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Título original: Payday

Copyright © Tacles Ltd 2021


Publicado pela primeira vez no Reino Unido em língua inglesa em 2021 pela Sphere, um selo do Little,
Brown Book Group.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

W162a Walden, Celia


Acerto de contas / Celia Walden ; traduzido por Giu Alonso. – 2.ed. – Rio de Janeiro : Trama,
2022.
320 p.

Formato: e-book com 1,4 MB

ISBN 978-65-89132-44-8

1. Literatura inglesa – suspense. I. Alonso, Giu. II. Título.

CDD: 820
CDU: 821.111

André Queiroz – CRB-4/2242


www.editoratrama.com.br
/ editoratrama
Para Ed Victor
SUMÁRIO

Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1. Jill
Capítulo 2. Alex
Capítulo 3. Jill
Capítulo 4. Nicole
Capítulo 5. Alex
Capítulo 6. Nicole
Capítulo 7. Jill
Capítulo 8. Jill
Capítulo 9. Nicole
Capítulo 10. Alex
Capítulo 11. Jill
Capítulo 12. Nicole
Capítulo 13. Alex
Capítulo 14. Jill
Capítulo 15. Jill
Capítulo 16. Nicole
Capítulo 17. Alex
Capítulo 18. Jill
Capítulo 19. Nicole
Capítulo 20. Alex
Capítulo 21. Jill
Capítulo 22. Nicole
Capítulo 23. Alex
Capítulo 24. Jill
Capítulo 25. Nicole
Capítulo 26. Alex
Capítulo 27. Jill
Capítulo 28. Nicole
Capítulo 29. Alex
Capítulo 30. Jill
Capítulo 31. Nicole
Capítulo 32. Alex
Capítulo 33. Jill
Capítulo 34. Jill
Capítulo 35. Nicole
Capítulo 36. Jill
Agradecimentos
Colofão
PRÓLOGO

– E squeceram o molho inglês de novo. — Terry inspecionou seu


sanduíche de bacon, suspirou e deu uma mordida. — Vocês têm que
acabar isso aqui até o fim do dia, hein — comentou, indicando o palete com
blocos de concreto ali perto enquanto observava sem muita esperança a
equipe. — Ei!
Mas eles estavam reunidos ao redor de um iPhone, assistindo a um
daqueles vídeos no YouTube.
— Andem. Cadê a betoneira? Vamos começar.
Dando a volta entre as pilhas de tijolos e lenha, Terry se aproximou dos
fundos da construção. Ali no canto, na sombra do imenso prédio abandonado
vizinho ao terreno, estava a betoneira.
— Esses babacas inúteis — resmungou ele.
E foi então que viu o homem.
Terry observou o terno — “frescurento”, como diria a esposa —, os
sapatos — o tipo de mocassim de camurça que aqueles sujeitos escandalosos
de Chelsea usavam, diferente apenas nas correntes douradas que cruzavam na
parte superior dos calçados — e as vigas de ferro que empalavam o homem.
Pão e bacon foram cuspidos de sua boca.
— Steve — ele se ouviu dizer, registrando a flor de carne sendo
empurrada pela viga que atravessava o abdômen do homem. Então, em um
grito que soou agudo e feminino: — Steve!
Quando o mestre de obras veio até ele, Terry revirava todos os bolsos do
seu moletom.
— Seu celular, cara — conseguiu falar, sem tirar os olhos do corpo.
Mas tudo que Steve conseguia fazer era repetir:
— Puta merda. Puta merda.
Terry pegou o celular dele e ligou para a emergência.
Só depois de dizer para a voz impassível ao telefone:
— Tem um cara morto na nossa construção.
Só depois de olhar do corpo para as vigas que alcançavam o topo da
fachada lisa atrás, só depois de perceber, dizendo ao atendente:
— Ele deve ter caído.
Só então que Terry viu o pé do homem se mover.
CAPÍTULO 1

JILL
Quinta-feira, 5 de agosto

A
tende, atende, atende.
Sentada na frente de sua garagem, usando blusa e saia sociais
com pantufas forradas em fleece, Jill encarava a letra solitária na
tela do iPhone. “A”. Essa inicial que parecia uma confissão de culpa. Como
sua funcionária, seria natural que Alex estivesse na sua lista de contatos,
profissionais e pessoais. Só que nada na conexão de Jill a “A” era legítimo,
que dirá justificável — e, há cerca de meia hora, ela tinha muito a esconder.
Bem-vindo ao serviço de mensagens da O2. A pessoa para quem você está
tentando ligar não está disponível no momento.
As pessoas não dizem que o caos tem um som: um ritmo revolto,
estrondoso e intravenoso. E ensurdecedor. Não dizem que, uma vez que você
tenha convidado esse ruído branco para a sua vida, não há como desligá-lo.
Finalizando a ligação — deixar um recado era arriscado demais, e depois
das quatro tentativas anteriores de falar com Alex, Jill já tinha se precavido
ao esconder sua identidade nessa ligação —, ela se deixou cair para a frente e
apoiou a testa no volante, se obrigando a respirar. Inspirar, expirar; inspirar,
expirar — devagar, isso, devagar. Cada expiração embaçava o logotipo
cromado no centro do volante, e Jill o observava desembaçar em formas
irregulares antes de expirar de novo.
A polícia falou que entraria em contato. Foi o que Paul dissera. Poderia
levar horas. Ou minutos. Não podia ter essa conversa sem falar com Alex
antes.
— Onde você está? — Em voz alta, as palavras eram assustadoras.
Autoritárias. E ela se perguntou o que os vizinhos pensariam se a vissem
sentada no carro, falando sozinha. Ela se perguntou se Stan, dentro de casa, já
tinha notado sua ausência, e quanto um ser humano conseguiria suportar
antes de desligar, como um sistema elétrico sobrecarregado.
A vibração do celular a tirou do devaneio, mas era só outra mensagem de
Paul. Está no noticiário. Com os dedos trêmulos, Jill enfiou a chave na
ignição, ligou o rádio e ficou ouvindo entorpecida uma conversa inflamada
entre um apresentador da rádio e um defensor do veganismo antes de, enfim,
começarem as notícias. Jamie era o terceiro na lista. Só que ele não era mais
Jamie e sim “um homem de 46 anos, encontrado empalado nas vigas de um
prédio em construção no noroeste de Londres”.
Era só uma questão de tempo antes de as pessoas do escritório
descobrirem que o morto era o chefe delas, e enquanto um repórter “no local”
dava detalhes que Jill jamais esqueceria, ela imaginou a notícia se espalhar
em gritos surpresos e e-mails desesperados e sem pontuação pulando de um
computador ao outro. Viu mãos levadas a bocas, lágrimas de descrença:
loucura. Como sócios de Jamie, era seu trabalho e de Paul fazerem uma
declaração; “lidar” com as consequências. Mas ir para o trabalho também era
inimaginável — pelo menos até falar com Alex. E ainda havia Nicole.
O nome da colega não estava disfarçado por uma inicial, embora devesse
estar, e vê-lo na tela do celular não a fez se sentir menos nauseada. Seu
próprio nome teria um efeito similar nas outras duas mulheres, ela percebeu.
Estavam ligadas a isso agora.
Você ligou para Nicole Harper. Não posso atender no momento, mas você
sabe o que fazer…
O fato de que as ligações para as duas mulheres estivessem caindo na
caixa postal, apesar de várias tentativas, não estava certo. Mas, por outro
lado, nada disso estava certo, e o que Jill poderia fazer além de tentar de novo
e de novo?
— Alô?
A voz de Nicole parecia artificialmente alegre, como se estivesse fingindo
para ela. Então Jill se lembrou de que havia tirado a identificação de seu
número.
— É… — Ela pigarreou. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou ao fundo, seguida por uma
confusão de gritos infantis alegres. — Perdão, quem?
Ela ouviu o sino de uma porta se fechando, toda a alegria trancada atrás
dela.
— Aqui é a Jill. — Ela fechou os olhos.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha, e estão trazendo
o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não. — Ela teve que impedir Nicole de continuar falando e fazê-la
escutar. — Jamie morreu. Encontraram o corpo hoje de manhã. A polícia
quer falar comigo. Vão querer falar com você também. — As palavras saíram
emboladas. — E, Nicole… — Ela ouviu a própria voz baixar de tom. — …
não estou conseguindo falar com Alex.
Houve um barulho abafado do outro lado da linha, seguido por um
silêncio. Então outro barulho e um sussurro:
— Como?
— Ainda não sabem. Ele foi encontrado perto do Vale Theatre hoje cedo.
Tem uma construção atrás…
— Ele estava no teatro?
A mudança no tom fez Jill se sentar ereta. Não era só alarme, mas
reconhecimento.
— Se você souber de alguma coisa…
Do outro lado da linha, Nicole soltou um gemido baixo. Então houve um
barulho de engasgo. E enquanto esperava, Jill viu seu próprio pé na pantufa
batendo impaciente perto dos pedais. Não tinha tempo para isso.
— Temos que encontrar Alex.
Silêncio.
— Nicole, está aí?
— No teatro… tem uma construção pequena de vidro no telhado…
Uma batidinha na janela fez Jill dar um pulo, todas as sinapses agora em
alerta total, todas as palavras de Nicole abafadas, e, ao erguer a cabeça, ela
viu o rosto de Stan a observando.
CAPÍTULO 2

ALEX
Três meses antes

O macacãozinho cor-de-rosa fora um erro. Pegar o ônibus também. Quando


havia saído do apartamento meia hora atrás, com Katie presa ao peito,
Alex se sentia passável: a carne macia da barriga e das coxas era controlada
pela calça jeans de gestante sem a qual não conseguia mais se imaginar
vivendo; os seios aumentados estavam disfarçados por uma blusa azul
larguinha comprada especialmente para a ocasião. Katie também estava linda
e arrumadinha em seu macacão listrado — isto é, até chegarem à estação
Hammersmith Broadway, onde ela vomitou em si e na mãe.
Até Alex encontrar os banheiros públicos, revirar a bolsa atrás de
cinquenta centavos, que não tinha, e esperar na fila atrás de duas adolescentes
italianas contando o troco no metrô Tesco, quase toda a animação com que
havia acordado havia se esvaído.
Fazia uma semana que só aumentava aquela animação, desde que vira o e-
mail de Jamie. Porque, embora seu chefe tivesse sido breve — “O que você
acha de dar uma passada aqui com o mais novo membro da equipe? Vai ser
bom conversar o quanto antes” —, Alex era boa em ler nas entrelinhas.
A substituta da sua licença-maternidade não estava dando conta. Ela havia
imaginado que Ashley não duraria até o final da licença antes mesmo de
terminar de lhe passar as instruções. Não era tanto o fato de que ela era jovem
demais e que começava alguns e-mails com “Oiê!”, mas que ela tentara se
poupar desde o início. Alex nunca entendeu a mentalidade de “Qual é a
menor quantidade de trabalho que eu posso fazer sem ser demitido?”. E isso
antes de sequer começar no emprego! Cadê o orgulho? A satisfação
silenciosa de saber que você tinha qualquer contratempo sob controle, assim,
quando seu chefe se esquecesse de um arquivo ou número, você o tinha à
mão. Quando, sempre ansioso para agradar o cliente, ele marcava duas
reuniões na mesma hora — “Quinta de manhã, combinado!” —, era você
quem o corrigia: “Na verdade, Jamie, quinta de manhã não dá, mas talvez a
gente possa encontrar um intervalo à tarde?” Havia poder naquele momento:
em ser a guardiã da agenda de Jamie e antecipar todas as suas necessidades
de forma tão eficiente que ele ficaria perdido sem ela.
Não que Ashley fosse entender nada disso. E no dia em que se reuniram
para Alex passar as responsabilidades, depois de perguntas demais do tipo
“Eu tenho mesmo que responder todos os e-mails em uma hora, como você
colocou nas orientações?” (Resposta: “Sim. Todos os e-mails precisam
receber retorno dentro de uma hora, mesmo que uma resposta mais completa
vá demorar mais.”), e “Quando a gente está de folga de verdade? Sabe,
quando não vão esperar que você atenda o telefone depois do trabalho?”
(Resposta: “Nunca. Mesmo quando Jamie passou duas semanas de férias nas
Maldivas, eu ainda estava atendendo ligações depois das dez da noite,
escaneando e enviando documentos e resgatando as compras on-line da
esposa dele na transportadora local.”), Alex girou a cadeira para encarar a
substituta e foi a vez dela de perguntar:
— Você quer esse emprego?
A garota encolheu o queixo, surpresa com o tom de voz daquela mulher
que imaginara ser cúmplice da sua falta de profissionalismo.
— Claro que sim. Bom, é uma coisa temporária para mim, sabe? Já que
você só está planejando tirar seis meses de licença… Pelo menos foi o que
Jamie me falou. Talvez ele estivesse…
Alex a interrompeu aí. Sim, ela só estava planejando tirar seis meses. Por
que todo mundo estava tão convencido de que as mulheres mudariam de ideia
e tirariam os 12 meses oferecidos ou talvez nem mesmo voltariam? E havia
julgamento nos olhos daquela garota de 23 anos, ela tinha certeza. Baseado
no quê? Os tipos de certezas presunçosas que alguém ainda mantém nessa
idade. De que, ao conhecer alguém de quem você gosta, o que vai acontecer,
a pessoa gostaria de você também. Que vocês estariam prontos para casar e
ter filhos ao mesmo tempo, e que quando você tivesse esses filhos, iria se
sentir como mães recém-paridas deveriam se sentir.
Depois da confusão dos últimos meses, Alex não tinha mais tantas
certezas. Mas de uma coisa ela sabia: quando Jamie pedisse para que ela
voltasse ao trabalho mais cedo (e ele não pediria, ela sabia, e sim “sugeriria”,
com uma expressão contrita e um discursinho sobre “entender perfeitamente
como essa é uma época muito especial, mas…”), ela diria sim. Sim para ter
um motivo para se vestir de manhã. Sim para dias estruturados. Sim para ser
necessária em algo que sabia ser ótima, para voltar a receber o salário integral
e poder se livrar do peso do empréstimo da mãe o mais cedo possível. Não
que ela diria tudo isso para Jamie, que daria mais valor ao sacrifício se ela
dissesse que precisaria de alguns dias para pensar. E quando Alex fez a curva
na Black’s Road e viu a fachada espelhada da BWL se erguendo à sua frente,
sentiu um pouco daquela animação anterior voltar.
— Pronta para ver onde a mamãe trabalha? — murmurou com os lábios
colados ao redemoinho de cabelo sedoso da filha. — Acho que você vai
gostar. E tenho certeza de que vai adorar o chefe da mamãe.
Cinco dias por semana, por pouco menos de um ano, ela atravessara as
portas giratórias do átrio branco brilhante da BWL com um latte na mão. E a
lembrança daquela mão livre — a mão com a qual abria portas, acenava para
Lydia na recepção, tirava o cabelo do rosto, pegava o cartão do transporte,
ajeitava a calça ou esfregava uma coceira — só deixou mais evidente tudo
que Alex perdera com a maternidade. Ela nunca se sentiria despreocupada ou
simplesmente livre de novo e esse pensamento a fez querer dar outra volta na
porta giratória e ir direto para casa. Mas Alex já tinha visto o suficiente do
desfile de novas mães pela BWL — vejam só o que eu fiz! — para saber o que
deveria fazer, e embora a maioria esperasse até o bebê ter pelo menos quatro
ou cinco meses, ela tinha noção de que aquele dia não tinha de fato a ver com
Katie. De qualquer forma, Lydia já a tinha visto.
— Ah, ah, ah! — Ignorando os telefones tocando, sua colega saiu de trás
da bancada de nogueira curvada da recepção, com o lema onipresente da BWL
inscrito (“História. Herança. Preservadas.”), a mão tapando a boca. — Não
aguento. — Os saltos estalavam conforme ela se aproximou a passos rápidos.
— Essa é a… Katie? É, sim! É, sim!
Antes de ter Katie, Alex achava os olhos arregalados, a vozinha de bebê e
a repetição constante engraçados. Agora só os achava irritantes. Mas estava
feliz de ver um rosto amigo e ansiosa para exibir sua filha como todas as
outras faziam.
— Claro que ela vomitou no caminho. É a animação de ver onde a mamãe
trabalha, não é, Katie?
— Eu queria morder essa menina! — Lydia passou o dedo pelo punho
cerrado da bebê. — E você, querida, como está?
— Bom, não estou dormindo muito. Essa aqui herdou o apetite da mãe,
com certeza. E tem um belo par de pulmões. Mas estamos indo bem, não é
mesmo?
Lydia inclinou a cabeça para o lado: uma mistura de pena e curiosidade
nos olhos.
— Mesmo assim, deve ser difícil fazer tudo sozinha, né? Mas imagino que
seus pais estejam doidos por ela.
— Doidos por ela.
Alex estava acostumada às pontadas de tristeza que essas suposições
casuais causavam e tinha decidido muito tempo atrás que era mais fácil entrar
na onda do que tentar explicar por que seus pais não eram como pais normais.
— Maya apareceu com a pequena Elsa outro dia, que deve ter o quê?
Quase a mesma idade dela? Dois meses?
— Três.
Alex ainda não conhecera a esposa do chefe, mas em algumas ocasiões
durante a gravidez simultânea das duas elas haviam trocado palavras de apoio
ao telefone, por causa dos enjoos matinais e dos tornozelos inchados.
— Achei mesmo que era perto. Seja como for, Maya falou que a Elsa é um
anjo, já está até dormindo seis horas direto à noite.
— Que ótimo.
— Desculpa! Se te faz se sentir melhor, ela também disse que tinha
esquecido como isso tudo é difícil. E com Jamie trabalhando tanto aqui…
— Mudança nenhuma, né? Mas ele deve estar felicíssimo, não?
Ao dizer isso, Alex se lembrou de quanto o chefe queria um menino.
— Para ser sincera, acho que ele ficou meio…
— Decepcionado? Ele vai superar. Nós, garotas, não somos tão ruins
assim.
— Com certeza! E se conheço Jamie, ele já deve estar planejando um
terceiro.
Lydia revirou os olhos, mas não conseguiu conter o sorrisinho que muitas
vezes acompanhava a menção do nome de Jamie por um certo tipo de
mulher.
— Você deveria ter visto Jamie e Hayden lá no Firkin semana passada. Já
estavam na terceira caneca e…
Lydia se interrompeu fazendo uma careta pela própria falta de tato.
— Desculpa, Alex, eu não queria fazer você se sentir… Não queria
parecer desleal. — Balançando a cabeça, ela continuou. — Hayden sabe que
você vem hoje, né?
— Sabe, e convenientemente vai passar o dia em “uma reunião externa”.
— Alex estava se esforçando ao máximo para não soar amargurada. — Então
não vai ser hoje que Katie conhecerá o pai.
Lydia arregalou os olhos.
— Hayden ainda não foi vê-la?
— Não. — Alex beijou a cabeça da filha com carinho. Ninguém nunca vai
fazer você se sentir como eu me senti. — Ele deixou muito claro que não quer
se envolver.
— Mas ele é o pai dela!
Alex ficou pensando se deveria contar que até isso era questionável, a
ideia de confiar em alguém, qualquer pessoa, depois do que pareciam ser
meses de conversas consigo mesma, era mais atraente do que qualquer outra
coisa em que conseguia pensar. Mas aquele não era o momento.
— Além disso, Al… vocês dois vão trabalhar no mesmo escritório. Ele
não pode fingir que você não existe.
— Eu sei, eu sei.
Agora ela só queria se afastar, entrar no elevador que a levaria para os
andares superiores, para além dos portões de segurança, e ter a conversa que
a fez ir até ali. Sentindo isso, Lydia lhe entregou um passe de visitante, que
pareceu absurdo pendurado no seu pescoço, e liberou sua passagem.
— Você vai me ligar quando estiver livre para tomar umas doses de gim e
tônica, né? Ah! E não esquece da festa de despedida da Joyce! Daqui a duas
semanas.
Lá no último andar todos estavam de cabeça baixa, falando baixinho ao
telefone ou fazendo reuniões nos aquários de vidro. Alex não sabia bem o
que esperava, mas não era essa sensação de invisibilidade em um ambiente
do qual era parte tão fundamental poucos meses antes.
Havia saído dali por cima, com uma cesta de produtos orgânicos infantis e
um balão de hélio escrito “Bebê a bordo”. E talvez essa fosse a questão: a
gravidez fizera com que Alex se sentisse importante pela primeira vez na
vida. Entregadores, baristas, clientes, até sócios como Jill e Paul tinham
notado quando sua barriga começou a aparecer, e perguntavam quando o
bebê nasceria, se era menino ou menina, e como ela estava se sentindo. Mas
Alex aos poucos começava a entender que, enquanto a gravidez a tornou
importante, a maternidade a tornava invisível. E ao esquadrinhar o escritório
em busca dos seus amigos e colegas, sentiu alguns olhares breves e
desinteressados em si antes de serem desviados de novo.
Sentada na sua mesa — uma mesa que Alex sempre mantivera livre de
objetos pessoais, mas que agora estava coberta de cosméticos, cactos em
miniatura, revistas e um ursinho de pelúcia com um babador em formato de
coração com as palavras “Só para você” — estava Ashley. E enquanto Alex
pensava em como cumprimentaria a mulher que era sua substituta, Katie
embalou num choro explosivo, resolvendo seu dilema.
Em minutos ela estava cercada de mulheres, com Joyce — que aos 65 anos
era a funcionária mais antiga por décadas — balançando Katie para cima e
para baixo na tentativa de fazê-la parar de chorar.
— Cadê o Jamie? — Alex conseguiu falar por cima do barulho.
— Está terminando uma reunião com a equipe de Energia e
Sustentabilidade — respondeu Ashley.
Alex lançou um olhar para a sala de reuniões principal. As costas largas do
chefe eram visíveis pelo vidro, através do qual ele conversava com a
supervisora de projetos especiais da empresa, Nicole.
— Não quero incomodá-lo. Posso esperar… ou volto mais tarde.
— Não seja boba — retrucou Joyce. — Ele já termina.
— Eu sei bem o quanto ele quer conhecer essa princesa! — disse Ashley
de novo, sorrindo para Katie da sua cadeira.
Embora Alex tenha se forçado a sorrir de volta, não pôde deixar de
perceber como seu escaninho estava cheio. Na parede da baia atrás, uma
colagem de fotos de cabine havia sido montada, cada tira fotográfica
contendo uma paleta de loiras de tons variados, os rostos inclinados em
direção à câmera com caretas à la Spice Girls. Como essa menina tinha
durado tanto tempo?, se perguntou Alex, antes de imediatamente se sentir
culpada pelo pensamento. Certo, Ashley não estava concorrendo ao prêmio
de funcionária do ano, mas era óbvio que não tinha ideia de que seus dias
estavam contados, ou então não teria transformado a mesa do escritório no
próprio quarto. Conhecendo Jamie, talvez até se tornasse responsabilidade de
Alex resolver aquilo…
— Gostei do ursinho — disse Alex. — Mas é sério, se for melhor eu voltar
daqui a pouco…?
— Você não vai a lugar nenhum. — Equilibrando Katie em um dos braços
como a avó de quatro crianças que era, Joyce digitou três números no
telefone mais próximo. — Jamie, querido, estamos com uma visitante aqui.
Duas, na verdade. — Uma piscadela. — Bom, uma e meia.
O que quer que Jamie tenha respondido fez Joyce soltar uma risada
estranhamente jovial, fazendo Alex se lembrar de que o atrativo de Jamie
sempre era mais amplo do que ela imaginava. Seria sua aparência de garotão,
ainda presente sob o peso extra que ele carregava em torno do queixo e da
cintura? A altura dele e a forma como inclinava a cabeça para olhá-la nos
olhos por um tempo que era só um pouco longo demais? O sorriso travesso
que fazia com que você se sentisse sortuda por conhecer suas piadas internas?
Alex não tinha certeza. Mas ela já vira todas, de mulheres de negócio cheias
de botox a millennials secas, ficarem de risadinhas depois de poucos minutos
com Jamie.
Para ela, pelo menos, o atrativo do chefe sempre foi claro: Jamie via você.
Isso parecia bobagem, mas Alex já tinha trabalhado para homens e mulheres
que conseguiam passar oito horas por dia olhando através dela, ou ao redor
dela, sem nunca a ver. E desde o momento em que Jamie a levara até o
escritório para a entrevista, pouco mais de um ano antes, ela havia se sentido
mais sólida: uma pessoa real com opiniões e histórias que valiam a pena
serem ouvidas.
— Al! — Lá estava ele, vindo do outro lado do escritório numa corridinha
tranquila até ela. Pelo canto do olho, Alex viu as mulheres acertarem a
postura e ajeitarem o cabelo. — Olha só para você. E olha só para você!
Dando uma olhada em Katie, que ainda estava nos braços de Joyce, Jamie
fez uma careta boba.
— Quer um abraço?
— Achei que nunca fosse oferecer.
— Não meu, bobo. Da Katie! — Alex riu, e era gostoso voltar à rotina de
brincadeira dos dois.
Jamie ergueu as mãos, pesaroso.
— Melhor não. Passei a manhã toda apertando a mão de empreiteiros. E a
gente sabe como esse pessoal é sujinho. Não existe álcool gel suficiente no
mundo para lidar com eles. Mas, Al, ela é tão pequenininha! Quanto ela
pesava? Elsa era uma batatona.
— Dois quilos e meio, então, sim, bem pequena. Elsa parece tão fofa,
Jamie. Tão loirinha! Parabéns.
Eles assentiram um para o outro, conscientes de que a conversa sobre
bebês não duraria muito tempo, e que esse não era o real motivo de Alex
estar ali.
— Como está Maya?
— Ah, ótima, ótima… Você sabe. É mais fácil na segunda vez.
Joyce de alguma forma tinha conseguido controlar o choro de Katie, e
enquanto os três a observavam balbuciando, Alex sentiu o nó de tensão no
seu estômago relaxar pela primeira vez naquele dia.
— Ela é muito linda, Al. Parabéns.
Jamie deu uma olhada na faixa mais clara de pele do seu pulso direito,
onde o relógio costumava ficar — um TAG Heuer dado pela esposa no
aniversário de casamento, que causou a ambos algumas noites sem dormir
quando ele o perdeu —, e indicou o escritório com um aceno da cabeça.
— Vamos entrar rapidinho para conversar?
— Claro.
Alex estava se segurando para não sorrir. Aquilo tudo era tão transparente.
Eles poderiam ter tido aquela conversa pelo telefone, sem que a pobre Ashley
ficasse observando tudo da mesa e temendo o pior. Mas não dava para negar:
a ideia de Jamie estar nervoso por causa daquela reunião, que ele talvez tenha
até ensaiado o que diria para fazê-la voltar… Daquilo Alex gostava.
Articulou um “obrigada” silencioso para Joyce e pegou Katie no colo de
novo.
Mas Jamie não se mexeu.
— Você não quer… — Ele coçou a nuca, olhando para Katie. — Não quer
deixá-la com a Joyce?
— Não se preocupe.
— Sério? Pode ser mais fácil se…
— Jamie! — Alex riu, começando a ir para o escritório dele. — Relaxe,
ela vai ficar bem.
Na última vez em que se sentara ali, no sofá Roche Bobois cor de chumbo
do chefe e seu orgulho, Alex sentia um tipo diferente de nervosismo.
Preocupada em dar a notícia da gravidez para Jamie e satisfeita pela primeira
vez na vida por ter um peso extra atrás do qual se esconder, ela deixou passar
mais tempo do que deveria para contar. Mas em uma tranquila tarde de
quarta-feira, com pouco mais de cinco meses de gravidez, Alex desembuchou
enquanto Jamie ditava um relatório. Foi um acidente, ela gaguejou,
consciente de que era informação demais e não de todo verdade. E, embora
não tivesse planejado ser mãe solo aos 29 anos, Alex garantiu ao chefe que
planejava encontrar uma boa creche logo e voltar ao trabalho o mais rápido
possível. Seu único erro foi presumir que ele já sabia, por Hayden ou pelos
boatos do escritório, a identidade do pai.
— Hayden? — Um lampejo entre incredulidade entretida e irritação. —
Nosso Hayden?
Tinha soado como “meu amigo Hayden”.
— Desculpe. Achei que você já soubesse.
O sorriso de Jamie era tenso.
— Por que achou isso?
— Bom, eu sei que vocês dois são… próximos. — Cutucando o esmalte
das unhas, Alex continuara. — E as pessoas, bem… Elas pareciam saber
sobre a gente. Embora eu tenha tentado…
— Ótimo. — Jamie se recostara na cadeira com força. — Bom, para
responder à sua pergunta: não, eu não sabia.
Alex se surpreendera com a reação do chefe antes de se lembrar de como
ele odiava ficar de fora de qualquer coisa que tivesse a ver com a BWL.
— Quando falei “pessoas”, não quis dizer que…
— Para ser sincero, só estou surpreso de você ter esperado tanto tempo
para me contar — ele interrompera. — Disse que já está de cinco meses?
Quando Jaime baixou o olhar para a barriga dela, Alex engoliu um quê de
vergonha, como se eles tivessem sido enviados para o século passado, e ela
fosse uma mulher da vida trazendo desonra para todos eles.
— Isso. Um pouco mais.
— E Hayden, como ele está se sentindo com tudo isso?
— Nós não estamos… juntos, na verdade.
Alex sabia que os homens tendem a não discutir sua vida pessoal de forma
tão minuciosa quanto as mulheres, mas não conseguia deixar de se sentir um
pouco ofendida por Hayden não ter nem mencionado o relacionamento — ou
o fim dele — mesmo de passagem.
— Mas, olha, se você está preocupado com qualquer tipo de clima
estranho no escritório pode ficar tranquilo. Nós somos adultos e isso não vai
afetar meu trabalho de jeito nenhum, Jamie. Isso eu te prometo. Eu amo esse
emprego — completara ela, já sem fôlego. — E espero que você saiba que eu
sempre vou estar disposta a fazer tudo o que for preciso por você.
Depois de uma breve pausa, Jamie a assegurara de que tinha ciência disso
(“todo mundo sabe que você é uma máquina, Al, e que eu estaria perdido sem
você”). Ele parecera surpreso, mas também um pouco aliviado, por ela já ter
decidido sua data de retorno, e grato quando a substituta apareceu, por Alex
ter sido tão detalhista quanto sempre fora. E apesar do arquivo extenso que
montara e da tarde que insistira em passar com Ashley, ela havia saído sem se
convencer de que a substituta compreendia tão bem quanto deveria o
software que a BWL usava. Esse era um bom ponto para começar a conversa
naquele dia: Jamie parecia precisar de um empurrãozinho.
— Olha, eu estava falando sério quando disse que poderia ajudar com
qualquer coisa que Ashley não tivesse entendido, Jamie. Eu sei que ela tem
tido dificuldades com a intranet.
— Alex — interrompeu Jamie, passando a mão na testa. — O problema
não é Ashley. O problema é você.
Apoiando Katie no ombro, Alex começou a esfregar as costas da filha.
Não havia percebido sinais de gases, mas estava consciente de uma
necessidade urgente de fazer algo com as mãos — fingir, ao menos, que sua
visão periférica e audição não tinham sido bloqueadas, com apenas as
palavras nos lábios de Jamie formando um túnel visual. E uma memória
surgiu de algum lugar profundo dentro dela. Notícias ruins, do tipo que
mudam vidas, contadas de forma tão casual por um homem; você sempre as
adivinha com um milissegundo de antecedência. Foi o que aconteceu ali.
— Alex, vamos ter que encerrar sua passagem pela BWL.
CAPÍTULO 3

JILL

– C omo—assim, eles começaram uma hora atrás?


O sr. Ho chegou mais cedo — explicou Joyce. — Jamie achou
que era melhor começar e não deixá-lo esperando.
— Sei.
Não era incomum para a assistente de Jill ter conversas inteiras sem
desviar o olhar do monitor sequer uma vez, mas algo na tensão da voz da
chefe naquele momento a fez erguer os olhos.
— Sinto muito. Tentei te ligar, mas seu celular estava desligado.
— Eu estava no hospital.
— Eu sei. E falei para Jamie que provavelmente você preferiria que ele
esperasse, mas quando não consegui falar com você…
— É claro. — Jill folheou um relatório de pesquisa na mesa de Joyce. —
Eu lembrei à substituta de Jamie ontem que eu chegaria em cima da hora para
a reunião.
— Ah.
— Qual o nome dela mesmo?
— Ashley? Ela acabou de ser contratada. Você sabe… Agora que a Alex
foi demitida.
Uma explosão de risadas veio da sala de reunião, onde Jamie gesticulava
em frente à maquete do Lots Road Hotel que Jill passara os últimos quinze
dias preparando com o arquiteto para aquela reunião.
Não era fácil arrancar um sorriso daqueles empresários da Malásia.
Durante todos os anos em que o sr. Ho foi seu cliente, Jill só se lembrava de
poucos momentos de sorrisos de verdade, com “olhos e dentes”, quando
algum acordo longo e complexo finalmente era fechado. Mas sobre o que
quer que Jamie estivesse brincando naquele momento fizera Ho e os colegas
se iluminarem, cutucarem uns aos outros, repetindo a piada. Até Paul —
recostado na cadeira assistindo ao parceiro carismático fazer o que fazia de
melhor — estava rindo, de alguma forma aproveitando um show que já devia
ter visto mil vezes antes.
Essa era a questão sobre Jamie: ele era um performer. Além de sua rara
habilidade de fazer conexões com qualquer pessoa, de qualquer classe social
ou estilo de vida, essa era a razão pela qual ela e Stan o contrataram, quando
ele ainda era um trintão metido querendo sair do mercado de propriedades
corporativas para algo mais “suculento”: essa foi a palavra que ele usou —
algo com um quê de predatório com que ela se preocupou de início. Contudo,
os projetos de significado arquitetônico que ela e Stan tinham jurado proteger
ao criar a empresa eram densos, em história e cultura —, então, sim, eram
algo em que seria possível cravar os dentes. E quando o marido dela decidiu
se aposentar, os dois sabiam que só havia um homem capaz de ocupar seu
lugar.
— Bom, eu posso participar do final. O sr. Ho vai se perguntar por que
não estou lá.
Era como se estivesse pedindo a permissão da sua assistente. E Joyce, já
de volta à digitação, só assentiu, deixando que Jill questionasse a índole
hesitante de sua declaração — e o fato de que ainda não tinha se movido em
direção à sala de reuniões.
Nos três anos em que o nome de Jamie esteve ao lado do dela e do de Paul
nas paredes de mármore, nos papéis de carta, nas telas de apresentações e nos
créditos do software, eles nunca tiveram motivo para se arrepender daquela
decisão, pensou ela, com os olhos fixos no protegido que havia muito
superara a necessidade de qualquer mentor. Ah, como era bom ter aquela
energia! Jill sempre fora confiante, até vibrante quando precisava ligar essa
faceta sua para uma sala cheia, sem nunca sofrer da tal “síndrome de
impostora” de que tantas mulheres reclamavam. Mas a capacidade de Jamie
de fazer com que os clientes tomassem decisões ambiciosas, caras e às vezes
até imprudentes… isso ela nunca teve. Nem quando tinha vinte ou trinta
anos, e certamente não agora, depois de recuperar sua força vital a duras
penas após a menopausa, para voltar a ser destruída pelo diagnóstico de Stan.
E, se alguém naquela sala em algum momento estivera esperando por ela, ela
foi forçada a admitir, não a esperava mais.
Não importava que foi ela quem convenceu o conglomerado malásio a
vender a estação de energia para começo de conversa. Ou que foi graças a ela
que o sr. Ho vendera o condomínio histórico no Chelsea por pouco menos do
dobro do preço pedido, cinco anos atrás. Agora que ela tinha alinhado tudo,
talvez fosse natural, correto, que Jamie fizesse o que fazia de melhor e
estimulasse as papilas gustativas do cliente com um banquete de potenciais
compradores.
— Jill?
— Sim?
— Posso pegar as suas…?
Seguindo o olhar de Joyce, Jill percebeu que ainda estava usando o trench
coat de verão, a bolsa pendurada na dobra do braço. Em uma série de
movimentos rápidos, ela se livrou dos dois e os entregou para a assistente.
— Obrigada.
Mas agora que havia decidido que talvez fosse melhor não ir à reunião do
que entrar naquela sala e ser forçada a correr atrás do prejuízo, Jill se
ressentia da decisão. “Melhor” na verdade significava “menos humilhante”, e
a impotência que ela sentia olhando para aqueles homens pelo lado de fora do
aquário era horrivelmente conhecida. A sensação trouxe lembranças de cenas
idênticas, décadas antes, quando — com terninhos baratos e o cabelo
naturalmente loiro —, com frequência, a faziam se sentir insignificante, não
mais necessária.
— Joyce?
— Hum?
— O que aconteceu de verdade com a assistente do Jamie? Ele não entrou
em detalhes.
— A Alex? Eu nem sabia que a empresa podia fazer isso, demitir alguém
no meio da licença-maternidade. Eu entendo que ela cometeu um erro…
— Que foi…?
— Desculpa. — Sua assistente digitou mais uma frase, apertou “Enter” e
se virou para ela. — Então, sim, parece que ela fez o Jamie assinar um
arquivo de diligência devida sem ter toda a documentação acertada. Coisas
importantes, tipo a confirmação do empreiteiro contra lavagem de dinheiro,
estavam faltando. O que seria impensável mesmo na melhor das situações,
mas quando o comprador é um empreiteiro georgiano com quem nunca
trabalhamos antes…
— Aquele tal de Khalvashi — murmurou Jill.
— Teria sido um problemão se Paul não tivesse percebido.
Jill estava com a papelada do dia em mãos e já poderia estar no escritório,
abrindo cartas e iniciando suas ligações matinais, mas sentia uma curiosa
inabilidade de fazer qualquer uma dessas coisas.
— O mais estranho é que a Alex era ótima. Muito mais eficiente que a
assistente anterior dele. — Joyce fez uma careta para a tela do computador.
— Talvez fosse o “cérebro de grávida”, como Jamie falou.
— Ele não deveria falar uma coisa dessas. E isso existe, aliás? Eu não sei
dizer.
— Às vezes você fica meio confusa, sim — respondeu a assistente com
uma risadinha. — Mas do jeito que os homens falam, é de pensar que a gente
tenha sofrido uma lobotomia no momento em que o óvulo foi fecundado. —
Ela parou, franzindo a testa. — Eu fiquei meio surpresa. Ele vai ter
dificuldade de encontrar alguém tão meticuloso quanto a Alex. Ela
enlouquecia todos os motoristas, pedindo para a avisarem assim que Jamie
estivesse “a bordo”, assim ela poderia atualizar a previsão de chegada dele a
quem quer que o estivesse esperando. Como se ele fosse o primeiro-ministro,
sei lá.
— Aposto que ele adorava isso.
Papéis estavam sendo guardados na sala de conferências, pastas fechadas,
indicando o final da reunião. Os malásios estavam de pé fazendo suas
reverências curtinhas.
— Ela nunca chamou minha atenção, tirando aquela história toda com
Hayden. Isso circulou pelo escritório, né? — Jill baixou a voz. — Tenho que
dizer… Sei que sou velha, mas ficar grávida de uma relação casual com um
colega de trabalho?
— Não me diga que isso nunca aconteceria na nossa época.
— Bom, aconteceria?
Joyce parou de digitar só pelo tempo necessário para lançar a Jill um olhar
incrédulo.
— Acho que isso acontece em festas de escritório desde que o mundo é
mundo.
— E isso aconteceu na nossa?
— No aniversário de quarenta anos da BWL, pelo que eu ouvi falar.
— Caramba. Eu era a primeira a saber dessas coisas antigamente. Quando
foi que fiquei tão desligada de tudo?
A resposta pairou no silêncio entre elas. Quando seu marido descobriu que
estava com câncer.
Jill passou a mão pelo cabelo. Ela sempre se orgulhou de como tinha
poucos cabelos brancos, mesmo se aproximando dos sessenta. Mas, nos
últimos meses, ela sentiu e viu a cor e a textura dos fios mudarem, e com
tudo que ela e Stan estavam enfrentando, esse parecia mais um golpe
maldoso da Mãe Natureza.
— Estou me sentindo pra baixo — murmurou Jill, mais para si mesma que
para Joyce. — Preciso limpar esse ar de hospital de mim. Pode me fazer um
favor e…
— Café e croissant de damasco?
— Você é um anjo. — Jill sorriu. — Como vou viver sem você?
— Não começa. Todos esses anos sonhando com esse momento, e agora a
ideia de marcar a caixinha de “aposentada” em formulários me dá vontade de
chorar. Esqueça você, o que eu vou ficar fazendo o dia inteiro?
Jill balançou a cabeça.
— Postar fotos dos netos no Facebook?
Vozes masculinas abafaram o final da frase, e enquanto eles se retiravam
da sala de reunião, Jill ajeitou a saia Jaeger que comprara em todas as cores
— algo que fazia de vez em quando com peças básicas de escritório — e
caminhou com confiança em direção ao grupo de homens.
— Sra. Barnes.
— Sr. Ho, é um prazer vê-lo, e sinto muito por não ter podido me juntar a
vocês. Espero que o sr. Lawrence tenha explicado que precisei me ausentar.
— Não é problema. Já preparamos toda a estratégia de marketing, não é?
E o sr. Lawrence parece confiante de que vai conseguir nos arrumar uma
venda até junho.
— Isso é em menos de um mês.
— Ele disse que é possível. — Erguendo o braço, o sr. Ho apoiou a mão
de leve nas costas de Jamie. — E, sra. Barnes, espero que possa mandar
minhas lembranças ao seu marido. Eu não tinha ideia de que ele estava tão
mal.
O sorriso de Jill congelou no rosto.
— Meu irmão passou pelo mesmo. — Ele assentiu com empatia. — Ele
venceu, mas, bom… Próstata é um dos piores.
Quando o sr. Ho pegou a mão de Jill, ela sentiu a raiva aumentar e
bloquear sua garganta. Uma coisa — a única coisa que o estoico e pouco
exigente Stan pediu desde o início: “Você vai se certificar de que nenhum dos
clientes descubra, não é, amor? Sei que os sócios vão ter que ficar sabendo e
os gerentes também. Mas ter mais gente sabendo, todos os clientes com quem
trabalhei todos esses anos… Bem, acho que não aguentaria.”
— Obrigada — ela conseguiu responder.
— Estou surpreso de vê-la aqui — continuou Ho. — Espero que não tenha
vindo só por minha causa, Jill.
— Ah, eu continuo trabalhando…
— Porque o Jamie me falou que você está passando a maior parte do
tempo em casa, que é onde deveria estar. Não aqui no escritório. E estou
sendo bem cuidado por esse rapaz aqui. — Sorrindo, ele apontou com a
cabeça para Jamie. — Mas mande nossos desejos de melhoras para o sr.
Barnes.
Com outra pequena reverência, o cliente dela começou a seguir para o
elevador, acompanhado por Jamie.
— Sr. Ho. — O horror de Jill de ser o tipo de mulher que era forçada a
trotar para acompanhar os homens significava que sempre mantinha a altura
dos saltos em cinco centímetros ou menos, e ainda assim eles estavam
andando tão rápido que ela teve dificuldade para acompanhá-los. — Tenho
confiança de que a Lots Road vai chamar a atenção de muitos compradores,
ainda temos algumas burocracias que precisamos resolver antes de sequer
começarmos a mostrar a propriedade… As questões que comentei com o
senhor no início do ano. Então quando falamos junho…
— Eu sei. Mas o sr. Lawrence aqui diz que eles vão comer… — Dando
meia-volta nos brogues minúsculos e brilhantes, o sr. Ho se virou para Jamie.
— Comer na sua mão. Vão mesmo, sr. Ho. Vão mesmo.
— Jamie pensa, como dizemos, “fora da caixa”. Nós adoramos isso. Meus
amigos do escritório de Hong Kong me disseram que ele é uma estrela em
ascensão.
— Em ascensão? — Jamie fez uma careta.
— Já ascendida! — O sr. Ho deu uma risada. — Já ascendida, sr.
Lawrence…
— Pode me chamar de Jamie.
— Jamie. Vamos nos falando.
Enquanto o pequeno batalhão de homens em ternos idênticos e bem-
arrumados entrava no elevador e desaparecia de vista, Jill atravessou o andar
e voltou até seu escritório, onde Joyce já a esperava com sua correspondência
e bolsa esquecidas. Mas, antes de iniciar o ritual de décadas de confirmação
da agenda do dia, Joyce fez uma pausa, os lábios apertados.
— O quê?
Joyce piscou, confusa.
— Eu não sabia que Stan tinha permitido que contássemos para os
clientes.
Sem tirar os olhos das costas metidas a besta de Jamie, sem se incomodar
em disfarçar uma emoção que até aquele dia ainda era vaga, quando se tornou
muito claro para Jill que o sócio não era só insensível, mas que estava
deliberadamente minando sua autoridade, Jill respondeu:
— Ele não permitiu.
CAPÍTULO 4

NICOLE

– E ssesNicole
rodatetos. Por favor, olha só esses rodatetos!
aprendera a ficar em silêncio na pausa depois das
exclamações de surpresa dos clientes. A deixar com que eles se
surpreendessem com claraboias, túneis solares e sacadas Julieta. A não
estragar o momento com seu blá-blá-blá. Não que Rupert Jones fosse um
cliente típico. Ela era capaz de apostar que ele sabia mais sobre os detalhes da
arquitetura neoclássica que ela.
Arquitetura brutalista era mais o estilo de Nicole: as linhas limpas e
igualitárias não só combinavam mais com seus ideais políticos, como
também a emocionavam de forma mais profunda, enquanto o Vale Theatre
— por mais surpreendente que fosse em toda a sua grandiosidade envelhecida
— de certa forma não conquistava seus sentidos. Com o passar do minuto em
que ela e Rupert ficaram admirando em silêncio o teto do teatro, as treliças
serpenteantes de frutas, folhagens e flores começavam a parecer quase
ridículas.
— Óbvio que vai ser preciso algum trabalho de restauração — comentou
ela. — Mas se você imaginar isso como o átrio central e talvez pensar em um
bar aqui e outro ali…
Os três engravatados do financeiro que Rupert trouxera estavam
assentindo, mas era com o bilionário de jeans e All Stars velhos que ela se
importava.
— Com certeza está bem melhor do que eu achei que estaria — enfim
disse o cliente. — E Jamie me falou que o conselho não vê problemas, a
princípio, em transformar o prédio em um clube?
— Parece que não. Sei que ele confirmou isso antes de entrarmos em
contato.
Havia muito mais a mostrar e contar para Rupert sobre aquela propriedade.
Nicole estava particularmente orgulhosa de ter encontrado aquela
peculiaridade arquitetônica escondida na papelada confusa da Inglaterra
histórica.
No teto do Vale Theatre, invisível a qualquer um que não fosse um pássaro
ou um avião, havia um pequeno domo de vidro octogonal que permitia a
entrada de luz antes de ter sido escondido por um alçapão no teto tempos
depois. Aquela estrutura existia em poucos prédios históricos no país
atualmente, e Nicole achou aquilo tão fascinante que na semana anterior
havia se aventurado em uma escada de corda que levava do palco para a
cobertura do telhado. Sozinha lá em cima, ela se maravilhou com a vista do
noroeste de Londres — e as escotilhas enferrujadas ainda se abriam para o
telhado, mesmo depois de tantos anos. Ainda assim, algo — talvez tão
simples quanto o desejo de manter aquilo um segredo só seu por mais um
tempinho — impediu Nicole de compartilhar aquilo com Rupert pelo
momento.
— Onde está o sr. Lawrence, aliás? Achei que ele se juntaria a nós.
— Ele está a caminho. — Nicole verificou o celular.
— Ou será que deveríamos chamá-lo de “Jamie Negócio-Fechado
Lawrence”?
— Você viu a matéria na Property Week.
— Difícil não ver. — Rupert inclinou a cabeça para trás e observou o arco
amplo do proscênio. — Tinha o quê?, umas cinco ou seis páginas? Não que
ele não mereça: vendas de 18 milhões não acontecem mais como
antigamente. A BWL deve estar bem contente com seu menino de ouro.
— Está mesmo. — Nicole assentiu, sentindo o sorriso à beira de um
colapso. — Bom, ele deve chegar a qualquer minuto. Aí vai poder te dar os
detalhes sobre as discussões com o conselho. — Ela pausou: com Rupert,
menos era sempre mais. — Mas você foi a primeira pessoa em que pensei
quando conseguimos o Vale.
— Bom, você já acertou em cheio antes. E então, conseguimos chegar aos
camarotes?
Nicole sempre gostou de lidar com Rupert. Sabia que ele tinha registrado o
fato de que ela era atraente, mas só da maneira passageira e objetiva que se
registra o gênero ou a etnicidade de uma pessoa — não com o desejo de se
aproveitar do fato, como a maioria dos homens. Pontual, educado e de voz
suave, o hoteleiro também não exagerava em mostrar seu sucesso, o que era
raro no mundo duro e competitivo em que ela habitava, e algo que Nicole
gostava de pensar que seria capaz de fazer quando enfim chegasse aonde
queria chegar.
— Vou precisa de um café — anunciou Rupert depois que terminaram o
passeio. — Para ontem. Que tal você ligar para Jamie e falar para ele nos
encontrar na Lytton House em dez minutos? — Era um dos clubes exclusivos
de Rupert, ela lembrou, que ficava logo adiante na mesma rua. — Vou pedir
algo para bebermos na sala de jantar superior, e você pede para ele nos
encontrar lá.
Enquanto o cliente passava instruções para a equipe pelo telefone, Nicole
apertou o botão de “atalhos” no celular e ficou com o polegar pairando sobre
o contato de Jamie, torcendo para o chefe aparecer antes que ela tivesse que
ligar. Por que ele sequer era necessário hoje? O teatro era um projeto de
Nicole.
— Tudo certo? — Rupert ergueu uma sobrancelha e, relutante, Nicole
apertou o ícone de telefone verde.
— Alô-ô?
O ódio explodiu dentro dela como um rojão.
— Jamie. — Ela manteve a voz calma. — Já acabamos aqui no Vale, e
Rupert estava pensando que você poderia nos encontrar na Lytton House para
conversar sobre os detalhes. — Nicole abriu um sorriso para o cliente. — O
homem precisa de cafeína.
— Claro. Estou no trânsito, mas devo chegar em uns vinte minutos.
Jamie chegou em menos tempo do que isso, atravessando as portas duplas
da sala de jantar com um batalhão de explicações que não importavam para
ninguém — muito menos para o cliente dela, certo? E mesmo assim, lá
ficaram os dois, imediatamente mergulhados em reclamações sobre o trânsito
de Londres. Você não está preso no trânsito, você é o trânsito. Nicole enfiou
a unha na coxa por baixo da mesa, se preparando.
— Bom, você sabe o que dizem… — concluiu Jamie, estalando a língua.
— “Você não está preso no trânsito, você é o trânsito.”
Bum. Tão previsível quanto um câncer.
— Então os números na página cinco do prospecto são o que estamos
vendo — murmurou ela, ao se voltar para os homens do dinheiro, deixando
Rupert e Jamie conversando. Dois deles começaram a folhear a papelada na
hora, mas o terceiro, mais simpático, teve a educação de sorrir antes. —
Espero que vocês não tenham passado aquele domingo de sol trabalhando.
Fez mais calor que em Barbados, disseram no noticiário.
O tempo estava muito louco naquele meio de maio, as flores dos
castanheiros-da-índia que ladeavam os caminhos do parque eretas como
cones de sorvete contrastando com as folhagens novas. Aquele domingo tinha
sido o dia mais quente do ano. Mas Nicole ficou contente em ter uma razão
para ir embora mais cedo. Eles estavam vagando pelos bancos lotados do
lago Serpentine quando Ben sugeriu que alugassem um pedalinho. Chloe
ficou animadíssima, mas Nicole não suportaria as filas, os avisos e os
aluguéis de coletes salva-vidas. A logística da coisa sempre parecia sugar a
alegria de qualquer passeio em família.
— A mamãe vai ter que voltar e trabalhar um pouco — disse para a filha,
abaixada na altura dela. — Mas por que você e o papai não vão passear nos
barquinhos, e a gente come um jantar gostoso quando voltarem?
Enfim liberada e exultante pela independência, Nicole tinha se apressado
pelos caminhos do parque em direção à Bayswater Road, costurando por
entre as famílias que ocupavam a calçada com carrinhos, patinetes e
criancinhas correndo e lançando olhares furtivos para os pais que, sem se
incomodarem com o pandemônio, não pareciam estar fingindo se divertirem.
Será que ela era a única pessoa para quem a alegria do fim de semana
muitas vezes parecia forçada? Será que nenhuma dessas mulheres se sentia
tão exaurida ao fim dessas ocasiões familiares, tanto formais como informais,
quanto uma atriz ao cair da cortina? Por outro lado, a mãe de Nicole sempre
dizia que ela criava expectativas demais. Chegar ao meio-termo, ela gostava
de dizer, não era “nem abrir mão nem desistir: era só a vida”. E talvez ela
tivesse razão. Mas no contexto profissional, não havia meios-termos
positivos, o que era outra razão pela qual Nicole tinha mais facilidade em
lidar com a carreira e porque ela, às vezes, se sentia mais confortável sentada
em volta de uma mesa com homens de negócio do que em casa com Ben. Até
quando Jamie era um desses homens.
Embora eles tivessem deixado o lugar na cabeceira da mesa para Jamie,
ele tinha decidido se sentar em frente a ela, e agora reclinava-se na cadeira,
com o pé calçado em um mocassim de camurça Tom Ford apoiado no joelho
oposto, a calça subindo para revelar alguns centímetros da pele pálida do
tornozelo. Nicole tentava evitar olhar para ele sempre que possível, mas a
palidez tipicamente britânica daquele tornozelo era como um clarão em meio
aos tons terrosos fechados do cômodo, forçando-a a erguer o rosto. Quando
ela enfim o encarou, Jamie estava olhando diretamente para ela.
— Acredito que Nicole tenha explicado todas as restrições de tombamento
do Vale. Nossa Nic é sempre detalhista.
Um sorrisinho… Com que intenção? Envergonhá-la? Intimidá-la? Fosse
qual fosse, não previa uma resposta, e foi por isso que ela retrucou, um pouco
animada demais:
— Obrigada, Jamie! — E completou: — É muito raro que edifícios nessa
lista apareçam, até para nós, e a história desse prédio é simplesmente
inacreditável.
— Vamos deixar que Rupert leia mais sobre isso quando tiver um tempo
— interrompeu Jamie, sorrindo irritado para o cliente.
As altas janelas arqueadas da sala de jantar ampliavam o calor da tarde,
mas, enquanto os outros homens tinham tirado o blazer no começo da
reunião, Jamie permanecera com o seu, e pingos de suor pontilhavam a frente
da camisa azul-claro. Quando ele levou a mão ao pescoço para afrouxar a
gravata, Nicole sentiu a respiração acelerar, como se o suprimento de
oxigênio na sala tivesse sido reduzido.
Está gostando? Quer mais?
A mesma camisa? As mesmas manchas de suor. Só que as manchas
estavam a centímetros do rosto de Nicole, e a mão foi erguida não para o
pescoço dele, mas para o dela.
Eu sinto que você quer, Nic.
O dedo é apertado com força. E parece uma explosão, do tipo que a faz
rebater com uma explosão própria. Mas, quando ela se movimenta,
empurrando com toda a força o peito suado de Jamie, ele simplesmente a gira
com facilidade, enfiando o nariz dela na parede da sala de reuniões — os
dedos ainda firmes em torno do pescoço dela, sua aliança gelada na clavícula
dela.
— Nicole? — Uma fileira de rostos masculinos a encarava, aguardando.
— O muro do jardim?
— O…?
— Você sabe se o muro do jardim vai poder ser derrubado… ou movido?
— Mais uma vez, infelizmente não saberemos até o comitê de
planejamento nos retornar. Mas com certeza esperamos que seja uma
possibilidade. — As mãos estavam tremendo, o rosto tensionado. — Enfim…
— ela assentiu para Rupert — … você será o primeiro a saber assim que
recebermos esses detalhes.
Manter a conversa fiada pelo restante da reunião ajudou Nicole a recobrar
uma máscara de controle. Contudo, enquanto apontava fatos e números,
nunca se permitindo ser abafada pelos homens ou ficar em silêncio por tempo
demais, ela sentia os olhos de Jamie em si, questionadores. Ele havia lido a
mente dela, Nicole sentia, e gostou de vê-la desconfortável. Agora estava
irritado com sua recuperação.
— Certo. — Rupert ficou de pé e os homens do dinheiro o acompanharam.
— Vamos retomar semana que vem, quando já tivermos todos os detalhes?
— Com certeza. — Nicole queria ser a primeira a assegurá-lo disso.
Enquanto Rupert e os outros saíam da sala, Nicole recolheu seus papéis o
mais rápido que pôde. Mas Jamie, sempre um cavalheiro, já estava parado à
porta.
— A gente se vê na festa de despedida da Joyce na quinta? — perguntou
ele em voz baixa quando ela se aproximou.
— Estarei lá.
A passagem estava mais estreita por causa de Jamie, parado ao lado da
porta, sólido, imóvel, sorrindo com o braço esticado, e ela hesitou.
— Depois de você.
Imbuídas nessas três palavras havia muitas coisas: poder, principalmente,
e também desafio, além de uma alegria adolescente de ver o desconforto
causado. E, apesar de todo o esforço para manter a compostura, Nicole se
sentiu prendendo a respiração ao passar, como se de alguma forma pudesse
encolher até ficar invisível, ignorando que o polegar de Jamie — sob o
pretexto de guiar sua passagem — havia roçado de leve, quase em um
carinho, em sua coluna de cima a baixo.
CAPÍTULO 5

ALEX

A primeira taça de rosé a tinha derrubado, e Alex ficou grata por ter o bar
para se apoiar. De onde estava, no canto do pub, também conseguia ficar
de olho no fluxo constante de pessoas que chegavam da BWL, o coração
acelerando e depois se acalmando toda vez que a porta se abria para
alguém… que não era Jamie.
— Para com isso. — Recém-chegada da pausa para fumar do lado de fora,
Lydia tinha reaparecido envolta em uma brisa de tabaco mentolado.
— Parar com o quê?
— Talvez ele nem venha.
Não havia dúvida para nenhuma delas de que “ele” não era Hayden, que
estava bem longe, em uma conferência em Oxford.
— Claro que Jamie vem. Ele ama a Joyce. — Ainda estava cedo, mas
Alex imaginava que o número de pessoas que viera se despedir da colega já
estava batendo meia centena. — Olha só quanta gente. Todo mundo ama a
Joyce.
— Tá, ele deve vir — concordou Lydia, a contragosto. — Mas aqui está
lotado. É só ficar longe. — Encarando a taça vazia de Alex, ela franziu a
testa. — E tome cuidado. Você sabe o que dizem sobre ter bebês: é como se
você nunca tivesse bebido na vida.
Alex não tinha intenção nenhuma de evitar Jamie. E não estava nem um
pouco a fim de tomar cuidado. Cheia de energia devido à raiva que não sentia
igual havia anos, desde que tivera aquela última conversa com o pai (“Eu e
sua mãe achamos que vai ser melhor” — como se pedir para a sua filha de 16
anos sair de casa fosse uma decisão chata, mas nada pessoal), naquela manhã,
ela fez luzes no cabelo e o cortou na altura dos ombros, apertando-se em uma
calça que não era de maternidade pela primeira vez em quase um ano.
— Você está incrível — disse Lydia com um sorriso. — Estou feliz que
tenha vindo.
— Nem acredita que eu vim, né?
— Também. — Ela balançou a cabeça. — Eu sei que já falei isso mil
vezes, Alex, mas eu sinto muito mesmo. Ainda nem consigo acreditar.
— Nós duas. Mas, Lyds, você não contou para ninguém, né? Jamie
concordou em não comentar, em dizer para as pessoas que a decisão foi
minha. E preciso que acreditem nisso para poder arrumar outro emprego.
— Bom, ele foi legal em fazer isso. Aquele babaca. Eu não teria te
culpado por não vir hoje.
Alex deu de ombros.
— Eu falei para Joyce que viria.
Era verdade. Mas não foi por isso que ela se deu ao trabalho de acostumar
Katie à mamadeira só por aquela noite, chamar uma babá para a filha pela
primeira vez, gastar dinheiro que não tinha com um corte de cabelo que lhe
daria a confiança de que precisava, e ir de Acton a Ravenscourt Park. Não,
por mais que ela gostasse de Joyce, aquela noite era sobre algo mais
importante: encurralar Jamie e forçá-lo a cumprir sua promessa.
— Você ainda não me contou o que houve. Em um minuto você estava
toda sorridente, subindo com a Katiezinha, e no seguinte estava saindo do
elevador totalmente transtornada dizendo que ele… — Lydia não se
incomodou em baixar a voz — … Dizendo que aquele puto tinha te demitido!
Alex fez uma careta, desejando pela milésima vez que não tivesse
despejado a verdade para a colega ao sair do prédio aos soluços, 15 dias
antes.

— Você está me demitindo?


Jamie também não tinha gostado daquela palavra.
— Estou encerrando sua passagem pela empresa.
Enquanto tentava compreender o que o chefe dizia, seu primeiro
pensamento foi: foi por isso que ele hesitou quando Alex insistiu em levar
Katie para o escritório. Foi por isso que Jamie queria que ela deixasse a filha
com Joyce. E enquanto todas as ramificações das palavras dele se
desenrolavam em sua mente como dominós, ela acabava voltando para
aquilo. Aquela seria a última vez em que entraria no escritório que se tornara
seu segundo lar: um lugar seguro em que sabia que sua eficiência, lealdade e
discrição eram percebidas e apreciadas. Não haveria mais as reuniões com os
clientes que ela tanto amava, nem cair no sono ao repassar a agenda de Jamie
do dia seguinte. O que ela diria para as pessoas? O que pensariam dela? E o
empréstimo da mãe. Meu Deus, o empréstimo. Sem emprego, ela não
conseguiria nunca pagar o empréstimo até o fim de agosto, como prometera.
Mas Jamie não queria demiti-la na frente da bebê. Por quê? Porque se sentia
culpado. Porque estava mentindo. Porque nada do que disse para ela no
escritório naquele dia era verdade.
— Você me falou que aquele arquivo podia ser assinado!
Alex havia ficado tão surpresa pela cara de pau daquela mentira que
abandonou o tom de voz respeitoso.
— Não. — Um franzir de sobrancelhas, um sorriso sem graça, como se
fosse estranho, vergonhoso, até, que ela estivesse questionando isso. — Você
não deve estar se lembrando direito. E, olha, se você se confundiu. Mas não
estamos aqui para discutir como isso aconteceu.
— Eu sei como aconteceu! — Saber a verdade e vê-la sendo tão
facilmente ignorada a fez se sentir como se estivesse presa em um pesadelo,
impotente contra alguma força maior que a empurrava para trás. — Eu me
lembro porque achei estranho na época, Jamie, não achei certo sem ter as
confirmações do empreiteiro. Mas não… “Eu vou assinar o arquivo do
Khalvashi”, você falou. “Vou anexar os outros documentos quando eles
chegarem.”
— Alex.
— Eu me lembro de questionar isso. Eu me lembro. Cheguei até a falar:
“Eles não chamam de diligência devida por um motivo?” Porque esse é todo
o objetivo daquela história de transparência internacional que saiu no jornal
um tempo atrás. Era para que homens como Levan Khalvashi, empresários de
“importação e exportação”, sempre tão vagos sobre o que importam ou
exportam, tivessem a origem do dinheiro verificada antes de investirem neste
país?
— Alex, estou tão chocado quanto você. De verdade, vai ser como perder
minha mão direita. Mas isso não me faz duvidar da sua competência nem um
pouco. Você estava com muita coisa na cabeça na época, por causa da
gravidez e tal. — Naquele momento, seus olhos foram atraídos para o
monitor, e ela ouviu o mouse fazer um clique baixinho. Jamie estava
checando e-mails enquanto a demitia? — Claramente foi um erro, e sei que
você se sente muito mal por isso, mas você sabe como temos que ser
superfirmes em relação a diligências devidas. Se esse erro não tivesse sido
visto, todos nós estaríamos na merda. E foi por pouco.

— Então, vai me contar o que houve?


Alex se serviu de mais uma taça da garrafa no balde sobre o bar.
— É open bar até as dez. Bebe aí.
— Tudo bem. Não precisamos falar sobre isso hoje. Mas você está
proibida de fugir assim que Jamie chegar.
Mais uma vez a porta se abriu — e Alex prendeu a respiração. Mas era só
um grupinho de funcionárias do marketing.
— Alex! Você não vai fugir, né?
— Não.
Muito pelo contrário. Alex não deixaria aquele pub até que tivesse a
conversa que vinha tentando ter com Jamie nas últimas duas semanas, apenas
para ser enganada e enrolada por telefone e e-mail por Jamie e, mais
humilhante ainda, por Ashley. Todas as vezes ele estava “em uma reunião”,
“em uma visita” ou, no início da semana, quando ficou óbvio que as
desculpas haviam se esgotado, “ocupado”.
Mesmo assim, Alex confiava que Jamie manteria o acordo de dizer que ela
saíra da BWL para “passar mais tempo com a filha”. Assim como ela confiava
que não haveria “menção a esse ‘lapso’ na papelada, que simplesmente
atestaria que você pediu demissão”. Porém, mais do que tudo, ela confiava
que ele cumpriria a promessa que arrumaria outro emprego para ela. “Já falei
superbem de você para um colega na JLL que está procurando uma assistente.
Só maravilhas. Então é basicamente uma questão de te colocar em contato
com ele para vocês resolverem as burocracias e decidirem quando você
começa.” Por que ela confiava nele? Porque ele sabia, tão bem quanto ela,
que Alex estava servindo como bode expiatório. Jamie devia isso a ela.
— Você se lembra da Danielle, né?
As meninas do marketing tinham se juntado a elas no bar, tirado os
casacos e estavam se servindo do vinho, e Alex sorriu e assentiu ao
cumprimentá-las.
— Você veio!
Ela não gostou da surpresa na voz de Danielle. Nem dos olhos arregalados.
— Viiiim…
Alex gostou ainda menos do que ela disse a seguir.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu.
— Como?
— Pelo desligamento. — Relanceando a vista para os olhos arregalados de
Lydia e de volta a Alex, Danielle insistiu. — E com você de licença ainda por
cima! Mas ele vai ter dificuldade para encontrar alguém tão bom quanto
você.
Ao perceber que aquela conversa não estava correndo como deveria,
Danielle se afastou, deixando Alex paralisada e de olhos baixos.
— Mas que…? — Lydia apertou o braço dela. — Não fui eu. Alex, eu
juro, não contei para ninguém.
— Eu sei.
— Você tem que acreditar em mim, eu…
Alex não ouviu o resto. Uma explosão de gritos e aplausos lentos abafou o
som da voz dela.
— Ele chegou!
— Antes tarde do que nunca, hein, cara?
— Até que enfim!
Jamie tinha chegado.

Enquanto o pub enchia e as panelinhas hierárquicas formadas no início de


toda festa de escritório se desfaziam — sócios e chefes de departamento se
viram jogando conversa fora com todos, desde o pessoal da TI até estagiários
—, mais algumas pessoas se aproximaram para expressar tristeza pela
demissão de Alex. Não que tenham usado essa palavra. Foi principalmente
“sua saída da empresa” e um “seguindo em frente”, que fez Alex se sentir
como se tivesse morrido. Quando a profundidade da traição de Jamie ficou
clara, ela sentiu sua raiva elevá-la a um estado de quase levitação. Jamie não
esperava que ela aparecesse, assim como todas aquelas pessoas; ele imaginou
que tinham visto Alex pela última vez e não haveria mais discussão.
Mas ela precisava se acalmar antes de abordá-lo. O que importava agora
era o emprego na JLL. Então, Jamie finalmente tirou aquele “colete poderoso”
idiota, acolchoado da Patagônia, encomendado por ela na Mr Porter depois de
ele ter visto Jeff Bezos usando um — mais de quatrocentas libras por um
negócio igual ao que se encontraria em qualquer loja de departamentos —,
enquanto bebia, ria e flertava com todo mundo do outro lado do bar, e Alex
tentou relaxar com conversas casuais, mostrando fotos de Katie quando
pediam, sorrindo em resposta aos balbucios fofinhos, e garantindo a qualquer
um com um semblante preocupado que, na verdade, já estava com “outro
emprego engatilhado”… Sempre de olho em Jamie. Até que ela não aguentou
mais.
— Já volto, Lyds.
Ignorando o olhar preocupado da colega, Alex começou a atravessar o pub
lotado em uma diagonal propositada até Jamie.
— Olá.
Cerca de trinta centímetros mais alto que ela, o ex-chefe de Alex não a viu
chegar, e levou um segundo, ela percebeu, para reajustar seus traços em uma
expressão de civilidade.
— Alex. — Jamie piscou, confuso, sugando a espuma da cerveja grudada
no lábio superior. — Você veio.
— Eu vim.
Percebendo o clima estranho, o corretor com quem Jamie conversava se
afastou, deixando os dois apertados pela multidão, desconfortavelmente
próximos.
— Gostei do cabelo.
— Obrigada. — Alex nem sorriu.
— Olha, eu ia responder seu último e-mail — assegurou Jamie, os olhos
percorrendo o pub em busca de alguma rota de fuga.
— E o penúltimo, Jamie? Você ia responder meu penúltimo e-mail? E as
três mensagens que deixei na sua caixa postal?
Alex ficou surpresa pela facilidade em falar com seu ex-chefe de um jeito
tão combativo. A sensação chegava a ser boa. Mas ela precisava se controlar:
até estar segura no próximo emprego, ela ainda precisava de Jamie.
— Olha, eu entendo. Conheço sua agenda, lembra? E, é claro, você acabou
de se livrar da melhor assistente que vai ter na vida — completou em tom
neutro.
— Alex…
— Não importa. É só que eu ainda não recebi a papelada. — Ela fez uma
pausa. — E não quero perder aquela vaga da JLL. — Ela se forçou a manter o
contato visual. — Eu preciso desse emprego, Jamie.
Bebendo os últimos goles da cerveja, Jamie acenou para alguém no bar
antes de voltar sua atenção a ela.
— Olha, sobre isso, Alex, é o seguinte… Eu devo ter confundido as
coisas. E eu ia te mandar um recado para explicar, mas estive…
— Espera. — Alex fechou os olhos e balançou a cabeça. — Como assim,
“confundido as coisas”? Seu amigo já contratou outra pessoa?
— Bom, eu achei que ele estava procurando alguém, mas acontece que…
Alex o encarou.
— Esse emprego sequer existia, Jamie? Ou você inventou isso para que eu
saísse sem fazer escândalo? Isso e a sua promessa… Porque você prometeu!
Sua promessa de dizer que tinha sido decisão minha sair. Mesmo assim,
parece que todo mundo aqui sabe que eu fui demitida.
Ele deu de ombros, mudando o peso do corpo de um pé para o outro.
Sentindo a taça vazia como um peso morto na mão, Alex a largou em uma
mesa próxima.
Alguém gritou “Ô, Jamie!” do outro lado do local, e ele olhou naquela
direção para tentar encontrar a fonte, abandonando qualquer tipo de
fingimento de que eles estavam tendo uma conversinha cordial.
— É melhor…
— Não. Espera. — Ela não tinha lembrança de erguer a mão, mas lá
estava ela, no braço dele. — Espera. — Engoliu em seco, absorvendo todas
as nuances daquela conversa aos poucos. — O que é que eu vou fazer agora?
Ele fez uma careta.
— Sinceramente, eu adoraria poder te ajudar, Alex. E é claro que vou ficar
de olho, se souber de alguma coisa te falo.
Outro grito do outro lado do pub. “Jamieeee!” O discurso de Jill estava
prestes a começar.
— Sinto muito. — Ele apoiou a mão no braço dela. — Estão me
chamando. Mas alguma coisa vai aparecer. — Aquilo foi uma piscadela? Ele
realmente piscou para ela? — Tenho certeza.
No bar, detrás das costas covardes de Jamie, ela viu Lydia acenando para
que voltasse: hora do discurso. Atarantada, Alex atravessou o pub lotado de
pessoas que se aquietavam até chegar ao outro lado.
— Como foi? — sussurrou Lydia depois que Jill terminara de falar, os
aplausos tinham cessado e as conversas normais voltaram. — O que você
falou para ele? — Então, sem esperar uma resposta, continuou: — Olha ali à
direita. Não estou acreditando nos meus olhos.
A música estava mais alta e, perto da lareira, Harry, o advogado principal
da BWL, começara a fazer uma série de passinhos de dança. As pessoas
assistiram, entretidas e chocadas, o homem de 62 anos largar o blazer em
uma cadeira e dobrar as mangas da camisa. Isso seria levado para outro nível
agora.
— Da última vez que isso aconteceu o coitado do Harry teve uma
isquemia — veio a voz de Jill ao lado delas no bar. — Vocês estão esperando
para pedir?
Claro que estavam, assim como todo mundo. Mas nem Lydia nem Alex
diriam para a fundadora da empresa que ela precisava esperar sua vez.
— Pode ir.
Houve um momento de desconforto enquanto o barman abria outra garrafa
de rosé, e as duas mulheres esperaram a mais velha se afastar. Mas Jill não
parecia estar com pressa de sair. Em vez disso, ela se virou e apoiou as costas
no bar.
— Estava precisando sentar — disse ela para o nada. — Aquela mesa está
ocupada?
Alex seguiu o olhar dela para uma mesa no canto vazia, só com uma
bandeja de aperitivos fritos.
— Acho que não. Mas eu não comeria aquilo. Já está largado aí faz um
tempo.
Foi só então, enquanto se sentava com um suspiro agradecido, que Jill
pareceu reconhecer Alex.
— Você é a Alex, não é? Como você está?
Ela havia ouvido isso bastante naquela noite. Normalmente acompanhado
de um inclinar pesaroso de cabeça.
— Tudo bem.
Alex, sabendo que Jill como sócia e a mentora de Jamie até o topo
provavelmente não seria empática à sua situação, torceu para que Lydia
preenchesse o silêncio, mas a amiga pediu licença e foi “fumar um
cigarrinho”. Quando Jill indicou a cadeira à sua frente, Alex não conseguiu
pensar em nada além do alívio por enfim descansar os pés.
Quantas taças ela já tinha bebido? Três, quatro? O suficiente para não ter
sentido os dedos dos pés latejando, apertados pelos sapatos de bico fino… até
agora. Ela precisava sair dali, de perto daquele homem. Precisava ir para
casa.
— Melhorou? — Jill sorriu.
— Muito. Adorei seu discurso, aliás. Eu não sabia que Joyce estava na
empresa com você e o seu marido desde o começo. Deve ser bem difícil. —
Então, ainda de olho na dança de Harry e consciente de que precisava manter
a conversa rolando por pelo menos alguns minutos até encontrar uma forma
de escapar, ela perguntou: — O que é uma isquemia?
— É um derrame pequeno. E eu não deveria brincar com isso porque juro
por Deus que os socorristas do hospital Saint John’s o levaram bem no meio
de uma festa de Natal da empresa alguns anos atrás. Não é de surpreender: o
homem não é tão mais velho que eu, mas eu não vou sair rebolando que nem
a Adriana Grande…
— Ariana.
— Também não vou rebolar que nem essa moça aí.
Surpresa e lisonjeada que Jill não se importava de passar o tempo com
uma simples ex-assistente, ainda mais depois de supostamente ter cometido
um crime terrível, Alex se reclinou na cadeira para observar o que estava
acontecendo. Algumas outras pessoas tinham se juntado a Harry na pista de
dança improvisada, e enquanto Jill assistia a tudo com os olhos apertados de
rir, Alex a analisou disfarçadamente.
Ela devia estar perto dos sessenta e era bonita de um jeito que só mulheres
que nunca o foram conseguem ser na meia-idade. O belo cardigã de cashmere
e as calças vincadas eram caros, mas discretos — da Jaeger, ou talvez da
Hobbs —, e o cabelo louro-acinzentado curto estava penteado em um estilo
eficiente e cheio de laquê. O arco em seu lábio superior mostrava falta de
interesse em qualquer coisa além do que era necessário para parecer
inteligente e profissional. Mas sua expressão era calorosa e em seus olhos
havia um estoicismo que fez Alex se lembrar de uma dor particular que
ouvira Jamie mencionar: o marido — era isso.
— Desculpa. Nem me lembrei de pegar uma bebida para você. — Jill
sorriu e a conexão entre as duas, tão inesperada, fez Alex querer cair no
choro.
— Por que vocês duas não ficam aí e eu vou pegar uma garrafa para nós?
Alex ergueu os olhos e encontrou Nicole de pé ao lado da mesa. Mais séria
e arrumada do que o normal, em um vestido bordô e botinhas de salto, ela
claramente estava ali para puxar o saco de Jill. Além de “linda”, “ambiciosa”
era a palavra mais comumente usada para descrever Nicole na BWL, e Alex se
lembrava de todas as vezes em que, achando ser a última a sair do escritório,
a vira trabalhando tarde da noite em sua mesa. Uma conversa íntima com Jill
era uma oportunidade boa demais para desperdiçar, e Alex mentalmente
suspirou de alívio ao pensar que poderia ficar ali sentada em silêncio
enquanto as outras duas conversavam sobre trabalho.
— Nós nunca… Meu nome é…
— Alex — Nicole disse de forma arrastada, dando meio passo para trás.
— É o cabelo — completou enfim. — Você cortou.
— Pintei também. — Alex sorriu, lembrando-se dos raros momentos em
que a garota mais legal da escola decidia conversar com ela.
Nicole assentiu impaciente, como se essa última parte fosse irrelevante.
— Mas você foi… Você não trabalha mais conosco, pelo que fiquei
sabendo?
— Demitida — respondeu Alex. Não adiantava tentar disfarçar. — Pois é.
Puxando uma cadeira, a supervisora de projetos especiais se sentou. Mas,
em vez de cruzá-las, Nicole as manteve um pouco entreabertas, de um jeito
que Alex considerou propositadamente masculino.
— Não acho que eles vêm servir na mesa — murmurou enquanto Nicole
acenava de um jeito espalhafatoso para o barman, pedindo que trouxesse uma
garrafa de vinho.
— O quê?
Nicole a encarava agora, e sentindo centenas de minijulgamentos sendo
feitos, Alex começou a avaliá-la também.
A roupa cara de Nicole não combinava com suas unhas, que estavam sem
esmalte e roídas até o sabugo: unhas de trabalhador braçal. O batom
vermelho-cereja, sua marca registrada, deixava a pele muito branca dela
ainda mais pálida, além de ter vazado pelas linhas finas em torno dos lábios,
o que colocava sua idade em torno dos quarenta. No entanto, ela ainda era,
sem sombra de dúvidas, uma mulher muito bonita.
— Eu falei que acho que…
Mas um dos atendentes já estava vindo na direção da mesa com uma
garrafa em um balde de gelo, e Jill deu uma risadinha com o rosto enfiado na
taça.
— Eles servem quando é alguém como a Nicole pedindo.
Visivelmente contente com o comentário, Nicole começou a encher as
taças delas. Como previsto, ela havia voltado a conversa para negócios
quando um tilintar de metal em vidro silenciou o pub pela segunda vez na
noite.
— Jill pode achar que já falou tudo que era preciso dizer sobre Joyce,
sobre por que vamos sentir sua falta — começou Jamie —, mas eu não sei,
não…
— Por que ele está fazendo um discurso? — Nicole falou em voz baixa
para Jill.
Pela expressão no rosto da mulher mais velha, Alex percebeu que ter sua
despedida sincera e direta superada pelo que sem dúvida seria uma
performance bem mais extravagante era um ultraje. Sem opção a não ser
ouvir, porém, as três mulheres ficaram ali sentadas em silêncio enquanto
Jamie fazia tudo girar em torno dele.
Quando Jamie derramou Sprite em um conservacionista muito sério que
pretendia bloquear uma venda de apartamentos de luxo em Olympia, ele
contou, foram Joyce e os lenços umedecidos que ela sempre mantinha à mão
que salvaram a situação. Quando Reza Farhat, o playboy iraniano tão
caprichoso com suas propriedades quanto sua esposa era com suas bolsas
Birkin, pediu que um tipo de bolo frito de água de rosas fosse servido na
reunião de negócios, foi Joyce, de novo, quem vasculhou os cantos mais
distantes do mercado de Shepherd’s Bush em busca de “zoolíbia… zooliva,
zoológico…”. Alex odiava que Jamie fosse encantador ao rir das próprias
piadas.
— Ninguém conseguia sequer pronunciar, né, Joyce? Que dirá comer o
troço!
— Mas você engoliu alguns! — alguém gritou.
— Tudo pela venda, amigão! Mas cruzes! Tinha o gosto daquele negócio
que a minha mulher deixa em tigelas pela casa. Não é verdade, Paul?
— Pot-pourri! — ganiu uma mulher lá na frente.
Mais risadas, mais gritos. Não era preciso muito para fazer as pessoas se
animarem àquela altura da noite, e Jamie não era do tipo que deixaria os
holofotes se pudesse evitar. Mas ali, na mesa no canto, Alex, Nicole e Jill
estavam de cara fechada.
Jamie não sabia que ela ainda estava ali, assistindo, e sem dúvida não se
importava nem um pouco com isso, deixando-a livre para examinar cada um
dos maneirismos com os quais Alex se familiarizara de modo tão profundo
quanto os de um familiar durante os sete meses em que cuidara de todas as
necessidades dele.
Será que alguma ex-namorada havia dito a Jamie que aquela coçadinha
encabulada na nuca que ele dava depois de cada piada era charmosa, sexy,
até? Era tão clichê, um arremedo de Hugh Grant, e tão obviamente forçado.
Como ela podia ter levado tanto tempo para ver que o chefe era uma fraude
especializada em fazer até as pessoas mais insignificantes como ela se
sentirem especiais, como parte do clã, até que se tornassem dispensáveis?
Desde seu primeiro dia na BWL, Jamie fizera isso, assegurando que a
empresa era como “uma grande família”, embora certamente “tivesse seus
problemas”.
Mesmo quando ela confessou estar grávida, e depois de ele ter superado o
aborrecimento inicial de precisar encontrar uma substituta durante a licença-
maternidade (um aborrecimento que na verdade Alex gostou, porque
significava que ela era boa, talvez até insubstituível), Jamie foi gentil
também, comprando para ela um pacote de balas de gengibre que Maya
considerava ajudar com a náusea e recomendando uma especialista em bebês
que cuidou de Christel quando a primogênita ainda não dormia a noite inteira
depois de seis meses. E, um mês depois do parto, quando estava a ponto de
chorar por passar tanto tempo sem dormir, Alex procurou a mulher no
Google e descobriu que ela cobrava 250 libras por sessão, isso não a abalou
tanto quanto deveria. Jamie era assim mesmo: em sua própria bolha
encantada, mas sempre com boas intenções.
— Se ajuda — comentou Nicole, sem tirar os olhos do celular —, eu odeio
ele quase tanto quanto você.
CAPÍTULO 6

NICOLE

A surpresa no rosto de Alex foi gratificante, e Nicole interrompeu o e-mail


que estava digitando para aproveitar a sensação. Foi bom dizer aquilo em
voz alta; melhor ainda era descobrir que não estava sozinha.
— Eu não…
— Odeia, sim. E eu não te culpo. Então pode falar: qual é a história de
verdade?
— Sobre…?
— Por que Jamie se livrou de você? Porque você engravidou? Porque
Hayden era amiguinho dele? Teve esses rumores.
Pelo olhar de relance de Alex para Jill e de volta para si, Nicole sabia que
havia ultrapassado o limite. Mas algo além do álcool em seu sangue a forçou
a continuar.
— Qual é. Acho que todas sabemos que o menino de ouro é famoso por
dar o famoso jeitinho quando precisa.
Nicole queria muito que Jill soubesse disso, percebeu. Tanto que estava
disposta a arriscar falar disso na frente da chefe. Porque, embora Jill e Jamie
sempre tivessem sido próximos, ela, acima de tudo, sempre parecera uma
figura justa e profissional. Se seu protegido tivesse feito algo errado, era justo
que Jill soubesse disso.
— Se isso conta para você, Joyce sempre disse que você era brilhante. —
A voz geralmente serena e baixa de Jill estava mais aguda, oscilando com o
álcool, e Nicole percebeu que, em todos esses anos, ela nunca a tinha visto
bêbada antes.
A fundadora da BWL fazia parte daquele tipo antiquado que nunca
demonstra qualquer pingo de vulnerabilidade no escritório. Nicole nunca nem
tinha visto Jill retocando o batom no banheiro. Justa e firme na administração
de uma empresa criada por ela e pelo marido para preservar a história em vez
de destruí-la, Jill era a prova do que mulheres que não são impedidas por
homens são capazes de realizar. O que só aumentou sua necessidade de tirar a
venda dos olhos dela.
— Nicole tem razão? — Jill continuou com gentileza. — Você acha que
Jamie tinha algum, bem, outro motivo para encerrar seu vínculo, além da
situação da diligência devida?
Nicole observou Alex avaliar a situação… e decidir que não tinha nada a
perder.
— Eu não ia dizer nada, mas toda aquela confusão com Khalvashi não foi
culpa minha, foi do Jamie. Ele me disse especificamente para deixar a
papelada incompleta. Não sei o motivo, mas imagino que tenha sido porque
ele sabia que Khalvashi era ilegal e queria que a venda fosse fechada mesmo
assim. A Property Week tinha acabado de fazer uma matéria grande sobre ele,
e talvez a pressão de manter a sua imagem de “Jamie Negócio-Fechado”
tenha afetado a cabeça dele. — Ela pausou. — Aí, quando você e Paul viram
que faltavam coisas, ele me culpou e usou isso como desculpa para se livrar
de mim. Eu não ia dizer nada porque Jamie me prometeu que me
compensaria, que me arrumaria outro emprego. E eu acreditei, que nem uma
idiota.
Enquanto Jill absorvia isso, Nicole a olhava com atenção. Ela foi pega de
surpresa, mas não estava chocada.
— Ele tem feito mesmo umas besteiras ultimamente. Se comportando, não
sei…
Foi a vez de Nicole se surpreender.
— Achei que ele nunca fazia nada errado aos seus olhos.
— Ah, é? — Jill soltou uma risada seca e, tomando dois goles seguidos de
vinho, olhou para Jamie, que enfim havia parado de falar e estava pedindo
várias bebidas no bar. — Não, eu não diria isso.
As três já estavam bem altas, mas o pescoço de Jill parecia ter perdido a
capacidade de manter sua cabeça parada, e Nicole desejou que Alex não
enchesse a taça da chefe tão rápido.
— Eu sei que Jamie sempre te admirou — disse Alex, e embora Jill
assentisse, seus olhos permaneceram céticos. — E, olha, depois de tudo que
você já fez por ele, tenho certeza de que sempre vai te admirar.
O que de início pareceu reconfortante estava começando a soar como uma
provocação, como se Alex estivesse querendo que Jill concordasse que seu
pupilo havia se transformado em um monstro. Ou talvez que ele sempre fora
um.
— Foi você que o trouxe para a empresa, não foi?
— Anos atrás, e ele sempre foi meio metido…
— Mas agora parece algo a mais? — insistiu Alex. — Senti isso também.
Até antes de eu sair de licença, tinha alguma coisa no jeito dele… meio
desrespeitosa.
— A meu respeito? — Jill ergueu os olhos rapidamente.
— Não me entenda mal…
— Pode falar.
— Mas ele fazia uns comentários… sobre você estar atrasada. Ou no
hospital com seu… marido. — Ao ouvir isso, Jill estremeceu. — Só umas
coisinhas: “Ah, Jill não vai participar dessa reunião de novo.” Ou “Jill não
vai aparecer hoje.”
Alex estava mesmo insistindo. Aquela moça não só estava chateada por ter
perdido o emprego, percebeu Nicole, mas perturbada também, e algo na
intensidade de seu olhar a preocupou. Mas, considerando que ela também
estava interessada em continuar essa conversa, Nicole empurrou o
pensamento para outro canto do cérebro.
— O que mais me incomodava — continuou Alex, se inclinando para a
frente — era quando ele falava de você assim na frente dos clientes.
— Ele falava essas coisas na frente dos clientes?
— Às vezes. E sempre parecia meio insensível. Seu marido…
— Está com câncer. — Jill passou o dedo pela borda da taça. — Stan está
sendo tratado. Sempre quis manter as questões de saúde em segredo por
muitas razões, inclusive pelo fato de que não é da conta de mais ninguém.
Mas você ouviu isso… do Jamie?
— Sim… eu… ele mencionou por cima.
— Por alto.
— Eu sinto muito, Jill, mas a verdade é que… — ela deu uma olhada para
Nicole, como se estivesse confirmando se deveria continuar — … ele contou
para quase todo mundo. Isso sempre me deixava desconfortável. Como se
estivesse usando Stan…
— Usando Stan como?
— Bom, usando o fato de seu marido estar… doente… para colocar…
— Para me colocar de lado?
— Bom, para se colocar na frente. Pelo menos era assim que eu sentia.
— Certo.
Pelo movimento rápido do peito de Jill sob o cardigã bege, Nicole
percebia como ela estava se esforçando para controlar a raiva.
Mas Alex não tinha terminado.
— Isso sem falar das piadas… — murmurou. — Sobre mulheres. Sobre
mulheres mais velhas. — Ela lançou um olhar envergonhado para Jill. — E
sim, sobre você.
— Bom, Jamie sempre teve um senso de humor inapropriado. Já falei mais
de uma vez que ele deveria se controlar.
Jill estava tentando recuperar parte do autocontrole. Isso tudo era tão
vergonhoso. Mas, pela expressão de Alex, as coisas só iriam piorar.
— Eu sei. Olha, na maior parte do tempo eu mesma achava engraçado.
Mas aí ele dizia umas coisas… — disse ela, hesitando. — Sobre o que ele
chamava de…
Nicole sabia o que Alex estava prestes a dizer. Ela já o tinha ouvido fazer
a mesma piada. E estava dividida entre querer que Jill soubesse e torcer para
que ela fosse poupada.
— … de sua “RBF”.
— Não sei do que você está falando.
— “Resting Bitch Face”. — As palavras saíram tão baixinho que por um
segundo Nicole não tinha certeza de que a chefe ouvira. — Significa “Cara
involuntária de escrota”, é um termo das mídias sociais para mulheres que…
quando algumas mulheres têm uma expressão agressiva que… todas nós às
vezes…
— Entendi a ideia. E daí? Eu tenho isso?
— Ele dizia que você ficava com essa cara nas reuniões, às vezes. E que
isso piorou conforme você, sabe, ficou mais velha. Que os clientes achavam
desagradável.
— Sei. — Jill assentiu, tensa.
— Ele dizia…
— Continue.
— Ele brincava que, no seu aniversário de sessenta anos, ele te mandaria
para a Harley Street para fazer algumas plásticas.
Jill fechou os olhos.
— Certo.
Ao perceber que, uma vez terminados os discursos, o barulho no pub
também diminuiu, Alex baixou ainda mais a voz.
— Desculpe, Jill. Eu sei que é… difícil. Mas o que diabos aconteceu com
ele?
— Porque ele era um cara tão incrível antes? — Nicole virou o corpo em
direção à parede para dar um trago disfarçado no cigarro eletrônico. Isso
causou uma expressão quase cômica de pânico em Alex, que olhou dela para
os funcionários do pub e de volta para ela. — O que eles vão fazer, me
prender? Relaxa.
Mas Jill não percebeu nada nisso, mergulhada em pensamentos.
— Jamie nunca foi exatamente do tipo sensível. Quer dizer, ele é um dos
homens mais competitivos que já conheci, mas é isso que faz com que ele
seja tão bom no trabalho. E o humor dele… Mas eu sempre achei que ele
tinha um bom coração.
— Então isso me faz questionar se você o conhecia direito. — Nicole
cuspiu as palavras com uma nuvem de vapor de água.
Do outro lado do local, alguém gritou:
— Últimos pedidos!
Foi só quando nenhuma delas reagiu que Nicole percebeu como elas
acabaram se metendo naquela situação tão curiosa.
— O que você quer dizer?
— Que eu… Merda. — Ela ergueu os olhos. — Ele está vindo para cá.
Quando Nicole baixou o olhar para o celular, sentiu Alex tateando para
calçar os sapatos de volta por baixo da mesa, se preparando, imaginou, para
fugir.
— Alex. Ainda está por aqui?
Era de pensar que ele sentiria alguma vergonha frente à mulher que tinha
acabado de demitir, mas não. Ele estava aqui para falar com Jill. As pessoas
só interessavam a Jamie quando lhe eram úteis. Depois disso, elas paravam
de existir.
— Gostou do discurso? — perguntou à sócia.
— Adorei. — O rosto de Jill estava pétreo. — A gente não sabia se você
não ia parar de falar nunca.
Nicole bufou e soltou uma risada, e Jamie estreitou os olhos.
— Será que as meninas já não beberam demais? Amanhã tem escola e tal.
Houve uma pausa de um milissegundo.
— Não sei se você pode nos chamar mais de “meninas”, Jamie —
murmurou Nicole, com os olhos ainda fixos no celular. — Afinal, ninguém
aqui tem menos de trinta anos. Aliás, outro favorito seu, “moças”, também
está fora de moda.
Alex olhou de Nicole para Jamie e depois para Jill, controlando um
sorriso.
— Bom, então vou deixar vocês, mulheres, no seu simpósio feminista.
Está ficando tarde. — Ele deu de ombros naquele colete matelassê dele e foi
embora.
Depois de a porta ter se fechado atrás dele, a risada das três foi tão alta e
repentina que cerca de meia dúzia de clientes ainda presente se virou para
olhar.
— Será que as meninas já não beberam demais? — repetiu Nicole com
uma voz grossa que reverberou pelo pub. Mas, enquanto a risada das outras
duas logo cessou, Nicole não pareceu conseguir se controlar, e foi só quando
a expressão das colegas foi substituída de humor para alerta que ela percebeu
que seus olhos estavam encharcados.
Jill ergueu a mão e a pousou com cautela nas costas dela.
— Você está bem?
— Estou. — Nicole pigarreou fazendo barulho. — Não. Não, eu só… tem
uma coisa…
— O quê?
— Achei que ia conseguir esquecer. Olha, eu sei. Não sou dessas,
entende? Tenho 43 anos, sabe, tenho um bom senso de humor. Gosto de
flertar e eu… — Quando as últimas pessoas seguiram para a saída, as três
sorriram e acenaram, e a conversa foi pausada. — Eu nunca fui de escutar
merda calada. Sempre fui assim. Mas o comportamento do Jamie…
— Nicole. — A voz de Jill estava séria agora. — O que quer que tenha
acontecido, só fala logo.
Depois de respirar fundo, Nicole começou:
— Era só um flerte idiota e inofensivo no início. Sedução profissional,
sabe? Para manter as coisas interessantes… fazer o dia passar um pouco mais
rápido. Enfim, acho que ele pensou que eu estava a fim mesmo. Todo mundo
soube do Ian, né? — Ela olhou para Jill, esperando que admitir o casinho
idiota que tivera no escritório anos atrás não afetasse suas perspectivas na
BWL. Mas é claro que a chefe tinha ouvido as fofocas. Todo mundo tinha. —
Foi muito antes de você entrar, Alex. Ele saiu da empresa já faz anos. Mesmo
assim, acho que até você deve ter ouvido falar.
Alex hesitou, então assentiu brevemente.
— Ouça, quem sou eu para julgar alguém — murmurou. — Eu sou a
garota que engravidou de um cara do trabalho, lembra? Um cara que, aliás,
não poderia ter fugido mais rápido que fugiu.
— Ouvi falar. E sinto muito que Hayden tenha sido tão… — Nicole
engoliu em seco. — Melhor nunca esperar muito dos homens, né? Mas pelo
menos nem você nem Hayden eram casados. — Uma risada súbita. — Pelo
menos você não tem uma letra A escarlate no peito.
Alex e Jill esperaram.
— Bem, enfim, é óbvio que Jamie me via como um “jogo”. Ele dizia
coisas sobre minhas roupas, coisas simpáticas, e depois coisas menos
simpáticas, até que um dia, enquanto esperávamos para entrar na sala de
conferências, ele apareceu e disse: “Você está muito comível hoje, Nic.”
— Nossa. — Alex ficou surpresa, mas Jill de fato congelou, chocada, a
taça suspensa a meio caminho da boca.
— Ele disse o quê?
— Aí ele começou a ser mais direto, se aproximando para ver plantas dos
projetos no meu computador e se encostando em mim para que eu sentisse
o…
Em outro contexto, o rosto de Jill, distorcido pela descrença, teria sido
engraçado.
— Nicole — disse ela enfim. — Não se ofenda, mas será que você de
alguma forma entendeu mal? Será que ele não estava brincando? Ou será que
você, bom, fez Jamie pensar que isso fosse algo que você queria?
— Será que ela “deu a entender” que queria isso? — Alex interferiu, e
Nicole ficou grata pela interrupção. — Eu sei que as coisas eram muito
diferentes vinte anos atrás, mas essa desculpa não cola mais agora.
— Certo. — Jill ergueu as mãos. — Olhe, eu tinha que perguntar. E, aliás,
as coisas não eram tão diferentes assim dez, vinte, trinta anos atrás. Por mais
que todo mundo agora goste de pensar que foram as primeiras a reclamar.
— Tá bom. Então você deve imaginar como essa situação deve ter sido
para a Nicole.
— Eu não preciso imaginar — retrucou Jill. — Isso era quase senso
comum quando eu era jovem. E não foi só com esse lado dos homens que eu
tive que lidar. Você tem ideia de quantas vezes eu fui subestimada e deixada
de lado na minha carreira? Quantos comentários idiotas sobre a minha
aparência tive que ignorar? O dobro do esforço que tive que trabalhar para
provar que era tão boa quanto qualquer homem?
— Então você entende que não tem relação com nada que Nicole tenha
feito. Você sabe que isso é sobre Jamie. Isso é assédio.
Jill empalideceu.
— Meu Deus. — Alex encarou Nicole. — Eu sempre achei que ele tinha
uma quedinha por você. Tipo, às vezes eu o via seguindo você com os olhos
pelo escritório, mas ele não devia ser o único. E nunca achei que ele faria
nada, bem… nada assim.
As duas ficaram em silêncio enquanto Nicole cutucava as cutículas,
decidindo se deveria continuar ou não. Tinha sido loucura falar tanto. Mas
agora não adiantava voltar atrás.
— Por que você não fez uma denúncia? — perguntou Alex baixinho. — A
gente não precisa mais aguentar essas coisas, né? Quer dizer, essa não é toda
a ideia de ser mulher depois do #MeToo?
Nicole abriu um sorriso tristonho.
— Sim. Mas eu não queria fazer um escândalo. Eu sou casada, e todo
mundo sabe que eu já tive um caso com um cara do trabalho, então duvido
muito que o RH teria empatia por mim. Só Deus sabe que isso também não me
ajudaria em nada com futuros empregadores.
— Mas isso não tem nada a ver!
— Eu sei, eu sei, mas é o seguinte. — Nicole se abaixou para dar outra
tragada no cigarro eletrônico. — Não vou denunciá-lo. Ponto-final.
— Ainda bem.
Tanto Nicole como Alex se viraram para Jill. Julgando pelo seu tom bem
diferente — claro e pragmático —, ela havia entrado no modo “contenção de
problemas”.
— Digo, como Nicole falou, eu entendo por que denunciá-lo não vai
necessariamente ajudar.
— Não vai ajudar a empresa, né?
Bêbada ou não, Jill parecia ter decidido que não aceitaria mais que
falassem com ela assim.
— Essa não é a questão. O que quer que esteja acontecendo com Jamie,
fazendo bullying com os outros, menosprezando as pessoas, agora isso…
acaba agora. Não me importo se ele é sócio da empresa. Não vou aceitar
nenhum tipo de abuso na minha empresa. Vou… vou falar com ele.
— Porque isso vai facilitar a minha vida?
— Bom, vai fazer com que ele pare. — Jill largou a taça na mesa com um
tinido.
— Ele vai parar, depois vai achar uma maneira de me fazer pagar, não
acha? — Nicole balançou a cabeça. — Não vou poder me sentar numa
reunião com ele depois disso. Teria que sair da empresa. E ainda tem você, a
sua situação, agora que sabe disso. Porque, se não denunciar ele, você vai ser
acusada de abafar o caso. — Jill não tinha pensado nisso. — Por outro lado,
que eu saiba, você pode estar cobrindo as merdas do Jamie há anos.
Em minutos a conversa passou de fraternal a combativa. Jamie tinha ido
embora, mas de alguma forma continuava causando problemas.
— Ei — Alex interrompeu. — Talvez exista outra maneira de impedir
isso. De impedir Jamie.
Nicole e Jill a encararam, o mesmo pensamento no olhar das duas: Mas
você não faz mais parte disso.
— Eu poderia deixar para lá se ele tivesse cumprido a promessa de me
arrumar outro emprego.
— Ah, Jamie fala o que for preciso no momento — cuspiu Nicole, sem se
importar se parecia amarga. Ela estava amarga. — E não liga para quem vai
pagar pelos erros dele desde que não seja ele. Porque, no fim, para Jamie,
mulheres são convenientes ou dispensáveis.
— Mas não podemos deixar que ele se safe disso. Ele mentiu para você,
para Jill, para mim.
Encarar essas bombas sobre seu antigo protegido parecia deixar Jill
chocada. Sendo a mais velha das três, sabia que caberia a ela tentar consertar
isso, e Nicole viu sua oportunidade.
— Se Jamie estava tentando fazer isso com Khalvashi, sabe-se lá o que fez
com outros clientes.
Jill assentiu, concordando. E quando o barman anunciou que estava na
hora de “virar as bebidas”, ela fez algo surpreendente.
— Vou te dar isso aqui — disse Jill ao rapaz, entregando uma nota
dobrada de cinquenta libras. — E em troca quero que você nos traga uma
última garrafa de rosé e nos dê mais uma hora.
Só quando as portas do pub foram trancadas e uma nova garrafa de vinho
foi trazida, Jill se voltou para Alex.
— Prossiga.
— O que estou dizendo — continuou Alex, encorajada pela atenção das
duas mulheres — é que ele precisa aprender uma lição. Ele precisa pagar.
— E como vamos fazer isso? — Cansada do subterfúgio, Nicole agora
estava abertamente fumando seu cigarro eletrônico.
— Bem, você está certa de dizer que nós duas não podemos seguir pelos
meios legais. Eu, porque perderia um processo de uma demissão injusta em
um piscar de olhos, ele costurou tudo muito bem. Você porque…
— Ian seria sugado pelo drama se eu fizesse uma denúncia? Por mais que
tenham nos falado para gritar o nome desses homens aos quatro ventos, por
mais que tenham nos falado que temos poder, ninguém se importa muito se
denunciar um assédio vai nos transformar em leprosas profissionais depois,
não é?
— Verdade. — Alex fez uma pausa, claramente gostando do segundo em
que as prendeu nele. — Bem, acho que temos que encontrar outra maneira.
Porque existem diferentes tipos de poder, e talvez o nosso seja…
— Por favor, não diga “poder suave” — gemeu Nicole. — Odeio essa
expressão.
— Eu também — comentou Jill. — Como se isso fosse o melhor que as
mulheres podem fazer.
— Vocês não estão entendendo. Estou falando de derrubar Jamie de uma
forma que não possa ser rastreada até nós, algo que ele faria por conta própria
se não estivesse sempre sendo protegido.
Pela sua visão periférica, Nicole viu Jill piscar duas vezes em rápida
sucessão, interpretando isso como uma crítica a ela.
— Só estou falando de dar um empurrãozinho nele. Não exatamente de
“poder suave”…
— Mas um poder furtivo. — Sob o sarcasmo, Nicole estava falando sério.
— E não seria difícil — murmurou Jill —, considerando o quão
imprudente ele está sendo.
— Não, não, seria fácil. — Alex se inclinou para a frente. — As coisas
que eu vi. As coisas que sei. Basta pensar no que todas nós descobrimos esta
noite. Aposto que, se começarmos a procurar, Jamie vai acabar se mostrando
tão diferente da pessoa que todos pensam que ele é que não vai ter nem graça.
Por um momento, Nicole receou que Alex pudesse ter ido longe demais —
ter perdido Jill, pelo menos. Mas, depois de uma breve hesitação, sua chefe
perguntou:
— E essas coisas que você viu enquanto trabalhava com ele, acha que
podem nos ajudar?
De todas as surpresas daquela noite — o vinho, o olhar irritado de Jamie
ao vê-las à mesa e as revelações dessas duas mulheres com quem Nicole só
trocara palavras profissionais antes —, aquele “nós” era de alguma forma a
mais agradável. Nada une mais as pessoas, ela pensou ironicamente, do que o
ódio.
— Nós três devemos saber muita coisa que podemos usar. — Alex fez
uma pausa, mordeu o lábio. — É apenas uma questão de descobrir quais são
os pontos fracos de Jamie.
Durante um tempo, elas bebericaram o vinho. Então Nicole arfou.
— A Lista D — disse para Jill.
A “Lista D” de Jamie era uma piada interna dos altos executivos da BWL.
Uma compilação de todas as falhas e fraquezas estruturais que tornariam uma
propriedade menos vendável, incluindo uma previsão detalhada de tudo que
poderia dar errado no futuro, o documento era basicamente um antiargumento
de venda — algo a ser expurgado do disco rígido do escritório no momento
em que os documentos fossem assinados.
Mais de uma vez, Nicole presenciou Jill discutir com Jamie sobre o
cinismo daquele documento em reuniões particulares da empresa: “Só de
saber que está lá, fico nervosa”, dizia. E Nicole sentia o mesmo no fundo.
Mas Jamie sempre riu de suas preocupações. Como um lembrete do que não
deveria ser informado ao cliente a menos que fosse legalmente obrigatório, a
Lista D era parte crucial do processo de venda dele. “E se ninguém além de
mim ver essa lista”, ele protestava, “qual o problema?”
Jill sustentou o olhar de Nicole.
— Você quer dizer…
— Quero dizer, e se a Lista D de Jamie se tornasse pública de alguma
forma? Isso seria constrangedor, não seria?
Jill mordeu o interior da bochecha.
— Sim. Mas para a empresa também, não só para ele.
Nicole teve que admitir que tinha razão.
— Verdade.
— Desculpe — Alex interrompeu —, mas o que exatamente é a “Lista
D”?
Sendo assistente, Alex não teria acesso às reuniões em que o dossiê
duvidoso de Jamie era citado, percebeu Nicole, e os olhos da jovem se
arregalaram enquanto ela explicava isso.
— Mas pode haver outras maneiras de talvez… Bem, mandar um recado
para Jamie? — Jill insistiu.
— Ou até mesmo de dar um susto forte nele. — As bochechas de Alex
estavam vermelhas. — Porque, caso contrário, os homens simplesmente não
sofrem nenhuma consequência, não é? De nada! E toda vez que isso
acontece, eles sabem que podem levar as coisas ainda mais longe na próxima
vez.
Por um instante, Nicole se perguntou o quão profunda era a antipatia de
Alex pelos homens. Será que teria se consolidado ao longo dos anos, como a
dela, ou seria motivada por algo muito pior do que os tratamentos de Hayden
e Jamie?
— Então, é só uma questão de encontrar a oportunidade certa para pegar
Jamie e mostrar a ele — concluiu Alex. — Na verdade, estaríamos fazendo
um favor a ele.
— Estaríamos fazendo um favor às mulheres — interrompeu Nicole,
convidando-as, com um movimento ascendente da taça, a brindar ao homem
que por muito tempo viveu na impunidade. — A Jamie.
Alex levantou a taça dela:
— A derrubar um homem não tão legal.
CAPÍTULO 7

JILL
5 de agosto
Delegacia de Kilburn

– V ocê—disse
Sim.
que o sr. Lawrence era muito respeitado.

— Por clientes e colegas?


— Sim.
— Não só popular, ele era meio que uma celebridade no seu mundo, o
mundo imobiliário.
Era mais uma afirmação que uma pergunta, e sem saber se deveria
acrescentar alguma coisa, Jill só assentiu.
— Ele ganhou prêmios, matérias em revistas da indústria.
Folheando o arquivo dele, o detetive encontrou o que queria, e indicou um
recorte à sua frente. Mesmo de cabeça para baixo, Jill reconheceu o retrato do
colega tirado em uma sala de conferências da BWL no ano anterior. Ele
reclamou dela na época, dizendo que as luzes fortes fizeram o rosto dele
parecer um “fantoche dos Muppets”.
— Jamie era um profissional muito bom. Ele tem… — ela engoliu em
seco — … tinha bastante jeito com pessoas, o que é de extrema importância
nesse ramo. Ele trouxe muitos clientes de alto padrão para a empresa, fez
com que fôssemos notados.
— Só que nem tudo era propaganda positiva, né? Na verdade, nos últimos
dois meses, houve algumas matérias negativas envolvendo o sr. Lawrence:
uma confusão com conservacionistas sobre uma propriedade protegida que
foi demolida, e algumas menções em blogs de fofocas especializados em
problemas profissionais que devem ter sido vergonhosas para a empresa.
Jill olhou de relance para o copo de plástico vazio em cima da mesa,
desejando que alguém servisse mais água para ela.
— Problemas que foram confirmados por funcionários com quem
conversamos, que disseram que… — ele remexeu em mais papéis — … Sim,
aqui está, que o sr. Lawrence estava “diferente” nos últimos meses,
“distraído” e “se comportando de forma estranha”. Que ele estava
“cometendo erros repetidas vezes”. Um dos seus colegas inclusive descreveu-
o como “desesperado”.
— É verdade que ele não estava agindo como sempre. — A voz de Jill
soou estranhamente aguda. — Desculpe. Eu estou… Ainda estamos todos
muito nervosos.
— É claro. Leve todo o tempo que for necessário. — Uma pausa. — E
também temos uma alegação interna mais séria que acabamos de saber.
Mais uma vez, Jill só assentiu. A sala cheirava a alvejante, e sua sede
agora era tão grande que, quando o detetive abriu a boca para falar, ela foi
forçada a ler seus lábios.
— O quanto você conhece Nicole Harper, sra. Barnes, e Alex Fuller?
CAPÍTULO 8

JILL
Dois meses e meio antes

– V ocê vai ter que tentar chegar para lá um pouco. — Jill sentiu algo
fisgar na lombar enquanto colocava a cadeira de praia do marido na
última posição. — Pronto. Não desce mais do que isso. Ficou melhor?
Tinha sido uma ideia tão boa — um almoço tardio no deque superior do
Lady J. Surpreendentemente, a ideia tinha vindo de Stan. E quando ele ligou
para ela no escritório para ver como estava sua ressaca e sugerir que voltasse
para casa mais cedo, Jill desligou o computador na hora e entrou num táxi.
Por quase um ano, tudo na vida deles girou em torno de planejamentos
detalhados e muita preparação, e, exceto um ou outro jantar mais elaborado,
eles mal haviam saído de Blomfield Road. Durante todo aquele tempo,
nenhum dos dois sequer considerou atravessar a rua para ir ao jardim à beira
do canal do qual sentiam tanto orgulho havia anos, que dirá subir na barca
que circulava por ele.
O Lady J era robusto. Com o motor drenado para o inverno, o barco era
capaz de ficar ancorado onde estava por meses. O jardim, porém, largado sem
cuidados, se tornara uma confusão de ervas daninhas envolvendo latas,
galões e embalagens de lanchonetes que os turistas de Little Venice jogavam
pelas grades. E depois que Stan e Jill reconheceram que subir no deque
superior do Lady J seria ambicioso demais para ele, foram forçados a limpar
uma parte do jardim e fazer um piquenique à beira do canal.
Tudo estava indo muito bem até que Jill abriu o patê de cavalinha, fazendo
o marido vomitar ali mesmo no concreto quente. Com a náusea, as injeções
de leuprorrelina aumentavam a sensibilidade de Stan a cheiros — algo que
Jill sabia, mas de alguma forma havia esquecido em sua empolgação por
“voltar ao normal”. O incidente acabou fazendo-a se sentir culpada e
injustamente irritada com o marido por lembrá-los por que simples alegrias
da vida anterior não eram mais permitidas.
Enfim acomodado na cadeira, com a testa branca de protetor solar fator
cinquenta, Stan cochilava, deixando Jill para aproveitar a vista com que se
deleitavam a cada verão nas últimas duas décadas. Fechando os olhos por um
momento, ela tentou se perder no calor anestesiante do sol, mas flashs da
noite anterior continuavam retornando à sua mente — frases que Jill mal
conseguia acreditar que havia pronunciado.
O fato de que havia dito tudo aquilo sobre Jamie, que havia cometido
tamanha indiscrição, era desconcertante. Sim, foi pega de surpresa pelas
revelações de Nicole e Alex, mas Jill não era dada a indiscrições. Não era
essa pessoa. Não era de beber muito, mas mesmo assim na noite anterior
sentira uma sede insaciável — como se estivesse ativamente buscando entrar
em um estado alterado que permitiria que ela ouvisse, dissesse e concordasse
com coisas que ela normalmente não faria. E Jill não podia negar que se
sentira bem — até se deitar na cama e ser atingida pelo peso da
responsabilidade que agora carregava por aquelas duas mulheres. Será que
tudo se transformaria em uma miragem pela manhã? Será que todas as
palavras proclamadas deixariam de existir, e tudo o que tinha ouvido seria
esquecido?
Ao se lembrar do rosto de Jamie no meio do discurso, no entanto — o leve
rubor alcoólico de suas bochechas e seus gestos exagerados como os de um
showman —, algo endureceu dentro dela, como na noite anterior, quando os
sentimentos que ela esteve evitando nomear havia meses, se fosse bem
sincera, se condensaram em ódio.
Não importa se ele era um homem que ela conhecia havia anos, um
homem que jantou na casa deles e que, em mais de uma ótima ocasião —
antes de se casar com Maya e de as crianças nascerem — desmaiou
embriagado no quarto de hóspedes; ou que tenha visitado Stan no hospital.
Jamie era alguém cujos defeitos — fraquezas, ela pensava, com indulgência
— eram familiares o suficiente para serem divertidos. Ele era alguém em
quem ela confiava em poder contar, caso chegasse o momento. Só que,
quando o momento chegou, seu protegido parecia ter se aproveitado de todas
as oportunidades para “se colocar na frente”, como Alex dissera. E ele ter
minado o poder dela e de Stan na frente dos clientes quando os dois já se
sentiam tão diminuídos era deplorável.
Era essa a questão? Uma raiva deslocada em relação ao que sua vida e seu
casamento haviam se tornado? “Não é fácil ser um cuidador”, a enfermeira da
radioterapia tinha dito na semana anterior, dando um apertozinho no braço de
Jill. Não foi tanto a obviedade da declaração e o tom simpático que a
irritaram, mas a deselegância da palavra — uma palavra à qual Jill não queria
se relacionar. Ao longo dos anos, ela viu a maternidade reduzir seu número
de amigas, e quando ficou claro que ela nunca seria mãe, no fundo se sentiu
grata. Pelo menos seria capaz de seguir em frente, sem o peso das
necessidades opressivas de crianças. E foi isso que fez — até aquele
momento. Então não, como foi comprovado, ser um cuidador não era fácil.
Jill revisitou o passado ao longo dos anos e viu Jamie, com seus trinta e
poucos anos, quando ela e Stan o trouxeram para a empresa: igualmente
arrogante, porém mais magro, mais trabalhador e com mais cabelo. A
agressividade de rapaz simples funcionava bem na empresa de Essex de onde
ele viera e fez com que se destacasse dos outros candidatos ao emprego. Mas
essa característica também preocupou Jill no início: a ousadia dele ia mesmo
conquistar os clientes sofisticados da BWL? Mesmo assim, apostaram em
Jamie e, poucos dias depois de começar, compreenderam a extensão da
habilidade dele. Não havia muitas pessoas que conseguiam deixar homens
relaxados e mulheres encantadas. Mas a verdadeira surpresa foi que ele não
se limitava a conquistar grandes números de pessoas. Era também encantador
no tête-à-tête. Não apenas com clientes, mas com colegas e subordinados… e
com Paul e ela.
Ele foi promovido mais rápido e com mais frequência do que qualquer
outra pessoa na história da empresa, mas, naquela época, Jill nunca notou
qualquer diminuição da deferência dele em relação a ela. Quando isso
começou? Quando Jamie passou a olhá-la de cima para baixo? Porque, agora
que refletia sobre isso, houve sinais bem antes do diagnóstico de Stan:
telefonemas seus que Jamie havia interceptado de alguma forma; reuniões de
que ele participou sem ela “porque você tem coisas mais importantes com
que se preocupar”; resumos de projetos que ela estava esboçando para
descobrir que Jamie os escrevera dias antes. Na época, ela interpretou tudo
isso como dedicação. E quando alguns de seus clientes começaram a gravitar
em torno do executivo júnior, nem sempre ela se importou. Mas se irritou
muitas vezes.
Houve o pomposo empreiteiro milanês que nunca superou o mal-estar de
fazer negócios com uma mulher. “Eu só me sinto mais confortável com
Jamie, é como se tivéssemos mais em comum”, ele enfim assumiu, como se
fosse aceitável declarar uma preferência anatômica pelo seu parceiro de
negócios, igual a pedir chá em vez de café em uma reunião. E talvez Jamie
não tenha ficado tão horrorizado com isso como deveria. Ele respondeu
rápido — talvez rápido demais? — com um “Bem, o que for preciso para
fazer a venda, certo?”. Então Jamie era oportunista e misógino. Mas um
predador que trocaria cada grama de lealdade que devia a ela e a Stan por
glória?
— Stan? — Jill sabia que deveria deixar o marido dormir, mas sentia uma
necessidade urgente dele, algo que não se permitira sentir havia meses.
— Hum… — Ele entreabriu um dos olhos e depois o fechou, para só então
murmurar: — Por quanto tempo eu dormi?
— O suficiente para ficar vermelho. — Ela sorriu.
Sentando-se na ponta da espreguiçadeira de Stan, Jill passou mais protetor
na testa do marido antes de voltar o olhar para o restaurante Prince Regent
lotado que passava pelo canal.
— Você está bem, amor?
— Melhor do que hoje de manhã. Essa foi uma ótima ideia.
Pegando a mão da esposa, Stan começou a traçar as linhas da palma dela,
como fazia quando Jill estava cansada ou trabalhava demais.
— E a dor de cabeça?
— Bem mais fraca.
Ele assentiu, paciente.
— E o resto das coisas?
Sentado com as costas eretas e o rosto corado, ele quase parecia o antigo
Stan — alguém forte o suficiente para ouvir sua confissão. Porque eles nunca
tiveram segredos um com o outro, durante aqueles 35 anos. Não contar a ele
sobre os acontecimentos da noite anterior a deixava com indigestão.
— A despedida da Joyce foi um pouco… estranha.
— Sempre vai ser difícil se despedir, querida. Ela passou muito tempo
com a gente.
— Não foi só isso.
Cada um estava em sua própria espreguiçadeira agora, voltados para o
canal, e a lenta alteração da paisagem — os barcos passando e os patos
grasnando — ia facilitar essa conversa.
— Você se lembra da Nicole, nossa gerente de projetos especiais? Vocês
devem ter se conhecido na festa de Natal.
— A das pernas?
— Tenho quase certeza de que todas elas tinham pernas — respondeu ela
com uma risadinha. Talvez fosse ficar tudo bem. — A gente ficou
conversando. E, caramba, Stan, ela disse que Jamie deu em cima dela. E não
só falando coisas, coisas horríveis, mas até, você sabe, tocando nela no
escritório.
Jill ouviu o rangido das molas da cadeira quando Stan se virou para olhá-
la, mas não conseguiu se forçar a encará-lo até ter terminado.
— Ela disse que está sendo assediada por ele, e que isso tem acontecido há
meses já.
— Você acredita nela?
— Bom, ela tem um histórico complicado. É casada com uma filha, ou
duas, não lembro. Mas já teve alguns casinhos no escritório desde que
começou a trabalhar com a gente. Um de que tenho certeza. Lembra aquele
tal de Ian?
— Lembro. Acho que a história não me é estranha.
— Todo mundo ouviu uns boatos na época, né?
— E isso tudo significa…?
— Talvez não signifique nada. Só estou te dizendo que tipo de mulher ela
é.
— Não tenho certeza disso, amor. E seja como for, isso não torna o que
Jamie fez correto.
Stan sempre foi o mais feminista dos dois. Isso sempre os fazia rir, mas
naquele momento a resposta automática dele em defesa de Nicole a irritou.
— Eu sei disso. Só estou te contando sobre o… histórico dela. Quer dizer,
a gente nem sabe se Jamie fez alguma coisa.
— Ah, acho que a gente sabe, sim.
A risada descrente de Stan — um ronco baixo vindo do fundo da garganta
— era a última coisa que Jill esperava ouvir. Seu marido era do tipo que
sempre via o melhor das pessoas. Tirando as pernas da cadeira, ela se voltou
para olhá-lo.
— Você acha que ele é um daqueles predadores de que falam no jornal?
— Ela afastou uma mosca da canela. — Um daqueles homens do “Me Too”?
— Sei lá, mas…
— O quê?
— Bom, eu não falei nada na época, mas você se lembra daquela
assistente, muitos anos atrás, aquela jovenzinha que só ficou na empresa
alguns meses? Uma que ele levou para uma conferência em Lisboa?
— No Porto.
— Isso.
— Ela voltou a estudar.
— Não voltou, não. Ela foi para a Curtis & Hawk. — Stan coçou a nuca.
— E contou para todo mundo lá que Jamie tinha dado em cima dela… de
forma bem agressiva.
Jill se sentou bem ereta, erguendo os óculos escuros para a testa.
— Você nunca comentou nada.
— Não quis te preocupar. E para a nossa sorte ela nunca fez uma
reclamação formal. Mas eu não gostava da ideia de que ela estava
comentando isso por aí. Não dá para as pessoas pensarem que essas coisas
acontecem na BWL.
Uma imagem da moça de olhos azuis profundos e rosto sardento se
formou na mente de Jill, e o nome dela voltou a ambos ao mesmo tempo:
— Jessica.
— Passou, ainda bem, então nunca comentei nada com ele. Mas assédio…
— Stan assobiou baixinho. — Isso vai ser um problema.
Esse não era o único problema: também havia a indiscrição de Jamie sobre
a saúde de Stan. E embora Jill não tivesse coragem de contar ao marido que
ele tinha sido assunto de fofocas — ou pior, de pena que ele tanto se
esforçara para não receber —, ela precisava contar a ele sobre Khalvashi.
— Tem mais uma coisa, que pode ser tão danosa à reputação da BWL
quanto essa história de assédio. Alex, a antiga assistente de Jamie, diz que foi
demitida por algo que foi culpa dele. Ela disse que ele sabia que o dossiê
sobre um empreiteiro da Geórgia estava incompleto, mas que ele tentou
forçar a venda mesmo assim.
— O quê?
— Pois é.
Stan franziu a testa.
— Mas, bem, é a palavra dele contra a dela?
— Sim. Mas vou te dizer o seguinte, Stan. Ele está… sei lá, mais desatento
ultimamente. Mais arrogante também.
— Essa menina, Alex, está com bastante rancor, não?
— Bom, sim. Ela foi demitida. — Ela odiava as rugas paralelas marcando
a testa do marido. — Mas talvez você tenha razão. Ela só deve estar com
raiva, atacando todo mundo.
— Pode ser.
— Seja como for, não quero que você fique pensando nisso tudo. Já tem
problemas suficientes para lidar. Nicole também não quer fazer uma
denúncia, já é alguma coisa. E talvez isso tudo só tenha sido um festival de
reclamações ontem. Talvez elas — Jill não usou a palavra “nós” — só
precisassem desabafar. Mas se você acha mesmo que ele fica se engraçando
com outras mulheres por aí…? Coitada da Maya.
Os dois ficaram em silêncio, e Jill se sentiu grata pela distração de outro
barco de passageiros atravessando o canal. Encarando uma fileira de
japoneses — impassíveis atrás dos óculos escuros —, ela viu a própria
existência privilegiada através do olhar alheio. “Imagine ter essa vida”, eles
estariam pensando. E durante todos aqueles anos, eles teriam razão.
CAPÍTULO 9

NICOLE

– S enhores, como um portal de entrada de mais de três acres, posso


sinceramente dizer que nunca vi nada parecido no centro de Londres.
— Eu precisaria questionar se Gunnersbury realmente é considerado
“centro de Londres”, Jamie — apontou Patrick O’Ceallaigh, de brincadeira.
O irmão riu.
— Concordo.
— John. — Girando 45 graus, Jamie baixou o olhar e sorriu para o gêmeo
de rosto mais largo sentado na cabeceira da mesa de reuniões. Nicole se
impressionou, como sempre quando encontrava essa dupla especialmente
famosa do mundo imobiliário, com o fato de aqueles dois terem dividido o
mesmo útero. — Você tem que me dar uma força. Se Shepherd’s Bush é
centro de Londres, Gunnersbury não pode ser muito diferente. Oras,
Richmond vai ser centro de Londres em tipo um ano. É ou não é verdade?
— É verdade. E é verdade também que estamos procurando um local
pouco movimentado com acesso fácil à rodovia M4. É óbvio que, antes de
ver a planta total do local, é difícil imaginar quanto trabalho Minerva vai dar,
mas tenho certeza de que Pat concorda que estamos animados o suficiente
para pedir que você não mostre a propriedade para mais ninguém por
enquanto.
— Concordo mesmo. — O irmão assentiu, baixando os olhos para o mapa
de cada shopping center de tamanhos variados em um raio de 16 quilômetros,
que lhes deu tanto trabalho para juntar. — É exatamente do tamanho que
estamos procurando. E é verdade que, com os grandes shoppings a mais de
cinco quilômetros, em Shepherd’s Bush, a gente teria os bairros de Chiswick,
South Acton e Kew só para nós.
— Bairros lotados do tipo de compradora compulsiva que atualmente se
despenca até Westfield para torrar o Amex do marido — continuou Jamie. —
Deus sabe que a patroa gasta bastante tempo e dinheiro por lá.
Nicole ficou feliz por sua risada vazia ser abafada pelas gargalhadas
masculinas. Ela conseguia fingir uma risada como ninguém — oras, teria sido
capaz de fazer a mesma piada se estivesse fazendo a venda. “Vocês sabem
como somos: nos dê uma loja de sapatos e o Amex do marido e estaremos
felizes!” Não importa que naquele momento era o cartão de Nicole que estava
na carteira do seu marido, e que depois ela seria capaz de acompanhar todos
os movimentos dele da semana on-line — movimentos sempre
decepcionantemente previsíveis. Creche, parque, supermercado e aquele café
horroroso cheio de crianças gritando para o qual ele a arrastara uma vez;
esses eram os principais, com mais algumas centenas de libras gastas de vez
em quando em lojas de eletrônicos. Mais equipamentos de filmagem para
empregos que Ben nunca conseguiria, que seriam guardados no quarto de
hóspedes quando se tornassem lembretes desconfortáveis dos fracassos
profissionais dele. Mesmo assim, era mais fácil continuar com a narrativa
aceita de que todas as mulheres eram dependentes dos homens, não?
— O que eu acrescentaria, Jamie, se não for problema… — ela não
esperou a aquiescência do chefe — … é que o Minerva Industrial Estate
também pode ser dividido em dois estabelecimentos separados: digamos, no
complexo de shopping e cinema que vocês têm interesse e em uma academia
de última geração. E, como Jamie apontou, a falta de concorrentes imediatos
no entorno é mesmo bem única.
— Certo — concordou Jamie. — Obrigado, Nic. Na verdade, eu ia mostrar
a vocês como dois empreendimentos adjacentes podem dar muito certo nas
plantas. Deixe só eu abrir aqui para vocês…
Jamie digitou alguma coisa no tablet até a primeira página das plantas da
propriedade surgir na tela.
— Certo. Então essa imagem aqui vai te dar uma boa ideia das
especificações do projeto. É categoria… dois, não é? Nic?
Ela sabia a resposta porque lera o prospecto naquela manhã, mas era
impossível ficar ali sentada em frente a Jamie sem sentir que qualquer
pergunta dele não era uma provocação, os cantos erguidos da boca forçando
uma cumplicidade com ela com a qual Nicole não tinha nenhum interesse.
— Você estava precisando disso, não é?
Daquele ângulo — ainda pressionada contra a parede pelo peso dele —,
Nicole percebeu o brilho metálico de uma coroa nos confins da sua
mandíbula.
— Eu percebi. Eu sempre sei do que você precisa, não é mesmo?
Afastando a carne úmida de suas coxas do corpo dela, Jamie se afastou e
por um momento Nicole temeu que, enfim solta da pressão do corpo dele, ela
despencaria no chão. Fechando os olhos, ouviu enquanto ele tratava de se
arrumar — o zíper e os botões e a fivela —, surpresa pela banalidade
daqueles sons.
— Você vai ficar assim?
Ao baixar os olhos, ela viu que a saia ainda estava embolada em torno da
cintura, a calcinha caída em volta do tornozelo. Por baixo da camisa aberta,
o sutiã havia sido levantado, exibindo um dos seios. Ela devia estar
parecendo uma imagem cômica, grotesca. Mas nem se importava.
— Não.
— Ainda bem. Temos uma reunião às quatro.
E enquanto saía da sala de reuniões e seguia para o escritório, Jamie
começou a assobiar.
De algum lugar acima dela, o zumbido do ar-condicionado parecia
opressivamente alto, todos aqueles olhos masculinos lascivos, os sorrisos
conspiratórios — como se todos soubessem, como se estivessem rindo dela.
Se abrisse a boca para falar, alguma palavra sairia? Nicole se imaginou se
levantando e saindo da sala. Ela poderia explicar mais tarde: diga a eles que
estava se sentindo mal.
— Categoria dois. — Sua voz estava baixa e carregada de vergonha, como
estava quando falou com o marido ao chegar em casa depois da primeira vez,
sem demonstrar nada. — Isso mesmo, Jamie.
— Foi o que eu pensei. — Ele assentiu, os olhos demorando-se nela com
cautela.
— E se abrirmos o plano para a ala leste, Jamie…
— Mas o quê… Que merda é essa?
A voz de Pat, o sotaque irlandês não mais afável, mas ofendido, fez com
que ela erguesse os olhos dos arquivos. Aquilo na tela não era a ala leste:
era… Merda. Era a Lista D de Jamie.
— “Fundações inadequadas” — Patrick leu em voz alta. — “Alvenaria
não reforçada.” Jamie, isso é algum tipo de piada?
— Espere. — O rosto de Jamie estava branco, o dedo médio pressionando
com urgência o tablet em uma tentativa de tirar aquela aberração da tela. —
Não é… Não era para…
— Aparecer na venda? É, a gente imagina que não, cara.
Todos os olhares na sala estavam naquela tela, incapazes de desviar da
horripilante lista de inadequações do Minerva, em negrito e vermelho, só para
piorar.
— Pat, você está vendo isso? — disse o gentil John, já não mais tão gentil.
— “Paredes sem viga de sustentação”? Você achou mesmo que a gente não ia
descobrir todas essas merdas?
— Patrick, John… é claro que eu ia levantar todas essas questões com
vocês.
Mas os gêmeos não estavam ouvindo, hipnotizados por uma nova imagem
que ocupava a tela. Por mais horrível que fosse o que eles tinham visto, isso
era muito, muito pior.
A troca de e-mails era curta e direta — e ampliada em uma fonte
grotescamente gigante.

Assunto: Minerva — Aviso


De: HugoMears@JLL.com
Para: JamieLawrence@bwl.com

Só para confirmar que Westfield deu o o.k. no nosso terreno em Kew, camarada. A
venda não vai ser assinada/divulgada até o começo de julho, mas para deixar tudo às
claras é bom enfatizar aos compradores que você mencionou que qualquer plano de
construir um multíplex vai ser problemático.

De: JamieLawrence@bwl.com
Para: HugoMears@JLL.com

Agradeço o alô. Vou mantê-los avisados.

A data do e-mail era de apenas um mês atrás: duas semanas antes de Jamie
apresentar a propriedade aos irmãos O’Ceallaigh.
— Pat, John. Eu posso dizer com sinceridade…
— Acho que você não pode dizer porra nenhuma com sinceridade, meu
amigo. Escuta: nós trabalhamos com isso faz muito tempo. Não somos
ingênuos de achar que você iria colocar um problema estrutural no prospecto.
Mas isso? Você sabia o que a gente queria fazer com o terreno, sabia de Kew,
e ainda assim nos ofereceu? Você nos deixou pensar…
— Não, não, John. — Jamie juntou as mãos pateticamente como se
estivesse implorando ou rezando. — Eu sempre fui direto com vocês. E
olha… Quando um pouco de concorrência fez mal a alguém, não é verdade?
Isso pode até ser bom para vocês dois… Isso poderia trazer…
Nesse momento a tela finalmente decidiu obedecer, voltando ao logo
branco e grafite da BWL. Mas de alguma forma isso só piorou as coisas, como
se eles estivessem tentando fingir que palavras entreouvidas nunca haviam
sido ditas.
— Pat.
Empurrando a cadeira para longe da mesa e acenando para o irmão com
um movimento do queixo, John O’Ceallaigh se dirigiu à porta, com Pat logo
atrás. Sem fazer qualquer tentativa de detê-los, Jamie só ficou observando
enquanto eles atravessavam o andar em direção ao elevador. Como todos os
presentes, ele sabia bem que não era mais possível salvar aquela negociação.
Visivelmente aliviados por não terem sido os responsáveis pelo que com
certeza entraria na história da BWL como uma das maiores gafes da empresa,
as pessoas começaram a voltar para suas mesas. Mas, durante uns bons cinco
minutos, Jamie ficou parado logo à porta da sala de reuniões, curvado e
imóvel. E, enquanto o observava de sua mesa, Nicole sentiu a boca se torcer
em um sorriso tão largo que teve que se virar para evitar que alguém o visse.
O plano que elas tinham traçado no pub — o que desaparecera sem deixar
vestígios, sem qualquer palavra vinda de Alex desde então, nem o menor
sinal de Jill de que a conversa sequer tivesse acontecido — estava sendo
colocado em prática por uma delas. Não era Nicole. E não poderia ser Jill,
que descartara a possibilidade de usarem a Lista D naquela noite. O que
deixava apenas Alex. Mas ela não estava mais na empresa, então como
poderia ter feito aquilo?
CAPÍTULO 10

ALEX

P
or que o leite sempre ferve muito mais rápido do que qualquer outra
coisa? Como seria possível, em questão de segundos, ir de vacilante
e deixando marcas fracas na lateral da panela para borbulhante e
espirrando em Alex como agora? Ela observava, hipnotizada, os respingos
brancos acertando a parte de trás do fogão, desaparecendo entre a gordura e
as manchas de comidas grudadas ali que aumentavam desde o nascimento de
Katie. Ela observou as marcas se formarem na beirada da panela indo de
marrom a sépia, e o líquido se reduzindo até virar uma sopa coagulada. Aí
desligou o fogo. Ela nem queria um chocolate quente mesmo. Tudo o que
queria era uma boa noite de sono — e seu emprego de volta.
Do tapetinho de atividades Katie balbuciou, e Alex se virou, culpada por
ter esquecido a existência da filha por sequer um minuto. “E se você sair de
casa e esquecer o bebê?”, ela perguntou para Joyce durante a gravidez. “Não
é como uma chave”, a colega respondeu, rindo. “O bebê está no primeiro
plano da sua mente o tempo todo. Eles são pessoinhas também, não se
esqueça, mesmo antes de conseguirem falar.”
Só que Katie não parecia uma pessoinha. Olhando para a mãe, os belos
olhos azuis inexpressivos, ela parecia mais uma criatura alienígena, julgando
silenciosamente todos os seus fracassos.
— Está se divertindo aí embaixo?
Alex se abaixou ao lado da filha, preparando o nariz para o cheiro sempre
presente de talco, e balançou um dos macaquinhos pendurados acima de
Katie. Ela havia comprado o “tapete de atividades” de oitenta libras por 15 no
brechó, uma pechincha que só fez sentido dias depois, quando descobriu que
o elefante eletrônico com orelhas que acendiam só tocava uma das “vinte
alegres melodias” anunciadas na caixa amassada. Graças a esse problema, a
música “The Wheels on the Bus” às vezes começava sua melodia enjoativa
sem ser pressionada — uma vez até despertando Alex e Katie durante a
madrugada —, só porque podia. Depois de três meses, Alex se viu trincando
os dentes quando as primeiras notas atravessavam o apartamento, e ela se
esticou para desligar o aparelho.
Como algo tão pequeno podia precisar de tanta coisa? Ela havia comprado
tudo aquilo pelo preço mais barato, em brechós ou no eBay, mas os sete mil
que a mãe emprestara já tinham acabado, e Alex sabia muito bem que em
poucos meses haveria toda uma nova lista de necessidades: o berço teria que
ser trocado por uma caminha com um novo colchão, e logo ela precisaria de
um cadeirão e uma cadeirinha de banho, grades de proteção para cama e um
assento de carro.
Ela pensou no prazo de agosto que sua mãe lhe fizera prometer que
cumpriria. Alex teria que devolver o dinheiro até lá… ou o pai ficaria
sabendo.
— Ele não pode saber — a mãe sussurrara pelo telefone.
Desde que Alex se lembrava, seu pai era sempre referido com aquele “ele”
temeroso. E esse havia sido mais temeroso que o normal.
— Eu tirei dinheiro da conta nova que abrimos, então ele não vai notar que
não está lá até termos que transferir o depósito.
— Depósito?
— Na casa nova.
Alex não comentou que nunca tinha visto a casa velha, que nunca tinha
sido convidada — e que a maioria das pessoas não precisavam esperar um
convite para visitar os próprios pais.
Igualmente temerosa do que “ele” diria, Alex nem tinha conseguido se
forçar a contar à mãe que perdera o emprego, se permitindo um único
momento de sinceridade:
— Eu preciso de você, mãe. Quero dividir esses primeiros meses com
você, quero dividir as experiências de Katie com você. Eu não esperava que
meu pai entrasse no primeiro avião para cá… — Mas que tipo de homem não
deixaria a esposa conhecer a única neta?
Em geral tão boa em defender o marido — “ele está cansado”, “ele está
irritado”, e o sempre útil “ele não faz por mal” —, a mãe de Alex ficou em
silêncio do outro lado da linha até oferecer um resignado “Você sabe como o
seu pai é”.
Alex sabia. Só não esperava que os outros homens da sua vida fossem tão
ruins quanto.
Tirando o celular do bolso do roupão que ela jogara por cima da calça
jeans e da camiseta em vez de ter vestido um casaco, Alex rolou a tela até o
número de Hayden e suspirou profundamente. A expressão dele — descrente,
depois horrorizada — quando ela lhe contou. A voz fria e desconfiada:
“Como você tem certeza que o bebê é meu?” Não conseguia fazer isso. Não
quando suas últimas palavras para ele haviam sido: “Se você não quer fazer
parte da vida da Katie, eu vou criar minha filha sozinha. Prometo, nunca vou
te pedir nada.” Não quando fizera a mesma promessa silenciosa em relação
ao pai 13 anos antes, a jornada de criação dele terminada antes mesmo que
ela tivesse idade para votar.
Continuou rolando a tela do celular até o J; mais um homem frouxo, mais
um desperdício de espaço, além do namorado e do pai. “Jamie Casa”, “Jamie
Celular”, “Jamie Casa de Devon”. Ela tinha mais números do homem que
ficou em sua vida por menos de um ano do que dos próprios pais — e sentia
uma relutância profunda em ligar para qualquer um deles. Olhando dos
números até o relógio piscando abaixo da televisão — 17:24 — para Katie,
Alex tentou pedir à filha algum tipo de sinal, mas lá estavam somente aqueles
olhos azuis inexpressivos: poços sem fundo de necessidade. Alex era a única
que podia atender àquela necessidade, e sentindo o que restava de seu
orgulho se esvair, tocou na tela e levou o celular à orelha.
Jamie atendeu imediatamente.
— Al, estou ocupado.
Ela ouviu o barulho distante de música em um pub e o tilintar de copos, o
final de uma piada sendo contada e as risadas a seguir. Até para Jamie, era
cedo para estar no Firkin.
— Vou ser rápida. — Ela seguiu, de olhos fechados: — Eu tinha bebido
um pouco… na despedida da Joyce. E posso ter sido um pouco… firme. —
Nem de perto tão firme quanto gostaria, seu merdinha inútil e traidor. —
Enfim, percebi que não era o momento certo para a gente ter aquela conversa.
Desculpe.
Ela se sentia fisicamente enjoada por pedir desculpas a ele, mas já fazia
mais de uma semana sem ter uma palavra de Jill ou Nicole. Se ainda
houvesse alguma chance — qualquer que fosse — de Jamie ajudá-la, valeria
a pena.
— Mas aquele trabalho… eu estava contando mesmo com ele… —
esticando-se para segurar o pezinho da filha, ela o apertou com força o
bastante para Katie fazer uma careta pré-choro, antes de soltar. — Eu preciso
mesmo do emprego, Jamie. Estou quase sem dinheiro. E se você acha que o
seu amigo não precisa de uma assistente… — Ela respirou fundo. — Quer
dizer, será que tem… alguma outra pessoa que possa precisar? Ou seria
possível… — ela se contorceu de vergonha pelo que estava prestes a dizer —
… considerando que nós dois sabemos que o que aconteceu não foi culpa
minha, considerando que você me deve uma, Jamie… Eu só estou meio
apertada, entende? Só preciso do suficiente para acertar as coisas.
— Alex. — Jamie parecia mais entediado que irritado, e ela o imaginou
parado à porta do pub, onde não tinha tanto barulho, gesticulando para os
colegas bêbados da BWL para avisar que já voltaria. — Foi o que eu te falei:
não tem trabalho. Eu me confundi. Olha, eu sinto muito e te desejo tudo de
bom. Espero que você saiba disso. Agora você tem a pequena…
— Katie.
— Agora você tem a pequena Katie. No fim das contas, família é o que
importa, não é? Tenho que desligar.
Ao ouvir a ligação ser desconectada, Alex afastou o telefone da orelha e
encarou a tela sem acreditar.
— Seu merdinha!
Assustada com o tom de voz da mãe, Katie soltou um soluço que se
transformou em uma reclamação aguda. Estava cedo demais para a próxima
mamada, e a agente comunitária de saúde do NHS [ 01 ] tinha alertado Alex
sobre os riscos de “alimentar demais a bebê”, mas ela ergueu a camiseta
mesmo assim.
— Pega! Pega!
Mais uma vez, Katie se recusou a pegar o bico do peito, virando a cabeça
como fizera todas as vezes desde a despedida de Joyce.
Alex não era supersticiosa, mas estava começando a se perguntar se tê-la
tirado do peito naquela única noite e ter se permitido ser consumida pelo ódio
que agora corria venenoso por suas veias tinham azedado seu leite.
Na manhã depois da festa, ela havia acordado de ressaca, ainda sonolenta,
mas nas nuvens. Não fora a única a ser enganada por Jamie e, por mais
chocante que tenham sido as revelações de Nicole, aquela foi toda a
confirmação de que precisava. Alex não fez nada de errado, mas Jamie? Ele
era uma pessoa horrível de verdade. E com a fundadora da BWL agora ciente
de quem seu protegido realmente era, Alex respirou aliviada, sabendo que o
acerto de contas viria. Só que aquele dia havia passado, e então o seguinte,
sem a aguardada ligação ou mensagem de Jill ou Nicole, e a felicidade de
Alex se transformou em dúvida. Será que ela exagerou a raiva das outras
duas em sua memória? Imaginou a cumplicidade no seu plano? Não. Não
estava aumentando nada. Elas só estavam se protegendo.
Apontando o seio intumescido para Katie com uma das mãos e limpando
as lágrimas com a outra, Alex rosnou:
— Você quer a mamadeira? Toma então.
Cansada demais para insistir, ela preparou a mamadeira, deitou a filha no
colo e prendeu a respiração até ver os músculos nas bochechas de Katie que
sugavam mecanicamente ficarem cada vez mais lentos até parar, e ela fechar
os olhos.
Como as mães que não trabalham lidavam com esses dias infinitos? Alex
trabalhava muito na BWL, e os dias antes de uma conferência ou de uma
grande venda eram esgotantes… mas nada desse jeito. Nada assim. Não havia
um empregador no mundo ocidental que não permitiria que você fizesse xixi
quando precisasse. Embora, é claro, se você tivesse um homem, ou outro
responsável ali, as coisas seriam diferentes. Haveria algum tipo de interação
humana, para começar.
Com quem Alex tinha falado desde que acordara — desde que fora
acordada —, logo antes das quatro da manhã? Com a recepcionista
incomodada do médico, em uma conversa que não durou mais de trinta
segundos. Com a voz automática da caixa postal dos pais. “Por que Katie não
quer mais mamar no peito?”, ela queria desesperadamente perguntar à mãe.
“Por quê? É a única coisa que eu sei fazer.” Mas mesmo assim não deixou
mensagem, sabendo que o pai poderia interceptá-la e ouvir o desespero em
sua voz. O cara do posto de conveniência naquela manhã foi capaz de fazer
toda a transação sem nem mesmo um aceno de cabeça, provavelmente de
saco cheio de interações humanas, ou talvez um pouco enojado pelo bebê
babão grudado no peito dela. A forma como algumas pessoas te olham
quando você se senta ao lado delas no ônibus ou no metrô, como se você
tivesse alguma doença. E Alex não culpava quem se levantava e se afastava,
revirando os olhos para os gritos de Katie. Bebês eram sujos, fedorentos e
barulhentos — até o seu. Seu laptop estava tentadoramente perto,
despontando sob um jornal Metro manchado de café na mesa de centro, e
Alex avaliou rápido os riscos que toda mãe de um bebê dormindo é forçada a
correr para se certificar de alguns minutos de liberdade. Tendo passado Katie
com segurança dos seus braços para o sofá, ela clicou na caixa que vinha
checando uma dúzia de vezes por dia, esperando receber uma mensagem
conciliatória de Jamie — e prendeu a respiração ao ver o e-mail.
Espremido entre a newsletter de um supermercado e um lembrete do eBay
para “pagar o saco de dormir infantil” havia um e-mail de Ashley Bucknall;
assunto: encerramento de contrato. De imediato algo pareceu estranho. Por
um minuto, Alex deixou o cursor flutuar sobre a mensagem, e quando clicou
nela se surpreendeu por não haver nada escrito no e-mail, só um documento
do Word em anexo. Abrindo o que se revelou ser só três páginas, Alex logo
leu o conteúdo da primeira, uma carta:
Prezada srta. Fuller, como discutido pessoalmente em 4 de maio deste
ano, por favor, fique ciente de que a BWL está encerrando seu contrato de
trabalho iniciado em… Conforme lia, Alex enfiava as unhas no sofá. Confira
a seguir os detalhes do pagamento completo e final da sua licença-
maternidade. Isso deve englobar os valores até esta data. Como é comum em
demissões por falta grave… Aqui as palavras ficaram borradas na tela. “Falta
grave”? Ela olhou para Katie, como se a bebê adormecida pudesse ajudá-la a
compreender. Mas é claro que não podia. Nada poderia. E a verdadeira
extensão das mentiras de Jamie se tornou clara para Alex. Nada do que foi
dito naquela reunião era verdade: a “negligência” que ela teoricamente
cometera, a promessa de manter a demissão em segredo e a afirmação de que
os documentos do desligamento diriam que “você simplesmente pediu
demissão”. Mas como conseguiria outro emprego com aquilo no seu registro
pessoal? Mas a maior mentira de todas tinha sido o emprego na JLL, como
uma cenoura pendurada à sua frente para conseguir que fosse embora sem
criar escândalo e então afastada assim que Alex estivesse fora do caminho.
É engraçado como o amor é próximo ao ódio, como é forte a vontade de
ver o rosto de alguém quando você está preso no olho do furacão dessas
emoções. Como uma adolescente, Alex abriu a pesquisa de imagens do
Google, mordendo o interior das bochechas enquanto passava de uma foto
para outra do mentiroso de olhos simpáticos que era Jamie. Durante todo o
tempo em que trabalhou para ele, nunca ocorreu a Alex olhar as redes sociais
do chefe, já que todos os detalhes da vida dele eram seu ganha-pão. E teria
sido difícil para a maioria das pessoas sentir curiosidade sobre um homem
que, ao beber, dividia tantas informações particulares quanto Jamie. Até o
mais fugaz companheiro de copo no Firkin saberia de tudo, desde confusões
conjugais causadas por seus surtos de fumante às escondidas (“Juro que ela
sente o cheiro em mim a um quilômetro de distância!”) e sua tendência a
esquecer a aliança em qualquer lugar (“Se um dia eu perder essa aliança,
Maya vai pirar”) ao preço exorbitante da suíte de frente para o mar na
Antígua que ele estava prestes a alugar para o Ano-Novo. Mas quando ela
rolou para encontrar as páginas de Jamie no Facebook e no Instagram, a
sensação foi a de encontrar um tesouro virtual.
Ali, ao alcance dos dedos, estavam dez anos da vida de Jamie: uma
coleção inestimável de festas, aniversários e minisseparações matrimoniais,
noites no pub e encontros e tudo que pudesse servir de objeto de vanglória.
Conforme ela passava por uma série de posts do tipo “homem de família”,
Alex se viu cada vez mais intrigada pela mulher que foi tão hipnotizada por
aquele embuste que até se casou com ele.
Alex já tinha visto muitas fotos da esposa de Jamie, que mais parecia uma
modelo, tanto nas prateleiras do ex-chefe como no celular dele, e, por estar
familiarizada com o contraste agradável das sobrancelhas escuras e do cabelo
louro-mel, as maçãs do rosto esculpidas e os lábios carnudos, e porque ele
sempre estava falando da aparência dela como se fosse uma vitória dele, Alex
havia ignorado a beleza dela. Mas concentrando-se em Maya, ela foi forçada
a concordar que havia algo naquela esposa troféu do oeste de Londres que a
elevava acima do restante.
Maya tinha uma beleza limpa e típica de modelos, que conseguia ser, ao
mesmo tempo, acolhedora e alienante. Mas era o frescor — do tipo que
pouquíssimas mulheres mantêm depois dos vinte e tantos anos — o mais
desconcertante. Maya era uns bons anos mais velha que Alex, mas do cabelo
aos lábios pintados apenas com um brilho rosa-coral quase transparente, à
pele levemente bronzeada dos braços, tudo tinha um quê de intocável, uma
originalidade — como se a vida nunca tivesse conseguido deixar sua marca
nela, ou como se Maya tivesse sido protegida de qualquer coisa desagradável
que pudesse tê-la marcado.
Alex se pegou voltando a uma imagem específica no Instagram. Tirada
alguns meses antes, exatamente 16 dias depois de Maya ter dado à luz (Alex
fez as contas), que a mostrava de pé no quintal da casa deles em Bedford
Park, de jeans e suéter. Ao esticar a mão, protegida pela luva de jardinagem,
para quem quer que estivesse tirando a foto — Jamie, provavelmente —, a
boca aberta em um protesto brincalhão, o suéter de Maya se ergueu alguns
centímetros, mostrando a parte de baixo da barriga dela. “Por favor!”, Alex
quase conseguia ouvi-la dizendo ao marido orgulhoso. Porque, embora a
barriga de Maya parecesse perfeita aos olhos de Alex, sem uma veia ou estria
à vista, para Maya, ela ainda não havia recuperado o corpo pré-gravidez.
Jamie saberia como a esposa se sentia. Ela teria comentado naquela manhã
enquanto ele saía de cima dela, sem fôlego, beliscando uma infinitesimal
dobra de pele e fazendo bico: “Olha só o que você fez comigo.” E Jamie riria,
dizendo que Maya continuava tão linda como sempre, talvez até se
inclinando para beijar sua barriga.
Jamie só havia postado mais uma vez desde aquele dia. Uma foto de um
parque do oeste de Londres, no primeiro fim de semana de maio. A toalha
xadrez estava lá, mas aquela não era a bagunça comum de um piquenique:
nada de ovos cozidos e minissalsichas para aquela família. Em vez disso,
havia alguma coisa parecida com uma quiche embrulhada em papel pardo,
um pomelo descascado e cortado em fatias, e parte de uma garrafa verde que
devia ser de Sancerre ou Chablis — dois dos favoritos de Jamie, ela sabia —
despontando de um cooler. A pequena Elsa dormia no peito de Maya, e
Christel fazia careta atrás do pai: “Minhas meninas.”
Esses dois posts fizeram Alex mergulhar na vida de Maya. Jamie talvez
fosse um mentiroso, um assediador e muito provavelmente um traidor, mas
não havia dúvida de que ele ainda era fascinado pela mulher com que havia
se casado. E se Maya era uma das coisas que Jamie mais valorizava além do
trabalho, então Alex ia precisar se aproximar um pouco mais… e descobrir
como poderia utilizar aquilo a seu favor.
Com os dedos se movendo à velocidade da luz pelo teclado, buscou
“Maya Lawrence” e começou uma investigação completa nas mídias sociais
dela. Como não tinha pensado em fazer isso antes? O Facebook e o Instagram
de Maya começavam lá quando ela ainda era Maya Juhl, “design de
interiores”, fotografada encostada no quadro de inspirações de um estúdio em
Copenhagen, usando um jeans boyfriend rasgado. Bonita demais para ser
levada a sério, ela passou a usar óculos de armação preta grossa e uma
expressão desafiadora nos meses seguintes: sempre aboletada no braço de
algum sofá absurdamente minimalista ou cruzando os braços no primeiro
plano do lobby de algum hotel monocromático que supostamente deveria ter
sido obra sua. Mas algo havia acontecido quando ela se mudou para Londres
— Jamie? E Maya se tornara uma mulher mais leve, mais brincalhona; uma
mulher que usava vestidos leves e alpargatas, lambia a espuma da cerveja do
lábio superior e tirava selfies beijando uma versão mais jovem e mais magra
de Jamie.
A época dos bebês — Christel e depois Elsa — veio a seguir, e Alex ficou
impressionada com a complacência da fotogênica família Lawrence, foto
após foto da prole perfeita sendo enfiada goela abaixo das pessoas no que era
apresentado como uma demonstração de amor altruísta mas era, na verdade,
um narcisismo extremo. Assim como as fotos infinitas do quintal verdejante e
da estufa em Bedford Park, com os tomates que Maya se esforçava muito
para fazer as pessoas acreditarem que tinham sido plantados por ela mesma, e
um post muito Mulheres perfeitas da semana anterior que mostrava um
daqueles porta-comprimidos semanais nas cores do arco-íris, lotado de
pílulas pseudossaudáveis. “Colocando o marido num cronograma de
vitaminas!”
O post mais recente era sobre algum tipo de aulinha de mamãe e bebê.
Fotografada em um círculo de mães paparicadas e risonhas de Chiswick,
Maya estava com as pernas vestidas em lycra dobradas à sua frente no
formato de um losango, intensamente concentrada na cabecinha de Elsa,
apoiada em seus pés. Quando Alex se concentrou na legenda — “Aulinha de
ginástica na Bumps & Babies. Ótimo lugar para fazer novos amigos!” —,
sentiu um nó no estômago ao perceber como a experiência do início da
maternidade podia ser diferente para as duas.
O zumbido de um patinete elétrico parando do lado de fora tirou Alex do
transe, e ao se aproximar da janela ela viu a figura de capuz familiar na
esquina lá embaixo, os clientes esquivos saindo de carros e portas para fazer
os pedidos da noite, a bolsa tipo carteiro da Fila sendo remexida rapidamente
em busca de cocaína, maconha ou o que quer que as pessoas precisassem
comprar com regularidade alarmante. Já passava das oito agora, e como ela
deixara Katie dormir cedo demais, a filha ficaria acordada a noite toda. Mas
ela ficaria acordada a noite toda de qualquer maneira. Sempre ficava. E
embora Alex se sentisse vazia de tão cansada, ainda estava agitada demais
para dormir — quase tão agitada quanto na madrugada depois da festa de
Joyce, quando descobriu como seria fácil colocar em prática aquele plano do
pub.
O “engano” com a Lista D junto ao e-mail de Hugo Mears tinham sido um
experimento. Se isso fosse divulgado e deixasse ao mesmo tempo Jill e
Nicole nervosas, melhor ainda. Alex não esperava que sua antiga senha de
acesso à intranet da BWL ainda funcionasse — a que ela usava para mudar
horários de reuniões e voos para Jamie, marcar motoristas que conseguia
acompanhar na base de dados do escritório do início ao fim da corrida e
editar documentos fora do escritório. E, é verdade, não funcionou. A ideia de
Jamie, tão ocupado, tendo o trabalho de chamar a TI para mudar a senha a
irritou por um momento, até que uma piada que ele havia feito por causa de
um artigo sobre senhas pouco seguras no Evening Standard voltou à sua
mente. “Quem ainda usa o aniversário como senha?”, Alex tinha rido.
“Culpado”, o chefe havia confessado com uma careta. E ela deu uma bronca
em Jamie por não cuidar da segurança. Ele não era burro, mas era preguiçoso
— e quando Alex tentou a sequência “123456”, a senha provisória que a TI
sempre manda para que fosse alterada imediatamente, o portal da BWL se
abriu à sua frente.
Uma lista de funcionários responsáveis por cada projeto estava disponível
no portal principal, junto aos documentos detalhando visitas, contratos e
negócios daquela semana, mas outra senha foi necessária para acessar o e-
mail e a agenda de Jamie, e essa não se provou tão fácil de descobrir. A data
do casamento de Jamie não funcionava mais e os aniversários de Maya,
Christel e Elsa, todos falharam, com e sem um “1” no final. As palavrinhas
vermelhas “Esqueceu sua senha?” a provocavam. Quantas tentativas mais até
a senha ser bloqueada? Mais uma, mais duas? Olhando pela janela para a
sequência de sobrados vitorianos malconservados em frente, Alex forçou a
mente a vaguear, algo que fazia nas raras ocasiões em que esquecia a senha
do cartão. Então digitou seis letras: NICOLE. “Predador de merda”, resmungou
quando a caixa de entrada de Jamie se abriu à sua frente.
Alex soube o que fazer no segundo em que viu a reunião do projeto
Minerva com os O’Ceallaigh na agenda de Jamie. Se a Lista D era uma piada
tão popular na BWL, e se Jill e Nicole estavam cientes dela, então certamente
alguém teria acesso a esse arquivo. E quando uma rápida busca na caixa de
entrada dele resultou em um e-mail de Mears aconselhando “transparência”
— algo de que Alex agora sabia bem que seu ex-chefe não era fã —, ela
decidiu colocar a mensagem no pacote também, só para dar mais uma
cutucada vergonhosa. Com apenas alguns cliques, os documentos estavam no
arquivo da apresentação de Jamie, que Alex tinha certeza de que ele nem se
incomodaria em revisar no dia: nunca fazia isso. Porém, por mais que ela
tenha se divertido ao ler as trocas de e-mail sobre a “cagada do Minerva” que
continuavam surgindo dias depois, Jamie já parecia estar se safando.
Nos dias que se seguiram à despedida de Joyce, Alex estava desesperada
por qualquer tipo de reconhecimento de Nicole ou Jill. Agora estava claro
que as duas a tinham apagado da mente — e o plano que criaram juntas. Mas
Alex não conseguia fazer isso. Não o faria. E claramente uma ligeira gafe
profissional não era o suficiente. Não para Jamie… nem para ela. Abrindo o
laptop de novo, ela digitou “Bumps & Babies”. Como era mesmo a frase que
ele sempre dizia, sem saber a dor que causava a ela? “Família é o que mais
importa”? E, depois de hesitar por um segundo, ela clicou em “Agendar uma
aula”.
CAPÍTULO 11

JILL

– N ão Jamie
sei como posso ser mais claro em relação a isso.
falava devagar, alongando as vogais e pontuando cada
palavra com um aceno de cabeça, e Jill se sentia tentada a lembrá-lo de que
não era nem filha dele nem sua assistente.
— Sinceramente não sei como isso aconteceu. As plantas da propriedade
estavam bem ali no meu tablet, e eu tinha repassado a apresentação do
Minerva no dia anterior. Só pode ter sido um erro na hora de nomear o
arquivo. Talvez até algum tipo de erro do sistema?
“Só pode ter sido” era uma das expressões favoritas de Jamie, sua reação
automática a qualquer tipo de erro ou confusão. Dessa vez, no entanto, Jill
suspeitava de que a surpresa abismada dele pudesse ser genuína. Será que
aquilo era coisa de Nicole? Ou de Alex? Ou das duas, colocando em prática
um plano que Jill desconsiderou como sendo loucura de bêbado?
— Olha, a gente já falou disso mil vezes. Sabemos bem que a culpa é
minha, tá? Não tem ninguém aqui discutindo isso.
Inclinando a cabeça para o lado, Jill observou o colega. Sua linguagem
corporal continuava lânguida e controlada: as pernas esticadas, as mãos
cruzadas atrás da nuca. Ela queria que essa conversa estivesse acontecendo
no escritório dela, onde a dinâmica de poder estaria mais a seu favor. Queria
também que Jamie estivesse mais envergonhado e menos combativo.
— Não tem a ver com culpa, Jamie. — Dando uma olhada no relógio, ela
suspirou. — Tem a ver com se certificar de que estaremos mesmo prontos
para quando os irmãos O’Ceallaigh vierem em menos de duas horas.
— Eu estou pronto — insistiu ele. — Vou entrar lá, ser franco com eles e
falar sobre todos os problemas da propriedade, explicar que o motivo pelo
qual não tinha mencionado o terreno da JLL na região foi porque eu não
achava que a venda ia ser fechada…
— Ou seja, mentir.
— … e vou vender a propriedade para eles tudo de novo. Vou dizer que
ter um Westfield logo do outro lado da ponte vai ajudar os negócios, não
dificultar, blá-blá-blá. — Ele se inclinou para a frente. — Você acha que eu
não sei o quanto isso é importante? Eu sou bem crescidinho, Jill.
— Tem certeza de que não quer que eu participe da reunião?
— Tenho.
— É só que a gente teve muito trabalho para convencer os dois a voltar.
— Eu sei. Principalmente porque fui eu que passei a última semana
ralando para que isso acontecesse.
— Uma semana na qual poderíamos estar mostrando a propriedade para
outras pessoas, Jamie. Mas você insistiu que a gente segurasse. — Ela deu de
ombros. — Pode ser até que os O’Ceallaigh já tenham desistido da gente e
começado a conversar com a JLL, nossa concorrente mais “transparente”.
— Jill! Eu posso consertar isso. Não era você que sempre me dizia, muito
tempo atrás, para não correr atrás dos outros quando cometesse um erro?
“Apenas conserte”?
— Era. — Ela ficou satisfeita por ele ter se lembrado. — E a garrafa de
Glenlochy vintage foi um toque de mestre.
— Obrigado. É quase como se eu soubesse o que estou fazendo.
— Cruzes, você está tão na defensiva.
Jamie respirou fundo, engolindo o que quer que estivesse prestes a dizer.
— Só quero que você pare de me microgerenciar. Já resolvi.
— Então tá. — Ela ajeitou a saia. — Foto nova da pequena Elsa?
Jamie girou a cadeira para pegar a foto emoldurada da família na prateleira
atrás da mesa.
— Ela não é linda? — Jamie passou o polegar pelos três sorrisos
brilhantes e o embrulhinho confuso no centro de todos e entregou a fotografia
para Jill.
— Uma graça. — Ela havia dominado aquele tom gentil ao longo dos
anos, mesmo que nunca tivesse sentido a pontada no útero, imaginava, que as
mães sentiam. — Maya pensa em voltar a trabalhar em algum momento? Ela
comentou alguma coisa assim faz um tempinho.
— Ah, acho que não. Não dá pra fazer isso agora. Nós temos ajuda, mas
não vou deixar meus filhos serem criados por estranhos.
Jamie colocou a foto de volta na prateleira, ao lado de uma antiga da
esposa, no auge da “trofeuzice” dela, em uma praia em algum lugar
impressionante. E, embora Jill tivesse visto a foto um milhão de vezes e
observado o short curto, a camisa transparente e a fileira de pulseiras
refletindo o sol, embora estivesse bem ciente de que, em termos de desejo
masculino, aquela mulher era basicamente o padrão, a palavra que surgiu,
indesejada, na sua cabeça enquanto voltava para seu escritório era “comível”.
“Você está muito comível hoje.” Não foi isso que Nicole alegou que Jaime
havia dito? Expulsando a lembrança com um balançar de cabeça, ela pegou o
telefone para retornar a primeira ligação aos clientes da lista que sua nova
assistente deixara na mesa, decepcionada, mas não surpresa, por perceber que
Kellie com “ie” tinha a caligrafia de uma garotinha de primário.
— Edward, é a Jill. Só queria saber se você chegou a pensar sobre a
propriedade da Portland Road.
Edward Dinnigan gostava de falar. Depois de colocá-lo no viva voz, Jill
pegou o celular para ver se Stan tinha mandado alguma mensagem, e depois
começou a checar os e-mails. Quando só faltava responder os três últimos,
Edward ainda não parecia estar nem um pouco próximo do fim da descrição
da viagem de iate que havia feito para Èze.
— Porcaria — ela reclamou ao clicar rápido demais em um e-mail com
cara de spam.
— Perdão?
— Não foi nada. Você estava dizendo que ficou feliz de ter os
estabilizadores.
Raxugdy@sharklaser.com; assunto: COM AMIGOS ASSIM. Isso não era nada
bom. Precisaria pedir para Tara, da TI, verificar se tinha baixado algum vírus.
Mas a mensagem não pedia que ela clicasse em nenhum link… nem que
fizesse nada. Não, parecia ser só o encaminhamento de uma troca de
mensagens entre Jamie e Paul, em janeiro. O assunto dizia CLARENDON CENTRE,
uma propriedade comercial de 14 mil metros quadrados vendida com
relutância no mês seguinte por muito menos do que o valor pedido, e a
conversa era sobre como a BWL estava tendo dificuldade para vender o lugar.
Foi só quando chegou ao terceiro e-mail, de Jamie, que Jill entendeu por que
tinham encaminhado aquilo para ela.
Pensando aqui, não podemos cuidar disso nós mesmos? VSQ está bem lelé
ultimamente. Sessentões senis além de tudo? Pode ser… De qualquer forma,
não sei se esse é o tipo de imagem que queremos passar agora. Sem contar
que ela não deveria estar em casa, cuidando do Stan?
— Edward?
— Desculpe, estou falando sem parar. Sobre a Portland Road…
— Perdão. — Jill estava sentindo uma onda de calor quase
cinematográfica subindo ao rosto. Só que não havia nada de cômico nisso ou
na sensação de que as proporções da sala tinham se alterado. — Tem alguém
na outra linha que está insistindo muito. — A voz dela parecia de outra
pessoa. — Posso te ligar depois?
Se não fosse pela referência à idade, ela pensou enquanto relia a troca de
e-mails, devagar dessa vez, percebendo e agradecendo a recusa de Paul em
responder as piores partes do e-mail de Jamie — Ela está passando por um
momento difícil, mas tenho a sensação de que o trabalho ajuda, não
atrapalha —, Jill poderia ter se convencido de que a mensagem não era sobre
ela. Como estava, porém, não havia dúvidas de que ela era “Você Sabe
Quem”, e de que, se Jamie realmente havia escrito aquelas palavras, ele não
era só o assediador e oportunista que ela descobrira naquela noite no pub,
mas algo muito pior.
CAPÍTULO 12

NICOLE

– P or que você não me acordou?


Já era mais de nove horas quando Nicole desceu para a cozinha. E,
embora Ben a deixasse dormir até mais tarde todos os sábados, ela quase
nunca passava das oito.
— Você parecia estar precisando. — O marido sorriu e se inclinou para
beijá-la.
— Você está com cheiro de café — murmurou sonolenta porque era
verdade, porque ela queria café também e porque, quando Ben fosse fazer
uma xícara para ela, o que Nicole sabia que faria, ele teria que soltar o aperto
nos ombros dela. Nicole sempre achou a necessidade dele de afeição logo
pela manhã um tanto sufocante. — É do bom? Daquele lugar da Charleville
Road?
— Aham. Falei para a Mama Anna que você achou o outro muito fraco.
— Não fraco, só com um gosto acentuado de castanhas ou… sei lá. Cadê a
Chlo?
— Ali. — Ben indicou com o queixo a sala ao lado, onde a voz aguda do
Bob Esponja podia ser ouvida. — Chloe, vem dar bom-dia para a mamãe!
— Eu vou lá. — Colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha, Nicole
esfregou os olhos. — Só preciso de um segundo. Quem é Mama Anna
mesmo?
Ben riu. O fato de que ela não conseguia identificar qual das senhoras
geniosas das padarias italianas era “Mama Anna” podia parecer estranho para
o marido, que conhecia em detalhes a vida de todos os baristas da região, mas
para Nicole era o interesse de Ben na existência periférica dessas pessoas que
era bizarro.
— A dona! Aquela que o marido, Rocco, morreu ano passado? A que
sempre dá chocolate Baci para Chloe?
— A velhota que gosta de você?
— Todas gostam de mim — retrucou ele com uma piscadela.
Provavelmente era verdade. Com 1,95 metro, membros longos e rosto
comprido, cílios que Nicole mataria para ter e um sorriso que quase
alcançava as diagonais ligeiramente melancólicas das sobrancelhas, Ben
sempre fora um sucesso entre mães e avós. Oras, até as babás pareciam
demorar uns bons vinte minutos ao final da noite querendo pedir conselhos
para ele sobre enquadramentos de posts no Instagram.
Seguro, gentil e criado em uma casa cheia de mulheres, Ben não era tanto
um grande sedutor, e sim o cara com quem você procurava consolo depois de
levar um pé na bunda — e por quem acabava se apaixonando. “Cara perfeito
bem na sua frente”: aquele era o marido dela, e tinha sido exatamente assim
que os dois acabaram juntos, ao estilo de Harry e Sally: feitos um para o
outro, no terceiro ano da faculdade em Bristol.
— Enfim. Esse é um fortissimo, segundo Mama Anna, come tua moglie.
Nicole ergueu a sobrancelha.
— Como sua mulher.
— Ah. — Ela tomou um gole. Era forte e amargo, e Nicole tentou não
pensar muito na comparação de Mama Anna. — Oi, querida.
Atravessando as portas duplas que separavam a cozinha do quarto de
brincar, pintado de rosa por Ben ainda na semana anterior, Nicole apoiou o
café no chão e puxou Chloe para o colo. A nuca da filha de quatro anos
cheirava a sabonete de mel, e naquele momento nada mais importava.
— O que você está vendo?
— Bob Esponja. Ele está brigando com uma enguia.
— Ah, é?
— Dá para comer enguias?
— Dá. Mas não é muito gostoso. É meio melequento. Esse pijama é novo?
Chloe assentiu, os olhos grudados na tela, e Nicole não se importou muito
que a filha não estivesse a fim de conversar. No fundo gostava quando Chloe
estava atenta a algo que não ela. Era quando a filha corria para cumprimentá-
la assim que Nicole colocava os pés em casa à noite que ela achava difícil.
Era não conseguir tirar os sapatos, sentar-se por um minuto e respirar com
aquele corpinho quente a envolvendo.
E depois ainda tinha as perguntas; tantas perguntas. Não só feitas por
Chloe, mas também por Ben: como foi seu dia? Alguma venda? Por onde
esteve, com quem? Como se ela fosse uma estudante de maria-chiquinha
ansiosa para contar aos dois tudo o que aprendera sobre a Grande Muralha da
China, e, ao mesmo tempo, de alguma forma, a maior tomadora de decisões.
Vamos jantar carne ou salmão? Tinha conseguido olhar os formulários da
escola que ele mandou por e-mail? Por falar nisso, o que achava de um
barracão para servir de escritório no quintal? Ela estava no comando no
trabalho, era um tipo de CEO doméstica em casa, e às vezes sonhava em abrir
mão de todo esse controle, em ter alguém dizendo o que ela queria e
precisava, em se entregar a isso.
Somados, o peso das expectativas de Chloe e Ben costumava ser o
suficiente para fazer Nicole subir direto para tomar um banho assim que
chegava. O conselho que sua mãe lhe dera no dia do casamento — “Lembre-
se sempre de dar a Ben uma bebida, algo para comer e meia hora de silêncio
quando ele chegar do trabalho” — só parecia se aplicar aos homens. Dava a
entender que as mulheres que trabalhavam fora já tinham um “tempo para si”
no escritório, que ter a permissão de trabalhar já era uma indulgência.
Apertando a filha no colo, ela sussurrou:
— O que você quer fazer hoje?
— Parquinho! O papai falou! O papai falou!
— Falei mesmo. — Ben apareceu na porta, com uma expressão
arrependida e uma cafeteira italiana fumegando na mão. — Mas a mamãe
precisará de cafeína se vai ter que enfrentar o parquinho.
Por cima dos cachos escuros e lustrosos de Chloe eles se entreolharam, e
Nicole sentiu uma onda de culpa e amor — os dois sentimentos tão
intimamente ligados no que dizia respeito a Ben e Chloe que eram quase
indistinguíveis. Ela mal tinha visto a família durante a semana e não havia
motivo para eles ficarem pisando em ovos por causa dela.
— Mas está um dia tão bonito, eu não tenho trabalho para fazer e o
parquinho vai ser divertido, não vai, minha joaninha? Vamos subir e nos
vestir? Se chegar cedo, talvez a gente consiga evitar aqueles garotos
valentões nas pontes de corda?
— Na verdade, o conselho tirou as pontes mês passado — comentou Ben.
— Alguma coisa de segurança.
— Sério?
Não era uma alfinetada — era um daqueles pequenos lembretes pontuais
de momentos que Nicole perdia na vida da filha, de roupas que nunca tinha
visto até modas que às vezes só percebia quando acabavam. Mas ela sempre
sentia a dor mesmo assim.
— Você não acha que ficou rosa demais? — murmurou ela quando Chloe
correu escadas acima.
— Não — respondeu Ben. — Você acha?
— Eu só estou… um pouco preocupada com essa fase toda rosa.
— É o que você diz.
— Mas é sério, eu li um artigo no Guardian outro dia sobre
condicionamento comportamental e não quero que a Chloe sinta que precisa
crescer segundo as regras sociais estabelecidas séculos atrás.
— É assim que você se sente quando chega em casa do trabalho e encontra
seu marido dono de casa?
— Para com isso. — Ela deu um soquinho brincalhão nele. — Você não é
dono de casa. Só está passando por um período complicado. Vai aparecer
mais trabalho.
— Na verdade — disse ele com um sorriso. — Parece que já apareceu. Vai
se vestir, eu conto no caminho.
Quando ele mostrou a ela um e-mail de um renomado designer de
interiores de Notting Hill interessado em chamá-lo para gravar uma
propaganda que seria comercializada nos Estados Unidos, Nicole tentou
parecer otimista. Mas ela duvidava que Oscar, famoso e autocentrado o
suficiente para ser conhecido apenas pelo primeiro nome, entendesse o estilo
discreto de Ben. E houve mortes na praia profissionais o bastante nos últimos
três anos para que Nicole ficasse temerosa de animar demais o marido.
— Você mandou o comercial que você fez para Afshin?
— Não, Chloe, não chega perto da rua, por favor! Você acha que eu
deveria?
— Bom… sim. — Por que o marido tinha tanta dificuldade em se mexer?
— Essa teria sido a primeira coisa que eu mostraria para ele.
Eles tinham chegado ao parque e, enquanto Ben abria o portão, deixando
Chloe ser arrastada por um fluxo repentino de crianças vindo de trás dela,
Nicole percebeu a tensão no rosto do marido: o lábio superior tenso, os olhos
fugindo dos dela.
— Bom, faz o que você preferir — cedeu, aliviada como em tantas outras
vezes por terem Chloe para onde olhar. — Você sabe mais que eu.
— Parece que não, né? Se eu soubesse estaria com trabalho.
— Não, Ben… Caramba, não foi isso que eu quis dizer. Mas não se
preocupe, sabe, por ter que falar bem de si mesmo, é só isso que quero dizer.
Você é tão talentoso e tem tanta merda por aí… A questão é só fazer as
pessoas verem isso.
Um dos três bancos concorridíssimos do parquinho estava vazio, e eles
ficaram sentados ali em silêncio por alguns minutos, Nicole virando o rosto
para tragar o cigarro eletrônico.
— Eu queria que você parasse com isso.
— É melhor que os normais.
— Melhor ainda seria nenhum cigarro. Esse fede do mesmo jeito.
Com relutância ela o guardou na bolsa.
— É baunilha.
Nada.
— Eu posso te ajudar a montar um portfólio novo amanhã, se você quiser.
E podemos colocar o comercial do Afshin logo no início.
— É? — Ele lhe lançou um olhar de esguelha.
— É, com certeza. O antigo já tem o quê? Uns dois anos?
— Três. Talvez quatro.
— Ben.
— Eu sei…
Nicole segurou a mão dele e a apertou. Então gritou:
— Fique para cá!
Chloe estava costurando o parquinho a toda velocidade, se aproximando
da escalada de corda, onde um bando de garotos mais velhos usando Adidas
subiam do outro lado.
— Ela está bem.
— É com esses merdinhas que estou preocupada.
— São só uns moleques de oito anos, Nic.
— Você não viu eles balançando as pontes de corda de propósito na última
vez em que viemos? Garotos de oito anos às vezes são uns merdinhas.
Nicole ficou de pé.
— O que você está fazendo?
— Só quero ficar de olho neles. Não vou deixar Chloe sofrer bullying,
Ben.
— Pelo amor de Deus. — Ele puxou a mão de Nicole e a fez se sentar de
novo. — Eles não estão fazendo bullying com ninguém. Olha.
Ele estava certo. Os meninos tinham aberto espaço para deixar Chloe subir
até o alto.
— Mas no outro dia eles estavam…
— Sendo garotos?
— É. Nossa. Eu não ia querer estar no mesmo parquinho que você quando
era criança.
— Não, você não estaria mesmo.
Adorava pensar em si mesma mais nova pelos olhos apaixonados de Ben.
Ele nunca imaginaria que Nicole não viera ao mundo com a casca grossa da
qual se orgulhava tanto atualmente. Que ela levou anos para enfrentar pela
primeira vez os três irmãos mais velhos que a excluíam de brincadeiras e
zombavam de suas opiniões à mesa de jantar quando criança. Que cada
comentário misógino casual que ela se forçou a ignorar em reuniões ao longo
dos anos a fazia se lembrar dos adolescentes que tentavam abafar suas
respostas em aula com gritos de “Olha a alça do sutiã da Nicole
aparecendo!”. Porque merdinhas crescem e viram grandes merdas.
Percebendo que Ben ainda a observava com as sobrancelhas franzidas,
Nicole abriu um sorriso.
— Olha só a Chloe. Totalmente destemida, né?
E os dois dividiram o que parecia ser a primeira risada fácil da manhã.
Era essa a sensação da felicidade? Ficar sentada num banco com o marido
sob o sol fraco da manhã, olhando o pequeno ser humano que levou cinco
anos e duas rodadas de inseminação artificial para se tornar alguém forte e
capaz? Rir da expressão determinada da filha que tentava, falhava, e então
tentava de novo? Tanta determinação vinha da mãe, Nicole sabia, e somente
ela poderia cultivar isso na filha, dando força para que ignorasse as dúvidas e
subisse cada vez mais alto.
Que ela tivesse arriscado tudo isso por alguém totalmente sem importância
quanto Ian parecia, todos esses anos depois, não tão errado e mais estranho,
como se fossem as ações de outra pessoa. Por outro lado, sua necessidade de
sexo nunca foi coerente com o restante de si — com seus princípios, com seu
desdém pelos homens. Quando, anos atrás, encontrou por acaso um artigo
numa revista sobre “atrito erótico”, escrito por algum famoso psiquiatra
americano, a frase lhe pareceu perfeita. Porque seu desejo físico por homens
ia contra o lado lógico de Nicole — era como uma irritação sob a pele que
precisava ser coçada. O que não era apenas inconveniente, mas humilhante, e
ela esperara que o casamento agisse como um bálsamo. Além de todo o resto,
você não tinha permissão para ceder a esses impulsos, não é? Mas talvez a
questão se resumisse a: Nicole queria ter um caso e sentia que merecia, após
anos sendo entupida de hormônios e a subsequente chegada de Chloe.
O fato é que não teve nada a ver com Ian. Ele tinha sido transferido do
escritório de Nottingham para lidar com propriedades empresariais e apenas
estava lá… E disposto. E sua primeira surpresa foi como a culpa que sentia
era mínima; a segunda era como ela melhorou como ser humano em
praticamente todas as áreas da vida. No trabalho sua energia e eficiência
aumentaram, e em casa se viu mais paciente com Chloe e mais amorosa com
Ben. Mas eles foram descuidados e quando a esposa de Ian descobriu, além
de um ou dois funcionários da BWL, e a fofoca correu e ele se mudou, Nicole
se sentiu ao mesmo tempo aliviada por si mesma e grata por Ben nunca ter
descoberto.
Nicole tragou com força seu cigarro eletrônico quando se lembrou do
desconforto no rosto de Alex e de Jill ao trazer Ian à tona. Fazer as pessoas se
recordarem de algo que, com o tempo, havia desaparecido do conhecimento
geral até ter se tornado apenas um rumor tinha sido estupidez; nunca teria
feito aquilo sóbria. Ela também nunca teria falado aquelas coisas sobre Jamie.
Isso tinha sido perigoso. Mas ainda estava com muita raiva.
— Você não é como as outras mulheres — ele lhe dissera na segunda vez.
— Eu sabia no dia em que você entrou no escritório com aqueles sapatos de
vagaba.
— Eles não são nada disso.
Ele a ignorara.
— Você é durona. Aguenta mais que outras mulheres.
— Jamie, você está me machucando.
— Mas você gosta.
— Não.
— Não?
E de repente ele soltara as mãos dela, presas acima da cabeça no chão
frio de azulejos, no vestiário da academia da empresa. Depois, observando
sem emoção a barriga exposta dela, onde a camiseta havia subido, ele
comentara:
— Ainda sobrou um pouco de barriga da gravidez, hein? — Ele sorrira.
— Estranho. Não te imagino como mãe.
— Mamãe! Mamãe! Olha pra mim!
A voz da filha a alcançou do topo da escalada de corda. Um dos elásticos
de cabelo tinha se soltado e parte do rosto de Chloe estava escondido pela
cortina de mechas escuras, mas a metade do sorriso que Nicole via chegava
quase à orelha.
— Olha só você, joaninha!
— Querida, está alto demais.
— Ben, ela está ótima. Muito bem! Agora desce com cuidado.
Nicole ficou quieta no caminho para casa, contente por ficar atrás de Ben e
Chloe, sentindo-se tranquilizada pela tagarelice dos dois. Tendo confirmado
que o pai nunca escalara uma montanha, nem a Torre Eiffel, a filha ajustou
suas expectativas e agora havia desistido do Big Ben — que ele lhe garantiu
que ninguém tinha permissão para escalar — para sua casa.
— Só uma vez? — perguntou ela, chateada.
— Se eu só subi no telhado uma vez? — Ben caiu na risada. — Sim. Sinto
te decepcionar de novo, Chlo. Só uma vez para limpar as calhas.
— Calhas? E a mamãe?
— Hum?
Pai e filha se viraram para ela, rindo, mas Nicole não ergueu os olhos,
quase parando de andar. Um e-mail de Jamie para várias pessoas —
ATUALIZAÇÃO SOBRE MINERVA — tinha acabado de chegar, e Nicole ficou
paralisada pelo tom da mensagem. Pomposa e cheia de si, descrevia a reunião
do dia anterior com os irmãos O’Ceallaigh como “Um gol de placa aos 45 do
segundo tempo” e previa “uma oferta pela propriedade” até o final do mês.
Assinando com um “Sempre em frente!” de alguma forma o e-mail conseguia
fazer pouco caso de uma das maiores cagadas da carreira de Jamie e talvez
até da história da BWL. E já chegavam os e-mails elogiosos: “Muito bom,
cara!”, “Você conseguiu tirar mais uma da cartola, hein?”. Se qualquer
mulher tivesse cometido um erro daquele estaria fora do jogo. Mas era
preciso mais do que um ou dois golpes para causar qualquer dano à carreira
de um homem, e era típico que Jamie estivesse, sabe-se lá como, saindo
daquela ileso.
— Você já subiu, mamãe?
— Subi no quê?
— No telhado, mamãe. Você já subiu no nosso telhado?
— Não, joaninha. Por que eu faria isso?
Eles chegaram em casa em silêncio, a distração de Nicole de alguma
forma estragando o clima. Enquanto Chloe construía um forte elaborado para
seus cavalinhos do Meu Querido Pônei, Ben começou a preparar o almoço.
— Você vai ter que parar de fazer isso, Nic — disse ele enfim, sem tirar os
olhos da tábua.
Ela ficou aliviada, na verdade. Eram os silêncios do marido que mais
temia.
— Fazer…?
— Não estar presente quando está aqui. Ficar nesse… — Ele apontou com
a faca para o iPhone ao lado dela no sofá — … quando você deveria estar
interagindo com ela.
— “Interagindo”? Você não está passando tempo demais naqueles fóruns
de mães de novo, está? Ela sabe que eu tenho um emprego, Ben. Lamento
que ele nem sempre se mantenha entre as nove e as 18 horas, mas não posso
fazer muita coisa sobre isso. E, na verdade, acho que é bom para ela ver a
mãe trabalhando para entender que mulheres são mais do que só mães e…
Mas Ben estava balançando a cabeça.
— Não sei se ela liga muito pra igualdade de gêneros agora — sussurrou,
olhando para Chloe. — Ela só quer que a mãe a escute quando está falando.
Ela só quer conversar com você.
— Tá. — Nicole manteve a voz calma. — Foi só um e-mail, Ben, e um e-
mail importante. Será que dá para não fazer uma tempestade num copo
d’água?
Durante o almoço e depois, enquanto assistiam a 101 Dálmatas com um
pote compartilhado de Häagen-Dazs e se deleitavam com as risadas da filha
toda suja de caramelo, os dois fingiram bastante bem que não havia mais
qualquer ressentimento. Foi só depois de Chloe adormecer e Nicole sair do
mais demorado banho quente que conseguiu aguentar e encontrou Ben ainda
acordado, vendo fotos antigas no laptop, que a tensão residual ressurgiu.
— Você é uma ótima mãe, sabe — murmurou ele, apagando a luz e
puxando o corpo dela, vermelho da água quente, para junto do dele.
Talvez o que a irritasse fosse a sensação de que Ben precisava ser
assegurado daquilo mais do que ela mesma. Ou talvez fosse a percepção de
que o comentário do marido, como todo o resto, apenas a faria pensar de
novo em Jamie — “Não te imagino como mãe” —, que tinha estragado
aquele dia como seria todos os dias até que ele estivesse fora da vida dela.
— Ben… — ela começou, a voz soando alta demais na escuridão. —
Desculpa se estou meio desligada. O trabalho… está…
— Te enlouquecendo?
— É.
— Pede demissão. — O farfalhar dos lençóis enquanto ele se apoiava no
cotovelo. — Você pode só pedir demissão. A gente vai ficar bem.
Nicole não respondeu, grata por ele não conseguir ver seu rosto. Mas o
marido estava certo. Se as coisas que ela ouvira a si mesma dizer naquela
noite no pub provavam alguma coisa, era que ou ela ou Jamie teria que sair. E
Nicole estava decidida a fazer o que fosse necessário para se certificar de que
não seria ela.
CAPÍTULO 13

ALEX

E
la estava meia hora adiantada. Apesar da interminável crise de Katie
nos confins da estação Hammersmith, do desarrumar e rearrumar da
bolsa de maternidade no banco da plataforma e de uma longa busca
por uma lixeira na qual não queria deixar explosivos, apenas uma fralda
fedorenta, Alex ainda conseguiu chegar na Bumps & Babies com meia hora
de antecedência.
Quando Alex empurrou a porta, Katie finalmente tinha parado de chorar e
havia caído no sono no canguru, a barriga cheia de fórmula. Alex afundou em
uma cadeira na recepção espaçosa, grata demais pelo pequeno momento de
calma para se perguntar o que estava fazendo ali.
Ladeado por uma butique de artigos para o lar e um café “artesanal” na
Chiswick High Road, o lugar era espaçoso, bem-iluminado e estilizado até
demais. A recepção era decorada para parecer uma cozinha provençal, cheia
de azulejos rachados, canos decorativos em cinza-chumbo e móveis rústicos
de fazenda. Ao lado da fileira de potes esmaltados, propositadamente
envelhecidos cujas etiquetas diziam “Café”, “Thé” e “Sucre”, uma placa
avisava: “Mamães e papais, sirvam-se à vontade.” Na mesa de pinho maciço
ao centro do cômodo havia uma bandeja de barrinhas de cereal caseiras que
Alex estava morrendo de vontade de pegar, mas não ousava.
Por uma porta aberta mais adiante no corredor principal ela vislumbrava
um grupinho de grávidas guardando os tapetes de yoga, o sotaque estridente
de Chiswick audível de onde estava.
— Dá para imaginar fazer um lance num leilão que você não tem dinheiro
para pagar?
— Jules deve ter ficado para morrer.
— Eu ficaria.
Quando passaram por Alex, lhe lançaram olhares de avaliação e os
sorrisos vieram depois. Ela não conseguiu evitar e pensou que, mesmo
prestes a parir, aquelas mulheres pareciam mais elegantes e arrumadas do que
ela.
Nenhum funcionário tinha aparecido ainda, e a ideia de que poderia
simplesmente sair daquele lugar ao qual não pertencia fez um raio de
adrenalina atravessar suas veias. Com certeza haveria algum jeito de
recuperar o depósito da matrícula, feita por impulso naquela noite em que se
inscrevera como “Lexie” — apelido que insistiam em chamá-la nas aulas de
computação na Norwich, para distingui-la da outra Alex, mais bonita. Só que
ficar de pé às pressas acordou Katie, e ao abrir a porta, desesperada para fugir
antes que alguém chegasse, lá estava uma mulher de cabelo louro-mel, com
um bebê quase exatamente da mesma idade de Katie, embrulhada em um
sling carmim: Maya.
— Opa! Perdão, pode passar.
Além de uma uniformidade nas vogais e um leve enrolar do R, ninguém
imaginaria que inglês não era a língua materna de Maya. Isso Alex já tinha
percebido nas poucas e curtas conversas pelo telefone com ela. Mas não
podia imaginar sem vê-la cara a cara como seus olhos verdes eram
compreensivos — pareciam mergulhar em você e realmente te ver. E apesar
de ter afastado mais cedo as preocupações de última hora de que aquela
mulher desconhecida de alguma forma saberia quem ela era, naquele
momento Alex sentiu um horror renovado de que Maya franziria a testa e
perguntaria: “O que você está fazendo aqui?”
— Caramba, alguém não está nada contente.
— Oi?
— Sua bubu.
“Bubu”, “embrulhinho”: Alex não sabia qual odiava mais.
Enquanto as duas mulheres faziam uma dancinha desconfortável para ver
quem passaria pela porta, os choramingos de Katie se transformaram em um
colapso completo.
— Ela está com um pouco de cólica — murmurou Alex, tentando enfiar a
chupeta na boca da filha. — Pelo menos é o que eu acho que é.
Com um resmungo irritado, Katie jogou a chupeta longe.
A essa altura, Alex só queria dar o fora dali. Humilhada mais uma vez
pelas disparidades entre ela e aquela loira de rosto gentil que conseguia usar
uma legging com recortes transparentes quatro meses depois de parir, ela
tentou pegar a chupeta no chão, sem sucesso. Isso não ia dar certo, não com
Katie presa ao seu peito.
— Pode voltar. — Maya riu. — Eu pego. Não está com pressa, né?
— Eu…
Desistindo, Alex voltou para a recepção e se sentou de novo.
Separada de Maya momentaneamente por um bando de mães, Alex tentou
criar alguma desculpa que a tiraria dali rápido. Mas quando todas as mulheres
tinham passado, Maya já recuperara a chupeta de Katie e deixara Elsa no
tapetinho de atividades no canto, e agora vinha na direção de Alex com os
braços estendidos.
— Quer que eu tente uma coisa? — perguntou, elevando a voz acima dos
gritos de Katie. — A minha mais velha tinha cólicas horríveis, e tem uma
coisa que os médicos dinamarqueses sempre recomendam. Ah… — Ela
balançou a cabeça, rindo, e não havia nada falso na sua confusão. — Eu sou
da Dinamarca. Meu marido sempre diz que começo as conversas pela
metade. Voltando: meu nome é Maya.
— Sou… — Os ombros de Alex se tensionaram com o som angustiado
dos gritos de Katie. — Lexie. Desculpa pela confusão.
— A regra número um da maternidade: nunca se desculpe por coisas que
estão além do seu controle. É a sua primeira?
Alex assentiu.
— Passa pra cá.
Alex obedeceu. Porque não havia mais nada a fazer. Porque sempre se
intimidava por mulheres mandonas e porque tinha visto uma morena
musculosa perto das barrinhas se encolhendo por causa do barulho.
— Vamos melhorar essa barriguinha? Vamos?
Ver a esposa de Jamie segurar sua filha deveria ter incomodado Alex mais
do que incomodou.
Mas os movimentos de Maya foram gentis e precisos quando ela levou
Katie até um banco almofadado no canto, deitou-a de costas e pedalou suas
perninhas para a frente e para trás até que parasse de chorar.
— Isso ajuda a diminuir a pressão no estômago — explicou, passando a
mão na barriga de Katie. — Às vezes eu queria que fizessem em mim
também.
Ela se virou para olhar para Alex, que sentiu uma risada borbulhar
garganta acima.
Mas agora Maya a observava com uma expressão questionadora.
— Lexie? É você?
E Alex se virou e percebeu que uma ruiva de cabelo curto com uma lista
impressa olhava ao redor.
— Lexie? Tem alguém chamada Lexie aqui?
A esposa de Jamie tinha parado de fazer carinho em Katie e estava de pé
encarando-a.
— Te pegaram.
Alex sentiu um nó na garganta.
— Eu… Quê?
— Você ia fugir, né? Eu quase fiz a mesmíssima coisa na primeira vez em
que vim. Não sou muito de “mamãe e bebê” também. Mas pode acreditar, é
bem divertido, na verdade.
— Imagino que…
— Lexie está aqui — disse Maya em voz alta.
Não havia como fugir agora.
— Certo, então está todo mundo aqui. Yoga para Bebês é ao meio-dia,
então vamos para o Estúdio Um para balançar essas fraldas!
A aula foi exatamente tão vergonhosa quanto Alex temia, mas, mesmo
assim, ela se surpreendeu ao perceber que se divertia, chegando até a engolir
uma crise de riso pela careta que Maya fez quando a instrutora falou de
“abordagem de criação pele e alma”.
— Para que lado você está indo? — Maya perguntou enquanto todo
mundo reunia suas coisas, pegando-a de surpresa.
— Para casa.
— E isso fica?
— Fica em… Stamford Brook.
Não havia motivo para uma pessoa que morava em Acton fizesse um curso
na Bumps & Babies. E Alex conhecia bem Stamford Brook, depois de passar
um verão cuidando da casa de uma amiga perto da Shepherd’s Bush Road.
— Eu adoro aquela área! — Maya não parecia estar com pressa de ir a
lugar nenhum, o que estava deixando Alex nervosa de novo. — A gente
procurou lugar por lá, mas eu queria muito um jardim espaçoso. Aí acabamos
em Park, Bedford Park, então nem posso reclamar.
Depois de colocar a ainda serena Elsa no sling, Maya pegou duas garrafas
gratuitas de algo que se declarava ser “água alcalina” na saída, passou uma
para Alex e inconscientemente seguiu no mesmo passo que ela.
— A professora é um pouco exagerada, mas já conheci algumas mulheres
bem legais aqui na B&B ao longo dos anos.
— Anos?
A palavra saiu desdenhosa, o questionamento implícito de “é assim
mesmo que você passa o seu tempo?”, dolorosamente óbvio, e uma pontada
de mágoa perpassou no rosto de Maya.
— Bom, quando se tem dois filhos, meio que junta tudo. E elas só têm
vinte meses de diferença, então não tive muito tempo para me recuperar.
Alex imaginou a casa clássica e espaçosa que explorara minuciosamente
pela internet, com o quintal retangular bem-arrumado nos fundos. Imaginou
toda a ajuda que Maya tinha ao seu dispor: a sogra de quem Jamie nunca
parava de reclamar, as amigas sempre presentes, as babás. De quanto tempo
ela precisaria para se recuperar?
— Quer dizer, eu tenho sorte — admitiu Maya, como se lesse a mente de
Alex. — Temos uma babá incrível. Mas meu marido trabalha demais.
— No quê?
— No mercado imobiliário. Ele é sócio na BWL e tem que viajar bastante,
então o coitado está sempre se sentindo culpado por não passar muito tempo
com as meninas…
Todas aquelas bebedeiras em hotéis de luxo pela Europa com o coleguinha
Hayden e Jamie ainda tinha tempo para se sentir culpado?
— … e eu ainda arranco a cabeça dele se estiver cansado demais para
fazer tudo que planejei para nós e para as crianças.
Maya balançou a cabeça com… não, não podia ser. Mas era: aquela
mulher maravilhosa sentia mesmo vergonha do tipo de esposa que era para…
Jamie! O mesmo Jamie que nunca perdia uma oportunidade de dizer para
quem quisesse ouvir o pai dedicado e presente que era.
— Bom, é compreensível que essas coisas não sejam tão importantes para
ele.
— Talvez devessem ser.
Percorriam as calçadas movimentadas de Chiswick na hora do almoço e
Alex tentou manter a voz calma.
Mas Maya a olhou com a testa franzida.
— Você tem um marido que é um superpai, né?
— Pois é.
— Sortuda. Eu sempre me sinto mal por dar mais trabalho a Jamie. Quer
dizer, quando preciso de uma mão para alguma coisa, peço para que ele
ajude. Coisas bobas, tipo a entrevista da creche de Christel essa semana…
— Entrevista da creche? — Alex se arrependeu da pergunta no momento
em que saiu da sua boca; é claro que mulheres como Maya mandariam os
filhos para as escolas mais caras que o oeste de Londres tinha a oferecer.
— Bom, você sabe, a Greenleaf… não é uma creche qualquer.
— Entendi.
Até Alex tinha ouvido falar da Greenleaf, com suas mães supermodelos,
seus pais investidores e sua longa lista de espera.
— E eles vão entrevistar Christel?
Maya riu.
— Você é tão engraçada. Dá para imaginar, uma entrevista com uma
menininha de dois anos? Na verdade, ela está bem feliz na creche atual, mas é
claro que a Greenleaf é tipo o Santo Graal.
— É claro.
— Bom, essa situação toda está sendo muito estressante, você precisa
fazer tanta coisa, bajular tanta gente. Eles têm pouquíssimas vagas! Mas eu
finalmente consegui essa entrevista, então estou contando que Jamie vai usar
o charme dele como sempre e conquistá-los.
Sementinhas estavam brotando na mente de Alex. Era esse tipo de
informação que ela viera buscar.
Enquanto Alex tomava um gole de água, Maya olhou para a mão dela.
— Deixo minha aliança e meu anel de noivado em casa quando vou fazer
exercício — ela se antecipou.
— Eu deveria fazer isso também. Mas é bom se lembrar onde a guardou.
Meu marido passa o tempo todo mexendo na aliança e a deixa em lugares
aleatórios pela casa. É minha birrinha, como vocês dizem. O seu marido… no
que ele trabalha?
Alex se desviou de um carrinho de gêmeos que vinha bem na sua direção.
— Ele trabalha no centro.
Tinha quase certeza de que ninguém fazia mais perguntas além disso,
porque pouca gente entendia ou se importava com isso.
— E você, Lexie?
Essa não era tão fácil. Mas elas estavam perto da rua Turnham Green
Terrace a essa altura, onde Alex torcia para que Maya fosse para casa, e seus
olhos se detiveram em uma mulher ao celular dando uma risada afetada
próxima a uma loja de maquiagens.
— Marketing… de beleza. — Assim que disse isso, Alex percebeu que
tinha sido burrice. Gente que trabalhava na indústria de beleza não se parecia
com ela. — Mas trabalho na parte de tecnologia. — explicou, gesticulando
para si mesma. — Como você já deve ter imaginado.
As duas pararam de caminhar quando chegaram ao fim da rua, e Alex
sentia emoções conflitantes: alívio porque as perguntas, cada vez mais
difíceis de responder, iam cessar e irritação por perceber que estava se
divertindo na companhia de Maya.
— Por que você faz isso? — Impassível à multidão saindo para almoçar,
Maya estava parada na esquina, olhando para Alex com os olhos estreitados.
— Se colocando para baixo o tempo todo. Você fez isso a manhã inteira.
— Eu só… — Alex desistiu de tentar encontrar uma desculpa irreverente.
— Não sei.
— Desculpa. Nós dinamarqueses… somos muito diretos.
— Não. — Mais uma vez, Alex sentiu que Maya tinha uma habilidade
curiosa de ver através dela, perceber os equívocos e a imprudência. — Ser
direto é… bom.
Elas estavam no caminho de todo mundo, talvez uma visão excêntrica,
uma de frente para a outra com bebês presos ao peito, mas Maya não se
mexeu.
— Eu era uma designer de interiores bem-sucedida — disse ela. — Sabe,
antes.
Aquela informação — com todas as vulnerabilidades que continha —
ficou suspensa no ar por um momento.
— Eu consigo imaginar isso.
Maya piscou duas vezes. Sob o sol, seus olhos eram de um verde-cáqui
quase sintético de tão intenso. Ela não era só bonita como uma modelo,
percebeu Alex. Havia mais ali. Isso também a irritou. Jamie não merecia nada
raro ou diferente.
— Eu estava planejando voltar a trabalhar antes dessa pequena aqui
nascer. Mas, depois que você já passou três, quatro anos fora, precisa se
perguntar o que realmente tem a oferecer para as pessoas.
— Aposto que você tem muito a oferecer.
Parecia fazer muito tempo desde que Alex tinha estado com alguém que
queria algo mais. Só que não era um homem esperando um beijo no fim da
noite, e, ela percebeu, logo antes de Maya falar, o que ela queria.
— Estou morrendo de fome. Você não quer almoçar… lá em casa?
— Ah. — Isso foi tão inesperado que Alex não conseguiu pensar em uma
desculpa rápido. — Que ideia ótima. Mas na verdade tenho um compromisso,
e Katie tem que tirar a soneca…
Sempre dê apenas uma desculpa. Não era isso que se dizia? Duas
desculpas e parece que você está mentindo.
— É claro.
Houve aquele mesmo lampejo de mágoa de novo, logo encoberto como da
primeira vez. O que deixou Alex perplexa. Maya não podia estar solitária,
certo? Talvez decepcionada com o merda com que se casou. Mas solitária?
— Desculpa. Fica para a próxima!
Alex já tinha começado a se afastar, mas o que realmente queria era fugir:
para longe de Maya e sua filha assustadoramente impassível, para longe da
riqueza sufocante daqueles cafés e delicatéssens que vendiam açafrão em pó
e prêmios de consolação pelos maridos ausentes e traidores. Para longe de
suas próprias mentiras sem sentido.
Maya, porém, não desistia tão fácil.
— Espera. Lexie. — E foi o que ela fez, ao ouvir Maya implorando sem
fôlego. — Venha lá para casa almoçar e tomar uma taça de rosé no jardim
comigo. Hoje é a folga da babá, e a verdade é que, por mais que eu ame essa
garotinha, vou enlouquecer se não tiver um adulto com quem conversar.
E, quando ela se calou, Alex sorriu. Era arriscado e errado. Era uma
loucura. No entanto, ela se ouviu dizendo:
— Tudo bem. Adoraria ver onde você mora.
CAPÍTULO 14

JILL

– D álado
para vocês falarem baixo? — Jill rosnou para o grupinho reunido do
de fora do seu escritório. — Estou em uma ligação para Doha e
não estou ouvindo merda nenhuma.
— Desculpa.
Paul ainda teve a decência de pedir desculpas, mas Jamie só a olhou com
irritação.
— Ou gritem o quanto quiserem — resmungou ela ao fechar a porta —, só
façam isso no escritório de vocês.
Era óbvio que algo tinha dado muito errado, e quando Jill terminou a
ligação, arriscando a única frase em árabe que sabia como um floreio final
meio sem jeito, ela se deu conta sobre o que deveria ser: Minerva.
Eles passaram?, perguntou por e-mail para Jamie. E a resposta dele veio
segundos depois: Sim.
Jill encarou a mensagem monossilábica e sem remorso, se perguntando
quando e por que o homem que considerara por anos um colega leal e um
amigo não só havia perdido todo o respeito por ela como também tinha
decidido que ela era o inimigo.
Já fazia uma semana desde que Jill recebera aquele e-mail anônimo, e
durante esse tempo ela tinha checado e rechecado cada palavra e frase,
chegando até a se levantar no meio da noite para bater datas e horários da
troca de mensagens com as reuniões no calendário da intranet da BWL. Nem
Jamie nem Paul tiveram reuniões nos horários exatos em que as mensagens
foram enviadas. Outra busca rápida pela sua caixa de entrada também revelou
que Jamie nunca tinha usado o termo “VSQ” em conversas com ela.
Havia uma última opção: Paul. Mas, ao olhar para o escritório dele, do
outro lado do andar, onde o sócio examinava a planta de uma construção, Jill
se sentiu reticente. Só de mostrar aquela troca de mensagens já a faria parecer
fraca aos olhos dele — como se Jill temesse em segredo que fosse mesmo
uma “sessentona senil”. Poderia até plantar na cabeça de Paul a semente da
ideia de que sua hora já havia expirado. Os dois homens eram amigos, além
de tudo, e ficaram ainda mais próximos depois de o casamento de Paul
acabar. Desde então ele preferia discutir os detalhes tortuosos do divórcio
com Jamie, não com ela, algo que a deixou feliz até aquele momento. Se ele
reconhecesse as palavras maldosas de Jamie enviadas a ele meses atrás, será
que sequer admitiria? Ou permaneceria leal ao colega?
Depois de ir e voltar incontáveis vezes nos últimos dias entre a convicção
absoluta de que o e-mail era real e a certeza de que era falso, ou falsificado,
Jill decidiu acabar com aquela loucura naquele momento e chamou Tara, da
TI, para passar em seu escritório.
— É uma questão um pouco sensível, então tem que ficar apenas entre nós
— começou, hesitante, antes de falar de uma vez. Aquela questão já ocupara
demais de seu tempo. — Melhor você vir aqui e dar uma lida.
Quando a jovem se inclinou para ler a troca de e-mails no monitor, Jill
ficou prestando atenção nas suas reações. Seus lábios se torceram de leve em
uma expressão envergonhada ao ler as mensagens, e então Tara se endireitou
e se virou para a chefe:
— Você quer saber quem te mandou isso? Porque não vai ser fácil.
Jill pensou nos olhos febris de Alex naquela noite no pub — “Só estou
falando de dar um empurrãozinho nele” — e no leve sorriso de Nicole ao
murmurar as palavras “poder furtivo”. Já que uma ou ambas estava por trás
da humilhação da Lista D de Jamie, não seria possível que o e-mail fosse uma
ação parecida? Mas se a mensagem fora escrita e enviada para lembrá-la do
pacto que fizeram no pub e que ela tinha renegado, estavam fazendo tudo
errado. Muito havia sido dito e bebido naquela noite, e embora Jill ainda
estivesse em choque por suas descobertas sobre Jamie e ciente de que não
poderia ignorar seu comportamento, tinha que haver uma forma melhor de
lidar com ele do que com aquele plano pueril que elas criaram.
— Eu só quero saber, Tara, se é legítimo: se as mensagens foram escritas
como estão aqui, ou se foram, sabe, editadas.
— Isso eu talvez consiga fazer. Pode me dar algumas horas?
O telefone tocou, e por um momento Jill torceu para que fosse Jamie
ligando para se desculpar e assegurá-la de que o que ela entendera sobre isso
e o resto estava errado. Mas o número na tela, ela percebeu, era o seu próprio.
— Stan. Está tudo bem?
— Sim e não, meu amor. Mas não quero que você se preocupe. Passei a
manhã sentindo um pouco de dor e tontura, e o dr. Jacks acha que é melhor
eu ir para o hospital.
— A manhã toda? Por que você não falou nada?
— Estou falando agora, amor.
Stan sempre fora imperturbável e, por uma ironia, o câncer parecia só ter
aumentado essa característica, imbuindo-o de um tipo de tranquilidade
fatalista que, longe de acalmar Jill, no fundo a enlouquecia.
— Tá. Chego aí em quarenta minutos.
— Não, não, por favor, não precisa vir. Eu prometo que vou ligar assim
que acabar. Inclusive no site do Prostate Cancer UK eles dizem que isso pode
acontecer.
— A gente não tinha falado que não ia procurar essas coisas no Google?
Do outro lado do escritório, Jill viu Jamie saindo do elevador com um
daqueles cafés gelados de que gostava. Por todos esses anos ela considerou a
predileção dele por doces como uma curiosidade simpática. Agora que ele
deveria ficar de cabeça baixa, se esforçando desesperadamente para resolver
a confusão que havia causado, parecia um ultraje que estivesse se deliciando
com uma guloseima espumosa como se estivesse tudo bem.
Ela observou Jamie abrir caminho pelo setor do marketing, parando na
mesa de uma linda morena de olhos amendoados, que usava um vestido de
verão cor de centáurea-azul. O sobrenome dela era italiano, Jill lembrou, algo
sexy e exótico, e tinha aquele tipo de lábio superior que parecia deixar a boca
o tempo todo entreaberta sensualmente. Mas, em vez de parecer satisfeita
com a atenção de Jamie, Jill percebeu que ela aparentava desconforto.
— Eu prefiro ir para o hospital com você.
— Eu sei que sim. Mas estou dizendo que não quero que você vá, e o táxi
já chegou. Te ligo do hospital.
— Não esquece. Não esquece de ligar no segundo em que…
Mas Stan já tinha desligado.
Jamie ainda conversava com a morena, se inclinando de vez em quando
para pegar algo de um pacote na mesa dela, o qual jogava para cima e pegava
com a boca como uma foca. Sem tirar os olhos dele, Jill encheu um copo de
Evian da garrafa que sempre ficava na sua mesa e virou a água de uma vez
só.
Observar Jamie naquele momento era como olhar a foto de alguém em um
daqueles aplicativos de “distorção facial” que sua sobrinha adolescente a fez
experimentar uma vez com Stan. Lá estava ele: familiar e ao mesmo tempo
assustadoramente desvirtuado. E estava mesmo assediando aquela menina,
como fizera com Nicole, bem na frente de todo mundo? Será que ela
realmente tinha sido tão cega esse tempo todo?
Alimentada pela força da raiva, Jill empurrou a porta do escritório de
supetão, seguindo a passos largos pela mesa de uma assustada Kellie —
“Você tem uma ligação do cara da avaliação em dois minutos!” — e pegou
uma diagonal direta até Jamie.
A garota a viu antes dele, e a imagem indesejada de si mesma como um
tipo de matrona escolar determinada a defender suas alunas não a ajudou a se
acalmar em nada.
— Jamie?
Ele se virou surpreso, mas também, ligeiramente desafiador, ela pensou.
— Jill.
— Você tem um segundo?
Ela já estivera em algumas situações profissionais difíceis ao longo dos
anos, e até então sempre teve facilidade para se manter calma. O fato de que
hoje em dia era considerado aceitável que mulheres se comportassem de
maneira emotiva no ambiente de trabalho, como se o gênero por si só
permitisse isso, deixava Jill perplexa. Ela podia contar nos dedos quantas
vezes tinha erguido a voz no escritório, e certamente nunca havia se
permitido demonstrar nenhum outro sinal físico de descontrole.
Apenas algumas semanas antes ela enfiara sob o nariz de Stan um artigo
da FT sobre como chorar no trabalho era uma “reação humana aceitável, que
em geral acometia profissionais de alto desempenho”, e os dois riram da ideia
de Jill chorando abertamente numa sala de reuniões. “Você nunca foi de
chorar nem em casa”, disse ele. E embora fosse verdade que ela não havia
derramado lágrimas quando ele recebeu o diagnóstico, Jill se sentiu contente
por Stan não ter visto como ela ficou no dia que se seguiu a todos os exames.
Ele estava deitado na cama do hospital, o rosto pálido virado para a janela
enquanto o oncologista falava sobre a “equipe multidisciplinar” que faria
parte da vida dele a partir dali, e os efeitos colaterais imediatos que a
medicação e a radioterapia causariam: uma piora inicial nos sintomas, dores
nos ossos e na coluna, sangue na urina. Ela assentiu e gracejou até conseguir
dar um “pulinho no banheiro”, onde apoiou a testa nos azulejos e soltou um
soluço tão violento que a fez se tremer por inteiro.
— Tenho vários — respondeu Jamie com um sorriso tenso, e Jill ficou
satisfeita por isso, pelo menos. Se ele dissesse que não podia falar agora, na
frente da garota, Jill teria que levar isso como um desafio.
— Parece que as suas amêndoas com mel foram salvas pelo gongo. — Ele
deu um sorrisinho para a garota. — Mas acho que vou roubar umazinha só
para a viagem? — Jogando a amêndoa no ar, Jamie esticou o pescoço e a
pegou com a boca. E então fez uma reverência. — Jill, você já conheceu a
Sophia? Ela veio do escritório de Manchester em março.
Mas aquilo tudo era algum tipo de demonstração de poder com o qual Jill
sinceramente não estava com paciência de lidar. Assentindo meio impaciente
para a moça, ela fez um sinal para o escritório.
— Vamos?
Nada mais foi dito até chegarem à sala de reuniões, onde Jamie segurou a
porta para ela, em um excesso de cavalheirismo que antes Jill achava
charmoso, mas que agora suspeitava ser falsidade. Tudo aquilo fazia parte
dos fingimentos de Jamie.
— Água — arfou ele, deixando na mesa o que restava do frappé e se
servindo de um copo da Evian dela. — Esse troço me deixa morrendo de
sede.
Jill resolveu continuar de pé enquanto ele bebia. Ao terminar, se virou para
ela com sorriso confuso e perguntou:
— Qual é o seu problema, exatamente, Jill?
— Meu problema? — questionou ela, tentando disfarçar como estava
chocada com o tom de voz dele.
— É. — Ele se sentou com as pernas afastadas.
— Eu ia te perguntar a mesma coisa. Acabamos de perder um cliente
importantíssimo e recebo de você apenas um e-mail com uma palavra só.
— Não perdemos ninguém, Jill. Eles passaram uma única oferta.
— Certo. E vamos esperar para ver se eles voltam para a próxima.
— Eu posso te prometer que vão voltar.
Reclinado na cadeira, Jamie colocou as mãos na nuca, expandindo o peito.
Jill não conseguiu deixar essa atitude presunçosa para lá.
— Como? — Ela deu a volta na mesa com passos largos para encará-lo,
mas continuou de pé. — Sempre admirei sua confiança, Jamie, mas chega um
ponto em que vira simplesmente imprudência. Eu te falei que essa Lista D era
uma má ideia, e você não me ouviu. Então eu preciso saber melhor o que está
acontecendo aqui. — O som da sua mão espalmada na mesa a alarmou: ela
não era assim, não se comportava desse jeito. — Quero dizer, você nem
pensou em ir me contar que os O’Ceallaigh abriram mão da oferta mais cedo.
— Isso aconteceu só umas horas atrás.
— Eles vieram aqui na empresa?
— Não. — Uma sombra cobriu o rosto dele. — Não, teve um mal-
entendido e… Enfim, dessa vez foi culpa deles.
Foi só então que Jill enfim se sentou.
— O que foi culpa deles?
— Eles acharam que a reunião seria lá, mas estava marcado para ser
aqui…
— Espera aí. Você fez merda de novo?
— Não, Jill. Eles se confundiram. Estava escrito na agenda da intranet que
a reunião seria aqui na BWL. — Ele balançou a cabeça. — Mas não importa. A
gente fez a reunião por vídeo.
— Eu acho difícil de acreditar que isso não importe. Seja como for, eu,
assim como Paul, gostaria de saber dessas coisas assim que elas acontecem.
— Posso terminar?
— Por favor.
— Confia em mim, ninguém está mais chateado com essa situação do
Minerva do que eu. Mas a única coisa que eu posso fazer agora é tentar
encontrar algum outro comprador para…
— Exatamente. — Jill não conseguiu se segurar. — Então se concentre
nisso, não numa garota qualquer do marketing.
— Como é?
— Você sabe do que eu estou falando.
— Hum… — Ele fez um gesto teatral, levando a mão ao queixo como
quem não entendia. — Não sei, não. Sério, você está ouvindo o que está
dizendo? O nome dela é Sophia. E eu achei que você fazia muita questão de
que as pessoas novas fossem bem recebidas.
— Não estou nem aí para o nome dela.
O silêncio que se seguiu poderia ter se transformado em algo mais hostil
se uma batidinha leve no vidro atrás dela não tivesse interrompido a
conversa.
— Desculpa, Jill, mas é o seu marido de novo — a assistente articulou
com a boca do outro lado da parede de vidro.
É claro que ela havia deixado o telefone no mudo.
— Obrigada, Kellie.
Ela ficou de pé.
De repente, porém, Jamie estava ao seu lado, os olhos castanhos brilhantes
cheios de compaixão.
— O Stan está bem?
Ela assentiu, mas ele percebeu sua hesitação.
— Vai ficar com o seu marido.
Então Jamie fez algo que só tinha feito poucas vezes ao longo dos anos: a
abraçou. E, em vez de se afastar, o que poderia ter acontecido meia hora
antes, ela sentiu um pouco de sua raiva se esvair e se pegou abraçando-o de
volta. Aqueles eram tempos difíceis para os dois, tão difíceis que ela estava
questionando tudo: até ele.
A questão do Minerva tinha sido uma armação contra ele, isso era óbvio. E
por que confiar em Nicole ou Alex no lugar de uma pessoa que conhecia
muito melhor do que qualquer uma das duas, e que dirá em um e-mail
claramente enviado por alguém tão vingativo? O fato de ela ter pedido que
Tara investigasse isso agora a enchia de vergonha. Jill diria para ela esquecer
aquilo e depois ia falar com Stan.
— Eu só preciso que você confie que eu consigo lidar com essas coisas —
disse Jamie ao soltá-la. — Isso é o mais importante pra mim agora, com tudo
que você e Stan estão passando.
Jill assentiu de novo, mais decidida, e quando foi desligar o computador
viu com alívio que Tara já tinha respondido. Segundo a mensagem, ela tinha
“99% de certeza de que os e-mails foram escritos pelo remetente naquelas
datas e horas”. Ela também lamentava “se não era isso que você queria
ouvir”.
CAPÍTULO 15

JILL
5 de agosto

– V ocêPorvaisua
conseguir fazer isso?
visão de olho de peixe, a expressão questionadora de Paul
estava distorcida, o escritório de plano aberto atrás da parede de vidro
distorcido em um pesadelo panorâmico curvo.
— Não sei.
— Fiz um rascunho. De um e-mail. Para a empresa toda. O aviso deveria
seguir algo parecido, você não acha?
Da impressora, Paul tirou uma folha de papel e lhe entregou.

Para: Toda a equipe


Assunto: [Nome da empresa] sente muito pela perda de [Inserir cargo], [Inserir
nome e sobrenome do funcionário]

Prezada equipe da [Nome da empresa].

No dia [Inserir data], nossa equipe sofreu uma perda terrível. Noss[o/a] [Inserir
cargo], [Inserir nome e sobrenome do funcionário], faleceu devido [Inserir causa da
morte]. El[e/a] era uma parte essencial da nossa equipe e todos sentiremos falta de
sua positividade.

Jill levantou os olhos da impressão e a devolveu para Paul.


— O que é isso?
— Merda. Esse é o e-mail padrão.
Folheando os papéis na bandeja da impressora, ele encontrou o que estava
procurando.
— É esse aqui.
Jill ficou encarando o colega.
— Esse é o e-mail padrão para…
— Para avisos sobre falecimentos de funcionários, sim. Foi o RH que me
enviou. Porque agora que a notícia já saiu em todos os jornais… e a polícia
avisou que vai precisar falar com as pessoas e coletar outros depoimentos,
precisamos enviar isso agora.
O documento certo ainda estava nas suas mãos, mas Jill nem tentou lê-lo,
os olhos ainda em Paul.
— Então você preencheu as lacunas. Colocou a causa da morte de Jamie
— ela murmurou. — Você mencionou que ele ainda estava vivo quando o
encontraram de manhã? Foi o que falaram no jornal. Algo deve ter
amortecido a queda dele, disseram, ou ele teria morrido na hora. Mas não. Ele
sobreviveu por horas. Horas. Até ser separado daquelas vigas. Foi aí que ele
sangrou até morrer.
— Jill.
— Mas ele era “parte essencial da nossa equipe”. E vamos “sentir falta de
sua positividade”?
— Eu sei que é difícil.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Para responder a sua pergunta, não.
Não consigo fazer isso.
CAPÍTULO 16

NICOLE
Seis semanas antes

– E u não falei isso pra ele, Jen, eu juro. Só disse que você estava solteira.
— É que eu não sei se estou interessada em nada, sabe?
— Eu sei, e foi isso que eu falei. A gente pode só tomar um drinque.
— Verdade.
— Talvez dois, se ele for tão gato quanto parece no Insta. Me empresta o
rímel?
Sempre que possível Nicole preferia usar o banheiro feminino do terceiro
andar. O que estava agora era maior e com uma iluminação melhor, mas às
seis da tarde de sexta as pias ficavam lotadas de maquiagem, as cabines
cheias de garotas colocando roupas ainda mais justas… e isso a irritava.
Porque ela nunca tinha participado muito dessa coisa de paquera, não da
forma prolongada e gloriosamente casual que aquelas garotas faziam. Nossa,
ela já estava casada quando tinha a idade delas. E porque, ao se preparar para
jantar com o marido depois de um dia longo como aquele, não sentia a
mesma animação que elas. Na verdade se sentia cansada — e no fundo se
ressentia por não comerem um simples curry em frente à TV.
Mesmo assim, Nicole tinha trabalhado até tarde três vezes naquela
semana, e Ben, que só se interessava por aventuras quando envolviam
experimentar todos os restaurantes novos do oeste de Londres, tinha
reservado uma mesa naquele lugar de tapas que tinha sido aberto na Fulham
Road, recomendado por Jay Rayner. Ela não conseguiria desmarcar agora.
Fugindo do bolo de lenços de papel manchados de base ao lado da pia,
Nicole se inclinou para o espelho e começou a passar o batom. Em geral ela
achava tranquilizador o processo de contornar e pintar o que os homens
sempre lhe disseram ser seu melhor traço, mas naquele dia o contorno ficou
torto e sua cor de sempre pareceu empalidecê-la. Tirando uma folha da
papeleira, ela o removeu.
— Escuro demais — sugeriu a mulher atrás dela.
— Perdão?
— Você é tão linda. Mas seu batom… ele te apaga.
Nicole ficou tentada a dizer que usava aquela cor já fazia quase uma
década.
— Tenta esse.
O gloss rosa claro, levemente cintilante, era jovem demais para Nicole, e
ela sempre achou que pegar emprestado o batom de outra mulher era pouco
higiênico, mas agradeceu mesmo assim e sentiu um prazer estranho em
passá-lo nos lábios, imaginando a surpresa de Ben quando ela surgisse
parecendo alguém que não sua esposa.
— Então, continua.
As duas mulheres continuaram a fofocar.
— Ele perguntou casualmente pra Sophia se ela estava, tipo, saindo com
alguém. Depois ficou todo “Ah, espero que você esteja se sentindo bem
recebida aqui. A gente pode sair pra tomar uma depois do trabalho, pra se
conhecer melhor”.
— Mentira.
— Juro! Aí, escuta só, ele pega e diz: “É bom você saber que eu não aceito
não como resposta.”
— Para.
— Foi o que me disseram.
Um intervalo na conversa foi permeado por risadas femininas distantes e
pelo som de lábios com gloss sendo pressionados.
— Eu não me importaria em ir tomar uma com ele.
— Calma! Aí a Sophia foi beber com ele.
— Sério?
— Pois é. E no dia seguinte ela contou pra Sandra, que contou pra Emma,
que ele realmente não aceita ouvir não… tipo, de um jeito que deixou ela
superdesconfortável.
— Forçou a barra?
— Tipo, demais…
Um aviso, que Nicole não viu, a silenciou.
— Meninas, de quem vocês estão falando? — Nicole teve o cuidado de
manter os olhos no espelho.
Elas se entreolharam, só então percebendo que Nicole era uma executiva
sênior.
— Só estou curiosa! — Ela deu uma risadinha. E se fosse segredo de
Estado, vocês não deveriam estar fofocando no banheiro.
— Uma amiga nossa do marketing.
— Não, estou falando do cara do “bem recebida”.
— Ah. — Outro olhar conspiratório.
— Jamie?
As duas a encaravam agora, claramente chocadas pela própria indiscrição.
— Olha…
— Nossa, todo mundo sabe como ele é. E o que é dito no banheiro
feminino…
— Fica no banheiro feminino — completou a mais escandalosa, com uma
risadinha. — É. Foi o Jamie. Mas não conta pra ninguém? A Sophia é
superlegal e faz pouco tempo que veio pra cá. Ela não quer arrumar
problema. Eu nem sei se ela sai com caras casados.
— Entendi.
Fechando a nécessaire de maquiagem Nicole deu uma última olhada para
seu reflexo e parou ao abrir a porta antes de sair.
— Inclusive, na minha experiência, são os homens casados que tendem a
arrumar problema.
— Desculpa, desculpa!
Se Ben não chegasse sempre adiantado, ela não estaria sempre se sentindo
atrasada. Mas ele tinha conseguido uma mesa boa, com vista para a Fulham
Road, e ela sabia que o marido estava gostando de observar as garotas bonitas
de Chelsea com seus namorados de camisas Ralph Lauren entrando e saindo
dos pubs da área.
Pegando o copo quase vazio de gim e tônica de Ben, ela virou o restante
do drinque.
— Preciso de um desses urgente.
Ben fez um sinal pedindo mais dois para o garçom e depois ergueu o copo,
agora com uma mancha brilhante de gloss rosa.
— Quer me contar alguma coisa?
Ele não tinha gostado. É claro que não. Ela não conhecia ninguém mais
relutante a mudanças do que Ben, ainda mais quando se tratava dela.
— É só uma coisa que estou experimentando. Você odiou.
— O quê? Me dá uma chance de me acostumar. — Ele inclinou a cabeça
para trás, avaliando-a. — Você fica… Não sei, diferente. Dia difícil?
— Só… longo. Tive que levar alguns clientes novos ao antigo teatro hoje e
depois de lá fui para Kensington para outra reunião. Passei a manhã inteira
presa no trânsito e ninguém está querendo aquele lugar em Shepherd’s Bush
que peguei em março. — Tirando o casaco, ela suspirou profundamente. —
Talvez as pessoas só não estejam comprando nada agora. Enfim: chato,
chato, chato. E como foi o seu dia?
— Bom, a azeda daquela mãe solo que você odeia, a das sobrancelhas,
estava na saída da escola hoje.
— Ah, ela é insuportável.
— Estava bem conversadeira, para variar. Até falou de marcar um
encontro para as crianças.
— De jeito nenhum. — Nicole lançou um olhar ansioso para o bar nos
fundos do restaurante lotado.
— Calma, Nicole.
— Eles são lerdos demais.
— O lugar está lotado.
— Então deveriam contratar mais gente.
— Bom… — Ben desconversou com um tom de voz animado. — Chloe
disse que estava falando de nós na escola hoje. Mais de você, na verdade.
Parece que hoje eles precisavam descrever o trabalho dos pais.
— É mesmo?
— Pois é. Então ela disse: “A mamãe vende prédios, dos grandes.”
— Ela disse isso mesmo?
Sua bebida estava vindo e Nicole já se sentia mais leve. Se ao menos
pudesse fingir que não ouvira aquela conversa no banheiro…
— E que “o papai cuida de mim”.
Havia um misto de emoções no sorriso dele, e até no estado distraído em
que estava ela conseguia identificar a maioria delas: orgulho e
constrangimento; vergonha e rebeldia. As mesmas emoções que ele deveria
sentir todas as vezes em que selecionava a caixinha castradora de “cuidador
principal” em formulários. Por outro lado, embora não tivesse adquirido
aquele título voluntariamente, Ben parecia saber como sua contribuição à
família era importante e deveria odiar a ideia de que os outros pensassem
menos dele por fazer o trabalho mais importante de todos.
Nicole segurou a mão dele.
— Eu nunca menosprezo o que você faz. E a Chloe te ama demais. Vocês
dois são o melhor time que existe. Sendo sincera, às vezes eu até fico com
ciúmes.
— A gente sempre vai estar bem enquanto você estiver aqui com a gente.
Ele sorriu. Aquilo deveria fazer Nicole se sentir segura, amada, mas em
vez disso só trouxe a sensação conhecida de estar sendo sufocada aos poucos.
Ela observou o bronzeado no rosto do marido, obtido depois de tantas
tardes no parque, e o azul tranquilo de seus olhos, e sentiu uma pontada
igualmente familiar de não ser boa o bastante para ele.
— Eu nem imagino como as pessoas conseguem fazer isso sozinhas —
continuou Ben, sabendo que qualquer coisa muito melosa a deixava
desconfortável. — E aí, o que vamos pedir? — Ele voltou a atenção ao
cardápio. — O que você acha de alguns aperitivos? Rayner disse que o steak
tartare era “imperdível”. Ah, tem um menu degustação, mas você nunca
gosta muito.
— Contanto que tenha lula e aqueles croquetinhos, eu já fico feliz.
Enquanto Ben lia a lista de pratos para o garçom, Nicole não se sentia
nada feliz. Não conseguia tirar da cabeça a conversa que havia entreouvido.
Aí veio Ben comentar sobre a mãe solo da escola de Chloe, o que a fez se
lembrar de Alex. Nicole pensou na mulher com quem havia dividido as
longas horas da madrugada naquela noite: o esforço todo que ela fizera,
mudando o cabelo, os murmúrios sombrios sobre “as coisas que eu vi, as
coisas que sei”. Alex parecia tão grata por Nicole e Jill estarem lhe dando
atenção, tão animada para se conectar a elas. Era como se ela só quisesse
fazer parte de alguma coisa. Algo na obviedade daquela gratidão deixou
Nicole desconfortável de início. Mas lembrou-se de que, ao fim da noite, se
sentira não só unida àquela mulher intensa e sardenta a quem nunca tinha
dado atenção antes, mas até vagamente defensora dela. Se o que dizia era
verdade, Alex tinha sido usada como bode expiatório e agora estava vivendo
a maternidade solo, sem emprego à vista depois do fim da licença-
maternidade. Talvez estivesse tão envolvida com a filha que já não se
importasse mais; talvez já tivesse encontrado outro emprego. Ou talvez Alex
tivesse encontrado uma forma de seguir com seu plano sozinha.
Ben continuou citando a crítica de Rayner, e Nicole se lembrou da única
vez em que havia sido demitida, quando ainda era uma estudante tentando
ganhar um extra em uma lanchonetezinha pretensiosa em Bristol. O dono a
chamara no estoque um dia, citando sua “conduta” como o principal motivo
para a demissão, além do fato de que ela ficava “passando a mão no cabelo”
enquanto servia os clientes, e Nicole só havia assentido, pegado o dinheiro
devido e, antes de sair, olhado por cima do ombro para lançar um “Se
pronuncia ciabatta, Lee, não siabarta”. Quando o rosto gordo e comum do
dono surgiu em sua mente, Nicole se surpreendeu ao perceber que ainda o
odiava.
— É óbvio que o Oscar escolheu Westwick para a merda do comercial.
Não te falei que ele ia fazer isso?
— Eles responderam? — Nicole pegou outra pimenta Padrón. — Não me
surpreende. Claro que ele ia escolher alguém tão metido quanto ele. Azar o
dele. Se fosse eu, uma olhada no seu portfólio já bastaria para te contratar.
Ficou incrível depois que a gente repaginou.
Ben pestanejou.
— Não me diz que você não mandou o que a gente atualizou.
— Eu só achei que se ele realmente me quisesse para o trabalho…
— Ben.
Nicole se sentiu afundar, cansada de ser o motor sempre por trás do
marido oscilante.
— Deixa pra lá, tá? Só deixa pra lá.
Comeram em silêncio por alguns minutos, tirando camarões de palitinhos
de madeira e cuspindo as cascas na palma da mão discretamente, ambos
dolorosamente cientes de como deveriam parecer tensos e tristes comparados
aos casais que flertavam e se divertiam nos bares no entorno.
— Quem está com a Chlo?
— Susanna.
— Acha que as duas vão brincar de hospital de novo?
Será que era por isso que os casais arranjavam cachorros depois que os
filhos saíam de casa? Para ter algo com que preencher o silêncio?
— Provavelmente.
— Me desculpa. — Ela se inclinou para ele. — As coisas estão meio
confusas no trabalho e está todo mundo estressado.
— Como assim, confusas?
— Jill e Paul estão putos com Jamie depois daquele desastre do Minerva
que te contei. Os clientes desistiram.
— Mas isso não tem nada a ver com você, tem? Foi culpa do Jamie.
Nicole não gostava de ouvir o nome dele saindo da boca do marido, mas
não conseguira se conter e havia contado a Ben a situação.
— Foi, mas agora todo mundo está sendo pressionado para compensar.
Embora Jamie fosse a última pessoa de quem Nicole quisesse falar, ela se
pegou fazendo um relatório completo das burradas recentes dele — e de
como ele se safara com facilidade de todas.
— Posso dizer uma coisa? — Ben franziu a testa. — Parece que você está
passando tempo demais preocupada com Jamie Lawrence.
Nicole baixou a almôndega espetada no garfo de volta para o prato.
— Não estou, não.
— Está, sim.
— Porque só homens se safam dessas coisas. E porque toda vez que ele
não sofre nenhuma consequência — continuou, consciente de estar repetindo
as palavras de Alex —, sabe que pode levar as coisas ainda mais longe.
— Mas pelo que você me falou, não parece que ele está se safando dessa.
Nicole encarou o marido sem vê-lo. Ela sentira certo alívio depois daquela
conversa bêbada no bar, como se contar àquelas mulheres o que tinha
passado, ouvir as experiências delas e decidir que Jamie deveria ser punido
por suas ações tivessem sido o suficiente para acalmar sua raiva. Mas vê-lo
escapar das consequências da merda do Minerva só reacendera sua raiva. E
de novo ao ouvir a conversa no banheiro feminino. “É bom você saber que eu
não aceito não como resposta”, ele havia dito para a tal de Sophia. E Nicole
sabia bem demais que isso era verdade.
Depois de tirar os pratos, o garçom permaneceu por perto.
— Vocês gostariam de ver o cardápio de sobremesas?
Eles responderam ao mesmo tempo:
— Por que não?
— Não, obrigada.
O que Nicole queria naquele momento, o que precisava mais do que tudo,
era saber se era mesmo Alex quem estava por trás da história do Minerva. De
jeito nenhum ela esperaria que o fim de semana acabasse até segunda para
descobrir, estava fora de questão. Porque, se Alex de alguma forma tinha
colocado o plano em prática, não estava funcionando. E Nicole agora sabia
que precisava desesperadamente que funcionasse.
— Ben, eu tenho que ir.
Ela havia soltado aquelas palavras sem pensar, mas, assim que as ouviu,
sabia o que precisava fazer.
— Como assim?
Ela se concentrou de novo nele: Ben, que recortara a crítica do restaurante
meses atrás e se esforçara para colocá-los na lista de espera. Ben, que ficava
ainda mais sexy no verão, quando deixava a barba crescer — algo de que ela
se esquecia e voltava a perceber toda vez que a estação começava. Ben, que
sempre pedia comida demais e gostava de transformar os jantares deles em
maratonas de quatro horas.
— Eu esqueci de mandar um arquivo… e é urgente. Tenho que dar um
pulinho no escritório, mas vai ser coisa rápida.
— O quê? Por que você não faz isso daqui?
Ele indicou o iPhone que ficava sempre ao lado do prato de Nicole durante
as refeições — por mais que Ben odiasse.
— Não está no celular. O arquivo ficou na área de trabalho.
Sabendo que aquilo não fazia sentido e que parecia uma mentira porque
era mentira, Nicole passou um dos braços pela manga do casaco e pegou a
bolsa com a outra mão.
— Desculpa, Ben. Eu sou uma idiota. Mas o jantar foi ótimo. Rayner tinha
razão. — Isso não ia funcionar. — Você não queria sobremesa, queria?
— Talvez quisesse. — Ben a olhava de cara feia, como se ela tivesse
perdido a cabeça. — Você vai mesmo voltar pro escritório agora?
— Tenho que ir. Desculpa. Aqui. — Ela colocou o cartão de crédito em
cima da mesa.
— Ah, pelo amor de Deus. Eu posso pagar.
— Com o quê? — ela se perguntou, a impaciência deixando-a cruel. Mas
o táxi para o qual gesticulara com agitação já estava encostando, e ela puxou
o rosto de Ben, furioso, para um beijo. — Só preciso consertar uma coisinha.
Ou então vou ficar pirando o fim de semana todo. Chego em casa em uma
hora, no máximo.
Até encontrar o endereço de que precisava na intranet da BWL e chegar em
Acton já era quase dez. A rua de Alex era meio assustadora, com um
grupinho de rapazes de moletom na esquina claramente no meio de alguma
negociação, e Nicole teve que pedir para o taxista dar a ré quando eles
passaram direto pelo número da casa.
Ela hesitou por um segundo antes de tocar a campainha de cima sem
identificação. Mas estava lá e precisava de esclarecimentos. Ao ouvir uma
janela se abrir no segundo andar, Nicole deu dois passos para trás, se
forçando a sorrir quando viu o rosto cansado de Alex inclinando-se para fora.
CAPÍTULO 17

ALEX

T
ranquilizada pelo som do motorzinho da bomba de leite como uma
canção de ninar, Alex andou sem rumo pelos três cômodos do
apartamento, mordiscando um biscoito de chocolate. Quando os
dois saquinhos estivessem cheios, ela teria dez — todos datados com
canetinha hidrocor — alinhados na porta da geladeira, e pensar nisso a enchia
de satisfação.
Aquele período do dia, entre nove e dez da noite, quando Alex finalmente
caía na cama, sabendo que teria que levantar uma hora e meia depois, era o
único em que se sentia ela mesma. Às vezes era o único momento em que ela
conseguia aproveitar Katie também. Deitadinha no berço, puxando o ar em
respirações imperceptivelmente rasas, que nas primeiras semanas a deixavam
em pânico, a filha parecia em paz, livre da tirania dos desejos constantes e
insaciáveis.
Satisfeita de que o rosto de Katie estivesse livre de qualquer roupa de
cama — o Pais de primeira viagem exigira que “pelúcias, encostos ou
posicionadores devem ser retirados antes de dormir” —, Alex se sentou à
mesa e, ainda presa à bomba, deu um duplo clique no portal da BWL.
Desde aquela tarde com Maya, verificar os movimentos cotidianos de
Jamie havia se tornado um ritual noturno pelo qual ela ansiava.
Naquela noite, os cantos de sua boca se ergueram tão de leve que mal
chegou a formar um sorriso ao perceber o tom tenso dos e-mails de Jill para o
sócio cada vez mais negligente. “Realmente precisamos dos três sócios
presentes nas reuniões do financeiro, J. Essa já estava marcada há semanas.”
Todos aqueles meses trabalhando para Jamie ensinaram a Alex que ele não
respondia bem a broncas. E pela resposta dele — “Eu me atrasei vinte
minutos, Jill. Tenho quase certeza de que não perdi nada” —, ele estava bem
distante de arrependido quanto ela esperava.
Jill claramente pensou que tinha passado dos limites aquela noite no pub e
se arrependeu de ter falado de forma tão aberta. Ela precisava entender que
não estava exagerando, que sua reação havia sido cem por cento apropriada.
E naquele momento Jill devia estar fumegando. Paul, no entanto, parecia
quase inabalado pelo comportamento de Jamie. Tirando um e-mail levemente
crítico depois da questão Minerva, suas mensagens continuavam agradáveis
como sempre. Enquanto a bomba de leite zumbia, Alex checou o restante dos
e-mails do dia; ela saberia o que estava procurando quando encontrasse.
Relia um e-mail furioso de Maya, que encaminhara a mensagem da
Greenleaf lamentando não poder oferecer uma vaga a Christel — Quando os
pais deixam de comparecer à entrevista sem aviso prévio, precisamos aceitar
que a inscrição de seu(ua) filho(a) na Greenleaf não é prioridade —,
sentindo uma pontada de arrependimento por atrapalhar a vida da mulher cuja
gentileza naquela semana a desarmou, quando o interfone tocou.
Pronta para gritar para o entregador que ele tinha que tocar nos viciados-
em-delivery do apartamento 3, Alex envolveu os seios motorizados com um
cardigã, abriu a janela e olhou para baixo, encontrando uma mulher parada
em frente à porta.
— Nicole?
Com os olhos vidrados, um brilho de suor na testa, que refletia o holofote
de segurança do prédio, e algo cintilante nos lábios, sua ex-colega parecia ter
bebido.
— Desculpa, eu sei que está tarde.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta saiu mais ríspida do que
era sua intenção. — Espera aí.
Arrancando as faixas de velcro do peito e xingando quando o leite
escorreu pela barriga, Alex abotoou o casaco e correu para o térreo.
— Você quer entrar? — De novo, ela percebeu quão grossa parecia. Mas
ver aquela mulher inteligente e levemente distante que só conhecia em um
contexto profissional parada ali na sua porta a deixou confusa. Será que
Jamie tinha sido demitido? Não. Ela saberia se tivesse sido. Será que Nicole
tinha sido demitida, então? Será que ele tinha feito algo com ela? — Melhor
você entrar.
Foi só quando elas chegaram ao topo das escadas que Alex parou para
pensar em como o apartamento devia parecer para um estranho. Nos dois
primeiros meses, quando a agente comunitária de saúde vinha visitá-la com
alguma regularidade, ela havia tentado manter as coisas arrumadas, mas nas
últimas semanas o cesto de roupa suja tinha desaparecido sob a montanha de
lençóis para lavar e Alex já estava chutando pilhas de roupas usadas para os
cantos. Os restos de um queijo quente que havia preparado naquela manhã,
morrendo de fome depois de tirar o leite, ainda estavam em um prato no sofá,
ao lado de uma pilha de correspondência fechada e propagandas. Na mesinha,
entre os cabos embolados da bomba, as duas garrafas de leite do peito pela
metade.
— Só me deixa tirar isso da frente — murmurou ela, catando a engenhoca
humilhante e levando tudo para a cozinha. — Posso, hum, te oferecer um
chá?
— Por favor. — Nicole pegou o prato com os restos do sanduíche e a
seguiu. — Ou… algo mais forte?
— Não precisa sussurrar, Katie está derrubada.
— Ah.
No freezer, Alex achou uma garrafa velha de vodca — um presente do
penúltimo Natal de que ela havia se esquecido.
— Desculpa. — Por que continuava se desculpando? — Só tenho isso. E
não sei se vodca de canela vai ser bom, não.
— Qualquer coisa serve.
— Não tem gelo.
— Tudo bem.
— Vamos…?
Alex indicou a sala, e as duas se sentaram nos extremos do sofá,
parecendo desconfortáveis.
— É útil ter um traficante aqui na porta.
Se o nervosismo de Nicole era uma admissão de arrependimento por ter
ficado em silêncio, Alex ia deixá-la ansiosa por mais um tempinho.
— Né? — Ela deu uma olhada para a janela. — Ele deve se dar muito
bem. Está aqui toda noite vendendo sabe Deus o quê.
— Ritalina. — Nicole pigarreou. — É o que os jovens curtem hoje em dia,
parece. A “droga dos estudos”, eles chamam. Te ajuda a virar a noite
estudando, te mantém acordado.
— Não preciso de ajuda com isso no momento.
— Não mesmo. Claro, na minha época a gente fazia isso com
comprimidos de cafeína e um litro de Coca-Cola.
Alex assentiu e esperou.
— Olha, eu sei que isso é estranho e que a gente não se falou desde a
despedida da Joyce…
Ela teve a decência de parecer envergonhada. Porque aquela noite trouxera
um senso de proximidade. Não tinha sido imaginação de Alex. Elas fizeram
um plano, trocaram telefones… e nada, por quase duas semanas. Mas Nicole
parecia querer desesperadamente ser perdoada.
— A gente tinha bebido muito. — Alex deu de ombros. — E olha, não é
como se a gente…
— Bom, não. Mas eu deveria ter perguntado, ter visto como você estava.
Uma pausa.
— Então foi por isso que você veio? Para ver como eu estava?
— Não. — Nicole tomou um gole de vodca e estremeceu. — Esquisito.
Mas não é ruim. Não, eu vim porque as coisas estão… bem, estranhas no
trabalho desde aquela noite. Jamie… — Sua boca se crispou de leve ao falar
o nome dele. — Bom, ele estragou uma venda superimportante.
Alex franziu a testa, adorando a sensação de estar mais no controle que
Nicole.
— Que venda?
— Lembra daquela propriedade, Minerva? Perto de Gunnersbury? É uma
longa história, mas os irmãos O’Ceallaigh iam fazer uma oferta e ele estragou
a venda.
Sabendo que Nicole estava atenta às suas reações, Alex tomou um gole da
bebida mas a cuspiu no copo imediatamente.
— Isso é nojento. Tem gosto de talco. Esse cheiro… fica em tudo. Você já
deve ter esquecido. Bom, continua. O que houve com a propriedade?
— A Lista D, que discutimos naquela noite. De algum jeito ela entrou no
meio dos documentos da apresentação. — Ela parou de falar, com os olhos
ainda fixos em Alex. — E desde então outras coisas aconteceram. Coisas
pequenas. Ele está se confundindo com horários e datas. Aparecendo atrasado
em reuniões. E eu sei que Jamie pode ser arrogante e preguiçoso às vezes,
mas…
— Mas?
— Mas não acho que Jill queira afundar o barco, não importa o que tenha
sido dito naquela noite…
— O que nós dissemos naquela noite.
— Tá. De ele aprender uma lição.
— Ah, eu me lembro do que a gente disse. Foi você e Jill que parecem ter
esquecido totalmente. O que não é surpresa para ninguém, considerando que
as duas têm ótimos empregos que gostariam de manter.
Nicole balançou a cabeça.
— Eu não esqueci de nada. Não consegui — continuou, as palavras
jorrando. — Olha, eu não posso falar por Jill… inclusive, mal troquei duas
palavras com ela desde aquela noite, e você sabe como ela sempre foi
próxima do Jamie. Mas eu estava jantando com o meu marido e comecei a
contar como as coisas estão tensas no escritório, e Alex… — Nicole se
inclinou para ela, sua expressão indo de preocupada para curiosa. — O que
aconteceu com o Minerva e todo o resto… Foi você, não foi?
Alex secou uma gota de água na borda do copo, mas não respondeu.
— Nossa, Alex. Eu não queria… Não chora.
Até Nicole dizer aquilo, Alex nem tinha percebido que estava chorando.
Mas a sensação era boa. Porque ela não havia chorado desde o nascimento de
Katie, e aquelas foram lágrimas de esforço, não de tristeza ou sequer de dor,
por causa da anestesia. E quando abriu a porta do apartamento no dia
seguinte, o peso da bebê e da cadeirinha fisgando no seu útero recém-
implodido, enquanto as palavras de um artigo sensacionalista do Daily Mail
— “Carregar recém-nascidos em assentos de carro coloca novas mães em
risco de prolapso” — zumbiam em seus ouvidos, tudo o que ela queria fazer
era se enrolar na cama e chorar. Ela não tinha ninguém mais para ampará-la,
tinha? E a pessoa que ela mais queria estava a quilômetros de distância, em
Portugal, ainda pedindo permissão ao marido para visitá-la. Não houve tempo
para chorar, porém, porque os lençóis ainda estavam manchados de um rosa
marmorizado de quando sua bolsa tinha estourado, e ao puxá-los,
descobrindo que o colchão também estava encharcado, o desejo de chorar de
Alex foi substituído pela raiva. Nada disso… nada disso poderia ser desfeito.
Das profundezas da bolsa, Nicole tirou um lenço e o entregou a ela.
— Eu mexi em alguns documentos, troquei algumas datas e horários. O
Minerva… foi tão fácil. Jamie nunca repassa os arquivos das apresentações.
Eu sempre colocava tudo na mesa dele, pedindo para que ele desse uma
última olhada, mas… — Ele sempre se safava sem trabalhar, sem se
responsabilizar. — Então achei que, se talvez Jill e Paul vissem como ele é
arrogante, como faz as próprias regras quando e como quer, que aí…
— Aí o quê? — Nicole insistiu, sem parecer surpresa ou irritada. — Que
aí ele seria demitido? Nós te contamos sobre a Lista D em segredo. Não era
para você usar.
Um grito agudo como uma sirene atravessou o apartamento.
— Merda. — Alex baixou o copo, limpando o nariz na manga do casaco.
— Ela acordou.
— Xiu… — Nicole ergueu o indicador. — Espera.
As duas ficaram em silêncio por um minuto. Silêncio.
— Se você sempre sair correndo, ela nunca vai aprender a se acalmar
sozinha.
Alex abriu um meio sorriso choroso.
— Não imaginava que você seria uma mãezona tão centrada.
— Por que todo mundo diz isso? Talvez eu não seja, mas meu Deus, amo
minha filha mais do que consigo aguentar na maior parte do tempo. Só que
meu marido… — Ela deu de ombros. — Ele é mais participativo do que eu.
É melhor nisso do que eu. E tudo isso, tudo que você está passando, parece
que aconteceu faz tanto tempo. É incrível como você esquece rápido. Mas de
algumas coisas você acaba lembrando. — Com alguns drinques, Nicole já
parecia mais calorosa. — Me escuta — continuou, baixinho. — Não vou
fingir que não fiquei feliz de ver Jamie se ferrar. E depois do que ele te fez,
eu entendo por que você quer que ele saiba qual a sensação de ser culpado
por algo que não fez. Mas como você conseguiu? Você não… hackeou o
sistema, né?
Alex encarou Nicole, mas permaneceu quieta.
— Mas isso não é crime?
— Talvez — admitiu Alex. Aquilo era algo que ela deliberadamente
evitava pensar. — Ele mudou a senha da intranet, mas não foi difícil
adivinhar a nova. E eu só fiz isso porque ele mentiu. Ele mentiu sobre tudo.
Eu não fui desligada, fui demitida por “erro grave”. E como diabos vou
encontrar outro emprego agora? Como é que vou pagar…
Ela pensou no tremor na voz da mãe quando ligou mais cedo para avisar
que “talvez eu precise de um pouco mais de tempo — naquele empréstimo”.
O sussurro confirmou quão importante era que o pai dela nunca descobrisse
sobre o empréstimo, e como só a possibilidade de ele descobrir sobre aquele
acordo entre as duas poderia causar o tipo de cena que Alex forçara a própria
memória a bloquear, sabendo que nunca seria capaz de fazer isso enquanto a
mãe e o pai morassem sob o mesmo teto.
— Sinto muito. — Nicole apertou os lábios. — Mas isso quer dizer que
você acessou os e-mails dele também?
Alex decidiu ir com cuidado.
— Só uma vez.
— Recentemente?
— Dei uma olhada ontem à noite.
Algo indecifrável surgiu no rosto de Nicole, que abriu a boca como se para
fazer uma pergunta antes de voltar a fechá-la.
— Eu sei que não deveria ter entrado, e juro que não vou entrar de novo.
Só queria ver se o Minerva tinha…
— Saído de acordo com o plano? Bom, sim. Mas você não pode voltar a
fazer isso. É sério. Se não por todo o resto, porque você vai ser pega.
— Não vou. Mas é tão… difícil. — A palavra saiu devagar, propositada e
cheia de ódio. — Eu olho para ele e para a família perfeita dele e penso em
como a vida deles é fácil.
Se elas não estivessem tão próximas, talvez Alex não teria notado Nicole
se encolher.
— Você conhece a Maya?
Nicole balançou a cabeça.
— Só a vi uma vez, de longe, no aniversário da empresa, sabe? E ela
parecia… não sei. A gente não conversou. E você?
— Não. — Um especialista em linguagem corporal saberia que o aceno de
cabeça veio um milissegundo tarde demais. — A gente se falava pelo
telefone às vezes — continuou Alex, omitindo o fato de que haviam
conversado na tarde anterior… para marcar outra tarde preguiçosa na casa de
Maya e Jamie. — Na verdade, ela parece…
— Legal?
— É. Bem legal, mesmo.
Seria por isso que Alex tinha concordado em sair com Maya de novo?
Seria tão simples assim? Ou seria algo mais maléfico: mantenha seus
inimigos perto? Até a próxima vez, ela não teria certeza.
— Quer dizer, eu sei que eles estão longe de ser o casal perfeito. Como ele
se comportou com você… e você não deve ter sido a única.
Nicole desviou o olhar.
— Não.
— Mas eles fingem bem.
Pegando o iPhone, Alex cutucou a tela até uma imagem de Jamie e Maya
aparecer.
— Olha só para eles. Olha só a vida perfeita de catálogo escandinavo.
Queria fazer Nicole rir, ou pelo menos sorrir, tentando aliviar o peso
daquela conversa, mas ao erguer os olhos percebeu que Nicole não parecia
achar graça. Ela parecia nauseada.
— Por que é que você está vendo isso?
— É o Instagram do Jamie. E não é fechado. Olha, dá uma olhada nesse
post do fim de semana passado.
— Não. — Nicole afastou o celular. — Não quero ver isso. Essas coisas
todas, a vida dele, não é da nossa conta. E eu não tenho nada contra a Maya.
Ela não tem culpa do que o marido apronta.
— O marido apronta e muito, pode acreditar.
— Como assim?
— Que até quando está de castigo por fazer várias besteiras, e essas são só
as que a BWL descobriu, até quando deveria manter a cabeça baixa e trabalhar,
Jamie encontra tempo para ficar dando em cima das lindas funcionárias
novas.
Nicole parecia estar prendendo a respiração, e Alex percebeu a própria
insensibilidade.
— Desculpa. O que ele fez com você…
— Esquece isso. De quem você está falando?
— Tem uma garota nova no escritório, Sophia alguma coisa? Ele está
trocando e-mails com ela. Acho que até foram beber juntos, e parece que…
Mas sua convidada se levantou de repente.
— Merda, já é mais de meia-noite. Olha, desculpa por aparecer aqui tão
tarde. Eu tenho que ir, de verdade. Falei para o meu marido que ia direto para
casa. — Nicole olhava de um lado para o outro com aflição. — Cadê meu
casaco?
— Na cozinha.
Mas quando ela não se mexeu, Alex adivinhou que havia mais. Algo que
Nicole nunca havia dito em voz alta. E ela tinha quase certeza do que se
tratava.
— Não foi só assédio, foi?
Um segundo se passou. Nicole voltou a se sentar no sofá.
— Vou precisar de mais uma dose.
CAPÍTULO 18

JILL

O relatório de vendas trimestral sempre era feito para ser uma leitura
factual, mas Jill gostava — aquilo a tranquilizava —, e conforme passava
o indicador lentamente pela lista de vendas potenciais e anteriores, de vez em
quando fazendo uma anotação na margem com a caneta Cartier na qual Stan
mandou gravar a data do casamento deles para as bodas de rubi, ela se sentia
calma como não se sentia havia semanas.
Foi só quando chegou nas vendas de Jamie que Jill estreitou os olhos para
o papel. Os custos dele sempre foram elevados, os números muitas vezes não
batendo com exatidão. Mas não era a discrepância comum que chamara a sua
atenção, e sim o quanto os números do trimestre dele estavam altos.
Jill tinha imaginado que as vendas dele cairiam consideravelmente, devido
à confusão com o Minerva, mas alguma venda tinha sido fechada naquele
período, não mencionada a ela por Jamie, que aumentava os números a um
nível normal.
Por que Jamie não tinha imediatamente se gabado da venda do pub no
começo da Westbourne Grove, Jill não conseguia imaginar. Ela nunca foi
muito fã de Adrian Spiro, o incorporador de imóveis grego que queria
transformar a propriedade em um hotel-butique, mas não era isso que a
incomodava. Então Jill se lembrou: Spiro tinha desistido, de início, em cima
da hora. Alguma coisa a ver com o planejamento ou a designação histórica.
Ela mandou um e-mail de uma linha só para Jamie: Como você conseguiu
fazer Spiro mudar de ideia?
A resposta dele foi imediata: Daquele meu jeitinho, com dois emojis de
braço flexionado. Embora Jill soubesse que isso significaria dias de Jamie
agindo de forma insuportavelmente presunçosa, ela não podia ser grosseira, e
começou a digitar um “Parabéns” quando outro e-mail pulou na sua caixa de
entrada.
Raxugdy@sharklaser.com.
Com cautela, ela abriu: era outra troca de e-mails. Dessa vez — como se
alguém estivesse olhando por cima do seu ombro — entre Jamie… e Spiro.
O inglês do bilionário grego não era dos melhores, e de qualquer forma os
dois pareciam estar falando em algum tipo de código que Jill levou alguns
segundos para decifrar. A “escadaria de carvalho esculpido” tinha sido o
problema, ela se lembrou, depois de ter encontrado o arquivo original no
sistema. Aquela escadaria se tornou o pesadelo de qualquer incorporador no
instante em que um possível aviso de preservação do edifício fora
mencionado.
PSC: o conselho só vai emitir esse aviso daqui a dez dias, Jamie comentou
em um e-mail respondendo à mensagem em que Spiro recuava do negócio. E
eu sei que você estava planejando começar os trabalhos no início da semana
que vem. Me liga quando receber isso?
O e-mail seguinte não fazia referência a nenhuma ligação e era uma
simples confirmação de que Spiro tinha mudado de ideia e estava preparado
para finalizar o negócio “assim que possível”. Que reviravolta.
Jill deu uma olhada na data do e-mail, depois ligou para Paul.
— Estou indo encontrar com meu advogado, Jill. A Olivia está aprontando
de novo. Você acredita que agora ela está pedindo o chalé de Devon
também? Isso sem falar nas taxas de manutenção extorsivas que está exigindo
e na custódia do Barnaby.
— Perdão… Barnaby?
— Nosso cachorro whippet.
— Entendi. — Jill definitivamente não estava com tempo para uma das
reclamações de divórcio de Paul no momento. — É rapidinho: o lugar na
Westbourne Grove que Spiro comprou. Eu nem sabia que a venda tinha sido
finalizada… e tão rápido. Você sabe quando eles começaram a trabalhar lá?
— No início da semana, acho. — Ele pareceu tenso. — Imagino que o
Telegraph tenha entrado em contato?
— O quê? Não. Por quê?
— Eu ia te ligar para ver se você já estava sabendo.
— Sabendo do quê?
— Da escadaria, aquela porcaria shakespeariana…
— Jacobina.
— É, isso. Bom, enfim, o troço todo caiu ontem à noite. Parece que a
estrutura não estava tão sólida quanto se esperava, e depois que eles
começaram a trabalhar…
Mas quando Paul disse as palavras “os conservacionistas estão pirando”,
ela parou de escutar.
— Paul. — Ela passou a ponta do dedo pelas três palavras no topo do
papel timbrado da BWL, três palavras sobre as quais ela e Stan demoraram
tanto a se decidir, décadas antes: HISTÓRIA. HERANÇA. PRESERVADAS. — Quando
você e seu advogado acabarem, precisamos conversar. Porque vamos precisar
de uma revisão interna sobre isso… e sobre Jamie.
Então ela encontrou o e-mail original de Raxugdy@sharklaser.com, com o
assunto “Com amigos assim?”. Logo antes de encaminhá-lo com três cliques
rápidos, ela acrescentou uma única frase ao início da mensagem: Com amigos
assim, Jamie?
CAPÍTULO 19

NICOLE

– S ó pode ser sacanagem.


Ela estava em pé de costas para a parede, tentando encontrar o
melhor ângulo para capturar no celular as pilastras ornamentais em torno do
palco quando as luzes se apagaram. O pessoal se irritou quando ela levou
Rupert Jones para uma segunda visita ao teatro, mas o responsável tinha
conseguido colocá-los para dentro de novo, e, embora Nicole pudesse jurar
que se lembrava do local onde o homem encontrou os fusíveis, tentar navegar
por aquela escuridão apalpando o nada seria um desafio.
Era início da tarde, mas só uma pequena faixa de luz natural entrava pelas
janelas laterais da entrada principal, o auditório abobadado uma massa de
recantos sombreados. O fato de que aquele lugar estivesse tão silencioso, com
nada além de uma sirene ou buzina abafada vinda da Kilburn Lane
atravessando as paredes carmim, era tudo menos tranquilizador. Nicole
queria ter trazido alguém com ela para responder aos detalhes que Rupert
ainda desejava saber. A mente dela foi das saídas de incêndio antiquíssimas,
que davam para os fundos do terreno, para os homens sem-teto que tinha
visto deitados nos sacos de dormir sujos de mijo na estação. Se eles ainda não
tinham encontrado a casa dos sonhos mais espetacular do nordeste de
Londres, era com certeza uma questão de tempo.
Usando o celular para iluminar, Nicole foi tateando pelo corredor central e
passou pelas fileiras de réplicas horrorosas de cadeiras Ambassador que
deviam ter sido instaladas nos anos 1970 ou início dos 1980. À esquerda do
palco, camuflada pelas molduras neoclássicas, estava a porta estreita de que
ela se lembrava, mas e a maçaneta? Passando a mão espalmada de cima a
baixo, Nicole não encontrou nada.
— Merda.
Estremecendo quando uma farpa deslizou sob a pele, ela ergueu o iPhone
para inspecionar o dano. Lá estava: um pequeno traço preto logo dentro da
curva da sua linha da vida. Teria espremido a farpa bem ali, à meia-luz, se
algo mais, refletido na tela do celular, não tivesse atraído sua atenção. Um
movimento atrás de sua orelha esquerda; depois o branco úmido de um olho.
Antes que ela pudesse se virar, Jamie a agarrou pelo braço, girando-a em
sua direção.
— Que merda é essa que você está tentando fazer, mandando aquele e-
mail para Jill? Você achou que eu não ia descobrir? Que eu não saberia que
foi você?
— Jamie, cacete! Que susto! — Agitando o braço, ela tentou se soltar. —
Qual o seu problema?
Claramente havia algo de errado com ele. A boca estava ressecada, o
hálito azedo. Ele a encarou, puxando uma pelinha do lábio inferior com os
dentes.
— Qual você acha que é o problema, Nic?
— Não tenho a menor ideia. Dá para me soltar?
Ele ainda apertava seu braço com força — o suficiente para que ela não
conseguisse se soltar sem cair. Dando dois passos deselegantes para trás, eles
se desequilibraram, colidindo com os assentos da fileira da frente.
— Ai!
— Você acha que vai me foder com esses joguinhos? — rosnou Jamie,
fazendo-a recuar tanto em uma das poltronas Ambassador que ela precisou se
segurar no apoio de braço para não cair. — Você acha que vai fazer meus
sócios ficarem contra mim mandando uma merda qualquer que teoricamente
eu escrevi?
— Eu não tenho ideia do que você está falando. — Nicole odiava o tremor
na sua voz. — Me solta.
— Mas não é isso que você quer de verdade, é?
Jamie estava tão próximo que, ao rir baixinho no rosto dela, Nicole sentiu
algo quente, meio fermentado como pão e cerveja, por baixo do cheiro de
álcool. De repente, sua saia foi erguida e a calcinha empurrada para o lado em
uma série de gestos decididos e quase mecânicos.
— Jamie, eu não estou brincando, me deixa…
Mas a mão dele tinha subido para o pescoço dela, apertando sua traqueia, e
a última palavra saiu menos que um sussurro, quase um gorgolejar.
A risada de Jamie então foi estridente, ecoando pelo auditório escuro.
— O que foi? Não te ouvi.
E, incapaz de se conter por mais tempo, ela começou a rir também,
selvagem e rouca, apertando a boca na dele e deleitando-se, como sempre,
àquele momento de submissão.
Adiar aquele momento aumentava o prazer de Nicole. Isso ela entendeu
logo no início do caso deles. Mas foi apenas no final do relacionamento de 18
meses que ela entendeu o porquê: ceder depressa demais não apenas
banalizava o que eles estavam fazendo, mas tornava aquilo muito parecido
com o que ela e Ben faziam duas vezes por semana — uma delas sempre aos
domingos de manhã, antes que Chloe acordasse. E havia algo mais. Quanto
mais perigosos eles se tornavam, mais seus sentimentos por Jamie se
aprofundavam: profundos o suficiente para serem amor — mas um tipo de
amor selvagem que ela nunca sentiu pelo marido. O tipo que, com o tempo,
deixou de satisfazê-la e só a deixava ansiosa pela próxima vez antes mesmo
de sair do lado de Jamie.
Quando ela reuniu coragem para expressar esse pensamento, cinco meses
antes, Jamie admitiu que sentia o mesmo, prometendo deixar a esposa e
“fazer aquilo funcionar, não importavam as consequências”. E talvez fosse
culpa de Nicole por acreditar nele. Mas quando ele voltou atrás nessa
promessa, ela ficou amarga, destruída e condenada a aguentar dia após dia
reuniões em salas de conferências com um homem que agora odiava.
Era por isso que todo mundo alertava contra casos de escritório, não era?
Não por causa dos riscos que ela e Jamie tinham corrido quando estavam
juntos — se pegando nos elevadores da BWL e o sexo frenético e raivoso que
faziam em salas de reuniões escuras e, uma vez, a trepada no chão do
vestiário da academia do escritório —, mas porque a vida profissional se
tornava impossível depois que o caso acabava.
O fato de aquilo ter sido tão diferente dos casinhos passageiros de
escritório, ou de qualquer relacionamento que Nicole já teve, só tornava tudo
mais difícil de esquecer. Incapaz de evitar pensar nas sessões selvagens dos
dois sempre que estava na mesma sala que Jamie, ela se sentiu traída pelo
próprio corpo e pelo mesmo desejo que continuava sentindo nos últimos
meses por ele.

— Eu estava falando sério naquela noite em Frankfurt.


Jamie estava apoiado em um dos cotovelos, e ela se lembrou de que ele
sempre falava demais logo depois, quando ela gostava de ficar quieta e
parada, aproveitando os tremores que atravessavam seu corpo depois do
clímax.
— A noite em que você prometeu que largaria a Maya? — Ela virou o
rosto para o outro lado, não querendo que Jamie visse a mágoa nos seus
olhos. — Ah, claro que não estava.
Ao se concentrar nos números nos encostos das cadeiras — 8A, 8B —,
Nicole se pegou pensando em quem se sentara ali ao longo dos anos. Será
que aquelas pessoas conseguiram tudo que queriam na vida ou tiveram que
viver como dava?
— Porque olha só pra você — continuou ela —, ainda com a linda sra.
Lawrence, ocupado compartilhando sua prole feliz com estranhos nas mídias
sociais. Então é impossível, Jamie. É impossível que você estivesse falando
sério.
Alguns meses atrás, Nicole talvez tivesse dificuldade de manter a voz tão
calma. Todas aquelas promessas e planos feitos enquanto eles assaltavam o
frigobar no quarto gelado demais do Hilton: ela levava aquilo a sério. E
talvez ele não tivesse percebido sua seriedade? Talvez ele a considerasse o
tipo de mulher que tinha casos, como todo mundo na BWL parecia pensar
depois daquele primeiro caso idiota que todo mundo soube no escritório.
Mas, para Nicole, esses planos eram a promessa de uma nova vida. E quando
ela e Jamie fizeram a apresentação para o Zech Group na manhã seguinte,
Nicole não entrelaçou a perna na de Jamie embaixo da mesa de conferência
como normalmente faria, sabendo que em questão de semanas, dias, horas,
eles não precisariam mais desses momentos roubados.
Sim, o percurso até lá seria doloroso, mas Chloe era jovem demais para
entender completamente ou se lembrar de uma separação, e se ela e Ben
lidassem bem com tudo (o que aconteceria, porque seu marido era um
homem decente), poderiam acabar sendo um daqueles casais divorciados que
permanecem próximos, e até compartilhariam uma ou outra reclamação sobre
seus respectivos novos cônjuges enquanto tomavam café.
Ter passado do planejamento daquela nova vida e ter conversado com um
advogado de divórcio que encontrou na internet para tudo estar acabado em
uma única frase abafada — “Agora não é a hora” — deixou Nicole tão sem
chão que ela nem tentou esconder. Na terça-feira antes do Natal, ela foi direto
para a cama, reclamando de uma infecção alimentar, e por uma semana ficou
deitada ali usando a mesma camiseta desbotada. Então, uma manhã, Chloe
trouxe seu livro Ant and Bee and the Doctor, inventando as palavras que
ainda não sabia ler em um esforço para animar a mãe. Depois que as lágrimas
finalmente pararam de cair pelo rosto de Nicole, ela conseguiu dizer: “Você
pode chamar o papai?”
Quando Ben se sentou em silêncio na beira da cama, esperando que ela
falasse primeiro, Nicole estava convencida de que ele sabia. Ela iria confessar
tudo, até sobre seu plano de se separar e começar uma nova vida com Jamie.
Antes que fizesse isso, porém, seu marido começou a contar o telefonema
que tivera mais cedo com um amigo de um amigo: um terapeuta que achava
que Nicole poderia estar sofrendo de depressão — “muito possivelmente algo
hormonal”. Então ele se adiantou e marcou uma consulta para ela.
A risada de Nicole surpreendeu a ambos.
— Ben, se você acha que estou com algum tipo de fossa pré-menopausa
— respondeu ela com a voz rouca depois de secar os olhos —, está tão longe
da verdade que não tem nem graça. Eu tenho 41 anos, não 51.
Ouvindo a risada, Chloe voltou ao quarto e, com a voz baixinha,
perguntou:
— O papai disse que você não é você mesma. Quem é você então,
mamãe?
O que a fez ter que enxugar os olhos de novo.
— Sou eu mesma, joaninha. Estou aqui. E não vou a lugar nenhum,
prometo.
Isso e a distração do Natal a ancoraram de volta à sua vida. Dessa vez,
Nicole decidiu, ela não só faria de qualquer jeito, mas seria a melhor mãe e
esposa que pudesse ser. Exceto pelo relógio TAG que guardara como
lembrança debaixo de uma pilha de calças jeans na última gaveta, esquecido
por Jamie na mesa de cabeceira de um hotel meses antes, ela tinha
conseguido erradicá-lo de sua vida.
— Então, todos esses meses… você estava me odiando? — Jamie estava
ajeitando o cabelo dela, uma mecha escura de cada vez, tirando-o do seu
rosto. — Eu não te culparia.
— Ainda bem. E sim, estava.
Era óbvio que ele achava isso mais elogioso do que triste, o que a irritou.
— Você parou de me responder. Me ignorou total.
— Você falou que estava tudo acabado! O que esperava? — Quando ele
não respondeu, ela continuou: — Você achou mesmo que eu ficaria satisfeita
em continuar tudo como antes? — Lembrando as mil e uma razões pelas
quais ela jurara nunca mais ceder a ele, Nicole se sentou e começou a
procurar o celular embaixo dos assentos. — Bom, não. Desculpe. Não. —
Como tinha acabado naquela situação de novo? — Tenho que ir.
— Nic, espera. — Ele se ergueu para ficar na mesma altura que ela. — Eu
preciso que você acredite que estava falando sério, naquela noite. Cada
palavra. Eu já tinha planejado tudo na minha cabeça. Os lugares aonde a
gente iria nas férias. Onde a gente moraria e se as meninas se dariam bem
quando ficassem mais velhas.
Nicole balançou a cabeça.
— Durante toda a gravidez da Maya, eu só pensava que nós não
poderíamos fazer nada até ela ter o bebê. Mas aí Elsa nasceu… e não sei se
foi porque era menina ou porque ela era tão pequena, sabe?
— Duas semanas prematura, eu sei.
Meu Deus, como ela odiava saber essas coisas. A data prevista do parto de
Maya, o queijo feta que a esposa de Jamie tanto desejava no último trimestre,
o ciúme de Christel que a fez beliscar a coxa da irmãzinha com força
suficiente para fazê-la uivar assim que ela foi trazida do hospital. Saber
dessas coisas fazia Nicole se sentir como se estivesse do lado de fora de uma
janela espiando a vida deles. Uma vida que não poderia ser tão invejável
assim, já que Jamie estava ali com ela. E mesmo que “E agora?” fosse uma
pergunta óbvia depois de tantos meses separados, Nicole odiava aquele apelo
feminino implícito depois do sexo, e não tinha certeza de que conseguiria
suportar a humilhação de perguntar aquilo.
Ben tinha sido o único homem que ela conheceu que fez essa pergunta —
literalmente — depois da primeira vez em que transaram. E embora Nicole
soubesse bem antes de se casar que o que eles tinham nunca seria o suficiente
para saciá-la, ele era seu melhor amigo. Então, quando ele a levou para jantar
naquele restaurante flutuante horrível em Bristol, no dia seguinte às provas
finais, ela olhou pelas escotilhas para as águas verde-oliva do rio Severn,
esperando que ele mostrasse o anel que ela achou escondido na gaveta da
mesa semanas antes.
A noite em que Nicole encontrou o anel foi a primeira vez em que traiu
Ben, e ela realmente acreditou que seria a última. Não tinha nenhuma
lembrança do rosto do homem, mas se lembrava dos tetos abobadados
úmidos daquela boate em algum porão do centro de Bristol e das batidas na
porta do banheiro feminino quando terminaram. Ela também se lembrava do
alívio, da sensação de encerramento quando tudo acabou, como se agora
aquela curiosa parte retorcida de si mesma que ansiava por ser dominada e
subjugada poderia ser aposentada com pouca ou nenhuma resistência. Ben ia
pedir sua mão em casamento e ela ia dizer sim. Tudo seria mais simples de
agora em diante — sincero e verdadeiro. E assim foi, até Ian. Aquele
estúpido e nada importante Ian, a “droga de entrada” que a deixou com um
buraco em forma de caso extraconjugal em sua vida — e a levou para drogas
mais pesadas.
— Eu nunca tive a intenção de te magoar — continuou Jamie. — É só que
Elsa nasceu e… eu ficava me perguntando quem protegeria ela e Christel se o
pai delas não estivesse por perto.
Abrandando um pouco ao se lembrar de ter os mesmos pensamentos sobre
Chloe quando a ideia de se separar de Ben começou a parecer real, Nicole
assentiu.
— E eu sabia que Maya encontraria outra pessoa assim — ele estalou os
dedos —, num piscar de olhos.
— O.k., já entendi que a sua esposa é um partidão, Jamie. — Nicole
começou a procurar os sapatos e a fechar a blusa.
— Não é… era só a ideia de outro cara cuidando das minhas filhas quando
deveria ser eu, sabe, porque meu pai estava sempre trabalhando…
— E olha o merda que você se tornou.
— Exatamente.
Pausando, ela tocou a bochecha dele com o indicador.
— Você não é um merda.
E, por um momento, os dois pararam de abotoar e fechar zíperes e só se
encararam.
— Eu te deixei mal, né?
Ela não daria a ele a satisfação de saber o quanto.
— Vem. — Ela estendeu a mão e puxou o amado para ficar em pé. — Eu
preciso mesmo voltar para o escritório. Mas quero te mostrar uma coisa
antes. — Era por isso que ela não tinha contado do telhado para Rupert no
outro dia? — Não dá para ver daqui, e nas plantas parece parte do telhado. É
loucura, você não vai acreditar.
Tateando pela passagem escondida atrás do palco, os dois subiram escadas
de madeira estreitas e mofadas até chegarem ao alto. Ali, entre uma confusão
de fios elétricos, havia uma escada de corda que levava a um alçapão no
telhado.
— Aonde você está me levando?
— Confia em mim — ela respondeu olhando para trás, subindo à frente
dele com cuidado. — Vai valer a pena. Preste atenção onde pisa.
— Estou ocupado prestando atenção em outra coisa agora.
De sua arriscada posição atrás dela na escada, Jamie abriu um sorriso
safado, e Nicole sentiu uma pontada da antiga animação ao empurrar o
alçapão, se erguendo o mais delicadamente possível até a estrutura abobadada
no telhado do prédio: um tipo de cúpula, do tamanho exato para duas pessoas
sentadas.
— Você está bem?
Jamie a seguiu, de boca aberta com a vista que os recebeu.
Da posição deles naquela redoma de vidro no telhado, tinham uma vista de
360 graus do noroeste de Londres, com a faixa verde do Queen’s Park à
frente e as curvas do Kensal Green Cemetery à esquerda. Tão bem planejada
quanto uma cidade desenhada por uma criança, Londres se estendia até os
céus primaveris cor de caneta Bic pontilhados por uma ou outra nuvem.
— Não é incrível? — Jamie só conseguia balançar a cabeça em descrença
enquanto Nicole falava. — E ainda melhora.
Esticando-se para uma escotilha na base da cúpula, Nicole abriu um painel
de vidro curvado, gesticulando para que Jamie a seguisse até o telhado plano
de ardósia.
— Vem.
Por um momento eles ficaram sentados ali — joelhos junto ao peito —,
perdidos em pensamentos em uma Londres silenciosa que, daquela posição
secreta e sagrada, parecia ser só deles.
— O que é isso? Onde estamos? — balbuciou Jamie entre risos.
— Te falei que valia a pena — disse Nicole, vendo o sorriso dele aumentar
quando passou a explicar os detalhes mecânicos da estrutura.
— Sua nerd — sussurrou Jamie, segurando sua mão. — Você ama essas
coisas.
— E você não? — Ela se virou para ele. — Não é isso que nos diferencia
daqueles corretores sem coração que não se importam nem um pouco com o
que vendem ou se vai permanecer de pé um ano depois?
— Claro.
Sem querer pensar demais nas motivações profissionais dele, Nicole se
voltou para a vista.
— Tudo parece tão pequeno, tão desimportante daqui. — Ela apertou os
dedos dele.
— Talvez seja.
Jamie se inclinou para beijar seu pescoço, mas a respostinha pronta fez
com que Nicole voltasse para o planeta Terra com um solavanco.
Ele achava que poderia jogar essas cantadas para ela como fez com a nova
garota, a tal da Sophia? Depois do que fez com ela no final do ano passado,
Nicole não o deixaria pensar que poderia tê-la nas condições que quisesse.
Por mais frágil que estivesse hoje, aquele não era mais o caso. Exausta das
constantes idas e vindas de Jamie, Nicole desviou o rosto com firmeza.
— Não. — Até ela achou que sua voz não era convincente. — Não
podemos voltar para como as coisas eram. E o jeito que você falou comigo
antes? Me acusando? O que foi aquilo?
— Eu sei. Nossa, sinto muito. Não sei no que estava pensando.
— Você nem explicou o que eu teoricamente fiz: mandei um e-mail?
Jamie gemeu.
— Esquece que eu falei isso. Eu sei que não foi você.
— Então me conta.
Com hesitação, ele contou sobre o e-mail que Jill encaminhara para ele, e
a revisão interna que ela pediu depois de o Telegraph transformar o
“escândalo Spiro” em destaque de página inteira.
— Isso pode ser sério. Mas eu juro que nunca escrevi as palavras naquele
e-mail, Nic. Eu tinha preocupações sobre Jill? Com certeza, ainda tenho.
Porque ela não está totalmente aqui agora. Não desde que Stan ficou doente.
— O marido dela está com câncer. O quanto você estaria concentrado se
Maya tivesse câncer?
— Olha. — Jamie respirou fundo. — Conheço Jill e Stan faz anos. Foram
eles que me trouxeram para a empresa, lembra? E não… não fale de Maya.
Ela ficou irritada.
— Ah, nossa. Desculpa.
— Mas eu não seria burro a ponto de escrever aquele tipo de coisa num e-
mail. Mas não importa. Eu realmente acho que Jill deveria tirar mais do que,
hum… uma licença temporária. Ela já está na idade de se aposentar.
Nicole fez uma careta.
— Meu pai trabalhou até os 72 anos. Não lembro de ninguém questionar
isso.
Jamie tentou passar a mão na cintura dela.
— Então… isso é tipo uma coisa feminista?
A mais básica das sugestões sobre igualdade entre gêneros tinha a
tendência de causar reviradas de olho em Jamie; era uma piada interna dos
dois quando estavam juntos. Só que naquele momento o humor de Nicole
parecia tão precário quanto sua posição naquele telhado, a trinta metros de
altura, e ela não conseguiu se forçar a rir.
— Vamos, eu tenho que ir.
— Por que você se importa tanto com isso? Você nem conhece a Jill.
— Eu tenho mesmo que ir embora. — Nicole foi engatinhando até o
alçapão. — Mas acho que eu me importo com Jill porque já trabalhei com ela
o suficiente para saber que ela é muito boa no que faz. E você, de todas as
pessoas, estar falando dela pelas costas desse jeito, só parece… Mas, sei lá,
acho que lealdade não deve ser seu ponto forte.
Eles desceram a escada de corda em um clima bem diferente, e
atravessaram o auditório lado a lado, mas em silêncio, até a porta. Do lado de
fora, em meio à ebulição raivosa da hora do rush, Jamie se virou para ela.
— Eu não escrevi aquele e-mail.
— Acredito em você. — Nicole suspirou, aliviada ao perceber que o que
dizia era sincero. — Acho que só imaginei que você pudesse ser um
mentiroso além de um traidor.
— Tá — respondeu Jamie sem emoção, já exausto daquele julgamento. —
E talvez eu mereça ouvir isso de você. Mas se não foi você, Nic, quem foi?
— Não tenho ideia — disse ela, já de costas, com um aceno fraco, ao
começar a descer a Kilburn Lane.
Nicole não ia contar a ele que aquilo era a cara de Alex, muito menos que
papel havia desempenhado em incentivar a ex-assistente dele a continuar com
“o plano”. Tudo o que Nicole dissera naquela noite no pub era verdade —
sobre o início do caso deles. Só que ela não mencionou como incentivou os
gestos e as palavras “inadequados” de Jamie. Omitiu o fato de que, no dia em
que ele a chamou de “comível”, ela foi para casa e relembrou a cena várias
vezes enquanto Ben dormia ao seu lado, sufocando seu último gemido
estremecido com um travesseiro.
Nem uma palavra do que ela dissera a Alex no apartamento naquela noite
tinha sido mentira também. Estimulada por sua descoberta de que Jamie
havia tentado embarcar em joguinhos semelhantes com Sophia, ela arrastou
de volta à luz aquela vez — e tinha sido apenas uma — que Jamie tinha ido
longe demais. Se ele interpretou mal seus sinais ou se ficou excitado em
observá-la se debatendo e se engasgando, Nicole nunca saberia. Tinha sido
tão perto de quando eles se separaram que ela enterrou o ocorrido com todo o
resto — até aquela noite no pub. Ao ouvir Alex e Jill descrevendo as
humilhações que sofreram nas mãos de Jamie ela compreendeu pela primeira
vez o quanto ele gostava de fazer jogos de poder com todas as mulheres de
sua vida, o que despertou sua memória. O chão de um quarto de hotel, a
cabeça dolorosamente pressionada contra a válvula do radiador, a mão direita
dele apertando seu pescoço com cada vez força. Como ele estava ignorando
seus pedidos arfantes — “Pare” —, ela forçou uma risada estrangulada,
esperando que dissipasse qualquer agressão que tivesse surgido. “Tá. Chega.
Agora para.” Eles nunca tiveram uma “palavra de segurança”, nem tinham
sequer discutido essa ideia. Teria feito diferença? Lembrando-se do vazio nas
pupilas de Jamie e da frouxidão de sua mandíbula enquanto seu ritmo
acelerava em estocadas raivosas até ele desabar, ela não tinha certeza. Mas o
choque no rosto de Jamie quando ela finalmente conseguiu empurrar o peso
morto de cima dela e, chutando e xingando, ficou de pé parecia tão…
genuíno.
— Cacete, eu te machuquei de verdade — Jamie se lamentara.
Ela havia ficado grata pelas desculpas e pelos pedidos de perdão que
abafaram a dúvida se repetindo na sua mente: Mas você não parou. Por que
você não parou, Jamie, quando eu pedi?
Nicole nunca, nem para si mesma, tinha usado a palavra que seu cérebro
rejeitou como incorreta — impossível? — à época. E naquela noite com
Alex, ela não precisou usá-la. Porque na loucura que a tomou depois de ver
aquelas fotos beatificas da vida familiar de Jamie, além de saber sobre sua
última presa no escritório, Nicole tinha passado de tentar evitar que sua
assistente rottweiler enfiasse os dentes nos calcanhares de Jamie para atiçar a
fera a destruí-lo pedaço por pedaço.
Só que nem por um segundo Nicole tinha imaginado que se veria de novo
com Jamie. As engrenagens que colocou em movimento… e se fosse tarde
demais para pará-las?
CAPÍTULO 20

ALEX

– N em—ouseSério?
tirar os sapatos! Pode colocar de volta.

Alex estava apoiada na parede da entrada de Maya, empurrando o


calcanhar do tênis direito.
— Lexie — disse Maya, rindo. — Já falamos disso semana passada. Não
somos suíços. Além disso, acabei de convencer meu marido a comprar um
daqueles novos Dyson Cyclones ou sei lá o nome. Parece um sabre de luz, o
que tenho certeza de que ele no fundo ama, como todos esses nerds velhos de
Star Wars. Agora, vem, vamos almoçar.
Quando entrou ali na semana anterior, empolgada com o risco que corria,
mesmo que tivesse garantido que seu ex-chefe estaria no trabalho até tarde,
seu primeiro pensamento foi que as mídias sociais de Jamie não faziam jus a
casa. A casa vitoriana geminada tinha sido inteligentemente remodelada em
uma casa de família moderna, de plano aberto, com móveis minimalistas e
arte contemporânea ousada cobrindo as paredes. Por dentro, parecia que valia
muito mais do que as 3.250 milhões de libras que o Zoopla tinha avaliado.
— Nossa, que lindo, Maya. Nem parece que estamos em Londres, né?
— Você acha? Levamos séculos para deixar a casa do jeito que queríamos.
E agora já estou ficando com coceira de me mudar para mais longe, mas não
muito longe. Talvez Richmond ou Barnes.
Depois de tirar Elsa do sling vermelho que sempre parecia carregar
pendurado no pescoço para a filha, Maya colocou as meninas no tapetinho no
canto oposto da sala, onde a cozinha era contígua a uma sala de
jantar/varanda com treliças. Lá, as duas menininhas balbuciavam contentes
enquanto as mães desfrutavam do tipo de tarde de lazer que Alex tinha
começado a achar que nunca mais teria permissão de ter.
Hoje, em vez de instalá-la à mesa da cozinha, Maya levou Alex até a
varanda que dava para o jardim. Entre as duas magnólias em cascata em cada
extremidade do gramado ficava um balanço e um escorregador: não do tipo
feio e de plástico que você encontra em parquinhos públicos, mas um
conjunto retrô de madeira pintado à mão que Jamie tinha suado para montar
sozinho.
O sol alto atravessava o vidro e iluminava a ampla mesa de faia e um
cheiro inebriante de orquídeas e madeira seca preenchiam o cômodo.
— Eu passaria o dia todo aqui se pudesse, mas nessa época do ano as
meninas acham muito quente.
— Nossa, Maya, é incrível. A Christel está na creche?
— Sim. Nossa babá vai buscá-la. O que significa que não preciso dirigir e
que podemos beber uma tacinha de rosé.
— Ótimo.
Alex sorriu. Só que a fantasia que ela vivia desde que tinha ido na Bumps
& Babies naquela manhã havia acabado de implodir. Porque uma lembrança
estava lhe voltando: uma filipina sorridente deixando Christel com o pai no
escritório ao final do dia, meses atrás. Alex estava muito grávida na época, e
as duas trocaram algumas palavras. Sobre o quê e se seria o suficiente para
ela identificar Alex hoje, ela não sabia. Mas de repente o risco que estava
correndo, a loucura de estar aqui como “Lexie, mãe de Chiswick” na casa do
seu ex-chefe a atingiu com tanta força que ela se levantou de repente,
atingindo a taça de vinho com as costas da mão e fazendo-a se espatifar nas
lajotas do piso.
— Ah! Maya, sinto muito. Eu vou… Você tem papel-toalha?
— Por favor, pode deixar que eu limpo.
Em um instante ela voltou da cozinha com uma vassoura e uma pá.
— Olha só para mim, te enchendo de vinho quando você precisa é de
comida, certo?
— Sabe, pensando bem, talvez seja melhor a gente deixar o almoço para
outro dia. — A garganta de Alex estava seca e seu olhar ia de Katie no
tapetinho para sua bolsa no sofá, avaliando como poderia sair depressa sem
que parecesse estranho. — A Christel vai estar em casa a qualquer momento
e você…
Maya ergueu os olhos de onde estava agachada no chão, quase limpo da
bagunça de Alex.
— Elas vão para o parque depois da escola, então só voltam depois das
quatro. Relaxe!
Quando Alex checou o relógio na parede pelo canto do olho e viu que,
ainda bem, não eram nem duas, sentiu o alívio dominar seu corpo.
— Agora, vou fazer uma saladinha Caesar rapidinho para nós, tudo bem?
Não vou levar dois minutos. — Então, da cozinha: — Eu também tenho essas
quedas de glicose… É a amamentação. Você não fica exausta?
— Por causa disso e por acordar cinco vezes à noite — respondeu Alex.
— Acho que os homens nunca vão entender o que esse nível de cansaço
faz com a gente. E ainda assim nós seguimos em frente. Jamie é um dos
homens mais enérgicos que já vi, mas o sono para ele é sagrado. Não
sobrevive sem dormir. Qualquer coisa menos de oito horas e o homem fica
destruído.
Eu sei — eu me lembro. Era eu que tinha que consertar todos os erros que
ele cometia quando estava com jet lag ou ficava bebendo até tarde.
— Meu marido é igual — respondeu Alex com uma risada, mais calma
agora.
E era tão bom estar nessa casa branca e arejada com essa mulher loira e
agradável. Sim, Maya era mimada e vivia em outro mundo, mas as duas
pareciam compartilhar muitas das mesmas preocupações, e havia algo
reconfortante em sua presença física: tudo, desde sua pele perfeita e simetria
escandinava até suas vogais uniformes que acalmavam os pensamentos
incessantes de Alex. Até Katie parecia mais pacífica na companhia dela. E
enquanto as duas andavam preguiçosamente pela Chiswick High Road depois
da aulinha de bebês, a conversa indo de bobagens (“esses mamilos do
tamanho de um pires que você tem agora? Não entre em pânico — eles vão
voltar ao normal”) para assuntos sérios (“o isolamento dos primeiros meses:
ninguém fala sobre isso”), Alex se sentia mais feliz e relaxada do que nos
últimos meses.
Mas foi a bondade de Maya que mais a surpreendeu na mulher que
escolheu se casar com Jamie Lawrence. Ela tinha alguma ideia com que tipo
de monstro estava vivendo?
— Espero que não se importe que eu tenha ligado — ela sussurrou no
início da aula. — Para ser sincera, fiquei um pouco preocupada com você.
Como se você… — Ela parecia envergonhada. — Não sei… Parecia que
você precisava de uma amiga do peito. Eu sei que eu preciso.
Alex percebeu que Maya havia escolhido a expressão mais cafona que
pôde para tornar a declaração mais leve. O que era bem gentil. Ela não queria
presumir ou dar a entender que Alex não tinha amigos, mas a frustração que
ambas claramente sentiram em ser profissionais transformadas em mães em
tempo integral não era algo que muitas admitiam da maneira fácil e imediata
como elas no primeiro dia em que se conheceram. E, por mais diferente que
fosse o estilo de vida delas, isso as unia. Então, quando Maya sugeriu de
novo um almoço em sua casa, dessa vez Alex não resistiu.
A curiosidade, maldosa no meio de um dia tão despreocupado, só apareceu
quando efetivamente entrou na casa de Jamie. Porque, até que Alex fosse
confrontada por aquelas fotos de seu ex-chefe nas prateleiras, tinha sido fácil
esquecer que havia qualquer ligação entre ele e aquela mulher de quem ela
relutantemente começava a gostar. E, ao olhar de uma foto do ex-chefe e
Maya rindo no dia do casamento, cobertos de confete, a uma dos dois usando
suéteres de Natal ironicamente iguais em algum lugar rico e nevado, Alex foi
forçada a suprimir um tremor ao pensar no que aquele simpático homem de
família havia feito com Nicole.
Maya tinha acabado de servir a salada quando a porta da frente bateu,
assustando as duas.
— Olá! — veio uma vozinha filipina cantarolante do corredor. —
Voltamos mais cedo! Christel não está se sentindo muito bem.
— Ah, meu amorzinho.
Quando Maya saiu correndo para receber a filha, Alex, com o sangue
latejando nos ouvidos, se forçou a pensar. Tinha que haver uma maneira de
escapar.
— Está com fome, meu amor?
Pegando a filha do tapetinho e torcendo para Maya não se lembrar que
Katie tinha acabado de tomar uma mamadeira, Alex foi se esconder na
varanda fechada e inclinou o corpo na direção da parede como uma mulher
amamentando faria.
— Pega a mamadeira! — sussurrou ela, baixando a cabeça em um
agradecimento silencioso quando a filha obedeceu.
Não há distração maior do que o próprio filho, e quando ela ouviu os
murmúrios maternais de Maya no cômodo ao lado, se sentiu tranquilizada
que as duas mulheres estariam envolvidas demais com Christel para notá-la.
— Ela comeu alguma coisa no caminho para casa? — Alex ouviu Maya
perguntar à babá entre um beijo e outro na filha.
— Só uns palitinhos de queijo e uvas-passas.
— Você acha que ela ainda está com fome?
— Quer que eu faça alguma coisa pra ela?
Diga que não. Não, obrigada. Pode tirar o resto do dia. Estamos bem.
Porque Katie tinha decidido que já estava bom de fórmula, e suas bochechas
coravam lentamente pelo calor abafado da varanda fechada. A qualquer
minuto ela começaria a gritar e alertaria a babá da presença das duas.
Alex ainda estava bolando uma estratégia de fuga quando ouviu Maya
dizer à babá que não, elas estavam bem. E por que não tirava o resto do dia
de folga? Fechando os olhos, Alex soltou um longo e controlado suspiro:
alguém lá em cima estava cuidando dela.
Quando voltou a abri-los, uma mulher pequena de cabelos bem-arrumados
estava parada na porta da varanda, com um copo de água gelada.
— Achei que você ia querer isso. Está tão quente aqui!
Seu sorriso era tão largo e direto quanto naquele dia no escritório, mas
quando Alex pegou o copo, os olhos da babá foram de Katie para o rosto de
Alex, onde se demoraram, o questionamento implícito.
— Obrigada. Eu sou a… Lexie.
— Maria.
Mas ela não se moveu.
— Estou derretendo — balbuciou Alex para a musselina de Katie, com
receio de erguer o rosto. — Mas já vou terminar o mamá dela.
A mulher franziu a testa.
— Você e… o sr. Lawrence?
Era parte afirmação, parte pergunta, e antes que Alex conseguisse pensar
em uma resposta, a cabeça de Maya apareceu na porta e ela riu.
— Não, essa é minha amiga Lexie. Da Bumps & Babies. A Katie é só um
mês mais velha que a Elsa.
Alex ficou tensa ao ver aquele fato agitar a consciência de Maria de novo.
Elas teriam feito um comentário sobre as datas de parto no escritório; na
verdade, ela se lembrava de comentar exatamente isso.
— Pode ir. — Maya estava salvando a pele dela e nem sabia. — Christel
pode ver um pouquinho de TV, né, querida? Descansa enquanto a mamãe e a
Lexie terminam de almoçar. Katie e Elsa devem estar prontas para a soneca.
E realmente Katie parecia a ponto de apagar no calor, e depois de balançar
a cabeça de forma quase imperceptível — será que ela se lembraria? —
Maria desistiu e se despediu com um aceno.
— Eu sei que estamos no meio da semana, e juro que não sou alcoólatra...
— Maya estava tirando os pratos e mordeu o lábio — … mas será que
podemos tomar mais uma taça? A não ser que você tenha que ir?
E Alex riu, em parte porque, depois do que tinha acabado de acontecer,
não havia nada que ela quisesse mais, e em parte pela ideia de ter que estar
em algum lugar. Graças ao desgraçado do seu marido, Alex pensou enquanto
elas brindavam, ela não tinha absolutamente nenhum lugar onde estar.
Na segunda taça, ela já estava tomada pela mesma sensação irracional de
bem-estar que sentiu naquela casa na semana anterior. Maya a achava
engraçada, ou pelo menos parecia achar — jogando a cabeça para trás e
gargalhando com algumas das histórias sobre Kieran (Alex ficou orgulhosa
de ter pensado no nome do seu marido ficcional tão rápido). E quando
brindaram com mais uma taça, Alex se surpreendeu ao contar uma anedota
sobre os pais.
— Meu pai não gosta que minha mãe beba. Ele não gosta que ela faça
quase nada, na verdade. Ele é… — ela procurou a palavra correta e se
contentou com um eufemismo — … controlador. Eu me lembro que uma vez
ele deixou minha mãe entrar num clube do livro. E ela ficou tão animada pela
companhia daquelas mulheres, pela sensação de liberdade, acho, que voltou
do primeiro encontro meio altinha. E foi isso. — Alex balançou a cabeça. —
Ele nunca mais deixou ela voltar. Chamou minha mãe de “uma vergonha”.
— Lexie, que horror.
— Não é? — Ela nunca tinha contado essas coisas para ninguém. — O
casamento deles, eu nunca aguentaria. Graças a Deus eu achei um homem
como Kieran, né?
— Mas é difícil, né? — Maya disse, os olhos escurecidos em um verde-
musgo por causa do vinho. — Quer dizer, no início eles te veneram, mas aos
poucos você consegue sentir que está ficando, sei lá, irritante, em mil
pequenas maneiras. E não tem nada que você possa fazer.
— Eu acho que Jamie ainda te venera. Quero dizer, pelo jeito que você
fala! E deveria mesmo! Além disso, você não se irrita com ele às vezes?
— Ah, com certeza. Mas eu tenho sorte. Casei com um homem bom. —
Maya pousou a mão no peito. — Então se alguma coisa realmente me
incomoda, eu falo com ele, nós conversamos, e quase sempre ele entende
meu ponto de vista e para de fazer aquilo. Como o negócio de fumar
escondido que te contei semana passada. Depois que o confrontei e falei
como eu ficava chateada, ele jurou nunca mais fazer isso, e sei que é verdade.
É do segredo que eu não gosto, sabe?
— Parece que ele te respeita muito. — Alex abriu um sorriso, mas por
dentro era só ironia. Aham, Jamie respeitava tanto a mulher que mantinha um
maço de Marlboro Light na gaveta do escritório. Ele a respeitava tanto que
estuprava colegas de trabalho.
— No final, respeito é o que mais importa — disse Maya. — O resto… —
ela baixou a voz até um sussurro abafado — … a intimidade. Bom, eu sei que
importa, mas quando vocês já estão há alguns anos juntos… — Os olhos dela
foram de Alex para sua taça de vinho, como se estivesse tentando pesar se o
que queria dizer seria excessivo, cedo demais. — E é mais difícil ficar no
clima com um recém-nascido, sabe. Eu me lembro disso com Christel. Mas
agora, com duas bebês, e eu um pouco mais velha…
— Maya, você parece que tem vinte anos!
— Bem que eu queria! — Ela riu. — Vou fazer 36 na semana que vem.
Seja como for, estou demorando mais para voltar… sabe… ao clima agora.
Alex estava gostando disso. Uma ideia de como ela poderia usar essas
confidências já se formava na sua mente.
— Não deve ser fácil para os homens — cutucou ela.
— Com certeza. — O tom de Maya ficou mais sério. — Mas acho que,
considerando o que passamos, eles poderiam ser um pouco mais…
— Sensíveis?
— Sim!
— Porque qualquer pressão só vai piorar as coisas.
— Exatamente! — Maya parecia aliviada. — Jamie sempre foi bem
insaciável nessa parte, o que eu adorava, mas agora… Para ser sincera, a
gente já discutiu algumas vezes por causa disso.
— Tenho certeza de que a maioria dos casais já teve esse tipo de briga.
Tenho sorte que Kieran entende meu lado. — Alex estava começando a
gostar bastante desse marido de fantasia. — E não sei Jamie, mas você tem
todo direito de ficar irritada se ele está sendo insensível.
— Você tem razão.
— Maya, posso usar o toalete?
Alex subiu, como indicado, para usar o banheiro no andar de cima — “É
melhor para as visitas” — e deu uma olhada rápida no armário atrás do
espelho. Não havia nada ali além de uma vela Diptyque e o porta-
comprimido colorido de vitaminas que Alex reconheceu do post de Maya no
Instagram. Estava prestes a sair quando avistou algo metálico no peitoril da
janela. A aliança de Jamie.
Enquanto ouvia Maya tentando acordar Christel com gentileza da soneca
lá embaixo, Alex guardou a joia no bolso e seguiu para o próximo andar,
parando só para colocar o maço aberto de Marlboro Light que trouxera
consigo debaixo de uma toalha no armário do corredor — onde seria
facilmente encontrado —, antes de dar uma olhada no quarto de Jamie e
Maya. Era perigoso, ela sabia, mas Alex queria ver onde ele dormia.
Grande, com poucos móveis e as paredes azuis, o quarto deles dava para o
jardim com uma enorme janela saliente dupla. Alex olhou para fora por um
momento, tentando imaginar como Jamie se sentia quando abria as cortinas
pela manhã, com Maya deitada vestindo uma camisola de seda como a que
estava espreitando sob o travesseiro, preguiçosamente planejando o que
comeriam no café da manhã.
Será que ele olhava daquela bela, gentil e inteligente mulher que
claramente o adorava para a vista de seu castelo e se perguntava quanto
tempo… quanto tempo tinha até ser pego? Será que estava ao menos ciente
de que era uma fraude que não merecia tudo aquilo? A resposta para ambas
as perguntas tinha que ser não. Ninguém que fosse grato pelo que tinha se
arriscaria como Jamie vinha fazendo há anos — na vida profissional e
pessoal. Alex não era burra: entendia que a graça estava no perigo, como
acontecia com parlamentares e suas assessoras, presidentes e suas estagiárias.
Era a mesma provocação machista do parquinho: “Você não me pega.” Só
que Jamie estava prestes a ser pego em todos os sentidos. Talvez aí ele seria
grato por tudo o que havia perdido.
Suas tardes com Maya estavam rendendo muito assunto. Mas, embora toda
aquela informação privilegiada a tivesse animado na primeira vez em que
esteve naquela casa, e mudar o horário da entrevista da Greenleaf tivesse
rendido a mesma onda de poder que mudar o local da reunião, a derradeira,
com os irmãos O’Ceallaigh no calendário virtual de Jamie, seu
relacionamento com a esposa dele logo assumiu uma forma inesperada: a de
uma amizade genuína. Havia algo completamente direto em Maya, pensou
Alex, ao voltar para casa com Katie naquela tarde, parando por um segundo
para jogar a fina aliança de ouro escondida no bolso em uma caçamba de
lixo. E a ironia de Maya ser casada com um homem que não parecia ser capaz
de abrir a boca sem mentir era bem clara para ela.
Alex estava se perguntando se sua sede de vingança estaria perto de ser
saciada quando se conectou à intranet da BWL e viu a troca de e-mails entre
Jamie e Jill sobre Spiro acontecendo em tempo real. Se a pergunta de Jill
sobre como Jamie “conseguiu fechar” um negócio aparentemente morto —
apenas para ser de repente fechado a uma velocidade vertiginosa — não
tivesse sido o suficiente para despertar suas suspeitas, o uso excessivo de
emojis teria feito isso. Como seu sorriso extralargo, isso sempre era um sinal
de desonestidade de Jamie, e Alex não tinha sido capaz de resistir a jogar a
merda da historinha com Spiro no ventilador, o coração acelerando enquanto
os dedos deslizavam pelo teclado, como se alimentados por alguma força
externa.
Como tinha sido fácil ler os e-mails até encontrar uma mensagem que
encorajava o escorregadio incorporador grego a resolver as coisas por conta
própria. Se Jamie tinha se envolvido mais do que isso, Alex nunca saberia,
mas uma rápida ligação anônima para o Telegraph logo fez com que alguém
com habilidades investigativas superiores desse uma olhada no caso. E
embora o artigo subsequente fosse mais problemático para Spiro do que para
Jamie, o impacto que isso teria na reputação de BWL sem dúvida não seria
ignorado por Jill ou Paul. Dada a aparente grande probabilidade de que o
suave empurrãozinho de Alex fizesse o mundo de Jamie virar de pernas para
o ar sozinho, talvez tudo o que restasse a ela fosse assistir de camarote.
No entanto, enquanto esperava que a caixa de entrada dele abrisse naquela
noite, ela experimentou a habitual e não totalmente desagradável agitação no
estômago. Será que ele tinha de alguma forma descoberto o que ela estava
fazendo e então havia mudado a senha? Mas ela entrou, rolando de uma
mensagem para a outra até ter um panorama completo do dia de Jamie
Lawrence, com todas as tensões e micro-humilhações que ele merecia.
Só uma coisa a abalou: impaciente demais para ler os e-mails em ordem
cronológica, Alex clicou em uma mensagem enviada no final da tarde em que
Jamie combinava de se encontrar com um amigo para uma cerveja
“comemorativa” naquela noite. Em resposta ao “O que estamos
comemorando, cara?”, Jamie respondeu: “Tinha algo tirando meu sono que
parece que vai ser resolvido. Falo mais depois.”
Passando os olhos pelas caixas de entrada e saída e a lixeira de Jamie, e
ignorando os extratos bancários, recibos de compras on-line e nomes
femininos desconhecidos que ela normalmente teria aberto, Alex se sentia
enjoada. Ela ainda conseguia distinguir o cheiro do talco Johnson, embora
tivesse certeza de já ter lavado as mãos, mas ainda assim aquele fedor floral
doentio a seguia por toda parte. Precisaria lavá-las de novo com algo mais
forte, mas nada parecia funcionar. Até mesmo o perfume que havia usado um
dia desses só conseguiu reforçar o cheiro enjoativo de alguma forma. Ela se
perguntou se algum tipo de detergente para louças seria forte o suficiente para
resolver aquilo. Mas primeiro precisava se certificar de que Jamie não tinha,
sabe-se lá como, conseguido se livrar de outra armadilha.
Surgiu um breve e-mail de Paul: Fiz o que pude, amigo. Ela sabe que
todos os sócios precisam concordar com uma revisão, e não sei se ela está
com energia para tentar me convencer agora, então vamos torcer para que
ela deixe o assunto Spiro para lá. É claro que acredito que você não teve
nada a ver com aquilo — o cara sempre foi esquisito para cacete. E o fato de
você ter Ainsley mordiscando Minerva vai ajudar, com certeza.
Alex franziu a testa. Paul devia estar se referindo a Harry Ainsley, o
magnata que virou estrela de TV, o que era uma vitória para Jamie — e um
golpe para ela.
Obs.: Vá devagar com Jill? Ela passou pelo pão que o diabo amassou.
Mas talvez você esteja certo sobre a outra questão.
É bom ver que a rede dos garotos estava firme e forte. E Alex estava
disposta a apostar que a “outra coisa” era o suposto ciúme profissional de Jill.
Porque isso é o que as mulheres eram, certo? Ciumentas e mesquinhas.
Ela achou uma troca de e-mails subsequentes de Jill: Paul acha que
podemos resolver isso sem uma revisão formal. E se todos concordarmos e
você conseguir colocar suas contas em ordem para Alan a tempo, talvez seja
mais fácil. Espero que compreenda que nada disso foi pessoal — ao
contrário do seu e-mail de 8 de janeiro, ao qual Jamie respondeu: Acho que
nós dois sabemos que isso é mentira. O fato de que você nem se preocupou
em me perguntar se escrevi aquilo para começo de conversa (coisa que não
fiz) prova que você já tinha um problema comigo antes disso. E isso parece
pessoal.
— Não acredita nas ladainhas dele — resmungou Alex consigo mesma.
Mas Jill não respondeu, e os olhos de Alex acabaram indo para o nome de
Hayden, que apareceu duas vezes em rápida sucessão na caixa de entrada de
Jamie, às 11h02 e 11h14.
Em um ato de desespero devido a uma conversa com a mãe — “Não quero
incomodar, mas o dinheiro… você vai devolver a tempo, né?” — naquela
manhã, Alex finalmente tinha decidido ligar para Hayden antes de sair de
casa para encontrar Maya na Bumps & Babies. Ele reagiu como esperado —
com um ríspido “Não! O que aconteceu com ‘me deixar fora disso’?” —,
fazendo-a se odiar ainda mais. E ela sabia, antes mesmo de clicar neles, que
os e-mails seriam sobre ela.
Acabei de falar com a “desequilibrada”. Quer dinheiro (de jeito nenhum,
óbvio). Ainda nem acredito que o bebê é meu, pra começar.
É isso que acontece com uma trepada por pena, amigão, Jamie tinha
respondido.
Alex congelou. Jamie estava usando aquela expressão ou era algo que
Hayden tinha dito numa conversa deles? As aspas sugeriam a segunda opção.
Pensando na noite em que Katie foi concebida e em como aqueles fortes
braços masculinos ao seu redor pareciam tudo no momento, Alex se sentiu
tonta por outra onda de raiva.
O cheiro que subia de seus dedos chegou a um nível insuportável. Alex
conseguia visualizar as partículas de talco sendo sugadas pela sua cavidade
nasal e indo para seus pulmões a cada inspiração. Lá, elas se prendiam a
minúsculos filamentos — esse termo era a resposta a uma questão do
vestibular —, obstruindo a respiração de Alex até sufocá-la. Quando ela se
inclinou na pia do banheiro, esfregando as mãos até que qualquer indício do
cheiro desaparecesse, a ideia nascida na mesa da cozinha de Maya se
cristalizou em um plano nítido. Alex tinha vários deles agora, na verdade,
graças ao ar puro que podia respirar e à uma tarde tranquila com Maya. E o
primeiro poderia ser colocado em prática imediatamente.
Alex poderia ter passado uma hora só no site da loja Agent Provocateur,
passando com rapidez de um conjunto de lingerie que mais parecia uma
gaiola chamado “o Whitney”, cujos “bojos com alças estrategicamente
posicionadas” permitiam “vestir ou despir o mamilo conforme desejado”,
para outro, de cetim roxo, “Clancie”, com elaborados “efeitos recortados”. O
Whitney venceu, evocando, como afirmava, “uma sensação de
aprisionamento”, o que era perfeito. Depois de digitar o número do cartão
Amex de Jamie, fornecido para ocasiões como essa, para compra de
presentes, Alex acrescentou um recado: “Mal posso esperar para te ver nisso.
Bjs.”
Maya merecia coisa melhor do que um homem que fazia o que Jamie fez
com Nicole; um homem que falava sobre mulheres como ele fazia tão
casualmente em seus e-mails para Hayden, e Alex ia se certificar de que ela
soubesse disso. Depois que Maya descobrisse o que seu marido estava
aprontando, ela nunca se arrependeria de tê-lo expulsado de sua vida. E talvez
fosse ser difícil por um tempo, mas Alex estaria lá para ajudá-la.
CAPÍTULO 21

JILL

– J ill!Ela estava passando pela catraca e prestes a entrar no elevador


quando o grito da recepcionista a forçou a voltar.
Jill gostava de Lydia, mas quando aquela menina te segurava, era
impossível saber quando você conseguiria escapar.
— Estou com um pouco de pressa.
— Desculpe! Só queria te dar isso. — Lydia entregou a Jill um
envelopinho branco com seu nome escrito. — Alguém deixou na minha mesa
mais cedo.
Foi só depois de ter retornado as ligações que perdera naquela manhã e de
começar a comer a salada grega comprada por Kellie para o seu almoço que
ela se lembrou do envelope. Quando abriu e tirou a folha A4 que havia lá
dentro, Jill parou de mastigar e cuspiu um caroço de azeitona na mão. Parecia
um print de uma carta formal enviada por Jamie dois dias antes — e um dia
depois que ela pedira uma revisão formal do seu envolvimento com a questão
Spiro — para os membros do conselho da BWL. Jill a leu duas vezes para ter
certeza, mas lá estava, preto no branco: a carta sugeria que Jill fosse forçada a
se aposentar.

Como cofundadora da bwl, a sra. Barnes é responsável por criar uma das empresas mais
poderosas e importantes no histórico do ramo imobiliário do país. Além disso, como sócia,
ela foi parte fundamental da companhia por mais de vinte anos e nos ajudou a atravessar
tempestades ocasionais. Não é preciso dizer que seu conhecimento de mercado e sua
capacidade de gerenciamento sejam inigualáveis, e eu me sinto honrado por ter podido
trabalhar abaixo e ao lado de uma profissional desse calibre ao longo de tantos anos.
Infelizmente, porém, sinto que as complexas questões pessoais que ela está sendo
forçada a enfrentar em casa, por mais trágicas que sejam, impactaram suas habilidades,
assim como minha confiança de que ela seja capaz de liderar a bwl ao seu próximo passo.
Os mercados estão mudando e com eles compradores e incorporadores — compradores e
incorporadores que mais de uma vez declararam preferir trabalhar com alguém mais
afinado com a perspectiva moderna.
Por mais que me entristeça ter que apontar isso a este estimado conselho, minha
principal responsabilidade está e sempre estará com a bwl, e é com o coração pesado e o
interesse da companhia em mente que escrevo esta carta. Embora Paul Wilkinson tenha
deixado claro para mim que não compartilha da minha visão sobre a sra. Barnes no
momento, estou convencido de que isso vai mudar em breve, e respeitosamente peço por
um momento de seu tempo para discutir essa situação delicada pessoalmente.
Com os melhores cumprimentos,

Jamie Lawrence

Talvez fossem os eventos das últimas semanas, culminando naquele e-mail


anônimo e na relutante aceitação de que era possível passar 12 anos ao lado
de alguém sem nunca conhecer a pessoa de verdade. Ou talvez fosse
simplesmente porque, com tudo o que ela e Stan estavam passando, Jill
estivesse se tornando imune a surpresas desagradáveis. Fosse qual fosse o
motivo, tudo o que ela sentiu naquele momento foi um cansaço que ia até os
ossos.
— Jill? — Kellie enfiou a cabeça na sala, mas Jill não tirou os olhos da
carta.
— Hum?
— A reunião? Com Harry Ainsley? Está começando agora.
— Ah, caramba. Claro que sim.
Pegando o arquivo do Minerva e a velha agenda pela qual Jamie e Paul
sempre zombavam dela, Jill atravessou o escritório a passos rápidos, na
velocidade exata para não chamar a atenção, até a sala de conferência.
— Harry! Que bom te ver.
O astro da TV, pequeno e barbado, se inclinou para a frente, permitindo que
ela o beijasse na bochecha e, com um pequeno suspiro interno, Jill observou a
testa sempre franzida e o chamativo terno de três peças que se tornara sua
marca registrada. Desde que seu programa Gazumped! se tornou um sucesso,
Harry passou a acreditar no próprio hype, e naquele dia ela não estava a fim
de lidar com a performance grosseira de que o público dele tanto gostava.
— Vamos nos sentar? — perguntou ela a Harry e seus acompanhantes,
garotos do East End melhorados, todos com 1,65 m, todos em ternos
igualmente chamativos, ignorando Jamie, que estava de pé ao lado da janela
com uma expressão de paciência infinita.
— Claro. Estávamos só esperando você.
— Bom, aqui estou. — Jill mal aguentava olhar para ele, ainda com
dificuldade para engolir a carta que tinha acabado de ler, e sem dúvida não se
desculparia por um atraso de três minutos. — Então, Harry, eu sei que você já
recebeu as informações sobre o Minerva e já sabe que a JLL fez uma venda
para Westfield do outro lado do rio, caso tenha alguma ideia de fazer algo
semelhante com o local. — Ela se certificou de encarar Jamie. — E acredito
que temos algumas imagens aqui que podem ajudar a dar uma forcinha para a
sua imaginação.
— Minha imaginação está ótima, até onde eu sei — rosnou Harry. O
grupinho explodiu em risadas como tinha que fazer sempre que Harry dizia
algo considerado “clássico”.
— Claro que está. — As palavras pareciam pesadas na língua, o sorriso
dela falso. — Mas você vai nos deixar mostrar o que nossa equipe do digital
bolou para você, não vai? Jamie?
Jill encarou as pupilas escuras e dilatadas de Jamie, que se remexia no
assento com movimentos nervosos e ríspidos de um jeito que ela nunca vira
antes, e pareceu impossível que ele não percebia as perguntas que ela lhe
lançava silenciosamente. Você realmente escreveu aquele e-mail para o Paul,
não foi, Jamie? E a carta… Aquela carta? Todos esses meses você esteve
tentando me arrancar daqui. Por quê? Porque não tinha mais “confiança nas
minhas habilidades”? Ou porque agora que eu te trouxe até onde você quis
chegar, sou uma lembrança indesejada de onde já esteve? Você disse que o
aconteceu a Stan era “trágico”, o que é errado. Porque Stan não morreu, não
é? E graças a Deus eu nunca pensei em você como um filho, como meu
marido disse uma vez. Porque para uma mãe você não seria só uma decepção,
seria um desolamento.
— Jamie. — Ela pigarreou. — Quer fazer as honras?
Depois que o vídeo de 22 minutos começou, Harry sendo guiado cômodo
por cômodo de cinco potenciais construções, Jill respirou fundo e abriu a
agenda no colo, sabendo o que encontraria antes de começar a voltar as
páginas até a primeira semana de janeiro.
E lá estava: J, Ivy — 19h30. Stan tinha sido internado com retenção
urinária aguda dois dias antes. A infecção era tão grave que Jamie, ao visitá-
lo naquela tarde, o encontrou delirando. Quando Stan confundiu Jill com uma
enfermeira, ela ficou tão agitada que foi forçada a sair do quarto por um
momento para se recompor.
Depois, Jamie insistiu em levá-la para jantar. “Não vou deixar você ficar
naquela sala de espera pentelhando as enfermeiras por atualizações a noite
toda. Você precisa comer, beber uma taça de vinho e desabafar.”
Ele tinha razão. Na mesa no canto, ela falou e bebeu por horas. E Jamie a
ouviu, falando apenas para dizer a coisa certa. Ninguém que já tinha visto
Jamie falar com uma multidão acreditaria que ele fosse capaz de tamanha
intimidade, sempre buscando se aprofundar fazendo perguntas. Talvez essa
fosse uma das razões pela qual ele sempre chamara a atenção das mulheres.
Porque se existe uma coisa que as mulheres amam é que lhe façam perguntas.
“Como você se sentiu naquele momento?” “E depois?” E embora Jill nunca
tivesse considerado a si mesma muito similar às outras mulheres, ali era
exatamente do que ela precisava. E talvez fosse por isso que ela não tinha
visto nada de estranho no que agora percebia serem perguntas
cuidadosamente feitas sobre a ideia de se aposentar.
“Stan vai precisar de você mais do que nunca a partir de agora.” “O que
importa é que você esteja ao lado dele agora, não acha?” E: “Você deu sua
vida à BWL, Jill. Vocês dois. Talvez seja a hora de se concentrar em vocês?
Peguem o Lady J e saiam para viajar, aproveitar a vida.”
Mas a pergunta que realmente sobressaía, meses depois, que a fazia
imaginar se, de verdade, sob todos os pretextos, Jamie talvez não fosse só um
pouco amoral e sim um daqueles “psicopatas do dia a dia” falado na
televisão, foi a que ele fizera quando a ajudou a entrar no táxi no final da
noite. “Você sabe que sempre vou estar ao seu lado, não sabe?”
O vídeo continuava passando, e Harry estava com o rosto apoiado nas
mãos, puxando as bochechas para baixo como um buldogue triste. Mas Jamie
estava se contorcendo de uma forma ligeiramente maníaca enquanto
observava algo ou alguém além do vidro do aquário, o que começava a atrair
olhares dos acompanhantes de Harry. Ao inclinar o pescoço, Jill percebeu
que era Nicole, curvada na mesa do topógrafo sênior apontando algo no
monitor dele. Seu vestido, um tubinho verde-folha que exibia suas pernas e
cintura definidas, ficou um pouco esticado nos quadris com o movimento, a
curva do quadril claramente delineada sob o tecido. “Porque, no fim, para
Jamie, mulheres são convenientes ou dispensáveis”, dissera Nicole naquela
noite.
Longe de ser uma bolha de insanidade, aquela conversa — aquele plano
— estava se tornando uma das conversas mais lúcidas que Jill tivera em anos.
E se talvez, enquanto ela erradicara pensamentos de acerto de contas de sua
mente, Nicole e Alex tinham seguido em frente sem chamar a atenção?
— Tem alguma chance de isso acabar logo? — O tom truculento de Harry
a tirou de seus devaneios.
— É bem impressionante, né? — Com um sorriso nervoso, Jamie
começou seu discurso de venda, mas não da forma fluente que lhe era
comum. Na verdade, estava bem confuso. Interrompido por pausas durante as
quais ele passava a língua pelos dentes várias vezes, gaguejando, se perdendo
em pensamentos. Algo estava errado, e Ainsley percebia. — Sinceramente,
dá para construir um condomínio de luxo inteiro num terreno desse tamanho.
Jamie sempre carregava no sotaque e fingia um costume com classes
sociais mais baixas quando falava com Harry. E embora isso nunca a tivesse
incomodado antes, hoje parecia significativo. Jamie poderia alterar sua
personalidade para o que fosse necessário no momento. O que for preciso
para fazer a venda — não era isso que ela sempre dizia a ele? E ele foi bem-
sucedido se vendendo para ela por anos.
— Bom, espero que pelo menos agora você tenha um panorama geral do
que pode estar disponível — comentou Jill. — E sei que você e Jamie
planejaram uma visita ao local. Vou ficar feliz em participar, se você achar
que seria útil?
— Não precisa. — Harry ficou de pé, e Jill nem se incomodou de forçar a
barra dessa vez. — Está tudo resolvido.
— Bom, prazer em te ver, Harry.
— Sempre um prazer, Jamie. Meu assistente vai entrar em contato para
marcar a visita.
— Ótimo, ótimo. — Lá estava Jamie com aquela língua de novo. Será que
estava… drogado? — E o que vocês acham daquele jantar? Vamos marcar,
hein?
O grupinho de Harry já tinha saído da sala, mas Jamie parou na porta para
essa última pergunta, deliberadamente impedindo a saída de Jill. Ele queria
que ela ouvisse aquilo.
— Marcamos na sexta? A Maya está louca para conhecer Trish.
Jill tentou se ocupar com o arquivo que segurava; tudo para esconder a
irritação que Jamie sabia que aquela conversa causaria nela. Ela e Jamie
estavam tentando convencer Harry a sair para um jantar fazia anos. Se ele
conseguisse isso, estaria no caminho certo para limpar a barra com os
membros do conselho.
— Aham. Sabe Deus como você arrumou aquela mulher, cara —
resmungou Harry. — Muita areia para o seu caminhãozinho mesmo.
— No momento acho que ela concordaria — ela ouviu Jamie dar uma
risadinha ao caminhar devagar com Ainsley, a mão pousada de forma
dominante nas costas do cliente. E, ela estaria imaginando?, ele falar e
gesticular rápido demais? — Acho que vou dormir no sofá, infelizmente. —
Essa parte Jill não sabia se era para ela ouvir ou não, então prestou o dobro de
atenção. — Na verdade, você vai gostar dessa, Harry. Eu sempre comprava
umas lingeries para ela naquela loja, Agent sei lá o quê, de aniversário. —
Ele estava rindo como um adolescente. — E não fiz isso esse ano, por causa
do bebê e tal. Mas, sei lá como, a loja fez uma confusão e chegou um
embrulho gigante. — Ele baixou a voz. — Amigo, estou falando de coisa de
bondage, sabe? Tipo couro, tachas. Óbvio que Maya está furiosa.
Jill não acreditava no que estava ouvindo. Jamie estava de novo tentando
fingir que sua total falta de sensibilidade era culpa de outra pessoa.
Ela só via as costas de Harry, mas ele era um homem de família, que
adorava a esposa e observava o shabat. Jamie errou na mão, assim como
tinha errado no presente de aniversário de Maya — e, pela sua cara, já tinha
percebido. Mas agora ele tinha que terminar a história.
— Enfim, foi um erro da loja, acontece, o que foi muito engraçado…
Jill não conseguiu ouvir mais a conversa dos dois, mas achou que Harry
parecia ainda mais decepcionado que o normal quando as portas do elevador
se fecharam. A última frase de Jamie, “Vamos marcar esse jantar, hein?”,
tinha um tom de desespero ainda maior.
Todo o episódio não foi apenas estranho, mas preocupante. A percepção e
a intuição de Jamie foram o que o impulsionaram hierarquia acima, e era
como se tudo o que antes o tornava mais afiado, mais perceptivo e melhor do
que os outros em seu trabalho estivesse se desfazendo diante de seus olhos. A
menos que tenha sido uma ilusão o tempo todo? Mas não havia tempo para
refletir sobre isso. Depois de pegar a carteira da mesa, Jamie deixou o prédio,
sem dúvida para uma de suas doses de glicose, e isso significava que ela
precisava ser rápida.
— Foi você? — Jill enfiou a carta na cara de Nicole.
— Perdão?
Era a primeira vez que as duas trocavam mais do que algumas palavras
educadas desde a festa de Joyce, e certamente a primeira vez que Jill vinha
até a mesa dela.
— A carta. — Ela baixou a voz. — E o e-mail. Eu sei o que você e Alex
estão tentando fazer, Nicole, e se isso tem a ver com tudo que falamos
naquela… naquela noite, bom, não precisa: as máscaras já caíram. Mas não
sei se essa é a melhor maneira…
— Jill — interrompeu Nicole. Ela só relanceou o olhar para a carta e
continuou a digitar furiosamente no seu teclado. — Eu não sei do que você
está falando.
— Estou te pedindo para ler isso.
A mulher mais nova ergueu os olhos para ela, e era como se estivesse
pesando algo, embora Jill não conseguisse de forma alguma decifrar o quê.
Por fim, depois de verificar que ninguém estava olhando, Nicole pegou a
carta, engoliu em seco e leu.
— Isso não… Jill, eu não tenho nada a ver com isso.
Ela assentiu. Estava óbvio.
— E não sei se Jamie escreveu isso ou não.
— Você acha que… — As duas ficaram em silêncio quando a diretora de
marketing passou com um cliente. — Então você acha — sussurrou Jill —
que pode ser Alex, tentando forçar as coisas? Você teve notícias dela?
Nicole engoliu em seco de novo.
— Não. Acho que deve ser só alguém querendo jogar merda no ventilador.
Juro que não tive nada a ver com isso.
— Apesar do que ele…?
Nicole parecia tão mortificada que Jill se sentiu culpada por comentar.
— Eu preferia esquecer que a gente falou sobre isso.
— Desculpa.
— Não, não, é só que… Eu tenho uma reunião com um cliente.
— Claro. Desculpa de novo. Eu só… Não quero que você pense que eu
permitiria que isso acontecesse de novo. Você me contaria, né? Bom, tudo
bem, vou te deixar em paz.
Pegando a carta na mesa de Nicole, Jill viu que havia uma foto de uma
garotinha de cabelos escuros e olhos claros no colo do pai colada na baia. Ela
não sabia nada sobre Nicole, percebeu. E mesmo assim, pelo que havia sido
conversado naquela noite no bar, havia uma estranha familiaridade entre elas.
— Sua filha?
Nicole assentiu. Estava desligando o computador e pegando a bolsa. Com
os dois círculos rosados que apareceram em suas bochechas enquanto elas
estavam conversando e os olhos bem maquiados, Jill nunca tinha visto Nicole
tão bonita.
— Eu preciso mesmo…
— Claro, é melhor você ir.
Jill a observou indo em direção ao elevador, apertando o botão repetidas
vezes enquanto ele não chegava, e levou um momento para perceber que o
que estava sentindo era decepção. E se tudo o que elas disseram naquela noite
fosse verdade? E se Jamie precisasse mesmo de um empurrãozinho?
CAPÍTULO 22

NICOLE

M
aldita Jill. Claro que ela tinha que estar bem ali quando a
mensagem apitou: Old Ship às 4?
Mas Nicole não achava que ela tivesse visto; tinha certeza
que não.
Quantas vezes tinha dito a Jamie para não escrever mensagens no campo
do assunto do e-mail? Não mandar e-mails e ponto-final? Porém, tendo
sempre saído impune, Jamie parecia acreditar que era intocável.
Ela não tinha nenhum problema com Jill. Na verdade, Nicole sempre
gostou muito da fundadora da empresa, assim como de tudo que ela
representava: sem filhos, mas aparentemente feliz; ambiciosa e realizada pelo
trabalho de uma maneira que as mulheres não deveriam ser ou não era
permitido que fossem. Mas, depois do que ela precipitadamente contou a ela
e — pior ainda — a Alex, Nicole deu a partida em algo que agora sentia que
não conseguiria parar. E, no entanto, não tinha tido notícias de Alex desde
sua visita tarde da noite. Talvez com o bebê — mesmo depois do que Nicole
lhe dissera —, ela decidira deixar Jamie em paz?
Enquanto corria pela King Street em direção ao rio, dividida entre o desejo
de fazer Jamie esperar e a necessidade de descobrir do que aquele encontro se
tratava, Nicole se perguntou se a carta de Jill poderia ser verdadeira. Se fosse,
não era possível que Jamie tivesse motivos para se preocupar? Afinal, Jill
estava com a cabeça cheia. No entanto, dado o estado preocupante de Alex
quando Nicole a viu naquele apartamento imundo, poderia muito bem ter
sido coisa dela. Mais uma vez, ela sentiu aquele frio na barriga, o frio que
você sente na infância segundos antes de o vaso ou a janela se espatifar,
quando a bola ainda estava em movimento. Ela que tinha colocado a bola em
movimento, primeiro no pub e depois naquela noite no apartamento de Alex.
Era o primeiro dia do que os jornais estavam chamando de “nossa onda de
calor de Honolulu”. Atividades esportivas escolares estavam sendo
canceladas e jardineiros eram encorajados a “amar seus gramados marrons”
em uma tentativa de economizar água. E, embora ainda não tivesse alcançado
os quarenta graus previstos naquele fim de semana, a ausência de qualquer
tipo de vento impunha uma curiosa estase nas ruas de Hammersmith, como se
toda a vizinhança participasse de um daqueles desafios dos manequins
viralizados alguns anos antes. Do lado de fora dos cafés vazios e das lojinhas
de uma libra, os funcionários se debruçavam imóveis e silenciosos nos
balcões das lojas, e até mesmo os alunos que esperavam nos pontos de ônibus
pareciam anormalmente abatidos.
Nicole, em comparação, se sentia mais viva do que há meses, como se
todo o seu sistema tivesse pegado no tranco. Uma velha canção do Oasis que
ela havia escutado em looping durante a faculdade tocava no último volume
em uma loja de celulares e, ao começar o refrão, ela sentiu a beleza da
melodia de novo. Talvez fosse por isso que as pessoas tinham casos? Aquela
sensação da vida acontecendo de novo, uma injeção de juventude. O que
Nicole percebeu de repente, à medida que o eco de seus saltos na passagem
subterrânea de ladrilhos aumentava e ela emergia piscando para a luz da
margem do rio, era que não estava pronta para voltar ao torpor.
Passando um dedo sob cada olho, onde seu rímel teria escorrido nas rugas,
ela ajustou sua expressão para parecer menos ansiosa. Fora do Old Ship, a
parte de trás parcialmente obscurecida da cabeça de um homem acabou não
sendo a de Jamie, e ela tentou em vão se lembrar da cor da camisa que ele
estava usando no escritório mais cedo.
— Nic!
Lá estava ele, um pouco mais adiante, encostado na mureta baixa do rio
sobre a qual sua cerveja estava apoiada, o cigarro na mão.
— Você voltou a fumar? — perguntou ela quando os dois estavam perto o
suficiente para se tocar.
— Mais ou menos. Maya encontrou um maço que nem era meu outro dia,
deixado pelo cara do ar-condicionado ou sei lá quem, e surtou. A ironia é que
eu não tocava em um cigarro há meses, mas se as pessoas vão pensar o pior
de você de qualquer maneira…
Embora seu coração tenha afundado diante da menção imediata de Maya,
Nicole ficou satisfeita. Obviamente ele estava com problemas em casa, e um
Jamie fumante era um Jamie no mau caminho em todos os sentidos. Só uma
coisa — a ideia de ela ser algo que ele fazia quando estava se comportando
mal, um mau hábito — a irritava.
— Por que estou aqui?
Ela tomou o cigarro da mão dele e deu uma tragada, a atitude despertando
vagas lembranças do exibicionismo da adolescência: corações perfurados por
flechas desenhados com esferográfica em coxas lisas, gargalhadas altas o
suficiente para os meninos ouvirem. E por baixo de tudo, a angústia
adolescente.
— Esqueci como cigarro de verdade é bom.
— É mesmo? — Jamie chupou a espuma de cerveja do lábio superior e
puxou-a para si.
— Ei. — Protegendo os olhos com a mão, ela examinou os arredores. —
Qualquer um pode nos ver.
— Eu dei uma olhada.
— Ah, é?
— Relaxa.
— Eu vou, assim que você me pagar uma bebida.
— Foda-se a bebida.
— Que encantador.
A centímetros de distância, eles se olharam, e Nicole se perguntou como
seria conhecer aquele rosto, com todas as sardas, os sulcos e as rugas, como
conhecia o de Ben; aceitar que faria parte de sua vida diária. Vê-lo
envelhecer.
— Jamie, por que estou aqui?
— Por quê? Porque não consigo parar de pensar em nós dois… no teatro.
— Nicole sentiu uma contração na parte inferior do abdômen. Odiava o poder
que ele tinha sobre seu corpo, mesmo quando não havia força, nem mesmo
um contato, apenas palavras. — Porque deve haver um motivo pelo qual não
conseguimos ficar longe um do outro.
Nicole olhou para além dele, para o rio. Uma frota de remadores passou
rapidamente aos comandos do timoneiro.
— Eu costumava pensar assim. Mas agora…
— Agora o quê?
Ela deu de ombros.
— Agora sei que é só um jogo para você. Porque é, não é?
— Não! — Os dedos dele apertaram o tecido verde do seu vestido,
puxando-a para mais perto, entre as pernas dele. E, quando estava com raiva
ou discordava de algo, Jamie parecia tão jovem. Ela tinha se esquecido disso.
— Não é verdade.
— Mas você ama sua esposa.
Dizer aquilo em voz alta não foi tão doloroso quanto achava que seria. Na
verdade, parecia bastante adulto, civilizado. Só que ela não deveria tocá-lo
enquanto dizia isso. Não poderia nem olhar para ele. Nicole se moveu para
ficar ao lado dele na parede, de onde contemplou as profundezas tenebrosas
do Tâmisa.
— Eu realmente acho que você ainda ama Maya. E sei que você ama suas
filhas. Sei que ficar longe delas… Bem, posso imaginar o que isso faria com
você. Não é a mesma coisa para mim, para as mulheres. Eu entendo. Eu
poderia deixar Ben e ainda ficar com Chloe. Ainda acordar com ela todos os
dias e colocá-la na cama todas as noites. — Mesmo enquanto dizia essas
palavras, ela se perguntava como isso funcionaria, lembrando-se da testa
franzida da filha nas raras ocasiões em que precisou levá-la para longe do pai
e tentando imaginar como seria dizer a ela “não se preocupe, você vai ver o
papai de novo no próximo fim de semana”. — Eu estive pensando desde…
Bem, desde aquela tarde no Vale Theatre. E achei que tivesse superado você.
Pensei mesmo. Mas voltar ao jeito que éramos… Não posso fazer isso. Não
depois do que aconteceu da última vez. — Ela balançou a cabeça. — Não é o
que eu quero. Não estou mais com raiva, mas…
— Você sabe que vai completar dois anos — ele se inclinou e beijou seu
pescoço — na próxima quarta-feira.
— Não faça isso! — Ela se virou, com raiva dele e de si mesma. — Não
finja que isso é mais do que um caso. Você e eu já tivemos casos antes; não
precisamos fingir.
— Não, Nic. Eu quero que isto seja outra coisa. Quero dar uma chance
para a gente. Não consigo dormir, não consigo funcionar direito. É como se
minha mente estivesse zumbindo, zumbindo…
Ela tinha que admitir que havia algo de frenético em seu comportamento:
suas palavras se embolando e…
— Jamie, você está tremendo. Quantos cafés você tomou hoje?
— Porque dessa vez estou pronto. As coisas lá em casa simplesmente não
estão dando certo comigo e a Maya. Para ser sincero, sinto que não faço nada
direito, é como se ela estivesse sempre tentando me criticar ou me pegar no
flagra. — Ele puxou outro cigarro do maço. — Eu perdi minha aliança outro
dia. Literalmente desapareceu. E Maya ficou toda “Eu disse que isso ia
acontecer!” e “Talvez isso esteja nos dizendo algo”. Não tenho tempo para
esse tipo de superstição de merda.
— Então isso é sobre ela? — A boca de Nicole ficou rígida, o
ressentimento a deixando feia por fora e por dentro. — Sua querida e doce
esposa não está prestando atenção o suficiente em você? Deixe-me perguntar
uma coisa, Jamie: algum dia você terá atenção suficiente?
Pego de surpresa pelo seu tom, ele a olhou.
— Quando você ficou tão amarga?
— Ah, não sei. Em algum momento nos últimos dois anos.
Por alguns instantes, nenhum deles falou.
— Ben quer que eu me demita. Que eu procure outro emprego.
— O quê?
— Ele percebe que estou infeliz. Não sabe por quê, acha que é o trabalho,
mas talvez ele esteja certo.
— Não. — Jamie balançou a cabeça. — Não. Você está infeliz por causa
dele, não do trabalho ou de mim. E você pode tentar pedir demissão se quiser,
mas eu não vou deixar. Você não vai ter uma rescisão. Não vou te dar nem
uma carta de referência, e vou garantir que você entre na lista de restrições de
todas as agências imobiliárias de Londres.
— Jamie…
— Não.
Com firmeza, ele a ergueu contra a parede. E, quando se colocou entre as
pernas dela, Nicole as sentiu envolverem a cintura dele de uma maneira
instintiva, uma maneira a qual ela sabia ser velha demais, mas não se
importou. Eles se beijaram e foi tão profundo, íntimo e satisfatório quanto
sexo. Ela se ouviu gemer.
— Eu te amo, Nic. E quero ficar com você. Você nunca vai ser feliz com
Ben, não é? Você sabe disso agora. E quanto mais cedo puder seguir com sua
vida… comigo, mais cedo todos podem começar a se recuperar.
— Olha só você, todo zen.
Jamie não sorriu.
— É verdade.
Uma lágrima deslizou em uma vertical perfeita por baixo dos óculos de sol
dela, e ele a enxugou. Nicole nunca se permitiu chorar na frente de Jamie
antes, e parecia significativo que agora conseguisse.
— Nic. — Ele empurrou seus óculos até a linha do cabelo e segurou seu
queixo com a mão trêmula.
— Você não está bem, está?
— Não. Olhe para mim. Eu não sei o que está acontecendo comigo. Nos
últimos dias, não consegui me concentrar em nada. Estou nervoso, não
consigo comer e eu… Nic, não estar com você está me matando. Mas, sim,
dessa vez estou pronto.
— Eu não acredito em você.
— Por causa de antes? Maya estava grávida, pelo amor de Deus. Você tem
que entender que não era a hora certa.
Ela assentiu minimamente com a cabeça.
— Mas preciso saber que você está falando sério sobre contar a Ben?
Do nada, uma imagem lhe veio à mente: Ben segurando uma Chloe
chorosa em seu ombro no Hyde Park enquanto o balão de hélio da Patrulha
Canina subia cada vez mais alto no céu. “Pense em todos os outros balões
que foram para o céu dos balões”, ele murmurou. “Então ele não vai ficar
sozinho.” E ao ouvir as palavras “céu dos balões”, as lágrimas de Chloe
apenas se intensificaram.
— Não fui eu quem quebrei minha promessa da última vez.
— Não. — Ele assentiu com a cabeça. — Mas não me lembro de você ter
prometido nada.
Nicole sabia o que ele estava fazendo: tentando induzi-la a dividir a
responsabilidade pelo que acontecera — ou deixara de acontecer — da última
vez.
— Você realmente está dizendo que não confia em mim para contar?
— Como posso ter certeza de que você vai fazer isso?
— Jamie…
— Não, quer dizer, como qualquer um de nós pode saber? — Ele tocou
sua cerveja, pensativo. — Mas e se houvesse uma maneira de nós dois termos
certeza? Uma maneira de contarmos ao mesmo tempo, até mesmo no mesmo
lugar…
— Fazer Maya e Ben nos encontrarem num tipo de terapia em grupo, você
quer dizer?
— É uma ideia — brincou ele, passando o polegar pela parte interna da
coxa dela. — Não, quero dizer que nós podemos levá-los a algum lugar
público: um restaurante lotado. Mas separadamente. Você reserva sua mesa,
eu reservo a minha, e não podemos sair até ambos termos contado.
Nicole se desvencilhou.
— Você está falando sério?
— Sim. Veja só: estaríamos passando pela mesma coisa ao mesmo tempo.
E, para nos ajudar a ir adiante, poderíamos marcar de nos encontrarmos em
algum lugar depois, em um hotel ou qualquer lugar.
Nicole o olhou. Era uma ideia maluca, ensandecida. Mas também podia
ser genial. Porque, por mais que todo o seu ser se encolhesse diante da ideia
de contar a Ben e implodir sua vida com uma única frase, saber que Jamie
estaria lá também, vê-lo passando pelo mesmo inferno — bem, poderia dar a
ela a coragem de que precisava.
— É uma maluquice. E arriscado.
— Como assim? — Ele tomou um longo gole de cerveja, e não pela
primeira vez ela se perguntou se Jamie sentia as reverberações de suas
palavras e ações da mesma forma que as outras pessoas.
— Bem, e se Maya me reconhecer?
— Vocês nunca se conheceram.
— Nós estivemos no mesmo lugar duas vezes. — A precisão era
humilhante e ela deliberadamente omitiu a parte seguinte. — Em dois
eventos, uma festa de Natal e outra coisa. E mulheres…
Jamie ergueu uma sobrancelha.
— Ao contrário de vocês, nós reparamos nas coisas, nas pessoas, no que
está abaixo da superfície.
— Tá. Mas não estou sugerindo que a gente marque em um lugarzinho
intimista. Pensei em um restaurante grande e barulhento como o Angelini’s
— disse ele. Angelini’s era uma enorme brasserie em Green Park com longos
bancos, a queridinha das subcelebridades e dos homens de negócios do
centro. — E nós especificamos onde queremos nos sentar, então não
estaremos em mesas próximas, mas podemos pelo menos nos ver do outro
lado do restaurante.
Deveria ter sido revoltante, mas o lado de Nicole aventureiro gostou da
ideia. Isso daria a ambos uma data da qual não poderiam escapar e colocaria
um fim ao sofrimento que ela alimentara por tempo demais. Além disso, nada
poderia ser pior do que o status quo.
— E, a partir dessa noite, nós estaríamos livres?
— Exatamente. Não seria incrível?
Debaixo do vestido, a mão de Jamie subiu até o elástico da calcinha.
— Imagine — ele estava dizendo — quando nós dois estivermos livres,
todas as coisas que poderíamos fazer? A gente pode viajar nesse verão. Ir
aonde você quiser… Aquele lugar em Antibes que você vive falando.
Qualquer lugar.
— Vamos para Biarritz.
Ele riu.
— Está bem. Por quê?
— Não sei. Sempre quis ir. Pelo surfe?
Ele jogou a cabeça para trás.
— Você surfa?
— Não.
— Eu também não.
Com as testas juntas, eles riram.
— Nós não sabemos muito um sobre o outro, não é?
E o beijo deles então foi diferente: longo, preguiçoso e cheio de uma
contida alegria mútua com a decisão súbita de mudança de vida.
— Mas pense em como nos divertiremos descobrindo tudo?
Fechando os olhos por um segundo, Nicole se permitiu um momento de
pura felicidade. O corpo quente e sólido de Jamie estava entre suas pernas, o
couro de seu cinto pegajoso contra a parte interna de suas coxas e, até que ela
decidisse soltá-lo, ele era dela.
A risada de uma mulher, estridente de álcool, os alcançou, e Nicole
adivinhou sem olhar que aquela mulher sem rosto estava com um homem,
marido ou amante. Atrás dela, outra frota de remadores passou pela água.
— Remando! Calma!
O choro de um bebê abafou as últimas palavras do timoneiro. Soara como
“com força”, e ela tentou elaborar uma piada — o tipo de trocadilho bobo de
duplo sentido que ela e Jamie sempre faziam um para o outro —, mas o choro
do bebê agora estava dolorosamente alto, e, quando Nicole abriu os olhos,
irritada pela interrupção e determinada a buscar a fonte dela, viu uma mulher
parada um pouco longe no puxadinho verde triste perto do pub. A mulher
tinha um bebê amarrado ao peito e estava olhando diretamente para ela: Alex.
CAPÍTULO 23

ALEX

– S ua Alex
vagabunda mentirosa.
tinha esperado na passagem subterrânea, sabendo que Nicole
viria atrás dela, e quando ouviu seus passos desesperados descendo a rampa
para o acinzentado frio abaixo da Great West Road, Alex sentiu uma nova
onda de raiva, mais forte do que a primeira. Saindo da parede recuada de
onde estivera esperando, ela cuspiu as palavras na cara de Nicole.
Por um momento, as duas apenas se encararam, Nicole com dificuldade
para recuperar o fôlego; Alex ciente, sem realmente se importar, de que um
fio de saliva pendurado em seu lábio inferior ameaçava cair.
— Jamie deixou para você resolver, não é? — Ainda não havia sinal dele
na passagem subterrânea. — Aquele covarde de merda.
— Ele não te viu, graças a Deus. Alex, o que você está fazendo aqui?
— Isso é tudo que você tem a dizer?
Quando pegara um Uber para o Old Ship, Alex não tinha parado para
pensar no que faria quando chegasse lá, muito menos em como se explicaria.
Mas depois de entrar no e-mail de Jamie pela terceira vez naquele dia e
descobrir as trocas de mensagem com Nicole acontecendo em tempo real, ela
precisava descobrir sobre o que era o encontro. Por que ela havia
concordado? E o que Jamie queria dela?
— Como você sabia que íamos… — Então Nicole entendeu. — Você está
lendo os e-mails dele de novo.
— Claro que estou. Eu nunca parei.
Com as bochechas úmidas e toda desgrenhada, uma mancha rosa
circundando a boca onde o batom borrara com os beijos, Nicole parecia estar
lutando contra uma variedade de emoções. Pelos olhares rápidos para baixo
em direção a seu peito, Alex percebeu que era nauseante que aquela cena
estivesse se desenrolando na frente de Katie, esquecida por Alex ainda
amarrada a ela, e ainda berrando.
— Sua filha…
— Katie. O nome dela é Katie.
— Bem, Katie está surtando. Ela está com fome?
A preocupação no rosto de Nicole só aumentou ainda mais a raiva de
Alex.
— É sério que você vai me dar um sermão sobre como cuidar da minha
filha? Quando você está mentindo para seu marido, sua filha e para todo
mundo!
— Eu não estou dando sermão. Eu só…
A silhueta de um casal contra a boca branca e brilhante da passagem
subterrânea apareceu, sua risada descontraída morrendo ao assimilar a cena e
passar às pressas em silêncio.
— Você é só uma mentirosa do caralho, é o que você é. Você mentiu para
mim e para Jill. Então você foi falar comigo, foi até o meu apartamento e me
contou mais mentiras.
Nicole fechou os olhos.
— O quê? Vocês dois… — Só de dizer aquelas palavras já fez o estômago
de Alex revirar. — Não acabou de acontecer, não é?
— Não.
— Quanto tempo?
Nicole desviou o olhar.
— Quanto tempo?
— Olha, eu não deveria ter dito o que disse naquela noite no pub. E
depois, quando fui ao seu apartamento, estava com tanta raiva que não
conseguia pensar direito. Mas não era… — Nicole interrompeu-se e tentou
outra vez. — Não era mentira. Jamie e eu, o que fazemos, como somos um
com o outro… É complicado.
— “Complicado?” — Parecia muito simples pelo que Alex estava vendo.
— Você me disse que ele te estuprou.
— Eu nunca falei isso. — Mas Nicole não estava mais olhando para ela.
— Alex!
Alex seguiu a direção dos olhos de Nicole até a filha, que estava
ameaçando vomitar, a boca em um O agoniado, e lhe pareceu estranho que
não tivesse ouvido Katie até Nicole apontá-la, desde que se viu paralisada
naquele puxadinho verde surrado perto do rio, imobilizada pela visão de
Jamie e Nicole se agarrando na parede como adolescentes.
Alex não sabia quanto tempo tinha ficado parada ali, mas foi o suficiente
para absorver a sensualidade selvagem da risada de Nicole e a familiaridade
dos quadris de Jamie entre suas pernas. Aqueles dois corpos se conheciam
bem. E que Nicole tivesse mentido sobre o assédio e tê-la feito acreditar em
algo ainda pior, que ela pudesse ter se sentado no sofá de Alex — “Eu disse
não; eu pedi para ele parar” — quando o tempo todo o relacionamento tinha
sido consensual? Não era apenas uma traição; era algo que Alex não podia,
não iria aceitar. Tinham ido longe demais.
— Você tem leite?
— O quê? — Remexendo na bolsa, Alex encontrou uma mamadeira e a
colocou na boca da filha. — Como você chamaria, então? O que você e
Jamie “fazem”?
— Nós… — A voz de Nicole ficou tão baixa que era quase inaudível. —
Nós fazemos joguinhos. Sempre fizemos. Às vezes as coisas ficam violentas.
Uma vez… uma vez… eu pedi para ele parar, e ele não entendeu, não ouviu
ou pensou que eu estava…
— Você gosta de joguinhos ou ele gosta? — Agora estava começando a
fazer sentido. — Porque às vezes as coisas podem começar como um jogo, só
que, quando você quer parar, a outra pessoa não deixa.
— Não.
— E se essa pessoa tem todo o poder, se essa pessoa é seu chefe, então
ainda é abuso. Se essa pessoa não para quando você diz “não”, seja ela seu
chefe, seu namorado ou até mesmo seu marido, ainda é estupro.
— Não, você entendeu errado.
Todo o arrependimento havia sumido do rosto de Nicole, deixando apenas
uma impaciência mal disfarçada. Mas Alex insistiu mesmo assim:
— Acho que você me contou o que aconteceu naquela noite porque sabia
que o que havia acontecido entre vocês não estava certo. Mas talvez ele tenha
feito você achar que era. Ou talvez você simplesmente morra de medo do
Jamie.
Nicole balançava a cabeça, murmurando coisas que Alex não conseguia
mais entender.
— Por que você não consegue ver o que ele está fazendo com você?
Ajeitando o cabelo para trás, Nicole suspirou.
— Porque estou apaixonada por ele.
Alex olhou para ela e para aquela boca borrada idiota. Então riu.
— O que quer que seja… E, aliás, um terapeuta deve ter um termo para
isso… Você não está apaixonada por Jamie.
— Não sei quais experiências negativas você teve, Alex, e talvez essa
conversa seja sobre isso, mas eu e Jamie… Não é o que você está pensando.
Você tem que entender como eu estava me sentindo quando contei aquilo. Se
eu tivesse ideia que a gente voltaria a ficar junto…
— “Voltaria a ficar junto”? — Alex repetiu com uma voz enojada de
adolescente.
— Estou tentando explicar. Achei que teria uma oportunidade antes de
você…
— Descobrir que você era uma vagabunda mentirosa que estava dormindo
com o cara que deveríamos derrubar?
Nicole franziu a testa, mas não por causa do insulto.
— O que aconteceu com sua mão?
Alex olhou para sua mão direita, em carne viva depois de tanto esfregar, e
ainda assim fedendo a talco infantil.
— Eczema. Às vezes aparece. Continue.
— Eu estava tão magoada. Ele tinha feito promessas em Frankfurt.
Decidimos tentar fazer dar certo.
— Vocês dois estavam juntos em…? — Alex gemeu. — É claro. Para que
mais servem conferências senão para transar com seu chefe? Você percebe o
quanto isso é clichê, o quanto você é clichê?
— Claro que vai parecer isso para você. — Nicole deu de ombros. — Mas
as pessoas nem sempre acertam de primeira. E você não pode culpar um lado
ou outro por isso. Você não é casada, não consegue entender.
— Acho que entendo. — Alex pensou na mãe, cujo cada passo era ditado
pelo marido. E ela pensou em Hayden. Nicole estava errada: era sempre claro
de quem era a culpa.
— Tá. — Nicole então se endireitou, desafiadora após o choque inicial de
ser descoberta. — Bem, sem ofensa, mas a essa altura eu não me importo
com o que os outros vão achar.
— O.k. Então, me deixa perguntar só mais uma coisa: o que mudou? Em
relação a antes, quero dizer. Quando queria derrubar Jamie, quando me disse
que ele te estuprou…
— Você precisa parar de dizer isso.
— Quando você me disse que ele te estuprou, Nicole — repetiu Alex,
mais alto.
— Você não está ouvindo! Ele ia se separar da Maya antes do Natal, e
achei que ele estava falando sério. — Alex bufou. — Mas ela estava grávida
de Elsa e depois do parto… Bem, ele não conseguia suportar a ideia de deixar
a filha tão pequena.
— Ah, Jamie é mesmo o pai do ano.
— Não estou pedindo para você acreditar em mim, só estou tentando
explicar por que fiz o que fiz, que não era um joguinho. Eu realmente o
odiava tanto quanto você. E achava mesmo que tudo estava acabado. Por que
eu teria concordado com o que planejamos se não fosse isso? Mas, então, na
semana passada, Jamie e eu…
— Ah, me poupe dos detalhes.
Alex começou a balançar Katie, que exalava calor de sua fralda.
— Tudo bem — Nicole tentou sorrir. — Mas, enfim, nós nos resolvemos.
Agora há pouco. E ele está um caco, Alex. É por isso que sei que dessa vez
vai ser diferente. Eu nunca o vi assim. Ele diz que não tem conseguido
comer…
— Ah, é? Está com dificuldade para dormir também, não é?
— Sim. Sim, ele está. Ele está um caos.
Por mais furiosa que estivesse, Alex não pôde deixar de sorrir. Depois de
todos aqueles meses administrando o pequeno e lucrativo negócio na esquina
de sua rua e acordando Katie com a maldita scooter, o traficante se provou
útil. Nicole também havia desempenhado um papel involuntariamente. Pode
ser que ele nunca tenha tido um cliente com um bebê amarrado ao peito
antes, mas, quando ela pediu Ritalina — “a dose mais alta que você tiver” —,
o homem não expressou surpresa nem julgamento, procurando em sua bolsa
Fila e contando 14 comprimidos brancos parecidos com analgésicos. Ela os
tinha enfiado na caixa de vitaminas de “dias da semana” de Jamie na visita
seguinte à casa de Maya. Ele ia ver como era ficar acordado a noite toda,
todas as noites, com o coração e a mente acelerados.
— Enfim — estava dizendo Nicole, e sua calma fez Alex querer gritar:
Não é o amor deixando o seu homem perdido, meu bem, é uma dose colossal
de estimulantes! — Não é da sua conta. Vamos tentar fazer tudo certo dessa
vez.
Alex deu um passo para trás.
— Você quer dizer que vão contar ao seu marido e a Maya?
Um lampejo de algo. Preocupação? Suspeita? A referência à esposa de
Jamie tinha sido muito casual, familiar.
— Você não… Você não entrou em contato com Maya, entrou?
— Vou deixar isso por sua conta. E que conversa divertida será, quer
dizer, se isso realmente acontecer.
— Vai acontecer.
— Quando?
— Em breve. — Nicole olhou para a luz que entrava pelo final da
passagem subterrânea, claramente desesperada para fugir. — Lamento por
tudo o que você está passando, assim como lamento ter escondido coisas de
você. Mas, como falei, não é mais da sua conta. — Nicole engoliu em seco.
— Sei que você está tentando atiçar Jill de novo, Alex. Eu sei sobre os e-
mails e as cartas.
— Oi?
— Não começa. Eu sei que é você, tudo aquilo. E isso foi longe demais.
Jamie tem seus defeitos, mas não escreveria aquele tipo de coisa sem um bom
motivo.
— “Bom motivo”? Não estou acreditando!
— Talvez ele acredite sinceramente que seria melhor tanto para a empresa
como para Jill se ela se distanciasse…
— E eu? Não houve nada de “sincero” na minha demissão, não é?
Nicole a examinava de uma maneira que ela não gostou. Nem um pouco.
— Você já pensou que pode ter um motivo válido? Porque, por mais duro
que pareça, pela maneira como você tem se comportado, também não sei se
me sentiria confortável tendo você por perto. Essa sua obsessão…
— Obsessão?
— Você não consegue ver no que isso se tornou? Mas nada do que você
fizer vai mudar alguma coisa. — Então, mais suavidade: — É em Katie que
você deveria se concentrar agora, não no seu ex-chefe, em mim ou em nada
disso.
Nenhuma ideia. Nicole não tinha a menor ideia.
— Ei, eu não era só boa no meu trabalho, era a melhor. Pergunte a
qualquer um. E Jamie tirou isso de mim para salvar a própria pele. Ele…
Mas, de repente, Alex desistiu. Ela estava cansada e com sede — com
tanta sede. E, agora que o choque do caso de Nicole e Jamie estava passando,
Alex começou a olhá-lo sob uma nova luz. Jamie não teria coragem de
terminar esse casamento, mas Maya talvez tivesse. E ela precisaria de um
ombro amigo quando isso acontecesse. Alex poderia ser esse ombro amigo,
poderia ajudar a juntar os cacos, se tornaria indispensável.
Sem nem ao menos um último olhar para Nicole, Alex começou a se
afastar.
— Tenho que levar Katie para casa para a soneca.
— Ei! — Nicole correu atrás dela. — Você não vai fazer nenhuma burrice,
vai? Alex? Sei que Jamie cometeu erros, se comportou mal, mas eu também.
Você também! É hora de deixarmos tudo isso no passado.
Emergindo, piscando, sob a vastidão luminosa da Great West Road, Alex
se virou para Nicole uma última vez:
— Sua burra. — O sol destacou fios brancos, um de cada lado do cabelo
repartido de Nicole, e Alex quase sentiu pena dela. — Esses e-mails que
tenho lido? Já li meses, anos atrás, de antes mesmo de trabalhar para Jamie. É
a primeira coisa que leio quando acordo e a última depois da mamada de
Katie na hora de dormir. É por isso que sei que na sexta-feira passada ele e
Maya fizeram um depósito para uma casa de cinco quartos em Barnes. É
georgiana. Maya sempre gostou desse estilo. E eles precisavam de mais
espaço, sabe, caso ela ceda e tenha um terceiro filho, como Jamie já está
implorando que ela tenha.
Conforme o tráfego passava zunindo por elas em ondas sonoras, Alex
percebeu que não era apenas uma expressão: a cor pode realmente sumir do
rosto de uma pessoa, sugada pelo choque.
— Há uma garagem dupla e “armários nos beirais”, seja lá o que for isso.
Mas foi o pátio interno que conquistou Maya.
— Você diria qualquer coisa, não é? Bem, eu não acredito em você. —
Envolvendo a alça de sua bolsa, os nós dos dedos de Nicole estavam brancos.
— Pois deveria.
— Essa conversa acabou.
Nicole começou a se afastar, mas Alex não aceitou. Em duas passadas
rápidas a alcançou. Mas dessa vez teve o cuidado de manter o tom
controlado.
— Se Jamie acabar não sendo o homem que você pensa que ele é. Se eu
estiver certa…
Nicole virou a cabeça com impaciência.
— Ligue para mim. É só o que digo. Porque sei o que seria necessário para
acabar com ele. E não é muito.
— Procure ajuda, Alex. Você precisa. — O trânsito quase abafou a última
frase de Nicole: — E não me ligue nunca mais.
CAPÍTULO 24

JILL

– M aisEndireitando-se,
devagar, Harry. Você não está falando coisa com coisa.
Jill massageou a lombar, onde a capinagem
estava começando a cobrar seu preço. Seus vizinhos tinham um jardineiro
que cuidava da pequena área verde ao lado do barco, mas Stan sempre foi
orgulhoso demais para fazer o mesmo. Sabendo o quanto ele ficava chateado
com o espinheiro-branco rodeado de mato e o acúmulo de lixo nos vasos de
plantas, Jill, que nunca tinha ligado muito para jardinagem, começou a passar
algumas horas dando um tapa no grosso nas manhãs de sábado, enquanto o
marido lia ao seu lado.
— Não, eu não falei com Jamie.
Perto da cerca, o brilho de um papel de bala chamou a sua atenção e ela se
abaixou para pegá-la. Por que as pessoas eram tão nojentas?
— Sim, ontem à noite. Você e Trish foram jantar lá, não foi? — Diante da
sobrancelha erguida de Stan, Jill murmurou: — Ainsley.
Olhando por cima da edição de capa dura de Pelos canais franceses que
ela lhe dera no último Natal, seu marido revirou os olhos.
— Isso não parece… Sim, eu imagino… Aposto que ela ficou. Não
consigo imaginar o que ele estava pensando. Jamie tem estado um pouco…
Bem, é claro que não está. Harry, vou ligar para ele agora, mas tenho certeza
de que falo por todos nós quando digo que sinto muito. Parece uma confusão,
e, se eu conheço Jamie, ele vai ficar morrendo de vergonha. Ouça, já te ligo
de volta. O quê? Você está? Bem, posso pelo menos… Não? Certo. Ok. Bem,
por favor, não deixe que isso afete nossa relação de trabalho. Harry? Harry?
— O que foi isso?
Jill se sentou na ponta da espreguiçadeira dele e tirou as luvas.
— Uma coisa muito estranha. Jamie recebeu Ainsley e a esposa para jantar
ontem à noite. Você sabe há quanto tempo estamos tentamos trazê-lo para o
nosso lado, mas ele é um sujeito escorregadio, então estávamos contando
com esse jantar do Jamie. Eu disse que ele estava de olho na propriedade do
Minerva, né? Mas, enfim, Ainsley acabou de ligar para dizer que o jantar foi
um desastre. Um desastre! Maya serviu carne de porco…
— O quê? Mas ela deve saber que ele e Trish são judeus, não?
— Como podia não saber? E tem mais, eles mandaram uma lista de
alergias e preferências. Tenho a impressão de que Trish é bem fresca, como
era de esperar, e Maya aparentemente ignorou tudo.
— Não parece a cara dela fazer isso.
— Stan, ela serviu vinho branco com a carne de porco, o que
aparentemente causou uma “queimação terrível” no Harry. — Não gostando
da preocupação no rosto do marido, ela sorriu. — E justo quando parecia que
não poderia ficar pior, Harry vai ao banheiro e… — Jill levou as mãos ao
rosto. — Meu Deus, Stan, ele disse que havia uma fralda, uma fralda suja,
bem no chão do banheiro de visitas. Maya deve ter trocado a fralda no último
minuto e esqueceu de jogá-la no lixo ou algo assim.
Ao ouvir isso, Stan colocou Pelos canais franceses de lado e se endireitou.
— Isso é…
— Horrível. Eu sei.
— Mas também completamente atípico. Digo, nunca vi Maya ser
descuidada com nada. Ela é tão controlada, não é?
— Pois é… mas Jamie está todo esquisito, como você sabe. Outro dia ele
estava agindo feito um maníaco com Ainsley na nossa reunião de
apresentação. De verdade, muito estranho mesmo. Talvez esse segundo bebê
tenha, eu não sei, tirado ela dos eixos, ou os dois. Talvez estejam com
problemas sérios.
— Bem, se ele tem assediado mulheres no escritório, aposto que estão
mesmo. Mas você tem certeza de que essa história já passou?
— Ah, sim. — Levantando-se, Jill vestiu as luvas. — A mulher, Nicole,
foi bem clara de que quer deixar tudo para trás. Mas vou ficar de olho em
Jamie. E se ele sair da linha nessa questão… Mas agora preciso descobrir o
que de fato aconteceu ontem à noite.
— Boa ideia. Não queremos nos desentender com Ainsley de jeito
nenhum, né? — Stan não se mexeu para pegar o livro de volta, ela notou. E,
mais uma vez, Jill se sentiu uma idiota por ter contado a ele sobre a ligação.
— Vai ficar tudo bem, você sabe. De verdade.
— Quando Jamie for chutado?
A surpresa a fez se sentar de novo ao lado dele. Ela contara ao marido
sobre a investigação que havia pedido quando os problemas com Spiro
vieram à tona, mas não sobre o e-mail e a carta, já que ainda não tinha certeza
de que Alex não estava envolvida.
— O que te faz dizer isso?
— Bem, ele não pode continuar fazendo essas lambanças, não é? Veja só o
seu estado, tendo que ficar resolvendo os problemas que ele cria. Sem falar
nos custos à empresa. Aquela história com a Nicole… e depois Spiro? Já foi
ruim ter sido notícia no Telegraph, mas, se algum dia ficar provado que
Jamie o incentivou a destruir um prédio histórico, a reputação da BWL estaria
arruinada. Nossa empresa, Jill, nosso bebê.
— Shhh… — Ela beijou o marido na testa. — Não quero que você se
preocupe com nada. Agora, já tomou seus comprimidos?
— Sim, Enfermeira Ratched.
— Bom garoto. — Ela ergueu o telefone. — Pode ir tirar uma soneca. Só
vou demorar alguns minutos.
Ela demorou muito mais do que isso, caminhando ao longo do canal até o
Puppet Theatre Barge, com a cabeça baixa e a voz furiosa de Jamie na orelha.
Ele planejara tudo meticulosamente — chegando a fazer com que a assistente
de Harry mandasse por e-mail uma lista dos vinhos e sobremesas favoritos
dele para que Maya pudesse preparar tudo para o jantar. Mas as coisas
começaram a dar errado logo no começo, disse ele, com os pratos de presunto
de Parma e o Montrachet. E Maya, que estava com uns “humores estranhos”
desde que ele voltara tarde do trabalho, reagiu mal ao ser puxada de lado e
criticada.
— Não é pedir muito, é, Jill? Sabe, eu tinha dado a ela uma lista de
instruções, pelo amor de Deus. E Ainsley te contou — ele estava rouco de
descrença — o que aquela mulher deixou no banheiro?
— Bem, se é assim que você fala com ela, não estou surpresa que ela
tenha reagido mal. Talvez Maya esteja cansada, Jamie. Talvez ela estivesse te
mostrando os dois dedos do meio.
Em sua impaciência para descobrir se o jantar tinha sido de fato um
desastre tão grande quanto Harry havia descrito, Jill havia se esquecido do
oportunismo, do frequente desdém e da carta. Deixara de lado seu ódio. Mas
as palavras cheias de desprezo — “aquela mulher” — trouxeram tudo de
volta à tona. E quando, com uma voz carregada de sarcasmo, ele implorou
para que ela “cortasse esse papo de ‘pobres mulherzinhas’ por um segundo
para nós lidarmos com isso”, ela parou e respirou fundo cinco vezes, assim
como aquele manual de apoio idiota de Stan do Serviço Nacional de Saúde
havia instruído os dois a fazerem em momentos de emoções mais fortes.
— Nós?
Quando as coisas não iam bem, era sempre “nós”, “nos” e “nosso”. Jamie
era generoso quando se tratava de dividir seu desconforto e sua
responsabilidade quando fazia merda.
— Quer saber? Acho que você é que vai ter que resolver esse. Já cansei de
apagar os seus incêndios.
— Apagar meus incêndios? Quando você já teve de fazer isso?
— E que tal você parar de culpar sua esposa e assumir parte da
responsabilidade?
— Eu não causei isso!
— Tá, então, pelo menos aceite os fatos. — Com agilidade, Jill desviou de
um turista agachado segurando um mapa à sombra da ponte da Warwick
Avenue. — Harry está mortalmente ofendido pela experiência e vai fazer
questão de ficar o mais longe possível da BWL daqui para a frente. Para ser
sincera, não sei se posso culpá-lo. O que significará não uma, mas duas
grandes oportunidades de negócio arruinadas… por você. Então, a ideia de
que não estou apta a trabalhar? Bem, é muito engraçada, Jamie. Porque agora
eu diria que seu emprego está por um fio.
Tão exultante que se sentia embriagada, Jill apertou o botãozinho
vermelho e encostou-se na grade, os braços estendidos e o rosto voltado para
cima em direção ao sol. Não podia ser tão simples, podia? Mas, ao checar
seus sentimentos em busca de culpa, nostalgia ou algo assim, um aperto no
coração que fosse, ficou aliviada ao descobrir que a ideia de tirar Jamie de
sua vida para sempre não lhe trazia nada além de satisfação.
CAPÍTULO 25

NICOLE

– P odemos ajudar com alguma bagagem?


Nicole olhou para a garota. Ela não devia ter mais de 18 anos. Esse
era sem dúvida seu primeiro emprego. A camisa branca parecia herança do
uniforme escolar e o minúsculo buraco abaixo do seu lábio tivera um piercing
recentemente.
— Não. — Ela ergueu a bolsa Longchamp alto o suficiente para ser vista
por cima da mesa da recepção. — Só isso.
Ela poderia muito bem ter dito “Só vim transar”, e a menina reconheceu
isso com um breve piscar de olhos.
— E sua taça de champanhe de boas-vindas?
— Talvez depois do jantar, quando meu… — Nicole se debateu para
encontrar a palavra certa, algo que gostaria de nunca mais precisar fazer
depois daquela noite. — Quando meu parceiro chegar.
O hotel-butique tinha sido uma escolha de Nicole — “Se eu souber que
você vai se juntar a mim depois, à noite, tudo será suportável” — e enquanto
subia para a “suíte superior” que tinha reservado para eles no terceiro andar,
ela tentou imaginar o rosto de Jamie quando parasse diante da casa branca
com terraço em reboco, parcialmente escondida por glicínias penduradas em
uma rua secundária de South Kensington.
Ele ficaria surpreso, com certeza. Quando, depois de alguns meses de
caso, Jamie tinha sugerido levar Nicole ao Blakes, ela gemeu de desgosto.
Nada estragava mais uma transa do que hotéis projetados para isso, e era por
isso que ela sempre preferiu hotéis como o Hilton e Best Western: cubos da
cor bege com luzes frias e um ar-condicionado zumbindo. Isso se
precisassem usar algo tão banal quanto um quarto de hotel. Se pudesse
escolher, Nicole teria optado por uma cabine de banheiro ou um beco sem
pensar duas vezes. Mas aquela noite era diferente: aquela noite era o início de
sua nova vida.
Fresco e bonito, com espelhos ladrilhados e almofadas chiques
artisticamente contrastantes espalhadas pela cama king size, o quarto parecia
saído da Elle Decoration ou da casa de férias daquelas mães donas de casa
obcecadas por status, que conseguem medir o quão longe chegaram na vida
pela marca das velas nos quatro cantos de suas banheiras.
Já passava das seis e Nicole sabia que precisava tomar banho e se trocar
antes de chamar o Uber que a levaria ao Angelini’s às 19h15 — 15 minutos
antes de Ben. O que permitiria resolver quaisquer erros com os lugares ou
trocas de mesa, embora esperasse ter sido descritiva o suficiente ao telefone.
Se pudesse olhar nos olhos de Jamie antes, receberia a coragem de que
precisava.
Em vez de se despir, no entanto, ficou parada na janela, observando os
turistas lanchando no pequeno jardim abaixo e tentando não imaginar o rosto
e a voz de Ben quando ela lhe contasse. Seus lábios se moveram enquanto ela
ensaiava as palavras que decidira usar: “Eu ainda amo você e sempre vou
amar, mas não acho que algum dia vou realmente conseguir te fazer feliz.”
Era covardia distorcer a situação, como se só se importasse com o bem-
estar do marido, mas ela e Jamie tinham que manter o caso em segredo por
enquanto. Alguns meses depois, o relacionamento deles poderia vir à tona
como algo que aconteceu de forma inesperada, natural, quando os dois se
vissem solteiros. “Lembre-se de que só precisa ser mais ou menos plausível”,
ela apontara para Jamie. “É uma gentileza dar aos dois a opção de acreditar
que não começou antes.” Mas será que era mesmo uma gentileza o que
estavam prestes a fazer?
Depois de ter ansiado por este momento por meses, Nicole agora teria
dado qualquer coisa por uma semana, dia ou hora a mais. O vestido azul que
escolhera na noite anterior parecia errado — muito feminino, muito coquete.
Mas o que se usava para terminar um casamento de 17 anos? A calça e a
blusa que escolhera antes lhe pareceram frias, transacionais. E o vestido tinha
a vantagem de ser relativamente novo, sem lembranças ligadas a ele.
— É uma boa ideia. — Ben sorrira, levantando os olhos surpresos de seu
Guardian quando ela lhe contou sobre a reserva do restaurante naquela
manhã. — Seria bom se você tivesse dito alguma coisa antes. Mesmo assim,
tenho certeza de que consigo encontrar alguém para cuidar de Chloe.
Foi só quando Nicole disse ao marido que já havia pedido a Suzy da casa
da frente para ficar de babá que ela sentiu as bochechas esquentarem sob o
olhar dele. Bem tinha sempre sido o responsável por cuidar de crianças e
restaurantes. A coisa toda corria o risco de soar um pouco bem orquestrada
demais.
— Qual é a ocasião?
“Eu preciso ter um motivo para sair com meu marido?” seria a resposta
óbvia, mas Nicole não teve coragem de dizer algo tão irreverente e ficou
grata pelo resmungo da filha.
— Eu não gosto da Suzy.
— Claro que gosta, querida. Vocês duas sempre jogam aquele seu jogo de
contar lagartas, lembra?
Tudo aquilo estava ficando pesado demais, e Nicole se afastou do marido
e da filha para preparar torradas que ninguém queria. A ideia de Ben
relembrando suas mentiras quando acordasse sem ela na manhã seguinte
dando náusea a ela.
— E então?
— Então o quê?
— Então, por que isso?
— Só achei que seria legal.
Seria legal ter a vida que você achava ter sendo destruída enquanto comia
casquinha de caranguejo? A ideia toda estava começando a parecer maluca,
errada, mas ela tinha que ir em frente agora. Os dois tinham.
— Aqui está, querida. Coma sua torrada.
— Já comi uma com o papai.
— Certo. — Nicole engoliu em seco. — Mas você tem que tomar um café
da manhã de verdade ou vai ficar com fome às dez.
Nicole segurava a torrada na palma da mão como uma garçonete seguraria
uma bandeja, ela percebeu. Era ridículo. E tudo na cena naquela sala lhe
parecia uma encenação lúgubre.
— A mamãe acabou de fazer, querida. Coma. — Dobrando a torrada ao
meio, Nicole a entregou à filha.
— Mas eu não queria!
— Não quero saber. Toma.
— Eu não quero. Não estou com fome!
Ben franziu a testa para ela.
— Nic, acho que ela já comeu o suficiente.
— Está bem. — Largando o triângulo seco no prato de café da manhã do
marido, Nicole flagrou o olhar interrogativo de Chloe para o pai. Em vez de
fazê-la se sentir culpada como normalmente faria, o olhar apenas a magoou
ainda mais. Tinha saído de casa com o pensamento vingativo de que, por
mais doloroso que fosse, os próximos meses poderiam pelo menos dar a ela a
chance de reconquistar algum espaço no coração da filha, um pensamento do
qual sentia vergonha agora, enquanto se olhava uma última vez no espelho do
quarto do hotel e saía pela porta.
O Angelini’s já estava movimentado quando ela chegou. Não havia sinal
de Jamie, mas havia um punhado de casais debruçados sobre cardápios
espalhados pelo salão e dois grandes grupos de homens de negócios que
nitidamente estavam lá desde o almoço zurrando de cada lado do bar central.
O volume do barulho a tirou do transe em que se encontrava desde o registro
no hotel: isto era real.
— Com licença?
A loira na recepção se virou para ela, o telefone pressionado contra a
orelha agora visível.
— Um minuto, por favor — ela articulou.
E Nicole assentiu. Ela não precisava passar por isso. Podia sair do
restaurante agora, ligar para Ben e dizer que tivera um imprevisto. Então,
todos os envolvidos, de Ben e Chloe a Maya e aquelas duas crianças,
simplesmente seguiriam com sua vida, alheios à bomba que acabavam de
evitar.
— Vestido novo?
O braço dele estava envolvendo a sua cintura, a barba por fazer era
familiar contra a lateral de seu pescoço, e por um momento Nicole se
perguntou qual dos dois homens era. Então se virou para dar um beijo no
marido.
— Você chegou cedo — disse ela.
— Eu sei. Quando o metrô é pontual, tudo dá errado.
— Claro. E não, é antigo — disse ela, uma meia mentira, puxando o tecido
azul.
— É bonito.
— Obrigada.
Nicole desejou que ele não parecesse tão animado quanto um menino, e
estava ansiosa para se sentar. A qualquer momento, Jamie e Maya chegariam.
— Com licença?
— Sim. — A recepcionista parecia estar desligando o telefone e erguendo
os olhos para eles em câmera lenta. — O nome? Harper? Ah, sim, aqui está
você.
Pegando dois menus, ela os levou até a mesa. E Nicole ficou aliviada ao
descobrir que era o banquinho estofado que ela tinha pedido na segunda parte
do restaurante, mas com uma boa visão da primeira.
— Lembra daqueles almoços compridos que costumávamos ter naquele
bufê à vontade chinês em Bristol?
Ben insistiu em se sentar ao lado dela no banquinho — “assim podemos
olhar as pessoas” — e fitava com clara fascinação o grupo de homens de
negócios fazendo um enorme pedido de conhaque.
— Lembro. — Nicole olhou de volta para o menu. — Quem me dera uma
conta da empresa para gastar como eles. No que você pensou?
— Eu nem olhei ainda. — Ele colocou a mão no braço dela. — Relaxa.
Não há por que ter pressa. Suzy disse que poderia ficar até a hora que
precisássemos.
— Ótimo. — O sorriso de Nicole parecia congelado no rosto. Ela
precisava de uma bebida. — Com licença? — A voz dela estava um pouco
alta, muito desesperada.
A garçonete se aproximou.
— Um vodca martíni para mim, por favor, e ele vai querer um gim-tônica.
Ela sabia que tinha soado ríspida, mas não se importou. Também sabia o
que Ben diria ao se inclinar na direção da garçonete, ansioso como sempre
em amenizar qualquer antagonismo que Nicole pudesse ter instigado.
— É uma emergência médica.
A garçonete respondeu alguma coisa não tão engraçada ou sagaz, mas
Nicole não a ouviu porque Jamie e Maya tinham acabado de entrar.
Ela usava um vestido de seda ocre que não deveria ficar bem em uma
loira, mas ficou — talvez por causa dos tons dourados e marrons de sua pele.
Ele usava jeans e uma camisa azul-clara que ela não tinha visto antes. A
recepcionista foi mais atenciosa com eles do que com Nicole e Ben? Parecia
que sim. Havia algo inegavelmente impactante nos dois lado a lado.
— Bem, têm que ser os camarões da Baía de Dublin, não? A gente vai
pedir um aperitivo?
Ben estava tão absorto no cardápio que não percebeu que ela seguia Jamie
e Maya com os olhos enquanto eram conduzidos a uma mesa do outro lado
do restaurante que, no entanto, ainda estava em sua linha de visão. Jamie
estava certo: ninguém iria reconhecer ninguém ali.
— Nic?
— Desculpa?
— Os camarões?
— Sim, pode pedir.
Houve uma pequena hesitação enquanto Maya decidia onde se sentar, e
Jamie finalmente optou pela cadeira de frente para Nicole, a esposa diante
dele, Nicole reparou que o vestido de Maya tinha as costas
surpreendentemente decotadas e a pele bronzeada lisa estava à mostra quase
até a cintura.
Nicole prendeu a respiração. Era isso. Exatamente como tinham planejado.
E a qualquer momento ele levantaria os olhos para ela.
— Se bem que a lula parece boa. Mas trinta libras? Um pouco demais para
uma entrada.
— Peça o que quiser.
Ela estava com medo de olhar para baixo, caso perdesse Jamie.
— Tá, tive uma ideia. Eu peço os camarões, você a lula e nós dividimos os
dois? Acho que vou até pedir um bife… Ah, vamos pegar o espinafre
refogado à parte?
Havia algo de ridículo no interesse de seu marido pela comida do
restaurante.
— Perfeito. — Ela fechou o menu. — Cadê o meu martíni?
Como se fosse um comando, a garçonete apareceu com as bebidas,
urubuzando ansiosa na frente deles e tapando o campo de visão de Nicole.
— Você tem um bom Sauvignon Blanc?
— Sim, o Domaine Chatelain Pouilly-Fumé é um dos meus favoritos, mas,
se quiser algo um pouco mais estimulante, temos o Crux Marlborough…
Quando a garçonete se inclinou para a frente para apontá-los no menu,
Jamie finalmente ergueu os olhos para encontrar os dela. Ele estava sorrindo
por causa de algo que Maya tinha dito, mas seus olhos estavam intensos,
excitados, e Nicole apertou as coxas debaixo da mesa, sentindo uma onda de
prazer subir por seu corpo. Em apenas algumas horas o pior teria passado —
e sua vida de verdade poderia começar.
— Parece ótimo.
— O Crux?
— Sim.
— Não o Pouilly?
— Desculpe? — Quão complicado podia ser pedir uma garrafa de vinho?
— Isso, Crux.
Ben riu. E, então, depois que a garçonete se afastou:
— Estimulante?
— Oi?
— Vinho pode ser “estimulante”?
Ela conseguiu dar uma risadinha, mas não foi o suficiente para suavizar a
preocupação no rosto dele.
— Você está bem? Hoje de manhã você parecia um pouco…
— É, me desculpe. Eu ando tão ocupada no trabalho e dormi mal ontem à
noite por algum motivo.
Ben começou seu discurso de sempre sobre Nicole trabalhar demais, que
em geral a irritava porque era o trabalho árduo dela que sustentava a família.
Esta noite, porém, não parecia importar e ela se viu concordando com tudo o
que o marido disse. Duas taças de champanhe foram levadas para a mesa de
Jamie, e Nicole achou estranho, de mau gosto, que ele tivesse concordado em
beber algo tão comemorativo em um momento como aquele.
Uma garçonete mais jovem e mais bonita foi anotar o pedido deles, rindo
de algo que Jamie disse, e Maya parecia estar fazendo muitas perguntas. Era
bem a cara dela, não? Ser dessas mulheres que perguntavam como as coisas
eram preparadas e os ingredientes dos molhos: tudo que Nicole nunca ligou.
Era isso que Jamie gostava nela? Quão diferente ela era da esposa dele? Será
que ele sentiria falta da mãe excêntrica e delicada de seus filhos, quando
estivesse acordando todos os dias com Nicole?
Ela se virou para Ben, já inebriada pelo martíni.
— Você acha que sou muito dominadora?
— O quê? — Ele engasgou um pouco com seu gim-tônica. — Hã… não.
— Você sabe o que quero dizer. A questão do trabalho. — Ela fez uma
pausa. — Você nunca gosta quando peço seu drink para você, não é?
— Eu gosto de praticamente tudo em você, se quer saber.
— Tipo?
— Você quer uma lista? Está bem. Eu gosto de como você é inteligente e
decidida. Gosto de como você sempre preenche aqueles formulários de
viagem que eu detesto e de como você fica bem com aquelas leggings com
listras néon estranhas. Gosto de como você é uma ótima mãe, mesmo que
nunca, jamais, tenha carregado um pacote de lenços umedecidos na bolsa.
— Eu não sou.
— O quê?
— Não sou uma boa mãe. Pelo menos nunca sinto que sou.
— Não fale bobagens. É por causa de hoje de manhã? Chloe adora você.
— Eu sei. Mas às vezes não posso deixar de sentir… — Nicole olhou para
cima, alarmada, quando o que parecia ser uma quantidade desnecessária de
comida foi colocada na mesa. Nada daquilo seria comido. Porque ela não
poderia ficar ali se empanturrando para depois contar a Ben que o casamento
deles havia acabado. E eles com certeza não iriam comer depois que ela
dissesse o que foi ali dizer. — Meu Deus, Ben, por que você sempre pede
comida demais?
Pela maneira como o sorriso sentimental dele desapareceu, seu tom tinha
sido mais duro do que ela pensava.
— É só… É demais, não? Sempre é demais.
— Nah, eu não comi nada desde o almoço.
Ele sorriu, erguendo a taça de vinho para ela, e foi um gesto tão apreensivo
que ela sentiu algo implodir suavemente por dentro.
— Ben…
Mas a boca dele já estava cheia de lula.
— Isso tá tão bom — ele conseguiu com a boca cheia. — Aqui,
experimente.
— Não, tudo bem. — Nicole se esquivou da garfada de comida e se
permitiu outro olhar rápido na direção de Jamie, fazendo o tipo de pacto
supersticioso no qual confiara como a adolescente indecisa que fora: Se ele
olhar agora, a próxima palavra que vai sair da minha boca será “Acabou”.
Mas Jamie não olhou para ela. E não estava olhando para sua esposa também,
mas para o próprio prato enquanto ouvia atentamente o que quer que Maya
estivesse dizendo.
Desviando o olhar, Nicole continuou:
— Não é só a Chloe que sinto que estou decepcionando o tempo todo. Às
vezes eu sinto… — Seria essa a maneira de começar? Havia alguma maneira
de começar “vou deixar você”? — Bem, na verdade, na maioria das vezes,
também me sinto uma péssima esposa para você.
— Do que você está falando?
A essa altura, Ben ainda estaria pensando que estavam em uma daquelas
sessões de revisão conjugal que os casais fazem quando finalmente
conseguem passar uma ou duas horas sem os filhos. Se bem que ele a
conhecia. Ele reparou que ela não havia tocado na comida, mas estava na
segunda taça de vinho, e Nicole captou uma centelha de medo animal nos
olhos do marido.
— Só que eu sei que tenho trabalhado que nem uma louca, e a verdade é
que amo o meu trabalho, você sabe disso…
— Mas significa que você está atolada na maior parte do tempo? E
cansada. Acho que você precisa. Nós dois precisamos… é de umas férias. —
Ele se inclinou para a frente. — Por que não passamos uma hora na Expedia
hoje à noite, pesquisando todos os lugares que nunca visitamos mas sempre
quisemos ir? — Ele estava entrando em pânico e era uma agonia assistir. —
Olhar as ofertas do fim de agosto e, sei lá, reservar alguma coisa? Podemos
até…
— Não.
— O quê? — Ben riu. — Não para qual parte?
— Não para as férias. Não para tudo. — Olhe para mim, Jamie. Eu
preciso de você. — Nós não podemos continuar, Ben, não desse jeito. — E
foi como chegar à superfície depois de prender a respiração por um longo
tempo. Mas esse alívio não durou. Enquanto o marido a encarava ainda
segurando o garfo, mas de um jeito estranho, como se tivesse se esquecido
para que servia, Nicole percebeu algo que a fez estremecer de tristeza: Ben
estivera esperando por isso pelos últimos 21 anos.
— Nic…
— Eu sinto muito. — Ela abriu a boca para dizer “Eu tentei”, mas pensou
melhor. — Eu amo você. Mas não de uma maneira… Não é o suficiente.
Ele sorriu, mas era o sorriso desagradável de alguém que nunca pararia de
sofrer.
— Você não me ama o bastante?
— Eu não acho que sinto… o que deveria.
— Como alguém deve se sentir depois de 17 anos de casamento?
Ben tinha bastante determinação, lembrou Nicole, que só aparecia quando
algo ameaçava a esposa ou a filha — e em qualquer outra circunstância seria
admirável. Se tivesse conseguido usá-la para o trabalho ou para a vida, os
dois poderiam ter tido uma chance.
— Acho que devia sentir mais do que eu sinto. — Não havia como
suavizar isso. — Não estou dizendo isso para te ferir. Só estou sendo sincera.
— Ela tomou outro gole de vinho. — Ben, éramos tão jovens quando ficamos
juntos, e ainda somos. Você não pode… — Ela tentou de novo. — Não
precisamos passar o resto da nossa vida sentindo que tem algo faltando.
— Não sinto que nada está faltando. — Seu rosto estava duro, obstinado.
— Tenho tudo que eu quero.
— Entendi. — E então bem baixinho, em um sussurro: — Mas eu não,
Ben. E eu gostaria de ter. Eu queria que você fosse o suficiente, mas…
— Você não está tentando. Você está dizendo tudo isso porque chegou à
idade em que…
— Ah, por favor, não comece com isso. Não tem nada a ver com a minha
idade, ou o “período da minha vida”, ou “a grama é mais verde”, nem nada
do tipo. — Olhou de soslaio para Jamie, que não poderia duvidar, por suas
expressões e linguagem corporal, de que Nicole estava cumprindo sua parte
no trato. Mas ele ainda ouvia a esposa em silêncio. E como ela sabia que Ben
não desistiria de tentar fazê-la mudar de ideia até que dissesse algo que o
faria odiá-la, o olhou bem nos olhos e disse: — Chloe é minha filha: eu a amo
e preciso dela na minha vida. Mas nós, Ben… Não há futuro para nós.
— Eu posso mudar.
— Não é por causa disso. E eu não quero que você mude.
— Eu posso encontrar um emprego. Sei que você odeia que eu não esteja
trabalhando. Sei que você acha que passo o dia em casa…
— Ben! Eu não acho isso. O que você fez por Chloe e por mim…
— E então? Deve ter um jeito. — Ele fez menção de tocar o braço dela,
mas ela se afastou.
— Não tem. Não tem jeito, porque tem outra pessoa que…
— Ah, meu Deus. — Ben recuou e finalmente largou o garfo. — Você me
trouxe aqui, até este lugar, para me dizer que encontrou outra pessoa?
— Eu não ia contar assim — murmurou ela. — Mas você não estava
ouvindo. Você insiste e insiste, e é como se você…
— Quem é?
— Não importa.
— Quem é?
— Eu só acho…
— Você não vai me contar? — interrompeu Ben, deixando o guardanapo
na mesa. — O que eu acho é que quero ir para casa.
É sabido que momentos assim vão ser puro sofrimento, mas ninguém
nunca diz como, acima de tudo, eles são simplesmente estranhos. Ben estava
mais ou menos de pé, com os joelhos dobrados, mas encurralado no assento
por outras mesas e clientes.
— Com licença — murmurou ele. Mas estava muito barulhento e ninguém
se mexeu.
— Ben. — Ela sentiu que precisava dizer isso, afinal tinha Chloe para
pensar. — Eu não vou voltar para casa hoje à noite.
— Claro que não. — E um pouco mais alto: — Com licença.
— Acho que se nós dois tirarmos um tempo para…
— Uhum. E o que devo dizer à sua filha, por curiosidade?
— Deixe-me ajudar. — Um garçom finalmente o avistara e veio ajudar a
puxar a mesa. — O toalete é lá embaixo, senhor.
— Não. — Ben tinha um ponto rosa em cada maçã do rosto. — Não, eu só
quero ir embora.
E, finalmente livre, o guardanapo caindo no chão, o seu marido cruzou o
salão do restaurante, passando por Jamie e Maya, e saiu pela porta.
Em um restaurante menor, isso poderia ter causado certo rebuliço, mas,
embora os clientes de cada lado de Nicole tivessem lançado um ou dois
olhares curiosos para ela e para a comida quase intocada na mesa, ninguém
mais pareceu registrar o que havia acontecido. Ninguém exceto a garçonete,
que já tinha visto brigas conjugais demais cuidadosamente contidas para
contar nos dedos — ou para se importar.
— Você ainda vai comer isso?
— Er, não. — Como se isso não tivesse claro. — E provavelmente é
melhor cancelar os pratos principais. Desculpe, meu marido teve que sair
correndo.
— Entendi. Quer que eu traga a conta?
Nicole olhou para a garrafa de vinho pela metade em seu balde de gelo ao
lado da mesa. Então olhou para Jamie, que ainda não parecia um homem
terminando o casamento. Na verdade, pela linguagem corporal, os dois mais
pareciam estar em um encontro.
— Não. — Nicole tinha feito viagens de negócios demais para se sentir
constrangida por ficar sozinha em um restaurante. E sentia um desejo
mórbido de ver Maya sofrendo como acabara de acontecer com Ben.
Apontando para a taça de vinho, ela disse:
— Vou ficar e terminar minha bebida.
Se a garçonete achou estranho ou não, Nicole não se importava. Estava
ocupada demais observando Maya, que tinha pegado a bolsa da mesa e se
inclinara na direção de Jamie, como se fosse sair. Estava com raiva?
Chorando? Nicole não conseguia ver a expressão dela. Mas quando ela enfim
se levantou, se virando para Jamie para dizer mais alguma coisa, Nicole teve
um vislumbre de dentes brancos: Maya estava sorrindo.
Alguma coisa estava errada. Tudo estava errado. E, enquanto observava a
recepcionista mostrar a Maya onde ficava o banheiro feminino, Jamie
finalmente olhou para ela. Nicole ergueu o queixo um pouquinho, fazendo a
pergunta, implorando e suplicando, mas não havia sinais de consolo ou
solidariedade no rosto dele, e ela levou um momento para ler a expressão
culpada e as palavras que ele estava articulando com a boca: “Não consigo.
Desculpa”.
CAPÍTULO 26

ALEX

– N ão.—NãoEicomeça.
— repreendeu Alex, estacionando uma Katie adormecida no
carrinho ao lado da mesa. — Não estou aqui para dizer “eu avisei”. Nem vou
perguntar o que aconteceu esta noite. Só estou aqui para dizer que tentei no
outro dia.
Puxando uma cadeira, ela viu os olhos vazios de Nicole, o rímel que se
acumulara nas linhas finas nas olheiras, e a boca nua. Nunca a tinha visto sem
batom antes, e havia algo indecente na nudez de seu rosto.
— Se nós… você… acertarmos, então você nunca mais vai ter que ver
Jamie de novo. Ele vai embora; vai sumir.
Com teto baixo e paredes grudentas, não era o tipo de pub para o qual se
leva um bebê — muito menos depois das nove da noite. Mas quando viu o
nome de Nicole piscar em seu celular, Alex adivinhou o que tinha
acontecido. “Chego em Victoria em meia hora. Encontre um bar e me
espere.” Pouco mais de trinta minutos depois, ela entrou, topando com o
carrinho em tornozelos e ignorando olhares de desaprovação até que avistou
Nicole sentada, no segundo drinque de vodca e tônica, em um canto.
— Presta atenção. Jamie é bom nessas coisas, ele é especialista em ferrar
os outros, lembra? Eu achei que isso já estaria claro agora. Mas, por favor,
não se sinta burra.
Nicole deu um sorriso lacrimoso.
— É difícil não se sentir uma burra quando você acabou de terminar seu
casamento por alguém que não está nem aí.
Alex pensou no que ela disse.
— Na verdade, não acho que seja isso. Jamie provavelmente se importa.
Vocês dois não teriam durado tanto se ele não se importasse. Ele só…
— Se importa mais com Maya?
— Eu tentei te avisar.
Cotovelos na mesa, Nicole agarrou o rosto com as mãos.
— E eu sabia! Sabia que alguma coisa estava errada quando vi os dois no
restaurante. O jeito como só ela estava falando e ele ficava lá ouvindo,
quando deveria ser o contrário.
Alex deu de ombros.
— Acho que ele nunca teve a intenção de deixá-la.
Nicole a encarou.
— Então por quê…? Que tipo de filho da puta doente faz algo assim?
Outro dar de ombros.
— Você sabe melhor como responder isso do que eu. Talvez essa coisa
toda no restaurante fosse uma espécie de preliminar para ele? Algo que o
excita? Pelo que você me disse, Jamie, bem… é um doente.
Nicole fez um barulho, parte soluço, parte ganido, e Alex achou melhor
pressionar.
— Mas o que o excita não é só doentio… é ilegal, não é?
Nicole ergueu os olhos vermelhos de sua vodca com tônica, confusa a
princípio, então cansada.
— Eu te disse…
Mas Alex a silenciou com um dedo.
— Me deixe terminar. Se o que acabou de acontecer nos diz alguma coisa,
é que você tem um ponto cego no que diz respeito a Jamie. E entendo que a
sua relação seja “complicada”, como você disse, mas se o que me contou
naquela noite no meu apartamento realmente aconteceu entre vocês…
— Foi só uma vez, e…
Alex se recostou com força na cadeira, os braços cruzados.
— Você está se ouvindo? Uma vez só já é demais. Então, por que protegê-
lo? Ainda mais quando você agora sabe que tipo de homem ele é e do que é
capaz? — Alex se inclinou sobre a mesa. — Quando você sabe que isso faz
parte dele.
Nicole piscou.
— Então, o que você quer que eu faça?
— A questão não é o que eu quero. É você fazer o que deveria ter feito
meses atrás para proteger outras mulheres de homens como Jamie. E, sim —
esta seria a parte complicada —, significaria se expor um pouco. As pessoas
saberiam o que Jamie fez com você; bem, o RH pelo menos. Mas não
precisariam saber sobre o que veio antes.
Nicole estava negando com a cabeça.
— Não, não. Isso não pode acontecer. Olha só, contei para o Ben hoje que
estava saindo com outra pessoa. Se eu acusar meu chefe de… Não, não posso
deixar que Ben fique sabendo.
— Ele não vai nem descobrir. Você sabe quão secretas as reclamações
desse tipo são? No momento da acusação você se torna uma vítima:
protegida. E é assim que deve ser. Por isso, mesmo que Ben de alguma forma
acabe descobrindo, ele nunca, nem em um milhão de anos, pensaria que você
teve um relacionamento consensual com o Jamie. — Não teve a intenção de
soar sarcástica, mas Nicole deu uma risada seca. — Olha, eu não me importo
mais com o que você fez. Fomos todas enganadas por ele, seduzidas e depois
enganadas, não? — Alex deu um pequeno sorriso de encorajamento. — Mas
isso vai acabar com ele, sem dúvida.
— Eu entendo, mas… — Os olhos de Nicole se fixaram em algo na mesa,
e Alex interpretou a distração como a tontura induzida pelo álcool antes de se
lembrar do estado dos nós dos dedos de suas mãos agora, depois de outra
sessão de limpeza queimar a pele fina. — Suas mãos! — balbuciou Nicole.
— Alex, seu eczema. Você precisa ir ao médico, está bem feio.
— Como eu disse — Alex puxou a manga da camisa para baixo o máximo
que pôde —, parece pior do que é. Nicole, preciso que você se concentre.
— Eu estou concentrada.
— Ótimo. Então me escute: você já está bastante exposta, não é? Entende,
se eu sei sobre você e Jamie, então outras pessoas podem saber, não?
Nicole respirou fundo e assentiu.
— Tá. E você não pode estar achando que, depois do que aconteceu hoje,
dá para seguir como sempre na BWL, olhando Jamie nos olhos todos os dias,
sentando cara a cara com ele nas reuniões, brindando na festa de Natal. E,
quando ele começar outro caso, o que provavelmente já começou, bem
debaixo do seu nariz… digamos com aquela garota, Sophia…
— Isso não vai acontecer — disse Nicole baixinho. — Pelo que ouvi, ela
não quer mais saber dele.
Alex ergueu uma sobrancelha.
— Ele a levou para sair… e fez alguma coisa, foi direto demais. Assustou
ela, sei lá. E talvez… — Ela parou, tentou de novo. — Talvez não tenha sido
um acidente. Talvez ele goste de forçar a barra. Mas Alex: eu não vou sair.
Não quando me dediquei, passei anos para chegar onde estou. Não quando
mereço virar sócia da BWL. Não vou deixá-lo tirar tudo que ainda me resta.
Dois jovens parados no bar olharam para Nicole antes de voltarem, rápido
demais, a fitar as próprias canecas. E Alex observou aquela mulher, prestes a
passar de uma fantasia masculina a um fantasma, digerindo o perigo de sua
posição na vida. Alex não tinha nada a perder com a idade — ela sempre foi
invisível. E por mais sofrimento que isso tenha trazido a ela na adolescência,
estava grata por nunca ter que viver o tipo de perda que Nicole estaria
enfrentando agora. Uma perda da qual, por baixo de seu asco com a ideia dos
“últimos anos bons” de uma mulher, ela estaria muito ciente.
— Eles vão precisar encontrar outro sócio — continuou Alex. — Para
substituir Jamie, quero dizer.
Nicole olhou para ela.
— Aham. E aí vão me dar o trabalho de Jamie? E quanto à polícia? E se
ele for preso e eu tiver que provar ou alguma coisa assim?
— Eu prometo que você será protegida. De jeito nenhum a empresa vai
querer que tudo isso se torne público ou envolva a polícia. Só você pode
decidir isso. Do ponto de vista legal, eles não são obrigados a fazer, lembra?
Não, a menos que você queira prestar queixa, o que não vai querer. E se
decidir chamar do que foi, ou algo menos explícito, um assédio, talvez, Jamie
será mandado embora, como deveria ter acontecido há muito tempo, por
motivos que muitas pessoas já sabem. Mas os verdadeiros motivos para sua
“saída” serão mantidos por debaixo dos panos. Acredite em mim, é mais do
que perfeito, é a coisa certa a fazer.
Quando Alex terminou de explicar o resto, Nicole apenas assentiu.
— Preciso deitar.
Nicole ficou em silêncio enquanto Alex a escoltava para fora do pub e a
ajudava a entrar em um Uber à espera. Depois que a porta foi fechada, e Alex
voltou a atenção para Katie, apertando o cobertor em volta de seu corpinho
inquieto no ar frio da noite, ela ouviu o barulho da janela sendo aberta atrás
dela.
— Depois disso, chega — disse Nicole. — Você tem que me prometer.
Nada mais de tramas, de planos. Chega.
Alex ficou feliz que um único aceno rápido de cabeça tenha sido suficiente
para amenizar o pânico nos olhos de Nicole. Poderia nunca a entender, mas
havia se afeiçoado a ela, Alex percebeu. E não gostaria de mentir
descaradamente para ela.
CAPÍTULO 27

JILL

– C omoBem
assim, você não pode me dizer? Não pode me dizer por quê?
antes de a raiva abafada de Jamie atravessar as paredes de
vidro da sala dele, Jill soube que alguma coisa estava acontecendo. Como
pássaros pousados em um arame, a fileira de topógrafos juniores se movia
para a esquerda e para a direita pela longa linha de mesas em frente aos
elevadores, trocando informações com acenos de certeza e pios de descrença.
Era uma cena que ela já tinha testemunhado antes, mas em geral na manhã
seguinte às grandes festas de escritório.
Talvez por nunca ter sido alvo de fofoca, mesmo quando jovem, Jill não se
opusesse tanto a isso quanto Paul e Jamie. Na verdade, ela sempre gostara em
segredo. Algumas afirmações estridentes se elevaram acima do chilreio
coletivo — “Amy diz que ele sempre foi um tarado com ela, até apertou a
bunda dela uma vez”; “Desculpe, mas isso é mentira, não acredito em uma
palavra!” — e ela fez uma anotação mental para perguntar para Kellie qual
dos corretores de meia ou gravata espalhafatosa estava se comportando mal.
Isso acabou não sendo necessário. Ao se aproximar de sua sala, ouviu
Jamie levantar a voz e identificou à primeira vista que eram Ross e Jayne do
RH sentados em frente a ele.
— Eles estão lá há quase uma hora — sussurrou Kellie. — Paul estava
tentando falar com você. Estão dizendo que alguém o acusou de assédio.
Jill tirou o celular da bolsa: quatro chamadas não atendidas. Havia se
esquecido de ativar o som quando saiu do hospital naquela manhã. Sua mente
voltou aos lábios carmesins de Nicole, amargos e finos: “Não vou denunciá-
lo. Ponto-final.” Mas, se ela não tinha denunciado Jamie, parecia que outra
pessoa o fizera.
— Droga. — Então, ciente do silêncio e dos rostos virados para ela: —
Cancele minhas ligações, está bem? Cadê o Paul?
— Na sala dele.
— Minha nossa.
Paul não se afastou da janela quando a ouviu entrar; ficou ali de costas
para Jill, olhando para o emaranhado feio e cinza do viaduto de
Hammersmith abaixo.
— É uma confusão dos diabos.
— Sim. Desculpa. O celular estava desligado.
— O que você sabe?
— Nada. Acabei de ficar sabendo.
Ele se virou.
— Eles estão suspendendo Jamie, com efeito imediato. Estão dizendo isso
pra ele agora.
Jill só conseguiu assentir.
Afundando de volta em sua cadeira, Paul olhou para o nada.
— É ruim, Jill, muito ruim. As palavras que o RH está usando… Nós dois e
a empresa precisamos nos afastar disso. Imediatamente.
O que quer que Jill esperasse, não era isso. Paul sempre apoiara Jamie,
sempre o defendera.
— Pensei que você e Jamie…
— Eu e Jamie o quê? Saímos para uma cerveja de vez em quando?
Jogamos golfe vez ou outra? Bem, eu não vou ser arrastado para essa
confusão, eu já lhe digo. Você entende como alegações desse tipo são
tóxicas?
— Estou ciente.
— Os jornais ficam sabendo e de repente começam a usar a palavra
“endêmica”, falando sobre uma “cultura de assédio” e pintando a BWL como
uma espécie de “Clube do Bolinha”. Para você tá tudo bem, Jill, porque é
mulher.
Em qualquer outra circunstância, ela teria rido da declaração.
— Não estou entendendo.
— Sou o único outro homem na sociedade, não sou?
Jill não teve tempo de se impressionar com quão egocêntricas as pessoas
ficavam com o medo, com a rapidez com que aquele instinto de pura
autopreservação é ativado, eliminando qualquer lealdade anterior.
— Mesmo que eu não seja arrastado nesse nível — continuou ele —, se
isso vazar, quem vai querer fazer negócios com a gente? Não posso me dar ao
luxo de levar um golpe agora. Não com o divórcio a ponto de me tirar tudo.
— Nós sabemos quem é a mulher?
Paul a encarou.
— É Nicole Harper. Achei que você soubesse.
Ela tentou engolir.
— Não. Eu… Certo.
— Mas Jamie não sabe disso. O RH não está dando detalhes até que ele
esteja fora do prédio, e é aí que devem apresentar as alegações contra ele,
imagino. Mas, por enquanto, só você e eu podemos saber que houve uma
reclamação.
— As pessoas já sabem, Kellie e outros. Eu ouvi comentários no caminho.
— Merda.
Era culpa dela? Culpa dela por não ter relatado a perseguição sobre a qual
Nicole lhe contara, uma perseguição que levou a um assédio?
— No momento, é claramente a palavra dela contra a dele. Mas sabemos
que ela não quer prestar queixa, o que é… útil, para nós, quero dizer.
Eles caíram em um silêncio sombrio.
— O RH disse mais alguma coisa? — perguntou ela depois de um tempo.
— Até que investiguem as alegações por completo, não podem nos dizer
muito mais. Mas Ross disse que muitas vezes há um padrão de
comportamento nesses casos, e quando uma mulher faz uma denúncia…
— Meu Deus.
— Então, temos isso para aguardar ansiosamente.
Paul cutucou uma área ressecada do couro cabeludo.
— Sabe, é alguém que conhecemos, em quem confiamos e com quem
trabalhamos há anos! Você… — Ele apontou para ela e então, percebendo o
quão acusatório parecia, deixou a mão cair sobre a mesa. — Bem, você o
conhece melhor do que eu. Vocês dois eram amigos, amigos de verdade. E
sei que ele gosta de mulheres, mas… Jamie não é o tipo de homem que faz
isso, é?
— Não faço ideia do tipo de homem que Jamie seja. — Pouco tempo atrás,
Jill teria sido incapaz de esconder a tristeza de sua voz. Agora era como se
estivesse falando sobre um estranho. — Eu não disse nada para você, mas nos
últimos meses o comportamento de Jamie tem andado muito estranho. Coisas
das quais eu não sabia antes vieram à tona. — Ela pensou no e-mail. —
Incompetência. Deslealdade. E agora a revisão interna. E eu suspeito que ele
vinha sendo muito franco com você ultimamente sobre o que achava de mim.
Mas nada chega aos pés disso. A gente deveria ter imaginado, não é? Talvez
apenas não quisesse ver.
Mas Paul estava balançando a cabeça.
— Não. Não vou levar a culpa. É disso que estou falando! E nós dois
sabemos que não dá para se recuperar disso. Seja verdade ou não, não
importa. A merda não só gruda, ela mancha. Precisamos tirar Jamie de cena.
De vez.
O que a velha Jill faria? A Jill que lidaria até com as piores “surpresas”
profissionais da maneira mais racional e eficiente possível.
— Acho que temos que deixar nossos sentimentos de lado e começar a
preparar uma declaração caso precisemos declarar algo publicamente.
Foi quando estavam no primeiro rascunho, ambos ainda desejando com
fervor jamais precisar usá-lo, que o som da voz erguida de Jamie os colocou
de pé. Tinham ouvido uma ou duas explosões mais altas desde que Jill viera
para a sala de Paul, mas esta veio do meio do escritório.
— Lá vamos nós. Mas ouça, acho que é melhor nenhum de nós se
envolver e deixar Ross fazer o trabalho dele.
Distraída demais pelo confronto público que agora ocorria entre Jamie e
Ross do lado de fora, no meio do escritório, Jill só conseguiu assentir.
A cena teria sido cômica — o diretor do RH era quase meio metro mais
baixo do que Jamie e muito mais redondo — se a situação não fosse tão séria.
— É uma pergunta simples. O que Pete está fazendo aqui?
Eles estavam do lado de fora da sala de Jamie, e, ao esticar o pescoço, Jill
pôde ver que o maior e mais benevolente dos três seguranças da BWL estava
de pé, um pouco mais afastado ao lado de Jayne, a braço direito loira e mais
imponente de Ross.
— Podemos ter essa conversa na sua sala?
Como que para lembrá-lo a direção de sua sala, Ross estendeu o braço e
Jill ficou surpresa pela onda de antipatia que sentiu naquele momento, não
por Jamie, mas por seu obsequioso diretor de RH. Quantos anos ele devia ter
passado vendo aquele homem bonito e carismático dominar o escritório?
Agora era o seu momento. A situação talvez o divertisse.
— Já conversamos, Ross — ela ouviu Jamie contra-atacar —, e ainda não
sei de nada, a não ser que supostamente ataquei… ataquei… uma
funcionária.
Qualquer que tenha sido a resposta da gerência de RH em seguida,
provocou uma nova explosão.
— Você não pode esperar até eu sair? Tem que fazer isso agora? Não.
Desculpe. De qualquer forma, quero meu casaco.
Havia mais de cem pessoas no andar, mas, exceto pelo toque de um ou
outro telefone e o zumbido da fotocopiadora, o lugar estava silencioso, todos
os pescoços tensos, todos os olhos grudados na tela sem enxergá-la.
— É sério que você não vai me deixar pegar meu casaco? O que você acha
que vou fazer lá? — Jamie olhou de Ross para Jayne. — Deletar toda a
pornografia do computador?
Depois de alguma ordem murmurada que Jill não conseguiu ouvir, Pete
entrou rapidamente no escritório de Jamie, ajoelhou-se e desapareceu debaixo
da mesa — reaparecendo segundos depois com um cabo nas mãos.
— Certo, já chega, vou ligar para meu advogado. Isto é… inaceitável. —
Jamie usava aquela linguagem pateticamente autoritária de novo, como se
acreditasse que poderia se salvar ou alguma imagem de dignidade com
formalidades profissionais. E Jill sentiu a crescente inquietação contra a qual
vinha lutando desde o início da conversa com Paul se reafirmar. Algo estava
errado, e não de uma maneira óbvia. Não, era a reação de Jamie que estava
errada. Porque, por mais que Jill tivesse começado a questionar o quão bem o
conhecia, aquele homem estava sinceramente surpreso com as acusações
feitas contra ele.
— Ashley, pode ligar para Simon Oliver? Agora. E não quero saber se ele
está almoçando ou no clube. Diga que preciso que me retorne imediatamente.
Mas os olhos de sua assistente estavam fixos no computador de Jamie, que
era carregado para fora da sala.
— Ashley?
Enquanto a pobre garota piscava para ele, então para Ross, Jill se
perguntou se ela ia cair no choro.
— Eu… eu…?
Ross balançou a cabeça para ela.
— Não posso ligar para meu advogado? — Jamie olhou em volta, agitado.
— Isso está mesmo acontecendo? Ei, meninas, me ajudem aqui? — Jamie
havia ido para o eixo central, os braços estendidos. — Deve ser uma de
vocês. Não precisa ficar tímida. A não ser… Espera, a não ser que vocês
também não se lembrem. Porque não me lembro de ter atacado ninguém. E
não é o tipo de coisa que você esquece, não é?
A camisa de Jamie escapara para fora da calça na parte de trás e seu cabelo
estava todo bagunçado para cima.
— Foi você? — perguntou ele a uma agente júnior, que olhava com
atenção para seu computador. — Por acaso eu abri a porta de um jeito que te
deixou “desconfortável” ou falei que gostei da sua saia? É uma saia muito
bonita. Posso dizer isso? Ou é um “ataque verbal”? Provavelmente. —
Quando não houve reação, Jamie começou a balançar as mãos na frente do
rosto dela. — Oi! Oi! Estou falando com você! — o que a fez se sobressaltar
alarmada e todas as mulheres próximas ficarem imóveis para não serem
notadas e perseguidas. — Vamos lá! Ninguém vai confessar ter sido atacada
por mim? Uma de vocês chega com uma mentira, uma palhaçada que, aliás,
eu não posso nem saber qual é, e de repente eu virei a porra do Harvey
Weinstein? Cadê a prova…? Cadê a prova?
Pelo canto do olho, Jill viu Ross, ladeado por Pete, indo rápido em uma
diagonal em direção a Jamie.
— Ah, é, eu esqueci, não precisamos mais de provas, não é? Porque se
uma mulher diz, se é a verdade dela, então é a única verdade.
— Já chega, Jamie — disse Ross, acrescentando outra coisa que ela não
conseguiu ouvir.
— Pior? Como isso poderia ficar pior? Você inventa que sou um tipo de
predador que ataca mulheres; não só mulheres, mas minhas funcionárias; e é
para eu simplesmente desaparecer em silêncio, sem saber quem foi?
— Jamie. — Ross estendeu a mão para dar um tapinha no braço dele antes
de refletir, e por um segundo Jill teve o pensamento absurdo de que Jamie
poderia dar um soco nele. — Como explicamos, as alegações serão
esclarecidas em seu devido tempo.
A um sinal de Ross, Pete se aproximou e segurou o braço de Jamie com
uma mãozona.
— Vamos lá, meu amigo, está na hora de ir.
— Amigo? — Jamie deu um passo teatral para trás. — Ainda sou seu
amigo, Pete? Eu era seu amigo quando você me deu o currículo da sua filha e
me pediu para procurar um estágio para ela, não foi? Eu com certeza era seu
amigo quando arranjei para ela aquela vaga temporária na salinha dos
correios. E agora não sou mais. Na verdade, você quer me jogar na rua.
— Você precisa ir e esfriar a cabeça.
— Porque tudo vai parecer melhor amanhã de manhã? Acho que não. Mas
vou embora… depois de pegar meu casaco.
Jamie deu um passo em direção à sala dele e Pete também, barrando o
caminho do chefe.
— Não faça nenhuma besteira, Jamie.
— Pete está certo. Já basta. Entendo que a situação seja desconcertante.
Para todos. Mas agora precisamos que você vá embora.
Apesar de tudo, Jill sentiu uma onda de vergonha alheia por seu antigo
amigo quando Pete, com a mão firme no braço de Jamie, o “levou” até o
elevador para sair.
Foi então que todo o andar pareceu soltar a respiração em uníssono. E
depois que os murmúrios diminuíram — um exame adequado da situação
seria feito no pub mais tarde —, todos voltaram ao trabalho. Todos, exceto
Jill, que ainda estava ali, com a mão na maçaneta, na sala de Paul.
— Paul?
— Oi? — O parceiro dela estava curvado sobre a mesa, a cabeça entre as
mãos.
— Não perguntei antes porque estava com vergonha. Porque eu tinha
certeza de que sabia a resposta e que alguém estava pregando uma peça em
mim. Mas Jamie por acaso enviou para você um e-mail, um tempo atrás,
referindo-se a mim como “VSQ” e — ela se contorceu — “senil”, sugerindo
que eu não passava mais “a imagem certa” para a empresa, esse tipo de…?
A maneira como Paul se mexeu na cadeira, sua recusa em olhá-la nos
olhos, a fez parar de falar.
— Tivemos uma breve troca de e-mails, uns quatro ou cinco meses atrás,
na qual ele, hã, me disse que estava preocupado com você e achava que você
deveria tirar uma licença. Mas “senil”? Ele nunca usou uma palavra dessas
em nenhuma mensagem para mim. E “VSQ”? O que isso quer dizer?
O alívio a fez sorrir.
— Deixa pra lá. Deve ter sido… uma brincadeira. — Alex. Devia ter sido
Alex.
É claro que Paul não reagira às palavras grosseiras de Jamie naquele e-
mail porque aquele linguajar só tinha sido adicionado mais tarde, quando o e-
mail estava sendo editado — por uma ex-assistente vingativa.
— Mas eu deveria te dizer — lá estava aquele olhar suspeito de novo —
que houve uma carta enviada ao conselho, sugerindo que você fosse…
— Aposentada?
— Tentei convencer Jamie a desistir e me recusei a participar. Mas ele
estava preocupado que a doença de Stan estivesse cobrando seu preço. Ele
falou disso algumas vezes para mim. — Paul corou. — E para outros,
infelizmente. Atribuí a atitude ao ego dele: Jamie sempre quer… sempre
quis… ser o macho alfa, não é?
Talvez fosse simples assim. Jamie não era o homem que ela pensava que
ele fosse, e o fato de ele ter escrito aquela carta era mais do que traiçoeiro;
era imperdoável. Porém, se as palavras naquele e-mail foram manipuladas
para fazê-lo parecer pior do que de fato era, como Jill poderia ter certeza de
que Nicole não estava fazendo a mesma coisa agora? Se o relato dela tinha
sido exagerado, isso não tornava a punição que decidiram infligir a ele pior
do que o crime em si?
Ela já estava na metade do caminho de volta para sua sala quando Paul
gritou:
— Jill, por que a pergunta?
Uma vez em sua mesa, ela enviou um e-mail.

Para: Raxugdy@sharklaser.com
De: Jill Barnes
Eu sei que você alterou aquele e-mail. O que mais você fez, Alex? O que mais?

A resposta veio minutos depois: um lembrete arrepiante do laço que as


unia.

De: Raxugdy@sharklaser.com
Para: Jill Barnes
Um brinde a derrubar um homem não tão legal.
CAPÍTULO 28

NICOLE

– A indaRupert
não está visualizando bem?
Jones se moveu devagar e em silêncio ao redor da galeria,
massageando a lateral do pescoço com os nós dos dedos enquanto olhava
para cima e para baixo em direção às quatro fileiras de camarotes dispostas
em um semicírculo ao redor do palco. Os camarotes, e o ainda surpreendente
teto trompe l’œil, não importava quanto tempo passasse o admirando, sempre
foram as características mais impressionantes do teatro a seus olhos. Mas
depois da reunião com o conselho do departamento de planejamento na
semana anterior — uma reunião em que um número alarmante de limitações
inesperadas foi imposto ao desenvolvimento estrutural da propriedade —,
Nicole tinha sentido uma queda acentuada no entusiasmo de Rupert.
Cabia a ela deixá-lo empolgado de novo, mas, depois de uma noite insone
no hotel e da ligação para o RH que finalmente teve coragem de fazer naquela
manhã, Nicole não sabia se ainda tinha forças. No entanto, precisava fechar o
negócio.
— Originalmente, os camarotes tinham suas próprias entradas nos lados
norte e sul — informou ela com uma alegria que achou fisicamente dolorosa
de simular. — Ao que parece, os teatros da época tinham sempre essa
disposição, uma entrada para o rei…
— … E outra para o Príncipe de Gales — murmurou Rupert, olhando para
o arco do proscênio. — Sim. Eu também li o relatório.
— Claro que sim. — Nicole desejou ter parado para comprar o ibuprofeno
de que tanto precisava no caminho até ali. A parte de trás de seu crânio doía
depois de toda a bebida da noite anterior, e não tinha consumido nada além
de café preto no café da manhã. — É tudo muito fascinante, não é?
Fascinante? Seu telefone zumbiu alto na bolsa. Ela o colocara para vibrar
depois das duas primeiras chamadas perdidas e agora se arrependia de não tê-
lo desligado de uma vez.
— Desculpa.
— Atenda.
— Não, não. De qualquer forma, você ouviu o que o planejamento disse
sobre levar o palco para trás, então é uma grande vantagem, mesmo que…
— É basicamente a única alteração estrutural que tenho permissão de
fazer.
— Bem, eles não disseram exatamente isso — rebateu ela, sorrindo,
embora fosse verdade. — Mas eles poderiam ter sido mais prestativos, eu
concordo. Ainda estou convencida…
Um zumbido mais insistente quando uma mensagem de voz foi recebida.
— Alguém realmente quer falar com você.
Ele se virou, e Nicole aproveitou a oportunidade para pegar o celular na
bolsa e verificar se era Ben, finalmente retornando suas ligações. Mas Rupert
escolheu aquele momento para falar:
— Não vou mentir: aquela reunião da semana passada mudou as coisas.
— Claro que sim. — Ela se sentia repetitiva e lenta, incapaz de fazer seu
trabalho e, ainda assim, perfeitamente ciente de como era importante fechar o
negócio antes de deixarem o local. Do contrário, Rupert não fecharia, ela
tinha certeza disso. E, no entanto, havia algo humilhante sobre essa parte de
seu trabalho, lembrando-a, como sempre, de que não passava de uma
vendedora, fixando-se na indecisão daquele momento crucial antes de se
solidificar em um “não”.
— Olha, tenho certeza de que você, dentre todas as pessoas, consegue
encontrar uma maneira de contornar essas coisas. E, na verdade, manter o
lugar do jeito que está, com as restaurações necessárias, claro, vai apenas
aumentar o charme, não? — Ela estava entrando em desespero e ele sabia
disso. — Este lugar é tão original! Quer dizer, eu nunca vi nada assim.
A expressão facial de Rupert estava irredutível. Estava na hora de
aumentar a aposta.
— E preciso dizer, recebi uma ligação de outro possível comprador. Claro
que posso evitar outras visitas à propriedade por, bem, uma semana, talvez
dez dias, se necessário? — Ela fingiu o constrangimento profissional que
teria sentido se estivesse dizendo a verdade. — Mas em algum momento terei
que dar um retorno e dizer se ainda está disponível ou não.
Rupert sustentou o olhar dela por um segundo, divertindo-se com a falta
de jeito de sua tática.
— Outro possível comprador, hein?
— Isso mesmo. — Quanto mais se mente, mais fácil fica. E agora cada
frase que Nicole abria a boca parecia estar cheia de mentiras. — Mas consigo
um tempinho. Digo, no segundo em que vi este lugar, pensei: “É a cara do
Rupert.” E vim falar com você primeiro porque sei que está procurando um
local no noroeste tem, não sei, uns 18 meses… ou mais?
Por cima da balaustrada, ela vislumbrou a curva da primeira fileira de
poltronas das cadeiras Ambassador. 8A: aquele era o número — branco sobre
preto — para o qual ela tinha olhado depois, enquanto estavam deitados. E,
por um momento, se viu de cima junto a ele: ofegantes e satisfeitos no tapete
gasto. O lugar pareceu abafado, a umidade a pinicando na axila e entre os
seios, trazendo o cheiro do suor da véspera. Ela não tinha pensado em levar
uma troca de roupa para o hotel, apenas em sobreviver ao jantar. Porque
depois nada mais importaria: depois, só haveria ela e Jamie.
— E como eu ia dizendo… — Distraída com a acidez do próprio hálito,
Nicole se esqueceu completamente do que estava dizendo. Não ajudou que
Rupert a estivesse examinando daquele jeito.
— Você está bem? Parece… — Ele fez um gesto vago com a mão em sua
direção, e ela sentiu uma pontada de vergonha de como devia parecer
desalinhada, da blusa amarrotada à maquiagem aplicada no metrô. Estar
impecável era parte de quem ela era; hoje Nicole se sentia como se estivesse
desmoronando.
— Desculpe, Rupert. Sabe, eu estou… Na verdade, não estou me sentindo
muito bem. Você se importa se eu for ao toalete um segundo? Assim você
tem tempo para olhar um pouco mais?
No banheiro mal iluminado, ela procurou por uma cabine limpa o
suficiente onde pudesse se sentar, mesmo que por um segundo, antes de
desistir e afundar no chão, as costas na parede. Com dedos trêmulos, ela
pegou o celular, olhando para a imagem do protetor de tela como se as duas
pessoas na imagem não tivessem nada a ver com ela. Syon Park, um domingo
gelado, sete… não, oito meses atrás. Chloe nos ombros de Ben, mal se vendo
o cachimbo de bolhas de sabão que ela comprara para a filha no caminho na
mão da menina. A repreensão afetuosa de Ben à esposa, quando ela insistiu
que visitassem a loja de presentes primeiro: “Você nunca consegue esperar,
não é?” E sua culpa ao interpretar a frase, sabendo que havia enviado uma
mensagem a Jamie provando exatamente isso no caminho até lá: Me diga que
consegue escapar amanhã? Preciso de você.
Ross, o diretor do RH, tinha ligado duas vezes e deixado uma mensagem de
voz que ela não teve forças para ouvir. A terceira mensagem, no WhatsApp,
era de Anita, uma colega do setor de Desenvolvimento de Projetos. O
relacionamento das duas sempre se limitara a pausas para um cigarro
eletrônico e fofocas de celebridades em uma rua secundária de Hammersmith
atrás do escritório cheia de lixo. Nunca tinham saído para beber juntas ou
entrado em contato por qualquer meio que não o e-mail. Meu Deus — você
ficou sabendo?, dizia a mensagem dela. Jamie foi suspenso!
Ela sabia que isso aconteceria. Do silêncio de Ross do outro lado da linha
depois que ela arrastou os preâmbulos sem sentido o máximo que pôde e, por
fim, conseguiu proferir aquela frase, recitá-la, na verdade, porque era essa a
sensação. Basta dizer a primeira frase e o resto vem, porque precisa vir: você
não tem escolha depois de as primeiras palavras serem ditas.
— Ross, estou ligando para relatar um assédio. Jamie, ele me assediou.
Ela sabia que ele seria suspenso, porém, foi só enquanto assentia
silenciosamente às instruções de Ross para escrever um e-mail com uma
declaração “incluindo todos os detalhes que você lembra sobre o ocorrido”,
as transformações começaram a ser absorvidas.
— Sei que pode ser difícil para você — ele havia dito, mais profissional
do que tranquilizador, como uma mulher no cargo dele sem dúvida teria sido
—, mas também é vital em termos de como procederemos a partir daqui.
— Mas eu não quero prestar queixa — ela se apressou em dizer, em
pânico. — Não quero envolver a polícia. Não posso… passar por nada disso.
— Alex havia jurado que não seria necessário, mas ela precisava ter certeza.
— Eu não tenho que fazer isso, tenho? — Ela estava parada na janela do
quarto de hotel observando os mesmos turistas da véspera raspando o
finalzinho de seus ovos Benedict, enquanto ela estava na ligação. Enquanto
assistiam a um espetáculo no West End ou faziam o que quer que as pessoas
viessem a fazer em Londres, ela afundava sua vida. E agora faria o mesmo
com a de Jamie.
— Neste momento, a declaração vai ser vista apenas por nós — enfatizou
Ross. — E será seguida de uma investigação. Mas Nicole: vamos precisar
que você fique fora do escritório hoje enquanto lidamos com isso.
— Claro.
Ross então disparou a falar sobre a confidencialidade do processo e sobre
“minimizar as especulações dos colegas de trabalho”, e o tempo todo Nicole
teve a sensação curiosa de cair em um poço sem fundo.
— Nicole? Você ainda está aí?
— Estou.
— Não preciso dizer que não deve haver contato direto com o acusado.
— Sim. Quer dizer, não. Não vou entrar em contato com ele.
O acusado. Como se estivesse num drama de TV. Ela pensou nos CEOs,
ministros e atores que foram demitidos à primeira menção de
“impropriedade”, que dirá assédio, nos primeiros meses do Me Too. “Não me
foi dito o que supostamente fiz”, dissera um deputado. E naquela época
Nicole não tinha acreditado que isso pudesse ser verdade. Naqueles
pensamentos casuais que o noticiário pode provocar, ela se perguntou sobre
as esposas e os filhos: tinham sido pegos de surpresa? Os sussurros nos
portões escolares foram ruins o suficiente para fazê-los mudarem de escola
ou as crianças também foram consideradas vítimas e recebidas com empatia?
Aquela palavra — acusado — a obrigou a pensar na pessoa que havia
afastado de sua cabeça desde o início: Maya. Quanto tempo até ela descobrir?
E será que seria uma daquelas mulheres que negavam a verdadeira natureza
do marido? O tipo que você vê nos jornais orgulhosamente de mãos dadas
com um pedófilo do lado de fora do tribunal? Claro, Jamie podia confessar
um caso. Dizer que não era um santo e não importava quem fosse a mulher,
porque nunca significou nada, mas ele não era um monstro — e não tinha
feito aquilo.
Alex a tinha avisado que poderia sentir pontadas de culpa, mas que, toda
vez que sentisse isso, ela deveria se obrigar a lembrar: “Eu disse não.” E se
ela podia fazer Jamie sentir até mesmo um pingo do sofrimento fluindo por
ela agora, então era a forma mais pura de justiça.
Rupert devia estar se perguntando por que ela estava demorando tanto.
Apoiando-se na pia para ficar de pé, Nicole se debruçou sobre a torneira e
jogou água no rosto. Tarde demais, se lembrou da maquiagem nos olhos e
ficou parada por um momento, paralisada pelas gotas que escorriam por seu
rosto como lágrimas lamacentas.
Quando terminou de limpar o rosto e respirou fundo duas vezes diante do
espelho, Rupert já tinha visto as galerias e a esperava do lado de fora, no átrio
do teatro.
— Rupert, sinto muito. Eu realmente estava me sentindo um pouco mal,
mas estou bem melhor agora.
Ele ergueu os olhos do celular, tentando mascarar a irritação. E ela se
perguntou qual teria sido a última vez que Rupert Jones fora obrigado a
esperar.
— Eu estava pensando em levá-lo para comer alguma coisa? Isso nos daria
a chance de elaborar um plano e levá-lo de volta ao conselho e…
— Acho que não.
Ele respondeu tão baixinho que, por um momento, Nicole torceu para ter
ouvido errado. Porque não era só “não” para um almoço, ela sabia. Era “não”
para a venda — não para tudo. E por que isso importava tanto agora, Nicole
não tinha certeza, exceto que a sensação de queda estava de volta, como se
tudo que importava estivesse escapando de suas mãos.
— Rupert…
Em sua persistência, o zumbido parecia estar ficando mais alto, e enquanto
ela enfiava a mão na bolsa e procurava o celular entre os detritos de sua vida
— batons, canetas, pós compactos, baterias descarregadas e cabos elétricos
misteriosos —, Rupert se virou com um aceno e saiu porta afora.
Se o rosto de outra pessoa tivesse aparecido em sua tela naquele momento,
Nicole poderia ter jogado o aparelho contra a parede, mas era seu marido, era
Ben, e o alívio a deixou tonta.
— Ben. Finalmente. Estou tentando falar com você a manhã toda. Por
favor, por favor, podemos conversar? Onde você está? Posso ir ver você
agora? E a Chloe, como ela está?
Ela teria continuado se Ben não a tivesse interrompido em um tom grave e
comedido:
— Seu chefe, Jamie, está sentado na nossa cozinha. E ele está caindo de
bêbado.
CAPÍTULO 29

ALEX

“E
le está fora. Suspenso sem previsão de retorno.”
Alex tinha passado a manhã toda esperando a ligação de
Nicole, checando o celular tantas vezes na primeira meia hora
da aulinha para bebês que por fim a instrutora lhe deu uma bronca por “não
estar presente no seu momento mãe”.
Sem ter recebido nenhuma ligação ao término da aula, Alex começou a
questionar se Nicole tinha conseguido levar o plano adiante. Mas o efeito
calmante de Maya era tal que, caminhando junto a ela em direção à casa de
Maya para o almoço, Alex esquecera o celular no bolso do casaco até aquele
apito abafado; até as palavras que esperara meses, não só horas, para ouvir.
— Notícia boa? — perguntou Maya depois de uma conversa curta em que
Nicole deu a notícia, junto s outro fato: “Ele está fora, e parece que está
enchendo a cara em todos os bares de Hammersmith, pelo que falaram.”
— A melhor possível. — Alex sorriu. — Não vou encher seu saco com
detalhes. Mas não é ótimo quando um plano funciona?
Maya nem se preocupava mais em convidar Alex para o almoço depois da
Bumps & Babies. Era um acordo entre as duas que, duas vezes por semana,
sem falha, elas seguiriam para a casa de Maya, muitas vezes passando pela
Turnham Green Terrace. Às vezes, quando Maya precisava fazer algo ou
Alex tinha percebido que Maria chegaria mais cedo, ela ficava só uma ou
duas horas, sabendo que um segundo encontro com a babá talvez fosse o
gatilho para uma lembrança definitiva. Mas em outras ocasiões passava a
tarde inteira lá.
Ficou mais grata pela distração do que nunca, tendo enfim se forçado
naquela manhã a ligar para a mãe e dizer que não ia conseguir pagar o
empréstimo a tempo: que tinha perdido o emprego, que era mesmo a
decepção que o pai sempre a considerara. Ela ainda ouvia o pânico na voz da
mãe — “Mas o que eu vou fazer? O que vou falar para ele?” —, e sua
resposta fraca: “Desculpa, mãe. Desculpa mesmo.”
Mas ela não podia pensar nisso agora. A única coisa que importava era que
Jamie estava fora. O plano tinha funcionado. E isso: o barulho dos pratos
sendo empilhados por Maya na cozinha, a soneca que as meninas tirariam em
breve, e as horas preguiçosas de vinho e bate-papo que as duas aproveitariam.
Ela não estava preocupada com a possibilidade de Jamie voltar para casa.
Já tinha visto o ex-chefe fazendo a peregrinação dele em bares antes, e essa
com certeza seria ainda mais prolongada que a maioria. E também, como
Maria ia levar Christel para uma festa de aniversário depois da escola, isso
significava que Alex tinha a maior parte da tarde à sua frente, e ela se deitou
na esteira que Maya tinha estendido na grama para elas, tentando não pensar
na tristeza que sentia ao sair daquela casa e voltar para a sua, vazia, como a
sua vida. Cada vez mais aquela tristeza se transformava em algo
profundamente pior, com Katie chorando de soluçar e sentindo o mesmo, e
Alex sem conseguir fazer o necessário para acalmá-la.
Olhando para Maya agora, enquanto ela se curvava sobre as meninas, o
vestido de verão rosa claro decotado que ela usava escorregando para revelar
seios firmes envoltos em um sutiã de algodão branco, Alex se maravilhou
novamente com aquela tranquilidade sobrenatural. Ela conhecera mulheres
serenas e centradas, mas esses atributos em geral vinham às custas de outros,
tornando-as chatas ou pedantes.
— Não sei como você faz isso, acalmar Katie só de estar por perto. —
Alex se moveu alguns centímetros para ficar com o rosto na sombra. — Às
vezes ela está totalmente doida e é só olhar pra você que… — Ela balançou a
cabeça. — Você parece uma encantadora de bebês.
Maya se sentou à mesa, se equilibrando nos ombros de Alex ao fazê-lo.
— Que legal você dizer isso. Acho que ela só estava com um pouco de
cólica. Mas já está melhorando, não está, bebezinha? Estou mais preocupada
com essas suas queimaduras, Lexie. E sabe de uma coisa? Eu já fiz quase a
mesma coisa, quase enfiei a mão no forno sem colocar as luvas.
Alex tinha se esquecido da gaze que começou a enrolar nas mãos para
tentar conter os olhares e as perguntas. Ela havia esquecido também qual era
a história exata de queimadura que contou a Maya uma semana antes.
— Ah, na verdade está quase bom. Já quase não sinto. Talvez seja seu
suco de uva francês que esteja ajudando.
Uma caixa do rosé favorito de Maya chegara no fim de semana — um
presente do “marido encantador, mas levado, que tem algumas compensações
para fazer” — e Alex se permitiu ficar um pouco altinha durante o longo
almoço. “Como assim, você nunca bebeu Minuty?”, questionou Maya ao tirar
a garrafa da geladeira, colocando alguns cubos de gelo em cada copo. “Vai
mudar sua vida!” E na boca de qualquer outra pessoa teria sido um clichê
horrível, mas na de Maya — com seu leve sotaque — tinha o charme de uma
frase adulta imitada por uma criança. E, sim, o vinho era bom, mas tinha sido
Maya que mudara a vida de Alex.
Uma brisa suave soprou uma rajada de pétalas cor-de-rosa sobre as
meninas, e as duas mulheres se entreolharam e riram.
— O que será que elas pensam de tudo? — murmurou Maya quando parou
de rir, amarrando o sling marrom como uma echarpe ao redor dos ombros. —
Da vida?
Ela balançou a cabeça, envergonhada por sua seriedade repentina. Mas
Alex assentiu, ávida para tranquilizá-la de que já tivera pensamentos
semelhantes, mesmo que não fosse o caso. Ainda assim, parecia um
seguimento natural e uma prova de que ela era o tipo certo de mãe ao sugerir
que elas também se deitassem ao lado das filhas e olhassem para o mundo —
que também tentassem vê-lo com novos olhos. Porque algo nisso parecia
novo para Alex, agora que Jamie fora derrubado e Jill tinha adivinhado que
tudo vinha dela — bem, de todas elas, na verdade. Não que o e-mail que a
fundadora da BWL tinha enviado para a conta anônima de Alex naquela manhã
a tenha incomodado. Elas planejaram tudo isso juntas, então ninguém diria
nada a ninguém.
— Ahhh. — Maya suspirou ao deixar a cabeça loira e macia recostar na
esteira. — Fiquei tonta.
— Bom, a gente bebeu uma garrafa inteira, né?
— Verdade. — Maya fechou os olhos. — Mas rosé… não conta, né? E já
é quase final da semana.
— Uma quarta?
— Tanto faz.
Maya ficou em silêncio, e por um momento Alex se perguntou se ela tinha
dormido, mas ao olhar para a amiga percebeu que seus olhos estavam abertos
e fixos na magnólia acima delas.
— Lex?
Alex se apoiou nos cotovelos.
— É o seu celular?
Mal dava para ouvir o apito vindo da mesa da cozinha, onde deixara o
aparelho.
— Acho que eu cochilei por um momento.
Alex entrou na cozinha pé ante pé, torcendo um pouco para que a pessoa
que estivesse tentando falar com ela tivesse desistido. E desistiu. Mas, assim
que ela leu as palavras na tela — “Ligação perdida: Nicole” —, o celular
começou a tocar de novo.
— Oi? — Ela estava grogue do sol e do vinho. Apoiando o celular no
ombro, pegou um copo no escorredor e encheu de água gelada da pia. —
Olha, eu estou meio enrolada…
Mas Nicole não estava ouvindo.
— Ele está… na minha casa… marido?
As frases de Nicole, interrompidas por ondas de estática como se ela
estivesse atravessando um túnel em alta velocidade, vinham em fragmentos.
Alex pensou em desligar e culpar o sinal.
— Não estou te ouvindo. Você o quê?
Enquanto Nicole continuava fazendo barulhos incompreensíveis, Alex deu
uma olhada pela janela da cozinha para a rua quieta com fileiras de
sicômoros, e se imaginou como a dona do copo azul chique que ela enchia de
água, daquela casa e daquela vida. De tudo, menos o marido. Ela não o
queria. A partir daquele dia, ninguém o quereria.
— Nicole? Onde você está?
Uma caminhonete do mercado parou na calçada em frente e o motorista
saiu, os fones caindo das orelhas para o bolso, a boca se movendo em silêncio
com a música. Ele tirou cestas de plástico vermelho da parte de trás e as
empilhou em frente à porta dos vizinhos, enquanto as palavras de Nicole
finalmente começaram a fazer sentido.
— Na minha casa.
Alex podia apostar que conseguiria listar todos os itens naquelas cestas: os
inevitáveis avocados e as embalagens de leite de amêndoas para alguma
suposta alergia; os bifes orgânicos e o mel de Manuka.
— Quem está na sua casa?
— Jamie estava na porra da minha casa. Duas horas atrás.
Alex colocou o copo na pia.
— O quê?
— Duas horas atrás. Ben me ligou. Parece que estava bêbado. Claramente
foi encher a cara antes de decidir me confrontar. Ele sabe, Alex. É claro que
sabe.
Olhando pelas portas abertas do pátio para o jardim, onde as três figuras
ainda continuavam deitadas na grama, Alex abaixou a voz e conseguiu soltar
um fraco:
— De jeito nenhum, não tão rápido. Mas, claro, eles vão precisar contar os
detalhes da alegação mais para frente.
O que quer que Alex tinha dito para tranquilizá-la, Nicole devia saber
disso, certo?
— Não foi isso que você me falou ontem à noite. E que merda que ele foi
fazer na minha casa? Ben não me contou o que ele disse, mas eu estou
enlouquecendo, Alex.
Nicole agora soluçava.
— Calma. Como eu falei, o RH não vai ter contado a ele que foi você, não
agora.
— Eu só… Eu achei que eu teria um tempo, em que ele se acalmaria e eu
resolveria minha vida. Você me prometeu que eu ficaria segura.
O tom de voz de Nicole tinha ido de sofrido para acusador, e isso estava
começando a irritar Alex.
— Só espera. Logo tudo isso vai acabar.
Na rua, uma loira que era velha demais para usar aquela calça jeans
rasgada assinava o recebimento das compras.
— Eu nunca deveria ter topado isso.
— Nicole. — Alex respirou fundo. — Ninguém te forçou a nada. E não
esqueça — completou, sussurrando — que ontem à noite você estava num
bar me dizendo como Jamie tinha estragado a sua vida.
Uma pausa enquanto Nicole parecia deixar as lágrimas correrem.
— Minha filha estava lá! Chloe viu tudo!
Alex ouviu uma confusão de buzinas e um palavrão de Nicole, e o barulho
ao fundo diminuiu.
— Quer dizer, como ele se atreve? Como se atreve a entrar na minha casa,
na minha vida, depois do que fez?
— Bom, aposto que não vamos precisar vê-lo nunca mais. — A qualquer
minuto Katie acordaria e começaria a chorar. E Maya ia se perguntar por que
ela estava demorando tanto. Alex precisava desligar. — Olha, eu te ligo
depois, tá?
— Aham. — Nicole parecia meio doida. — Tudo bem. Te ligo depois,
assim que eu encontrar ele.
— Ótimo. — Alívio… Então um aperto no peito. — Espera, Nicole?
Encontrar quem?
O homem do mercado empilhava as cestas na rua e, enquanto esperava
Nicole responder, Alex se perdeu em seus movimentos metódicos. Em
seguida, seguiu a direção dos olhos do homem, que registravam a chegada de
algo ou alguém na rua tranquila. Uma mulher se aproximando com passos
rápidos e decididos; uma mulher com um celular na orelha, parada a menos
de um metro de Alex, agora, do outro lado da janela da cozinha. Uma mulher
cujas palavras, quando finalmente saíram, não foram silenciadas pelo vidro
entre elas, mas soaram assustadoramente altas em seu ouvido:
— Jamie — disse Nicole, a encarando. — Assim que eu encontrar Jamie.

Por um segundo tudo ficou paralisado, como se uma membrana estivesse


protegendo-a da repentina pressão atmosférica. Então os ouvidos de Alex
estalaram e tudo aconteceu ao mesmo tempo: a campainha, o choro de Katie,
Maya na porta, segurando sua filha com a cara vermelha, a boca uma máscara
da tragédia.
— Acho que tem alguém com fome!
De novo, a campainha.
— Aqui.
Entregando Katie para Alex, Maya foi para a porta de entrada.
— Espera.
Maya se virou.
— Não…
Mas era tarde demais; em um segundo tudo isso teria acabado.
— Um minuto, só vou atender — respondeu Maya com um sorriso. —
Olá.
A parede que separava a entrada da cozinha era fina, e de sua posição na
cabeceira da mesa da cozinha, Alex conseguia captar uma infinidade de
inflexões nessa palavra. Reconhecimento, antes de tudo, porque, embora as
duas mulheres nunca tivessem sido apresentadas, haviam se visto mais de
uma vez em ocasiões sociais. Confusão: o rosto de Nicole era provavelmente
um daqueles que só fazia sentido em um contexto profissional. E outra coisa:
uma tensão que sugeria alguma forma de conhecimento prévio da parte de
Maya.
— Maya… Eu… — A coragem que a havia impulsionado segundos antes
parecia ter desaparecido. — Não sei se você vai se lembrar de mim. Sou
Nicole Harper.
As duas estavam trocando um aperto de mãos?
— Nós nunca fomos apresentadas, mas eu trabalho com seu marido e
nós…
— É claro que eu me lembro. — Talvez Alex tivesse imaginado aquele
desconforto. — Entra.
O som de botas de salto na entrada, do tipo que causa danos irreparáveis
num piso de madeira como aquele; do tipo que deixa marcas no carpete.
Katie — que tinha se aquietado pela possibilidade de ser alimentada —
começou a chorar de novo com impaciência e, vendo sua bolsa ali perto, Alex
tentou pegar a mamadeira com as mãos trêmulas.
— Desculpa. — A voz ainda instável de Nicole na entrada, onde os passos
haviam parado. — Você está com…
— Não, não. É a filha de uma amiga. A minha ainda está dormindo. Como
posso te ajudar?
A tranquilidade de Maya se transformou em algo mais vigoroso, e uma
esperança louca se acendeu em Alex: Nicole devia ter adivinhado que, se
Alex estava ali, Jamie não estaria. Talvez não entrasse na casa. Talvez Maya
se livrasse dela antes que tivesse a chance de dizer muito mais. Então, Alex
poderia encontrar um lugar tranquilo para ligar para Nicole e explicar sua
presença ali.
— Estou procurando Jamie. Não conseguimos encontrá-lo. E depois do
que aconteceu hoje…
— Perdão, não entendi.
— Você não…? Ele não está aqui?
— Não. — Maya soltou uma risada frustrada. — Achei que ele estivesse
no escritório. O que houve?
— Aconteceu… uma coisa. E estou tentando ligar para o celular dele.
Perdão, achei que você já soubesse. Jamie foi suspenso.
Silêncio. Então um murmúrio:
— Melhor você entrar.
Quando as duas mulheres apareceram na porta, Maya, sempre uma anfitriã
graciosa, conduziu aquela mulher quase desconhecida para a sua cozinha
antes de procurar o celular. Alex se sentiu dividida em duas. Uma parte sua
queria fugir do confronto inevitável, e outra parte — a que cada vez mais saía
de si mesma — estava apenas curiosa para ver como Nicole reagiria.
— Essa é a minha amiga Lexie. Só vou acordar minha filha, aí tentamos
ligar para o celular de Jamie.
Apoiada no balcão, Nicole absorveu a cena em silêncio: Alex sentada à
mesa da cozinha de Jamie com a filha no colo; a tigela de frutas na mesa ao
lado de uma garrafa de vinho vazia.
— Lexie?
Talvez houvesse uma forma de sair dessa; talvez Maya não precisasse
saber. Mas Alex teria que falar rápido.
— Eu ia te contar. E eu sei que você falou para não me meter com a Maya.
— Não se meter com ela? — sussurrou Nicole com raiva. — Alex,
“Lexie”, mas que merda está acontecendo? — Uma pausa. — Me diz que
isso é só um apelido. Me diz que ela sabe quem você é.
Balançando a cabeça, Alex levou o indicador aos lábios.
— Isso é doido pra cacete, você sabe disso, né?
— Isso tudo era pra ser… — sob a mesa, Alex apertou a mão machucada
na quina da madeira, sentindo a onda de dor a acalmando quando as beiradas
ásperas apertaram a gaze e os ferimentos quase cicatrizados embaixo. — Era
parte do plano.
— Meu Deus — gemeu Nicole. Ela precisava falar baixo.
— Eu sei, eu sei. Mas as coisas que consegui fazer e descobrir aqui foram
muito úteis… para nós!
— Não, não, não. Eu não tenho nada a ver com isso. Nunca quis arrastar
Maya para essa situação.
— Será que dá para falar baixo?! — Nicole não estava entendendo. —
Todas aquelas coisas no escritório, o e-mail sobre a Jill que eu editei, não iam
ser o suficiente. Não está vendo? Eu precisava de mais acesso. Como você
acha que eu consegui fazer isso nesses meses todos? Os cigarros, a aliança
dele. — Alex ansiava pelo crédito, percebeu naquele momento. — Tudo isso
fui eu. A aliança já está no lixão a essa altura, e eu misturei ritalina nas
vitaminas dele, para deixá-lo nervoso, para deixá-lo do jeito que ele deixou a
gente. E Ainsley…
— O jantar foi culpa sua. Claro que foi.
— Não foi difícil. Algumas modificações no menu que a assistente de
Jamie tinha preparado para Maya resolveram. E enquanto Jamie estava
tomando um drinque antes do jantar com Hayden… — ela pausou antes de
completar seu triunfo — … Eu deixei uma fralda de Katie no banheiro das
visitas.
Mas Nicole não parecia impressionada; ela parecia chocada.
— Funcionou, não? Funcionou! Maya nunca nem percebeu que fui eu.
Estava tão ocupada arrumando a casa que achou que ela tinha deixado a
fralda!
No jardim, Maya finalmente tinha conseguido acordar Elsa e estava
voltando, com a esteira jogada acima do ombro. Isso só deu a Alex segundos
para explicar algo crucial:
— Mas eu gosto dela, Nicole. Mesmo. Nós somos amigas. Maya é
totalmente diferente dele. Ela é gentil e engraçada e uma pessoa boa mesmo.
As duas ficaram em silêncio quando Maya entrou, Elsa bocejando, e
Nicole abriu um sorriso forçado.
— Agora vamos tentar ligar para o papai, tá?
Maya apoiou Elsa no peito e depois na cintura de novo ao discar.
— Caixa postal — comentou. Então, no telefone: — Querido, Nicole, do
escritório, está aqui. Ela me contou o que houve. Estão tentando falar com
você. Se puder, liga de volta?
Alex esgueirou o olhar para Nicole, cujos olhos iam de um canto a outro
da sala, absorvendo os detalhes da vida do amante.
— Você quer um chá ou…
O telefone fixo tocou.
— Ah, pronto.
Com quer que Maya estivesse falando, não era Jamie.
— Ele… Que horas foi isso? É claro que deveria me dizer. — Aí, mais
estridente: — Como assim, não vão dizer? Certo. Obrigada, Jill.
As três permaneceram paradas. Alex ficou aliviada ao ouvir o choro de
Katie preenchendo o silêncio. O olhar irritado de Maya para sua filha pegou
Alex de surpresa.
— Lexie, você se importa de só… — Ela indicou o tapetinho de
atividades, sem precisar se explicar. — Eu só preciso entender o que está
acontecendo e não consigo com…
— Claro. Quer que eu leve Elsa também?…
Mas Maya se afastou dela involuntariamente. Um triângulo vermelho
havia aparecido no pescoço dela, na parte da pele exposta pelo sling enrolado
como um cachecol, e o olhar de Maya percorreu a cozinha, atordoado por um
momento.
— Na verdade, sabe de uma coisa? Acho que vou pedir para vocês duas
irem embora. Desculpa, eu tenho que… — Ela se virou para Nicole. —
Quando você disse que meu marido tinha sido suspenso, não falou o motivo.
Com os lábios apertados em uma linha fina, Nicole olhou em volta, sem
jeito.
— Eu estava mostrando uma propriedade para um cliente quando
aconteceu. Mas houve uma… acusação. Jill te contou? Mas, olha, me
desculpa por te atrapalhar. — Ela indicou a saída. — Vou deixar você em paz
agora.
— Tá. — Maya olhava pela janela da cozinha, para uma rua e um mundo
que deveriam parecer muito diferentes agora. — Assédio sexual —
completou, saindo de seu estupor e encarando Nicole. — Foi isso que Jill
falou. Que uma mulher no escritório está dizendo que ele… abusou dela.
— Maya. — Alex foi para o lado dela na hora, a mão erguida, mas sem
tocar no braço da amiga.
— Eu só não… — Maya apertou a têmpora.
— Deixe a Elsa comigo.
— Não, não. Eu estou bem. Só preciso ficar sozinha. — Então, para
Nicole: — Para responder a sua pergunta, eu espero que meu marido esteja
com o advogado dele.
— Certo. — Nicole assentiu e se virou para sair, murmurando um último
“Sinto muito” enquanto saía.
Se não fosse a total ausência de qualquer barulho acidental naquele exato
momento — nenhum cortador de grama do vizinho, nenhum carro passando
lá fora, nenhum bebê chorando —, talvez Nicole não tivesse ouvido as
palavras que a esposa de Jamie, com os olhos ainda no celular, falou:
— Sua vagabunda burra.
Alex parou de enfiar lenços umedecidos e protetor solar de volta na bolsa
e encarou Maya. Ela parecia a mesma mulher gentil, brilhante e centrada que
conhecera tão bem nos últimos dois meses, mas aquela voz e aquelas palavras
pertenciam a outra pessoa.
Nicole reapareceu na porta da cozinha.
— O que foi que você disse?
Maya se aproximou dela com Elsa ainda nos braços, e por um momento
Alex teve a dramática sensação de que Maya estapearia Nicole, mas, em vez
disso, ela se sentou na cabeceira da mesa da cozinha, com as pernas
ligeiramente afastadas e Elsa no colo, e começou a desabotoar o vestido.
Então, com um pequeno suspiro de irritação por ter que se repetir:
— Eu te chamei de vagabunda burra.
As duas mulheres se entreolharam, Nicole tão surpresa que um tremor
correu sob a pele, Maya com uma frieza quase divertida. Agachada ao lado
de Katie no canto do cômodo, Alex fora esquecida.
— Não vai perguntar por quê? — Baixando os olhos para Elsa, Maya tirou
uma das mangas do vestido do ombro, revelando o sutiã branco. — Já vai,
meu amor. Já vai.
Outro inclinar do mesmo ombro permitiu que a alça caísse, e, se
recostando para ficar confortável, Maya puxou o bojo para baixo e tirou o
seio intumescido, coberto de veias azuis e com o mamilo marrom, trazendo a
cabeça da filha para si. Durante todo esse processo, seus olhos nunca
deixaram os de Nicole.
— Você não vai perguntar por que eu te chamei de vagabunda? —
continuou, a voz entediada. — Acredito que é porque você acha que uma
esposa tinha o direito de falar assim com a mulher que está trepando com o
marido dela.
Só uma confusão rara de palavras — especialmente em tempos verbais —
mostrava que Maya não era uma falante nativa de inglês. Podia ser charmoso,
ou podia dar um peso às suas sentenças, como naquele momento. Alex
olhava de Nicole, na porta da cozinha, a bolsa pendurada na ponta dos dedos,
para Maya, majestosa, alimentando a filha, e se perguntou o que a mantinha
ali, na casa do amante, ouvindo o veneno cuspido pela esposa dele. Por que
não foi embora? No momento em que ouviu Maya dizer aquelas palavras, por
que não tinha ido embora? Jamie não estava lá e ele era o único motivo da
vinda dela. Ela estava estragando a tarde das duas, e agora precisava mesmo
ir embora.
— Direito?
Era um desafio — um que Maya respondeu com uma expressão levemente
confusa.
— Sim, o direito. Certeza de que é esperado, até.
Nicole engoliu em seco, claramente tentando recuperar o controle.
— Olha, eu não sei o que você acha que sabe ou o que Jamie te contou.
— Ah, por favor. — Maya inclinou a cabeça para o lado com uma
expressão entristecida. — Podemos partir do princípio que eu sei de tudo? Do
teatro, das mensagenzinhas safadas quando você deveria estar aproveitando
as tardes em família com a sua filhinha. Os hotéis, Best Western e Hilton, e
aquela ideiazinha idiota do Angelini’s. Então, quando eu digo tudo, quero
dizer tudo. Como? Porque eu organizei tudo isso. Eu escolhi você.
— Do que você está falando?
Devagar, Nicole deixou a bolsa no chão.
— Ele te chama de “Nikki”? Não. Não, ele te chama de “Nic”, né? — Ela
sorriu e balançou a cabeça. — Não importa. Você é casada, não é? Isso
sempre foi parte do acordo. Bom, a questão é que você entende. O tédio,
sabe? A mesma coisa, com a mesma pessoa, ano após ano. Todos estamos
entediados. E não acho que sejam os homens que ficam entediados primeiro.
Acho que eles só cedem à tentação primeiro.
— Do que você está…
— Jamie estava entediado. Eu estava entediada. Mas eu não ia deixar
nosso casamento acabar e fazer as crianças enfrentarem um divórcio por
alguns minutos, alguns segundos, do quê? De nada. E, bom… — Maya
estreitou os olhos e mais uma vez Alex se perguntou quem era aquela mulher
que ela achava que conhecia. — Eu comecei a pensar que talvez gostasse da
ideia dele com outra pessoa.
— Vocês dois… Vocês são doentes.
Maya refletiu.
— Não acho que seja verdade. Eu fiquei chateada, sabe, na primeira vez,
quando descobri sobre a assistente dele, anos atrás. Para começo de conversa,
ela era ralé, e era um clichê tão absurdo que obviamente as pessoas iam
começar a notar. Eu não gosto que saibam sobre meu marido traidor. Não
gosto de pena.
— Jessica? — A voz de Nicole estava rouca.
— Era esse o nome dela? Nem me lembrava. Mas foi ruim. E eu nunca ia
passar por aquilo de novo. Então, se ele fosse ter outra pessoa, teria que ser
nos meus termos. — Maya pausou, reposicionando a cabeça da filha
delicadamente. — A festa de Natal, dois anos atrás. Você estava com um
vestido preto com aquela gola espalhafatosa e aqueles sapatos. Eu tenho o
mesmo modelo em nude. Por isso que notei. Por isso que notei você.
O peito de Nicole subia e descia cada vez mais rápido.
— Acho que Jamie já tinha percebido que você era, sabe, alguém que ele
gostaria de comer. Provavelmente até já tinha imaginado isso quando estava
comigo, e no táxi para casa eu mencionei que você provavelmente não
dificultaria a vida dele.
Nicole enrubesceu.
— Você não sabe nada de mim.
— Ah, acho que qualquer pessoa conseguiria ver isso. E depois vimos que
você era adequada e que nunca ia largar seu marido.
— Você não sabe mesmo do que está falando. — De alguma forma Nicole
conseguiu reunir forças para retrucar. — Porque eu larguei meu marido.
Então seu joguinho não funcionou.
Ignorando-a, Maya continuou:
— Mas na verdade só havia duas regras: que ele me conta tudo, todas as
vezes. E que quando eu disser que acabou, acabou.
Ela ergueu os olhos verde-acinzentados de novo para Nicole.
— Você devia saber que ele não ia ser esse tipo de homem, não? O que
termina tudo, larga a família e começa de novo? Afinal, você era a única
presa em um casamento infeliz, Nicole. Nós estamos ótimos, sempre
estivemos. — Ela deu de ombros. — Mas ele fica… — ela pensou — …
animado demais, se deixa levar. Então talvez tenha te prometido coisas?
Coisas que ele não poderia, nem queria, cumprir. Mas essa é parte do charme,
não? E ter segredos é tão divertido. Só que Jamie não é muito bom em
guardá-los.
— Eu não… — Nicole a encarava fixamente. — Tem alguma coisa muito
errada com vocês dois.
— Talvez. — Elsa tinha acabado de mamar e estava desmaiada em um
estupor de leite no seio que Maya voltava a cobrir devagar. — Sendo assim,
por que você não sai da minha casa?
— Eu vou sair. — Nicole deu um passo, mas não parecia conseguir se
forçar a ir embora. — Mas, só para avisar, eu não acredito nisso. Porque se eu
era só algum… tipo de jogo, então por que Jamie apareceu na minha casa
hora atrás? — Maya fez um minúsculo movimento de cabeça, traindo sua
surpresa. — Esse é o único motivo pelo qual estou aqui. Para dizer que, se ele
apareceu lá para humilhar meu marido ainda mais, não precisa. — As
palavras eram interrompidas por soluços. — Não precisa! Porque ele já foi
humilhado! Eu larguei ele, como a gente planejou.
Nicole chorava feio, Alex percebeu, alheia, as sobrancelhas puxando a
pele da testa em uma série de rugas fundas, os cantos da boca se retorcendo
em uma careta. Talvez Nicole soubesse disso, porque em segundos já estava
secando as lágrimas com raiva.
— E se ele não queria que a gente, que eu fosse em frente com o plano,
então por que inventar aquela história do Angelini’s? Quem faz uma coisa
dessas, se não está pensando em ir até o fim?
Maya assentiu, quase com empatia.
— Disso, admito, eu não sabia. E dizer que fiquei surpresa quando ele me
contou por que me levou àquele restaurante… — Era a primeira vez desde
que a conhecera que Alex via Maya aturdida. — Não que tenha durado
muito: a gente mal tinha pedido e ele já tinha confessado. E quando olhei em
volta e vi você lá com…
— Espera — interrompeu Nicole. — Você sabia que eu estava lá?
— Você não está prestando atenção? Sim, eu sabia que você estava lá,
você e aquele seu pobre marido. Então deixei algumas coisas bem claras.
Primeiro, que ele não ia deixar as crianças nem a mim, naquele dia nem
nunca. E segundo, que se ele quisesse ver as filhas de novo e, ah, se não
estivesse a fim de ser chutado da BWL por todos aqueles, hum, atalhos que faz
no trabalho… Sim, eu sei bem que Jamie gosta de apressar acordos de um
jeito que Jill e Paul não ficariam felizes. Se ele não quisesse isso, era melhor
que comesse o bife e bebesse o vinho dele e deixasse você se virar.
— Você sabia, e me deixou acabar com o meu casamento?
Alex pensou na conversa que ela e Nicole tiveram no pub na noite
anterior: ela dizendo que havia algo na “dinâmica de poder” entre marido e
mulher que era estranho. Era por isso. Esse tempo todo, elas viam Maya
como a mulher traída, quando era ela, e não Jamie, que estava no controle
desde o início.
Mas nada disso realmente importava agora. O que importava era tirar
Nicole da casa. Porque todo aquele drama consumia um tempo precioso, e
Maya estaria se segurando por orgulho. Ela não podia desmoronar na frente
da mulher com quem o marido estava dormindo, mas Alex imaginou as
feições serenas da amiga entrando em colapso no momento em que Nicole
saísse, e sabia o quanto Maya precisaria dela então. Foi por isso que Alex
ignorou o pedido de Maya para ser deixada sozinha.
— Nicole. — Pela surpresa no olhar das duas quando Alex se levantou,
elas tinham mesmo esquecido que ela continuava ali. — Você já falou o que
tinha que falar, mas Maya pediu para você sair. — Seus ouvidos estavam
tapados de novo, e, embora conseguisse ouvir a própria voz, parecia estranha,
vinda de outra pessoa. — Ela é legal demais para repetir, mas eu não sou, e é
melhor você ir embora agora.
Para sua surpresa, Alex viu que Nicole estava sorrindo — talvez por
descrença, mas ainda assim sorrindo. Isso a irritou.
— Eu falei: vai embora.
Nicole balançou a cabeça.
— Não se preocupe, estou indo. Aliás, Maya — ela ergueu a voz quando
já estava na entrada —, o nome da sua amiga não é Lexie. É Alex. Alex
Fuller. Isso deve soar familiar para você, já que ela era a assistente do seu
marido até alguns meses atrás… quando ele demitiu ela por má conduta.
Quando Nicole foi embora, finalmente os ouvidos de Alex se destaparam.
Pelo olhar de Maya, pela forma como ela segurava a cabeça de Elsa, de um
jeito protetor, como se estivesse… Espera, ela estava com medo? Alex sabia
que tinha que agir rápido.
— Maya.
Correndo até ela, Alex se ajoelhou aos seus pés, enfiando o rosto no tecido
fresco, limpo e redentor do vestido da amiga.
— Sai daqui.
A voz de Maya não estava certa. Nada daquilo estava certo. Era como se a
mulher que ela conhecia estivesse sendo interpretada por uma substituta.
— Você não entende. Quando a gente se conheceu, eu estava…
— Sai daqui!
Mas Alex não ia sair. Não até que fizesse Maya entender. Ela contaria
sobre Jamie, sobre o que ele fizera com ela. E como ela chegou à Bumps &
Babies naquele dia. Porque agora, mais do que nunca, elas precisavam uma
da outra.
Enquanto Alex tentava abraçar mãe e filha, a voz de Maya estremeceu em
um sussurro, depois morreu, voltando mais forte.
— Sai de perto de mim ou eu juro por Deus que vou chamar a polícia.
Com um único movimento, ela empurrou Alex para trás e ficou de pé em
um instante, segurando Elsa junto ao peito. O que não deu a Alex outra
escolha. Maya precisava se acalmar. Se ela só ficasse quieta, Alex poderia
fazê-la entender. Ela se lançou sobre a amiga, segurando o sling que Maya
sempre usava frouxo como um lenço — aquele pano idiota e
supercomplicado que só supermães como ela conseguiam dominar —, e
agarrou-se firmemente a ele.
— Essas últimas semanas — soluçava Alex enquanto Maya arfava e
tentava em vão soltar o tecido cruzado em torno do pescoço — foram as
melhores da minha vida. Porque você não se importa quem as pessoas são ou
de onde vieram. E você me entende. Você me entende!
Ela encarou a amiga nos olhos, mas não havia compreensão ou simpatia.
Só medo. Enquanto Alex fazia força, Maya parecia estar escapando dela, o
branco dos olhos se avermelhando, até ela cair no chão.
— Eles estão vindo! Vão chegar a qualquer minuto — veio a voz de
Nicole de trás dela.
Espera: Nicole ainda estava lá? Sua voz parecia estranhamente estridente,
agitada, como as sirenes que se avolumavam do lado de fora. De repente,
Alex se sentiu muito cansada. Maya parou de dizer todas aquelas coisas
maldosas. Ela não estava dizendo nada agora — só estava deitada, imóvel, no
chão de ladrilhos. E Alex a faria entender, mas não agora. O que ela
precisava agora era chegar em casa e ir se deitar.
Estremecendo conforme as sirenes ficavam mais altas, mais próximas,
Alex pegou Katie e saiu pela porta da frente.
CAPÍTULO 30

JILL

– A lto. Cabelo castanho-claro. — Jill hesitou. — Provavelmente está bem


bêbado.
Outra negativa. Era a terceira desde que ela começara a descer a King
Street, procurando Jamie em cada pub sombrio.
— Você acha que ele talvez tenha passado por aqui mais cedo? — ela
perguntou, mas o barman já estava servindo outro cliente.
Lá, no trecho mais movimentado da rua principal, perto da estação, Jill
parou, descalçou o pé do salto que abrira um buraco na meia-calça e sentiu
uma onda de dor reprimida se dissipar. Demorou um segundo para encontrar
o telefone da casa de Jamie em seus contatos, mas, quando seu polegar pairou
sobre o ícone de ligação, ela decidiu de novo não ligar. E se Maya atendesse?
E se ele não tivesse contado a ela ainda?
Voltou a tentar o celular dele, mas só ouviu a mesma mensagem: “Olá,
você ligou para Jamie. Estou disponível — mas não agora.” Aquele jeito de
falar, atrevido e popular, que só aparecia na secretária eletrônica e em
reuniões: uma vez ela perguntou por que ele fazia isso. “Compradores
gostam”, ele respondera. “Faz você parecer um cara legal, sabe? Confiável.”
E na hora ela pensou: “Por que você precisaria se esforçar para parecer algo
que já é?”
Ansiosas para pegar o trem e começar a beber, as pessoas passavam por
ela aos empurrões. Ainda tinha o Belushi’s na esquina, mas será que Jamie
iria a um bar esportivo? Jill já não sabia mais a resposta para essa ou qualquer
outra pergunta do tipo “O que Jamie faria?”. E, ainda assim, lá estava ela,
indo contra seu bom senso e o de Stan, que tinha sido atipicamente lacônico
quando ela ligou para ele do escritório mais cedo para dizer que talvez se
atrasasse porque queria, precisava, encontrar Jamie.
— Por que você não deixa o Jamie para lá?
— Porque… — Ela começou a explicar, mas não tinha como contar ao
marido sobre Alex e a confirmação de seu envolvimento, do envolvimento de
todas elas. — Você tinha que ter ouvido ele no escritório mais cedo. Estava
tão nervoso.
No escritório vazio de Jamie, uma faxineira estava passando o aspirador.
— Você percebe que ainda está, mesmo depois de tudo que vem
acontecendo, acobertando o que ele fez, né? — perguntou Stan, com uma
risada exasperada.
— Você não entende.
— Não, não mesmo. — Ele suspirou. — Jamie colheu o que plantou.
Como ela explicaria que já não tinha mais certeza de nada? Sim, a carta
era verdadeira, mas não o e-mail, nem talvez a denúncia que fizera Jamie ser
suspenso. O quanto Alex e Nicole estavam dispostas a fazer para derrubá-lo?
Ao empurrar as portas do Belushi’s, ciente de que continuar perguntando
as mesmas coisas aos atendentes a faria ser confundida com uma esposa
zangada atrás do marido, Jill percebeu que a culpa que estava sufocando
havia se transformado em uma espécie de superstição. Como se, apenas por
causa daquela conversa idiota de bêbado ter acontecido, as três pudessem ter
causado aquela onda de coisas ruins.
— Com licença — ela gritou para o barman acima do barulho. — Um gim
e tônica? Duplo, por favor.
Ela engoliu o drinque em três goles e esperou que isso aguçasse sua mente,
mas emergindo do Belushi’s poucos minutos depois, piscando por causa da
luz, eram quase seis da tarde e o sol sangrava no céu rosa do crepúsculo.
Incapaz de decidir se tentaria ligar para Jamie de novo, se iria direto para
aquele pub, sabe-se lá o nome, em Hammersmith Grove ou se apenas desistia
e ia para casa, Jill parou por um momento, envolta por uma nuvem de fumaça
alheia do lado de fora. Então ligou para Maya. Se Jamie estivesse em casa,
ela ao menos poderia desistir e entrar em contato pela manhã. Tudo seria
resolvido. Só que ele não estava em casa. E, quando Maya atendeu ao
primeiro toque, parecendo tensa e esperançosa, Jill sabia que precisava contar
a ela.
Depois de assegurar que isso era tudo que ela ou qualquer outra pessoa
fora do RH sabia, pediu que Maya esperasse. Jamie estaria em casa assim que
parasse de se embriagar até a inconsciência e amanhã ele poderia traçar um
plano com o advogado. Jill foi direta e otimista — teve a sensação de que
Maya não estava sozinha, em todo o caso —, mas, quando ela ligou de volta,
segundos depois, para avisar que, é claro, se localizasse Jamie primeiro, o
mandaria para casa, ninguém atendeu. Para Jill isso significou que o marido
de Maya acabara de passar pela porta, até que viu o nome de Jamie piscar em
seu celular.
— Cadê você? Caramba, Jamie. Estou ligando sem parar. Todo mundo
está preocupado com você.
— Todo mundo?
Jill se afastou da aglomeração e tapou a orelha com a mão. Onde quer que
Jamie estivesse era barulhento, e ele estava falando arrastado.
— A Maya, para começar. Por que você não ligou para ela?
— E dizer o quê?
Jill ia ser obrigada a contar.
— Olha, eu acabei de falar com ela. Achei que você poderia ter ido para
casa. Ela pareceu muito preocupada. Eu tinha que falar alguma coisa.
— Claro que sim.
— Eu só estava tentando ajudar. — Uma música alta abafou suas palavras.
— Só me diz onde você está.
Demorou menos de 15 minutos para chegar ao Crown & Sceptre, um pub
triangular em um terraço, onde foi a comemoração do aniversário de Paul
anos antes, mas o lugar já estava lotado de bebuns com camisetas do Queens
Park Rangers (QPR). Claro que tinha um jogo passando. Esticando o pescoço,
ela viu Jamie, curvado sobre uma caneca de cerveja de meio litro na ponta de
uma longa mesa de homens usando cachecóis listrados azuis e brancos.
— Com licença. Perdão. Posso passar?
O alívio quando encontrou uma cadeira e finalmente se sentou superou
qualquer mal-estar, e eles ficaram sentados em silêncio por um momento.
— Por que você está aqui?
Ele estava com os olhos vidrados e distantes.
— Stan me fez a mesma pergunta. — Ela tentou sorrir. — Para ele, você
colheu o que plantou. E parte de mim acha isso também. Eu sei a verdade
sobre o que aconteceu com Alex, Jamie, sei que você a usou como bode
expiatório para as suas merdas. Que você roubou e mentiu e usou a doença de
Stan e a minha distração no escritório para subir. E sei que você mandou
aquela carta para o conselho. O e-mail foi alterado, tudo bem, mas a carta,
essa foi você que escreveu.
Um vislumbre de algo. Não arrependimento, mais irritação por ter sido
pego.
— E pode ser que você não sinta nenhuma lealdade a mim, a Stan ou
sequer ao seus funcionários. Você pode ficar tranquilo mentindo e enrolando
os outros, mas eu não. É por isso que estou aqui. Porque você merece ser
punido… mas só pelo que fez. E estou preocupada que exista algum tipo
de… — Ela estava entrando em terreno perigoso. — … vingança contra
você.
Limpando a espuma da cerveja do lábio, Jamie arregalou os olhos e riu.
— Você acha que eu não sei disso? Você não acha que passei as últimas
horas repassando tudo que tem acontecido na minha vida nos últimos tempos
e somando dois mais dois? — Jill queria estar com uma bebida na mão. —
Porque eu vou te contar que, quando você é chutado…
— Suspenso.
— Vamos chamar pelo que é. Quando você é chutado por uma coisa que
não fez, e a mulher com quem você passou 18 meses tendo um caso não só
não te liga mas nem atende suas ligações, não é difícil fazer as contas.
— Você e Nicole?
— Ahá! Então foi ela. Eu sabia que era ela!
Os outros homens na mesa deram uma olhada.
— Meu Deus, Jamie, eu não podia falar nada. O RH é que está no
comando.
— Bom, obrigado pelo aviso. E, sim, eu e Nicole estávamos juntos.
Estávamos apaixonados! — As palavras de Jamie saíram esganiçadas e ele
colocou a mão na frente da camisa. — E a gente ia tentar fazer dar certo. —
Ele hesitou, franziu a testa, deu um gole na cerveja. — Mas eu decepcionei
ela. Não consegui… ir até o final. E agora ela me acusou de assédio. Acho
que Biarritz não vai mais rolar.
Ele já não falava mais coisa com coisa, mas Jill entendeu o bastante para
concluir o resto. É claro que os dois estiveram juntos. Havia algo neles —
uma dureza, uma escuridão interna — que fazia sentido. Não entendia como
não tinha visto antes.
— Eu deveria ter imaginado. Acho que só pensei que você seria louco de
trair Maya.
Ele deu uma risada.
— Minha santa esposa traída. Você não tem ideia. Nicole não foi a
primeira. Fiz uma burrice anos atrás.
— Sua assistente.
— É. — Ele a encarou. — Sempre achei que você tinha descoberto.
Jill relembrou a conversa que teve com Stan no canal no dia seguinte ao da
festa de despedida da Joyce: sobre a assistente que havia ido embora de
repente, sem explicação.
— Foi irrelevante, ela era irrelevante, mas Maya nunca me deixou
esquecer. E vou te dizer, desde então é ela que decide tudo. A história com
Nicole foi ideia dela… para começo de conversa. Mas aí saiu do controle,
dela e do meu. Sabe de uma coisa? — Ele se inclinou para a frente. — Vocês
falam que nós é que somos os vilões, mas as mulheres são doentes,
manipuladoras, escrotas. Nic gostava dos nossos joguinhos. Pelo menos eu
achava que ela gostava. Aí tudo começou a ir pelos ares: as “confusões” no
trabalho, em casa. Não sei como não percebi, e só Deus sabe como ela estava
fazendo isso, mas o tempo todo era ela…
Jill ergueu a mão para interrompê-lo.
— Não, não, Jamie, não foi tudo…
Ele não estava ouvindo.
— Isso vai destruir tudo. Maya nunca vai me perdoar.
Jill imaginou Maya, bonita e loira, nos portões da escola — os olhares
atravessados, os sussurros. Não, ela não o perdoaria. E, apesar de tudo, Jill se
sentiu mal por Jamie. Talvez ele não fosse o homem que imaginava, mas
também não era o vilão que elas haviam criado naquela noite no bar.
— Vai acontecer uma investigação completa e vou me certificar de que
você será avaliado de forma justa.
— Legal da sua parte. Obrigado.
— Ei. É melhor que nada. Seu comportamento comigo, depois de eu ter te
acolhido, de ter te ensinado tudo, ter te promovido e te convidado para
jantar… A gente já tirou férias juntos, pelo amor de Deus.
Ele fez uma careta do tipo “não me venha com essa de novo”.
— Isso importa agora?
Jill de ombros.
— Não — ele respondeu por ela. — Então vou falar com sinceridade. —
Sem conseguir pronunciar os Rs direito, a palavra saiu “sinceidade”. — Eu
fui cortado. Estou fora. Mas você também deveria cair fora. Você passou
quarenta anos na empresa — falou, arrastando as palavras. — Não está bom?
Ele encarava Jill com os olhos desfocados, a cabeça girando no pescoço
sem controle, como uma boneca articulada.
— Certo. Acho que já dissemos o que tínhamos para dizer. — Ela pegou a
bolsa debaixo da mesa. — Vou chamar um táxi para você.
— Sempre tão adulta, né, Jill? Vai se foder.
O palavrão pareceu um tapa, e, dessa vez, quando os torcedores do jogo
olharam para eles, não estavam rindo. Jamie, porém, nem notou a atenção
que atraía, a boca retorcida ao dizer:
— Não estamos mais na sala da diretoria. E nós dois sabemos que não vai
ter nenhuma justiça comigo. A BWL nunca vai limpar meu nome, vai? Só Nic
pode fazer isso, mas ela não vai, não agora. Eu sabia que tinha sido ela, por
isso que fui na casa dela e tive uma palavrinha com aquele marido bundão
dela.
— Você falou com Ben?
— Pode ter certeza que sim, porra. Fui lá. Troquei uma ideia com o sr.
Harper. Vi a casa. Conheci a filhinha da Nicole. Muito fofa, aliás.
Jill cobriu o rosto com as mãos.
— Não, não, não.
— Ele é gente fina, o Ben. Ou era até o momento que contei que a esposa
dele me fez ser demitido. E que, se eu assediei a Nicole, ela deve ter gostado,
porque não parou de me procurar. Até queria largar ele para ficar comigo.
Esse era o limite de Jill.
— Estou indo embora.
— Espera.
Ao ficar de pé, Jamie derrubou a caneca, que se espatifou no chão.
— Cara! — O homem ao lado dele ficou de pé num pulo, encarando a
calça jeans ensopada sem acreditar. — Mas que…? Você não vai nem pedir
desculpas?
Mas Jamie nem reagiu, mal percebendo o que tinha feito.
Jill olhou para o homem.
— Sinto muito. Ele está… bem abalado. Pode deixar que vou…
— Eu não estou abalado porra nenhuma.
— Ei! Em vez de falar assim com a moça, que tal me pedir desculpa?
Jill não estava gostando nada daquilo e começou a buscar uma saída entre
a multidão do bar. Stan estava certo: aquela tinha sido uma má ideia.
— Desculpa pela merda da sua calça. — Pegando a carteira no bolso de
trás, Jamie tirou uma nota de vinte libras e jogou na cara do homem. — É da
Primark, imagino? Aqui, compra duas dessas. Jill, pra onde você vai? Achei
que a gente ia conversar.
Ela não pensou por um segundo que Jamie tentaria impedi-la, mas ele
segurava a alça da sua bolsa e a puxava para baixo.
— Para com isso, você está passando vergonha.
Ela alcançou o celular, clicou no aplicativo de táxi corporativo e chamou
um motorista para Jamie. Aquele era o limite da sua gentileza.
— O táxi chega em seis minutos. Vai para casa, para a sua esposa.
— É, eu mal posso esperar para ter essa conversa — ele riu sem humor. —
Só mais uma coisa: eu estava sendo leal. Eu estava sendo leal à empresa
quando falei que era melhor você ficar em casa. Você já estava uma bagunça,
você é uma bagunça, e você vai ficar pior até muito depois que ele se for.
As palavras flutuaram entre eles: depois que ele se for. Parecia o título de
um daqueles romances água com açúcar de banca de jornal sobre uma mulher
de Buckinghamshire que aprendia a viver e a amar de novo. Depois.
— Stan não vai a lugar algum. Você sabe disso.
A centímetros um do outro, se encarando nos olhos, Jill o viu perceber sua
vulnerabilidade. E viu que ele se focou naquilo.
— Isso é alguma negação alucinada? Ou ele realmente não te contou?
Ela tentou muito se concentrar na dor do seu pé direito, mas isso, junto a
todo o resto, pareceu ter sido abafado por algo tão imenso e pesado que
amortecia o restante.
— Stan não vai passar do Natal. Ele me falou isso em janeiro, naquele dia
que fui ao hospital. Quando você saiu do quarto e…
— Não.
— Ele não queria que você soubesse na época, que tinha se espalhado para
a coluna e os nódulos linfáticos. Mas achei que ele ia te dizer quando
estivesse pronto.
— Não.
Ela ergueu a mão para se proteger das palavras dele, e Jamie agarrou seu
pulso com força.
— Por que eu inventaria uma coisa dessas?
Tudo aconteceu muito rápido. Um braço sardento surgiu atrás de Jamie,
prendendo-o em uma chave de braço. O grito distante de “É melhor você tirar
as mãos dela agora, amigo”. As pessoas se afastaram quando dois, não, três
dos homens com cachecóis azuis e brancos, liderados pelo de calça jeans
encharcada de cerveja, arrastaram Jamie pelo pub até a porta, a camisa úmida
embolada, expondo alguns centímetros da barriga branca e mole, o salto de
um de seus sapatos de camurça se soltando enquanto ele era arrastado pelo
chão. E, embora Jill soubesse que deveria detê-los, ela esperou até que o
primeiro e o segundo socos acertassem e o terceiro o derrubasse, antes de
implorar aos homens que parassem.
Jamie ainda estava caído perto das lixeiras do bar, com os lábios
escorregadios de sangue, quando o carro parou. Jill colocou uma nota de
vinte libras na mão do motorista — “ajude-o a chegar em casa, sim?” —
antes de ir embora. Enquanto saía em busca de um táxi, ignorando o toque
persistente do celular na bolsa, seu único pensamento era “depois que ele se
for”.
Foi só ao ver a nuca do marido acima da poltrona que as lágrimas vieram.
Sem uma palavra, Jill enfiou o rosto molhado no pescoço dele e, depois de
um pequeno susto, sentiu o corpo dele afundar com a assimilação do que Jill
devia saber.
Mesmo enquanto chorava — “Por que você escondeu isso de mim? Por
quê?” —, Jill sabia a resposta. Era ver a esposa reduzida àquilo que Stan
queria evitar. Se soubesse antes, ela não teria sido capaz de suportar.
— Ter que ouvir isso de Jamie, Stan, o fato de que ele sabia e eu não…
Mas existem drogas experimentais que você pode tentar. Tem um hospital em
Bordeaux com uma taxa de sucesso incrível…
O marido não disse nada, balançando a cabeça e a puxando num abraço
desengonçado. E por um tempo os dois ficaram ali parados, Stan alisando o
cabelo dela e Jill esperando que os soluços dessem lugar à respiração trêmula.
Então, porque não havia mais nada a dizer:
— Camomila?
Jill assentiu, limpou o rosto e foi com Stan para a cozinha, onde ficaram
parados lado a lado esperando a água ferver, como já tinham feito milhares de
vezes antes — antes daquele dia, depois do qual nada mais seria o mesmo.
Ao ver o laptop no lugar de sempre na bancada, Jill se surpreendeu ao
pensar que deveria checar como Jamie estava, se tinha chegado em
segurança.
— Depois de tudo que ele fez? — murmurou Stan, olhando por cima do
ombro de Jill, que tinha começado a acompanhar o carro no sistema da
empresa.
— Eu sei. Mas ele entrou numa briga.
Stan soprou o chá.
— Não acha que era uma questão de tempo? Ele é um fardo, amor. Deixe
Jaime cuidar de si mesmo agora.
— Vou fazer isso. Só para ficar com a consciência limpa.
Como se para reforçar o pedido do marido, o círculo multicolorido ficou
girando na tela enquanto o computador carregava, e Jill se sentiu tomada por
uma onda de cansaço.
— Vamos. — Stan pegou sua mão e, com um último olhar para o laptop
aberto, Jill se deixou ser puxada do banquinho da cozinha. — Vamos deitar.

Mais tarde, no escuro do quarto e enevoada pelo calmante que Stan insistira
que ela tomasse, Jill se permitiu chorar de novo. Torcia para que o marido
estivesse dormindo e ficou triste quando ele estendeu a mão quente para ela,
tocando sua perna.
— Meu amor…
— Desculpa. Eu só queria que você tivesse contado para mim, não para
ele. Eu sei que você e Jamie ficaram próximos com os anos, mas…
Stan se virou de lado para encará-la na escuridão.
— Não foi por isso. Eu fiquei tão perturbado que nem sabia o que estava
dizendo. Então contei para ele o que os médicos tinham descoberto: o quanto
o câncer tinha se espalhado, o prognóstico. Depois, acho que fiquei torcendo
para ter sonhado com tudo aquilo. Nunca achei que ele iria me trair, a nós
dois, como aconteceu. — Ele segurou a mão dela debaixo do cobertor. —
Mas esqueça Jamie.
Jill queria dizer a ele que não conseguia, e por que não. Estava pronta para
fazer isso naquele momento e admitir que, embora o ex-sócio fosse culpado
de muitas coisas — infidelidade, oportunismo, traição e de uma deslealdade
tão grande contra ela e Stan que a abalava até o âmago —, ela também tivera
um papel em um plano cheio de mentiras e enganações.
— Stan, tem uma coisa que eu tenho…
Porém, antes de conseguir terminar, os olhos de Jill se fecharam.
CAPÍTULO 31

NICOLE

C
omo nenhuma das mães havia mencionado Ben, Nicole sabia que
elas sabiam. Fazia menos de uma semana desde que ela se mudara,
mas, de alguma forma, elas sabiam. E por algum motivo o fato de
ela estar se separando do marido a tornava popular de um jeito que nenhuma
tentativa anterior de integração com aquelas mulheres havia conseguido.
Desde que tinham chegado ao Bella Boos, a cafeteria infantil
horrivelmente cor-de-rosa onde a coleguinha de Chloe comemorava o
aniversário, um fluxo constante de mães viera lhe perguntar como ela estava,
e a anfitriã já completara sua taça de prosecco duas vezes.
— Dizem que é a maquiagem branca — disse a mãe da aniversariante, se
sentando ao seu lado depois de uma volta no salão servindo sanduíches.
— Perdão? — Nicole questionou ao mesmo tempo que uma explosão de
buzinas de festa soou.
— Palhaços. Dizem que é a maquiagem branca que assusta as crianças, até
os adultos. Então quando Annie comentou que tinha usado recreadores
infantis na festa da mais velha, que tem aquela coulrofobia, coulrofobia?
— Medo de palhaços?
— Isso. Enfim, aí eu achei que seria perfeito para a festa de Lizzie. Que
eles pareceriam menos bizarros, você não acha? Considerando como as
crianças dessa idade são assustadiças?
Enquanto ela comentava sobre os “terrores noturnos” que Lizzie tivera no
outono anterior, Nicole só assentia e tomava um gole de prosecco. Não ligava
que não estivesse muito gelado ou que fosse cedo demais para beber.
Também não se importava com a maquiagem branca dos palhaços. Ela só
queria que a normalidade e a pureza daquele momento cheio de balões cor-
de-rosa durassem para sempre, que as preocupações e conversas
inconsequentes daquelas mulheres abafassem as memórias das últimas 24
horas e silenciassem o barulho — aquele barulho de revirar o estômago — da
cabeça de Maya batendo como um ovo nos ladrilhos da cozinha. Como isso
nunca tinha sido o suficiente para ela? Por que ela procurava excitação e
perigo quando tudo de que precisava estava bem aqui?
Quando Nicole ligou para Ben naquela manhã, implorando para que ele a
deixasse levar Chloe à festa que apareceu num lembrete — e um alívio — em
seu celular, não esperava que ele concordasse. Mas, depois de testemunhar
aquela cena na cozinha de Maya na tarde anterior, e das horas gastas com a
polícia e na sala de espera do hospital — onde só depois da meia-noite lhe
asseguraram de que “A sra. Lawrence está bem. Assustada e machucada, mas
medicada e bem” —, ela precisava ver a filha.
Ben deixou o seu segundo “por favor” pairando no ar, contente pela
humilhação dela, fazendo com que ela a sentisse, antes de enfim responder:
— Tá bom. Mas Chloe precisa estar de volta às seis. Se comer depois
disso, fica muito agitada e eu levo horas para colocá-la para dormir. — Como
se Nicole já fosse uma estranha que precisava de explicações sobre a filha. —
E eu consegui aquele emprego na empresa de software no norte de Londres,
então vou aproveitar para me preparar.
Quando tentou parabenizá-lo pelo trabalho, Ben a interrompeu e desligou.
Não podia mais ficar surpresa ou feliz por ele. Não depois de tudo que
acontecera. Não depois de Jamie ter aparecido na porta deles totalmente fora
de si. E, embora o marido tivesse dito que a conversa foi breve e que Jamie
estava “bêbado demais para fazer sentido”, Nicole ainda se sentia mal
pensando no que ele poderia ter falado. O que teria acontecido na cozinha de
Maya se ela não estivesse lá para chamar a polícia?
Quando um acidente de trânsito é evitado por pouco, é só depois, quando a
pessoa para trêmula no acostamento da estrada, que o impacto evitado é
sentido. Nicole estava no acostamento agora, aliviada e grata pelo pior não ter
acontecido — por Jamie não ter contado a Ben e por Maya, que ficaria bem
—, mas ainda tremia por sua própria imprudência.
Ela fez tudo que podia para consertar aquilo. Informou à polícia sobre a
obsessão de Alex pelo homem que a demitiu e deu o endereço dela —
imaginava que os policiais já a teriam encontrado, não? Havia uma coisa,
porém, que ainda não tivera coragem de fazer: contar para Jill. Nicole chegou
a abrir seu contato, o dedo pairando sobre o ícone de ligar, antes de desligar o
celular, incapaz de descrever os eventos do dia anterior. Era ela, não Jill, que
deveria ter notado o quão instável Alex estava, e ainda assim o
comportamento violento dela envolvia as duas na situação.
— Que brincadeira é essa?
O celular dela estava tocando na bolsa, mas Nicole não tinha vontade
nenhuma de atender.
— Ah, você sabe. Moedinha risadinha.
Nicole balançou a cabeça. Por que sempre tinha a sensação de que aquelas
mulheres estavam falando uma língua que ela não compreendia?
— É como se fosse passa anel, só que em vez do anel…
Nicole sorriu e assentiu, mas voltou à cozinha de Maya em Chiswick,
tentando tirar Alex de cima dela, os braços pesados e os movimentos
assustadoramente ineficientes. E, ao se abaixar ao lado de Maya, enquanto
esperava a ambulância chegar, vendo o sangue escorrer da cabeça dela
tingindo o rejunte entre os azulejos de mármore em fileiras de carmim, seu
único pensamento tinha sido: “Isso é tudo minha culpa.”
Eles não a deixaram acompanhar Maya ao hospital e, por um momento
horrível, Nicole imaginou Jamie chegando e a encontrando ali, enquanto
segurava sua filhinha. O som de uma chave na porta fez seu coração apertar,
mas então uma mulher filipina baixinha apareceu, segurando uma menina —
Christel — pela mão. Lembrando-se do sangue, de todo aquele sangue,
Nicole bloqueou o caminho delas.
— Aconteceu uma coisa. Maya foi levada para o St. Mary’s — ela disse à
babá.
Entregou Elsa para ela, tentando ignorar o rosto tristonho de Christel, e
sentiu uma vontade tão grande de escapar daquele ambiente tóxico e sentir o
cheiro de cabelo limpo da própria filha que ficou tonta.
— Vou para lá agora — assegurara à mulher assustada. — E ligo assim
que souber de alguma coisa. — hesitou. — Você pode… pode ligar para o
pai das meninas?
Enquanto a mãe de Lizzie ia “dar uma olhada no bolo”, Nicole aproveitou
o breve momento sozinha para dar uma olhada no celular. Duas ligações
perdidas de um número desconhecido. Seria a polícia, dizendo que haviam
encontrado Alex? Mesmo se tivessem deixado recado, ela não tinha coragem
de escutar.
Não importava quantas vezes Nicole pensasse sobre aquela noite,
procurando alguma brecha de absolvição, não conseguia se livrar da
responsabilidade por Alex, e ela havia visto de perto a instabilidade de Alex
se desenvolver. Tinha até percebido sinais de alerta, mas escolhera ignorá-los
porque a fixação de Alex por Jamie, pela vingança, servia a ela.
— Quer um refil? — Há quanto tempo a anfitriã estava de olho nela? O
suficiente para vê-la virando a taça de prosecco em um só gole, de olhos
fechados. A pergunta a seguir com certeza seria… — Semana difícil?
Pronto.
— Sim. — Nicole estava cansada demais para dizer de outra forma. —
Mas acho que você já sabe disso. Parece que todo mundo já sabe que eu e
Ben terminamos. — Era uma forma tão adolescente de descrever a destruição
de duas, não, três vidas, embora ela não suportasse pensar dessa forma. —
Está sendo complicado. Vai ser complicado.
— Aposto que sim.
De repente, outra mãe, provavelmente uma das admiradoras de Ben, tinha
se metido na conversa, assentindo com uma expressão de pena.
Nicole respirou fundo.
— Só fico contente por ele estar sendo tão civilizado nessa situação toda.
E era verdade.
A pele translúcida da nuca da filha, sentada de costas para Nicole — tão
inocente, tão exposta pela maria-chiquinha —, trouxe lágrimas aos seus
olhos. De onde veio aquela sarda? Era uma sarda ou uma pinta, e o que mais
ela havia perdido? Todas aquelas viagens de negócios que tinha feito
pareciam administráveis, agradáveis, até, se Nicole fosse sincera consigo
mesma. Mas talvez porque ela sabia que a filha estaria lá sempre que
quisesse, sempre que precisasse ouvi-la tagarelar sobre Peppa Pig. E todos os
dias que passava sem Chloe, Nicole acordava com a sensação de que estava
sem um membro.
— Ela é linda — murmurou a mãe de Lizzie no seu ouvido, os olhos se
demorando em Nicole o suficiente para que surgisse a vontade de se virar e
falar, ainda sorrindo: “Sim, essa é a cara de uma mulher cujo casamento foi
para o espaço.”
Em vez disso, Nicole se pegou rindo.
— Ela é mesmo. Eu posso falar isso? Nunca sei.
E talvez tudo fosse ficar bem? Seria demorado e dolorido, mas ficaria
bem.
— Eu estou tão confusa! — ribombou a recreadora, olhando para baixo
com as mãos nos quadris para o círculo de rostinhos hipnotizados. — Mas
acho que está na hora do bolo!
Mais uma vez o celular de Nicole vibrou na bolsa. Dessa vez ela sabia que
precisava atender.
— Alô?
— É… — Uma pausa. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou, e Nicole tapou o outro
ouvido, seguindo para a porta. — Perdão, quem?
— Aqui é a Jill.
Ela devia querer uma atualização, mas Nicole não tinha nada de novo para
dizer.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha, e estão trazendo
o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não.
Depois, Nicole ficaria obcecada com o quando. Em que momento
exatamente ela soube que Jamie estava morto? Foi naquele “não”? Foi no
silêncio pesado antes de Jill continuar a falar? Porque, quando ela falou —
“Jamie morreu” —, de alguma forma Nicole já sabia.
— Encontraram o corpo hoje de manhã. A polícia quer falar comigo. Vão
querer falar com você também. E, Nicole — A voz de Jill ficou mais baixa
—, não estou conseguindo falar com a Alex.
Apoiando-se no batente da porta cor-de-rosa, Nicole se encolheu, o choque
atravessando seu corpo inteiro.
— Como?
Ele havia sido encontrado atrás do Vale Theatre naquela manhã, explicou
Jill. Ainda estava vivo na hora, mantido pelas estruturas de metal que o
empalaram. Mas sangrou até a morte na ambulância. A voz de Jill estava
aguda, em pânico:
— Temos que encontrar Alex.
Nicole tentou falar.
— Nicole, está aí?
— Sim. No teatro… — ela conseguiu dizer. — Tem uma construção
pequena de vidro no telhado. Só a gente sabia disso. — O fato de que ela
ainda conseguia formar frases coerentes era incrível. — Eu o levei para ver o
lugar. Nós… Jill? Jill?
Mas a ligação havia sido desligada.
CAPÍTULO 32

ALEX

D
e sua posição de cabeça para baixo na cama, a pintura parecia um
gato. Um gato ou talvez um tigre, pintado naquele estilo meio
aguado que deixa pinceladas na tela. Mas se girasse a cabeça para
olhar a imagem do jeito certo, ela mais parecia uma menina, com olhos
profundos e ferinos. Os olhos da sua mãe.
— Isso… — ela falou para a mulher que apareceu ao seu lado. — O que é
isso?
— O que é o quê? — Ela não tirou os olhos da prancheta que segurava.
— A pintura. É um gato ou uma menina?
Quando a mulher ergueu os olhos para relancear a pintura, Alex percebeu
que ela era jovem, com uma boca triste e… por que estava usando um jaleco?
— Ah, é uma raposa.
Alex tentou focalizar os olhos, mas suas pálpebras estavam pesadas e os
cantos pareciam grudados, como se tivesse dormido de maquiagem.
— Onde é que eu estou?
A ruga horizontal profunda na testa da mulher se suavizou, mas seu tom de
voz permaneceu distante.
— Você está no hospital… — ela olhou a prancheta — … sra. Fuller. Está
dormindo já faz bastante tempo. Quase dois dias. Como está se sentindo? —
Sem esperar resposta, continuou: — Seu médico já vai chegar e te explicar
tudo, agora que você acordou.
— Hospital? — Mas a enfermeira já estava saindo. — Dois dias? Ei! —
Sua voz estava fraca depois de tanto tempo sem usá-la. — Isso não é uma
raposa!
Tentando demonstrar isso com um gesto, Alex ouviu algo pesado e com
rodinhas se mover atrás do ombro esquerdo, e se virou para ver um suporte
de soro ao seu lado. Ela seguiu o trajeto do líquido cor de xixi indo da bolsa
para o cateter preso ao seu antebraço.
— Ei, volta aqui!
Batendo o suporte na estrutura de metal da cama, Alex conseguiu fazer
barulho o suficiente para trazer a enfermeira de volta.
— Pode parar com isso, sr. Fuller? Eu falei, pode parar com isso!
— Por que eu estou aqui? Cadê… — Uma lembrança, distante, mas que se
desenevoava, ia e vinha. Algo vital de que ela estava se esquecendo. — Eu
tenho que sair daqui.
Mas a enfermeira tinha sumido e mandado um homem baixinho de barba
entrar. Ele se sentou ao pé da cama.
— Meu nome é dr. Chua.
Alex sentia um gosto metálico na boca: remédios.
— O que tem nesse soro? Posso… Posso beber água?
O médico entregou para ela um copo de papel e esperou pacientemente
enquanto Alex bebia. Ele parecia simpático, diferente daquela vaca da
enfermeira.
— Você estava muito desidratada quando chegou — ele explicou,
indicando o soro.
— Mas, doutor… — De novo, aquela suspensão da respiração: algo havia
sido esquecido, deixado para trás. Mas o quê? Percebendo uma faixa
avermelhada nos nós dos dedos, onde segurava o copo de papel, Alex se
lembrou de esfregá-los e do cheiro do talco de bebê: Katie. Um som tão
agudo soou que ela pensou ter vindo de um alarme na rua lá embaixo. Só
quando o rosto do dr. Chua se elevou, preocupado, sobre ela, Alex entendeu
que o som tinha vindo de sua boca. — Katie — sussurrou. — Cadê minha
filha? O que vocês fizeram com ela?
— Sra. Fuller… Alex. — O dr. Chua segurou sua mão. — Sua filha está
bem e em segurança com a sua mãe.
— Com a minha… — Marcas fundas pontilhavam as bochechas do
médico, resquícios de acne da adolescência. — Isso não… Não. Você não
entende. Ela está em Portugal.
Sem respondê-la, o dr. Chua se aproximou da grande janela retangular ao
lado da porta e com um puxão abriu as persianas para mostrar o corredor do
hospital, antes de voltar ao seu lado na cama.
O cérebro de Alex levou alguns segundos para compreender o rosto que a
encarava do outro lado das ripas brancas.
— Sua mãe chegou na manhã depois de você ser internada. Tirando
algumas saídas para levar sua filha para passear e mamar, ela passou o tempo
todo aqui.
— Mãe — Alex articulou com a boca quando elas se encararam pelo
vidro.
A sua mãe estava com os lábios apertados, como fazia quando tentava não
chorar, mas seus olhos sorriam. Ela piscou uma, duas, três vezes, e Alex
reconheceu o código que as duas haviam criado na sua infância: uma forma
de tranquilizarem uma à outra depois das piores explosões de seu pai. Três
piscadas significam “Eu te amo”.
— Ela pode entrar. Mas primeiro eu e você precisamos conversar. — O dr.
Chua a encarou com tranquilidade por um momento. — Você tem alguma
ideia de por que está aqui?
Alex não conseguia tirar os olhos da mãe. A mãe, que tinha vindo e ficado.
Mas como? Será que o pai já não descobrira sobre o empréstimo? Ela não
queria pensar em como a mãe havia pagado por aquele segredo. Mesmo
assim, de alguma forma, ele havia permitido que ela entrasse em um avião e
viesse.
— Você está passando por um período difícil, não está? — O dr. Chua
ergueu uma sobrancelha fina. — Pode me contar um pouco sobre isso?
Começou quando Katie nasceu, talvez logo depois?
— Você acha que… Não, não. Isso não é uma coisa de pós-parto. — O
remédio que lhe deram estava deixando-a enjoada. Ela engoliu em seco. —
Eu não estava dormindo muito, tendo que fazer tudo sozinha… Bom, não tem
sido fácil.
O dr. Chua assentia, compreensivo.
— Eu só achei que, se conseguisse acertar… Sabe? Se conseguisse ser
uma mãe tão boa para Katie quanto era boa no meu trabalho. — Seu
estômago se revirou com a lembrança. — Mas aí tiraram meu emprego de
mim.
Uma após a outra, as memórias começaram a voltar, como mensagens
detidas por uma conexão ruim, e Alex começou a chorar tanto que perdeu o
controle dos músculos do rosto. Envergonhada, ela virou o rosto para o outro
lado, enfiando-o no travesseiro.
— Alex, às vezes, quando uma pessoa passa por um trauma, como a perda
de um familiar ou de um emprego que significa muito para ela, isso pode
despertar ou exacerbar uma questão que já existia, adormecida, havia algum
tempo. Também é possível que isso aconteça após o parto. Seja como for, nós
achamos que o que você teve foi um episódio psicótico.
Alex o encarou.
— No desenvolvimento desse episódio, a realidade às vezes parece
distorcida ou até dominada por paranoias, manias e fixações em certas coisas
ou pessoas. — Ele pausou, mas não por tempo o suficiente para estar
esperando uma resposta. Ainda bem, porque ela não tinha ideia do que ele
estava falando. — Mas esses sentimentos tendem a ter uma origem. E nós
gostaríamos de explorar diferentes fatores que contribuíram para essa
situação: o impacto da perda do seu emprego… — Ele fez uma pausa, dando
uma olhada para a mãe de Alex. — Seu pai, provavelmente.
— Meu pai?
— Eu conversei com a sua mãe. Ela nos contou um pouco da sua história,
de como você teve problemas na infância e na adolescência, do medo que
sentia do seu pai, muitas vezes com motivo.
— Ela disse isso?
O dr. Chua assentiu.
— Ela… — Alex olhou para a mãe. — Ela te contou mais alguma coisa?
Que não era só comigo?
— Sua mãe não é minha paciente — respondeu o médico com firmeza. —
Então não cabe a mim discutir as experiências dela. Mas vou dizer que a
violência doméstica raramente se restringe a só membro da família.
— Violência…
— Acho que vocês duas têm muito o que conversar. Porque isso… — Ele
fez um gesto indicando a situação atual de Alex, e, embora sua voz fosse
calorosa e empática, ela sentiu uma onda de vergonha com a natureza
simplificadora do pronome. — Isso não é você, Alex. E imagino que não se
sinta como você mesma já faz um tempo. Mas quando tivermos uma ideia
melhor do que está acontecendo aqui — ele deu uma batidinha na têmpora
direita —, vamos poder começar um tratamento. Tudo bem?
O que mais Alex poderia fazer além de concordar?
— Agora vou sair e dar um minuto para você conversar com a sua mãe a
sós. Mas vai ter que ser rápido, porque temos algumas coisas importantes a
discutir.
Mais uma vez, Alex concordou, desesperada para ouvir a voz da mãe e
enfiar o rosto na curva morna do pescoço dela. Mas, depois de alguns
murmúrios no corredor, quando a mãe apareceu na porta, Alex só conseguia
pensar em como a decepcionara, como o pai dela devia ter ficado furioso por
causa do dinheiro… e agora isso.
O rosto contorcido, ela conseguiu dizer:
— Desculpa, mãe. Desculpa por tudo.
Mas seus soluços foram abafados pela blusa da mãe, e pelo que pareceu
um longo tempo as duas só ficaram ali abraçadas. Quando Alex tentou falar
de novo, perguntando por Katie, a mãe explicou que ela estava em casa, em
segurança, com uma babá, e que não precisava se preocupar. Outras
perguntas foram abafadas enquanto a mãe continuava acariciando seu cabelo
em um ritmo lento e constante.
— Meu amor.
— Mãe…
— Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Com isso, Alex se forçou a sair do abraço.
— Como? Como que vai ficar tudo bem? Eu não vou conseguir te pagar o
empréstimo, mãe.
— Eu não ligo para isso. Não ligo para nada disso, amor. Tudo que
importa é que você se trate, que você fique melhor…
— Mas o meu pai… A casa nova…
A mãe dela cerrou a mandíbula.
— Não tem casa nova nenhuma. Não para nós, não para mim. — Ela
apoiou o rosto da filha na palma da mão. — Eu deveria ter dado um ponto-
final nesse comportamento anos atrás, décadas atrás. E eu teria feito isso se
tivesse ideia do que isso te causou. Mas eu era fraca, eu…
— Você estava com medo.
Sua mãe assentiu, e Alex viu que ela lutava contra as lágrimas antes de seu
rosto assumir uma expressão que nunca havia visto: parte raiva, parte
determinação.
— Quando recebemos a ligação… quando descobrimos o que tinha
acontecido com você, e ele tentou me impedir de entrar no avião… — Ela
balançou a cabeça. — Nem eu nem você nunca mais vamos sentir medo ou
vamos ser controladas por ele, isso eu te prometo. E eu vou ficar aqui com
você… — a mãe a puxou para outro abraço — … enquanto você precisar de
mim. Vamos ser eu, você e aquela garotinha linda.
— Desculpem-me por interromper. — O dr. Chua já tinha voltado.
— Ela não pode ficar só mais uns minutos? — pediu Alex.
Uma mensagem silenciosa foi transmitida entre o médico e sua mãe.
— Meu bem, vou dar uma olhada em Katie. Mas volto em uma ou duas
horas.
Alex se agarrou a ela, mas sua mãe se afastou com gentileza e a beijou na
testa.
— É só por algumas horas, eu prometo. E, se o dr. Chua achar que não tem
problema, posso até trazer a Katie.
Dessa vez o dr. Chua puxou uma cadeira.
— Os sedativos que te demos podem estar te deixando um pouco tonta.
Em longo prazo, precisaremos prescrever para você um antipsicótico e um
antidepressivo. Encontrar a combinação certa de medicamentos pode levar
tempo, então você terá que aguentar firme, mas é importante que entenda que
estamos lidando com algo um pouco menos previsível do que depressão ou
até psicose pós-parto aqui e, portanto, mais difícil de controlar.
— Minha mãe… — Alex pigarreou. — Ela falou de uma ligação, que
alguma coisa aconteceu. O que aconteceu? O que eu fiz?
— Já vou chegar nisso — respondeu ele baixinho. — Falamos com
amigos e colegas e eles nos disseram que você tem se concentrado bastante
no homem que te demitiu nas últimas semanas e meses. De forma doentia.
Uma pessoa descreveu como uma obsessão.
Flashes, como se seu cérebro estivesse entrando e saindo de sintonia de
novo: Jamie segurando Katie, cercado por mulheres babando nele. Como ela
permitiu que ele a tocasse? E quando isso aconteceu? Jamie atrás de uma
mesa, lendo em voz alta algum manual de RH. Jamie em um pub, cheio de si,
rolando em aplausos. A programação semanal de Jamie, com todos os seus
blocos codificados por cores.
— Achamos que essa fixação teve seu ápice nesse episódio.
Alex voltou a se sentir enjoada.
— Você ficou violenta, Alex.
— Não. Não pode ser. — Ela nunca tinha erguido a mão para ninguém na
vida adulta. — Eu nunca…
— Você foi até a casa do seu chefe e atacou a esposa dele.
Maya. Ah, Deus.
— As filhas dela…?
— As filhas dela estão bem. Mas Maya se machucou.
— Não. Maya é minha amiga. Eu nunca faria nada contra ela.
— Mas foi o que aconteceu. Ela teve que ir para o hospital.
— Não, não…
Alex tentou se erguer. Precisava sair dali, descobrir o quanto daquilo era
verdade, se é que era.
— Eu preciso que você se acalme e se concentre, porque a próxima parte é
importante.
Exausta, ela se recostou no travesseiro.
— Você teve sorte. A esposa do seu chefe vai ficar bem, e, pelo que fiquei
sabendo, não quer prestar queixa. Mas poderia ter sido muito pior.
O seio de Maya, cheio de veias azuis, exposto. Pétalas de magnólia caindo
como confete. Uma manta de piquenique xadrez e Katie de costas, bracinhos
levantados em ângulos retos. Nicole estava lá, e Jill. Não, não Jill, só Nicole,
prestes a estragar tudo. E durante tudo isso, o monótono subir e descer das
sirenes.
— Você tem certeza… — Alex engoliu e tentou de novo. — Você tem
certeza de que foi a esposa do meu chefe que eu…
— Tenho certeza. E minha única preocupação é a sua saúde e o seu
tratamento, mas a polícia quer falar com você. Eu sou obrigado a avisá-los de
que você está consciente agora. Porque eles estão tentando descobrir para
onde você foi depois.
— Depois?
— Depois.
As sirenes estavam ficando cada vez mais altas. A única forma de
bloqueá-las era entrar na estação de metrô mais próxima. Foi isso que ela fez
depois.
— Eu peguei o metrô para casa. Com Katie.
— Sabemos que você foi para casa primeiro. E, de novo, essa não é a
minha preocupação. Mas não foi lá que você foi encontrada mais tarde
naquela noite. Sua filha, Katie, foi encontrada no apartamento, sozinha. Ela
estava bem. Ela está bem, você tem que entender isso, mas a polícia
encontrou outras coisas lá, Alex: do seu antigo chefe, e-mails particulares
dele. E o que eles estão tentando descobrir é se você foi a outro lugar naquela
noite, se você encontrou o sr. Lawrence. — O dr. Chua se aproximou. —
Essas são as perguntas que a polícia vai fazer a você. Porque Jamie Lawrence
morreu, Alex. E a polícia acha que você teve algo a ver com isso.
CAPÍTULO 33

JILL
7 de agosto

– É uma formalidade, como falei ao telefone, sra. Barnes. Só estamos


colocando os pingos nos is. Então, se puder reler a declaração e
assinar aqui no final, estará tudo certo.
Era o mesmo detetive com quem falara 48 horas antes, o detetive Silver,
mas em uma sala bem diferente — mais clara, mais arejada — e em uma
atmosfera bem diferente.
— Você quer uma xícara de chá, uma água?
Ele então a deixou sozinha, revivendo os detalhes horripilantes das últimas
horas de Jamie — detalhes que Jill mal conseguia se lembrar de ter dado, de
tão nervosa que estava na sua última visita à delegacia. Respirando fundo, ela
começou a reler a sequência de frases curtas, confusas e muitas vezes
gramaticalmente incorretas no papel à sua frente.
“Na noite do dia quatro de agosto, quarta-feira, eu deixei o sr. Lawrence
do lado de fora do bar Crown & Sceptre, em Shepherd’s Bush, por volta de
21h15, onde ele havia sido socado e chutado por três torcedores do QPR. Os
homens estavam irritados com o comportamento dele no pub. Ele tinha
derramado cerveja em um deles.”
Ela tomou um gole do chá morno e continuou.
“A gente teve uma discussão sobre o comportamento dele nos últimos
meses e sua suspensão [causada por uma alegação de assédio feita pela
supervisora de projetos especiais da BWL, Nicole Harper].” Aqui Jill parou.
Ela não dissera nada à polícia sobre Nicole e Jamie terem tido um caso
consensual, sem querer se meter nos detalhes turvos de um relacionamento
que ela certamente nunca compreenderia. Que Nicole e Maya faziam parte de
algum joguinho sórdido agora era óbvio. Mas, quando ambas foram excluídas
de imediato do inquérito policial, Jill decidiu deixar que elas decidissem o
quanto queriam contar.
“O sr. Lawrence estava muito bêbado, então chamei um táxi corporativo
pela conta da BWL — nós usamos a empresa Addison Lee — para levá-lo para
casa. Dei ao motorista uma nota de vinte libras para que ele se certificasse de
que Jamie chegaria em casa, em segurança. Depois fui direto para a minha
casa.”
Aquela declaração, desprovida de todas as emoções conflituosas que havia
sentido naquela noite — raiva pelo comportamento de Jamie para com ela,
pena pelo que ele se tornara, vergonha de sua parte na queda que, em
retrospecto, talvez fosse inevitável, e enfim a dor visceral da descoberta do
diagnóstico terminal de Stan —, parecia o relato de outra pessoa, de uma
noite que ela, Jill, jamais poderia ter vivido.
“Eu ia verificar se Jamie tinha sido mesmo deixado em segurança pelo
sistema da BWL. Estava preocupada com ele e pensei em fazer isso. Mas
quando cheguei em casa me distraí com meu marido, que não estava bem.”
Não estava bem. Uma imagem dela agarrada a Stan, lágrimas umedecendo a
lã do suéter dele. A dor profunda que poderia diminuir com o tempo, mas que
faria parte de sua vida para sempre agora.
Será que, se ela tivesse realmente verificado o trajeto de Jamie, como tinha
pensado em fazer — quando chegou a logar no sistema antes de largar o
laptop aberto na mesa da cozinha —, a morte dele poderia ter sido evitada?
Será que sua preocupação seria o suficiente ao perceber que o trajeto dele
havia sido modificado para o Vale Theatre para mandar ajuda até lá? Ou será
que ela — o que era mais provável — teria fechado o computador e deixado
o homem responsável por tanta dor lidar com o próprio caos?
“Na manhã seguinte, na manhã de quinta-feira, 5 de agosto, decidi tirar o
dia de folga do trabalho para cuidar do meu marido. Então, em torno de 13h,
recebi uma ligação do meu sócio, Paul Wilkinson, que me contou o que
aconteceu.”
Ainda confusa com o calmante que Stan havia dado a ela na noite anterior,
Jill tinha enviado um e-mail para Kellie avisando que não iria ao escritório.
Então se sentou e começou uma lista de tarefas. Qualquer coisa para reduzir a
velocidade dos pensamentos no seu cérebro, para reestabelecer alguma
aparência de ordem.
Uma última viagem pelo Canal Grand Union era do que eles precisavam.
Uma última caminhada pelos lagos escalonados perto de Tring até Marsworth
e voltando pelos reservatórios. Um último bife com cerveja no pub Half
Moon — se o médico permitisse. O início de setembro seria ideal. Mais
tarde, as noites ficariam frias no Lady J. Mas primeiro eles precisavam se
sentar e discutir os planos funerários de Stan, as ideias que haviam dividido
sobre o assunto depois de enterros ao longo dos anos foram nada mais que
autoindulgência. E Jill estava pensando em como abordar isso quando o
telefone tocou.
Em um tom curiosamente monótono e clínico, Paul conseguiu informar o
que ela precisava saber — que Jamie morrera, que havia sido encontrado
naquela manhã em um canteiro de obras atrás do Vale Theatre, que ainda não
se sabia o que havia acontecido —, e Jill tateou atrás de si para afundar num
banquinho.
A sequência dos acontecimentos se tornara horrivelmente clara mais tarde,
quando Nicole descreveu a cena na cozinha de Maya. Alex, obcecada e
enlouquecida, primeiro atacou a esposa de Jamie em casa, depois o seguiu de
alguma forma até o teatro, levando até o fim sua vingança? Um brinde a
derrubar um homem não tão legal.
— Então, como estamos?
A cabeça do detetive Silver apareceu na porta.
— Eu, hum… — Jill deu uma olhada nas últimas palavras de sua
declaração e na linha pontilhada abaixo. Tanto havia sido deixado de fora,
mas os fatos ali listados, preto no branco, estavam corretos. Tudo que ela
precisava fazer era assinar seu nome abaixo deles, assinar a morte de Jamie.
— Você disse que isso é só uma formalidade. — Ela ergueu a cabeça para o
detetive. — É porque você sabe? Você sabe como ele morreu.
O detetive fechou a porta atrás de si e se sentou à sua frente. Seus olhos
eram gentis, mas cansados, e a camisa tinha a leve marca acetinada de um
ferro de passar. Talvez não houvesse uma sra. Silver em casa para cuidar
dele.
— O médico-legista vai dar o veredito oficial. — Ele parou. — Mas, sim,
sra. Barnes, estamos confiantes de que sabemos o que aconteceu.
— Então vocês falaram com a Alex? Ela está consciente?
— Sim. Ela ainda está mal, mas está recebendo cuidados médicos. — A
empatia na voz dele foi inesperada. — A sra. Fuller não estava nem um
pouco perto do Vale Theatre no dia 4: vários vizinhos confirmaram que a
ouviram gritando e caminhando desorientada pelas ruas em torno da casa dela
até tarde daquela noite.
— O quê? Mas… — A pergunta morreu nos seus lábios. — Jamie se
matou.
O policial assentiu.
— Ouvimos uma mensagem de voz que ele deixou para a sra. Lawrence
enquanto ela estava no hospital. Era… — ele franziu os lábios, talvez ansioso
para evitar uma dor desnecessária para ela — … bem conclusiva. Falou que
sentia que as coisas estavam “todas contra ele”, e não é incomum que homens
em situações assim sintam que não há como escapar, como fugir,
especialmente sob a influência de álcool ou drogas.
Jill assentiu, agradeceu… e assinou a linha pontilhada.
De todas as emoções que lutavam para serem ouvidas dentro de si
enquanto saía do prédio feio de tijolos vermelhos na Salusbury Road, ela
ficou surpresa ao perceber que a mais forte de todas era a raiva. Era típico de
Jamie fazer um gesto final tão egoísta. Trair Stan, destruir a vida dela… E
então chamar toda a atenção para si.
CAPÍTULO 34

JILL

– J ill?Agachado
Vem dar uma olhada nisso.
perto dos galhos baixos e amplos de um freixo no Jardim
da Reflexão do Crematório de Mortlake, Stan começou a ler as mensagens
deixadas nas folhinhas prateadas pelos enlutados.
— “Você era tudo para mim, Ted.” “JJ, você vai morar para sempre no
meu coração.” “Te amo mais que todas as estrelas do universo, minha
querida Anita.”
No luto, a emoção humana é reduzida a letras de música. E talvez não
houvesse nada de errado com isso; talvez, no final, banalidades sejam as
coisas mais honestas que as pessoas conseguem transmitir. Contudo, não
havia nada de honesto na presença de Jill ali, fingindo “celebrar a vida e
lamentar o falecimento” de James Edward Lawrence, quando ela não podia,
em sã consciência, fazer nem uma coisa nem outra.
— Acho que não consigo fazer isso.
A cerimônia ia começar em dez minutos — e Jill sentia suas costelas
apertarem vilmente.
— É claro que consegue. — Stan se levantou. — Você ficou acordada até
sei lá que horas escrevendo.
— Eu sei. Mas eu não deveria ter concordado em escrever o elogio
fúnebre. Não… cabe a mim.
Pela pausa do marido, ela percebeu, com um pânico crescente, que ele
sentia o mesmo. E havia mais uma coisa.
— Você não deveria ter que estar aqui. — Jill passou os braços em torno
da cintura do marido, alarmada ao perceber como suas mãos se encontravam
nas costas dele com facilidade, como se a própria substância dele estivesse se
esvaindo. — Você não deveria ter que…
— Encarar a morte de frente? — Virando-se para a esposa, Stan levantou
seu queixo. — Ei. Eu e a morte já somos amigos faz muito tempo. Eu sei que
é pedir demais, mas queria que você fizesse as pazes com ela como eu. Ou de
algum jeito… voltar a não saber.
Como ela poderia fazer isso? Era naquilo que pensava assim que acordava,
procurando sob as cobertas o corpo cálido e reconfortante do marido antes
mesmo de abrir os olhos, e era seu último pensamento antes de cair no sono.
Então, não, ela não seria capaz de suspender a realidade. Mas, se Stan queria
que ela fosse corajosa, então era assim que ela agiria.
Nos dias seguintes àquela última conversa com a polícia, aos resultados da
autópsia e à declaração oficial de suicídio, Jill tinha ido e voltado da culpa
para a fúria. Diferente de Jamie, seu marido não tinha a chance de escolher
como ou quando ia morrer. Ele nem sequer pôde escolher como contar à
esposa quanto tempo lhe restava: deixando escapar o que sabia naquela noite,
Jamie roubara isso de Stan. E mesmo assim… o quão desesperado Jamie
estaria para fazer o que fez? Certamente ele sentia que o mundo estava se
fechando ao seu redor. Um mundo que ela, Nicole e Alex haviam manipulado
para que fizesse exatamente aquilo.
Atrás das roseiras e das macieiras que cercavam o Jardim da Reflexão, o
vislumbre de um carro fúnebre surgiu.
Stan tinha razão. Ela estava ali agora e precisava enfrentar aquilo.
— É melhor a gente ir.
Quando deram a volta na cerca viva, uma criancinha de preto saiu do carro
atrás do carro fúnebre. Jill quase deu as costas e fugiu.
— Aquelas meninas… — murmurou. — Não vou aguentar.
— Eu sei, amor. — A voz do marido já não estava tão firme quanto antes.
— Vamos.
Lá estava Maya — com a postura bem ereta, usando um vestido de linho
preto e decote quadrado simples, segurando Elsa no quadril —, assentindo
para as pessoas reunidas enquanto passava pelo arco da entrada do
crematório. Ao se aproximarem, porém, Jill percebeu outra figura: uma
mulher com um chapéu preto de abas largas e óculos escuros, sozinha, de pé
ao longe.
— Ela veio.
Nicole ergueu os olhos do guia de orações que segurava e encarou Jill, a
incredulidade pelo que lera espelhando a emoção da mulher mais velha.
— Maya não quis fazer o discurso fúnebre… — explicou Jill, na
defensiva. — Então me pediu e eu… não pude recusar. O pai de Jamie vai
fazer o principal. O meu vai ser curto. É só um… Bom. Mas você? A Maya te
viu?
Jill pensou nas manchetes que surgiram depois da morte de Jamie: ILUSTRE
CORRETOR IMOBILIÁRIO SE JOGA PARA A MORTE APÓS ACUSAÇÃO DE ASSÉDIO;
CORRETOR DE IMÓVEIS DEMITIDO É ENCONTRADO EMPALADO EM OBRA.
— Foi ela que me pediu para vir — respondeu Nicole em voz baixa, se
balançando um pouco nos saltos altos. — E eu não poderia… deixar de vir.
Algo no rosto excessivamente maquiado de Nicole relaxou, e, enquanto as
duas se encaravam, Jill sentiu a própria raiva e recriminações desaparecem,
junto às de Nicole. Toda aquela amargura, e ódio, exauriu as duas.
— Stan? — Depois de uma conversa breve com Paul, o marido dela se
juntara às duas. — Essa é a Nicole.
— Já nos conhecemos. — Stan. Sempre educado e comedido, mesmo nas
circunstâncias mais difíceis. — Acho que eu já tinha me afastado da empresa
quando você começou, não?
— Exato.
Aquela troca era o mesmo preâmbulo banal de qualquer reunião social,
com o mesmo silêncio de “o que mais temos para falar?” ao ser concluída —
silêncio que Nicole preencheu perguntando sobre a saúde de Stan. Mas,
conforme o diálogo continuava, ficou evidente para Jill que qualquer tipo de
interação estava sendo muito difícil para Nicole. Algo curioso havia
acontecido com a boca dela, os lábios pintados de magenta se curvando de
forma estranhamente dura nas vogais, e naquele momento Jill compreendeu o
quanto custava a Nicole estar ali, apesar dos óculos escuros, do chapéu e do
batom. Aquilo tinha sido mais do que um caso. Talvez perder Jamie fosse a
maior tragédia da vida dela.

Nos primeiros acordes de “The Lark Ascending”, de Vaughan Williams, as


pessoas pararam de conversar, ajeitando gravatas, blazers e rostos em
expressões sóbrias. O calor da mão de Stan aquecia as costas de Jill enquanto
ele a guiava pelo corredor do crematório. Quando ela se voltou para ele com
um último olhar suplicante, ele assentiu de leve.
— Em uma hora isso já vai ter acabado — murmurou ele quando se
sentaram.
Que ele compreendesse, sem saber o que ela fizera, que Jill queria se
distanciar de tudo que tivesse conexão com Jamie depois daquele dia era um
milagre. E enquanto um pastor de cabelo raspado e expressão arrebatada
garantia aos presentes que Deus “ouviria seus lamentos e os confortaria”,
“acenderia uma vela por eles” e “estaria com vocês no vale mais sombrio”,
Jill observava a pequena Christel, três bancos à frente, brincando com uma
fadinha de plástico, fazendo-a caminhar para a frente e para trás na madeira
polida do banco.
Será que Maya comprara o brinquedo para a ocasião? “Seu papai se
matou. Ele está naquele caixão ali porque não quis esperar você perder seu
primeiro dente, se tornar uma mulher e ir ao seu primeiro encontro. Mas
toma, um presente.” Ali, a distância entre ela e as mulheres com filhos
pareceu maior do que nunca. Jill só precisava pensar em si mesma e em Stan;
a dor de perdê-lo e de viver sem ele. Como Maya conseguiria permanecer
forte não só por si mesma, mas por Christel e Elsa, para sempre?
Com passos pesados, o pai de Jamie seguiu até o altar da capela e parou
em frente ao caixão do filho. Jill percebeu que o terno preto parecia pouco
usado, embora não fosse novo — era do tipo que homens aos sessenta anos
compravam quando começavam a perder alguns amigos e percebiam que
mais perdas viriam. Um “uniforme de funeral” que nenhum pai jamais
imaginaria ter que usar para enterrar o próprio filho.
O cabelo branco dele brilhava contra a pele bronzeada do rosto — um
rosto expressivo e honesto —, e Jill se lembrou das fotos do apartamento em
Alicante que Jamie havia mostrado a ela uma vez no celular, orgulhoso de
poder dar aos pais a aposentadoria que sonharam, mas esnobe demais para
visitar — “o sol e o vinho não compensam os bandidinhos”. Jamie não
mencionava muito os pais, mas, nas raras ocasiões em que o assunto surgia,
Jill se lembrou, seu tom sempre fora amoroso.
Ted Lawrence devia ter se tornado pai no final da adolescência ou aos
vinte e poucos anos. Em contraste com o cabelo, o rosto dele era jovem e sem
rugas, os olhos do mesmo castanho aveludado de Jamie. Ele era
provavelmente travesso também, em circunstâncias normais. Trabalhava com
alguma coisa de aquecimento central. Caldeiras, era isso: Ted consertava
caldeiras em Sevenoaks, onde ele e a esposa, Laura, moraram até se
aposentar. Ela estava lá, ao lado de Maya, os soluços incontroláveis audíveis
pela capela inteira. Jill não aguentava olhar para ela.
— Ver tantas pessoas aqui hoje, saber o quanto o nosso filho era amado, é
um grande conforto para mim e para a minha esposa — começou o sr.
Lawrence devagar, tirando um lenço de papel amassado do bolso e alisando-o
com a palma da mão no leitoril. — Mas estou aqui com meu coração partido.
— Ele hesitou, e Jill desejou que ele conseguisse superar aquilo antes de se
lembrar que não havia como superar aquele tipo de luto. — Eu e Laura nunca
achamos que teríamos que lidar com a perda do nosso filho, nosso único
filho. Eu me atrevo a dizer que ninguém acha que isso pode acontecer. Mas
perder um filho assim. Sabendo que ele sentia não ter nenhuma alternativa,
que não podia contar com ninguém. — O sr. Lawrence balançou a cabeça. —
Porque Jamie tinha muitos planos, sabe? Para o futuro. E ele estava
trabalhando para torná-los realidade. Então isso… — Assentindo para a
esposa, os olhos do pai de Jamie se encheram de lágrimas. — Isso não faz
sentido. Ele sempre foi um otimista, desde menininho. Ele nunca deixava a
gente dormir até mais tarde nos fins de semana. Ele aparecia com o sol,
pulando na cama, dizendo para a gente acordar. Não é, Lau?
A resposta da esposa foi um soluço estrangulado. Ele seguiu.
— E era sempre a mesma coisa. “O que a gente vai fazer hoje, pai?” Como
se todos os dias fossem uma nova aventura. E eu sabia que o normal com que
eu e a mãe dele estávamos acostumados não seria o suficiente para Jamie. Ele
queria algo especial, e conseguiu. Ele conseguiu uma esposa maravilhosa…
— Ted sorriu para Maya — … e filhas, e uma casa, e um trabalho melhor do
que qualquer coisa que poderíamos imaginar. Ser sócio em uma firma… — a
voz dele se engasgou — … de primeira linha em Londres… aparecendo em
jornais e revistas.
Pelo canto do olho, Jill podia ver a mãe de Jamie assentindo com
veemência sob as lágrimas. Ela imaginou os artigos emoldurados nas paredes
— uma geladeira coberta de lembranças com os sucessos de Jamie — e uma
visão contrastante das matérias que saíram depois da morte dele.
— Si que esse sucesso foi maculado no final, ou… ou… — Jill se
encolheu com a tristeza daquele homem buscando em vão a palavra correta
para descrever o que acontecera com o filho ao fim da vida. — Mas hoje não
precisamos pensar nisso. Hoje lembramos de tudo que Jamie conquistou. O
que não foi nenhuma surpresa para nós. Porque eu o levava comigo em
alguns trabalhos quando ele era um rapazinho, sabe, e quando eu explicava
para o cliente que provavelmente a caldeira inteira precisaria ser trocada, e o
cliente se zangava, sabe: “Mas quanto isso vai me custar?” Bom, era aí que
Jamie sempre falava alguma coisa como “Meu pai consegue consertar
qualquer coisa, pode confiar nele”. E desde pequeno ele tinha esse efeito nas
pessoas. Os homens o adoravam, e as mulheres também. — O lábio dele se
curvou, um toque de orgulho macho pelo sucesso do filho com o sexo oposto.
— E, apesar do que ele fez, sei que ele nos amava também.
Quando o queixo do sr. Lawrence se apoiou no peito e seus ombros
começaram a tremer, o pastor se aproximou e sussurrou algumas palavras no
ouvido dele.
— Não, eu… só quero dizer mais uma coisa: sempre teremos orgulho de
você, meu filho. E esperamos que você esteja em paz.
Durante a leitura do Eclesiastes e toda a execução de “Supermarket
Flowers”, de Ed Sheeran, Stan segurou a mão de Jill, apertando-a de leve
quando ela se levantou para discursar.
— Sr. e sra. Lawrence, Maya, tenho certeza de que falo por todos quando
digo que, se pudéssemos aliviar um pouco do sofrimento de vocês, nós o
faríamos. Mas espero que vocês tenham algum conforto em saber que todos
aqui partilhamos dessa dor.
Nicole estava lá no fundo, a terceira do corredor, tão sombria e incômoda
quanto uma mancha na lente, e, atrás do leitoril, Jill transferiu o peso de um
pé para o outro.
— Todos aqui conheciam Jamie em diferentes níveis… — Mantenha-se
em um contexto profissional, disse a si mesma na noite anterior, e vai ficar
tudo bem. — E eu, que percebi seu potencial 12 anos atrás, o trouxe para a
BWL e trabalhei ao lado dele esse tempo todo, pude vê-lo crescer na vida
profissional e na pessoal. Eu o vi se transformar em um marido e em um pai
amoroso para Christel e Elsa. Eu o vi ascender de corretor júnior para sócio.
— Ela pigarreou. — Mas aquela sede por aventura de que o senhor falou, sr.
Lawrence, sempre foi uma das características mais marcantes dele. — Porque
você sempre queria mais, não é, Jamie? Por quê? Não havia aventura
suficiente para você na vida adulta? Ou você só ficou mimado, pelos seus
pais, pelas mulheres, pelo sucesso, por mim? — Isso sem falar no carisma de
Jamie, no seu magnetismo, que eram… — exaustivos, destruidores —
perceptíveis por qualquer um que o conhecesse. Quando ele estava
conversando com alguém, fosse quem fosse, aquela pessoa sempre se sentia a
mais importante do mundo. Esse é um dom raro, sem dúvida. — Um dom do
qual você abusou, Jamie, várias e várias vezes, para conseguir o que queria.
— Em um mercado como o nosso, em que o charme é tão importante, essa
característica deu a ele uma energia, um poder, que o impulsionava sempre
em frente. — E tornava fácil demais atropelar os outros, Jamie. Ela pausou.
— O fato de que por baixo daquela fachada brilhante havia uma alma
atormentada não era algo que muitos de nós suspeitávamos. Mas Jamie
deixou sua marca em todos aqui enquanto esteve conosco. Mais uma vez,
tenho certeza de que falo por todos quando digo que ele não será esquecido.
CAPÍTULO 35

NICOLE
Dezembro

– E le vai te pegar, ele vai te pegar!


O aviso veio tarde demais. “Suzie Pong”, a lavadeira suja que
Nicole não tinha lembrança nenhuma de estar no Aladdin original, já se
inclinava por cima dela e pegava Ben pela mão.
— Pode levantar — gritou ela com a voz esganiçada, a barba por fazer e a
mancha de batom nos dentes visíveis de perto. — Vou precisar de um
aprendiz na minha lavanderia, e você parece perfeito. — Girando Ben pela
cintura para fazê-lo encarar a plateia, Suzie Pong berrou: — Vocês não
acham que ele parece perfeito, senhoras, senhores e amigues não binários?
Um coro de assobios e gritos abafou os protestos do marido, e Nicole se
encolheu no assento, deixando Ben ser arrastado pelo corredor até o palco.
— Alguma coisa me diz que o papai vai ser feito de bobo — sussurrou ela
no ouvido da filha.
Quando Chloe explodiu em uma de suas risadinhas, mostrando os dentes
descombinados, Nicole sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
Todos esses anos ouvindo amigas reclamando da cafonice sentimental
natalina que as inundava no shopping ou no ringue de patinação quando os
primeiros acordes de “Last Christmas”, do Wham!, começavam a tocar,
Nicole nunca tinha entendido. Até este ano. Até ela quase perder tudo e ter
que lutar para recuperar sua vida, pedaço a pedaço.
Ao voltar para casa, aquelas ondas de emoção a dominaram várias vezes
por dia. Eram tão fortes que a deixavam tonta e surgiam do nada: quando
estava colocando três lugares na mesa ou tentando encontrar o par da meia
estampada de estrelinhas nas roupas emboladas recém-saídas da secadora.
Quando pegava cartas na caixa de correio endereçadas ao sr. e à sra. Harper.
Quando, ao subir para o quarto de hóspedes em que Ben a fizera dormir por
mais de um mês, teve um vislumbre da nuca do marido editando vídeos para
a produtora na qual agora trabalhava.
Todas as coisas que antes a faziam se sentir enclausurada agora eram
lembretes tangíveis da verdadeira felicidade. Porque não era ver seu
sobrenome ser aplicado à parede da recepção com o de Paul e Jill, depois de
todos aqueles anos, ou a primeira carta escrita no papel timbrado da BWL,
afinal, mas algo bem mais sutil. E, quando saiu para celebrar sua promoção
no mês anterior e sua nova assistente mostrara a tatuagem que estava
removendo, Nicole ficou fascinada pelos fragmentos de tinta preta
visivelmente sendo destruídos, ponto a ponto, sentindo que aquele mesmo
processo de purificação acontecia dentro de si. E que, com Ben e Chloe ao
seu lado, a toxicidade na sua corrente sanguínea com o tempo seria
eliminada.
Por causa disso, Nicole não sentiu a tensão usual quando Ben comentou
sobre a excursão que faziam todo ano antes do Natal para o teatro.
— É claro que vamos — insistira ela.
E como Nicole explicaria que a banalidade do evento era que o tornava tão
significativo? Mais ainda do que aquela primeira noite que passaram juntos
na mesma cama, quando, apesar das três taças de Merlot que Ben virara,
talvez de propósito, a sensação era que ele tinha se forçado a passar logo por
aquilo, mantendo os olhos fixos em um ponto distante da cabeceira até
acabar. Naquela tarde de sábado, porém, no teatro — com as discussões sobre
dar ou não chocolate para Chloe e uma corrida desesperada ao banheiro
feminino no intervalo —, Nicole sentia que a família era quase igual a todas
as outras.
— Minha nossa! Isso não parece certo. O que vocês acham?
Risadas encheram o auditório, e Nicole olhou para o marido em cima do
palco. Preso a um varal por dois pregadores gigantes que puxavam sua
camisa como se fosse um boneco de ventríloquo, Ben estava se esforçando
para parecer tranquilo. “As duas piores palavras do mundo?”, ele brincara em
um dos primeiros encontros com ela. “Teatro interativo.”
Sim, Ben estava odiando cada segundo daquilo. Daquele jeito que casais
que estão juntos há muito tempo são capazes de perceber as emoções um do
outro, Nicole conseguia sentir as ondas de irritação emanando dele. Mas
sabendo que Chloe estaria se divertindo vendo o pai no palco, Ben aguentaria
com um sorriso no rosto. E aguentar a humilhação, Nicole agora
compreendia, era a maior prova de amor.
De forma tão graciosa quanto tinha sido arrancado do assento, Ben foi
chutado do palco — “Uma salva de palmas para o meu aprendiz! Estou
mandando esse aqui direto para o olho da rua!” —, e quaisquer que fossem as
palavras bem-humoradas que ele tivesse sussurrado no seu ouvido ao se
sentar de novo foram abafadas pela música eletrônica, “Firestarter”, do
Prodigy, enquanto o elenco se juntava no palco para a cena final.
— Mamãe! Eu tô com fome! — choramingou Chloe enquanto eles
desciam lentamente as escadas do teatro e saíam para as ruas lotadas de
Hammersmith decoradas para o Natal.
— Como que você pode estar com fome? — questionou Nicole, se
abaixando para fechar o casaco da filha. — Você acabou com uma barra
inteira de chocolate quase sozinha.
— Ela não almoçou direito. A gente pode dar uma passada nas
barraquinhas.
Seguindo o olhar do marido e sentindo os aromas doces e salgados —
churros, carne assada e algo quente e alcoólico de frutas —, Nicole deu uma
olhada na fileira de barracas do outro lado da rua.
— Vamos nessa — concordou. Então, vendo uma caixa de correio, avisou:
— Já encontro vocês.
O cartão de Natal ficara esquecido na sua bolsa a semana toda e, alisando
as beiradas dobradas, Nicole checou o endereço uma última vez — “Alex
Fuller, Oak View Cottage, Albion Road, Marden, Tonbridge” — e enfiou o
cartão pela fresta.
— É só um apartamento alugado, e é minúsculo — Alex lhe contara. —
Então minha mãe ficou com o quarto e eu fico no sofá-cama da sala, mas
assim que o dinheiro do divórcio sair ela vai comprar um lugar maior para a
gente. É tão tranquilo aqui, até a Katie está dormindo a noite inteira! Você
tem que vir nos visitar.
Nicole prometeu que iria, sabendo que isso nunca aconteceria, que essa era
a última coisa que ambas precisavam ou desejavam, e que qualquer coisa
além de raras ligações só traria à tona lembranças dolorosas. Uma garotinha
de preto no funeral do pai; duas garotinhas que passariam o primeiro de
muitos Natais sem ele.
Mas Nicole havia desenvolvido uma série de estratégias evasivas para
banir Christel e Elsa de sua mente sempre que elas apareciam. Segurando a
mão enluvada de Chloe, os três seguiram para as barraquinhas natalinas.
— Você se lembra da última vez — comentou ela, olhando para Ben com
um sorriso —, que eu desenvolvi um olfato bizarro?
— Se eu me lembro? Você sabia o que eu estava fazendo para o jantar
antes de sequer abrir a porta.
— Da última vez o quê? — perguntou a filha.
Os dois sabiam que ela nunca deixaria o assunto para lá.
Levando Chloe para um canto, longe da multidão que passava com
rapidez, Ben colocou a mão na bochecha corada da menina.
— O que você acharia de ter um irmãozinho ou irmãzinha?
Os olhos de Chloe foram e voltaram de Ben para Nicole. Então, por um
segundo, uma sombra franziu as sobrancelhas dela.
— E a gente moraria todo mundo junto? Eu, você, a mamãe e meu
irmãozinho ou irmãzinha?
— É claro, filha. — Por cima da touca de pompom da filha, Ben encarou
Nicole. — Eu nunca deixaria nada mudar isso.
Observando a felicidade no rosto do marido se espalhar para o da filha,
Nicole rezou pela milionésima vez para que o bebê chegasse só algumas
semanas mais tarde.
CAPÍTULO 36

JILL

– Q uinze mil horas… esse é o tempo que essas lâmpadas econômicas


teoricamente duram.
Baixando o Sunday Times, Jill, aninhada no sofá, lançou um olhar para o
marido. Stan não se movia fazia meia hora, ainda encarando a parede da casa-
barco, enquanto cutucava o buraco cheio de fios acima de sua cabeça. Ao
lado dele, na lareira do Lady J, estava a arandela defeituosa que ele estava
decidido a consertar.
— Ótimo, mas essas lâmpadas nunca iluminam direito. Então são quinze
mil horas de lusco-fusco… — Ela procurou na página de opiniões a coluna
do seu escritor favorito, mas ele havia sido substituído por um “colunista
convidado” estranhamente jovem. — Bom, mas a lâmpada não era o
problema, era?
— Não. Mas acho que finalmente entendi o que estava atrapalhando —
resmungou ele, prendendo a moldura retangular da luminária na parede antes
de dar um passo para trás. — Só levei três anos e meio.
— Não faz tudo isso.
— Faz, sim. — Stan se virou para ela com um sorriso. — Lembra daquele
fim de semana quando Prue e Alan vieram, e nós fomos até Milton Keynes?
— Que ela perdeu o aparelho de surdez várias vezes.
— E a gente passou quase a tarde toda procurando aquela porcaria.
— E aí achamos atrás do sofá. — E a testa franzida de Jill se suavizou. —
É verdade! — Ela encostou a mão na boca. — Você tem razão. Foi naquele
fim de semana! Na última noite, quando estava chovendo, e a gente jantou
aqui… Você não conseguiu ligar a porcaria das luzes.
— Exatamente. Isso está me incomodando desde então. — Stan indicou o
interruptor atrás do sofá. — Faz as honras?
Esticando o braço acima da confusão de jornais ao seu redor, Jill apertou o
interruptor.
Nada.
Stan gemeu.
Jill deu uma risadinha.
— Deixa para lá. Vem aqui. — Ela deu um tapinha no assento ao seu lado.
— Vou fazer um chá.
— Não, não. — O marido já tinha voltado para a parede e desaparafusava
a luminária. — Vou resolver isso agora. Essas quinze mil horas começam
hoje.
Jill pegou a seção de propriedades, contraindo os ombros ritmicamente
enquanto folheava as páginas em uma tentativa de aliviar o aperto no peito:
tudo para impedir que sua mente fizesse contas involuntárias. Quinze mil
horas dava quanto? Mais de um ano e meio. Quase dois. Aquela lâmpada não
tinha nada a ver com a irritação de Stan ou com um item na sua lista de
afazeres. Ele estava fazendo aquilo por ela.
Aceitar que seu marido estava morrendo tinha sido mais fácil do que
conversar com ele sobre a vida que eles ainda viviam, e as primeiras
escorregadelas — “Temos que lembrar de podar a clêmatis no início de maio,
antes que as folhas entupam o duto de água”, “Me lembre de convidar Steph
ano que vem” — eram o suficiente para fazer Jill sair do cômodo e se trancar
no banheiro mais próximo até conseguir respirar de novo.
Não ajudava que Stan conseguisse rir dessas situações, e ela o avisara
semanas antes que qualquer tipo de humor mórbido não só não seria ridículo,
como também repulsivo para ela. Ao mesmo tempo, conforme a morte de
Jamie ficava no passado, junto a todo o terror que levara àquela semana
transformadora, a mente organizada de Jill tinha encontrado algum conforto
ao saber que simplesmente haveria um antes… e um depois. Da próxima vez
que o seguro da casa precisasse ser pago; da próxima vez que as calhas
precisassem de limpeza; da próxima vez que aquela lâmpada idiota de quinze
mil horas precisasse ser trocada, Stan não estaria mais com ela. E Deus sabe
que ele tinha feito as pazes com isso havia muito tempo.
Que o marido tivesse superado todas as expectativas e chegado a
dezembro era “mérito dela”, o dr. Jacks continuava repetindo — embora ela
estivesse mais inclinada a considerar que era relacionado à vida saudável que
os dois compartilhavam: uma alimentação boa, longas caminhadas e décadas
de ar puro do rio. Mas, quando eles enfim receberam o sinal verde para a
viagem de Grand Union, três meses depois do que tinham planejado, o
médico a puxou de lado, entregou cinco páginas de instruções médicas e
completou:
— Você sabe que as pessoas podem acabar tendo uma sensação falsa de
segurança em casos como o de Stan, começam a achar que a equipe médica
errou. — Ele pausou. — Acredite que eu gostaria de que fosse o caso. Mas…
— Ele balançou a cabeça. — Você sabe que é improvável que Stan chegue
até o Natal, não sabe?
Ela assentiu, engolindo o nó na garganta, e perguntou:
— Mas a viagem? Você está dizendo que não podemos fazer a viagem?
Por que aquela viagem significava tanto, Jill só percebeu naquela primeira
manhã, quando ela e Stan despertaram em um rio enevoado perto de Tring
Summit. No verão, a água ficava lotada de cruzeiros de três dias all inclusive,
mas só marinheiros experientes como eles pensariam em passar por ali em
dezembro. E tirando outro barco que parecia fundido à margem a que estava
ancorado de tanto musgo e líquens grudados na lateral de ardósia, só havia o
Lady J.
Sim, estava bem mais frio do que esperavam, o bastante para acordá-los
pouco depois das seis naquela manhã, mas depois de encher uma garrafa
térmica de café, ajudar Stan a vestir o casaco mais grosso e aquecer dois
croissants, eles se sentaram no deque traseiro embaixo do cobertor assistindo
ao céu tingido de laranja clarear até um rosa claro.
— Não é uma bênção? — murmurou Stan.
E era. Mas não era fácil viver no momento quando todos esses momentos
já eram memórias a serem guardadas a sete chaves: das piadas do marido às
imagens mentais de suas mãos manchadas. Porque, se ela conseguisse juntar
lembranças o suficiente, talvez durassem pelo resto da sua vida.
Eles tinham feito uma lista de regras antes de saírem de Londres. Nada de
falar sobre morte — de qualquer forma, os últimos detalhes do funeral já
haviam sido acertados antes da partida —, nada de Jill enchendo a paciência
por recomendações médicas. Stan era bem crescidinho e conseguia se
lembrar dos remédios sozinho. Não precisava que Jill se preocupasse.
Tirando uma caneca de cerveja com a torta salgada de carne ao molho de
cerveja preta durante o almoço no Half Moon, nada de álcool para ele (o
médico recomendara evitar). E, tirando uma janela de meia hora à tarde em
que Jill podia ver os e-mails e ligar para o escritório caso necessário, nenhum
trabalho seria feito ou discutido. Antes de ligar os motores do Lady J, eles
concordaram com essas regras e partiram de Little Venice determinados a
obedecê-las.
É claro que no terceiro dia e naquele domingo todas as regras já tinham
sido quebradas, menos uma. Em uma questão de horas, Jill já tinha
atormentado Stan sobre os remédios. Ele se lembrara de ter trazido todos?
Até os que ficavam do lado da chaleira? O marido tinha bebido a primeira
cerveja antes mesmo de passarem por Brentford, e, quando a garçonete
anotou o pedido do almoço no Half Moon naquele dia, Stan olhou do menu
para a esposa.
— Você não vai mesmo negar a um homem moribundo a chance de
dividir uma bela garrafa de vinho tinto com a esposa, vai?
A loira bonita, de nariz arrebitado e com não mais que 17 anos, achando
que era uma piada, havia rido. Porque a ideia de que pessoas normais que
almoçavam no pub aos domingos e depois iam embora para morrer era digna
de risada. Então Jill perguntou à moça se eles ainda tinham aquele Ribera
gostoso, “o Vega alguma coisa que bebemos três anos atrás e adoramos”, e os
dois terminaram uma garrafa inteira durante as quatro horas que passaram ali,
e pediram mais duas taças para terminar com os crumbles de maçã.
Chovia quando eles saíram do pub, e Jill ficou feliz em cancelar os planos
de caminharem juntos para abrir espaço para um tarde lânguida, lendo jornais
juntos, trocando cadernos em uma ordem determinada décadas antes. Só que,
em vez de se aconchegar com ela, Stan ficara obcecado pela arandela.
— Ah.
Por um período depois que a morte de Jamie veio a público, Jill se
acostumou a ver o nome dele no noticiário. Mas o caso tinha sido encerrado
há tempos — declarado como um “suicídio óbvio” — e já fazia semanas
desde que ela encontrara algo sobre o ex-colega ou o Vale Theatre. Por isso,
o impacto dessas palavras a desestabilizaram quase tanto quanto a foto
sorridente ao lado.
— O quê? — Ainda atento à fiação, Stan não se virou.
— Tem um artigo no Times sobre a venda do Vale Theatre para Creighton
Mackintosh. Um artigo grande.
— Essa venda ia vazar mais cedo ou mais tarde. Roger Creighton é
famoso. Você está preocupada que eles pensem que nós que a vazamos?
— Não, não. Ele até deu uma declaração para a matéria. Disse que quer
transformá-lo no “maior teatro em funcionamento do oeste de Londres”.
— Bom pra ele.
Jill assentiu, os olhos sendo atraídos de volta para o parágrafo sobre Jamie
e a “trágica história recente do prédio”, com aquela fotografia
desafiadoramente vital ao lado.
— Eles requentaram a história toda. — Ela balançou a cabeça, pesarosa.
— É a última coisa que Maya e as meninas precisam.
Buscando alguma forma abstrata de se tranquilizar, Jill ergueu o rosto para
o marido, mas ele continuava de costas, e ela observou as marcas da máquina
que o barbeiro Johnny tinha passado, no que Stan chamava de uma “máquina
dois de leve”, antes de partirem.
— Isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Assim que a notícia do
assédio saiu… Aí tem o teatro, com a cúpula esquecida… É ambrosia para os
jornalistas, né?
Desejando nunca ter comprado o jornal que permitira que Jamie voltasse
para a vida deles, mesmo brevemente, Jill virou a página. Mas era tarde
demais. E, como uma porta que não fecha direito, não importa a força que se
use, algo emperrou.
— Você sabia sobre a cúpula? — comentou ela, mais para si mesma do
que para Stan, lembrando-se de imediato que, mesmo durante o auge da
cobertura da imprensa sobre a morte de Jamie, não houve menção à estrutura
de vidro escondida no telhado do teatro. Na verdade, a única pessoa que
havia mencionado a existência daquilo tinha sido Nicole.
Por baixo da camisa polo promocional que ela comprara para Stan, as
omoplatas dele estavam rígidas, os tendões do pescoço tensos sob aquela
“máquina dois de leve” — e ainda havia tempo para deixar a pergunta para
lá. Ao ver os ombros do marido relaxarem, porém, ela sabia que era tarde
demais, e o sussurro de medo no seu âmago se transformou em um uivo.
— O que ele fez com você… O que fez com a empresa que passamos a
vida toda construindo…
— Shhh.
O cotovelo de Stan se ergueu enquanto ele girava a chave de fenda.
— Jamie não tinha respeito por nada.
— Shhh.
— Nenhum respeito pelas mulheres, por aquela pobre menina que ele usou
de bode expiatório. Nenhum respeito nem pela minha morte.
Com os olhos ainda na nuca do marido, Jill relembrou a última vez que
vira Jamie. A verdade que ele cuspira na sua cara. O computador aberto na
mesa da cozinha quando ela desistiu de acompanhar a viagem dele para casa
no banco de dados da empresa. O calmante que o marido lhe dera: aquele
mesmo pescoço se desfocando suavemente conforme o remédio fazia efeito.
— Ele estava tão bêbado quando cheguei lá. — A voz de Stan ficou baixa
e rouca a ponto de Jill não reconhecê-la. — Bêbado e desesperado para me
mostrar aquela “curiosidade” do teatro.
A arandela estava presa à parede. Stan deixou a chave de fenda com
delicadeza na lareira.
— Ele teria caído de qualquer forma.
Por um segundo, os dois ficaram em silêncio.
Então Jill ouviu a própria voz, direta e professoral:
— Agora chega.
Libertando-se da paralisia que ameaçava engoli-la, ela estendeu o braço
atrás do sofá e ligou o interruptor. Ficou claro, muito claro. E quando Stan
finalmente se virou para encará-la, ela desejou ter de volta aquelas velhas
sombras para poder se esconder. Mas não havia como voltar atrás. Grata
pelas pernas ainda serem capazes de carregá-la, Jill foi até a cozinha e pegou
o Nicholson Waterway Guide na gaveta.
— Agora que dá para ler, vamos ver para onde vamos agora.
Porque o que importava era a construção de novas memórias. Se eles
continuassem se movendo, sempre em frente, mesmo que devagar, mais cedo
ou mais tarde algumas das lembranças antigas seriam esquecidas.
AGRADECIMENTOS

E
ste livro surgiu graças à infinita paciência e ao olho clínico da
minha agente, Eugenie Furniss. Cada “Ai!” rabiscado seu, Eugenie,
me fez mais feliz do que você pode imaginar, e o agora falecido,
meu grande amigo e agente, Ed Victor, ficaria tão feliz de saber que você
continuou de onde ele parou.
Minha editora, Ro-sanna Forte, fez os melhores comentários que qualquer
autor poderia querer. Obrigada por acreditar na história e nos personagens de
Acerto de contas a ponto de ficar irritada com o que Jamie dizia — o que me
forçava a te relembrar que “ele não existe de verdade”.
Thalia Proctor, Laura Vile, Stephanie Melrose e toda a equipe da Sphere
na Little, Brown Book Group foram brilhantes e incansáveis, e estou muito
animada para trabalhar com todos vocês de novo no próximo livro.
Tenho uma dívida especial com Alexandra Kordas da 42 Management &
Production, cuja energia e entusiasmo iluminaram muitos dias cansativos da
quarentena. Também sou profundamente grata a Malcolm Ward, por ler
algumas das passagens mais sinistras que já passaram por sua caixa de e-
mails; a Simon Raw, por me colocar em contato com o incrível gerente de
palco do Her Majesty’s Theatre, Stewart Arnott, e a Emily McCullagh, por
seu conhecimento e suas respostas rápidas, apesar de ter coisas muito mais
importantes para fazer.
Um obrigada especial a Mike Beveridge, do Canal and River Cruises Ltd,
por me fornecer informações que pesquisa nenhuma traria; a John Goodall
por dividir seu vasto conhecimento sobre arquitetura; a Vincent Galea por seu
conhecimento jurídico. É preciso deixar claro que qualquer erro cometido é
de minha responsabilidade.
Obrigada aos meus amigos Darryl Samaraweera, Jessica Fellowes, Kate
Johnson, Caroline Graham e Alice Evans, pela ajuda, pelo apoio e pelo
tempo, e a Paul Paolella, por ser a inspiração por trás “daquela cena”.
É só por causa da generosidade do Telegraph — permitindo que eu tirasse
um ano sabático — e da assistência de Maria Flor que fui capaz de encontrar
tempo para escrever. Que você tenha lido Acerto de contas inteiro em uma
única noite insone, Cory, significa muito para mim.
Sou infinitamente grata à minha família: Olly, Frank, mamãe e papai.
Elise, você me ajudou mais do que qualquer outra criança de nove anos do
mundo, criando reviravoltas cada vez mais sombrias. E, Piers, obrigada por
aguentar minhas perguntas aleatórias e muitas vezes nojentas — “Será que
Jamie deveria sobreviver ao ser empalado, ou deveria morrer na hora?” —,
em geral tarde da noite, quando você estava tentando pegar no sono. Você
tem razão: eu preciso melhorar minha conversa na hora de dormir.
DIREÇÃO EDITORIAL

Daniele Cajueiro

EDITOR RESPONSÁVEL
André Marinho

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Júlia Ribeiro
Adriano Barros

REVISÃO DE TRADUÇÃO
Fernanda Belo

REVISÃO
Alessandra Volkert

DIAGRAMAÇÃO
Douglas Kenji Watanabe

PRODUÇÃO DE EBOOK
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[ 01 ] N.T.: National Health Service [Serviço Nacional de Saúde].
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Ontem à noite, Daisy Mason, uma garotinha de oito anos de idade,


desapareceu de uma festa de família. Ninguém naquela discreta e silenciosa
rua residencial viu nada — ao menos é o que estão dizendo. Mas como é
possível uma criança desaparecer sem deixar rastros? O detetive Adam
Fawley precisa manter a mente aberta e desconfiar de cada ação suspeita. No
entanto, ele sabe que, em cada dez casos como este, nove revelam que o
culpado é alguém que a vítima conhece. Isso significa que alguém está
mentindo… e que, para Daisy, o tempo está se esgotando. Eleito Gold
Bestseller pelo Nielsen Bestseller Awards 2019. Indicado a Crime Book of
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tentando atingir uma à outra, elas descobrem mais sobre o homem com quem
se casaram. Até que Andrew é assassinado durante uma festa de família, e as
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Helen Lambert viveu várias vidas: uma jovem pianista na Paris dos anos
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de 1970… só que ela não sabe disso. Até que ela conhece um homem que
afirma tê-la acompanhado por séculos, que diz estar ligado a ela desde
sempre. Helen não acredita nele. Afinal, sua vida é tão normal quanto a de
qualquer outra mulher de seu tempo, que tem sua individualidade e sua
carreira. Mas seus sonhos, muito vívidos, começam a lhe trazer de volta a
memória de vidas interrompidas e um amor trágico. Presa em uma maldição,
Helen será forçada a reviver os mesmos eventos sinistros que arruinaram suas
vidas anteriores. No entanto, cada renascimento lhe trouxe poderes
sobrenaturais que ela ainda não conhece, e é com esta versão empoderada de
si mesma que vai desafiar o espaço e o tempo para quebrar esse feitiço…
antes que seja tarde demais.

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Flores da morte
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Após o inexplicável suicídio da mãe, a ex-jornalista Heather Evans precisa


retornar à casa de sua infância e acaba descobrindo algo aterrador: centenas
de cartas trocadas entre sua mãe e o famoso assassino em série Michael
Reave. O Lobo Vermelho, como é chamado pela imprensa, está preso há
mais de vinte anos pelas mortes brutais e ritualísticas de inúmeras mulheres,
embora sempre tenha alegado inocência. Quando o corpo de uma jovem é
encontrado decorado com flores, exatamente da mesma forma como Reave
deixava suas vítimas, ele é a única pessoa que pode colaborar com a
investigação. Depois de anos de silêncio, Michael Reave enfim está disposto
a falar… apenas com Heather. Para descobrir a verdade sobre a morte da mãe
e impedir que o sangue de outras vítimas seja derramado, Heather vai
precisar enfrentar o Lobo — e este é apenas o início da caçada. Até que ponto
conhecemos de verdade nossos familiares? Até que ponto conhecemos de
verdade a nós mesmos?

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Mentiras e desejos
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Vanessa sempre teve o mundo a seus pés, graças à riqueza da família e à


fama de influencer no Instagram. Nina, por outro lado, sempre teve que lutar
para sobreviver, crescendo com o que a mãe faturava em pequenos golpes.
Mas existe algo que as une: Stonehaven — a extensa propriedade da família
de Vanessa, onde Nina viveu muitas alegrias na adolescência, mas também
sofreu abalos que selariam o seu destino. Quando Vanessa regressa à mansão
após romper um relacionamento, Nina segue seu rastro em busca de dinheiro
e vingança, pondo em prática o grande golpe que planejou cuidadosamente
por muito tempo. Mas será que Nina também não vai se tornar vítima de suas
próprias mentiras e desejos, colocando em xeque suas mais enraizadas
convicções mesmo sem perceber? Agora, uma teia de segredos, decepção e
morte está prestes a ser revelada.

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