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CONHECIMENTO, FENOMENOLOGIA E EDUCAÇÃO:

Paulo Freire, Joel Martins e o pensamento educacional brasileiro.


Elydio dos Santos Neto1

Objetivos:

1. Verificar a influência fenomenológica no pensamento de Paulo Freire;


2. Fazer contato com o pensamento fenomenológico de Joel Martins;
3. Identificar as contribuições dos dois autores para o pensamento educacional
brasileiro.

Palavras-Chave: Fenomenologia, Educação, Paulo Freire, Joel Martins.

1. Influências da Fenomenologia em Paulo Freire.

No livro Pedagogia do Oprimido (1982, p.79) Paulo Freire escreveu uma frase que
se tornou emblemática da sua maneira de pensar o ser humano e a educação. É a seguinte:

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a


si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo
mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática
‘bancária’, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita
nos educandos passivos.

A frase sugere o ser humano como um ser de relações, no mundo, que necessita
construir o conhecimento com sua visão e reflexão próprias, e não como alguém que
simplesmente repete o que o professor exija que seja reproduzido. Esta postura aproxima-se
da postura fenomenológica de reconhecer que o ser humano é capaz de fazer e exprimir a
experiência primeira com os objetos do mundo sem render-se de saída às definições da
ciência e da filosofia. Aproxima-se também daquela postura de sensibilidade e escuta ao
outro que sugere a fenomenologia.
O próprio Paulo Freire reconhece a influência da Fenomenologia na constituição de
seu pensamento:
Minha perspectiva é dialética e fenomenológica. Eu acredito que daqui
temos que olhar para vencer esse relacionamento oposto entre teoria e
práxis: superando o que não deve ser feito num nível idealista. (Freire,
1985, p.85)

Também os estudiosos de Freire reconhecem a influência da fenomenologia na


elaboração de seu pensamento filosófico e educacional, como é o caso de Carlos Alberto
Torres e Moacir Gadotti:
Há várias razões que explicam a forte influência de Freire.
Primeiramente, seus trabalhos fundamentam-se em hipóteses que

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Elydio dos Santos Neto é docente-pesquisador do PPG Educação da Universidade Metodista. É também
Diretor da Faculdade de Educação e Letras da mesma universidade. Autor de “Por uma Educação
Transpessoal” (2006)

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refletem uma síntese inovadora das mais avançadas correntes do
pensamento filosófico contemporâneo, como o existencialismo, a
fenomenologia, a dialética hegeliana e o materialismo histórico. Essa
visão inovadora e seu talento excepcional como escrito em português e
espanhol têm conquistado, com seus escritos iniciais, um amplo
público leitor composto por educadores, cientistas sociais, teólogos e
militantes políticos. (Torres, 1996, p.119)

Três filosofias marcaram sucessivamente a obra de Paulo Freire: o


existencialismo, a fenomenologia e o marxismo(...)
(Gadotti, 1996, p. 119)

Embora Paulo Freire não seja um pensador que tenha influências apenas da
fenomenologia, vou apontar a seguir alguns elementos que, a meu ver, marcam a presença
desta forma de ver e pensar a vida em sua postura educacional. É importante que se tenha
presente que quando alguém elabora uma síntese a partir de diferentes visões de mundo é
impossível fazer uma distinção radical na nova visão para indicar exatamente os elementos
originários da mesma. É possível, no entanto apontar para alguns focos que mostram a
influência desta ou daquela corrente. É isto que vou fazer ao tentar mostrar alguns “focos”
fenomenológicos na visão de Paulo Freire:

• A afirmação do homem como um ser de relações que está no mundo, com o mundo
e com os homens;
• Adesão à postura segundo a qual existir é ser capaz de transformar, de produzir, de
decidir, de criar, de recriar, de comunicar-se;
• A visão de que o homem é um ser histórico e inacabado; aberto ao desafio de
recomeçar sempre a partir dos novos desafios que a vida lhe propõe;
• A defesa de que todo ser humano é capaz de ler e dizer o mundo a partir de si
mesmo e de suas experiências. Neste sentido o aprendizado, por exemplo, da língua
escrita potencializa sua capacidade de ler e escrever o mundo;
• A compreensão de que o ser humano é capaz de escutar o outro e de deixar-se
“incomodar” pela visão de mundo do outro e que, por isto, mesmo é capaz de
diálogo;
• A convicção de que o ser humano é um ser capaz de comunhão com os outros seres
humanos e que nesta partilha também aprende a construir respostas para a
existência;
• A recusa em dicotomizar objetividade e subjetividade.

É bem verdade que para Paulo Freire o ser humano também pode distanciar-se das
posturas acima enunciadas e mesmo negá-las. Ao assim proceder, no entanto, estaria
negando sua capacidade de Ser Mais e de existir com expressão de sua autoria e autonomia
no mundo, em relação com os demais seres humanos.

2. O pensamento fenomenológico de Joel Martins.

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Menos conhecido do que Paulo Freire, Joel Martins deixou interessante contribuição
para a educação brasileira, a partir de seu pensar fenomenológico. Joel Martins (1920-1993)
graduou-se em Filosofia e Pedagogia pela USP, na década de 1940. Entre 1949 e 1950 fez
Mestrado nos EUA e entre 1951 e 1953, na USP, realizou o seu doutorado em Psicologia
da Educação no campo da psicologia experimental de orientação behaviorista. Entre 1953 e
1954 fez o seu pós-doutorado na Universidade de Michigan, nos EUA, e aí se iniciou a
ruptura com o pensamento behaviorista e a aproximação ao pensamento fenomenológico,
pensamento que marcou de modo especial sua visão de mundo. Foi aluno de Merleau-
Ponty, na Europa, em um curso de Fenomenologia da Percepção (Saviani, 2005, p. 25) e
ajudou a organizar o “Centro de Estudos Fenomenológicos de São Paulo” e a “Sociedade
de Estudos e Pesquisas Qualitativas”. Foi, durante vários anos, professor na PUC-SP de
onde também chegou a ser nomeado Reitor no final de 1992. Faleceu ainda no início de seu
mandato em maio de 1993. Uma de suas obras mais importantes no campo das relações
entre fenomenologia e educação é: Um enfoque fenomenológico do currículo: educação
como poíesis, publicada em 1992, e da qual utilizarei alguns fragmentos para auxiliar a
introdução ao seu pensamento.
É importante começar pela compreensão que este autor tem do homem e da
educação, pois em sua visão conhecimento e constituição de si-mesmo não se dissociam no
processo educativo:

Tendo por característica romper com o imediato e com o natural


através das exigências que fazem sobre eles o intelectual e o racional, o
homem não é por natureza aquilo que está destinado a ser e, como ser
de possibilidades, necessita construir-se na sua humanidade, o que se
realiza através do ato de educar propriamente dito.
Elevada à tarefa do homem, a educação passa a permear o mundo
humano onde quer que este esteja existindo. Nesse sentido, a essência
do trabalho educacional é a elaboração do conhecimento; a sua
produção, mais que o consumo. Ao adquirir capacidades, habilidades e
construir conhecimento, o homem ganha o sentido de si-mesmo.
Aquilo que, ao nascer, parece lhe ter sido negado, enquanto ser
submetido a um mundo pré-dado, ao deparar-se com um estranho
torna-se assim, ao contrário, um ganho enquanto elabora sua própria
consciência.
A busca de si-mesmo frente ao mundo e às entidades que aí estão,
compreende-se bem como àquilo que se lhe mostra estranho e vir aí
habitar se constituem no movimento básico da consciência nesse ir e
retornar a si-mesmo.
(Martins, 1992, p. 76-77)

A escola assim emerge não como o espaço da imposição – bancário, diria Freire –
mas como o espaço do estranhamento em relação ao que está sendo estudado e, também,
espaço do diálogo. Nesta concepção é interessante verificar o que significa aprender:

Aprender, numa perspectiva fenomenológica, consiste na possibilidade


que tem o humano de tomar consciência da necessidade de reorganizar
um projeto pessoal baseado na discrepância que percebe existir entre o
que este sabe e a compreensão das ações dos outros (pais, professores,
amigos), em termos de projeto na mesma situação. Manifesta-se,

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também, na descoberta do sujeito de que ele na situação de
aprendizagem está vivendo pré-reflexivamente, de forma conflitiva,
diferentes papéis e que existem outros que lhe são preferidos de forma
não ambígua.

Eis porque o tema da percepção do mundo a partir de si-mesmo é tão importante.


Da atenção a esta percepção nasce a possibilidade do diálogo, do conflito e da construção
de um conhecimento a partir do sujeito mesmo que conhece e não apenas partir do outro
(professores, pais, amigos). Este tipo de conhecimento é fundamental para a constituição
das capacidades de autonomia e autoria. E aqui se questiona o currículo da escola. Como
pensar o currículo na perspectiva fenomenológica? Afirma Joel Martins:

Considerando-se educar como cuidado para que o ser possa viver


na plenitude de sua existência, a trajetória do aluno a ser feita na escola
deverá ser vista como um pro-jeto pedagógico, caminho a ser
percorrido. Nesse enfoque é que o Currículo deverá ser enfatizado
como construção cultural, pois toda cultura se caracteriza por ter
acumulado, no processo de seu desenvolvimento histórico, um acervo
de conhecimento. A construção da cultura envolve artes, experiências
vividas e registradas na história, visões de mundo, expressões, estilos e
símbolos que são usados por um povo, conhecimentos e conceitos que
contêm um potencial poderoso a ser outorgado às novas gerações. Ver
Currículo como construção cultural implica ver a escola como um lugar
especial, espaço que tem existência e um ser próprios e que não está aí
apenas presente. Consiste em nos vermos como homens, existindo
frente a outros, que têm um pensar e uma história própria; consiste,
ainda, em nos compreendermos existindo naquilo que fazemos na
escola enquanto partes da obra educacional. Pela expressão estar na
escola colocamo-nos frente a duas possibilidades: aí estar
simplesmente presentes ou existir na presença, fazendo parte da obra
educacional.
(1992, p. 76)

Esta visão exige, é claro, educadores que tenham conseguido ir além da perspectiva
tradicional e bancária da educação para perceberem-se, eles próprios, como seres no mundo
que se fazem na e com a história; seres abertos ao diálogo e conscientes da escola como um
lugar de construção de conhecimentos e da constituição do si-mesmo.
Neste momento é interessante olhar para a realidade de nossas escolas e perguntar:
Por que, apesar destas e outras elaborações sugerirem e fundamentarem uma educação
dialógica e propiciadora da constituição da autonomia/autoria, muitas de nossas práticas
configuram-se ainda em mero treinamento e educação bancária? A quem não interessa a
afirmação prática de concepções educacionais como defendem Paulo Freire e Joel Martins?
Estas perguntas, que serão objetos de nossa atenção ao longo deste módulo, devem
permanecer com vocês ao longo deste curso e das práticas que construirão. Servirão como
provocadoras permanentes da consciência de nosso inacabamento e da necessidade de
sempre recomeçar.

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Referência Bibliográfica

MARTINS, J. Um enfoque fenomenológico do currículo: educação como poíesis. São


Paulo: Cortez, 1992.

SAVIANI, D. O protagonismo do professor Joel Martins na pós-graduação. In:


Revista Brasileira de Educação. São Paulo: Cortez/ANPEd, set/out/nov/dez 2005, no. 30,
p. 21- 35.

Leituras Recomendadas

MARTINS, J. Uma abordagem de currículo na perspectiva fenomenológica. In:


MARTINS, J. Um enfoque fenomenológico do currículo: educação como poíesis. São
Paulo: Cortez, 1992, p. 45- 63.

MARTINS, J. Fenomenologia e currículo. In: MARTINS, J. Um enfoque


fenomenológico do currículo: educação como poíesis. São Paulo: Cortez, 1992, p. 63- 88.

SAVIANI, D. O protagonismo do professor Joel Martins na pós-graduação. In:


Revista Brasileira de Educação. São Paulo: Cortez/ANPEd, set/out/nov/dez 2005, no. 30,
p. 21- 35.

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