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ISBN 978-65-89132-44-8
CDD: 820
CDU: 821.111
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1. Jill
Capítulo 2. Alex
Capítulo 3. Jill
Capítulo 4. Nicole
Capítulo 5. Alex
Capítulo 6. Nicole
Capítulo 7. Jill
Capítulo 8. Jill
Capítulo 9. Nicole
Capítulo 10. Alex
Capítulo 11. Jill
Capítulo 12. Nicole
Capítulo 13. Alex
Capítulo 14. Jill
Capítulo 15. Jill
Capítulo 16. Nicole
Capítulo 17. Alex
Capítulo 18. Jill
Capítulo 19. Nicole
Capítulo 20. Alex
Capítulo 21. Jill
Capítulo 22. Nicole
Capítulo 23. Alex
Capítulo 24. Jill
Capítulo 25. Nicole
Capítulo 26. Alex
Capítulo 27. Jill
Capítulo 28. Nicole
Capítulo 29. Alex
Capítulo 30. Jill
Capítulo 31. Nicole
Capítulo 32. Alex
Capítulo 33. Jill
Capítulo 34. Jill
Capítulo 35. Nicole
Capítulo 36. Jill
Agradecimentos
Colofão
PRÓLOGO
JILL
Quinta-feira, 5 de agosto
A
tende, atende, atende.
Sentada na frente de sua garagem, usando blusa e saia sociais
com pantufas forradas em fleece, Jill encarava a letra solitária na
tela do iPhone. “A”. Essa inicial que parecia uma confissão de culpa. Como
sua funcionária, seria natural que Alex estivesse na sua lista de contatos,
profissionais e pessoais. Só que nada na conexão de Jill a “A” era legítimo,
que dirá justificável — e, há cerca de meia hora, ela tinha muito a esconder.
Bem-vindo ao serviço de mensagens da O2. A pessoa para quem você está
tentando ligar não está disponível no momento.
As pessoas não dizem que o caos tem um som: um ritmo revolto,
estrondoso e intravenoso. E ensurdecedor. Não dizem que, uma vez que você
tenha convidado esse ruído branco para a sua vida, não há como desligá-lo.
Finalizando a ligação — deixar um recado era arriscado demais, e depois
das quatro tentativas anteriores de falar com Alex, Jill já tinha se precavido
ao esconder sua identidade nessa ligação —, ela se deixou cair para a frente e
apoiou a testa no volante, se obrigando a respirar. Inspirar, expirar; inspirar,
expirar — devagar, isso, devagar. Cada expiração embaçava o logotipo
cromado no centro do volante, e Jill o observava desembaçar em formas
irregulares antes de expirar de novo.
A polícia falou que entraria em contato. Foi o que Paul dissera. Poderia
levar horas. Ou minutos. Não podia ter essa conversa sem falar com Alex
antes.
— Onde você está? — Em voz alta, as palavras eram assustadoras.
Autoritárias. E ela se perguntou o que os vizinhos pensariam se a vissem
sentada no carro, falando sozinha. Ela se perguntou se Stan, dentro de casa, já
tinha notado sua ausência, e quanto um ser humano conseguiria suportar
antes de desligar, como um sistema elétrico sobrecarregado.
A vibração do celular a tirou do devaneio, mas era só outra mensagem de
Paul. Está no noticiário. Com os dedos trêmulos, Jill enfiou a chave na
ignição, ligou o rádio e ficou ouvindo entorpecida uma conversa inflamada
entre um apresentador da rádio e um defensor do veganismo antes de, enfim,
começarem as notícias. Jamie era o terceiro na lista. Só que ele não era mais
Jamie e sim “um homem de 46 anos, encontrado empalado nas vigas de um
prédio em construção no noroeste de Londres”.
Era só uma questão de tempo antes de as pessoas do escritório
descobrirem que o morto era o chefe delas, e enquanto um repórter “no local”
dava detalhes que Jill jamais esqueceria, ela imaginou a notícia se espalhar
em gritos surpresos e e-mails desesperados e sem pontuação pulando de um
computador ao outro. Viu mãos levadas a bocas, lágrimas de descrença:
loucura. Como sócios de Jamie, era seu trabalho e de Paul fazerem uma
declaração; “lidar” com as consequências. Mas ir para o trabalho também era
inimaginável — pelo menos até falar com Alex. E ainda havia Nicole.
O nome da colega não estava disfarçado por uma inicial, embora devesse
estar, e vê-lo na tela do celular não a fez se sentir menos nauseada. Seu
próprio nome teria um efeito similar nas outras duas mulheres, ela percebeu.
Estavam ligadas a isso agora.
Você ligou para Nicole Harper. Não posso atender no momento, mas você
sabe o que fazer…
O fato de que as ligações para as duas mulheres estivessem caindo na
caixa postal, apesar de várias tentativas, não estava certo. Mas, por outro
lado, nada disso estava certo, e o que Jill poderia fazer além de tentar de novo
e de novo?
— Alô?
A voz de Nicole parecia artificialmente alegre, como se estivesse fingindo
para ela. Então Jill se lembrou de que havia tirado a identificação de seu
número.
— É… — Ela pigarreou. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou ao fundo, seguida por uma
confusão de gritos infantis alegres. — Perdão, quem?
Ela ouviu o sino de uma porta se fechando, toda a alegria trancada atrás
dela.
— Aqui é a Jill. — Ela fechou os olhos.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha, e estão trazendo
o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não. — Ela teve que impedir Nicole de continuar falando e fazê-la
escutar. — Jamie morreu. Encontraram o corpo hoje de manhã. A polícia
quer falar comigo. Vão querer falar com você também. — As palavras saíram
emboladas. — E, Nicole… — Ela ouviu a própria voz baixar de tom. — …
não estou conseguindo falar com Alex.
Houve um barulho abafado do outro lado da linha, seguido por um
silêncio. Então outro barulho e um sussurro:
— Como?
— Ainda não sabem. Ele foi encontrado perto do Vale Theatre hoje cedo.
Tem uma construção atrás…
— Ele estava no teatro?
A mudança no tom fez Jill se sentar ereta. Não era só alarme, mas
reconhecimento.
— Se você souber de alguma coisa…
Do outro lado da linha, Nicole soltou um gemido baixo. Então houve um
barulho de engasgo. E enquanto esperava, Jill viu seu próprio pé na pantufa
batendo impaciente perto dos pedais. Não tinha tempo para isso.
— Temos que encontrar Alex.
Silêncio.
— Nicole, está aí?
— No teatro… tem uma construção pequena de vidro no telhado…
Uma batidinha na janela fez Jill dar um pulo, todas as sinapses agora em
alerta total, todas as palavras de Nicole abafadas, e, ao erguer a cabeça, ela
viu o rosto de Stan a observando.
CAPÍTULO 2
ALEX
Três meses antes
JILL
NICOLE
– E ssesNicole
rodatetos. Por favor, olha só esses rodatetos!
aprendera a ficar em silêncio na pausa depois das
exclamações de surpresa dos clientes. A deixar com que eles se
surpreendessem com claraboias, túneis solares e sacadas Julieta. A não
estragar o momento com seu blá-blá-blá. Não que Rupert Jones fosse um
cliente típico. Ela era capaz de apostar que ele sabia mais sobre os detalhes da
arquitetura neoclássica que ela.
Arquitetura brutalista era mais o estilo de Nicole: as linhas limpas e
igualitárias não só combinavam mais com seus ideais políticos, como
também a emocionavam de forma mais profunda, enquanto o Vale Theatre
— por mais surpreendente que fosse em toda a sua grandiosidade envelhecida
— de certa forma não conquistava seus sentidos. Com o passar do minuto em
que ela e Rupert ficaram admirando em silêncio o teto do teatro, as treliças
serpenteantes de frutas, folhagens e flores começavam a parecer quase
ridículas.
— Óbvio que vai ser preciso algum trabalho de restauração — comentou
ela. — Mas se você imaginar isso como o átrio central e talvez pensar em um
bar aqui e outro ali…
Os três engravatados do financeiro que Rupert trouxera estavam
assentindo, mas era com o bilionário de jeans e All Stars velhos que ela se
importava.
— Com certeza está bem melhor do que eu achei que estaria — enfim
disse o cliente. — E Jamie me falou que o conselho não vê problemas, a
princípio, em transformar o prédio em um clube?
— Parece que não. Sei que ele confirmou isso antes de entrarmos em
contato.
Havia muito mais a mostrar e contar para Rupert sobre aquela propriedade.
Nicole estava particularmente orgulhosa de ter encontrado aquela
peculiaridade arquitetônica escondida na papelada confusa da Inglaterra
histórica.
No teto do Vale Theatre, invisível a qualquer um que não fosse um pássaro
ou um avião, havia um pequeno domo de vidro octogonal que permitia a
entrada de luz antes de ter sido escondido por um alçapão no teto tempos
depois. Aquela estrutura existia em poucos prédios históricos no país
atualmente, e Nicole achou aquilo tão fascinante que na semana anterior
havia se aventurado em uma escada de corda que levava do palco para a
cobertura do telhado. Sozinha lá em cima, ela se maravilhou com a vista do
noroeste de Londres — e as escotilhas enferrujadas ainda se abriam para o
telhado, mesmo depois de tantos anos. Ainda assim, algo — talvez tão
simples quanto o desejo de manter aquilo um segredo só seu por mais um
tempinho — impediu Nicole de compartilhar aquilo com Rupert pelo
momento.
— Onde está o sr. Lawrence, aliás? Achei que ele se juntaria a nós.
— Ele está a caminho. — Nicole verificou o celular.
— Ou será que deveríamos chamá-lo de “Jamie Negócio-Fechado
Lawrence”?
— Você viu a matéria na Property Week.
— Difícil não ver. — Rupert inclinou a cabeça para trás e observou o arco
amplo do proscênio. — Tinha o quê?, umas cinco ou seis páginas? Não que
ele não mereça: vendas de 18 milhões não acontecem mais como
antigamente. A BWL deve estar bem contente com seu menino de ouro.
— Está mesmo. — Nicole assentiu, sentindo o sorriso à beira de um
colapso. — Bom, ele deve chegar a qualquer minuto. Aí vai poder te dar os
detalhes sobre as discussões com o conselho. — Ela pausou: com Rupert,
menos era sempre mais. — Mas você foi a primeira pessoa em que pensei
quando conseguimos o Vale.
— Bom, você já acertou em cheio antes. E então, conseguimos chegar aos
camarotes?
Nicole sempre gostou de lidar com Rupert. Sabia que ele tinha registrado o
fato de que ela era atraente, mas só da maneira passageira e objetiva que se
registra o gênero ou a etnicidade de uma pessoa — não com o desejo de se
aproveitar do fato, como a maioria dos homens. Pontual, educado e de voz
suave, o hoteleiro também não exagerava em mostrar seu sucesso, o que era
raro no mundo duro e competitivo em que ela habitava, e algo que Nicole
gostava de pensar que seria capaz de fazer quando enfim chegasse aonde
queria chegar.
— Vou precisa de um café — anunciou Rupert depois que terminaram o
passeio. — Para ontem. Que tal você ligar para Jamie e falar para ele nos
encontrar na Lytton House em dez minutos? — Era um dos clubes exclusivos
de Rupert, ela lembrou, que ficava logo adiante na mesma rua. — Vou pedir
algo para bebermos na sala de jantar superior, e você pede para ele nos
encontrar lá.
Enquanto o cliente passava instruções para a equipe pelo telefone, Nicole
apertou o botão de “atalhos” no celular e ficou com o polegar pairando sobre
o contato de Jamie, torcendo para o chefe aparecer antes que ela tivesse que
ligar. Por que ele sequer era necessário hoje? O teatro era um projeto de
Nicole.
— Tudo certo? — Rupert ergueu uma sobrancelha e, relutante, Nicole
apertou o ícone de telefone verde.
— Alô-ô?
O ódio explodiu dentro dela como um rojão.
— Jamie. — Ela manteve a voz calma. — Já acabamos aqui no Vale, e
Rupert estava pensando que você poderia nos encontrar na Lytton House para
conversar sobre os detalhes. — Nicole abriu um sorriso para o cliente. — O
homem precisa de cafeína.
— Claro. Estou no trânsito, mas devo chegar em uns vinte minutos.
Jamie chegou em menos tempo do que isso, atravessando as portas duplas
da sala de jantar com um batalhão de explicações que não importavam para
ninguém — muito menos para o cliente dela, certo? E mesmo assim, lá
ficaram os dois, imediatamente mergulhados em reclamações sobre o trânsito
de Londres. Você não está preso no trânsito, você é o trânsito. Nicole enfiou
a unha na coxa por baixo da mesa, se preparando.
— Bom, você sabe o que dizem… — concluiu Jamie, estalando a língua.
— “Você não está preso no trânsito, você é o trânsito.”
Bum. Tão previsível quanto um câncer.
— Então os números na página cinco do prospecto são o que estamos
vendo — murmurou ela, ao se voltar para os homens do dinheiro, deixando
Rupert e Jamie conversando. Dois deles começaram a folhear a papelada na
hora, mas o terceiro, mais simpático, teve a educação de sorrir antes. —
Espero que vocês não tenham passado aquele domingo de sol trabalhando.
Fez mais calor que em Barbados, disseram no noticiário.
O tempo estava muito louco naquele meio de maio, as flores dos
castanheiros-da-índia que ladeavam os caminhos do parque eretas como
cones de sorvete contrastando com as folhagens novas. Aquele domingo tinha
sido o dia mais quente do ano. Mas Nicole ficou contente em ter uma razão
para ir embora mais cedo. Eles estavam vagando pelos bancos lotados do
lago Serpentine quando Ben sugeriu que alugassem um pedalinho. Chloe
ficou animadíssima, mas Nicole não suportaria as filas, os avisos e os
aluguéis de coletes salva-vidas. A logística da coisa sempre parecia sugar a
alegria de qualquer passeio em família.
— A mamãe vai ter que voltar e trabalhar um pouco — disse para a filha,
abaixada na altura dela. — Mas por que você e o papai não vão passear nos
barquinhos, e a gente come um jantar gostoso quando voltarem?
Enfim liberada e exultante pela independência, Nicole tinha se apressado
pelos caminhos do parque em direção à Bayswater Road, costurando por
entre as famílias que ocupavam a calçada com carrinhos, patinetes e
criancinhas correndo e lançando olhares furtivos para os pais que, sem se
incomodarem com o pandemônio, não pareciam estar fingindo se divertirem.
Será que ela era a única pessoa para quem a alegria do fim de semana
muitas vezes parecia forçada? Será que nenhuma dessas mulheres se sentia
tão exaurida ao fim dessas ocasiões familiares, tanto formais como informais,
quanto uma atriz ao cair da cortina? Por outro lado, a mãe de Nicole sempre
dizia que ela criava expectativas demais. Chegar ao meio-termo, ela gostava
de dizer, não era “nem abrir mão nem desistir: era só a vida”. E talvez ela
tivesse razão. Mas no contexto profissional, não havia meios-termos
positivos, o que era outra razão pela qual Nicole tinha mais facilidade em
lidar com a carreira e porque ela, às vezes, se sentia mais confortável sentada
em volta de uma mesa com homens de negócio do que em casa com Ben. Até
quando Jamie era um desses homens.
Embora eles tivessem deixado o lugar na cabeceira da mesa para Jamie,
ele tinha decidido se sentar em frente a ela, e agora reclinava-se na cadeira,
com o pé calçado em um mocassim de camurça Tom Ford apoiado no joelho
oposto, a calça subindo para revelar alguns centímetros da pele pálida do
tornozelo. Nicole tentava evitar olhar para ele sempre que possível, mas a
palidez tipicamente britânica daquele tornozelo era como um clarão em meio
aos tons terrosos fechados do cômodo, forçando-a a erguer o rosto. Quando
ela enfim o encarou, Jamie estava olhando diretamente para ela.
— Acredito que Nicole tenha explicado todas as restrições de tombamento
do Vale. Nossa Nic é sempre detalhista.
Um sorrisinho… Com que intenção? Envergonhá-la? Intimidá-la? Fosse
qual fosse, não previa uma resposta, e foi por isso que ela retrucou, um pouco
animada demais:
— Obrigada, Jamie! — E completou: — É muito raro que edifícios nessa
lista apareçam, até para nós, e a história desse prédio é simplesmente
inacreditável.
— Vamos deixar que Rupert leia mais sobre isso quando tiver um tempo
— interrompeu Jamie, sorrindo irritado para o cliente.
As altas janelas arqueadas da sala de jantar ampliavam o calor da tarde,
mas, enquanto os outros homens tinham tirado o blazer no começo da
reunião, Jamie permanecera com o seu, e pingos de suor pontilhavam a frente
da camisa azul-claro. Quando ele levou a mão ao pescoço para afrouxar a
gravata, Nicole sentiu a respiração acelerar, como se o suprimento de
oxigênio na sala tivesse sido reduzido.
Está gostando? Quer mais?
A mesma camisa? As mesmas manchas de suor. Só que as manchas
estavam a centímetros do rosto de Nicole, e a mão foi erguida não para o
pescoço dele, mas para o dela.
Eu sinto que você quer, Nic.
O dedo é apertado com força. E parece uma explosão, do tipo que a faz
rebater com uma explosão própria. Mas, quando ela se movimenta,
empurrando com toda a força o peito suado de Jamie, ele simplesmente a gira
com facilidade, enfiando o nariz dela na parede da sala de reuniões — os
dedos ainda firmes em torno do pescoço dela, sua aliança gelada na clavícula
dela.
— Nicole? — Uma fileira de rostos masculinos a encarava, aguardando.
— O muro do jardim?
— O…?
— Você sabe se o muro do jardim vai poder ser derrubado… ou movido?
— Mais uma vez, infelizmente não saberemos até o comitê de
planejamento nos retornar. Mas com certeza esperamos que seja uma
possibilidade. — As mãos estavam tremendo, o rosto tensionado. — Enfim…
— ela assentiu para Rupert — … você será o primeiro a saber assim que
recebermos esses detalhes.
Manter a conversa fiada pelo restante da reunião ajudou Nicole a recobrar
uma máscara de controle. Contudo, enquanto apontava fatos e números,
nunca se permitindo ser abafada pelos homens ou ficar em silêncio por tempo
demais, ela sentia os olhos de Jamie em si, questionadores. Ele havia lido a
mente dela, Nicole sentia, e gostou de vê-la desconfortável. Agora estava
irritado com sua recuperação.
— Certo. — Rupert ficou de pé e os homens do dinheiro o acompanharam.
— Vamos retomar semana que vem, quando já tivermos todos os detalhes?
— Com certeza. — Nicole queria ser a primeira a assegurá-lo disso.
Enquanto Rupert e os outros saíam da sala, Nicole recolheu seus papéis o
mais rápido que pôde. Mas Jamie, sempre um cavalheiro, já estava parado à
porta.
— A gente se vê na festa de despedida da Joyce na quinta? — perguntou
ele em voz baixa quando ela se aproximou.
— Estarei lá.
A passagem estava mais estreita por causa de Jamie, parado ao lado da
porta, sólido, imóvel, sorrindo com o braço esticado, e ela hesitou.
— Depois de você.
Imbuídas nessas três palavras havia muitas coisas: poder, principalmente,
e também desafio, além de uma alegria adolescente de ver o desconforto
causado. E, apesar de todo o esforço para manter a compostura, Nicole se
sentiu prendendo a respiração ao passar, como se de alguma forma pudesse
encolher até ficar invisível, ignorando que o polegar de Jamie — sob o
pretexto de guiar sua passagem — havia roçado de leve, quase em um
carinho, em sua coluna de cima a baixo.
CAPÍTULO 5
ALEX
A primeira taça de rosé a tinha derrubado, e Alex ficou grata por ter o bar
para se apoiar. De onde estava, no canto do pub, também conseguia ficar
de olho no fluxo constante de pessoas que chegavam da BWL, o coração
acelerando e depois se acalmando toda vez que a porta se abria para
alguém… que não era Jamie.
— Para com isso. — Recém-chegada da pausa para fumar do lado de fora,
Lydia tinha reaparecido envolta em uma brisa de tabaco mentolado.
— Parar com o quê?
— Talvez ele nem venha.
Não havia dúvida para nenhuma delas de que “ele” não era Hayden, que
estava bem longe, em uma conferência em Oxford.
— Claro que Jamie vem. Ele ama a Joyce. — Ainda estava cedo, mas
Alex imaginava que o número de pessoas que viera se despedir da colega já
estava batendo meia centena. — Olha só quanta gente. Todo mundo ama a
Joyce.
— Tá, ele deve vir — concordou Lydia, a contragosto. — Mas aqui está
lotado. É só ficar longe. — Encarando a taça vazia de Alex, ela franziu a
testa. — E tome cuidado. Você sabe o que dizem sobre ter bebês: é como se
você nunca tivesse bebido na vida.
Alex não tinha intenção nenhuma de evitar Jamie. E não estava nem um
pouco a fim de tomar cuidado. Cheia de energia devido à raiva que não sentia
igual havia anos, desde que tivera aquela última conversa com o pai (“Eu e
sua mãe achamos que vai ser melhor” — como se pedir para a sua filha de 16
anos sair de casa fosse uma decisão chata, mas nada pessoal), naquela manhã,
ela fez luzes no cabelo e o cortou na altura dos ombros, apertando-se em uma
calça que não era de maternidade pela primeira vez em quase um ano.
— Você está incrível — disse Lydia com um sorriso. — Estou feliz que
tenha vindo.
— Nem acredita que eu vim, né?
— Também. — Ela balançou a cabeça. — Eu sei que já falei isso mil
vezes, Alex, mas eu sinto muito mesmo. Ainda nem consigo acreditar.
— Nós duas. Mas, Lyds, você não contou para ninguém, né? Jamie
concordou em não comentar, em dizer para as pessoas que a decisão foi
minha. E preciso que acreditem nisso para poder arrumar outro emprego.
— Bom, ele foi legal em fazer isso. Aquele babaca. Eu não teria te
culpado por não vir hoje.
Alex deu de ombros.
— Eu falei para Joyce que viria.
Era verdade. Mas não foi por isso que ela se deu ao trabalho de acostumar
Katie à mamadeira só por aquela noite, chamar uma babá para a filha pela
primeira vez, gastar dinheiro que não tinha com um corte de cabelo que lhe
daria a confiança de que precisava, e ir de Acton a Ravenscourt Park. Não,
por mais que ela gostasse de Joyce, aquela noite era sobre algo mais
importante: encurralar Jamie e forçá-lo a cumprir sua promessa.
— Você ainda não me contou o que houve. Em um minuto você estava
toda sorridente, subindo com a Katiezinha, e no seguinte estava saindo do
elevador totalmente transtornada dizendo que ele… — Lydia não se
incomodou em baixar a voz — … Dizendo que aquele puto tinha te demitido!
Alex fez uma careta, desejando pela milésima vez que não tivesse
despejado a verdade para a colega ao sair do prédio aos soluços, 15 dias
antes.
NICOLE
JILL
5 de agosto
Delegacia de Kilburn
– V ocê—disse
Sim.
que o sr. Lawrence era muito respeitado.
JILL
Dois meses e meio antes
– V ocê vai ter que tentar chegar para lá um pouco. — Jill sentiu algo
fisgar na lombar enquanto colocava a cadeira de praia do marido na
última posição. — Pronto. Não desce mais do que isso. Ficou melhor?
Tinha sido uma ideia tão boa — um almoço tardio no deque superior do
Lady J. Surpreendentemente, a ideia tinha vindo de Stan. E quando ele ligou
para ela no escritório para ver como estava sua ressaca e sugerir que voltasse
para casa mais cedo, Jill desligou o computador na hora e entrou num táxi.
Por quase um ano, tudo na vida deles girou em torno de planejamentos
detalhados e muita preparação, e, exceto um ou outro jantar mais elaborado,
eles mal haviam saído de Blomfield Road. Durante todo aquele tempo,
nenhum dos dois sequer considerou atravessar a rua para ir ao jardim à beira
do canal do qual sentiam tanto orgulho havia anos, que dirá subir na barca
que circulava por ele.
O Lady J era robusto. Com o motor drenado para o inverno, o barco era
capaz de ficar ancorado onde estava por meses. O jardim, porém, largado sem
cuidados, se tornara uma confusão de ervas daninhas envolvendo latas,
galões e embalagens de lanchonetes que os turistas de Little Venice jogavam
pelas grades. E depois que Stan e Jill reconheceram que subir no deque
superior do Lady J seria ambicioso demais para ele, foram forçados a limpar
uma parte do jardim e fazer um piquenique à beira do canal.
Tudo estava indo muito bem até que Jill abriu o patê de cavalinha, fazendo
o marido vomitar ali mesmo no concreto quente. Com a náusea, as injeções
de leuprorrelina aumentavam a sensibilidade de Stan a cheiros — algo que
Jill sabia, mas de alguma forma havia esquecido em sua empolgação por
“voltar ao normal”. O incidente acabou fazendo-a se sentir culpada e
injustamente irritada com o marido por lembrá-los por que simples alegrias
da vida anterior não eram mais permitidas.
Enfim acomodado na cadeira, com a testa branca de protetor solar fator
cinquenta, Stan cochilava, deixando Jill para aproveitar a vista com que se
deleitavam a cada verão nas últimas duas décadas. Fechando os olhos por um
momento, ela tentou se perder no calor anestesiante do sol, mas flashs da
noite anterior continuavam retornando à sua mente — frases que Jill mal
conseguia acreditar que havia pronunciado.
O fato de que havia dito tudo aquilo sobre Jamie, que havia cometido
tamanha indiscrição, era desconcertante. Sim, foi pega de surpresa pelas
revelações de Nicole e Alex, mas Jill não era dada a indiscrições. Não era
essa pessoa. Não era de beber muito, mas mesmo assim na noite anterior
sentira uma sede insaciável — como se estivesse ativamente buscando entrar
em um estado alterado que permitiria que ela ouvisse, dissesse e concordasse
com coisas que ela normalmente não faria. E Jill não podia negar que se
sentira bem — até se deitar na cama e ser atingida pelo peso da
responsabilidade que agora carregava por aquelas duas mulheres. Será que
tudo se transformaria em uma miragem pela manhã? Será que todas as
palavras proclamadas deixariam de existir, e tudo o que tinha ouvido seria
esquecido?
Ao se lembrar do rosto de Jamie no meio do discurso, no entanto — o leve
rubor alcoólico de suas bochechas e seus gestos exagerados como os de um
showman —, algo endureceu dentro dela, como na noite anterior, quando os
sentimentos que ela esteve evitando nomear havia meses, se fosse bem
sincera, se condensaram em ódio.
Não importa se ele era um homem que ela conhecia havia anos, um
homem que jantou na casa deles e que, em mais de uma ótima ocasião —
antes de se casar com Maya e de as crianças nascerem — desmaiou
embriagado no quarto de hóspedes; ou que tenha visitado Stan no hospital.
Jamie era alguém cujos defeitos — fraquezas, ela pensava, com indulgência
— eram familiares o suficiente para serem divertidos. Ele era alguém em
quem ela confiava em poder contar, caso chegasse o momento. Só que,
quando o momento chegou, seu protegido parecia ter se aproveitado de todas
as oportunidades para “se colocar na frente”, como Alex dissera. E ele ter
minado o poder dela e de Stan na frente dos clientes quando os dois já se
sentiam tão diminuídos era deplorável.
Era essa a questão? Uma raiva deslocada em relação ao que sua vida e seu
casamento haviam se tornado? “Não é fácil ser um cuidador”, a enfermeira da
radioterapia tinha dito na semana anterior, dando um apertozinho no braço de
Jill. Não foi tanto a obviedade da declaração e o tom simpático que a
irritaram, mas a deselegância da palavra — uma palavra à qual Jill não queria
se relacionar. Ao longo dos anos, ela viu a maternidade reduzir seu número
de amigas, e quando ficou claro que ela nunca seria mãe, no fundo se sentiu
grata. Pelo menos seria capaz de seguir em frente, sem o peso das
necessidades opressivas de crianças. E foi isso que fez — até aquele
momento. Então não, como foi comprovado, ser um cuidador não era fácil.
Jill revisitou o passado ao longo dos anos e viu Jamie, com seus trinta e
poucos anos, quando ela e Stan o trouxeram para a empresa: igualmente
arrogante, porém mais magro, mais trabalhador e com mais cabelo. A
agressividade de rapaz simples funcionava bem na empresa de Essex de onde
ele viera e fez com que se destacasse dos outros candidatos ao emprego. Mas
essa característica também preocupou Jill no início: a ousadia dele ia mesmo
conquistar os clientes sofisticados da BWL? Mesmo assim, apostaram em
Jamie e, poucos dias depois de começar, compreenderam a extensão da
habilidade dele. Não havia muitas pessoas que conseguiam deixar homens
relaxados e mulheres encantadas. Mas a verdadeira surpresa foi que ele não
se limitava a conquistar grandes números de pessoas. Era também encantador
no tête-à-tête. Não apenas com clientes, mas com colegas e subordinados… e
com Paul e ela.
Ele foi promovido mais rápido e com mais frequência do que qualquer
outra pessoa na história da empresa, mas, naquela época, Jill nunca notou
qualquer diminuição da deferência dele em relação a ela. Quando isso
começou? Quando Jamie passou a olhá-la de cima para baixo? Porque, agora
que refletia sobre isso, houve sinais bem antes do diagnóstico de Stan:
telefonemas seus que Jamie havia interceptado de alguma forma; reuniões de
que ele participou sem ela “porque você tem coisas mais importantes com
que se preocupar”; resumos de projetos que ela estava esboçando para
descobrir que Jamie os escrevera dias antes. Na época, ela interpretou tudo
isso como dedicação. E quando alguns de seus clientes começaram a gravitar
em torno do executivo júnior, nem sempre ela se importou. Mas se irritou
muitas vezes.
Houve o pomposo empreiteiro milanês que nunca superou o mal-estar de
fazer negócios com uma mulher. “Eu só me sinto mais confortável com
Jamie, é como se tivéssemos mais em comum”, ele enfim assumiu, como se
fosse aceitável declarar uma preferência anatômica pelo seu parceiro de
negócios, igual a pedir chá em vez de café em uma reunião. E talvez Jamie
não tenha ficado tão horrorizado com isso como deveria. Ele respondeu
rápido — talvez rápido demais? — com um “Bem, o que for preciso para
fazer a venda, certo?”. Então Jamie era oportunista e misógino. Mas um
predador que trocaria cada grama de lealdade que devia a ela e a Stan por
glória?
— Stan? — Jill sabia que deveria deixar o marido dormir, mas sentia uma
necessidade urgente dele, algo que não se permitira sentir havia meses.
— Hum… — Ele entreabriu um dos olhos e depois o fechou, para só então
murmurar: — Por quanto tempo eu dormi?
— O suficiente para ficar vermelho. — Ela sorriu.
Sentando-se na ponta da espreguiçadeira de Stan, Jill passou mais protetor
na testa do marido antes de voltar o olhar para o restaurante Prince Regent
lotado que passava pelo canal.
— Você está bem, amor?
— Melhor do que hoje de manhã. Essa foi uma ótima ideia.
Pegando a mão da esposa, Stan começou a traçar as linhas da palma dela,
como fazia quando Jill estava cansada ou trabalhava demais.
— E a dor de cabeça?
— Bem mais fraca.
Ele assentiu, paciente.
— E o resto das coisas?
Sentado com as costas eretas e o rosto corado, ele quase parecia o antigo
Stan — alguém forte o suficiente para ouvir sua confissão. Porque eles nunca
tiveram segredos um com o outro, durante aqueles 35 anos. Não contar a ele
sobre os acontecimentos da noite anterior a deixava com indigestão.
— A despedida da Joyce foi um pouco… estranha.
— Sempre vai ser difícil se despedir, querida. Ela passou muito tempo
com a gente.
— Não foi só isso.
Cada um estava em sua própria espreguiçadeira agora, voltados para o
canal, e a lenta alteração da paisagem — os barcos passando e os patos
grasnando — ia facilitar essa conversa.
— Você se lembra da Nicole, nossa gerente de projetos especiais? Vocês
devem ter se conhecido na festa de Natal.
— A das pernas?
— Tenho quase certeza de que todas elas tinham pernas — respondeu ela
com uma risadinha. Talvez fosse ficar tudo bem. — A gente ficou
conversando. E, caramba, Stan, ela disse que Jamie deu em cima dela. E não
só falando coisas, coisas horríveis, mas até, você sabe, tocando nela no
escritório.
Jill ouviu o rangido das molas da cadeira quando Stan se virou para olhá-
la, mas não conseguiu se forçar a encará-lo até ter terminado.
— Ela disse que está sendo assediada por ele, e que isso tem acontecido há
meses já.
— Você acredita nela?
— Bom, ela tem um histórico complicado. É casada com uma filha, ou
duas, não lembro. Mas já teve alguns casinhos no escritório desde que
começou a trabalhar com a gente. Um de que tenho certeza. Lembra aquele
tal de Ian?
— Lembro. Acho que a história não me é estranha.
— Todo mundo ouviu uns boatos na época, né?
— E isso tudo significa…?
— Talvez não signifique nada. Só estou te dizendo que tipo de mulher ela
é.
— Não tenho certeza disso, amor. E seja como for, isso não torna o que
Jamie fez correto.
Stan sempre foi o mais feminista dos dois. Isso sempre os fazia rir, mas
naquele momento a resposta automática dele em defesa de Nicole a irritou.
— Eu sei disso. Só estou te contando sobre o… histórico dela. Quer dizer,
a gente nem sabe se Jamie fez alguma coisa.
— Ah, acho que a gente sabe, sim.
A risada descrente de Stan — um ronco baixo vindo do fundo da garganta
— era a última coisa que Jill esperava ouvir. Seu marido era do tipo que
sempre via o melhor das pessoas. Tirando as pernas da cadeira, ela se voltou
para olhá-lo.
— Você acha que ele é um daqueles predadores de que falam no jornal?
— Ela afastou uma mosca da canela. — Um daqueles homens do “Me Too”?
— Sei lá, mas…
— O quê?
— Bom, eu não falei nada na época, mas você se lembra daquela
assistente, muitos anos atrás, aquela jovenzinha que só ficou na empresa
alguns meses? Uma que ele levou para uma conferência em Lisboa?
— No Porto.
— Isso.
— Ela voltou a estudar.
— Não voltou, não. Ela foi para a Curtis & Hawk. — Stan coçou a nuca.
— E contou para todo mundo lá que Jamie tinha dado em cima dela… de
forma bem agressiva.
Jill se sentou bem ereta, erguendo os óculos escuros para a testa.
— Você nunca comentou nada.
— Não quis te preocupar. E para a nossa sorte ela nunca fez uma
reclamação formal. Mas eu não gostava da ideia de que ela estava
comentando isso por aí. Não dá para as pessoas pensarem que essas coisas
acontecem na BWL.
Uma imagem da moça de olhos azuis profundos e rosto sardento se
formou na mente de Jill, e o nome dela voltou a ambos ao mesmo tempo:
— Jessica.
— Passou, ainda bem, então nunca comentei nada com ele. Mas assédio…
— Stan assobiou baixinho. — Isso vai ser um problema.
Esse não era o único problema: também havia a indiscrição de Jamie sobre
a saúde de Stan. E embora Jill não tivesse coragem de contar ao marido que
ele tinha sido assunto de fofocas — ou pior, de pena que ele tanto se
esforçara para não receber —, ela precisava contar a ele sobre Khalvashi.
— Tem mais uma coisa, que pode ser tão danosa à reputação da BWL
quanto essa história de assédio. Alex, a antiga assistente de Jamie, diz que foi
demitida por algo que foi culpa dele. Ela disse que ele sabia que o dossiê
sobre um empreiteiro da Geórgia estava incompleto, mas que ele tentou
forçar a venda mesmo assim.
— O quê?
— Pois é.
Stan franziu a testa.
— Mas, bem, é a palavra dele contra a dela?
— Sim. Mas vou te dizer o seguinte, Stan. Ele está… sei lá, mais desatento
ultimamente. Mais arrogante também.
— Essa menina, Alex, está com bastante rancor, não?
— Bom, sim. Ela foi demitida. — Ela odiava as rugas paralelas marcando
a testa do marido. — Mas talvez você tenha razão. Ela só deve estar com
raiva, atacando todo mundo.
— Pode ser.
— Seja como for, não quero que você fique pensando nisso tudo. Já tem
problemas suficientes para lidar. Nicole também não quer fazer uma
denúncia, já é alguma coisa. E talvez isso tudo só tenha sido um festival de
reclamações ontem. Talvez elas — Jill não usou a palavra “nós” — só
precisassem desabafar. Mas se você acha mesmo que ele fica se engraçando
com outras mulheres por aí…? Coitada da Maya.
Os dois ficaram em silêncio, e Jill se sentiu grata pela distração de outro
barco de passageiros atravessando o canal. Encarando uma fileira de
japoneses — impassíveis atrás dos óculos escuros —, ela viu a própria
existência privilegiada através do olhar alheio. “Imagine ter essa vida”, eles
estariam pensando. E durante todos aqueles anos, eles teriam razão.
CAPÍTULO 9
NICOLE
Só para confirmar que Westfield deu o o.k. no nosso terreno em Kew, camarada. A
venda não vai ser assinada/divulgada até o começo de julho, mas para deixar tudo às
claras é bom enfatizar aos compradores que você mencionou que qualquer plano de
construir um multíplex vai ser problemático.
De: JamieLawrence@bwl.com
Para: HugoMears@JLL.com
A data do e-mail era de apenas um mês atrás: duas semanas antes de Jamie
apresentar a propriedade aos irmãos O’Ceallaigh.
— Pat, John. Eu posso dizer com sinceridade…
— Acho que você não pode dizer porra nenhuma com sinceridade, meu
amigo. Escuta: nós trabalhamos com isso faz muito tempo. Não somos
ingênuos de achar que você iria colocar um problema estrutural no prospecto.
Mas isso? Você sabia o que a gente queria fazer com o terreno, sabia de Kew,
e ainda assim nos ofereceu? Você nos deixou pensar…
— Não, não, John. — Jamie juntou as mãos pateticamente como se
estivesse implorando ou rezando. — Eu sempre fui direto com vocês. E
olha… Quando um pouco de concorrência fez mal a alguém, não é verdade?
Isso pode até ser bom para vocês dois… Isso poderia trazer…
Nesse momento a tela finalmente decidiu obedecer, voltando ao logo
branco e grafite da BWL. Mas de alguma forma isso só piorou as coisas, como
se eles estivessem tentando fingir que palavras entreouvidas nunca haviam
sido ditas.
— Pat.
Empurrando a cadeira para longe da mesa e acenando para o irmão com
um movimento do queixo, John O’Ceallaigh se dirigiu à porta, com Pat logo
atrás. Sem fazer qualquer tentativa de detê-los, Jamie só ficou observando
enquanto eles atravessavam o andar em direção ao elevador. Como todos os
presentes, ele sabia bem que não era mais possível salvar aquela negociação.
Visivelmente aliviados por não terem sido os responsáveis pelo que com
certeza entraria na história da BWL como uma das maiores gafes da empresa,
as pessoas começaram a voltar para suas mesas. Mas, durante uns bons cinco
minutos, Jamie ficou parado logo à porta da sala de reuniões, curvado e
imóvel. E, enquanto o observava de sua mesa, Nicole sentiu a boca se torcer
em um sorriso tão largo que teve que se virar para evitar que alguém o visse.
O plano que elas tinham traçado no pub — o que desaparecera sem deixar
vestígios, sem qualquer palavra vinda de Alex desde então, nem o menor
sinal de Jill de que a conversa sequer tivesse acontecido — estava sendo
colocado em prática por uma delas. Não era Nicole. E não poderia ser Jill,
que descartara a possibilidade de usarem a Lista D naquela noite. O que
deixava apenas Alex. Mas ela não estava mais na empresa, então como
poderia ter feito aquilo?
CAPÍTULO 10
ALEX
P
or que o leite sempre ferve muito mais rápido do que qualquer outra
coisa? Como seria possível, em questão de segundos, ir de vacilante
e deixando marcas fracas na lateral da panela para borbulhante e
espirrando em Alex como agora? Ela observava, hipnotizada, os respingos
brancos acertando a parte de trás do fogão, desaparecendo entre a gordura e
as manchas de comidas grudadas ali que aumentavam desde o nascimento de
Katie. Ela observou as marcas se formarem na beirada da panela indo de
marrom a sépia, e o líquido se reduzindo até virar uma sopa coagulada. Aí
desligou o fogo. Ela nem queria um chocolate quente mesmo. Tudo o que
queria era uma boa noite de sono — e seu emprego de volta.
Do tapetinho de atividades Katie balbuciou, e Alex se virou, culpada por
ter esquecido a existência da filha por sequer um minuto. “E se você sair de
casa e esquecer o bebê?”, ela perguntou para Joyce durante a gravidez. “Não
é como uma chave”, a colega respondeu, rindo. “O bebê está no primeiro
plano da sua mente o tempo todo. Eles são pessoinhas também, não se
esqueça, mesmo antes de conseguirem falar.”
Só que Katie não parecia uma pessoinha. Olhando para a mãe, os belos
olhos azuis inexpressivos, ela parecia mais uma criatura alienígena, julgando
silenciosamente todos os seus fracassos.
— Está se divertindo aí embaixo?
Alex se abaixou ao lado da filha, preparando o nariz para o cheiro sempre
presente de talco, e balançou um dos macaquinhos pendurados acima de
Katie. Ela havia comprado o “tapete de atividades” de oitenta libras por 15 no
brechó, uma pechincha que só fez sentido dias depois, quando descobriu que
o elefante eletrônico com orelhas que acendiam só tocava uma das “vinte
alegres melodias” anunciadas na caixa amassada. Graças a esse problema, a
música “The Wheels on the Bus” às vezes começava sua melodia enjoativa
sem ser pressionada — uma vez até despertando Alex e Katie durante a
madrugada —, só porque podia. Depois de três meses, Alex se viu trincando
os dentes quando as primeiras notas atravessavam o apartamento, e ela se
esticou para desligar o aparelho.
Como algo tão pequeno podia precisar de tanta coisa? Ela havia comprado
tudo aquilo pelo preço mais barato, em brechós ou no eBay, mas os sete mil
que a mãe emprestara já tinham acabado, e Alex sabia muito bem que em
poucos meses haveria toda uma nova lista de necessidades: o berço teria que
ser trocado por uma caminha com um novo colchão, e logo ela precisaria de
um cadeirão e uma cadeirinha de banho, grades de proteção para cama e um
assento de carro.
Ela pensou no prazo de agosto que sua mãe lhe fizera prometer que
cumpriria. Alex teria que devolver o dinheiro até lá… ou o pai ficaria
sabendo.
— Ele não pode saber — a mãe sussurrara pelo telefone.
Desde que Alex se lembrava, seu pai era sempre referido com aquele “ele”
temeroso. E esse havia sido mais temeroso que o normal.
— Eu tirei dinheiro da conta nova que abrimos, então ele não vai notar que
não está lá até termos que transferir o depósito.
— Depósito?
— Na casa nova.
Alex não comentou que nunca tinha visto a casa velha, que nunca tinha
sido convidada — e que a maioria das pessoas não precisavam esperar um
convite para visitar os próprios pais.
Igualmente temerosa do que “ele” diria, Alex nem tinha conseguido se
forçar a contar à mãe que perdera o emprego, se permitindo um único
momento de sinceridade:
— Eu preciso de você, mãe. Quero dividir esses primeiros meses com
você, quero dividir as experiências de Katie com você. Eu não esperava que
meu pai entrasse no primeiro avião para cá… — Mas que tipo de homem não
deixaria a esposa conhecer a única neta?
Em geral tão boa em defender o marido — “ele está cansado”, “ele está
irritado”, e o sempre útil “ele não faz por mal” —, a mãe de Alex ficou em
silêncio do outro lado da linha até oferecer um resignado “Você sabe como o
seu pai é”.
Alex sabia. Só não esperava que os outros homens da sua vida fossem tão
ruins quanto.
Tirando o celular do bolso do roupão que ela jogara por cima da calça
jeans e da camiseta em vez de ter vestido um casaco, Alex rolou a tela até o
número de Hayden e suspirou profundamente. A expressão dele — descrente,
depois horrorizada — quando ela lhe contou. A voz fria e desconfiada:
“Como você tem certeza que o bebê é meu?” Não conseguia fazer isso. Não
quando suas últimas palavras para ele haviam sido: “Se você não quer fazer
parte da vida da Katie, eu vou criar minha filha sozinha. Prometo, nunca vou
te pedir nada.” Não quando fizera a mesma promessa silenciosa em relação
ao pai 13 anos antes, a jornada de criação dele terminada antes mesmo que
ela tivesse idade para votar.
Continuou rolando a tela do celular até o J; mais um homem frouxo, mais
um desperdício de espaço, além do namorado e do pai. “Jamie Casa”, “Jamie
Celular”, “Jamie Casa de Devon”. Ela tinha mais números do homem que
ficou em sua vida por menos de um ano do que dos próprios pais — e sentia
uma relutância profunda em ligar para qualquer um deles. Olhando dos
números até o relógio piscando abaixo da televisão — 17:24 — para Katie,
Alex tentou pedir à filha algum tipo de sinal, mas lá estavam somente aqueles
olhos azuis inexpressivos: poços sem fundo de necessidade. Alex era a única
que podia atender àquela necessidade, e sentindo o que restava de seu
orgulho se esvair, tocou na tela e levou o celular à orelha.
Jamie atendeu imediatamente.
— Al, estou ocupado.
Ela ouviu o barulho distante de música em um pub e o tilintar de copos, o
final de uma piada sendo contada e as risadas a seguir. Até para Jamie, era
cedo para estar no Firkin.
— Vou ser rápida. — Ela seguiu, de olhos fechados: — Eu tinha bebido
um pouco… na despedida da Joyce. E posso ter sido um pouco… firme. —
Nem de perto tão firme quanto gostaria, seu merdinha inútil e traidor. —
Enfim, percebi que não era o momento certo para a gente ter aquela conversa.
Desculpe.
Ela se sentia fisicamente enjoada por pedir desculpas a ele, mas já fazia
mais de uma semana sem ter uma palavra de Jill ou Nicole. Se ainda
houvesse alguma chance — qualquer que fosse — de Jamie ajudá-la, valeria
a pena.
— Mas aquele trabalho… eu estava contando mesmo com ele… —
esticando-se para segurar o pezinho da filha, ela o apertou com força o
bastante para Katie fazer uma careta pré-choro, antes de soltar. — Eu preciso
mesmo do emprego, Jamie. Estou quase sem dinheiro. E se você acha que o
seu amigo não precisa de uma assistente… — Ela respirou fundo. — Quer
dizer, será que tem… alguma outra pessoa que possa precisar? Ou seria
possível… — ela se contorceu de vergonha pelo que estava prestes a dizer —
… considerando que nós dois sabemos que o que aconteceu não foi culpa
minha, considerando que você me deve uma, Jamie… Eu só estou meio
apertada, entende? Só preciso do suficiente para acertar as coisas.
— Alex. — Jamie parecia mais entediado que irritado, e ela o imaginou
parado à porta do pub, onde não tinha tanto barulho, gesticulando para os
colegas bêbados da BWL para avisar que já voltaria. — Foi o que eu te falei:
não tem trabalho. Eu me confundi. Olha, eu sinto muito e te desejo tudo de
bom. Espero que você saiba disso. Agora você tem a pequena…
— Katie.
— Agora você tem a pequena Katie. No fim das contas, família é o que
importa, não é? Tenho que desligar.
Ao ouvir a ligação ser desconectada, Alex afastou o telefone da orelha e
encarou a tela sem acreditar.
— Seu merdinha!
Assustada com o tom de voz da mãe, Katie soltou um soluço que se
transformou em uma reclamação aguda. Estava cedo demais para a próxima
mamada, e a agente comunitária de saúde do NHS [ 01 ] tinha alertado Alex
sobre os riscos de “alimentar demais a bebê”, mas ela ergueu a camiseta
mesmo assim.
— Pega! Pega!
Mais uma vez, Katie se recusou a pegar o bico do peito, virando a cabeça
como fizera todas as vezes desde a despedida de Joyce.
Alex não era supersticiosa, mas estava começando a se perguntar se tê-la
tirado do peito naquela única noite e ter se permitido ser consumida pelo ódio
que agora corria venenoso por suas veias tinham azedado seu leite.
Na manhã depois da festa, ela havia acordado de ressaca, ainda sonolenta,
mas nas nuvens. Não fora a única a ser enganada por Jamie e, por mais
chocante que tenham sido as revelações de Nicole, aquela foi toda a
confirmação de que precisava. Alex não fez nada de errado, mas Jamie? Ele
era uma pessoa horrível de verdade. E com a fundadora da BWL agora ciente
de quem seu protegido realmente era, Alex respirou aliviada, sabendo que o
acerto de contas viria. Só que aquele dia havia passado, e então o seguinte,
sem a aguardada ligação ou mensagem de Jill ou Nicole, e a felicidade de
Alex se transformou em dúvida. Será que ela exagerou a raiva das outras
duas em sua memória? Imaginou a cumplicidade no seu plano? Não. Não
estava aumentando nada. Elas só estavam se protegendo.
Apontando o seio intumescido para Katie com uma das mãos e limpando
as lágrimas com a outra, Alex rosnou:
— Você quer a mamadeira? Toma então.
Cansada demais para insistir, ela preparou a mamadeira, deitou a filha no
colo e prendeu a respiração até ver os músculos nas bochechas de Katie que
sugavam mecanicamente ficarem cada vez mais lentos até parar, e ela fechar
os olhos.
Como as mães que não trabalham lidavam com esses dias infinitos? Alex
trabalhava muito na BWL, e os dias antes de uma conferência ou de uma
grande venda eram esgotantes… mas nada desse jeito. Nada assim. Não havia
um empregador no mundo ocidental que não permitiria que você fizesse xixi
quando precisasse. Embora, é claro, se você tivesse um homem, ou outro
responsável ali, as coisas seriam diferentes. Haveria algum tipo de interação
humana, para começar.
Com quem Alex tinha falado desde que acordara — desde que fora
acordada —, logo antes das quatro da manhã? Com a recepcionista
incomodada do médico, em uma conversa que não durou mais de trinta
segundos. Com a voz automática da caixa postal dos pais. “Por que Katie não
quer mais mamar no peito?”, ela queria desesperadamente perguntar à mãe.
“Por quê? É a única coisa que eu sei fazer.” Mas mesmo assim não deixou
mensagem, sabendo que o pai poderia interceptá-la e ouvir o desespero em
sua voz. O cara do posto de conveniência naquela manhã foi capaz de fazer
toda a transação sem nem mesmo um aceno de cabeça, provavelmente de
saco cheio de interações humanas, ou talvez um pouco enojado pelo bebê
babão grudado no peito dela. A forma como algumas pessoas te olham
quando você se senta ao lado delas no ônibus ou no metrô, como se você
tivesse alguma doença. E Alex não culpava quem se levantava e se afastava,
revirando os olhos para os gritos de Katie. Bebês eram sujos, fedorentos e
barulhentos — até o seu. Seu laptop estava tentadoramente perto,
despontando sob um jornal Metro manchado de café na mesa de centro, e
Alex avaliou rápido os riscos que toda mãe de um bebê dormindo é forçada a
correr para se certificar de alguns minutos de liberdade. Tendo passado Katie
com segurança dos seus braços para o sofá, ela clicou na caixa que vinha
checando uma dúzia de vezes por dia, esperando receber uma mensagem
conciliatória de Jamie — e prendeu a respiração ao ver o e-mail.
Espremido entre a newsletter de um supermercado e um lembrete do eBay
para “pagar o saco de dormir infantil” havia um e-mail de Ashley Bucknall;
assunto: encerramento de contrato. De imediato algo pareceu estranho. Por
um minuto, Alex deixou o cursor flutuar sobre a mensagem, e quando clicou
nela se surpreendeu por não haver nada escrito no e-mail, só um documento
do Word em anexo. Abrindo o que se revelou ser só três páginas, Alex logo
leu o conteúdo da primeira, uma carta:
Prezada srta. Fuller, como discutido pessoalmente em 4 de maio deste
ano, por favor, fique ciente de que a BWL está encerrando seu contrato de
trabalho iniciado em… Conforme lia, Alex enfiava as unhas no sofá. Confira
a seguir os detalhes do pagamento completo e final da sua licença-
maternidade. Isso deve englobar os valores até esta data. Como é comum em
demissões por falta grave… Aqui as palavras ficaram borradas na tela. “Falta
grave”? Ela olhou para Katie, como se a bebê adormecida pudesse ajudá-la a
compreender. Mas é claro que não podia. Nada poderia. E a verdadeira
extensão das mentiras de Jamie se tornou clara para Alex. Nada do que foi
dito naquela reunião era verdade: a “negligência” que ela teoricamente
cometera, a promessa de manter a demissão em segredo e a afirmação de que
os documentos do desligamento diriam que “você simplesmente pediu
demissão”. Mas como conseguiria outro emprego com aquilo no seu registro
pessoal? Mas a maior mentira de todas tinha sido o emprego na JLL, como
uma cenoura pendurada à sua frente para conseguir que fosse embora sem
criar escândalo e então afastada assim que Alex estivesse fora do caminho.
É engraçado como o amor é próximo ao ódio, como é forte a vontade de
ver o rosto de alguém quando você está preso no olho do furacão dessas
emoções. Como uma adolescente, Alex abriu a pesquisa de imagens do
Google, mordendo o interior das bochechas enquanto passava de uma foto
para outra do mentiroso de olhos simpáticos que era Jamie. Durante todo o
tempo em que trabalhou para ele, nunca ocorreu a Alex olhar as redes sociais
do chefe, já que todos os detalhes da vida dele eram seu ganha-pão. E teria
sido difícil para a maioria das pessoas sentir curiosidade sobre um homem
que, ao beber, dividia tantas informações particulares quanto Jamie. Até o
mais fugaz companheiro de copo no Firkin saberia de tudo, desde confusões
conjugais causadas por seus surtos de fumante às escondidas (“Juro que ela
sente o cheiro em mim a um quilômetro de distância!”) e sua tendência a
esquecer a aliança em qualquer lugar (“Se um dia eu perder essa aliança,
Maya vai pirar”) ao preço exorbitante da suíte de frente para o mar na
Antígua que ele estava prestes a alugar para o Ano-Novo. Mas quando ela
rolou para encontrar as páginas de Jamie no Facebook e no Instagram, a
sensação foi a de encontrar um tesouro virtual.
Ali, ao alcance dos dedos, estavam dez anos da vida de Jamie: uma
coleção inestimável de festas, aniversários e minisseparações matrimoniais,
noites no pub e encontros e tudo que pudesse servir de objeto de vanglória.
Conforme ela passava por uma série de posts do tipo “homem de família”,
Alex se viu cada vez mais intrigada pela mulher que foi tão hipnotizada por
aquele embuste que até se casou com ele.
Alex já tinha visto muitas fotos da esposa de Jamie, que mais parecia uma
modelo, tanto nas prateleiras do ex-chefe como no celular dele, e, por estar
familiarizada com o contraste agradável das sobrancelhas escuras e do cabelo
louro-mel, as maçãs do rosto esculpidas e os lábios carnudos, e porque ele
sempre estava falando da aparência dela como se fosse uma vitória dele, Alex
havia ignorado a beleza dela. Mas concentrando-se em Maya, ela foi forçada
a concordar que havia algo naquela esposa troféu do oeste de Londres que a
elevava acima do restante.
Maya tinha uma beleza limpa e típica de modelos, que conseguia ser, ao
mesmo tempo, acolhedora e alienante. Mas era o frescor — do tipo que
pouquíssimas mulheres mantêm depois dos vinte e tantos anos — o mais
desconcertante. Maya era uns bons anos mais velha que Alex, mas do cabelo
aos lábios pintados apenas com um brilho rosa-coral quase transparente, à
pele levemente bronzeada dos braços, tudo tinha um quê de intocável, uma
originalidade — como se a vida nunca tivesse conseguido deixar sua marca
nela, ou como se Maya tivesse sido protegida de qualquer coisa desagradável
que pudesse tê-la marcado.
Alex se pegou voltando a uma imagem específica no Instagram. Tirada
alguns meses antes, exatamente 16 dias depois de Maya ter dado à luz (Alex
fez as contas), que a mostrava de pé no quintal da casa deles em Bedford
Park, de jeans e suéter. Ao esticar a mão, protegida pela luva de jardinagem,
para quem quer que estivesse tirando a foto — Jamie, provavelmente —, a
boca aberta em um protesto brincalhão, o suéter de Maya se ergueu alguns
centímetros, mostrando a parte de baixo da barriga dela. “Por favor!”, Alex
quase conseguia ouvi-la dizendo ao marido orgulhoso. Porque, embora a
barriga de Maya parecesse perfeita aos olhos de Alex, sem uma veia ou estria
à vista, para Maya, ela ainda não havia recuperado o corpo pré-gravidez.
Jamie saberia como a esposa se sentia. Ela teria comentado naquela manhã
enquanto ele saía de cima dela, sem fôlego, beliscando uma infinitesimal
dobra de pele e fazendo bico: “Olha só o que você fez comigo.” E Jamie riria,
dizendo que Maya continuava tão linda como sempre, talvez até se
inclinando para beijar sua barriga.
Jamie só havia postado mais uma vez desde aquele dia. Uma foto de um
parque do oeste de Londres, no primeiro fim de semana de maio. A toalha
xadrez estava lá, mas aquela não era a bagunça comum de um piquenique:
nada de ovos cozidos e minissalsichas para aquela família. Em vez disso,
havia alguma coisa parecida com uma quiche embrulhada em papel pardo,
um pomelo descascado e cortado em fatias, e parte de uma garrafa verde que
devia ser de Sancerre ou Chablis — dois dos favoritos de Jamie, ela sabia —
despontando de um cooler. A pequena Elsa dormia no peito de Maya, e
Christel fazia careta atrás do pai: “Minhas meninas.”
Esses dois posts fizeram Alex mergulhar na vida de Maya. Jamie talvez
fosse um mentiroso, um assediador e muito provavelmente um traidor, mas
não havia dúvida de que ele ainda era fascinado pela mulher com que havia
se casado. E se Maya era uma das coisas que Jamie mais valorizava além do
trabalho, então Alex ia precisar se aproximar um pouco mais… e descobrir
como poderia utilizar aquilo a seu favor.
Com os dedos se movendo à velocidade da luz pelo teclado, buscou
“Maya Lawrence” e começou uma investigação completa nas mídias sociais
dela. Como não tinha pensado em fazer isso antes? O Facebook e o Instagram
de Maya começavam lá quando ela ainda era Maya Juhl, “design de
interiores”, fotografada encostada no quadro de inspirações de um estúdio em
Copenhagen, usando um jeans boyfriend rasgado. Bonita demais para ser
levada a sério, ela passou a usar óculos de armação preta grossa e uma
expressão desafiadora nos meses seguintes: sempre aboletada no braço de
algum sofá absurdamente minimalista ou cruzando os braços no primeiro
plano do lobby de algum hotel monocromático que supostamente deveria ter
sido obra sua. Mas algo havia acontecido quando ela se mudou para Londres
— Jamie? E Maya se tornara uma mulher mais leve, mais brincalhona; uma
mulher que usava vestidos leves e alpargatas, lambia a espuma da cerveja do
lábio superior e tirava selfies beijando uma versão mais jovem e mais magra
de Jamie.
A época dos bebês — Christel e depois Elsa — veio a seguir, e Alex ficou
impressionada com a complacência da fotogênica família Lawrence, foto
após foto da prole perfeita sendo enfiada goela abaixo das pessoas no que era
apresentado como uma demonstração de amor altruísta mas era, na verdade,
um narcisismo extremo. Assim como as fotos infinitas do quintal verdejante e
da estufa em Bedford Park, com os tomates que Maya se esforçava muito
para fazer as pessoas acreditarem que tinham sido plantados por ela mesma, e
um post muito Mulheres perfeitas da semana anterior que mostrava um
daqueles porta-comprimidos semanais nas cores do arco-íris, lotado de
pílulas pseudossaudáveis. “Colocando o marido num cronograma de
vitaminas!”
O post mais recente era sobre algum tipo de aulinha de mamãe e bebê.
Fotografada em um círculo de mães paparicadas e risonhas de Chiswick,
Maya estava com as pernas vestidas em lycra dobradas à sua frente no
formato de um losango, intensamente concentrada na cabecinha de Elsa,
apoiada em seus pés. Quando Alex se concentrou na legenda — “Aulinha de
ginástica na Bumps & Babies. Ótimo lugar para fazer novos amigos!” —,
sentiu um nó no estômago ao perceber como a experiência do início da
maternidade podia ser diferente para as duas.
O zumbido de um patinete elétrico parando do lado de fora tirou Alex do
transe, e ao se aproximar da janela ela viu a figura de capuz familiar na
esquina lá embaixo, os clientes esquivos saindo de carros e portas para fazer
os pedidos da noite, a bolsa tipo carteiro da Fila sendo remexida rapidamente
em busca de cocaína, maconha ou o que quer que as pessoas precisassem
comprar com regularidade alarmante. Já passava das oito agora, e como ela
deixara Katie dormir cedo demais, a filha ficaria acordada a noite toda. Mas
ela ficaria acordada a noite toda de qualquer maneira. Sempre ficava. E
embora Alex se sentisse vazia de tão cansada, ainda estava agitada demais
para dormir — quase tão agitada quanto na madrugada depois da festa de
Joyce, quando descobriu como seria fácil colocar em prática aquele plano do
pub.
O “engano” com a Lista D junto ao e-mail de Hugo Mears tinham sido um
experimento. Se isso fosse divulgado e deixasse ao mesmo tempo Jill e
Nicole nervosas, melhor ainda. Alex não esperava que sua antiga senha de
acesso à intranet da BWL ainda funcionasse — a que ela usava para mudar
horários de reuniões e voos para Jamie, marcar motoristas que conseguia
acompanhar na base de dados do escritório do início ao fim da corrida e
editar documentos fora do escritório. E, é verdade, não funcionou. A ideia de
Jamie, tão ocupado, tendo o trabalho de chamar a TI para mudar a senha a
irritou por um momento, até que uma piada que ele havia feito por causa de
um artigo sobre senhas pouco seguras no Evening Standard voltou à sua
mente. “Quem ainda usa o aniversário como senha?”, Alex tinha rido.
“Culpado”, o chefe havia confessado com uma careta. E ela deu uma bronca
em Jamie por não cuidar da segurança. Ele não era burro, mas era preguiçoso
— e quando Alex tentou a sequência “123456”, a senha provisória que a TI
sempre manda para que fosse alterada imediatamente, o portal da BWL se
abriu à sua frente.
Uma lista de funcionários responsáveis por cada projeto estava disponível
no portal principal, junto aos documentos detalhando visitas, contratos e
negócios daquela semana, mas outra senha foi necessária para acessar o e-
mail e a agenda de Jamie, e essa não se provou tão fácil de descobrir. A data
do casamento de Jamie não funcionava mais e os aniversários de Maya,
Christel e Elsa, todos falharam, com e sem um “1” no final. As palavrinhas
vermelhas “Esqueceu sua senha?” a provocavam. Quantas tentativas mais até
a senha ser bloqueada? Mais uma, mais duas? Olhando pela janela para a
sequência de sobrados vitorianos malconservados em frente, Alex forçou a
mente a vaguear, algo que fazia nas raras ocasiões em que esquecia a senha
do cartão. Então digitou seis letras: NICOLE. “Predador de merda”, resmungou
quando a caixa de entrada de Jamie se abriu à sua frente.
Alex soube o que fazer no segundo em que viu a reunião do projeto
Minerva com os O’Ceallaigh na agenda de Jamie. Se a Lista D era uma piada
tão popular na BWL, e se Jill e Nicole estavam cientes dela, então certamente
alguém teria acesso a esse arquivo. E quando uma rápida busca na caixa de
entrada dele resultou em um e-mail de Mears aconselhando “transparência”
— algo de que Alex agora sabia bem que seu ex-chefe não era fã —, ela
decidiu colocar a mensagem no pacote também, só para dar mais uma
cutucada vergonhosa. Com apenas alguns cliques, os documentos estavam no
arquivo da apresentação de Jamie, que Alex tinha certeza de que ele nem se
incomodaria em revisar no dia: nunca fazia isso. Porém, por mais que ela
tenha se divertido ao ler as trocas de e-mail sobre a “cagada do Minerva” que
continuavam surgindo dias depois, Jamie já parecia estar se safando.
Nos dias que se seguiram à despedida de Joyce, Alex estava desesperada
por qualquer tipo de reconhecimento de Nicole ou Jill. Agora estava claro
que as duas a tinham apagado da mente — e o plano que criaram juntas. Mas
Alex não conseguia fazer isso. Não o faria. E claramente uma ligeira gafe
profissional não era o suficiente. Não para Jamie… nem para ela. Abrindo o
laptop de novo, ela digitou “Bumps & Babies”. Como era mesmo a frase que
ele sempre dizia, sem saber a dor que causava a ela? “Família é o que mais
importa”? E, depois de hesitar por um segundo, ela clicou em “Agendar uma
aula”.
CAPÍTULO 11
JILL
– N ão Jamie
sei como posso ser mais claro em relação a isso.
falava devagar, alongando as vogais e pontuando cada
palavra com um aceno de cabeça, e Jill se sentia tentada a lembrá-lo de que
não era nem filha dele nem sua assistente.
— Sinceramente não sei como isso aconteceu. As plantas da propriedade
estavam bem ali no meu tablet, e eu tinha repassado a apresentação do
Minerva no dia anterior. Só pode ter sido um erro na hora de nomear o
arquivo. Talvez até algum tipo de erro do sistema?
“Só pode ter sido” era uma das expressões favoritas de Jamie, sua reação
automática a qualquer tipo de erro ou confusão. Dessa vez, no entanto, Jill
suspeitava de que a surpresa abismada dele pudesse ser genuína. Será que
aquilo era coisa de Nicole? Ou de Alex? Ou das duas, colocando em prática
um plano que Jill desconsiderou como sendo loucura de bêbado?
— Olha, a gente já falou disso mil vezes. Sabemos bem que a culpa é
minha, tá? Não tem ninguém aqui discutindo isso.
Inclinando a cabeça para o lado, Jill observou o colega. Sua linguagem
corporal continuava lânguida e controlada: as pernas esticadas, as mãos
cruzadas atrás da nuca. Ela queria que essa conversa estivesse acontecendo
no escritório dela, onde a dinâmica de poder estaria mais a seu favor. Queria
também que Jamie estivesse mais envergonhado e menos combativo.
— Não tem a ver com culpa, Jamie. — Dando uma olhada no relógio, ela
suspirou. — Tem a ver com se certificar de que estaremos mesmo prontos
para quando os irmãos O’Ceallaigh vierem em menos de duas horas.
— Eu estou pronto — insistiu ele. — Vou entrar lá, ser franco com eles e
falar sobre todos os problemas da propriedade, explicar que o motivo pelo
qual não tinha mencionado o terreno da JLL na região foi porque eu não
achava que a venda ia ser fechada…
— Ou seja, mentir.
— … e vou vender a propriedade para eles tudo de novo. Vou dizer que
ter um Westfield logo do outro lado da ponte vai ajudar os negócios, não
dificultar, blá-blá-blá. — Ele se inclinou para a frente. — Você acha que eu
não sei o quanto isso é importante? Eu sou bem crescidinho, Jill.
— Tem certeza de que não quer que eu participe da reunião?
— Tenho.
— É só que a gente teve muito trabalho para convencer os dois a voltar.
— Eu sei. Principalmente porque fui eu que passei a última semana
ralando para que isso acontecesse.
— Uma semana na qual poderíamos estar mostrando a propriedade para
outras pessoas, Jamie. Mas você insistiu que a gente segurasse. — Ela deu de
ombros. — Pode ser até que os O’Ceallaigh já tenham desistido da gente e
começado a conversar com a JLL, nossa concorrente mais “transparente”.
— Jill! Eu posso consertar isso. Não era você que sempre me dizia, muito
tempo atrás, para não correr atrás dos outros quando cometesse um erro?
“Apenas conserte”?
— Era. — Ela ficou satisfeita por ele ter se lembrado. — E a garrafa de
Glenlochy vintage foi um toque de mestre.
— Obrigado. É quase como se eu soubesse o que estou fazendo.
— Cruzes, você está tão na defensiva.
Jamie respirou fundo, engolindo o que quer que estivesse prestes a dizer.
— Só quero que você pare de me microgerenciar. Já resolvi.
— Então tá. — Ela ajeitou a saia. — Foto nova da pequena Elsa?
Jamie girou a cadeira para pegar a foto emoldurada da família na prateleira
atrás da mesa.
— Ela não é linda? — Jamie passou o polegar pelos três sorrisos
brilhantes e o embrulhinho confuso no centro de todos e entregou a fotografia
para Jill.
— Uma graça. — Ela havia dominado aquele tom gentil ao longo dos
anos, mesmo que nunca tivesse sentido a pontada no útero, imaginava, que as
mães sentiam. — Maya pensa em voltar a trabalhar em algum momento? Ela
comentou alguma coisa assim faz um tempinho.
— Ah, acho que não. Não dá pra fazer isso agora. Nós temos ajuda, mas
não vou deixar meus filhos serem criados por estranhos.
Jamie colocou a foto de volta na prateleira, ao lado de uma antiga da
esposa, no auge da “trofeuzice” dela, em uma praia em algum lugar
impressionante. E, embora Jill tivesse visto a foto um milhão de vezes e
observado o short curto, a camisa transparente e a fileira de pulseiras
refletindo o sol, embora estivesse bem ciente de que, em termos de desejo
masculino, aquela mulher era basicamente o padrão, a palavra que surgiu,
indesejada, na sua cabeça enquanto voltava para seu escritório era “comível”.
“Você está muito comível hoje.” Não foi isso que Nicole alegou que Jaime
havia dito? Expulsando a lembrança com um balançar de cabeça, ela pegou o
telefone para retornar a primeira ligação aos clientes da lista que sua nova
assistente deixara na mesa, decepcionada, mas não surpresa, por perceber que
Kellie com “ie” tinha a caligrafia de uma garotinha de primário.
— Edward, é a Jill. Só queria saber se você chegou a pensar sobre a
propriedade da Portland Road.
Edward Dinnigan gostava de falar. Depois de colocá-lo no viva voz, Jill
pegou o celular para ver se Stan tinha mandado alguma mensagem, e depois
começou a checar os e-mails. Quando só faltava responder os três últimos,
Edward ainda não parecia estar nem um pouco próximo do fim da descrição
da viagem de iate que havia feito para Èze.
— Porcaria — ela reclamou ao clicar rápido demais em um e-mail com
cara de spam.
— Perdão?
— Não foi nada. Você estava dizendo que ficou feliz de ter os
estabilizadores.
Raxugdy@sharklaser.com; assunto: COM AMIGOS ASSIM. Isso não era nada
bom. Precisaria pedir para Tara, da TI, verificar se tinha baixado algum vírus.
Mas a mensagem não pedia que ela clicasse em nenhum link… nem que
fizesse nada. Não, parecia ser só o encaminhamento de uma troca de
mensagens entre Jamie e Paul, em janeiro. O assunto dizia CLARENDON CENTRE,
uma propriedade comercial de 14 mil metros quadrados vendida com
relutância no mês seguinte por muito menos do que o valor pedido, e a
conversa era sobre como a BWL estava tendo dificuldade para vender o lugar.
Foi só quando chegou ao terceiro e-mail, de Jamie, que Jill entendeu por que
tinham encaminhado aquilo para ela.
Pensando aqui, não podemos cuidar disso nós mesmos? VSQ está bem lelé
ultimamente. Sessentões senis além de tudo? Pode ser… De qualquer forma,
não sei se esse é o tipo de imagem que queremos passar agora. Sem contar
que ela não deveria estar em casa, cuidando do Stan?
— Edward?
— Desculpe, estou falando sem parar. Sobre a Portland Road…
— Perdão. — Jill estava sentindo uma onda de calor quase
cinematográfica subindo ao rosto. Só que não havia nada de cômico nisso ou
na sensação de que as proporções da sala tinham se alterado. — Tem alguém
na outra linha que está insistindo muito. — A voz dela parecia de outra
pessoa. — Posso te ligar depois?
Se não fosse pela referência à idade, ela pensou enquanto relia a troca de
e-mails, devagar dessa vez, percebendo e agradecendo a recusa de Paul em
responder as piores partes do e-mail de Jamie — Ela está passando por um
momento difícil, mas tenho a sensação de que o trabalho ajuda, não
atrapalha —, Jill poderia ter se convencido de que a mensagem não era sobre
ela. Como estava, porém, não havia dúvidas de que ela era “Você Sabe
Quem”, e de que, se Jamie realmente havia escrito aquelas palavras, ele não
era só o assediador e oportunista que ela descobrira naquela noite no pub,
mas algo muito pior.
CAPÍTULO 12
NICOLE
ALEX
E
la estava meia hora adiantada. Apesar da interminável crise de Katie
nos confins da estação Hammersmith, do desarrumar e rearrumar da
bolsa de maternidade no banco da plataforma e de uma longa busca
por uma lixeira na qual não queria deixar explosivos, apenas uma fralda
fedorenta, Alex ainda conseguiu chegar na Bumps & Babies com meia hora
de antecedência.
Quando Alex empurrou a porta, Katie finalmente tinha parado de chorar e
havia caído no sono no canguru, a barriga cheia de fórmula. Alex afundou em
uma cadeira na recepção espaçosa, grata demais pelo pequeno momento de
calma para se perguntar o que estava fazendo ali.
Ladeado por uma butique de artigos para o lar e um café “artesanal” na
Chiswick High Road, o lugar era espaçoso, bem-iluminado e estilizado até
demais. A recepção era decorada para parecer uma cozinha provençal, cheia
de azulejos rachados, canos decorativos em cinza-chumbo e móveis rústicos
de fazenda. Ao lado da fileira de potes esmaltados, propositadamente
envelhecidos cujas etiquetas diziam “Café”, “Thé” e “Sucre”, uma placa
avisava: “Mamães e papais, sirvam-se à vontade.” Na mesa de pinho maciço
ao centro do cômodo havia uma bandeja de barrinhas de cereal caseiras que
Alex estava morrendo de vontade de pegar, mas não ousava.
Por uma porta aberta mais adiante no corredor principal ela vislumbrava
um grupinho de grávidas guardando os tapetes de yoga, o sotaque estridente
de Chiswick audível de onde estava.
— Dá para imaginar fazer um lance num leilão que você não tem dinheiro
para pagar?
— Jules deve ter ficado para morrer.
— Eu ficaria.
Quando passaram por Alex, lhe lançaram olhares de avaliação e os
sorrisos vieram depois. Ela não conseguiu evitar e pensou que, mesmo
prestes a parir, aquelas mulheres pareciam mais elegantes e arrumadas do que
ela.
Nenhum funcionário tinha aparecido ainda, e a ideia de que poderia
simplesmente sair daquele lugar ao qual não pertencia fez um raio de
adrenalina atravessar suas veias. Com certeza haveria algum jeito de
recuperar o depósito da matrícula, feita por impulso naquela noite em que se
inscrevera como “Lexie” — apelido que insistiam em chamá-la nas aulas de
computação na Norwich, para distingui-la da outra Alex, mais bonita. Só que
ficar de pé às pressas acordou Katie, e ao abrir a porta, desesperada para fugir
antes que alguém chegasse, lá estava uma mulher de cabelo louro-mel, com
um bebê quase exatamente da mesma idade de Katie, embrulhada em um
sling carmim: Maya.
— Opa! Perdão, pode passar.
Além de uma uniformidade nas vogais e um leve enrolar do R, ninguém
imaginaria que inglês não era a língua materna de Maya. Isso Alex já tinha
percebido nas poucas e curtas conversas pelo telefone com ela. Mas não
podia imaginar sem vê-la cara a cara como seus olhos verdes eram
compreensivos — pareciam mergulhar em você e realmente te ver. E apesar
de ter afastado mais cedo as preocupações de última hora de que aquela
mulher desconhecida de alguma forma saberia quem ela era, naquele
momento Alex sentiu um horror renovado de que Maya franziria a testa e
perguntaria: “O que você está fazendo aqui?”
— Caramba, alguém não está nada contente.
— Oi?
— Sua bubu.
“Bubu”, “embrulhinho”: Alex não sabia qual odiava mais.
Enquanto as duas mulheres faziam uma dancinha desconfortável para ver
quem passaria pela porta, os choramingos de Katie se transformaram em um
colapso completo.
— Ela está com um pouco de cólica — murmurou Alex, tentando enfiar a
chupeta na boca da filha. — Pelo menos é o que eu acho que é.
Com um resmungo irritado, Katie jogou a chupeta longe.
A essa altura, Alex só queria dar o fora dali. Humilhada mais uma vez
pelas disparidades entre ela e aquela loira de rosto gentil que conseguia usar
uma legging com recortes transparentes quatro meses depois de parir, ela
tentou pegar a chupeta no chão, sem sucesso. Isso não ia dar certo, não com
Katie presa ao seu peito.
— Pode voltar. — Maya riu. — Eu pego. Não está com pressa, né?
— Eu…
Desistindo, Alex voltou para a recepção e se sentou de novo.
Separada de Maya momentaneamente por um bando de mães, Alex tentou
criar alguma desculpa que a tiraria dali rápido. Mas quando todas as mulheres
tinham passado, Maya já recuperara a chupeta de Katie e deixara Elsa no
tapetinho de atividades no canto, e agora vinha na direção de Alex com os
braços estendidos.
— Quer que eu tente uma coisa? — perguntou, elevando a voz acima dos
gritos de Katie. — A minha mais velha tinha cólicas horríveis, e tem uma
coisa que os médicos dinamarqueses sempre recomendam. Ah… — Ela
balançou a cabeça, rindo, e não havia nada falso na sua confusão. — Eu sou
da Dinamarca. Meu marido sempre diz que começo as conversas pela
metade. Voltando: meu nome é Maya.
— Sou… — Os ombros de Alex se tensionaram com o som angustiado
dos gritos de Katie. — Lexie. Desculpa pela confusão.
— A regra número um da maternidade: nunca se desculpe por coisas que
estão além do seu controle. É a sua primeira?
Alex assentiu.
— Passa pra cá.
Alex obedeceu. Porque não havia mais nada a fazer. Porque sempre se
intimidava por mulheres mandonas e porque tinha visto uma morena
musculosa perto das barrinhas se encolhendo por causa do barulho.
— Vamos melhorar essa barriguinha? Vamos?
Ver a esposa de Jamie segurar sua filha deveria ter incomodado Alex mais
do que incomodou.
Mas os movimentos de Maya foram gentis e precisos quando ela levou
Katie até um banco almofadado no canto, deitou-a de costas e pedalou suas
perninhas para a frente e para trás até que parasse de chorar.
— Isso ajuda a diminuir a pressão no estômago — explicou, passando a
mão na barriga de Katie. — Às vezes eu queria que fizessem em mim
também.
Ela se virou para olhar para Alex, que sentiu uma risada borbulhar
garganta acima.
Mas agora Maya a observava com uma expressão questionadora.
— Lexie? É você?
E Alex se virou e percebeu que uma ruiva de cabelo curto com uma lista
impressa olhava ao redor.
— Lexie? Tem alguém chamada Lexie aqui?
A esposa de Jamie tinha parado de fazer carinho em Katie e estava de pé
encarando-a.
— Te pegaram.
Alex sentiu um nó na garganta.
— Eu… Quê?
— Você ia fugir, né? Eu quase fiz a mesmíssima coisa na primeira vez em
que vim. Não sou muito de “mamãe e bebê” também. Mas pode acreditar, é
bem divertido, na verdade.
— Imagino que…
— Lexie está aqui — disse Maya em voz alta.
Não havia como fugir agora.
— Certo, então está todo mundo aqui. Yoga para Bebês é ao meio-dia,
então vamos para o Estúdio Um para balançar essas fraldas!
A aula foi exatamente tão vergonhosa quanto Alex temia, mas, mesmo
assim, ela se surpreendeu ao perceber que se divertia, chegando até a engolir
uma crise de riso pela careta que Maya fez quando a instrutora falou de
“abordagem de criação pele e alma”.
— Para que lado você está indo? — Maya perguntou enquanto todo
mundo reunia suas coisas, pegando-a de surpresa.
— Para casa.
— E isso fica?
— Fica em… Stamford Brook.
Não havia motivo para uma pessoa que morava em Acton fizesse um curso
na Bumps & Babies. E Alex conhecia bem Stamford Brook, depois de passar
um verão cuidando da casa de uma amiga perto da Shepherd’s Bush Road.
— Eu adoro aquela área! — Maya não parecia estar com pressa de ir a
lugar nenhum, o que estava deixando Alex nervosa de novo. — A gente
procurou lugar por lá, mas eu queria muito um jardim espaçoso. Aí acabamos
em Park, Bedford Park, então nem posso reclamar.
Depois de colocar a ainda serena Elsa no sling, Maya pegou duas garrafas
gratuitas de algo que se declarava ser “água alcalina” na saída, passou uma
para Alex e inconscientemente seguiu no mesmo passo que ela.
— A professora é um pouco exagerada, mas já conheci algumas mulheres
bem legais aqui na B&B ao longo dos anos.
— Anos?
A palavra saiu desdenhosa, o questionamento implícito de “é assim
mesmo que você passa o seu tempo?”, dolorosamente óbvio, e uma pontada
de mágoa perpassou no rosto de Maya.
— Bom, quando se tem dois filhos, meio que junta tudo. E elas só têm
vinte meses de diferença, então não tive muito tempo para me recuperar.
Alex imaginou a casa clássica e espaçosa que explorara minuciosamente
pela internet, com o quintal retangular bem-arrumado nos fundos. Imaginou
toda a ajuda que Maya tinha ao seu dispor: a sogra de quem Jamie nunca
parava de reclamar, as amigas sempre presentes, as babás. De quanto tempo
ela precisaria para se recuperar?
— Quer dizer, eu tenho sorte — admitiu Maya, como se lesse a mente de
Alex. — Temos uma babá incrível. Mas meu marido trabalha demais.
— No quê?
— No mercado imobiliário. Ele é sócio na BWL e tem que viajar bastante,
então o coitado está sempre se sentindo culpado por não passar muito tempo
com as meninas…
Todas aquelas bebedeiras em hotéis de luxo pela Europa com o coleguinha
Hayden e Jamie ainda tinha tempo para se sentir culpado?
— … e eu ainda arranco a cabeça dele se estiver cansado demais para
fazer tudo que planejei para nós e para as crianças.
Maya balançou a cabeça com… não, não podia ser. Mas era: aquela
mulher maravilhosa sentia mesmo vergonha do tipo de esposa que era para…
Jamie! O mesmo Jamie que nunca perdia uma oportunidade de dizer para
quem quisesse ouvir o pai dedicado e presente que era.
— Bom, é compreensível que essas coisas não sejam tão importantes para
ele.
— Talvez devessem ser.
Percorriam as calçadas movimentadas de Chiswick na hora do almoço e
Alex tentou manter a voz calma.
Mas Maya a olhou com a testa franzida.
— Você tem um marido que é um superpai, né?
— Pois é.
— Sortuda. Eu sempre me sinto mal por dar mais trabalho a Jamie. Quer
dizer, quando preciso de uma mão para alguma coisa, peço para que ele
ajude. Coisas bobas, tipo a entrevista da creche de Christel essa semana…
— Entrevista da creche? — Alex se arrependeu da pergunta no momento
em que saiu da sua boca; é claro que mulheres como Maya mandariam os
filhos para as escolas mais caras que o oeste de Londres tinha a oferecer.
— Bom, você sabe, a Greenleaf… não é uma creche qualquer.
— Entendi.
Até Alex tinha ouvido falar da Greenleaf, com suas mães supermodelos,
seus pais investidores e sua longa lista de espera.
— E eles vão entrevistar Christel?
Maya riu.
— Você é tão engraçada. Dá para imaginar, uma entrevista com uma
menininha de dois anos? Na verdade, ela está bem feliz na creche atual, mas é
claro que a Greenleaf é tipo o Santo Graal.
— É claro.
— Bom, essa situação toda está sendo muito estressante, você precisa
fazer tanta coisa, bajular tanta gente. Eles têm pouquíssimas vagas! Mas eu
finalmente consegui essa entrevista, então estou contando que Jamie vai usar
o charme dele como sempre e conquistá-los.
Sementinhas estavam brotando na mente de Alex. Era esse tipo de
informação que ela viera buscar.
Enquanto Alex tomava um gole de água, Maya olhou para a mão dela.
— Deixo minha aliança e meu anel de noivado em casa quando vou fazer
exercício — ela se antecipou.
— Eu deveria fazer isso também. Mas é bom se lembrar onde a guardou.
Meu marido passa o tempo todo mexendo na aliança e a deixa em lugares
aleatórios pela casa. É minha birrinha, como vocês dizem. O seu marido… no
que ele trabalha?
Alex se desviou de um carrinho de gêmeos que vinha bem na sua direção.
— Ele trabalha no centro.
Tinha quase certeza de que ninguém fazia mais perguntas além disso,
porque pouca gente entendia ou se importava com isso.
— E você, Lexie?
Essa não era tão fácil. Mas elas estavam perto da rua Turnham Green
Terrace a essa altura, onde Alex torcia para que Maya fosse para casa, e seus
olhos se detiveram em uma mulher ao celular dando uma risada afetada
próxima a uma loja de maquiagens.
— Marketing… de beleza. — Assim que disse isso, Alex percebeu que
tinha sido burrice. Gente que trabalhava na indústria de beleza não se parecia
com ela. — Mas trabalho na parte de tecnologia. — explicou, gesticulando
para si mesma. — Como você já deve ter imaginado.
As duas pararam de caminhar quando chegaram ao fim da rua, e Alex
sentia emoções conflitantes: alívio porque as perguntas, cada vez mais
difíceis de responder, iam cessar e irritação por perceber que estava se
divertindo na companhia de Maya.
— Por que você faz isso? — Impassível à multidão saindo para almoçar,
Maya estava parada na esquina, olhando para Alex com os olhos estreitados.
— Se colocando para baixo o tempo todo. Você fez isso a manhã inteira.
— Eu só… — Alex desistiu de tentar encontrar uma desculpa irreverente.
— Não sei.
— Desculpa. Nós dinamarqueses… somos muito diretos.
— Não. — Mais uma vez, Alex sentiu que Maya tinha uma habilidade
curiosa de ver através dela, perceber os equívocos e a imprudência. — Ser
direto é… bom.
Elas estavam no caminho de todo mundo, talvez uma visão excêntrica,
uma de frente para a outra com bebês presos ao peito, mas Maya não se
mexeu.
— Eu era uma designer de interiores bem-sucedida — disse ela. — Sabe,
antes.
Aquela informação — com todas as vulnerabilidades que continha —
ficou suspensa no ar por um momento.
— Eu consigo imaginar isso.
Maya piscou duas vezes. Sob o sol, seus olhos eram de um verde-cáqui
quase sintético de tão intenso. Ela não era só bonita como uma modelo,
percebeu Alex. Havia mais ali. Isso também a irritou. Jamie não merecia nada
raro ou diferente.
— Eu estava planejando voltar a trabalhar antes dessa pequena aqui
nascer. Mas, depois que você já passou três, quatro anos fora, precisa se
perguntar o que realmente tem a oferecer para as pessoas.
— Aposto que você tem muito a oferecer.
Parecia fazer muito tempo desde que Alex tinha estado com alguém que
queria algo mais. Só que não era um homem esperando um beijo no fim da
noite, e, ela percebeu, logo antes de Maya falar, o que ela queria.
— Estou morrendo de fome. Você não quer almoçar… lá em casa?
— Ah. — Isso foi tão inesperado que Alex não conseguiu pensar em uma
desculpa rápido. — Que ideia ótima. Mas na verdade tenho um compromisso,
e Katie tem que tirar a soneca…
Sempre dê apenas uma desculpa. Não era isso que se dizia? Duas
desculpas e parece que você está mentindo.
— É claro.
Houve aquele mesmo lampejo de mágoa de novo, logo encoberto como da
primeira vez. O que deixou Alex perplexa. Maya não podia estar solitária,
certo? Talvez decepcionada com o merda com que se casou. Mas solitária?
— Desculpa. Fica para a próxima!
Alex já tinha começado a se afastar, mas o que realmente queria era fugir:
para longe de Maya e sua filha assustadoramente impassível, para longe da
riqueza sufocante daqueles cafés e delicatéssens que vendiam açafrão em pó
e prêmios de consolação pelos maridos ausentes e traidores. Para longe de
suas próprias mentiras sem sentido.
Maya, porém, não desistia tão fácil.
— Espera. Lexie. — E foi o que ela fez, ao ouvir Maya implorando sem
fôlego. — Venha lá para casa almoçar e tomar uma taça de rosé no jardim
comigo. Hoje é a folga da babá, e a verdade é que, por mais que eu ame essa
garotinha, vou enlouquecer se não tiver um adulto com quem conversar.
E, quando ela se calou, Alex sorriu. Era arriscado e errado. Era uma
loucura. No entanto, ela se ouviu dizendo:
— Tudo bem. Adoraria ver onde você mora.
CAPÍTULO 14
JILL
– D álado
para vocês falarem baixo? — Jill rosnou para o grupinho reunido do
de fora do seu escritório. — Estou em uma ligação para Doha e
não estou ouvindo merda nenhuma.
— Desculpa.
Paul ainda teve a decência de pedir desculpas, mas Jamie só a olhou com
irritação.
— Ou gritem o quanto quiserem — resmungou ela ao fechar a porta —, só
façam isso no escritório de vocês.
Era óbvio que algo tinha dado muito errado, e quando Jill terminou a
ligação, arriscando a única frase em árabe que sabia como um floreio final
meio sem jeito, ela se deu conta sobre o que deveria ser: Minerva.
Eles passaram?, perguntou por e-mail para Jamie. E a resposta dele veio
segundos depois: Sim.
Jill encarou a mensagem monossilábica e sem remorso, se perguntando
quando e por que o homem que considerara por anos um colega leal e um
amigo não só havia perdido todo o respeito por ela como também tinha
decidido que ela era o inimigo.
Já fazia uma semana desde que Jill recebera aquele e-mail anônimo, e
durante esse tempo ela tinha checado e rechecado cada palavra e frase,
chegando até a se levantar no meio da noite para bater datas e horários da
troca de mensagens com as reuniões no calendário da intranet da BWL. Nem
Jamie nem Paul tiveram reuniões nos horários exatos em que as mensagens
foram enviadas. Outra busca rápida pela sua caixa de entrada também revelou
que Jamie nunca tinha usado o termo “VSQ” em conversas com ela.
Havia uma última opção: Paul. Mas, ao olhar para o escritório dele, do
outro lado do andar, onde o sócio examinava a planta de uma construção, Jill
se sentiu reticente. Só de mostrar aquela troca de mensagens já a faria parecer
fraca aos olhos dele — como se Jill temesse em segredo que fosse mesmo
uma “sessentona senil”. Poderia até plantar na cabeça de Paul a semente da
ideia de que sua hora já havia expirado. Os dois homens eram amigos, além
de tudo, e ficaram ainda mais próximos depois de o casamento de Paul
acabar. Desde então ele preferia discutir os detalhes tortuosos do divórcio
com Jamie, não com ela, algo que a deixou feliz até aquele momento. Se ele
reconhecesse as palavras maldosas de Jamie enviadas a ele meses atrás, será
que sequer admitiria? Ou permaneceria leal ao colega?
Depois de ir e voltar incontáveis vezes nos últimos dias entre a convicção
absoluta de que o e-mail era real e a certeza de que era falso, ou falsificado,
Jill decidiu acabar com aquela loucura naquele momento e chamou Tara, da
TI, para passar em seu escritório.
— É uma questão um pouco sensível, então tem que ficar apenas entre nós
— começou, hesitante, antes de falar de uma vez. Aquela questão já ocupara
demais de seu tempo. — Melhor você vir aqui e dar uma lida.
Quando a jovem se inclinou para ler a troca de e-mails no monitor, Jill
ficou prestando atenção nas suas reações. Seus lábios se torceram de leve em
uma expressão envergonhada ao ler as mensagens, e então Tara se endireitou
e se virou para a chefe:
— Você quer saber quem te mandou isso? Porque não vai ser fácil.
Jill pensou nos olhos febris de Alex naquela noite no pub — “Só estou
falando de dar um empurrãozinho nele” — e no leve sorriso de Nicole ao
murmurar as palavras “poder furtivo”. Já que uma ou ambas estava por trás
da humilhação da Lista D de Jamie, não seria possível que o e-mail fosse uma
ação parecida? Mas se a mensagem fora escrita e enviada para lembrá-la do
pacto que fizeram no pub e que ela tinha renegado, estavam fazendo tudo
errado. Muito havia sido dito e bebido naquela noite, e embora Jill ainda
estivesse em choque por suas descobertas sobre Jamie e ciente de que não
poderia ignorar seu comportamento, tinha que haver uma forma melhor de
lidar com ele do que com aquele plano pueril que elas criaram.
— Eu só quero saber, Tara, se é legítimo: se as mensagens foram escritas
como estão aqui, ou se foram, sabe, editadas.
— Isso eu talvez consiga fazer. Pode me dar algumas horas?
O telefone tocou, e por um momento Jill torceu para que fosse Jamie
ligando para se desculpar e assegurá-la de que o que ela entendera sobre isso
e o resto estava errado. Mas o número na tela, ela percebeu, era o seu próprio.
— Stan. Está tudo bem?
— Sim e não, meu amor. Mas não quero que você se preocupe. Passei a
manhã sentindo um pouco de dor e tontura, e o dr. Jacks acha que é melhor
eu ir para o hospital.
— A manhã toda? Por que você não falou nada?
— Estou falando agora, amor.
Stan sempre fora imperturbável e, por uma ironia, o câncer parecia só ter
aumentado essa característica, imbuindo-o de um tipo de tranquilidade
fatalista que, longe de acalmar Jill, no fundo a enlouquecia.
— Tá. Chego aí em quarenta minutos.
— Não, não, por favor, não precisa vir. Eu prometo que vou ligar assim
que acabar. Inclusive no site do Prostate Cancer UK eles dizem que isso pode
acontecer.
— A gente não tinha falado que não ia procurar essas coisas no Google?
Do outro lado do escritório, Jill viu Jamie saindo do elevador com um
daqueles cafés gelados de que gostava. Por todos esses anos ela considerou a
predileção dele por doces como uma curiosidade simpática. Agora que ele
deveria ficar de cabeça baixa, se esforçando desesperadamente para resolver
a confusão que havia causado, parecia um ultraje que estivesse se deliciando
com uma guloseima espumosa como se estivesse tudo bem.
Ela observou Jamie abrir caminho pelo setor do marketing, parando na
mesa de uma linda morena de olhos amendoados, que usava um vestido de
verão cor de centáurea-azul. O sobrenome dela era italiano, Jill lembrou, algo
sexy e exótico, e tinha aquele tipo de lábio superior que parecia deixar a boca
o tempo todo entreaberta sensualmente. Mas, em vez de parecer satisfeita
com a atenção de Jamie, Jill percebeu que ela aparentava desconforto.
— Eu prefiro ir para o hospital com você.
— Eu sei que sim. Mas estou dizendo que não quero que você vá, e o táxi
já chegou. Te ligo do hospital.
— Não esquece. Não esquece de ligar no segundo em que…
Mas Stan já tinha desligado.
Jamie ainda conversava com a morena, se inclinando de vez em quando
para pegar algo de um pacote na mesa dela, o qual jogava para cima e pegava
com a boca como uma foca. Sem tirar os olhos dele, Jill encheu um copo de
Evian da garrafa que sempre ficava na sua mesa e virou a água de uma vez
só.
Observar Jamie naquele momento era como olhar a foto de alguém em um
daqueles aplicativos de “distorção facial” que sua sobrinha adolescente a fez
experimentar uma vez com Stan. Lá estava ele: familiar e ao mesmo tempo
assustadoramente desvirtuado. E estava mesmo assediando aquela menina,
como fizera com Nicole, bem na frente de todo mundo? Será que ela
realmente tinha sido tão cega esse tempo todo?
Alimentada pela força da raiva, Jill empurrou a porta do escritório de
supetão, seguindo a passos largos pela mesa de uma assustada Kellie —
“Você tem uma ligação do cara da avaliação em dois minutos!” — e pegou
uma diagonal direta até Jamie.
A garota a viu antes dele, e a imagem indesejada de si mesma como um
tipo de matrona escolar determinada a defender suas alunas não a ajudou a se
acalmar em nada.
— Jamie?
Ele se virou surpreso, mas também, ligeiramente desafiador, ela pensou.
— Jill.
— Você tem um segundo?
Ela já estivera em algumas situações profissionais difíceis ao longo dos
anos, e até então sempre teve facilidade para se manter calma. O fato de que
hoje em dia era considerado aceitável que mulheres se comportassem de
maneira emotiva no ambiente de trabalho, como se o gênero por si só
permitisse isso, deixava Jill perplexa. Ela podia contar nos dedos quantas
vezes tinha erguido a voz no escritório, e certamente nunca havia se
permitido demonstrar nenhum outro sinal físico de descontrole.
Apenas algumas semanas antes ela enfiara sob o nariz de Stan um artigo
da FT sobre como chorar no trabalho era uma “reação humana aceitável, que
em geral acometia profissionais de alto desempenho”, e os dois riram da ideia
de Jill chorando abertamente numa sala de reuniões. “Você nunca foi de
chorar nem em casa”, disse ele. E embora fosse verdade que ela não havia
derramado lágrimas quando ele recebeu o diagnóstico, Jill se sentiu contente
por Stan não ter visto como ela ficou no dia que se seguiu a todos os exames.
Ele estava deitado na cama do hospital, o rosto pálido virado para a janela
enquanto o oncologista falava sobre a “equipe multidisciplinar” que faria
parte da vida dele a partir dali, e os efeitos colaterais imediatos que a
medicação e a radioterapia causariam: uma piora inicial nos sintomas, dores
nos ossos e na coluna, sangue na urina. Ela assentiu e gracejou até conseguir
dar um “pulinho no banheiro”, onde apoiou a testa nos azulejos e soltou um
soluço tão violento que a fez se tremer por inteiro.
— Tenho vários — respondeu Jamie com um sorriso tenso, e Jill ficou
satisfeita por isso, pelo menos. Se ele dissesse que não podia falar agora, na
frente da garota, Jill teria que levar isso como um desafio.
— Parece que as suas amêndoas com mel foram salvas pelo gongo. — Ele
deu um sorrisinho para a garota. — Mas acho que vou roubar umazinha só
para a viagem? — Jogando a amêndoa no ar, Jamie esticou o pescoço e a
pegou com a boca. E então fez uma reverência. — Jill, você já conheceu a
Sophia? Ela veio do escritório de Manchester em março.
Mas aquilo tudo era algum tipo de demonstração de poder com o qual Jill
sinceramente não estava com paciência de lidar. Assentindo meio impaciente
para a moça, ela fez um sinal para o escritório.
— Vamos?
Nada mais foi dito até chegarem à sala de reuniões, onde Jamie segurou a
porta para ela, em um excesso de cavalheirismo que antes Jill achava
charmoso, mas que agora suspeitava ser falsidade. Tudo aquilo fazia parte
dos fingimentos de Jamie.
— Água — arfou ele, deixando na mesa o que restava do frappé e se
servindo de um copo da Evian dela. — Esse troço me deixa morrendo de
sede.
Jill resolveu continuar de pé enquanto ele bebia. Ao terminar, se virou para
ela com sorriso confuso e perguntou:
— Qual é o seu problema, exatamente, Jill?
— Meu problema? — questionou ela, tentando disfarçar como estava
chocada com o tom de voz dele.
— É. — Ele se sentou com as pernas afastadas.
— Eu ia te perguntar a mesma coisa. Acabamos de perder um cliente
importantíssimo e recebo de você apenas um e-mail com uma palavra só.
— Não perdemos ninguém, Jill. Eles passaram uma única oferta.
— Certo. E vamos esperar para ver se eles voltam para a próxima.
— Eu posso te prometer que vão voltar.
Reclinado na cadeira, Jamie colocou as mãos na nuca, expandindo o peito.
Jill não conseguiu deixar essa atitude presunçosa para lá.
— Como? — Ela deu a volta na mesa com passos largos para encará-lo,
mas continuou de pé. — Sempre admirei sua confiança, Jamie, mas chega um
ponto em que vira simplesmente imprudência. Eu te falei que essa Lista D era
uma má ideia, e você não me ouviu. Então eu preciso saber melhor o que está
acontecendo aqui. — O som da sua mão espalmada na mesa a alarmou: ela
não era assim, não se comportava desse jeito. — Quero dizer, você nem
pensou em ir me contar que os O’Ceallaigh abriram mão da oferta mais cedo.
— Isso aconteceu só umas horas atrás.
— Eles vieram aqui na empresa?
— Não. — Uma sombra cobriu o rosto dele. — Não, teve um mal-
entendido e… Enfim, dessa vez foi culpa deles.
Foi só então que Jill enfim se sentou.
— O que foi culpa deles?
— Eles acharam que a reunião seria lá, mas estava marcado para ser
aqui…
— Espera aí. Você fez merda de novo?
— Não, Jill. Eles se confundiram. Estava escrito na agenda da intranet que
a reunião seria aqui na BWL. — Ele balançou a cabeça. — Mas não importa. A
gente fez a reunião por vídeo.
— Eu acho difícil de acreditar que isso não importe. Seja como for, eu,
assim como Paul, gostaria de saber dessas coisas assim que elas acontecem.
— Posso terminar?
— Por favor.
— Confia em mim, ninguém está mais chateado com essa situação do
Minerva do que eu. Mas a única coisa que eu posso fazer agora é tentar
encontrar algum outro comprador para…
— Exatamente. — Jill não conseguiu se segurar. — Então se concentre
nisso, não numa garota qualquer do marketing.
— Como é?
— Você sabe do que eu estou falando.
— Hum… — Ele fez um gesto teatral, levando a mão ao queixo como
quem não entendia. — Não sei, não. Sério, você está ouvindo o que está
dizendo? O nome dela é Sophia. E eu achei que você fazia muita questão de
que as pessoas novas fossem bem recebidas.
— Não estou nem aí para o nome dela.
O silêncio que se seguiu poderia ter se transformado em algo mais hostil
se uma batidinha leve no vidro atrás dela não tivesse interrompido a
conversa.
— Desculpa, Jill, mas é o seu marido de novo — a assistente articulou
com a boca do outro lado da parede de vidro.
É claro que ela havia deixado o telefone no mudo.
— Obrigada, Kellie.
Ela ficou de pé.
De repente, porém, Jamie estava ao seu lado, os olhos castanhos brilhantes
cheios de compaixão.
— O Stan está bem?
Ela assentiu, mas ele percebeu sua hesitação.
— Vai ficar com o seu marido.
Então Jamie fez algo que só tinha feito poucas vezes ao longo dos anos: a
abraçou. E, em vez de se afastar, o que poderia ter acontecido meia hora
antes, ela sentiu um pouco de sua raiva se esvair e se pegou abraçando-o de
volta. Aqueles eram tempos difíceis para os dois, tão difíceis que ela estava
questionando tudo: até ele.
A questão do Minerva tinha sido uma armação contra ele, isso era óbvio. E
por que confiar em Nicole ou Alex no lugar de uma pessoa que conhecia
muito melhor do que qualquer uma das duas, e que dirá em um e-mail
claramente enviado por alguém tão vingativo? O fato de ela ter pedido que
Tara investigasse isso agora a enchia de vergonha. Jill diria para ela esquecer
aquilo e depois ia falar com Stan.
— Eu só preciso que você confie que eu consigo lidar com essas coisas —
disse Jamie ao soltá-la. — Isso é o mais importante pra mim agora, com tudo
que você e Stan estão passando.
Jill assentiu de novo, mais decidida, e quando foi desligar o computador
viu com alívio que Tara já tinha respondido. Segundo a mensagem, ela tinha
“99% de certeza de que os e-mails foram escritos pelo remetente naquelas
datas e horas”. Ela também lamentava “se não era isso que você queria
ouvir”.
CAPÍTULO 15
JILL
5 de agosto
– V ocêPorvaisua
conseguir fazer isso?
visão de olho de peixe, a expressão questionadora de Paul
estava distorcida, o escritório de plano aberto atrás da parede de vidro
distorcido em um pesadelo panorâmico curvo.
— Não sei.
— Fiz um rascunho. De um e-mail. Para a empresa toda. O aviso deveria
seguir algo parecido, você não acha?
Da impressora, Paul tirou uma folha de papel e lhe entregou.
No dia [Inserir data], nossa equipe sofreu uma perda terrível. Noss[o/a] [Inserir
cargo], [Inserir nome e sobrenome do funcionário], faleceu devido [Inserir causa da
morte]. El[e/a] era uma parte essencial da nossa equipe e todos sentiremos falta de
sua positividade.
NICOLE
Seis semanas antes
– E u não falei isso pra ele, Jen, eu juro. Só disse que você estava solteira.
— É que eu não sei se estou interessada em nada, sabe?
— Eu sei, e foi isso que eu falei. A gente pode só tomar um drinque.
— Verdade.
— Talvez dois, se ele for tão gato quanto parece no Insta. Me empresta o
rímel?
Sempre que possível Nicole preferia usar o banheiro feminino do terceiro
andar. O que estava agora era maior e com uma iluminação melhor, mas às
seis da tarde de sexta as pias ficavam lotadas de maquiagem, as cabines
cheias de garotas colocando roupas ainda mais justas… e isso a irritava.
Porque ela nunca tinha participado muito dessa coisa de paquera, não da
forma prolongada e gloriosamente casual que aquelas garotas faziam. Nossa,
ela já estava casada quando tinha a idade delas. E porque, ao se preparar para
jantar com o marido depois de um dia longo como aquele, não sentia a
mesma animação que elas. Na verdade se sentia cansada — e no fundo se
ressentia por não comerem um simples curry em frente à TV.
Mesmo assim, Nicole tinha trabalhado até tarde três vezes naquela
semana, e Ben, que só se interessava por aventuras quando envolviam
experimentar todos os restaurantes novos do oeste de Londres, tinha
reservado uma mesa naquele lugar de tapas que tinha sido aberto na Fulham
Road, recomendado por Jay Rayner. Ela não conseguiria desmarcar agora.
Fugindo do bolo de lenços de papel manchados de base ao lado da pia,
Nicole se inclinou para o espelho e começou a passar o batom. Em geral ela
achava tranquilizador o processo de contornar e pintar o que os homens
sempre lhe disseram ser seu melhor traço, mas naquele dia o contorno ficou
torto e sua cor de sempre pareceu empalidecê-la. Tirando uma folha da
papeleira, ela o removeu.
— Escuro demais — sugeriu a mulher atrás dela.
— Perdão?
— Você é tão linda. Mas seu batom… ele te apaga.
Nicole ficou tentada a dizer que usava aquela cor já fazia quase uma
década.
— Tenta esse.
O gloss rosa claro, levemente cintilante, era jovem demais para Nicole, e
ela sempre achou que pegar emprestado o batom de outra mulher era pouco
higiênico, mas agradeceu mesmo assim e sentiu um prazer estranho em
passá-lo nos lábios, imaginando a surpresa de Ben quando ela surgisse
parecendo alguém que não sua esposa.
— Então, continua.
As duas mulheres continuaram a fofocar.
— Ele perguntou casualmente pra Sophia se ela estava, tipo, saindo com
alguém. Depois ficou todo “Ah, espero que você esteja se sentindo bem
recebida aqui. A gente pode sair pra tomar uma depois do trabalho, pra se
conhecer melhor”.
— Mentira.
— Juro! Aí, escuta só, ele pega e diz: “É bom você saber que eu não aceito
não como resposta.”
— Para.
— Foi o que me disseram.
Um intervalo na conversa foi permeado por risadas femininas distantes e
pelo som de lábios com gloss sendo pressionados.
— Eu não me importaria em ir tomar uma com ele.
— Calma! Aí a Sophia foi beber com ele.
— Sério?
— Pois é. E no dia seguinte ela contou pra Sandra, que contou pra Emma,
que ele realmente não aceita ouvir não… tipo, de um jeito que deixou ela
superdesconfortável.
— Forçou a barra?
— Tipo, demais…
Um aviso, que Nicole não viu, a silenciou.
— Meninas, de quem vocês estão falando? — Nicole teve o cuidado de
manter os olhos no espelho.
Elas se entreolharam, só então percebendo que Nicole era uma executiva
sênior.
— Só estou curiosa! — Ela deu uma risadinha. E se fosse segredo de
Estado, vocês não deveriam estar fofocando no banheiro.
— Uma amiga nossa do marketing.
— Não, estou falando do cara do “bem recebida”.
— Ah. — Outro olhar conspiratório.
— Jamie?
As duas a encaravam agora, claramente chocadas pela própria indiscrição.
— Olha…
— Nossa, todo mundo sabe como ele é. E o que é dito no banheiro
feminino…
— Fica no banheiro feminino — completou a mais escandalosa, com uma
risadinha. — É. Foi o Jamie. Mas não conta pra ninguém? A Sophia é
superlegal e faz pouco tempo que veio pra cá. Ela não quer arrumar
problema. Eu nem sei se ela sai com caras casados.
— Entendi.
Fechando a nécessaire de maquiagem Nicole deu uma última olhada para
seu reflexo e parou ao abrir a porta antes de sair.
— Inclusive, na minha experiência, são os homens casados que tendem a
arrumar problema.
— Desculpa, desculpa!
Se Ben não chegasse sempre adiantado, ela não estaria sempre se sentindo
atrasada. Mas ele tinha conseguido uma mesa boa, com vista para a Fulham
Road, e ela sabia que o marido estava gostando de observar as garotas bonitas
de Chelsea com seus namorados de camisas Ralph Lauren entrando e saindo
dos pubs da área.
Pegando o copo quase vazio de gim e tônica de Ben, ela virou o restante
do drinque.
— Preciso de um desses urgente.
Ben fez um sinal pedindo mais dois para o garçom e depois ergueu o copo,
agora com uma mancha brilhante de gloss rosa.
— Quer me contar alguma coisa?
Ele não tinha gostado. É claro que não. Ela não conhecia ninguém mais
relutante a mudanças do que Ben, ainda mais quando se tratava dela.
— É só uma coisa que estou experimentando. Você odiou.
— O quê? Me dá uma chance de me acostumar. — Ele inclinou a cabeça
para trás, avaliando-a. — Você fica… Não sei, diferente. Dia difícil?
— Só… longo. Tive que levar alguns clientes novos ao antigo teatro hoje e
depois de lá fui para Kensington para outra reunião. Passei a manhã inteira
presa no trânsito e ninguém está querendo aquele lugar em Shepherd’s Bush
que peguei em março. — Tirando o casaco, ela suspirou profundamente. —
Talvez as pessoas só não estejam comprando nada agora. Enfim: chato,
chato, chato. E como foi o seu dia?
— Bom, a azeda daquela mãe solo que você odeia, a das sobrancelhas,
estava na saída da escola hoje.
— Ah, ela é insuportável.
— Estava bem conversadeira, para variar. Até falou de marcar um
encontro para as crianças.
— De jeito nenhum. — Nicole lançou um olhar ansioso para o bar nos
fundos do restaurante lotado.
— Calma, Nicole.
— Eles são lerdos demais.
— O lugar está lotado.
— Então deveriam contratar mais gente.
— Bom… — Ben desconversou com um tom de voz animado. — Chloe
disse que estava falando de nós na escola hoje. Mais de você, na verdade.
Parece que hoje eles precisavam descrever o trabalho dos pais.
— É mesmo?
— Pois é. Então ela disse: “A mamãe vende prédios, dos grandes.”
— Ela disse isso mesmo?
Sua bebida estava vindo e Nicole já se sentia mais leve. Se ao menos
pudesse fingir que não ouvira aquela conversa no banheiro…
— E que “o papai cuida de mim”.
Havia um misto de emoções no sorriso dele, e até no estado distraído em
que estava ela conseguia identificar a maioria delas: orgulho e
constrangimento; vergonha e rebeldia. As mesmas emoções que ele deveria
sentir todas as vezes em que selecionava a caixinha castradora de “cuidador
principal” em formulários. Por outro lado, embora não tivesse adquirido
aquele título voluntariamente, Ben parecia saber como sua contribuição à
família era importante e deveria odiar a ideia de que os outros pensassem
menos dele por fazer o trabalho mais importante de todos.
Nicole segurou a mão dele.
— Eu nunca menosprezo o que você faz. E a Chloe te ama demais. Vocês
dois são o melhor time que existe. Sendo sincera, às vezes eu até fico com
ciúmes.
— A gente sempre vai estar bem enquanto você estiver aqui com a gente.
Ele sorriu. Aquilo deveria fazer Nicole se sentir segura, amada, mas em
vez disso só trouxe a sensação conhecida de estar sendo sufocada aos poucos.
Ela observou o bronzeado no rosto do marido, obtido depois de tantas
tardes no parque, e o azul tranquilo de seus olhos, e sentiu uma pontada
igualmente familiar de não ser boa o bastante para ele.
— Eu nem imagino como as pessoas conseguem fazer isso sozinhas —
continuou Ben, sabendo que qualquer coisa muito melosa a deixava
desconfortável. — E aí, o que vamos pedir? — Ele voltou a atenção ao
cardápio. — O que você acha de alguns aperitivos? Rayner disse que o steak
tartare era “imperdível”. Ah, tem um menu degustação, mas você nunca
gosta muito.
— Contanto que tenha lula e aqueles croquetinhos, eu já fico feliz.
Enquanto Ben lia a lista de pratos para o garçom, Nicole não se sentia
nada feliz. Não conseguia tirar da cabeça a conversa que havia entreouvido.
Aí veio Ben comentar sobre a mãe solo da escola de Chloe, o que a fez se
lembrar de Alex. Nicole pensou na mulher com quem havia dividido as
longas horas da madrugada naquela noite: o esforço todo que ela fizera,
mudando o cabelo, os murmúrios sombrios sobre “as coisas que eu vi, as
coisas que sei”. Alex parecia tão grata por Nicole e Jill estarem lhe dando
atenção, tão animada para se conectar a elas. Era como se ela só quisesse
fazer parte de alguma coisa. Algo na obviedade daquela gratidão deixou
Nicole desconfortável de início. Mas lembrou-se de que, ao fim da noite, se
sentira não só unida àquela mulher intensa e sardenta a quem nunca tinha
dado atenção antes, mas até vagamente defensora dela. Se o que dizia era
verdade, Alex tinha sido usada como bode expiatório e agora estava vivendo
a maternidade solo, sem emprego à vista depois do fim da licença-
maternidade. Talvez estivesse tão envolvida com a filha que já não se
importasse mais; talvez já tivesse encontrado outro emprego. Ou talvez Alex
tivesse encontrado uma forma de seguir com seu plano sozinha.
Ben continuou citando a crítica de Rayner, e Nicole se lembrou da única
vez em que havia sido demitida, quando ainda era uma estudante tentando
ganhar um extra em uma lanchonetezinha pretensiosa em Bristol. O dono a
chamara no estoque um dia, citando sua “conduta” como o principal motivo
para a demissão, além do fato de que ela ficava “passando a mão no cabelo”
enquanto servia os clientes, e Nicole só havia assentido, pegado o dinheiro
devido e, antes de sair, olhado por cima do ombro para lançar um “Se
pronuncia ciabatta, Lee, não siabarta”. Quando o rosto gordo e comum do
dono surgiu em sua mente, Nicole se surpreendeu ao perceber que ainda o
odiava.
— É óbvio que o Oscar escolheu Westwick para a merda do comercial.
Não te falei que ele ia fazer isso?
— Eles responderam? — Nicole pegou outra pimenta Padrón. — Não me
surpreende. Claro que ele ia escolher alguém tão metido quanto ele. Azar o
dele. Se fosse eu, uma olhada no seu portfólio já bastaria para te contratar.
Ficou incrível depois que a gente repaginou.
Ben pestanejou.
— Não me diz que você não mandou o que a gente atualizou.
— Eu só achei que se ele realmente me quisesse para o trabalho…
— Ben.
Nicole se sentiu afundar, cansada de ser o motor sempre por trás do
marido oscilante.
— Deixa pra lá, tá? Só deixa pra lá.
Comeram em silêncio por alguns minutos, tirando camarões de palitinhos
de madeira e cuspindo as cascas na palma da mão discretamente, ambos
dolorosamente cientes de como deveriam parecer tensos e tristes comparados
aos casais que flertavam e se divertiam nos bares no entorno.
— Quem está com a Chlo?
— Susanna.
— Acha que as duas vão brincar de hospital de novo?
Será que era por isso que os casais arranjavam cachorros depois que os
filhos saíam de casa? Para ter algo com que preencher o silêncio?
— Provavelmente.
— Me desculpa. — Ela se inclinou para ele. — As coisas estão meio
confusas no trabalho e está todo mundo estressado.
— Como assim, confusas?
— Jill e Paul estão putos com Jamie depois daquele desastre do Minerva
que te contei. Os clientes desistiram.
— Mas isso não tem nada a ver com você, tem? Foi culpa do Jamie.
Nicole não gostava de ouvir o nome dele saindo da boca do marido, mas
não conseguira se conter e havia contado a Ben a situação.
— Foi, mas agora todo mundo está sendo pressionado para compensar.
Embora Jamie fosse a última pessoa de quem Nicole quisesse falar, ela se
pegou fazendo um relatório completo das burradas recentes dele — e de
como ele se safara com facilidade de todas.
— Posso dizer uma coisa? — Ben franziu a testa. — Parece que você está
passando tempo demais preocupada com Jamie Lawrence.
Nicole baixou a almôndega espetada no garfo de volta para o prato.
— Não estou, não.
— Está, sim.
— Porque só homens se safam dessas coisas. E porque toda vez que ele
não sofre nenhuma consequência — continuou, consciente de estar repetindo
as palavras de Alex —, sabe que pode levar as coisas ainda mais longe.
— Mas pelo que você me falou, não parece que ele está se safando dessa.
Nicole encarou o marido sem vê-lo. Ela sentira certo alívio depois daquela
conversa bêbada no bar, como se contar àquelas mulheres o que tinha
passado, ouvir as experiências delas e decidir que Jamie deveria ser punido
por suas ações tivessem sido o suficiente para acalmar sua raiva. Mas vê-lo
escapar das consequências da merda do Minerva só reacendera sua raiva. E
de novo ao ouvir a conversa no banheiro feminino. “É bom você saber que eu
não aceito não como resposta”, ele havia dito para a tal de Sophia. E Nicole
sabia bem demais que isso era verdade.
Depois de tirar os pratos, o garçom permaneceu por perto.
— Vocês gostariam de ver o cardápio de sobremesas?
Eles responderam ao mesmo tempo:
— Por que não?
— Não, obrigada.
O que Nicole queria naquele momento, o que precisava mais do que tudo,
era saber se era mesmo Alex quem estava por trás da história do Minerva. De
jeito nenhum ela esperaria que o fim de semana acabasse até segunda para
descobrir, estava fora de questão. Porque, se Alex de alguma forma tinha
colocado o plano em prática, não estava funcionando. E Nicole agora sabia
que precisava desesperadamente que funcionasse.
— Ben, eu tenho que ir.
Ela havia soltado aquelas palavras sem pensar, mas, assim que as ouviu,
sabia o que precisava fazer.
— Como assim?
Ela se concentrou de novo nele: Ben, que recortara a crítica do restaurante
meses atrás e se esforçara para colocá-los na lista de espera. Ben, que ficava
ainda mais sexy no verão, quando deixava a barba crescer — algo de que ela
se esquecia e voltava a perceber toda vez que a estação começava. Ben, que
sempre pedia comida demais e gostava de transformar os jantares deles em
maratonas de quatro horas.
— Eu esqueci de mandar um arquivo… e é urgente. Tenho que dar um
pulinho no escritório, mas vai ser coisa rápida.
— O quê? Por que você não faz isso daqui?
Ele indicou o iPhone que ficava sempre ao lado do prato de Nicole durante
as refeições — por mais que Ben odiasse.
— Não está no celular. O arquivo ficou na área de trabalho.
Sabendo que aquilo não fazia sentido e que parecia uma mentira porque
era mentira, Nicole passou um dos braços pela manga do casaco e pegou a
bolsa com a outra mão.
— Desculpa, Ben. Eu sou uma idiota. Mas o jantar foi ótimo. Rayner tinha
razão. — Isso não ia funcionar. — Você não queria sobremesa, queria?
— Talvez quisesse. — Ben a olhava de cara feia, como se ela tivesse
perdido a cabeça. — Você vai mesmo voltar pro escritório agora?
— Tenho que ir. Desculpa. Aqui. — Ela colocou o cartão de crédito em
cima da mesa.
— Ah, pelo amor de Deus. Eu posso pagar.
— Com o quê? — ela se perguntou, a impaciência deixando-a cruel. Mas
o táxi para o qual gesticulara com agitação já estava encostando, e ela puxou
o rosto de Ben, furioso, para um beijo. — Só preciso consertar uma coisinha.
Ou então vou ficar pirando o fim de semana todo. Chego em casa em uma
hora, no máximo.
Até encontrar o endereço de que precisava na intranet da BWL e chegar em
Acton já era quase dez. A rua de Alex era meio assustadora, com um
grupinho de rapazes de moletom na esquina claramente no meio de alguma
negociação, e Nicole teve que pedir para o taxista dar a ré quando eles
passaram direto pelo número da casa.
Ela hesitou por um segundo antes de tocar a campainha de cima sem
identificação. Mas estava lá e precisava de esclarecimentos. Ao ouvir uma
janela se abrir no segundo andar, Nicole deu dois passos para trás, se
forçando a sorrir quando viu o rosto cansado de Alex inclinando-se para fora.
CAPÍTULO 17
ALEX
T
ranquilizada pelo som do motorzinho da bomba de leite como uma
canção de ninar, Alex andou sem rumo pelos três cômodos do
apartamento, mordiscando um biscoito de chocolate. Quando os
dois saquinhos estivessem cheios, ela teria dez — todos datados com
canetinha hidrocor — alinhados na porta da geladeira, e pensar nisso a enchia
de satisfação.
Aquele período do dia, entre nove e dez da noite, quando Alex finalmente
caía na cama, sabendo que teria que levantar uma hora e meia depois, era o
único em que se sentia ela mesma. Às vezes era o único momento em que ela
conseguia aproveitar Katie também. Deitadinha no berço, puxando o ar em
respirações imperceptivelmente rasas, que nas primeiras semanas a deixavam
em pânico, a filha parecia em paz, livre da tirania dos desejos constantes e
insaciáveis.
Satisfeita de que o rosto de Katie estivesse livre de qualquer roupa de
cama — o Pais de primeira viagem exigira que “pelúcias, encostos ou
posicionadores devem ser retirados antes de dormir” —, Alex se sentou à
mesa e, ainda presa à bomba, deu um duplo clique no portal da BWL.
Desde aquela tarde com Maya, verificar os movimentos cotidianos de
Jamie havia se tornado um ritual noturno pelo qual ela ansiava.
Naquela noite, os cantos de sua boca se ergueram tão de leve que mal
chegou a formar um sorriso ao perceber o tom tenso dos e-mails de Jill para o
sócio cada vez mais negligente. “Realmente precisamos dos três sócios
presentes nas reuniões do financeiro, J. Essa já estava marcada há semanas.”
Todos aqueles meses trabalhando para Jamie ensinaram a Alex que ele não
respondia bem a broncas. E pela resposta dele — “Eu me atrasei vinte
minutos, Jill. Tenho quase certeza de que não perdi nada” —, ele estava bem
distante de arrependido quanto ela esperava.
Jill claramente pensou que tinha passado dos limites aquela noite no pub e
se arrependeu de ter falado de forma tão aberta. Ela precisava entender que
não estava exagerando, que sua reação havia sido cem por cento apropriada.
E naquele momento Jill devia estar fumegando. Paul, no entanto, parecia
quase inabalado pelo comportamento de Jamie. Tirando um e-mail levemente
crítico depois da questão Minerva, suas mensagens continuavam agradáveis
como sempre. Enquanto a bomba de leite zumbia, Alex checou o restante dos
e-mails do dia; ela saberia o que estava procurando quando encontrasse.
Relia um e-mail furioso de Maya, que encaminhara a mensagem da
Greenleaf lamentando não poder oferecer uma vaga a Christel — Quando os
pais deixam de comparecer à entrevista sem aviso prévio, precisamos aceitar
que a inscrição de seu(ua) filho(a) na Greenleaf não é prioridade —,
sentindo uma pontada de arrependimento por atrapalhar a vida da mulher cuja
gentileza naquela semana a desarmou, quando o interfone tocou.
Pronta para gritar para o entregador que ele tinha que tocar nos viciados-
em-delivery do apartamento 3, Alex envolveu os seios motorizados com um
cardigã, abriu a janela e olhou para baixo, encontrando uma mulher parada
em frente à porta.
— Nicole?
Com os olhos vidrados, um brilho de suor na testa, que refletia o holofote
de segurança do prédio, e algo cintilante nos lábios, sua ex-colega parecia ter
bebido.
— Desculpa, eu sei que está tarde.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta saiu mais ríspida do que
era sua intenção. — Espera aí.
Arrancando as faixas de velcro do peito e xingando quando o leite
escorreu pela barriga, Alex abotoou o casaco e correu para o térreo.
— Você quer entrar? — De novo, ela percebeu quão grossa parecia. Mas
ver aquela mulher inteligente e levemente distante que só conhecia em um
contexto profissional parada ali na sua porta a deixou confusa. Será que
Jamie tinha sido demitido? Não. Ela saberia se tivesse sido. Será que Nicole
tinha sido demitida, então? Será que ele tinha feito algo com ela? — Melhor
você entrar.
Foi só quando elas chegaram ao topo das escadas que Alex parou para
pensar em como o apartamento devia parecer para um estranho. Nos dois
primeiros meses, quando a agente comunitária de saúde vinha visitá-la com
alguma regularidade, ela havia tentado manter as coisas arrumadas, mas nas
últimas semanas o cesto de roupa suja tinha desaparecido sob a montanha de
lençóis para lavar e Alex já estava chutando pilhas de roupas usadas para os
cantos. Os restos de um queijo quente que havia preparado naquela manhã,
morrendo de fome depois de tirar o leite, ainda estavam em um prato no sofá,
ao lado de uma pilha de correspondência fechada e propagandas. Na mesinha,
entre os cabos embolados da bomba, as duas garrafas de leite do peito pela
metade.
— Só me deixa tirar isso da frente — murmurou ela, catando a engenhoca
humilhante e levando tudo para a cozinha. — Posso, hum, te oferecer um
chá?
— Por favor. — Nicole pegou o prato com os restos do sanduíche e a
seguiu. — Ou… algo mais forte?
— Não precisa sussurrar, Katie está derrubada.
— Ah.
No freezer, Alex achou uma garrafa velha de vodca — um presente do
penúltimo Natal de que ela havia se esquecido.
— Desculpa. — Por que continuava se desculpando? — Só tenho isso. E
não sei se vodca de canela vai ser bom, não.
— Qualquer coisa serve.
— Não tem gelo.
— Tudo bem.
— Vamos…?
Alex indicou a sala, e as duas se sentaram nos extremos do sofá,
parecendo desconfortáveis.
— É útil ter um traficante aqui na porta.
Se o nervosismo de Nicole era uma admissão de arrependimento por ter
ficado em silêncio, Alex ia deixá-la ansiosa por mais um tempinho.
— Né? — Ela deu uma olhada para a janela. — Ele deve se dar muito
bem. Está aqui toda noite vendendo sabe Deus o quê.
— Ritalina. — Nicole pigarreou. — É o que os jovens curtem hoje em dia,
parece. A “droga dos estudos”, eles chamam. Te ajuda a virar a noite
estudando, te mantém acordado.
— Não preciso de ajuda com isso no momento.
— Não mesmo. Claro, na minha época a gente fazia isso com
comprimidos de cafeína e um litro de Coca-Cola.
Alex assentiu e esperou.
— Olha, eu sei que isso é estranho e que a gente não se falou desde a
despedida da Joyce…
Ela teve a decência de parecer envergonhada. Porque aquela noite trouxera
um senso de proximidade. Não tinha sido imaginação de Alex. Elas fizeram
um plano, trocaram telefones… e nada, por quase duas semanas. Mas Nicole
parecia querer desesperadamente ser perdoada.
— A gente tinha bebido muito. — Alex deu de ombros. — E olha, não é
como se a gente…
— Bom, não. Mas eu deveria ter perguntado, ter visto como você estava.
Uma pausa.
— Então foi por isso que você veio? Para ver como eu estava?
— Não. — Nicole tomou um gole de vodca e estremeceu. — Esquisito.
Mas não é ruim. Não, eu vim porque as coisas estão… bem, estranhas no
trabalho desde aquela noite. Jamie… — Sua boca se crispou de leve ao falar
o nome dele. — Bom, ele estragou uma venda superimportante.
Alex franziu a testa, adorando a sensação de estar mais no controle que
Nicole.
— Que venda?
— Lembra daquela propriedade, Minerva? Perto de Gunnersbury? É uma
longa história, mas os irmãos O’Ceallaigh iam fazer uma oferta e ele estragou
a venda.
Sabendo que Nicole estava atenta às suas reações, Alex tomou um gole da
bebida mas a cuspiu no copo imediatamente.
— Isso é nojento. Tem gosto de talco. Esse cheiro… fica em tudo. Você já
deve ter esquecido. Bom, continua. O que houve com a propriedade?
— A Lista D, que discutimos naquela noite. De algum jeito ela entrou no
meio dos documentos da apresentação. — Ela parou de falar, com os olhos
ainda fixos em Alex. — E desde então outras coisas aconteceram. Coisas
pequenas. Ele está se confundindo com horários e datas. Aparecendo atrasado
em reuniões. E eu sei que Jamie pode ser arrogante e preguiçoso às vezes,
mas…
— Mas?
— Mas não acho que Jill queira afundar o barco, não importa o que tenha
sido dito naquela noite…
— O que nós dissemos naquela noite.
— Tá. De ele aprender uma lição.
— Ah, eu me lembro do que a gente disse. Foi você e Jill que parecem ter
esquecido totalmente. O que não é surpresa para ninguém, considerando que
as duas têm ótimos empregos que gostariam de manter.
Nicole balançou a cabeça.
— Eu não esqueci de nada. Não consegui — continuou, as palavras
jorrando. — Olha, eu não posso falar por Jill… inclusive, mal troquei duas
palavras com ela desde aquela noite, e você sabe como ela sempre foi
próxima do Jamie. Mas eu estava jantando com o meu marido e comecei a
contar como as coisas estão tensas no escritório, e Alex… — Nicole se
inclinou para ela, sua expressão indo de preocupada para curiosa. — O que
aconteceu com o Minerva e todo o resto… Foi você, não foi?
Alex secou uma gota de água na borda do copo, mas não respondeu.
— Nossa, Alex. Eu não queria… Não chora.
Até Nicole dizer aquilo, Alex nem tinha percebido que estava chorando.
Mas a sensação era boa. Porque ela não havia chorado desde o nascimento de
Katie, e aquelas foram lágrimas de esforço, não de tristeza ou sequer de dor,
por causa da anestesia. E quando abriu a porta do apartamento no dia
seguinte, o peso da bebê e da cadeirinha fisgando no seu útero recém-
implodido, enquanto as palavras de um artigo sensacionalista do Daily Mail
— “Carregar recém-nascidos em assentos de carro coloca novas mães em
risco de prolapso” — zumbiam em seus ouvidos, tudo o que ela queria fazer
era se enrolar na cama e chorar. Ela não tinha ninguém mais para ampará-la,
tinha? E a pessoa que ela mais queria estava a quilômetros de distância, em
Portugal, ainda pedindo permissão ao marido para visitá-la. Não houve tempo
para chorar, porém, porque os lençóis ainda estavam manchados de um rosa
marmorizado de quando sua bolsa tinha estourado, e ao puxá-los,
descobrindo que o colchão também estava encharcado, o desejo de chorar de
Alex foi substituído pela raiva. Nada disso… nada disso poderia ser desfeito.
Das profundezas da bolsa, Nicole tirou um lenço e o entregou a ela.
— Eu mexi em alguns documentos, troquei algumas datas e horários. O
Minerva… foi tão fácil. Jamie nunca repassa os arquivos das apresentações.
Eu sempre colocava tudo na mesa dele, pedindo para que ele desse uma
última olhada, mas… — Ele sempre se safava sem trabalhar, sem se
responsabilizar. — Então achei que, se talvez Jill e Paul vissem como ele é
arrogante, como faz as próprias regras quando e como quer, que aí…
— Aí o quê? — Nicole insistiu, sem parecer surpresa ou irritada. — Que
aí ele seria demitido? Nós te contamos sobre a Lista D em segredo. Não era
para você usar.
Um grito agudo como uma sirene atravessou o apartamento.
— Merda. — Alex baixou o copo, limpando o nariz na manga do casaco.
— Ela acordou.
— Xiu… — Nicole ergueu o indicador. — Espera.
As duas ficaram em silêncio por um minuto. Silêncio.
— Se você sempre sair correndo, ela nunca vai aprender a se acalmar
sozinha.
Alex abriu um meio sorriso choroso.
— Não imaginava que você seria uma mãezona tão centrada.
— Por que todo mundo diz isso? Talvez eu não seja, mas meu Deus, amo
minha filha mais do que consigo aguentar na maior parte do tempo. Só que
meu marido… — Ela deu de ombros. — Ele é mais participativo do que eu.
É melhor nisso do que eu. E tudo isso, tudo que você está passando, parece
que aconteceu faz tanto tempo. É incrível como você esquece rápido. Mas de
algumas coisas você acaba lembrando. — Com alguns drinques, Nicole já
parecia mais calorosa. — Me escuta — continuou, baixinho. — Não vou
fingir que não fiquei feliz de ver Jamie se ferrar. E depois do que ele te fez,
eu entendo por que você quer que ele saiba qual a sensação de ser culpado
por algo que não fez. Mas como você conseguiu? Você não… hackeou o
sistema, né?
Alex encarou Nicole, mas permaneceu quieta.
— Mas isso não é crime?
— Talvez — admitiu Alex. Aquilo era algo que ela deliberadamente
evitava pensar. — Ele mudou a senha da intranet, mas não foi difícil
adivinhar a nova. E eu só fiz isso porque ele mentiu. Ele mentiu sobre tudo.
Eu não fui desligada, fui demitida por “erro grave”. E como diabos vou
encontrar outro emprego agora? Como é que vou pagar…
Ela pensou no tremor na voz da mãe quando ligou mais cedo para avisar
que “talvez eu precise de um pouco mais de tempo — naquele empréstimo”.
O sussurro confirmou quão importante era que o pai dela nunca descobrisse
sobre o empréstimo, e como só a possibilidade de ele descobrir sobre aquele
acordo entre as duas poderia causar o tipo de cena que Alex forçara a própria
memória a bloquear, sabendo que nunca seria capaz de fazer isso enquanto a
mãe e o pai morassem sob o mesmo teto.
— Sinto muito. — Nicole apertou os lábios. — Mas isso quer dizer que
você acessou os e-mails dele também?
Alex decidiu ir com cuidado.
— Só uma vez.
— Recentemente?
— Dei uma olhada ontem à noite.
Algo indecifrável surgiu no rosto de Nicole, que abriu a boca como se para
fazer uma pergunta antes de voltar a fechá-la.
— Eu sei que não deveria ter entrado, e juro que não vou entrar de novo.
Só queria ver se o Minerva tinha…
— Saído de acordo com o plano? Bom, sim. Mas você não pode voltar a
fazer isso. É sério. Se não por todo o resto, porque você vai ser pega.
— Não vou. Mas é tão… difícil. — A palavra saiu devagar, propositada e
cheia de ódio. — Eu olho para ele e para a família perfeita dele e penso em
como a vida deles é fácil.
Se elas não estivessem tão próximas, talvez Alex não teria notado Nicole
se encolher.
— Você conhece a Maya?
Nicole balançou a cabeça.
— Só a vi uma vez, de longe, no aniversário da empresa, sabe? E ela
parecia… não sei. A gente não conversou. E você?
— Não. — Um especialista em linguagem corporal saberia que o aceno de
cabeça veio um milissegundo tarde demais. — A gente se falava pelo
telefone às vezes — continuou Alex, omitindo o fato de que haviam
conversado na tarde anterior… para marcar outra tarde preguiçosa na casa de
Maya e Jamie. — Na verdade, ela parece…
— Legal?
— É. Bem legal, mesmo.
Seria por isso que Alex tinha concordado em sair com Maya de novo?
Seria tão simples assim? Ou seria algo mais maléfico: mantenha seus
inimigos perto? Até a próxima vez, ela não teria certeza.
— Quer dizer, eu sei que eles estão longe de ser o casal perfeito. Como ele
se comportou com você… e você não deve ter sido a única.
Nicole desviou o olhar.
— Não.
— Mas eles fingem bem.
Pegando o iPhone, Alex cutucou a tela até uma imagem de Jamie e Maya
aparecer.
— Olha só para eles. Olha só a vida perfeita de catálogo escandinavo.
Queria fazer Nicole rir, ou pelo menos sorrir, tentando aliviar o peso
daquela conversa, mas ao erguer os olhos percebeu que Nicole não parecia
achar graça. Ela parecia nauseada.
— Por que é que você está vendo isso?
— É o Instagram do Jamie. E não é fechado. Olha, dá uma olhada nesse
post do fim de semana passado.
— Não. — Nicole afastou o celular. — Não quero ver isso. Essas coisas
todas, a vida dele, não é da nossa conta. E eu não tenho nada contra a Maya.
Ela não tem culpa do que o marido apronta.
— O marido apronta e muito, pode acreditar.
— Como assim?
— Que até quando está de castigo por fazer várias besteiras, e essas são só
as que a BWL descobriu, até quando deveria manter a cabeça baixa e trabalhar,
Jamie encontra tempo para ficar dando em cima das lindas funcionárias
novas.
Nicole parecia estar prendendo a respiração, e Alex percebeu a própria
insensibilidade.
— Desculpa. O que ele fez com você…
— Esquece isso. De quem você está falando?
— Tem uma garota nova no escritório, Sophia alguma coisa? Ele está
trocando e-mails com ela. Acho que até foram beber juntos, e parece que…
Mas sua convidada se levantou de repente.
— Merda, já é mais de meia-noite. Olha, desculpa por aparecer aqui tão
tarde. Eu tenho que ir, de verdade. Falei para o meu marido que ia direto para
casa. — Nicole olhava de um lado para o outro com aflição. — Cadê meu
casaco?
— Na cozinha.
Mas quando ela não se mexeu, Alex adivinhou que havia mais. Algo que
Nicole nunca havia dito em voz alta. E ela tinha quase certeza do que se
tratava.
— Não foi só assédio, foi?
Um segundo se passou. Nicole voltou a se sentar no sofá.
— Vou precisar de mais uma dose.
CAPÍTULO 18
JILL
O relatório de vendas trimestral sempre era feito para ser uma leitura
factual, mas Jill gostava — aquilo a tranquilizava —, e conforme passava
o indicador lentamente pela lista de vendas potenciais e anteriores, de vez em
quando fazendo uma anotação na margem com a caneta Cartier na qual Stan
mandou gravar a data do casamento deles para as bodas de rubi, ela se sentia
calma como não se sentia havia semanas.
Foi só quando chegou nas vendas de Jamie que Jill estreitou os olhos para
o papel. Os custos dele sempre foram elevados, os números muitas vezes não
batendo com exatidão. Mas não era a discrepância comum que chamara a sua
atenção, e sim o quanto os números do trimestre dele estavam altos.
Jill tinha imaginado que as vendas dele cairiam consideravelmente, devido
à confusão com o Minerva, mas alguma venda tinha sido fechada naquele
período, não mencionada a ela por Jamie, que aumentava os números a um
nível normal.
Por que Jamie não tinha imediatamente se gabado da venda do pub no
começo da Westbourne Grove, Jill não conseguia imaginar. Ela nunca foi
muito fã de Adrian Spiro, o incorporador de imóveis grego que queria
transformar a propriedade em um hotel-butique, mas não era isso que a
incomodava. Então Jill se lembrou: Spiro tinha desistido, de início, em cima
da hora. Alguma coisa a ver com o planejamento ou a designação histórica.
Ela mandou um e-mail de uma linha só para Jamie: Como você conseguiu
fazer Spiro mudar de ideia?
A resposta dele foi imediata: Daquele meu jeitinho, com dois emojis de
braço flexionado. Embora Jill soubesse que isso significaria dias de Jamie
agindo de forma insuportavelmente presunçosa, ela não podia ser grosseira, e
começou a digitar um “Parabéns” quando outro e-mail pulou na sua caixa de
entrada.
Raxugdy@sharklaser.com.
Com cautela, ela abriu: era outra troca de e-mails. Dessa vez — como se
alguém estivesse olhando por cima do seu ombro — entre Jamie… e Spiro.
O inglês do bilionário grego não era dos melhores, e de qualquer forma os
dois pareciam estar falando em algum tipo de código que Jill levou alguns
segundos para decifrar. A “escadaria de carvalho esculpido” tinha sido o
problema, ela se lembrou, depois de ter encontrado o arquivo original no
sistema. Aquela escadaria se tornou o pesadelo de qualquer incorporador no
instante em que um possível aviso de preservação do edifício fora
mencionado.
PSC: o conselho só vai emitir esse aviso daqui a dez dias, Jamie comentou
em um e-mail respondendo à mensagem em que Spiro recuava do negócio. E
eu sei que você estava planejando começar os trabalhos no início da semana
que vem. Me liga quando receber isso?
O e-mail seguinte não fazia referência a nenhuma ligação e era uma
simples confirmação de que Spiro tinha mudado de ideia e estava preparado
para finalizar o negócio “assim que possível”. Que reviravolta.
Jill deu uma olhada na data do e-mail, depois ligou para Paul.
— Estou indo encontrar com meu advogado, Jill. A Olivia está aprontando
de novo. Você acredita que agora ela está pedindo o chalé de Devon
também? Isso sem falar nas taxas de manutenção extorsivas que está exigindo
e na custódia do Barnaby.
— Perdão… Barnaby?
— Nosso cachorro whippet.
— Entendi. — Jill definitivamente não estava com tempo para uma das
reclamações de divórcio de Paul no momento. — É rapidinho: o lugar na
Westbourne Grove que Spiro comprou. Eu nem sabia que a venda tinha sido
finalizada… e tão rápido. Você sabe quando eles começaram a trabalhar lá?
— No início da semana, acho. — Ele pareceu tenso. — Imagino que o
Telegraph tenha entrado em contato?
— O quê? Não. Por quê?
— Eu ia te ligar para ver se você já estava sabendo.
— Sabendo do quê?
— Da escadaria, aquela porcaria shakespeariana…
— Jacobina.
— É, isso. Bom, enfim, o troço todo caiu ontem à noite. Parece que a
estrutura não estava tão sólida quanto se esperava, e depois que eles
começaram a trabalhar…
Mas quando Paul disse as palavras “os conservacionistas estão pirando”,
ela parou de escutar.
— Paul. — Ela passou a ponta do dedo pelas três palavras no topo do
papel timbrado da BWL, três palavras sobre as quais ela e Stan demoraram
tanto a se decidir, décadas antes: HISTÓRIA. HERANÇA. PRESERVADAS. — Quando
você e seu advogado acabarem, precisamos conversar. Porque vamos precisar
de uma revisão interna sobre isso… e sobre Jamie.
Então ela encontrou o e-mail original de Raxugdy@sharklaser.com, com o
assunto “Com amigos assim?”. Logo antes de encaminhá-lo com três cliques
rápidos, ela acrescentou uma única frase ao início da mensagem: Com amigos
assim, Jamie?
CAPÍTULO 19
NICOLE
ALEX
– N em—ouseSério?
tirar os sapatos! Pode colocar de volta.
JILL
Como cofundadora da bwl, a sra. Barnes é responsável por criar uma das empresas mais
poderosas e importantes no histórico do ramo imobiliário do país. Além disso, como sócia,
ela foi parte fundamental da companhia por mais de vinte anos e nos ajudou a atravessar
tempestades ocasionais. Não é preciso dizer que seu conhecimento de mercado e sua
capacidade de gerenciamento sejam inigualáveis, e eu me sinto honrado por ter podido
trabalhar abaixo e ao lado de uma profissional desse calibre ao longo de tantos anos.
Infelizmente, porém, sinto que as complexas questões pessoais que ela está sendo
forçada a enfrentar em casa, por mais trágicas que sejam, impactaram suas habilidades,
assim como minha confiança de que ela seja capaz de liderar a bwl ao seu próximo passo.
Os mercados estão mudando e com eles compradores e incorporadores — compradores e
incorporadores que mais de uma vez declararam preferir trabalhar com alguém mais
afinado com a perspectiva moderna.
Por mais que me entristeça ter que apontar isso a este estimado conselho, minha
principal responsabilidade está e sempre estará com a bwl, e é com o coração pesado e o
interesse da companhia em mente que escrevo esta carta. Embora Paul Wilkinson tenha
deixado claro para mim que não compartilha da minha visão sobre a sra. Barnes no
momento, estou convencido de que isso vai mudar em breve, e respeitosamente peço por
um momento de seu tempo para discutir essa situação delicada pessoalmente.
Com os melhores cumprimentos,
Jamie Lawrence
NICOLE
M
aldita Jill. Claro que ela tinha que estar bem ali quando a
mensagem apitou: Old Ship às 4?
Mas Nicole não achava que ela tivesse visto; tinha certeza
que não.
Quantas vezes tinha dito a Jamie para não escrever mensagens no campo
do assunto do e-mail? Não mandar e-mails e ponto-final? Porém, tendo
sempre saído impune, Jamie parecia acreditar que era intocável.
Ela não tinha nenhum problema com Jill. Na verdade, Nicole sempre
gostou muito da fundadora da empresa, assim como de tudo que ela
representava: sem filhos, mas aparentemente feliz; ambiciosa e realizada pelo
trabalho de uma maneira que as mulheres não deveriam ser ou não era
permitido que fossem. Mas, depois do que ela precipitadamente contou a ela
e — pior ainda — a Alex, Nicole deu a partida em algo que agora sentia que
não conseguiria parar. E, no entanto, não tinha tido notícias de Alex desde
sua visita tarde da noite. Talvez com o bebê — mesmo depois do que Nicole
lhe dissera —, ela decidira deixar Jamie em paz?
Enquanto corria pela King Street em direção ao rio, dividida entre o desejo
de fazer Jamie esperar e a necessidade de descobrir do que aquele encontro se
tratava, Nicole se perguntou se a carta de Jill poderia ser verdadeira. Se fosse,
não era possível que Jamie tivesse motivos para se preocupar? Afinal, Jill
estava com a cabeça cheia. No entanto, dado o estado preocupante de Alex
quando Nicole a viu naquele apartamento imundo, poderia muito bem ter
sido coisa dela. Mais uma vez, ela sentiu aquele frio na barriga, o frio que
você sente na infância segundos antes de o vaso ou a janela se espatifar,
quando a bola ainda estava em movimento. Ela que tinha colocado a bola em
movimento, primeiro no pub e depois naquela noite no apartamento de Alex.
Era o primeiro dia do que os jornais estavam chamando de “nossa onda de
calor de Honolulu”. Atividades esportivas escolares estavam sendo
canceladas e jardineiros eram encorajados a “amar seus gramados marrons”
em uma tentativa de economizar água. E, embora ainda não tivesse alcançado
os quarenta graus previstos naquele fim de semana, a ausência de qualquer
tipo de vento impunha uma curiosa estase nas ruas de Hammersmith, como se
toda a vizinhança participasse de um daqueles desafios dos manequins
viralizados alguns anos antes. Do lado de fora dos cafés vazios e das lojinhas
de uma libra, os funcionários se debruçavam imóveis e silenciosos nos
balcões das lojas, e até mesmo os alunos que esperavam nos pontos de ônibus
pareciam anormalmente abatidos.
Nicole, em comparação, se sentia mais viva do que há meses, como se
todo o seu sistema tivesse pegado no tranco. Uma velha canção do Oasis que
ela havia escutado em looping durante a faculdade tocava no último volume
em uma loja de celulares e, ao começar o refrão, ela sentiu a beleza da
melodia de novo. Talvez fosse por isso que as pessoas tinham casos? Aquela
sensação da vida acontecendo de novo, uma injeção de juventude. O que
Nicole percebeu de repente, à medida que o eco de seus saltos na passagem
subterrânea de ladrilhos aumentava e ela emergia piscando para a luz da
margem do rio, era que não estava pronta para voltar ao torpor.
Passando um dedo sob cada olho, onde seu rímel teria escorrido nas rugas,
ela ajustou sua expressão para parecer menos ansiosa. Fora do Old Ship, a
parte de trás parcialmente obscurecida da cabeça de um homem acabou não
sendo a de Jamie, e ela tentou em vão se lembrar da cor da camisa que ele
estava usando no escritório mais cedo.
— Nic!
Lá estava ele, um pouco mais adiante, encostado na mureta baixa do rio
sobre a qual sua cerveja estava apoiada, o cigarro na mão.
— Você voltou a fumar? — perguntou ela quando os dois estavam perto o
suficiente para se tocar.
— Mais ou menos. Maya encontrou um maço que nem era meu outro dia,
deixado pelo cara do ar-condicionado ou sei lá quem, e surtou. A ironia é que
eu não tocava em um cigarro há meses, mas se as pessoas vão pensar o pior
de você de qualquer maneira…
Embora seu coração tenha afundado diante da menção imediata de Maya,
Nicole ficou satisfeita. Obviamente ele estava com problemas em casa, e um
Jamie fumante era um Jamie no mau caminho em todos os sentidos. Só uma
coisa — a ideia de ela ser algo que ele fazia quando estava se comportando
mal, um mau hábito — a irritava.
— Por que estou aqui?
Ela tomou o cigarro da mão dele e deu uma tragada, a atitude despertando
vagas lembranças do exibicionismo da adolescência: corações perfurados por
flechas desenhados com esferográfica em coxas lisas, gargalhadas altas o
suficiente para os meninos ouvirem. E por baixo de tudo, a angústia
adolescente.
— Esqueci como cigarro de verdade é bom.
— É mesmo? — Jamie chupou a espuma de cerveja do lábio superior e
puxou-a para si.
— Ei. — Protegendo os olhos com a mão, ela examinou os arredores. —
Qualquer um pode nos ver.
— Eu dei uma olhada.
— Ah, é?
— Relaxa.
— Eu vou, assim que você me pagar uma bebida.
— Foda-se a bebida.
— Que encantador.
A centímetros de distância, eles se olharam, e Nicole se perguntou como
seria conhecer aquele rosto, com todas as sardas, os sulcos e as rugas, como
conhecia o de Ben; aceitar que faria parte de sua vida diária. Vê-lo
envelhecer.
— Jamie, por que estou aqui?
— Por quê? Porque não consigo parar de pensar em nós dois… no teatro.
— Nicole sentiu uma contração na parte inferior do abdômen. Odiava o poder
que ele tinha sobre seu corpo, mesmo quando não havia força, nem mesmo
um contato, apenas palavras. — Porque deve haver um motivo pelo qual não
conseguimos ficar longe um do outro.
Nicole olhou para além dele, para o rio. Uma frota de remadores passou
rapidamente aos comandos do timoneiro.
— Eu costumava pensar assim. Mas agora…
— Agora o quê?
Ela deu de ombros.
— Agora sei que é só um jogo para você. Porque é, não é?
— Não! — Os dedos dele apertaram o tecido verde do seu vestido,
puxando-a para mais perto, entre as pernas dele. E, quando estava com raiva
ou discordava de algo, Jamie parecia tão jovem. Ela tinha se esquecido disso.
— Não é verdade.
— Mas você ama sua esposa.
Dizer aquilo em voz alta não foi tão doloroso quanto achava que seria. Na
verdade, parecia bastante adulto, civilizado. Só que ela não deveria tocá-lo
enquanto dizia isso. Não poderia nem olhar para ele. Nicole se moveu para
ficar ao lado dele na parede, de onde contemplou as profundezas tenebrosas
do Tâmisa.
— Eu realmente acho que você ainda ama Maya. E sei que você ama suas
filhas. Sei que ficar longe delas… Bem, posso imaginar o que isso faria com
você. Não é a mesma coisa para mim, para as mulheres. Eu entendo. Eu
poderia deixar Ben e ainda ficar com Chloe. Ainda acordar com ela todos os
dias e colocá-la na cama todas as noites. — Mesmo enquanto dizia essas
palavras, ela se perguntava como isso funcionaria, lembrando-se da testa
franzida da filha nas raras ocasiões em que precisou levá-la para longe do pai
e tentando imaginar como seria dizer a ela “não se preocupe, você vai ver o
papai de novo no próximo fim de semana”. — Eu estive pensando desde…
Bem, desde aquela tarde no Vale Theatre. E achei que tivesse superado você.
Pensei mesmo. Mas voltar ao jeito que éramos… Não posso fazer isso. Não
depois do que aconteceu da última vez. — Ela balançou a cabeça. — Não é o
que eu quero. Não estou mais com raiva, mas…
— Você sabe que vai completar dois anos — ele se inclinou e beijou seu
pescoço — na próxima quarta-feira.
— Não faça isso! — Ela se virou, com raiva dele e de si mesma. — Não
finja que isso é mais do que um caso. Você e eu já tivemos casos antes; não
precisamos fingir.
— Não, Nic. Eu quero que isto seja outra coisa. Quero dar uma chance
para a gente. Não consigo dormir, não consigo funcionar direito. É como se
minha mente estivesse zumbindo, zumbindo…
Ela tinha que admitir que havia algo de frenético em seu comportamento:
suas palavras se embolando e…
— Jamie, você está tremendo. Quantos cafés você tomou hoje?
— Porque dessa vez estou pronto. As coisas lá em casa simplesmente não
estão dando certo comigo e a Maya. Para ser sincero, sinto que não faço nada
direito, é como se ela estivesse sempre tentando me criticar ou me pegar no
flagra. — Ele puxou outro cigarro do maço. — Eu perdi minha aliança outro
dia. Literalmente desapareceu. E Maya ficou toda “Eu disse que isso ia
acontecer!” e “Talvez isso esteja nos dizendo algo”. Não tenho tempo para
esse tipo de superstição de merda.
— Então isso é sobre ela? — A boca de Nicole ficou rígida, o
ressentimento a deixando feia por fora e por dentro. — Sua querida e doce
esposa não está prestando atenção o suficiente em você? Deixe-me perguntar
uma coisa, Jamie: algum dia você terá atenção suficiente?
Pego de surpresa pelo seu tom, ele a olhou.
— Quando você ficou tão amarga?
— Ah, não sei. Em algum momento nos últimos dois anos.
Por alguns instantes, nenhum deles falou.
— Ben quer que eu me demita. Que eu procure outro emprego.
— O quê?
— Ele percebe que estou infeliz. Não sabe por quê, acha que é o trabalho,
mas talvez ele esteja certo.
— Não. — Jamie balançou a cabeça. — Não. Você está infeliz por causa
dele, não do trabalho ou de mim. E você pode tentar pedir demissão se quiser,
mas eu não vou deixar. Você não vai ter uma rescisão. Não vou te dar nem
uma carta de referência, e vou garantir que você entre na lista de restrições de
todas as agências imobiliárias de Londres.
— Jamie…
— Não.
Com firmeza, ele a ergueu contra a parede. E, quando se colocou entre as
pernas dela, Nicole as sentiu envolverem a cintura dele de uma maneira
instintiva, uma maneira a qual ela sabia ser velha demais, mas não se
importou. Eles se beijaram e foi tão profundo, íntimo e satisfatório quanto
sexo. Ela se ouviu gemer.
— Eu te amo, Nic. E quero ficar com você. Você nunca vai ser feliz com
Ben, não é? Você sabe disso agora. E quanto mais cedo puder seguir com sua
vida… comigo, mais cedo todos podem começar a se recuperar.
— Olha só você, todo zen.
Jamie não sorriu.
— É verdade.
Uma lágrima deslizou em uma vertical perfeita por baixo dos óculos de sol
dela, e ele a enxugou. Nicole nunca se permitiu chorar na frente de Jamie
antes, e parecia significativo que agora conseguisse.
— Nic. — Ele empurrou seus óculos até a linha do cabelo e segurou seu
queixo com a mão trêmula.
— Você não está bem, está?
— Não. Olhe para mim. Eu não sei o que está acontecendo comigo. Nos
últimos dias, não consegui me concentrar em nada. Estou nervoso, não
consigo comer e eu… Nic, não estar com você está me matando. Mas, sim,
dessa vez estou pronto.
— Eu não acredito em você.
— Por causa de antes? Maya estava grávida, pelo amor de Deus. Você tem
que entender que não era a hora certa.
Ela assentiu minimamente com a cabeça.
— Mas preciso saber que você está falando sério sobre contar a Ben?
Do nada, uma imagem lhe veio à mente: Ben segurando uma Chloe
chorosa em seu ombro no Hyde Park enquanto o balão de hélio da Patrulha
Canina subia cada vez mais alto no céu. “Pense em todos os outros balões
que foram para o céu dos balões”, ele murmurou. “Então ele não vai ficar
sozinho.” E ao ouvir as palavras “céu dos balões”, as lágrimas de Chloe
apenas se intensificaram.
— Não fui eu quem quebrei minha promessa da última vez.
— Não. — Ele assentiu com a cabeça. — Mas não me lembro de você ter
prometido nada.
Nicole sabia o que ele estava fazendo: tentando induzi-la a dividir a
responsabilidade pelo que acontecera — ou deixara de acontecer — da última
vez.
— Você realmente está dizendo que não confia em mim para contar?
— Como posso ter certeza de que você vai fazer isso?
— Jamie…
— Não, quer dizer, como qualquer um de nós pode saber? — Ele tocou
sua cerveja, pensativo. — Mas e se houvesse uma maneira de nós dois termos
certeza? Uma maneira de contarmos ao mesmo tempo, até mesmo no mesmo
lugar…
— Fazer Maya e Ben nos encontrarem num tipo de terapia em grupo, você
quer dizer?
— É uma ideia — brincou ele, passando o polegar pela parte interna da
coxa dela. — Não, quero dizer que nós podemos levá-los a algum lugar
público: um restaurante lotado. Mas separadamente. Você reserva sua mesa,
eu reservo a minha, e não podemos sair até ambos termos contado.
Nicole se desvencilhou.
— Você está falando sério?
— Sim. Veja só: estaríamos passando pela mesma coisa ao mesmo tempo.
E, para nos ajudar a ir adiante, poderíamos marcar de nos encontrarmos em
algum lugar depois, em um hotel ou qualquer lugar.
Nicole o olhou. Era uma ideia maluca, ensandecida. Mas também podia
ser genial. Porque, por mais que todo o seu ser se encolhesse diante da ideia
de contar a Ben e implodir sua vida com uma única frase, saber que Jamie
estaria lá também, vê-lo passando pelo mesmo inferno — bem, poderia dar a
ela a coragem de que precisava.
— É uma maluquice. E arriscado.
— Como assim? — Ele tomou um longo gole de cerveja, e não pela
primeira vez ela se perguntou se Jamie sentia as reverberações de suas
palavras e ações da mesma forma que as outras pessoas.
— Bem, e se Maya me reconhecer?
— Vocês nunca se conheceram.
— Nós estivemos no mesmo lugar duas vezes. — A precisão era
humilhante e ela deliberadamente omitiu a parte seguinte. — Em dois
eventos, uma festa de Natal e outra coisa. E mulheres…
Jamie ergueu uma sobrancelha.
— Ao contrário de vocês, nós reparamos nas coisas, nas pessoas, no que
está abaixo da superfície.
— Tá. Mas não estou sugerindo que a gente marque em um lugarzinho
intimista. Pensei em um restaurante grande e barulhento como o Angelini’s
— disse ele. Angelini’s era uma enorme brasserie em Green Park com longos
bancos, a queridinha das subcelebridades e dos homens de negócios do
centro. — E nós especificamos onde queremos nos sentar, então não
estaremos em mesas próximas, mas podemos pelo menos nos ver do outro
lado do restaurante.
Deveria ter sido revoltante, mas o lado de Nicole aventureiro gostou da
ideia. Isso daria a ambos uma data da qual não poderiam escapar e colocaria
um fim ao sofrimento que ela alimentara por tempo demais. Além disso, nada
poderia ser pior do que o status quo.
— E, a partir dessa noite, nós estaríamos livres?
— Exatamente. Não seria incrível?
Debaixo do vestido, a mão de Jamie subiu até o elástico da calcinha.
— Imagine — ele estava dizendo — quando nós dois estivermos livres,
todas as coisas que poderíamos fazer? A gente pode viajar nesse verão. Ir
aonde você quiser… Aquele lugar em Antibes que você vive falando.
Qualquer lugar.
— Vamos para Biarritz.
Ele riu.
— Está bem. Por quê?
— Não sei. Sempre quis ir. Pelo surfe?
Ele jogou a cabeça para trás.
— Você surfa?
— Não.
— Eu também não.
Com as testas juntas, eles riram.
— Nós não sabemos muito um sobre o outro, não é?
E o beijo deles então foi diferente: longo, preguiçoso e cheio de uma
contida alegria mútua com a decisão súbita de mudança de vida.
— Mas pense em como nos divertiremos descobrindo tudo?
Fechando os olhos por um segundo, Nicole se permitiu um momento de
pura felicidade. O corpo quente e sólido de Jamie estava entre suas pernas, o
couro de seu cinto pegajoso contra a parte interna de suas coxas e, até que ela
decidisse soltá-lo, ele era dela.
A risada de uma mulher, estridente de álcool, os alcançou, e Nicole
adivinhou sem olhar que aquela mulher sem rosto estava com um homem,
marido ou amante. Atrás dela, outra frota de remadores passou pela água.
— Remando! Calma!
O choro de um bebê abafou as últimas palavras do timoneiro. Soara como
“com força”, e ela tentou elaborar uma piada — o tipo de trocadilho bobo de
duplo sentido que ela e Jamie sempre faziam um para o outro —, mas o choro
do bebê agora estava dolorosamente alto, e, quando Nicole abriu os olhos,
irritada pela interrupção e determinada a buscar a fonte dela, viu uma mulher
parada um pouco longe no puxadinho verde triste perto do pub. A mulher
tinha um bebê amarrado ao peito e estava olhando diretamente para ela: Alex.
CAPÍTULO 23
ALEX
– S ua Alex
vagabunda mentirosa.
tinha esperado na passagem subterrânea, sabendo que Nicole
viria atrás dela, e quando ouviu seus passos desesperados descendo a rampa
para o acinzentado frio abaixo da Great West Road, Alex sentiu uma nova
onda de raiva, mais forte do que a primeira. Saindo da parede recuada de
onde estivera esperando, ela cuspiu as palavras na cara de Nicole.
Por um momento, as duas apenas se encararam, Nicole com dificuldade
para recuperar o fôlego; Alex ciente, sem realmente se importar, de que um
fio de saliva pendurado em seu lábio inferior ameaçava cair.
— Jamie deixou para você resolver, não é? — Ainda não havia sinal dele
na passagem subterrânea. — Aquele covarde de merda.
— Ele não te viu, graças a Deus. Alex, o que você está fazendo aqui?
— Isso é tudo que você tem a dizer?
Quando pegara um Uber para o Old Ship, Alex não tinha parado para
pensar no que faria quando chegasse lá, muito menos em como se explicaria.
Mas depois de entrar no e-mail de Jamie pela terceira vez naquele dia e
descobrir as trocas de mensagem com Nicole acontecendo em tempo real, ela
precisava descobrir sobre o que era o encontro. Por que ela havia
concordado? E o que Jamie queria dela?
— Como você sabia que íamos… — Então Nicole entendeu. — Você está
lendo os e-mails dele de novo.
— Claro que estou. Eu nunca parei.
Com as bochechas úmidas e toda desgrenhada, uma mancha rosa
circundando a boca onde o batom borrara com os beijos, Nicole parecia estar
lutando contra uma variedade de emoções. Pelos olhares rápidos para baixo
em direção a seu peito, Alex percebeu que era nauseante que aquela cena
estivesse se desenrolando na frente de Katie, esquecida por Alex ainda
amarrada a ela, e ainda berrando.
— Sua filha…
— Katie. O nome dela é Katie.
— Bem, Katie está surtando. Ela está com fome?
A preocupação no rosto de Nicole só aumentou ainda mais a raiva de
Alex.
— É sério que você vai me dar um sermão sobre como cuidar da minha
filha? Quando você está mentindo para seu marido, sua filha e para todo
mundo!
— Eu não estou dando sermão. Eu só…
A silhueta de um casal contra a boca branca e brilhante da passagem
subterrânea apareceu, sua risada descontraída morrendo ao assimilar a cena e
passar às pressas em silêncio.
— Você é só uma mentirosa do caralho, é o que você é. Você mentiu para
mim e para Jill. Então você foi falar comigo, foi até o meu apartamento e me
contou mais mentiras.
Nicole fechou os olhos.
— O quê? Vocês dois… — Só de dizer aquelas palavras já fez o estômago
de Alex revirar. — Não acabou de acontecer, não é?
— Não.
— Quanto tempo?
Nicole desviou o olhar.
— Quanto tempo?
— Olha, eu não deveria ter dito o que disse naquela noite no pub. E
depois, quando fui ao seu apartamento, estava com tanta raiva que não
conseguia pensar direito. Mas não era… — Nicole interrompeu-se e tentou
outra vez. — Não era mentira. Jamie e eu, o que fazemos, como somos um
com o outro… É complicado.
— “Complicado?” — Parecia muito simples pelo que Alex estava vendo.
— Você me disse que ele te estuprou.
— Eu nunca falei isso. — Mas Nicole não estava mais olhando para ela.
— Alex!
Alex seguiu a direção dos olhos de Nicole até a filha, que estava
ameaçando vomitar, a boca em um O agoniado, e lhe pareceu estranho que
não tivesse ouvido Katie até Nicole apontá-la, desde que se viu paralisada
naquele puxadinho verde surrado perto do rio, imobilizada pela visão de
Jamie e Nicole se agarrando na parede como adolescentes.
Alex não sabia quanto tempo tinha ficado parada ali, mas foi o suficiente
para absorver a sensualidade selvagem da risada de Nicole e a familiaridade
dos quadris de Jamie entre suas pernas. Aqueles dois corpos se conheciam
bem. E que Nicole tivesse mentido sobre o assédio e tê-la feito acreditar em
algo ainda pior, que ela pudesse ter se sentado no sofá de Alex — “Eu disse
não; eu pedi para ele parar” — quando o tempo todo o relacionamento tinha
sido consensual? Não era apenas uma traição; era algo que Alex não podia,
não iria aceitar. Tinham ido longe demais.
— Você tem leite?
— O quê? — Remexendo na bolsa, Alex encontrou uma mamadeira e a
colocou na boca da filha. — Como você chamaria, então? O que você e
Jamie “fazem”?
— Nós… — A voz de Nicole ficou tão baixa que era quase inaudível. —
Nós fazemos joguinhos. Sempre fizemos. Às vezes as coisas ficam violentas.
Uma vez… uma vez… eu pedi para ele parar, e ele não entendeu, não ouviu
ou pensou que eu estava…
— Você gosta de joguinhos ou ele gosta? — Agora estava começando a
fazer sentido. — Porque às vezes as coisas podem começar como um jogo, só
que, quando você quer parar, a outra pessoa não deixa.
— Não.
— E se essa pessoa tem todo o poder, se essa pessoa é seu chefe, então
ainda é abuso. Se essa pessoa não para quando você diz “não”, seja ela seu
chefe, seu namorado ou até mesmo seu marido, ainda é estupro.
— Não, você entendeu errado.
Todo o arrependimento havia sumido do rosto de Nicole, deixando apenas
uma impaciência mal disfarçada. Mas Alex insistiu mesmo assim:
— Acho que você me contou o que aconteceu naquela noite porque sabia
que o que havia acontecido entre vocês não estava certo. Mas talvez ele tenha
feito você achar que era. Ou talvez você simplesmente morra de medo do
Jamie.
Nicole balançava a cabeça, murmurando coisas que Alex não conseguia
mais entender.
— Por que você não consegue ver o que ele está fazendo com você?
Ajeitando o cabelo para trás, Nicole suspirou.
— Porque estou apaixonada por ele.
Alex olhou para ela e para aquela boca borrada idiota. Então riu.
— O que quer que seja… E, aliás, um terapeuta deve ter um termo para
isso… Você não está apaixonada por Jamie.
— Não sei quais experiências negativas você teve, Alex, e talvez essa
conversa seja sobre isso, mas eu e Jamie… Não é o que você está pensando.
Você tem que entender como eu estava me sentindo quando contei aquilo. Se
eu tivesse ideia que a gente voltaria a ficar junto…
— “Voltaria a ficar junto”? — Alex repetiu com uma voz enojada de
adolescente.
— Estou tentando explicar. Achei que teria uma oportunidade antes de
você…
— Descobrir que você era uma vagabunda mentirosa que estava dormindo
com o cara que deveríamos derrubar?
Nicole franziu a testa, mas não por causa do insulto.
— O que aconteceu com sua mão?
Alex olhou para sua mão direita, em carne viva depois de tanto esfregar, e
ainda assim fedendo a talco infantil.
— Eczema. Às vezes aparece. Continue.
— Eu estava tão magoada. Ele tinha feito promessas em Frankfurt.
Decidimos tentar fazer dar certo.
— Vocês dois estavam juntos em…? — Alex gemeu. — É claro. Para que
mais servem conferências senão para transar com seu chefe? Você percebe o
quanto isso é clichê, o quanto você é clichê?
— Claro que vai parecer isso para você. — Nicole deu de ombros. — Mas
as pessoas nem sempre acertam de primeira. E você não pode culpar um lado
ou outro por isso. Você não é casada, não consegue entender.
— Acho que entendo. — Alex pensou na mãe, cujo cada passo era ditado
pelo marido. E ela pensou em Hayden. Nicole estava errada: era sempre claro
de quem era a culpa.
— Tá. — Nicole então se endireitou, desafiadora após o choque inicial de
ser descoberta. — Bem, sem ofensa, mas a essa altura eu não me importo
com o que os outros vão achar.
— O.k. Então, me deixa perguntar só mais uma coisa: o que mudou? Em
relação a antes, quero dizer. Quando queria derrubar Jamie, quando me disse
que ele te estuprou…
— Você precisa parar de dizer isso.
— Quando você me disse que ele te estuprou, Nicole — repetiu Alex,
mais alto.
— Você não está ouvindo! Ele ia se separar da Maya antes do Natal, e
achei que ele estava falando sério. — Alex bufou. — Mas ela estava grávida
de Elsa e depois do parto… Bem, ele não conseguia suportar a ideia de deixar
a filha tão pequena.
— Ah, Jamie é mesmo o pai do ano.
— Não estou pedindo para você acreditar em mim, só estou tentando
explicar por que fiz o que fiz, que não era um joguinho. Eu realmente o
odiava tanto quanto você. E achava mesmo que tudo estava acabado. Por que
eu teria concordado com o que planejamos se não fosse isso? Mas, então, na
semana passada, Jamie e eu…
— Ah, me poupe dos detalhes.
Alex começou a balançar Katie, que exalava calor de sua fralda.
— Tudo bem — Nicole tentou sorrir. — Mas, enfim, nós nos resolvemos.
Agora há pouco. E ele está um caco, Alex. É por isso que sei que dessa vez
vai ser diferente. Eu nunca o vi assim. Ele diz que não tem conseguido
comer…
— Ah, é? Está com dificuldade para dormir também, não é?
— Sim. Sim, ele está. Ele está um caos.
Por mais furiosa que estivesse, Alex não pôde deixar de sorrir. Depois de
todos aqueles meses administrando o pequeno e lucrativo negócio na esquina
de sua rua e acordando Katie com a maldita scooter, o traficante se provou
útil. Nicole também havia desempenhado um papel involuntariamente. Pode
ser que ele nunca tenha tido um cliente com um bebê amarrado ao peito
antes, mas, quando ela pediu Ritalina — “a dose mais alta que você tiver” —,
o homem não expressou surpresa nem julgamento, procurando em sua bolsa
Fila e contando 14 comprimidos brancos parecidos com analgésicos. Ela os
tinha enfiado na caixa de vitaminas de “dias da semana” de Jamie na visita
seguinte à casa de Maya. Ele ia ver como era ficar acordado a noite toda,
todas as noites, com o coração e a mente acelerados.
— Enfim — estava dizendo Nicole, e sua calma fez Alex querer gritar:
Não é o amor deixando o seu homem perdido, meu bem, é uma dose colossal
de estimulantes! — Não é da sua conta. Vamos tentar fazer tudo certo dessa
vez.
Alex deu um passo para trás.
— Você quer dizer que vão contar ao seu marido e a Maya?
Um lampejo de algo. Preocupação? Suspeita? A referência à esposa de
Jamie tinha sido muito casual, familiar.
— Você não… Você não entrou em contato com Maya, entrou?
— Vou deixar isso por sua conta. E que conversa divertida será, quer
dizer, se isso realmente acontecer.
— Vai acontecer.
— Quando?
— Em breve. — Nicole olhou para a luz que entrava pelo final da
passagem subterrânea, claramente desesperada para fugir. — Lamento por
tudo o que você está passando, assim como lamento ter escondido coisas de
você. Mas, como falei, não é mais da sua conta. — Nicole engoliu em seco.
— Sei que você está tentando atiçar Jill de novo, Alex. Eu sei sobre os e-
mails e as cartas.
— Oi?
— Não começa. Eu sei que é você, tudo aquilo. E isso foi longe demais.
Jamie tem seus defeitos, mas não escreveria aquele tipo de coisa sem um bom
motivo.
— “Bom motivo”? Não estou acreditando!
— Talvez ele acredite sinceramente que seria melhor tanto para a empresa
como para Jill se ela se distanciasse…
— E eu? Não houve nada de “sincero” na minha demissão, não é?
Nicole a examinava de uma maneira que ela não gostou. Nem um pouco.
— Você já pensou que pode ter um motivo válido? Porque, por mais duro
que pareça, pela maneira como você tem se comportado, também não sei se
me sentiria confortável tendo você por perto. Essa sua obsessão…
— Obsessão?
— Você não consegue ver no que isso se tornou? Mas nada do que você
fizer vai mudar alguma coisa. — Então, mais suavidade: — É em Katie que
você deveria se concentrar agora, não no seu ex-chefe, em mim ou em nada
disso.
Nenhuma ideia. Nicole não tinha a menor ideia.
— Ei, eu não era só boa no meu trabalho, era a melhor. Pergunte a
qualquer um. E Jamie tirou isso de mim para salvar a própria pele. Ele…
Mas, de repente, Alex desistiu. Ela estava cansada e com sede — com
tanta sede. E, agora que o choque do caso de Nicole e Jamie estava passando,
Alex começou a olhá-lo sob uma nova luz. Jamie não teria coragem de
terminar esse casamento, mas Maya talvez tivesse. E ela precisaria de um
ombro amigo quando isso acontecesse. Alex poderia ser esse ombro amigo,
poderia ajudar a juntar os cacos, se tornaria indispensável.
Sem nem ao menos um último olhar para Nicole, Alex começou a se
afastar.
— Tenho que levar Katie para casa para a soneca.
— Ei! — Nicole correu atrás dela. — Você não vai fazer nenhuma burrice,
vai? Alex? Sei que Jamie cometeu erros, se comportou mal, mas eu também.
Você também! É hora de deixarmos tudo isso no passado.
Emergindo, piscando, sob a vastidão luminosa da Great West Road, Alex
se virou para Nicole uma última vez:
— Sua burra. — O sol destacou fios brancos, um de cada lado do cabelo
repartido de Nicole, e Alex quase sentiu pena dela. — Esses e-mails que
tenho lido? Já li meses, anos atrás, de antes mesmo de trabalhar para Jamie. É
a primeira coisa que leio quando acordo e a última depois da mamada de
Katie na hora de dormir. É por isso que sei que na sexta-feira passada ele e
Maya fizeram um depósito para uma casa de cinco quartos em Barnes. É
georgiana. Maya sempre gostou desse estilo. E eles precisavam de mais
espaço, sabe, caso ela ceda e tenha um terceiro filho, como Jamie já está
implorando que ela tenha.
Conforme o tráfego passava zunindo por elas em ondas sonoras, Alex
percebeu que não era apenas uma expressão: a cor pode realmente sumir do
rosto de uma pessoa, sugada pelo choque.
— Há uma garagem dupla e “armários nos beirais”, seja lá o que for isso.
Mas foi o pátio interno que conquistou Maya.
— Você diria qualquer coisa, não é? Bem, eu não acredito em você. —
Envolvendo a alça de sua bolsa, os nós dos dedos de Nicole estavam brancos.
— Pois deveria.
— Essa conversa acabou.
Nicole começou a se afastar, mas Alex não aceitou. Em duas passadas
rápidas a alcançou. Mas dessa vez teve o cuidado de manter o tom
controlado.
— Se Jamie acabar não sendo o homem que você pensa que ele é. Se eu
estiver certa…
Nicole virou a cabeça com impaciência.
— Ligue para mim. É só o que digo. Porque sei o que seria necessário para
acabar com ele. E não é muito.
— Procure ajuda, Alex. Você precisa. — O trânsito quase abafou a última
frase de Nicole: — E não me ligue nunca mais.
CAPÍTULO 24
JILL
– M aisEndireitando-se,
devagar, Harry. Você não está falando coisa com coisa.
Jill massageou a lombar, onde a capinagem
estava começando a cobrar seu preço. Seus vizinhos tinham um jardineiro
que cuidava da pequena área verde ao lado do barco, mas Stan sempre foi
orgulhoso demais para fazer o mesmo. Sabendo o quanto ele ficava chateado
com o espinheiro-branco rodeado de mato e o acúmulo de lixo nos vasos de
plantas, Jill, que nunca tinha ligado muito para jardinagem, começou a passar
algumas horas dando um tapa no grosso nas manhãs de sábado, enquanto o
marido lia ao seu lado.
— Não, eu não falei com Jamie.
Perto da cerca, o brilho de um papel de bala chamou a sua atenção e ela se
abaixou para pegá-la. Por que as pessoas eram tão nojentas?
— Sim, ontem à noite. Você e Trish foram jantar lá, não foi? — Diante da
sobrancelha erguida de Stan, Jill murmurou: — Ainsley.
Olhando por cima da edição de capa dura de Pelos canais franceses que
ela lhe dera no último Natal, seu marido revirou os olhos.
— Isso não parece… Sim, eu imagino… Aposto que ela ficou. Não
consigo imaginar o que ele estava pensando. Jamie tem estado um pouco…
Bem, é claro que não está. Harry, vou ligar para ele agora, mas tenho certeza
de que falo por todos nós quando digo que sinto muito. Parece uma confusão,
e, se eu conheço Jamie, ele vai ficar morrendo de vergonha. Ouça, já te ligo
de volta. O quê? Você está? Bem, posso pelo menos… Não? Certo. Ok. Bem,
por favor, não deixe que isso afete nossa relação de trabalho. Harry? Harry?
— O que foi isso?
Jill se sentou na ponta da espreguiçadeira dele e tirou as luvas.
— Uma coisa muito estranha. Jamie recebeu Ainsley e a esposa para jantar
ontem à noite. Você sabe há quanto tempo estamos tentamos trazê-lo para o
nosso lado, mas ele é um sujeito escorregadio, então estávamos contando
com esse jantar do Jamie. Eu disse que ele estava de olho na propriedade do
Minerva, né? Mas, enfim, Ainsley acabou de ligar para dizer que o jantar foi
um desastre. Um desastre! Maya serviu carne de porco…
— O quê? Mas ela deve saber que ele e Trish são judeus, não?
— Como podia não saber? E tem mais, eles mandaram uma lista de
alergias e preferências. Tenho a impressão de que Trish é bem fresca, como
era de esperar, e Maya aparentemente ignorou tudo.
— Não parece a cara dela fazer isso.
— Stan, ela serviu vinho branco com a carne de porco, o que
aparentemente causou uma “queimação terrível” no Harry. — Não gostando
da preocupação no rosto do marido, ela sorriu. — E justo quando parecia que
não poderia ficar pior, Harry vai ao banheiro e… — Jill levou as mãos ao
rosto. — Meu Deus, Stan, ele disse que havia uma fralda, uma fralda suja,
bem no chão do banheiro de visitas. Maya deve ter trocado a fralda no último
minuto e esqueceu de jogá-la no lixo ou algo assim.
Ao ouvir isso, Stan colocou Pelos canais franceses de lado e se endireitou.
— Isso é…
— Horrível. Eu sei.
— Mas também completamente atípico. Digo, nunca vi Maya ser
descuidada com nada. Ela é tão controlada, não é?
— Pois é… mas Jamie está todo esquisito, como você sabe. Outro dia ele
estava agindo feito um maníaco com Ainsley na nossa reunião de
apresentação. De verdade, muito estranho mesmo. Talvez esse segundo bebê
tenha, eu não sei, tirado ela dos eixos, ou os dois. Talvez estejam com
problemas sérios.
— Bem, se ele tem assediado mulheres no escritório, aposto que estão
mesmo. Mas você tem certeza de que essa história já passou?
— Ah, sim. — Levantando-se, Jill vestiu as luvas. — A mulher, Nicole,
foi bem clara de que quer deixar tudo para trás. Mas vou ficar de olho em
Jamie. E se ele sair da linha nessa questão… Mas agora preciso descobrir o
que de fato aconteceu ontem à noite.
— Boa ideia. Não queremos nos desentender com Ainsley de jeito
nenhum, né? — Stan não se mexeu para pegar o livro de volta, ela notou. E,
mais uma vez, Jill se sentiu uma idiota por ter contado a ele sobre a ligação.
— Vai ficar tudo bem, você sabe. De verdade.
— Quando Jamie for chutado?
A surpresa a fez se sentar de novo ao lado dele. Ela contara ao marido
sobre a investigação que havia pedido quando os problemas com Spiro
vieram à tona, mas não sobre o e-mail e a carta, já que ainda não tinha certeza
de que Alex não estava envolvida.
— O que te faz dizer isso?
— Bem, ele não pode continuar fazendo essas lambanças, não é? Veja só o
seu estado, tendo que ficar resolvendo os problemas que ele cria. Sem falar
nos custos à empresa. Aquela história com a Nicole… e depois Spiro? Já foi
ruim ter sido notícia no Telegraph, mas, se algum dia ficar provado que
Jamie o incentivou a destruir um prédio histórico, a reputação da BWL estaria
arruinada. Nossa empresa, Jill, nosso bebê.
— Shhh… — Ela beijou o marido na testa. — Não quero que você se
preocupe com nada. Agora, já tomou seus comprimidos?
— Sim, Enfermeira Ratched.
— Bom garoto. — Ela ergueu o telefone. — Pode ir tirar uma soneca. Só
vou demorar alguns minutos.
Ela demorou muito mais do que isso, caminhando ao longo do canal até o
Puppet Theatre Barge, com a cabeça baixa e a voz furiosa de Jamie na orelha.
Ele planejara tudo meticulosamente — chegando a fazer com que a assistente
de Harry mandasse por e-mail uma lista dos vinhos e sobremesas favoritos
dele para que Maya pudesse preparar tudo para o jantar. Mas as coisas
começaram a dar errado logo no começo, disse ele, com os pratos de presunto
de Parma e o Montrachet. E Maya, que estava com uns “humores estranhos”
desde que ele voltara tarde do trabalho, reagiu mal ao ser puxada de lado e
criticada.
— Não é pedir muito, é, Jill? Sabe, eu tinha dado a ela uma lista de
instruções, pelo amor de Deus. E Ainsley te contou — ele estava rouco de
descrença — o que aquela mulher deixou no banheiro?
— Bem, se é assim que você fala com ela, não estou surpresa que ela
tenha reagido mal. Talvez Maya esteja cansada, Jamie. Talvez ela estivesse te
mostrando os dois dedos do meio.
Em sua impaciência para descobrir se o jantar tinha sido de fato um
desastre tão grande quanto Harry havia descrito, Jill havia se esquecido do
oportunismo, do frequente desdém e da carta. Deixara de lado seu ódio. Mas
as palavras cheias de desprezo — “aquela mulher” — trouxeram tudo de
volta à tona. E quando, com uma voz carregada de sarcasmo, ele implorou
para que ela “cortasse esse papo de ‘pobres mulherzinhas’ por um segundo
para nós lidarmos com isso”, ela parou e respirou fundo cinco vezes, assim
como aquele manual de apoio idiota de Stan do Serviço Nacional de Saúde
havia instruído os dois a fazerem em momentos de emoções mais fortes.
— Nós?
Quando as coisas não iam bem, era sempre “nós”, “nos” e “nosso”. Jamie
era generoso quando se tratava de dividir seu desconforto e sua
responsabilidade quando fazia merda.
— Quer saber? Acho que você é que vai ter que resolver esse. Já cansei de
apagar os seus incêndios.
— Apagar meus incêndios? Quando você já teve de fazer isso?
— E que tal você parar de culpar sua esposa e assumir parte da
responsabilidade?
— Eu não causei isso!
— Tá, então, pelo menos aceite os fatos. — Com agilidade, Jill desviou de
um turista agachado segurando um mapa à sombra da ponte da Warwick
Avenue. — Harry está mortalmente ofendido pela experiência e vai fazer
questão de ficar o mais longe possível da BWL daqui para a frente. Para ser
sincera, não sei se posso culpá-lo. O que significará não uma, mas duas
grandes oportunidades de negócio arruinadas… por você. Então, a ideia de
que não estou apta a trabalhar? Bem, é muito engraçada, Jamie. Porque agora
eu diria que seu emprego está por um fio.
Tão exultante que se sentia embriagada, Jill apertou o botãozinho
vermelho e encostou-se na grade, os braços estendidos e o rosto voltado para
cima em direção ao sol. Não podia ser tão simples, podia? Mas, ao checar
seus sentimentos em busca de culpa, nostalgia ou algo assim, um aperto no
coração que fosse, ficou aliviada ao descobrir que a ideia de tirar Jamie de
sua vida para sempre não lhe trazia nada além de satisfação.
CAPÍTULO 25
NICOLE
ALEX
– N ão.—NãoEicomeça.
— repreendeu Alex, estacionando uma Katie adormecida no
carrinho ao lado da mesa. — Não estou aqui para dizer “eu avisei”. Nem vou
perguntar o que aconteceu esta noite. Só estou aqui para dizer que tentei no
outro dia.
Puxando uma cadeira, ela viu os olhos vazios de Nicole, o rímel que se
acumulara nas linhas finas nas olheiras, e a boca nua. Nunca a tinha visto sem
batom antes, e havia algo indecente na nudez de seu rosto.
— Se nós… você… acertarmos, então você nunca mais vai ter que ver
Jamie de novo. Ele vai embora; vai sumir.
Com teto baixo e paredes grudentas, não era o tipo de pub para o qual se
leva um bebê — muito menos depois das nove da noite. Mas quando viu o
nome de Nicole piscar em seu celular, Alex adivinhou o que tinha
acontecido. “Chego em Victoria em meia hora. Encontre um bar e me
espere.” Pouco mais de trinta minutos depois, ela entrou, topando com o
carrinho em tornozelos e ignorando olhares de desaprovação até que avistou
Nicole sentada, no segundo drinque de vodca e tônica, em um canto.
— Presta atenção. Jamie é bom nessas coisas, ele é especialista em ferrar
os outros, lembra? Eu achei que isso já estaria claro agora. Mas, por favor,
não se sinta burra.
Nicole deu um sorriso lacrimoso.
— É difícil não se sentir uma burra quando você acabou de terminar seu
casamento por alguém que não está nem aí.
Alex pensou no que ela disse.
— Na verdade, não acho que seja isso. Jamie provavelmente se importa.
Vocês dois não teriam durado tanto se ele não se importasse. Ele só…
— Se importa mais com Maya?
— Eu tentei te avisar.
Cotovelos na mesa, Nicole agarrou o rosto com as mãos.
— E eu sabia! Sabia que alguma coisa estava errada quando vi os dois no
restaurante. O jeito como só ela estava falando e ele ficava lá ouvindo,
quando deveria ser o contrário.
Alex deu de ombros.
— Acho que ele nunca teve a intenção de deixá-la.
Nicole a encarou.
— Então por quê…? Que tipo de filho da puta doente faz algo assim?
Outro dar de ombros.
— Você sabe melhor como responder isso do que eu. Talvez essa coisa
toda no restaurante fosse uma espécie de preliminar para ele? Algo que o
excita? Pelo que você me disse, Jamie, bem… é um doente.
Nicole fez um barulho, parte soluço, parte ganido, e Alex achou melhor
pressionar.
— Mas o que o excita não é só doentio… é ilegal, não é?
Nicole ergueu os olhos vermelhos de sua vodca com tônica, confusa a
princípio, então cansada.
— Eu te disse…
Mas Alex a silenciou com um dedo.
— Me deixe terminar. Se o que acabou de acontecer nos diz alguma coisa,
é que você tem um ponto cego no que diz respeito a Jamie. E entendo que a
sua relação seja “complicada”, como você disse, mas se o que me contou
naquela noite no meu apartamento realmente aconteceu entre vocês…
— Foi só uma vez, e…
Alex se recostou com força na cadeira, os braços cruzados.
— Você está se ouvindo? Uma vez só já é demais. Então, por que protegê-
lo? Ainda mais quando você agora sabe que tipo de homem ele é e do que é
capaz? — Alex se inclinou sobre a mesa. — Quando você sabe que isso faz
parte dele.
Nicole piscou.
— Então, o que você quer que eu faça?
— A questão não é o que eu quero. É você fazer o que deveria ter feito
meses atrás para proteger outras mulheres de homens como Jamie. E, sim —
esta seria a parte complicada —, significaria se expor um pouco. As pessoas
saberiam o que Jamie fez com você; bem, o RH pelo menos. Mas não
precisariam saber sobre o que veio antes.
Nicole estava negando com a cabeça.
— Não, não. Isso não pode acontecer. Olha só, contei para o Ben hoje que
estava saindo com outra pessoa. Se eu acusar meu chefe de… Não, não posso
deixar que Ben fique sabendo.
— Ele não vai nem descobrir. Você sabe quão secretas as reclamações
desse tipo são? No momento da acusação você se torna uma vítima:
protegida. E é assim que deve ser. Por isso, mesmo que Ben de alguma forma
acabe descobrindo, ele nunca, nem em um milhão de anos, pensaria que você
teve um relacionamento consensual com o Jamie. — Não teve a intenção de
soar sarcástica, mas Nicole deu uma risada seca. — Olha, eu não me importo
mais com o que você fez. Fomos todas enganadas por ele, seduzidas e depois
enganadas, não? — Alex deu um pequeno sorriso de encorajamento. — Mas
isso vai acabar com ele, sem dúvida.
— Eu entendo, mas… — Os olhos de Nicole se fixaram em algo na mesa,
e Alex interpretou a distração como a tontura induzida pelo álcool antes de se
lembrar do estado dos nós dos dedos de suas mãos agora, depois de outra
sessão de limpeza queimar a pele fina. — Suas mãos! — balbuciou Nicole.
— Alex, seu eczema. Você precisa ir ao médico, está bem feio.
— Como eu disse — Alex puxou a manga da camisa para baixo o máximo
que pôde —, parece pior do que é. Nicole, preciso que você se concentre.
— Eu estou concentrada.
— Ótimo. Então me escute: você já está bastante exposta, não é? Entende,
se eu sei sobre você e Jamie, então outras pessoas podem saber, não?
Nicole respirou fundo e assentiu.
— Tá. E você não pode estar achando que, depois do que aconteceu hoje,
dá para seguir como sempre na BWL, olhando Jamie nos olhos todos os dias,
sentando cara a cara com ele nas reuniões, brindando na festa de Natal. E,
quando ele começar outro caso, o que provavelmente já começou, bem
debaixo do seu nariz… digamos com aquela garota, Sophia…
— Isso não vai acontecer — disse Nicole baixinho. — Pelo que ouvi, ela
não quer mais saber dele.
Alex ergueu uma sobrancelha.
— Ele a levou para sair… e fez alguma coisa, foi direto demais. Assustou
ela, sei lá. E talvez… — Ela parou, tentou de novo. — Talvez não tenha sido
um acidente. Talvez ele goste de forçar a barra. Mas Alex: eu não vou sair.
Não quando me dediquei, passei anos para chegar onde estou. Não quando
mereço virar sócia da BWL. Não vou deixá-lo tirar tudo que ainda me resta.
Dois jovens parados no bar olharam para Nicole antes de voltarem, rápido
demais, a fitar as próprias canecas. E Alex observou aquela mulher, prestes a
passar de uma fantasia masculina a um fantasma, digerindo o perigo de sua
posição na vida. Alex não tinha nada a perder com a idade — ela sempre foi
invisível. E por mais sofrimento que isso tenha trazido a ela na adolescência,
estava grata por nunca ter que viver o tipo de perda que Nicole estaria
enfrentando agora. Uma perda da qual, por baixo de seu asco com a ideia dos
“últimos anos bons” de uma mulher, ela estaria muito ciente.
— Eles vão precisar encontrar outro sócio — continuou Alex. — Para
substituir Jamie, quero dizer.
Nicole olhou para ela.
— Aham. E aí vão me dar o trabalho de Jamie? E quanto à polícia? E se
ele for preso e eu tiver que provar ou alguma coisa assim?
— Eu prometo que você será protegida. De jeito nenhum a empresa vai
querer que tudo isso se torne público ou envolva a polícia. Só você pode
decidir isso. Do ponto de vista legal, eles não são obrigados a fazer, lembra?
Não, a menos que você queira prestar queixa, o que não vai querer. E se
decidir chamar do que foi, ou algo menos explícito, um assédio, talvez, Jamie
será mandado embora, como deveria ter acontecido há muito tempo, por
motivos que muitas pessoas já sabem. Mas os verdadeiros motivos para sua
“saída” serão mantidos por debaixo dos panos. Acredite em mim, é mais do
que perfeito, é a coisa certa a fazer.
Quando Alex terminou de explicar o resto, Nicole apenas assentiu.
— Preciso deitar.
Nicole ficou em silêncio enquanto Alex a escoltava para fora do pub e a
ajudava a entrar em um Uber à espera. Depois que a porta foi fechada, e Alex
voltou a atenção para Katie, apertando o cobertor em volta de seu corpinho
inquieto no ar frio da noite, ela ouviu o barulho da janela sendo aberta atrás
dela.
— Depois disso, chega — disse Nicole. — Você tem que me prometer.
Nada mais de tramas, de planos. Chega.
Alex ficou feliz que um único aceno rápido de cabeça tenha sido suficiente
para amenizar o pânico nos olhos de Nicole. Poderia nunca a entender, mas
havia se afeiçoado a ela, Alex percebeu. E não gostaria de mentir
descaradamente para ela.
CAPÍTULO 27
JILL
– C omoBem
assim, você não pode me dizer? Não pode me dizer por quê?
antes de a raiva abafada de Jamie atravessar as paredes de
vidro da sala dele, Jill soube que alguma coisa estava acontecendo. Como
pássaros pousados em um arame, a fileira de topógrafos juniores se movia
para a esquerda e para a direita pela longa linha de mesas em frente aos
elevadores, trocando informações com acenos de certeza e pios de descrença.
Era uma cena que ela já tinha testemunhado antes, mas em geral na manhã
seguinte às grandes festas de escritório.
Talvez por nunca ter sido alvo de fofoca, mesmo quando jovem, Jill não se
opusesse tanto a isso quanto Paul e Jamie. Na verdade, ela sempre gostara em
segredo. Algumas afirmações estridentes se elevaram acima do chilreio
coletivo — “Amy diz que ele sempre foi um tarado com ela, até apertou a
bunda dela uma vez”; “Desculpe, mas isso é mentira, não acredito em uma
palavra!” — e ela fez uma anotação mental para perguntar para Kellie qual
dos corretores de meia ou gravata espalhafatosa estava se comportando mal.
Isso acabou não sendo necessário. Ao se aproximar de sua sala, ouviu
Jamie levantar a voz e identificou à primeira vista que eram Ross e Jayne do
RH sentados em frente a ele.
— Eles estão lá há quase uma hora — sussurrou Kellie. — Paul estava
tentando falar com você. Estão dizendo que alguém o acusou de assédio.
Jill tirou o celular da bolsa: quatro chamadas não atendidas. Havia se
esquecido de ativar o som quando saiu do hospital naquela manhã. Sua mente
voltou aos lábios carmesins de Nicole, amargos e finos: “Não vou denunciá-
lo. Ponto-final.” Mas, se ela não tinha denunciado Jamie, parecia que outra
pessoa o fizera.
— Droga. — Então, ciente do silêncio e dos rostos virados para ela: —
Cancele minhas ligações, está bem? Cadê o Paul?
— Na sala dele.
— Minha nossa.
Paul não se afastou da janela quando a ouviu entrar; ficou ali de costas
para Jill, olhando para o emaranhado feio e cinza do viaduto de
Hammersmith abaixo.
— É uma confusão dos diabos.
— Sim. Desculpa. O celular estava desligado.
— O que você sabe?
— Nada. Acabei de ficar sabendo.
Ele se virou.
— Eles estão suspendendo Jamie, com efeito imediato. Estão dizendo isso
pra ele agora.
Jill só conseguiu assentir.
Afundando de volta em sua cadeira, Paul olhou para o nada.
— É ruim, Jill, muito ruim. As palavras que o RH está usando… Nós dois e
a empresa precisamos nos afastar disso. Imediatamente.
O que quer que Jill esperasse, não era isso. Paul sempre apoiara Jamie,
sempre o defendera.
— Pensei que você e Jamie…
— Eu e Jamie o quê? Saímos para uma cerveja de vez em quando?
Jogamos golfe vez ou outra? Bem, eu não vou ser arrastado para essa
confusão, eu já lhe digo. Você entende como alegações desse tipo são
tóxicas?
— Estou ciente.
— Os jornais ficam sabendo e de repente começam a usar a palavra
“endêmica”, falando sobre uma “cultura de assédio” e pintando a BWL como
uma espécie de “Clube do Bolinha”. Para você tá tudo bem, Jill, porque é
mulher.
Em qualquer outra circunstância, ela teria rido da declaração.
— Não estou entendendo.
— Sou o único outro homem na sociedade, não sou?
Jill não teve tempo de se impressionar com quão egocêntricas as pessoas
ficavam com o medo, com a rapidez com que aquele instinto de pura
autopreservação é ativado, eliminando qualquer lealdade anterior.
— Mesmo que eu não seja arrastado nesse nível — continuou ele —, se
isso vazar, quem vai querer fazer negócios com a gente? Não posso me dar ao
luxo de levar um golpe agora. Não com o divórcio a ponto de me tirar tudo.
— Nós sabemos quem é a mulher?
Paul a encarou.
— É Nicole Harper. Achei que você soubesse.
Ela tentou engolir.
— Não. Eu… Certo.
— Mas Jamie não sabe disso. O RH não está dando detalhes até que ele
esteja fora do prédio, e é aí que devem apresentar as alegações contra ele,
imagino. Mas, por enquanto, só você e eu podemos saber que houve uma
reclamação.
— As pessoas já sabem, Kellie e outros. Eu ouvi comentários no caminho.
— Merda.
Era culpa dela? Culpa dela por não ter relatado a perseguição sobre a qual
Nicole lhe contara, uma perseguição que levou a um assédio?
— No momento, é claramente a palavra dela contra a dele. Mas sabemos
que ela não quer prestar queixa, o que é… útil, para nós, quero dizer.
Eles caíram em um silêncio sombrio.
— O RH disse mais alguma coisa? — perguntou ela depois de um tempo.
— Até que investiguem as alegações por completo, não podem nos dizer
muito mais. Mas Ross disse que muitas vezes há um padrão de
comportamento nesses casos, e quando uma mulher faz uma denúncia…
— Meu Deus.
— Então, temos isso para aguardar ansiosamente.
Paul cutucou uma área ressecada do couro cabeludo.
— Sabe, é alguém que conhecemos, em quem confiamos e com quem
trabalhamos há anos! Você… — Ele apontou para ela e então, percebendo o
quão acusatório parecia, deixou a mão cair sobre a mesa. — Bem, você o
conhece melhor do que eu. Vocês dois eram amigos, amigos de verdade. E
sei que ele gosta de mulheres, mas… Jamie não é o tipo de homem que faz
isso, é?
— Não faço ideia do tipo de homem que Jamie seja. — Pouco tempo atrás,
Jill teria sido incapaz de esconder a tristeza de sua voz. Agora era como se
estivesse falando sobre um estranho. — Eu não disse nada para você, mas nos
últimos meses o comportamento de Jamie tem andado muito estranho. Coisas
das quais eu não sabia antes vieram à tona. — Ela pensou no e-mail. —
Incompetência. Deslealdade. E agora a revisão interna. E eu suspeito que ele
vinha sendo muito franco com você ultimamente sobre o que achava de mim.
Mas nada chega aos pés disso. A gente deveria ter imaginado, não é? Talvez
apenas não quisesse ver.
Mas Paul estava balançando a cabeça.
— Não. Não vou levar a culpa. É disso que estou falando! E nós dois
sabemos que não dá para se recuperar disso. Seja verdade ou não, não
importa. A merda não só gruda, ela mancha. Precisamos tirar Jamie de cena.
De vez.
O que a velha Jill faria? A Jill que lidaria até com as piores “surpresas”
profissionais da maneira mais racional e eficiente possível.
— Acho que temos que deixar nossos sentimentos de lado e começar a
preparar uma declaração caso precisemos declarar algo publicamente.
Foi quando estavam no primeiro rascunho, ambos ainda desejando com
fervor jamais precisar usá-lo, que o som da voz erguida de Jamie os colocou
de pé. Tinham ouvido uma ou duas explosões mais altas desde que Jill viera
para a sala de Paul, mas esta veio do meio do escritório.
— Lá vamos nós. Mas ouça, acho que é melhor nenhum de nós se
envolver e deixar Ross fazer o trabalho dele.
Distraída demais pelo confronto público que agora ocorria entre Jamie e
Ross do lado de fora, no meio do escritório, Jill só conseguiu assentir.
A cena teria sido cômica — o diretor do RH era quase meio metro mais
baixo do que Jamie e muito mais redondo — se a situação não fosse tão séria.
— É uma pergunta simples. O que Pete está fazendo aqui?
Eles estavam do lado de fora da sala de Jamie, e, ao esticar o pescoço, Jill
pôde ver que o maior e mais benevolente dos três seguranças da BWL estava
de pé, um pouco mais afastado ao lado de Jayne, a braço direito loira e mais
imponente de Ross.
— Podemos ter essa conversa na sua sala?
Como que para lembrá-lo a direção de sua sala, Ross estendeu o braço e
Jill ficou surpresa pela onda de antipatia que sentiu naquele momento, não
por Jamie, mas por seu obsequioso diretor de RH. Quantos anos ele devia ter
passado vendo aquele homem bonito e carismático dominar o escritório?
Agora era o seu momento. A situação talvez o divertisse.
— Já conversamos, Ross — ela ouviu Jamie contra-atacar —, e ainda não
sei de nada, a não ser que supostamente ataquei… ataquei… uma
funcionária.
Qualquer que tenha sido a resposta da gerência de RH em seguida,
provocou uma nova explosão.
— Você não pode esperar até eu sair? Tem que fazer isso agora? Não.
Desculpe. De qualquer forma, quero meu casaco.
Havia mais de cem pessoas no andar, mas, exceto pelo toque de um ou
outro telefone e o zumbido da fotocopiadora, o lugar estava silencioso, todos
os pescoços tensos, todos os olhos grudados na tela sem enxergá-la.
— É sério que você não vai me deixar pegar meu casaco? O que você acha
que vou fazer lá? — Jamie olhou de Ross para Jayne. — Deletar toda a
pornografia do computador?
Depois de alguma ordem murmurada que Jill não conseguiu ouvir, Pete
entrou rapidamente no escritório de Jamie, ajoelhou-se e desapareceu debaixo
da mesa — reaparecendo segundos depois com um cabo nas mãos.
— Certo, já chega, vou ligar para meu advogado. Isto é… inaceitável. —
Jamie usava aquela linguagem pateticamente autoritária de novo, como se
acreditasse que poderia se salvar ou alguma imagem de dignidade com
formalidades profissionais. E Jill sentiu a crescente inquietação contra a qual
vinha lutando desde o início da conversa com Paul se reafirmar. Algo estava
errado, e não de uma maneira óbvia. Não, era a reação de Jamie que estava
errada. Porque, por mais que Jill tivesse começado a questionar o quão bem o
conhecia, aquele homem estava sinceramente surpreso com as acusações
feitas contra ele.
— Ashley, pode ligar para Simon Oliver? Agora. E não quero saber se ele
está almoçando ou no clube. Diga que preciso que me retorne imediatamente.
Mas os olhos de sua assistente estavam fixos no computador de Jamie, que
era carregado para fora da sala.
— Ashley?
Enquanto a pobre garota piscava para ele, então para Ross, Jill se
perguntou se ela ia cair no choro.
— Eu… eu…?
Ross balançou a cabeça para ela.
— Não posso ligar para meu advogado? — Jamie olhou em volta, agitado.
— Isso está mesmo acontecendo? Ei, meninas, me ajudem aqui? — Jamie
havia ido para o eixo central, os braços estendidos. — Deve ser uma de
vocês. Não precisa ficar tímida. A não ser… Espera, a não ser que vocês
também não se lembrem. Porque não me lembro de ter atacado ninguém. E
não é o tipo de coisa que você esquece, não é?
A camisa de Jamie escapara para fora da calça na parte de trás e seu cabelo
estava todo bagunçado para cima.
— Foi você? — perguntou ele a uma agente júnior, que olhava com
atenção para seu computador. — Por acaso eu abri a porta de um jeito que te
deixou “desconfortável” ou falei que gostei da sua saia? É uma saia muito
bonita. Posso dizer isso? Ou é um “ataque verbal”? Provavelmente. —
Quando não houve reação, Jamie começou a balançar as mãos na frente do
rosto dela. — Oi! Oi! Estou falando com você! — o que a fez se sobressaltar
alarmada e todas as mulheres próximas ficarem imóveis para não serem
notadas e perseguidas. — Vamos lá! Ninguém vai confessar ter sido atacada
por mim? Uma de vocês chega com uma mentira, uma palhaçada que, aliás,
eu não posso nem saber qual é, e de repente eu virei a porra do Harvey
Weinstein? Cadê a prova…? Cadê a prova?
Pelo canto do olho, Jill viu Ross, ladeado por Pete, indo rápido em uma
diagonal em direção a Jamie.
— Ah, é, eu esqueci, não precisamos mais de provas, não é? Porque se
uma mulher diz, se é a verdade dela, então é a única verdade.
— Já chega, Jamie — disse Ross, acrescentando outra coisa que ela não
conseguiu ouvir.
— Pior? Como isso poderia ficar pior? Você inventa que sou um tipo de
predador que ataca mulheres; não só mulheres, mas minhas funcionárias; e é
para eu simplesmente desaparecer em silêncio, sem saber quem foi?
— Jamie. — Ross estendeu a mão para dar um tapinha no braço dele antes
de refletir, e por um segundo Jill teve o pensamento absurdo de que Jamie
poderia dar um soco nele. — Como explicamos, as alegações serão
esclarecidas em seu devido tempo.
A um sinal de Ross, Pete se aproximou e segurou o braço de Jamie com
uma mãozona.
— Vamos lá, meu amigo, está na hora de ir.
— Amigo? — Jamie deu um passo teatral para trás. — Ainda sou seu
amigo, Pete? Eu era seu amigo quando você me deu o currículo da sua filha e
me pediu para procurar um estágio para ela, não foi? Eu com certeza era seu
amigo quando arranjei para ela aquela vaga temporária na salinha dos
correios. E agora não sou mais. Na verdade, você quer me jogar na rua.
— Você precisa ir e esfriar a cabeça.
— Porque tudo vai parecer melhor amanhã de manhã? Acho que não. Mas
vou embora… depois de pegar meu casaco.
Jamie deu um passo em direção à sala dele e Pete também, barrando o
caminho do chefe.
— Não faça nenhuma besteira, Jamie.
— Pete está certo. Já basta. Entendo que a situação seja desconcertante.
Para todos. Mas agora precisamos que você vá embora.
Apesar de tudo, Jill sentiu uma onda de vergonha alheia por seu antigo
amigo quando Pete, com a mão firme no braço de Jamie, o “levou” até o
elevador para sair.
Foi então que todo o andar pareceu soltar a respiração em uníssono. E
depois que os murmúrios diminuíram — um exame adequado da situação
seria feito no pub mais tarde —, todos voltaram ao trabalho. Todos, exceto
Jill, que ainda estava ali, com a mão na maçaneta, na sala de Paul.
— Paul?
— Oi? — O parceiro dela estava curvado sobre a mesa, a cabeça entre as
mãos.
— Não perguntei antes porque estava com vergonha. Porque eu tinha
certeza de que sabia a resposta e que alguém estava pregando uma peça em
mim. Mas Jamie por acaso enviou para você um e-mail, um tempo atrás,
referindo-se a mim como “VSQ” e — ela se contorceu — “senil”, sugerindo
que eu não passava mais “a imagem certa” para a empresa, esse tipo de…?
A maneira como Paul se mexeu na cadeira, sua recusa em olhá-la nos
olhos, a fez parar de falar.
— Tivemos uma breve troca de e-mails, uns quatro ou cinco meses atrás,
na qual ele, hã, me disse que estava preocupado com você e achava que você
deveria tirar uma licença. Mas “senil”? Ele nunca usou uma palavra dessas
em nenhuma mensagem para mim. E “VSQ”? O que isso quer dizer?
O alívio a fez sorrir.
— Deixa pra lá. Deve ter sido… uma brincadeira. — Alex. Devia ter sido
Alex.
É claro que Paul não reagira às palavras grosseiras de Jamie naquele e-
mail porque aquele linguajar só tinha sido adicionado mais tarde, quando o e-
mail estava sendo editado — por uma ex-assistente vingativa.
— Mas eu deveria te dizer — lá estava aquele olhar suspeito de novo —
que houve uma carta enviada ao conselho, sugerindo que você fosse…
— Aposentada?
— Tentei convencer Jamie a desistir e me recusei a participar. Mas ele
estava preocupado que a doença de Stan estivesse cobrando seu preço. Ele
falou disso algumas vezes para mim. — Paul corou. — E para outros,
infelizmente. Atribuí a atitude ao ego dele: Jamie sempre quer… sempre
quis… ser o macho alfa, não é?
Talvez fosse simples assim. Jamie não era o homem que ela pensava que
ele fosse, e o fato de ele ter escrito aquela carta era mais do que traiçoeiro;
era imperdoável. Porém, se as palavras naquele e-mail foram manipuladas
para fazê-lo parecer pior do que de fato era, como Jill poderia ter certeza de
que Nicole não estava fazendo a mesma coisa agora? Se o relato dela tinha
sido exagerado, isso não tornava a punição que decidiram infligir a ele pior
do que o crime em si?
Ela já estava na metade do caminho de volta para sua sala quando Paul
gritou:
— Jill, por que a pergunta?
Uma vez em sua mesa, ela enviou um e-mail.
Para: Raxugdy@sharklaser.com
De: Jill Barnes
Eu sei que você alterou aquele e-mail. O que mais você fez, Alex? O que mais?
De: Raxugdy@sharklaser.com
Para: Jill Barnes
Um brinde a derrubar um homem não tão legal.
CAPÍTULO 28
NICOLE
– A indaRupert
não está visualizando bem?
Jones se moveu devagar e em silêncio ao redor da galeria,
massageando a lateral do pescoço com os nós dos dedos enquanto olhava
para cima e para baixo em direção às quatro fileiras de camarotes dispostas
em um semicírculo ao redor do palco. Os camarotes, e o ainda surpreendente
teto trompe l’œil, não importava quanto tempo passasse o admirando, sempre
foram as características mais impressionantes do teatro a seus olhos. Mas
depois da reunião com o conselho do departamento de planejamento na
semana anterior — uma reunião em que um número alarmante de limitações
inesperadas foi imposto ao desenvolvimento estrutural da propriedade —,
Nicole tinha sentido uma queda acentuada no entusiasmo de Rupert.
Cabia a ela deixá-lo empolgado de novo, mas, depois de uma noite insone
no hotel e da ligação para o RH que finalmente teve coragem de fazer naquela
manhã, Nicole não sabia se ainda tinha forças. No entanto, precisava fechar o
negócio.
— Originalmente, os camarotes tinham suas próprias entradas nos lados
norte e sul — informou ela com uma alegria que achou fisicamente dolorosa
de simular. — Ao que parece, os teatros da época tinham sempre essa
disposição, uma entrada para o rei…
— … E outra para o Príncipe de Gales — murmurou Rupert, olhando para
o arco do proscênio. — Sim. Eu também li o relatório.
— Claro que sim. — Nicole desejou ter parado para comprar o ibuprofeno
de que tanto precisava no caminho até ali. A parte de trás de seu crânio doía
depois de toda a bebida da noite anterior, e não tinha consumido nada além
de café preto no café da manhã. — É tudo muito fascinante, não é?
Fascinante? Seu telefone zumbiu alto na bolsa. Ela o colocara para vibrar
depois das duas primeiras chamadas perdidas e agora se arrependia de não tê-
lo desligado de uma vez.
— Desculpa.
— Atenda.
— Não, não. De qualquer forma, você ouviu o que o planejamento disse
sobre levar o palco para trás, então é uma grande vantagem, mesmo que…
— É basicamente a única alteração estrutural que tenho permissão de
fazer.
— Bem, eles não disseram exatamente isso — rebateu ela, sorrindo,
embora fosse verdade. — Mas eles poderiam ter sido mais prestativos, eu
concordo. Ainda estou convencida…
Um zumbido mais insistente quando uma mensagem de voz foi recebida.
— Alguém realmente quer falar com você.
Ele se virou, e Nicole aproveitou a oportunidade para pegar o celular na
bolsa e verificar se era Ben, finalmente retornando suas ligações. Mas Rupert
escolheu aquele momento para falar:
— Não vou mentir: aquela reunião da semana passada mudou as coisas.
— Claro que sim. — Ela se sentia repetitiva e lenta, incapaz de fazer seu
trabalho e, ainda assim, perfeitamente ciente de como era importante fechar o
negócio antes de deixarem o local. Do contrário, Rupert não fecharia, ela
tinha certeza disso. E, no entanto, havia algo humilhante sobre essa parte de
seu trabalho, lembrando-a, como sempre, de que não passava de uma
vendedora, fixando-se na indecisão daquele momento crucial antes de se
solidificar em um “não”.
— Olha, tenho certeza de que você, dentre todas as pessoas, consegue
encontrar uma maneira de contornar essas coisas. E, na verdade, manter o
lugar do jeito que está, com as restaurações necessárias, claro, vai apenas
aumentar o charme, não? — Ela estava entrando em desespero e ele sabia
disso. — Este lugar é tão original! Quer dizer, eu nunca vi nada assim.
A expressão facial de Rupert estava irredutível. Estava na hora de
aumentar a aposta.
— E preciso dizer, recebi uma ligação de outro possível comprador. Claro
que posso evitar outras visitas à propriedade por, bem, uma semana, talvez
dez dias, se necessário? — Ela fingiu o constrangimento profissional que
teria sentido se estivesse dizendo a verdade. — Mas em algum momento terei
que dar um retorno e dizer se ainda está disponível ou não.
Rupert sustentou o olhar dela por um segundo, divertindo-se com a falta
de jeito de sua tática.
— Outro possível comprador, hein?
— Isso mesmo. — Quanto mais se mente, mais fácil fica. E agora cada
frase que Nicole abria a boca parecia estar cheia de mentiras. — Mas consigo
um tempinho. Digo, no segundo em que vi este lugar, pensei: “É a cara do
Rupert.” E vim falar com você primeiro porque sei que está procurando um
local no noroeste tem, não sei, uns 18 meses… ou mais?
Por cima da balaustrada, ela vislumbrou a curva da primeira fileira de
poltronas das cadeiras Ambassador. 8A: aquele era o número — branco sobre
preto — para o qual ela tinha olhado depois, enquanto estavam deitados. E,
por um momento, se viu de cima junto a ele: ofegantes e satisfeitos no tapete
gasto. O lugar pareceu abafado, a umidade a pinicando na axila e entre os
seios, trazendo o cheiro do suor da véspera. Ela não tinha pensado em levar
uma troca de roupa para o hotel, apenas em sobreviver ao jantar. Porque
depois nada mais importaria: depois, só haveria ela e Jamie.
— E como eu ia dizendo… — Distraída com a acidez do próprio hálito,
Nicole se esqueceu completamente do que estava dizendo. Não ajudou que
Rupert a estivesse examinando daquele jeito.
— Você está bem? Parece… — Ele fez um gesto vago com a mão em sua
direção, e ela sentiu uma pontada de vergonha de como devia parecer
desalinhada, da blusa amarrotada à maquiagem aplicada no metrô. Estar
impecável era parte de quem ela era; hoje Nicole se sentia como se estivesse
desmoronando.
— Desculpe, Rupert. Sabe, eu estou… Na verdade, não estou me sentindo
muito bem. Você se importa se eu for ao toalete um segundo? Assim você
tem tempo para olhar um pouco mais?
No banheiro mal iluminado, ela procurou por uma cabine limpa o
suficiente onde pudesse se sentar, mesmo que por um segundo, antes de
desistir e afundar no chão, as costas na parede. Com dedos trêmulos, ela
pegou o celular, olhando para a imagem do protetor de tela como se as duas
pessoas na imagem não tivessem nada a ver com ela. Syon Park, um domingo
gelado, sete… não, oito meses atrás. Chloe nos ombros de Ben, mal se vendo
o cachimbo de bolhas de sabão que ela comprara para a filha no caminho na
mão da menina. A repreensão afetuosa de Ben à esposa, quando ela insistiu
que visitassem a loja de presentes primeiro: “Você nunca consegue esperar,
não é?” E sua culpa ao interpretar a frase, sabendo que havia enviado uma
mensagem a Jamie provando exatamente isso no caminho até lá: Me diga que
consegue escapar amanhã? Preciso de você.
Ross, o diretor do RH, tinha ligado duas vezes e deixado uma mensagem de
voz que ela não teve forças para ouvir. A terceira mensagem, no WhatsApp,
era de Anita, uma colega do setor de Desenvolvimento de Projetos. O
relacionamento das duas sempre se limitara a pausas para um cigarro
eletrônico e fofocas de celebridades em uma rua secundária de Hammersmith
atrás do escritório cheia de lixo. Nunca tinham saído para beber juntas ou
entrado em contato por qualquer meio que não o e-mail. Meu Deus — você
ficou sabendo?, dizia a mensagem dela. Jamie foi suspenso!
Ela sabia que isso aconteceria. Do silêncio de Ross do outro lado da linha
depois que ela arrastou os preâmbulos sem sentido o máximo que pôde e, por
fim, conseguiu proferir aquela frase, recitá-la, na verdade, porque era essa a
sensação. Basta dizer a primeira frase e o resto vem, porque precisa vir: você
não tem escolha depois de as primeiras palavras serem ditas.
— Ross, estou ligando para relatar um assédio. Jamie, ele me assediou.
Ela sabia que ele seria suspenso, porém, foi só enquanto assentia
silenciosamente às instruções de Ross para escrever um e-mail com uma
declaração “incluindo todos os detalhes que você lembra sobre o ocorrido”,
as transformações começaram a ser absorvidas.
— Sei que pode ser difícil para você — ele havia dito, mais profissional
do que tranquilizador, como uma mulher no cargo dele sem dúvida teria sido
—, mas também é vital em termos de como procederemos a partir daqui.
— Mas eu não quero prestar queixa — ela se apressou em dizer, em
pânico. — Não quero envolver a polícia. Não posso… passar por nada disso.
— Alex havia jurado que não seria necessário, mas ela precisava ter certeza.
— Eu não tenho que fazer isso, tenho? — Ela estava parada na janela do
quarto de hotel observando os mesmos turistas da véspera raspando o
finalzinho de seus ovos Benedict, enquanto ela estava na ligação. Enquanto
assistiam a um espetáculo no West End ou faziam o que quer que as pessoas
viessem a fazer em Londres, ela afundava sua vida. E agora faria o mesmo
com a de Jamie.
— Neste momento, a declaração vai ser vista apenas por nós — enfatizou
Ross. — E será seguida de uma investigação. Mas Nicole: vamos precisar
que você fique fora do escritório hoje enquanto lidamos com isso.
— Claro.
Ross então disparou a falar sobre a confidencialidade do processo e sobre
“minimizar as especulações dos colegas de trabalho”, e o tempo todo Nicole
teve a sensação curiosa de cair em um poço sem fundo.
— Nicole? Você ainda está aí?
— Estou.
— Não preciso dizer que não deve haver contato direto com o acusado.
— Sim. Quer dizer, não. Não vou entrar em contato com ele.
O acusado. Como se estivesse num drama de TV. Ela pensou nos CEOs,
ministros e atores que foram demitidos à primeira menção de
“impropriedade”, que dirá assédio, nos primeiros meses do Me Too. “Não me
foi dito o que supostamente fiz”, dissera um deputado. E naquela época
Nicole não tinha acreditado que isso pudesse ser verdade. Naqueles
pensamentos casuais que o noticiário pode provocar, ela se perguntou sobre
as esposas e os filhos: tinham sido pegos de surpresa? Os sussurros nos
portões escolares foram ruins o suficiente para fazê-los mudarem de escola
ou as crianças também foram consideradas vítimas e recebidas com empatia?
Aquela palavra — acusado — a obrigou a pensar na pessoa que havia
afastado de sua cabeça desde o início: Maya. Quanto tempo até ela descobrir?
E será que seria uma daquelas mulheres que negavam a verdadeira natureza
do marido? O tipo que você vê nos jornais orgulhosamente de mãos dadas
com um pedófilo do lado de fora do tribunal? Claro, Jamie podia confessar
um caso. Dizer que não era um santo e não importava quem fosse a mulher,
porque nunca significou nada, mas ele não era um monstro — e não tinha
feito aquilo.
Alex a tinha avisado que poderia sentir pontadas de culpa, mas que, toda
vez que sentisse isso, ela deveria se obrigar a lembrar: “Eu disse não.” E se
ela podia fazer Jamie sentir até mesmo um pingo do sofrimento fluindo por
ela agora, então era a forma mais pura de justiça.
Rupert devia estar se perguntando por que ela estava demorando tanto.
Apoiando-se na pia para ficar de pé, Nicole se debruçou sobre a torneira e
jogou água no rosto. Tarde demais, se lembrou da maquiagem nos olhos e
ficou parada por um momento, paralisada pelas gotas que escorriam por seu
rosto como lágrimas lamacentas.
Quando terminou de limpar o rosto e respirou fundo duas vezes diante do
espelho, Rupert já tinha visto as galerias e a esperava do lado de fora, no átrio
do teatro.
— Rupert, sinto muito. Eu realmente estava me sentindo um pouco mal,
mas estou bem melhor agora.
Ele ergueu os olhos do celular, tentando mascarar a irritação. E ela se
perguntou qual teria sido a última vez que Rupert Jones fora obrigado a
esperar.
— Eu estava pensando em levá-lo para comer alguma coisa? Isso nos daria
a chance de elaborar um plano e levá-lo de volta ao conselho e…
— Acho que não.
Ele respondeu tão baixinho que, por um momento, Nicole torceu para ter
ouvido errado. Porque não era só “não” para um almoço, ela sabia. Era “não”
para a venda — não para tudo. E por que isso importava tanto agora, Nicole
não tinha certeza, exceto que a sensação de queda estava de volta, como se
tudo que importava estivesse escapando de suas mãos.
— Rupert…
Em sua persistência, o zumbido parecia estar ficando mais alto, e enquanto
ela enfiava a mão na bolsa e procurava o celular entre os detritos de sua vida
— batons, canetas, pós compactos, baterias descarregadas e cabos elétricos
misteriosos —, Rupert se virou com um aceno e saiu porta afora.
Se o rosto de outra pessoa tivesse aparecido em sua tela naquele momento,
Nicole poderia ter jogado o aparelho contra a parede, mas era seu marido, era
Ben, e o alívio a deixou tonta.
— Ben. Finalmente. Estou tentando falar com você a manhã toda. Por
favor, por favor, podemos conversar? Onde você está? Posso ir ver você
agora? E a Chloe, como ela está?
Ela teria continuado se Ben não a tivesse interrompido em um tom grave e
comedido:
— Seu chefe, Jamie, está sentado na nossa cozinha. E ele está caindo de
bêbado.
CAPÍTULO 29
ALEX
“E
le está fora. Suspenso sem previsão de retorno.”
Alex tinha passado a manhã toda esperando a ligação de
Nicole, checando o celular tantas vezes na primeira meia hora
da aulinha para bebês que por fim a instrutora lhe deu uma bronca por “não
estar presente no seu momento mãe”.
Sem ter recebido nenhuma ligação ao término da aula, Alex começou a
questionar se Nicole tinha conseguido levar o plano adiante. Mas o efeito
calmante de Maya era tal que, caminhando junto a ela em direção à casa de
Maya para o almoço, Alex esquecera o celular no bolso do casaco até aquele
apito abafado; até as palavras que esperara meses, não só horas, para ouvir.
— Notícia boa? — perguntou Maya depois de uma conversa curta em que
Nicole deu a notícia, junto s outro fato: “Ele está fora, e parece que está
enchendo a cara em todos os bares de Hammersmith, pelo que falaram.”
— A melhor possível. — Alex sorriu. — Não vou encher seu saco com
detalhes. Mas não é ótimo quando um plano funciona?
Maya nem se preocupava mais em convidar Alex para o almoço depois da
Bumps & Babies. Era um acordo entre as duas que, duas vezes por semana,
sem falha, elas seguiriam para a casa de Maya, muitas vezes passando pela
Turnham Green Terrace. Às vezes, quando Maya precisava fazer algo ou
Alex tinha percebido que Maria chegaria mais cedo, ela ficava só uma ou
duas horas, sabendo que um segundo encontro com a babá talvez fosse o
gatilho para uma lembrança definitiva. Mas em outras ocasiões passava a
tarde inteira lá.
Ficou mais grata pela distração do que nunca, tendo enfim se forçado
naquela manhã a ligar para a mãe e dizer que não ia conseguir pagar o
empréstimo a tempo: que tinha perdido o emprego, que era mesmo a
decepção que o pai sempre a considerara. Ela ainda ouvia o pânico na voz da
mãe — “Mas o que eu vou fazer? O que vou falar para ele?” —, e sua
resposta fraca: “Desculpa, mãe. Desculpa mesmo.”
Mas ela não podia pensar nisso agora. A única coisa que importava era que
Jamie estava fora. O plano tinha funcionado. E isso: o barulho dos pratos
sendo empilhados por Maya na cozinha, a soneca que as meninas tirariam em
breve, e as horas preguiçosas de vinho e bate-papo que as duas aproveitariam.
Ela não estava preocupada com a possibilidade de Jamie voltar para casa.
Já tinha visto o ex-chefe fazendo a peregrinação dele em bares antes, e essa
com certeza seria ainda mais prolongada que a maioria. E também, como
Maria ia levar Christel para uma festa de aniversário depois da escola, isso
significava que Alex tinha a maior parte da tarde à sua frente, e ela se deitou
na esteira que Maya tinha estendido na grama para elas, tentando não pensar
na tristeza que sentia ao sair daquela casa e voltar para a sua, vazia, como a
sua vida. Cada vez mais aquela tristeza se transformava em algo
profundamente pior, com Katie chorando de soluçar e sentindo o mesmo, e
Alex sem conseguir fazer o necessário para acalmá-la.
Olhando para Maya agora, enquanto ela se curvava sobre as meninas, o
vestido de verão rosa claro decotado que ela usava escorregando para revelar
seios firmes envoltos em um sutiã de algodão branco, Alex se maravilhou
novamente com aquela tranquilidade sobrenatural. Ela conhecera mulheres
serenas e centradas, mas esses atributos em geral vinham às custas de outros,
tornando-as chatas ou pedantes.
— Não sei como você faz isso, acalmar Katie só de estar por perto. —
Alex se moveu alguns centímetros para ficar com o rosto na sombra. — Às
vezes ela está totalmente doida e é só olhar pra você que… — Ela balançou a
cabeça. — Você parece uma encantadora de bebês.
Maya se sentou à mesa, se equilibrando nos ombros de Alex ao fazê-lo.
— Que legal você dizer isso. Acho que ela só estava com um pouco de
cólica. Mas já está melhorando, não está, bebezinha? Estou mais preocupada
com essas suas queimaduras, Lexie. E sabe de uma coisa? Eu já fiz quase a
mesma coisa, quase enfiei a mão no forno sem colocar as luvas.
Alex tinha se esquecido da gaze que começou a enrolar nas mãos para
tentar conter os olhares e as perguntas. Ela havia esquecido também qual era
a história exata de queimadura que contou a Maya uma semana antes.
— Ah, na verdade está quase bom. Já quase não sinto. Talvez seja seu
suco de uva francês que esteja ajudando.
Uma caixa do rosé favorito de Maya chegara no fim de semana — um
presente do “marido encantador, mas levado, que tem algumas compensações
para fazer” — e Alex se permitiu ficar um pouco altinha durante o longo
almoço. “Como assim, você nunca bebeu Minuty?”, questionou Maya ao tirar
a garrafa da geladeira, colocando alguns cubos de gelo em cada copo. “Vai
mudar sua vida!” E na boca de qualquer outra pessoa teria sido um clichê
horrível, mas na de Maya — com seu leve sotaque — tinha o charme de uma
frase adulta imitada por uma criança. E, sim, o vinho era bom, mas tinha sido
Maya que mudara a vida de Alex.
Uma brisa suave soprou uma rajada de pétalas cor-de-rosa sobre as
meninas, e as duas mulheres se entreolharam e riram.
— O que será que elas pensam de tudo? — murmurou Maya quando parou
de rir, amarrando o sling marrom como uma echarpe ao redor dos ombros. —
Da vida?
Ela balançou a cabeça, envergonhada por sua seriedade repentina. Mas
Alex assentiu, ávida para tranquilizá-la de que já tivera pensamentos
semelhantes, mesmo que não fosse o caso. Ainda assim, parecia um
seguimento natural e uma prova de que ela era o tipo certo de mãe ao sugerir
que elas também se deitassem ao lado das filhas e olhassem para o mundo —
que também tentassem vê-lo com novos olhos. Porque algo nisso parecia
novo para Alex, agora que Jamie fora derrubado e Jill tinha adivinhado que
tudo vinha dela — bem, de todas elas, na verdade. Não que o e-mail que a
fundadora da BWL tinha enviado para a conta anônima de Alex naquela manhã
a tenha incomodado. Elas planejaram tudo isso juntas, então ninguém diria
nada a ninguém.
— Ahhh. — Maya suspirou ao deixar a cabeça loira e macia recostar na
esteira. — Fiquei tonta.
— Bom, a gente bebeu uma garrafa inteira, né?
— Verdade. — Maya fechou os olhos. — Mas rosé… não conta, né? E já
é quase final da semana.
— Uma quarta?
— Tanto faz.
Maya ficou em silêncio, e por um momento Alex se perguntou se ela tinha
dormido, mas ao olhar para a amiga percebeu que seus olhos estavam abertos
e fixos na magnólia acima delas.
— Lex?
Alex se apoiou nos cotovelos.
— É o seu celular?
Mal dava para ouvir o apito vindo da mesa da cozinha, onde deixara o
aparelho.
— Acho que eu cochilei por um momento.
Alex entrou na cozinha pé ante pé, torcendo um pouco para que a pessoa
que estivesse tentando falar com ela tivesse desistido. E desistiu. Mas, assim
que ela leu as palavras na tela — “Ligação perdida: Nicole” —, o celular
começou a tocar de novo.
— Oi? — Ela estava grogue do sol e do vinho. Apoiando o celular no
ombro, pegou um copo no escorredor e encheu de água gelada da pia. —
Olha, eu estou meio enrolada…
Mas Nicole não estava ouvindo.
— Ele está… na minha casa… marido?
As frases de Nicole, interrompidas por ondas de estática como se ela
estivesse atravessando um túnel em alta velocidade, vinham em fragmentos.
Alex pensou em desligar e culpar o sinal.
— Não estou te ouvindo. Você o quê?
Enquanto Nicole continuava fazendo barulhos incompreensíveis, Alex deu
uma olhada pela janela da cozinha para a rua quieta com fileiras de
sicômoros, e se imaginou como a dona do copo azul chique que ela enchia de
água, daquela casa e daquela vida. De tudo, menos o marido. Ela não o
queria. A partir daquele dia, ninguém o quereria.
— Nicole? Onde você está?
Uma caminhonete do mercado parou na calçada em frente e o motorista
saiu, os fones caindo das orelhas para o bolso, a boca se movendo em silêncio
com a música. Ele tirou cestas de plástico vermelho da parte de trás e as
empilhou em frente à porta dos vizinhos, enquanto as palavras de Nicole
finalmente começaram a fazer sentido.
— Na minha casa.
Alex podia apostar que conseguiria listar todos os itens naquelas cestas: os
inevitáveis avocados e as embalagens de leite de amêndoas para alguma
suposta alergia; os bifes orgânicos e o mel de Manuka.
— Quem está na sua casa?
— Jamie estava na porra da minha casa. Duas horas atrás.
Alex colocou o copo na pia.
— O quê?
— Duas horas atrás. Ben me ligou. Parece que estava bêbado. Claramente
foi encher a cara antes de decidir me confrontar. Ele sabe, Alex. É claro que
sabe.
Olhando pelas portas abertas do pátio para o jardim, onde as três figuras
ainda continuavam deitadas na grama, Alex abaixou a voz e conseguiu soltar
um fraco:
— De jeito nenhum, não tão rápido. Mas, claro, eles vão precisar contar os
detalhes da alegação mais para frente.
O que quer que Alex tinha dito para tranquilizá-la, Nicole devia saber
disso, certo?
— Não foi isso que você me falou ontem à noite. E que merda que ele foi
fazer na minha casa? Ben não me contou o que ele disse, mas eu estou
enlouquecendo, Alex.
Nicole agora soluçava.
— Calma. Como eu falei, o RH não vai ter contado a ele que foi você, não
agora.
— Eu só… Eu achei que eu teria um tempo, em que ele se acalmaria e eu
resolveria minha vida. Você me prometeu que eu ficaria segura.
O tom de voz de Nicole tinha ido de sofrido para acusador, e isso estava
começando a irritar Alex.
— Só espera. Logo tudo isso vai acabar.
Na rua, uma loira que era velha demais para usar aquela calça jeans
rasgada assinava o recebimento das compras.
— Eu nunca deveria ter topado isso.
— Nicole. — Alex respirou fundo. — Ninguém te forçou a nada. E não
esqueça — completou, sussurrando — que ontem à noite você estava num
bar me dizendo como Jamie tinha estragado a sua vida.
Uma pausa enquanto Nicole parecia deixar as lágrimas correrem.
— Minha filha estava lá! Chloe viu tudo!
Alex ouviu uma confusão de buzinas e um palavrão de Nicole, e o barulho
ao fundo diminuiu.
— Quer dizer, como ele se atreve? Como se atreve a entrar na minha casa,
na minha vida, depois do que fez?
— Bom, aposto que não vamos precisar vê-lo nunca mais. — A qualquer
minuto Katie acordaria e começaria a chorar. E Maya ia se perguntar por que
ela estava demorando tanto. Alex precisava desligar. — Olha, eu te ligo
depois, tá?
— Aham. — Nicole parecia meio doida. — Tudo bem. Te ligo depois,
assim que eu encontrar ele.
— Ótimo. — Alívio… Então um aperto no peito. — Espera, Nicole?
Encontrar quem?
O homem do mercado empilhava as cestas na rua e, enquanto esperava
Nicole responder, Alex se perdeu em seus movimentos metódicos. Em
seguida, seguiu a direção dos olhos do homem, que registravam a chegada de
algo ou alguém na rua tranquila. Uma mulher se aproximando com passos
rápidos e decididos; uma mulher com um celular na orelha, parada a menos
de um metro de Alex, agora, do outro lado da janela da cozinha. Uma mulher
cujas palavras, quando finalmente saíram, não foram silenciadas pelo vidro
entre elas, mas soaram assustadoramente altas em seu ouvido:
— Jamie — disse Nicole, a encarando. — Assim que eu encontrar Jamie.
JILL
Mais tarde, no escuro do quarto e enevoada pelo calmante que Stan insistira
que ela tomasse, Jill se permitiu chorar de novo. Torcia para que o marido
estivesse dormindo e ficou triste quando ele estendeu a mão quente para ela,
tocando sua perna.
— Meu amor…
— Desculpa. Eu só queria que você tivesse contado para mim, não para
ele. Eu sei que você e Jamie ficaram próximos com os anos, mas…
Stan se virou de lado para encará-la na escuridão.
— Não foi por isso. Eu fiquei tão perturbado que nem sabia o que estava
dizendo. Então contei para ele o que os médicos tinham descoberto: o quanto
o câncer tinha se espalhado, o prognóstico. Depois, acho que fiquei torcendo
para ter sonhado com tudo aquilo. Nunca achei que ele iria me trair, a nós
dois, como aconteceu. — Ele segurou a mão dela debaixo do cobertor. —
Mas esqueça Jamie.
Jill queria dizer a ele que não conseguia, e por que não. Estava pronta para
fazer isso naquele momento e admitir que, embora o ex-sócio fosse culpado
de muitas coisas — infidelidade, oportunismo, traição e de uma deslealdade
tão grande contra ela e Stan que a abalava até o âmago —, ela também tivera
um papel em um plano cheio de mentiras e enganações.
— Stan, tem uma coisa que eu tenho…
Porém, antes de conseguir terminar, os olhos de Jill se fecharam.
CAPÍTULO 31
NICOLE
C
omo nenhuma das mães havia mencionado Ben, Nicole sabia que
elas sabiam. Fazia menos de uma semana desde que ela se mudara,
mas, de alguma forma, elas sabiam. E por algum motivo o fato de
ela estar se separando do marido a tornava popular de um jeito que nenhuma
tentativa anterior de integração com aquelas mulheres havia conseguido.
Desde que tinham chegado ao Bella Boos, a cafeteria infantil
horrivelmente cor-de-rosa onde a coleguinha de Chloe comemorava o
aniversário, um fluxo constante de mães viera lhe perguntar como ela estava,
e a anfitriã já completara sua taça de prosecco duas vezes.
— Dizem que é a maquiagem branca — disse a mãe da aniversariante, se
sentando ao seu lado depois de uma volta no salão servindo sanduíches.
— Perdão? — Nicole questionou ao mesmo tempo que uma explosão de
buzinas de festa soou.
— Palhaços. Dizem que é a maquiagem branca que assusta as crianças, até
os adultos. Então quando Annie comentou que tinha usado recreadores
infantis na festa da mais velha, que tem aquela coulrofobia, coulrofobia?
— Medo de palhaços?
— Isso. Enfim, aí eu achei que seria perfeito para a festa de Lizzie. Que
eles pareceriam menos bizarros, você não acha? Considerando como as
crianças dessa idade são assustadiças?
Enquanto ela comentava sobre os “terrores noturnos” que Lizzie tivera no
outono anterior, Nicole só assentia e tomava um gole de prosecco. Não ligava
que não estivesse muito gelado ou que fosse cedo demais para beber.
Também não se importava com a maquiagem branca dos palhaços. Ela só
queria que a normalidade e a pureza daquele momento cheio de balões cor-
de-rosa durassem para sempre, que as preocupações e conversas
inconsequentes daquelas mulheres abafassem as memórias das últimas 24
horas e silenciassem o barulho — aquele barulho de revirar o estômago — da
cabeça de Maya batendo como um ovo nos ladrilhos da cozinha. Como isso
nunca tinha sido o suficiente para ela? Por que ela procurava excitação e
perigo quando tudo de que precisava estava bem aqui?
Quando Nicole ligou para Ben naquela manhã, implorando para que ele a
deixasse levar Chloe à festa que apareceu num lembrete — e um alívio — em
seu celular, não esperava que ele concordasse. Mas, depois de testemunhar
aquela cena na cozinha de Maya na tarde anterior, e das horas gastas com a
polícia e na sala de espera do hospital — onde só depois da meia-noite lhe
asseguraram de que “A sra. Lawrence está bem. Assustada e machucada, mas
medicada e bem” —, ela precisava ver a filha.
Ben deixou o seu segundo “por favor” pairando no ar, contente pela
humilhação dela, fazendo com que ela a sentisse, antes de enfim responder:
— Tá bom. Mas Chloe precisa estar de volta às seis. Se comer depois
disso, fica muito agitada e eu levo horas para colocá-la para dormir. — Como
se Nicole já fosse uma estranha que precisava de explicações sobre a filha. —
E eu consegui aquele emprego na empresa de software no norte de Londres,
então vou aproveitar para me preparar.
Quando tentou parabenizá-lo pelo trabalho, Ben a interrompeu e desligou.
Não podia mais ficar surpresa ou feliz por ele. Não depois de tudo que
acontecera. Não depois de Jamie ter aparecido na porta deles totalmente fora
de si. E, embora o marido tivesse dito que a conversa foi breve e que Jamie
estava “bêbado demais para fazer sentido”, Nicole ainda se sentia mal
pensando no que ele poderia ter falado. O que teria acontecido na cozinha de
Maya se ela não estivesse lá para chamar a polícia?
Quando um acidente de trânsito é evitado por pouco, é só depois, quando a
pessoa para trêmula no acostamento da estrada, que o impacto evitado é
sentido. Nicole estava no acostamento agora, aliviada e grata pelo pior não ter
acontecido — por Jamie não ter contado a Ben e por Maya, que ficaria bem
—, mas ainda tremia por sua própria imprudência.
Ela fez tudo que podia para consertar aquilo. Informou à polícia sobre a
obsessão de Alex pelo homem que a demitiu e deu o endereço dela —
imaginava que os policiais já a teriam encontrado, não? Havia uma coisa,
porém, que ainda não tivera coragem de fazer: contar para Jill. Nicole chegou
a abrir seu contato, o dedo pairando sobre o ícone de ligar, antes de desligar o
celular, incapaz de descrever os eventos do dia anterior. Era ela, não Jill, que
deveria ter notado o quão instável Alex estava, e ainda assim o
comportamento violento dela envolvia as duas na situação.
— Que brincadeira é essa?
O celular dela estava tocando na bolsa, mas Nicole não tinha vontade
nenhuma de atender.
— Ah, você sabe. Moedinha risadinha.
Nicole balançou a cabeça. Por que sempre tinha a sensação de que aquelas
mulheres estavam falando uma língua que ela não compreendia?
— É como se fosse passa anel, só que em vez do anel…
Nicole sorriu e assentiu, mas voltou à cozinha de Maya em Chiswick,
tentando tirar Alex de cima dela, os braços pesados e os movimentos
assustadoramente ineficientes. E, ao se abaixar ao lado de Maya, enquanto
esperava a ambulância chegar, vendo o sangue escorrer da cabeça dela
tingindo o rejunte entre os azulejos de mármore em fileiras de carmim, seu
único pensamento tinha sido: “Isso é tudo minha culpa.”
Eles não a deixaram acompanhar Maya ao hospital e, por um momento
horrível, Nicole imaginou Jamie chegando e a encontrando ali, enquanto
segurava sua filhinha. O som de uma chave na porta fez seu coração apertar,
mas então uma mulher filipina baixinha apareceu, segurando uma menina —
Christel — pela mão. Lembrando-se do sangue, de todo aquele sangue,
Nicole bloqueou o caminho delas.
— Aconteceu uma coisa. Maya foi levada para o St. Mary’s — ela disse à
babá.
Entregou Elsa para ela, tentando ignorar o rosto tristonho de Christel, e
sentiu uma vontade tão grande de escapar daquele ambiente tóxico e sentir o
cheiro de cabelo limpo da própria filha que ficou tonta.
— Vou para lá agora — assegurara à mulher assustada. — E ligo assim
que souber de alguma coisa. — hesitou. — Você pode… pode ligar para o
pai das meninas?
Enquanto a mãe de Lizzie ia “dar uma olhada no bolo”, Nicole aproveitou
o breve momento sozinha para dar uma olhada no celular. Duas ligações
perdidas de um número desconhecido. Seria a polícia, dizendo que haviam
encontrado Alex? Mesmo se tivessem deixado recado, ela não tinha coragem
de escutar.
Não importava quantas vezes Nicole pensasse sobre aquela noite,
procurando alguma brecha de absolvição, não conseguia se livrar da
responsabilidade por Alex, e ela havia visto de perto a instabilidade de Alex
se desenvolver. Tinha até percebido sinais de alerta, mas escolhera ignorá-los
porque a fixação de Alex por Jamie, pela vingança, servia a ela.
— Quer um refil? — Há quanto tempo a anfitriã estava de olho nela? O
suficiente para vê-la virando a taça de prosecco em um só gole, de olhos
fechados. A pergunta a seguir com certeza seria… — Semana difícil?
Pronto.
— Sim. — Nicole estava cansada demais para dizer de outra forma. —
Mas acho que você já sabe disso. Parece que todo mundo já sabe que eu e
Ben terminamos. — Era uma forma tão adolescente de descrever a destruição
de duas, não, três vidas, embora ela não suportasse pensar dessa forma. —
Está sendo complicado. Vai ser complicado.
— Aposto que sim.
De repente, outra mãe, provavelmente uma das admiradoras de Ben, tinha
se metido na conversa, assentindo com uma expressão de pena.
Nicole respirou fundo.
— Só fico contente por ele estar sendo tão civilizado nessa situação toda.
E era verdade.
A pele translúcida da nuca da filha, sentada de costas para Nicole — tão
inocente, tão exposta pela maria-chiquinha —, trouxe lágrimas aos seus
olhos. De onde veio aquela sarda? Era uma sarda ou uma pinta, e o que mais
ela havia perdido? Todas aquelas viagens de negócios que tinha feito
pareciam administráveis, agradáveis, até, se Nicole fosse sincera consigo
mesma. Mas talvez porque ela sabia que a filha estaria lá sempre que
quisesse, sempre que precisasse ouvi-la tagarelar sobre Peppa Pig. E todos os
dias que passava sem Chloe, Nicole acordava com a sensação de que estava
sem um membro.
— Ela é linda — murmurou a mãe de Lizzie no seu ouvido, os olhos se
demorando em Nicole o suficiente para que surgisse a vontade de se virar e
falar, ainda sorrindo: “Sim, essa é a cara de uma mulher cujo casamento foi
para o espaço.”
Em vez disso, Nicole se pegou rindo.
— Ela é mesmo. Eu posso falar isso? Nunca sei.
E talvez tudo fosse ficar bem? Seria demorado e dolorido, mas ficaria
bem.
— Eu estou tão confusa! — ribombou a recreadora, olhando para baixo
com as mãos nos quadris para o círculo de rostinhos hipnotizados. — Mas
acho que está na hora do bolo!
Mais uma vez o celular de Nicole vibrou na bolsa. Dessa vez ela sabia que
precisava atender.
— Alô?
— É… — Uma pausa. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou, e Nicole tapou o outro
ouvido, seguindo para a porta. — Perdão, quem?
— Aqui é a Jill.
Ela devia querer uma atualização, mas Nicole não tinha nada de novo para
dizer.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha, e estão trazendo
o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não.
Depois, Nicole ficaria obcecada com o quando. Em que momento
exatamente ela soube que Jamie estava morto? Foi naquele “não”? Foi no
silêncio pesado antes de Jill continuar a falar? Porque, quando ela falou —
“Jamie morreu” —, de alguma forma Nicole já sabia.
— Encontraram o corpo hoje de manhã. A polícia quer falar comigo. Vão
querer falar com você também. E, Nicole — A voz de Jill ficou mais baixa
—, não estou conseguindo falar com a Alex.
Apoiando-se no batente da porta cor-de-rosa, Nicole se encolheu, o choque
atravessando seu corpo inteiro.
— Como?
Ele havia sido encontrado atrás do Vale Theatre naquela manhã, explicou
Jill. Ainda estava vivo na hora, mantido pelas estruturas de metal que o
empalaram. Mas sangrou até a morte na ambulância. A voz de Jill estava
aguda, em pânico:
— Temos que encontrar Alex.
Nicole tentou falar.
— Nicole, está aí?
— Sim. No teatro… — ela conseguiu dizer. — Tem uma construção
pequena de vidro no telhado. Só a gente sabia disso. — O fato de que ela
ainda conseguia formar frases coerentes era incrível. — Eu o levei para ver o
lugar. Nós… Jill? Jill?
Mas a ligação havia sido desligada.
CAPÍTULO 32
ALEX
D
e sua posição de cabeça para baixo na cama, a pintura parecia um
gato. Um gato ou talvez um tigre, pintado naquele estilo meio
aguado que deixa pinceladas na tela. Mas se girasse a cabeça para
olhar a imagem do jeito certo, ela mais parecia uma menina, com olhos
profundos e ferinos. Os olhos da sua mãe.
— Isso… — ela falou para a mulher que apareceu ao seu lado. — O que é
isso?
— O que é o quê? — Ela não tirou os olhos da prancheta que segurava.
— A pintura. É um gato ou uma menina?
Quando a mulher ergueu os olhos para relancear a pintura, Alex percebeu
que ela era jovem, com uma boca triste e… por que estava usando um jaleco?
— Ah, é uma raposa.
Alex tentou focalizar os olhos, mas suas pálpebras estavam pesadas e os
cantos pareciam grudados, como se tivesse dormido de maquiagem.
— Onde é que eu estou?
A ruga horizontal profunda na testa da mulher se suavizou, mas seu tom de
voz permaneceu distante.
— Você está no hospital… — ela olhou a prancheta — … sra. Fuller. Está
dormindo já faz bastante tempo. Quase dois dias. Como está se sentindo? —
Sem esperar resposta, continuou: — Seu médico já vai chegar e te explicar
tudo, agora que você acordou.
— Hospital? — Mas a enfermeira já estava saindo. — Dois dias? Ei! —
Sua voz estava fraca depois de tanto tempo sem usá-la. — Isso não é uma
raposa!
Tentando demonstrar isso com um gesto, Alex ouviu algo pesado e com
rodinhas se mover atrás do ombro esquerdo, e se virou para ver um suporte
de soro ao seu lado. Ela seguiu o trajeto do líquido cor de xixi indo da bolsa
para o cateter preso ao seu antebraço.
— Ei, volta aqui!
Batendo o suporte na estrutura de metal da cama, Alex conseguiu fazer
barulho o suficiente para trazer a enfermeira de volta.
— Pode parar com isso, sr. Fuller? Eu falei, pode parar com isso!
— Por que eu estou aqui? Cadê… — Uma lembrança, distante, mas que se
desenevoava, ia e vinha. Algo vital de que ela estava se esquecendo. — Eu
tenho que sair daqui.
Mas a enfermeira tinha sumido e mandado um homem baixinho de barba
entrar. Ele se sentou ao pé da cama.
— Meu nome é dr. Chua.
Alex sentia um gosto metálico na boca: remédios.
— O que tem nesse soro? Posso… Posso beber água?
O médico entregou para ela um copo de papel e esperou pacientemente
enquanto Alex bebia. Ele parecia simpático, diferente daquela vaca da
enfermeira.
— Você estava muito desidratada quando chegou — ele explicou,
indicando o soro.
— Mas, doutor… — De novo, aquela suspensão da respiração: algo havia
sido esquecido, deixado para trás. Mas o quê? Percebendo uma faixa
avermelhada nos nós dos dedos, onde segurava o copo de papel, Alex se
lembrou de esfregá-los e do cheiro do talco de bebê: Katie. Um som tão
agudo soou que ela pensou ter vindo de um alarme na rua lá embaixo. Só
quando o rosto do dr. Chua se elevou, preocupado, sobre ela, Alex entendeu
que o som tinha vindo de sua boca. — Katie — sussurrou. — Cadê minha
filha? O que vocês fizeram com ela?
— Sra. Fuller… Alex. — O dr. Chua segurou sua mão. — Sua filha está
bem e em segurança com a sua mãe.
— Com a minha… — Marcas fundas pontilhavam as bochechas do
médico, resquícios de acne da adolescência. — Isso não… Não. Você não
entende. Ela está em Portugal.
Sem respondê-la, o dr. Chua se aproximou da grande janela retangular ao
lado da porta e com um puxão abriu as persianas para mostrar o corredor do
hospital, antes de voltar ao seu lado na cama.
O cérebro de Alex levou alguns segundos para compreender o rosto que a
encarava do outro lado das ripas brancas.
— Sua mãe chegou na manhã depois de você ser internada. Tirando
algumas saídas para levar sua filha para passear e mamar, ela passou o tempo
todo aqui.
— Mãe — Alex articulou com a boca quando elas se encararam pelo
vidro.
A sua mãe estava com os lábios apertados, como fazia quando tentava não
chorar, mas seus olhos sorriam. Ela piscou uma, duas, três vezes, e Alex
reconheceu o código que as duas haviam criado na sua infância: uma forma
de tranquilizarem uma à outra depois das piores explosões de seu pai. Três
piscadas significam “Eu te amo”.
— Ela pode entrar. Mas primeiro eu e você precisamos conversar. — O dr.
Chua a encarou com tranquilidade por um momento. — Você tem alguma
ideia de por que está aqui?
Alex não conseguia tirar os olhos da mãe. A mãe, que tinha vindo e ficado.
Mas como? Será que o pai já não descobrira sobre o empréstimo? Ela não
queria pensar em como a mãe havia pagado por aquele segredo. Mesmo
assim, de alguma forma, ele havia permitido que ela entrasse em um avião e
viesse.
— Você está passando por um período difícil, não está? — O dr. Chua
ergueu uma sobrancelha fina. — Pode me contar um pouco sobre isso?
Começou quando Katie nasceu, talvez logo depois?
— Você acha que… Não, não. Isso não é uma coisa de pós-parto. — O
remédio que lhe deram estava deixando-a enjoada. Ela engoliu em seco. —
Eu não estava dormindo muito, tendo que fazer tudo sozinha… Bom, não tem
sido fácil.
O dr. Chua assentia, compreensivo.
— Eu só achei que, se conseguisse acertar… Sabe? Se conseguisse ser
uma mãe tão boa para Katie quanto era boa no meu trabalho. — Seu
estômago se revirou com a lembrança. — Mas aí tiraram meu emprego de
mim.
Uma após a outra, as memórias começaram a voltar, como mensagens
detidas por uma conexão ruim, e Alex começou a chorar tanto que perdeu o
controle dos músculos do rosto. Envergonhada, ela virou o rosto para o outro
lado, enfiando-o no travesseiro.
— Alex, às vezes, quando uma pessoa passa por um trauma, como a perda
de um familiar ou de um emprego que significa muito para ela, isso pode
despertar ou exacerbar uma questão que já existia, adormecida, havia algum
tempo. Também é possível que isso aconteça após o parto. Seja como for, nós
achamos que o que você teve foi um episódio psicótico.
Alex o encarou.
— No desenvolvimento desse episódio, a realidade às vezes parece
distorcida ou até dominada por paranoias, manias e fixações em certas coisas
ou pessoas. — Ele pausou, mas não por tempo o suficiente para estar
esperando uma resposta. Ainda bem, porque ela não tinha ideia do que ele
estava falando. — Mas esses sentimentos tendem a ter uma origem. E nós
gostaríamos de explorar diferentes fatores que contribuíram para essa
situação: o impacto da perda do seu emprego… — Ele fez uma pausa, dando
uma olhada para a mãe de Alex. — Seu pai, provavelmente.
— Meu pai?
— Eu conversei com a sua mãe. Ela nos contou um pouco da sua história,
de como você teve problemas na infância e na adolescência, do medo que
sentia do seu pai, muitas vezes com motivo.
— Ela disse isso?
O dr. Chua assentiu.
— Ela… — Alex olhou para a mãe. — Ela te contou mais alguma coisa?
Que não era só comigo?
— Sua mãe não é minha paciente — respondeu o médico com firmeza. —
Então não cabe a mim discutir as experiências dela. Mas vou dizer que a
violência doméstica raramente se restringe a só membro da família.
— Violência…
— Acho que vocês duas têm muito o que conversar. Porque isso… — Ele
fez um gesto indicando a situação atual de Alex, e, embora sua voz fosse
calorosa e empática, ela sentiu uma onda de vergonha com a natureza
simplificadora do pronome. — Isso não é você, Alex. E imagino que não se
sinta como você mesma já faz um tempo. Mas quando tivermos uma ideia
melhor do que está acontecendo aqui — ele deu uma batidinha na têmpora
direita —, vamos poder começar um tratamento. Tudo bem?
O que mais Alex poderia fazer além de concordar?
— Agora vou sair e dar um minuto para você conversar com a sua mãe a
sós. Mas vai ter que ser rápido, porque temos algumas coisas importantes a
discutir.
Mais uma vez, Alex concordou, desesperada para ouvir a voz da mãe e
enfiar o rosto na curva morna do pescoço dela. Mas, depois de alguns
murmúrios no corredor, quando a mãe apareceu na porta, Alex só conseguia
pensar em como a decepcionara, como o pai dela devia ter ficado furioso por
causa do dinheiro… e agora isso.
O rosto contorcido, ela conseguiu dizer:
— Desculpa, mãe. Desculpa por tudo.
Mas seus soluços foram abafados pela blusa da mãe, e pelo que pareceu
um longo tempo as duas só ficaram ali abraçadas. Quando Alex tentou falar
de novo, perguntando por Katie, a mãe explicou que ela estava em casa, em
segurança, com uma babá, e que não precisava se preocupar. Outras
perguntas foram abafadas enquanto a mãe continuava acariciando seu cabelo
em um ritmo lento e constante.
— Meu amor.
— Mãe…
— Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Com isso, Alex se forçou a sair do abraço.
— Como? Como que vai ficar tudo bem? Eu não vou conseguir te pagar o
empréstimo, mãe.
— Eu não ligo para isso. Não ligo para nada disso, amor. Tudo que
importa é que você se trate, que você fique melhor…
— Mas o meu pai… A casa nova…
A mãe dela cerrou a mandíbula.
— Não tem casa nova nenhuma. Não para nós, não para mim. — Ela
apoiou o rosto da filha na palma da mão. — Eu deveria ter dado um ponto-
final nesse comportamento anos atrás, décadas atrás. E eu teria feito isso se
tivesse ideia do que isso te causou. Mas eu era fraca, eu…
— Você estava com medo.
Sua mãe assentiu, e Alex viu que ela lutava contra as lágrimas antes de seu
rosto assumir uma expressão que nunca havia visto: parte raiva, parte
determinação.
— Quando recebemos a ligação… quando descobrimos o que tinha
acontecido com você, e ele tentou me impedir de entrar no avião… — Ela
balançou a cabeça. — Nem eu nem você nunca mais vamos sentir medo ou
vamos ser controladas por ele, isso eu te prometo. E eu vou ficar aqui com
você… — a mãe a puxou para outro abraço — … enquanto você precisar de
mim. Vamos ser eu, você e aquela garotinha linda.
— Desculpem-me por interromper. — O dr. Chua já tinha voltado.
— Ela não pode ficar só mais uns minutos? — pediu Alex.
Uma mensagem silenciosa foi transmitida entre o médico e sua mãe.
— Meu bem, vou dar uma olhada em Katie. Mas volto em uma ou duas
horas.
Alex se agarrou a ela, mas sua mãe se afastou com gentileza e a beijou na
testa.
— É só por algumas horas, eu prometo. E, se o dr. Chua achar que não tem
problema, posso até trazer a Katie.
Dessa vez o dr. Chua puxou uma cadeira.
— Os sedativos que te demos podem estar te deixando um pouco tonta.
Em longo prazo, precisaremos prescrever para você um antipsicótico e um
antidepressivo. Encontrar a combinação certa de medicamentos pode levar
tempo, então você terá que aguentar firme, mas é importante que entenda que
estamos lidando com algo um pouco menos previsível do que depressão ou
até psicose pós-parto aqui e, portanto, mais difícil de controlar.
— Minha mãe… — Alex pigarreou. — Ela falou de uma ligação, que
alguma coisa aconteceu. O que aconteceu? O que eu fiz?
— Já vou chegar nisso — respondeu ele baixinho. — Falamos com
amigos e colegas e eles nos disseram que você tem se concentrado bastante
no homem que te demitiu nas últimas semanas e meses. De forma doentia.
Uma pessoa descreveu como uma obsessão.
Flashes, como se seu cérebro estivesse entrando e saindo de sintonia de
novo: Jamie segurando Katie, cercado por mulheres babando nele. Como ela
permitiu que ele a tocasse? E quando isso aconteceu? Jamie atrás de uma
mesa, lendo em voz alta algum manual de RH. Jamie em um pub, cheio de si,
rolando em aplausos. A programação semanal de Jamie, com todos os seus
blocos codificados por cores.
— Achamos que essa fixação teve seu ápice nesse episódio.
Alex voltou a se sentir enjoada.
— Você ficou violenta, Alex.
— Não. Não pode ser. — Ela nunca tinha erguido a mão para ninguém na
vida adulta. — Eu nunca…
— Você foi até a casa do seu chefe e atacou a esposa dele.
Maya. Ah, Deus.
— As filhas dela…?
— As filhas dela estão bem. Mas Maya se machucou.
— Não. Maya é minha amiga. Eu nunca faria nada contra ela.
— Mas foi o que aconteceu. Ela teve que ir para o hospital.
— Não, não…
Alex tentou se erguer. Precisava sair dali, descobrir o quanto daquilo era
verdade, se é que era.
— Eu preciso que você se acalme e se concentre, porque a próxima parte é
importante.
Exausta, ela se recostou no travesseiro.
— Você teve sorte. A esposa do seu chefe vai ficar bem, e, pelo que fiquei
sabendo, não quer prestar queixa. Mas poderia ter sido muito pior.
O seio de Maya, cheio de veias azuis, exposto. Pétalas de magnólia caindo
como confete. Uma manta de piquenique xadrez e Katie de costas, bracinhos
levantados em ângulos retos. Nicole estava lá, e Jill. Não, não Jill, só Nicole,
prestes a estragar tudo. E durante tudo isso, o monótono subir e descer das
sirenes.
— Você tem certeza… — Alex engoliu e tentou de novo. — Você tem
certeza de que foi a esposa do meu chefe que eu…
— Tenho certeza. E minha única preocupação é a sua saúde e o seu
tratamento, mas a polícia quer falar com você. Eu sou obrigado a avisá-los de
que você está consciente agora. Porque eles estão tentando descobrir para
onde você foi depois.
— Depois?
— Depois.
As sirenes estavam ficando cada vez mais altas. A única forma de
bloqueá-las era entrar na estação de metrô mais próxima. Foi isso que ela fez
depois.
— Eu peguei o metrô para casa. Com Katie.
— Sabemos que você foi para casa primeiro. E, de novo, essa não é a
minha preocupação. Mas não foi lá que você foi encontrada mais tarde
naquela noite. Sua filha, Katie, foi encontrada no apartamento, sozinha. Ela
estava bem. Ela está bem, você tem que entender isso, mas a polícia
encontrou outras coisas lá, Alex: do seu antigo chefe, e-mails particulares
dele. E o que eles estão tentando descobrir é se você foi a outro lugar naquela
noite, se você encontrou o sr. Lawrence. — O dr. Chua se aproximou. —
Essas são as perguntas que a polícia vai fazer a você. Porque Jamie Lawrence
morreu, Alex. E a polícia acha que você teve algo a ver com isso.
CAPÍTULO 33
JILL
7 de agosto
JILL
– J ill?Agachado
Vem dar uma olhada nisso.
perto dos galhos baixos e amplos de um freixo no Jardim
da Reflexão do Crematório de Mortlake, Stan começou a ler as mensagens
deixadas nas folhinhas prateadas pelos enlutados.
— “Você era tudo para mim, Ted.” “JJ, você vai morar para sempre no
meu coração.” “Te amo mais que todas as estrelas do universo, minha
querida Anita.”
No luto, a emoção humana é reduzida a letras de música. E talvez não
houvesse nada de errado com isso; talvez, no final, banalidades sejam as
coisas mais honestas que as pessoas conseguem transmitir. Contudo, não
havia nada de honesto na presença de Jill ali, fingindo “celebrar a vida e
lamentar o falecimento” de James Edward Lawrence, quando ela não podia,
em sã consciência, fazer nem uma coisa nem outra.
— Acho que não consigo fazer isso.
A cerimônia ia começar em dez minutos — e Jill sentia suas costelas
apertarem vilmente.
— É claro que consegue. — Stan se levantou. — Você ficou acordada até
sei lá que horas escrevendo.
— Eu sei. Mas eu não deveria ter concordado em escrever o elogio
fúnebre. Não… cabe a mim.
Pela pausa do marido, ela percebeu, com um pânico crescente, que ele
sentia o mesmo. E havia mais uma coisa.
— Você não deveria ter que estar aqui. — Jill passou os braços em torno
da cintura do marido, alarmada ao perceber como suas mãos se encontravam
nas costas dele com facilidade, como se a própria substância dele estivesse se
esvaindo. — Você não deveria ter que…
— Encarar a morte de frente? — Virando-se para a esposa, Stan levantou
seu queixo. — Ei. Eu e a morte já somos amigos faz muito tempo. Eu sei que
é pedir demais, mas queria que você fizesse as pazes com ela como eu. Ou de
algum jeito… voltar a não saber.
Como ela poderia fazer isso? Era naquilo que pensava assim que acordava,
procurando sob as cobertas o corpo cálido e reconfortante do marido antes
mesmo de abrir os olhos, e era seu último pensamento antes de cair no sono.
Então, não, ela não seria capaz de suspender a realidade. Mas, se Stan queria
que ela fosse corajosa, então era assim que ela agiria.
Nos dias seguintes àquela última conversa com a polícia, aos resultados da
autópsia e à declaração oficial de suicídio, Jill tinha ido e voltado da culpa
para a fúria. Diferente de Jamie, seu marido não tinha a chance de escolher
como ou quando ia morrer. Ele nem sequer pôde escolher como contar à
esposa quanto tempo lhe restava: deixando escapar o que sabia naquela noite,
Jamie roubara isso de Stan. E mesmo assim… o quão desesperado Jamie
estaria para fazer o que fez? Certamente ele sentia que o mundo estava se
fechando ao seu redor. Um mundo que ela, Nicole e Alex haviam manipulado
para que fizesse exatamente aquilo.
Atrás das roseiras e das macieiras que cercavam o Jardim da Reflexão, o
vislumbre de um carro fúnebre surgiu.
Stan tinha razão. Ela estava ali agora e precisava enfrentar aquilo.
— É melhor a gente ir.
Quando deram a volta na cerca viva, uma criancinha de preto saiu do carro
atrás do carro fúnebre. Jill quase deu as costas e fugiu.
— Aquelas meninas… — murmurou. — Não vou aguentar.
— Eu sei, amor. — A voz do marido já não estava tão firme quanto antes.
— Vamos.
Lá estava Maya — com a postura bem ereta, usando um vestido de linho
preto e decote quadrado simples, segurando Elsa no quadril —, assentindo
para as pessoas reunidas enquanto passava pelo arco da entrada do
crematório. Ao se aproximarem, porém, Jill percebeu outra figura: uma
mulher com um chapéu preto de abas largas e óculos escuros, sozinha, de pé
ao longe.
— Ela veio.
Nicole ergueu os olhos do guia de orações que segurava e encarou Jill, a
incredulidade pelo que lera espelhando a emoção da mulher mais velha.
— Maya não quis fazer o discurso fúnebre… — explicou Jill, na
defensiva. — Então me pediu e eu… não pude recusar. O pai de Jamie vai
fazer o principal. O meu vai ser curto. É só um… Bom. Mas você? A Maya te
viu?
Jill pensou nas manchetes que surgiram depois da morte de Jamie: ILUSTRE
CORRETOR IMOBILIÁRIO SE JOGA PARA A MORTE APÓS ACUSAÇÃO DE ASSÉDIO;
CORRETOR DE IMÓVEIS DEMITIDO É ENCONTRADO EMPALADO EM OBRA.
— Foi ela que me pediu para vir — respondeu Nicole em voz baixa, se
balançando um pouco nos saltos altos. — E eu não poderia… deixar de vir.
Algo no rosto excessivamente maquiado de Nicole relaxou, e, enquanto as
duas se encaravam, Jill sentiu a própria raiva e recriminações desaparecem,
junto às de Nicole. Toda aquela amargura, e ódio, exauriu as duas.
— Stan? — Depois de uma conversa breve com Paul, o marido dela se
juntara às duas. — Essa é a Nicole.
— Já nos conhecemos. — Stan. Sempre educado e comedido, mesmo nas
circunstâncias mais difíceis. — Acho que eu já tinha me afastado da empresa
quando você começou, não?
— Exato.
Aquela troca era o mesmo preâmbulo banal de qualquer reunião social,
com o mesmo silêncio de “o que mais temos para falar?” ao ser concluída —
silêncio que Nicole preencheu perguntando sobre a saúde de Stan. Mas,
conforme o diálogo continuava, ficou evidente para Jill que qualquer tipo de
interação estava sendo muito difícil para Nicole. Algo curioso havia
acontecido com a boca dela, os lábios pintados de magenta se curvando de
forma estranhamente dura nas vogais, e naquele momento Jill compreendeu o
quanto custava a Nicole estar ali, apesar dos óculos escuros, do chapéu e do
batom. Aquilo tinha sido mais do que um caso. Talvez perder Jamie fosse a
maior tragédia da vida dela.
NICOLE
Dezembro
JILL
E
ste livro surgiu graças à infinita paciência e ao olho clínico da
minha agente, Eugenie Furniss. Cada “Ai!” rabiscado seu, Eugenie,
me fez mais feliz do que você pode imaginar, e o agora falecido,
meu grande amigo e agente, Ed Victor, ficaria tão feliz de saber que você
continuou de onde ele parou.
Minha editora, Ro-sanna Forte, fez os melhores comentários que qualquer
autor poderia querer. Obrigada por acreditar na história e nos personagens de
Acerto de contas a ponto de ficar irritada com o que Jamie dizia — o que me
forçava a te relembrar que “ele não existe de verdade”.
Thalia Proctor, Laura Vile, Stephanie Melrose e toda a equipe da Sphere
na Little, Brown Book Group foram brilhantes e incansáveis, e estou muito
animada para trabalhar com todos vocês de novo no próximo livro.
Tenho uma dívida especial com Alexandra Kordas da 42 Management &
Production, cuja energia e entusiasmo iluminaram muitos dias cansativos da
quarentena. Também sou profundamente grata a Malcolm Ward, por ler
algumas das passagens mais sinistras que já passaram por sua caixa de e-
mails; a Simon Raw, por me colocar em contato com o incrível gerente de
palco do Her Majesty’s Theatre, Stewart Arnott, e a Emily McCullagh, por
seu conhecimento e suas respostas rápidas, apesar de ter coisas muito mais
importantes para fazer.
Um obrigada especial a Mike Beveridge, do Canal and River Cruises Ltd,
por me fornecer informações que pesquisa nenhuma traria; a John Goodall
por dividir seu vasto conhecimento sobre arquitetura; a Vincent Galea por seu
conhecimento jurídico. É preciso deixar claro que qualquer erro cometido é
de minha responsabilidade.
Obrigada aos meus amigos Darryl Samaraweera, Jessica Fellowes, Kate
Johnson, Caroline Graham e Alice Evans, pela ajuda, pelo apoio e pelo
tempo, e a Paul Paolella, por ser a inspiração por trás “daquela cena”.
É só por causa da generosidade do Telegraph — permitindo que eu tirasse
um ano sabático — e da assistência de Maria Flor que fui capaz de encontrar
tempo para escrever. Que você tenha lido Acerto de contas inteiro em uma
única noite insone, Cory, significa muito para mim.
Sou infinitamente grata à minha família: Olly, Frank, mamãe e papai.
Elise, você me ajudou mais do que qualquer outra criança de nove anos do
mundo, criando reviravoltas cada vez mais sombrias. E, Piers, obrigada por
aguentar minhas perguntas aleatórias e muitas vezes nojentas — “Será que
Jamie deveria sobreviver ao ser empalado, ou deveria morrer na hora?” —,
em geral tarde da noite, quando você estava tentando pegar no sono. Você
tem razão: eu preciso melhorar minha conversa na hora de dormir.
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro
EDITOR RESPONSÁVEL
André Marinho
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Júlia Ribeiro
Adriano Barros
REVISÃO DE TRADUÇÃO
Fernanda Belo
REVISÃO
Alessandra Volkert
DIAGRAMAÇÃO
Douglas Kenji Watanabe
PRODUÇÃO DE EBOOK
S2 Books
[ 01 ] N.T.: National Health Service [Serviço Nacional de Saúde].
Onde está Daisy Mason?
Hunter, Cara
9786589132103
336 páginas
Depois de ter sido deixada, Louise teve que assistir a seu ex-marido, Andrew,
iniciar uma nova família. A "outra" agora é sua esposa, mas Louise não está
pronta para deixar Caz viver a vida que já foi dela, nem para abrir mão do
homem que ainda ama. Quando Louise começa a investigar o passado de
Caz, o respeito que até então se mantinha entre as duas fica no limite:
tentando atingir uma à outra, elas descobrem mais sobre o homem com quem
se casaram. Até que Andrew é assassinado durante uma festa de família, e as
duas mulheres são encontradas diante do corpo. Uma das esposas pode ser a
culpada… mas qual?
Helen Lambert viveu várias vidas: uma jovem pianista na Paris dos anos
1890, uma atriz na Hollywood dos anos 1930, uma estrela do rock da década
de 1970… só que ela não sabe disso. Até que ela conhece um homem que
afirma tê-la acompanhado por séculos, que diz estar ligado a ela desde
sempre. Helen não acredita nele. Afinal, sua vida é tão normal quanto a de
qualquer outra mulher de seu tempo, que tem sua individualidade e sua
carreira. Mas seus sonhos, muito vívidos, começam a lhe trazer de volta a
memória de vidas interrompidas e um amor trágico. Presa em uma maldição,
Helen será forçada a reviver os mesmos eventos sinistros que arruinaram suas
vidas anteriores. No entanto, cada renascimento lhe trouxe poderes
sobrenaturais que ela ainda não conhece, e é com esta versão empoderada de
si mesma que vai desafiar o espaço e o tempo para quebrar esse feitiço…
antes que seja tarde demais.