálise,3
de um meio de se afastar da realida­ mas, naquele momento, ele não tinha
de, e que, em suas formas graves, sig­ alguns elementos que só desenvolverá
nifica concretamente uma fuga da depois.
vida real.2 Há certo fio inconsciente no tra­
balho de Freud. Ele, como todos nós,
O desenvolvimento desses dois ar­ também estava mergulhado no incons­
tigos, que parecem ser um único, apre­ ciente. Quando escrevia sobre algo,
senta embutido nele um raciocínio que não poderia saber da articulação do seu
implica a distinção entre fantasia e de­ próprio inconsciente e aonde ela o le­
lírio. Não é à toa que o segundo artigo varia. Isso ocorre conosco e não seria
desemboca exatamente nessa distinção. diferente com ele. Acredito que, hoje,
Nos últimos parágrafos, Freud marca diante da obra de Freud e com a leitura
explicitamente que a perda da realida­ de Lacan, podemos detectar, ou pelo
de na neurose é diferente daquela na menos tentar detectar esses diferentes
psicose. Na primeira há ainda certa fios invisíveis que sustentaram as arti­
manutenção de um vínculo com a rea­ culações maiores ao longo da obra freu­
lidade, ao passo que na segunda há uma diana.
perda radical dele. Quando, em 1911, Freud extrai a
Trabalhando esses artigos, ocorreu- lógica do delírio psicótico, ele afirma
me uma coisa engraçada: a idéia de que, algo espantoso, que foi polêmica na
ao escrevê-los, foi Freud quem perdeu época e é polêmica psiquiátrica até
a realidade. Isso aparece nitidamente hoje: o delírio não é a psicose, o delírio
nesses escritos. Quando digo que Freud é a tentativa de cura dela. Lacan refe-
a perdeu, é porque ele acaba concluin­ re-se a esse problema em várias passa­
do que a realidade é sempre perdida. A gens, por exemplo, no Seminário 3
noção de realidade é problematizável, (1956-1957), quando afirma que, em
a partir da noção de real de Lacan, e todo delírio, vemos a mesma força es-
Freud, nesses textos, antecipa avant la truturante, ou seja, a tentativa que o
lettre essa categoria. psicótico faz de se estruturar pela lin­
E interessante notar também que, guagem, pelo simbólico.
três anos depois dessa distinção estru­ Fantasia e delírio, então, corres­
tural entre neurose e psicose, a partir pondem a dois elementos muito pare­
da fantasia e do delírio, Freud, pela pri­ cidos e, ao mesmo tempo, muito dife­
meira vez, escreverá um artigo que traz rentes. Freud, no ensaio sobre a Gra-
uma teoria consistente do fetichismo, diva, utiliza a expressão fantasia delirante
talvez, para ele, o paradigma da perver­ para se referir ao delírio. Expressão que
são. associa neurose com psicose. A conse-
Ele havia, em 1909, elaborado a qüência direta disso é a dificuldade em
questão do fetichismo num texto apre­ distinguir com precisão os dois termos.
sentado na Sociedade das Quartas-Fei­ Há, portanto, uma necessidade de dar

2 FREUD, ‘A perda da realidade na neurose e na psicose”, in Obras completas, v.XIX. Rio de Janeiro: Imago,
1976, p. 229.
3 FREUD, S., “Sobre a gênese do fetichismo”, in Revista Internacional da História da Psicanálise, n.2, Rio de

Janeiro, Imago, 1992, p.371-387.

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à fantasia o lugar que ela tem no psi­ Do lado desta temos o princípio de
quismo. prazer, dominado pela fantasia, e do
Não é sem motivo que Lacan conce­ lado da pulsão de morte, o mais além
berá o fim da análise como ligado à ques­ do princípio de prazer.
tão da fantasia, mencionando a sua tra­ Tudo isso ocorre nas neuroses e nas
vessia. A fantasia é uma espécie de matriz perversões. Em ambas, há ação do
psíquica que funciona mediatizando o Nome-do-Pai, há recalque originário e,
encontro do sujeito com o real. Ela é uma por conseguinte, a instauração da ma­
matriz simbólico-imaginária que permite triz psíquica chamada fantasia incons­
ao sujeito fazer face ao real do gozo. ciente fundamental.
Se tomarmos a noção de pulsão de No caso da psicose, essa constelação
morte na obra de Freud - que foi, na não ocorre, porque a foraclusão do signi­
verdade, valorizada por Lacan -, vere­ ficante Nome-do-Pai produz uma falha
mos que o que ele chama de morte é o no recalque originário de tal modo que
que Lacan chama de o gozo. essa fantasia não se instaura e, por que
Há um vetor que rege nosso psi­ ela não se instaura, o psicótico tenderá
quismo. Para Freud, esse vetor único, a, no melhor dos casos, a produzir um
fundamental, se chama pulsão de mor­ delírio que preencherá essa lacuna, esse
te. Na leitura que faz de Mais Além do vazio. Esse vazio é a própria psicose.
Principio do Prazer (1920), Lacan afir­
ma que toda pulsão é pulsão de morte. Neurose e Perversão
Freud disse exatamente a mesma coisa
com outras palavras. Tomemos, agora, a fórmula da fan­
Felizmente, muitos de nós não vi­ tasia para tentar ler nela a diferença que
vemos submetidos a esse vetor, que, por há entre neurose e perversão: $oa.
definição, é mortífero. Alguma coisa Podemos ver nela dois pólos: se a
acontece que nos permite lidar de uma fantasia é a articulação entre o incons­
forma diferente com esse alvo da pul­ ciente e a pulsão, podemos situar, no
são de morte: o gozo. Essa alguma coi­ lado do $, o pólo inconsciente, e no lado
sa se chama fantasia. do objeto a, o pólo pulsional. No pri­
Ela surge a partir de uma operação meiro temos o sujeito, que é barrado
chamada recalque originário, operação pela linguagem, pelo significante, en­
agenciada por um significante, o signi- tre Sj e S2, e no segundo, o elemento
ficante Nome-do-Pai. O recalque ori­ que é aquilo que se inscreve na fanta­
ginário resulta sobre o psiquismo da cri­ sia como mais-gozar, como a inscrição
ança a imediata instauração dessa ma­ do gozo que era absoluto, mortífero e
triz psíquica: a fantasia. Esta, por sua que, na fantasia, se transforma num
vez, fará com que aquilo que era em- gozo limitado: o gozo fálico. Este é o
puxo-ao-gozo, como diz Lacan - pul­ gozo submetido à linguagem, ao falo.
são de morte, empuxo na direção da Podemos, também, dizer que o pólo
morte -, seja freado e passe a ser uma inconsciente é o pólo simbólico, e o
região na qual a pulsão de morte é se- pólo pulsional é o pólo real da fanta­
xualizada. Nessa região, a fantasia pas­ sia. Do lado do primeiro - do $, do
sa a dominar pelo menos um trajeto inconsciente, do simbólico - podemos
dessa pulsão de morte. E o que Freud situar o amor e do outro lado - do ob­
chama de pulsão de vida e que, para jeto a, da pulsão, do real - podemos si­
nós, é a pulsão sexual. tuar o gozo.

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Uma história de observação coti­ Um jovem analisando, com uma


diana, que me foi contada, muitos anos tendência predominantemente obses­
atrás, por um analista, é clarificadora siva, certa vez, chegou numa sessão di­
em relação à questão do gozo, um con­ zendo que concluíra que terminaria o
ceito difícil em Lacan. Um menino de seu namoro, porque sacou uma coisa
5 anos observava o seu irmãozinho de muito importante. Se ele continuava
leite mamando. Ao observar essa cena, sentindo atração física por outras me­
ele virou pra mãe e disse: “Mamãe, eu ninas, era porque sua namorada não era
também quero mamar”. E a mãe res­ a mulher da vida dele. A expressão
pondeu: “Mas você já mamou”. E ele “mulher da vida dele”, como outras tão
disse: “Mas eu não sabia!”. comuns na cultura, mostra que, na neu­
Assim, um menino de 5 anos nos rose, existe a tentativa de, através do
ensinou, com quatro palavras, o que é amor, preencher completamente o va­
o gozo para Lacan. O gozo é a perda zio e resgatar a completude perdida,
que se inscreve na medida em que hou­ elidindo totalmente esse aspecto do
ve a entrada no mundo simbólico. O gozo.
menino, olhando o irmãozinho, ma­ Se a clínica analítica é uma clínica
mando, quis ter acesso àquele gozo que sob transferência, então, ela é na es­
já foi perdido. Mas, ele não tem mais sência uma clínica da neurose.
como achá-lo. Como sujeito falante, Na perversão, houve a mesma en­
ele não tem mais acesso a esse gozo. Este trada da fantasia, mas, por motivos his­
está perdido. O que o menino queria tóricos absolutamente singulares, a en­
era gozar sabendo e o que Lacan asse­ trada do sujeito perverso no mundo do
gura é que há um corte radical entre simbólico se deu através da fixação no
saber e gozo. Quando há gozo, não há outro pólo da fantasia, no pólo pulsio-
saber, quando há saber, não há gozo. nal, no pólo de gozo. O perverso tem
Por isso que a análise, que dá acesso ao uma fantasia de completude de gozo. Ele
saber inconsciente, implica numa per­ almeja resgatar a completude perdida
da de gozo. pelo viés do gozo.
Se a fantasia é um elemento que se Poderíamos, então, pensar que para
instaura para a criança como uma ver­ o neurótico o fim da análise, enquanto
dadeira contrapartida ao gozo que ela uma travessia da fantasia, é uma traves­
perdeu, a fantasia se dá, essencialmen­ sia da fantasia amorosa; e de fantasia
te, como uma fantasia de completude. A de gozo, para o perverso. O fim da aná­
fantasia é fantasia de completude. Ela é lise implicaria em dar acesso ao neuró­
a elisão da falta inerente à estrutura do tico ao pólo do gozo do qual ele tanto
falante. Houve perda de gozo. A fan­ se defende, e, no caso do perverso, im­
tasia, instaurada, é uma tentativa de re­ plicaria no acesso à dimensão do amor,
cuperação daquilo que foi perdido. da qual ele também se defende.
Minha hipótese é a de que, se, na Mas, o que mais importa nessa tra­
neurose, temos fantasia de completu­ vessia não é ter acesso ao outro pólo da
de, ela é uma fantasia de completude fantasia, mas que, ao fazê-lo, o sujeito
amorosa, O neurótico quer resgatar a tenha acesso à dimensão que está es­
completude perdida pelo viés do amor. crita, no materna da fantasia, entre o $ e
Ele se fixa no amor. Ele se fixa no pólo o a, que é a dimensão do desejo, inscri­
inconsciente da fantasia e elide o pólo ta no signo da punção: <0>. O desejo,
do gozo da fantasia. aqui, está escrito enquanto falta e é a

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presentificação daquela perda de gozo é jogado por certas posições perversas


que esteve na origem da entrada do que adota. Ele chega a questionar isso.
sujeito no mundo humano, no mundo Ele chega a se sentir só.
do simbólico. Cito um exemplo dessa ordem. Um
Ao ter acesso ao pulsional e ao sujeito diz: “Eu não me ligo a ninguém,
gozo, e deixando de se fixar no pólo do não tenho nenhuma relação com nin­
amor, o neurótico terá acesso ao dese­ guém, porque sei que não vou conse­
jo. No perverso é o contrário. Porque, guir. Depois de algum tempo começo a
quando se tem acesso ao amor e ao gozo, transar com outras pessoas”. Ao con­
tem-se perda de amor e perda de gozo. trário do obsessivo a que me referi an­
Essa é a definição que eu proporia de teriormente, neste caso, o gozo fica
desejo: desejo é duplamente uma per­ como uma defesa em relação ao víncu­
da de amor e de gozo, ou seja, a dimen­ lo amoroso.
são da falta de amor e da falta de gozo. O vínculo amoroso implica a alte-
A frase de Lacan “só o amor pode ridade, implica a diferença, implica cer­
fazer o gozo ceder ao desejo” resume ta castração do gozo. A definição que
essa elaboração, na medida em que há gosto da perversão é: ela é a abolição
uma espécie de báscula entre amor e da diferença, a abolição do desejo do
gozo. Outro. Ou seja, a perversão é a aboli­
Percebe-se, porém, que essa báscu­ ção daquilo que entra com toda força
la ocorre não só nas estruturas clínicas na intersubjetividade amorosa.
como tais, mas também em um mesmo Mas vejam que, apesar de toda pro­
sujeito. E possível ver na clínica mui­ blemática em jogo nessa posição perver­
to mais perversão do que comumente sa, assim como na neurótica, ela é uma
se presume. saída daquele vazio que chamamos de
Se tomarmos o fetichismo como o psicose. O que a inscrição do signifi-
paradigma da perversão, teremos algo cante Nome-do-Pai provoca é a instau­
muito definido, mas não podemos nos ração de uma fantasia que recobrirá o
contentar com isso. A perversão é um vazio da psicose. E esta é uma assertiva
campo amplo demais e é necessário es­ importante porque coloca a psicose
tender a percepção que temos dele. como a base do humano e, clinicamen­
Diz-se que o perverso não busca te, como uma falha na saída dessa base.
análise, mas Freud não assegura isso e Lacan, numa daquelas passagens
descreve casos de análise de perversão. que só se comentam entre analistas,
O que ele afirma é que o perverso não chegou a dizer que uma psicanálise le­
procura análise pela perversão. Os ca­ vada muito longe conduziria à psicose.
sos de fetichismo de Freud são aqueles Isso se explica pela capacidade que a
nos quais o paciente procurou trata­ análise tem de desconstituir essa ma­
mento por motivo diverso do fetichis­ triz psíquica simbólico-imaginária que
mo, que só foi descoberto durante o tra­ é a fantasia e lançar o sujeito no vetor
tamento. da pulsão de morte, a base da nossa es­
Mas que questões levariam um per­ trutura psíquica.
verso à análise? Provavelmente algum Tanto a neurose como a perversão
tipo de sofrimento, que suponho estar são defesas, cada uma a sua maneira,
ligado ao que chamo de pólo amoroso contra a psicose. Acredito que a per­
da fantasia. Na perversão, escutamos versão é a primeira saída de fato, o pri­
o sujeito queixar-se da solidão na qual meiro corte, mas ainda com a manu-

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tenção de um traço que é forte na psi­ e num mesmo sujeito, ela também apa­
cose: o gozo. Isso se inscreve na per­ rece na cultura. A cultura traduz essas
versão, mas não como na psicose. Ins­ fixações. A história da música popular
creve-se de outra maneira, pela presen- recente é um bom exemplo disso.
tificação do objeto a, do objeto mais- Em 1966, em Liverpool, nasceram
gozar. dois grandes grupos de rock: os Beatles
Na neurose, há também essa saída, e os Rolling Stones. Os Beatles tive­
há um corte em relação à psicose. A ram uma existência efêmera, foram um
dimensão que dominará, porém, é a cometa que atravessou a existência da
do simbólico e, portanto, a dimensão música e deixou rastros em todos nós.
do amor ao Pai, que vem, como radical Os Rolling Stones existem até hoje,
alteridade, frear o empuxo ao gozo. E dando shows no mundo inteiro, gra­
a criança neurótica se atém a esse ele­ vando discos etc. O que me chama a
mento que a salvou. A fantasia amo­ atenção é que os Beatles foram um gru­
rosa é uma salvação. po que cantou essencialmente o amor.
Freud desenvolve essa idéia prin­ Por exemplo, “All you need is love”,
cipalmente num artigo do ciclo da fan­ para tomar uma canção deles que é pa­
tasia, chamado Fantasias Histéricas e sua radigmática dessa posição. Já a canção
Relação com a Bissexualidade (1908). paradigmática dos Rolling Stones é “Sa-
Trata-se de um texto sobre a relação tisfaction”: “I canzt get no satisfaction,
entre pulsão e fantasia. E muito curio­ But Pll try, but Pll try, but Pll try”. É a
so que ele seja do primeiro dualismo própria pulsão falando...
pulsional e ainda não tenha a articula­ Talvez esses grupos - e a presença
ção entre pulsão de vida e aquela de deles em nossa vida e em nossa cultura
morte. E possível, porém, encontrar - signifiquem que o amor é mais frágil
todos os elementos sustentando que a que o gozo, que o gozo é a busca da
fantasia freia o empuxo ao gozo da pul­ satisfação absoluta que se repete com
são de morte. uma intensidade impressionante, na
O problema é que, como tudo no medida em que há esse vetor insistente
nosso psiquismo, a fantasia tem dois la­ em nós. Tudo indica que Mick Jagger
dos: ela é uma salvação, mas também é cantará e dançará até os 80 anos. E
uma patogenia. Pelo próprio fato de nós com ele, o que é interessante.
que ela nos salvou da derrelição abso­ Mas vamos também cantar com
luta na qual estamos fadados pela pul­ os Beatles. Poucos de nós sabem de cor
são de morte, vamos nos agarrar a ela a letra de uma música dos Rolling Sto­
com unhas e dentes. Isso é o que Freud nes, mas muitos aprenderam inglês com
chama de “fixação”. Agarramo-nos à os versos de John Lennon e a música
fantasia com tanta intensidade, que ela dos Beatles.
passa a ser um núcleo da nossa vida, e Mas a música não é o único exem­
passamos a produzir uma série de coi­ plo cultural que temos das fixações nos
sas chamadas “sintomas”, que são a per­ pólos da fantasia. O pólo do amor se
petuação constante da nossa relação traduz também pela religião no qual há
com a fantasia. Ela tem, então, uma uma fixação nele por meio dela. E o
dupla face: uma face de salvação e uma pólo do gozo se traduz pela pujança do
face de produção patológica. capitalismo.
E assim como há uma báscula en­ E possível perceber certa rivalida­
tre amor e gozo nas estruturas clínicas de entre religião e capitalismo, que se

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expressa até pela arquitetura das cida­ um lugar da fantasia. E acredito que,
des. Em Salvador, Belo Horizonte, no na cultura, há, hoje, dois discursos que
Rio de Janeiro, é possível ver templos sustentam esse lugar: a psicanálise e a
religiosos de novas seitas evangélicas arte. A arte é também um discurso
construídos em frente aos grandes sho­ poderoso que tenta sustentar esse lugar
pping centers. Um espelha o outro, bri­ do vazio e da falta.
gando por primazia. Passamos, ali, no
meio desses desfiladeiros de fixações de
amor, na religião - porque a religião é Keytvords
uma fixação no amor: “Amai-vos uns Pantasy — Unconscious - Drive — Neu-
aos outros” -, e de gozo, no capitalis­ rosis
mo, com aqueles objetos todos que nos
são oferecidos e vendidos de uma ma­ Abstract
neira tão excessiva. The author starts from a new concept of
Mas não é só a neurose e a perver­ fantasy: the articulation of the unconscious
são que se traduzem na nossa cultura, a with the drive or, in other words, from the
psicose também o faz. E parece que ela language to the sexuality. Two different
o faz pela ciência. E preciso que nós, points are in the lacanian materna of fan­
analistas, possamos dizer, com todas as tasy: the one ofthe unconscious ($) and
letras, que a ciência está louca. A ci­ the one ofthe drive (a). Neurosis andper-
ência enlouqueceu, perdeu os limites. versions are broached in its fundamental
Hoje, ela mistura espécies, clona os ani­ positions: in neurosis, the fantasy oflove
mais a bel-prazer e quer fazer isso com fulfillness. This one is much valued and
o ser humano. O ápice dessa loucura, corresponds to the fixation of the subject
desconfio, é seu intento de transformar in the first unconscious point. In perver-
a reprodução sexuada em reprodução sion, the fantasy of the pleased fulfillness
assexuada. Isso é loucura. Não éà toa is dominated and corresponds to the fixa­
que, na cultura, existe a figura do cien­ tion of the subject in the pulsional point.
tista maluco. O cientista maluco é um Positions offantasy’s fixation are eç/ually
traço da linguagem no inconsciente que indicated in culture, taken in moebian
denuncia que a ciência tem uma forte continuance of the structure of language
tendência à loucura, patente hoje em of the subject
dia.
Evidentemente que fomos adverti­
dos quanto a isso desde a época em que
o homem foi a Lua. Ali, começava uma
grande loucura, porque ir à Lua, é cla­ Bibliografia
ro, é coisa de lunático.
FREUD, S. “O delírio e os sonhos na ‘Gradiva
A psicanálise propõe um quarto
de W. Jensen”, in Obras completas, v. IX. Bue­
lugar da fantasia, diferente daqueles tra­ nos Aires: Amorrortu, 1996.
duzidos pela religião, pelo capitalismo FREUD, S. “As fantasias histéricas e sua relação
e pela ciência. Nem a fixação no amor, com a bissexualidade”, in Obras completas, v.IX.
nem a fixação no gozo fálico, nem a Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Pontuações psicanalíticas sobre
fixação no gozo absoluto. Ela propõe
um caso de paranóia (Dementia paranoides)
um lugar do desejo, que é aquele lugar, descrito autobiograficamente”, in Obras
no materna da fantasia, entre $ e a pe­ completas, v.XII. Buenos Aires: Amorrortu,
queno. Porque aquilo ali é um lugar, é 1996.

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A Travessia da Fantasia na Neurose e na Perversão

FREUD, S. “Formulações sobre os dois princípi­


os do acontecer psíquico”, in Obras completas,
v.XII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Neurose e psicose”, in Obras com­
pletas, v.XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “A perda da realidade na neurose e
na psicose”, in Obras completas, v.XIX. Buenos
Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S., “Mais-além do princípio de prazer”,
in Obras completas, v.XVIII. Buenos Aires:
Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Sobre a gênese do fetichismo”, in
Revista Internacional da História da Psicanálise,
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses. 2.ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

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Convite feito em 10/01/2006

Estudos de Psicanálise • Rio de Janeiro • n. 29 • p. 29 - 38 • Setembro. 2006 37


A Travessia da Fantasia na Neurose e na Perversão

38 Estudos de Psicanálise • Rio de Janeiro • n. 29 • p. 29 - 38 • Setembro. 2006

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