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Outubro/ 2019

Professor/autor: Dr. Jonathan M. Menezes


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SUMÁRIO
Metodologia da Pesquisa Científica

Unidade I - Caminhos e descaminhos do saber - Parte I


Introdução..............................................................................................................................04
1. Quando saber não é o bastante...........................................................................................06
2. O "fazer" que há no "pensar"...............................................................................................13
3. O saber e a complexidade..................................................................................................23

Unidade II - Caminhos e descaminhos do saber - Parte II


Introdução..............................................................................................................................29
1. O péssimo hábito da literalidade e do prejuízo................................................................30
2. Transformando inteligências e não inflando egos..........................................................35
3. A coragem de saber apenas em parte.............................................................................44
4. Coda: sobre ser menos......................................................................................................51

Unidade III - Nas trilhas da argumentação acadêmica: por uma cultura de tolerância e
diálogo
Introdução................................................................................................................57
1. A construção da argumentação acadêmica...................................................................58
2. A construção de uma cultura de tolerância e diálogo...................................................69

Unidade IV - A escrita acdêmica e a prática da pesquisa


Introdução..............................................................................................................................86
1. A escrita acadêmica: experiências, princípios e tipologias.............. .............................87
2. A prática da pesquisa......................................................................................................102

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UNIDADE I – Caminhos e descaminhos do saber (parte 1)
Introdução
Há muito tempo o famoso adágio atribuído ao filósofo Sócrates, que dizia
“só sei que nada sei”, vem sendo utilizado para significar muitas coisas,
sendo que a principal provavelmente reside na ideia de que o saber (ou
melhor, a sabedoria) começa com o reconhecimento da própria ignorância.
Em outras palavras, sábio é quem tem a explícita consciência de que
seu saber, por maior que seja, nunca é suficiente. Além de demonstrar
sabedoria, isso também seria um sinal de humildade. E percebe-se que,
em certa medida, essa sabedoria já se encontra há algum tempo presente
em formalidades da prática acadêmica, através do reconhecimento, que
se pode ver em muitos trabalhos dessa natureza, de que não se pretende
ter “a última palavra sobre o assunto”, ou que esse é “apenas um ponto
de vista sobre a questão”, dentre outras formas.

Contudo, ao atentar para a realidade, parece-me que aqui estamos


repetindo o óbvio (de que não sabemos nem damos conta de tudo)
para, muitas vezes (i.e., nem sempre), ocultar a arrogância e o orgulho
que se nota em relacionamentos e debates (quando eles existem) no
meio acadêmico. Ou seja, temos – e aqui me dirijo a nós, acadêmicos
(professores, pesquisadores, estudantes) – sido capazes de formalizar
a sabedoria e a humildade do adágio socrático, sem necessariamente
permitir que ela transforme nossa conduta diante de nossos estudantes
e pares. Assim, enquanto na teoria nós formalizamos e celebramos a
humildade, na prática temos normalizado a empáfia.

Esse, sem dúvida, é um descaminho do saber; antigo, mas ainda vivo.


Não pense, porém, que a academia é responsável por todo o orgulho
intelectual – que acima chamei de “empáfia” – existente no mundo. As
discussões sobre política, religião e sociedade que temos presenciado
nas redes sociais nos últimos anos são uma triste amostra de que o
orgulho – que Lewis (2005, p. 162) chamou de “o estado mental mais
oposto a Deus que existe” –, e seus consentâneos (a competitividade, a

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vaidade, a intolerância, a falta de diálogo, etc.) tem se propagado sempre
que alguém faz o que Kant (1983, p. 43) chamou de “uso público da
razão”. Mais importante que o debate entre ideias tem sido “provar” que
a sua ideia (ou ideologia) é a versão mais bem-acabada e mais próxima
da verdade possível, o que naturalmente exclui as demais.

Uma humanização (e humilhação) da vida intelectual torna-se uma via


mais que necessária em tempos de violência simbólica e exclusão, na
sociedade e não diferente em nossos petit comitês intelectuais. Existe
uma humanidade em nós que está clamando por emergir em meio a um
mundo hostil a ela. Essa é a assunção básica desse curso inteiro.

Exercício de reflexão
Tendo em vista a assunção básica (ou pressuposto, afirmação
central) acima exposta como sendo central a este curso, eleja
três palavras que, em seu ponto de vista, representem três
descaminhos ou desvios presentes na vida intelectual, de acordo
com a percepção que você traz dela. Justifique.

Pelas razões acima apresentadas, decidi propor duas unidades iniciais


para este curso, que versam sobre caminhos e descaminhos do saber e
que tentam forjar, como pano de fundo, a estrada rumo a uma teologia
humilhada, isto é, o tipo de teologia que emerge do seguimento radical
de Jesus, o que pressupõe o esvaziamento do anseio por poder para
tentar permanecer, enquanto “seres do conhecimento” (Nietzsche), na
casa do amor. Escrevi-os para esta primeira parte da disciplina, pois
entendi que de nada adianta falar de métodos, técnicas e metodologia
da pesquisa, sem também fomentar uma reflexão sobre que tipo de
pesquisadores, intelectuais e teólogos queremos ser. O que proponho
aqui, para você que está cursando essa disciplina online, portanto, é
resultado de meses de conversas honestas, de reflexão e partilha com
meus e minhas estudantes do primeiro ano de teologia presencial na
Faculdade Teológica Sul Americana, no contexto desta mesma disciplina
de Metodologia. Aqui veremos que metodologia é mais do que o domínio
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de práticas e técnicas, mas significa pensar sobre como eu as utilizo e
por que.

Objetivos da unidade
1. Reconhecer caminhos e descaminhos possíveis da vida
intelectual;
2. Desenvolver uma visão teológica sobre a questão do saber
e a complexidade que envolve seus usos (pensar na questão do
“como”);
3. Promover a humildade e amor como antídotos contra a vaidade
e o orgulho na vida intelectual do/a teólogo/a.

1. Quando saber não é o bastante


O saber ou conhecimento ensoberbece (dá lugar à arrogância), mas o
amor edifica.

Conhecemos bem esse texto paulino da epígrafe (1Co 8:1). Quantas vezes
não o utilizamos para o despropósito de dizer que o conhecimento não
vale de nada; que a razão atrapalha a fé; ou, pensando particularmente
em nosso caso (que trabalhamos com educação teológica), que o sujeito
se torna descrente se estuda e se aprofunda demais. Mas será que é isso
que Paulo está dizendo?

Se olharmos atentamente a toda a passagem (8:1-13), veremos que o


conhecimento é um elemento importante aqui, mas não é o centro da
questão. O centro tem a ver com uma disputa entre facções dentro da
comunidade cristã sobre a licitude de comer um certo tipo de comida
(aquela que era sacrificada aos ídolos). A existência de facções não é
uma grande surpresa se considerarmos que isso aconteceu na cidade
de Corinto.

Corinto era uma cidade multicultural. Nela conviviam judeus, cidadãos


romanos, gregos, imigrantes (sírios e egípcios); era uma verdadeira
Babel sociocultural. Era também uma cidade plurirreligiosa. A adoração
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monoteísta caminhava lado a lado com a politeísta (deuses greco-
romanos, deuses estrangeiros, sem falar no próprio Imperador). A igreja,
por sua vez, não estava alheia a essa diversidade. Era étnica (judeus e
“pagãos”) e socialmente diversa – do tesoureiro da cidade ao escravo; de
camponeses à gente da elite.

Corinto não era Atenas, mas a classe alta nutria pretensões filosóficas e
se orgulhava de seu conhecimento e sabedoria. A questão do texto está
diretamente associada a isso. Por um lado, judeus e cristãos, agradecem
a Deus pela comida; por outro, os pagãos honram aos deuses nos atos
de celebração envolvendo refeição.

A comunidade cristã em Corinto estava dividida entre, pelo menos, duas


facções: (a) Os “fortes”, eram aqueles que diziam, acertadamente, que
ídolos e deuses não eram nada, pois no fundo só há um Deus. Eram
“fortes”, porque privilegiados por esse “conhecimento” e pela “liberdade”
que gozavam na participação social; (b) os “fracos”, em geral, eram
provavelmente pagãos recém-convertidos; em sua vida anterior, estavam
acostumados com o sacrifício aos ídolos, por isso, ao ver irmãos e
irmãs participando dessas refeições, sua consciência era maculada,
escandalizada.

Saiba mais!
‘Em uma cidade como Corinto, carne sacrificada
representava quase toda carne disponível para
consumo, já que os tempos funcionavam, na
prática, como uma combinação de açougue
e restaurante. Uma oferta animal era trazida
e oferecida em adoração a esta ou aquela
divindade e, em seguida, a família desfrutava da
refeição; o que sobrava era vendido no mercado
aberto. Algumas grandes comunidades judaicas
em cidades como Corinto teriam ao seu próprio açougueiro kosher;
em muitos casos, porém, judeus optavam por evitar totalmente

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o consumo de carne, não apenas por causa de regras a respeito
de sangue, mas porque evitavam a adoração pagã e tudo que a
acompanhava.

É neste ponto que a carta dos líderes de Jerusalém (Atos 15)


talvez precisasse ser reelaborada. Paulo reiterou o teor da carta
sobre moralidade sexual, e, nesse aspecto, não há margem para
manobras, nem princípio de “tolerância” para opiniões diferentes.
O que vemos em 1Coríntios 8–10, discutindo templos e carne
sacrificada aos ídolos, é uma discussão sofisticada e delicada
sobre os desafios pastorais envolvidos no tratamento de duas
opiniões diferentes, chamadas por ele de “forte” e “fraco”. Esses
são termos técnicos de Paulo; aqueles com consciência “forte” são
os que, como ele, sabem que os ídolos não existem, de modo que
a carne oferecida para eles não passa de carne, ao passo que os
“Fracos” são aqueles que, depois de uma vida dedicada à adoração
de ídolos, imaginam-se participando da vida de determinado deus
ao comer da carne sacrificial, e agora não podem tocá-la sem
sentirem-se arrastados de volta para o mundo sombrio da idolatria
e tudo mais relacionado a esse mundo’.

(Fonte: Wright, 2018, p. 283)

Tudo isso chegou a Paulo, algum tempo após sua partida, em forma de
bomba relógio: mais hora, menos hora, o conflito iria explodir e se tornar
insustentável. Sua preocupação pastoral e recomendações nos traz,
ainda hoje, luz sobre o que fazer, como cristãos maduros e sóbrios (1Co
10:15), diante de disputas facciosas.

Primeiro: Aprender a temperar nosso conhecimento com amor.

Como fala a pessoas maduras, Paulo começa com um paradoxo: (a) todos
temos algum conhecimento (v. 1); (b) mas quem acha que sabe, ainda não
aprendeu como saber/pensar. É preciso desconfiar do que já sabemos

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e de como fazemos uso do que sabemos, porque o conhecimento infla
(ensoberbece, nos faz orgulhosos), e se torna instrumento de destruição
(ser mais que os outros). E isso é muito importante: uma pessoa pode
até desempenhar uma função ou realizar uma performance melhor que
outra pessoa, mas isso não faz dela uma pessoa melhor. A questão não é
abandonar o conhecimento, mas aprender a temperar o saber com o amor.
É perguntar se o conhecimento nos faz pessoas melhores (e não apenas
mais sabidas). Além disso, reconhecer que a gente só sabe em parte (1Co
13:9) é um modo cristão autêntico de habitar harmoniosamente na casa
do conhecimento e na casa do amor, até que os dois formem uma só casa.

Segundo: Aprender que, mais que o saber, o que importa são as pessoas.

Paulo diz: eu sei, vocês sabem – o ídolo não é nada! Deus é tudo, há
somente um Deus! Essa comida é igual a qualquer outra. Mas não é todo
mundo que sabe disso. Portanto, saber não basta, não pode preencher
tudo. “O conhecimento verdadeiro não é insensível” (TAM). Não é
insensível ao outro, à pessoa, que está além do saber, o irmão e a irmã
de caminhada, a quem prezamos. Na década de 1970, em O sofrimento
que cura (2002), Henri Nouwen dizia lamentar ver sua igreja dividida
em questões (gênero, homossexualidade). Então dizia que uma igreja
dividida em questões, tende a se esquecer das pessoas. Hoje somos
um país também dividido por questões (políticas, ideológicas, religiosas,
sociais, etc.). Por causa dessas coisas nos tornamos inimigos de quem
pensa e se posiciona de modo diferente, ao ponto de demonizar e excluir
tal pessoa de nosso rol de relacionamentos. Não cristãos fazem isso;
cristãos também. Jesus, o fundador e cabeça da Igreja, porém, sempre
acreditou que entre nós podia e devia ser diferente: que o primeiro é o
que serve; que mulheres e homens têm igual importância; que os últimos
serão os primeiros; que pequeninos, pecadores, publicanos e prostitutas
nos precederiam no reino dos céus; que pessoas importam mais que
coisas ou questões. Resta saber se nós acreditamos em Jesus a ponto
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de abraçar a sua própria fé, que vai na contramão do que a dita “fé Nele”
muitas vezes se transfigurou na história do cristianismo.

Terceiro: Aprender que com grandes saberes vêm grandes


responsabilidades.

A começar pela responsabilidade de não colocar “em prática” tudo o que


sabe; a abrir mão do “meu direito”, da “minha liberdade”. É obvio que,
numa sociedade capitalista, liberal, narcisista e individualista isso soa
como uma tremenda heresia! Mas Paulo era “universalista” – no sentido
de Alain Badiou (2009) deu ao termo (veja o Glossário abaixo) – e
acreditava que, às vezes, o particular precisa ser sacrificado em favor do
todo, muito antes disso ser tão polêmico como é hoje. E mais: ele usou
seu próprio exemplo como alguém que, “mesmo livre das exigências e
expectativas de todos”, tornou-se “voluntário para com todos a fim de
ganhar todo tipo de gente” (1Co 9:19, TAM). Ele não queria só falar, mas
também encarnar a mensagem.

UNIVERSALISMO
A tese de Badiou é a de que Paulo é o fundador do “universalismo”,
entendido, a grosso modo, como a produção de um sujeito ou de
uma pessoa “universal”, cujo centro de orientação ético-experiencial
e/ou vida, a partir do evento do Cristo ressurreto, não se limitaria
mais a sua particularidade (étnica, religiosa ou de gênero, etc.),
mas à sua nova identidade em Cristo, vide toda a discussão em
torno de Gálatas 3:28, que é o texto das cartas paulinas mais citado
por Badiou. Segundo ele, “Paulo mostra detalhadamente como
um pensamento universal, partindo da proliferação mundana das
alteridades (o judeu, o grego, as mulheres, os homens, os escravos,
os livres etc.), produz um Mesmo e o Igual (não há mais nem judeu
nem grego etc.)”. Assim, “a produção da igualdade, a revogação,
no pensamento, das diferenças” seriam, para Badiou, “os signos
materiais do universal” (Badiou, 2009, p. 127). O “Mesmo” nesse

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caso, porém, não significa “uniforme” nem uma proposta de
supressão das diferenças. Pelo contrário, se a “proliferação
mundana das alteridades”, como chamou ele, tem demonstrado
historicamente que as diferenças geram rivalidades, criando um eu-
separado ou coletivos sectários, a nova identidade ou humanidade
em Cristo, por outro lado, diz: essas diferenças existem, não se
trata de aboli-las, mas de ressignificá-las a partir do encontro: do
“eu” com Cristo, consigo e com o próximo. Deste encontro nasce
um “Nós” em Cristo Jesus, que é a Igreja, a reinvenção do povo de
Deus, a expressão concreta desse universalismo. Trata-se, ainda
mais, de um retorno à ideia de ser humano independente de suas
vinculações tribais. Todos são simplesmente humanos em Cristo.

Desse modo, sua recomendação foi: já que o ídolo não é nada; já que
comer ou deixar de comer não nos faz mais próximos de Deus, nem
melhores que ninguém, é o seguinte: abram mão! Não sacrifiquem as
pessoas mais fracas por causa do seu conhecimento e da sua liberdade,
não! Porque se vocês macularem isso, se vocês ferirem essas pessoas,
ao próprio Cristo estarão fazendo.

Então, podemos perguntar: como é a que a gente pode fazer isso, Paulo?
É simples, ele disse, vocês têm que agir de modo semelhante a Jesus
(Cf. Fp 2:5-11). Em outras palavras, na contramão de um mundo inflado
e tão cheio de si; na contramão de religiosos que só querem se encher
do sobrenatural de Deus; na contramão de suas teologias, ideologias, e
causas partidárias: ESVAZIEM-SE!

Num mundo dividido em facções, hoje oro para que não nos esqueçamos
de Jesus; nem de que naquela cruz todo direito e toda liberdade foram
redimidos, mas também esvaziados. Que o saber, ainda mais o teológico,
deve existir para ajuntar e edificar, e não para dividir. Se vier a dividir,
como ocorreu com Jesus, que não seja pela nossa soberba, mas pelo
incômodo gerado por nosso testemunho e nossa obediência a Ele.
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Exercício de Aplicação
Agora leia o texto comentado acima, de Paulo em 1Coríntios.
Fique com ele um tempo, reflita; em seguida, responda à pergunta
proposta logo abaixo:

Quanto à pergunta sobre a comida sacrificada a ídolos, sabemos que


todos temos conhecimento a esse respeito. Contudo, o conhecimento
traz orgulho, enquanto o amor fortalece. Se alguém pensa que sabe tudo
sobre algo, ainda não aprendeu como deveria. Mas quem ama a Deus
é conhecido por ele. Então, o que dizer quanto ao alimento oferecido a
ídolos? Bem, todos nós sabemos que, na verdade, o ídolo nada vale neste
mundo, e que há somente um Deus. Sim, é fato que existem os que são
chamados de deuses, por assim dizer, nos céus e na terra, e há pessoas
que adoram muitos deuses e muitos senhores. Para nós, porém, há
somente um Deus, o Pai, por meio de quem todas as coisas foram criadas
e para quem vivemos. E há somente um Senhor, Jesus Cristo, por meio
de quem todas as coisas foram criadas e por meio de quem recebemos
vida. No entanto, nem todos sabem disso. Alguns estão acostumados a
pensar que os ídolos são de verdade, de modo que, ao comer alimentos
oferecidos a eles, imaginam que estão adorando deuses de verdade, e sua
consciência fraca é contaminada. Não obtemos a aprovação de Deus pelo
que comemos. Não perdemos nada se não comemos, e se comemos,
nada ganhamos. Contudo, tenham cuidado para que sua liberdade não
leve outros de consciência mais fraca a tropeçarem. Pois, se alguém vir
você, que diz ter um conhecimento superior, comer no templo de um ídolo,
acaso não será induzido a contaminar a própria consciência ao ingerir
alimentos oferecidos a ídolos? Assim, por causa do seu conhecimento
superior, um irmão fraco pelo qual Cristo morreu acaba se perdendo. E
quando vocês pecam contra outros irmãos, incentivando-os a fazer algo
que eles consideram errado, pecam contra Cristo. Portanto, se aquilo que
eu como faz um irmão pecar, nunca mais comerei carne, pois não quero
fazer meu irmão tropeçar. (1 Coríntios 8:1-13, NVT)

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O que Paulo quis dizer com “o conhecimento traz orgulho, enquanto
o amor fortalece” que pode ser aplicado para nossa vida?

a) É preciso desprezar o conhecimento para não haver orgulho.


b) O que conta é amar sem se preocupar com adquirir conhecimento.
c) O importante é estar certo, sem preocupar com o que os outros
pensam.
d) É necessário temperar o conhecimento com amor.

2. O “fazer” que há no “pensar”


Examinem todas as coisas. Fiquem com o que é bom.

No tópico anterior, escolhi falar sobre a simplicidade da vida, de nossas


escolhas, do modo como lidamos com o conhecimento que temos, da
ideia de temperá-lo com amor, das pressões externas por produtividade,
do anseio interno pelo poder. Entretanto, é preciso que se diga em alto e
bom som: simplicidade não é simplismo, muito menos burrice. Explico:
a moderação, como diz Eclesiastes, em tudo é boa ou “quem tema a
Deus, evita os extremos” (Ec 7.18). Isso significa, em nosso caso, que
conhecimento sem simplicidade (e tudo o que ela agrega) vira cinismo,
e o cinismo é autodestrutivo: só enxerga mazela em tudo e todos; não
leva a nada. Mas simplicidade sem conhecimento vira pura ingenuidade,
e logo somos enganados, levados de um lado para o outro como boiada.
Portanto, nem o desprezo injuriado a tudo e a todos, nem a aceitação
passiva e inquestionada parecem ser caminhos de sabedoria. Melhor é
examinar tudo com cuidado.

É sobre isso que, a meu ver, Paulo está falando no texto citado na epígrafe
acima (ver: 1Ts 5:19-22). Trata-se de um chamado ao discernimento. Um
chamado comunitário para examinar as profecias (não confunda com
predições futuras, pois se trata da pregação evangélica), interrogar e
denunciar o mal onde quer que ele exista, não perder o ânimo diante das
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pressões externas, manter-se identificado com o Espírito a fim de reter
apenas o que é bom, e não se deixar coagir por outros “espíritos” (no caso
de seu contexto específico, podia ser Roma, os ditames da sociedade,
a perseguição religiosa, etc.) e ser levado a pensar como eles. Quem
pratica o discernimento tende a pensar com e não como o outro. Voltarei
a esse ponto adiante.

É uma tentação num mundo convulsionado pela informação rápida e


disponível num piscar de tela de um smartphone, contentar-se com o mero
dado, aceitar como veio sem querer saber mais, ater-se às manchetes
do dia, ouvir e acolher apenas o que lhe agrada sem se importar muito
com significado e com reflexão. Aliás, se você não sabe, o Facebook já
tem feito isso com maestria por você: seleciona, sobretudo, as notícias e
postagens que te interessam, que concordam com seu pensamento, que
se conformam com seus desejos e “ideais”. Com isso, ele nos diz todos
os dias: você não precisa aceitar o diferente, você não tem de lidar com o
incômodo, não precisa se escandalizar com o pensamento contrário, com
o abjeto e indesejável colega de “direita” ou de “esquerda”, pois vamos
fazer de tudo para criar um pequeno universo virtual de coisas e pessoas
parecidas com você, prontinho para você só curtir ou compartilhar. E olha
só: se alguém ficar espezinhando você, basta acionar o dispositivo de
“block” e a paz reinará de novo! O Facebook quer nos dar o mundo ideal:
o que mais se parece conosco.

Contudo, nem toda paz é boa para se conservar, como bem nos alertou
O Rappa. O conforto tem um preço e ele se chama “alienação”, que é a
ação de transformar-se em alguém alienado, alheio, separado, distinto,
distante; um quase alienígena em seu próprio contexto. A alienação
pode até trazer comodidade, aliviar perturbações, evitar problemas;
seu produto final, porém, é o emburrecimento e o embrutecimento. E
assim, emburrecidos e embrutecidos, quando colocados em coletivos
ou em redes sociais, tendemos a tratar os outros (em especial, os mais
diferentes de nós), quase naturalmente e sem peso na consciência, com
burrice, rudeza e brutalidade; em alguns casos, como um peso morto

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e, em outros, como um mal a ser extinto. Outro efeito da alienação em
nosso tempo é que ela tem institucionalizado o ódio. E feito com que, em
nome do combate ao “politicamente correto”, joguemos no lixo valores
importantes como a compaixão, a generosidade, a bondade, a tolerância,
o bem comum.

Para nós, teólogos/as, eu arrisco dizer que esse é o lugar e o momento


certo. Essa é a hora de fazer teologia, porque a melhor maneira de
aprender teologia, para além dos livros e leituras (embora amando-os
e apreciando-os), é quando estamos de ouvidos abertos e atentos ao
mundo, e ao que o Espírito está fazendo no mundo, mesmo quando
ele está partido e convulsionado como o nosso. A isso John Stott
(1998) chamou de “ouvir duas vezes” (ao Espírito e ao mundo). Se não
aprendermos a fazer teologia com os ouvidos, jamais aprenderemos a
fazê-la bem com as palavras, e a convertê-la com eficácia em vida. Por
isso gostaria de tomar as recomendações de Paulo à comunidade de
Tessalônica há mais de dois mil anos, para pensar no “fazer” que há no
“pensar” teologicamente.

Exercício de Fixação
Conforme dito há pouco, nem toda paz é boa, no sentido de todos
pensarem da mesma forma, rápida e sem reflexão, agregando
somente o que lhe é favorável. Qual é a consequência disso?
a) Discussões que geram crescimento.
b) Alienação, emburrecimento e embrutecimento.
c) Confronto que pode resultar em mudança de mente .
d) Aprendizado com a experiência.

Primeira recomendação: examinar tudo. A palavra grega no original é


dokimázō, isto é, examine, julgue, prove, investigue. Não tome as coisas
como óbvias, nem tire conclusões precipitadas, mas prove e discirna.
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Se colocarmos uma comida na boca de um bebê pela primeira vez ele
fará uma expressão estranha, e aquela expressão significa que ele está
provando. Não dá para saber se é bom ou ruim se não testar, se não
examinar. O coração do sábio, diz Salomão (em Pv 18:15) está ávido por
conhecer e, por isso, está sempre aprendendo. Então, a recomendação é
clara: não acredite em tudo o que vê, nem rejeite só porque o outro disse
que não presta, mas prove; não apenas o modo alheio (de agir ou pensar),
mas pondo o seu próprio à prova. Pedro Demo (1995) disse que “quem
não sabe pensar, acredita no que pensa. Quem sabe pensar questiona
o que pensa”. O pensador será um transgressor por natureza quando
aprender a transgredir mais o que ele propriamente ou impropriamente
pensa que ao pensamento alheio.

Saiba mais!
Em meu livro Humanos, graças a Deus (2018),
discuto a natureza da “transgressão”, que para
mim é antes de tudo “transgressão de si”. Por
isso decidi compartilhar alguns trechos aqui do
capítulo 5:
‘Transgredir tem sido uma das tônicas do que
tenho escrito em meu blog nos últimos anos – se
meus escritos fazem jus ao uso da palavra, deixo
ao leitor para que avalie. A mim, transgredir tem o
sentido de um ato ou modo de ser-pensar em que
me ponho programática ou despretensiosamente
a quebrar as regras, as normas estabelecidas (e simplesmente
seguidas sem questionamento), de transpassar o ato contínuo,
obediente, impensado, de rebanho; é a força motriz que nos impele a
sair do conforto, a não se acomodar com o status quo, a contestar
certos valores, a aprender a receber com o mesmo contentamento
tanto os presentes e dádivas como os golpes e até marretadas da vida.
Escrever é transgredir! A escrita, para mim, é uma espécie de divã, um

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lugar da permissão para transgredir a mim mesmo. E, como disse certa
vez em uma aula meu mestre e amigo Gabriel Giannattasio: o que é a
transgressão senão a transgressão de si?
Ora, transgredir o outro é uma prática comum, corriqueira e, de certo
modo, confortável. O desconforto gerado pela transgressão deve ir além
daquele que o outro pode sentir, mas o que eu me permito sofrer ao
transgredir a mim mesmo. Sem desconforto e dor, não há crescimento.
Transgredir a si mesmo implica em escancarar as portas do eu, retirar
todas as máscaras (ou as que são possíveis de retirar, até para nós
mesmos), desfazer-se de toda e qualquer postura cênica e ser, assim,
franco consigo mesmo, dando respostas honestas a perguntas
honestas, parafraseando Francis Schaeffer.
É colocar-se sob suspeita constante, suprimindo o medo paralisante
frente aos possíveis resultados da suspeita. Esses últimos anos têm
sido tempo em que me tenho colocado sob suspeita, e questionado
muitas de minhas motivações, escolhas, sentimentos, pensamentos,
posturas. Até que ponto posso afirmar que sou aquilo que tenho
tentado demonstrar/provar ser, a mim mesmo e aos outros? O quanto
de dissimulação há em minhas palavras? Quais são as motivações
escondidas por trás deste ou daquele modo de agir/pensar?
Começo a perceber que minha pretensa transgressão vai muito além
de ser honesto, ao ponto de admitir, sem reservas, quem sou. É preciso
também encarar-se de frente. Trata-se de uma luta em frente ao
espelho, todos os dias. E uma luta para não terminar como Narciso:
sozinho e emocionalmente entorpecido perante a própria imagem...
(...) Percebo, enfim, que transgredir a si mesmo passa pela desconfiança
do óbvio, do dado, do ponto pacífico; é mergulhar profundamente na
realidade de quem somos, por mais penosa e desagradável que seja.
Este também é um (pretensioso, talvez) convite permanente que farei
ao leitor ao longo deste livro’.
(Fonte: Menezes, 2018, pp. 26-28)

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Segunda recomendação: não desprezar. Exoutheneo é o termo grego
aqui utilizado, que insta a não tratar com desdém, com desprezo, nem
ridicularizar ou rejeitar desqualificando. No texto ele se refere à profecia
ou à pregação (5:20). Considere que cada recomendação está ligada à
anterior: não desprezar é o ato conseguinte de examinar. Quantas vezes
não desprezamos sem provar? Quantas vezes não provamos e, logo
em seguida, desprezamos? Mas Paulo diz: antes prove e não despreze
logo de cara. É possível julgar, fazer a crítica devida, apropriar-se do que
for possível, sem desprezo nem desconsideração ao outro. O Espírito
pode estar realizando seu trabalho naquela pessoa, mesmo que eu
não concorde com nada do que ela diz, ou com sua forma. Muita gente
desempenha seu papel de modo sincero e bem-intencionado. E Deus
continua utilizando quem Ele quer e como quer. Então, não pense que
você é “a nata” de Deus. Porque Deus escolhe os que não são, e fala
pelos meios menos convencionais.

Texto de apoio
Mais uma vez, a sabedoria paulina nos é tremendamente útil nesta
reflexão:
A mensagem da cruz é loucura para os que se encaminham para a
destruição, mas para nós que estamos sendo salvos ela é o poder
de Deus. Como dizem as Escrituras: “Destruirei a sabedoria dos
sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes”. Diante disso,
onde ficam os sábios, os eruditos e os argumentadores desta era?
Deus fez a sabedoria deste mundo parecer loucura. Visto que Deus,
em sua sabedoria, providenciou que o mundo não o conhecesse
por meio de sabedoria humana, usou a loucura de nossa pregação
para salvar os que creem. Pois os judeus pedem sinais, e os
gentios buscam sabedoria. Assim, quando pregamos que o Cristo
foi crucificado, os judeus se ofendem, e os gentios dizem que é
tolice. Mas, para os que foram chamados para a salvação, tanto

18 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


judeus como gentios, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria
de Deus. Pois a “loucura” de Deus é mais sábia que a sabedoria
humana, e a “fraqueza” de Deus é mais forte que a força humana.
Lembrem-se, irmãos, de que poucos de vocês eram sábios aos
olhos do mundo ou poderosos ou ricos quando foram chamados.
Pelo contrário, Deus escolheu as coisas que o mundo considera
loucura para envergonhar os sábios, assim como escolheu as
coisas fracas para envergonhar os poderosos. Deus escolheu
coisas desprezadas pelo mundo, tidas como insignificantes, e as
usou para reduzir a nada aquilo que o mundo considera importante.
Portanto, ninguém jamais se orgulhe na presença de Deus. Foi por
iniciativa de Deus que vocês estão em Cristo Jesus, que se tornou
a sabedoria de Deus em nosso favor, nos declarou justos diante
de Deus, nos santificou e nos libertou do pecado. Portanto, como
dizem as Escrituras: “Quem quiser orgulhar-se, orgulhe-se somente
no Senhor”. (1Co 1:18-31, NVT – grifos meus)

Terceira recomendação: preservar o bom. O “bom” aqui é kalos, ou o que


é próprio, bonito, valioso. O que vale a pena ser preservado? Segundo que
critério? Paulo não responde a essas perguntas. Considerando, porém, a
quarta recomendação (que veremos a seguir), o bom aqui é resultado de
uma decisão, baseada no discernimento, no bom senso, no ouvido atento
ao Espírito, na sensibilidade à luz da Palavra. Paulo está sendo, portanto,
prudente: antes ele disse “não despreze”, e agora está dizendo, grosso
modo, para que não aceitemos tudo sem critérios, desleixadamente. A
aceitação acrítica é também uma forma sutil de desprezo, como quando
alguém te diz algo importante e você responde com um desdenhoso “tá
bom” – que, no fundo, quer dizer “não estou nem aí para isso”! O teólogo
que escuta mais do que fala será capaz de ser rigoroso e terno, sensível
e criterioso, tudo ao mesmo tempo numa atitude própria de quem não
separa o coração do ato de pensar, tornando-se o que C. S. Lewis chamou
de “homem sem peito”.
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 19
Homens sem peito
Recordando disse Lewis em A abolição do homem: “Numa batalha,
não são os silogismos que vão manter os relutantes nervos e
músculos em seus postos na terceira hora de bombardeio. O
mais rude sentimentalismo... em relação a uma bandeira, país
ou regimento será bem mais útil” (Lewis, 2005, p. 22). Para
Lewis, além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais” (passionais),
precisamos de “homens de peito” (íntegros, magnânimos na
atitude, no sentimento), pois o peito é o elemento intermediário
que transforma o homem em homem (e a mulher em mulher,
para utilizar a linguagem inclusiva), enquanto, “pelo intelecto ele
é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal” (Lewis,
2005, p. 23). O que tudo isso me leva a pensar? As “ideias boas” e
bem articuladas, em si, podem convencer, mas não transformam,
não geram “homens de peito”, na acepção de Lewis, no máximo,
homens que, para fins mais “sublimes”, correm o risco de ignorar
a parte do meio, pois, como reitera ele (ora se referindo a certos
racionalistas de sua época), “não é o excesso de pensamento
que os caracteriza, mas uma carência de emoções férteis e
generosas. Suas cabeças não são maiores que as comuns: é a
atrofia do peito logo abaixo que faz com que pareçam assim”
(Lewis, 2005, p. 23).

Quarta recomendação: não apague o Espírito. Apagar aqui é sbennumi,


que também significa “extinguir” ou “suprimir”. Como alguém pode
extinguir o Espírito de Deus? Não podemos extingui-lo da vida. Mas
podemos extingui-lo de nós mesmos, calando-lhe a voz, ignorando a
direção (ou caminhando na contramão) do vento. Já disse que toda boa
teologia começa antes com o ouvir que com o falar, e na prática de ouvir
a oração é indispensável. Karl Barth (2003, p. 101) disse que a oração é
“o primeiro e fundamental ato do trabalho teológico”. Não se trata apenas
20 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
de dobrar os joelhos (embora Barth também diga que quem não dobra os
joelhos, não pode se levantar), mas de deixar com que Deus dobre nosso
espírito, envergue nossa vida, realize seu trabalho em nós, subtraindo-
nos de nós mesmos, e fazendo sua luz brilhar ali no espaço em que só
resta Ele: falando, agindo, nos interpelando.

Espera-se que essa abertura ao Espírito se converta numa abertura


ao outro, ao diferente e ao novo. De acordo com João Batista Libanio,
normalmente nossa rejeição ao novo tem a ver com uma insegurança
e um medo inconscientes. Onde atua o Espírito, porém, ali há liberdade
(2Co 3:17) e, como expressa Libanio, “a abertura para o novo só é
possível na liberdade”. Ele também defende a ideia de que essa abertura
ou fechamento ao diferente também se configura como abertura ou
fechamento diante de Deus, “que se manifesta ao ser humano como
diferente, como o outro, como totalmente outro”. Em resumo: toda “boa”
teologia começa com uma escuta atenta, em atitude de oração; mas
também tem a ver com uma abertura, prontidão e suscetibilidade crítica
para receber o diferente.

Jean-François Lyotard em The inhuman, diz que “estar preparado para


receber aquilo que a mente não está preparada para pensar é o que
merece ser chamado de pensamento” (Lyotard, 1988, p. 73). E também
afirma que todo pensamento (do impensável) envolve dor. Explicando:
estamos acostumados com o “já-pensado” e é mais habitual e confortável
lidar com esse conjunto de saberes e práticas que estão conformados ao
“já-pensado” (Lyotard, 1988, p. 20). No entanto, não há nenhum desafio
em pensar o que já foi pensado – na verdade, é até um contrassenso ao
discernimento sobre o qual venho falando. O desafio é receber e lidar
com o não-pensado. E o não-pensado dói, porque muitas vezes entra em
choque com o que já havíamos pensado antes – ou alguém em nosso
lugar. Por isso, retornando a um argumento anterior, pensar o já-pensado
é pensar como – conforme sempre pensamos, aprendemos e aceitamos;
já pensar o não-pensado é pensar com, isto é, pensar junto, ao mesmo
tempo, não apenas aceitando, mas também ajudando a construir esse
novo jeito de pensar.
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 21
A última recomendação de Paulo não é menos importante: abster-se
do mal. De “toda forma” de mal (ponēros, i.e., o ato mal, a malevolência,
a maldade pura e simples). Jogar fora tudo o que tenha essa feição
malevolente. É discernir o mal e afastar-se dele. Pois o pensamento que
se reveste do mal é o pensamento que fere todas as recomendações
anteriores. E a melhor forma de abstenção do mal, como Jesus nos
ensinou, é usar e oferecer o bem como moeda de troca. E não apenas
pregar o bem, mas personificá-lo. Nisso consiste a vocação da teologia:
que ela seja um pensar no qual também se imponha um fazer. E que esse
fazer gere frutos, e que esses frutos sejam dignos de arrependimento.

Exercício de Fixação
Para recapitular o chamado ao discernimento feito por Paulo aos
Tessalonicenses, quais são as recomendações feitas pelo apóstolo
em 1Ts 5:19-22?

a) Examinar tudo, rejeitar o que é fraco, preservar o que é bom, não


apagar o Espírito, abster-se do que é diferente.

b) Examinar tudo, não desprezar, preservar o que é bom, não apagar


o Espírito, abster-se do mal.

c) Examinar o que te interessa, não desprezar, preservar o que é


bom, não apagar o Espírito, fugir do mal.

d) Examinar tudo, não desprezar, preservar o que é bom, não apagar


o Espírito, abster-se do que é diferente.

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3. O saber e a complexidade
Vocês falam como especialistas. Até parece que, quando morrerem não
sobrará ninguém para ensinar outros a viver. (Jó 12:1, TAM)

Nesse tópico falarei sobre os desafios que a complexidade da vida traz ao


saber, e o transpassar desses limites por quem acha que o saber (teológico)
tem resposta para tudo, pode sistematizar tudo, e até mesmo possui
presciência sobre a vida, sobretudo a dos outros. Para tanto, utilizarei
como estudo de caso aqui Jó e seus “amigos”, aos quais chamarei aqui
de “doutores destino” – em clara alusão ao personagem “Doutor Destino”
das histórias em quadrinho da Marvel, cuja característica principal é o
orgulho exacerbado. Não fica difícil, portanto, identificar o alvo principal
de minhas preocupações aqui: o chamado “orgulho intelectual”.

O livro de Jó é como uma grande peça teatral, com personagens marcantes


assumindo falas em diferentes atos. Não se trata de um livro doutrinário
ou sistemático, mas de uma poderosa e inquietante parábola sobre a vida
e o sofrimento humanos. O enredo conhecemos bem: Jó, um homem
íntegro e fiel a Deus, tinha uma vida próspera e era um dos homens mais
importantes de todo o Oriente. Indo prestar contas ao Eterno, Satanás
coloca a integridade e fidelidade de Jó em cheque, dizendo que ele se
portava assim porque tudo ia bem com ele. “Retire tudo o que ele tem, e
veremos onde vai parar essa fidelidade!”. O Eterno, então, permitiu que
tudo lhe fosse retirado, porém, sem nenhuma consequência fatal.

E assim se fez, tudo na vida de Jó entrou em colapso como num efeito


cascata: primeiro foram os bens materiais, depois a família e, por fim, a
saúde de Jó. E nada de Jó pecar. Vieram seus amigos (Elifaz, Bildade e
Zofar), que permaneceram a seu lado em silêncio, velando-lhe o profundo
sofrimento durante setes dias e sete noites. Ao final daquele tempo, Jó,
não suportando mais a dor e miséria absurdas em que caíra, quebrou o
silêncio e começou a amaldiçoar o dia de seu nascimento, questionar a
razão de ser de sua existência e a despejar toda a sua revolta em Deus,
colocando em pauta a questão do “sofrimento do justo”, tema recorrente
nos livros de sabedoria do AT.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 23


Sua indagação central foi: por que Deus permitiu que eu, um homem reto
e bom, viesse a sofrer tamanho revés, tamanha miséria e a experimentar
tão grande amargura na vida, a ponto de desejar a própria morte? Onde
foi que eu errei para que a morte invadisse minha vida dessa maneira?
Como o infortúnio lhe atingiu de modo certeiro e avassalador, Jó não
tinha em quem descontar, de modo que o alvo mais natural nesse caso
era o Eterno, a quem ele servia e era fiel. “Por que, Deus!? Por que eu?
Por que dessa forma tão cruel?”. Quando o infortúnio e as más notícias
batem à porta, as respostas tendem a sair logo correndo pela janela.
A sensação de solidão e abandono é recorrente. E quem mais poderia
suportar-nos nessa hora senão o Eterno?

Os “amigos”, porém, não entenderam assim, e logo também saíram das


sombras e do silêncio, bancando os paladinos de Deus, mas de fato
desempenhando o papel de “advogados do Diabo”. Sabe aquele grupo
que liga as antenas logo que vê alguém falando de Deus e não perde a
oportunidade de pular no pescoço de quem quer que possa estar dizendo
algo que venha “machucar Deus” (ou o Deus de sua ortodoxia ou de sua
teologia)? Esses foram os “amigos” de Jó.

Eles foram capazes de ficar em silêncio compreensivo só enquanto o


amigo igualmente permanecera em silêncio, como se sua dor fosse
menos “doída” e (para eles) menos escandalosa porque silente. Mas
quando ele passou a gritar e a lamentar, eles saíram da condição de
amigos para a de juízes e “doutores destino”, sabedores do que Deus
pensa e porque as coisas acontecem como acontecem, implementando
uma lógica própria: a de causa e efeito.

A teologia dos amigos de Jó, como bem notou Caio Fábio em seu livro O
enigma da graça (2002), é a “teologia moral de causa e efeito”. Para eles,
a vida de pessoas verdadeiramente inocentes e íntegras não pode acabar
em desgraça, porque elas não semeiam isso; quem semeia bondade
só colherá bondade. Para eles, somente “aqueles que cultivam o mal e
semeiam a desgraça colhem exatamente isso”, como disse Elifaz (Jó
4:8). Segue-se que o problema de Jó e a situação em que se encontrava
24 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
tinha uma causa ou razão certa: é porque ele estava em pecado, e é
porque não era justo nem íntegro como reivindicava ser.

De fato, a sabedoria bíblica atesta que “não há uma única pessoa perfeita
no mundo; nenhuma que seja pura e sem pecado” (Ec 7:20). A retidão de
Jó indicava um caminho de obediência, mas não uma vida sem pecado.
Inteiramente diferente, porém, é dizer que ele caiu nessa situação porque
era pecador; se assim fosse, como explicar a situação de tantas pessoas
que vivem em pecado, mas não sofrem o mesmo tipo de consequência?
O problema do sofrimento do justo é, portanto, consentâneo ao da
prosperidade do ímpio.

De mais a mais, com um raciocínio tão simplista baseado na lei do


“toma lá, dá cá” (alguém só recebe aquilo que realmente merece), os
conselhos não poderiam ser menos molestos do que os que foram por
eles apresentados, como os de Zofar a Jó: é o seguinte, você pecou,
fez besteira e isso é um fato, do contrário não poderia estar na situação
em que está. Então, abra o coração para Deus e peça ajuda; se você
abandonar o mal, limpar das mãos o pecado, “você poderá encarar o
mundo sem sentir vergonha e andar seguro sem medo nem culpa. Você
esquecerá das suas angústias: elas não passarão de vagas lembranças”.
E mais: “o sol vai raiar e brilhar para você, e toda sombra será dispersa
ao romper da manhã” (Jó 11:13-16). Simples assim. Praticamente uma
fórmula mágica!

Ora, a resposta de Jó não poderia ser outra e provavelmente ocorreria


a qualquer ser humano sensível, e se revela no sentimento de traição e
desamparo: “Alguém desesperado pelos amigos deveria ser amparado,
mesmo que desistisse de confiar no Todo-poderoso ...). Vocês apontam
o que há de errado em minha vida, mas respondem à minha angústia
com conversa fiada (Jó 6:14, 26).

A resposta honesta de Jó me lembra das considerações de C. S. Lewis em


seu livro A anatomia de uma dor, escrito por ele em seu período de luto
pela morte de sua esposa. Ali Lewis revela que em sua busca por Deus
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 25
em meio a luto, tudo o que conseguiu encontrar foi “uma porta fechada
na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de
dentro. Depois disso, silêncio” (Lewis, 2006, p. 31). Também assevera que
a dor não diminui nem o tormento vai embora com consolos molestos,
por mais bem-intencionados que sejam, nem com “evasivas”, discursos
com ornamentação rebuscada ou explanações teológicas de toda sorte.
Em sua experiência, o luto não é menor porque alguém diz que sua
esposa “está melhor porque está com Deus”. E conclui acertadamente
que, “quando você está lidando com Deus, é possível cometer toda
sorte de equívocos” (Lewis, 2006, p. 66). Jó podia (e tinha, de certo
modo, permissão para) estar equivocado porque ele falava de um lugar
equívoco, o lugar da dor excruciante. Como cobrar bom senso e “doutrina
reta” de alguém nessa situação? Mas o equívoco dos “amigos” foi maior,
pois falavam de Deus priorizando a retidão da letra e não a singeleza do
coração. Se o coração for duro, insensível e indolente, a letra, mesmo
quando reta, será letra morta e também, como diria Paulo, letra que mata.

Não é à toa que Jesus não veio chamar gente (que se acha) justa e reta, mas
pecadores ao arrependimento. Usando a metáfora de Brennan Manning
(2005, p. 73-74), ele não veio para a elite espiritual e teológica, o pessoal
da “auréola apertada”, mas para os maltrapilhos, isto é, a turma da “auréola
torta”. Só quem passa pela grande miséria – ou que ao menos reconhece
sua miséria – pode também passar pelo grande arrependimento.

Exercício de aplicação
De acordo com o que foi lido sobre o saber e a complexidade, qual
é a virtude de Jó que é fundamental para nossa vida intelectual e se
relaciona com os objetivos de nossa unidade?
a) Retidão
b) Sabedoria
c) Superação
d) Honestidade

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Para concluir, uma oração
Gostaria de terminar minha reflexão sobre esses dois casos orando
assim:

Que Deus me ensine a fazer teologia a partir do lugar da


incompletude, da falta e, por isso, do arrependimento. Que Ele me
livre dos consoladores molestos, sim! Mas que me livre, sobretudo,
de me tornar um; que afaste de mim o orgulho intelectual. Pois
não há risco mais óbvio que o de nos tornamos apenas mais uma
variação ou versão sofisticada daquilo que mais abominamos.

Por essa razão, ainda fico com o bom senso advindo da Palavra
de Deus, que me instrui aqui e acolá a evitar a frivolidade dos
caminhos fáceis e a leviandade das respostas prontas, cujo convite
é o do discernimento, da coragem e do enfrentamento da vida e
suas intempéries, com confiança e esperança no Deus de amor,
sabedor de que Ele caminha com a gente, desde as montanhas
mais altas aos vales mais escuros; das avenidas iluminadas aos
becos da existência, sem que saibamos exatamente o “como” nem
o “porquê”.

Assim, que o orgulho intelectual, o péssimo hábito religioso da


literalidade e do pré-juízo, bem como o seu famigerado gosto por
repetições, não mais nos impeçam de encontrar Deus no lugar
improvável, no aparentemente escuso e no inesperado. Pois
teologia e fé que não se deixam surpreender por Deus são coisas
tremendamente enfadonhas e pouco frutíferas; de novo, meras
repetições.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 27


Referências
BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2009.

BARTH, Karl. Introdução à teologia evangélica. 8ª ed. São Leopoldo:


Sinodal, 2003.

KANT, Immanuel. Perpetual peace and other essays. Indianapolis:


Hackett, 1983.

LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes,


2005.

LYOTARD, François. The inhuman. Reflections on time. Cambridge: Polity


Press, 1988.

MENEZES, Jonathan. Humanos, graças a Deus! Em busca de uma


espiritualidade encarnada. 2ª ed. São Paulo: Recriar, 2018.

NOUWEN, Henri. O sofrimento que cura. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2002.

PETERSON, Eugene. A Mensagem. A Bíblia em linguagem contemporânea.


São Paulo: Vida, 2011.

STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. Como ser um cristão


contemporâneo. São Paulo: ABU Editora, 1998.

WRIGHT, N. T. Paulo: uma biografia. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2018.

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UNIDADE II – Caminhos e descaminhos do saber (parte 2)
Introdução
Na primeira unidade, tratei de uma questão delicada e importante: a ética
da vida intelectual, principalmente aplicada ao contexto de formação
de novos/as teólogos e teólogas cristãos/cristãs. Utilizei como mote
principal o famoso dito atribuído ao filósofo Sócrates “só sei que nada
sei”, tanto para dizer que esta é uma assunção necessária, quanto
para contestar a apropriação apenas formal, no contexto acadêmico,
da sabedoria nela explícita. Lidei com os temas da arrogância, orgulho
intelectual e a disputa por poder como os principais descaminhos do
saber e da vida intelectual.

Para fechar essa primeira parte do curso, uma introdução à vida


intelectual, nesta unidade defenderei que a humanização (e humilhação)
do intelectual torna-se uma via mais que necessária em tempos de
egotismo exacerbado, violência simbólica e exclusão. Através dos dois
últimos pontos que a seguir apresento, desejo fomentar a construção e
vivência de uma teologia humilhada, isto é, o tipo de teologia que emerge
do seguimento radical de Jesus, o que pressupõe o esvaziamento do
anseio por poder para tentar permanecer na casa do amor. Que o Senhor
nos guie em sabedoria, e mantenha nossas mentes e ouvidos abertos
para aprender com sua Palavra.

Objetivos da unidade
1. Compreender os problemas que o que chamo de “péssimo hábito da
literalidade e do prejuízo” pode acarretar para a vida intelectual;
2. Identificar benefícios do que Paulo chama de “renovação do
entendimento” ou metanoia para a vida cristã e a vida intelectual;
3. Reconhecer o lugar e a importância da consciência no exercício da fé
e para a convivência humana;
4. Desenvolver, ao menos inicialmente, a coragem de ser e de saber em parte.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 29


1. O péssimo hábito da literalidade e do prejuízo
Um dos grandes descaminhos do saber se encontra no que chamo aqui
de “péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo”. Pois, como já insisti
anteriormente, tomar as coisas como dadas, tal como emergem na
superfície, pode comprometer o juízo e a interpretação que oferecemos
sobre as situações, os objetos de estudo, e as pessoas. O desafio aqui é
desconfiar do dito e de meus pressupostos inicias sobre ele; é indagar sobre
os possíveis “não-ditos” ou “mal-ditos” subjacentes nos ditos. Em suma,
nem tudo é sempre tão óbvio quanto pode parecer. Ilustro com uma história.

Certa vez, um pastor conhecido cantou a música “Epitáfio”, dos Titãs, junto
com sua banda em um dos cultos de sua igreja, e tomou esta decisão
pois a letra desta música tinha muito a ver com a reflexão endereçada
por um outro pastor convidado para trazer a mensagem pregada naquele
domingo. Em seguida, publicou um trecho em vídeo daquele momento
em sua conta no Instagram, e (como já era de se esperar) foi execrado por
uma massa de “irmãos” (digo com certa relutância, em relação aqueles
que julgam e condenam em nome da fé), não só por cantar uma música
“secular” num culto cristão, mas por ser esta uma canção cujo refrão diz:
“O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. Sem entrar em
mais detalhes ou no mérito (que não vêm ao caso), duas questões me
preocupam nesse exemplo, sobre as quais quero comentar aqui.

A primeira questão nasce do mui antigo dualismo sagrado versus secular.

O pressuposto, nesse caso, é: existe música “do mundo” e existe “música


de Deus”. Na igreja a gente só pode ouvir e cantar música de Deus (isto
é, gospel), nunca do mundo. Escuto esse discurso sectário desde que me
conheço como cristão, mas para mim ele nunca fez sentido (falo apenas
por mim aqui, que fique bem claro!). Explico. Porque tem música que se
diz ser “pra Deus”, mas que simplesmente não consigo cantar (ou sequer
suporto ouvir), porque fere meus ouvidos de tão ruim no conjunto letra,
teologia e a melodia. Pode até comover, mas não muda um centímetro da
vida; fala de Deus, mas só para massagear o ego.

30 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Além disso, não me fazem pensar, não mexem com minhas entranhas, não
me instam a olhar para o próximo, ao micro e macro ambientes que me
cercam, a relacionar a Palavra com as questões do cotidiano, a adorar a
Deus e celebrar a vida em comum-unidade, até porque centram-se quase
inteiramente no indivíduo e seus problemas particulares. Como diz a
canção “É proibido pensar”, de João Alexandre, “são sempre variações do
mesmo tema, meras repetições” – e me pergunto até quando insistiremos
em repetir e variar, em segregar e não pensar, em vociferar e não dialogar?
Certas coisas parecem ser insuperáveis no meio religioso em que vivemos.

Em contrapartida, tem tanta música feita por gente “do mundo” que consegue
fazer o que falta a muitas canções cristãs: cantar as belezas divinas, sem
necessariamente falar o nome de Deus, e retratar os dramas da vida humana
e os gemidos da criação. Para citar só um exemplo dentre tantos: “Sol de
primavera”, de Beto Guedes, é uma canção “do mundo” que pode ser entoada
como hino a Deus, pois fala de dor, fraternidade e esperança, sobre semear
a boa nova, sobre andar a segunda milha com quem chora, sobre aprender
a viver e ser melhor. (É óbvio que tem muita música cristã que também faz
isso com competência, mas esse tópico não é sobre elas).

Pensando melhor (e aqui a/o convido a refletir também): eu sou de Deus


e eu faço parte do mundo; o mundo é de Deus (embora boa parte dele
seja tomado pelo maligno), e todas as coisas boas nele existentes são
fruto de Sua Graça; atributos invisíveis, como disse Paulo; imagem e
semelhança do Criador. Se eu respiro, ando, vivo, canto, choro, sofro e me
alegro dando ações de graças “em tudo”, não tenho razão alguma para
perder tempo com dualismos religiosos infantis. Logo, não existe música
de Deus versus música do mundo; existe música boa versus música
ruim, e para todos os gostos. Portanto, discernir é preciso; segregar não
é preciso. Agora, se não gosta ou não aprova; se para você esse tipo de
fazer não convém a sua forma de fé (o que deve ser respeitado, sem
dúvidas), ao menos não julgue nem discrimine quem vivencia sua fé
com liberdade e gratidão – o que não tem nada a ver com “do jeito que
bem entende ou quer” (se tem dúvidas sobre o que liberdade e gratidão
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 31
significam biblicamente, releia o que escrevi sobre “essa tal liberdade”
na unidade 1. O que digo aqui não deve ser colocado em choque com
o que disse lá). Somente Deus conhece e examina o coração, lugar por
excelência do louvor.

Exercício de aplicação
Em 1João 3.30, lemos: “E, ainda que a consciência nos condene,
Deus é maior que nossa consciência e sabe todas as coisas”. É
sobre esse texto que reflete o podcast acima. Diante do que foi
discutido até aqui e desse podcast, responda: “Que frutos o
exercício da honestidade, um exame do coração e da consciência,
pode trazer para a vida intelectual”?

Acesse o AVA e ouça o Podcast para fazer o exercício!

A segunda (e central) questão diz respeito ao péssimo hábito da


literalidade e do pré-juízo.

A música “Epitáfio”, dos Titãs, parece-me ser apropriada para uma


reflexão sobre essa vida que vivemos. “Epitáfio” nada mais é que aquela
inscrição da lapide do túmulo no cemitério. Geralmente ali se escreve
aquilo que a pessoa foi, uma qualidade dela. Exemplo: “Aline, esposa
fiel, mãe dedicada, mulher irrepreensível”. A música, porém, inverte
isso e apresenta uma lista de coisas que a pessoa queria ter feito, mas
não fez. Em suma, é como se ela dissesse: “Eu queria e devia ter vivido
melhor, curtido intensamente os momentos singulares da vida, mas
não consegui”. Fala de ideais de vida possíveis, mas de um lugar de
impossibilidade: o instante da morte. Embora tratemos a morte com
extrema recusa, estranhamento e medo muitas vezes, ela tem uma
função pedagógica: lembrar-nos sobre como temos vivido e que valor
damos à vida e às pessoas a quem mais amamos. A poesia dos Titãs,
porém, chama atenção a dois problemas pelo menos (um prático e outro
teórico) – que, por sua vez, não anulam a meu ver sua beleza poética e
32 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
sua utilidade para a reflexão, nem a torna necessariamente “proibida” de
se cantar na igreja. Primeiro, mostra que, nos últimos instantes de vida,
quando não há mais nada a ser feito, alguém lamenta o que poderia ter
sido feito, mas não foi ou não fez. Segundo, afirma que “o acaso vai me
proteger enquanto eu andar distraído”.

Aqui chegamos ao coração da questão: o acaso – uma palavra que diz


respeito a coisas que acontecem sem causa, sem razão aparente –
ao que me parece, não escolhe a quem vai atingir, nem tampouco tem
“protegidos”. Se tudo depender do acaso, então minha vida está nas
mãos daquilo que há de mais incerto e implacável. O que pouca gente
sabe, porém, é que o acaso é considerado biblicamente como parte
integrante da existência, e não um mal a ser extinto (nem poderia). Senão,
examinemos brevemente o famoso versículo do livro de Eclesiastes em
que a palavra aparece:

Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem


sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na
guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem
sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois
o tempo e o acaso afetam a todos. (Ec 9:11, NVI, grifos meus)

O autor aqui desvela uma verdade inconveniente: nem sempre o que


era para acontecer, segundo uma ordem esperada de coisas, acontece.
O honesto nem sempre “vence na vida”; atos de bondade nem sempre
são recompensados do mesmo modo; ou ainda, como se diz em outra
tradução, “as pessoas mais capazes nem sempre alcançam altas
posições. Tudo depende da sorte e da ocasião” (NTLH), ou do tempo e do
acaso. A palavra em inglês para acaso é chance, e diz respeito a ausência
de controle e presciência sobre tudo o que de bom ou de ruim acontece
debaixo do sol. “Cedo ou tarde”, afirma-se na tradução A Mensagem
(TAM), “a má sorte atinge a todos”. Isso mesmo: todos! Mesmo os que
creem na proteção divina, não estão blindados (isto é, completamente
protegidos) contra ele. O acaso, portanto, pode não ter protegidos, como
sugere o autor da canção, mas ninguém passa por esta vida sem ser
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 33
afetado/a por ele. É o que diz a Bíblia no livro de Eclesiastes. Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça!

Texto de apoio
Uma mudança aleatória nos padrões do tempo provoca muita
ou pouca chuva sobre determinada região agrícola, destruindo
a safra de um ano. Um motorista bêbado joga seu carro na
contramão e colide com o Ford verde a alguns metros de distância
do Volkswagen vermelho. O motor do avião do voo 205, em vez
daquele do voo 209, entra em pane, infligindo uma tragédia a
um grupo de famílias e não a outro. Não há qualquer mensagem
em tudo isso. Não há razão especial para que uns e não outros
sucumbam à desgraça. Esses eventos não refletem escolhas de
Deus. Eles ocorrem ao acaso, e a casualidade é outro nome para
o caos, naqueles cantos do universo onde a luz criativa de Deus
ainda não penetrou. E o caos é mau. Não que seja errado ou
malévolo; não obstante, ele é mau, por provocar tragédias ao acaso
e, assim, impedir as pessoas de crerem na bondade de Deus. (...)
O caos residual, a sorte e o azar, coisas que acontecem sem razão,
continuarão conosco – o tipo de mal que Milton Steinberg chamou
de “andaimes ainda não removidos do edifício da criatividade de
Deus”. Nesse caso, teremos simplesmente de aprender a conviver
com ele, sustentados e confortados pelo conhecimento de que o
terremoto e o acidente, como o assassinato e o roubo, não são da
vontade de Deus, mas representam aquele aspecto da realidade
que, a despeito dela, subsiste, e que angustia e entristece a Deus
da mesma forma que nos angustia e entristece. (Kushner, 2008, p.
71, 73, grifos meus)

O habito da literalidade é “péssimo” porque não nos permite questionar,


não nos capacita a lidar com os paradoxos, a ponderar o imponderável,
não admite “contradições” de toda sorte – embora as Escrituras mesmas

34 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


coloquem essas contradições bem diante dos nossos olhos, só não vê
quem não quer. Então, julgamos quem canta a música dos Titãs como
“traição à fé” (resta saber de que fé estamos falando), sem saber o
que cada um carrega no coração quando canta, e como se apropria da
canção. Os detratores do pastor e sua comunidade não estiveram no
culto naquele dia, e não poderiam ter a dimensão do significado que
aquela canção teve para aquelas pessoas ali reunidas. Não obstante,
como é usual no meio religioso, deixaram-se levar pelas aparências,
optaram pelo caminho da segregação, do ódio e do julgamento típicos de
uma certa religião. Afinal, sempre é mais fácil julgar do que compreender,
condenar do que discernir, empregar fórmulas mágicas do que enfrentar
a complexidade da vida de peito aberto e com a franqueza de às vezes
poder dizer “eu não sei”. Porque é mais honesto.

2. Transformando inteligências e não inflando egos


“Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo, mas
deixem que Deus os transforme por meio de uma mudança em seu
modo de pensar” (Rm 12:2a, NVT).

O caminho da alma dividida

Talvez não haja sentimento humano pior que o de estar dividido: entre
mundos, desejos, valores, amores, escolhas e estilos de vida opostos
ou conflitantes. A sensação é a de violação interior: somos violados
internamente todas as vezes em que não conseguimos ser quem somos
e, simultaneamente, agradar a todas essas forças que o tempo todo
parecem guerrear dentro de nós, ora nos empurrando para um lado, ora
puxando para outro. É uma espécie de escravidão, porque são essas
forças e não nós mesmos (muito menos Deus) que exercem o controle
sobre nossas vidas. 

O exemplo neotestamentário clássico é o de Paulo, em Romanos 7,


quando apóstolo narrou seu drama interior entre desejar fazer um tipo
de coisa – por entender, pela lei de Deus, que era bom e correto – e ver-
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 35
se seguindo a via completamente oposta, pela força da “lei do pecado”
que habita em seus membros. “Quero fazer o bem, mas não o faço. Não
quero fazer o que é errado, mas, ainda assim, o faço” (Rm 7:9, NVT). E,
como ele deixa bem claro naquele texto, a força para vencer (ainda que
não de uma vez por todas) esse conflito não reside nele mesmo, mas na
graça de Jesus Cristo.

Ou seja, ao mesmo tempo em que aprendemos que estar dividido faz


parte da experiência humana – pois é fruto da angústia de querer e não
poder, ou de não querer, e ainda sim fazer –, também sabemos que isso é
tremendamente destrutivo, pois nos faz escravos do pecado e de nosso
ego (o que dá no mesmo). O ser dividido é um ser adoecido, carente de
seu brilho humano original. 

No próprio texto de Romanos 7 Paulo relembra o nome desse mal:


“cobiça”. A cobiça é o que me faz desejar algo que está além de minhas
possibilidades; e, quando ela toma conta dos meus membros, é também o
que interdita o bem que eu quero fazer, mas não consigo. Ela normalmente
começa com um pensamento (falo como mestre da cobiça!), um simples
e aparentemente inócuo pensamento. Na medida que vai tomando forma,
esse pensamento vai chamando outros pensamentos e corporificando
um desejo, que logo toma conta do coração (o centro da vontade); e,
quando ocupa o coração, se enraíza e faz morada ali, se espalhando para
os membros do corpo e demandando atitudes concretas de satisfação.
Nesse âmbito, a lei de Deus já não tem poder algum a não ser o de aguçar
a concupiscência (o desejo pecaminoso).  
A cobiça é, portanto, a mãe e a mestra da alma dividida!

Saiba mais!
A cobiça, a alma dividida e a identificação com o pensamento estão,
segundo Eckhart Tolle, na origem do ego, que é uma ilusão a respeito de
quem somos, porque se constitui basicamente da identificação com as
formas, o que inclui o que pensamos ser bom, o que pensamos sobre nós,
nossos desejos e o que pensamos ser a realidade. Ele conta uma história

36 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


que elucida bem esse ponto:
‘O filósofo do século XVII René Descartes,
considerado o fundador da filosofia moderna, deu
expressão a esse erro fundamental com sua máxima
(que considerou a verdade básica): “Penso, logo
existo”. Essa foi a resposta que ele encontrou para
a pergunta: “Há alguma coisa que eu possa saber
com certeza absoluta?” Descartes compreendeu
que o fato de estar sempre pensando estava além
da dúvida, assim igualou o pensamento ao Ser,
isto é: a identidade – o “eu sou” – ao pensamento.
Em vez da verdade suprema, ele havia detectado a
origem do ego, mas não sabia disso.

Passaram-se quase 300 anos antes que outro renomado filósofo francês visse
algo naquela afirmação que Descartes, assim como todo mundo, não havia
percebido. Seu nome era Jean-Paul Sartre. Ele refletiu muito sobre a afirmação
de Descartes “Penso, logo existo” e, de repente, compreendeu algo. Em suas
próprias palavras: “A consciência que afirma ‘eu sou’ não é a consciência que
pensa”. O que ele quis dizer com isso? Quando estamos conscientes de que
estamos pensando, essa consciência não faz parte do pensamento. É uma
dimensão diferente da consciência. E é essa consciência que diz “eu sou”. Se
não houvesse nada além do pensamento em nós, nem sequer saberíamos
que pensamos. Seríamos como alguém que está sonhando e não sabe que
está fazendo isso. Estaríamos identificados com cada pensamento assim
como aquele que sonha está vinculado a cada imagem no sonho. Muitas
pessoas vivem desse jeito, como se andassem nas nuvens, presas a antigos
modelos mentais anormais que recriam continuamente a mesma realidade
de pesadelo. Quando sabemos que estamos sonhando, é porque estamos
despertos no sonho – outra dimensão da consciência se estabeleceu.
A implicação da percepção de Sartre é profunda, mas ele próprio ainda estava
identificado demais com o pensamento para reconhecer o pleno significado
do que descobrira: uma nova dimensão emergente da consciência.’.
(Fonte: Tolle, 2007, p. 53-54)

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 37


A cobiça é aguçada por nossa identificação com o pensamento, como
postulou Eckhart Tolle (2007). Acreditamos que somos o que pensamos,
que o mundo é como pensamos, ou que as coisas deveriam ser como
pensamos que são. Com isso, além de acreditar que o ser é pensamento
(penso, logo existo!), também passamos a acreditar nas, e nos
identificar com as, coisas que passam pelo pensamento – nem todas
elas verdadeiras, nem puras, nem justas, nem honestas ou dignas de
confiança, isto é, as coisas em que de fato deveríamos pensar, segundo
Paulo (Fp 4:8). Além disso, a cobiça inibe a gratidão, que é a virtude que
lhe faz oposição, pois nos faz tratar o que é nosso com desdém e, assim,
desejar e valorizar o que é outro ou do outro. Logo, a cobiça também é a
mãe e a mestra da ingratidão e da ausência de amor próprio.

Exercício de reflexão
O que você normalmente faz quando os pensamentos, sejam eles
cobiçosos ou de qualquer outra natureza, assaltam sua mente?
Escreva aqui uma estratégia pessoal, à luz das reflexões acima, para
lidar com pensamentos e emoções “fora de lugar”, especialmente
em como filtrá-los na relação com outras pessoas.

Inteligências transformadas

Utilizei de propósito os termos “pensamentos” e “emoções” numa


mesma sentença porque, numa compreensão holística do humano e
suas metodo-logias (a lógica de seus métodos ou caminhos, por assim
dizer), razão e emoções andam de mãos dadas, ainda que em grande
parte da filosofia e da teologia modernas tenha se dado mais ênfase
e vazão à primeira do que às segundas. Tenho a impressão de que a
vida acadêmica ainda tende a atrair o pressuposto, que Robert Solomon
chama de “acrítico e provavelmente falso” sobre a filosofia, a teologia e a
natureza humana “de que somos antes de tudo seres conhecedores e só
secundária ou patologicamente criaturas sencientes também” (Solomon,
2011, p. 74). Ou seja, caminhamos em um terreno em que a razão ainda
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é vista como a senhora e mestra, enquanto as emoções seriam como
vassalas ou, no máximo, aprendizes muito contumazes (isso tem alguma
ligação sobre o que falei anteriormente, em conversa com Eckhart Tolle,
sobre ser cativos de nossos pensamentos). Nesse sentido, a pesquisa
de Solomon é muito interessante e importante, porque ele parte do
princípio de que emoção pode envolver a presença e o reconhecimento
de certos sentimentos, mas que “emoção não é sentimento”, nem uma
“ocorrência fisiológica”, tampouco deve ser compreendida em termos
de “comportamento individual apenas”. Emoção é “antes de tudo uma
prática social e política, uma das práticas definitivas de se ter uma vida
decente e apaixonada junto a outras pessoas” (Ibid., p. 77).

O ponto aqui é: não somos, portanto, criaturas unicamente racionais,


mas “temos também emoções”, como completa Solomon em outro
lugar: “Vivemos por meio delas e são elas que conferem sentido a nossas
vidas. O que nos interessa ou fascina, quem amamos, o que nos enfurece,
o que nos mobiliza, o que nos entedia – tudo isso nos define, dota-
nos de personalidade, constitui o que somos” (Solomon, 2015, p. 15).
Inteligências transformadas, para começo de conversa, são as daquelas
pessoas que conseguem fazer o uso de todo o seu ser, e de toda a sua
personalidade, sua história e experiência de vida, de suas emoções
unindo-as ao compasso de suas sinapses cerebrais, no ato reflexivo (sim,
porque a reflexão é, também, uma forma de ação).

Texto de apoio
A metodologia de Ankersmit
Enquanto historiador, você tem de fazer uso de toda a sua
personalidade quando escreve história, sem permitir que qualquer
parte dela seja sacrificada no altar de alguma ilusão científica
desorientada. ‘L’histoire se fait avec des documents’ [a história
se faz por meio de documentos] – de fato, mas também com
historiadores. (Ankersmit, 2005, p. 191)

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 39


A tese de Solomon
Desejo, também, defender a tese de que não somos meras vítimas
passivas de nossas emoções; somos bastante ativos quando as
constituímos e cultivamos. Em outras palavras, não podemos
simplesmente usar nossas emoções como desculpas para nosso
mau comportamento. (“Não pude evitar, estava com raiva.” / “Sinto
muito, só estava com ciúme quando disse aquilo”). Somos nossas
emoções, tanto quanto somos nossos pensamentos e ações. Além
disso, desejo argumentar que emoções não só são inteligentes
como intencionais, em um sentido surpreendentemente forte. São,
às vezes, talvez até com frequência, estratégias para avançar no
mundo. São um meio de motivar, guiar, influenciar e, por vezes,
manipular nossas ações e atitudes dos outros. Desse modo,
somos em grande medida responsáveis por nossas emoções, algo
que geralmente negamos, pela mais interesseira das razões – criar
desculpas para nós. Desejo, portanto, passar uma boa parte do livro
examinando e, até certo ponto, rejeitando as desculpas teóricas com
as quais tentamos nos “safar”, sugerindo, por exemplo, que nossas
emoções são “forças psíquicas internas a nós” ou que “emoções
são essencialmente irracionais”. Compreender verdadeiramente a
natureza de nossas emoções e como expressam e corporificam
nossos mais profundos valores constitui o começo da integridade
emocional. (Solomon, 2015, p. 17)

Em Romanos 12, Paulo deixa claro que a transformação passa, portanto,


pela entrega de nosso ser inteiro a Deus como “sacrifício vivo e santo, do
tipo que Deus considera agradável” (Rm 12:1). O ensinamento presente
nos dois versículos iniciais deste capítulo, para mim, pode assim ser
resumido:

Adoramos a Deus em um corpo. O que fazemos nesse corpo é expressar


louvor a Deus em tudo o que fazemos: (1) de modo inteiro; (2) de modo
consciente; (3) de modo corajoso, a partir do centro (core, coração) de
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quem somos, da vontade de Deus, muitas vezes na contramão do mundo;
(4) de modo mutante – isto é, por meio da renovação, não conservação
(como tende a ser nosso costume), de nosso modo de pensar pelo Espírito.

Agora vamos falar mais especificamente, começando por perguntar: que


tipo de sacrifício é esse? Não se trata de uma oferta tipicamente religiosa,
porque o sacrifício vicário, último e suficiente (de Jesus na cruz) pôs
fim à necessidade de ofertas dessa natureza. O que “está consumado”
não pode ser revogado, tampouco barateado no altar das “oferendas
espirituais”. Trata-se precisamente do nosso coração. Ou seja, até para
que a cobiça não mais tome conta do coração e faça dele um escravo, é
necessário oferecê-lo inteiramente a Deus. Somente assim o coração – e
tudo o mais no ser humano – poderá ser livre ou rumar para a liberdade.

O passo conseguinte dessa liberdade está em não mais ter de mimetizar


os modos de ser e pensar de nossa cultura, especialmente aqueles que
nos conduzem ao velho problema da cobiça e, portanto, são conflitantes
com a vida de e em Deus. E aqui entra em questão o que mais quero
chamar atenção nesse caso: a transformação pela qual alegamos ter
passado, no momento de nossa conversão (ou da entrega de nosso
coração a Deus), implica em um modo novo e diferente de pensar-ser:
do pensar que se conforma ao pensar inconformado. 

O primeiro é o que segue as tendências, modismos e flutuações de seu


tempo e cultura; é o pensamento que se adapta de acordo com os ditames
de seu entorno, que “se mundaniza” ao se curvar ao modus operandi e às
urgências de seu tempo. Para o conformado, a essência está na forma; há
nele/a uma recusa permanente de ir mais fundo, de desconfiar do que está
posto, de caminhar com as próprias pernas. Em contrapartida, o segundo
é o que quero chamar aqui de “pensamento mutante”. É mutante porque,
embora assuma uma certa forma (de modo simples, não há pensamento
fora do corpo, e o corpo já é, por si só, uma forma), não se identifica
de modo indelével com ela. Está mudando constantemente não apenas
por não aceitar os moldes impostos por seu entorno (e aqui me refiro
tanto a conteúdos quanto a formas), quanto e principalmente porque
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 41
procura seguir o sopro do Espírito de Deus – o mais selvagem sopro do
universo! E na medida em que o Espírito de Deus, como sabemos, nunca
para de soprar – a despeito de nossa incapacidade de escutar o que Ele
sopra – o pensamento de quem procura segui-lo nunca para de mudar, de
amadurecer, de se trans-formar. 

Por isso esse pensamento é, no geral, in-con-formado; suas formas são


assumidamente provisórias; sua teologia é feita a partir do caminhar e
da jornada e, por isso, resiste a moldes ou formatações permanentes.
É construída a partir de constantes esboços de saber-fazer-agir à luz
da Palavra, e como resposta crítica às necessidades de seu contexto.
E assim, pela graça, vai “experimentando” aqui e acolá relances da “boa,
agradável e perfeita vontade de Deus para vocês” (Rm 12:2b).

Exercício de fixação
Segundo o que acabamos de estudar, o que difere o modo de pensar-
ser-fazer inconformado do conformado? Assinale a alternativa
correta:
a. O inconformado é essencialmente indignado com tudo e com
todas as formas; já o conformado apenas aceita a realidade como
ela é.
b. O inconformado é o que não aceita tomar forma alguma; já o
conformado facilmente se ajusta e se adapta às formas.
c. O inconformado reconhece a natureza provisória da forma, e,
por isso, segue o sopro do Espírito; o conformado acredita que a
essência está na forma, e se identifica sem problemas com seu
entorno por isso.

No verso bíblico acima citado é possível encontrar um claro


contraste entre apenas conhecer e o experimentar: há muitos
que conhecem cognitivamente a vontade de Deus (como o Paulo de Rm 7
dizia conhecer bem “a lei de Deus”), mas somente aqueles que permitem
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ser transformados por Deus e sua graça é que a experimentam de fato.
Mas o que isso significa concretamente?

Bem, há vários sinais dessa transformação que Paulo nos vai apontando
ao longo do capítulo 12, sendo o mais marcante deles, a meu ver, a
capacidade de se humilhar. Começando por ser “honestos em nossa
autoavaliação” (12:3), andando de acordo com o que Deus nos deu
e não se julgando maior nem melhor do que ninguém. Por outro lado,
o comportamento cobiçoso é irmão do comportamento orgulhoso:
na medida em que almejamos ser mais do que nos cabe, isso vem
acompanhado de querer ser mais que os outros – e logo achar que sabe
mais, que é mais inteligente, e que a luz de seu pensamento reluz tanto
que torna o do outro uma mera sombra. 

Não se trata aqui de negar quem somos e o que sabemos, tampouco


de esconder isso, mas de saber que no Reino de Deus não há espaço
para “egos inflados”. O dom de Deus foi feito, sim, para ser externado e
partilhado, e realizado com excelência: que o profeta profetize na medida
do dom de Deus; que o mestre ensine bem; que o servo que sirva com
dedicação; já o que lidera, que o faça de modo responsável (cf. 12:6-8).
No ato de partilhar, porém, precisamos aprender não usurpar o lugar uns
dos outros, porque, como lembra Paulo: “Somos membros diferentes do
mesmo corpo, e todos pertencemos  uns aos outros”. E, como diz a
poesia de Beto Guedes na canção “O Sal da Terra”: 
Vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais
que dois
Pra melhor juntar as nossas forças é só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora para merecer quem vem depois.

A inteligência transformada é fruto de um coração transformado; fruto


da cabeça que incha no mesmo compasso em que incha o coração. Que
sabe que no reino de Deus maior é o que serve, que honra o caminhar de
quem veio antes e pavimenta o caminho para quem vem depois, porque
reconhece que todo mundo precisa de todo mundo

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 43


3. A coragem de saber apenas em parte
“Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim
como também sou plenamente conhecido” (1Co 13.12b).

Em 1952, o teólogo alemão Paul Tillich publicou  A coragem de ser, que


ainda hoje é considerada por muitos (e por mim mesmo) sua obra-prima.
Como outras de suas obras, esse livro foi oriundo de conferências que o
autor deu na Universidade de Yale, nos EUA, dois anos antes. Seu objetivo
na obra foi o de analisar a fé a partir da coragem – no sentido ontológico
(referente ao ser), como uma qualidade do “ser” de alguém. Embutida na
reflexão sobre o ser, está a questão do “não-ser”: aquilo que eu sou e aquilo
que eu não-sou são duas realidades que formam a minha existência. 

Nisso consiste a principal fonte de sua ansiedade: a experiência de ser


tendo a “consciência existencial do não ser”. Em outras palavras, trata-
se da consciência de que meu ser tem limites, começando por limites
internos (físicos, psíquicos, emocionais, etc.), passando pelos limites
externos (os de “seu mundo”, de sua situação social, de sua cultura), até
chegar aos limites existenciais (a finitude como o seu limite-mor). 

A ansiedade básica do ser humano nasce, então, da constatação sobre


aquilo que ele não é: não-tão-lindo, não-tão-santo, não-tão-inteligente,
não-tão-perfeito. Quando essa constatação se confirma como certeza, a
ansiedade pode se transformar em desespero (“sem esperança”, a falta
de sentido se torna então vitoriosa). É compreensível, por isso, que “toda
a vida humana possa ser interpretada como uma tentativa contínua de
evitar o desespero” (Tillich, 1972, p. 43). E, na maior parte do tempo, o ser
humano consegue. A questão é: como? 

A resposta de Tillich é: evitando o ser! Ou seja: evitando encarar a si


mesmo como “si-mesmo”, projetando um outro-eu. O antídoto para
o desespero passa a ser, assim, a auto-ilusão, em que, nos termos de
Arthur Danto (2007, p. 339), “não ocupamos nosso interior, mas vivemos
ingenuamente no mundo”. Em termos práticos, ornamentamos nossa
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aparência com maquiagem, photoshop ou botox; acumulamos títulos,
posses e posições para forjar nosso “ser social” (o que somos para os
outros); criamos mecanismos psicológicos e neurolinguísticos para
afirmar uma persona que só existe em nosso mundo de desejos e
projeções (o universo do ego, sobre o qual já falamos). Tudo para que os
outros gostem mais da gente e nos aceitem, e nós também.

E, veja, isso nada tem a ver com o desejo de e o impulso para ser melhor
em todos os sentidos. Pois, para isso, é necessário sim uma dose de
autoafirmação, de luta consigo mesmo, de inquietude e busca de
superação. Isso é saudável e faz parte de nossa “evolução” (essa palavra
é ruim, mas não achei outra) como pessoas. Esse impulso e desejo se
tornam destrutivos, como nos lembra Tillich, caso se queira evitar a todo
custo o risco de insegurança, imperfeição ou parcialidade e incerteza que
rondam nossa condição, além da própria realidade de quem somos e de
quem não-somos.  

Imperfeição
Imperfeição é, para mim, um dado da natureza humana; é, por isso,
uma longa companheira de jornada: para onde quer que formos, lá
ela estará para saudar-nos. Deus não nos fez para sermos perfeitos,
mas para sermos bons – porque tudo no começo declarou “bom” ou
“muito bom”. Perfeição é um atributo divino. “Sede perfeitos como
vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5:48), segundo Jesus, é uma
consecução do ato de amar, do amor (ágape) que é, segundo Paulo,
o “vínculo da perfeição” (Cl 3:14). Na medida em que amamos, como
nosso Pai ama, participamos de sua perfeição. E participamos ainda
mais quando reconhecemos nossas imperfeições. Duas citações,
de Richard Rohr e Joan Chittister, ilustram bem este ponto:

‘Uma espiritualidade da perfeição e da plenitude teria mais a ver com


a matemática do que com a vida. Mas para nós, seres humanos,
seguramente não existe essa plenitude e perfeição. A única coisa

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perfeita que podemos alcançar é a capacidade de perdoar nossa
imperfeição – é assim que aparece nossa perfeição’. (Rohr, 2010, p. 47)

‘Além do mais, uma vez que tenhamos enfrentado nossas fraquezas


internas, uma vez que tenhamos admitido que o que dissemos
que éramos nem sempre fomos, estamos plenamente vivos para
nós mesmos e para os outros. Agora sim eu começo a crescer na
plenitude da integridade, na verdadeira riqueza do eu. Agora sou
capaz de qualquer coisa porque não sou mais escrava das minhas
próprias ilusões. Estou livre para tentar e falhar, para competir e
perder, para saber o que posso fazer e entregar o que não posso
àqueles que podem. Eu não preciso mais ser vista como algo que
não sou. Mais do que isso, estou feliz com quem estou agora pronta
para me tornar. Eu não preciso ser quem eu não sou. Meu esforçado
e honesto é o suficiente para mim’. (Chittister, 2019, p. 76-77).

Dessa forma, Tillich afirma que a “boa vida”, a vida sã e humanizada, é a


vida corajosa, isto é, a vida que pode ser afirmada em sua integridade, a
despeito de suas ambiguidades, imperfeições e da própria morte que a
cerca (Tillich, 1972, p. 22). Nietzsche, como sabemos, chamou isso de amor
fati (amor ao destino ou a vida a despeito de quaisquer condicionalidades).
Elevou isso, porém, à “vontade de potência”, paradoxalmente projetando um
homem superior (um “super-homem”) e, como tal, incapaz de reconhecer
suas fraquezas e de aceitar as dos outros. 

O que Tillich chamou de “a coragem de ser”, porém, nos conduz a esse


lugar de aceitação e autoafirmação do ser “a despeito de” não-ser. Reúne
ao mesmo tempo uma atitude passiva, de aceitação do ser imperfeito ou
do “ser como uma parte”, e uma atitude ativa de afirmação do ser como
“si próprio”, e não como outro qualquer. O equilíbrio entre as atitudes
passiva e ativa são fundamentais para a integridade e sanidade desse
ser. Uma sem a outra conduzem a extremos: aceitação sem afirmação
gera resignação (ou pior, autocomiseração); afirmação sem aceitação

46 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


promove a auto-ilusão. E os extremos, como já disse certo sábio, são
inimigos da vida.

A coragem de ser de Tillich tem inúmeras outras implicações para a


fé, como, por exemplo, a coragem de “aceitar-se como sendo aceito, a
despeito de ser inaceitável” (Tillich, 1973, p. 128) – o que teologicamente
pode ser descrito simplesmente como graça. A eficácia da graça de Deus
na vida humana depende da aceitação de nossa ineficácia e de nossa
insuficiência.

Exercício de fixação
De acordo com o texto que lemos acima, quando a questão do
“não-ser” pode se tornar um problema?
a) Quando não há aceitação da imperfeição, assumindo um outro-
eu.
b) Quando as limitações são reconhecidas e aceitadas.
c) Quando há equilíbrio entre a aceitação e a autoafirmação.
d) Quando afirmamos com coragem a integridade da vida, incluindo
sua ambiguidade.

Minha preocupação aqui reside, porém, em que implicações essa coragem


de ser traz para a reflexão sobre a vida intelectual. E, nesse sentido, as
palavras de Paulo, citadas na epígrafe desse tópico, são indicativas de
um caminho: o caminho da coragem do ser que se reconhece como uma
parte, e que, ademais, sabe que o seu conhecimento é apenas parcial.
(Falei sobre isso na primeira unidade, e quero aprofundar mais aqui).

Isso soa como uma afirmação óbvia, e isso se trata de uma afirmação
óbvia, mas que muitos de nós têm obviamente a ignorado. Na prática
funciona assim: sabemos que nosso saber é em parte, mas agimos com
o outro como se apenas o dele ou dela fossem. Na teologia, por exemplo,
sabemos, por total inferência e afirmação de fé, que “Deus é grande”, que
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“Deus é eterno”, mas agirmos muitas vezes como se “o que pensamos”
sobre Ele também fosse (incluindo tais afirmações). A assunção da
parcialidade e do estado inacabado desse conhecimento, porém, deve
sempre nos lembrar de que ele nunca é grande coisa. O silogismo
“falo sobre Deus, logo sou grande coisa, e esse saber também é” é um
dos mais fatais para a teologia e para a espiritualidade cristãs. Faz do
lugar teológico um lugar de usurpação e, como tal, um lugar idolátrico,
pecaminoso. 

Texto de apoio
Se eu falar com eloquência humana e com êxtase própria dos anjos
e não tiver amor, não passarei do rangido de uma porta enferrujada.
Se eu pregar a Palavra de Deus com poder, revelando todos os
mistérios e deixando tudo claro como o dia, ou se eu tiver fé para dizer
a uma montanha: “Pule!” e ela pular e não tiver amor, não serei nada.
Se eu der tudo que tenho aos pobres e ainda for para a fogueira
como mártir, mas não tiver amor, não cheguei a lugar algum. Assim,
não importa o que eu diga, no que eu creia ou o que eu faça: sem
amor, estou falido.
O amor nunca desiste.
O amor se preocupa mais com os outros que consigo mesmo.
O amor não quer o que não tem.
O amor não é esnobe,
Não tem a mente soberba,
Não se impõe sobre os outros,
Não age na base do “eu primeiro”,
Não perde as estribeiras,
Não contabiliza os pecados dos outros,
Não festeja quando os outros rastejam,
Tem prazer no desabrochar da verdade,
Tolera qualquer coisa,
Confia sempre em Deus,

48 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Sempre procura o melhor,
Nunca olha para trás, mas prossegue até o fim.
O amor nunca morre.

A palavra inspirada um dia será esquecida; a oração em línguas vai passar;


o entendimento alcançará seu limite. Nós conhecemos apenas parte da
verdade e o que dizemos a respeito de Deus é sempre incompleto. Mas,
quando o que é completo chegar, tudo que é incompleto em nós deixará
de existir.
Quando eu era bebê, no colo da minha mãe, eu balbuciava como qualquer
bebê. Depois que cresci, deixei para sempre essas coisas de bebê.
Hoje, não vemos as coisas com clareza. Estamos como que num
nevoeiro, enxergando com dificuldade por entre a neblina. Mas isso
não vai durar muito. O tempo vai melhorar, e o Sol vai aparecer! Então
veremos tudo tão claramente quanto Deus nos vê, conhecendo-o
diretamente, assim como ele nos conhece!
Mas, por enquanto, até chegar a perfeição, temos três coisas que
nos guiam até a consumação de tudo: confiança firme em Deus,
esperança inabalável e amor extravagante. E o melhor desses três
é o amor. (1Coríntios 13, A Mensagem)

Como vimos na primeira unidade, a comunidade de Corinto vivia essa


tentação por ser formada também por uma elite intelectual, muito ciosa
de seu conhecimento. Assim, a poesia de 1Coríntios 13 vem para quebrar
qualquer auto-ilusão a respeito desse lugar. Primeiro, porque afirma
que o amor prevalece sobre o saber. Alguém pode saber falar a língua
dos homens e dos anjos e entender todos os segredos do universo, mas
sem amor tudo isso é reduzido a zero (v. 1-2). Segundo, porque enfatiza
que o saber é sempre em parte (v. 8) – mesmo quando temperado com
amor, como já enfatizei anteriormente nessa série. Terceiro, porque
nos recorda sobre a finitude do saber: um dia, como tudo, ele também
será aniquilado (v. 9). 

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 49


Ou seja, nada desse conhecimento que hoje acumulamos e ostentamos
com orgulho irá permanecer. Nada! Profecias? Desaparecerão. Línguas?
Cessarão. Ciência? Passará. Teologias? Igualmente. 

Essa mensagem pode aumentar o desespero de quem vive tomado


pela angústia de não-ser, tentando a todo custo superar essa condição,
sem primeiro passar pelo lugar humanizador da aceitação. Mas ela é,
sobretudo, uma mensagem de esperança e libertação. É um grande
conforto poder deitar a cabeça no travesseiro ao final de um longo dia
sem esse peso tenebroso da autoafirmação (do que eu posso ser-saber)
destituída de aceitação (dos limites desse ser-saber). 

O saber é uma benção enorme, mas o não-saber, nesse contexto, é uma


benção ainda maior, verdadeiramente libertadora! Porque não apenas
damos espaço para o outro, que também é e também sabe parcialmente,
como finalmente deixamos que Deus desempenhe o papel de Deus, nos
relegando o maravilhoso lugar de “apenas humanos”. Então, a coragem
de ser quem se é e como “uma parte”, de Tillich, une-se com a liberdade
e “a alegria de não ser Deus”, do teólogo tcheco Tomás Halík no livro A
noite do confessor. É um alívio, diz ele, não ter de substituir Deus como
amador, ou (diria eu) como um teólogo aspirante a Deus. Assim, (finalizo
esse tópico com suas palavras):

Quando temos a coragem de largar as rédeas que, de


qualquer modo, não controlam nada, mas que, não
obstante, nos arrastam continuamente – através de
nossas ansiedades e arrogância, através de nossa
grandiosidade, loucura e vaidade, ridículas, embora
perigosas –, quando desistimos de nosso posto fictício
de comandantes do universo, sentimos um alívio
enorme. A humildade e a verdade curam e libertam
(Halík, 2016, p. 109). 
50 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
4. Coda: sobre ser menos
Coda, do italiano, quer dizer “cauda”, a última parte de uma sinfonia ou de
uma canção no universo da música; em meu caso, um pós-escrito. Nela
o artista-compositor pode expressar partes do todo, apresentando ideias
musicais já utilizadas, ou produzindo uma ideia nova. Nessa “inconclusão”
da segunda unidade quero fazer um pouco das duas coisas: primeiro
retomar ideias já expressas ao longo dessas primeiras quatro unidades,
para depois apresentar uma ideia nova, ou melhor, um novo desejo que
emerge dessas reflexões: o de “ser menos”.

Uma coisa que me intriga em “nosso” mundo de intelectuais e acadêmicos


é a arrogância e o orgulho intelectual – como já expressei na introdução
e, de certo modo, ao longo desse ensaio. Não que isto me seja estranho;
pelo contrário, é compreensível. Primeiro, porque sou humano e se eu
estranhar provavelmente é porque me acho mais ou menos do que
humano; segundo, porque estamos lidando com o conhecimento, e
o saber é companheiro do poder. Mas o que me encabula é como as
pessoas tendem a se enganar com autoengrandecimento, às vezes por
tão pouco: um título, uma posição, um cargo, um artigo ou um livro (sim,
isso é muito pouco, embora nesse métier seja “o que conta”).

Nesse universo sem sentido, conheço intelectuais e professores


renomados e brilhantes – ou apenas brilhantes e competentes, mas não
renomados – que procuram demonstrar pouca jactância em relação
ao que conquistaram em suas trajetórias, que não pisam nos demais
(colegas, discípulos ou aduladores/ admiradores) por causa disso. Pelo
contrário, são generosos, humildes e íntegros a maior parte do tempo;
alegram-se visivelmente com o sucesso dos outros, e não apenas com o
seu, e até contribuem para isso; aprenderam a ser menos, descobriram
na prática a sabedoria de que “menos é mais”. Conhecem-se o bastante
para diferenciar o precioso do vil – afinal, quem é “é”, e não precisa ficar
alardeando sua persona em outdoor.
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 51
Por outro lado, também conheço outros que, por muito pouco (muito
pouco mesmo – pouca competência, brilhantismo ou renome), ocupando
posições de poder em maior ou menor grau, se transfiguram em seres tão
arrogantes a ponto de se acharem superiores, donos da verdade, “último
biscoito do pacote”. Raramente assentem e se regozijam com o sucesso
alheio – a não ser aquele que lhes interessa diretamente – e, para piorar,
ainda fazem de tudo para desqualificar aqueles que representam (mesmo
que em seu mundo imaginário) uma ameaça direta a sua “excelência”
(até pela falta dela, talvez).

Considerando que isso é tão comum, a vaidade, a arrogância e o orgulho


acabam sendo ferramentas de sobrevivência: ou se tem e se joga com as
cartas que estão sobre a mesa, ou não se tem (ou se evita) e sofre uma
espécie de bullying quase corporativo por ser “diferente”. A grande questão,
para mim, é: onde pensam esses intelectuais que chegarão com esta
atitude? Que espécie de discípulos formarão? Que frutos permanecerão,
especialmente após deixarem essa brevíssima existência? Cada vez estou
mais convencido, com o Pregador, que tudo isto é vaidade de vaidades e
correr atrás do vento. Ou seja, nada disso faz sentido!

Então, para mim o caminho, embora árduo, é simples: melhor o anonimato


que a fama barata; antes a integridade que a busca insana por reputação;
melhor é ser “estímulo, exemplo e voz dissonante” (como diz uma canção
do Teatro Mágico) aos poucos que ainda têm ouvidos para ouvir, que
gozar de adulações, aplausos e curtidas sem substância de uma grande
plateia – a mesma que te derrubará quando preciso for.

Estou consciente, porém, de que em toda preferência há um gesto de


orgulho; e, em toda deferência, uma pitada de vaidade. Melhor, talvez,
seja não se julgar superior em nada, nem em sua aparente inferioridade
ou humildade. Porque o orgulho pode ser inimigo da humildade, mas um
pouco de humildade autorreconhecida pode ser apenas mais um passo
para a arrogância e o orgulho. Ninguém na verdade “é humilde”, mas se
torna na medida em que pratica a humildade. No fim das contas, então,
o espanto inicial de cada um deve emergir quando diante daquele/a
que encaramos diariamente em frente ao espelho, perguntando-se com
52 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
honestidade: que raio de intelectual (ou de pessoa) sou eu? Ou que tipo
de gente, afinal de contas, eu desejo ser?

Em resposta às inquietações acima expostas, quero dizer que das


grandes artes da vida (intelectual) que ainda quero aprender, uma tem
ocupado especial lugar ultimamente: a arte de “ser menos” – ser menos
num sentido estrito, isto é, não menos humano, mas um humano que
aprende a pormenorizar seus feitos, ganhos, posses e bens materiais. As
grandes aspirações e o desejo de “ser mais” a mim têm parecido tanto
mais superficiais, quanto inúteis. Tudo é fumaça! Quanto mais controle
sobre a vida quero, menos vida tenho. Quanto mais saber e poder
almejo, menos humanidade e amor dou e obtenho. O saber pretensioso
estultifica. Faz do inteligente o pior dos tolos.

Não sei bem a razão, mas acho que nunca quis ser tanto gente comum
quanto hoje. Talvez porque nosso mundo esteja tão rodeado e preocupado
com questões, e bem pouco preocupado com pessoas, com gente. Hoje
vale mais ganhar um debate, provar uma tese, do que fazer um amigo.
Cansei de tentar vencer; meu negócio agora é tentar amar. Pois somente
o amor “gentifica”, constrói e liberta.

O problema é que o desejo de amar deve ser proporcional à disposição


para perder. Somente quem ama sabe mesmo o que é sofrer. Somente
quem conhece a dor do choro, é também capaz de consolar quem chora.
Somente quem passa pela tristeza profunda, reconhece o que é alegria.

O grande lance é que, quando decidi “ser menos”, aprendi o quanto a


grande maioria de minhas ambições foram e são vazias. Com elas,
gostaria de sepultar também sonhos de sucesso, desejos doentios
de aprovação, e o anseio fútil por alguns minutos de fama, a serem
derretidos no vórtice do próximo instante. Tentarei não mais alimentar a
necessidade quase antropofágica dos outros de consumir meus talentos,
pois essa é só mais uma maneira disfarçada de enterrá-los, ou de jogá-
los fora. Estou interessado em provar minhas escolhas, e a descobrir e
perseguir quantas delas me conduzem à integridade, sem ter de falsear
a realidade de quem sou.
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 53
Exercício de aplicação
Leia a seguir e reflita um pouco sobre a passagem de Mateus 4:1-
11, depois relacione a passagem com o que você leu até agora
sobre “ser menos”.

Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser


tentado pelo diabo. Depois de passar quarenta dias e quarenta
noites sem comer, teve fome. O tentador veio e lhe disse: “Se
você é o Filho de Deus, ordene que estas pedras se transformem
em pães”. Jesus, porém, respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Uma
pessoa não vive só de pão, mas de toda palavra que vem da boca
de Deus’”. Então o diabo o levou à cidade santa, até o ponto mais
alto do templo, e disse: “Se você é o Filho de Deus, salte daqui. Pois
as Escrituras dizem: ‘Ele ordenará a seus anjos que o protejam.
Eles o sustentarão com as mãos, para que não machuque o pé
em alguma pedra’”. Jesus respondeu: “As Escrituras também
dizem: ‘Não ponha à prova o Senhor, seu Deus’”. Em seguida, o
diabo o levou até um monte muito alto e lhe mostrou todos os
reinos do mundo e sua glória. “Eu lhe darei tudo isto”, declarou.
“Basta ajoelhar-se e adorar-me.” “Saia daqui, Satanás!”, disse
Jesus. “Pois as Escrituras dizem: ‘Adore o Senhor, seu Deus, e
sirva somente a ele’.” Então o diabo foi embora, e anjos vieram e
serviram Jesus. Mateus 4:1-11 (NVT)

O que podemos aprender com Jesus nesta passagem sobre o que foi
exposto anteriormente?
a) O caminho do poder, do reconhecimento e da glória pode não ser o
melhor.
b) O importante é adquirir a admiração dos outros.
c) O poder é para ser utilizado para a obra de Deus.
d) O caminho do poder, do reconhecimento e da glória é o que devemos
trilhar.
54 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Finalmente, quero aprender andar com Deus sem desaprender a andar
com os outros. Não há nada mais inútil que gritar “hosana nas alturas”
sem estender as mãos a quem precisa aqui, nesse chão da história. Quero
a espiritualidade trans-imanente de Jesus de Nazaré, que me ensinou
chamar a Deus de “paizinho” e ao estranho de “meu irmão”.

Quem sabe eu já esteja pedindo muito; quem sabe eu já tenha escrito


demais. Quem sabe o desejo de ser menos não passe do velho anseio
de querer ser mais. Quem sabe? Eu, sinceramente, não sei. Mas de uma
coisa sei: não é possível ser menos, contra toda forma de ostentação e
mesmo sabendo (relativamente) mais que outros, sem a maior de todas
as transgressões: a transgressão de si. E essa transgressão de si pode
começar, talvez, com a transgressão de Sócrates, que disse “só sei que
nada sei”, para culminar com a de Paulo: “Porque decidi nada saber entre
vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1Co 2:2). Afinal, o saber que
vem dos livros sem a sabedoria que vem do alto, ao menos em teologia,
é completamente vazio.

Referências
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University Press, 2005.

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Transformadora (NVT). São Paulo:


Mundo Cristão, 2016.

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional (NVI). São Paulo: Vida,


2000.

BÍBLIA SAGRADA. Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). Barueri,


SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2011.

CHITTISTER, Joan. Entre a escuridão e a luz do dia. Abraçando as


contradições da vida. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 55
DANTO, Arthur. Narration and knowledge (Including his Analytical
philosophy of history). New York, NY: Columbia University Press, 2007.

HALÍK, Tomas. A noite do confessor. A fé cristã num mundo de incerteza.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

LEWIS, C. S. Anatomia de uma dor. Um luto em observação. São Paulo:


Vida, 2006.

MANNING, Brennan. O evangelho maltrapilho. São Paulo: Mundo Cristão,


2005.

PETERSON, Eugene. A Mensagem. A Bíblia em linguagem contemporânea.


São Paulo: Vida, 2011.

ROHR, Richard. A libertação do ego. A busca do verdadeiro si-mesmo.


Petrópolis: Vozes, 2010.

SOLOMON, Robert. Fiéis às nossas emoções. O que elas realmente


dizem. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

_________. O prazer da filosofia. Entre a razão e a paixão. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2011.

TILLICH, Paul. A coragem de ser. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1972.

TOLLE, Eckhart. Um novo mundo. O despertar de uma nova consciência.


Rio de Janeiro: Sextante, 2007.

56 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


UNIDADE III – Nas trilhas da argumentação acadêmica:
por uma cultura de tolerância e diálogo
Introdução
Vimos nas unidades anteriores que a atitude de abertura é fundamental
para uma postura intelectual equilibrada e frutífera. E que, parafraseando
a ideia já citada de Jean-François Lyotard, estar aberto para acolher aquilo
que a mente não estava, necessariamente, preparada para refletir, é o
que propriamente se pode chamar de pensamento. Pensamento que é
tanto crítico quanto autocrítico – um equilíbrio que, como veremos nesta
unidade, é essencial para o processo de construção da argumentação no
contexto acadêmico e, ao mesmo tempo, tem faltado para o processo de
construção de uma cultura de tolerância e diálogo em nosso mundo (e
Brasil) atual. Quero defender nesta unidade a importância de pensar os
dois processos como parte de uma mesma trilha humana e cristã. Não
se trata, principalmente, de ensinar-saber como argumentar bem, mas de
uma reflexão sobre as bases em que se constrói um argumento, bases
estas que fazem a diferença (para o bem e para o mal) quando pensamos
nas relações humanas em um país pretensamente democrático. Daí sua
relação íntima com o tema do diálogo e da tolerância, e as dificuldades
próprias de se construir, hoje, uma cultura em que ambos estejam
presentes. Dificuldades que, como intelectuais cristãos (mais ainda!),
deveríamos seriamente considerar e pensar em alternativas viáveis para
sua superação. Isso tudo tem a ver com metodologia, certamente, mas
também com a vida, como tenho insistido nesse curso.

Objetivos da unidade
1. Definir “argumentação” a partir da relação de/com alguns de seus
“tipos”;
2. Refletir criticamente sobre formas potencialmente nocivas e
saudáveis de argumentação para a vida intelectual;
3. Relacionar os processos de construção da argumentação e de
construção de uma cultura de tolerância e diálogo;
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 57
4. Desenvolver o respeito, a tolerância e, acima de tudo, o amor ao
outro-diferente.

1. A construção da argumentação acadêmica


Dou início a este tópico dizendo que a argumentação faz parte da vida
acadêmica. Sempre foi fundamental. Ela acontece quando construímos ou
damos concretude ao pensamento. Num ensaio ou monografia, por exemplo,
aparece no desenvolvimento do texto, quando por meio de proposições,
declarações ou sentenças tentamos persuadir alguém de alguma ideia ou
tese importante a ser defendida. Só argumenta, no melhor sentido, quem
tem algo de substancial a dizer. E essa “substância” – a junção entre
conteúdo e forma em um texto acadêmico – vem através da pesquisa e
análise cuidadosas (como veremos mais detalhadamente na unidade IV).

Há argumentos que, em certas instâncias, tentam convencer mais por


técnica de persuasão, como faziam os sofistas no tempo da Grécia
Antiga. Um filme que ilustra essa percepção é o Obrigado por fumar
(2005), que conta a história de Nick Taylor, um porta-voz das grandes
empresas de tabaco que desenvolve um ofício politicamente incorreto
de defender o direito dos fumantes nos EUA. A ideia do personagem é a
de que bons argumentos podem convencer qualquer pessoa de qualquer
coisa, inclusive de que fumar não representa todos os riscos a saúde que
por aí se pregam. Outro filme, o The Sunset Limited (2011) ou “O horizonte
limitado”, mostra uma trilha mais complexa da argumentação, pelo
diálogo (o filme todo praticamente tem essa forma) entre um professor
ateu que estava à beira de cometer um suicídio e um homem espiritual,
que tenta convencê-lo a desistir da ideia a partir de argumentos relativos
ao sentido da vida. Trata-se de um cenário mais complexo, pois ambos
apresentam bons argumentos acerca de seus pontos de vista sem que,
necessariamente, consigam chegar ao esperado consenso.

Seguindo essa lógica, na construção de um texto em uma pesquisa


acadêmica, aprendemos que o que os teólogos fazem é argumentar em
torno ou em favor de um ponto de vista, oferecendo bases ou fundamentos

58 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


que, em conjunto, devem sustentar aquele ponto de vista. Dizendo de
modo provocativo, com Demo (2005, p. 47), “todo método manipula
a realidade de um [e por um (J.M.)] ponto de vista”. O faz por meio do
diálogo com autores de seu campo de estudo, que são evocados para
falar com e não pelo pesquisador. Essa é uma distinção fundamental,
como veremos adiante, para que evitemos formas de argumentação que
não são propriamente criativas, mas meras reproduções de ideias.

Por isso, quando pensamos em argumentação acadêmica, um


dos caminhos envolve justamente a crítica dos pressupostos da
argumentação, que por sua vez desembocam em certas formas. A seguir,
quero apresentar – em diálogo com Charles Taylor e Pedro Demo – três
dessas formas, as duas primeiras indesejáveis e a última podendo ser
considerada mais desejável, do ponto de vista acadêmico. Não se trata,
portanto, de um texto que vai te ensinar a argumentar, mas propriamente
levá-lo/a e pensar no que está por detrás de uma argumentação –
motivações, princípios e formas.

1.1. Argumentação transcendental


Esta é uma modalidade de argumentação que parte alguma característica
de nossa experiência – ou conhecimento da realidade em questão –
que possa ser considerada indubitável ou até mesmo indispensável. É
quando o autor ou pensador tenta convencer seu público de algo com
base na ideia de que é “um fato indiscutível”. Segundo Charles Taylor
(2000, p. 33), esses argumentos “passam então a uma conclusão mais
forte concernente à natureza do sujeito ou à posição do sujeito no mundo.
Fazem esse movimento por meio de uma argumentação regressiva pela
qual a conclusão mais forte assim o será se o fato indubitável acerca da
experiência for possível (sendo assim, ele tem de ser possível)”. Suas
marcas principais, de acordo com o que se almeja, são: a objetividade, a
certeza, a evidência, a neutralidade, a solidez do argumento. Quando se
convoca essas marcas, que também são critérios, ao debate é possível
que se esteja partindo do pressuposto de que as coisas (do mundo)
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 59
são evidentes por si mesmas, e o que o argumento transcendental faz
é emprestar (para não dizer usurpar) da realidade uma solidez ou base
externa (por isso, transcendental) ao argumento em si, que lhe forneceria
o fundamento indiscutível, a partir do qual se possa finalmente dizer
“contra fatos, não há argumentos” (retornarei a esse tema logo abaixo).

Classifica-se como transcendental tudo aquilo que “vem de fora” (trans-


cende) da realidade propriamente dita, ou que está fora daquilo que é
imanente, inerente, presente nela. O transcendente é o que está além dos
limites do que é normalmente compreendido e aceito como sendo parte
do jogo. Na filosofia kantiana, o conhecimento transcendental é aquele
proveniente da razão pura, que antecede à experiência da realidade
propriamente dita. Nosso conhecimento da realidade é justamente
formado por essa ideia ou forma antecedente, segundo entendia
Kant. Na teologia, por exemplo, dizemos que Deus e a revelação são
transcendentes enquanto tais (à compreensão e alcance humanos).
Ao mesmo tempo, também dizemos que esse Deus se fez imanente ao
assumir a forma de um ser humano, na encarnação – “e o verbo se fez
carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). Assim, a teologia sempre parte e
precisa de uma certa imanência para falar do transcendente.

Exercício de fixação
De acordo com o que foi apresentado acima, pode-se dizer que a
argumentação transcendental não consiste em:
a. Utilizar argumentos religiosos para fundamentar o pensamento
científico.
b. Um tipo de argumento que empresta da realidade uma espécie
de fundamentação que se pretende que seja indiscutível.
c. Um argumento que vem de fora do texto para sustentar uma
ideia do texto e conferir a ela o status de “objetiva” e, por isso,
indubitável.

60 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


O problema todo dessa forma de argumentação está, portanto, em
conferir um status ao conhecimento que pode ser muito mais pretensioso
que real, prometendo aquilo que, na prática, não é capaz de entregar, pois
parte do pressuposto de que meu argumento corresponde (ou equivale)
à realidade a qual ele se refere, e porque tende a não admitir, desse modo,
a natureza lacunar ou frágil do pensamento e da argumentação. Para ser
mais claro, deixe-me dar um exemplo a seguir.

Você já parou para pensar o quanto nosso cotidiano é nutrido por


ideias? Lidamos com elas o tempo todo. Ideias que vão e que vêm; que
nós criamos, copiamos, compartilhamos nas redes sociais, mudamos;
memorizadas, pensadas, impensadas, automatizadas, enraizadas.
Embora o viver não se resuma a elas, não há dúvida de que, de muitas
e variadas formas, elas ajudam a abastecer o viver. Uma das ideias
das quais nos abastecemos – os historiadores mais ainda – é a de
que fatos existem lá fora. Um fato pode ser entendido genericamente
como um fenômeno humanamente reconhecível, e ordenado a partir do
tempo e do espaço. Para muitos, fatos são “dados”, isto é, informações
que emanam naturalmente dos eventos ocorridos e que, por uma “pura
observação”, caem em nossos colos prontos para serem divulgados. Não
foram “mexidos”, como podem ser os ovos, nem modificados pelo olhar
humano. Aliás, para que fatos sejam, ter-se-ia de neutralizar o tal olhar.

Assim, tal teoria se faz disseminar entre nós por meio do senso comum de
que “contra fatos, não há argumentos”, já que o fato “fala por si mesmo”, e
nosso papel é apenas o de descrevê-lo tal como ele é, sem tirar nem pôr.
Eles emergem das coisas – e é isso, aliás, que quis dizer acima quando
afirmei que, para a argumentação transcendental, as coisas são evidentes
por si mesmas. Mas, antes de se tornar “senso comum”, essa percepção
já foi formulada teoricamente e defendida pelos chamados realistas ou
empiristas na ciência. Trata-se da “teoria da correspondência” (com a
verdade ou com a realidade).
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 61
Teoria da correspondência
Segundo a teoria da correspondência uma sentença é verdadeira se [e
somente se] corresponde aos fatos. Assim, a sentença “o gato está na
esteira” é verdadeira se corresponde aos fatos, isto é, se há realmente
um gato na esteira, ao passo que é falsa se não houver um gato na
esteira. Uma sentença é verdadeira se as coisas são como a sentença
diz que são, e falsa se não o são. (Chalmers, 1993, p. 180)

A correspondência entre o fato – desta feita entendido como a realidade


que se mostra, como aquele gato presente naquela esteira – e a sentença
de que “o gato está na esteira” é problemática, pois esta afirmação
não é uma teoria, nem uma opinião, mas uma descrição de algo que
qualquer pessoa pode reconhecer: se o gato está na esteira, a sentença
corresponde, mas se o gato não está, não corresponde e ponto final. O
mesmo acontece com sentenças como “está chovendo lá fora” ou “esta
cadeira é da cor preta”. Não é preciso teorizar nem interpretar nada. Mas,
como observa Paul Feyerabend (2007, p. 33), “a história da ciência, afinal
de contas, não consiste apenas em fatos e conclusões extraídas de fatos.
Também contém ideias, interpretações de fatos, problemas criados por
interpretações conflitantes, erros e assim por diante”. Ou seja, existe um
tecido de relações muito mais complexas entre a realidade em si, nossa
percepção da realidade, a percepção de outros sobre a mesma realidade,
nossa percepção da percepção de outros sobre a realidade e vice-versa,
que, por sua vez, geram conflitos entre interpretações.

Para Friedrich Nietzsche, o fato não é um dado proveniente do mundo


externo, mas uma criação que nasce do olhar humano. Contra o
positivismo que afirma existirem “apenas os fatos”, ele objetou dizendo:
“não, justamente não há fatos, somente interpretações. Não podemos
constatar nenhum factum ‘em si’: talvez seja um nonsense querer este
tipo de coisa” (Apud. Camargo, 2008, p. 107). Seguindo esse raciocínio,
aquilo que recebemos como “fato”, contra qual, muitos dizem, “não há
62 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
argumentos”, surge precisamente de outros argumentos, ou informações
suscitadas por alguém, que não “caíram no colo”, nem foram “dadas” e
sim produzidas historicamente através de interpretações.

Texto de apoio
Resta sempre a pergunta pela constituição própria das coisas,
aquilo que se costuma chamar de realidade. Não seria preciso
haver uma realidade dos fatos por trás das interpretações? Tal
pensamento é interessante, porém Nietzsche não o vê ir longe.
Por mais que a realidade exista de forma independente ao homem,
não haveria pensamento, conhecimento, filosofia, nem este debate
sem ele. A partir do momento em que o homem está no mundo,
todo seu olhar será dado a partir de uma perspectiva. Se tudo já
existia antes dele e se continuará a existir depois, mesmo isto, só
pode ser pensado a partir deste homem, isto é, perspectivamente.
O pensamento é, assim, como tudo o que o homem pode produzir,
parcial e interpretativo, isto é, perspectivo. (Camargo, 2008, p. 106)

Há assim uma diferença radical entre os objetos do conhecimento e


os seus referentes na realidade material. Isso, porém, não significa
que a existência desta seja negada ou que o conhecimento que se
obtém não tenha qualquer correspondência com ela. É certo que
deixa de ter sentido a busca de uma verdade absoluta, de uma cópia
integralmente fiel da realidade. O conhecimento é sempre falível, a
verdade é sempre aproximada e provisória. Contudo, nem todo o
conhecimento é igualmente falível, e o fato de o conhecimento e o
mundo material serem realidades qualitativamente diferentes não
significa que não haja relação entre eles. (Santos, 2012, p. 72)

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 63


Como complementa Chalmers (1993, p. 198), “os fatos não nos são acessíveis,
nem deles se pode falar, independente de nossas teorias”. Fatos, assim, são
construções, à medida que passam pelo filtro do olhar, que naturalmente
resulta em interpretação e, por fim, em um enunciado. Se os fatos, em si,
já são de certo modo argumentos (enunciados), então, não se pode aferir
que não há argumentos contra argumentos, concorda? Teorias são criações
provenientes da interpretação – diversa, lacunar, contraditória – e, portanto,
sujeitas a permanente reformulação. Diz-se que os fatos podem refutar as
teorias, e eu pergunto: quais? Aqueles, resultantes da mesma fonte de onde
provêm as teorias, isto é, o olhar humano?

Penso que não há nada “por trás dos fatos” que proteja uma afirmação
categórica humana de um exame crítico – até porque, por trás dos fatos,
diria Paul Feyerabend, estão seus “componentes ideológicos”. Aliás, a
menos que esteja protegida pela “aura” do dogma, nenhuma teoria,
tampouco essa com a qual flerto nesta discussão, está isenta de um
exame crítico. Se não é possível excluir a interpretação da atividade de
conhecer, continuemos examinando criticamente as interpretações uns
dos outros, nessa busca desenfreada pela verdade, que nos escapa em
sua totalidade. Se uma interpretação “não servir”, substitua por outra, e
assim sucessivamente. Nesse sentido, como afirma Pedro Demo (1995,
p. 43), “a metodologia existe não para lançarmos apelo desesperado
contra a ideologia, a autoridade, a infiltração estranha, mas armar
estratagemas conscientes de seu controle”. Sobre essas estratégias em
relação à ideologia e a autoridade tratará o próximo subitem.

Exercício de aplicação
Imagine que uma pessoa compartilhe uma notícia na linha do
tempo de sua página ou conta pessoal do Facebook. Esta notícia,
que na verdade é um artigo de opinião de um colunista do jornal
‘Folha de São Paulo’, como qualquer outra, contém uma série de
informações, digamos, sobre o desastre acontecido em 2018 em
uma das barragens da Companhia Vale do Rio Doce, em Brumadinho,

64 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


no Estado de Minas Gerais. No título da notícia se diz: “Desastre em
Brumadinho: a culpa é das autoridades governamentais!”. Suponha
que seu “amigo”, que compartilhou a notícia, tenha lido (o que nem
sempre é tão óbvio assim, que as pessoas compartilhem apenas
o que leram) e concorde com as opiniões expressas naquele
artigo. De modo que seu único comentário “original” no post, ao
compartilhar o link que direciona para o artigo em sua página,
foi apenas: “Fato! E contra fatos, não há argumentos”. Diante do
exposto até aqui nesta unidade, escolha abaixo o comentário ao
post que esteja mais de acordo com a discussão sobre “fato”:

A. Sem dúvida isso é um fato. Por mais que haja um natural joguete
entre a companhia Vale do Rio Doce e as autoridades do governo,
estadual e federal, acerca de quem errou mais – se a empresa,
por não dar prioridade a uma fiscalização mais acurada de suas
barragens, ou se as autoridades, por não cobrarem relatórios
periódicos desta empresa, detalhando um plano de proteção
ambiental e humana que previna esse tipo de acidentes – não há
dúvidas de que a parte governamental tem mais responsabilidade
na história toda deste triste desastre humano e ambiental.

B. Respeito seu posicionamento, mas não chamaria isso de fato, ao


menos não no sentido que você quer dar. Lembremos que: por mais
razão que possa ter em alguns aspectos; e por mais informações
verídicas que forneça, isto é, informações que se confirmam com as
fontes, que foram grandemente noticiadas e reconhecidas por todos,
tais como a data, hora e local do ocorrido, bem como a estimativa
de uma quantidade de pessoas desaparecidas, de acordo com os
informes oficiais, este é um artigo de opinião. Ele quer convencer
seus leitores, com base nesses mesmos dados, de que o governo é a
contraparte culpada mais que a companhia Vale, que, aliás, também
é em parte governamental. Isso, porém, não é um fato (no sentido de
que é incontestável), nem pela via das informações que ele fornece,
nem pela via da argumentação apresentada.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 65


1.2. Entre o argumento de autoridade e a autoridade do
argumento
Podemos começar dizendo que o “argumento de autoridade” é irmão
gêmeo do argumento transcendental, pois se funda na mesma base
que aquele ao evocar um lugar de poder como força de sustentação da
argumentação. Diz respeito à prática relativamente recorrente de fazer
referência no texto acadêmico a determinados autores (ou a correntes
de pensamento) apenas pela autoridade garantida que possuem, para a
pesquisa e para o argumento. O “científico”, nesse caso, será “a opinião
dominante do clube dos grandes, das vacas sagradas, dos pontífices que
fazem e manobram opiniões” (Demo, 1995, p. 47).
Algumas de suas marcas mais comuns são:
• Confusão entre competência e adesão irrestrita a ideias;
• Elevação de figuras científicas ao status de autoridades intocáveis;
• Falta de senso crítico e, sobretudo, autocrítico, com a consequente
consagração da mera reprodução correta ao invés da inventividade e do
diálogo;
• Certa preguiça intelectual que inibe a busca pela argumentação mais
consistente, embora assumidamente provisória;
• Domesticação acadêmica: somos induzidos a repetir fórmulas
consagradas, ao invés de refletir com e sobre estas ditas fórmulas.
(cf. Demo, 1995, p. 46)
De acordo com análise de Pedro Demo, duas ocorrências ou posições
mais comuns no horizonte do argumento de autoridade são: (a) a posição
do perito, em que a função ou especialidade fala mais alto que os esforço
de investigação e criticidade; por exemplo: se um teólogo X afirmar
que uma teologia de matriz Y não é confiável do ponto de vista bíblico-
teológico (para não dizer “liberal” ou mesmo “herética”) e simplesmente
acreditarmos nele, estaremos expressando confiança na autoridade e
dando menos importância à investigação sobre se o argumento procede
ou não; (b) a posição de prestígio, que se baseia na fama da pessoa que
66 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
afirma e menos na competência da respectiva pessoa na sustentação de
seu argumento. Nesse caso, como diz Demo (1995, p. 49), “o prestígio
que não se refira à competência da respectiva pessoa, obtido pois por
mérito, é atribuído por critérios outros, por vezes escusos ou obscuros,
nos quais predomina a posição de poder sobre a capacidade técnica”.

Em ambos os casos, temos resultados problemáticos para o espírito


crítico, livre e, ao mesmo tempo, humilde que aprendemos dos exemplos
de sabedoria bíblica (nas unidades I e II desta disciplina). No primeiro
caso, temos uma relação fiduciária (crença cega) com a competência –
se quem disse, foi um especialista ou catedrático na área, quem somos
nós para discutir? Já no segundo caso, temos uma relação fiduciária com
o poder – se quem disse foi o presidente da denominação, que ocupa
este cargo há décadas e é um “ungidasso” de Deus, quem somos nós,
meros leigos mortais, para dizer que as coisas não são desta maneira?
(Você, leitor/a, sabe bem de quem estou falando aqui, certo?).

Estes exemplos nos conduzem às implicações negativas do argumento de


autoridade, conforme apontadas por Demo (2005, p. 51) em outro lugar:

1. O argumento de autoridade fere a convivência igualitária: entre pessoas


que pensam conforme aquela estrita maneira de elaboração do que quer
que seja – a doutrina, a fé, a política ou o gênero – e as pessoas que
adotam um ponto de vista diferente. Se o teologizar acadêmico, por sua
vez, é argumentar em torno de pontos de vista, então o argumento de
autoridade fere a possibilidade de convivência harmônica e respeitosa
entre contrários ao evocar o “olho de Deus” (isto é, a visão absoluta
sobre a realidade).

2. O argumento de autoridade implica em alguma forma de imbecilização,


uma vez que evita, apaga ou até mesmo exclui (deixa de seguir nas redes
sociais, dá um “block”, e outras formas comuns hoje em dia) a opinião
diferente.

3. O argumento de autoridade implica em subordinação do argumento


Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 67
alheio, especialmente do outro que se encontra numa posição social,
econômica e de poder menos privilegiada e deve “apenas crer” ou
apenas aceitar a verdade pronta que vem de cima para baixo (e ‘ai’
dele/a se ousar questionar!).

Uma das formas de se escapar das armadilhas do argumento de


autoridade é, nos termos de Demo, apostar na autoridade do argumento
– ou o que eu chamaria de “a força de uma argumentação admitidamente
lacunar”. Mas como é isso?

Demo (2005, p. 47) defende que autoridade do argumento é aquela forma


não autoritária de argumento que é capaz de “convencer sem vencer”,
pois busca ganhar o (e não do, percebe a diferença?) outro, o/a colega de
discussão, por meio do debate aberto, sujeito a questionamentos, crítica e
autocrítica, sendo inventado para “deixar campos abertos” – que é, como
vimos, uma característica da argumentação, ou seja: para ser um argumento
(não transcendental ou de autoridade) precisa ser discutível, questionável,
refutável. Do contrário, está mais para “ordem” a ser obedecida.

De acordo com Demo (2005, p. 51), “o jogo aberto com base na autoridade
do argumento pressupõe parceiros legítimos, que usam a palavra e
deixam os outros também usar, fundamentam o que dizem, questionam
e se autoquestionam”. Afinal, como ele também salienta, “quem não
sabe pensar acredita no que pensa. Quem sabe pensar, questiona o que
pensa” (p. 41). Isso significa admitir, sem cair em relativismos estéreis
do tipo “vale-tudo”, que é possível dizer o mesmo de uma outra forma,
ou sustentar um modo de pensar diferente sobre uma mesma realidade.
Mas, também, afirmar que é possível sempre aprimorar nossas formas
de pensar e de dizer a fim de pensar e dizer melhor, não simplesmente
para suplantar maneiras de pensar precedentes (ou mesmo contrárias
à nossas), numa competição por quem sabe mais e, assim, quem tem
mais poder, e sim para complementá-las e manter vivo o campo do
saber humano, científico ou não. O que deve, por conseguinte, também
contribuir para a construção de uma cultura intelectual mais tolerante e
dialógica, como veremos na segunda parte desta unidade.
68 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Exercício de reflexão
Diante do exposto, agora pare, pense sobre a frase de Demo
– “quem não sabe pensar acredita no que pensa. Quem sabe
pensar, questiona o que pensa” – e então responda: Tendemos a
questionar ou interrogar mais a nossa própria forma de pensar ou
a dos outros? Em sua opinião, por que isto ocorre?

2. A construção de uma cultura de tolerância e diálogo


Começo esta segunda parte desta unidade salientando que tenho
consciência de que o assunto dessa conversa é complexo, e que não
tenho condições de cobrir todas as espécies de chão possíveis nesse
tema. Além disso, estou de acordo com Thomas M. Scanlon (2009, p.
36) quando ele diz que “a tolerância é para todos nós matéria de risco,
uma prática com altos valores em jogo”. Tratar da “crise de tolerância nos
tempos atuais” é a ementa dessa conversa. Minha pergunta principal,
a ser respondida sobretudo no segundo subtópico, é: “Será a tolerância
nossa última palavra?”. A ideia central a ser defendida é de que tolerância
é uma palavra importante; de que precisamos, sim, da construção de uma
cultura de e para a tolerância no mundo atual; mas de que, ao mesmo
tempo, ela é uma palavra limitada em termos práticos e por sua própria
“natureza”. O conceito cristão de caridade ou amor (ágape) pode nos
ajudar a ir mais fundo no tema, como veremos.

2.1. Breve contextualização histórica


A questão da tolerância surge entre os séculos XVI e XVIII em parte como
instrumento político, também como resposta a um contexto pluralista
incipiente na modernidade e, ao mesmo tempo, como uma espécie de
“puxão de orelhas” no próprio cristianismo, por demonstrar uma conduta
intolerante e visivelmente contraditória com a sabedoria dos evangelhos,
que ensinam, por exemplo, o amor ao inimigo e o oferecer a outra face.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 69


Esta crítica aliada à defesa da tolerância acontece de modo incipiente no
período Renascentista (o que inclui as contribuições do humanismo e da
própria Reforma) e depois com o Iluminismo do século XVIII, sobretudo
em filósofos como Espinoza, Locke e Voltaire. Gostaria antes de avançar
de me deter à ideia de tolerância em Voltaire. 

A obra mais contundente de Voltaire sobre a tolerância sem dúvida é


seu Tratado sobre tolerância. De modo pioneiro, este filósofo escreve
um livro, que pretende ser um “tratado”, a partir da narrativa de um
caso. Trata-se, na realidade de um assassinato ou execução sumária
pela justiça de Toulouse, na França, de um pai de família protestante
chamado Jean Callas no dia 9 de março de 1762, que Voltaire imputa
como sendo “um dos mais singulares acontecimentos que merecem a
atenção de nossa época e da posteridade” (Voltaire, 2006, p. 9). Sendo
um caso particular, dentre tantos outros ocorridos na França num período
marcadamente intolerante de sua história, em que, num passado não tão
distante, ocorreram episódios como o massacre da chamada “Noite de
São Bartolomeu”, em Agosto de 1572 na capital Paris, qual seria a razão
de tamanho espanto e interesse no caso de Calas? O que havia de tão
especial e singular nele?

Antes de responder a esta pergunta, prossigamos um pouco mais com


o relato e as constatações preliminares de Voltaire. Jean Calas era um
comerciante na região de Toulouse; convertera-se ao protestantismo
num período de efervescência dessa religião na Europa, e de grande
perseguição também aos novos convertidos, sobretudo em países
majoritariamente católicos e recheados de fanáticos religiosos como era
a França. Toda a vizinhança sabia ou suspeitava da opção confessional
dos Calas, e os tratava com desconfiança. Jean tinha esposa e filhos
e, segundo relata Voltaire, sempre fora reconhecido por todos ao seu
redor como “um bom pai”. Entretanto, um de seus filhos chamado Marco
Antônio, que era erudito, mas tinha um espírito inquieto e sombrio, não
tendo obtido sucesso no negócio profissional que pleiteava, nem em
conseguir espaço para atuar como advogado, uma vez que necessitava

70 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


de certificados de catolicidade, resolveu dar cabo à própria vida,
suicidando-se numa noite após um jantar em família. Durante o pranto
e a dor vivenciada pelos pais, enquanto um amigo da família chamava
médicos e a justiça, a vizinhança começou a se aglomerar perto da
casa dos Calas. Sobre eles, Voltaire (2006, p. 11) relata: “Esse povo é
supersticioso e fogoso; considera como monstros os irmãos que não
são da mesma religião”.

Até que um fanático em meio à multidão gritou que Jean Calas havia
sido responsável pelo enforcamento do próprio filho, e logo o boato que
se espalhava pela cidade era de que aquele foi um caso de parricídio: o
pai e a mãe arquitetaram a morte do filho supostamente porque este se
recusara a converter-se à religião protestante. Isto faz lembrar a mitologia
da “primeira pedra”, protótipo inerente à violência mimética (a que brota
da imitação) sobre a qual tanto fala René Girard em sua obra. Segundo
ele, “longe de ser puramente retórica, a primeira pedra é decisiva por ser a
mais difícil de lançar. Mas por que será ela tão difícil de lançar? Porque é
a única que não tem modelo”. Assim, depois de lançada a primeira pedra,
o primeiro grito de “condenado” ou “assassino”, como no caso de Calas,
completa Girard, “a segunda vem muito rapidamente, graças ao exemplo
da primeira; a terceira vem ainda mais rápido, pois ela tem dois modelos
em vez de um, e assim por diante” (Girard, 2012, p. 91). 

Crendo, portanto, na inocência de Jean Calas e de sua família, nosso


autor sai em defesa de seu caso neste livro, embora a sentença principal
(condenação e morte por enforcamento) já havia sido sacramentada e
efetuada sobre este comerciante quando Voltaire escrevia estas linhas.
Não entrarei aqui nos pormenores da análise de Voltaire sobre o longo
julgamento dos demais membros da família e a revisão do processo
todo, que se estendeu para além da execução de Jean. Parece-me mais
interessante, para meus propósitos neste ensaio, destacar algumas das
ideias sobre a tolerância que do relato subjazem. E o ponto de partida
de Voltaire, além do caso emblemático de Jean Calas, é a própria onda
de violência e intolerância que assolara a Europa nas guerras religiosas
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 71
entre católicos e protestantes nos últimos dois séculos (XVI e XVII). 

Voltaire, como um bom iluminista, apela para a ética proveniente


do direito natural, o da tolerância, que para ele se resume na máxima
negativa (muito semelhante a de Jesus, ou como elaborada positiva e
universalmente no “imperativo categórico” de Kant): “Não faça o que não
gostaria que lhe fizessem”. Se todos os homens de sua época, portanto,
se orientassem por este direito, jamais poderia haver ocasião em que um
chega para outro e diz: “Creia naquilo que eu creio e no que você não pode
crer ou morrerá” (Voltaire, 2006, p. 33). Na prática, porém, muitas vezes
prevaleceu o que Voltaire chamaria de antinatural direito à intolerância,
mas que tenho minhas dúvidas se este é tão contrário à natureza humana
assim. O perigo da intolerância, como assevera Aldo Natale Terrin:

É bastante grande quando uma religião acredita poder


“dispor” de Deus a seu arbítrio como princípio regulador
de toda verdade. A intolerância de fato é o outro lado da
moeda, consequência última das próprias convicções
quando se fundamentam na ideia de que o próprio
divino se sujeita às leis da nossa lógica e portanto
estamos convencidos de que não pode haver outra
verdade, outra liberdade, outro modo de conceber Deus
e o mundo. (Terrin, 2004, p. 338)

E isto se torna ainda mais crucial entre religiões monoteístas, em especial o


cristianismo, o que, como veremos adiante, sugere a necessidade, quando
do encontro ou diálogo entre as religiões no espaço público, de se evitar
que a verdade como concepção metafísica seja usada como árbitro das
decisões ou meio de favorecimento desta ou daquela cosmovisão. Fica
evidente, portanto, que a defesa da tolerância de Voltaire tem seu foco no
monoteísmo, mormente o cristão, e se vale do espírito do direito natural
que supostamente garantiria a todos, numa época de esclarecimento, a
liberdade de crença, de religião e de opinião. Por isso, ele questiona, de
modo quase apologético, se a mais perigosa de todas as superstições
72 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
não seria aquela “de odiar seu próximo por causa de suas opiniões?”
(Voltaire, 2006, p. 97). 

Voltando ao espanto de Voltaire com o caso de Jean Calas e a singularidade


que ele enxerga nesta história, entendo que isto tem uma dupla origem:
(a) primeiro, pelo fato da intolerância e o fanatismo religiosos ainda
aparecerem com pujança numa sociedade supostamente esclarecida (ou
em vias de esclarecimento), como ele entendia ser a sua; (b) segundo,
porque esta violência partira de muitos dos que, como ele próprio, se
diziam cristãos em sua época, os quais, ignorando os princípios basilares
que regem a sua religião, oprimiam, atacavam e até matavam em defesa
de sua crença. Referindo-se a eles, dizia Voltaire (2006, p. 81) que se
quisessem “assemelhar-se a Jesus Cristo, que se tornassem mártires e
não algozes”. Tanto no Tratado sobre a tolerância quanto no Dicionário
filosófico, ele parece se repetir em seu lamento e denúncia pelo e ao
cristianismo. No primeiro ele disse, colocando-se no próprio bojo de sua
acusação-constatação: “Digo-o com horror, mas com verdade: somos nós,
cristãos, somos os perseguidores, os algozes, os assassinos! E de quem?
De nossos irmãos” (Voltaire, 2006, p. 52). Já no Dicionário Filosófico, ele
explora um dos paradoxos do cristianismo precisamente no que concerne
à tolerância: “De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve
inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais
intolerantes de todos os homens” (Voltaire, 1978, p. 291). 

Como a abordagem de Voltaire não se trata de uma investigação


fenomenológica da religião, mas de um aporte filosófico à tolerância a
partir do caso da religião cristã de sua época, não encontramos em sua
obra uma análise mais profunda sobre as razões que levam pessoas
a agirem de maneira tão passional e violenta – ou seja, ignorando
“virtudes” como a tolerância – quando o assunto é religião. Parodiando
o conhecido dito de Blaise Pascal, a religião tem razões que a própria
razão desconhece. Ela envolve o intelecto, é claro, mas menos o intelecto
que o coração, e menos o coração que as entranhas. Um religioso vive

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 73


por certos princípios, e na defesa apaixonada desses princípios os perde
muitas vezes de vista, sendo capaz de afirmá-los como confissão, mas
negá-los, consciente ou inconscientemente, como prática.

As práticas religiosas, desse modo, nem sempre coadunam com as


teorias provenientes de uma determinada religião. Nesse sentido, vale
apelar para a, quem sabe polêmica, mas contundente, afirmação de
John Caputo de que “a religião é para os amantes, apaixonados pelo
impossível, que fazem com que o restante de nós pareça vago”, ao que
ele completa dizendo que:

Na religião, o amor de Deus está exposto habitualmente


ao perigo de confundir-se com a profissão de alguém ou
o ego de alguém, ou o gênero de alguém, ou a política de
alguém, ou a ética de alguém, ou o esquema metafísico
favorito de alguém, ao qual este se sacrifica de maneira
sistemática. Então, ao invés de fazer sacrifícios pelo
amor de Deus, a religião se inclina a fazer um sacrifício
do amor de Deus (Caputo, 2005, p. 121).

Como não atrelar as experiências e significações do sagrado com


as paixões e idiossincrasias do humano, do profano, do mundano?
Ademais, outra razão própria da religião é que, ao que parece, ela mexe
não apenas com os gostos, preferências ou meras opiniões das pessoas,
mas, em grande parte, com o “tudo ou nada” de sua existência. É essa
ambiguidade da religião que pode tornar artificial e até inútil o discurso
sobre “paz” ou “tolerância” entre as religiões ou convicções semelhantes,
caso não se reconheça que a violência, a guerra, a disputa, a intolerância,
ódio e injustiça sempre fizeram parte da história das religiões em todo o
mundo tanto quanto, ou mesmo em decorrência das diferentes práticas e
preceitos sobre o amor, a tolerância, o respeito, a justiça, equidade, paz, e
assim por diante. Não são os deuses que estão em guerra, mas os seus
seguidores. Eliminar esta ambiguidade – parece-me que este é o ponto
de Caputo – é o mesmo que remover a religião.

74 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Exercício de fixação
Sobre o contexto histórico e filosófico de surgimento do tema da
tolerância, é possível afirmar que:
a. O tema surge através da obra “Tratado sobre tolerância”, de
Voltaire.
b. Surge em parte como resposta ao contexto pluralista incipiente
na modernidade, embora também como instrumento político.
c. As guerras de religião dos séculos XVI e XVII marcaram o fim da
discussão sobre tolerância, iniciada no período renascentista.
d. Enquanto “apanágio da humanidade”, tem sido discutida ao
longo da história; os filósofos gregos já debatiam o problema da
tolerância.

2.2. Será a tolerância nossa última palavra?


É provável que o primeiro a fazer essa pergunta tenha sido Tomáš Halík
no livro Quero que tu sejas! (2015), que trata sobre o amor. É de se supor,
portanto, que o amor seja uma palavra mais forte que a tolerância. Em que
medida, porém, podemos falar em amor em meio a tempos conflituosos,
nos quais até o amigo e o membro da família entram em choque por
causa de opiniões divergentes? Voltarei a este ponto adiante. É verdade
que – colocando agora essa conversa em termos mais coloquiais e atuais
– a gente vem se estranhando há certo tempo; que nos envolvemos até
à exaustão em intermináveis discussões nas redes sociais; que estamos,
sim, divididos no horizonte em que a política se tornou uma espécie de
nova religião; e que essa divisão ou polarização começa em casa, no
grupo da família no WhatsApp, até ganhar os espaços públicos.

Ou seja, não conseguimos mais esconder aquilo que não suportamos


ver no texto, na boca, na timeline e no perfil dos outros – o “não suporte”
sendo, assim, a fonte da intolerância, já que “tolerar, como a raiz latina
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 75
da palavra sugere, significa suportar ou carregar o que habitualmente
é incômodo ou desagradável” (Halík, 2015, p 180). Scanlon vai além e
diz que a tolerância envolve “aceitar como iguais aqueles que diferem
de nós” (Scanlon, 2009, p. 34). Iguais em direitos e cidadania, sim, mas
sobretudo em humanidade.

Mas, voltando à manifestação da intolerância e do ódio, ela é hoje mais


veloz do que nunca (talvez aí resida parte do problema, a velocidade
que nos incita a ignorar “aquela pausa” necessária para reflexão e
ponderação). Ou seja, hoje os gestos de intolerância estão ao alcance
digital de “teclados aparentemente inócuos”, por meio dos quais,
algumas vezes, proferimos (talvez sem perceber) “verdadeiras sentenças
de morte”, parafraseando Eric Hobsbawm (1998).

A velocidade da conexão permite que “a opinião se faça bit” e se espalhe


qual vírus em fragmentos de percepção da realidade, sendo emitida por
qualquer pessoa sem que passe por qualquer filtro ou edição – a menos
que essa pessoa tenha um eu-editor bem exigente, o que é cada vez
mais raro nos dias de hoje – ela pode publicar ou (o que é mais comum)
replicar a pérola, besteira, mentira ou insanidade que quiser sem censura.

E o que me desperta curiosidade nesse espectro é que não paramos


para pensar com o quê ou com quem estamos discutindo, para não dizer
vociferando, nas redes sociais. Muitas vezes é só com um comentário, de
uma pessoa que não conhecemos, que às vezes nem sequer vimos, mas
que decidiu que nós não prestamos por causa de alguns parágrafos que
escrevemos. A frase de Voltaire, no Tratado sobre tolerância, que mais
faz ressonância em mim é a seguinte:

O direito da intolerância é, portanto, absurdo e bárbaro;


é o direito dos tigres, e realmente horrível, porque os
tigres não dilaceram senão para comer, enquanto nós
nos dilaceramos por causa de alguns parágrafos.
(Voltaire, 2006, p. 33, grifos meus)

76 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Há algum tempo eu postei uma frase no stories de minha conta no
Instagram, da Joan Chittister no livro em que ela discute a sabedoria de
Eclesiastes, em que ela dizia: “Um tolo em posse de um diamante nada
mais é que um tolo com um diamante” (Chittister, 2017, p. 33). Então, em
minha perspicácia ferina, resolvi emendar: “Um presidente tolo jamais
passará de um tolo ocupando a cadeira da presidência”. Mesmo que não
tivesse dito a que presidente eu me referia – afinal, temos tantos tolos
que já ocuparam essa posição no Brasil e no exterior –, uma usuária
decidiu que eu não prestava como pessoa, pois deveria estar rezando
pelo nosso atual presidente, ao invés de criticar, e torcendo pelo Brasil!
Ou seja, ao invés de me perguntar por que (ou de quem) eu penso isso
que escrevi, essa pessoa preferiu tomar minha frase como uma ofensa
pessoal e, no fim, me desqualificar “enquanto cristão”. Enfim, é somente
um caso em meio a tantos.

Umberto Eco disse que a internet “deu voz aos imbecis”, e foi bastante
criticado por isso. Mas, em entrevista à Revista Veja (Volf, 2015), ele
deu a seguinte explicação (o que vou dizer na verdade é uma paráfrase):
pense, são 7 bilhões de pessoas, e é natural que no meio delas tenhamos
muitos imbecis e que grande parte desses esteja na internet dando
sua opinião – muitos podem ser até bons pais e mães, trabalhadores
honestos, mas que falam do que não entendem, se achando os últimos
experts no assunto. Estaria Eco sendo intolerante com quem ele chama
de “imbecil”? Bem, estaria se dissesse que precisamos fazer “calar” os
ditos imbecis, isto é, que eles não têm direito a opinar.

É preciso deixar claro, a partir dessa referência ao cenário atual, que o


problema da tolerância aparece mais, portanto, em “questões de opinião”.
“É por isso que surge com tanta frequência, ou quase sempre”, diz André
Comte-Sponville (2009, p. 175). E por que questões de opinião dividem
tanto e tendem a gerar intolerância?

Há muitas razões. Mas suspeito que, em parte, isso esteja ligado ao fato
de que nos esquecemos da fragilidade e da provisoriedade das opiniões.
Ou porque “damos um preço muito alto às nossas conjecturas”, usando
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 77
as palavras de Montaigne. Meu amigo Marcos Monteiro, de quem tenho
imensa saudade, costumava dizer que “todas as ideias precisam ser bem-
vindas, porque todas as ideias são provisórias”. Opiniões, nesse sentido,
normalmente tendem a dividir e excluir quando ocultamos seu caráter
inacabado e provisório do cenário público em que elas são expostas.

A tolerância como “força prática” (ou como virtude), disse André Comte-
Sponville (2009, p. 182), “funda-se em nossa fraqueza teórica, isto é,
na incapacidade em que estamos de alcançar o absoluto”. Daí que a
tolerância decorre de ou se apoia em outra virtude, pouco praticada em
nosso meio ultimamente, que é a humildade – esse esforço que uma
pessoa empreende para se livrar das ilusões que tem a respeito de si
própria (Comte-Sponville, 2009, p. 160). A humildade é um antídoto
contra o falso “eu”.

De novo: por que devemos tolerar-nos mutuamente, dentro de um


horizonte possível e limitado? Voltaire deu a resposta no século XVIII:

Devemos tolerar-nos mutuamente porque somos


todos fracos, inconsequentes, sujeitos à mutabilidade,
ao erro. Um caniço vergado pelo vento sobre a lama
porventura dirá ao caniço vizinho, vergado em modo
contrário: ‘Rasteja a meu modo, miserável, ou farei um
requerimento para que te arranquem e te queimem’?
(Voltaire apud. Comte-Sponville, 2009, p. 182)

Texto de apoio
Num ensaio chamado “A inimizade e a amizade”, o escritor tcheco
Milan Kundera disse algo que ilustra bem esse ponto discutido
acima:

‘Hoje, eu sei: na hora do balanço final, a ferida mais dolorosa é das


amizades feridas; e nada é mais tolo que sacrificar uma amizade pela

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política. (...) Em nosso tempo, aprendemos a submeter a amizade
àquilo que chamamos de convicções. E até mesmo com orgulho de
uma retidão moral. É preciso realmente uma grande maturidade para
compreender que a opinião que nós defendemos não passa de nossa
hipótese preferida, necessariamente imperfeita, provavelmente
transitória, que apenas os muito obtusos podem transformar numa
certeza ou numa verdade. Ao contrário da fidelidade pueril a uma
convicção, a fidelidade a um amigo é uma virtude, talvez a única, a
última’. (Kundera, 2013, p. 114-115, grifos meus)

E é uma pena que muitos de nós tenhamos nos rendido a tal tolice, pois
a política vive de momentos, de eleições, de mandatos, e que, como tais,
têm prazo de validade. Governos passam (o atual, um dia, deixará de ser
e dará lugar a outro). Já amizade é uma das dádivas da vida sem prazo de
validade, e que não podemos deixar que pereça por causa de querelas sobre
os políticos que, no fim das contas, estão muito alheios ao que acontece no
universo privado das pessoas que votaram e fizeram campanha para eles.

Não canso de apreciar a cômica e admirável história de amizade entre


o cristão britânico G. K. Chesterton e seu principal opositor nas ideias,
o cético irlandês George Bernard Shaw. Seus debates públicos eram
apreciados pelo tom sarcástico e bem-humorado com que discutiam e
discordavam sobre questões variadas, de fé, ciência, sociedade.

Certa vez, Shaw disse: “Se eu fosse gordo como você, eu me enforcaria”.
No que Chesterton respondeu: “E se eu fosse me enforcar, usaria você
como corda”. Todo debate caloroso entre ambos terminava, porém, em
uma conversa descontraída em um pub.

Chesterton disse que seu amigo Shaw era “como a Vênus de Milo: tudo
nele era admirável”. Enquanto Shaw, por sua vez, costumava dizer que
o mundo não era suficientemente agradecido por ter Chesterton como
seu habitante. Será que estamos tão distantes no espaço-tempo e
culturalmente desse tipo de relação, em que amizades ou pelo menos
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 79
a cordialidade pode ser cultivada em meio às diferenças? Não estou
aqui advogando que devemos procurar agradar a todo mundo. Mesmo
os mais idealista, como eu, sabem que isso é impossível, tampouco é
recomendável. Pagamos um preço por assumir com coragem quem
somos, e por brigar por causas que valem à pena que se lute por, do
contrário nos desumanizamos.

Meu ponto aqui também é chamar atenção para a questão (ou melhor,
a possibilidade) da empatia, que eu defino como a capacidade de ver o
outro em nós e de nos ver no outro. Somos todos humanos, afinal! Ou,
como diz o poema de Kundera (2013, p. 21) no livro Um encontro: “O
que nos resta quando chegamos até aqui? O rosto; o rosto que esconde
‘esse tesouro, essa pepita de ouro, esse diamante escondido’, é o ‘eu’
infinitamente frágil, tremendo em um corpo”.

Um pouco de empatia humana, associada com a tolerância, mostra


que ela precisa do apoio de outras virtudes. Demonstraria também que
a tolerância não tem a ver nem com displicência nem com indiferença,
ou seja, não importa o que o outro faça ou pense desde que não me
incomode nem me impeça de ser, de ir e vir, e de pensar livremente.
Pelo contrário, trata-se de uma deferência pelo ponto de vista do outro,
por mais que ele se choque com o meu. Ou, pelo menos, encena uma
disposição para “ouvir”, outra prática em desuso em nossos dias.

Uma vez que a tolerância não deve ser confundida com indiferença,
também não pode ser sinônimo de passividade, de tolerância universal
ou de “vale-tudo”, pois isso seria a sua própria negação. É preciso saber
estabelecer e respeitar limites, sobretudo aqueles que envolvem a
preservação da vida e do corpo. Nem tudo precisa e pode ser “tolerado”.
Porém, o agir em resistência à intolerância violenta, injusta, muitas vezes
cruel e, portanto, não-tolerável, deveria se dar dentro do horizonte de
valores preconizados pelos defensores da tolerância. Ou seja, ou uma
sociedade tolerante se recusa a resistir e lutar com as armas empunhadas
pelos agentes da intolerância, ou ela não pode ser chamada de uma
sociedade tolerante.
80 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
O diálogo, fundamental para a democracia e para uma sociedade
tolerante, só pode existir entre “pessoas com uma grande lucidez”, disse
Tomáš Halík (2015, p. 188). Ou seja, é preciso mais que a tolerância para
a existência de uma sociedade tolerante. É preciso outras palavras, tais
como lucidez, bom senso, humildade, empatia e, porque não acrescentar:
é preciso amor. E aqui digo “é preciso” não no espírito cruzado e forçoso
de quem diz “você precisa fazer isso, ou...”, até porque o amor – já que
falamos dele – pressupõe o ser e o deixar ser e, como tal, implica numa
dose de incerteza. Isto é, quem ama pode até esperar amor de volta, mas
sabe que há uma chance grande de não receber. Digo no mesmo espírito
da música “É preciso saber viver”, de Roberto Carlos, que brada: “Toda
pedra no caminho você pode retirar/ Uma flor que tem espinho você pode
se arranhar/ Se o bem ou mal existem você pode escolher/ É preciso
saber viver”. “Saber viver” é sinônimo de sabedoria.

A tolerância é, afinal, uma virtude intermediária, que pode pouco sem a


presença ou associação com outras virtudes, como o amor. Por isso, ela
não tem, ou não é, a primeira nem a última palavra. Mas, se começarmos
com a prática dela – especialmente numa época de extremismos e
exageros, como a que vivemos no Brasil nos últimos anos – já estaremos
certamente em melhores condições.

Exercício de aplicação
O apóstolo Paulo, escrevendo aos Romanos 14.1-8, disse:
1
Aceitem os que são fracos na fé e não discutam
sobre as opiniões deles acerca do que é certo ou
errado. 2 Por exemplo, um irmão crê que não é errado
comer qualquer coisa. Outro, porém, que é mais fraco,
come somente legumes e verduras.  3 Quem se sente
à vontade para comer de tudo não deve desprezar
quem não o faz. E quem não come certos alimentos
não deve condenar quem o faz, pois Deus os
aceitou. 4 Quem são vocês para condenar os servos
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 81
de outra pessoa? O senhor deles julgará se estão em
pé ou se caíram. E, com a ajuda de Deus, ficarão em
pé e receberão a aprovação dele. 5 Da mesma forma,
há quem considere um dia mais sagrado que outro,
enquanto outros acreditam que todos os dias são
iguais. Cada um deve estar plenamente convicto do
que faz. 6 Quem adora a Deus num dia especial o faz
para honrá-lo. Quem come qualquer tipo de alimento
também o faz para honrar o Senhor, uma vez que dá
graças a Deus antes de comer. E quem se recusa a
comer certos alimentos deseja, igualmente, agradar
ao Senhor e por isso dá graças a Deus.  7  Pois não
vivemos nem morremos para nós mesmos.  8  Se
vivemos, é para honrar o Senhor. E, se morremos, é
para honrar o Senhor. Portanto, quer vivamos, quer
morramos, pertencemos ao Senhor. (NVT)

De acordo com o texto acima, onde estão as bases para a construção


de uma cultura de respeito, diálogo e tolerância, a começar pela
comunidade de fé?

a. Na consistência das opiniões pessoais sobre o que é certo e o


que é errado.

b. Na unidade entre homogêneos, os mais fracos entre si e os mais


fortes entre si.

c. Na constatação de que, no fim das contas, ninguém vive ou


morre apenas para si mesmo, mas o faz no Senhor, que é Senhor
de todos/as.

d. Na indiferença para com os modos de ser, crer e pensar do outro.

82 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Conclusão
Talvez um bom resumo para o que conversamos nessa unidade esteja
expresso no conceito de “pensamento alargado”, de Luc Ferry (2010, p.
222), que ele lançou como um modo de responder à questão do sentido
da vida hoje (e que, diria eu, também pode nos ajudar a repensar o sentido
da vida para nós, vivendo num país eivado de polarizações, nem sempre
no sentido mais salutar possível). Segundo ele, o pensamento alargado
pode ser entendido a partir de dois momentos ou, como prefiro dizer,
movimentos:

1. O movimento “arrancar-se” ou sair de si em direção ao lugar do outro,


“não somente para compreendê-lo, mas também para tentar, num
momento em que se volta para si, olhar seus próprios juízos do ponto
de vista que poderia ser dos outros”. Essa é uma forma não apenas
de conhecer melhor o outro, mas também reconhecer pontos de
conexão entre o outro e eu.

2. O movimento retornar para si e, assim, rever o seu próprio lugar


ou posição, tomando consciência de seus limites, seu “círculo de
egocentrismo”, e olhando agora desde uma perspectiva mais ampla
ou alargada. Quando permanecemos muito enviesados em nosso
próprio caminho ou comunidade de origem podemos chegar, como
aponta Ferry (idem), ao ponto de “julgar que ela é a única possível
ou, pelo menos, a única boa e legítima”. Nada mais lastimável para o
pensamento alargado.

O resultado desses dois movimentos é que, primeiro, podemos formar


opiniões mais seguras sobre o outro; em segundo lugar, podemos
enriquecer nossas próprias ideias e, em terceiro, tornar-nos menos
dogmáticos, isto é, menos dados a impor nossas ideias ou pontos de
vista em detrimento daqueles dos outros. Pois como diz Ferry (idem),
“precisamos dos outros para compreender a nós mesmos, precisamos
de sua liberdade e, se possível, de sua felicidade para realizar a nossa
própria”.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 83


Em suma, pensar de modo alargado é admitir que a realidade, seja ela
qual for, não se resume à lógica de ou-ou, “8 ou 80”, “preto ou branco”,
“direita ou esquerda”, sem vias alternativas, mas é multicolor, tem vários
(e não apenas dois) lados e requer, portanto, um pensamento voltado à
complexidade, não ao dogmatismo.

Referências
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Mundo Cristão, 2016.

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Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 85


UNIDADE IV– A escrita acadêmica e a prática da pesquisa
Introdução
Chegamos até a última unidade deste curso, que tratará da relação entre
a escrita acadêmica e a prática de pesquisa. Essa unidade é, por força
de suas próprias necessidades e demandas, a mais prática de todas,
no sentido de que propõe mais caminhos, exemplos e até mesmo dicas
metodológicas, pensando mais na execução, no que e no como fazer.
A ideia básica que a atravessa, endereçada especificamente em uma
das videoaulas a que você terá acesso adiante, é a de que a escrita e
a pesquisa são atividades diferentes, porém, que precisam caminhar
juntas para que se obtenha bons resultados na vida acadêmica. Uma
boa pesquisa, marcada pelo exame amplo e meticuloso das fontes
disponíveis (ou mesmo as que disponibilizamos, porque produzimos
ou forjamos na pesquisa) sobre nosso assunto ou objeto de pesquisa,
deve gerar uma boa escrita, um texto coerente ou um “relato ordenado”,
utilizando palavras do evangelista Lucas. Não é tão simples assim, é
verdade, mas quando damos atenção ao processo, e temos paciência em
respeitar o tempo de maturação, reflexão e análise imanentes à pesquisa
e a trajetória de cada pesquisador, perceberemos que os resultados ou
frutos certamente virão. O fascínio da pesquisa, discutiremos adiante,
está ao mesmo tempo em saber os modos de caminhar (o processo
metodológico e o planejamento) e, ao mesmo tempo, não ter a plena
certeza do caminho, nem prever onde se vai chegar ou os resultados.
Podemos nos surpreender. Espero que você surpreenda. E que a teologia
te surpreenda. Por que não?

Objetivos da unidade
1. Refletir sobre experiências, princípios e tipologias da escrita
acadêmica;
2. Identificar diferenças entre escrita e pesquisa;
3. Reconhecer a complementaridade entre pesquisa e escrita;
4. Desenvolver a mentalidade do pesquisador e o fascínio pela
pesquisa.
86 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
1. A escrita acadêmica: experiências, princípios e tipologias
1.1. Escrita: abertura de poços profundos
Não gostaria de começar esse tópico com “princípios e tipologias”, mas
(como tem sido minha tônica até aqui nesta disciplina) com inspiração –
deixemos os princípios e tipologias para um segundo momento.

Um dos escritores que mais me inspira até hoje é o padre holandês Henri
Nouwen. Ele foi um dos escritores cristãos do século XX que, em minha
opinião, mais nos ensinou que a escrita pode ser, ao mesmo tempo, um
lugar de expressão do pensamento quanto de busca do pensar correto;
pode ser tanto acadêmica quanto artística (no sentido de criativa e
livre), embora nas universidades se dê tão pouco valor a escrita como
expressão artística ou mesmo poética. Também mostrou que ela é um
lugar de busca e encontro da identidade, e expressou ambas as coisas
(encontro – consigo, com Deus e com o próximo – e identidade) de modo
bastante honesto. A honestidade intelectual e a integridade de Nouwen
ficam evidentes em sua escrita, o que mostra que ela também pode ser
um lugar de desenvolvimento de nossa espiritualidade.

Em seu livro Pão para o caminho (‘Bread for the journey’), ele escreveu
algumas meditações sobre escrita, que traduzi, reuni e comento abaixo em
forma de três lições, sobre as quais gostaria que refletíssemos adiante.

Lição 1: Escrever pode ser uma forma de salvar o seu dia

Escrever pode ser uma verdadeira disciplina espiritual.


Escrever pode nos ajudar a nos concentrar, a entrar
em contato com as agitações mais profundas em
nossos corações, a clarear nossas mentes, a processar
emoções confusas, a refletir sobre nossas experiências,
a dar expressão artística ao que estamos vivendo, e a
armazenar eventos significantes em nossas memórias.
Escrever pode ser bom também para quem vai ler o que

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 87


escrevemos. Frequentemente um dia difícil, doloroso
ou frustrante pode ser ‘redimido’ ao se escrever sobre
ele. Ao escrever nós podemos evocar o que vivemos e,
então, integrar essa vivência de modo mais pleno em
nossas jornadas. A escrita então pode ser uma salva-
vidas tanto para nós quanto para os outros. (Nouwen,
1997, April 27).

Comentário: sem dúvida, são muitos os benefícios que são agregados à


nossa vida, em primeiro lugar, quando resolvemos nos dedicar à escrita.
Só quem escreve pode saber. Normalmente travamos com a escrita, pois
pensamos que ela é uma atividade exclusiva aos escritores e autores
profissionais, que supostamente possuem um talento ou dom especial
que os possibilitou fazer aquilo com excelência. Não negarei aqui que o
talento faz a diferença. Mas uma coisa é certa: ninguém nasce escritor
ou escritora, ele/a se torna. Mas isso é um detalhe para outro momento.
A questão de Nouwen aqui diz respeito aos benefícios que a escrita
pode trazer a qualquer um/a que se puser a escrever, mesmo que para
si mesmo/a, em um diário pessoal, sobre suas experiências diárias. Ela
nos ajuda a elaborar e discernir melhor os acontecimentos, as atitudes e
decisões que tomamos naquele dia, e por isso ela é também uma atividade
espiritual. Nouwen também fala de uma segunda instância ou momento:
quando resolvemos partilhar isso com outras pessoas. Quando comecei
a escrever a publicar textos sobre minha jornada cristã e humana, não
imaginava o alcance e impacto que eles tinham sobre leitores/as. Hoje
percebo, com Nouwen, que, o mesmo texto que “salvou meu dia” certa
vez, também pode ser instrumento para salvar o de outros. Partilhamos
um pedaço de nós mesmos/as em um texto, que a partir de então não
será só nosso.

Lição 2. Escrever pode provocar a abertura de poços profundos

Escrever não é apenas uma anotação de ideias.


Frequentemente se diz: ‘Eu não sei o que escrever. Não
tenho pensamentos que valham a pena ser anotados’.
88 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Porém, a boa escrita, em si, nasce do próprio processo de
escrever. Tal como simplesmente sentamos em frente a
uma folha de papel e começamos a expressar em palavras o
que está em nossas mentes ou em nossos corações, novas
ideias emergem, ideias quem podem nos surpreender e nos
levar a lugares interiores que mal sabíamos que estavam
lá. Um dos aspectos mais prazerosos da escrita é que ela
abre poços profundos para tesouros escondidos que para
nós são bonitos de ver, e às vezes para os outros também.
(Nouwen, 1997, April 28).

Comentário: Uma das “leis” mais ou menos aceitas da escrita é a de que,


antes de escrever, precisamos ter algo a dizer. Isso não se consegue sem
pesquisa e aplicação à leitura – ou sem uma “investigação criteriosa”,
como veremos a seguir no caso do evangelista Lucas. Mas Nouwen está
certo quando diz, em outras palavras, que a própria escrita vai nos dando
coisas a dizer que antes não prevíamos, e nos leva a lugares (em nós e
além de nós) a respeito dos quais que não tínhamos exata consciência. A
lógica, então, passa a ser: se você tem algo a dizer (porque leu, porque se
aplicou e estudou), diga-o escrevendo e, assim, abrirá poços profundos
dentro dos quais poderá achar importantes insights escondidos e que
poderão mudar seu ponto de vista sobre seu objeto, e quem sabe o de
outras pessoas também. Na maioria das vezes, não sabemos o que
vamos escrever até começar. Desse modo, verá que a escrita não é um
fardo, mas pode ser um prazer.

Lição 3: Escrever é poder tornar sua vida disponível aos outros

“Um dos argumentos frequentemente usados para não


escrever é esse: “Não tenho nada de original para dizer.
O que quer que eu diga alguém já disse antes de mim,
e bem melhor do que eu nunca poderia ter dito”. Esse,
contudo, não é um bom argumento para não se escrever.
Cada pessoa humana é única e original, e ninguém
viveu o que essa pessoa viveu. Além disso, o que temos
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 89
vivido não é apenas para nós próprios, mas para outros
também. A escrita pode ser uma maneira muito criativa
e revigorante para tornar nossa vida disponível a nós
mesmos e aos outros. Temos que confiar que as nossas
histórias merecem ser contadas. Podemos descobrir
que quão melhor escrevermos nossas histórias, melhor
desejaremos vivê-las”. (Nouwen, 1997, April 29).

Comentário: A ouvidos céticos, pode soar um pouco romântico demais


isso que Nouwen está nos dizendo. Quer dizer então que, não importa o
que eu diga através da escrita, que aquilo será “original e único”? Bem,
se pensa assim, volte uma casa e releia a lição de número 2. Ou seja,
ninguém que “tenha algo a dizer” dirá “qualquer coisa”. E se tem algo a
dizer é porque esse algo já passou pelo filtro de seu olhar, interpretação e
experiência. E por mais que esse conteúdo não seja inovador ou original
no sentido de que nunca dantes alguém ouviu ou disse algo assim, pelo
menos o é no sentido de que ninguém o fez “na sua pele” (quer dizer, na
de quem escreve). Dado de que a sua escrita nasce das leituras feitas
e experiências vividas em sua pele, isto é precisamente o que a torna
singular, embora não inteiramente “original”. Assim, outros já podem ter
dito aquilo de modo brilhante, mas nunca sob a sua perspectiva. Não se
trata, portanto, de romantismo, mas de acreditar que vale a pena tornar-
se disponível aos outros por meio da escrita.

Exercício de reflexão
Escreva aqui abaixo três implicações ou atitudes, à luz das três
lições de Nouwen sobre a escrita, que você se sente impulsionado
a tomar em consideração em sua vida pessoal, intelectual e/ou
ministerial:

90 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


1.2. O “para quem” da escrita
Para pensar mais sobre esse tema, vamos tomar como estudo de caso
um texto bíblico que se encontra no Evangelho de Lucas, e em seguida
farei comentários práticos sobre o texto, associando-o principalmente
com a atividade da escrita.

Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos


que se cumpriram entre nós, conforme nos foram
transmitidos por aqueles que desde o início foram
testemunhas oculares e servos da palavra. Eu mesmo
investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e
decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo
Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te
foram ensinadas. (Lucas 1.1-4, NVI)

Lucas 1:1-4 é um bom exemplo de como na escrita existem certos estágios


de trabalho, que normalmente são empregados quando alguém decide
escrever um texto (ou um “relato ordenado”) sobre determinado assunto.
O que ele diz serve tanto a iniciantes na escrita, como a profissionais
experientes.

Quais desses estágios de trabalho Lucas no revela nesta introdução?

I. Consideração das fontes

A escrita acadêmica pressupõe uma relação com as fontes existentes.


Nesse sentido, Lucas reconhece que “muitos se dedicaram” à tarefa à
qual ele também se propõe a fazer, talvez até com muito mais habilidade,
fôlego e extensão que ele.

O pesquisador então deve se perguntar: Que tipos de fontes são essas?


Que tipo de relato elas apresentam? Que contribuição trouxeram para a
área?

Aqui também vemos explícito o problema da “originalidade”, endereçado


Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 91
há pouco: o que ou quem define? Imagino que Lucas, ao levar isso em
consideração, pode ter pensado: “Bem, diante de tais relatos, que posso
eu relatar”? Não é esse o conflito inicial de quem se vê na posição de ter
que redigir um relato: “Que posso eu escrever, se tantos já o fizeram e tão
bem feito”?

Aí é que está o ponto: muitos já o fizeram, mas não com o meu olhar.
Os conhecimentos podem até ser os mesmos, bem como a realidade
e os temas. A particularidade, porém, está no olhar de quem escreve:
suas perspectivas, experiências e maneiras de tratar o “comum”, que
finalmente compõem o seu “estilo”. De acordo com Arthur Schopenhauer,

O estilo é a fisionomia do espírito. E ela é menos enganosa


que a do corpo. Imitar o estilo alheio significa usar uma
máscara. Por mais bela que esta seja, torna-se pouco
depois insípida e insuportável porque não tem vida, de
modo que mesmo o rosto feio mais feio é melhor do que
ela. Assim, quando os autores escrevem em latim e imitam
o estilo dos antigos, é como se usassem máscaras, ou
seja, ouve-se bem o que eles dizem, mas não se vê sua
fisionomia, o estilo. (Schopenhauer, 2009, p. 79)

A escrita perfaz, assim, uma longa busca pelo estilo, e um longo caminho
até que o/a escritor/a encontre sua fisionomia própria. Lucas parece ter
encontrado a sua.

II. Investigação criteriosa

Em segundo lugar, ele diz que “investigou tudo cuidadosamente”


antes, para depois produzir um “relato ordenado”. A escrita acadêmica
pressupõe leitura: exaustiva, dedicada e criteriosa.

Fica evidente que esse “olhar” de Lucas não brotou do nada, sem esforço,
sem pesquisa dedicada, coleta minuciosa e análise cuidadosa das
informações que tinha à sua disposição. Ou seja, não se produz um “relato

92 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


ordenado” sem antes investir uma boa dose de leitura e investigação
sobre aquilo que se quer escrever. Há muitas besteiras sendo escritas
hoje em dia, e boa parte delas advém da falta de informação e dedicação
antes de simplesmente “se lançar” no ato de escrever. Alguém só poderá
escrever bem e ordenadamente se antes leu e pensou no que leu.

III. Organização textual

“Decidi escrever-te um relato ordenado...”

A escrita acadêmica pressupõe organização de ideias dentro de uma


ordem própria. Para que seja organizada, antes, é preciso que se tenha
algo a dizer (conteúdo), como referi anteriormente. Depois, é necessário
definir o que será dito e o que não será, o que chamamos de delimitação,
que consiste em estabelecer os limites do relato, isto é, o que se deseja
investigar e porquê. Quanto mais bem delimitado for o escopo (o nível de
alcance, os assuntos que quer tratar) do texto, melhor será seu domínio
sobre aquilo que será dito, e melhor será a qualidade desse dito. Já no
processo de dizer-escrever, que se tenha: a) estilo (o jeito próprio de dizer);
b) clareza (o texto precisa esclarecer mais do que complicar, do contrário
ele não comunica nada); c) objetividade (evitar rodeios, tergiversações
ou afirmações evasivas, e saber quando ir direto ao ponto).

IV. Finalidade

Por último, o texto de Lucas tem um “para que”, indicando finalidade,


propósito. A escrita acadêmica pressupõe definição de seus propósitos
(foco, público, fim).

Lucas queria que Teófilo tivesse “certeza” ou segurança acerca daquilo


em que fora instruído. Há um teor testemunhal e apologético (no melhor
sentido da palavra, de defesa firme, porém gentil) nesse empreendimento,
uma meta clara. A escrita precisa de uma finalidade para ser relevante,
ainda que esta finalidade possa ser, como disse no começo, a de atender
anseios e necessidades pessoais. E, ainda assim, é possível edificar outros.
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 93
Nouwen, como já disse, foi um modelo nesse quesito. Boa parte de
seus escritos são diários, escritos originalmente para si mesmo, como
hábito, necessidade, disciplina e satisfação pessoal. Mesmo assim – ou
precisamente por isso – quando publicados, ajudaram muitas pessoas a
se identificarem e encontrarem seu caminho, seja ele qual fosse. Quando
escrevemos com um “para que”, e esse cai na graça de encontrar outros
“para quês” semelhantes, dificilmente nossas palavras voltam vazias. O
propósito, portanto, é o alvo, que ajuda a evitar que nos percamos naquilo
que nós mesmos escrevemos, nem que aquilo que escrevemos se perca,
caindo no vazio.

Exercício de fixação
Voltemos ao texto de Lucas 4.1-4. Observe particularmente quando
ele diz: “Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o
começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo
Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram
ensinadas”. Há três princípios importantes do processo de escrita
de um texto presentes nessa apresentação de Lucas, que são:
a. Investigação criteriosa; formatação textual; apologética.
b. Investigação criteriosa; organização textual; finalidade.
c. Investigação criteriosa; organização textual; convicção.

1.3. O que são textos?


Literalmente, um texto é uma sequência de expressões conectadas em
cadeia de maneira ininterrupta. Especificamente, texto é um conjunto de
elementos linguísticos, organizado como um todo, visando comunicar
um sentido sobre algo. Ou seja, não poderiam ser considerados textos,
na segunda acepção, palavras (ou frases) que são jogadas e unidas sem
nenhum sentido ou critério. Veja o exemplo:
94 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Mim saber ontem a estabelecimentos de uma vez por
todas não me peça o Corinthians Palmeiras se amam
não me importune.

Não faz sentido, faz? Em suma: se não faz sentido, então o que temos
não é um texto.

Ao mesmo tempo, não há textos sem leitores; leitores pedem textos e


textos, seus leitores, por isso quero fazer um breve comentário sobre a
leitura. Trata-se de um fator decisivo no estudo, que amplia horizontes e
perspectivas de quem lê. Tem a função de lapidar o pensar e transformar
o pensador. A qualidade da escrita – e isso precisa ficar suficientemente
claro para você – está condicionada à qualidade da leitura. Melhor lemos,
melhor pensamos, melhor escrevemos.

Alguns benefícios interessantes da leitura são: ampliação de


conhecimentos, obtenção de informações básicas ou específicas,
sistematização de pensamento, enriquecimento de vocabulário, novos
“insights” sobre o que se está pesquisando.

Segue abaixo também alguns elementos para uma boa leitura (aplicável
a vários contextos acadêmicos):

a) Deve ter um objetivo determinado previamente;

b) Preocupação com o entendimento das palavras (vocabulário);

c) Deve ser continuada, quando a obra for fundamental, e interrompida,


se não for útil para o momento da pesquisa;

d) Deve ter um ritmo próprio: “nem tão rápida que não se capte o que
se lê e nem tão lenta que produza distração” (Libanio, 2001, p. 252);

e) Deve ser submetida a discussões frequentes com colegas.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 95


Libanio ainda elenca algumas das fases típicas da leitura acadêmica, que
sintetizo abaixo:

a) Fase de reconhecimento: consiste em dois exercícios: pré-leitura


(folha de rosto, orelhas) índice, sumário, informações sobre o autor); e
exploração (bibliografia, sumário, introdução, notas de rodapé).

b) Fase seletiva: consiste na seleção das partes mais importantes;


eliminação do supérfluo, concentração no que é pertinente ao que
você está estudando naquele momento (pensando aqui no tipo de
leitura voltada à realização de trabalhos acadêmicos). Investir na
prática de sublinhar, resumir e anotar nas bordas é uma boa pedida
para melhor aproveitamento da leitura. Prestar atenção nas dicas do
próprio autor ao longo do texto também, que indiquem o cerne de
sua argumentação em frases como: “O ponto central que gostaria de
defender” ou “Minha tese é”, e assim por diante.

c) Fase crítico-reflexiva: diz respeito ao reconhecimento das teses e


afirmações do autor, seguida da avaliação crítica dessas afirmações.

d) Aqui devemos ter cuidado em relação a um erro muito comum


na academia, a saber: julgar o trabalho por ter/ não ter preenchido
requisitos que são externos (impostos pelos outros) e não internos
(inerentes ao próprio texto). Em contrapartida, precisamos aprender
a criticar o que o autor diz em função de seus propósitos e do que ele
efetivamente se propôs a fazer, e não em função do que achamos que
ele deveria ter feito.

e) Fase de síntese: neste último momento, devemos aprender a


relacionar as afirmações do autor com os problemas teóricos para
os quais buscamos uma solução em nossa pesquisa. Ou seja, esta
é uma fase em que saltamos do reconhecimento e interpretação das
teses e afirmações centrais do autor do texto para o momento em
que vamos conversar ou interagir com elas – por isso, momento de
“síntese”, não mais do autor, mas nossa.

96 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Nesse momento, de acordo com Libanio (2001, p. 245) ajuda fazer as
seguintes perguntas de checagem da leitura:

a) “Estou de acordo com o que li? As conclusões do livro estão em


sintonia com o ensinado pelo professor, com o que até então pensava?
Senão, por quê”? Essas perguntas devem aguçar a criticidade a respeito
do que se leu, a fim de não apenas reproduzir o que o autor pensa.

b) “Consigo distinguir fatos de opiniões? Teses de hipóteses? Verdades


assertivas de posições opinativas”?

c) “As conclusões do autor respondem às provas aduzidas, aos


argumentos indicados, aos fatos apresentados? Poder-se-ia concluir de
outra maneira”? Na era da “pós-verdade” (banalização da informação)
e das chamadas “Fake News” (exposição muitas vezes inescrupulosa
de notícias falsas), esses questionamentos “b” e “c” devem fomentar o
discernimento a respeito do que o texto apresenta.

1.4. Aspectos formais da escrita


Falando agora mais de “princípios e tipologias”, é possível dizer que dois
elementos formais são centrais para que nossos “rabiscos” possam
ser mesmo um texto, a saber: a coerência e a coesão. Para uma breve
definição, pode-se dizer que:

a) Coerência é a relação que se estabelece entre partes do texto,


criando uma unidade de sentido (de não-contradição)

b) Coesão é a conexão entre palavras ou expressões do texto por meio de


conectivos (porque, no entanto, mas, ora, ou, e, assim, o qual, para que, quando,
etc.). Este uso indica um tipo de relação semântica entre seguimentos do
texto (causa, finalidade, conclusão, contradição, condição, etc.)

De acordo com a análise de Platão e Fiorin (2003), são várias as palavras


que, num texto, assumem a função de conectivo ou de elemento de
coesão:
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 97
• as preposições: a, de, para, com, por, etc.;
• as conjunções: que, para que, quando, embora, mas, e, ou, etc.;
• os pronomes: ele, ela, seu, sua, este, esse, aquele, que, o qual, etc.;
• os advérbios: aqui, aí, lá, assim, etc.
Ou seja: “O uso adequado desses elementos de coesão confere unidade
ao texto e contribui consideravelmente para a expressão clara das ideias.
O uso inadequado sempre tem efeitos perturbadores, tornando certas
passagens incompreensíveis”, dizem os autores. Nem sempre que não
entendemos um texto é porque ele é difícil, denso, ou porque temos uma
má formação ou problema de interpretação. Às vezes o problema pode
estar na ausência desses dois elementos centrais para a compreensão
de um texto.

Ofereço, a seguir, dois exemplos (cf. Platão & Fiorin, 2003), que nos
ajudarão a entender um pouco melhor este ponto: o primeiro de um
emprego incorreto da coerência, e o segundo de um emprego correto da
coesão.

Exemplo 1: Coerência

Embora existam políticos competentes e honestos,


preocupados com as legítimas causas populares,
os jornais, na semana passada, noticiaram casos de
corrupção comprovada, praticados por um político
eleito pelo povo. Isso demonstra que o povo não sabe
escolher seus governantes.

Onde está o problema de coerência nesse texto? Releia-o novamente.


Antes, uma dica: a presença ou ausência de coerência se mede por sua
capacidade de não-contradição, isto é, uma afirmação importante que se
fez antes não pode ser negada por outra afirmação importante que se
fez depois.

Já encontrou onde está o problema de coerência no texto acima?


98 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Pois bem, se você percebeu que a última afirmação do trecho contradiz
a primeira, você acertou “na mosca”. Se existem políticos competentes
e honestos e que atuam pelo bem comum é porque existem pessoas
que votaram acertadamente, o que anula a última afirmação do texto
(ou vice-versa).

Agora vamos para um exemplo de texto coeso.

Exemplo 2: Coesão

A família é o útero social, onde a pessoa vai se


percebendo e desenvolvendo suas aptidões mediante
os vínculos que constrói. É um sistema regido por regras,
que determinam os padrões de interação. Há duas
forças contrárias que agem sobre ela: a homeostase,
que garante a sua conservação, e a transformação,
que permite o seu crescimento. Para desenvolver sua
autonomia, o ser humano precisa se sentir integrado.
Assim, a família deve gerar segurança e liberdade,
para que haja respeito às diferenças. Quanto mais
nos sentimos amados e valorizados, mais somos
estimulados a ampliar o nosso mundo e desenvolver o
nosso potencial.
Perceba que o texto começa com uma afirmação ou tese central: a de
que a família é o útero da sociedade. As demais partes do texto são o
desenvolvimento da argumentação que sustenta esse ponto inicial.
Para que cada uma das partes dessa argumentação faça sentido, é
necessário o uso de conectivos ou elementos de coesão, como vimos há
pouco. Conectivos como o advérbio “assim”, que indica o modo, meio ou
maneira como que a tese anterior se comprova ou a que lugar ela chega.

Exemplo 3: O uso de conectivos em um texto


Agora, leia eia o texto que escrevi a seguir, prestando a atenção no uso
dos conectivos:

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 99


“Eu não escolhi nascer, diz alguém, sempre que precisa culpar outro
alguém (no caso, seus pais) por quão infeliz é a sua existência. Há
algumas escolhas às quais nos submetemos sem poder participar nem
retrucar, e o nascimento é uma delas.

Mas, no processo de nosso crescimento, desde a infância, pode parecer


que não, mas nós fizemos escolhas. Levei meu primeiro choque elétrico
porque eu escolhi pôr o dedo na tomada; fiquei com o olho roxo porque
eu escolhi provocar meu colega (e porque ele escolheu revidar); a mentira
fez parte da minha vida porque eu escolhi mentir, e por aí vai...

Assim, por mais imaturas, infantis e até inconsequentes, todos os que têm
pulso de vida, inteligência e corpo, desde muito cedo, fazem escolhas, e
fazem de suas vidas o que bem entendem.

Portanto, posso até não ter escolhido nascer, mas não posso viver minha
vida miserável, para sempre culpando outros por sua miséria. Tenho de
me perguntar: e depois de tudo, quem escolheu viver assim? Quem se
limitou a esse modo de vida? É preciso coragem para assumir, e carregar
o fardo (ou o peso leve) de suas próprias escolhas”.

Exercício de aplicação
Agora quero que você faça o mesmo exercício. Leia o parágrafo
abaixo (em itálico), e identifique de que assuntos está tratando. Em
seguida, use os conectivos (mas, além disso e assim), completando
com o texto que melhor completa o seu sentido – a exemplo do
texto que você leu acima.

A voz da mulher é ainda pouco ouvida em nossa sociedade. Afinal,


ter competência para falar não implica ser ouvido.
Mas...
Além disso...
Assim...

100 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


1.5. Por que escrever?
Para finalizar esta primeira parte da unidade, gostaria de responder às
seguintes perguntas:

Por que eu escrevo? Por que desejo relatar minhas percepções,


pensamentos e resultados de pesquisa? Afinal, qual é a função disso?
Eis uma resposta pessoal.

Minha resposta mais imediata à questão poderia ser: escrevo porque


o ato de escrever me ajuda a articular meus pensamentos de forma
que não vagueiem tanto ao ponto de se dispersar ou até se perder. Em
outras palavras, quanto mais escrevo, melhor eu penso, e mais bem
articulo meu discurso, minha própria maneira de falar. Quando comecei
voluntariamente a escrever meus primeiros textos, não tinha essa noção.
Era apenas uma forma de compartilhar as leituras das leituras que eu
fazia. Tratava-se, em primeira instância, mais de reprodução que de
criação.

E não é assim que boa parte dos escritores começa, como uma
criança aprendendo a andar, engatinhando, dando os primeiros passos,
precisando do auxílio ou suporte daqueles que já sabem andar para
poder deslanchar? Ou seja, não acontece de uma hora para outra. Na
escrita, como em qualquer outra “arte de fazer” (Michel de Certeau) vale
a máxima de que é a prática que conduz à perfeição. Hoje percebo que
estou longe da perfeição, mas não tão longe se comparado a quando
comecei a dar os primeiros passos. Então, ninguém pode se declarar
péssimo escritor ou incapaz sem antes ter tentado, sem ter dado os
primeiros passos.

Para quem eu escrevo? Em primeiro lugar, como já deve ter ficado evidente,
para mim mesmo, como forma de terapia, aprendizado, de externar idéias
que fervilham e sentimentos que transcorrem – ainda que sentimentos
sejam perigosos (é preciso deixar o texto “de molho” quando se escreve
tomado por eles) e a idéias, mutáveis. Em segundo lugar, escrevo para

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 101


alguém, para o outro, para gerar algum tipo de impacto, por menor que
seja, e nem que seja de repulsa (o que é bem possível) em alguém – mas
é óbvio que a intenção é fomentar o bem e a boa transgressão em outras
pessoas. Escrevo porque quero gerar a fome de pensar!

Outra vez: por que eu escrevo? Porque a escrita me transforma, dá asas


à boa transgressão, à chance do encontro, do diálogo, do crescimento
e, com eles, a possibilidade de transformar meu ambiente e círculo
de influência, por menor que ele seja. A escrita torna-se, assim, uma
extensão do viver.

2. A prática da pesquisa
2.1. Antes de se lançar, planejar

Texto de Apoio
Qual de vocês, se quiser construir uma torre, primeiro não se assenta
e calcula o preço, para ver se tem dinheiro suficiente para completá-
la? Pois, se lançar o alicerce e não for capaz de terminá-la, todos os
que a virem rirão dele, dizendo: “Este homem começou a construir
e não foi capaz de terminar”. Ou, qual é o rei que, pretendendo sair
à guerra contra outro rei, primeiro não se assenta e pensa se com
dez mil homens é capaz de enfrentar aquele que vem contra ele
com vinte mil? Se não for capaz, enviará uma delegação, enquanto
o outro ainda está longe, e pedirá um acordo de paz. Da mesma
forma, qualquer de vocês que não renunciar a tudo o que possui
não pode ser meu discípulo. (Lucas 14.28-33, NVI)

No contexto em que diz tais palavras, Jesus está querendo ressaltar,


diante da multidão que se encontra ao seu redor, os custos do que significa
segui-lo em seu reino: amar a ele mais do que a sua própria vida, e tomar
a sua cruz, negando-se a si mesmo. Tudo isso, como resposta aqueles
que, sem pensar, concluíram: “Feliz será aquele que comer no banquete
do Reino de Deus” (Lc 14.15). Jesus não nega que esse alguém será feliz.
102 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
Mas o que ele faz aqui é indagar: pois bem, mas, antes, avaliemos o que
significa tomar parte no banquete do reino de Deus.

Em suma, a questão parece ser: Não se pode prosseguir no caminho do


discipulado sem fazer uma avaliação do que de fato significa seguir a Jesus.

O que desejo chamar atenção aqui é: nos dois exemplos que Jesus usa,
está explícita a ideia de uma necessidade, em todo empreendimento, de
uma avaliação anterior. No caso da torre, a questão é o cálculo financeiro
(o dinheiro vai dar?); no caso dos reis em guerra, a questão é de estratégia
(podemos vencer com esse contingente?).

No caso de uma pesquisa, o cuidado e o zelo não devem ser menores.


Em todo trabalho de pesquisa, a máxima deve ser: planejar é preciso!
O planejamento é o cálculo, o esquema, a estratégia e o pensamento
que antecedem à ação. Sem ele, a ação possivelmente será dispersa
e generalizante, e o resultado final será cheio de falhas, incoerências
e a impossibilidade de concluir satisfatoriamente. Nossas decisões,
por exemplo, diante da dúvida entre uma fonte ou informação e outra
(estudá-la ou não? Usar este conceito ou aquele outro?) só poderão ser
feitas mediante a consideração séria do que foi planejado. Se nada foi
planejado, o que considerar?

Dessa maneira, assim como não podemos ser discípulos de Jesus sem
assumir com integridade o significado mais amplo do discipulado, não
poderemos ser pesquisadores/as sem fazer planejamentos prévios,
cuidadosos e pensados antes de “entrarmos de cabeça” na pesquisa.
Mas, lembrem-se: todo planejamento pode dar errado, e, de certo modo,
foi feito para dar errado. Estranho, não? Sim, e não. Sim, se pensarmos
que planejamos com o desejo de que dê certo (ora bolas!). E não, se nos
conscientizarmos de que no processo de execução aprendemos coisas
novas, nos reinventamos e, assim, mudamos um pouco (senão toda) a rota.

Planejar não é o mesmo que construir um mundo perfeito, mas ajudar a


nos situar e crescer em meio às imperfeições e imprevisibilidades que
nos circundam nesse mundo. Sejamos pesquisadores com excelência
para o reino.
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 103
Exercício de fixação
“Qual de vocês, se quiser construir uma torre, primeiro não se
assenta e calcula o preço, para ver se tem dinheiro suficiente
para completá-la?”. No contexto em que disse essas palavras, no
texto de Lucas 14.28, Jesus falava sobre ............................ o que
no contexto da pesquisa pode significar que .................................
............ Escolha abaixo a sequência de sentenças que melhor se
encaixam nas partes em branco da frase acima:
a. 1- A avaliação dos custos do discipulado; 2- A avaliação se uma
pesquisa merece ou não ser realizada.
b. 1- A avaliação do preço para se manter um reino em pé; 2- O
necessário planejamento de pesquisa que antecede as ações do
pesquisador.
c. 1- A avaliação dos custos do discipulado; 2- O necessário
planejamento de pesquisa que antecede as ações do pesquisador.

2.2. O que é pesquisar?


Talvez seja melhor começar dizendo o que ela não é. Pesquisar não é:
“fazer um trabalho escolar”, nem “realizar uma busca na internet”. Nestes
casos o pressuposto ainda é o da mera reprodução de conhecimentos
existentes.
PESQUISAR É:
(a) Eleger um tópico de pesquisa;
(b) lançar perguntas interessantes sobre esse tópico;
(c) estabelecer um problema a ser solucionado;
(d) reunir as informações necessárias à busca de respostas às perguntas
e soluções para o problema;
(e) manusear tais informações através de procedimentos científicos
coerentes com seu tópico de pesquisa.
104 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA
A ideia aqui é seguir passo a passo a explicação de cada um desses
tópicos. Antes, gostaria de dar algumas dicas importantes na trilha
da pesquisa: (A) a “rota natural” é: trabalho árduo, mistura de prazer e
frustração, indecisão, erros, aprendizado e aperfeiçoamento. (B) Todos
passam pela experiência inicial de repetir o que se lê, ao invés de analisar,
criticar e sintetizar. (C) Envolve habilidades que se aprende pela repetição,
mas não é como “andar de bicicleta”, ou seja, por mais habilidoso que
seja o pesquisador, cada nova pesquisa requer um “começar de novo”,
um “trilhar o caminho das pedras”, acumulando um pouco mais de
experiência talvez. A conversa que te convido a ouvir no podcast a seguir,
discorre um pouco sobre como se pode construir esse caminho na e pela
pesquisa.

2.3. Eleição de um tópico de pesquisa


Antes, é preciso fazer distinção entre “temática ou interesse” e “tópico
ou tema”.

(a) Temática ou interesse designa-se pelo assunto geral que desperta


nosso interesse. Ex. “Graça”, “Trindade”, “Crescimento de Igreja”;
“Sofrimento”.

(b) Tópico de pesquisa ou tema é um assunto específico o suficiente


para ser abordado em uma pesquisa e relatado de modo satisfatório em
um artigo ou dissertação.

Dica: Comece pelo que o interessa profundamente. “O primeiro passo


para um bom sucesso num trabalho escolar é sondar seu mundo de
desejos e encontrar nele o tema” (Libanio, 2006).

Exercitamos nosso papel de pesquisadores e imaginamos o papel


de nosso leitor. Assim, segue abaixo alguns exemplos de exercícios
ou tentativas de transformar temáticas ou interesses em tópicos de
pesquisa mais específicos. Veja alguns exemplos a seguir:

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 105


Temática ou interesse Tópico ou tema
1. “A importância da Graça
de Deus na identificação
1. “A Graça de Deus no ministério” da vocação e escolhas
ministeriais”

2. “O sofrimento na Igreja
2. “Martírio e sofrimento” Primitiva: o caso de
perseguição e martírio na
Igreja de Éfeso”

3. “Fé cristã e ecologia” 3. “O cristão entre dois


mundos: a reconciliação entre
o mandato cultural de cuidado
com a criação e a vinda do
Reino”
Dica: menos de 4 ou 5 palavras pode
indicar que o tópico seja amplo
demais.

Função desses exemplos: Ajudá-lo


a reconhecer melhor os problemas,
lacunas e inconsistências que irá
questionar.

2.4. Perguntas da pesquisa


O desafio neste próximo passo é o de transformar tópicos de pesquisa em
perguntas. A primeira dica é para que se tente formular perguntas cujas
respostas possam ser tanto possíveis como interessantes.

A segunda: que cada pergunta se identifique com uma parte constitutiva de


seu tópico (neste caso, imagine-se dividindo seu tópico em perguntas, de
modo progressivo e que apontem para um esquema ou roteiro de pesquisa).

106 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Terceira: que ela indique uma curiosidade em torno de algo que você não
sabe e deseja investigar; evite perguntas nas quais a resposta já esteja
embutida.

Alguns exemplos para ilustrar o que estou dizendo:

O que não perguntar: A graça é realmente importante para o ministério?


Os cristãos sofreram?

O que se pode perguntar: (a) O que a Bíblia entende por mundo? (b)
Qual é a relação desse entendimento com o mandato cultural? (c) Como
conciliar as perspectivas cristãs de cuidado com a criação e expectativa
escatológica pela vinda do reino de Deus?

2.5. Levantando e resolvendo um Problema


“Todo pensamento começa com um problema”, já diria Rubem Alves. Ou
seja, segundo sua forma de pensar deste autor, a gente pensa porque as
coisas não vão bem...

Mas, o que é um problema de pesquisa?

O problema é apresentação de uma dificuldade reconhecida pelo


pesquisador na abordagem ao seu tema, para o qual se deve encontrar
uma solução. Neste caso, é importante fazer uma diferenciação entre
o que chamamos de “problema prático” e o “problema de pesquisa”
propriamente dito.

Problema prático: Origina-se na realidade, a partir da constatação de uma


situação que custa algo a alguém (dinheiro, tempo, saúde, felicidade,
etc.) e cuja solução não é necessariamente óbvia. Exemplo: “Meu pneu
furou”; “Minha igreja não cresce”.

Resolução: muda-se algo na realidade (mas nem sempre resolve, pois


algumas soluções podem ser apenas paliativas ou provisórias).
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 107
Problema de pesquisa: Origina-se na mente do pesquisador, a partir de
um conhecimento incompleto e de uma compreensão falha. Exemplo:
“Investigar quais são as possíveis causas que fizeram com que meu pneu
furasse”.
Resolução: muda-se algo na mente, na compreensão do problema. Não
resolve, mas ajuda na compreensão do que fazer para resolver.

Formular um problema de pesquisa consiste, portanto, em


identificar um problema prático, dizer de maneira clara e objetiva,
por meio de uma proposição (problema de pesquisa), qual é a
dificuldade teórica que pretendemos “resolver” ao longo da
pesquisa.

Exemplo 1: tema – “A gripe infantil, suas causas e particularidades”;


problema prático – “Meu filho está com gripe”; perguntas – O que é
uma gripe? Como se contrai? Quais são seus sintomas? Há variações?;
Problema da pesquisa – “Investigar o que pode ter ocasionado a
manifestação dos sintomas de gripe em meu filho”.

Exemplo 2: tema – “O perfil da mãe que deixa o filho recém-nascido para


adoção”; perguntas – o que define o “ser Mãe”? Em que condições essa
definição pode mudar? Por que as mães têm deixado seus filhos para a
adoção?; Problema – “Investigar quais condições exercem mais influência
na decisão das mães em dar o filho recém-nascido para adoção”.

A frase de Booth, Colomb e Williams (2008), resume bem o espírito da


tarefa de levantar um problema de pesquisa: “Se você não tem um bom
problema de pesquisa, tem um problema prático realmente ruim”. E,
acrescento, todo o restante da pesquisa pode ficar comprometido.

108 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


Exercício de aplicação
Gostaria de sugerir um exercício interessante, e creio que eficaz, para
a observação de como autores fazem perguntas acerca dos temas por
eles propostos. Tente pegar três tipos de fonte diferentes: (a) um livro
– qualquer um, pode ser de sua prateleira mesmo; (b) um artigo – você
pode conseguir um entrando em uma dessas revistas que disponibiliza
artigos on-line, tal como a “Estudos Teológicos” (http://www3.est.edu.br/
publicacoes/estudos_teologicos/); (c) uma monografia ou dissertação
(você pode encontrar muitas e de diferentes áreas no seguinte site: http://
www.dominiopublico.gov.br/ Em seguida, vá faça o seguinte exercício:
1. Anote o título do texto; 2. Vá até a introdução do trabalho e verifique
se ele apresenta perguntas orientadoras do trabalho, em seguida anote
aquelas que você julgar mais fundamentais; 3. Compare as perguntas
apresentadas (ou não) com o título do trabalho, e veja se uma coisa está
bem alinhada com a outra. Compartilhe aqui suas conclusões e achados
principais sobre esse exercício.

Conclusão: Jesus, o cego e o pensamento complexo


Quero finalizar esta aula com uma reflexão bíblica, que deve nos ajudar
a perceber como um problema mal formulado pode nos conduzir a
soluções ou respostas equivocadas sobre uma determinada realidade
(prática), e atrapalhar a pesquisa e confundir a escrita.

Enquanto caminhava, Jesus viu um homem cego de


nascença.  Seus discípulos perguntaram: “Rabi, por
que este homem nasceu cego? Foi por causa de seus
próprios pecados ou dos pecados de seus pais?”. Jesus
respondeu: “Nem uma coisa nem outra. Isso aconteceu
para que o poder de Deus se manifestasse nele. (João
9.1-3, NVT)

O texto acima pode servir de exemplo para como olhamos para os


problemas práticos (e os de pesquisa) e que soluções damos para eles.

Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 109


A narrativa diz que Jesus, caminhando, viu um cego de nascença. Se
ele era “cego de nascença”, isso significa que não teve escolha e essa
sempre fora uma das “porções” de sua “vida debaixo do sol”: ser cego.
Mas havia pressupostos culturais e religiosos em jogo. Muitos judeus
acreditavam que a “má sorte” (ou sinais da contingência) temporal era
fruto do pecado.

Baseados nesse “senso comum”, os discípulos fazem a pergunta: “Afinal,


quem pecou”, que oferece apenas duas possibilidades ao problema: (a)
assume que ele pecou, é fato, só pode ser isso; (b) restando saber se foi
ele (na improvável chance dele ter pecado ainda no útero de sua mãe),
ou seus pais (numa versão judaica da “maldição hereditária”). Como
disse recentemente o educador britânico Ken Robinson, em entrevista
para a Revista Isto é, “o mundo se divide em duas categorias de pessoas:
aquelas que dividem o mundo em duas categorias e aquelas que não”. Os
discípulos parecem se encaixar na primeira categoria...

Jesus, por sua vez, oferece uma visão alternativa (não categorizável) e
bem mais complexa: “Nem uma coisa, nem outra; isso ocorreu pra que na
vida dele se manifestasse a obra de Deus”. Muito antes de inventarem o
paradigma moderno da complexidade, Jesus já pensava complexamente.
A prova disso é que em sua resposta ele não fecha questão – não é
somente isto ou somente aquilo – mas abre o leque de possibilidades,
que envolve as dinâmicas da vida, da fé e da ação de Deus.

Talvez, o problema de fundo da questão seja o problema do sofrimento


humano. E a pergunta específica poderia ser: “Por que sofremos de
doenças e outras limitações físicas e humanas?”. O olhar dos discípulos
para a questão é o cultural-religioso, baseado em pressupostos e teorias
fechadas. A resposta, por consequência, é determinista e simplista,
baseada na lógica (Teo-lógica) de causa-efeito: existe o sofrimento
(cegueira); e sofrer é sempre ruim, porque é fruto do pecado; logo, alguém
pecou, ou o cego ou seus pais. Resolvido o dilema! (Isso lembra o que
discutimos na unidade 1 sobre a vida de Jó).

110 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA


O resultado de uma pergunta na qual a resposta já está embutida
e de um problema mal formulado é a construção de respostas
capengas, simplistas e unilaterais.

O olhar de Jesus para a questão é o divino, compassivo, abrangente,


complexo, que enxerga diferentes lados e não se arvora em oferecer
respostas simplistas, fáceis, para situações complexas. A resposta de
Jesus me faz parar pra pensar se a Bíblia tem uma resposta lógica e
definitiva ao problema do sofrimento. Parece-me que não. Isto, pois, se
pode considerar que: (a) todos sofremos, de um jeito ou de outro; (b) nem
todo tipo de sofrimento tem uma origem certa ou razão de ser lógica e
racional. Então, a questão permanece aberta...

A resposta de Jesus não é a de alguém que quer dar explicações, é a de


quem quer encontrar finalidade e propósito na existência, por mais dura
que seja. O que ele responde, portanto, não é o que Deus “pensa” sobre
o sofrimento daquele homem, para remontar a sua origem, e sim o que
Deus faz a respeito (cf. Wright, 2009, p. 41).

Nesse caso, Deus curou e libertou. Mas a obra de Deus é dinâmica


(como a vida) e não se apresenta apenas de um jeito. E não é para que
ela se manifeste que existe o sofrer, mas, em meio ao sofrer, ela pode se
manifestar de modo surpreendente.

Para finalizar esta unidade e este curso, gostaria de partilhar uma


passagem do livro A Cabana, de William P. Young, que ilustra bem este
ponto. Numa das conversas entre Mack (o personagem principal) e Papai
(representando a Primeira Pessoa da Trindade, mas na figura de uma
mulher negra), o tema do sofrimento – e do porquê temos de sofrer –
vem outra vez à tona, num livro que é marcadamente sobre isso. Coloco
algumas notas entre colchetes ao longo da citação para explicar algumas
coisas (caso você não tenha lido o livro) e para ressaltar outras. Divirta-
se e inspire-se!
Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 111
Texto de apoio
(...) Mack pegou mais um bolinho e recostou para saboreá-lo.
– Jesus disse que foi você que me deu um tempo com Missy [a
filha falecida de Mack. Não contarei como ela morreu] esta tarde.
Não sei como agradecer!
– Ah, de nada, querido. Isso também me deu uma grande alegria!
Eu estava tão ansiosa para colocar vocês dois juntos que mal
conseguia esperar.
– Gostaria tanto que Nan [a esposa de Mack] estivesse aqui!
– Teria sido perfeito! – concordou Papai, empolgada.
Ficaram em silêncio por alguns instantes.
– Missy não é especial? – Ela balançou a cabeça sorrindo. – Minha
nossa, gosto especialmente daquela menina.
– Eu também! – Mack deu um sorriso largo e pensou na sua princesa
atrás da cachoeira. Princesa? Cachoeira? Espere um minuto! Papai
ficou olhando enquanto as peças se encaixavam. – Obviamente
você conhece o fascínio da minha filha por cachoeiras e pela lenda
da princesa Multnomah [que na lenda oferece sua própria vida para
salvar a de seu povo]. – Papai assentiu. – É disso que se trata? Ela
teve que morrer para que eu mudasse?
– Espere aí, Mack. – Papai se inclinou. – Não é assim que eu faço
as coisas.
– Mas ela adorava tanto aquela história!
– Claro que sim. Por isso ela foi capaz de entender o que Jesus fez
por ela e por toda a raça humana. As histórias sobre uma pessoa
disposta a trocar a sua vida pela de outra são um fio de ouro em seu
mundo e revelam tanto suas necessidades quanto o meu coração...
– Mas se ela não tivesse morrido eu não estaria aqui agora...

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[Preste bem a atenção na passagem a seguir, que é central para o
que eu quis dizer antes sobre a obra de Deus que se manifesta em
meio ao sofrer.]

– Mack, eu crio um bem incrível a partir de tragédias indescritíveis,


mas isso não significa que as orquestre [isso é fundamental para
entender o que Jesus diz sobre Deus realizando a obra através da
enfermidade daquele homem cego, em João 9]. Nunca pense que o
fato de eu usar algo para um bem maior significa que eu provoquei
ou que preciso dele para realizar meus propósitos. Essa crença só
vai leva-lo a ideias falsa a meu respeito [touché!]. A graça não
depende da existência do sofrimento, mas onde há sofrimento
você encontrará a graça de inúmeras maneiras. [Pense nisso.
Releia o texto de João pensando nessa frase].

(Young, 2008, p. 172-173)

Referências
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. Introdução ao jogo e suas regras.
13ª ed. São Paulo: Loyola, 2008.
BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Transformadora (NVT). São Paulo:
Mundo Cristão, 2016.
BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional (NVI). São Paulo: Vida,
2000.
BOOTH, Wayne C., COLOMB, Gregory G. e WILLIAMS, Joseph M. A arte da
pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FIORIN, J. L. & PLATÃO, F. S. Para entender o texto. 16ª ed. São Paulo:
Ática, 2003.
LIBANIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola,
2001.
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NOUWEN, Henri. Bread for the journey. A daybook of wisdom and faith.
New York: Harper Collins, 1997.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre, RS: L&PM,
2009.
WRIGHT, N. T. O mal e a justiça de Deus. Mundo injusto, Deus justo?
Viçosa, MG: Ultimato, 2009.
YOUNG, William P. A Cabana. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

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