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Gore, Jennifer M. “Foucault e educação: fascinantes desafios”. In: Silva, Tomaz Tadeu.

O sujeito da
educação. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 9-20.

1
Jennifer M. Gore

Foucault e Educação: Fascinantes Desafios

Nenhum discurso é inerentemente libertador ou opressivo. A condição libertadora de


qualquer discurso teórico é uma questão de investigação histórica, não de proclamação
teórica. (Jana Sawicki, 1988a, p. 166).

Para muitos, essa frase parecerá estranha ou simplesmente equivocada. Neste capítulo,
meu objetivo é demonstrar como essa posição pode ser defendida e por que ela é
importante no campo da educação. Tanto a frase acima quanto este capítulo estão
enquadrados pelo trabalho do filósofo social francês Michel Foucault. O trabalho de
Foucault tem influenciado profundamente o pensamento em muitos campos da teoria
social, incluindo, bastante recentemente, a educação. Em parte, a magnitude dessa
influência advém do grau em que suas idéias - embora contrárias aos entendimentos
existentes - são convincentes e persuasivas.
A frase de Sawicki caracteriza os principais desafios foucaultianos que enfatizarei neste
capítulo. Embora exista um corpo crescente e sofisticado de literatura, de debate e de
análise do trabalho de Foucault, meu objetivo aqui é simplesmente o de explorar as
conseqüências da visão de Foucault de que a verdade e o poder estão mutuamente
interligados através de práticas contextualmente específicas. Inicio essa tarefa com um
desenvolvimento das idéias de Foucault sobre poder e saber, centrando-me na sua noção de
"regimes de verdade". A seguir, considero as aplicações das análises de Foucault à
educação. Finalmente, passo em revista as implicações dos desafios de Foucault.
Antes de começar, faz-se necessária uma breve nota sobre o uso do termo "discurso". A
noção de discurso usada aqui não é a da lingüística, na qual a preocupação principal é com
a estrutura da linguagem. Em vez disso, o termo "discurso" é usado aqui tal como o é por
Foucault e pelo pós-estruturalismo: o foco está muito mais no conteúdo e no contexto da
linguagem. Os discursos, no contexto de relações de poder específicas, historicamente
constituídas, e invocando noções particulares [p.10] de verdade, definem as ações e os
eventos que são plausíveis, racionalizados ou justificados num dado campo. Portanto, ao
fazer referência a discursos, minha intenção é assinalar uma preocupação não tanto com o
que as palavras significam quanto com a forma como as palavras, conjuntos de sentenças e
práticas relacionadas funcionam (Bové, 1990).

Regimes de verdade, poder-saber e poder disciplinar

A noção de "regimes de verdade" de Foucault (1980) é central à parte de seu trabalho que
quero expor aqui. O próprio termo evoca visões de "verdade", usadas de formas que
controlam e regulam. Exemplos dramáticos, nos quais versões da "verdade" tiveram
horríveis conseqüências de opressão e violência, tais como as visões de uma raça ariana
pura de Hitler ou a política do apartheid da África do Sul, nos vêm à mente. Na explicação
que Foucault (1985b) dá do termo: "A 'verdade' está circularmente ligada a sistemas de
poder, que a produzem e a apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem"
(p. 133). Dessa forma, eu argumento que não é apenas em relação aos discursos
"dominantes" ou "dominadores" de qualquer sociedade que faz sentido falar de regimes de
verdade (Gore, 1990a, 1993). Se o poder e a verdade estão "ligados numa relação circular",
se a verdade existe numa relação de poder e o poder opera em conexão com a verdade,
então todos os discursos podem ser vistos funcionando como regimes de verdade.
Desenvolvendo essa noção, Foucault (1980) diz:
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de
verdade: isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre
sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é
sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da
verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta
como verdadeiro (p. 131).

Consideremos a "política de verdade" na educação. Dito de forma breve, os discursos


baseados na disciplina da Psicologia e vinculados a noções particulares de ciência têm sido
mais prontamente aceitos que outros tipos de discursos; a razão científica tem sido o meio
principal pelo qual esses discursos são sancionados; as técnicas empíricas têm tido primazia
na produção da verdade; tem-se concedido um status profissional, científico e intelectual
àqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdade. Discursos alternativos
ou competidores, embora tendo que funcionar no contexto dessa política geral de verdade
na educação, constroem suas próprias versões de verdade, suas próprias [p.11] versões
daquilo que conta, de quem está autorizado a falar. Isto é, eles também podem ser vistos
como regimes de verdade.
A fim de compreender mais plenamente a noção de "regime de verdade", quero
chamar atenção para o uso que Foucault faz dos conceitos de poder e saber (pouvour e
savoir). É útil começar por tentar esclarecer aquilo que poder e saber, nessa utilização, não
é. Em primeiro lugar, a despeito de seus argumentos sobre a conexão poder-saber,
Foucault (1983a) é bastante enfático ao afirmar que poder e saber não são idênticos:
Quando leio - e eu sei que ela me tem sido atribuída - a tese de que "saber
é poder" ou "poder é saber", começo a dar risadas, uma vez que estudar
sua relação é precisamente o meu problema. Se eles fossem idênticos, eu
não teria que estudá-los e, como resultado, eu me teria poupado um
bocado de cansaço. O próprio fato de que eu coloco a questão de sua
relação prova claramente que eu não os tenho como idênticos (p. 210).

Em segundo lugar, Foucault distancia-se das definições convencionais de poder e saber.


Ele inverte a articulação convencional na qual o poder funciona apenas de forma negativa e
na qual a verdade ou o saber podem inverter, apagar ou desafiar a dominação do poder
repressivo (Dreyfus & Rabinow, 1983; Keenan, 1987). Essa definição convencional da
relação entre poder e saber encontra-se em muitos dos discursos educacionais que se
autoproclamam como radicais e nos quais, através do processo de conscientização e de
educação (em geral), os poderes dominantes podem ser desmascarados para revelar a
"verdade" e, como resultado, aumentar o potencial para derrubar o sistema capitalista e/ou
patriarcal. O saber, nessa perspectiva, serve de contra-ataque aos males do poder. Em vez
disso, a noção de poder-saber de Foucault desafia a suposição de que alguma verdade não-
distorcida pode ser alcançada (Diamond & Quinby, 1988); ela "delimita os sonhos dos
intelectuais em relação ao controle que a verdade pode ter sobre o poder" (Bové, 1988, p.
xviii). Devo enfatizar, neste ponto, que minha referência aos discursos educacionais
radicais não implica que esses discursos sejam, de alguma forma, mais perigosos que
outros discursos educacionais simplesmente porque eles têm uma visão convencional de
poder. De fato, essa concepção convencional de poder é partilhada com os discursos
educacionais "tradicionais", quando eles se envolvem, por exemplo, com a estrutura
organizacional ou o fortalecimento do poder da professora.
Foucault expressa sua compreensão alternativa - uma compreensão que, para mim, é
altamente convincente - de poder e saber, e de sua relação, através da expressão "poder-
saber". Nessa visão, o poder não é necessariamente repressivo uma vez que incita, induz,
seduz, torna mais fácil ou mais difícil, amplia ou limita, torna mais provável [p.12] ou
menos provável (Foucault, 1983b). Além disso, o poder é exercido ou praticado em vez de
possuído e, assim, circula, passando através de toda força a ele relacionada. Na educação,
por exemplo, é claro que o poder não está apenas nas mãos das professoras. As estudantes
(e as mães e os pais e as administradoras e o governo) também exercem poder nas escolas.
A fim de compreender o funcionamento do poder em qualquer contexto, precisamos
compreender os pontos particulares através dos quais ele passa (Foucault, 1980). Nesse
sentido, Foucault chama atenção para a necessidade de reconsiderar alguns de nossos
pressupostos sobre a escolarização e de olhar de forma renovada e mais atenta para as
"micropráticas" do poder nas instituições educacionais.
Nas suas análises do poder, Foucault está especialmente preocupado com formas de
"governo", baseando-se no significado que essa palavra tinha no século XVI, no qual "se
referia não apenas às estruturas políticas ou à administração dos estados; designava, em vez
disso, a forma pela qual a conduta dos indivíduos ou grupos podia ser dirigida; o governo
das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes... Governar, nesse
sentido, é estruturar o campo possível de ação de outros" (Foucault, 1983b, p. 221).
Foucault argumenta que as formas modernas de governo revelam uma mudança, do poder
soberano, que é aberto, visível e localizado na monarquia, para o poder "disciplinar", que é
exercido por meio de sua "invisibilidade" através das tecnologias normalizadoras do eu.
Tradicionalmente, o poder é o que é visto, o que é mostrado e o que é manifestado:
O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em
compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade
obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. Sua
iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. E o fato de
ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeitado o
indivíduo disciplinar (Foucault, 1977b, p. 167).

A noção de poder disciplinar é vividamente ilustrada na apresentação que Foucault faz do


Panóptico de Bentham: uma estrutura arquitetônica, criada principalmente para as prisões,
na qual células individuais na periferia do edifício circundam uma torre central. A contra-
iluminação criada por janelas internas e externas permite a observação de cada cela a partir
da torre central, assegurando ao mesmo tempo que os prisioneiros não possam saber se
estão sendo observados. "Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um
estado consciente e permanente de visibilidade que assegure o funcionamento automático
do poder" (Foucault, 1977b, p. 177). O poder disciplinar torna-se, assim, internalizado:
Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma
por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar [p.13]
espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na
qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio
de sua própria sujeição (Foucault, 1977b, p. 179).

Considerada no contexto da educação escolar, esta noção de poder disciplinar ajuda a


explicar a auto-regulação dos estudantes, que mantém seus comportamentos mesmo
quando a professora deixa a sala de aula. Focalizarei agora mais de perto a educação,
discutindo tanto o trabalho de Foucault nessa área quanto as implicações de seu trabalho
mais geral.

A educação
Embora Foucault não faça uma análise detalhada das escolas, é claro que ele via as escolas
e a educação formal como exercendo um papel no crescimento do poder disciplinar. Em
Vigiar e Punir, num capítulo intitulado "Corpos dóceis", Foucault descreve inovações
pedagógicas iniciais e o modelo que elas forneceram para a economia, a medicina e a
teoria militar do século XVIII. Mais adiante no livro, ele pergunta: "Devemos ainda nos
admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os
hospitais, e todos se pareçam com as prisões?" (Foucault, 1977b, p. 199). Essas
semelhanças articuladas por Foucault emergiram do foco que seus estudos colocam sobre
os mecanismos que constroem instituições e experiências institucionais, e não sobre as
pessoas no interior dessas instituições:

Diz-se, às vezes, muito apressadamente, que Foucault foi aquele que


estudou o louco, o doente e os prisioneiros... Entretanto, ele escreveu O
Nascimento da Clínica, Loucura e Civilização, Vigiar e Punir. Ele não
coletou lamentos de pacientes, nem captou as confissões de prisioneiros
ou tentou surpreender os loucos em suas tarefas; ele estudou os
mecanismos da cura e os mecanismos da punição. Ele se voltou para as
instituições, ele se baseou em seus edifícios e em seus equipamentos, ele
investigou suas doutrinas e disciplinas, ele enumerou e catalogou suas
práticas e mostrou suas tecnologias... Como resultado disso, em vez de
contemplar o insano, o prisioneiro ou a pessoa pobre como um vaso
sobre uma mesa, ele preferiu estudar o confinamento, compreender o
aprisionamento e analisar a instituição da assistência social (Barret-
Kriegel, 1992, pp. 193-4).

Os próprios estudantes reconhecem esses mecanismos que Foucault estudou quando eles
usam a expressão "esta escola é como uma prisão". Consideremos alguns desses
mecanismos.
O processo pedagógico corporifica relações de poder entre professores e aprendizes
(definidos, seja de forma estreita, para se referir aos atores na educação institucionalizada,
seja de forma ampla, para se [p.14] referir a outras relações pedagógicas, tais como as que
se dão entre pais e filhos, escritores e leitores e assim por diante) com respeito a questões
de saber: qual saber é válido, qual saber é produzido, o saber de quem. A pedagogia se
baseia em técnicas particulares de governo, cujo desenvolvimento pode ser traçado
historicamente/arqueologicamente (veja, por exemplo, Hamilton, 1989; Hunter, 1988;
Jones & Williamson, 1979; Meredyt & Tyler, 1993; Luke, 1989), e produz e reproduz, em
diferentes momentos, regras e práticas particulares. De forma crescente, a pedagogia tem
enfatizado o autodisciplinamento, pelo qual os estudantes devem conservar a si e aos
outros sob controle. Seguindo Foucault, as técnicas/práticas que induzem esse
comportamento podem ser chamadas de tecnologias do eu. Essas tecnologias agem sobre
o corpo: olhos, mãos, boca, movimento. Por exemplo, em muitas salas de aula, os
estudantes depressa aprendem a levantar suas mãos antes de falar em classe, a conservar
seus olhos sobre seu trabalho durante um teste, a conservar seus olhos no professor, a dar a
aparência de estar escutando quando o professor está dando instruções, a permanecer em
suas carteiras. Podemos dizer que as pedagogias produzem regimes corporais políticos
particulares. Essas tecnologias do eu corporal podem também ser entendidas como
manifestações do eu (mental) interno, como a forma como as pessoas identificam a si
mesmas. As pedagogias, nessa análise, funcionam como regimes de verdade. As relações
disciplinares de poder-saber são fundamentais aos processos da pedagogia. Sejam elas
auto-impostas, impostas pelos professores, ou impostas sobre os professores, como coloca
Foucault (1977b): "Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na
essência da prática do ensino; não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um
mecanismo que lhe é inerente e que multiplica sua eficiência" (p. 158).
Mecanismos de poder-saber funcionam não apenas em relação a pedagogias defendidas
em discursos educacionais, isto é, em relação a visões sociais e práticas instrucionais
particulares, promulgadas em nome da pedagogia, mas também em relação à pedagogia dos
argumentos que caracterizam discursos educacionais específicos, isto é, aos próprios
argumentos (Gore, 1993). Foucault (1985a) argumentou que "é justamente no discurso que
vêm a se articular poder e saber" (p. 95). Portanto:

não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso


admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o
dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos
discursivos que podem entrar em estratégias diferentes... Os discursos,
como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder,
nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que
o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e
também obstáculo, escora, ponto [p.15] de resistência e ponto de partida
de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o
mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo... Não existe um
discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro, contraposto (pp.
95-96).
Os discursos radicais e emancipatórios não estão isentos dessa análise. Assim, quando os
teóricos educacionais radicais se apóiam em Foucault para argumentar que podemos
considerar os discursos educacionais dominantes (aqueles produzidos pela cultura
dominante) como "regimes de verdade"1, eles deixam de enfatizar o argumento de Foucault
(1983c) de que "tudo é perigoso" (p. 231).
Keenan (1987) argumenta que "pelo fato de a articulação entre poder e saber ser
discursiva, o vínculo nunca pode ser garantido... é impredizível... O discurso que torna o
vínculo possível também o mina, precisamente porque poder e saber são diferentes" (pp.
17-18). Sawicki (1988b) também apresenta esse argumento em sua análise-orientada por
Foucault - da identidade entre política e liberdade sexual. Quando ela se refere à
"sexualidade", eu coloquei no seu lugar "pedagogia", a fim de demonstrar a relevância do
argumento para a minha própria preocupação prática e intelectual com os discursos da
pedagogia radical (veja Gore, 1990a, 1990b, 1990c, 1991, 1993):
o discurso é ambíguo... uma forma de poder que circula no campo social e
pode ligar-se tanto a estratégias de dominação quanto a estratégias de
resistência. Sem ser inteiramente uma fonte de dominação nem de
resistência, a pedagogia não está também nem fora do poder nem
inteiramente circunscrita por ele. Em vez disso, é ela própria uma arena
de luta. Não existem práticas pedagógicas inerentemente libertadoras ou

1
Veja, por exemplo, McLaren (1989, p. 181).
inerentemente repressivas, pois qualquer prática é cooptável e qualquer
prática é capaz de tornar-se uma fonte de resistência. Afinal, se as
relações de poder são dispersas e fragmentadas ao longo do campo social,
assim também o deve ser a resistência ao poder.

Alguns exemplos podem nos ajudar a compreender esse ponto. Consideremos o costume de
dispor as carteiras em círculo, tão comum nas práticas pedagógicas progressistas. O círculo
é freqüentemente empregado para afastar a interação de sala de aula do controle direto da
professora. O círculo contrapõe-se à sala de aula tradicional na qual "a posição fixa é o
resultado da ciência da super-visão, um arranjo de pessoas em unidades coletivas acessíveis
à vigilância constante. Através do arranjo dos estudantes em fileiras, todos os olhos
voltados para a [p.16] frente, confrontando diretamente a nuca do colega, encontrando
apenas o olhar da professora, a disciplina da sala de aula contemporânea coloca em ação o
olhar (a observação) como uma estratégia de dominação" (Grumet, 1988, p. 111). O círculo
abre a possibilidade de que todo estudante manifeste sua opinião e de que seja ouvido. Com
as estudantes sentando no chão ou em cadeiras móveis, elas são libertadas dos limites
restritivos de suas carteiras, onde ficam separadas entre si.
Muitas de nós, que nos dedicamos ao ensino, usamos um arranjo circular alguma vez,
com esse tipo de intenção. Foucault, Sawicki e outros (p. ex., Walderdine, 1985, 1986) nos
ajudam a compreender que não existe nada inerentemente libertador nessa prática, mesmo
quando localizada no interior de um discurso radical, e nada inerentemente opressivo em
nossas tradicionais fileiras de carteiras. Por um lado, o círculo pode exigir das estudantes
uma maior autodisciplina, pela qual elas assumem a responsabilidade por comportar-se
"apropriadamente" sem o "olhar" da professora. Por outro lado, a privacidade parcial
permitida pela colocação tradicional de carteiras, na qual se está sob a vigilância ou
supervisão principalmente da professora, pode desaparecer à medida que as estudantes
ficam cada vez mais diretamente também sob a supervisão de suas colegas. A estudante
que prefere não se manifestar fica menos evidente quando todas as carteiras estão voltadas
para frente da sala de aula, assim como a estudante que não pode usar sapatos novos, que
fica ruborizada, que está entediada e assim por diante. Não estou tentando argumentar em
favor de um retorno às fileiras de carteiras - eu continuo a usar o arranjo em círculo em
minha própria prática. Estou argumentando que práticas educacionais supostamente
libertadoras não têm nenhum efeito garantido.
Como outro exemplo, consideremos a prática (freqüentemente bem intencionada) de
reconhecer as contribuições de grupos marginalizados através da adição de eventos tais
como "Mês da História da Mulher" ou "Mês da História dos Indígenas" ao currículo
escolar. Os efeitos de tais práticas podem ser bastante conservadores em termos de
continuar a colocar a experiência dos homens brancos no centro e manter todas as outras
experiências numa posição marginal. Mesmo currículos que objetivam transformar mais
radicalmente a perspectiva a partir da qual a vida social é vista podem desconsiderar outros
grupos marginalizados. Por exemplo, em esforços para lidar com a raça, a classe e o
gênero, outras formações opressivas, tais como heterossexismo e preconceitos em relação à
idade, podem prevalecer. Não existem efeitos garantidos.

Conclusão

Tal como a vejo, esta análise de nossa localização no interior de relações de poder-saber, da
sociedade disciplinar e de regimes de verdade nos [p.17] permite começar a identificar as
características de discursos e práticas particulares que têm efeitos perigosos, dominadores
ou negativos. Olhar outra vez para os mecanismos de nossas instituições educacionais,
questionar a "verdade" de nossos próprios e cultivados discursos, examinar aquilo que faz
com que sejamos o que somos, tudo isso abre possibilidades de mudança. De fato, um
pouco antes de sua morte, Foucault disse: "Todas as minhas análises são contra a idéia de
necessidades universais na existência humana. Elas mostram a arbitrariedade das
instituições e mostram quais espaços de liberdade podemos ainda desfrutar e como muitas
mudanças podem ainda ser feitas" (Foucault, 1988, p. 153).
Regimes de verdade não são necessariamente negativos mas, antes, necessários. O
saber e o poder estão freqüentemente ligados de forma produtiva. Exatamente como o
poder pode ser produtivo, assim também o pode o nexo poder-saber no qual e através do
qual efetuamos nosso trabalho. A razão central para utilizar regimes de verdade com a
finalidade de analisar discursos educacionais radicais, como fiz em outro local, não é a de
envolver-se numa "política de acusação" (Morris, 1988, p. 23). A falta de reflexividade dos
discursos radicais não é nenhuma surpresa à luz de sua luta para se legitimarem no contexto
dos discursos educacionais tradicionais. Em vez disso, utilizo o conceito de regime de
verdade como uma tecnologia do eu, estimulando-nos a sermos mais humildes e reflexivos
em nossas justificativas pedagógicas, reconhecendo que existe um trabalho desconstrutivo
a ser feito tanto no interior de nosso domínio quanto fora dele. Foucault contesta asserções
de verdade e asserções de inocência em todos os discursos educacionais.
As análises de Foucault do nexo poder-saber levantam dúvidas sobre a possibilidade ou
desejabilidade de dar algum dia uma resposta final à questão: Que práticas e discursos
pedagógicos são libertadores? (Sawicki, 1988b). Sua política, "concebida para evitar o
dogmatismo em nossas categorias e em nossa política, assim como para evitar que se
silencie a diferença - que pode ser um resultado desse dogmatismo é uma alternativa bem-
vinda a um debate polarizado" (Sawicki, 1988b, p. 187).
Mas aonde nos leva esse tipo de análise? Tem havido muitas críticas ao trabalho de
Foucault, centradas na questão da precisão histórica, do rigor metodológico e das
consequências políticas: é nessa última que quero me concentrar. Alguns críticos
argumentam que Foucault não nos deixa nenhuma saída em relação ao poder disciplinar;
que, com sua vinculação poder-saber, Foucault suprimiu a base para um vínculo político
prático entre os dois (p. ex., Anderson, 1983; Habermas, 1986; Taylor, 1986). Alguns
afirmam que a análise de Foucault nos deixa apenas com o pessimismo. Outros
argumentam que seu trabalho é contrário aos projetos feministas (p. ex. Balbus, 1988).
Esses argumentos [p.18] advêm de leituras particulares de Foucault e de agendas
intelectuais, políticas e profissionais particulares (Bové, 1988). Bové (1988) argumenta que
muitos acadêmicos interpretam mal Foucault para "anular as consequências políticas de sua
crítica das disciplinas e de seus próprios discursos e posições no interior do aparato poder-
saber" (p. xi).
Outros argumentam que "a própria relutância de Foucault em ser explícito sobre suas
posições éticas e políticas pode ser atribuída não ao niilismo, ao relativismo ou à
irresponsabilidade política, mas, antes, à sua idéia dos perigos de programas políticos
baseados na grande teoria" (Sawicki, 1988b, p. 189). Minha visão é que Foucault (1980)
deixou as questões de táticas, estratégias, objetivos específicos àquelas pessoas diretamente
envolvidas na luta e na resistência. Vem daí sua noção de intelectuais "específicos"
trabalhando no interior de setores específicos "em pontos precisos nos quais suas próprias
condições de vida ou trabalho os situam" (p. 126). Como Foucault (1983b) argumentou:
Uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma abstração... Dizer
que não pode haver uma sociedade sem relações de poder não é dizer que
aquelas que são estabelecidas são necessárias ou, de qualquer forma, que
o poder constitui uma fatalidade no centro das sociedades, de forma que
ele não pode ser minado. Em vez disso, eu diria que a análise, a
elaboração e o questionamento das relações de poder... é uma tarefa
política permanente, inerente em toda a existência social (pp. 222-3).

É para essa tarefa política, no setor no qual eu trabalho, que dirijo minhas energias de
pesquisa e docência atuais, na luta contínua para identificar regimes de verdade dos quais
eu mesma faço parte.

Referências

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Este capítulo foi inicialmente publicado no livro: R. A. Martusewicz & W. M. Reynolds (Orgs.). Inside/Out:
Contemporary Critical Perspectives in Education. Nova York, St. Martin's, 1994. Transcrito aqui com a
autorização da autora e da editora. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva


Jennifer M. Gore é Professora do Departamento de Educação da Universidade de
Newcastle, New South Wales, Austrália.

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