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Entrevista ao curso de Design da

Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa


Ricardo Tavares da Silva
Outubro de 2018

1 – Como nasceu o conceito de “Axiologia”?

Antes de mais, creio ser necessário distinguir a área filosófica que tem por
objeto os valores – a Axiologia propriamente dita, que é uma das áreas ou
domínios da Filosofia, a par de outros como a Ontologia, a Epistemologia, a
Filosofia da Mente, etc. – do movimento que teve origem na Alemanha e que
introduziu na “arena filosófica” o conceito de ‘valor’ – o movimento da filosofia
dos valores (do qual se destacam nomes como os de Lotze, Windelband,
Rickert, Brentano, Meinong, Scheler, Hartmann e Radbruch).
Os termos são irrelevantes: podemos dizer que a Axiologia é a Filosofia dos
Valores e que o movimento da filosofia dos valores é o movimento da axiologia.
Mas a distinção, independentemente do nome que se dê às coisas, mantém-se e
é importante.
Isto, porque o que teve verdadeiramente uma origem histórica foi o
movimento: como disse, teve essencialmente origem da Alemanha, entre finais
do século XIX e início do século XX. Porventura, o primeiro autor a usar o
termo ‘valor’ com o sentido que lhe damos atualmente, descolando-o do seu
uso na Economia e estendendo-o a todos os domínios da até então chamada
‘Filosofia Prática’, até foi Nietzsche (é de lembrar a famosa exigência de
‘transmutação de todos os valores’). Mas foi Lotze o primeiro a empreender um
estudo sistemático do conceito de ‘valor’. Creio que o primeiro autor a usar o
termo ‘axiologia’ no título de um livro foi Eduard von Hartmann, em 1909, na
obra ‘Linhas de Axiologia’ (em português; ‘Grundriss der Axiologie’ no
original).
Este nascimento do estudo filosófico sistemático do valor acompanhou o
renascimento do kantianismo. Efetivamente, alguns dos autores que referi
(Windelband, Rickert e Radbruch) eram neo-kantianos e pertenceram a uma
das duas grandes correntes neo-kantianas: a escola de Baden e a escola de
Marburgo. Mesmo os que não o eram “forjaram” o seu pensamento tendo Kant
como referência (nem que para negar as suas teses).

2 – Quem foram os neokantinos e que contribuição tiveram na reflexão


axiológica?

Neo-kantianos são todos aqueles que, de alguma maneira, são herdeiros do


pensamento de Kant. Há quem tenha dito que somos todos neo-kantianos.
Mais estritamente, designam-se de ‘neo-kantianos’ os pensadores/filósofos
alemães que, na segunda metade do século XIX, “ressuscitaram” a filosofia
kantiana, tirando-a do esquecimento a que havia caído após a emergência do
chamado ‘idealismo alemão’ (Fichte, Schelling e Hegel), de que a própria
filosofia kantiana havia sido impulsionadora, e do positivismo. Caracterizam-se
por recuperar, no todo ou em parte, aspetos centrais do pensamento de Kant.
Muitos destes neo-kantianos tiveram uma abordagem curiosa: “pegaram” no
Kant de uma das Críticas e estenderam-no aos domínios das outras. Por
exemplo, Windelband (que defendeu que é preciso alterar o pensamento de
Kant para perceber o próprio pensamento de Kant) “pegou” no Kant da Crítica
da Faculdade do Juízo (dedicada à Estética) e estendeu-o a todo o domínio da
“Filosofia Prática” (como a Ética). Assim, considerou que os valores não
existem objetivamente (só há, em rigor, valorações), embora haja uma pretensão
de universalidade nos juízos de valor. Outros (como Radbruch) “pegaram” no
Kant da Crítica da Razão Pura (dedicada à Epistemologia, basicamente) e
“aplicaram-no” ao domínio da Ética: os valores constituirão condições de
possibilidade transcendentais (nomeadamente, da normatividade).
Mas, para além da corrente neo-kantiana da filosofia dos valores, representada
por Windelband, Rickert e Radbruch, entre outros, não nos podemos esquecer
da corrente fenomenológica, iniciada por Brentano e desenvolvida por Scheler
e Hartmann. Brentano, por exemplo, chegou à noção de ‘valor’ por intermédio
do conceito, por ele (re)introduzido no pensamento filosófico, de
‘intencionalidade’: os estados afetivos também se referem a alguma coisa
exterior, tal como os estados cognitivos, e o objeto específico dos estados
afetivos são os valores (não as coisas propriamente ditas).
Esta corrente também se “virou” para Kant, mas desta feita para o superar.
Por exemplo, Scheler aceitou o legado kantiano do a priori na Ética (tal como,
para Kant, o conhecimento da lei moral se dá somente a priori, para Scheler, o
conhecimento dos valores também se dá absolutamente a priori) mas rejeitou a
relação entre a priorismo e formalismo: a Ética é a priori mas não é formal, é uma
Ética material dos valores. Os valores dão conteúdo ao dever. Por isso, para
Scheler, todo o dever tem por base um valor.

3 – Rickert trouxe objetividade à axiologia. O que significa esta objetividade,


relativamente ao subjetivismo que a antecipou?

Windelband adotou uma perspetiva subjetivista dos valores. Esta foi a


perspetiva dominante na altura e, porventura, continua a sê-lo, depois de
avanços e recuos. Mas sempre houve quem se tivesse oposto à mesma.
Brentano, por exemplo, ao socorrer-se do conceito de ‘intencionalidade’,
possibilitou uma abordagem objetivista aos valores, que (Nicolai) Hartmann
levou até às últimas consequências.
Há vários tipos de subjetivismo relativamente aos valores. Diria que o
subjetivismo standart é dado pela teoria do erro de Mackie, avançada no livro
Ethics: Inventing Right and Wrong, de 1977: fazemos legitimamente juízos de valor,
que aspiram a ser verdadeiros, mas são sempre falsos, porque não há factos a
que possam corresponder. Os valores estão dentro da nossa mente, não existem
fora dela. Mas há um subjetivismo muito mais forte, o idealismo: aqui, anula-se
a distinção entre objetivo e subjetivo. Os valores, ao serem subjetivos, serão
objetivos: não tem sequer sentido falar em verdade e falsidade dos juízos de
valor, porque nem haverá distinção entre juízo e facto.
Há um terceiro tipo de subjetivismo, de acordo com o qual os factos resultam
dos juízos de valor: é o construtivismo epistémico relativo aos valores. Os
nossos juízos de valor constroem a realidade dos valores: porque julgamos que
x é valioso, x torna-se mesmo valioso. Estou indeciso quanto a colocar o
subjetivismo de Windelband do lado da teoria do erro ou do lado deste
construtivismo epistémico.
Há quem tome por subjetivismo, embora em rigor não o seja, o emotivismo.
O emotivismo é uma teoria nominalista: há apenas a palavra ‘valor’, não o
conceito de ‘valor’. Quando dizemos que algo é valioso, estamos apenas a
expressar os sentimentos que temos relativamente a essa coisa, não a fazer uma
declaração de como a realidade é. De acordo com esta perspetiva, os valores
não estão sequer dentro da nossa mente. Esta tese foi defendida por Ayer, na
primeira metade do XX (é, basicamente, a tese ética do positivismo lógico), e
pode ser encontrada embrionariamente já em Hume.
Eu interpretaria Rickert como não aderindo a qualquer uma destas hipóteses
mas a uma outra perspetiva que, de algum modo, ainda se pode considerar
subjetivista: os valores são construções sociais e/ou históricas. Eles existem
fora das nossas mentes mas são criações nossas, pois a cultura é criação nossa
e os valores não passam de entidades culturais. Ainda continua a ser verdade
que, se não existissem sujeitos, não existiram valores.
O problema da objetividade dos valores é o problema da localização: onde
estarão os valores? Se nos perguntarem onde estão cadeiras, basta apontar para
cadeiras; se nos perguntarem onde estão pessoas, basta apontar para pessoas.
Mas, se nos perguntarem onde estão os valores, teremos bastante dificuldade
em apontar para alguma coisa. Podemos apontar para as coisas que têm valor;
mas isso não é apontar para o próprio valor. Parece que os valores estão aí fora
na realidade mas sem o estarem, afinal.
Alguns objetivistas conseguiram responder a esta questão sem cair no
subjetivismo, postulando a existência de uma realidade sui generis que “convive”
lado a lado com a realidade “normal”, aquilo que Moore designou de mundo
não-natural. Os valores estariam aí, pelo que se torna possível falar deles, como
falamos de coisas reais, mesmo sem conseguir apontar para eles como
apontamos para as coisas. Hartmann também é não-naturalista em intenção
mas, como bem denunciou Moore, o plano da realidade para a qual reconduziu
os valores – o plano das essências, dos conceitos – faz parte, ainda, do mundo
natural. Hartmann é um objetivista do tipo platónico, não do tipo mooreano.
Há ainda o chamado ‘realismo de Cornell’, de acordo com o qual os valores
pertencem ao mundo natural mas não se reduzem a coisa alguma já conhecida:
são um tipo de coisa por si mesmos. A ideia é a de que, assim como as
propriedades químicas, por exemplo, são sobrevenientes às (dependem e
resultam das) propriedades físicas mas não se reduzem a estas, as propriedades
axiológicas também sobrevêm a um outro tipo de propriedade sem se reduzir a
ele.

4 – A origem do Valor foi uma questão que perturbou a ciência económica


entre o século XVIII e XIX. Valor acrescentado, valor de mercado, valor
estimativo, valor intrínseco, valor fornecido, valor nominal, valor real, foram
terminologias que surgiram ao longo do tempo… Em que se relacionam com a
axiologia?

A Axiologia tem uma relação de amor-ódio com a Economia. Por um lado,


foi buscar à Economia política (a moderna, a que vem desde Adam Smith) a
noção de ‘valor’, por reconhecer nesta noção económica de ‘valor’ os traços
gerais de todos os valores, como os valores morais e os valores estéticos. Por
outro lado, esforçou-se quase obcessivamente por distinguir o valor económico
do valor moral e do valor estético. Para isso, os axiólogos insistiram na distinção
entre ‘valor intrínseco’ e ‘valor extrínseco’. Prefiro falar na distinção entre valor-
meio e valor-fim, no espírito de Kant (ele próprio distinguira a dignidade das
pessoas do preço das coisas), ou, simplesmente, na distinção entre utilidade e
valor propriamente dito. O valer da utilidade consiste numa relação: x é útil
quando x é um meio para alcançar y. O valer dos valores morais e estéticos não
é relacional: x é moral ou esteticamente valioso mesmo que x não constitua um
meio para alcançar y.
Os axiólogos, depois de terem “ido” à noção económica de ‘valor’ para de lá
retirarem o conceito que lhes interessava, acabaram por afastar desse mesmo
conceito a noção económica de ‘valor’. Portanto, o valor de que trata a
Axiologia nada tem que ver com o “valor” de que trata a Economia.

5 – Que teóricos considera relevantes para o estudo do Valor seja na Axiologia,


seja na Economia, ou no Design?

Na Axiologia (a única de que posso falar com o mínimo de propriedade),


temos todo o movimento da filosofia dos valores, de que já falei: Lotze,
Windelband, Rickert, Brentano, Meinong, Scheler, Hartmann e Radbruch.
Também temos Ralph Perry e John Dewey nos EUA. Integro na reflexão
axiológica autores como Moore, Hare e Mackie. Enfim, o conceito de ‘valor’
“entrou” definitivamente na filosofia, pelo que dificilmente algum pensador que
se aventure nos domínios da Ética, Estética, Filosofia Política, Filosofia do
Direito, Filosofia da Religião e, até, da Epistemologia não recorrerá a esse
conceito.
6 – Comente: Lotze introduziu o tema da diferença entre "ser" e "valor", o
"mundo dos valores" é distinto do "mundo das coisas“.

Esta é uma “bandeira” da filosofia dos valores. E tem sofrido muitas


interpretações. Por exemplo, Rickert interpretou-a como a distinção entre o
mundo da natureza e o mundo da cultura. Muitos neo-kantianos interpretaram-
na como a distinção entre empírico e transcendental. Moore (e Hartmann)
interpretou-a como a distinção entre o mundo natural (o “normal”, daquilo que
conhecemos) e o mundo não-natural (o tal sui generis). Hare interpretou-a como
a distinção entre descrever (um facto) e prescrever (uma norma).
O principal obstáculo a uma interpretação inequívoca da distinção reside no
facto de o termo ‘ser’ não ser, ele próprio, inequívoco. Significa muitas coisas
diferentes.
A filosofia contemporânea, nomeadamente, na linha anglo-saxónica, tende a
interpretá-la como uma distinção entre propriedades: de um lado, temos as
propriedades “normais” das coisas, que fazem com que as coisas sejam o que
são; do outro lado, temos as propriedades morais, estéticas, etc., enfim, as
propriedades axiológicas, que fazem com que as coisas valham o que valem.
Isto vai ao encontro do significado clássico do termo ‘ser’, o de ‘essência’:
sabemos o que os indivíduos são (qual o seu ser) olhando para as suas
características.
Mas surge um problema: não obstante a não-redução das propriedades
axiológicas (a não-confusão destas face) às propriedades “normais”, ambas
encontram-se sempre juntas. Por exemplo, se uma peça de design possui beleza,
ela também possui (suponhamos) harmonia, proporção, simetria, etc.. As
propriedades axiológicas parecem derivar (ou, pelo menos, depender) de outras
propriedades: estas são os value-makers (para fazer uma analogia com a noção de
truth-maker).
Mais: se procurarmos uma definição de termos como ‘bondade’, ‘justiça’,
‘dignidade’, ‘beleza’, etc., o que nos aparece são propriedades não-axiológicas.
Reencontramos o problema da localização: como podem os valores ser
distintos das propriedades das coisas e, simultaneamente, não passarem dessas
mesmas propriedades?
A minha proposta consiste em levar a sério tanto esse significado clássico do
termo ‘ser’ como a dicotomia ‘ser-valer’. O ‘ser’ não é propriamente o conjunto
de propriedades ou características que um indivíduo possui mas a própria posse
dessas propriedades ou características. É-se algo: humano, simpático, etc.. De
maneira semelhante, eu diria que se vale algo, isto é, vale-se aquilo que se é:
“vale-se (enquanto) humano”, “vale-se (enquanto) simpático”, etc.. Ser e valer
são dois modos, distintos, de se possuir a mesma propriedade ou característica.
Feita nestes termos, acho que a distinção tem todo o sentido.

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