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Unidade III - Nas trilhas da argumentação acadêmica: por uma cultura de tolerância e
diálogo
Introdução................................................................................................................57
1. A construção da argumentação acadêmica...................................................................58
2. A construção de uma cultura de tolerância e diálogo...................................................69
Exercício de reflexão
Tendo em vista a assunção básica (ou pressuposto, afirmação
central) acima exposta como sendo central a este curso, eleja
três palavras que, em seu ponto de vista, representem três
descaminhos ou desvios presentes na vida intelectual, de acordo
com a percepção que você traz dela. Justifique.
Objetivos da unidade
1. Reconhecer caminhos e descaminhos possíveis da vida
intelectual;
2. Desenvolver uma visão teológica sobre a questão do saber
e a complexidade que envolve seus usos (pensar na questão do
“como”);
3. Promover a humildade e amor como antídotos contra a vaidade
e o orgulho na vida intelectual do/a teólogo/a.
Conhecemos bem esse texto paulino da epígrafe (1Co 8:1). Quantas vezes
não o utilizamos para o despropósito de dizer que o conhecimento não
vale de nada; que a razão atrapalha a fé; ou, pensando particularmente
em nosso caso (que trabalhamos com educação teológica), que o sujeito
se torna descrente se estuda e se aprofunda demais. Mas será que é isso
que Paulo está dizendo?
Corinto não era Atenas, mas a classe alta nutria pretensões filosóficas e
se orgulhava de seu conhecimento e sabedoria. A questão do texto está
diretamente associada a isso. Por um lado, judeus e cristãos, agradecem
a Deus pela comida; por outro, os pagãos honram aos deuses nos atos
de celebração envolvendo refeição.
Saiba mais!
‘Em uma cidade como Corinto, carne sacrificada
representava quase toda carne disponível para
consumo, já que os tempos funcionavam, na
prática, como uma combinação de açougue
e restaurante. Uma oferta animal era trazida
e oferecida em adoração a esta ou aquela
divindade e, em seguida, a família desfrutava da
refeição; o que sobrava era vendido no mercado
aberto. Algumas grandes comunidades judaicas
em cidades como Corinto teriam ao seu próprio açougueiro kosher;
em muitos casos, porém, judeus optavam por evitar totalmente
Tudo isso chegou a Paulo, algum tempo após sua partida, em forma de
bomba relógio: mais hora, menos hora, o conflito iria explodir e se tornar
insustentável. Sua preocupação pastoral e recomendações nos traz,
ainda hoje, luz sobre o que fazer, como cristãos maduros e sóbrios (1Co
10:15), diante de disputas facciosas.
Como fala a pessoas maduras, Paulo começa com um paradoxo: (a) todos
temos algum conhecimento (v. 1); (b) mas quem acha que sabe, ainda não
aprendeu como saber/pensar. É preciso desconfiar do que já sabemos
Segundo: Aprender que, mais que o saber, o que importa são as pessoas.
Paulo diz: eu sei, vocês sabem – o ídolo não é nada! Deus é tudo, há
somente um Deus! Essa comida é igual a qualquer outra. Mas não é todo
mundo que sabe disso. Portanto, saber não basta, não pode preencher
tudo. “O conhecimento verdadeiro não é insensível” (TAM). Não é
insensível ao outro, à pessoa, que está além do saber, o irmão e a irmã
de caminhada, a quem prezamos. Na década de 1970, em O sofrimento
que cura (2002), Henri Nouwen dizia lamentar ver sua igreja dividida
em questões (gênero, homossexualidade). Então dizia que uma igreja
dividida em questões, tende a se esquecer das pessoas. Hoje somos
um país também dividido por questões (políticas, ideológicas, religiosas,
sociais, etc.). Por causa dessas coisas nos tornamos inimigos de quem
pensa e se posiciona de modo diferente, ao ponto de demonizar e excluir
tal pessoa de nosso rol de relacionamentos. Não cristãos fazem isso;
cristãos também. Jesus, o fundador e cabeça da Igreja, porém, sempre
acreditou que entre nós podia e devia ser diferente: que o primeiro é o
que serve; que mulheres e homens têm igual importância; que os últimos
serão os primeiros; que pequeninos, pecadores, publicanos e prostitutas
nos precederiam no reino dos céus; que pessoas importam mais que
coisas ou questões. Resta saber se nós acreditamos em Jesus a ponto
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de abraçar a sua própria fé, que vai na contramão do que a dita “fé Nele”
muitas vezes se transfigurou na história do cristianismo.
UNIVERSALISMO
A tese de Badiou é a de que Paulo é o fundador do “universalismo”,
entendido, a grosso modo, como a produção de um sujeito ou de
uma pessoa “universal”, cujo centro de orientação ético-experiencial
e/ou vida, a partir do evento do Cristo ressurreto, não se limitaria
mais a sua particularidade (étnica, religiosa ou de gênero, etc.),
mas à sua nova identidade em Cristo, vide toda a discussão em
torno de Gálatas 3:28, que é o texto das cartas paulinas mais citado
por Badiou. Segundo ele, “Paulo mostra detalhadamente como
um pensamento universal, partindo da proliferação mundana das
alteridades (o judeu, o grego, as mulheres, os homens, os escravos,
os livres etc.), produz um Mesmo e o Igual (não há mais nem judeu
nem grego etc.)”. Assim, “a produção da igualdade, a revogação,
no pensamento, das diferenças” seriam, para Badiou, “os signos
materiais do universal” (Badiou, 2009, p. 127). O “Mesmo” nesse
Desse modo, sua recomendação foi: já que o ídolo não é nada; já que
comer ou deixar de comer não nos faz mais próximos de Deus, nem
melhores que ninguém, é o seguinte: abram mão! Não sacrifiquem as
pessoas mais fracas por causa do seu conhecimento e da sua liberdade,
não! Porque se vocês macularem isso, se vocês ferirem essas pessoas,
ao próprio Cristo estarão fazendo.
Então, podemos perguntar: como é a que a gente pode fazer isso, Paulo?
É simples, ele disse, vocês têm que agir de modo semelhante a Jesus
(Cf. Fp 2:5-11). Em outras palavras, na contramão de um mundo inflado
e tão cheio de si; na contramão de religiosos que só querem se encher
do sobrenatural de Deus; na contramão de suas teologias, ideologias, e
causas partidárias: ESVAZIEM-SE!
Num mundo dividido em facções, hoje oro para que não nos esqueçamos
de Jesus; nem de que naquela cruz todo direito e toda liberdade foram
redimidos, mas também esvaziados. Que o saber, ainda mais o teológico,
deve existir para ajuntar e edificar, e não para dividir. Se vier a dividir,
como ocorreu com Jesus, que não seja pela nossa soberba, mas pelo
incômodo gerado por nosso testemunho e nossa obediência a Ele.
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Exercício de Aplicação
Agora leia o texto comentado acima, de Paulo em 1Coríntios.
Fique com ele um tempo, reflita; em seguida, responda à pergunta
proposta logo abaixo:
É sobre isso que, a meu ver, Paulo está falando no texto citado na epígrafe
acima (ver: 1Ts 5:19-22). Trata-se de um chamado ao discernimento. Um
chamado comunitário para examinar as profecias (não confunda com
predições futuras, pois se trata da pregação evangélica), interrogar e
denunciar o mal onde quer que ele exista, não perder o ânimo diante das
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pressões externas, manter-se identificado com o Espírito a fim de reter
apenas o que é bom, e não se deixar coagir por outros “espíritos” (no caso
de seu contexto específico, podia ser Roma, os ditames da sociedade,
a perseguição religiosa, etc.) e ser levado a pensar como eles. Quem
pratica o discernimento tende a pensar com e não como o outro. Voltarei
a esse ponto adiante.
Contudo, nem toda paz é boa para se conservar, como bem nos alertou
O Rappa. O conforto tem um preço e ele se chama “alienação”, que é a
ação de transformar-se em alguém alienado, alheio, separado, distinto,
distante; um quase alienígena em seu próprio contexto. A alienação
pode até trazer comodidade, aliviar perturbações, evitar problemas;
seu produto final, porém, é o emburrecimento e o embrutecimento. E
assim, emburrecidos e embrutecidos, quando colocados em coletivos
ou em redes sociais, tendemos a tratar os outros (em especial, os mais
diferentes de nós), quase naturalmente e sem peso na consciência, com
burrice, rudeza e brutalidade; em alguns casos, como um peso morto
Exercício de Fixação
Conforme dito há pouco, nem toda paz é boa, no sentido de todos
pensarem da mesma forma, rápida e sem reflexão, agregando
somente o que lhe é favorável. Qual é a consequência disso?
a) Discussões que geram crescimento.
b) Alienação, emburrecimento e embrutecimento.
c) Confronto que pode resultar em mudança de mente .
d) Aprendizado com a experiência.
Saiba mais!
Em meu livro Humanos, graças a Deus (2018),
discuto a natureza da “transgressão”, que para
mim é antes de tudo “transgressão de si”. Por
isso decidi compartilhar alguns trechos aqui do
capítulo 5:
‘Transgredir tem sido uma das tônicas do que
tenho escrito em meu blog nos últimos anos – se
meus escritos fazem jus ao uso da palavra, deixo
ao leitor para que avalie. A mim, transgredir tem o
sentido de um ato ou modo de ser-pensar em que
me ponho programática ou despretensiosamente
a quebrar as regras, as normas estabelecidas (e simplesmente
seguidas sem questionamento), de transpassar o ato contínuo,
obediente, impensado, de rebanho; é a força motriz que nos impele a
sair do conforto, a não se acomodar com o status quo, a contestar
certos valores, a aprender a receber com o mesmo contentamento
tanto os presentes e dádivas como os golpes e até marretadas da vida.
Escrever é transgredir! A escrita, para mim, é uma espécie de divã, um
Texto de apoio
Mais uma vez, a sabedoria paulina nos é tremendamente útil nesta
reflexão:
A mensagem da cruz é loucura para os que se encaminham para a
destruição, mas para nós que estamos sendo salvos ela é o poder
de Deus. Como dizem as Escrituras: “Destruirei a sabedoria dos
sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes”. Diante disso,
onde ficam os sábios, os eruditos e os argumentadores desta era?
Deus fez a sabedoria deste mundo parecer loucura. Visto que Deus,
em sua sabedoria, providenciou que o mundo não o conhecesse
por meio de sabedoria humana, usou a loucura de nossa pregação
para salvar os que creem. Pois os judeus pedem sinais, e os
gentios buscam sabedoria. Assim, quando pregamos que o Cristo
foi crucificado, os judeus se ofendem, e os gentios dizem que é
tolice. Mas, para os que foram chamados para a salvação, tanto
Exercício de Fixação
Para recapitular o chamado ao discernimento feito por Paulo aos
Tessalonicenses, quais são as recomendações feitas pelo apóstolo
em 1Ts 5:19-22?
A teologia dos amigos de Jó, como bem notou Caio Fábio em seu livro O
enigma da graça (2002), é a “teologia moral de causa e efeito”. Para eles,
a vida de pessoas verdadeiramente inocentes e íntegras não pode acabar
em desgraça, porque elas não semeiam isso; quem semeia bondade
só colherá bondade. Para eles, somente “aqueles que cultivam o mal e
semeiam a desgraça colhem exatamente isso”, como disse Elifaz (Jó
4:8). Segue-se que o problema de Jó e a situação em que se encontrava
24 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
tinha uma causa ou razão certa: é porque ele estava em pecado, e é
porque não era justo nem íntegro como reivindicava ser.
De fato, a sabedoria bíblica atesta que “não há uma única pessoa perfeita
no mundo; nenhuma que seja pura e sem pecado” (Ec 7:20). A retidão de
Jó indicava um caminho de obediência, mas não uma vida sem pecado.
Inteiramente diferente, porém, é dizer que ele caiu nessa situação porque
era pecador; se assim fosse, como explicar a situação de tantas pessoas
que vivem em pecado, mas não sofrem o mesmo tipo de consequência?
O problema do sofrimento do justo é, portanto, consentâneo ao da
prosperidade do ímpio.
Não é à toa que Jesus não veio chamar gente (que se acha) justa e reta, mas
pecadores ao arrependimento. Usando a metáfora de Brennan Manning
(2005, p. 73-74), ele não veio para a elite espiritual e teológica, o pessoal
da “auréola apertada”, mas para os maltrapilhos, isto é, a turma da “auréola
torta”. Só quem passa pela grande miséria – ou que ao menos reconhece
sua miséria – pode também passar pelo grande arrependimento.
Exercício de aplicação
De acordo com o que foi lido sobre o saber e a complexidade, qual
é a virtude de Jó que é fundamental para nossa vida intelectual e se
relaciona com os objetivos de nossa unidade?
a) Retidão
b) Sabedoria
c) Superação
d) Honestidade
Por essa razão, ainda fico com o bom senso advindo da Palavra
de Deus, que me instrui aqui e acolá a evitar a frivolidade dos
caminhos fáceis e a leviandade das respostas prontas, cujo convite
é o do discernimento, da coragem e do enfrentamento da vida e
suas intempéries, com confiança e esperança no Deus de amor,
sabedor de que Ele caminha com a gente, desde as montanhas
mais altas aos vales mais escuros; das avenidas iluminadas aos
becos da existência, sem que saibamos exatamente o “como” nem
o “porquê”.
NOUWEN, Henri. O sofrimento que cura. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2002.
Objetivos da unidade
1. Compreender os problemas que o que chamo de “péssimo hábito da
literalidade e do prejuízo” pode acarretar para a vida intelectual;
2. Identificar benefícios do que Paulo chama de “renovação do
entendimento” ou metanoia para a vida cristã e a vida intelectual;
3. Reconhecer o lugar e a importância da consciência no exercício da fé
e para a convivência humana;
4. Desenvolver, ao menos inicialmente, a coragem de ser e de saber em parte.
Certa vez, um pastor conhecido cantou a música “Epitáfio”, dos Titãs, junto
com sua banda em um dos cultos de sua igreja, e tomou esta decisão
pois a letra desta música tinha muito a ver com a reflexão endereçada
por um outro pastor convidado para trazer a mensagem pregada naquele
domingo. Em seguida, publicou um trecho em vídeo daquele momento
em sua conta no Instagram, e (como já era de se esperar) foi execrado por
uma massa de “irmãos” (digo com certa relutância, em relação aqueles
que julgam e condenam em nome da fé), não só por cantar uma música
“secular” num culto cristão, mas por ser esta uma canção cujo refrão diz:
“O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. Sem entrar em
mais detalhes ou no mérito (que não vêm ao caso), duas questões me
preocupam nesse exemplo, sobre as quais quero comentar aqui.
Em contrapartida, tem tanta música feita por gente “do mundo” que consegue
fazer o que falta a muitas canções cristãs: cantar as belezas divinas, sem
necessariamente falar o nome de Deus, e retratar os dramas da vida humana
e os gemidos da criação. Para citar só um exemplo dentre tantos: “Sol de
primavera”, de Beto Guedes, é uma canção “do mundo” que pode ser entoada
como hino a Deus, pois fala de dor, fraternidade e esperança, sobre semear
a boa nova, sobre andar a segunda milha com quem chora, sobre aprender
a viver e ser melhor. (É óbvio que tem muita música cristã que também faz
isso com competência, mas esse tópico não é sobre elas).
Exercício de aplicação
Em 1João 3.30, lemos: “E, ainda que a consciência nos condene,
Deus é maior que nossa consciência e sabe todas as coisas”. É
sobre esse texto que reflete o podcast acima. Diante do que foi
discutido até aqui e desse podcast, responda: “Que frutos o
exercício da honestidade, um exame do coração e da consciência,
pode trazer para a vida intelectual”?
Texto de apoio
Uma mudança aleatória nos padrões do tempo provoca muita
ou pouca chuva sobre determinada região agrícola, destruindo
a safra de um ano. Um motorista bêbado joga seu carro na
contramão e colide com o Ford verde a alguns metros de distância
do Volkswagen vermelho. O motor do avião do voo 205, em vez
daquele do voo 209, entra em pane, infligindo uma tragédia a
um grupo de famílias e não a outro. Não há qualquer mensagem
em tudo isso. Não há razão especial para que uns e não outros
sucumbam à desgraça. Esses eventos não refletem escolhas de
Deus. Eles ocorrem ao acaso, e a casualidade é outro nome para
o caos, naqueles cantos do universo onde a luz criativa de Deus
ainda não penetrou. E o caos é mau. Não que seja errado ou
malévolo; não obstante, ele é mau, por provocar tragédias ao acaso
e, assim, impedir as pessoas de crerem na bondade de Deus. (...)
O caos residual, a sorte e o azar, coisas que acontecem sem razão,
continuarão conosco – o tipo de mal que Milton Steinberg chamou
de “andaimes ainda não removidos do edifício da criatividade de
Deus”. Nesse caso, teremos simplesmente de aprender a conviver
com ele, sustentados e confortados pelo conhecimento de que o
terremoto e o acidente, como o assassinato e o roubo, não são da
vontade de Deus, mas representam aquele aspecto da realidade
que, a despeito dela, subsiste, e que angustia e entristece a Deus
da mesma forma que nos angustia e entristece. (Kushner, 2008, p.
71, 73, grifos meus)
Talvez não haja sentimento humano pior que o de estar dividido: entre
mundos, desejos, valores, amores, escolhas e estilos de vida opostos
ou conflitantes. A sensação é a de violação interior: somos violados
internamente todas as vezes em que não conseguimos ser quem somos
e, simultaneamente, agradar a todas essas forças que o tempo todo
parecem guerrear dentro de nós, ora nos empurrando para um lado, ora
puxando para outro. É uma espécie de escravidão, porque são essas
forças e não nós mesmos (muito menos Deus) que exercem o controle
sobre nossas vidas.
Saiba mais!
A cobiça, a alma dividida e a identificação com o pensamento estão,
segundo Eckhart Tolle, na origem do ego, que é uma ilusão a respeito de
quem somos, porque se constitui basicamente da identificação com as
formas, o que inclui o que pensamos ser bom, o que pensamos sobre nós,
nossos desejos e o que pensamos ser a realidade. Ele conta uma história
Passaram-se quase 300 anos antes que outro renomado filósofo francês visse
algo naquela afirmação que Descartes, assim como todo mundo, não havia
percebido. Seu nome era Jean-Paul Sartre. Ele refletiu muito sobre a afirmação
de Descartes “Penso, logo existo” e, de repente, compreendeu algo. Em suas
próprias palavras: “A consciência que afirma ‘eu sou’ não é a consciência que
pensa”. O que ele quis dizer com isso? Quando estamos conscientes de que
estamos pensando, essa consciência não faz parte do pensamento. É uma
dimensão diferente da consciência. E é essa consciência que diz “eu sou”. Se
não houvesse nada além do pensamento em nós, nem sequer saberíamos
que pensamos. Seríamos como alguém que está sonhando e não sabe que
está fazendo isso. Estaríamos identificados com cada pensamento assim
como aquele que sonha está vinculado a cada imagem no sonho. Muitas
pessoas vivem desse jeito, como se andassem nas nuvens, presas a antigos
modelos mentais anormais que recriam continuamente a mesma realidade
de pesadelo. Quando sabemos que estamos sonhando, é porque estamos
despertos no sonho – outra dimensão da consciência se estabeleceu.
A implicação da percepção de Sartre é profunda, mas ele próprio ainda estava
identificado demais com o pensamento para reconhecer o pleno significado
do que descobrira: uma nova dimensão emergente da consciência.’.
(Fonte: Tolle, 2007, p. 53-54)
Exercício de reflexão
O que você normalmente faz quando os pensamentos, sejam eles
cobiçosos ou de qualquer outra natureza, assaltam sua mente?
Escreva aqui uma estratégia pessoal, à luz das reflexões acima, para
lidar com pensamentos e emoções “fora de lugar”, especialmente
em como filtrá-los na relação com outras pessoas.
Inteligências transformadas
Texto de apoio
A metodologia de Ankersmit
Enquanto historiador, você tem de fazer uso de toda a sua
personalidade quando escreve história, sem permitir que qualquer
parte dela seja sacrificada no altar de alguma ilusão científica
desorientada. ‘L’histoire se fait avec des documents’ [a história
se faz por meio de documentos] – de fato, mas também com
historiadores. (Ankersmit, 2005, p. 191)
Exercício de fixação
Segundo o que acabamos de estudar, o que difere o modo de pensar-
ser-fazer inconformado do conformado? Assinale a alternativa
correta:
a. O inconformado é essencialmente indignado com tudo e com
todas as formas; já o conformado apenas aceita a realidade como
ela é.
b. O inconformado é o que não aceita tomar forma alguma; já o
conformado facilmente se ajusta e se adapta às formas.
c. O inconformado reconhece a natureza provisória da forma, e,
por isso, segue o sopro do Espírito; o conformado acredita que a
essência está na forma, e se identifica sem problemas com seu
entorno por isso.
Bem, há vários sinais dessa transformação que Paulo nos vai apontando
ao longo do capítulo 12, sendo o mais marcante deles, a meu ver, a
capacidade de se humilhar. Começando por ser “honestos em nossa
autoavaliação” (12:3), andando de acordo com o que Deus nos deu
e não se julgando maior nem melhor do que ninguém. Por outro lado,
o comportamento cobiçoso é irmão do comportamento orgulhoso:
na medida em que almejamos ser mais do que nos cabe, isso vem
acompanhado de querer ser mais que os outros – e logo achar que sabe
mais, que é mais inteligente, e que a luz de seu pensamento reluz tanto
que torna o do outro uma mera sombra.
E, veja, isso nada tem a ver com o desejo de e o impulso para ser melhor
em todos os sentidos. Pois, para isso, é necessário sim uma dose de
autoafirmação, de luta consigo mesmo, de inquietude e busca de
superação. Isso é saudável e faz parte de nossa “evolução” (essa palavra
é ruim, mas não achei outra) como pessoas. Esse impulso e desejo se
tornam destrutivos, como nos lembra Tillich, caso se queira evitar a todo
custo o risco de insegurança, imperfeição ou parcialidade e incerteza que
rondam nossa condição, além da própria realidade de quem somos e de
quem não-somos.
Imperfeição
Imperfeição é, para mim, um dado da natureza humana; é, por isso,
uma longa companheira de jornada: para onde quer que formos, lá
ela estará para saudar-nos. Deus não nos fez para sermos perfeitos,
mas para sermos bons – porque tudo no começo declarou “bom” ou
“muito bom”. Perfeição é um atributo divino. “Sede perfeitos como
vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5:48), segundo Jesus, é uma
consecução do ato de amar, do amor (ágape) que é, segundo Paulo,
o “vínculo da perfeição” (Cl 3:14). Na medida em que amamos, como
nosso Pai ama, participamos de sua perfeição. E participamos ainda
mais quando reconhecemos nossas imperfeições. Duas citações,
de Richard Rohr e Joan Chittister, ilustram bem este ponto:
Exercício de fixação
De acordo com o texto que lemos acima, quando a questão do
“não-ser” pode se tornar um problema?
a) Quando não há aceitação da imperfeição, assumindo um outro-
eu.
b) Quando as limitações são reconhecidas e aceitadas.
c) Quando há equilíbrio entre a aceitação e a autoafirmação.
d) Quando afirmamos com coragem a integridade da vida, incluindo
sua ambiguidade.
Isso soa como uma afirmação óbvia, e isso se trata de uma afirmação
óbvia, mas que muitos de nós têm obviamente a ignorado. Na prática
funciona assim: sabemos que nosso saber é em parte, mas agimos com
o outro como se apenas o dele ou dela fossem. Na teologia, por exemplo,
sabemos, por total inferência e afirmação de fé, que “Deus é grande”, que
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 47
“Deus é eterno”, mas agirmos muitas vezes como se “o que pensamos”
sobre Ele também fosse (incluindo tais afirmações). A assunção da
parcialidade e do estado inacabado desse conhecimento, porém, deve
sempre nos lembrar de que ele nunca é grande coisa. O silogismo
“falo sobre Deus, logo sou grande coisa, e esse saber também é” é um
dos mais fatais para a teologia e para a espiritualidade cristãs. Faz do
lugar teológico um lugar de usurpação e, como tal, um lugar idolátrico,
pecaminoso.
Texto de apoio
Se eu falar com eloquência humana e com êxtase própria dos anjos
e não tiver amor, não passarei do rangido de uma porta enferrujada.
Se eu pregar a Palavra de Deus com poder, revelando todos os
mistérios e deixando tudo claro como o dia, ou se eu tiver fé para dizer
a uma montanha: “Pule!” e ela pular e não tiver amor, não serei nada.
Se eu der tudo que tenho aos pobres e ainda for para a fogueira
como mártir, mas não tiver amor, não cheguei a lugar algum. Assim,
não importa o que eu diga, no que eu creia ou o que eu faça: sem
amor, estou falido.
O amor nunca desiste.
O amor se preocupa mais com os outros que consigo mesmo.
O amor não quer o que não tem.
O amor não é esnobe,
Não tem a mente soberba,
Não se impõe sobre os outros,
Não age na base do “eu primeiro”,
Não perde as estribeiras,
Não contabiliza os pecados dos outros,
Não festeja quando os outros rastejam,
Tem prazer no desabrochar da verdade,
Tolera qualquer coisa,
Confia sempre em Deus,
Não sei bem a razão, mas acho que nunca quis ser tanto gente comum
quanto hoje. Talvez porque nosso mundo esteja tão rodeado e preocupado
com questões, e bem pouco preocupado com pessoas, com gente. Hoje
vale mais ganhar um debate, provar uma tese, do que fazer um amigo.
Cansei de tentar vencer; meu negócio agora é tentar amar. Pois somente
o amor “gentifica”, constrói e liberta.
O que podemos aprender com Jesus nesta passagem sobre o que foi
exposto anteriormente?
a) O caminho do poder, do reconhecimento e da glória pode não ser o
melhor.
b) O importante é adquirir a admiração dos outros.
c) O poder é para ser utilizado para a obra de Deus.
d) O caminho do poder, do reconhecimento e da glória é o que devemos
trilhar.
54 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Finalmente, quero aprender andar com Deus sem desaprender a andar
com os outros. Não há nada mais inútil que gritar “hosana nas alturas”
sem estender as mãos a quem precisa aqui, nesse chão da história. Quero
a espiritualidade trans-imanente de Jesus de Nazaré, que me ensinou
chamar a Deus de “paizinho” e ao estranho de “meu irmão”.
Referências
ANKERSMIT, Frank. Sublime Historical Experience. Stanford: Stanford
University Press, 2005.
TILLICH, Paul. A coragem de ser. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1972.
Objetivos da unidade
1. Definir “argumentação” a partir da relação de/com alguns de seus
“tipos”;
2. Refletir criticamente sobre formas potencialmente nocivas e
saudáveis de argumentação para a vida intelectual;
3. Relacionar os processos de construção da argumentação e de
construção de uma cultura de tolerância e diálogo;
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 57
4. Desenvolver o respeito, a tolerância e, acima de tudo, o amor ao
outro-diferente.
Exercício de fixação
De acordo com o que foi apresentado acima, pode-se dizer que a
argumentação transcendental não consiste em:
a. Utilizar argumentos religiosos para fundamentar o pensamento
científico.
b. Um tipo de argumento que empresta da realidade uma espécie
de fundamentação que se pretende que seja indiscutível.
c. Um argumento que vem de fora do texto para sustentar uma
ideia do texto e conferir a ela o status de “objetiva” e, por isso,
indubitável.
Assim, tal teoria se faz disseminar entre nós por meio do senso comum de
que “contra fatos, não há argumentos”, já que o fato “fala por si mesmo”, e
nosso papel é apenas o de descrevê-lo tal como ele é, sem tirar nem pôr.
Eles emergem das coisas – e é isso, aliás, que quis dizer acima quando
afirmei que, para a argumentação transcendental, as coisas são evidentes
por si mesmas. Mas, antes de se tornar “senso comum”, essa percepção
já foi formulada teoricamente e defendida pelos chamados realistas ou
empiristas na ciência. Trata-se da “teoria da correspondência” (com a
verdade ou com a realidade).
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 61
Teoria da correspondência
Segundo a teoria da correspondência uma sentença é verdadeira se [e
somente se] corresponde aos fatos. Assim, a sentença “o gato está na
esteira” é verdadeira se corresponde aos fatos, isto é, se há realmente
um gato na esteira, ao passo que é falsa se não houver um gato na
esteira. Uma sentença é verdadeira se as coisas são como a sentença
diz que são, e falsa se não o são. (Chalmers, 1993, p. 180)
Texto de apoio
Resta sempre a pergunta pela constituição própria das coisas,
aquilo que se costuma chamar de realidade. Não seria preciso
haver uma realidade dos fatos por trás das interpretações? Tal
pensamento é interessante, porém Nietzsche não o vê ir longe.
Por mais que a realidade exista de forma independente ao homem,
não haveria pensamento, conhecimento, filosofia, nem este debate
sem ele. A partir do momento em que o homem está no mundo,
todo seu olhar será dado a partir de uma perspectiva. Se tudo já
existia antes dele e se continuará a existir depois, mesmo isto, só
pode ser pensado a partir deste homem, isto é, perspectivamente.
O pensamento é, assim, como tudo o que o homem pode produzir,
parcial e interpretativo, isto é, perspectivo. (Camargo, 2008, p. 106)
Penso que não há nada “por trás dos fatos” que proteja uma afirmação
categórica humana de um exame crítico – até porque, por trás dos fatos,
diria Paul Feyerabend, estão seus “componentes ideológicos”. Aliás, a
menos que esteja protegida pela “aura” do dogma, nenhuma teoria,
tampouco essa com a qual flerto nesta discussão, está isenta de um
exame crítico. Se não é possível excluir a interpretação da atividade de
conhecer, continuemos examinando criticamente as interpretações uns
dos outros, nessa busca desenfreada pela verdade, que nos escapa em
sua totalidade. Se uma interpretação “não servir”, substitua por outra, e
assim sucessivamente. Nesse sentido, como afirma Pedro Demo (1995,
p. 43), “a metodologia existe não para lançarmos apelo desesperado
contra a ideologia, a autoridade, a infiltração estranha, mas armar
estratagemas conscientes de seu controle”. Sobre essas estratégias em
relação à ideologia e a autoridade tratará o próximo subitem.
Exercício de aplicação
Imagine que uma pessoa compartilhe uma notícia na linha do
tempo de sua página ou conta pessoal do Facebook. Esta notícia,
que na verdade é um artigo de opinião de um colunista do jornal
‘Folha de São Paulo’, como qualquer outra, contém uma série de
informações, digamos, sobre o desastre acontecido em 2018 em
uma das barragens da Companhia Vale do Rio Doce, em Brumadinho,
A. Sem dúvida isso é um fato. Por mais que haja um natural joguete
entre a companhia Vale do Rio Doce e as autoridades do governo,
estadual e federal, acerca de quem errou mais – se a empresa,
por não dar prioridade a uma fiscalização mais acurada de suas
barragens, ou se as autoridades, por não cobrarem relatórios
periódicos desta empresa, detalhando um plano de proteção
ambiental e humana que previna esse tipo de acidentes – não há
dúvidas de que a parte governamental tem mais responsabilidade
na história toda deste triste desastre humano e ambiental.
De acordo com Demo (2005, p. 51), “o jogo aberto com base na autoridade
do argumento pressupõe parceiros legítimos, que usam a palavra e
deixam os outros também usar, fundamentam o que dizem, questionam
e se autoquestionam”. Afinal, como ele também salienta, “quem não
sabe pensar acredita no que pensa. Quem sabe pensar, questiona o que
pensa” (p. 41). Isso significa admitir, sem cair em relativismos estéreis
do tipo “vale-tudo”, que é possível dizer o mesmo de uma outra forma,
ou sustentar um modo de pensar diferente sobre uma mesma realidade.
Mas, também, afirmar que é possível sempre aprimorar nossas formas
de pensar e de dizer a fim de pensar e dizer melhor, não simplesmente
para suplantar maneiras de pensar precedentes (ou mesmo contrárias
à nossas), numa competição por quem sabe mais e, assim, quem tem
mais poder, e sim para complementá-las e manter vivo o campo do
saber humano, científico ou não. O que deve, por conseguinte, também
contribuir para a construção de uma cultura intelectual mais tolerante e
dialógica, como veremos na segunda parte desta unidade.
68 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Exercício de reflexão
Diante do exposto, agora pare, pense sobre a frase de Demo
– “quem não sabe pensar acredita no que pensa. Quem sabe
pensar, questiona o que pensa” – e então responda: Tendemos a
questionar ou interrogar mais a nossa própria forma de pensar ou
a dos outros? Em sua opinião, por que isto ocorre?
Até que um fanático em meio à multidão gritou que Jean Calas havia
sido responsável pelo enforcamento do próprio filho, e logo o boato que
se espalhava pela cidade era de que aquele foi um caso de parricídio: o
pai e a mãe arquitetaram a morte do filho supostamente porque este se
recusara a converter-se à religião protestante. Isto faz lembrar a mitologia
da “primeira pedra”, protótipo inerente à violência mimética (a que brota
da imitação) sobre a qual tanto fala René Girard em sua obra. Segundo
ele, “longe de ser puramente retórica, a primeira pedra é decisiva por ser a
mais difícil de lançar. Mas por que será ela tão difícil de lançar? Porque é
a única que não tem modelo”. Assim, depois de lançada a primeira pedra,
o primeiro grito de “condenado” ou “assassino”, como no caso de Calas,
completa Girard, “a segunda vem muito rapidamente, graças ao exemplo
da primeira; a terceira vem ainda mais rápido, pois ela tem dois modelos
em vez de um, e assim por diante” (Girard, 2012, p. 91).
Umberto Eco disse que a internet “deu voz aos imbecis”, e foi bastante
criticado por isso. Mas, em entrevista à Revista Veja (Volf, 2015), ele
deu a seguinte explicação (o que vou dizer na verdade é uma paráfrase):
pense, são 7 bilhões de pessoas, e é natural que no meio delas tenhamos
muitos imbecis e que grande parte desses esteja na internet dando
sua opinião – muitos podem ser até bons pais e mães, trabalhadores
honestos, mas que falam do que não entendem, se achando os últimos
experts no assunto. Estaria Eco sendo intolerante com quem ele chama
de “imbecil”? Bem, estaria se dissesse que precisamos fazer “calar” os
ditos imbecis, isto é, que eles não têm direito a opinar.
Há muitas razões. Mas suspeito que, em parte, isso esteja ligado ao fato
de que nos esquecemos da fragilidade e da provisoriedade das opiniões.
Ou porque “damos um preço muito alto às nossas conjecturas”, usando
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 77
as palavras de Montaigne. Meu amigo Marcos Monteiro, de quem tenho
imensa saudade, costumava dizer que “todas as ideias precisam ser bem-
vindas, porque todas as ideias são provisórias”. Opiniões, nesse sentido,
normalmente tendem a dividir e excluir quando ocultamos seu caráter
inacabado e provisório do cenário público em que elas são expostas.
A tolerância como “força prática” (ou como virtude), disse André Comte-
Sponville (2009, p. 182), “funda-se em nossa fraqueza teórica, isto é,
na incapacidade em que estamos de alcançar o absoluto”. Daí que a
tolerância decorre de ou se apoia em outra virtude, pouco praticada em
nosso meio ultimamente, que é a humildade – esse esforço que uma
pessoa empreende para se livrar das ilusões que tem a respeito de si
própria (Comte-Sponville, 2009, p. 160). A humildade é um antídoto
contra o falso “eu”.
Texto de apoio
Num ensaio chamado “A inimizade e a amizade”, o escritor tcheco
Milan Kundera disse algo que ilustra bem esse ponto discutido
acima:
E é uma pena que muitos de nós tenhamos nos rendido a tal tolice, pois
a política vive de momentos, de eleições, de mandatos, e que, como tais,
têm prazo de validade. Governos passam (o atual, um dia, deixará de ser
e dará lugar a outro). Já amizade é uma das dádivas da vida sem prazo de
validade, e que não podemos deixar que pereça por causa de querelas sobre
os políticos que, no fim das contas, estão muito alheios ao que acontece no
universo privado das pessoas que votaram e fizeram campanha para eles.
Certa vez, Shaw disse: “Se eu fosse gordo como você, eu me enforcaria”.
No que Chesterton respondeu: “E se eu fosse me enforcar, usaria você
como corda”. Todo debate caloroso entre ambos terminava, porém, em
uma conversa descontraída em um pub.
Chesterton disse que seu amigo Shaw era “como a Vênus de Milo: tudo
nele era admirável”. Enquanto Shaw, por sua vez, costumava dizer que
o mundo não era suficientemente agradecido por ter Chesterton como
seu habitante. Será que estamos tão distantes no espaço-tempo e
culturalmente desse tipo de relação, em que amizades ou pelo menos
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 79
a cordialidade pode ser cultivada em meio às diferenças? Não estou
aqui advogando que devemos procurar agradar a todo mundo. Mesmo
os mais idealista, como eu, sabem que isso é impossível, tampouco é
recomendável. Pagamos um preço por assumir com coragem quem
somos, e por brigar por causas que valem à pena que se lute por, do
contrário nos desumanizamos.
Meu ponto aqui também é chamar atenção para a questão (ou melhor,
a possibilidade) da empatia, que eu defino como a capacidade de ver o
outro em nós e de nos ver no outro. Somos todos humanos, afinal! Ou,
como diz o poema de Kundera (2013, p. 21) no livro Um encontro: “O
que nos resta quando chegamos até aqui? O rosto; o rosto que esconde
‘esse tesouro, essa pepita de ouro, esse diamante escondido’, é o ‘eu’
infinitamente frágil, tremendo em um corpo”.
Uma vez que a tolerância não deve ser confundida com indiferença,
também não pode ser sinônimo de passividade, de tolerância universal
ou de “vale-tudo”, pois isso seria a sua própria negação. É preciso saber
estabelecer e respeitar limites, sobretudo aqueles que envolvem a
preservação da vida e do corpo. Nem tudo precisa e pode ser “tolerado”.
Porém, o agir em resistência à intolerância violenta, injusta, muitas vezes
cruel e, portanto, não-tolerável, deveria se dar dentro do horizonte de
valores preconizados pelos defensores da tolerância. Ou seja, ou uma
sociedade tolerante se recusa a resistir e lutar com as armas empunhadas
pelos agentes da intolerância, ou ela não pode ser chamada de uma
sociedade tolerante.
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O diálogo, fundamental para a democracia e para uma sociedade
tolerante, só pode existir entre “pessoas com uma grande lucidez”, disse
Tomáš Halík (2015, p. 188). Ou seja, é preciso mais que a tolerância para
a existência de uma sociedade tolerante. É preciso outras palavras, tais
como lucidez, bom senso, humildade, empatia e, porque não acrescentar:
é preciso amor. E aqui digo “é preciso” não no espírito cruzado e forçoso
de quem diz “você precisa fazer isso, ou...”, até porque o amor – já que
falamos dele – pressupõe o ser e o deixar ser e, como tal, implica numa
dose de incerteza. Isto é, quem ama pode até esperar amor de volta, mas
sabe que há uma chance grande de não receber. Digo no mesmo espírito
da música “É preciso saber viver”, de Roberto Carlos, que brada: “Toda
pedra no caminho você pode retirar/ Uma flor que tem espinho você pode
se arranhar/ Se o bem ou mal existem você pode escolher/ É preciso
saber viver”. “Saber viver” é sinônimo de sabedoria.
Exercício de aplicação
O apóstolo Paulo, escrevendo aos Romanos 14.1-8, disse:
1
Aceitem os que são fracos na fé e não discutam
sobre as opiniões deles acerca do que é certo ou
errado. 2 Por exemplo, um irmão crê que não é errado
comer qualquer coisa. Outro, porém, que é mais fraco,
come somente legumes e verduras. 3 Quem se sente
à vontade para comer de tudo não deve desprezar
quem não o faz. E quem não come certos alimentos
não deve condenar quem o faz, pois Deus os
aceitou. 4 Quem são vocês para condenar os servos
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 81
de outra pessoa? O senhor deles julgará se estão em
pé ou se caíram. E, com a ajuda de Deus, ficarão em
pé e receberão a aprovação dele. 5 Da mesma forma,
há quem considere um dia mais sagrado que outro,
enquanto outros acreditam que todos os dias são
iguais. Cada um deve estar plenamente convicto do
que faz. 6 Quem adora a Deus num dia especial o faz
para honrá-lo. Quem come qualquer tipo de alimento
também o faz para honrar o Senhor, uma vez que dá
graças a Deus antes de comer. E quem se recusa a
comer certos alimentos deseja, igualmente, agradar
ao Senhor e por isso dá graças a Deus. 7 Pois não
vivemos nem morremos para nós mesmos. 8 Se
vivemos, é para honrar o Senhor. E, se morremos, é
para honrar o Senhor. Portanto, quer vivamos, quer
morramos, pertencemos ao Senhor. (NVT)
Referências
BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Transformadora (NVT). São Paulo:
Mundo Cristão, 2016.
GIRARD, René. Eu via Satanás cair como um relâmpago. São Paulo: Paz
& Terra, 2012.
Objetivos da unidade
1. Refletir sobre experiências, princípios e tipologias da escrita
acadêmica;
2. Identificar diferenças entre escrita e pesquisa;
3. Reconhecer a complementaridade entre pesquisa e escrita;
4. Desenvolver a mentalidade do pesquisador e o fascínio pela
pesquisa.
86 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
1. A escrita acadêmica: experiências, princípios e tipologias
1.1. Escrita: abertura de poços profundos
Não gostaria de começar esse tópico com “princípios e tipologias”, mas
(como tem sido minha tônica até aqui nesta disciplina) com inspiração –
deixemos os princípios e tipologias para um segundo momento.
Um dos escritores que mais me inspira até hoje é o padre holandês Henri
Nouwen. Ele foi um dos escritores cristãos do século XX que, em minha
opinião, mais nos ensinou que a escrita pode ser, ao mesmo tempo, um
lugar de expressão do pensamento quanto de busca do pensar correto;
pode ser tanto acadêmica quanto artística (no sentido de criativa e
livre), embora nas universidades se dê tão pouco valor a escrita como
expressão artística ou mesmo poética. Também mostrou que ela é um
lugar de busca e encontro da identidade, e expressou ambas as coisas
(encontro – consigo, com Deus e com o próximo – e identidade) de modo
bastante honesto. A honestidade intelectual e a integridade de Nouwen
ficam evidentes em sua escrita, o que mostra que ela também pode ser
um lugar de desenvolvimento de nossa espiritualidade.
Em seu livro Pão para o caminho (‘Bread for the journey’), ele escreveu
algumas meditações sobre escrita, que traduzi, reuni e comento abaixo em
forma de três lições, sobre as quais gostaria que refletíssemos adiante.
Exercício de reflexão
Escreva aqui abaixo três implicações ou atitudes, à luz das três
lições de Nouwen sobre a escrita, que você se sente impulsionado
a tomar em consideração em sua vida pessoal, intelectual e/ou
ministerial:
Aí é que está o ponto: muitos já o fizeram, mas não com o meu olhar.
Os conhecimentos podem até ser os mesmos, bem como a realidade
e os temas. A particularidade, porém, está no olhar de quem escreve:
suas perspectivas, experiências e maneiras de tratar o “comum”, que
finalmente compõem o seu “estilo”. De acordo com Arthur Schopenhauer,
A escrita perfaz, assim, uma longa busca pelo estilo, e um longo caminho
até que o/a escritor/a encontre sua fisionomia própria. Lucas parece ter
encontrado a sua.
Fica evidente que esse “olhar” de Lucas não brotou do nada, sem esforço,
sem pesquisa dedicada, coleta minuciosa e análise cuidadosa das
informações que tinha à sua disposição. Ou seja, não se produz um “relato
IV. Finalidade
Exercício de fixação
Voltemos ao texto de Lucas 4.1-4. Observe particularmente quando
ele diz: “Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o
começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo
Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram
ensinadas”. Há três princípios importantes do processo de escrita
de um texto presentes nessa apresentação de Lucas, que são:
a. Investigação criteriosa; formatação textual; apologética.
b. Investigação criteriosa; organização textual; finalidade.
c. Investigação criteriosa; organização textual; convicção.
Não faz sentido, faz? Em suma: se não faz sentido, então o que temos
não é um texto.
Segue abaixo também alguns elementos para uma boa leitura (aplicável
a vários contextos acadêmicos):
d) Deve ter um ritmo próprio: “nem tão rápida que não se capte o que
se lê e nem tão lenta que produza distração” (Libanio, 2001, p. 252);
Ofereço, a seguir, dois exemplos (cf. Platão & Fiorin, 2003), que nos
ajudarão a entender um pouco melhor este ponto: o primeiro de um
emprego incorreto da coerência, e o segundo de um emprego correto da
coesão.
Exemplo 1: Coerência
Exemplo 2: Coesão
Assim, por mais imaturas, infantis e até inconsequentes, todos os que têm
pulso de vida, inteligência e corpo, desde muito cedo, fazem escolhas, e
fazem de suas vidas o que bem entendem.
Portanto, posso até não ter escolhido nascer, mas não posso viver minha
vida miserável, para sempre culpando outros por sua miséria. Tenho de
me perguntar: e depois de tudo, quem escolheu viver assim? Quem se
limitou a esse modo de vida? É preciso coragem para assumir, e carregar
o fardo (ou o peso leve) de suas próprias escolhas”.
Exercício de aplicação
Agora quero que você faça o mesmo exercício. Leia o parágrafo
abaixo (em itálico), e identifique de que assuntos está tratando. Em
seguida, use os conectivos (mas, além disso e assim), completando
com o texto que melhor completa o seu sentido – a exemplo do
texto que você leu acima.
E não é assim que boa parte dos escritores começa, como uma
criança aprendendo a andar, engatinhando, dando os primeiros passos,
precisando do auxílio ou suporte daqueles que já sabem andar para
poder deslanchar? Ou seja, não acontece de uma hora para outra. Na
escrita, como em qualquer outra “arte de fazer” (Michel de Certeau) vale
a máxima de que é a prática que conduz à perfeição. Hoje percebo que
estou longe da perfeição, mas não tão longe se comparado a quando
comecei a dar os primeiros passos. Então, ninguém pode se declarar
péssimo escritor ou incapaz sem antes ter tentado, sem ter dado os
primeiros passos.
Para quem eu escrevo? Em primeiro lugar, como já deve ter ficado evidente,
para mim mesmo, como forma de terapia, aprendizado, de externar idéias
que fervilham e sentimentos que transcorrem – ainda que sentimentos
sejam perigosos (é preciso deixar o texto “de molho” quando se escreve
tomado por eles) e a idéias, mutáveis. Em segundo lugar, escrevo para
2. A prática da pesquisa
2.1. Antes de se lançar, planejar
Texto de Apoio
Qual de vocês, se quiser construir uma torre, primeiro não se assenta
e calcula o preço, para ver se tem dinheiro suficiente para completá-
la? Pois, se lançar o alicerce e não for capaz de terminá-la, todos os
que a virem rirão dele, dizendo: “Este homem começou a construir
e não foi capaz de terminar”. Ou, qual é o rei que, pretendendo sair
à guerra contra outro rei, primeiro não se assenta e pensa se com
dez mil homens é capaz de enfrentar aquele que vem contra ele
com vinte mil? Se não for capaz, enviará uma delegação, enquanto
o outro ainda está longe, e pedirá um acordo de paz. Da mesma
forma, qualquer de vocês que não renunciar a tudo o que possui
não pode ser meu discípulo. (Lucas 14.28-33, NVI)
O que desejo chamar atenção aqui é: nos dois exemplos que Jesus usa,
está explícita a ideia de uma necessidade, em todo empreendimento, de
uma avaliação anterior. No caso da torre, a questão é o cálculo financeiro
(o dinheiro vai dar?); no caso dos reis em guerra, a questão é de estratégia
(podemos vencer com esse contingente?).
Dessa maneira, assim como não podemos ser discípulos de Jesus sem
assumir com integridade o significado mais amplo do discipulado, não
poderemos ser pesquisadores/as sem fazer planejamentos prévios,
cuidadosos e pensados antes de “entrarmos de cabeça” na pesquisa.
Mas, lembrem-se: todo planejamento pode dar errado, e, de certo modo,
foi feito para dar errado. Estranho, não? Sim, e não. Sim, se pensarmos
que planejamos com o desejo de que dê certo (ora bolas!). E não, se nos
conscientizarmos de que no processo de execução aprendemos coisas
novas, nos reinventamos e, assim, mudamos um pouco (senão toda) a rota.
2. “O sofrimento na Igreja
2. “Martírio e sofrimento” Primitiva: o caso de
perseguição e martírio na
Igreja de Éfeso”
O que se pode perguntar: (a) O que a Bíblia entende por mundo? (b)
Qual é a relação desse entendimento com o mandato cultural? (c) Como
conciliar as perspectivas cristãs de cuidado com a criação e expectativa
escatológica pela vinda do reino de Deus?
Jesus, por sua vez, oferece uma visão alternativa (não categorizável) e
bem mais complexa: “Nem uma coisa, nem outra; isso ocorreu pra que na
vida dele se manifestasse a obra de Deus”. Muito antes de inventarem o
paradigma moderno da complexidade, Jesus já pensava complexamente.
A prova disso é que em sua resposta ele não fecha questão – não é
somente isto ou somente aquilo – mas abre o leque de possibilidades,
que envolve as dinâmicas da vida, da fé e da ação de Deus.
Referências
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13ª ed. São Paulo: Loyola, 2008.
BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Transformadora (NVT). São Paulo:
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BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional (NVI). São Paulo: Vida,
2000.
BOOTH, Wayne C., COLOMB, Gregory G. e WILLIAMS, Joseph M. A arte da
pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FIORIN, J. L. & PLATÃO, F. S. Para entender o texto. 16ª ed. São Paulo:
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LIBANIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola,
2001.
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NOUWEN, Henri. Bread for the journey. A daybook of wisdom and faith.
New York: Harper Collins, 1997.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre, RS: L&PM,
2009.
WRIGHT, N. T. O mal e a justiça de Deus. Mundo injusto, Deus justo?
Viçosa, MG: Ultimato, 2009.
YOUNG, William P. A Cabana. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.