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Oficina de Expressão Oral do Português – S2 2022/2023

Inês Freitas

Guião 7

3. Expressão e estilo em Língua Portuguesa

A enunciação na língua

Enunciação é, na perspetiva benvenistiana1, a colocação em funcionamento da língua por um ato


individual de utilização, conforme o Dicionário de linguística da enunciação (DLE, 2009).

É o evento único e jamais repetido de produção do enunciado, ou seja, a enunciação supõe a


realização individual da língua em discurso, é única e irrepetível.

Diz respeito ao próprio ato de produzir um enunciado, isto é, à condição específica da enunciação, e
não ao texto do enunciado.1Benveniste, É. (1989). O aparelho formal da enunciação. In Problemas
de linguística geral II. (Eduardo Guimarães et al. Trad.). Campinas, SP: Pontes.

Deste modo, cada vez que enunciamos fazemo-lo de forma diferente, já que o ato se pode repetir,
mas a enunciação nunca se repete.

Podemos dizer que a enunciação é o ato de tomar a palavra, numa situação específica, seja para falar
seja para escrever. A enunciação exige ter conhecimento de uma língua, mas também implica saber
usá-la.

Três tipos de enunciação

a. Direta

A enunciação direta consiste na produção de enunciados, ou seja, no uso da língua numa situação
concreta, de forma direta por parte de um enunciador que se dirige a um enunciatário. A produção e
a receção é, neste tipo de enunciação, feita no mesmo momento.

1Benveniste, É. (1989). O aparelho formal da enunciação. In Problemas de linguística geral II. (Eduardo Guimarães et al.
Trad.). Campinas, SP: Pontes.

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b. Diferida

A enunciação diferida consiste, igualmente, no ato de produção de enunciados numa determinada


situação por parte de um enunciador que se dirige a um enunciatário. Porém, embora inter-
relacionados, o momento de produção é diferente do momento de receção.

c. Relatada

A enunciação relatada diz respeito ao fenómeno discursivo que apresenta a reprodução de um


discurso num outro discurso, envolvendo duas enunciações diferentes. O enunciador recupera e
reproduz no seu enunciado frases, textos, fragmentos de textos, num tempo posterior ao da sua
produção.

➔ Verbos introdutores do relato do discurso

Existem verbos que possibilitam a enunciação relatada, introduzindo o discurso relatado no discurso
do enunciador que o relata. Eles fazem a articulação sintática do discurso reproduzido com o discurso
que o reproduz.

O significado destes verbos corresponde, normalmente, ao do verbo dizer ou verbos dicendi, como,
por exemplo: afirmar, proferir, referir, comunicar, declarar, ...

Outros verbos, além de indicarem o ato de dizer, expressam outros valores semânticos: gritar,
sussurrar, murmurar, berrar, considerar, observar, desabafar, lamentar, ...

Há também verbos com valor metafórico: rugir, roncar, rosnar, ...

«− Vamos, filho, tem maneiras − rosnou-lhe muito seca D. Ana»

Eça de Queirós, Os Maias.

«Pareces um doutor, disparei eu em direção ao Martinho»

Fernando Assis Pacheco, Memórias de Um Craque.

O discurso relatado pode, ainda, ser introduzido por expressões que equivalem aos verbos dicendi,
a saber: fazer considerações, deixar escapar as palavras, etc.

«E antes de cortar, num arriscado passo de dança, deixou-lhe ditauma frase misericordiosa: Filhos
assim dão cabo de mim.»

ALFACE, Filhos Assim Dão Cabo de Mim.

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➔ Modos de relato do discurso

Discurso direto

O discurso direto visa reproduzir, ou procura reproduzir, fielmente o discurso de um locutor no seu
discurso ou no de outro. O sujeito da enunciação continua a ser o enunciador que o produziu e não
aquele que o está a citar. Assim, mantém inalteradas as formas deíticas do discurso citado (indicadores
de pessoa, de tempo e de lugar).

É assinalado frequentemente por verbos introdutores do relato do discurso: dizer, responder,


retorquir, etc.

Na escrita, o discurso direto é habitualmente sinalizado e delimitado por indicadores gráficos


como: aspas, itálico, dois pontos, travessão, parágrafo.

1.

«A caixa é colocada sobre o balcão. De dentro sai uma outra caixa, mas de madeira polida. Ao meio
tem um retângulo azul, cheio de letras e, em baixo, ao comprido, quatro grandes botões negros. −
Não tem uma tomada?

Em face da resposta, o homem vai ao automóvel. Volta e sobe ao balcão. Só nesse momento o Batola
compreende. A princípio, apenas saem ruídos ásperos da caixinha, mas, aos poucos, desaparecem.
Vem então uma música modulada, grave.

− Hem? Que tal?

Esfregando as mãos, começa a enumerar rapidamente as qualidades de um tal aparelho:

− É o último modelo chegado ao país. Quando se quer, é música toda a noite e todo o dia. Ou então
canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o mundo, desde manhã até à noite, notícias da
guerra!...

Aponta para o retângulo azul:

− Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai se rodando este
botãozinho... Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:

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− Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra nenhum aparelho pelo preço deste! Sem dar
tempo a qualquer resposta, ordena:

− Traz a pasta, Calcinhas!

– E que estúpida!

– acudiu a outra. […]

− António − murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda.

− Eu queria pedir-te uma coisa.»

Manuel da Fonseca, «Sempre é uma companhia», in O Fogo e as Cinzas

Discurso direto livre

O discurso direto livre é uma modalidade de discurso direto utilizada na escrita narrativa
contemporânea. A reprodução supostamente literal do discurso (do próprio autor ou de outro) não é
assinalada formalmente com verbos introdutores do relato do discurso nem é delimitada,
graficamente, por indicadores gráficos, como as aspas ou o travessão.

2. «[…] o guarda continuava alerta […]

Tchap, tchap, tchap…

Pela neve fora, da outra banda, aproximavase alguém.

Quem diabo seria?

O Carrapito?

O Carrapito, não. Olha o Carrapito meter-se a um nevão daqueles!

O Samuel?

O Samuel também não. Era mais atarracado. Só se fosse o Gregório…

Sim, porque o Cristóvão, que tinha o mesmo corpo, estava em Vila Seca, no namoro. Vira-o passar…

A pessoa que vinha, caminhava sempre, direita como um fuso ao cano da carabina.

Tchap…Tchap…

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Todo gelado por fora, mas quente da emoção que lhe dava sempre qualquer alma em direção ao
ribeiro, o Robalo [o guarda] esperou.»

Miguel Torga, Novos contos da montanha

Discurso indireto

No discurso indireto é relatado o discurso de um locutor no discurso do mesmo ou de outro locutor,


mas não lhe mantendo a forma original, ou seja, não lhe conferindo voz autónoma.

As formas deíticas do discurso original, tais como indicadores de pessoa, tempo e espaço, são
alteradas, passando a ser as do enunciador/relator.

A modalidade de discurso direto transforma-se, desta forma, em discurso indireto:


E por fim a minha mãe disse:
− Não te quero hoje até tarde na rua. → discurso direto
E por fi m a minha mãe disse que nesse dia não me queria até tarde na rua. → discurso
indireto

3. «Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos
jantar às nove e meia, entrámos em uma conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu
escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista Orpheu, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a,
elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a
arte dos que escrevem em Orpheu sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos.
De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou
que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler
livros, soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.»

Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade
de Lisboa

Discurso indireto livre

O discurso indireto livre concilia o discurso direto e o discurso indireto. Não é discurso direto,
porque não apresenta as marcas formais deste discurso: verbos introdutores do relato do discurso ou
sinais gráficos de identificação e delimitação. Também não consiste em discurso indireto, já que os

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segmentos citados não estão sujeitos à subordinação e podem conservar as interrogações, as
exclamações, o léxico e as construções de frase do discurso citado.

Nesta modalidade de relato do discurso é frequentemente difícil distinguir a voz do


emissor/narrador da voz do primeiro emissor/da personagem citado(a). O citador é o sujeito de
enunciação, que inclui fragmentos das falas do emissor original, sem recorrer ao uso de verbo
introdutores de relato do discurso e a consequente subordinação.

Foi introduzido no século XIX e muito utilizado no romance realista. É uma forma de fazer ouvir a
personagem e mostrar o pensamento dela, verificando-se uma aproximação da vivacidade da língua
oral.

4.

«Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu o Sr. Administrador. Mimos e mais mimos, dizia Sua
Senhoria?

Coitadinho dele que fora educado com uma barra de ferro!

Se ele fosse a contar ao Sr. Vilaça!

Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina, e todas as manhãs, zás, para
dentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora… E outras barbaridades. Se não se soubesse a
grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira,
chegara a pensá-lo...

Mas não, parece que era sistema inglês!

Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar -se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E
depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas... E às vezes a criancinha, com os
olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza.»

Eça de Queirós, Os Maias

Citação

Uma citação consiste na reprodução de um fragmento de um texto noutro texto. Na escrita, é


assinalada pela referência ao autor ou à obra a que pertence e delimitada graficamente com
aspas ou itálico. Pode ter objetivos comunicativos diversos, seja funções argumentativas, didáticas
ou funcionar como uma marca da relação entre textos.

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5.

Como Tchekhov era escritor, sabia que tudo o que as pessoas dizem sobre o amor pode ser poetizado
e enfeitado. (Se não existisse a ideia do amor, muitos talvez nem sequer se apaixonariam). Mas como
também era médico, achava que só podemos perceber o sentimento amoroso individualizando e
desfiando cada caso concreto. No conto que tem o título «Sobre o Amor», Tchekhov escreve isso
mesmo:
Uma explicação que, aparentemente, serve para um caso já não se aplica a dez outros, e o melhor,
a meu ver, é esclarecer cada caso em separado, sem tentar generalizar.
Pedro Lomba, «Um Caso Concreto».

Referências bibliográficas:

Benveniste, É. (1989). O aparelho formal da enunciação. In Problemas de

linguística geral II. (Eduardo Guimarães et al. Trad.). Campinas, SP:

Pontes.

Duarte, O. (2003). O Relato do Discurso na Ficção Narrativa. Fundação

Calouste Gulbenkian/Ministério da Ciência.

Nascimento, Z. S. & Lopes M. V. (2015). Domínios – Gramática da

Língua Portuguesa. Lisboa: Plátano Editora.

Serôdio, C., Pereira, D., Cardeira, E., Falé, I. (2011). Gramática didática

de português. Lisboa: Santillana.

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