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Winnicott
Hoje vamos usar um dos conceitos mais importantes da teoria winnicottiana, o “uso do
objeto”, para falar sobre aspectos fundamentais em nossa prática clínica. A importância do
conceito do uso do objeto está especialmente ligada ao manejo do tempo e da destrutividade
nas relações com nossos pacientes com falhas de constituição mais graves ou extremamente
regredidos.
Já vimos em outra aula que o bebê quando nasce é uma coleção de partes. E suas
primeiras tarefas serão no sentido de buscar uma unidade. Neste estágio do primitivo do
desenvolvimento não há relação de objeto, nem estrutura psíquica, como ego, id e superego. O
que existe são núcleos de ego. Porém, para que o potencial hereditário possa atualizar-se,
possa manifestar-se no indivíduo, não basta apenas a mera passagem do tempo, porque trata-se
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de uma tendência e não de uma determinação. Para que a tendência venha a realizar-se o bebê
depende, fundamentalmente, da presença de um ambiente facilitador, na figura da mãe
suficientemente boa que, com sua preocupação materna primária, lhe forneça os cuidados que
ele necessita para se tornar si mesmo. 2
Também convém perguntar: qual é a unidade que se estuda em Psicanálise? É a criança
(então seria o paciente), ou a dupla mãe-bebê (portanto, no caso a dupla paciente-analista).
Não resta dúvida sobre a posição de Winnicott. Em uma reunião da Sociedade Britânica de
Psicanálise, em 1940, ele afirmou que “o bebê é algo que não existe” e completou: “quando
me mostram um bebê, mostram também alguém que se ocupa da maternagem”.
No início, mãe e bebê estão fusionados numa unidade. São dois em um. Não existe
diferenciação e, portanto, não podemos falar em relações de objeto no sentido das teorias de
Freud e Klein. Para Winnicott a relação que o bebê estabelece com a mãe nesse período da
vida é de pura subjetividade. A relação que o bebê tem é com um objeto criado por ele,
projetado, um objeto subjetivo. O bebê se encontra em estado de isolamento, visto que a
relação com os objetos não ocorre numa realidade compartilhada. Surge, então, a necessidade
de transformar o envolvimento para com este objeto, provocando uma mudança de relação de
objeto para uso do objeto.
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aqueles que ele cria em função das suas próprias necessidades O objeto subjetivo é exatamente
aquilo que o bebê precisa. Podemos dizer que os objetos subjetivos são o próprio sujeito nessa
fase do desenvolvimento.
Mas o bebê não pode continuar a viver num mundo que é feito apenas de suas 3
projeções e a comunicação com objetos subjetivos, que foi extremamente necessária mas se
torna um "beco sem saída". Desse modo, há um momento do amadurecimento normal em que
o bebê precisa destruir o objeto subjetivo, não para livrar-se de algo mau que está dentro dele
(ainda não há dentro e a questão não é bom ou mau) mas para, expulsando-o para fora do seu
controle onipotente e experienciando a sobrevivência do objeto, poder reconhecê-lo como uma
coisa em si, externa, real e separada do seu eu, como algo que vive por sua própria conta.
No livro Natureza Humana, capitulo I, logo na primeira frase, Winnicott afirma que o
ser humano é um exemplar do tempo na natureza. Ele considera que o ser humano não é só
inserido no tempo, o tempo faz parte da sua constituição. O ser humano não só acontece no
tempo, não só está diante do tempo, mas é tempo.
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Para exemplificar Winnicott na conta sobre sua própria experiência escrevendo: “só
recentemente me tonei capaz de esperar; e esperar, ainda, pela evolução natural da
transferência que surge da confiança crescente do paciente na técnica e no cenário
psicanalítico, e evitar romper esse processo natural, pela produção de interpretações”. 4
Esta é a primeira ideia que Winnicott fala no artigo “O uso do objeto”. Assim como o
tempo é fator fundamental no processo de amadurecimento do ser humano, também é
fundamental o respeito ao tempo do paciente na situação analítica. Esta contribuição está
diretamente ligada a um modo pelo qual Winnicott compreende o sofrimento humano, as
questões psicopatológicas e também sua contribuição para teoria da técnica.
Winnicott diz que, assim como uma mãe suficientemente boa, nos primeiros tempos de
vida do bebê a mãe está até meio adoecida de tanta dedicação, quase que totalmente adaptada
ao seu bebê, adivinhando as suas necessidades, se adaptando ao tempo, ao ritmo dele, assim
também o analista precisa agir assim com esse tipo de paciente, precisa se adaptar a ele até que
perceba que pode ir se desadaptando. E, se tudo der certo, o paciente pode ir aos poucos
encontrando o analista como uma pessoa separada, real, inteira e que tem uma vida pessoal. A
partir desse momento o paciente poderá então usar o analista. Concomitantemente o paciente
se sente uma pessoa real. Winnicott acredita que este processo pode durar muitos anos.
À medida que o sujeito vai adquirindo a capacidade de distinguir o que é objeto real,
externo ao si mesmo, e o que é criação sua, fruto de sua projeção, ao mesmo tempo,
concomitantemente ele vai se constituindo como si mesmo, vai construindo as suas fronteiras.
Vai aos poucos descobrindo quem é, o que precisa, o que é bom ou que é ruim, o que sente.
Ou seja, vai se constituindo como um ser que tem vida separada, e passa a perceber o outro
como outro, separado, diferente, com vida própria e que não é controlável pela sua
onipotência. Claro que este é um longo processo na constituição do si mesmo.
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Na situação de análise, a sequência do processo desenvolvimento seria a seguinte com
aqueles pacientes com falhas muito básicas de constituição e/ou que regrediram, num certo
estágio do processo terapêutico ao estágio da dependência absoluta:
Então, para que o sujeito possa alcançar a capacidade de ser si mesmo, alcançar uma
identidade separada, para que possa ir se aproximando da experiência de ser uma pessoa total,
é preciso destruir os objetos subjetivos.
E quando a pessoa está em análise, é o analista que o paciente precisa destruir como
objeto subjetivo, para que possa ter a possibilidade de se relacionar com uma pessoa total,
independente, com uma vida separada e autônoma e assim poder encontrar o objeto externo,
do lado de fora de sua realidade subjetiva. O analista precisa ser destruído para poder ser
encontrado na realidade de fora, na realidade compartilhada. E assim seja possível para o
paciente usar o analista como pessoa, à parte das suas projeções.
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A destruição, em Winnicott, desempenha um papel importante na criação da realidade.
Para que o bebê perceba o mundo objetivamente, ele deve experienciar o objeto que sobrevive
à sua destrutividade. A sobrevivência do objeto conduz ao uso do objeto. E o uso do objeto
conduz à separação de dois fenômenos distintos: a fantasia e a localização real do objeto fora 6
da área de projeção. Assim, os objetos são destruídos por serem reais e são reais por terem
sido destruídos.
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Essa experiência de destruir demonstra a aplicação das ideias de Winnicott a respeito
da importância da destruição e da sobrevivência do analista como elemento constitutivo que
possibilita a colocação do analista fora da experiência de onipotência do paciente. A
destruição, nesse caso, não está na dimensão da pulsão de morte e, sim, na dimensão 7
constitutiva do sujeito. Uma dimensão que tem importância não apenas no processo de
constituição do indivíduo, como também no processo analítico.
Muitos pacientes chegam a análise já tendo constituído esta capacidade. Porém, muitos
outros, como os pacientes psicóticos, os borderlines, que não chegaram a se constituir como
um “eu sou”, precisam que este processo de separação eu-não eu seja constituído na análise.
Me arrisco até a dizer que não são apenas os psicóticos e os borders não. Vejo cada dia mais
no consultório pacientes que parecem ser “neuróticos normais” mas que, no decorrer do
processo, vão revelando falhas graves em sua constituição e demandam o mesmo tipo de
cuidado.
Se o paciente ainda está vivendo no mundo subjetivo vai viver o analista como objeto
subjetivo e a experiência de ilusão de que o analista é criação dele. O analista é o que ele
necessita. Estamos num tipo de funcionamento onde não se pode falar verdadeiramente em
uma discriminação entre consciente e o inconsciente. Este é o ponto. Estamos nos primórdios
da constituição do self. Não se pode falar de dentro ou fora, de eu ou outro. É o que Margareth
Little denominou de transferência ilusória. O gesto do analista, as falas do analista são vividas
não como algo do analista, mas como algo que surgiu do paciente. Há uma indiscriminação
entre paciente e analista.
Winnicott na alerta para que fiquemos atentos para diferenciar que tipo de relação o
paciente estabelece conosco. Precisamos estar atentos para que o processo analítico não seja
uma farsa.
Isso pode acontecer quando, por exemplo, o paciente já tem confiança e já adquiriu a
capacidade de destruir o analista sem o temor da retaliação. É só pela destruição e pela
liberdade em destruir o outro é que a intimidade é estabelecida. Alguns pacientes chegam
mesmo a dizer: depois daquele dia que nos estranhamos que me sinto à vontade com você. A
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relação sustenta a situação de confronto. Neste ponto o paciente alcançou a possibilidade de
usar o setting e o analista para alcançar as experiências que necessita. Nesse ponto a análise se
coloca sob o domínio do seu gesto. O analista está lá e sustenta a sessão. É a alteridade
alcançada. 8
É a permanência do analista na sua objetividade que vai fazer com que o paciente
possa destruir o objeto subjetivo e permanecer destruindo na fantasia. Todas aquelas vivências
da ilusão de onipotência, continuam, até porque o primitivo de nós jamais nos abandona,
porém agora podem continuar dentro de nós, internamente, na fantasia inconsciente. O objeto
permanece e sobrevive. Tem vida própria e é diferente de mim, e o sujeito reconhece a
alteridade. Uma parte da pessoa se integrou. Esse não é o objetivo da análise? Ajudar o
paciente a integrar seus aspectos não integrados, ou dissociados?
“Uma reação demasiadamente grande (ou demasiada pequena), por parte do analista, às
necessidades do paciente pode causar danos ao processo de separaçã0-individuação e
promover uma fusão regressiva, antes que a independência. Neste domínio “suficientemente
bom” é o melhor. Qualquer coisa que seja melhor ainda é boa demais e pode vir a incidir tão
aquém do ótimo quanto o faz a negligência ou a rejeição simples”.
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Bibliografia
Weich, Martin,J. M.D. O Analista Suficientemente bom. In: Técnicas e Táticas Psicanalíticas.
Peter L. Giovacchini ( Org).Porto Alegre, Artes Médicas,1995.
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Winnicott, D.W. O Uso de um Objeto e Relacionamento Através de Identificações. Rio de
Janeiro, Imago, 1975.
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