Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Jésus Santiago*
Resumo: O presente ensaio tem por objetivo investigar o problema da felicidade sob a
ótica da psicanálise, destacando a importância do caráter ético da ação do homem na
formulação do referido problema. Nesse escopo, a oposição freudiana entre o programa
do princípio de prazer (que coloca a busca da felicidade como seu principal ponto de
apoio) e o da civilização (incapaz de produzir a felicidade de maneira satisfatória) será
esmiuçada.
Palavras-chave: Freud; políticas da felicidade; princípio de prazer; gozo; mal-estar na
civilização
*
Professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFMG; doutor em Psicopatologia e Psicanálise
pela Université de Paris VIII; e-mail: santiago.bhe@terra.com.br
Ordenar a cada um tornar-se feliz seria uma
tarefa insensata, pois, não se ordena jamais a alguém o
que ele próprio quer inevitalmente.
EMMANUEL KANT, Crítica da Razão Prática
Um outro aspecto que se faz presente, neste início da elaboração analítica sobre
o prazer, é o fato de que este último formula-se como uma lei articulada no registro
estrito da homeostase que, de modo automático, visa a conduzir o funcionamento
psíquico ao equilíbrio e, portanto, à menor tensão. Com o Mal-estar na civilização, um
dos últimos textos de sua obra, essa formulação homeostática do prazer não é, de forma
alguma, abandonada; ao contrário, ela ganha em importância e continua sendo uma
espécie de tendência e de direção para a atividade humana, em geral. Nesse sentido,
deve-se considerar o princípio de prazer não somente como ponto de partida, mas
também como a verdadeira medida da abordagem freudiana da civilização. Enfim, o
princípio de prazer transforma-se em objeto de um verdadeiro programa, um programa
que se opõe à civilização1. O confronto que existia, anteriormente, entre a instância do
prazer e a realidade passa a repercutir, nos próprios termos de Freud, na oposição entre
o programa do Lustprinzip e o da Kultur.
Se Freud mantém a expressão “programa”, ele o faz porque capta algo de
essencial e de estrutural no próprio devir da civilização2. Na verdade, esta constitui, aos
seus olhos, uma instância metapsicológica que se define por um confronto com o
programa do prazer. Porém, muito antes de Mal-estar na civilização, ele já havia
iniciado uma reflexão sobre o assunto, tendo em vista o problema da “moral sexual
civilizada” e de sua relação com a neurose. Nesta etapa de sua análise, a civilização
ocupa, ainda, o lugar de uma instância que age exteriormente ao indivíduo, embora ele
descarte as hipóteses errôneas de certas teorias psiquiátricas e neurológicas da época, já
que negligenciam as particularidades do aparecimento dos distúrbios neuróticos e o
1
MILLER, J.-A. (1989) “Le programme de la psychanalyse”, in Quarto, nº 37-38, p. 115, Paris. Utilizo,
nesse caso, o comentário do autor sobre a incidência da noção de programa, presente muitas vezes em
Mal-estar na civilização, a fim de definir o sentido de duas tendências opostas: a da civilização e a do
prazer.
2
“A cultura humana — entendo por esse termo tudo aquilo pelo que elevou a vida humana acima das
condições animais e que a difere da vida dos animais, e desdenho separar a civilização da cultura”
(FREUD, 1927/1969, p. 16; grifos nossos). Sabe-se que Freud só utiliza o termo Kultur para designar a
cultura e a civilização, e economizando a palavra Zivilisation. A meu ver, nas línguas latinas, o termo
“civilização” preserva melhor o sentido universal do trabalho da civilização sobre o sujeito,
manifestando-se na forma de um controle e de uma renúncia às pulsões. Seu uso evita, assim, a
impregnação relativista da noção clássica de cultura no campo da etnologia do século XIX.
fator etiológico da sexualidade (FREUD, 1908/1969, p. 191)3. De qualquer modo, com
relação à neurose, considera que “a influência nociva da civilização se reduz
essencialmente à repressão nociva [die schädliche Unterdrückung] da vida sexual dos
povos (ou das camadas) civilizados pela moral sexual ‘civilizada’ que os domina”
(Ibid., p. 193). É na virada da segunda concepção tópica do aparelho psíquico que ele
vai precisar a distinção entre o recalque e essa repressão nociva da civilização. Ou seja,
à medida que avança, ele inclina-se mais para a idéia da primariedade do recalque. A
partir daí, Freud inaugura, também, a função de gula do supereu, não no registro de uma
sociogênese, como fazem alguns, mas em virtude do fator estrutural do recalque
originário que cada indivíduo partilha na civilização.
É verdade que, nessa obra, a civilização aparece inicialmente definida, no mais
clássico sentido etnológico, como “a totalidade das obras e organizações cuja instituição
nos afasta do estado animal de nossos ancestrais e que servem a dois objetivos: a
proteção do homem contra a natureza e a regulamentação das relações dos homens entre
si” (FREUD, 1929/1969, p. 109). Nessa definição, percebe-se a tese da descontinuidade
entre a civilização e a natureza, tese própria ao pensamento etnológico do século XIX4.
Desse ponto de vista, o determinante natural mostra-se em radical oposição à cultura. O
trabalho da cultura, considerado globalmente, realiza-se como uma espécie de
metaforização da natureza. Essa ruptura confirma-se nas exigências de beleza, limpeza
e ordem que ocupam um lugar muito especial no trabalho de controle das forças naturais
pela cultura (Ibid., p. 114). Essa é a razão pela qual se detecta, em Freud, uma aversão
por qualquer saída que preconize uma volta à natureza como solução para o mal-estar na
civilização.
3
Nesse texto [Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna], o autor realiza um levantamento geral
da literatura psiquiátrica e neurológica da época, em que aparecem, em lugar de destaque, W. Erb, R.
Kraft-Ebing, G. M. Beard, L. Binswanger e outros, que dão um conteúdo essencialmente culturalista às
suas teorias da neurose. E faz objeção, no conjunto dessas teorias, à idéia de que a relação entre a doença
nervosa e a civilização pode se explicar com base numa espécie de desnaturalização da vida sexual no
quadro da moral civilizada. Para Beard, por exemplo, essa desnaturalização explica-se no âmbito de uma
ideologia “progressista” do estresse, o sistema nervoso do sujeito estaria sob a influência de uma
superexcitação do meio.
4
Quando Freud começou a se dedicar ao problema da cultura, a etnologia terminava sua fase de
exploração inicial e começava a refletir sobre seu objeto. Assim, a definição clássica deste encontra-se em
Edward Tylor: “A cultura ou a civilização constituem um complexo que compreende as ciências, as
crenças, as artes, a moral, as leis, os costumes e as outras faculdades ou hábitos adquiridos pelo homem
enquanto membro da sociedade” (TYLOR, 1920, p.1). Porém é com Durkheim que se manifesta uma
vontade de demarcar esse campo onde se encontra, de maneira mais sistemática, essa oposição entre o
fato natural e as exigências da cultura. Considera-se que o ponto de partida de Freud coincide,
precisamente, com a oposição, igualmente durkheimiana, entre natureza e cultura.
A felicidade está fora dos planos da Criação
A felicidade é do falo
A meu ver, o essencial da política da felicidade concebida como um dos nomes
do impossível se traduz pelo aforisma lacaniano de que “não há felicidade a não ser do
falo” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 69). É verdade que essa formulação traduz o fato de
que a felicidade não pode articular-se atualmente de outra maneira que não seja como
um fator integrante da dimensão política. Como se viu, o próprio Freud afirma a sua
descrença com relação ao emprego das tentativas terapêuticas da experiência ética
antiga para obter o bem nos moldes de uma verdadeira disciplina da felicidade, na
medida em que facilmente se transmutam em formas imperativas de acesso ao bem. Nos
tempos atuais, os caminhos da disciplina ética que favorecem a função da virtude,
expressa pelo princípio de evitamento de todo excesso, e que, permitem ao homem
escolher o que razoavelmente pode fazê-lo feliz, se mostram, assim, obstruídos.
A referência a Saint-Just é, aqui, essencial, pois, foi ele que percebeu as
mudanças que se processaram na própria concepção da felicidade, na medida em que
esta deixou de ser uma solução decorrente da disciplina ética, ou, mesmo, da
experiência religiosa com a salvação. No século das Luzes, a felicidade se transforma
em fator de política, ou seja, os homens passam a ter com ela uma relação coletiva e,
portanto, torna-se lugar comum tomá-la como uma realização que se consuma na terra
e, não, no reino dos céus. Insiste-se, portanto, que é por razões sócio-culturais, oriundas
do momento histórico que vivemos, que a felicidade se expressa na política pela
fórmula de que “não poderia haver satisfação de ninguém sem a satisfação de todos”.5
Mais do que tornar inviável a solução da ética antiga ao problema da felicidade, a sua
entrada para o âmbito da política tem conseqüência para a prática do psicanalista, pois,
ela se exprime na etapa prévia que concerne a satisfação da necessidade para todos os
homens.
Com isto, deve-se admitir que o analista se encontra em uma posição que exige
responder a quem lhe demanda a felicidade. Apoiado pela política da felicidade que
emana do texto de Freud, o analista sabe que o objeto que concerne a essa demanda não
apenas ele não o possui, como também sabe que ele não existe enquanto um Bem
Supremo. Ter levado uma análise a seu termo nada mais é do que ter encontrado esse
limite onde toda a problemática da felicidade se ancora no impossível do gozo.
Convém, portanto, tirar conseqüências do fato de que, na experiência da análise, toda a
5
Citado por Lacan in LACAN, J. (1959-1960/1988) O Seminário, Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, p. 351.
efetivação da felicidade gravita em torno da questão paradoxal que envolve as relações
entre a libido e o mal.
Ao contrário deste ponto de vista, a prática psicanalítica na esfera norte-
americana da ego psychology, procurou dotar, durante a década de 50, a “happiness”
como uma das molas propulsoras da análise, como fruto da presumível descoberta do
que se chamou de autonomous Ego, ou seja, um Ego capaz de colocar-se a salvo dos
conflitos. Os termos em que se formula o problema evidenciam uma perspectiva
essencialmente individualista da ética em detrimento daquela que permitiria assentá-la
no domínio do real do gozo. A degradação desta concepção prática é tal que ela busca
um meio de atingir o “success”, segundo as exigências da “happiness” e por meio da
consecução de um Ego de uma zona livre de conflitos. Essa verdadeira religião da
felicidade supõe a empreitada do mestre que atinge a zona livre de conflitos de um Ego
que se autonomiza ao controlar suas pulsões primitivas, o que lhe permite conquistar
sua independência frente às adversidades da realidade. Para Lacan, fazer coincidir a
felicidade com o Ego autonomous é uma maneira bastante triste de defini-la, pois seria
arrogância querer dominar aquilo que ninguém sabe o que é. Diante desse avesso da
psicanálise, que é supor a felicidade como a capacidade do indivíduo gerar
autonomamente seus próprios recursos mentais e afetivos, ele responde que ser feliz é
algo que se ancora na ética do impossível.
Importa, por outro lado, mostrar que se o texto freudiano afirma sem cessar que
a felicidade é um enunciado do impossível é porque reconhece que “só o falo pode ser
feliz – não o portador do dito cujo”. Ainda que de forma ingênua e sem maiores
formalizações, Freud escreve de variadas formas a tese de que a felicidade é do falo. É o
que diz Lacan, ao extrair e enumerar diversos exemplos que comprovam uma tal idéia,
como é o caso da afirmação de que nada pode ser comparado ao gozo mais perfeito, que
é o orgasmo masculino. Ou ainda, o caso da parceira que por desespero de causa e,
supostamente desolada por não ser ela própria a portadora, almeja o falo no seu interior
e, não, o macho portador do mesmo. A própria experiência analítica nos ensina que não
é à-toa que o chamado portador do dito cujo se empenha em fazer sua parceira aceitar
essa privação. Para esse intuito, emprega-se todo o tipo de artifícios e esforços na esfera
do amor, de pequenos cuidados e de ternos favores que, no fundo, serão vãos, posto que
ele apenas reaviva [ravive] a mencionada ferida da privação. Se Lacan afirma que não é
o portador do falo que é feliz é porque tal ferida não pode ser compensada pela
satisfação que o sujeito obtém ao apaziguá-la. Em outros termos, conclui-se que a
ferida é reavivada [ravivée] pelo falo, visto que sua simples presença mobiliza a
nostalgia [regret] do sujeito confrontado com a falta fálica e, por conseqüência, é o que
causa essa ferida (LACAN, 1969-1970/1992, p. 69).
O emprego insistente do verbo “reavivar” [raviver] indica explicitamente que a
presença do falo aciona um outro tempo, um tempo mítico no qual processou-se a
subtração do aspecto totalizante do gozo absoluto. Se esse último aspecto do gozo
absoluto apenas tem valor para a função mítica do pai de Totem e tabu, é o seu
assassinato, concebido como ato suposto, que recobre o advento do mais-de-gozar. Que
o pai morto seja o gozo, isto apenas pode ser formulado por meio do mito, pois, a
operação estrutural do assassinato do pai é um sinal do próprio impossível. Nesse
sentido, nada pode ser comparado ao gozo mais perfeito que se depreende da existência
desse homem que faz com que todos os outros, aqueles que se determinam como filhos,
sejam atingidos pela castração. Com efeito, esse “todo homem”6 (touthomme) não
submetido à castração é o único a poder dar corpo à relação sexual, o único talhado para
desejar e gozar de todas as mulheres, o único, enfim, capaz de fundar, do lado
masculino, a identidade correspondente ao sexo feminino.
Se a felicidade é do falo, é porque ela se depreende do efeito nostálgico da
operação de castração daquele que miticamente encarna, no âmbito do lado masculino
da sexuação, como o todo-fálico, a saber: [∃ φx]. Nesse sentido, a felicidade aparece
∃x. /φ
como o encontro com essa dimensão mítica que se presentifica pela presença do falo,
presença traduzida pelos diversos requintes com os quais se busca substituir o gozo
absoluto do pai primevo, esse gozo que por ser o único que daria felicidade e,
justamente por isso, se apresenta como excluído. Nesse sentido, é o próprio Lacan que
adverte na forma de uma pergunta: “que outra coisa é apreensível no termo feliz senão
precisamente, a função que se encarna no mais de gozar” (LACAN, 1968-1969/2007, p.
23). É por isso mesmo que, na investigação analítica, a questão da felicidade aparece em
suplência à interdição do gozo absoluto do pai, algo cuja origem definimos pelas formas
diversas do gozo fálico que se situam, e, por assim dizer, são mapeadas pela função do
mais-de-gozar.
Referências Bibliográficas
6
LACAN, J. Le séminaire, livre XVIII: D'un discours qui ne serait pas du semblant (1970-1971). Lição
de 18 de maio de 1971. (Inédito).
FREUD, S. (1905/1969) “Os chistes na sua relação com o inconsciente”, in ESB., vol.
VIII. Rio de Janeiro: Imago.
_________. (1908/1969) “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”, in
ESB., vol. IX. Rio de Janeiro: Imago.
_________. (1915-1917/1969) “Conferências introdutórias à psicanálise”, in ESB., vol.
XV. Rio de Janeiro: Imago.
_________. (1927/1969) “O futuro de uma ilusão”, in ESB., vol. XXI. Rio de Janeiro:
Imago.
_________. “O mal-estar na civilização” (1929/1969), in Pequena coleção das obras de
Freud. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. (1959-1960/1988) O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
_________. (1968-1969/2007) O Seminário, Livro 16: De um Outro ao outro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
_________. (1969-1970/1992) O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
_________. (1970-1971) Le séminaire, livre 18: D'un discours qui ne serait pas du
semblant. (Inédito).
MILLER, J.-A. (1989) “Le programme de la psychanalyse”, in Quarto, nº 37-38, Paris.
TYLOR, E. (1920) Primitive culture. London: John Murray.
Recebido em 24/07/08
Aprovado em 30/08/08