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Um dos principais conceitos criados por Freud para a análise de fatos sociais foi o de
supereu. Ao tentar explicar, através do mesmo dispositivo, a gênese da consciência moral,
do sentimento de culpa, dos ideais sociais do eu e da internalização da lei simbólica, Freud
deparou-se com um processo no qual socialização e repressão convergiam em larga
medida. Hoje, as páginas do Mal estar na civilização que tratam de tal imbricação são
arqui-conhecidas. “Toda cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a
renúncia pulsional”[1] é uma frase que ressoou como programa crítico durante todo o
século XX, vide, por exemplo, a promessa utópica de reconciliação entre exigências
pulsionais e formações sociais que animou Eros e civilização, de Herbert Marcuse.
A grosso modo, a frase de Freud indicava os resultados sociais de uma relação
ambivalente que se dá inicialmente no interior da família burguesa; relação marcada pela
sobreposição entre rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no
conflito entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito
e como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se necessário que o sujeito se
identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei repressora em relação às
exigências pulsionais. O resultado é a internalização psíquica de uma ”instância moral de
observação”, no caso, o supereu resultante desta identificação parental. Isto faria com que
toda afirmação do gozo ligado à satisfação pulsional provocasse, necessariamente, um
sentimento de culpa advindo da pressão sádica do supereu sobre o eu. Sentimento de
culpa que não deixa de provocar, como benefício secundário, um modo neurótico de gozo.
Sabemos que a psicanálise freudiana normalmente opera com uma perspectiva
unívoca na compreensão da multiplicidade das ordens simbólicas. Há, por exemplo, a
pressuposição de uma espécie de princípio de similaridade estrutural entre a autoridade
familiar e a autoridade que suporta outros vínculo sociais, como os vínculos religiosos ou
políticos[2]. Tal similaridade entre esferas aparentemente autônomas de valores (família,
religião, Estado) permite a Freud insistir que aquele que suporta a função paterna não é
apenas representante da lei da família, mas de uma Lei que determina o princípio geral
de estruturação do universo simbólico. Nào se trata de tentar derivar as ordens simbólicas
a partir do núcleo familiar, mas de insistir no fato de que problemas de socialização do
desejo no interior do primeiro campo de experiências do sujeito, ou seja, o núcleo
familiar, trazem necessariamente tensões de socialização em esferas mais amplas. Isto
abre o caminho para Freud afirmar que o sentimento de culpa: “seria o mais importante
problema no desenvolvimento da civilização”[3], e não simplesmente no desenvolvimento
da família burguesa.
De fato, tudo isto é praticamente um lugar comum atualmente. Mas algumas
modificações substanciais ocorreram em certos processos de socialização e elas fazem
com que o problema do supereu ganhe hoje novas configurações. Este ponto não deve
nos estranhar pois, se o supereu tem sua gênese exatamente a partir dos processos de
socialização, se ele é : “uma manifestação individual ligada às condições sociais do
edipismo”[4], então ele necessariamente se modificará na medida em que tais processos
se reconfigurarem. Fato que, como veremos, Jacques Lacan e a Escola de Frankfurt
perceberam claramente ao pensar as incidências clínicas de uma modificação histórica
maior bem definida por críticos conservadores da modernidade : o advento de uma
espécie de “socidade não-repressiva” vinculada à universalização das práticas de
consumo. Para entender o significado e alcance de tais elaborações, valeria a pena darmos
um passo para trás.
Da produção ao consumo
O que nos interessa aqui são certas consequências psíquicas desta passagem da
sociedade da produção à sociedade do consumo. Jacques Lacan identificou talvez a
maior delas ao insistir que a figura social dominante do supereu na contemporaneidade
não estava mais vinculada à repressão das monções pulsionais, mas à obrigação da
assunção dos fantasmas. Não mais a repressào ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí
porque ele nos lembra que o verdadeiro imperativo do supereu na contemporaneidade é:
“Goza!”, ou seja, o gozo transformado em uma obrigação[28].
Já há muito, não vemos mais a hegemonia de discursos sociais que pregam a
repressão ao gozo. Hoje, o verdadeiro discurso que sustenta os vínculos sócio-culturais
da contemporaneidade é, digamos, mais maternal. Trata-se, por exemplo, do: “cada um
tem direito a sua forma de gozo” (ou ainda “cada um deve encontrar sua forma de gozo”)
que podemos encontrar na liberação multicultural da multiplicidade das formas possíveis
de sexualidade[29]. Devemos pensar aqui na tese de que a incitação e a administração do
gozo transformaram-se na verdadeira mola propulsora da economia pulsional da
sociedade de consumo, isto ao invés da repressão ao gozo própria à sociedade da
produção.
De fato, a Escola de Frankfurt já oferecia um aparato para pensar tal situação
através do conceito de “dessublimação repressiva”, utilizado inicialmente para a
compreensão de certas caracterísitcas das sociedades totalitárias. Sabemos como a noção
de dessublimação repressiva aparece no edifício frankfurtiano, entre outras coisas, como
possibilidade de instrumentalização social direta das monções pulsionais sem
recalcamento, fruto de uma época na qual o eu não seria mais capaz de se impor como
instância de mediação entre as exigências pulsionais do isso e o princípio de realidade.
Adorno, por exemplo, chega a falar em “expropriação do inconsciente pelo controle
social”[30] que se imporia devido à fraqueza do eu. Em paragens distintas, Lacan, ao falar
da “assimilação social do indivíduo levada ao extremo”[31] não pensava em outra coisa; a
exceção de que, para o psicanalista parisiense, o eu não é exatamente uma instância de
mediação, mas já é desde sempre construção reificada de imagens socialmente ideais. Daí
a falta de sentido em procurar evitar a expropriação social do inconsciente através de
alguma espécie de “fortalecimento” do eu.
Mas no interior deste debate, devemos lembrar como Marcuse configura
corretamente tal expropriação do inconsciente como neutralização social do conflito entre
princípio de prazer e princípio de realidade através de uma satisfação administrada, ou
seja: “uma liberalização controlada que realça a satisfação obtida com aquilo que a
sociedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao campo dos
negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada”[32]. Ou seja, abre-se a todos
estes autores a consciência de uma modificação substancial nos processos de
socialização. Eles compreendem a tendência das imagens sociais ideais não estarem mais
vinculadas a representações do “auto-controle sereno” da renúncia pulsional como
princípio de conduta. Com a “integração da esfera da sexualidade ao campo dos
negócios”, ou seja, com a incitação ao gozo como elemento central na lógica de
reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens ideais daqueles que
instrumentalizam seus fantasmas e que pautam sua conduta pela exigência irredutível de
gozo.
Para compreender melhor este aspecto devemos lembrar que falta à construção
frankfurtiana a compreensão de que tal expropriação do inconsciente se dá, na
contemporaneidade, através de novas figuras sociais do supereu[33]. Não se trata de uma
correção sem maiores consequências, pois ela limita radicalmente, como veremos, a
possibilidade de posição positiva de promessas utópicas de reconciliaçào. Suas
implicações ficam visíveis se seguirmos o problema do supereu na experiência intelectual
lacaniana.
[1]
FREUD, Sigmund, O futuro de uma ilusào, ,
[2]
Isto levará Freud, por exemplo, a afirmar que : “a exploração psicanalítica do indivíduo ensina com
uma insistência particular que o deus de cada homem é à imagem do pai, que a relação pessoal a Deus
depende da relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a partir desta última, e que Deus não é
outra coisa que um pai elevado ao nível superior” (FREUD, Totem und tabu, p. 177). Ou ainda, a respeito
do comportamento social das massas : “Há nas massas humanas uma forte necessidade de uma autoridade
que se possa admirar (...) A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas.
Trata-se da nostalgia do pai” (FREUD, O homem Moisés e a religião monoteista, p. 207). Daí a fórmula
canônica a respeito da formação das massas: “Uma massa psicológica é a reunião de indivíduos que
introduziram a mesma pessoa no supereu e que, na base desta comunhão, identificaram-se uns aos outros
no eu” (FREUD, Novas conferências de introdução à psicanálise, p. 94)
[3]
FREUD , Das Unbehagen der Kultur, p 97
[4]
LACAN, Ecrits, p. 136. O que fica muito claro quando Freud afirma que: “o supereu adota também as
influências de pessoas que tomaram o lugar dos pais, como educadores, mestres, modelos ideais. Ele
normalmente se distancia cada vez mais dos indivíduos paternos orginários e advém mais impessoal”
(FREUD, Novas conferências sobre a psicanálise, p; 90)
[5]
FREUD, O homem Moisés e a religião monteista, p. 196
[6]
Cf. FREUD, Totem e tabou, p. 191
[7]
Cf. LÉVI-STRAUSS, La pensée sauvage e LÉVI-STRAUSS, Le totémisme aujourd’hui
[8]
Neste sentido, para além do desamparo estritamente compreendida como experiência subjetiva
vinculada à angústia cuja fonte encontra-se nos desdobramentos do estado de prematuração do bêbe ao
nascer (com sua incompletude funcional e sua insuficiência motora), o uso freudiano da noção de
desamparo no interior desta teoria evolucionista das concepções de mundo pode nos levar a uma
articulação complementar. Pois devemos estar atento ao fato da temática do desamparo ganhar relevância
exatamente em um momento histórico de desintegração da possibiidade de apreensão do sentido como
totalidade de relações e de ruptura de um pensamento da participaçào entre homem e natureza. Através
da noção de desamparo, Freud pode trabalhar as.incidências clínicas de um certo diagnóstico de época
vinculado aos processos de desencantamento do mundo e de autonomização das esferas de valores; um
diagnóstico bem sumarizado na afirmação : “para o homem civilizado, a morte não tem significado”,
pois, “ele aprende apenas a minúscula parte do que a vida do espírito tem sempre de novo, e o que ele
aprende é sempre algo provisório e não definitivo, e portanto para ele a morte é uma ocorrência sem
significado” (WEBER, A ciência como vocação, p. 166). Além da morte, a psicanálise lembra que a
diferença sexual e as escolhas de objeto também aparecem como manifestaçào da pura contingência .
[9]
Isto leva a Freud afirmar que : “o sentimento de culpa é claramente apenas o medo da perda de amor,
uma ansiedade social” (FREUD, Das Unbehagen der Kultur, p. 85)
[10]
A visão freudiana do discurso científico será fundamentalmente positivista, apesar da sua crítica à
transparência da consciência e aos processos imaginários de projeção e introjeção próprios à maneira com
que o eu opera enformações (Gestaltung) do mundo exterior (FREUD, Totem und tabu, p. 48).Para Freud,
o discurso científico é realista e correspondencialista, já que a verdade é aqui compreendida como acesso
epistêmico positivo ao real: “coincidência com o mundo exterior real” (übereinstimung mit der realen
Aussenwelt) (FREUD, Novas conferências, p. 184). Por outro lado, o progresso científico seria
cumulativo: “as trasnformações das opiniões científicas são desenvolvimento progrssivo, e não rupturas
(Umsturz)” (idem, p. 56)
[11]
Na visão de mundo científica, o sujeito deverá : “assumir todo o seu desamparo e sua insignificância
(Geringfügigkeit) no curso do mundo” (FREUD, O futuro de uma ilusão, p. 50)
[12]
FREUD, O futuro de uma ilusão, p. 45
[13]
FREUD, Novas conferências introdutórias à psicanálise, p. 232
[14]
Isto segundo a noção de que, diante de lideranças carismáticas : “o indivíduo abandona seu ideal do eu
(Ichideal) e o troca pelo ideal da massa, encarnado pelo líder (Führer)” (FREUD, Massenpsychologie und
Ich-analyse, p. 144)
[15]
WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Centauro, p. 56
[16]
idem, p. 102
[17]
idem, p, 42
[18]
idem, p. 83
[19]
Lembremos como Lacan insiste que a voz e o olhar são objetos parciais que indicam a redução da Lei
à dmiensão do supereu. Este caráter superegóico da vocaçào fica claro em afirmações como : “Contra as
dúvidas religiosas e a inescrupulosa tortura moral, e contra todas as tentações da carne, ao lado de uma
dieta vegetariana e de banhos frios, prescreve-se : ‘trabalha em tua vocação’” (WEBER, idem, p. 126)
[20]
idem, p. 95
[21]
Proposição que não seria absolutamente estranha a Freud, para quem a gênese da consciência moral
(Gewissen) era necessariamente derivada do fato empírico da ameaça de castração vida do pai e do medo
da perda do amor paterno. De onde se segue que, para o materialista Freud, a moralidade é fruto do
sentimento de rivalidade em relaçào ao pai . Neste ponto, remeto ao meu SAFATLE, O ato para além da
Lei in Um limite tenso, Unesp, 2003.
[22]
FREUD, Das Unbehagen der Kultur, p. 505
[23]
Ver, por exemplo, o clássico MATTHES, Krise der Arbeitsgesellschaft, Frankfurt, 1983
[24]
OFFE, Claus; Trabalho e sociedade, Rio de Janeiro, p. 12
[25]
LACAN, Seminário XVI, sessão do 13/11/68
[26]
BELL, Daniel, The cultural contradiction of the capitalism, New York, Basic Books, p. 85. Ou, como
nos lembra Tom Frank: “Desde a década de 20, pelo menos, o consumismo vem sendo uma forma de
revolta contra valores mais antigos, ligados à produção. Enfatizou o prazer e a gratificação, em oposição à
restrição e à repressão da tradição puritana” (FRANK, Tom; O marketing da libertação do Capital in
Cadernos Le monde diplomatique, p. 43). Max Weber já havia percebido esta mudança inexorável na
moralidade econômica do capitalismo ao afirmar que : “No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos
Estados Unidos, a procura da riqueza, despida de roupagem ético-religiosa, tende cada vez mais a
associar-se com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o caráter de
esporte”(WEBER, A ética protestante, p. 143)
[27]
BELL, Daniel, idem, p. 31
[28]
LACAN, Séminaire XX, p. 10
[29]
O adjetivo “maternal” não funciona aqui como uma simples metáfora. Ele faz alusão à noção
psicanalítica da existência de um supereu materno resultante da introjeção do investimento libidinal da
figura materna. Processo este anterior à consolidação de um supereu através da introjeção da identificação
paterna como saldo da saída do complexo de Édipo. Ele responde também pelo problema referente ao
princípio de investimento libidinal em vínculos sociais no interior de uma sociedade marcada pelo
“declínio da imago paterna”, para falar com Lacan.
[30]
ADORNO, Freudian theory and the pattern of fascist propaganda, p. 431
[31]
LACAN, Ecrits, p., 146. Ou ainda, quando ele escreve sobre: “o desenvolvimento que crescerá, neste
século, dos meio de agir sobre o psiquismo, um manejo concertado das imagens e paixões do qual já se
fez uso com sucesso” (LACAN, AE, p. 120)
[32]
MARCUSE, Cultura e sociedade II, p. 106
[33]
O que Slavoj Zizek já havia indicado ao afirmar que : “A dessublimação repressiva é apenas uma
maneira, a única maneira possível, no contexto teórica da Teoria crítica da Sociedade, de dizer que, no
totalitarismo, a Lei social começa a funcionar como supereu, assume os traços de um imperativo do
supereu” (ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, p. 31)
[34]
LACAN, AE, p. 60
[35]
LACAN, AE, p. 61
[36]
Esta figura do pai-senhor do gozo pode muito bem dar lugar a um supereu materno que opera de
maneira simétrica, o que o próprio Lacan percebeu ao se perguntar : “Não há na neurose, atrás do supereu
paterno, um supereu materno ainda mais exigente e não opressor, mais insistente? “ (LACAN, SV, p. 162
[37]
LASCH, A cultura do narcisismo, p. 215. Ou ainda : “À medida que as figuras de autoridade na
sociedade moderna perdem sua ‘credibilidade’, o supereu individual cada vez mais tem origem nas
primitivas fantasias infantis sobre seus pais – fantansias carregadas de ódio sádico – e não em ideais do eu
interiorizados, formados pela experiência posterior com modelos amados e respeitados de conduta social”
(LASCH, A cultura do narcisismo, p. 33)
[38]
LACAN, S XIX, sessão de 16/06/71
[39]
LACAN, idem
[40]
LACAN, S I, p. 119
[41]
Lacan compreendeu este caráter “puro” da Lei superegóica ao analisar a função da Lei no interior do
universo fantasmático do Marques de Sade. A Lei sadiana, que ordena a todos os sujeitos o “direito de
gozo”, funda-se exatamente na rejeição de toda fixação privilegiada de objeto. Este princípio de
equivalência geral entre objetos leva à negação destrutiva de todo objeto. Neste ponto, ao menos para
Lacan, o caráter pura do Lei sadiana seria equivalente ao caráter puro e a priori do imperativo moral
kantiano.
[42]
FOUCAULT, Michel, Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1996, p. 147
[43]
O que já havia sido claramente compreendido por Debord. Lembremo-nos de sua afirmação : “À
aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente espetacular : isso mostra que a própria
insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de
estender sua produção até o tratamento desta matéria-prima” (DEBORD, A sociedade do espetáculo, p.
40). Sobre este ponto, ver também, FONTENELLE, Isleide; O nome da marca
[44]
ADORNO, Soziologische Schriften I, p. 430
[45]
ADORNO, Theodor, Tempo livre in Indústria cultural e sociedade, Paz e Terra, 2002, p. 120
[46]
CANEVACCI, Massimo, Antropologia da comunicação visual, p. 139
[47]
Em BARTHEL, Diane, Putting on appearances : Gender and advertising, Temple University Press,
1988, p. 81, a autora analisa várias campanhas publicitárias nas quais: “o sadismo é apresentado como um
elemento cotidiano, mesmo desejável da vida cotidiana”.