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Freud e sua política da felicidade

Jésus Santiago*

Resumo: O presente ensaio tem por objetivo investigar o problema da felicidade sob a
ótica da psicanálise, destacando a importância do caráter ético da ação do homem na
formulação do referido problema. Nesse escopo, a oposição freudiana entre o programa
do princípio de prazer (que coloca a busca da felicidade como seu principal ponto de
apoio) e o da civilização (incapaz de produzir a felicidade de maneira satisfatória) será
esmiuçada.
Palavras-chave: Freud; políticas da felicidade; princípio de prazer; gozo; mal-estar na
civilização

Freud and his policy of happiness


Abstract: The present essay aims to investigate the problem of happiness in the
psychoanalytical perspective, highlighting the importance of the ethical character of
human action in the formulation of the aforesaid problem. In this purpose, the Freudian
opposition between the program of the pleasure principle (that puts the quest for
happiness as its main foundation point) and the civilization (incapable of propitiating
satisfactory happiness) will be analyzed in great detail.
Keywords: Freud; politics of happiness; pleasure principle; jouissance; civilization and
its discontents

*
Professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFMG; doutor em Psicopatologia e Psicanálise
pela Université de Paris VIII; e-mail: santiago.bhe@terra.com.br
Ordenar a cada um tornar-se feliz seria uma
tarefa insensata, pois, não se ordena jamais a alguém o
que ele próprio quer inevitalmente.
EMMANUEL KANT, Crítica da Razão Prática

Sob a ótica da psicanálise, se a busca da felicidade se apresenta como um dos


nomes do impossível é porque ela se insere na elaboração complexa e paradoxal do
problema da satisfação pulsional. É sabido que o problema da satisfação pulsional e de
sua realização não se resolve pelas tentativas que buscam reduzi-la a uma necessidade
biológica considerada como uma componente constitutiva da vida humana. Contrário a
essa mitificação da necessidade biológica, Freud, desde o início de sua obra, aborda o
fator econômico das produções inconscientes do sujeito, por meio do que seriam os
primeiros signos de uma dimensão ética do prazer e do desprazer. Vale dizer que a
interrogação sobre a natureza da ação humana, calcada na relação fundante que o
homem mantém com o prazer, constitui-se como um pressuposto essencial de suas
construções metapsicológicas iniciais. Delineia-se, assim, como uma primeira evidência
deste enfoque, a idéia diretriz de que o prazer é um bem que conduz e dirige a própria
ação do sujeito. Na realidade, essa função do prazer foi sempre concebida como uma
variável do desprazer, a saber: o prazer produz-se indiretamente pela supressão
momentânea do desprazer. É, sobretudo, a conseqüência dolorosa e inevitável, que recai
sobre o sujeito a cada oportunidade em que ele renuncia ao prazer, que confere toda a
particularidade dessa elaboração metapsicológica do funcionamento mental.
Assim, ao longo do texto sobre os chistes, Freud esboça um retorno aos
questionamentos da ética antiga, afirmando, sem se preocupar com referências e
citações precisas, que o homem é um “infatigável caçador de prazer” (FREUD,
1905/1969, p. 147) e, cada vez que tem de renunciar a um prazer que já sentiu uma vez,
isso lhe custa muito. É por essa razão que Lacan consumou esse caráter paradoxal da
satisfação sob a égide de uma ética particular ao domínio da psicanálise. Em última
análise, o que aparece em gestação, neste momento de sua obra, é que a discussão do
caráter ético da ação do homem se tornará o terreno decisivo para a formulação do
problema da felicidade no horizonte da psicanálise. Não é à toa que as formulações
éticas da antigüidade tornam-se objeto de referências explícitas em Mal-estar na
civilização, como é o caso da lembrança de que a experiência que se depreende desse
modo de reflexão surge como uma das soluções inventadas pelo homem para se
proteger da dor de viver, inerente ao mal-estar crônico da civilização.

O programa do Lustprinzip e o da Kultur

Um outro aspecto que se faz presente, neste início da elaboração analítica sobre
o prazer, é o fato de que este último formula-se como uma lei articulada no registro
estrito da homeostase que, de modo automático, visa a conduzir o funcionamento
psíquico ao equilíbrio e, portanto, à menor tensão. Com o Mal-estar na civilização, um
dos últimos textos de sua obra, essa formulação homeostática do prazer não é, de forma
alguma, abandonada; ao contrário, ela ganha em importância e continua sendo uma
espécie de tendência e de direção para a atividade humana, em geral. Nesse sentido,
deve-se considerar o princípio de prazer não somente como ponto de partida, mas
também como a verdadeira medida da abordagem freudiana da civilização. Enfim, o
princípio de prazer transforma-se em objeto de um verdadeiro programa, um programa
que se opõe à civilização1. O confronto que existia, anteriormente, entre a instância do
prazer e a realidade passa a repercutir, nos próprios termos de Freud, na oposição entre
o programa do Lustprinzip e o da Kultur.
Se Freud mantém a expressão “programa”, ele o faz porque capta algo de
essencial e de estrutural no próprio devir da civilização2. Na verdade, esta constitui, aos
seus olhos, uma instância metapsicológica que se define por um confronto com o
programa do prazer. Porém, muito antes de Mal-estar na civilização, ele já havia
iniciado uma reflexão sobre o assunto, tendo em vista o problema da “moral sexual
civilizada” e de sua relação com a neurose. Nesta etapa de sua análise, a civilização
ocupa, ainda, o lugar de uma instância que age exteriormente ao indivíduo, embora ele
descarte as hipóteses errôneas de certas teorias psiquiátricas e neurológicas da época, já
que negligenciam as particularidades do aparecimento dos distúrbios neuróticos e o

1
MILLER, J.-A. (1989) “Le programme de la psychanalyse”, in Quarto, nº 37-38, p. 115, Paris. Utilizo,
nesse caso, o comentário do autor sobre a incidência da noção de programa, presente muitas vezes em
Mal-estar na civilização, a fim de definir o sentido de duas tendências opostas: a da civilização e a do
prazer.
2
“A cultura humana — entendo por esse termo tudo aquilo pelo que elevou a vida humana acima das
condições animais e que a difere da vida dos animais, e desdenho separar a civilização da cultura”
(FREUD, 1927/1969, p. 16; grifos nossos). Sabe-se que Freud só utiliza o termo Kultur para designar a
cultura e a civilização, e economizando a palavra Zivilisation. A meu ver, nas línguas latinas, o termo
“civilização” preserva melhor o sentido universal do trabalho da civilização sobre o sujeito,
manifestando-se na forma de um controle e de uma renúncia às pulsões. Seu uso evita, assim, a
impregnação relativista da noção clássica de cultura no campo da etnologia do século XIX.
fator etiológico da sexualidade (FREUD, 1908/1969, p. 191)3. De qualquer modo, com
relação à neurose, considera que “a influência nociva da civilização se reduz
essencialmente à repressão nociva [die schädliche Unterdrückung] da vida sexual dos
povos (ou das camadas) civilizados pela moral sexual ‘civilizada’ que os domina”
(Ibid., p. 193). É na virada da segunda concepção tópica do aparelho psíquico que ele
vai precisar a distinção entre o recalque e essa repressão nociva da civilização. Ou seja,
à medida que avança, ele inclina-se mais para a idéia da primariedade do recalque. A
partir daí, Freud inaugura, também, a função de gula do supereu, não no registro de uma
sociogênese, como fazem alguns, mas em virtude do fator estrutural do recalque
originário que cada indivíduo partilha na civilização.
É verdade que, nessa obra, a civilização aparece inicialmente definida, no mais
clássico sentido etnológico, como “a totalidade das obras e organizações cuja instituição
nos afasta do estado animal de nossos ancestrais e que servem a dois objetivos: a
proteção do homem contra a natureza e a regulamentação das relações dos homens entre
si” (FREUD, 1929/1969, p. 109). Nessa definição, percebe-se a tese da descontinuidade
entre a civilização e a natureza, tese própria ao pensamento etnológico do século XIX4.
Desse ponto de vista, o determinante natural mostra-se em radical oposição à cultura. O
trabalho da cultura, considerado globalmente, realiza-se como uma espécie de
metaforização da natureza. Essa ruptura confirma-se nas exigências de beleza, limpeza
e ordem que ocupam um lugar muito especial no trabalho de controle das forças naturais
pela cultura (Ibid., p. 114). Essa é a razão pela qual se detecta, em Freud, uma aversão
por qualquer saída que preconize uma volta à natureza como solução para o mal-estar na
civilização.

3
Nesse texto [Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna], o autor realiza um levantamento geral
da literatura psiquiátrica e neurológica da época, em que aparecem, em lugar de destaque, W. Erb, R.
Kraft-Ebing, G. M. Beard, L. Binswanger e outros, que dão um conteúdo essencialmente culturalista às
suas teorias da neurose. E faz objeção, no conjunto dessas teorias, à idéia de que a relação entre a doença
nervosa e a civilização pode se explicar com base numa espécie de desnaturalização da vida sexual no
quadro da moral civilizada. Para Beard, por exemplo, essa desnaturalização explica-se no âmbito de uma
ideologia “progressista” do estresse, o sistema nervoso do sujeito estaria sob a influência de uma
superexcitação do meio.
4
Quando Freud começou a se dedicar ao problema da cultura, a etnologia terminava sua fase de
exploração inicial e começava a refletir sobre seu objeto. Assim, a definição clássica deste encontra-se em
Edward Tylor: “A cultura ou a civilização constituem um complexo que compreende as ciências, as
crenças, as artes, a moral, as leis, os costumes e as outras faculdades ou hábitos adquiridos pelo homem
enquanto membro da sociedade” (TYLOR, 1920, p.1). Porém é com Durkheim que se manifesta uma
vontade de demarcar esse campo onde se encontra, de maneira mais sistemática, essa oposição entre o
fato natural e as exigências da cultura. Considera-se que o ponto de partida de Freud coincide,
precisamente, com a oposição, igualmente durkheimiana, entre natureza e cultura.
A felicidade está fora dos planos da Criação

No seio desse antagonismo entre natureza e cultura, ele desenvolve, pouco a


pouco, o que se pode considerar, em princípio uma doutrina ética de caráter
eudemonista. Consoante com o programa do princípio de prazer, os homens inclinam-se
para a felicidade (Glück), querem ser felizes e assim permanecer. Entretanto, é preciso
observar que essa formulação da finalidade da vida se apresenta sob duas faces distintas.
De um lado, trata-se de economizar o sofrimento e o desprazer (Schmerz und Unlust), e,
de outro, de experimentar intensos gozos (Lustgefühle) (Ibid., p. 94). Freud acrescenta
que, em relação a essa dualidade de objetivos, “a atividade dos homens pode tomar duas
direções, segundo procuram — de maneira preponderante ou mesmo exclusiva —
realizar um ou outro” (Ibid., p. 95) desses objetivos. Assim sendo, em sua opinião, é o
aspecto da busca obstinada dos mais fortes sentimentos de prazer que determina o
sentido mais específico de felicidade. O único meio de se vislumbrar a mínima
possibilidade de felicidade exige uma espécie de estratégia de preservação, que procure
economizar o desprazer e o sofrimento.
No entanto, a formulação de um tal eudemonismo instala a felicidade como um
ideal regulador, sem que, com isso, se possa autorizar algum êxito na obtenção desta
finalidade da existência. Assim, ele é levado a concluir “que não entrou nos planos da
Criação a intenção de que o homem seja feliz” (Ibid.). De acordo com essa concepção
negativa, a felicidade, longe de ser uma afirmação triunfante da natureza do homem,
serve para avaliar aquilo que resiste à sua realização enquanto impossível a suportar. É a
prevalência do impossível a suportar que faz Freud desconfiar dos universais do Bem e
a apontar que a busca do prazer gera, inevitavelmente, o mais-além do prazer.
Segundo esse postulado da felicidade como impossível, é o próprio objeto
etnológico da cultura que, gradualmente, é subvertido por Freud. Em oposição a toda
Weltanschauung naturalista, presente no campo etnológico emergente, ele não propõe
nenhuma harmonia entre o microcosmo humano e o macrocosmo. Muito ao contrário,
na sua visão, o universo inteiro opõe-se à realização do programa do princípio de prazer.
Todo progresso da civilização se paga com o preço de uma renúncia às pulsões. É essa
renúncia cultural [Kulturversagung] que determina o caráter estrutural do mal-estar
inerente à economia de felicidade do homem na civilização. Por outro lado, essa
impossibilidade de atingir a felicidade explica-se pelas limitações constitutivas do ser
falante para realizar o programa do princípio de prazer: o sujeito freudiano não está
aparelhado para experimentar a felicidade em toda sua plenitude. Essa insuficiência
remonta às falhas inatas do aparelho destinado a proporcionar prazer, falhas constituídas
por três fontes essenciais, a saber: o próprio corpo, a relação com o mundo e,
finalmente, a relação com os outros (Ibid., p. 21).

A política da felicidade como impossível

Nessa perspectiva, o mal-estar da civilização não é conseqüência de algum fator


histórico contingencial como é o caso das formas atuais da dominação capitalista ou
mesmo do advento histórico do mundo da ciência. Sem dúvida, Freud visa a alguma
coisa de mais determinante, de mais estrutural, no trabalho da civilização [Kulturarbeit].
Justamente enquanto operador metapsicológico, esse trabalho aparece como aquilo que
“pede demais ao sujeito” (LACAN, 1959-1960/1988, p. 47). Em última análise, a
pressão da civilização sobre o sujeito, não é, senão, a renúncia ao prazer ou à satisfação
pulsional. Na verdade, é esse fator de renúncia cultural [Kulturversagung] que rege o
vasto domínio das relações entre os homens. O aspecto mais importante do trabalho da
civilização repousa nesse princípio de renúncia às pulsões; logo, na exigência de não-
satisfação dessas forças poderosas (FREUD, 1929/1969, p. 118).
Eis, pois, a oposição primária entre os dois programas indicados: de um lado, o
de renúncia ao prazer; e, de outro, o de busca da felicidade. Se o programa do princípio
de prazer coloca a busca da felicidade como seu principal ponto de apoio, o processo
civilizatório mostra-se, ao contrário, incapaz de produzi-lo de maneira satisfatória. Em
resumo, é em função dessa oposição estrutural que se determina o caráter trans-histórico
do diagnóstico freudiano da civilização. Freud sugere, portanto, um funcionamento
econômico da civilização, no qual, em função de uma fonte energética libidinal
limitada, cada um deve resolver as tensões criadas pelo ímpeto e força constante das
pulsões. A civilização apresenta-se como um vasto mercado de compensações, cujos
mitos, religiões e moralidade se sobrepõem como tentativas de suplência ao déficit de
satisfação produzido pelo circuito das forças pulsionais. Ela constitui-se, finalmente, em
uma espécie de contra-investimento simbólico absoluto da escassez constitutiva de
satisfação, produzida por esses verdadeiros fragmentos da natureza que são as pulsões
(FREUD, 1915-1917/1969, p. 133).
A interpretação lacaniana desse elemento econômico do trabalho da civilização
exprime-se, fundamentalmente, pela noção de um mais-de-gozar, concebida como um
excedente de satisfação obtido pela “renúncia ao gozo” (LACAN, 1968-1969/2007, p.
39). A delimitação conceitual do campo lacaniano do gozo permite apreender a
impossibilidade da felicidade plena e sua contrapartida, qualquer que seja o lugar de sua
realização e de implicação, ou seja: o mais-de-gozar. Isto quer dizer que, do ponto de
vista da vida civilizada, o aspecto totalizante do gozo perde todo seu valor. No fundo,
esse último aspecto do gozo absoluto apenas tem valor para a função mítica do pai de
Totem e tabu. Nos termos da psicanálise, o marco de toda formação social humana se
inscreve pelo limite que se impõe com o assassinato do pai gozador, figura que exprime
a dimensão ilimitada e absoluta do gozo. Em última instância, o assassinato do pai se
presentifica pelo valor de excedente do gozo, cuja operacionalidade se institui por
intermédio do efeito de subtração, determinado pelos investimentos do sujeito no
mercado do gozo próprio de cada etapa histórica da civilização. Deduz-se, a partir daí,
que, para Freud, o móvel de toda busca da felicidade introduz o horizonte da figura
mítica do pai da horda selvagem, uma vez que apenas o pai gozador é plenamente feliz.
Esse elemento econômico da inexistência do fator absoluto do gozo, representa
uma fonte crônica de insatisfação em que se funda a aporia da pulsão ao trabalho da
civilização, aporia que apenas é definitivamente concebida quando a pulsão se formula
como pulsão de morte. Na verdade, uma vez instituída, a pulsão de morte demonstra a
ruptura que se opera no psiquismo, como conseqüência da oposição entre ela e a libido.
Essa ruptura estabelece a invariante essencial do trabalho de pura perda próprio do
processo civilizatório. Com a pulsão de morte, obtém-se o acabamento da formalização
freudiana da falha primordial e inerente da satisfação pulsional. É a definição do campo
lacaniano do gozo que vem dar conta dessa trama paradoxal entre a libido e a morte. O
gozo compõe o dado básico da inadequação incondicional da civilização para prover o
ser falante de um bem-estar idealizado, inadequação inadmissível pelas políticas de
felicidade. Desse ponto de vista, pode-se ler o gozo como a causa estrutural da
impossibilidade de felicidade na civilização. Na verdade, o sofrimento de cada um na
sua relação com o gozo, desde que, nele, só se introduza por meio do mais-de-gozar,
define perfeitamente o mal-estar [Unbehagen], que é apenas um outro nome do sintoma.

O impossível a suportar e suas ficções


Para Freud, a pressão imposta pela civilização torna a vida dos indivíduos
“pesada demais, inflige-nos sofrimentos demais, decepções, tarefas insolúveis”
(FREUD, 1929/1969, p. 93). Nesse contexto de mal-estar crônico, o homem procura
gerenciar sua dor de viver por meio de uma verdadeira tópica de sedativos proposta pela
civilização. Na realidade, o programa destinado a evitar o sofrimento e a conquistar a
felicidade comporta a aplicação de numerosos e diversos métodos que ele designa pelo
termo genérico de técnica vital [Lebenstechnik]. São as construções substitutivas
[Hilfskonstruktionen] (Ibid.) oferecidas pela civilização, a fim de atenuar o sofrimento.
Assim, os grandes divertimentos permitem transformar a miséria humana em variadas
formas de satisfação substitutivas [Ersatzbefriedigungen] e, finalmente, a religião, a arte
propõem-se, como outros tantos sedativos, ajudar a suportar [ertragen] (Ibid.) a vida,
apaziguar os sujeitos.
A arte e a religião constituem exemplos paradigmáticos do regime de satisfação
substitutiva, ou seja, formas de suplência ao impossível a suportar que se colocam ao
alcance do homem na civilização. Segundo Freud, a satisfação na arte obtém-se
mediante uma distorção da realidade. Trata-se, de fato, de uma técnica de defesa contra
o sofrimento, que se acomoda à plasticidade dos deslocamentos da libido. Seu artifício
consiste em transpor os objetivos das pulsões de tal modo, que a realidade não pode
mais impedir sua satisfação. O objetivo da sublimação resume-se em “retirar do
trabalho intelectual e da atividade do espírito uma soma suficientemente elevada de
prazer” (Ibid., p. 98). Na arte, satisfação procede, pois, de “ilusões que reconhecemos
como tais, mas cujo afastamento da realidade não nos perturba”. Assim, para Freud, “a
ligeira narcose” em que a arte mergulha o homem é fugaz, simples retirada diante das
duras necessidades da vida (Ibid., p. 100). Entretanto, esse método não é suficiente para
fazê-lo esquecer sua miséria real. Na verdade, fundamenta uma técnica de uso muito
restrito, que pressupõe, justamente, disposições pouco difundidas, pelo menos na
proporção suficiente para ser eficaz.
A religião, ao contrário, apresenta-se como uma técnica vital muito menos
exigente que a arte. Ela define-se pela imposição de seus próprios caminhos a todos,
para que alcancem a felicidade e se tornem imunes ao sofrimento. Sua estratégia
consiste em “rebaixar o valor da vida e em deformar de maneira delirante a imagem do
mundo real”. Tais medidas implicam, necessariamente, a fixação forçada de seus
adeptos num “infantilismo psíquico”. Fazendo partilhar um delírio coletivo, a religião
consegue poupar numerosos seres humanos de uma neurose individual (Ibid., p. 104). A
satisfação na religião atua, assim, como uma resposta à finalidade da vida humana.
Na verdade, Freud rejeita toda justificativa de satisfação obtida pelos caminhos
da religião, tendo em vista um sentimento singular do inefável: seja o sentimento de
eternidade, seja o famoso sentimento oceânico (Ibid., p. 90). Não se trata de negar a
existência dessa dimensão imponderável e obscura da alma, como os estados psíquicos
do transe e do êxtase. Simplesmente, essa aspiração oceânica acha-se reduzida a uma
fantasia, no sentido do que ele designa, a respeito da religião, como ilusão. A própria
religião deve se explicar a partir do pai, do sentimento infantil de dependência, da
nostalgia de um pai que seria responsável, em tudo, pelo homem. A satisfação na
religião reporta-se, portanto, à idéia de fazer uma unidade com o grande todo (Ibid.).
Como se viu antes, desde os gregos o prazer é concebido como uma função
essencial para se problematizar, no plano da ética, a questão da finalidade da ação nos
agrupamentos humanos. De acordo com esse ponto de vista, pode-se inferir que a
aspiração de felicidade constitui um elemento nevrálgico do programa do prazer. Se este
governa a atividade subjetiva, é a expectativa da felicidade que a suporta. Conseqüente-
mente, a felicidade constitui a substância propriamente dita do princípio de prazer, é
porque cada um faz dela seu fim, mesmo sabendo que os homens não se entendem sobre
a sua natureza intrínseca. Ao contrário do que ocorre em algumas perspectivas de
reflexão ética, o prazer e a felicidade consistem, para a psicanálise, em dois termos
absolutamente antinômicos. Nesse sentido, a definição de felicidade, na psicanálise,
elabora-se numa perspectiva puramente negativa: ela só parece ser realizável para evitar
o sofrimento e a dor. Assim sendo, a ambição de felicidade propõe-se como um
problema, uma questão relativa à particularidade da economia libidinal de um sujeito,
que, por sua vez, se relaciona com a série das técnicas vitais anteriormente referidas.
Se a busca da felicidade, ou do bem, não escapa à atenção de Freud, no entanto,
para ele, essa dimensão da felicidade como objetivo, como ideal, não é suficiente para
elucidar a finalidade da vida, por mais que esta, de alguma forma, se faça presente a
toda reflexão de cunho ético. Em Mal-estar na civilização, Freud refere-se
explicitamente à experiência ética, para mostrar como essa técnica visa a atacar o que
ele considera como o ponto culminante de toda civilização, ou seja, a exigência de
renúncia às pulsões. O método ético das técnicas vitais pressupõe uma espécie de
tentativa terapêutica de último recurso, destinadas a obter o bem com o auxílio do
imperativo do supereu (Ibid., p. 168). Aos olhos de Freud, se essa terapêutica
concernente a essa tópica dos sedativos do mal-estar constitui uma solução precária,
instável e, mesmo, provisória é porque lida com o cerne do mal-estar crônico da
civilização na forma da inclinação inexorável do sujeito ao gozo.
Em outros termos, nesse regime de satisfação, não há somente o imperativo de
felicidade ditada pelo programa do prazer; nele, tem lugar, também, o encontro com o
destino da pulsão de morte, que se exprime, nas palavras de Freud, pelo “desperdício de
grandes quantidades de energia que poderiam ser empregadas para melhorar o destino
humano” (Ibid., p. 23). Pode-se adiantar que o fundamento das técnicas vitais reside na
intenção de evitar o gozo presente no sofrimento humano. Pela maneira em que tais
técnicas se enraízam no âmago do mal-estar da civilização, elas visam não ao gozo, mas
à satisfação, naquilo que esta manifesta de sua ação limitadora. Considerando-se o
método de proteção e suplência contra o elemento mortífero que se impregna na libido,
é possível explicar-se o caráter vital atribuído por Freud a tais técnicas. Em outras pala-
vras, com a finalidade primordial de evitar o gozo, essas técnicas podem “se
suplementar e se substituir mutuamente” (Ibid., p. 18). Elas se suplementam e se
substituem mutuamente porque enquanto tratamento possível do real do gozo, essas
técnicas se confeccionam com auxílio de algo fictício.
Para captar esse algo fictício, é preciso, portanto, dar-se conta do papel que a
relação antinômica do binômio satisfação/gozo ocupa no âmbito da política freudiana da
felicidade. Levar a sério esse binômio significa acentuar a oposição da satisfação no
tocante ao caráter infinito do gozo, em geral. Assim, o termo “mais ainda” designa, com
acerto, o caráter ilimitado do gozo, em que a satisfação só se instaura por sua ação limi-
tadora. Daí, resulta que a suspensão, ou, mesmo, o estancamento daquilo que se
apresenta como infinitude se efetua como corte da manifestação incessante do gozo
(Ibid., p. 72). Esse elemento fictício próprio das técnicas vitais se presentifica pelo corte
que se opera, no nível do gozo, como condição para a satisfação. Não há tratamento do
real do gozo sem as ficções que se depreendem do próprio trabalho da civilização. O
tratamento do mal-estar do desejo pela via dessas técnicas caracteriza-se, então, como
uma técnica de limitação do ideal de felicidade suprema e inacessível, em que esta
dimensão do gozo ilimitado é parte integrante e constitutiva.

A felicidade é do falo
A meu ver, o essencial da política da felicidade concebida como um dos nomes
do impossível se traduz pelo aforisma lacaniano de que “não há felicidade a não ser do
falo” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 69). É verdade que essa formulação traduz o fato de
que a felicidade não pode articular-se atualmente de outra maneira que não seja como
um fator integrante da dimensão política. Como se viu, o próprio Freud afirma a sua
descrença com relação ao emprego das tentativas terapêuticas da experiência ética
antiga para obter o bem nos moldes de uma verdadeira disciplina da felicidade, na
medida em que facilmente se transmutam em formas imperativas de acesso ao bem. Nos
tempos atuais, os caminhos da disciplina ética que favorecem a função da virtude,
expressa pelo princípio de evitamento de todo excesso, e que, permitem ao homem
escolher o que razoavelmente pode fazê-lo feliz, se mostram, assim, obstruídos.
A referência a Saint-Just é, aqui, essencial, pois, foi ele que percebeu as
mudanças que se processaram na própria concepção da felicidade, na medida em que
esta deixou de ser uma solução decorrente da disciplina ética, ou, mesmo, da
experiência religiosa com a salvação. No século das Luzes, a felicidade se transforma
em fator de política, ou seja, os homens passam a ter com ela uma relação coletiva e,
portanto, torna-se lugar comum tomá-la como uma realização que se consuma na terra
e, não, no reino dos céus. Insiste-se, portanto, que é por razões sócio-culturais, oriundas
do momento histórico que vivemos, que a felicidade se expressa na política pela
fórmula de que “não poderia haver satisfação de ninguém sem a satisfação de todos”.5
Mais do que tornar inviável a solução da ética antiga ao problema da felicidade, a sua
entrada para o âmbito da política tem conseqüência para a prática do psicanalista, pois,
ela se exprime na etapa prévia que concerne a satisfação da necessidade para todos os
homens.
Com isto, deve-se admitir que o analista se encontra em uma posição que exige
responder a quem lhe demanda a felicidade. Apoiado pela política da felicidade que
emana do texto de Freud, o analista sabe que o objeto que concerne a essa demanda não
apenas ele não o possui, como também sabe que ele não existe enquanto um Bem
Supremo. Ter levado uma análise a seu termo nada mais é do que ter encontrado esse
limite onde toda a problemática da felicidade se ancora no impossível do gozo.
Convém, portanto, tirar conseqüências do fato de que, na experiência da análise, toda a

5
Citado por Lacan in LACAN, J. (1959-1960/1988) O Seminário, Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, p. 351.
efetivação da felicidade gravita em torno da questão paradoxal que envolve as relações
entre a libido e o mal.
Ao contrário deste ponto de vista, a prática psicanalítica na esfera norte-
americana da ego psychology, procurou dotar, durante a década de 50, a “happiness”
como uma das molas propulsoras da análise, como fruto da presumível descoberta do
que se chamou de autonomous Ego, ou seja, um Ego capaz de colocar-se a salvo dos
conflitos. Os termos em que se formula o problema evidenciam uma perspectiva
essencialmente individualista da ética em detrimento daquela que permitiria assentá-la
no domínio do real do gozo. A degradação desta concepção prática é tal que ela busca
um meio de atingir o “success”, segundo as exigências da “happiness” e por meio da
consecução de um Ego de uma zona livre de conflitos. Essa verdadeira religião da
felicidade supõe a empreitada do mestre que atinge a zona livre de conflitos de um Ego
que se autonomiza ao controlar suas pulsões primitivas, o que lhe permite conquistar
sua independência frente às adversidades da realidade. Para Lacan, fazer coincidir a
felicidade com o Ego autonomous é uma maneira bastante triste de defini-la, pois seria
arrogância querer dominar aquilo que ninguém sabe o que é. Diante desse avesso da
psicanálise, que é supor a felicidade como a capacidade do indivíduo gerar
autonomamente seus próprios recursos mentais e afetivos, ele responde que ser feliz é
algo que se ancora na ética do impossível.
Importa, por outro lado, mostrar que se o texto freudiano afirma sem cessar que
a felicidade é um enunciado do impossível é porque reconhece que “só o falo pode ser
feliz – não o portador do dito cujo”. Ainda que de forma ingênua e sem maiores
formalizações, Freud escreve de variadas formas a tese de que a felicidade é do falo. É o
que diz Lacan, ao extrair e enumerar diversos exemplos que comprovam uma tal idéia,
como é o caso da afirmação de que nada pode ser comparado ao gozo mais perfeito, que
é o orgasmo masculino. Ou ainda, o caso da parceira que por desespero de causa e,
supostamente desolada por não ser ela própria a portadora, almeja o falo no seu interior
e, não, o macho portador do mesmo. A própria experiência analítica nos ensina que não
é à-toa que o chamado portador do dito cujo se empenha em fazer sua parceira aceitar
essa privação. Para esse intuito, emprega-se todo o tipo de artifícios e esforços na esfera
do amor, de pequenos cuidados e de ternos favores que, no fundo, serão vãos, posto que
ele apenas reaviva [ravive] a mencionada ferida da privação. Se Lacan afirma que não é
o portador do falo que é feliz é porque tal ferida não pode ser compensada pela
satisfação que o sujeito obtém ao apaziguá-la. Em outros termos, conclui-se que a
ferida é reavivada [ravivée] pelo falo, visto que sua simples presença mobiliza a
nostalgia [regret] do sujeito confrontado com a falta fálica e, por conseqüência, é o que
causa essa ferida (LACAN, 1969-1970/1992, p. 69).
O emprego insistente do verbo “reavivar” [raviver] indica explicitamente que a
presença do falo aciona um outro tempo, um tempo mítico no qual processou-se a
subtração do aspecto totalizante do gozo absoluto. Se esse último aspecto do gozo
absoluto apenas tem valor para a função mítica do pai de Totem e tabu, é o seu
assassinato, concebido como ato suposto, que recobre o advento do mais-de-gozar. Que
o pai morto seja o gozo, isto apenas pode ser formulado por meio do mito, pois, a
operação estrutural do assassinato do pai é um sinal do próprio impossível. Nesse
sentido, nada pode ser comparado ao gozo mais perfeito que se depreende da existência
desse homem que faz com que todos os outros, aqueles que se determinam como filhos,
sejam atingidos pela castração. Com efeito, esse “todo homem”6 (touthomme) não
submetido à castração é o único a poder dar corpo à relação sexual, o único talhado para
desejar e gozar de todas as mulheres, o único, enfim, capaz de fundar, do lado
masculino, a identidade correspondente ao sexo feminino.
Se a felicidade é do falo, é porque ela se depreende do efeito nostálgico da
operação de castração daquele que miticamente encarna, no âmbito do lado masculino
da sexuação, como o todo-fálico, a saber: [∃ φx]. Nesse sentido, a felicidade aparece
∃x. /φ
como o encontro com essa dimensão mítica que se presentifica pela presença do falo,
presença traduzida pelos diversos requintes com os quais se busca substituir o gozo
absoluto do pai primevo, esse gozo que por ser o único que daria felicidade e,
justamente por isso, se apresenta como excluído. Nesse sentido, é o próprio Lacan que
adverte na forma de uma pergunta: “que outra coisa é apreensível no termo feliz senão
precisamente, a função que se encarna no mais de gozar” (LACAN, 1968-1969/2007, p.
23). É por isso mesmo que, na investigação analítica, a questão da felicidade aparece em
suplência à interdição do gozo absoluto do pai, algo cuja origem definimos pelas formas
diversas do gozo fálico que se situam, e, por assim dizer, são mapeadas pela função do
mais-de-gozar.

Referências Bibliográficas

6
LACAN, J. Le séminaire, livre XVIII: D'un discours qui ne serait pas du semblant (1970-1971). Lição
de 18 de maio de 1971. (Inédito).
FREUD, S. (1905/1969) “Os chistes na sua relação com o inconsciente”, in ESB., vol.
VIII. Rio de Janeiro: Imago.
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ESB., vol. IX. Rio de Janeiro: Imago.
_________. (1915-1917/1969) “Conferências introdutórias à psicanálise”, in ESB., vol.
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MILLER, J.-A. (1989) “Le programme de la psychanalyse”, in Quarto, nº 37-38, Paris.
TYLOR, E. (1920) Primitive culture. London: John Murray.

Recebido em 24/07/08
Aprovado em 30/08/08

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