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DADOS DE ODINRIGHT

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Converted by ePubtoPDF
Título original: Payday
 
Copyright © Tacles Ltd 2021
Publicado pela primeira vez no Reino Unido em língua inglesa em 2021 pela
Sphere, um selo do Little, Brown Book Group.
 
 
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela
Trama, selo da EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos
reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em
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EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A.
Rua Candelária, 60 — 7.º andar — Centro — 20091-020
Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel.: (21) 3882-8200

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

W162a       Walden, Celia
Acerto de contas / Celia Walden ; traduzido por Giu Alonso. – 2.ed. – Rio de
Janeiro : Trama, 2022.
320 p.
 
Formato: e-book com 1,4 MB
 
ISBN 978-65-89132-44-8
 
1. Literatura inglesa – suspense. I. Alonso, Giu. II. Título.
 
 
CDD: 820
CDU: 821.111

André Queiroz – CRB-4/2242


www.editoratrama.com.br
/ editoratrama
Para Ed Victor
SUMÁRIO

Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1. Jill
Capítulo 2. Alex
Capítulo 3. Jill
Capítulo 4. Nicole
Capítulo 5. Alex
Capítulo 6. Nicole
Capítulo 7. Jill
Capítulo 8. Jill
Capítulo 9. Nicole
Capítulo 10. Alex
Capítulo 11. Jill
Capítulo 12. Nicole
Capítulo 13. Alex
Capítulo 14. Jill
Capítulo 15. Jill
Capítulo 16. Nicole
Capítulo 17. Alex
Capítulo 18. Jill
Capítulo 19. Nicole
Capítulo 20. Alex
Capítulo 21. Jill
Capítulo 22. Nicole
Capítulo 23. Alex
Capítulo 24. Jill
Capítulo 25. Nicole
Capítulo 26. Alex
Capítulo 27. Jill
Capítulo 28. Nicole
Capítulo 29. Alex
Capítulo 30. Jill
Capítulo 31. Nicole
Capítulo 32. Alex
Capítulo 33. Jill
Capítulo 34. Jill
Capítulo 35. Nicole
Capítulo 36. Jill
Agradecimentos
Colofão
PRÓLOGO

– E squeceram o molho inglês de novo. — Terry


inspecionou seu sanduíche de bacon, suspirou e deu
uma mordida. — Vocês têm que acabar isso aqui até o fim
do dia, hein — comentou, indicando o palete com blocos de
concreto ali perto enquanto observava sem muita
esperança a equipe. — Ei!
Mas eles estavam reunidos ao redor de um iPhone,
assistindo a um daqueles vídeos no YouTube.
— Andem. Cadê a betoneira? Vamos começar.
Dando a volta entre as pilhas de tijolos e lenha, Terry se
aproximou dos fundos da construção. Ali no canto, na
sombra do imenso prédio abandonado vizinho ao terreno,
estava a betoneira.
— Esses babacas inúteis — resmungou ele.
E foi então que viu o homem.
Terry observou o terno — “frescurento”, como diria a
esposa —, os sapatos — o tipo de mocassim de camurça
que aqueles sujeitos escandalosos de Chelsea usavam,
diferente apenas nas correntes douradas que cruzavam na
parte superior dos calçados — e as vigas de ferro que
empalavam o homem. Pão e bacon foram cuspidos de sua
boca.
— Steve — ele se ouviu dizer, registrando a flor de carne
sendo empurrada pela viga que atravessava o abdômen do
homem. Então, em um grito que soou agudo e feminino: —
Steve!
Quando o mestre de obras veio até ele, Terry revirava
todos os bolsos do seu moletom.
— Seu celular, cara — conseguiu falar, sem tirar os olhos
do corpo.
Mas tudo que Steve conseguia fazer era repetir:
— Puta merda. Puta merda.
Terry pegou o celular dele e ligou para a emergência.
Só depois de dizer para a voz impassível ao telefone:
— Tem um cara morto na nossa construção.
Só depois de olhar do corpo para as vigas que
alcançavam o topo da fachada lisa atrás, só depois de
perceber, dizendo ao atendente:
— Ele deve ter caído.
Só então que Terry viu o pé do homem se mover.
CAPÍTULO 1

JILL
Quinta-feira, 5 de agosto

A
tende, atende, atende.
Sentada na frente de sua garagem, usando blusa
e saia sociais com pantufas forradas em fleece, Jill
encarava a letra solitária na tela do iPhone. “A”. Essa inicial
que parecia uma confissão de culpa. Como sua funcionária,
seria natural que Alex estivesse na sua lista de contatos,
profissionais e pessoais. Só que nada na conexão de Jill a “A”
era legítimo, que dirá justificável — e, há cerca de meia
hora, ela tinha muito a esconder.
Bem-vindo ao serviço de mensagens da O2. A pessoa
para quem você está tentando ligar não está disponível no
momento.
As pessoas não dizem que o caos tem um som: um ritmo
revolto, estrondoso e intravenoso. E ensurdecedor. Não
dizem que, uma vez que você tenha convidado esse ruído
branco para a sua vida, não há como desligá-lo.
Finalizando a ligação — deixar um recado era arriscado
demais, e depois das quatro tentativas anteriores de falar
com Alex, Jill já tinha se precavido ao esconder sua
identidade nessa ligação —, ela se deixou cair para a frente
e apoiou a testa no volante, se obrigando a respirar.
Inspirar, expirar; inspirar, expirar — devagar, isso, devagar.
Cada expiração embaçava o logotipo cromado no centro do
volante, e Jill o observava desembaçar em formas
irregulares antes de expirar de novo.
A polícia falou que entraria em contato. Foi o que Paul
dissera. Poderia levar horas. Ou minutos. Não podia ter essa
conversa sem falar com Alex antes.
— Onde você está? — Em voz alta, as palavras eram
assustadoras. Autoritárias. E ela se perguntou o que os
vizinhos pensariam se a vissem sentada no carro, falando
sozinha. Ela se perguntou se Stan, dentro de casa, já tinha
notado sua ausência, e quanto um ser humano conseguiria
suportar antes de desligar, como um sistema elétrico
sobrecarregado.
A vibração do celular a tirou do devaneio, mas era só
outra mensagem de Paul. Está no noticiário. Com os dedos
trêmulos, Jill enfiou a chave na ignição, ligou o rádio e ficou
ouvindo entorpecida uma conversa inflamada entre um
apresentador da rádio e um defensor do veganismo antes
de, enfim, começarem as notícias. Jamie era o terceiro na
lista. Só que ele não era mais Jamie e sim “um homem de
46 anos, encontrado empalado nas vigas de um prédio em
construção no noroeste de Londres”.
Era só uma questão de tempo antes de as pessoas do
escritório descobrirem que o morto era o chefe delas, e
enquanto um repórter “no local” dava detalhes que Jill
jamais esqueceria, ela imaginou a notícia se espalhar em
gritos surpresos e e-mails desesperados e sem pontuação
pulando de um computador ao outro. Viu mãos levadas a
bocas, lágrimas de descrença: loucura. Como sócios de
Jamie, era seu trabalho e de Paul fazerem uma declaração;
“lidar” com as consequências. Mas ir para o trabalho
também era inimaginável — pelo menos até falar com Alex.
E ainda havia Nicole.
O nome da colega não estava disfarçado por uma inicial,
embora devesse estar, e vê-lo na tela do celular não a fez
se sentir menos nauseada. Seu próprio nome teria um efeito
similar nas outras duas mulheres, ela percebeu. Estavam
ligadas a isso agora.
Você ligou para Nicole Harper. Não posso atender no
momento, mas você sabe o que fazer…
O fato de que as ligações para as duas mulheres
estivessem caindo na caixa postal, apesar de várias
tentativas, não estava certo. Mas, por outro lado, nada disso
estava certo, e o que Jill poderia fazer além de tentar de
novo e de novo?
— Alô?
A voz de Nicole parecia artificialmente alegre, como se
estivesse fingindo para ela. Então Jill se lembrou de que
havia tirado a identificação de seu número.
— É… — Ela pigarreou. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou ao fundo,
seguida por uma confusão de gritos infantis alegres. —
Perdão, quem?
Ela ouviu o sino de uma porta se fechando, toda a alegria
trancada atrás dela.
— Aqui é a Jill. — Ela fechou os olhos.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha,
e estão trazendo o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não. — Ela teve que impedir Nicole de continuar
falando e fazê-la escutar. — Jamie morreu. Encontraram o
corpo hoje de manhã. A polícia quer falar comigo. Vão
querer falar com você também. — As palavras saíram
emboladas. — E, Nicole… — Ela ouviu a própria voz baixar
de tom. — … não estou conseguindo falar com Alex.
Houve um barulho abafado do outro lado da linha,
seguido por um silêncio. Então outro barulho e um sussurro:
— Como?
— Ainda não sabem. Ele foi encontrado perto do Vale
Theatre hoje cedo. Tem uma construção atrás…
— Ele estava no teatro?
A mudança no tom fez Jill se sentar ereta. Não era só
alarme, mas reconhecimento.
— Se você souber de alguma coisa…
Do outro lado da linha, Nicole soltou um gemido baixo.
Então houve um barulho de engasgo. E enquanto esperava,
Jill viu seu próprio pé na pantufa batendo impaciente perto
dos pedais. Não tinha tempo para isso.
— Temos que encontrar Alex.
Silêncio.
— Nicole, está aí?
— No teatro… tem uma construção pequena de vidro no
telhado…
Uma batidinha na janela fez Jill dar um pulo, todas as
sinapses agora em alerta total, todas as palavras de Nicole
abafadas, e, ao erguer a cabeça, ela viu o rosto de Stan a
observando.
CAPÍTULO 2

ALEX
Três meses antes

O macacãozinho cor-de-rosa fora um erro. Pegar o ônibus


também. Quando havia saído do apartamento meia hora
atrás, com Katie presa ao peito, Alex se sentia passável: a
carne macia da barriga e das coxas era controlada pela
calça jeans de gestante sem a qual não conseguia mais se
imaginar vivendo; os seios aumentados estavam
disfarçados por uma blusa azul larguinha comprada
especialmente para a ocasião. Katie também estava linda e
arrumadinha em seu macacão listrado — isto é, até
chegarem à estação Hammersmith Broadway, onde ela
vomitou em si e na mãe.
Até Alex encontrar os banheiros públicos, revirar a bolsa
atrás de cinquenta centavos, que não tinha, e esperar na
fila atrás de duas adolescentes italianas contando o troco no
metrô Tesco, quase toda a animação com que havia
acordado havia se esvaído.
Fazia uma semana que só aumentava aquela animação,
desde que vira o e-mail de Jamie. Porque, embora seu chefe
tivesse sido breve — “O que você acha de dar uma passada
aqui com o mais novo membro da equipe? Vai ser bom
conversar o quanto antes” —, Alex era boa em ler nas
entrelinhas.
A substituta da sua licença-maternidade não estava
dando conta. Ela havia imaginado que Ashley não duraria
até o final da licença antes mesmo de terminar de lhe
passar as instruções. Não era tanto o fato de que ela era
jovem demais e que começava alguns e-mails com “Oiê!”,
mas que ela tentara se poupar desde o início. Alex nunca
entendeu a mentalidade de “Qual é a menor quantidade de
trabalho que eu posso fazer sem ser demitido?”. E isso
antes de sequer começar no emprego! Cadê o orgulho? A
satisfação silenciosa de saber que você tinha qualquer
contratempo sob controle, assim, quando seu chefe se
esquecesse de um arquivo ou número, você o tinha à mão.
Quando, sempre ansioso para agradar o cliente, ele
marcava duas reuniões na mesma hora — “Quinta de
manhã, combinado!” —, era você quem o corrigia: “Na
verdade, Jamie, quinta de manhã não dá, mas talvez a
gente possa encontrar um intervalo à tarde?” Havia poder
naquele momento: em ser a guardiã da agenda de Jamie e
antecipar todas as suas necessidades de forma tão eficiente
que ele ficaria perdido sem ela.
Não que Ashley fosse entender nada disso. E no dia em
que se reuniram para Alex passar as responsabilidades,
depois de perguntas demais do tipo “Eu tenho mesmo que
responder todos os e-mails em uma hora, como você
colocou nas orientações?” (Resposta: “Sim. Todos os e-mails
precisam receber retorno dentro de uma hora, mesmo que
uma resposta mais completa vá demorar mais.”), e “Quando
a gente está de folga de verdade? Sabe, quando não vão
esperar que você atenda o telefone depois do trabalho?”
(Resposta: “Nunca. Mesmo quando Jamie passou duas
semanas de férias nas Maldivas, eu ainda estava atendendo
ligações depois das dez da noite, escaneando e enviando
documentos e resgatando as compras on-line da esposa
dele na transportadora local.”), Alex girou a cadeira para
encarar a substituta e foi a vez dela de perguntar:
— Você quer esse emprego?
A garota encolheu o queixo, surpresa com o tom de voz
daquela mulher que imaginara ser cúmplice da sua falta de
profissionalismo.
— Claro que sim. Bom, é uma coisa temporária para mim,
sabe? Já que você só está planejando tirar seis meses de
licença… Pelo menos foi o que Jamie me falou. Talvez ele
estivesse…
Alex a interrompeu aí. Sim, ela só estava planejando tirar
seis meses. Por que todo mundo estava tão convencido de
que as mulheres mudariam de ideia e tirariam os 12 meses
oferecidos ou talvez nem mesmo voltariam? E havia
julgamento nos olhos daquela garota de 23 anos, ela tinha
certeza. Baseado no quê? Os tipos de certezas presunçosas
que alguém ainda mantém nessa idade. De que, ao
conhecer alguém de quem você gosta, o que vai acontecer,
a pessoa gostaria de você também. Que vocês estariam
prontos para casar e ter filhos ao mesmo tempo, e que
quando você tivesse esses filhos, iria se sentir como mães
recém-paridas deveriam se sentir.
Depois da confusão dos últimos meses, Alex não tinha
mais tantas certezas. Mas de uma coisa ela sabia: quando
Jamie pedisse para que ela voltasse ao trabalho mais cedo
(e ele não pediria, ela sabia, e sim “sugeriria”, com uma
expressão contrita e um discursinho sobre “entender
perfeitamente como essa é uma época muito especial,
mas…”), ela diria sim. Sim para ter um motivo para se vestir
de manhã. Sim para dias estruturados. Sim para ser
necessária em algo que sabia ser ótima, para voltar a
receber o salário integral e poder se livrar do peso do
empréstimo da mãe o mais cedo possível. Não que ela diria
tudo isso para Jamie, que daria mais valor ao sacrifício se
ela dissesse que precisaria de alguns dias para pensar. E
quando Alex fez a curva na Black’s Road e viu a fachada
espelhada da BWL se erguendo à sua frente, sentiu um pouco
daquela animação anterior voltar.
— Pronta para ver onde a mamãe trabalha? — murmurou
com os lábios colados ao redemoinho de cabelo sedoso da
filha. — Acho que você vai gostar. E tenho certeza de que
vai adorar o chefe da mamãe.
Cinco dias por semana, por pouco menos de um ano, ela
atravessara as portas giratórias do átrio branco brilhante da
BWL com um latte na mão. E a lembrança daquela mão livre
— a mão com a qual abria portas, acenava para Lydia na
recepção, tirava o cabelo do rosto, pegava o cartão do
transporte, ajeitava a calça ou esfregava uma coceira — só
deixou mais evidente tudo que Alex perdera com a
maternidade. Ela nunca se sentiria despreocupada ou
simplesmente livre de novo e esse pensamento a fez querer
dar outra volta na porta giratória e ir direto para casa. Mas
Alex já tinha visto o suficiente do desfile de novas mães
pela BWL — vejam só o que eu fiz! — para saber o que
deveria fazer, e embora a maioria esperasse até o bebê ter
pelo menos quatro ou cinco meses, ela tinha noção de que
aquele dia não tinha de fato a ver com Katie. De qualquer
forma, Lydia já a tinha visto.
— Ah, ah, ah! — Ignorando os telefones tocando, sua
colega saiu de trás da bancada de nogueira curvada da
recepção, com o lema onipresente da BWL inscrito (“História.
Herança. Preservadas.”), a mão tapando a boca. — Não
aguento. — Os saltos estalavam conforme ela se aproximou
a passos rápidos. — Essa é a… Katie? É, sim! É, sim!
Antes de ter Katie, Alex achava os olhos arregalados, a
vozinha de bebê e a repetição constante engraçados. Agora
só os achava irritantes. Mas estava feliz de ver um rosto
amigo e ansiosa para exibir sua filha como todas as outras
faziam.
— Claro que ela vomitou no caminho. É a animação de
ver onde a mamãe trabalha, não é, Katie?
— Eu queria morder essa menina! — Lydia passou o dedo
pelo punho cerrado da bebê. — E você, querida, como está?
— Bom, não estou dormindo muito. Essa aqui herdou o
apetite da mãe, com certeza. E tem um belo par de
pulmões. Mas estamos indo bem, não é mesmo?
Lydia inclinou a cabeça para o lado: uma mistura de pena
e curiosidade nos olhos.
— Mesmo assim, deve ser difícil fazer tudo sozinha, né?
Mas imagino que seus pais estejam doidos por ela.
— Doidos por ela.
Alex estava acostumada às pontadas de tristeza que
essas suposições casuais causavam e tinha decidido muito
tempo atrás que era mais fácil entrar na onda do que tentar
explicar por que seus pais não eram como pais normais.
— Maya apareceu com a pequena Elsa outro dia, que
deve ter o quê? Quase a mesma idade dela? Dois meses?
— Três.
Alex ainda não conhecera a esposa do chefe, mas em
algumas ocasiões durante a gravidez simultânea das duas
elas haviam trocado palavras de apoio ao telefone, por
causa dos enjoos matinais e dos tornozelos inchados.
— Achei mesmo que era perto. Seja como for, Maya falou
que a Elsa é um anjo, já está até dormindo seis horas direto
à noite.
— Que ótimo.
— Desculpa! Se te faz se sentir melhor, ela também disse
que tinha esquecido como isso tudo é difícil. E com Jamie
trabalhando tanto aqui…
— Mudança nenhuma, né? Mas ele deve estar felicíssimo,
não?
Ao dizer isso, Alex se lembrou de quanto o chefe queria
um menino.
— Para ser sincera, acho que ele ficou meio…
— Decepcionado? Ele vai superar. Nós, garotas, não
somos tão ruins assim.
— Com certeza! E se conheço Jamie, ele já deve estar
planejando um terceiro.
Lydia revirou os olhos, mas não conseguiu conter o
sorrisinho que muitas vezes acompanhava a menção do
nome de Jamie por um certo tipo de mulher.
— Você deveria ter visto Jamie e Hayden lá no Firkin
semana passada. Já estavam na terceira caneca e…
Lydia se interrompeu fazendo uma careta pela própria
falta de tato.
— Desculpa, Alex, eu não queria fazer você se sentir…
Não queria parecer desleal. — Balançando a cabeça, ela
continuou. — Hayden sabe que você vem hoje, né?
— Sabe, e convenientemente vai passar o dia em “uma
reunião externa”. — Alex estava se esforçando ao máximo
para não soar amargurada. — Então não vai ser hoje que
Katie conhecerá o pai.
Lydia arregalou os olhos.
— Hayden ainda não foi vê-la?
— Não. — Alex beijou a cabeça da filha com carinho.
Ninguém nunca vai fazer você se sentir como eu me senti.
— Ele deixou muito claro que não quer se envolver.
— Mas ele é o pai dela!
Alex ficou pensando se deveria contar que até isso era
questionável, a ideia de confiar em alguém, qualquer
pessoa, depois do que pareciam ser meses de conversas
consigo mesma, era mais atraente do que qualquer outra
coisa em que conseguia pensar. Mas aquele não era o
momento.
— Além disso, Al… vocês dois vão trabalhar no mesmo
escritório. Ele não pode fingir que você não existe.
— Eu sei, eu sei.
Agora ela só queria se afastar, entrar no elevador que a
levaria para os andares superiores, para além dos portões
de segurança, e ter a conversa que a fez ir até ali. Sentindo
isso, Lydia lhe entregou um passe de visitante, que pareceu
absurdo pendurado no seu pescoço, e liberou sua
passagem.
— Você vai me ligar quando estiver livre para tomar umas
doses de gim e tônica, né? Ah! E não esquece da festa de
despedida da Joyce! Daqui a duas semanas.
Lá no último andar todos estavam de cabeça baixa,
falando baixinho ao telefone ou fazendo reuniões nos
aquários de vidro. Alex não sabia bem o que esperava, mas
não era essa sensação de invisibilidade em um ambiente do
qual era parte tão fundamental poucos meses antes.
Havia saído dali por cima, com uma cesta de produtos
orgânicos infantis e um balão de hélio escrito “Bebê a
bordo”. E talvez essa fosse a questão: a gravidez fizera com
que Alex se sentisse importante pela primeira vez na vida.
Entregadores, baristas, clientes, até sócios como Jill e Paul
tinham notado quando sua barriga começou a aparecer, e
perguntavam quando o bebê nasceria, se era menino ou
menina, e como ela estava se sentindo. Mas Alex aos
poucos começava a entender que, enquanto a gravidez a
tornou importante, a maternidade a tornava invisível. E ao
esquadrinhar o escritório em busca dos seus amigos e
colegas, sentiu alguns olhares breves e desinteressados em
si antes de serem desviados de novo.
Sentada na sua mesa — uma mesa que Alex sempre
mantivera livre de objetos pessoais, mas que agora estava
coberta de cosméticos, cactos em miniatura, revistas e um
ursinho de pelúcia com um babador em formato de coração
com as palavras “Só para você” — estava Ashley. E
enquanto Alex pensava em como cumprimentaria a mulher
que era sua substituta, Katie embalou num choro explosivo,
resolvendo seu dilema.
Em minutos ela estava cercada de mulheres, com Joyce —
que aos 65 anos era a funcionária mais antiga por décadas
— balançando Katie para cima e para baixo na tentativa de
fazê-la parar de chorar.
— Cadê o Jamie? — Alex conseguiu falar por cima do
barulho.
— Está terminando uma reunião com a equipe de Energia
e Sustentabilidade — respondeu Ashley.
Alex lançou um olhar para a sala de reuniões principal. As
costas largas do chefe eram visíveis pelo vidro, através do
qual ele conversava com a supervisora de projetos especiais
da empresa, Nicole.
— Não quero incomodá-lo. Posso esperar… ou volto mais
tarde.
— Não seja boba — retrucou Joyce. — Ele já termina.
— Eu sei bem o quanto ele quer conhecer essa princesa!
— disse Ashley de novo, sorrindo para Katie da sua cadeira.
Embora Alex tenha se forçado a sorrir de volta, não pôde
deixar de perceber como seu escaninho estava cheio. Na
parede da baia atrás, uma colagem de fotos de cabine havia
sido montada, cada tira fotográfica contendo uma paleta de
loiras de tons variados, os rostos inclinados em direção à
câmera com caretas à la Spice Girls. Como essa menina
tinha durado tanto tempo?, se perguntou Alex, antes de
imediatamente se sentir culpada pelo pensamento. Certo,
Ashley não estava concorrendo ao prêmio de funcionária do
ano, mas era óbvio que não tinha ideia de que seus dias
estavam contados, ou então não teria transformado a mesa
do escritório no próprio quarto. Conhecendo Jamie, talvez
até se tornasse responsabilidade de Alex resolver aquilo…
— Gostei do ursinho — disse Alex. — Mas é sério, se for
melhor eu voltar daqui a pouco…?
— Você não vai a lugar nenhum. — Equilibrando Katie em
um dos braços como a avó de quatro crianças que era,
Joyce digitou três números no telefone mais próximo. —
Jamie, querido, estamos com uma visitante aqui. Duas, na
verdade. — Uma piscadela. — Bom, uma e meia.
O que quer que Jamie tenha respondido fez Joyce soltar
uma risada estranhamente jovial, fazendo Alex se lembrar
de que o atrativo de Jamie sempre era mais amplo do que
ela imaginava. Seria sua aparência de garotão, ainda
presente sob o peso extra que ele carregava em torno do
queixo e da cintura? A altura dele e a forma como inclinava
a cabeça para olhá-la nos olhos por um tempo que era só
um pouco longo demais? O sorriso travesso que fazia com
que você se sentisse sortuda por conhecer suas piadas
internas? Alex não tinha certeza. Mas ela já vira todas, de
mulheres de negócio cheias de botox a millennials secas,
ficarem de risadinhas depois de poucos minutos com Jamie.
Para ela, pelo menos, o atrativo do chefe sempre foi claro:
Jamie via você. Isso parecia bobagem, mas Alex já tinha
trabalhado para homens e mulheres que conseguiam passar
oito horas por dia olhando através dela, ou ao redor dela,
sem nunca a ver. E desde o momento em que Jamie a levara
até o escritório para a entrevista, pouco mais de um ano
antes, ela havia se sentido mais sólida: uma pessoa real
com opiniões e histórias que valiam a pena serem ouvidas.
— Al! — Lá estava ele, vindo do outro lado do escritório
numa corridinha tranquila até ela. Pelo canto do olho, Alex
viu as mulheres acertarem a postura e ajeitarem o cabelo.
— Olha só para você. E olha só para você!
Dando uma olhada em Katie, que ainda estava nos braços
de Joyce, Jamie fez uma careta boba.
— Quer um abraço?
— Achei que nunca fosse oferecer.
— Não meu, bobo. Da Katie! — Alex riu, e era gostoso
voltar à rotina de brincadeira dos dois.
Jamie ergueu as mãos, pesaroso.
— Melhor não. Passei a manhã toda apertando a mão de
empreiteiros. E a gente sabe como esse pessoal é sujinho.
Não existe álcool gel suficiente no mundo para lidar com
eles. Mas, Al, ela é tão pequenininha! Quanto ela pesava?
Elsa era uma batatona.
— Dois quilos e meio, então, sim, bem pequena. Elsa
parece tão fofa, Jamie. Tão loirinha! Parabéns.
Eles assentiram um para o outro, conscientes de que a
conversa sobre bebês não duraria muito tempo, e que esse
não era o real motivo de Alex estar ali.
— Como está Maya?
— Ah, ótima, ótima… Você sabe. É mais fácil na segunda
vez.
Joyce de alguma forma tinha conseguido controlar o choro
de Katie, e enquanto os três a observavam balbuciando,
Alex sentiu o nó de tensão no seu estômago relaxar pela
primeira vez naquele dia.
— Ela é muito linda, Al. Parabéns.
Jamie deu uma olhada na faixa mais clara de pele do seu
pulso direito, onde o relógio costumava ficar — um TAG
Heuer dado pela esposa no aniversário de casamento, que
causou a ambos algumas noites sem dormir quando ele o
perdeu —, e indicou o escritório com um aceno da cabeça.
— Vamos entrar rapidinho para conversar?
— Claro.
Alex estava se segurando para não sorrir. Aquilo tudo era
tão transparente. Eles poderiam ter tido aquela conversa
pelo telefone, sem que a pobre Ashley ficasse observando
tudo da mesa e temendo o pior. Mas não dava para negar: a
ideia de Jamie estar nervoso por causa daquela reunião, que
ele talvez tenha até ensaiado o que diria para fazê-la
voltar… Daquilo Alex gostava. Articulou um “obrigada”
silencioso para Joyce e pegou Katie no colo de novo.
Mas Jamie não se mexeu.
— Você não quer… — Ele coçou a nuca, olhando para
Katie. — Não quer deixá-la com a Joyce?
— Não se preocupe.
— Sério? Pode ser mais fácil se…
— Jamie! — Alex riu, começando a ir para o escritório
dele. — Relaxe, ela vai ficar bem.
Na última vez em que se sentara ali, no sofá Roche
Bobois cor de chumbo do chefe e seu orgulho, Alex sentia
um tipo diferente de nervosismo. Preocupada em dar a
notícia da gravidez para Jamie e satisfeita pela primeira vez
na vida por ter um peso extra atrás do qual se esconder, ela
deixou passar mais tempo do que deveria para contar. Mas
em uma tranquila tarde de quarta-feira, com pouco mais de
cinco meses de gravidez, Alex desembuchou enquanto
Jamie ditava um relatório. Foi um acidente, ela gaguejou,
consciente de que era informação demais e não de todo
verdade. E, embora não tivesse planejado ser mãe solo aos
29 anos, Alex garantiu ao chefe que planejava encontrar
uma boa creche logo e voltar ao trabalho o mais rápido
possível. Seu único erro foi presumir que ele já sabia, por
Hayden ou pelos boatos do escritório, a identidade do pai.
— Hayden? — Um lampejo entre incredulidade entretida e
irritação. — Nosso Hayden?
Tinha soado como “meu amigo Hayden”.
— Desculpe. Achei que você já soubesse.
O sorriso de Jamie era tenso.
— Por que achou isso?
— Bom, eu sei que vocês dois são… próximos. —
Cutucando o esmalte das unhas, Alex continuara. — E as
pessoas, bem… Elas pareciam saber sobre a gente. Embora
eu tenha tentado…
— Ótimo. — Jamie se recostara na cadeira com força. —
Bom, para responder à sua pergunta: não, eu não sabia.
Alex se surpreendera com a reação do chefe antes de se
lembrar de como ele odiava ficar de fora de qualquer coisa
que tivesse a ver com a BWL.
— Quando falei “pessoas”, não quis dizer que…
— Para ser sincero, só estou surpreso de você ter
esperado tanto tempo para me contar — ele interrompera.
— Disse que já está de cinco meses?
Quando Jaime baixou o olhar para a barriga dela, Alex
engoliu um quê de vergonha, como se eles tivessem sido
enviados para o século passado, e ela fosse uma mulher da
vida trazendo desonra para todos eles.
— Isso. Um pouco mais.
— E Hayden, como ele está se sentindo com tudo isso?
— Nós não estamos… juntos, na verdade.
Alex sabia que os homens tendem a não discutir sua vida
pessoal de forma tão minuciosa quanto as mulheres, mas
não conseguia deixar de se sentir um pouco ofendida por
Hayden não ter nem mencionado o relacionamento — ou o
fim dele — mesmo de passagem.
— Mas, olha, se você está preocupado com qualquer tipo
de clima estranho no escritório pode ficar tranquilo. Nós
somos adultos e isso não vai afetar meu trabalho de jeito
nenhum, Jamie. Isso eu te prometo. Eu amo esse emprego
— completara ela, já sem fôlego. — E espero que você saiba
que eu sempre vou estar disposta a fazer tudo o que for
preciso por você.
Depois de uma breve pausa, Jamie a assegurara de que
tinha ciência disso (“todo mundo sabe que você é uma
máquina, Al, e que eu estaria perdido sem você”). Ele
parecera surpreso, mas também um pouco aliviado, por ela
já ter decidido sua data de retorno, e grato quando a
substituta apareceu, por Alex ter sido tão detalhista quanto
sempre fora. E apesar do arquivo extenso que montara e da
tarde que insistira em passar com Ashley, ela havia saído
sem se convencer de que a substituta compreendia tão bem
quanto deveria o software que a BWL usava. Esse era um
bom ponto para começar a conversa naquele dia: Jamie
parecia precisar de um empurrãozinho.
— Olha, eu estava falando sério quando disse que poderia
ajudar com qualquer coisa que Ashley não tivesse
entendido, Jamie. Eu sei que ela tem tido dificuldades com a
intranet.
— Alex — interrompeu Jamie, passando a mão na testa. —
O problema não é Ashley. O problema é você.
Apoiando Katie no ombro, Alex começou a esfregar as
costas da filha. Não havia percebido sinais de gases, mas
estava consciente de uma necessidade urgente de fazer
algo com as mãos — fingir, ao menos, que sua visão
periférica e audição não tinham sido bloqueadas, com
apenas as palavras nos lábios de Jamie formando um túnel
visual. E uma memória surgiu de algum lugar profundo
dentro dela. Notícias ruins, do tipo que mudam vidas,
contadas de forma tão casual por um homem; você sempre
as adivinha com um milissegundo de antecedência. Foi o
que aconteceu ali.
— Alex, vamos ter que encerrar sua passagem pela BWL.
CAPÍTULO 3

JILL

– C omo assim, eles começaram uma hora atrás?


— O sr. Ho chegou mais cedo — explicou Joyce. —
Jamie achou que era melhor começar e não deixá-lo
esperando.
— Sei.
Não era incomum para a assistente de Jill ter conversas
inteiras sem desviar o olhar do monitor sequer uma vez,
mas algo na tensão da voz da chefe naquele momento a fez
erguer os olhos.
— Sinto muito. Tentei te ligar, mas seu celular estava
desligado.
— Eu estava no hospital.
— Eu sei. E falei para Jamie que provavelmente você
preferiria que ele esperasse, mas quando não consegui falar
com você…
— É claro. — Jill folheou um relatório de pesquisa na mesa
de Joyce. — Eu lembrei à substituta de Jamie ontem que eu
chegaria em cima da hora para a reunião.
— Ah.
— Qual o nome dela mesmo?
— Ashley? Ela acabou de ser contratada. Você sabe…
Agora que a Alex foi demitida.
Uma explosão de risadas veio da sala de reunião, onde
Jamie gesticulava em frente à maquete do Lots Road Hotel
que Jill passara os últimos quinze dias preparando com o
arquiteto para aquela reunião.
Não era fácil arrancar um sorriso daqueles empresários
da Malásia. Durante todos os anos em que o sr. Ho foi seu
cliente, Jill só se lembrava de poucos momentos de sorrisos
de verdade, com “olhos e dentes”, quando algum acordo
longo e complexo finalmente era fechado. Mas sobre o que
quer que Jamie estivesse brincando naquele momento fizera
Ho e os colegas se iluminarem, cutucarem uns aos outros,
repetindo a piada. Até Paul — recostado na cadeira
assistindo ao parceiro carismático fazer o que fazia de
melhor — estava rindo, de alguma forma aproveitando um
show que já devia ter visto mil vezes antes.
Essa era a questão sobre Jamie: ele era um performer.
Além de sua rara habilidade de fazer conexões com
qualquer pessoa, de qualquer classe social ou estilo de vida,
essa era a razão pela qual ela e Stan o contrataram, quando
ele ainda era um trintão metido querendo sair do mercado
de propriedades corporativas para algo mais “suculento”:
essa foi a palavra que ele usou — algo com um quê de
predatório com que ela se preocupou de início. Contudo, os
projetos de significado arquitetônico que ela e Stan tinham
jurado proteger ao criar a empresa eram densos, em
história e cultura —, então, sim, eram algo em que seria
possível cravar os dentes. E quando o marido dela decidiu
se aposentar, os dois sabiam que só havia um homem
capaz de ocupar seu lugar.
— Bom, eu posso participar do final. O sr. Ho vai se
perguntar por que não estou lá.
Era como se estivesse pedindo a permissão da sua
assistente. E Joyce, já de volta à digitação, só assentiu,
deixando que Jill questionasse a índole hesitante de sua
declaração — e o fato de que ainda não tinha se movido em
direção à sala de reuniões.
Nos três anos em que o nome de Jamie esteve ao lado do
dela e do de Paul nas paredes de mármore, nos papéis de
carta, nas telas de apresentações e nos créditos do
software, eles nunca tiveram motivo para se arrepender
daquela decisão, pensou ela, com os olhos fixos no
protegido que havia muito superara a necessidade de
qualquer mentor. Ah, como era bom ter aquela energia! Jill
sempre fora confiante, até vibrante quando precisava ligar
essa faceta sua para uma sala cheia, sem nunca sofrer da
tal “síndrome de impostora” de que tantas mulheres
reclamavam. Mas a capacidade de Jamie de fazer com que
os clientes tomassem decisões ambiciosas, caras e às vezes
até imprudentes… isso ela nunca teve. Nem quando tinha
vinte ou trinta anos, e certamente não agora, depois de
recuperar sua força vital a duras penas após a menopausa,
para voltar a ser destruída pelo diagnóstico de Stan. E, se
alguém naquela sala em algum momento estivera
esperando por ela, ela foi forçada a admitir, não a esperava
mais.
Não importava que foi ela quem convenceu o
conglomerado malásio a vender a estação de energia para
começo de conversa. Ou que foi graças a ela que o sr. Ho
vendera o condomínio histórico no Chelsea por pouco
menos do dobro do preço pedido, cinco anos atrás. Agora
que ela tinha alinhado tudo, talvez fosse natural, correto,
que Jamie fizesse o que fazia de melhor e estimulasse as
papilas gustativas do cliente com um banquete de
potenciais compradores.
— Jill?
— Sim?
— Posso pegar as suas…?
Seguindo o olhar de Joyce, Jill percebeu que ainda estava
usando o trench coat de verão, a bolsa pendurada na dobra
do braço. Em uma série de movimentos rápidos, ela se
livrou dos dois e os entregou para a assistente.
— Obrigada.
Mas agora que havia decidido que talvez fosse melhor
não ir à reunião do que entrar naquela sala e ser forçada a
correr atrás do prejuízo, Jill se ressentia da decisão.
“Melhor” na verdade significava “menos humilhante”, e a
impotência que ela sentia olhando para aqueles homens
pelo lado de fora do aquário era horrivelmente conhecida. A
sensação trouxe lembranças de cenas idênticas, décadas
antes, quando — com terninhos baratos e o cabelo
naturalmente loiro —, com frequência, a faziam se sentir
insignificante, não mais necessária.
— Joyce?
— Hum?
— O que aconteceu de verdade com a assistente do
Jamie? Ele não entrou em detalhes.
— A Alex? Eu nem sabia que a empresa podia fazer isso,
demitir alguém no meio da licença-maternidade. Eu entendo
que ela cometeu um erro…
— Que foi…?
— Desculpa. — Sua assistente digitou mais uma frase,
apertou “Enter” e se virou para ela. — Então, sim, parece
que ela fez o Jamie assinar um arquivo de diligência devida
sem ter toda a documentação acertada. Coisas importantes,
tipo a confirmação do empreiteiro contra lavagem de
dinheiro, estavam faltando. O que seria impensável mesmo
na melhor das situações, mas quando o comprador é um
empreiteiro georgiano com quem nunca trabalhamos
antes…
— Aquele tal de Khalvashi — murmurou Jill.
— Teria sido um problemão se Paul não tivesse percebido.
Jill estava com a papelada do dia em mãos e já poderia
estar no escritório, abrindo cartas e iniciando suas ligações
matinais, mas sentia uma curiosa inabilidade de fazer
qualquer uma dessas coisas.
— O mais estranho é que a Alex era ótima. Muito mais
eficiente que a assistente anterior dele. — Joyce fez uma
careta para a tela do computador. — Talvez fosse o “cérebro
de grávida”, como Jamie falou.
— Ele não deveria falar uma coisa dessas. E isso existe,
aliás? Eu não sei dizer.
— Às vezes você fica meio confusa, sim — respondeu a
assistente com uma risadinha. — Mas do jeito que os
homens falam, é de pensar que a gente tenha sofrido uma
lobotomia no momento em que o óvulo foi fecundado. — Ela
parou, franzindo a testa. — Eu fiquei meio surpresa. Ele vai
ter dificuldade de encontrar alguém tão meticuloso quanto
a Alex. Ela enlouquecia todos os motoristas, pedindo para a
avisarem assim que Jamie estivesse “a bordo”, assim ela
poderia atualizar a previsão de chegada dele a quem quer
que o estivesse esperando. Como se ele fosse o primeiro-
ministro, sei lá.
— Aposto que ele adorava isso.
Papéis estavam sendo guardados na sala de conferências,
pastas fechadas, indicando o final da reunião. Os malásios
estavam de pé fazendo suas reverências curtinhas.
— Ela nunca chamou minha atenção, tirando aquela
história toda com Hayden. Isso circulou pelo escritório, né?
— Jill baixou a voz. — Tenho que dizer… Sei que sou velha,
mas ficar grávida de uma relação casual com um colega de
trabalho?
— Não me diga que isso nunca aconteceria na nossa
época.
— Bom, aconteceria?
Joyce parou de digitar só pelo tempo necessário para
lançar a Jill um olhar incrédulo.
— Acho que isso acontece em festas de escritório desde
que o mundo é mundo.
— E isso aconteceu na nossa?
— No aniversário de quarenta anos da BWL, pelo que eu
ouvi falar.
— Caramba. Eu era a primeira a saber dessas coisas
antigamente. Quando foi que fiquei tão desligada de tudo?
A resposta pairou no silêncio entre elas. Quando seu
marido descobriu que estava com câncer.
Jill passou a mão pelo cabelo. Ela sempre se orgulhou de
como tinha poucos cabelos brancos, mesmo se
aproximando dos sessenta. Mas, nos últimos meses, ela
sentiu e viu a cor e a textura dos fios mudarem, e com tudo
que ela e Stan estavam enfrentando, esse parecia mais um
golpe maldoso da Mãe Natureza.
— Estou me sentindo pra baixo — murmurou Jill, mais
para si mesma que para Joyce. — Preciso limpar esse ar de
hospital de mim. Pode me fazer um favor e…
— Café e croissant de damasco?
— Você é um anjo. — Jill sorriu. — Como vou viver sem
você?
— Não começa. Todos esses anos sonhando com esse
momento, e agora a ideia de marcar a caixinha de
“aposentada” em formulários me dá vontade de chorar.
Esqueça você, o que eu vou ficar fazendo o dia inteiro?
Jill balançou a cabeça.
— Postar fotos dos netos no Facebook?
Vozes masculinas abafaram o final da frase, e enquanto
eles se retiravam da sala de reunião, Jill ajeitou a saia Jaeger
que comprara em todas as cores — algo que fazia de vez
em quando com peças básicas de escritório — e caminhou
com confiança em direção ao grupo de homens.
— Sra. Barnes.
— Sr. Ho, é um prazer vê-lo, e sinto muito por não ter
podido me juntar a vocês. Espero que o sr. Lawrence tenha
explicado que precisei me ausentar.
— Não é problema. Já preparamos toda a estratégia de
marketing, não é? E o sr. Lawrence parece confiante de que
vai conseguir nos arrumar uma venda até junho.
— Isso é em menos de um mês.
— Ele disse que é possível. — Erguendo o braço, o sr. Ho
apoiou a mão de leve nas costas de Jamie. — E, sra. Barnes,
espero que possa mandar minhas lembranças ao seu
marido. Eu não tinha ideia de que ele estava tão mal.
O sorriso de Jill congelou no rosto.
— Meu irmão passou pelo mesmo. — Ele assentiu com
empatia. — Ele venceu, mas, bom… Próstata é um dos
piores.
Quando o sr. Ho pegou a mão de Jill, ela sentiu a raiva
aumentar e bloquear sua garganta. Uma coisa — a única
coisa que o estoico e pouco exigente Stan pediu desde o
início: “Você vai se certificar de que nenhum dos clientes
descubra, não é, amor? Sei que os sócios vão ter que ficar
sabendo e os gerentes também. Mas ter mais gente
sabendo, todos os clientes com quem trabalhei todos esses
anos… Bem, acho que não aguentaria.”
— Obrigada — ela conseguiu responder.
— Estou surpreso de vê-la aqui — continuou Ho. — Espero
que não tenha vindo só por minha causa, Jill.
— Ah, eu continuo trabalhando…
— Porque o Jamie me falou que você está passando a
maior parte do tempo em casa, que é onde deveria estar.
Não aqui no escritório. E estou sendo bem cuidado por esse
rapaz aqui. — Sorrindo, ele apontou com a cabeça para
Jamie. — Mas mande nossos desejos de melhoras para o sr.
Barnes.
Com outra pequena reverência, o cliente dela começou a
seguir para o elevador, acompanhado por Jamie.
— Sr. Ho. — O horror de Jill de ser o tipo de mulher que
era forçada a trotar para acompanhar os homens significava
que sempre mantinha a altura dos saltos em cinco
centímetros ou menos, e ainda assim eles estavam andando
tão rápido que ela teve dificuldade para acompanhá-los. —
Tenho confiança de que a Lots Road vai chamar a atenção
de muitos compradores, ainda temos algumas burocracias
que precisamos resolver antes de sequer começarmos a
mostrar a propriedade… As questões que comentei com o
senhor no início do ano. Então quando falamos junho…
— Eu sei. Mas o sr. Lawrence aqui diz que eles vão
comer… — Dando meia-volta nos brogues minúsculos e
brilhantes, o sr. Ho se virou para Jamie.
— Comer na sua mão. Vão mesmo, sr. Ho. Vão mesmo.
— Jamie pensa, como dizemos, “fora da caixa”. Nós
adoramos isso. Meus amigos do escritório de Hong Kong me
disseram que ele é uma estrela em ascensão.
— Em ascensão? — Jamie fez uma careta.
— Já ascendida! — O sr. Ho deu uma risada. — Já
ascendida, sr. Lawrence…
— Pode me chamar de Jamie.
— Jamie. Vamos nos falando.
Enquanto o pequeno batalhão de homens em ternos
idênticos e bem-arrumados entrava no elevador e
desaparecia de vista, Jill atravessou o andar e voltou até seu
escritório, onde Joyce já a esperava com sua
correspondência e bolsa esquecidas. Mas, antes de iniciar o
ritual de décadas de confirmação da agenda do dia, Joyce
fez uma pausa, os lábios apertados.
— O quê?
Joyce piscou, confusa.
— Eu não sabia que Stan tinha permitido que
contássemos para os clientes.
Sem tirar os olhos das costas metidas a besta de Jamie,
sem se incomodar em disfarçar uma emoção que até aquele
dia ainda era vaga, quando se tornou muito claro para Jill
que o sócio não era só insensível, mas que estava
deliberadamente minando sua autoridade, Jill respondeu:
— Ele não permitiu.
CAPÍTULO 4

NICOLE

– E sses rodatetos. Por favor, olha só esses rodatetos!


Nicole aprendera a ficar em silêncio na pausa
depois das exclamações de surpresa dos clientes. A deixar
com que eles se surpreendessem com claraboias, túneis
solares e sacadas Julieta. A não estragar o momento com
seu blá-blá-blá. Não que Rupert Jones fosse um cliente
típico. Ela era capaz de apostar que ele sabia mais sobre os
detalhes da arquitetura neoclássica que ela.
Arquitetura brutalista era mais o estilo de Nicole: as
linhas limpas e igualitárias não só combinavam mais com
seus ideais políticos, como também a emocionavam de
forma mais profunda, enquanto o Vale Theatre — por mais
surpreendente que fosse em toda a sua grandiosidade
envelhecida — de certa forma não conquistava seus
sentidos. Com o passar do minuto em que ela e Rupert
ficaram admirando em silêncio o teto do teatro, as treliças
serpenteantes de frutas, folhagens e flores começavam a
parecer quase ridículas.
— Óbvio que vai ser preciso algum trabalho de
restauração — comentou ela. — Mas se você imaginar isso
como o átrio central e talvez pensar em um bar aqui e outro
ali…
Os três engravatados do financeiro que Rupert trouxera
estavam assentindo, mas era com o bilionário de jeans e All
Stars velhos que ela se importava.
— Com certeza está bem melhor do que eu achei que
estaria — enfim disse o cliente. — E Jamie me falou que o
conselho não vê problemas, a princípio, em transformar o
prédio em um clube?
— Parece que não. Sei que ele confirmou isso antes de
entrarmos em contato.
Havia muito mais a mostrar e contar para Rupert sobre
aquela propriedade. Nicole estava particularmente
orgulhosa de ter encontrado aquela peculiaridade
arquitetônica escondida na papelada confusa da Inglaterra
histórica.
No teto do Vale Theatre, invisível a qualquer um que não
fosse um pássaro ou um avião, havia um pequeno domo de
vidro octogonal que permitia a entrada de luz antes de ter
sido escondido por um alçapão no teto tempos depois.
Aquela estrutura existia em poucos prédios históricos no
país atualmente, e Nicole achou aquilo tão fascinante que
na semana anterior havia se aventurado em uma escada de
corda que levava do palco para a cobertura do telhado.
Sozinha lá em cima, ela se maravilhou com a vista do
noroeste de Londres — e as escotilhas enferrujadas ainda se
abriam para o telhado, mesmo depois de tantos anos. Ainda
assim, algo — talvez tão simples quanto o desejo de manter
aquilo um segredo só seu por mais um tempinho — impediu
Nicole de compartilhar aquilo com Rupert pelo momento.
— Onde está o sr. Lawrence, aliás? Achei que ele se
juntaria a nós.
— Ele está a caminho. — Nicole verificou o celular.
— Ou será que deveríamos chamá-lo de “Jamie Negócio-
Fechado Lawrence”?
— Você viu a matéria na Property Week.
— Difícil não ver. — Rupert inclinou a cabeça para trás e
observou o arco amplo do proscênio. — Tinha o quê?, umas
cinco ou seis páginas? Não que ele não mereça: vendas de
18 milhões não acontecem mais como antigamente. A BWL
deve estar bem contente com seu menino de ouro.
— Está mesmo. — Nicole assentiu, sentindo o sorriso à
beira de um colapso. — Bom, ele deve chegar a qualquer
minuto. Aí vai poder te dar os detalhes sobre as discussões
com o conselho. — Ela pausou: com Rupert, menos era
sempre mais. — Mas você foi a primeira pessoa em que
pensei quando conseguimos o Vale.
— Bom, você já acertou em cheio antes. E então,
conseguimos chegar aos camarotes?
Nicole sempre gostou de lidar com Rupert. Sabia que ele
tinha registrado o fato de que ela era atraente, mas só da
maneira passageira e objetiva que se registra o gênero ou a
etnicidade de uma pessoa — não com o desejo de se
aproveitar do fato, como a maioria dos homens. Pontual,
educado e de voz suave, o hoteleiro também não exagerava
em mostrar seu sucesso, o que era raro no mundo duro e
competitivo em que ela habitava, e algo que Nicole gostava
de pensar que seria capaz de fazer quando enfim chegasse
aonde queria chegar.
— Vou precisa de um café — anunciou Rupert depois que
terminaram o passeio. — Para ontem. Que tal você ligar
para Jamie e falar para ele nos encontrar na Lytton House
em dez minutos? — Era um dos clubes exclusivos de Rupert,
ela lembrou, que ficava logo adiante na mesma rua. — Vou
pedir algo para bebermos na sala de jantar superior, e você
pede para ele nos encontrar lá.
Enquanto o cliente passava instruções para a equipe pelo
telefone, Nicole apertou o botão de “atalhos” no celular e
ficou com o polegar pairando sobre o contato de Jamie,
torcendo para o chefe aparecer antes que ela tivesse que
ligar. Por que ele sequer era necessário hoje? O teatro era
um projeto de Nicole.
— Tudo certo? — Rupert ergueu uma sobrancelha e,
relutante, Nicole apertou o ícone de telefone verde.
— Alô-ô?
O ódio explodiu dentro dela como um rojão.
— Jamie. — Ela manteve a voz calma. — Já acabamos
aqui no Vale, e Rupert estava pensando que você poderia
nos encontrar na Lytton House para conversar sobre os
detalhes. — Nicole abriu um sorriso para o cliente. — O
homem precisa de cafeína.
— Claro. Estou no trânsito, mas devo chegar em uns vinte
minutos.
Jamie chegou em menos tempo do que isso, atravessando
as portas duplas da sala de jantar com um batalhão de
explicações que não importavam para ninguém — muito
menos para o cliente dela, certo? E mesmo assim, lá
ficaram os dois, imediatamente mergulhados em
reclamações sobre o trânsito de Londres. Você não está
preso no trânsito, você é o trânsito. Nicole enfiou a unha na
coxa por baixo da mesa, se preparando.
— Bom, você sabe o que dizem… — concluiu Jamie,
estalando a língua. — “Você não está preso no trânsito,
você é o trânsito.”
Bum. Tão previsível quanto um câncer.
— Então os números na página cinco do prospecto são o
que estamos vendo — murmurou ela, ao se voltar para os
homens do dinheiro, deixando Rupert e Jamie conversando.
Dois deles começaram a folhear a papelada na hora, mas o
terceiro, mais simpático, teve a educação de sorrir antes. —
Espero que vocês não tenham passado aquele domingo de
sol trabalhando. Fez mais calor que em Barbados, disseram
no noticiário.
O tempo estava muito louco naquele meio de maio, as
flores dos castanheiros-da-índia que ladeavam os caminhos
do parque eretas como cones de sorvete contrastando com
as folhagens novas. Aquele domingo tinha sido o dia mais
quente do ano. Mas Nicole ficou contente em ter uma razão
para ir embora mais cedo. Eles estavam vagando pelos
bancos lotados do lago Serpentine quando Ben sugeriu que
alugassem um pedalinho. Chloe ficou animadíssima, mas
Nicole não suportaria as filas, os avisos e os aluguéis de
coletes salva-vidas. A logística da coisa sempre parecia
sugar a alegria de qualquer passeio em família.
— A mamãe vai ter que voltar e trabalhar um pouco —
disse para a filha, abaixada na altura dela. — Mas por que
você e o papai não vão passear nos barquinhos, e a gente
come um jantar gostoso quando voltarem?
Enfim liberada e exultante pela independência, Nicole
tinha se apressado pelos caminhos do parque em direção à
Bayswater Road, costurando por entre as famílias que
ocupavam a calçada com carrinhos, patinetes e criancinhas
correndo e lançando olhares furtivos para os pais que, sem
se incomodarem com o pandemônio, não pareciam estar
fingindo se divertirem.
Será que ela era a única pessoa para quem a alegria do
fim de semana muitas vezes parecia forçada? Será que
nenhuma dessas mulheres se sentia tão exaurida ao fim
dessas ocasiões familiares, tanto formais como informais,
quanto uma atriz ao cair da cortina? Por outro lado, a mãe
de Nicole sempre dizia que ela criava expectativas demais.
Chegar ao meio-termo, ela gostava de dizer, não era “nem
abrir mão nem desistir: era só a vida”. E talvez ela tivesse
razão. Mas no contexto profissional, não havia meios-termos
positivos, o que era outra razão pela qual Nicole tinha mais
facilidade em lidar com a carreira e porque ela, às vezes, se
sentia mais confortável sentada em volta de uma mesa com
homens de negócio do que em casa com Ben. Até quando
Jamie era um desses homens.
Embora eles tivessem deixado o lugar na cabeceira da
mesa para Jamie, ele tinha decidido se sentar em frente a
ela, e agora reclinava-se na cadeira, com o pé calçado em
um mocassim de camurça Tom Ford apoiado no joelho
oposto, a calça subindo para revelar alguns centímetros da
pele pálida do tornozelo. Nicole tentava evitar olhar para ele
sempre que possível, mas a palidez tipicamente britânica
daquele tornozelo era como um clarão em meio aos tons
terrosos fechados do cômodo, forçando-a a erguer o rosto.
Quando ela enfim o encarou, Jamie estava olhando
diretamente para ela.
— Acredito que Nicole tenha explicado todas as restrições
de tombamento do Vale. Nossa Nic é sempre detalhista.
Um sorrisinho… Com que intenção? Envergonhá-la?
Intimidá-la? Fosse qual fosse, não previa uma resposta, e foi
por isso que ela retrucou, um pouco animada demais:
— Obrigada, Jamie! — E completou: — É muito raro que
edifícios nessa lista apareçam, até para nós, e a história
desse prédio é simplesmente inacreditável.
— Vamos deixar que Rupert leia mais sobre isso quando
tiver um tempo — interrompeu Jamie, sorrindo irritado para
o cliente.
As altas janelas arqueadas da sala de jantar ampliavam o
calor da tarde, mas, enquanto os outros homens tinham
tirado o blazer no começo da reunião, Jamie permanecera
com o seu, e pingos de suor pontilhavam a frente da camisa
azul-claro. Quando ele levou a mão ao pescoço para
afrouxar a gravata, Nicole sentiu a respiração acelerar,
como se o suprimento de oxigênio na sala tivesse sido
reduzido.
Está gostando? Quer mais?
A mesma camisa? As mesmas manchas de suor. Só que
as manchas estavam a centímetros do rosto de Nicole, e a
mão foi erguida não para o pescoço dele, mas para o dela.
Eu sinto que você quer, Nic.
O dedo é apertado com força. E parece uma explosão, do
tipo que a faz rebater com uma explosão própria. Mas,
quando ela se movimenta, empurrando com toda a força o
peito suado de Jamie, ele simplesmente a gira com
facilidade, enfiando o nariz dela na parede da sala de
reuniões — os dedos ainda firmes em torno do pescoço
dela, sua aliança gelada na clavícula dela.
— Nicole? — Uma fileira de rostos masculinos a encarava,
aguardando. — O muro do jardim?
— O…?
— Você sabe se o muro do jardim vai poder ser
derrubado… ou movido?
— Mais uma vez, infelizmente não saberemos até o
comitê de planejamento nos retornar. Mas com certeza
esperamos que seja uma possibilidade. — As mãos estavam
tremendo, o rosto tensionado. — Enfim… — ela assentiu
para Rupert — … você será o primeiro a saber assim que
recebermos esses detalhes.
Manter a conversa fiada pelo restante da reunião ajudou
Nicole a recobrar uma máscara de controle. Contudo,
enquanto apontava fatos e números, nunca se permitindo
ser abafada pelos homens ou ficar em silêncio por tempo
demais, ela sentia os olhos de Jamie em si, questionadores.
Ele havia lido a mente dela, Nicole sentia, e gostou de vê-la
desconfortável. Agora estava irritado com sua recuperação.
— Certo. — Rupert ficou de pé e os homens do dinheiro o
acompanharam. — Vamos retomar semana que vem,
quando já tivermos todos os detalhes?
— Com certeza. — Nicole queria ser a primeira a
assegurá-lo disso.
Enquanto Rupert e os outros saíam da sala, Nicole
recolheu seus papéis o mais rápido que pôde. Mas Jamie,
sempre um cavalheiro, já estava parado à porta.
— A gente se vê na festa de despedida da Joyce na
quinta? — perguntou ele em voz baixa quando ela se
aproximou.
— Estarei lá.
A passagem estava mais estreita por causa de Jamie,
parado ao lado da porta, sólido, imóvel, sorrindo com o
braço esticado, e ela hesitou.
— Depois de você.
Imbuídas nessas três palavras havia muitas coisas: poder,
principalmente, e também desafio, além de uma alegria
adolescente de ver o desconforto causado. E, apesar de
todo o esforço para manter a compostura, Nicole se sentiu
prendendo a respiração ao passar, como se de alguma
forma pudesse encolher até ficar invisível, ignorando que o
polegar de Jamie — sob o pretexto de guiar sua passagem
— havia roçado de leve, quase em um carinho, em sua
coluna de cima a baixo.
CAPÍTULO 5

ALEX

A primeira taça de rosé a tinha derrubado, e Alex ficou


grata por ter o bar para se apoiar. De onde estava, no
canto do pub, também conseguia ficar de olho no fluxo
constante de pessoas que chegavam da BWL, o coração
acelerando e depois se acalmando toda vez que a porta se
abria para alguém… que não era Jamie.
— Para com isso. — Recém-chegada da pausa para fumar
do lado de fora, Lydia tinha reaparecido envolta em uma
brisa de tabaco mentolado.
— Parar com o quê?
— Talvez ele nem venha.
Não havia dúvida para nenhuma delas de que “ele” não
era Hayden, que estava bem longe, em uma conferência em
Oxford.
— Claro que Jamie vem. Ele ama a Joyce. — Ainda estava
cedo, mas Alex imaginava que o número de pessoas que
viera se despedir da colega já estava batendo meia
centena. — Olha só quanta gente. Todo mundo ama a Joyce.
— Tá, ele deve vir — concordou Lydia, a contragosto. —
Mas aqui está lotado. É só ficar longe. — Encarando a taça
vazia de Alex, ela franziu a testa. — E tome cuidado. Você
sabe o que dizem sobre ter bebês: é como se você nunca
tivesse bebido na vida.
Alex não tinha intenção nenhuma de evitar Jamie. E não
estava nem um pouco a fim de tomar cuidado. Cheia de
energia devido à raiva que não sentia igual havia anos,
desde que tivera aquela última conversa com o pai (“Eu e
sua mãe achamos que vai ser melhor” — como se pedir
para a sua filha de 16 anos sair de casa fosse uma decisão
chata, mas nada pessoal), naquela manhã, ela fez luzes no
cabelo e o cortou na altura dos ombros, apertando-se em
uma calça que não era de maternidade pela primeira vez
em quase um ano.
— Você está incrível — disse Lydia com um sorriso. —
Estou feliz que tenha vindo.
— Nem acredita que eu vim, né?
— Também. — Ela balançou a cabeça. — Eu sei que já
falei isso mil vezes, Alex, mas eu sinto muito mesmo. Ainda
nem consigo acreditar.
— Nós duas. Mas, Lyds, você não contou para ninguém,
né? Jamie concordou em não comentar, em dizer para as
pessoas que a decisão foi minha. E preciso que acreditem
nisso para poder arrumar outro emprego.
— Bom, ele foi legal em fazer isso. Aquele babaca. Eu não
teria te culpado por não vir hoje.
Alex deu de ombros.
— Eu falei para Joyce que viria.
Era verdade. Mas não foi por isso que ela se deu ao
trabalho de acostumar Katie à mamadeira só por aquela
noite, chamar uma babá para a filha pela primeira vez,
gastar dinheiro que não tinha com um corte de cabelo que
lhe daria a confiança de que precisava, e ir de Acton a
Ravenscourt Park. Não, por mais que ela gostasse de Joyce,
aquela noite era sobre algo mais importante: encurralar
Jamie e forçá-lo a cumprir sua promessa.
— Você ainda não me contou o que houve. Em um minuto
você estava toda sorridente, subindo com a Katiezinha, e no
seguinte estava saindo do elevador totalmente transtornada
dizendo que ele… — Lydia não se incomodou em baixar a
voz — … Dizendo que aquele puto tinha te demitido!
Alex fez uma careta, desejando pela milésima vez que
não tivesse despejado a verdade para a colega ao sair do
prédio aos soluços, 15 dias antes.
 
— Você está me demitindo?
Jamie também não tinha gostado daquela palavra.
— Estou encerrando sua passagem pela empresa.
Enquanto tentava compreender o que o chefe dizia, seu
primeiro pensamento foi: foi por isso que ele hesitou
quando Alex insistiu em levar Katie para o escritório. Foi por
isso que Jamie queria que ela deixasse a filha com Joyce. E
enquanto todas as ramificações das palavras dele se
desenrolavam em sua mente como dominós, ela acabava
voltando para aquilo. Aquela seria a última vez em que
entraria no escritório que se tornara seu segundo lar: um
lugar seguro em que sabia que sua eficiência, lealdade e
discrição eram percebidas e apreciadas. Não haveria mais
as reuniões com os clientes que ela tanto amava, nem cair
no sono ao repassar a agenda de Jamie do dia seguinte. O
que ela diria para as pessoas? O que pensariam dela? E o
empréstimo da mãe. Meu Deus, o empréstimo. Sem
emprego, ela não conseguiria nunca pagar o empréstimo
até o fim de agosto, como prometera. Mas Jamie não queria
demiti-la na frente da bebê. Por quê? Porque se sentia
culpado. Porque estava mentindo. Porque nada do que disse
para ela no escritório naquele dia era verdade.
— Você me falou que aquele arquivo podia ser assinado!
Alex havia ficado tão surpresa pela cara de pau daquela
mentira que abandonou o tom de voz respeitoso.
— Não. — Um franzir de sobrancelhas, um sorriso sem
graça, como se fosse estranho, vergonhoso, até, que ela
estivesse questionando isso. — Você não deve estar se
lembrando direito. E, olha, se você se confundiu. Mas não
estamos aqui para discutir como isso aconteceu.
— Eu sei como aconteceu! — Saber a verdade e vê-la
sendo tão facilmente ignorada a fez se sentir como se
estivesse presa em um pesadelo, impotente contra alguma
força maior que a empurrava para trás. — Eu me lembro
porque achei estranho na época, Jamie, não achei certo sem
ter as confirmações do empreiteiro. Mas não… “Eu vou
assinar o arquivo do Khalvashi”, você falou. “Vou anexar os
outros documentos quando eles chegarem.”
— Alex.
— Eu me lembro de questionar isso. Eu me lembro.
Cheguei até a falar: “Eles não chamam de diligência devida
por um motivo?” Porque esse é todo o objetivo daquela
história de transparência internacional que saiu no jornal
um tempo atrás. Era para que homens como Levan
Khalvashi, empresários de “importação e exportação”,
sempre tão vagos sobre o que importam ou exportam,
tivessem a origem do dinheiro verificada antes de
investirem neste país?
— Alex, estou tão chocado quanto você. De verdade, vai
ser como perder minha mão direita. Mas isso não me faz
duvidar da sua competência nem um pouco. Você estava
com muita coisa na cabeça na época, por causa da gravidez
e tal. — Naquele momento, seus olhos foram atraídos para o
monitor, e ela ouviu o mouse fazer um clique baixinho.
Jamie estava checando e-mails enquanto a demitia? —
Claramente foi um erro, e sei que você se sente muito mal
por isso, mas você sabe como temos que ser superfirmes
em relação a diligências devidas. Se esse erro não tivesse
sido visto, todos nós estaríamos na merda. E foi por pouco.
 
— Então, vai me contar o que houve?
Alex se serviu de mais uma taça da garrafa no balde
sobre o bar.
— É open bar até as dez. Bebe aí.
— Tudo bem. Não precisamos falar sobre isso hoje. Mas
você está proibida de fugir assim que Jamie chegar.
Mais uma vez a porta se abriu — e Alex prendeu a
respiração. Mas era só um grupinho de funcionárias do
marketing.
— Alex! Você não vai fugir, né?
— Não.
Muito pelo contrário. Alex não deixaria aquele pub até
que tivesse a conversa que vinha tentando ter com Jamie
nas últimas duas semanas, apenas para ser enganada e
enrolada por telefone e e-mail por Jamie e, mais humilhante
ainda, por Ashley. Todas as vezes ele estava “em uma
reunião”, “em uma visita” ou, no início da semana, quando
ficou óbvio que as desculpas haviam se esgotado,
“ocupado”.
Mesmo assim, Alex confiava que Jamie manteria o acordo
de dizer que ela saíra da BWL para “passar mais tempo com
a filha”. Assim como ela confiava que não haveria “menção
a esse ‘lapso’ na papelada, que simplesmente atestaria que
você pediu demissão”. Porém, mais do que tudo, ela
confiava que ele cumpriria a promessa que arrumaria outro
emprego para ela. “Já falei superbem de você para um
colega na JLL que está procurando uma assistente. Só
maravilhas. Então é basicamente uma questão de te colocar
em contato com ele para vocês resolverem as burocracias e
decidirem quando você começa.” Por que ela confiava nele?
Porque ele sabia, tão bem quanto ela, que Alex estava
servindo como bode expiatório. Jamie devia isso a ela.
— Você se lembra da Danielle, né?
As meninas do marketing tinham se juntado a elas no bar,
tirado os casacos e estavam se servindo do vinho, e Alex
sorriu e assentiu ao cumprimentá-las.
— Você veio!
Ela não gostou da surpresa na voz de Danielle. Nem dos
olhos arregalados.
— Viiiim…
Alex gostou ainda menos do que ela disse a seguir.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu.
— Como?
— Pelo desligamento. — Relanceando a vista para os
olhos arregalados de Lydia e de volta a Alex, Danielle
insistiu. — E com você de licença ainda por cima! Mas ele
vai ter dificuldade para encontrar alguém tão bom quanto
você.
Ao perceber que aquela conversa não estava correndo
como deveria, Danielle se afastou, deixando Alex paralisada
e de olhos baixos.
— Mas que…? — Lydia apertou o braço dela. — Não fui
eu. Alex, eu juro, não contei para ninguém.
— Eu sei.
— Você tem que acreditar em mim, eu…
Alex não ouviu o resto. Uma explosão de gritos e aplausos
lentos abafou o som da voz dela.
— Ele chegou!
— Antes tarde do que nunca, hein, cara?
— Até que enfim!
Jamie tinha chegado.
 
Enquanto o pub enchia e as panelinhas hierárquicas
formadas no início de toda festa de escritório se desfaziam
— sócios e chefes de departamento se viram jogando
conversa fora com todos, desde o pessoal da TI até
estagiários —, mais algumas pessoas se aproximaram para
expressar tristeza pela demissão de Alex. Não que tenham
usado essa palavra. Foi principalmente “sua saída da
empresa” e um “seguindo em frente”, que fez Alex se sentir
como se tivesse morrido. Quando a profundidade da traição
de Jamie ficou clara, ela sentiu sua raiva elevá-la a um
estado de quase levitação. Jamie não esperava que ela
aparecesse, assim como todas aquelas pessoas; ele
imaginou que tinham visto Alex pela última vez e não
haveria mais discussão.
Mas ela precisava se acalmar antes de abordá-lo. O que
importava agora era o emprego na JLL. Então, Jamie
finalmente tirou aquele “colete poderoso” idiota, acolchoado
da Patagônia, encomendado por ela na Mr Porter depois de
ele ter visto Jeff Bezos usando um — mais de quatrocentas
libras por um negócio igual ao que se encontraria em
qualquer loja de departamentos —, enquanto bebia, ria e
flertava com todo mundo do outro lado do bar, e Alex tentou
relaxar com conversas casuais, mostrando fotos de Katie
quando pediam, sorrindo em resposta aos balbucios
fofinhos, e garantindo a qualquer um com um semblante
preocupado que, na verdade, já estava com “outro emprego
engatilhado”… Sempre de olho em Jamie. Até que ela não
aguentou mais.
— Já volto, Lyds.
Ignorando o olhar preocupado da colega, Alex começou a
atravessar o pub lotado em uma diagonal propositada até
Jamie.
— Olá.
Cerca de trinta centímetros mais alto que ela, o ex-chefe
de Alex não a viu chegar, e levou um segundo, ela
percebeu, para reajustar seus traços em uma expressão de
civilidade.
— Alex. — Jamie piscou, confuso, sugando a espuma da
cerveja grudada no lábio superior. — Você veio.
— Eu vim.
Percebendo o clima estranho, o corretor com quem Jamie
conversava se afastou, deixando os dois apertados pela
multidão, desconfortavelmente próximos.
— Gostei do cabelo.
— Obrigada. — Alex nem sorriu.
— Olha, eu ia responder seu último e-mail — assegurou
Jamie, os olhos percorrendo o pub em busca de alguma rota
de fuga.
— E o penúltimo, Jamie? Você ia responder meu
penúltimo e-mail? E as três mensagens que deixei na sua
caixa postal?
Alex ficou surpresa pela facilidade em falar com seu ex-
chefe de um jeito tão combativo. A sensação chegava a ser
boa. Mas ela precisava se controlar: até estar segura no
próximo emprego, ela ainda precisava de Jamie.
— Olha, eu entendo. Conheço sua agenda, lembra? E, é
claro, você acabou de se livrar da melhor assistente que vai
ter na vida — completou em tom neutro.
— Alex…
— Não importa. É só que eu ainda não recebi a papelada.
— Ela fez uma pausa. — E não quero perder aquela vaga da
JLL. — Ela se forçou a manter o contato visual. — Eu preciso
desse emprego, Jamie.
Bebendo os últimos goles da cerveja, Jamie acenou para
alguém no bar antes de voltar sua atenção a ela.
— Olha, sobre isso, Alex, é o seguinte… Eu devo ter
confundido as coisas. E eu ia te mandar um recado para
explicar, mas estive…
— Espera. — Alex fechou os olhos e balançou a cabeça. —
Como assim, “confundido as coisas”? Seu amigo já
contratou outra pessoa?
— Bom, eu achei que ele estava procurando alguém, mas
acontece que…
Alex o encarou.
— Esse emprego sequer existia, Jamie? Ou você inventou
isso para que eu saísse sem fazer escândalo? Isso e a sua
promessa… Porque você prometeu! Sua promessa de dizer
que tinha sido decisão minha sair. Mesmo assim, parece que
todo mundo aqui sabe que eu fui demitida.
Ele deu de ombros, mudando o peso do corpo de um pé
para o outro. Sentindo a taça vazia como um peso morto na
mão, Alex a largou em uma mesa próxima.
Alguém gritou “Ô, Jamie!” do outro lado do local, e ele
olhou naquela direção para tentar encontrar a fonte,
abandonando qualquer tipo de fingimento de que eles
estavam tendo uma conversinha cordial.
— É melhor…
— Não. Espera. — Ela não tinha lembrança de erguer a
mão, mas lá estava ela, no braço dele. — Espera. — Engoliu
em seco, absorvendo todas as nuances daquela conversa
aos poucos. — O que é que eu vou fazer agora?
Ele fez uma careta.
— Sinceramente, eu adoraria poder te ajudar, Alex. E é
claro que vou ficar de olho, se souber de alguma coisa te
falo.
Outro grito do outro lado do pub. “Jamieeee!” O discurso
de Jill estava prestes a começar.
— Sinto muito. — Ele apoiou a mão no braço dela. —
Estão me chamando. Mas alguma coisa vai aparecer. —
Aquilo foi uma piscadela? Ele realmente piscou para ela? —
Tenho certeza.
No bar, detrás das costas covardes de Jamie, ela viu Lydia
acenando para que voltasse: hora do discurso. Atarantada,
Alex atravessou o pub lotado de pessoas que se aquietavam
até chegar ao outro lado.
— Como foi? — sussurrou Lydia depois que Jill terminara
de falar, os aplausos tinham cessado e as conversas
normais voltaram. — O que você falou para ele? — Então,
sem esperar uma resposta, continuou: — Olha ali à direita.
Não estou acreditando nos meus olhos.
A música estava mais alta e, perto da lareira, Harry, o
advogado principal da BWL, começara a fazer uma série de
passinhos de dança. As pessoas assistiram, entretidas e
chocadas, o homem de 62 anos largar o blazer em uma
cadeira e dobrar as mangas da camisa. Isso seria levado
para outro nível agora.
— Da última vez que isso aconteceu o coitado do Harry
teve uma isquemia — veio a voz de Jill ao lado delas no bar.
— Vocês estão esperando para pedir?
Claro que estavam, assim como todo mundo. Mas nem
Lydia nem Alex diriam para a fundadora da empresa que ela
precisava esperar sua vez.
— Pode ir.
Houve um momento de desconforto enquanto o barman
abria outra garrafa de rosé, e as duas mulheres esperaram
a mais velha se afastar. Mas Jill não parecia estar com
pressa de sair. Em vez disso, ela se virou e apoiou as costas
no bar.
— Estava precisando sentar — disse ela para o nada. —
Aquela mesa está ocupada?
Alex seguiu o olhar dela para uma mesa no canto vazia,
só com uma bandeja de aperitivos fritos.
— Acho que não. Mas eu não comeria aquilo. Já está
largado aí faz um tempo.
Foi só então, enquanto se sentava com um suspiro
agradecido, que Jill pareceu reconhecer Alex.
— Você é a Alex, não é? Como você está?
Ela havia ouvido isso bastante naquela noite.
Normalmente acompanhado de um inclinar pesaroso de
cabeça.
— Tudo bem.
Alex, sabendo que Jill como sócia e a mentora de Jamie
até o topo provavelmente não seria empática à sua
situação, torceu para que Lydia preenchesse o silêncio, mas
a amiga pediu licença e foi “fumar um cigarrinho”. Quando
Jill indicou a cadeira à sua frente, Alex não conseguiu pensar
em nada além do alívio por enfim descansar os pés.
Quantas taças ela já tinha bebido? Três, quatro? O
suficiente para não ter sentido os dedos dos pés latejando,
apertados pelos sapatos de bico fino… até agora. Ela
precisava sair dali, de perto daquele homem. Precisava ir
para casa.
— Melhorou? — Jill sorriu.
— Muito. Adorei seu discurso, aliás. Eu não sabia que
Joyce estava na empresa com você e o seu marido desde o
começo. Deve ser bem difícil. — Então, ainda de olho na
dança de Harry e consciente de que precisava manter a
conversa rolando por pelo menos alguns minutos até
encontrar uma forma de escapar, ela perguntou: — O que é
uma isquemia?
— É um derrame pequeno. E eu não deveria brincar com
isso porque juro por Deus que os socorristas do hospital
Saint John’s o levaram bem no meio de uma festa de Natal
da empresa alguns anos atrás. Não é de surpreender: o
homem não é tão mais velho que eu, mas eu não vou sair
rebolando que nem a Adriana Grande…
— Ariana.
— Também não vou rebolar que nem essa moça aí.
Surpresa e lisonjeada que Jill não se importava de passar
o tempo com uma simples ex-assistente, ainda mais depois
de supostamente ter cometido um crime terrível, Alex se
reclinou na cadeira para observar o que estava
acontecendo. Algumas outras pessoas tinham se juntado a
Harry na pista de dança improvisada, e enquanto Jill assistia
a tudo com os olhos apertados de rir, Alex a analisou
disfarçadamente.
Ela devia estar perto dos sessenta e era bonita de um
jeito que só mulheres que nunca o foram conseguem ser na
meia-idade. O belo cardigã de cashmere e as calças
vincadas eram caros, mas discretos — da Jaeger, ou talvez
da Hobbs —, e o cabelo louro-acinzentado curto estava
penteado em um estilo eficiente e cheio de laquê. O arco
em seu lábio superior mostrava falta de interesse em
qualquer coisa além do que era necessário para parecer
inteligente e profissional. Mas sua expressão era calorosa e
em seus olhos havia um estoicismo que fez Alex se lembrar
de uma dor particular que ouvira Jamie mencionar: o marido
— era isso.
— Desculpa. Nem me lembrei de pegar uma bebida para
você. — Jill sorriu e a conexão entre as duas, tão
inesperada, fez Alex querer cair no choro.
— Por que vocês duas não ficam aí e eu vou pegar uma
garrafa para nós?
Alex ergueu os olhos e encontrou Nicole de pé ao lado da
mesa. Mais séria e arrumada do que o normal, em um
vestido bordô e botinhas de salto, ela claramente estava ali
para puxar o saco de Jill. Além de “linda”, “ambiciosa” era a
palavra mais comumente usada para descrever Nicole na
BWL, e Alex se lembrava de todas as vezes em que, achando
ser a última a sair do escritório, a vira trabalhando tarde da
noite em sua mesa. Uma conversa íntima com Jill era uma
oportunidade boa demais para desperdiçar, e Alex
mentalmente suspirou de alívio ao pensar que poderia ficar
ali sentada em silêncio enquanto as outras duas
conversavam sobre trabalho.
— Nós nunca… Meu nome é…
— Alex — Nicole disse de forma arrastada, dando meio
passo para trás. — É o cabelo — completou enfim. — Você
cortou.
— Pintei também. — Alex sorriu, lembrando-se dos raros
momentos em que a garota mais legal da escola decidia
conversar com ela.
Nicole assentiu impaciente, como se essa última parte
fosse irrelevante.
— Mas você foi… Você não trabalha mais conosco, pelo
que fiquei sabendo?
— Demitida — respondeu Alex. Não adiantava tentar
disfarçar. — Pois é.
Puxando uma cadeira, a supervisora de projetos especiais
se sentou. Mas, em vez de cruzá-las, Nicole as manteve um
pouco entreabertas, de um jeito que Alex considerou
propositadamente masculino.
— Não acho que eles vêm servir na mesa — murmurou
enquanto Nicole acenava de um jeito espalhafatoso para o
barman, pedindo que trouxesse uma garrafa de vinho.
— O quê?
Nicole a encarava agora, e sentindo centenas de
minijulgamentos sendo feitos, Alex começou a avaliá-la
também.
A roupa cara de Nicole não combinava com suas unhas,
que estavam sem esmalte e roídas até o sabugo: unhas de
trabalhador braçal. O batom vermelho-cereja, sua marca
registrada, deixava a pele muito branca dela ainda mais
pálida, além de ter vazado pelas linhas finas em torno dos
lábios, o que colocava sua idade em torno dos quarenta. No
entanto, ela ainda era, sem sombra de dúvidas, uma mulher
muito bonita.
— Eu falei que acho que…
Mas um dos atendentes já estava vindo na direção da
mesa com uma garrafa em um balde de gelo, e Jill deu uma
risadinha com o rosto enfiado na taça.
— Eles servem quando é alguém como a Nicole pedindo.
Visivelmente contente com o comentário, Nicole começou
a encher as taças delas. Como previsto, ela havia voltado a
conversa para negócios quando um tilintar de metal em
vidro silenciou o pub pela segunda vez na noite.
— Jill pode achar que já falou tudo que era preciso dizer
sobre Joyce, sobre por que vamos sentir sua falta —
começou Jamie —, mas eu não sei, não…
— Por que ele está fazendo um discurso? — Nicole falou
em voz baixa para Jill.
Pela expressão no rosto da mulher mais velha, Alex
percebeu que ter sua despedida sincera e direta superada
pelo que sem dúvida seria uma performance bem mais
extravagante era um ultraje. Sem opção a não ser ouvir,
porém, as três mulheres ficaram ali sentadas em silêncio
enquanto Jamie fazia tudo girar em torno dele.
Quando Jamie derramou Sprite em um conservacionista
muito sério que pretendia bloquear uma venda de
apartamentos de luxo em Olympia, ele contou, foram Joyce
e os lenços umedecidos que ela sempre mantinha à mão
que salvaram a situação. Quando Reza Farhat, o playboy
iraniano tão caprichoso com suas propriedades quanto sua
esposa era com suas bolsas Birkin, pediu que um tipo de
bolo frito de água de rosas fosse servido na reunião de
negócios, foi Joyce, de novo, quem vasculhou os cantos
mais distantes do mercado de Shepherd’s Bush em busca
de “zoolíbia… zooliva, zoológico…”. Alex odiava que Jamie
fosse encantador ao rir das próprias piadas.
— Ninguém conseguia sequer pronunciar, né, Joyce? Que
dirá comer o troço!
— Mas você engoliu alguns! — alguém gritou.
— Tudo pela venda, amigão! Mas cruzes! Tinha o gosto
daquele negócio que a minha mulher deixa em tigelas pela
casa. Não é verdade, Paul?
— Pot-pourri! — ganiu uma mulher lá na frente.
Mais risadas, mais gritos. Não era preciso muito para
fazer as pessoas se animarem àquela altura da noite, e
Jamie não era do tipo que deixaria os holofotes se pudesse
evitar. Mas ali, na mesa no canto, Alex, Nicole e Jill estavam
de cara fechada.
Jamie não sabia que ela ainda estava ali, assistindo, e
sem dúvida não se importava nem um pouco com isso,
deixando-a livre para examinar cada um dos maneirismos
com os quais Alex se familiarizara de modo tão profundo
quanto os de um familiar durante os sete meses em que
cuidara de todas as necessidades dele.
Será que alguma ex-namorada havia dito a Jamie que
aquela coçadinha encabulada na nuca que ele dava depois
de cada piada era charmosa, sexy, até? Era tão clichê, um
arremedo de Hugh Grant, e tão obviamente forçado. Como
ela podia ter levado tanto tempo para ver que o chefe era
uma fraude especializada em fazer até as pessoas mais
insignificantes como ela se sentirem especiais, como parte
do clã, até que se tornassem dispensáveis?
Desde seu primeiro dia na BWL, Jamie fizera isso,
assegurando que a empresa era como “uma grande
família”, embora certamente “tivesse seus problemas”.
Mesmo quando ela confessou estar grávida, e depois de
ele ter superado o aborrecimento inicial de precisar
encontrar uma substituta durante a licença-maternidade
(um aborrecimento que na verdade Alex gostou, porque
significava que ela era boa, talvez até insubstituível), Jamie
foi gentil também, comprando para ela um pacote de balas
de gengibre que Maya considerava ajudar com a náusea e
recomendando uma especialista em bebês que cuidou de
Christel quando a primogênita ainda não dormia a noite
inteira depois de seis meses. E, um mês depois do parto,
quando estava a ponto de chorar por passar tanto tempo
sem dormir, Alex procurou a mulher no Google e descobriu
que ela cobrava 250 libras por sessão, isso não a abalou
tanto quanto deveria. Jamie era assim mesmo: em sua
própria bolha encantada, mas sempre com boas intenções.
— Se ajuda — comentou Nicole, sem tirar os olhos do
celular —, eu odeio ele quase tanto quanto você.
CAPÍTULO 6

NICOLE

A surpresa no
interrompeu
rosto de Alex foi gratificante, e Nicole
o e-mail que estava digitando para
aproveitar a sensação. Foi bom dizer aquilo em voz alta;
melhor ainda era descobrir que não estava sozinha.
— Eu não…
— Odeia, sim. E eu não te culpo. Então pode falar: qual é
a história de verdade?
— Sobre…?
— Por que Jamie se livrou de você? Porque você
engravidou? Porque Hayden era amiguinho dele? Teve esses
rumores.
Pelo olhar de relance de Alex para Jill e de volta para si,
Nicole sabia que havia ultrapassado o limite. Mas algo além
do álcool em seu sangue a forçou a continuar.
— Qual é. Acho que todas sabemos que o menino de ouro
é famoso por dar o famoso jeitinho quando precisa.
Nicole queria muito que Jill soubesse disso, percebeu.
Tanto que estava disposta a arriscar falar disso na frente da
chefe. Porque, embora Jill e Jamie sempre tivessem sido
próximos, ela, acima de tudo, sempre parecera uma figura
justa e profissional. Se seu protegido tivesse feito algo
errado, era justo que Jill soubesse disso.
— Se isso conta para você, Joyce sempre disse que você
era brilhante. — A voz geralmente serena e baixa de Jill
estava mais aguda, oscilando com o álcool, e Nicole
percebeu que, em todos esses anos, ela nunca a tinha visto
bêbada antes.
A fundadora da BWL fazia parte daquele tipo antiquado que
nunca demonstra qualquer pingo de vulnerabilidade no
escritório. Nicole nunca nem tinha visto Jill retocando o
batom no banheiro. Justa e firme na administração de uma
empresa criada por ela e pelo marido para preservar a
história em vez de destruí-la, Jill era a prova do que
mulheres que não são impedidas por homens são capazes
de realizar. O que só aumentou sua necessidade de tirar a
venda dos olhos dela.
— Nicole tem razão? — Jill continuou com gentileza. —
Você acha que Jamie tinha algum, bem, outro motivo para
encerrar seu vínculo, além da situação da diligência devida?
Nicole observou Alex avaliar a situação… e decidir que
não tinha nada a perder.
— Eu não ia dizer nada, mas toda aquela confusão com
Khalvashi não foi culpa minha, foi do Jamie. Ele me disse
especificamente para deixar a papelada incompleta. Não sei
o motivo, mas imagino que tenha sido porque ele sabia que
Khalvashi era ilegal e queria que a venda fosse fechada
mesmo assim. A Property Week tinha acabado de fazer uma
matéria grande sobre ele, e talvez a pressão de manter a
sua imagem de “Jamie Negócio-Fechado” tenha afetado a
cabeça dele. — Ela pausou. — Aí, quando você e Paul viram
que faltavam coisas, ele me culpou e usou isso como
desculpa para se livrar de mim. Eu não ia dizer nada porque
Jamie me prometeu que me compensaria, que me arrumaria
outro emprego. E eu acreditei, que nem uma idiota.
Enquanto Jill absorvia isso, Nicole a olhava com atenção.
Ela foi pega de surpresa, mas não estava chocada.
— Ele tem feito mesmo umas besteiras ultimamente. Se
comportando, não sei…
Foi a vez de Nicole se surpreender.
— Achei que ele nunca fazia nada errado aos seus olhos.
— Ah, é? — Jill soltou uma risada seca e, tomando dois
goles seguidos de vinho, olhou para Jamie, que enfim havia
parado de falar e estava pedindo várias bebidas no bar. —
Não, eu não diria isso.
As três já estavam bem altas, mas o pescoço de Jill
parecia ter perdido a capacidade de manter sua cabeça
parada, e Nicole desejou que Alex não enchesse a taça da
chefe tão rápido.
— Eu sei que Jamie sempre te admirou — disse Alex, e
embora Jill assentisse, seus olhos permaneceram céticos. —
E, olha, depois de tudo que você já fez por ele, tenho
certeza de que sempre vai te admirar.
O que de início pareceu reconfortante estava começando
a soar como uma provocação, como se Alex estivesse
querendo que Jill concordasse que seu pupilo havia se
transformado em um monstro. Ou talvez que ele sempre
fora um.
— Foi você que o trouxe para a empresa, não foi?
— Anos atrás, e ele sempre foi meio metido…
— Mas agora parece algo a mais? — insistiu Alex. — Senti
isso também. Até antes de eu sair de licença, tinha alguma
coisa no jeito dele… meio desrespeitosa.
— A meu respeito? — Jill ergueu os olhos rapidamente.
— Não me entenda mal…
— Pode falar.
— Mas ele fazia uns comentários… sobre você estar
atrasada. Ou no hospital com seu… marido. — Ao ouvir isso,
Jill estremeceu. — Só umas coisinhas: “Ah, Jill não vai
participar dessa reunião de novo.” Ou “Jill não vai aparecer
hoje.”
Alex estava mesmo insistindo. Aquela moça não só estava
chateada por ter perdido o emprego, percebeu Nicole, mas
perturbada também, e algo na intensidade de seu olhar a
preocupou. Mas, considerando que ela também estava
interessada em continuar essa conversa, Nicole empurrou o
pensamento para outro canto do cérebro.
— O que mais me incomodava — continuou Alex, se
inclinando para a frente — era quando ele falava de você
assim na frente dos clientes.
— Ele falava essas coisas na frente dos clientes?
— Às vezes. E sempre parecia meio insensível. Seu
marido…
— Está com câncer. — Jill passou o dedo pela borda da
taça. — Stan está sendo tratado. Sempre quis manter as
questões de saúde em segredo por muitas razões, inclusive
pelo fato de que não é da conta de mais ninguém. Mas você
ouviu isso… do Jamie?
— Sim… eu… ele mencionou por cima.
— Por alto.
— Eu sinto muito, Jill, mas a verdade é que… — ela deu
uma olhada para Nicole, como se estivesse confirmando se
deveria continuar — … ele contou para quase todo mundo.
Isso sempre me deixava desconfortável. Como se estivesse
usando Stan…
— Usando Stan como?
— Bom, usando o fato de seu marido estar… doente…
para colocar…
— Para me colocar de lado?
— Bom, para se colocar na frente. Pelo menos era assim
que eu sentia.
— Certo.
Pelo movimento rápido do peito de Jill sob o cardigã bege,
Nicole percebia como ela estava se esforçando para
controlar a raiva.
Mas Alex não tinha terminado.
— Isso sem falar das piadas… — murmurou. — Sobre
mulheres. Sobre mulheres mais velhas. — Ela lançou um
olhar envergonhado para Jill. — E sim, sobre você.
— Bom, Jamie sempre teve um senso de humor
inapropriado. Já falei mais de uma vez que ele deveria se
controlar.
Jill estava tentando recuperar parte do autocontrole. Isso
tudo era tão vergonhoso. Mas, pela expressão de Alex, as
coisas só iriam piorar.
— Eu sei. Olha, na maior parte do tempo eu mesma
achava engraçado. Mas aí ele dizia umas coisas… — disse
ela, hesitando. — Sobre o que ele chamava de…
Nicole sabia o que Alex estava prestes a dizer. Ela já o
tinha ouvido fazer a mesma piada. E estava dividida entre
querer que Jill soubesse e torcer para que ela fosse
poupada.
— … de sua “RBF”.
— Não sei do que você está falando.
— “Resting Bitch Face”. — As palavras saíram tão
baixinho que por um segundo Nicole não tinha certeza de
que a chefe ouvira. — Significa “Cara involuntária de
escrota”, é um termo das mídias sociais para mulheres
que… quando algumas mulheres têm uma expressão
agressiva que… todas nós às vezes…
— Entendi a ideia. E daí? Eu tenho isso?
— Ele dizia que você ficava com essa cara nas reuniões,
às vezes. E que isso piorou conforme você, sabe, ficou mais
velha. Que os clientes achavam desagradável.
— Sei. — Jill assentiu, tensa.
— Ele dizia…
— Continue.
— Ele brincava que, no seu aniversário de sessenta anos,
ele te mandaria para a Harley Street para fazer algumas
plásticas.
Jill fechou os olhos.
— Certo.
Ao perceber que, uma vez terminados os discursos, o
barulho no pub também diminuiu, Alex baixou ainda mais a
voz.
— Desculpe, Jill. Eu sei que é… difícil. Mas o que diabos
aconteceu com ele?
— Porque ele era um cara tão incrível antes? — Nicole
virou o corpo em direção à parede para dar um trago
disfarçado no cigarro eletrônico. Isso causou uma expressão
quase cômica de pânico em Alex, que olhou dela para os
funcionários do pub e de volta para ela. — O que eles vão
fazer, me prender? Relaxa.
Mas Jill não percebeu nada nisso, mergulhada em
pensamentos.
— Jamie nunca foi exatamente do tipo sensível. Quer
dizer, ele é um dos homens mais competitivos que já
conheci, mas é isso que faz com que ele seja tão bom no
trabalho. E o humor dele… Mas eu sempre achei que ele
tinha um bom coração.
— Então isso me faz questionar se você o conhecia
direito. — Nicole cuspiu as palavras com uma nuvem de
vapor de água.
Do outro lado do local, alguém gritou:
— Últimos pedidos!
Foi só quando nenhuma delas reagiu que Nicole percebeu
como elas acabaram se metendo naquela situação tão
curiosa.
— O que você quer dizer?
— Que eu… Merda. — Ela ergueu os olhos. — Ele está
vindo para cá.
Quando Nicole baixou o olhar para o celular, sentiu Alex
tateando para calçar os sapatos de volta por baixo da mesa,
se preparando, imaginou, para fugir.
— Alex. Ainda está por aqui?
Era de pensar que ele sentiria alguma vergonha frente à
mulher que tinha acabado de demitir, mas não. Ele estava
aqui para falar com Jill. As pessoas só interessavam a Jamie
quando lhe eram úteis. Depois disso, elas paravam de
existir.
— Gostou do discurso? — perguntou à sócia.
— Adorei. — O rosto de Jill estava pétreo. — A gente não
sabia se você não ia parar de falar nunca.
Nicole bufou e soltou uma risada, e Jamie estreitou os
olhos.
— Será que as meninas já não beberam demais? Amanhã
tem escola e tal.
Houve uma pausa de um milissegundo.
— Não sei se você pode nos chamar mais de “meninas”,
Jamie — murmurou Nicole, com os olhos ainda fixos no
celular. — Afinal, ninguém aqui tem menos de trinta anos.
Aliás, outro favorito seu, “moças”, também está fora de
moda.
Alex olhou de Nicole para Jamie e depois para Jill,
controlando um sorriso.
— Bom, então vou deixar vocês, mulheres, no seu
simpósio feminista. Está ficando tarde. — Ele deu de ombros
naquele colete matelassê dele e foi embora.
Depois de a porta ter se fechado atrás dele, a risada das
três foi tão alta e repentina que cerca de meia dúzia de
clientes ainda presente se virou para olhar.
— Será que as meninas já não beberam demais? —
repetiu Nicole com uma voz grossa que reverberou pelo
pub. Mas, enquanto a risada das outras duas logo cessou,
Nicole não pareceu conseguir se controlar, e foi só quando a
expressão das colegas foi substituída de humor para alerta
que ela percebeu que seus olhos estavam encharcados.
Jill ergueu a mão e a pousou com cautela nas costas dela.
— Você está bem?
— Estou. — Nicole pigarreou fazendo barulho. — Não.
Não, eu só… tem uma coisa…
— O quê?
— Achei que ia conseguir esquecer. Olha, eu sei. Não sou
dessas, entende? Tenho 43 anos, sabe, tenho um bom senso
de humor. Gosto de flertar e eu… — Quando as últimas
pessoas seguiram para a saída, as três sorriram e
acenaram, e a conversa foi pausada. — Eu nunca fui de
escutar merda calada. Sempre fui assim. Mas o
comportamento do Jamie…
— Nicole. — A voz de Jill estava séria agora. — O que quer
que tenha acontecido, só fala logo.
Depois de respirar fundo, Nicole começou:
— Era só um flerte idiota e inofensivo no início. Sedução
profissional, sabe? Para manter as coisas interessantes…
fazer o dia passar um pouco mais rápido. Enfim, acho que
ele pensou que eu estava a fim mesmo. Todo mundo soube
do Ian, né? — Ela olhou para Jill, esperando que admitir o
casinho idiota que tivera no escritório anos atrás não
afetasse suas perspectivas na BWL. Mas é claro que a chefe
tinha ouvido as fofocas. Todo mundo tinha. — Foi muito
antes de você entrar, Alex. Ele saiu da empresa já faz anos.
Mesmo assim, acho que até você deve ter ouvido falar.
Alex hesitou, então assentiu brevemente.
— Ouça, quem sou eu para julgar alguém — murmurou. —
Eu sou a garota que engravidou de um cara do trabalho,
lembra? Um cara que, aliás, não poderia ter fugido mais
rápido que fugiu.
— Ouvi falar. E sinto muito que Hayden tenha sido tão…
— Nicole engoliu em seco. — Melhor nunca esperar muito
dos homens, né? Mas pelo menos nem você nem Hayden
eram casados. — Uma risada súbita. — Pelo menos você
não tem uma letra A escarlate no peito.
Alex e Jill esperaram.
— Bem, enfim, é óbvio que Jamie me via como um “jogo”.
Ele dizia coisas sobre minhas roupas, coisas simpáticas, e
depois coisas menos simpáticas, até que um dia, enquanto
esperávamos para entrar na sala de conferências, ele
apareceu e disse: “Você está muito comível hoje, Nic.”
— Nossa. — Alex ficou surpresa, mas Jill de fato congelou,
chocada, a taça suspensa a meio caminho da boca.
— Ele disse o quê?
— Aí ele começou a ser mais direto, se aproximando para
ver plantas dos projetos no meu computador e se
encostando em mim para que eu sentisse o…
Em outro contexto, o rosto de Jill, distorcido pela
descrença, teria sido engraçado.
— Nicole — disse ela enfim. — Não se ofenda, mas será
que você de alguma forma entendeu mal? Será que ele não
estava brincando? Ou será que você, bom, fez Jamie pensar
que isso fosse algo que você queria?
— Será que ela “deu a entender” que queria isso? — Alex
interferiu, e Nicole ficou grata pela interrupção. — Eu sei
que as coisas eram muito diferentes vinte anos atrás, mas
essa desculpa não cola mais agora.
— Certo. — Jill ergueu as mãos. — Olhe, eu tinha que
perguntar. E, aliás, as coisas não eram tão diferentes assim
dez, vinte, trinta anos atrás. Por mais que todo mundo
agora goste de pensar que foram as primeiras a reclamar.
— Tá bom. Então você deve imaginar como essa situação
deve ter sido para a Nicole.
— Eu não preciso imaginar — retrucou Jill. — Isso era
quase senso comum quando eu era jovem. E não foi só com
esse lado dos homens que eu tive que lidar. Você tem ideia
de quantas vezes eu fui subestimada e deixada de lado na
minha carreira? Quantos comentários idiotas sobre a minha
aparência tive que ignorar? O dobro do esforço que tive que
trabalhar para provar que era tão boa quanto qualquer
homem?
— Então você entende que não tem relação com nada
que Nicole tenha feito. Você sabe que isso é sobre Jamie.
Isso é assédio.
Jill empalideceu.
— Meu Deus. — Alex encarou Nicole. — Eu sempre achei
que ele tinha uma quedinha por você. Tipo, às vezes eu o
via seguindo você com os olhos pelo escritório, mas ele não
devia ser o único. E nunca achei que ele faria nada, bem…
nada assim.
As duas ficaram em silêncio enquanto Nicole cutucava as
cutículas, decidindo se deveria continuar ou não. Tinha sido
loucura falar tanto. Mas agora não adiantava voltar atrás.
— Por que você não fez uma denúncia? — perguntou Alex
baixinho. — A gente não precisa mais aguentar essas
coisas, né? Quer dizer, essa não é toda a ideia de ser
mulher depois do #MeToo?
Nicole abriu um sorriso tristonho.
— Sim. Mas eu não queria fazer um escândalo. Eu sou
casada, e todo mundo sabe que eu já tive um caso com um
cara do trabalho, então duvido muito que o RH teria empatia
por mim. Só Deus sabe que isso também não me ajudaria
em nada com futuros empregadores.
— Mas isso não tem nada a ver!
— Eu sei, eu sei, mas é o seguinte. — Nicole se abaixou
para dar outra tragada no cigarro eletrônico. — Não vou
denunciá-lo. Ponto-final.
— Ainda bem.
Tanto Nicole como Alex se viraram para Jill. Julgando pelo
seu tom bem diferente — claro e pragmático —, ela havia
entrado no modo “contenção de problemas”.
— Digo, como Nicole falou, eu entendo por que denunciá-
lo não vai necessariamente ajudar.
— Não vai ajudar a empresa, né?
Bêbada ou não, Jill parecia ter decidido que não aceitaria
mais que falassem com ela assim.
— Essa não é a questão. O que quer que esteja
acontecendo com Jamie, fazendo bullying com os outros,
menosprezando as pessoas, agora isso… acaba agora. Não
me importo se ele é sócio da empresa. Não vou aceitar
nenhum tipo de abuso na minha empresa. Vou… vou falar
com ele.
— Porque isso vai facilitar a minha vida?
— Bom, vai fazer com que ele pare. — Jill largou a taça na
mesa com um tinido.
— Ele vai parar, depois vai achar uma maneira de me
fazer pagar, não acha? — Nicole balançou a cabeça. — Não
vou poder me sentar numa reunião com ele depois disso.
Teria que sair da empresa. E ainda tem você, a sua situação,
agora que sabe disso. Porque, se não denunciar ele, você
vai ser acusada de abafar o caso. — Jill não tinha pensado
nisso. — Por outro lado, que eu saiba, você pode estar
cobrindo as merdas do Jamie há anos.
Em minutos a conversa passou de fraternal a combativa.
Jamie tinha ido embora, mas de alguma forma continuava
causando problemas.
— Ei — Alex interrompeu. — Talvez exista outra maneira
de impedir isso. De impedir Jamie.
Nicole e Jill a encararam, o mesmo pensamento no olhar
das duas: Mas você não faz mais parte disso.
— Eu poderia deixar para lá se ele tivesse cumprido a
promessa de me arrumar outro emprego.
— Ah, Jamie fala o que for preciso no momento — cuspiu
Nicole, sem se importar se parecia amarga. Ela estava
amarga. — E não liga para quem vai pagar pelos erros dele
desde que não seja ele. Porque, no fim, para Jamie,
mulheres são convenientes ou dispensáveis.
— Mas não podemos deixar que ele se safe disso. Ele
mentiu para você, para Jill, para mim.
Encarar essas bombas sobre seu antigo protegido parecia
deixar Jill chocada. Sendo a mais velha das três, sabia que
caberia a ela tentar consertar isso, e Nicole viu sua
oportunidade.
— Se Jamie estava tentando fazer isso com Khalvashi,
sabe-se lá o que fez com outros clientes.
Jill assentiu, concordando. E quando o barman anunciou
que estava na hora de “virar as bebidas”, ela fez algo
surpreendente.
— Vou te dar isso aqui — disse Jill ao rapaz, entregando
uma nota dobrada de cinquenta libras. — E em troca quero
que você nos traga uma última garrafa de rosé e nos dê
mais uma hora.
Só quando as portas do pub foram trancadas e uma nova
garrafa de vinho foi trazida, Jill se voltou para Alex.
— Prossiga.
— O que estou dizendo — continuou Alex, encorajada
pela atenção das duas mulheres — é que ele precisa
aprender uma lição. Ele precisa pagar.
— E como vamos fazer isso? — Cansada do subterfúgio,
Nicole agora estava abertamente fumando seu cigarro
eletrônico.
— Bem, você está certa de dizer que nós duas não
podemos seguir pelos meios legais. Eu, porque perderia um
processo de uma demissão injusta em um piscar de olhos,
ele costurou tudo muito bem. Você porque…
— Ian seria sugado pelo drama se eu fizesse uma
denúncia? Por mais que tenham nos falado para gritar o
nome desses homens aos quatro ventos, por mais que
tenham nos falado que temos poder, ninguém se importa
muito se denunciar um assédio vai nos transformar em
leprosas profissionais depois, não é?
— Verdade. — Alex fez uma pausa, claramente gostando
do segundo em que as prendeu nele. — Bem, acho que
temos que encontrar outra maneira. Porque existem
diferentes tipos de poder, e talvez o nosso seja…
— Por favor, não diga “poder suave” — gemeu Nicole. —
Odeio essa expressão.
— Eu também — comentou Jill. — Como se isso fosse o
melhor que as mulheres podem fazer.
— Vocês não estão entendendo. Estou falando de
derrubar Jamie de uma forma que não possa ser rastreada
até nós, algo que ele faria por conta própria se não
estivesse sempre sendo protegido.
Pela sua visão periférica, Nicole viu Jill piscar duas vezes
em rápida sucessão, interpretando isso como uma crítica a
ela.
— Só estou falando de dar um empurrãozinho nele. Não
exatamente de “poder suave”…
— Mas um poder furtivo. — Sob o sarcasmo, Nicole estava
falando sério.
— E não seria difícil — murmurou Jill —, considerando o
quão imprudente ele está sendo.
— Não, não, seria fácil. — Alex se inclinou para a frente.
— As coisas que eu vi. As coisas que sei. Basta pensar no
que todas nós descobrimos esta noite. Aposto que, se
começarmos a procurar, Jamie vai acabar se mostrando tão
diferente da pessoa que todos pensam que ele é que não
vai ter nem graça.
Por um momento, Nicole receou que Alex pudesse ter ido
longe demais — ter perdido Jill, pelo menos. Mas, depois de
uma breve hesitação, sua chefe perguntou:
— E essas coisas que você viu enquanto trabalhava com
ele, acha que podem nos ajudar?
De todas as surpresas daquela noite — o vinho, o olhar
irritado de Jamie ao vê-las à mesa e as revelações dessas
duas mulheres com quem Nicole só trocara palavras
profissionais antes —, aquele “nós” era de alguma forma a
mais agradável. Nada une mais as pessoas, ela pensou
ironicamente, do que o ódio.
— Nós três devemos saber muita coisa que podemos usar.
— Alex fez uma pausa, mordeu o lábio. — É apenas uma
questão de descobrir quais são os pontos fracos de Jamie.
Durante um tempo, elas bebericaram o vinho. Então
Nicole arfou.
— A Lista D — disse para Jill.
A “Lista D” de Jamie era uma piada interna dos altos
executivos da BWL. Uma compilação de todas as falhas e
fraquezas estruturais que tornariam uma propriedade
menos vendável, incluindo uma previsão detalhada de tudo
que poderia dar errado no futuro, o documento era
basicamente um antiargumento de venda — algo a ser
expurgado do disco rígido do escritório no momento em que
os documentos fossem assinados.
Mais de uma vez, Nicole presenciou Jill discutir com Jamie
sobre o cinismo daquele documento em reuniões
particulares da empresa: “Só de saber que está lá, fico
nervosa”, dizia. E Nicole sentia o mesmo no fundo. Mas
Jamie sempre riu de suas preocupações. Como um lembrete
do que não deveria ser informado ao cliente a menos que
fosse legalmente obrigatório, a Lista D era parte crucial do
processo de venda dele. “E se ninguém além de mim ver
essa lista”, ele protestava, “qual o problema?”
Jill sustentou o olhar de Nicole.
— Você quer dizer…
— Quero dizer, e se a Lista D de Jamie se tornasse pública
de alguma forma? Isso seria constrangedor, não seria?
Jill mordeu o interior da bochecha.
— Sim. Mas para a empresa também, não só para ele.
Nicole teve que admitir que tinha razão.
— Verdade.
— Desculpe — Alex interrompeu —, mas o que
exatamente é a “Lista D”?
Sendo assistente, Alex não teria acesso às reuniões em
que o dossiê duvidoso de Jamie era citado, percebeu Nicole,
e os olhos da jovem se arregalaram enquanto ela explicava
isso.
— Mas pode haver outras maneiras de talvez… Bem,
mandar um recado para Jamie? — Jill insistiu.
— Ou até mesmo de dar um susto forte nele. — As
bochechas de Alex estavam vermelhas. — Porque, caso
contrário, os homens simplesmente não sofrem nenhuma
consequência, não é? De nada! E toda vez que isso
acontece, eles sabem que podem levar as coisas ainda mais
longe na próxima vez.
Por um instante, Nicole se perguntou o quão profunda era
a antipatia de Alex pelos homens. Será que teria se
consolidado ao longo dos anos, como a dela, ou seria
motivada por algo muito pior do que os tratamentos de
Hayden e Jamie?
— Então, é só uma questão de encontrar a oportunidade
certa para pegar Jamie e mostrar a ele — concluiu Alex. —
Na verdade, estaríamos fazendo um favor a ele.
— Estaríamos fazendo um favor às mulheres —
interrompeu Nicole, convidando-as, com um movimento
ascendente da taça, a brindar ao homem que por muito
tempo viveu na impunidade. — A Jamie.
Alex levantou a taça dela:
— A derrubar um homem não tão legal.
CAPÍTULO 7

JILL
5 de agosto
Delegacia de Kilburn

– V ocê—disse
Sim.
que o sr. Lawrence era muito respeitado.

— Por clientes e colegas?


— Sim.
— Não só popular, ele era meio que uma celebridade no
seu mundo, o mundo imobiliário.
Era mais uma afirmação que uma pergunta, e sem saber
se deveria acrescentar alguma coisa, Jill só assentiu.
— Ele ganhou prêmios, matérias em revistas da indústria.
Folheando o arquivo dele, o detetive encontrou o que
queria, e indicou um recorte à sua frente. Mesmo de cabeça
para baixo, Jill reconheceu o retrato do colega tirado em
uma sala de conferências da BWL no ano anterior. Ele
reclamou dela na época, dizendo que as luzes fortes fizeram
o rosto dele parecer um “fantoche dos Muppets”.
— Jamie era um profissional muito bom. Ele tem… — ela
engoliu em seco — … tinha bastante jeito com pessoas, o
que é de extrema importância nesse ramo. Ele trouxe
muitos clientes de alto padrão para a empresa, fez com que
fôssemos notados.
— Só que nem tudo era propaganda positiva, né? Na
verdade, nos últimos dois meses, houve algumas matérias
negativas envolvendo o sr. Lawrence: uma confusão com
conservacionistas sobre uma propriedade protegida que foi
demolida, e algumas menções em blogs de fofocas
especializados em problemas profissionais que devem ter
sido vergonhosas para a empresa.
Jill olhou de relance para o copo de plástico vazio em cima
da mesa, desejando que alguém servisse mais água para
ela.
— Problemas que foram confirmados por funcionários
com quem conversamos, que disseram que… — ele
remexeu em mais papéis — … Sim, aqui está, que o sr.
Lawrence estava “diferente” nos últimos meses, “distraído”
e “se comportando de forma estranha”. Que ele estava
“cometendo erros repetidas vezes”. Um dos seus colegas
inclusive descreveu-o como “desesperado”.
— É verdade que ele não estava agindo como sempre. —
A voz de Jill soou estranhamente aguda. — Desculpe. Eu
estou… Ainda estamos todos muito nervosos.
— É claro. Leve todo o tempo que for necessário. — Uma
pausa. — E também temos uma alegação interna mais séria
que acabamos de saber.
Mais uma vez, Jill só assentiu. A sala cheirava a alvejante,
e sua sede agora era tão grande que, quando o detetive
abriu a boca para falar, ela foi forçada a ler seus lábios.
— O quanto você conhece Nicole Harper, sra. Barnes, e
Alex Fuller?
CAPÍTULO 8

JILL
Dois meses e meio antes

– V ocê vai ter que tentar chegar para lá um pouco. — Jill


sentiu algo fisgar na lombar enquanto colocava a
cadeira de praia do marido na última posição. — Pronto. Não
desce mais do que isso. Ficou melhor?
Tinha sido uma ideia tão boa — um almoço tardio no
deque superior do Lady J. Surpreendentemente, a ideia
tinha vindo de Stan. E quando ele ligou para ela no
escritório para ver como estava sua ressaca e sugerir que
voltasse para casa mais cedo, Jill desligou o computador na
hora e entrou num táxi.
Por quase um ano, tudo na vida deles girou em torno de
planejamentos detalhados e muita preparação, e, exceto
um ou outro jantar mais elaborado, eles mal haviam saído
de Blomfield Road. Durante todo aquele tempo, nenhum dos
dois sequer considerou atravessar a rua para ir ao jardim à
beira do canal do qual sentiam tanto orgulho havia anos,
que dirá subir na barca que circulava por ele.
O Lady J era robusto. Com o motor drenado para o
inverno, o barco era capaz de ficar ancorado onde estava
por meses. O jardim, porém, largado sem cuidados, se
tornara uma confusão de ervas daninhas envolvendo latas,
galões e embalagens de lanchonetes que os turistas de
Little Venice jogavam pelas grades. E depois que Stan e Jill
reconheceram que subir no deque superior do Lady J seria
ambicioso demais para ele, foram forçados a limpar uma
parte do jardim e fazer um piquenique à beira do canal.
Tudo estava indo muito bem até que Jill abriu o patê de
cavalinha, fazendo o marido vomitar ali mesmo no concreto
quente. Com a náusea, as injeções de leuprorrelina
aumentavam a sensibilidade de Stan a cheiros — algo que
Jill sabia, mas de alguma forma havia esquecido em sua
empolgação por “voltar ao normal”. O incidente acabou
fazendo-a se sentir culpada e injustamente irritada com o
marido por lembrá-los por que simples alegrias da vida
anterior não eram mais permitidas.
Enfim acomodado na cadeira, com a testa branca de
protetor solar fator cinquenta, Stan cochilava, deixando Jill
para aproveitar a vista com que se deleitavam a cada verão
nas últimas duas décadas. Fechando os olhos por um
momento, ela tentou se perder no calor anestesiante do sol,
mas flashs da noite anterior continuavam retornando à sua
mente — frases que Jill mal conseguia acreditar que havia
pronunciado.
O fato de que havia dito tudo aquilo sobre Jamie, que
havia cometido tamanha indiscrição, era desconcertante.
Sim, foi pega de surpresa pelas revelações de Nicole e Alex,
mas Jill não era dada a indiscrições. Não era essa pessoa.
Não era de beber muito, mas mesmo assim na noite
anterior sentira uma sede insaciável — como se estivesse
ativamente buscando entrar em um estado alterado que
permitiria que ela ouvisse, dissesse e concordasse com
coisas que ela normalmente não faria. E Jill não podia negar
que se sentira bem — até se deitar na cama e ser atingida
pelo peso da responsabilidade que agora carregava por
aquelas duas mulheres. Será que tudo se transformaria em
uma miragem pela manhã? Será que todas as palavras
proclamadas deixariam de existir, e tudo o que tinha ouvido
seria esquecido?
Ao se lembrar do rosto de Jamie no meio do discurso, no
entanto — o leve rubor alcoólico de suas bochechas e seus
gestos exagerados como os de um showman —, algo
endureceu dentro dela, como na noite anterior, quando os
sentimentos que ela esteve evitando nomear havia meses,
se fosse bem sincera, se condensaram em ódio.
Não importa se ele era um homem que ela conhecia havia
anos, um homem que jantou na casa deles e que, em mais
de uma ótima ocasião — antes de se casar com Maya e de
as crianças nascerem — desmaiou embriagado no quarto de
hóspedes; ou que tenha visitado Stan no hospital. Jamie era
alguém cujos defeitos — fraquezas, ela pensava, com
indulgência — eram familiares o suficiente para serem
divertidos. Ele era alguém em quem ela confiava em poder
contar, caso chegasse o momento. Só que, quando o
momento chegou, seu protegido parecia ter se aproveitado
de todas as oportunidades para “se colocar na frente”,
como Alex dissera. E ele ter minado o poder dela e de Stan
na frente dos clientes quando os dois já se sentiam tão
diminuídos era deplorável.
Era essa a questão? Uma raiva deslocada em relação ao
que sua vida e seu casamento haviam se tornado? “Não é
fácil ser um cuidador”, a enfermeira da radioterapia tinha
dito na semana anterior, dando um apertozinho no braço de
Jill. Não foi tanto a obviedade da declaração e o tom
simpático que a irritaram, mas a deselegância da palavra —
uma palavra à qual Jill não queria se relacionar. Ao longo
dos anos, ela viu a maternidade reduzir seu número de
amigas, e quando ficou claro que ela nunca seria mãe, no
fundo se sentiu grata. Pelo menos seria capaz de seguir em
frente, sem o peso das necessidades opressivas de crianças.
E foi isso que fez — até aquele momento. Então não, como
foi comprovado, ser um cuidador não era fácil.
Jill revisitou o passado ao longo dos anos e viu Jamie, com
seus trinta e poucos anos, quando ela e Stan o trouxeram
para a empresa: igualmente arrogante, porém mais magro,
mais trabalhador e com mais cabelo. A agressividade de
rapaz simples funcionava bem na empresa de Essex de
onde ele viera e fez com que se destacasse dos outros
candidatos ao emprego. Mas essa característica também
preocupou Jill no início: a ousadia dele ia mesmo conquistar
os clientes sofisticados da BWL? Mesmo assim, apostaram
em Jamie e, poucos dias depois de começar,
compreenderam a extensão da habilidade dele. Não havia
muitas pessoas que conseguiam deixar homens relaxados e
mulheres encantadas. Mas a verdadeira surpresa foi que ele
não se limitava a conquistar grandes números de pessoas.
Era também encantador no tête-à-tête. Não apenas com
clientes, mas com colegas e subordinados… e com Paul e
ela.
Ele foi promovido mais rápido e com mais frequência do
que qualquer outra pessoa na história da empresa, mas,
naquela época, Jill nunca notou qualquer diminuição da
deferência dele em relação a ela. Quando isso começou?
Quando Jamie passou a olhá-la de cima para baixo? Porque,
agora que refletia sobre isso, houve sinais bem antes do
diagnóstico de Stan: telefonemas seus que Jamie havia
interceptado de alguma forma; reuniões de que ele
participou sem ela “porque você tem coisas mais
importantes com que se preocupar”; resumos de projetos
que ela estava esboçando para descobrir que Jamie os
escrevera dias antes. Na época, ela interpretou tudo isso
como dedicação. E quando alguns de seus clientes
começaram a gravitar em torno do executivo júnior, nem
sempre ela se importou. Mas se irritou muitas vezes.
Houve o pomposo empreiteiro milanês que nunca superou
o mal-estar de fazer negócios com uma mulher. “Eu só me
sinto mais confortável com Jamie, é como se tivéssemos
mais em comum”, ele enfim assumiu, como se fosse
aceitável declarar uma preferência anatômica pelo seu
parceiro de negócios, igual a pedir chá em vez de café em
uma reunião. E talvez Jamie não tenha ficado tão
horrorizado com isso como deveria. Ele respondeu rápido —
talvez rápido demais? — com um “Bem, o que for preciso
para fazer a venda, certo?”. Então Jamie era oportunista e
misógino. Mas um predador que trocaria cada grama de
lealdade que devia a ela e a Stan por glória?
— Stan? — Jill sabia que deveria deixar o marido dormir,
mas sentia uma necessidade urgente dele, algo que não se
permitira sentir havia meses.
— Hum… — Ele entreabriu um dos olhos e depois o
fechou, para só então murmurar: — Por quanto tempo eu
dormi?
— O suficiente para ficar vermelho. — Ela sorriu.
Sentando-se na ponta da espreguiçadeira de Stan, Jill
passou mais protetor na testa do marido antes de voltar o
olhar para o restaurante Prince Regent lotado que passava
pelo canal.
— Você está bem, amor?
— Melhor do que hoje de manhã. Essa foi uma ótima
ideia.
Pegando a mão da esposa, Stan começou a traçar as
linhas da palma dela, como fazia quando Jill estava cansada
ou trabalhava demais.
— E a dor de cabeça?
— Bem mais fraca.
Ele assentiu, paciente.
— E o resto das coisas?
Sentado com as costas eretas e o rosto corado, ele quase
parecia o antigo Stan — alguém forte o suficiente para ouvir
sua confissão. Porque eles nunca tiveram segredos um com
o outro, durante aqueles 35 anos. Não contar a ele sobre os
acontecimentos da noite anterior a deixava com indigestão.
— A despedida da Joyce foi um pouco… estranha.
— Sempre vai ser difícil se despedir, querida. Ela passou
muito tempo com a gente.
— Não foi só isso.
Cada um estava em sua própria espreguiçadeira agora,
voltados para o canal, e a lenta alteração da paisagem — os
barcos passando e os patos grasnando — ia facilitar essa
conversa.
— Você se lembra da Nicole, nossa gerente de projetos
especiais? Vocês devem ter se conhecido na festa de Natal.
— A das pernas?
— Tenho quase certeza de que todas elas tinham pernas
— respondeu ela com uma risadinha. Talvez fosse ficar tudo
bem. — A gente ficou conversando. E, caramba, Stan, ela
disse que Jamie deu em cima dela. E não só falando coisas,
coisas horríveis, mas até, você sabe, tocando nela no
escritório.
Jill ouviu o rangido das molas da cadeira quando Stan se
virou para olhá-la, mas não conseguiu se forçar a encará-lo
até ter terminado.
— Ela disse que está sendo assediada por ele, e que isso
tem acontecido há meses já.
— Você acredita nela?
— Bom, ela tem um histórico complicado. É casada com
uma filha, ou duas, não lembro. Mas já teve alguns casinhos
no escritório desde que começou a trabalhar com a gente.
Um de que tenho certeza. Lembra aquele tal de Ian?
— Lembro. Acho que a história não me é estranha.
— Todo mundo ouviu uns boatos na época, né?
— E isso tudo significa…?
— Talvez não signifique nada. Só estou te dizendo que
tipo de mulher ela é.
— Não tenho certeza disso, amor. E seja como for, isso
não torna o que Jamie fez correto.
Stan sempre foi o mais feminista dos dois. Isso sempre os
fazia rir, mas naquele momento a resposta automática dele
em defesa de Nicole a irritou.
— Eu sei disso. Só estou te contando sobre o… histórico
dela. Quer dizer, a gente nem sabe se Jamie fez alguma
coisa.
— Ah, acho que a gente sabe, sim.
A risada descrente de Stan — um ronco baixo vindo do
fundo da garganta — era a última coisa que Jill esperava
ouvir. Seu marido era do tipo que sempre via o melhor das
pessoas. Tirando as pernas da cadeira, ela se voltou para
olhá-lo.
— Você acha que ele é um daqueles predadores de que
falam no jornal? — Ela afastou uma mosca da canela. — Um
daqueles homens do “Me Too”?
— Sei lá, mas…
— O quê?
— Bom, eu não falei nada na época, mas você se lembra
daquela assistente, muitos anos atrás, aquela jovenzinha
que só ficou na empresa alguns meses? Uma que ele levou
para uma conferência em Lisboa?
— No Porto.
— Isso.
— Ela voltou a estudar.
— Não voltou, não. Ela foi para a Curtis & Hawk. — Stan
coçou a nuca. — E contou para todo mundo lá que Jamie
tinha dado em cima dela… de forma bem agressiva.
Jill se sentou bem ereta, erguendo os óculos escuros para
a testa.
— Você nunca comentou nada.
— Não quis te preocupar. E para a nossa sorte ela nunca
fez uma reclamação formal. Mas eu não gostava da ideia de
que ela estava comentando isso por aí. Não dá para as
pessoas pensarem que essas coisas acontecem na BWL.
Uma imagem da moça de olhos azuis profundos e rosto
sardento se formou na mente de Jill, e o nome dela voltou a
ambos ao mesmo tempo:
— Jessica.
— Passou, ainda bem, então nunca comentei nada com
ele. Mas assédio… — Stan assobiou baixinho. — Isso vai ser
um problema.
Esse não era o único problema: também havia a
indiscrição de Jamie sobre a saúde de Stan. E embora Jill
não tivesse coragem de contar ao marido que ele tinha sido
assunto de fofocas — ou pior, de pena que ele tanto se
esforçara para não receber —, ela precisava contar a ele
sobre Khalvashi.
— Tem mais uma coisa, que pode ser tão danosa à
reputação da BWL quanto essa história de assédio. Alex, a
antiga assistente de Jamie, diz que foi demitida por algo que
foi culpa dele. Ela disse que ele sabia que o dossiê sobre um
empreiteiro da Geórgia estava incompleto, mas que ele
tentou forçar a venda mesmo assim.
— O quê?
— Pois é.
Stan franziu a testa.
— Mas, bem, é a palavra dele contra a dela?
— Sim. Mas vou te dizer o seguinte, Stan. Ele está… sei
lá, mais desatento ultimamente. Mais arrogante também.
— Essa menina, Alex, está com bastante rancor, não?
— Bom, sim. Ela foi demitida. — Ela odiava as rugas
paralelas marcando a testa do marido. — Mas talvez você
tenha razão. Ela só deve estar com raiva, atacando todo
mundo.
— Pode ser.
— Seja como for, não quero que você fique pensando
nisso tudo. Já tem problemas suficientes para lidar. Nicole
também não quer fazer uma denúncia, já é alguma coisa. E
talvez isso tudo só tenha sido um festival de reclamações
ontem. Talvez elas — Jill não usou a palavra “nós” — só
precisassem desabafar. Mas se você acha mesmo que ele
fica se engraçando com outras mulheres por aí…? Coitada
da Maya.
Os dois ficaram em silêncio, e Jill se sentiu grata pela
distração de outro barco de passageiros atravessando o
canal. Encarando uma fileira de japoneses — impassíveis
atrás dos óculos escuros —, ela viu a própria existência
privilegiada através do olhar alheio. “Imagine ter essa vida”,
eles estariam pensando. E durante todos aqueles anos, eles
teriam razão.
CAPÍTULO 9

NICOLE

– S enhores, como um portal de entrada de mais de três


acres, posso sinceramente dizer que nunca vi nada
parecido no centro de Londres.
— Eu precisaria questionar se Gunnersbury realmente é
considerado “centro de Londres”, Jamie — apontou Patrick
O’Ceallaigh, de brincadeira.
O irmão riu.
— Concordo.
— John. — Girando 45 graus, Jamie baixou o olhar e sorriu
para o gêmeo de rosto mais largo sentado na cabeceira da
mesa de reuniões. Nicole se impressionou, como sempre
quando encontrava essa dupla especialmente famosa do
mundo imobiliário, com o fato de aqueles dois terem
dividido o mesmo útero. — Você tem que me dar uma força.
Se Shepherd’s Bush é centro de Londres, Gunnersbury não
pode ser muito diferente. Oras, Richmond vai ser centro de
Londres em tipo um ano. É ou não é verdade?
— É verdade. E é verdade também que estamos
procurando um local pouco movimentado com acesso fácil à
rodovia M4. É óbvio que, antes de ver a planta total do local,
é difícil imaginar quanto trabalho Minerva vai dar, mas
tenho certeza de que Pat concorda que estamos animados o
suficiente para pedir que você não mostre a propriedade
para mais ninguém por enquanto.
— Concordo mesmo. — O irmão assentiu, baixando os
olhos para o mapa de cada shopping center de tamanhos
variados em um raio de 16 quilômetros, que lhes deu tanto
trabalho para juntar. — É exatamente do tamanho que
estamos procurando. E é verdade que, com os grandes
shoppings a mais de cinco quilômetros, em Shepherd’s
Bush, a gente teria os bairros de Chiswick, South Acton e
Kew só para nós.
— Bairros lotados do tipo de compradora compulsiva que
atualmente se despenca até Westfield para torrar o Amex
do marido — continuou Jamie. — Deus sabe que a patroa
gasta bastante tempo e dinheiro por lá.
Nicole ficou feliz por sua risada vazia ser abafada pelas
gargalhadas masculinas. Ela conseguia fingir uma risada
como ninguém — oras, teria sido capaz de fazer a mesma
piada se estivesse fazendo a venda. “Vocês sabem como
somos: nos dê uma loja de sapatos e o Amex do marido e
estaremos felizes!” Não importa que naquele momento era
o cartão de Nicole que estava na carteira do seu marido, e
que depois ela seria capaz de acompanhar todos os
movimentos dele da semana on-line — movimentos sempre
decepcionantemente previsíveis. Creche, parque,
supermercado e aquele café horroroso cheio de crianças
gritando para o qual ele a arrastara uma vez; esses eram os
principais, com mais algumas centenas de libras gastas de
vez em quando em lojas de eletrônicos. Mais equipamentos
de filmagem para empregos que Ben nunca conseguiria,
que seriam guardados no quarto de hóspedes quando se
tornassem lembretes desconfortáveis dos fracassos
profissionais dele. Mesmo assim, era mais fácil continuar
com a narrativa aceita de que todas as mulheres eram
dependentes dos homens, não?
— O que eu acrescentaria, Jamie, se não for problema…
— ela não esperou a aquiescência do chefe — … é que o
Minerva Industrial Estate também pode ser dividido em dois
estabelecimentos separados: digamos, no complexo de
shopping e cinema que vocês têm interesse e em uma
academia de última geração. E, como Jamie apontou, a falta
de concorrentes imediatos no entorno é mesmo bem única.
— Certo — concordou Jamie. — Obrigado, Nic. Na
verdade, eu ia mostrar a vocês como dois empreendimentos
adjacentes podem dar muito certo nas plantas. Deixe só eu
abrir aqui para vocês…
Jamie digitou alguma coisa no tablet até a primeira
página das plantas da propriedade surgir na tela.
— Certo. Então essa imagem aqui vai te dar uma boa
ideia das especificações do projeto. É categoria… dois, não
é? Nic?
Ela sabia a resposta porque lera o prospecto naquela
manhã, mas era impossível ficar ali sentada em frente a
Jamie sem sentir que qualquer pergunta dele não era uma
provocação, os cantos erguidos da boca forçando uma
cumplicidade com ela com a qual Nicole não tinha nenhum
interesse.
— Você estava precisando disso, não é?
Daquele ângulo — ainda pressionada contra a parede
pelo peso dele —, Nicole percebeu o brilho metálico de uma
coroa nos confins da sua mandíbula.
— Eu percebi. Eu sempre sei do que você precisa, não é
mesmo?
Afastando a carne úmida de suas coxas do corpo dela,
Jamie se afastou e por um momento Nicole temeu que,
enfim solta da pressão do corpo dele, ela despencaria no
chão. Fechando os olhos, ouviu enquanto ele tratava de se
arrumar — o zíper e os botões e a fivela —, surpresa pela
banalidade daqueles sons.
— Você vai ficar assim?
Ao baixar os olhos, ela viu que a saia ainda estava
embolada em torno da cintura, a calcinha caída em volta do
tornozelo. Por baixo da camisa aberta, o sutiã havia sido
levantado, exibindo um dos seios. Ela devia estar parecendo
uma imagem cômica, grotesca. Mas nem se importava.
— Não.
— Ainda bem. Temos uma reunião às quatro.
E enquanto saía da sala de reuniões e seguia para o
escritório, Jamie começou a assobiar.
De algum lugar acima dela, o zumbido do ar-condicionado
parecia opressivamente alto, todos aqueles olhos
masculinos lascivos, os sorrisos conspiratórios — como se
todos soubessem, como se estivessem rindo dela. Se
abrisse a boca para falar, alguma palavra sairia? Nicole se
imaginou se levantando e saindo da sala. Ela poderia
explicar mais tarde: diga a eles que estava se sentindo mal.
— Categoria dois. — Sua voz estava baixa e carregada de
vergonha, como estava quando falou com o marido ao
chegar em casa depois da primeira vez, sem demonstrar
nada. — Isso mesmo, Jamie.
— Foi o que eu pensei. — Ele assentiu, os olhos
demorando-se nela com cautela.
— E se abrirmos o plano para a ala leste, Jamie…
— Mas o quê… Que merda é essa?
A voz de Pat, o sotaque irlandês não mais afável, mas
ofendido, fez com que ela erguesse os olhos dos arquivos.
Aquilo na tela não era a ala leste: era… Merda. Era a Lista D
de Jamie.
— “Fundações inadequadas” — Patrick leu em voz alta. —
“Alvenaria não reforçada.” Jamie, isso é algum tipo de
piada?
— Espere. — O rosto de Jamie estava branco, o dedo
médio pressionando com urgência o tablet em uma
tentativa de tirar aquela aberração da tela. — Não é… Não
era para…
— Aparecer na venda? É, a gente imagina que não, cara.
Todos os olhares na sala estavam naquela tela, incapazes
de desviar da horripilante lista de inadequações do Minerva,
em negrito e vermelho, só para piorar.
— Pat, você está vendo isso? — disse o gentil John, já não
mais tão gentil. — “Paredes sem viga de sustentação”? Você
achou mesmo que a gente não ia descobrir todas essas
merdas?
— Patrick, John… é claro que eu ia levantar todas essas
questões com vocês.
Mas os gêmeos não estavam ouvindo, hipnotizados por
uma nova imagem que ocupava a tela. Por mais horrível
que fosse o que eles tinham visto, isso era muito, muito
pior.
A troca de e-mails era curta e direta — e ampliada em
uma fonte grotescamente gigante.
 
Assunto: Minerva — Aviso
De: HugoMears@JLL.com
Para: JamieLawrence@bwl.com
 
Só para confirmar que Westfield deu o o.k. no nosso terreno em Kew,
camarada. A venda não vai ser assinada/divulgada até o começo de julho,
mas para deixar tudo às claras é bom enfatizar aos compradores que você
mencionou que qualquer plano de construir um multíplex vai ser
problemático.
 
De: JamieLawrence@bwl.com
Para: HugoMears@JLL.com
 
Agradeço o alô. Vou mantê-los avisados.
 
A data do e-mail era de apenas um mês atrás: duas
semanas antes de Jamie apresentar a propriedade aos
irmãos O’Ceallaigh.
— Pat, John. Eu posso dizer com sinceridade…
— Acho que você não pode dizer porra nenhuma com
sinceridade, meu amigo. Escuta: nós trabalhamos com isso
faz muito tempo. Não somos ingênuos de achar que você
iria colocar um problema estrutural no prospecto. Mas isso?
Você sabia o que a gente queria fazer com o terreno, sabia
de Kew, e ainda assim nos ofereceu? Você nos deixou
pensar…
— Não, não, John. — Jamie juntou as mãos pateticamente
como se estivesse implorando ou rezando. — Eu sempre fui
direto com vocês. E olha… Quando um pouco de
concorrência fez mal a alguém, não é verdade? Isso pode
até ser bom para vocês dois… Isso poderia trazer…
Nesse momento a tela finalmente decidiu obedecer,
voltando ao logo branco e grafite da BWL. Mas de alguma
forma isso só piorou as coisas, como se eles estivessem
tentando fingir que palavras entreouvidas nunca haviam
sido ditas.
— Pat.
Empurrando a cadeira para longe da mesa e acenando
para o irmão com um movimento do queixo, John
O’Ceallaigh se dirigiu à porta, com Pat logo atrás. Sem fazer
qualquer tentativa de detê-los, Jamie só ficou observando
enquanto eles atravessavam o andar em direção ao
elevador. Como todos os presentes, ele sabia bem que não
era mais possível salvar aquela negociação.
Visivelmente aliviados por não terem sido os responsáveis
pelo que com certeza entraria na história da BWL como uma
das maiores gafes da empresa, as pessoas começaram a
voltar para suas mesas. Mas, durante uns bons cinco
minutos, Jamie ficou parado logo à porta da sala de
reuniões, curvado e imóvel. E, enquanto o observava de sua
mesa, Nicole sentiu a boca se torcer em um sorriso tão largo
que teve que se virar para evitar que alguém o visse.
O plano que elas tinham traçado no pub — o que
desaparecera sem deixar vestígios, sem qualquer palavra
vinda de Alex desde então, nem o menor sinal de Jill de que
a conversa sequer tivesse acontecido — estava sendo
colocado em prática por uma delas. Não era Nicole. E não
poderia ser Jill, que descartara a possibilidade de usarem a
Lista D naquela noite. O que deixava apenas Alex. Mas ela
não estava mais na empresa, então como poderia ter feito
aquilo?
CAPÍTULO 10

ALEX

P
or que o leite sempre ferve muito mais rápido do
que qualquer outra coisa? Como seria possível, em
questão de segundos, ir de vacilante e deixando
marcas fracas na lateral da panela para borbulhante e
espirrando em Alex como agora? Ela observava,
hipnotizada, os respingos brancos acertando a parte de trás
do fogão, desaparecendo entre a gordura e as manchas de
comidas grudadas ali que aumentavam desde o nascimento
de Katie. Ela observou as marcas se formarem na beirada
da panela indo de marrom a sépia, e o líquido se reduzindo
até virar uma sopa coagulada. Aí desligou o fogo. Ela nem
queria um chocolate quente mesmo. Tudo o que queria era
uma boa noite de sono — e seu emprego de volta.
Do tapetinho de atividades Katie balbuciou, e Alex se
virou, culpada por ter esquecido a existência da filha por
sequer um minuto. “E se você sair de casa e esquecer o
bebê?”, ela perguntou para Joyce durante a gravidez. “Não
é como uma chave”, a colega respondeu, rindo. “O bebê
está no primeiro plano da sua mente o tempo todo. Eles são
pessoinhas também, não se esqueça, mesmo antes de
conseguirem falar.”
Só que Katie não parecia uma pessoinha. Olhando para a
mãe, os belos olhos azuis inexpressivos, ela parecia mais
uma criatura alienígena, julgando silenciosamente todos os
seus fracassos.
— Está se divertindo aí embaixo?
Alex se abaixou ao lado da filha, preparando o nariz para
o cheiro sempre presente de talco, e balançou um dos
macaquinhos pendurados acima de Katie. Ela havia
comprado o “tapete de atividades” de oitenta libras por 15
no brechó, uma pechincha que só fez sentido dias depois,
quando descobriu que o elefante eletrônico com orelhas que
acendiam só tocava uma das “vinte alegres melodias”
anunciadas na caixa amassada. Graças a esse problema, a
música “The Wheels on the Bus” às vezes começava sua
melodia enjoativa sem ser pressionada — uma vez até
despertando Alex e Katie durante a madrugada —, só
porque podia. Depois de três meses, Alex se viu trincando
os dentes quando as primeiras notas atravessavam o
apartamento, e ela se esticou para desligar o aparelho.
Como algo tão pequeno podia precisar de tanta coisa? Ela
havia comprado tudo aquilo pelo preço mais barato, em
brechós ou no eBay, mas os sete mil que a mãe emprestara
já tinham acabado, e Alex sabia muito bem que em poucos
meses haveria toda uma nova lista de necessidades: o
berço teria que ser trocado por uma caminha com um novo
colchão, e logo ela precisaria de um cadeirão e uma
cadeirinha de banho, grades de proteção para cama e um
assento de carro.
Ela pensou no prazo de agosto que sua mãe lhe fizera
prometer que cumpriria. Alex teria que devolver o dinheiro
até lá… ou o pai ficaria sabendo.
— Ele não pode saber — a mãe sussurrara pelo telefone.
Desde que Alex se lembrava, seu pai era sempre referido
com aquele “ele” temeroso. E esse havia sido mais
temeroso que o normal.
— Eu tirei dinheiro da conta nova que abrimos, então ele
não vai notar que não está lá até termos que transferir o
depósito.
— Depósito?
— Na casa nova.
Alex não comentou que nunca tinha visto a casa velha,
que nunca tinha sido convidada — e que a maioria das
pessoas não precisavam esperar um convite para visitar os
próprios pais.
Igualmente temerosa do que “ele” diria, Alex nem tinha
conseguido se forçar a contar à mãe que perdera o
emprego, se permitindo um único momento de sinceridade:
— Eu preciso de você, mãe. Quero dividir esses primeiros
meses com você, quero dividir as experiências de Katie com
você. Eu não esperava que meu pai entrasse no primeiro
avião para cá… — Mas que tipo de homem não deixaria a
esposa conhecer a única neta?
Em geral tão boa em defender o marido — “ele está
cansado”, “ele está irritado”, e o sempre útil “ele não faz
por mal” —, a mãe de Alex ficou em silêncio do outro lado
da linha até oferecer um resignado “Você sabe como o seu
pai é”.
Alex sabia. Só não esperava que os outros homens da sua
vida fossem tão ruins quanto.
Tirando o celular do bolso do roupão que ela jogara por
cima da calça jeans e da camiseta em vez de ter vestido um
casaco, Alex rolou a tela até o número de Hayden e suspirou
profundamente. A expressão dele — descrente, depois
horrorizada — quando ela lhe contou. A voz fria e
desconfiada: “Como você tem certeza que o bebê é meu?”
Não conseguia fazer isso. Não quando suas últimas palavras
para ele haviam sido: “Se você não quer fazer parte da vida
da Katie, eu vou criar minha filha sozinha. Prometo, nunca
vou te pedir nada.” Não quando fizera a mesma promessa
silenciosa em relação ao pai 13 anos antes, a jornada de
criação dele terminada antes mesmo que ela tivesse idade
para votar.
Continuou rolando a tela do celular até o J; mais um
homem frouxo, mais um desperdício de espaço, além do
namorado e do pai. “Jamie Casa”, “Jamie Celular”, “Jamie
Casa de Devon”. Ela tinha mais números do homem que
ficou em sua vida por menos de um ano do que dos próprios
pais — e sentia uma relutância profunda em ligar para
qualquer um deles. Olhando dos números até o relógio
piscando abaixo da televisão — 17:24 — para Katie, Alex
tentou pedir à filha algum tipo de sinal, mas lá estavam
somente aqueles olhos azuis inexpressivos: poços sem
fundo de necessidade. Alex era a única que podia atender
àquela necessidade, e sentindo o que restava de seu
orgulho se esvair, tocou na tela e levou o celular à orelha.
Jamie atendeu imediatamente.
— Al, estou ocupado.
Ela ouviu o barulho distante de música em um pub e o
tilintar de copos, o final de uma piada sendo contada e as
risadas a seguir. Até para Jamie, era cedo para estar no
Firkin.
— Vou ser rápida. — Ela seguiu, de olhos fechados: — Eu
tinha bebido um pouco… na despedida da Joyce. E posso ter
sido um pouco… firme. — Nem de perto tão firme quanto
gostaria, seu merdinha inútil e traidor. — Enfim, percebi que
não era o momento certo para a gente ter aquela conversa.
Desculpe.
Ela se sentia fisicamente enjoada por pedir desculpas a
ele, mas já fazia mais de uma semana sem ter uma palavra
de Jill ou Nicole. Se ainda houvesse alguma chance —
qualquer que fosse — de Jamie ajudá-la, valeria a pena.
— Mas aquele trabalho… eu estava contando mesmo com
ele… — esticando-se para segurar o pezinho da filha, ela o
apertou com força o bastante para Katie fazer uma careta
pré-choro, antes de soltar. — Eu preciso mesmo do
emprego, Jamie. Estou quase sem dinheiro. E se você acha
que o seu amigo não precisa de uma assistente… — Ela
respirou fundo. — Quer dizer, será que tem… alguma outra
pessoa que possa precisar? Ou seria possível… — ela se
contorceu de vergonha pelo que estava prestes a dizer — …
considerando que nós dois sabemos que o que aconteceu
não foi culpa minha, considerando que você me deve uma,
Jamie… Eu só estou meio apertada, entende? Só preciso do
suficiente para acertar as coisas.
— Alex. — Jamie parecia mais entediado que irritado, e
ela o imaginou parado à porta do pub, onde não tinha tanto
barulho, gesticulando para os colegas bêbados da BWL para
avisar que já voltaria. — Foi o que eu te falei: não tem
trabalho. Eu me confundi. Olha, eu sinto muito e te desejo
tudo de bom. Espero que você saiba disso. Agora você tem
a pequena…
— Katie.
— Agora você tem a pequena Katie. No fim das contas,
família é o que importa, não é? Tenho que desligar.
Ao ouvir a ligação ser desconectada, Alex afastou o
telefone da orelha e encarou a tela sem acreditar.
— Seu merdinha!
Assustada com o tom de voz da mãe, Katie soltou um
soluço que se transformou em uma reclamação aguda.
Estava cedo demais para a próxima mamada, e a agente
comunitária de saúde do NHS [ 01 ] tinha alertado Alex sobre
os riscos de “alimentar demais a bebê”, mas ela ergueu a
camiseta mesmo assim.
— Pega! Pega!
Mais uma vez, Katie se recusou a pegar o bico do peito,
virando a cabeça como fizera todas as vezes desde a
despedida de Joyce.
Alex não era supersticiosa, mas estava começando a se
perguntar se tê-la tirado do peito naquela única noite e ter
se permitido ser consumida pelo ódio que agora corria
venenoso por suas veias tinham azedado seu leite.
Na manhã depois da festa, ela havia acordado de ressaca,
ainda sonolenta, mas nas nuvens. Não fora a única a ser
enganada por Jamie e, por mais chocante que tenham sido
as revelações de Nicole, aquela foi toda a confirmação de
que precisava. Alex não fez nada de errado, mas Jamie? Ele
era uma pessoa horrível de verdade. E com a fundadora da
BWL agora ciente de quem seu protegido realmente era, Alex
respirou aliviada, sabendo que o acerto de contas viria. Só
que aquele dia havia passado, e então o seguinte, sem a
aguardada ligação ou mensagem de Jill ou Nicole, e a
felicidade de Alex se transformou em dúvida. Será que ela
exagerou a raiva das outras duas em sua memória?
Imaginou a cumplicidade no seu plano? Não. Não estava
aumentando nada. Elas só estavam se protegendo.
Apontando o seio intumescido para Katie com uma das
mãos e limpando as lágrimas com a outra, Alex rosnou:
— Você quer a mamadeira? Toma então.
Cansada demais para insistir, ela preparou a mamadeira,
deitou a filha no colo e prendeu a respiração até ver os
músculos nas bochechas de Katie que sugavam
mecanicamente ficarem cada vez mais lentos até parar, e
ela fechar os olhos.
Como as mães que não trabalham lidavam com esses
dias infinitos? Alex trabalhava muito na BWL, e os dias antes
de uma conferência ou de uma grande venda eram
esgotantes… mas nada desse jeito. Nada assim. Não havia
um empregador no mundo ocidental que não permitiria que
você fizesse xixi quando precisasse. Embora, é claro, se
você tivesse um homem, ou outro responsável ali, as coisas
seriam diferentes. Haveria algum tipo de interação humana,
para começar.
Com quem Alex tinha falado desde que acordara — desde
que fora acordada —, logo antes das quatro da manhã? Com
a recepcionista incomodada do médico, em uma conversa
que não durou mais de trinta segundos. Com a voz
automática da caixa postal dos pais. “Por que Katie não
quer mais mamar no peito?”, ela queria desesperadamente
perguntar à mãe. “Por quê? É a única coisa que eu sei
fazer.” Mas mesmo assim não deixou mensagem, sabendo
que o pai poderia interceptá-la e ouvir o desespero em sua
voz. O cara do posto de conveniência naquela manhã foi
capaz de fazer toda a transação sem nem mesmo um aceno
de cabeça, provavelmente de saco cheio de interações
humanas, ou talvez um pouco enojado pelo bebê babão
grudado no peito dela. A forma como algumas pessoas te
olham quando você se senta ao lado delas no ônibus ou no
metrô, como se você tivesse alguma doença. E Alex não
culpava quem se levantava e se afastava, revirando os
olhos para os gritos de Katie. Bebês eram sujos, fedorentos
e barulhentos — até o seu. Seu laptop estava
tentadoramente perto, despontando sob um jornal Metro
manchado de café na mesa de centro, e Alex avaliou rápido
os riscos que toda mãe de um bebê dormindo é forçada a
correr para se certificar de alguns minutos de liberdade.
Tendo passado Katie com segurança dos seus braços para o
sofá, ela clicou na caixa que vinha checando uma dúzia de
vezes por dia, esperando receber uma mensagem
conciliatória de Jamie — e prendeu a respiração ao ver o e-
mail.
Espremido entre a newsletter de um supermercado e um
lembrete do eBay para “pagar o saco de dormir infantil”
havia um e-mail de Ashley Bucknall; assunto: encerramento
de contrato. De imediato algo pareceu estranho. Por um
minuto, Alex deixou o cursor flutuar sobre a mensagem, e
quando clicou nela se surpreendeu por não haver nada
escrito no e-mail, só um documento do Word em anexo.
Abrindo o que se revelou ser só três páginas, Alex logo leu o
conteúdo da primeira, uma carta:
Prezada srta. Fuller, como discutido pessoalmente em 4
de maio deste ano, por favor, fique ciente de que a BWL
está encerrando seu contrato de trabalho iniciado em…
Conforme lia, Alex enfiava as unhas no sofá. Confira a
seguir os detalhes do pagamento completo e final da sua
licença-maternidade. Isso deve englobar os valores até esta
data. Como é comum em demissões por falta grave… Aqui
as palavras ficaram borradas na tela. “Falta grave”? Ela
olhou para Katie, como se a bebê adormecida pudesse
ajudá-la a compreender. Mas é claro que não podia. Nada
poderia. E a verdadeira extensão das mentiras de Jamie se
tornou clara para Alex. Nada do que foi dito naquela reunião
era verdade: a “negligência” que ela teoricamente
cometera, a promessa de manter a demissão em segredo e
a afirmação de que os documentos do desligamento diriam
que “você simplesmente pediu demissão”. Mas como
conseguiria outro emprego com aquilo no seu registro
pessoal? Mas a maior mentira de todas tinha sido o
emprego na JLL, como uma cenoura pendurada à sua frente
para conseguir que fosse embora sem criar escândalo e
então afastada assim que Alex estivesse fora do caminho.
É engraçado como o amor é próximo ao ódio, como é
forte a vontade de ver o rosto de alguém quando você está
preso no olho do furacão dessas emoções. Como uma
adolescente, Alex abriu a pesquisa de imagens do Google,
mordendo o interior das bochechas enquanto passava de
uma foto para outra do mentiroso de olhos simpáticos que
era Jamie. Durante todo o tempo em que trabalhou para ele,
nunca ocorreu a Alex olhar as redes sociais do chefe, já que
todos os detalhes da vida dele eram seu ganha-pão. E teria
sido difícil para a maioria das pessoas sentir curiosidade
sobre um homem que, ao beber, dividia tantas informações
particulares quanto Jamie. Até o mais fugaz companheiro de
copo no Firkin saberia de tudo, desde confusões conjugais
causadas por seus surtos de fumante às escondidas (“Juro
que ela sente o cheiro em mim a um quilômetro de
distância!”) e sua tendência a esquecer a aliança em
qualquer lugar (“Se um dia eu perder essa aliança, Maya vai
pirar”) ao preço exorbitante da suíte de frente para o mar
na Antígua que ele estava prestes a alugar para o Ano-
Novo. Mas quando ela rolou para encontrar as páginas de
Jamie no Facebook e no Instagram, a sensação foi a de
encontrar um tesouro virtual.
Ali, ao alcance dos dedos, estavam dez anos da vida de
Jamie: uma coleção inestimável de festas, aniversários e
minisseparações matrimoniais, noites no pub e encontros e
tudo que pudesse servir de objeto de vanglória. Conforme
ela passava por uma série de posts do tipo “homem de
família”, Alex se viu cada vez mais intrigada pela mulher
que foi tão hipnotizada por aquele embuste que até se
casou com ele.
Alex já tinha visto muitas fotos da esposa de Jamie, que
mais parecia uma modelo, tanto nas prateleiras do ex-chefe
como no celular dele, e, por estar familiarizada com o
contraste agradável das sobrancelhas escuras e do cabelo
louro-mel, as maçãs do rosto esculpidas e os lábios
carnudos, e porque ele sempre estava falando da aparência
dela como se fosse uma vitória dele, Alex havia ignorado a
beleza dela. Mas concentrando-se em Maya, ela foi forçada
a concordar que havia algo naquela esposa troféu do oeste
de Londres que a elevava acima do restante.
Maya tinha uma beleza limpa e típica de modelos, que
conseguia ser, ao mesmo tempo, acolhedora e alienante.
Mas era o frescor — do tipo que pouquíssimas mulheres
mantêm depois dos vinte e tantos anos — o mais
desconcertante. Maya era uns bons anos mais velha que
Alex, mas do cabelo aos lábios pintados apenas com um
brilho rosa-coral quase transparente, à pele levemente
bronzeada dos braços, tudo tinha um quê de intocável, uma
originalidade — como se a vida nunca tivesse conseguido
deixar sua marca nela, ou como se Maya tivesse sido
protegida de qualquer coisa desagradável que pudesse tê-la
marcado.
Alex se pegou voltando a uma imagem específica no
Instagram. Tirada alguns meses antes, exatamente 16 dias
depois de Maya ter dado à luz (Alex fez as contas), que a
mostrava de pé no quintal da casa deles em Bedford Park,
de jeans e suéter. Ao esticar a mão, protegida pela luva de
jardinagem, para quem quer que estivesse tirando a foto —
Jamie, provavelmente —, a boca aberta em um protesto
brincalhão, o suéter de Maya se ergueu alguns centímetros,
mostrando a parte de baixo da barriga dela. “Por favor!”,
Alex quase conseguia ouvi-la dizendo ao marido orgulhoso.
Porque, embora a barriga de Maya parecesse perfeita aos
olhos de Alex, sem uma veia ou estria à vista, para Maya,
ela ainda não havia recuperado o corpo pré-gravidez. Jamie
saberia como a esposa se sentia. Ela teria comentado
naquela manhã enquanto ele saía de cima dela, sem fôlego,
beliscando uma infinitesimal dobra de pele e fazendo bico:
“Olha só o que você fez comigo.” E Jamie riria, dizendo que
Maya continuava tão linda como sempre, talvez até se
inclinando para beijar sua barriga.
Jamie só havia postado mais uma vez desde aquele dia.
Uma foto de um parque do oeste de Londres, no primeiro
fim de semana de maio. A toalha xadrez estava lá, mas
aquela não era a bagunça comum de um piquenique: nada
de ovos cozidos e minissalsichas para aquela família. Em
vez disso, havia alguma coisa parecida com uma quiche
embrulhada em papel pardo, um pomelo descascado e
cortado em fatias, e parte de uma garrafa verde que devia
ser de Sancerre ou Chablis — dois dos favoritos de Jamie,
ela sabia — despontando de um cooler. A pequena Elsa
dormia no peito de Maya, e Christel fazia careta atrás do
pai: “Minhas meninas.”
Esses dois posts fizeram Alex mergulhar na vida de Maya.
Jamie talvez fosse um mentiroso, um assediador e muito
provavelmente um traidor, mas não havia dúvida de que ele
ainda era fascinado pela mulher com que havia se casado. E
se Maya era uma das coisas que Jamie mais valorizava além
do trabalho, então Alex ia precisar se aproximar um pouco
mais… e descobrir como poderia utilizar aquilo a seu favor.
Com os dedos se movendo à velocidade da luz pelo
teclado, buscou “Maya Lawrence” e começou uma
investigação completa nas mídias sociais dela. Como não
tinha pensado em fazer isso antes? O Facebook e o
Instagram de Maya começavam lá quando ela ainda era
Maya Juhl, “design de interiores”, fotografada encostada no
quadro de inspirações de um estúdio em Copenhagen,
usando um jeans boyfriend rasgado. Bonita demais para ser
levada a sério, ela passou a usar óculos de armação preta
grossa e uma expressão desafiadora nos meses seguintes:
sempre aboletada no braço de algum sofá absurdamente
minimalista ou cruzando os braços no primeiro plano do
lobby de algum hotel monocromático que supostamente
deveria ter sido obra sua. Mas algo havia acontecido
quando ela se mudou para Londres — Jamie? E Maya se
tornara uma mulher mais leve, mais brincalhona; uma
mulher que usava vestidos leves e alpargatas, lambia a
espuma da cerveja do lábio superior e tirava selfies
beijando uma versão mais jovem e mais magra de Jamie.
A época dos bebês — Christel e depois Elsa — veio a
seguir, e Alex ficou impressionada com a complacência da
fotogênica família Lawrence, foto após foto da prole perfeita
sendo enfiada goela abaixo das pessoas no que era
apresentado como uma demonstração de amor altruísta
mas era, na verdade, um narcisismo extremo. Assim como
as fotos infinitas do quintal verdejante e da estufa em
Bedford Park, com os tomates que Maya se esforçava muito
para fazer as pessoas acreditarem que tinham sido
plantados por ela mesma, e um post muito Mulheres
perfeitas da semana anterior que mostrava um daqueles
porta-comprimidos semanais nas cores do arco-íris, lotado
de pílulas pseudossaudáveis. “Colocando o marido num
cronograma de vitaminas!”
O post mais recente era sobre algum tipo de aulinha de
mamãe e bebê. Fotografada em um círculo de mães
paparicadas e risonhas de Chiswick, Maya estava com as
pernas vestidas em lycra dobradas à sua frente no formato
de um losango, intensamente concentrada na cabecinha de
Elsa, apoiada em seus pés. Quando Alex se concentrou na
legenda — “Aulinha de ginástica na Bumps & Babies. Ótimo
lugar para fazer novos amigos!” —, sentiu um nó no
estômago ao perceber como a experiência do início da
maternidade podia ser diferente para as duas.
O zumbido de um patinete elétrico parando do lado de
fora tirou Alex do transe, e ao se aproximar da janela ela viu
a figura de capuz familiar na esquina lá embaixo, os clientes
esquivos saindo de carros e portas para fazer os pedidos da
noite, a bolsa tipo carteiro da Fila sendo remexida
rapidamente em busca de cocaína, maconha ou o que quer
que as pessoas precisassem comprar com regularidade
alarmante. Já passava das oito agora, e como ela deixara
Katie dormir cedo demais, a filha ficaria acordada a noite
toda. Mas ela ficaria acordada a noite toda de qualquer
maneira. Sempre ficava. E embora Alex se sentisse vazia de
tão cansada, ainda estava agitada demais para dormir —
quase tão agitada quanto na madrugada depois da festa de
Joyce, quando descobriu como seria fácil colocar em prática
aquele plano do pub.
O “engano” com a Lista D junto ao e-mail de Hugo Mears
tinham sido um experimento. Se isso fosse divulgado e
deixasse ao mesmo tempo Jill e Nicole nervosas, melhor
ainda. Alex não esperava que sua antiga senha de acesso à
intranet da BWL ainda funcionasse — a que ela usava para
mudar horários de reuniões e voos para Jamie, marcar
motoristas que conseguia acompanhar na base de dados do
escritório do início ao fim da corrida e editar documentos
fora do escritório. E, é verdade, não funcionou. A ideia de
Jamie, tão ocupado, tendo o trabalho de chamar a TI para
mudar a senha a irritou por um momento, até que uma
piada que ele havia feito por causa de um artigo sobre
senhas pouco seguras no Evening Standard voltou à sua
mente. “Quem ainda usa o aniversário como senha?”, Alex
tinha rido. “Culpado”, o chefe havia confessado com uma
careta. E ela deu uma bronca em Jamie por não cuidar da
segurança. Ele não era burro, mas era preguiçoso — e
quando Alex tentou a sequência “123456”, a senha
provisória que a TI sempre manda para que fosse alterada
imediatamente, o portal da BWL se abriu à sua frente.
Uma lista de funcionários responsáveis por cada projeto
estava disponível no portal principal, junto aos documentos
detalhando visitas, contratos e negócios daquela semana,
mas outra senha foi necessária para acessar o e-mail e a
agenda de Jamie, e essa não se provou tão fácil de
descobrir. A data do casamento de Jamie não funcionava
mais e os aniversários de Maya, Christel e Elsa, todos
falharam, com e sem um “1” no final. As palavrinhas
vermelhas “Esqueceu sua senha?” a provocavam. Quantas
tentativas mais até a senha ser bloqueada? Mais uma, mais
duas? Olhando pela janela para a sequência de sobrados
vitorianos malconservados em frente, Alex forçou a mente a
vaguear, algo que fazia nas raras ocasiões em que esquecia
a senha do cartão. Então digitou seis letras: NICOLE.
“Predador de merda”, resmungou quando a caixa de
entrada de Jamie se abriu à sua frente.
Alex soube o que fazer no segundo em que viu a reunião
do projeto Minerva com os O’Ceallaigh na agenda de Jamie.
Se a Lista D era uma piada tão popular na BWL, e se Jill e
Nicole estavam cientes dela, então certamente alguém teria
acesso a esse arquivo. E quando uma rápida busca na caixa
de entrada dele resultou em um e-mail de Mears
aconselhando “transparência” — algo de que Alex agora
sabia bem que seu ex-chefe não era fã —, ela decidiu
colocar a mensagem no pacote também, só para dar mais
uma cutucada vergonhosa. Com apenas alguns cliques, os
documentos estavam no arquivo da apresentação de Jamie,
que Alex tinha certeza de que ele nem se incomodaria em
revisar no dia: nunca fazia isso. Porém, por mais que ela
tenha se divertido ao ler as trocas de e-mail sobre a
“cagada do Minerva” que continuavam surgindo dias
depois, Jamie já parecia estar se safando.
Nos dias que se seguiram à despedida de Joyce, Alex
estava desesperada por qualquer tipo de reconhecimento
de Nicole ou Jill. Agora estava claro que as duas a tinham
apagado da mente — e o plano que criaram juntas. Mas
Alex não conseguia fazer isso. Não o faria. E claramente
uma ligeira gafe profissional não era o suficiente. Não para
Jamie… nem para ela. Abrindo o laptop de novo, ela digitou
“Bumps & Babies”. Como era mesmo a frase que ele
sempre dizia, sem saber a dor que causava a ela? “Família é
o que mais importa”? E, depois de hesitar por um segundo,
ela clicou em “Agendar uma aula”.
CAPÍTULO 11

JILL

– N ãoJamie
sei como posso ser mais claro em relação a isso.
falava devagar, alongando as vogais e
pontuando cada palavra com um aceno de cabeça, e Jill se
sentia tentada a lembrá-lo de que não era nem filha dele
nem sua assistente.
— Sinceramente não sei como isso aconteceu. As plantas
da propriedade estavam bem ali no meu tablet, e eu tinha
repassado a apresentação do Minerva no dia anterior. Só
pode ter sido um erro na hora de nomear o arquivo. Talvez
até algum tipo de erro do sistema?
“Só pode ter sido” era uma das expressões favoritas de
Jamie, sua reação automática a qualquer tipo de erro ou
confusão. Dessa vez, no entanto, Jill suspeitava de que a
surpresa abismada dele pudesse ser genuína. Será que
aquilo era coisa de Nicole? Ou de Alex? Ou das duas,
colocando em prática um plano que Jill desconsiderou como
sendo loucura de bêbado?
— Olha, a gente já falou disso mil vezes. Sabemos bem
que a culpa é minha, tá? Não tem ninguém aqui discutindo
isso.
Inclinando a cabeça para o lado, Jill observou o colega.
Sua linguagem corporal continuava lânguida e controlada:
as pernas esticadas, as mãos cruzadas atrás da nuca. Ela
queria que essa conversa estivesse acontecendo no
escritório dela, onde a dinâmica de poder estaria mais a seu
favor. Queria também que Jamie estivesse mais
envergonhado e menos combativo.
— Não tem a ver com culpa, Jamie. — Dando uma olhada
no relógio, ela suspirou. — Tem a ver com se certificar de
que estaremos mesmo prontos para quando os irmãos
O’Ceallaigh vierem em menos de duas horas.
— Eu estou pronto — insistiu ele. — Vou entrar lá, ser
franco com eles e falar sobre todos os problemas da
propriedade, explicar que o motivo pelo qual não tinha
mencionado o terreno da JLL na região foi porque eu não
achava que a venda ia ser fechada…
— Ou seja, mentir.
— … e vou vender a propriedade para eles tudo de novo.
Vou dizer que ter um Westfield logo do outro lado da ponte
vai ajudar os negócios, não dificultar, blá-blá-blá. — Ele se
inclinou para a frente. — Você acha que eu não sei o quanto
isso é importante? Eu sou bem crescidinho, Jill.
— Tem certeza de que não quer que eu participe da
reunião?
— Tenho.
— É só que a gente teve muito trabalho para convencer
os dois a voltar.
— Eu sei. Principalmente porque fui eu que passei a
última semana ralando para que isso acontecesse.
— Uma semana na qual poderíamos estar mostrando a
propriedade para outras pessoas, Jamie. Mas você insistiu
que a gente segurasse. — Ela deu de ombros. — Pode ser
até que os O’Ceallaigh já tenham desistido da gente e
começado a conversar com a JLL, nossa concorrente mais
“transparente”.
— Jill! Eu posso consertar isso. Não era você que sempre
me dizia, muito tempo atrás, para não correr atrás dos
outros quando cometesse um erro? “Apenas conserte”?
— Era. — Ela ficou satisfeita por ele ter se lembrado. — E
a garrafa de Glenlochy vintage foi um toque de mestre.
— Obrigado. É quase como se eu soubesse o que estou
fazendo.
— Cruzes, você está tão na defensiva.
Jamie respirou fundo, engolindo o que quer que estivesse
prestes a dizer.
— Só quero que você pare de me microgerenciar. Já
resolvi.
— Então tá. — Ela ajeitou a saia. — Foto nova da pequena
Elsa?
Jamie girou a cadeira para pegar a foto emoldurada da
família na prateleira atrás da mesa.
— Ela não é linda? — Jamie passou o polegar pelos três
sorrisos brilhantes e o embrulhinho confuso no centro de
todos e entregou a fotografia para Jill.
— Uma graça. — Ela havia dominado aquele tom gentil ao
longo dos anos, mesmo que nunca tivesse sentido a
pontada no útero, imaginava, que as mães sentiam. — Maya
pensa em voltar a trabalhar em algum momento? Ela
comentou alguma coisa assim faz um tempinho.
— Ah, acho que não. Não dá pra fazer isso agora. Nós
temos ajuda, mas não vou deixar meus filhos serem criados
por estranhos.
Jamie colocou a foto de volta na prateleira, ao lado de
uma antiga da esposa, no auge da “trofeuzice” dela, em
uma praia em algum lugar impressionante. E, embora Jill
tivesse visto a foto um milhão de vezes e observado o short
curto, a camisa transparente e a fileira de pulseiras
refletindo o sol, embora estivesse bem ciente de que, em
termos de desejo masculino, aquela mulher era
basicamente o padrão, a palavra que surgiu, indesejada, na
sua cabeça enquanto voltava para seu escritório era
“comível”.
“Você está muito comível hoje.” Não foi isso que Nicole
alegou que Jaime havia dito? Expulsando a lembrança com
um balançar de cabeça, ela pegou o telefone para retornar
a primeira ligação aos clientes da lista que sua nova
assistente deixara na mesa, decepcionada, mas não
surpresa, por perceber que Kellie com “ie” tinha a caligrafia
de uma garotinha de primário.
— Edward, é a Jill. Só queria saber se você chegou a
pensar sobre a propriedade da Portland Road.
Edward Dinnigan gostava de falar. Depois de colocá-lo no
viva voz, Jill pegou o celular para ver se Stan tinha mandado
alguma mensagem, e depois começou a checar os e-mails.
Quando só faltava responder os três últimos, Edward ainda
não parecia estar nem um pouco próximo do fim da
descrição da viagem de iate que havia feito para Èze.
— Porcaria — ela reclamou ao clicar rápido demais em um
e-mail com cara de spam.
— Perdão?
— Não foi nada. Você estava dizendo que ficou feliz de ter
os estabilizadores.
Raxugdy@sharklaser.com; assunto: COM AMIGOS ASSIM. Isso
não era nada bom. Precisaria pedir para Tara, da TI, verificar
se tinha baixado algum vírus. Mas a mensagem não pedia
que ela clicasse em nenhum link… nem que fizesse nada.
Não, parecia ser só o encaminhamento de uma troca de
mensagens entre Jamie e Paul, em janeiro. O assunto dizia
CLARENDON CENTRE, uma propriedade comercial de 14 mil
metros quadrados vendida com relutância no mês seguinte
por muito menos do que o valor pedido, e a conversa era
sobre como a BWL estava tendo dificuldade para vender o
lugar. Foi só quando chegou ao terceiro e-mail, de Jamie,
que Jill entendeu por que tinham encaminhado aquilo para
ela.
Pensando aqui, não podemos cuidar disso nós mesmos?
VSQ está bem lelé ultimamente. Sessentões senis além de
tudo? Pode ser… De qualquer forma, não sei se esse é o
tipo de imagem que queremos passar agora. Sem contar
que ela não deveria estar em casa, cuidando do Stan?
— Edward?
— Desculpe, estou falando sem parar. Sobre a Portland
Road…
— Perdão. — Jill estava sentindo uma onda de calor quase
cinematográfica subindo ao rosto. Só que não havia nada de
cômico nisso ou na sensação de que as proporções da sala
tinham se alterado. — Tem alguém na outra linha que está
insistindo muito. — A voz dela parecia de outra pessoa. —
Posso te ligar depois?
Se não fosse pela referência à idade, ela pensou
enquanto relia a troca de e-mails, devagar dessa vez,
percebendo e agradecendo a recusa de Paul em responder
as piores partes do e-mail de Jamie — Ela está passando por
um momento difícil, mas tenho a sensação de que o
trabalho ajuda, não atrapalha —, Jill poderia ter se
convencido de que a mensagem não era sobre ela. Como
estava, porém, não havia dúvidas de que ela era “Você
Sabe Quem”, e de que, se Jamie realmente havia escrito
aquelas palavras, ele não era só o assediador e oportunista
que ela descobrira naquela noite no pub, mas algo muito
pior.
CAPÍTULO 12

NICOLE

– P or Jáqueeravocê não me acordou?


mais de nove horas quando Nicole desceu
para a cozinha. E, embora Ben a deixasse dormir até mais
tarde todos os sábados, ela quase nunca passava das oito.
— Você parecia estar precisando. — O marido sorriu e se
inclinou para beijá-la.
— Você está com cheiro de café — murmurou sonolenta
porque era verdade, porque ela queria café também e
porque, quando Ben fosse fazer uma xícara para ela, o que
Nicole sabia que faria, ele teria que soltar o aperto nos
ombros dela. Nicole sempre achou a necessidade dele de
afeição logo pela manhã um tanto sufocante. — É do bom?
Daquele lugar da Charleville Road?
— Aham. Falei para a Mama Anna que você achou o outro
muito fraco.
— Não fraco, só com um gosto acentuado de castanhas
ou… sei lá. Cadê a Chlo?
— Ali. — Ben indicou com o queixo a sala ao lado, onde a
voz aguda do Bob Esponja podia ser ouvida. — Chloe, vem
dar bom-dia para a mamãe!
— Eu vou lá. — Colocando uma mecha de cabelo atrás da
orelha, Nicole esfregou os olhos. — Só preciso de um
segundo. Quem é Mama Anna mesmo?
Ben riu. O fato de que ela não conseguia identificar qual
das senhoras geniosas das padarias italianas era “Mama
Anna” podia parecer estranho para o marido, que conhecia
em detalhes a vida de todos os baristas da região, mas para
Nicole era o interesse de Ben na existência periférica dessas
pessoas que era bizarro.
— A dona! Aquela que o marido, Rocco, morreu ano
passado? A que sempre dá chocolate Baci para Chloe?
— A velhota que gosta de você?
— Todas gostam de mim — retrucou ele com uma
piscadela.
Provavelmente era verdade. Com 1,95 metro, membros
longos e rosto comprido, cílios que Nicole mataria para ter e
um sorriso que quase alcançava as diagonais ligeiramente
melancólicas das sobrancelhas, Ben sempre fora um
sucesso entre mães e avós. Oras, até as babás pareciam
demorar uns bons vinte minutos ao final da noite querendo
pedir conselhos para ele sobre enquadramentos de posts no
Instagram.
Seguro, gentil e criado em uma casa cheia de mulheres,
Ben não era tanto um grande sedutor, e sim o cara com
quem você procurava consolo depois de levar um pé na
bunda — e por quem acabava se apaixonando. “Cara
perfeito bem na sua frente”: aquele era o marido dela, e
tinha sido exatamente assim que os dois acabaram juntos,
ao estilo de Harry e Sally: feitos um para o outro, no terceiro
ano da faculdade em Bristol.
— Enfim. Esse é um fortissimo, segundo Mama Anna,
come tua moglie.
Nicole ergueu a sobrancelha.
— Como sua mulher.
— Ah. — Ela tomou um gole. Era forte e amargo, e Nicole
tentou não pensar muito na comparação de Mama Anna. —
Oi, querida.
Atravessando as portas duplas que separavam a cozinha
do quarto de brincar, pintado de rosa por Ben ainda na
semana anterior, Nicole apoiou o café no chão e puxou
Chloe para o colo. A nuca da filha de quatro anos cheirava a
sabonete de mel, e naquele momento nada mais importava.
— O que você está vendo?
— Bob Esponja. Ele está brigando com uma enguia.
— Ah, é?
— Dá para comer enguias?
— Dá. Mas não é muito gostoso. É meio melequento. Esse
pijama é novo?
Chloe assentiu, os olhos grudados na tela, e Nicole não se
importou muito que a filha não estivesse a fim de conversar.
No fundo gostava quando Chloe estava atenta a algo que
não ela. Era quando a filha corria para cumprimentá-la
assim que Nicole colocava os pés em casa à noite que ela
achava difícil. Era não conseguir tirar os sapatos, sentar-se
por um minuto e respirar com aquele corpinho quente a
envolvendo.
E depois ainda tinha as perguntas; tantas perguntas. Não
só feitas por Chloe, mas também por Ben: como foi seu dia?
Alguma venda? Por onde esteve, com quem? Como se ela
fosse uma estudante de maria-chiquinha ansiosa para
contar aos dois tudo o que aprendera sobre a Grande
Muralha da China, e, ao mesmo tempo, de alguma forma, a
maior tomadora de decisões. Vamos jantar carne ou
salmão? Tinha conseguido olhar os formulários da escola
que ele mandou por e-mail? Por falar nisso, o que achava de
um barracão para servir de escritório no quintal? Ela estava
no comando no trabalho, era um tipo de CEO doméstica em
casa, e às vezes sonhava em abrir mão de todo esse
controle, em ter alguém dizendo o que ela queria e
precisava, em se entregar a isso.
Somados, o peso das expectativas de Chloe e Ben
costumava ser o suficiente para fazer Nicole subir direto
para tomar um banho assim que chegava. O conselho que
sua mãe lhe dera no dia do casamento — “Lembre-se
sempre de dar a Ben uma bebida, algo para comer e meia
hora de silêncio quando ele chegar do trabalho” — só
parecia se aplicar aos homens. Dava a entender que as
mulheres que trabalhavam fora já tinham um “tempo para
si” no escritório, que ter a permissão de trabalhar já era
uma indulgência.
Apertando a filha no colo, ela sussurrou:
— O que você quer fazer hoje?
— Parquinho! O papai falou! O papai falou!
— Falei mesmo. — Ben apareceu na porta, com uma
expressão arrependida e uma cafeteira italiana fumegando
na mão. — Mas a mamãe precisará de cafeína se vai ter que
enfrentar o parquinho.
Por cima dos cachos escuros e lustrosos de Chloe eles se
entreolharam, e Nicole sentiu uma onda de culpa e amor —
os dois sentimentos tão intimamente ligados no que dizia
respeito a Ben e Chloe que eram quase indistinguíveis. Ela
mal tinha visto a família durante a semana e não havia
motivo para eles ficarem pisando em ovos por causa dela.
— Mas está um dia tão bonito, eu não tenho trabalho para
fazer e o parquinho vai ser divertido, não vai, minha
joaninha? Vamos subir e nos vestir? Se chegar cedo, talvez
a gente consiga evitar aqueles garotos valentões nas pontes
de corda?
— Na verdade, o conselho tirou as pontes mês passado —
comentou Ben. — Alguma coisa de segurança.
— Sério?
Não era uma alfinetada — era um daqueles pequenos
lembretes pontuais de momentos que Nicole perdia na vida
da filha, de roupas que nunca tinha visto até modas que às
vezes só percebia quando acabavam. Mas ela sempre sentia
a dor mesmo assim.
— Você não acha que ficou rosa demais? — murmurou ela
quando Chloe correu escadas acima.
— Não — respondeu Ben. — Você acha?
— Eu só estou… um pouco preocupada com essa fase
toda rosa.
— É o que você diz.
— Mas é sério, eu li um artigo no Guardian outro dia sobre
condicionamento comportamental e não quero que a Chloe
sinta que precisa crescer segundo as regras sociais
estabelecidas séculos atrás.
— É assim que você se sente quando chega em casa do
trabalho e encontra seu marido dono de casa?
— Para com isso. — Ela deu um soquinho brincalhão nele.
— Você não é dono de casa. Só está passando por um
período complicado. Vai aparecer mais trabalho.
— Na verdade — disse ele com um sorriso. — Parece que
já apareceu. Vai se vestir, eu conto no caminho.
Quando ele mostrou a ela um e-mail de um renomado
designer de interiores de Notting Hill interessado em
chamá-lo para gravar uma propaganda que seria
comercializada nos Estados Unidos, Nicole tentou parecer
otimista. Mas ela duvidava que Oscar, famoso e
autocentrado o suficiente para ser conhecido apenas pelo
primeiro nome, entendesse o estilo discreto de Ben. E houve
mortes na praia profissionais o bastante nos últimos três
anos para que Nicole ficasse temerosa de animar demais o
marido.
— Você mandou o comercial que você fez para Afshin?
— Não, Chloe, não chega perto da rua, por favor! Você
acha que eu deveria?
— Bom… sim. — Por que o marido tinha tanta dificuldade
em se mexer? — Essa teria sido a primeira coisa que eu
mostraria para ele.
Eles tinham chegado ao parque e, enquanto Ben abria o
portão, deixando Chloe ser arrastada por um fluxo repentino
de crianças vindo de trás dela, Nicole percebeu a tensão no
rosto do marido: o lábio superior tenso, os olhos fugindo dos
dela.
— Bom, faz o que você preferir — cedeu, aliviada como
em tantas outras vezes por terem Chloe para onde olhar. —
Você sabe mais que eu.
— Parece que não, né? Se eu soubesse estaria com
trabalho.
— Não, Ben… Caramba, não foi isso que eu quis dizer.
Mas não se preocupe, sabe, por ter que falar bem de si
mesmo, é só isso que quero dizer. Você é tão talentoso e
tem tanta merda por aí… A questão é só fazer as pessoas
verem isso.
Um dos três bancos concorridíssimos do parquinho estava
vazio, e eles ficaram sentados ali em silêncio por alguns
minutos, Nicole virando o rosto para tragar o cigarro
eletrônico.
— Eu queria que você parasse com isso.
— É melhor que os normais.
— Melhor ainda seria nenhum cigarro. Esse fede do
mesmo jeito.
Com relutância ela o guardou na bolsa.
— É baunilha.
Nada.
— Eu posso te ajudar a montar um portfólio novo
amanhã, se você quiser. E podemos colocar o comercial do
Afshin logo no início.
— É? — Ele lhe lançou um olhar de esguelha.
— É, com certeza. O antigo já tem o quê? Uns dois anos?
— Três. Talvez quatro.
— Ben.
— Eu sei…
Nicole segurou a mão dele e a apertou. Então gritou:
— Fique para cá!
Chloe estava costurando o parquinho a toda velocidade,
se aproximando da escalada de corda, onde um bando de
garotos mais velhos usando Adidas subiam do outro lado.
— Ela está bem.
— É com esses merdinhas que estou preocupada.
— São só uns moleques de oito anos, Nic.
— Você não viu eles balançando as pontes de corda de
propósito na última vez em que viemos? Garotos de oito
anos às vezes são uns merdinhas.
Nicole ficou de pé.
— O que você está fazendo?
— Só quero ficar de olho neles. Não vou deixar Chloe
sofrer bullying, Ben.
— Pelo amor de Deus. — Ele puxou a mão de Nicole e a
fez se sentar de novo. — Eles não estão fazendo bullying
com ninguém. Olha.
Ele estava certo. Os meninos tinham aberto espaço para
deixar Chloe subir até o alto.
— Mas no outro dia eles estavam…
— Sendo garotos?
— É. Nossa. Eu não ia querer estar no mesmo parquinho
que você quando era criança.
— Não, você não estaria mesmo.
Adorava pensar em si mesma mais nova pelos olhos
apaixonados de Ben. Ele nunca imaginaria que Nicole não
viera ao mundo com a casca grossa da qual se orgulhava
tanto atualmente. Que ela levou anos para enfrentar pela
primeira vez os três irmãos mais velhos que a excluíam de
brincadeiras e zombavam de suas opiniões à mesa de jantar
quando criança. Que cada comentário misógino casual que
ela se forçou a ignorar em reuniões ao longo dos anos a
fazia se lembrar dos adolescentes que tentavam abafar
suas respostas em aula com gritos de “Olha a alça do sutiã
da Nicole aparecendo!”. Porque merdinhas crescem e viram
grandes merdas.
Percebendo que Ben ainda a observava com as
sobrancelhas franzidas, Nicole abriu um sorriso.
— Olha só a Chloe. Totalmente destemida, né?
E os dois dividiram o que parecia ser a primeira risada
fácil da manhã.
Era essa a sensação da felicidade? Ficar sentada num
banco com o marido sob o sol fraco da manhã, olhando o
pequeno ser humano que levou cinco anos e duas rodadas
de inseminação artificial para se tornar alguém forte e
capaz? Rir da expressão determinada da filha que tentava,
falhava, e então tentava de novo? Tanta determinação vinha
da mãe, Nicole sabia, e somente ela poderia cultivar isso na
filha, dando força para que ignorasse as dúvidas e subisse
cada vez mais alto.
Que ela tivesse arriscado tudo isso por alguém totalmente
sem importância quanto Ian parecia, todos esses anos
depois, não tão errado e mais estranho, como se fossem as
ações de outra pessoa. Por outro lado, sua necessidade de
sexo nunca foi coerente com o restante de si — com seus
princípios, com seu desdém pelos homens. Quando, anos
atrás, encontrou por acaso um artigo numa revista sobre
“atrito erótico”, escrito por algum famoso psiquiatra
americano, a frase lhe pareceu perfeita. Porque seu desejo
físico por homens ia contra o lado lógico de Nicole — era
como uma irritação sob a pele que precisava ser coçada. O
que não era apenas inconveniente, mas humilhante, e ela
esperara que o casamento agisse como um bálsamo. Além
de todo o resto, você não tinha permissão para ceder a
esses impulsos, não é? Mas talvez a questão se resumisse
a: Nicole queria ter um caso e sentia que merecia, após
anos sendo entupida de hormônios e a subsequente
chegada de Chloe.
O fato é que não teve nada a ver com Ian. Ele tinha sido
transferido do escritório de Nottingham para lidar com
propriedades empresariais e apenas estava lá… E disposto.
E sua primeira surpresa foi como a culpa que sentia era
mínima; a segunda era como ela melhorou como ser
humano em praticamente todas as áreas da vida. No
trabalho sua energia e eficiência aumentaram, e em casa se
viu mais paciente com Chloe e mais amorosa com Ben. Mas
eles foram descuidados e quando a esposa de Ian
descobriu, além de um ou dois funcionários da BWL, e a
fofoca correu e ele se mudou, Nicole se sentiu ao mesmo
tempo aliviada por si mesma e grata por Ben nunca ter
descoberto.
Nicole tragou com força seu cigarro eletrônico quando se
lembrou do desconforto no rosto de Alex e de Jill ao trazer
Ian à tona. Fazer as pessoas se recordarem de algo que,
com o tempo, havia desaparecido do conhecimento geral
até ter se tornado apenas um rumor tinha sido estupidez;
nunca teria feito aquilo sóbria. Ela também nunca teria
falado aquelas coisas sobre Jamie. Isso tinha sido perigoso.
Mas ainda estava com muita raiva.
— Você não é como as outras mulheres — ele lhe dissera
na segunda vez. — Eu sabia no dia em que você entrou no
escritório com aqueles sapatos de vagaba.
— Eles não são nada disso.
Ele a ignorara.
— Você é durona. Aguenta mais que outras mulheres.
— Jamie, você está me machucando.
— Mas você gosta.
— Não.
— Não?
E de repente ele soltara as mãos dela, presas acima da
cabeça no chão frio de azulejos, no vestiário da academia
da empresa. Depois, observando sem emoção a barriga
exposta dela, onde a camiseta havia subido, ele comentara:
— Ainda sobrou um pouco de barriga da gravidez, hein?
— Ele sorrira. — Estranho. Não te imagino como mãe.
— Mamãe! Mamãe! Olha pra mim!
A voz da filha a alcançou do topo da escalada de corda.
Um dos elásticos de cabelo tinha se soltado e parte do rosto
de Chloe estava escondido pela cortina de mechas escuras,
mas a metade do sorriso que Nicole via chegava quase à
orelha.
— Olha só você, joaninha!
— Querida, está alto demais.
— Ben, ela está ótima. Muito bem! Agora desce com
cuidado.
Nicole ficou quieta no caminho para casa, contente por
ficar atrás de Ben e Chloe, sentindo-se tranquilizada pela
tagarelice dos dois. Tendo confirmado que o pai nunca
escalara uma montanha, nem a Torre Eiffel, a filha ajustou
suas expectativas e agora havia desistido do Big Ben — que
ele lhe garantiu que ninguém tinha permissão para escalar
— para sua casa.
— Só uma vez? — perguntou ela, chateada.
— Se eu só subi no telhado uma vez? — Ben caiu na
risada. — Sim. Sinto te decepcionar de novo, Chlo. Só uma
vez para limpar as calhas.
— Calhas? E a mamãe?
— Hum?
Pai e filha se viraram para ela, rindo, mas Nicole não
ergueu os olhos, quase parando de andar. Um e-mail de
Jamie para várias pessoas — ATUALIZAÇÃO SOBRE MINERVA — tinha
acabado de chegar, e Nicole ficou paralisada pelo tom da
mensagem. Pomposa e cheia de si, descrevia a reunião do
dia anterior com os irmãos O’Ceallaigh como “Um gol de
placa aos 45 do segundo tempo” e previa “uma oferta pela
propriedade” até o final do mês. Assinando com um
“Sempre em frente!” de alguma forma o e-mail conseguia
fazer pouco caso de uma das maiores cagadas da carreira
de Jamie e talvez até da história da BWL. E já chegavam os e-
mails elogiosos: “Muito bom, cara!”, “Você conseguiu tirar
mais uma da cartola, hein?”. Se qualquer mulher tivesse
cometido um erro daquele estaria fora do jogo. Mas era
preciso mais do que um ou dois golpes para causar
qualquer dano à carreira de um homem, e era típico que
Jamie estivesse, sabe-se lá como, saindo daquela ileso.
— Você já subiu, mamãe?
— Subi no quê?
— No telhado, mamãe. Você já subiu no nosso telhado?
— Não, joaninha. Por que eu faria isso?
Eles chegaram em casa em silêncio, a distração de Nicole
de alguma forma estragando o clima. Enquanto Chloe
construía um forte elaborado para seus cavalinhos do Meu
Querido Pônei, Ben começou a preparar o almoço.
— Você vai ter que parar de fazer isso, Nic — disse ele
enfim, sem tirar os olhos da tábua.
Ela ficou aliviada, na verdade. Eram os silêncios do
marido que mais temia.
— Fazer…?
— Não estar presente quando está aqui. Ficar nesse… —
Ele apontou com a faca para o iPhone ao lado dela no sofá
— … quando você deveria estar interagindo com ela.
— “Interagindo”? Você não está passando tempo demais
naqueles fóruns de mães de novo, está? Ela sabe que eu
tenho um emprego, Ben. Lamento que ele nem sempre se
mantenha entre as nove e as 18 horas, mas não posso fazer
muita coisa sobre isso. E, na verdade, acho que é bom para
ela ver a mãe trabalhando para entender que mulheres são
mais do que só mães e…
Mas Ben estava balançando a cabeça.
— Não sei se ela liga muito pra igualdade de gêneros
agora — sussurrou, olhando para Chloe. — Ela só quer que a
mãe a escute quando está falando. Ela só quer conversar
com você.
— Tá. — Nicole manteve a voz calma. — Foi só um e-mail,
Ben, e um e-mail importante. Será que dá para não fazer
uma tempestade num copo d’água?
Durante o almoço e depois, enquanto assistiam a 101
Dálmatas com um pote compartilhado de Häagen-Dazs e se
deleitavam com as risadas da filha toda suja de caramelo,
os dois fingiram bastante bem que não havia mais qualquer
ressentimento. Foi só depois de Chloe adormecer e Nicole
sair do mais demorado banho quente que conseguiu
aguentar e encontrou Ben ainda acordado, vendo fotos
antigas no laptop, que a tensão residual ressurgiu.
— Você é uma ótima mãe, sabe — murmurou ele,
apagando a luz e puxando o corpo dela, vermelho da água
quente, para junto do dele.
Talvez o que a irritasse fosse a sensação de que Ben
precisava ser assegurado daquilo mais do que ela mesma.
Ou talvez fosse a percepção de que o comentário do
marido, como todo o resto, apenas a faria pensar de novo
em Jamie — “Não te imagino como mãe” —, que tinha
estragado aquele dia como seria todos os dias até que ele
estivesse fora da vida dela.
— Ben… — ela começou, a voz soando alta demais na
escuridão. — Desculpa se estou meio desligada. O
trabalho… está…
— Te enlouquecendo?
— É.
— Pede demissão. — O farfalhar dos lençóis enquanto ele
se apoiava no cotovelo. — Você pode só pedir demissão. A
gente vai ficar bem.
Nicole não respondeu, grata por ele não conseguir ver seu
rosto. Mas o marido estava certo. Se as coisas que ela
ouvira a si mesma dizer naquela noite no pub provavam
alguma coisa, era que ou ela ou Jamie teria que sair. E
Nicole estava decidida a fazer o que fosse necessário para
se certificar de que não seria ela.
CAPÍTULO 13

ALEX

E
la estava meia hora adiantada. Apesar da
interminável crise de Katie nos confins da estação
Hammersmith, do desarrumar e rearrumar da bolsa
de maternidade no banco da plataforma e de uma longa
busca por uma lixeira na qual não queria deixar explosivos,
apenas uma fralda fedorenta, Alex ainda conseguiu chegar
na Bumps & Babies com meia hora de antecedência.
Quando Alex empurrou a porta, Katie finalmente tinha
parado de chorar e havia caído no sono no canguru, a
barriga cheia de fórmula. Alex afundou em uma cadeira na
recepção espaçosa, grata demais pelo pequeno momento
de calma para se perguntar o que estava fazendo ali.
Ladeado por uma butique de artigos para o lar e um café
“artesanal” na Chiswick High Road, o lugar era espaçoso,
bem-iluminado e estilizado até demais. A recepção era
decorada para parecer uma cozinha provençal, cheia de
azulejos rachados, canos decorativos em cinza-chumbo e
móveis rústicos de fazenda. Ao lado da fileira de potes
esmaltados, propositadamente envelhecidos cujas etiquetas
diziam “Café”, “Thé” e “Sucre”, uma placa avisava:
“Mamães e papais, sirvam-se à vontade.” Na mesa de pinho
maciço ao centro do cômodo havia uma bandeja de
barrinhas de cereal caseiras que Alex estava morrendo de
vontade de pegar, mas não ousava.
Por uma porta aberta mais adiante no corredor principal
ela vislumbrava um grupinho de grávidas guardando os
tapetes de yoga, o sotaque estridente de Chiswick audível
de onde estava.
— Dá para imaginar fazer um lance num leilão que você
não tem dinheiro para pagar?
— Jules deve ter ficado para morrer.
— Eu ficaria.
Quando passaram por Alex, lhe lançaram olhares de
avaliação e os sorrisos vieram depois. Ela não conseguiu
evitar e pensou que, mesmo prestes a parir, aquelas
mulheres pareciam mais elegantes e arrumadas do que ela.
Nenhum funcionário tinha aparecido ainda, e a ideia de
que poderia simplesmente sair daquele lugar ao qual não
pertencia fez um raio de adrenalina atravessar suas veias.
Com certeza haveria algum jeito de recuperar o depósito da
matrícula, feita por impulso naquela noite em que se
inscrevera como “Lexie” — apelido que insistiam em chamá-
la nas aulas de computação na Norwich, para distingui-la da
outra Alex, mais bonita. Só que ficar de pé às pressas
acordou Katie, e ao abrir a porta, desesperada para fugir
antes que alguém chegasse, lá estava uma mulher de
cabelo louro-mel, com um bebê quase exatamente da
mesma idade de Katie, embrulhada em um sling carmim:
Maya.
— Opa! Perdão, pode passar.
Além de uma uniformidade nas vogais e um leve enrolar
do R, ninguém imaginaria que inglês não era a língua
materna de Maya. Isso Alex já tinha percebido nas poucas e
curtas conversas pelo telefone com ela. Mas não podia
imaginar sem vê-la cara a cara como seus olhos verdes
eram compreensivos — pareciam mergulhar em você e
realmente te ver. E apesar de ter afastado mais cedo as
preocupações de última hora de que aquela mulher
desconhecida de alguma forma saberia quem ela era,
naquele momento Alex sentiu um horror renovado de que
Maya franziria a testa e perguntaria: “O que você está
fazendo aqui?”
— Caramba, alguém não está nada contente.
— Oi?
— Sua bubu.
“Bubu”, “embrulhinho”: Alex não sabia qual odiava mais.
Enquanto as duas mulheres faziam uma dancinha
desconfortável para ver quem passaria pela porta, os
choramingos de Katie se transformaram em um colapso
completo.
— Ela está com um pouco de cólica — murmurou Alex,
tentando enfiar a chupeta na boca da filha. — Pelo menos é
o que eu acho que é.
Com um resmungo irritado, Katie jogou a chupeta longe.
A essa altura, Alex só queria dar o fora dali. Humilhada
mais uma vez pelas disparidades entre ela e aquela loira de
rosto gentil que conseguia usar uma legging com recortes
transparentes quatro meses depois de parir, ela tentou
pegar a chupeta no chão, sem sucesso. Isso não ia dar
certo, não com Katie presa ao seu peito.
— Pode voltar. — Maya riu. — Eu pego. Não está com
pressa, né?
— Eu…
Desistindo, Alex voltou para a recepção e se sentou de
novo.
Separada de Maya momentaneamente por um bando de
mães, Alex tentou criar alguma desculpa que a tiraria dali
rápido. Mas quando todas as mulheres tinham passado,
Maya já recuperara a chupeta de Katie e deixara Elsa no
tapetinho de atividades no canto, e agora vinha na direção
de Alex com os braços estendidos.
— Quer que eu tente uma coisa? — perguntou, elevando
a voz acima dos gritos de Katie. — A minha mais velha tinha
cólicas horríveis, e tem uma coisa que os médicos
dinamarqueses sempre recomendam. Ah… — Ela balançou
a cabeça, rindo, e não havia nada falso na sua confusão. —
Eu sou da Dinamarca. Meu marido sempre diz que começo
as conversas pela metade. Voltando: meu nome é Maya.
— Sou… — Os ombros de Alex se tensionaram com o som
angustiado dos gritos de Katie. — Lexie. Desculpa pela
confusão.
— A regra número um da maternidade: nunca se desculpe
por coisas que estão além do seu controle. É a sua
primeira?
Alex assentiu.
— Passa pra cá.
Alex obedeceu. Porque não havia mais nada a fazer.
Porque sempre se intimidava por mulheres mandonas e
porque tinha visto uma morena musculosa perto das
barrinhas se encolhendo por causa do barulho.
— Vamos melhorar essa barriguinha? Vamos?
Ver a esposa de Jamie segurar sua filha deveria ter
incomodado Alex mais do que incomodou.
Mas os movimentos de Maya foram gentis e precisos
quando ela levou Katie até um banco almofadado no canto,
deitou-a de costas e pedalou suas perninhas para a frente e
para trás até que parasse de chorar.
— Isso ajuda a diminuir a pressão no estômago —
explicou, passando a mão na barriga de Katie. — Às vezes
eu queria que fizessem em mim também.
Ela se virou para olhar para Alex, que sentiu uma risada
borbulhar garganta acima.
Mas agora Maya a observava com uma expressão
questionadora.
— Lexie? É você?
E Alex se virou e percebeu que uma ruiva de cabelo curto
com uma lista impressa olhava ao redor.
— Lexie? Tem alguém chamada Lexie aqui?
A esposa de Jamie tinha parado de fazer carinho em Katie
e estava de pé encarando-a.
— Te pegaram.
Alex sentiu um nó na garganta.
— Eu… Quê?
— Você ia fugir, né? Eu quase fiz a mesmíssima coisa na
primeira vez em que vim. Não sou muito de “mamãe e
bebê” também. Mas pode acreditar, é bem divertido, na
verdade.
— Imagino que…
— Lexie está aqui — disse Maya em voz alta.
Não havia como fugir agora.
— Certo, então está todo mundo aqui. Yoga para Bebês é
ao meio-dia, então vamos para o Estúdio Um para balançar
essas fraldas!
A aula foi exatamente tão vergonhosa quanto Alex temia,
mas, mesmo assim, ela se surpreendeu ao perceber que se
divertia, chegando até a engolir uma crise de riso pela
careta que Maya fez quando a instrutora falou de
“abordagem de criação pele e alma”.
— Para que lado você está indo? — Maya perguntou
enquanto todo mundo reunia suas coisas, pegando-a de
surpresa.
— Para casa.
— E isso fica?
— Fica em… Stamford Brook.
Não havia motivo para uma pessoa que morava em Acton
fizesse um curso na Bumps & Babies. E Alex conhecia bem
Stamford Brook, depois de passar um verão cuidando da
casa de uma amiga perto da Shepherd’s Bush Road.
— Eu adoro aquela área! — Maya não parecia estar com
pressa de ir a lugar nenhum, o que estava deixando Alex
nervosa de novo. — A gente procurou lugar por lá, mas eu
queria muito um jardim espaçoso. Aí acabamos em Park,
Bedford Park, então nem posso reclamar.
Depois de colocar a ainda serena Elsa no sling, Maya
pegou duas garrafas gratuitas de algo que se declarava ser
“água alcalina” na saída, passou uma para Alex e
inconscientemente seguiu no mesmo passo que ela.
— A professora é um pouco exagerada, mas já conheci
algumas mulheres bem legais aqui na B&B ao longo dos
anos.
— Anos?
A palavra saiu desdenhosa, o questionamento implícito de
“é assim mesmo que você passa o seu tempo?”,
dolorosamente óbvio, e uma pontada de mágoa perpassou
no rosto de Maya.
— Bom, quando se tem dois filhos, meio que junta tudo. E
elas só têm vinte meses de diferença, então não tive muito
tempo para me recuperar.
Alex imaginou a casa clássica e espaçosa que explorara
minuciosamente pela internet, com o quintal retangular
bem-arrumado nos fundos. Imaginou toda a ajuda que Maya
tinha ao seu dispor: a sogra de quem Jamie nunca parava de
reclamar, as amigas sempre presentes, as babás. De quanto
tempo ela precisaria para se recuperar?
— Quer dizer, eu tenho sorte — admitiu Maya, como se
lesse a mente de Alex. — Temos uma babá incrível. Mas
meu marido trabalha demais.
— No quê?
— No mercado imobiliário. Ele é sócio na BWL e tem que
viajar bastante, então o coitado está sempre se sentindo
culpado por não passar muito tempo com as meninas…
Todas aquelas bebedeiras em hotéis de luxo pela Europa
com o coleguinha Hayden e Jamie ainda tinha tempo para
se sentir culpado?
— … e eu ainda arranco a cabeça dele se estiver cansado
demais para fazer tudo que planejei para nós e para as
crianças.
Maya balançou a cabeça com… não, não podia ser. Mas
era: aquela mulher maravilhosa sentia mesmo vergonha do
tipo de esposa que era para… Jamie! O mesmo Jamie que
nunca perdia uma oportunidade de dizer para quem
quisesse ouvir o pai dedicado e presente que era.
— Bom, é compreensível que essas coisas não sejam tão
importantes para ele.
— Talvez devessem ser.
Percorriam as calçadas movimentadas de Chiswick na
hora do almoço e Alex tentou manter a voz calma.
Mas Maya a olhou com a testa franzida.
— Você tem um marido que é um superpai, né?
— Pois é.
— Sortuda. Eu sempre me sinto mal por dar mais trabalho
a Jamie. Quer dizer, quando preciso de uma mão para
alguma coisa, peço para que ele ajude. Coisas bobas, tipo a
entrevista da creche de Christel essa semana…
— Entrevista da creche? — Alex se arrependeu da
pergunta no momento em que saiu da sua boca; é claro que
mulheres como Maya mandariam os filhos para as escolas
mais caras que o oeste de Londres tinha a oferecer.
— Bom, você sabe, a Greenleaf… não é uma creche
qualquer.
— Entendi.
Até Alex tinha ouvido falar da Greenleaf, com suas mães
supermodelos, seus pais investidores e sua longa lista de
espera.
— E eles vão entrevistar Christel?
Maya riu.
— Você é tão engraçada. Dá para imaginar, uma
entrevista com uma menininha de dois anos? Na verdade,
ela está bem feliz na creche atual, mas é claro que a
Greenleaf é tipo o Santo Graal.
— É claro.
— Bom, essa situação toda está sendo muito estressante,
você precisa fazer tanta coisa, bajular tanta gente. Eles têm
pouquíssimas vagas! Mas eu finalmente consegui essa
entrevista, então estou contando que Jamie vai usar o
charme dele como sempre e conquistá-los.
Sementinhas estavam brotando na mente de Alex. Era
esse tipo de informação que ela viera buscar.
Enquanto Alex tomava um gole de água, Maya olhou para
a mão dela.
— Deixo minha aliança e meu anel de noivado em casa
quando vou fazer exercício — ela se antecipou.
— Eu deveria fazer isso também. Mas é bom se lembrar
onde a guardou. Meu marido passa o tempo todo mexendo
na aliança e a deixa em lugares aleatórios pela casa. É
minha birrinha, como vocês dizem. O seu marido… no que
ele trabalha?
Alex se desviou de um carrinho de gêmeos que vinha
bem na sua direção.
— Ele trabalha no centro.
Tinha quase certeza de que ninguém fazia mais
perguntas além disso, porque pouca gente entendia ou se
importava com isso.
— E você, Lexie?
Essa não era tão fácil. Mas elas estavam perto da rua
Turnham Green Terrace a essa altura, onde Alex torcia para
que Maya fosse para casa, e seus olhos se detiveram em
uma mulher ao celular dando uma risada afetada próxima a
uma loja de maquiagens.
— Marketing… de beleza. — Assim que disse isso, Alex
percebeu que tinha sido burrice. Gente que trabalhava na
indústria de beleza não se parecia com ela. — Mas trabalho
na parte de tecnologia. — explicou, gesticulando para si
mesma. — Como você já deve ter imaginado.
As duas pararam de caminhar quando chegaram ao fim
da rua, e Alex sentia emoções conflitantes: alívio porque as
perguntas, cada vez mais difíceis de responder, iam cessar
e irritação por perceber que estava se divertindo na
companhia de Maya.
— Por que você faz isso? — Impassível à multidão saindo
para almoçar, Maya estava parada na esquina, olhando para
Alex com os olhos estreitados. — Se colocando para baixo o
tempo todo. Você fez isso a manhã inteira.
— Eu só… — Alex desistiu de tentar encontrar uma
desculpa irreverente. — Não sei.
— Desculpa. Nós dinamarqueses… somos muito diretos.
— Não. — Mais uma vez, Alex sentiu que Maya tinha uma
habilidade curiosa de ver através dela, perceber os
equívocos e a imprudência. — Ser direto é… bom.
Elas estavam no caminho de todo mundo, talvez uma
visão excêntrica, uma de frente para a outra com bebês
presos ao peito, mas Maya não se mexeu.
— Eu era uma designer de interiores bem-sucedida —
disse ela. — Sabe, antes.
Aquela informação — com todas as vulnerabilidades que
continha — ficou suspensa no ar por um momento.
— Eu consigo imaginar isso.
Maya piscou duas vezes. Sob o sol, seus olhos eram de
um verde-cáqui quase sintético de tão intenso. Ela não era
só bonita como uma modelo, percebeu Alex. Havia mais ali.
Isso também a irritou. Jamie não merecia nada raro ou
diferente.
— Eu estava planejando voltar a trabalhar antes dessa
pequena aqui nascer. Mas, depois que você já passou três,
quatro anos fora, precisa se perguntar o que realmente tem
a oferecer para as pessoas.
— Aposto que você tem muito a oferecer.
Parecia fazer muito tempo desde que Alex tinha estado
com alguém que queria algo mais. Só que não era um
homem esperando um beijo no fim da noite, e, ela
percebeu, logo antes de Maya falar, o que ela queria.
— Estou morrendo de fome. Você não quer almoçar… lá
em casa?
— Ah. — Isso foi tão inesperado que Alex não conseguiu
pensar em uma desculpa rápido. — Que ideia ótima. Mas na
verdade tenho um compromisso, e Katie tem que tirar a
soneca…
Sempre dê apenas uma desculpa. Não era isso que se
dizia? Duas desculpas e parece que você está mentindo.
— É claro.
Houve aquele mesmo lampejo de mágoa de novo, logo
encoberto como da primeira vez. O que deixou Alex
perplexa. Maya não podia estar solitária, certo? Talvez
decepcionada com o merda com que se casou. Mas
solitária?
— Desculpa. Fica para a próxima!
Alex já tinha começado a se afastar, mas o que realmente
queria era fugir: para longe de Maya e sua filha
assustadoramente impassível, para longe da riqueza
sufocante daqueles cafés e delicatéssens que vendiam
açafrão em pó e prêmios de consolação pelos maridos
ausentes e traidores. Para longe de suas próprias mentiras
sem sentido.
Maya, porém, não desistia tão fácil.
— Espera. Lexie. — E foi o que ela fez, ao ouvir Maya
implorando sem fôlego. — Venha lá para casa almoçar e
tomar uma taça de rosé no jardim comigo. Hoje é a folga da
babá, e a verdade é que, por mais que eu ame essa
garotinha, vou enlouquecer se não tiver um adulto com
quem conversar.
E, quando ela se calou, Alex sorriu. Era arriscado e errado.
Era uma loucura. No entanto, ela se ouviu dizendo:
— Tudo bem. Adoraria ver onde você mora.
CAPÍTULO 14

JILL

– D ágrupinho
para vocês falarem baixo? — Jill rosnou para o
reunido do lado de fora do seu escritório. —
Estou em uma ligação para Doha e não estou ouvindo
merda nenhuma.
— Desculpa.
Paul ainda teve a decência de pedir desculpas, mas Jamie
só a olhou com irritação.
— Ou gritem o quanto quiserem — resmungou ela ao
fechar a porta —, só façam isso no escritório de vocês.
Era óbvio que algo tinha dado muito errado, e quando Jill
terminou a ligação, arriscando a única frase em árabe que
sabia como um floreio final meio sem jeito, ela se deu conta
sobre o que deveria ser: Minerva.
Eles passaram?, perguntou por e-mail para Jamie. E a
resposta dele veio segundos depois: Sim.
Jill encarou a mensagem monossilábica e sem remorso, se
perguntando quando e por que o homem que considerara
por anos um colega leal e um amigo não só havia perdido
todo o respeito por ela como também tinha decidido que ela
era o inimigo.
Já fazia uma semana desde que Jill recebera aquele e-mail
anônimo, e durante esse tempo ela tinha checado e
rechecado cada palavra e frase, chegando até a se levantar
no meio da noite para bater datas e horários da troca de
mensagens com as reuniões no calendário da intranet da
BWL. Nem Jamie nem Paul tiveram reuniões nos horários
exatos em que as mensagens foram enviadas. Outra busca
rápida pela sua caixa de entrada também revelou que Jamie
nunca tinha usado o termo “VSQ” em conversas com ela.
Havia uma última opção: Paul. Mas, ao olhar para o
escritório dele, do outro lado do andar, onde o sócio
examinava a planta de uma construção, Jill se sentiu
reticente. Só de mostrar aquela troca de mensagens já a
faria parecer fraca aos olhos dele — como se Jill temesse em
segredo que fosse mesmo uma “sessentona senil”. Poderia
até plantar na cabeça de Paul a semente da ideia de que
sua hora já havia expirado. Os dois homens eram amigos,
além de tudo, e ficaram ainda mais próximos depois de o
casamento de Paul acabar. Desde então ele preferia discutir
os detalhes tortuosos do divórcio com Jamie, não com ela,
algo que a deixou feliz até aquele momento. Se ele
reconhecesse as palavras maldosas de Jamie enviadas a ele
meses atrás, será que sequer admitiria? Ou permaneceria
leal ao colega?
Depois de ir e voltar incontáveis vezes nos últimos dias
entre a convicção absoluta de que o e-mail era real e a
certeza de que era falso, ou falsificado, Jill decidiu acabar
com aquela loucura naquele momento e chamou Tara, da TI,
para passar em seu escritório.
— É uma questão um pouco sensível, então tem que ficar
apenas entre nós — começou, hesitante, antes de falar de
uma vez. Aquela questão já ocupara demais de seu tempo.
— Melhor você vir aqui e dar uma lida.
Quando a jovem se inclinou para ler a troca de e-mails no
monitor, Jill ficou prestando atenção nas suas reações. Seus
lábios se torceram de leve em uma expressão
envergonhada ao ler as mensagens, e então Tara se
endireitou e se virou para a chefe:
— Você quer saber quem te mandou isso? Porque não vai
ser fácil.
Jill pensou nos olhos febris de Alex naquela noite no pub
— “Só estou falando de dar um empurrãozinho nele” — e no
leve sorriso de Nicole ao murmurar as palavras “poder
furtivo”. Já que uma ou ambas estava por trás da
humilhação da Lista D de Jamie, não seria possível que o e-
mail fosse uma ação parecida? Mas se a mensagem fora
escrita e enviada para lembrá-la do pacto que fizeram no
pub e que ela tinha renegado, estavam fazendo tudo
errado. Muito havia sido dito e bebido naquela noite, e
embora Jill ainda estivesse em choque por suas descobertas
sobre Jamie e ciente de que não poderia ignorar seu
comportamento, tinha que haver uma forma melhor de lidar
com ele do que com aquele plano pueril que elas criaram.
— Eu só quero saber, Tara, se é legítimo: se as
mensagens foram escritas como estão aqui, ou se foram,
sabe, editadas.
— Isso eu talvez consiga fazer. Pode me dar algumas
horas?
O telefone tocou, e por um momento Jill torceu para que
fosse Jamie ligando para se desculpar e assegurá-la de que
o que ela entendera sobre isso e o resto estava errado. Mas
o número na tela, ela percebeu, era o seu próprio.
— Stan. Está tudo bem?
— Sim e não, meu amor. Mas não quero que você se
preocupe. Passei a manhã sentindo um pouco de dor e
tontura, e o dr. Jacks acha que é melhor eu ir para o
hospital.
— A manhã toda? Por que você não falou nada?
— Estou falando agora, amor.
Stan sempre fora imperturbável e, por uma ironia, o
câncer parecia só ter aumentado essa característica,
imbuindo-o de um tipo de tranquilidade fatalista que, longe
de acalmar Jill, no fundo a enlouquecia.
— Tá. Chego aí em quarenta minutos.
— Não, não, por favor, não precisa vir. Eu prometo que
vou ligar assim que acabar. Inclusive no site do Prostate
Cancer UK eles dizem que isso pode acontecer.
— A gente não tinha falado que não ia procurar essas
coisas no Google?
Do outro lado do escritório, Jill viu Jamie saindo do
elevador com um daqueles cafés gelados de que gostava.
Por todos esses anos ela considerou a predileção dele por
doces como uma curiosidade simpática. Agora que ele
deveria ficar de cabeça baixa, se esforçando
desesperadamente para resolver a confusão que havia
causado, parecia um ultraje que estivesse se deliciando com
uma guloseima espumosa como se estivesse tudo bem.
Ela observou Jamie abrir caminho pelo setor do
marketing, parando na mesa de uma linda morena de olhos
amendoados, que usava um vestido de verão cor de
centáurea-azul. O sobrenome dela era italiano, Jill lembrou,
algo sexy e exótico, e tinha aquele tipo de lábio superior
que parecia deixar a boca o tempo todo entreaberta
sensualmente. Mas, em vez de parecer satisfeita com a
atenção de Jamie, Jill percebeu que ela aparentava
desconforto.
— Eu prefiro ir para o hospital com você.
— Eu sei que sim. Mas estou dizendo que não quero que
você vá, e o táxi já chegou. Te ligo do hospital.
— Não esquece. Não esquece de ligar no segundo em
que…
Mas Stan já tinha desligado.
Jamie ainda conversava com a morena, se inclinando de
vez em quando para pegar algo de um pacote na mesa
dela, o qual jogava para cima e pegava com a boca como
uma foca. Sem tirar os olhos dele, Jill encheu um copo de
Evian da garrafa que sempre ficava na sua mesa e virou a
água de uma vez só.
Observar Jamie naquele momento era como olhar a foto
de alguém em um daqueles aplicativos de “distorção facial”
que sua sobrinha adolescente a fez experimentar uma vez
com Stan. Lá estava ele: familiar e ao mesmo tempo
assustadoramente desvirtuado. E estava mesmo assediando
aquela menina, como fizera com Nicole, bem na frente de
todo mundo? Será que ela realmente tinha sido tão cega
esse tempo todo?
Alimentada pela força da raiva, Jill empurrou a porta do
escritório de supetão, seguindo a passos largos pela mesa
de uma assustada Kellie — “Você tem uma ligação do cara
da avaliação em dois minutos!” — e pegou uma diagonal
direta até Jamie.
A garota a viu antes dele, e a imagem indesejada de si
mesma como um tipo de matrona escolar determinada a
defender suas alunas não a ajudou a se acalmar em nada.
— Jamie?
Ele se virou surpreso, mas também, ligeiramente
desafiador, ela pensou.
— Jill.
— Você tem um segundo?
Ela já estivera em algumas situações profissionais difíceis
ao longo dos anos, e até então sempre teve facilidade para
se manter calma. O fato de que hoje em dia era considerado
aceitável que mulheres se comportassem de maneira
emotiva no ambiente de trabalho, como se o gênero por si
só permitisse isso, deixava Jill perplexa. Ela podia contar nos
dedos quantas vezes tinha erguido a voz no escritório, e
certamente nunca havia se permitido demonstrar nenhum
outro sinal físico de descontrole.
Apenas algumas semanas antes ela enfiara sob o nariz de
Stan um artigo da FT sobre como chorar no trabalho era
uma “reação humana aceitável, que em geral acometia
profissionais de alto desempenho”, e os dois riram da ideia
de Jill chorando abertamente numa sala de reuniões. “Você
nunca foi de chorar nem em casa”, disse ele. E embora
fosse verdade que ela não havia derramado lágrimas
quando ele recebeu o diagnóstico, Jill se sentiu contente por
Stan não ter visto como ela ficou no dia que se seguiu a
todos os exames. Ele estava deitado na cama do hospital, o
rosto pálido virado para a janela enquanto o oncologista
falava sobre a “equipe multidisciplinar” que faria parte da
vida dele a partir dali, e os efeitos colaterais imediatos que
a medicação e a radioterapia causariam: uma piora inicial
nos sintomas, dores nos ossos e na coluna, sangue na urina.
Ela assentiu e gracejou até conseguir dar um “pulinho no
banheiro”, onde apoiou a testa nos azulejos e soltou um
soluço tão violento que a fez se tremer por inteiro.
— Tenho vários — respondeu Jamie com um sorriso tenso,
e Jill ficou satisfeita por isso, pelo menos. Se ele dissesse
que não podia falar agora, na frente da garota, Jill teria que
levar isso como um desafio.
— Parece que as suas amêndoas com mel foram salvas
pelo gongo. — Ele deu um sorrisinho para a garota. — Mas
acho que vou roubar umazinha só para a viagem? —
Jogando a amêndoa no ar, Jamie esticou o pescoço e a
pegou com a boca. E então fez uma reverência. — Jill, você
já conheceu a Sophia? Ela veio do escritório de Manchester
em março.
Mas aquilo tudo era algum tipo de demonstração de
poder com o qual Jill sinceramente não estava com
paciência de lidar. Assentindo meio impaciente para a
moça, ela fez um sinal para o escritório.
— Vamos?
Nada mais foi dito até chegarem à sala de reuniões, onde
Jamie segurou a porta para ela, em um excesso de
cavalheirismo que antes Jill achava charmoso, mas que
agora suspeitava ser falsidade. Tudo aquilo fazia parte dos
fingimentos de Jamie.
— Água — arfou ele, deixando na mesa o que restava do
frappé e se servindo de um copo da Evian dela. — Esse
troço me deixa morrendo de sede.
Jill resolveu continuar de pé enquanto ele bebia. Ao
terminar, se virou para ela com sorriso confuso e perguntou:
— Qual é o seu problema, exatamente, Jill?
— Meu problema? — questionou ela, tentando disfarçar
como estava chocada com o tom de voz dele.
— É. — Ele se sentou com as pernas afastadas.
— Eu ia te perguntar a mesma coisa. Acabamos de perder
um cliente importantíssimo e recebo de você apenas um e-
mail com uma palavra só.
— Não perdemos ninguém, Jill. Eles passaram uma única
oferta.
— Certo. E vamos esperar para ver se eles voltam para a
próxima.
— Eu posso te prometer que vão voltar.
Reclinado na cadeira, Jamie colocou as mãos na nuca,
expandindo o peito.
Jill não conseguiu deixar essa atitude presunçosa para lá.
— Como? — Ela deu a volta na mesa com passos largos
para encará-lo, mas continuou de pé. — Sempre admirei sua
confiança, Jamie, mas chega um ponto em que vira
simplesmente imprudência. Eu te falei que essa Lista D era
uma má ideia, e você não me ouviu. Então eu preciso saber
melhor o que está acontecendo aqui. — O som da sua mão
espalmada na mesa a alarmou: ela não era assim, não se
comportava desse jeito. — Quero dizer, você nem pensou
em ir me contar que os O’Ceallaigh abriram mão da oferta
mais cedo.
— Isso aconteceu só umas horas atrás.
— Eles vieram aqui na empresa?
— Não. — Uma sombra cobriu o rosto dele. — Não, teve
um mal-entendido e… Enfim, dessa vez foi culpa deles.
Foi só então que Jill enfim se sentou.
— O que foi culpa deles?
— Eles acharam que a reunião seria lá, mas estava
marcado para ser aqui…
— Espera aí. Você fez merda de novo?
— Não, Jill. Eles se confundiram. Estava escrito na agenda
da intranet que a reunião seria aqui na BWL. — Ele balançou
a cabeça. — Mas não importa. A gente fez a reunião por
vídeo.
— Eu acho difícil de acreditar que isso não importe. Seja
como for, eu, assim como Paul, gostaria de saber dessas
coisas assim que elas acontecem.
— Posso terminar?
— Por favor.
— Confia em mim, ninguém está mais chateado com essa
situação do Minerva do que eu. Mas a única coisa que eu
posso fazer agora é tentar encontrar algum outro
comprador para…
— Exatamente. — Jill não conseguiu se segurar. — Então
se concentre nisso, não numa garota qualquer do
marketing.
— Como é?
— Você sabe do que eu estou falando.
— Hum… — Ele fez um gesto teatral, levando a mão ao
queixo como quem não entendia. — Não sei, não. Sério,
você está ouvindo o que está dizendo? O nome dela é
Sophia. E eu achei que você fazia muita questão de que as
pessoas novas fossem bem recebidas.
— Não estou nem aí para o nome dela.
O silêncio que se seguiu poderia ter se transformado em
algo mais hostil se uma batidinha leve no vidro atrás dela
não tivesse interrompido a conversa.
— Desculpa, Jill, mas é o seu marido de novo — a
assistente articulou com a boca do outro lado da parede de
vidro.
É claro que ela havia deixado o telefone no mudo.
— Obrigada, Kellie.
Ela ficou de pé.
De repente, porém, Jamie estava ao seu lado, os olhos
castanhos brilhantes cheios de compaixão.
— O Stan está bem?
Ela assentiu, mas ele percebeu sua hesitação.
— Vai ficar com o seu marido.
Então Jamie fez algo que só tinha feito poucas vezes ao
longo dos anos: a abraçou. E, em vez de se afastar, o que
poderia ter acontecido meia hora antes, ela sentiu um
pouco de sua raiva se esvair e se pegou abraçando-o de
volta. Aqueles eram tempos difíceis para os dois, tão difíceis
que ela estava questionando tudo: até ele.
A questão do Minerva tinha sido uma armação contra ele,
isso era óbvio. E por que confiar em Nicole ou Alex no lugar
de uma pessoa que conhecia muito melhor do que qualquer
uma das duas, e que dirá em um e-mail claramente enviado
por alguém tão vingativo? O fato de ela ter pedido que Tara
investigasse isso agora a enchia de vergonha. Jill diria para
ela esquecer aquilo e depois ia falar com Stan.
— Eu só preciso que você confie que eu consigo lidar com
essas coisas — disse Jamie ao soltá-la. — Isso é o mais
importante pra mim agora, com tudo que você e Stan estão
passando.
Jill assentiu de novo, mais decidida, e quando foi desligar
o computador viu com alívio que Tara já tinha respondido.
Segundo a mensagem, ela tinha “99% de certeza de que os
e-mails foram escritos pelo remetente naquelas datas e
horas”. Ela também lamentava “se não era isso que você
queria ouvir”.
CAPÍTULO 15

JILL
5 de agosto

– V ocêPorvaisua
conseguir fazer isso?
visão de olho de peixe, a expressão
questionadora de Paul estava distorcida, o escritório de
plano aberto atrás da parede de vidro distorcido em um
pesadelo panorâmico curvo.
— Não sei.
— Fiz um rascunho. De um e-mail. Para a empresa toda. O
aviso deveria seguir algo parecido, você não acha?
Da impressora, Paul tirou uma folha de papel e lhe
entregou.
 
Para: Toda a equipe
Assunto: [Nome da empresa] sente muito pela perda de [Inserir cargo],
[Inserir nome e sobrenome do funcionário]
 
Prezada equipe da [Nome da empresa].
 
No dia [Inserir data], nossa equipe sofreu uma perda terrível. Noss[o/a]
[Inserir cargo], [Inserir nome e sobrenome do funcionário], faleceu devido
[Inserir causa da morte]. El[e/a] era uma parte essencial da nossa equipe
e todos sentiremos falta de sua positividade.
 
Jill levantou os olhos da impressão e a devolveu para Paul.
— O que é isso?
— Merda. Esse é o e-mail padrão.
Folheando os papéis na bandeja da impressora, ele
encontrou o que estava procurando.
— É esse aqui.
Jill ficou encarando o colega.
— Esse é o e-mail padrão para…
— Para avisos sobre falecimentos de funcionários, sim. Foi
o RH que me enviou. Porque agora que a notícia já saiu em
todos os jornais… e a polícia avisou que vai precisar falar
com as pessoas e coletar outros depoimentos, precisamos
enviar isso agora.
O documento certo ainda estava nas suas mãos, mas Jill
nem tentou lê-lo, os olhos ainda em Paul.
— Então você preencheu as lacunas. Colocou a causa da
morte de Jamie — ela murmurou. — Você mencionou que
ele ainda estava vivo quando o encontraram de manhã? Foi
o que falaram no jornal. Algo deve ter amortecido a queda
dele, disseram, ou ele teria morrido na hora. Mas não. Ele
sobreviveu por horas. Horas. Até ser separado daquelas
vigas. Foi aí que ele sangrou até morrer.
— Jill.
— Mas ele era “parte essencial da nossa equipe”. E
vamos “sentir falta de sua positividade”?
— Eu sei que é difícil.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Para responder a sua
pergunta, não. Não consigo fazer isso.
CAPÍTULO 16

NICOLE
Seis semanas antes

– E uestava
não falei isso pra ele, Jen, eu juro. Só disse que você
solteira.
— É que eu não sei se estou interessada em nada, sabe?
— Eu sei, e foi isso que eu falei. A gente pode só tomar
um drinque.
— Verdade.
— Talvez dois, se ele for tão gato quanto parece no Insta.
Me empresta o rímel?
Sempre que possível Nicole preferia usar o banheiro
feminino do terceiro andar. O que estava agora era maior e
com uma iluminação melhor, mas às seis da tarde de sexta
as pias ficavam lotadas de maquiagem, as cabines cheias
de garotas colocando roupas ainda mais justas… e isso a
irritava. Porque ela nunca tinha participado muito dessa
coisa de paquera, não da forma prolongada e gloriosamente
casual que aquelas garotas faziam. Nossa, ela já estava
casada quando tinha a idade delas. E porque, ao se
preparar para jantar com o marido depois de um dia longo
como aquele, não sentia a mesma animação que elas. Na
verdade se sentia cansada — e no fundo se ressentia por
não comerem um simples curry em frente à TV.
Mesmo assim, Nicole tinha trabalhado até tarde três
vezes naquela semana, e Ben, que só se interessava por
aventuras quando envolviam experimentar todos os
restaurantes novos do oeste de Londres, tinha reservado
uma mesa naquele lugar de tapas que tinha sido aberto na
Fulham Road, recomendado por Jay Rayner. Ela não
conseguiria desmarcar agora.
Fugindo do bolo de lenços de papel manchados de base
ao lado da pia, Nicole se inclinou para o espelho e começou
a passar o batom. Em geral ela achava tranquilizador o
processo de contornar e pintar o que os homens sempre lhe
disseram ser seu melhor traço, mas naquele dia o contorno
ficou torto e sua cor de sempre pareceu empalidecê-la.
Tirando uma folha da papeleira, ela o removeu.
— Escuro demais — sugeriu a mulher atrás dela.
— Perdão?
— Você é tão linda. Mas seu batom… ele te apaga.
Nicole ficou tentada a dizer que usava aquela cor já fazia
quase uma década.
— Tenta esse.
O gloss rosa claro, levemente cintilante, era jovem
demais para Nicole, e ela sempre achou que pegar
emprestado o batom de outra mulher era pouco higiênico,
mas agradeceu mesmo assim e sentiu um prazer estranho
em passá-lo nos lábios, imaginando a surpresa de Ben
quando ela surgisse parecendo alguém que não sua esposa.
— Então, continua.
As duas mulheres continuaram a fofocar.
— Ele perguntou casualmente pra Sophia se ela estava,
tipo, saindo com alguém. Depois ficou todo “Ah, espero que
você esteja se sentindo bem recebida aqui. A gente pode
sair pra tomar uma depois do trabalho, pra se conhecer
melhor”.
— Mentira.
— Juro! Aí, escuta só, ele pega e diz: “É bom você saber
que eu não aceito não como resposta.”
— Para.
— Foi o que me disseram.
Um intervalo na conversa foi permeado por risadas
femininas distantes e pelo som de lábios com gloss sendo
pressionados.
— Eu não me importaria em ir tomar uma com ele.
— Calma! Aí a Sophia foi beber com ele.
— Sério?
— Pois é. E no dia seguinte ela contou pra Sandra, que
contou pra Emma, que ele realmente não aceita ouvir não…
tipo, de um jeito que deixou ela superdesconfortável.
— Forçou a barra?
— Tipo, demais…
Um aviso, que Nicole não viu, a silenciou.
— Meninas, de quem vocês estão falando? — Nicole teve
o cuidado de manter os olhos no espelho.
Elas se entreolharam, só então percebendo que Nicole era
uma executiva sênior.
— Só estou curiosa! — Ela deu uma risadinha. E se fosse
segredo de Estado, vocês não deveriam estar fofocando no
banheiro.
— Uma amiga nossa do marketing.
— Não, estou falando do cara do “bem recebida”.
— Ah. — Outro olhar conspiratório.
— Jamie?
As duas a encaravam agora, claramente chocadas pela
própria indiscrição.
— Olha…
— Nossa, todo mundo sabe como ele é. E o que é dito no
banheiro feminino…
— Fica no banheiro feminino — completou a mais
escandalosa, com uma risadinha. — É. Foi o Jamie. Mas não
conta pra ninguém? A Sophia é superlegal e faz pouco
tempo que veio pra cá. Ela não quer arrumar problema. Eu
nem sei se ela sai com caras casados.
— Entendi.
Fechando a nécessaire de maquiagem Nicole deu uma
última olhada para seu reflexo e parou ao abrir a porta
antes de sair.
— Inclusive, na minha experiência, são os homens
casados que tendem a arrumar problema.
 
— Desculpa, desculpa!
Se Ben não chegasse sempre adiantado, ela não estaria
sempre se sentindo atrasada. Mas ele tinha conseguido uma
mesa boa, com vista para a Fulham Road, e ela sabia que o
marido estava gostando de observar as garotas bonitas de
Chelsea com seus namorados de camisas Ralph Lauren
entrando e saindo dos pubs da área.
Pegando o copo quase vazio de gim e tônica de Ben, ela
virou o restante do drinque.
— Preciso de um desses urgente.
Ben fez um sinal pedindo mais dois para o garçom e
depois ergueu o copo, agora com uma mancha brilhante de
gloss rosa.
— Quer me contar alguma coisa?
Ele não tinha gostado. É claro que não. Ela não conhecia
ninguém mais relutante a mudanças do que Ben, ainda
mais quando se tratava dela.
— É só uma coisa que estou experimentando. Você odiou.
— O quê? Me dá uma chance de me acostumar. — Ele
inclinou a cabeça para trás, avaliando-a. — Você fica… Não
sei, diferente. Dia difícil?
— Só… longo. Tive que levar alguns clientes novos ao
antigo teatro hoje e depois de lá fui para Kensington para
outra reunião. Passei a manhã inteira presa no trânsito e
ninguém está querendo aquele lugar em Shepherd’s Bush
que peguei em março. — Tirando o casaco, ela suspirou
profundamente. — Talvez as pessoas só não estejam
comprando nada agora. Enfim: chato, chato, chato. E como
foi o seu dia?
— Bom, a azeda daquela mãe solo que você odeia, a das
sobrancelhas, estava na saída da escola hoje.
— Ah, ela é insuportável.
— Estava bem conversadeira, para variar. Até falou de
marcar um encontro para as crianças.
— De jeito nenhum. — Nicole lançou um olhar ansioso
para o bar nos fundos do restaurante lotado.
— Calma, Nicole.
— Eles são lerdos demais.
— O lugar está lotado.
— Então deveriam contratar mais gente.
— Bom… — Ben desconversou com um tom de voz
animado. — Chloe disse que estava falando de nós na
escola hoje. Mais de você, na verdade. Parece que hoje eles
precisavam descrever o trabalho dos pais.
— É mesmo?
— Pois é. Então ela disse: “A mamãe vende prédios, dos
grandes.”
— Ela disse isso mesmo?
Sua bebida estava vindo e Nicole já se sentia mais leve.
Se ao menos pudesse fingir que não ouvira aquela conversa
no banheiro…
— E que “o papai cuida de mim”.
Havia um misto de emoções no sorriso dele, e até no
estado distraído em que estava ela conseguia identificar a
maioria delas: orgulho e constrangimento; vergonha e
rebeldia. As mesmas emoções que ele deveria sentir todas
as vezes em que selecionava a caixinha castradora de
“cuidador principal” em formulários. Por outro lado, embora
não tivesse adquirido aquele título voluntariamente, Ben
parecia saber como sua contribuição à família era
importante e deveria odiar a ideia de que os outros
pensassem menos dele por fazer o trabalho mais
importante de todos.
Nicole segurou a mão dele.
— Eu nunca menosprezo o que você faz. E a Chloe te ama
demais. Vocês dois são o melhor time que existe. Sendo
sincera, às vezes eu até fico com ciúmes.
— A gente sempre vai estar bem enquanto você estiver
aqui com a gente.
Ele sorriu. Aquilo deveria fazer Nicole se sentir segura,
amada, mas em vez disso só trouxe a sensação conhecida
de estar sendo sufocada aos poucos.
Ela observou o bronzeado no rosto do marido, obtido
depois de tantas tardes no parque, e o azul tranquilo de
seus olhos, e sentiu uma pontada igualmente familiar de
não ser boa o bastante para ele.
— Eu nem imagino como as pessoas conseguem fazer
isso sozinhas — continuou Ben, sabendo que qualquer coisa
muito melosa a deixava desconfortável. — E aí, o que
vamos pedir? — Ele voltou a atenção ao cardápio. — O que
você acha de alguns aperitivos? Rayner disse que o steak
tartare era “imperdível”. Ah, tem um menu degustação,
mas você nunca gosta muito.
— Contanto que tenha lula e aqueles croquetinhos, eu já
fico feliz.
Enquanto Ben lia a lista de pratos para o garçom, Nicole
não se sentia nada feliz. Não conseguia tirar da cabeça a
conversa que havia entreouvido. Aí veio Ben comentar
sobre a mãe solo da escola de Chloe, o que a fez se lembrar
de Alex. Nicole pensou na mulher com quem havia dividido
as longas horas da madrugada naquela noite: o esforço todo
que ela fizera, mudando o cabelo, os murmúrios sombrios
sobre “as coisas que eu vi, as coisas que sei”. Alex parecia
tão grata por Nicole e Jill estarem lhe dando atenção, tão
animada para se conectar a elas. Era como se ela só
quisesse fazer parte de alguma coisa. Algo na obviedade
daquela gratidão deixou Nicole desconfortável de início. Mas
lembrou-se de que, ao fim da noite, se sentira não só unida
àquela mulher intensa e sardenta a quem nunca tinha dado
atenção antes, mas até vagamente defensora dela. Se o
que dizia era verdade, Alex tinha sido usada como bode
expiatório e agora estava vivendo a maternidade solo, sem
emprego à vista depois do fim da licença-maternidade.
Talvez estivesse tão envolvida com a filha que já não se
importasse mais; talvez já tivesse encontrado outro
emprego. Ou talvez Alex tivesse encontrado uma forma de
seguir com seu plano sozinha.
Ben continuou citando a crítica de Rayner, e Nicole se
lembrou da única vez em que havia sido demitida, quando
ainda era uma estudante tentando ganhar um extra em
uma lanchonetezinha pretensiosa em Bristol. O dono a
chamara no estoque um dia, citando sua “conduta” como o
principal motivo para a demissão, além do fato de que ela
ficava “passando a mão no cabelo” enquanto servia os
clientes, e Nicole só havia assentido, pegado o dinheiro
devido e, antes de sair, olhado por cima do ombro para
lançar um “Se pronuncia ciabatta, Lee, não siabarta”.
Quando o rosto gordo e comum do dono surgiu em sua
mente, Nicole se surpreendeu ao perceber que ainda o
odiava.
— É óbvio que o Oscar escolheu Westwick para a merda
do comercial. Não te falei que ele ia fazer isso?
— Eles responderam? — Nicole pegou outra pimenta
Padrón. — Não me surpreende. Claro que ele ia escolher
alguém tão metido quanto ele. Azar o dele. Se fosse eu,
uma olhada no seu portfólio já bastaria para te contratar.
Ficou incrível depois que a gente repaginou.
Ben pestanejou.
— Não me diz que você não mandou o que a gente
atualizou.
— Eu só achei que se ele realmente me quisesse para o
trabalho…
— Ben.
Nicole se sentiu afundar, cansada de ser o motor sempre
por trás do marido oscilante.
— Deixa pra lá, tá? Só deixa pra lá.
Comeram em silêncio por alguns minutos, tirando
camarões de palitinhos de madeira e cuspindo as cascas na
palma da mão discretamente, ambos dolorosamente cientes
de como deveriam parecer tensos e tristes comparados aos
casais que flertavam e se divertiam nos bares no entorno.
— Quem está com a Chlo?
— Susanna.
— Acha que as duas vão brincar de hospital de novo?
Será que era por isso que os casais arranjavam cachorros
depois que os filhos saíam de casa? Para ter algo com que
preencher o silêncio?
— Provavelmente.
— Me desculpa. — Ela se inclinou para ele. — As coisas
estão meio confusas no trabalho e está todo mundo
estressado.
— Como assim, confusas?
— Jill e Paul estão putos com Jamie depois daquele
desastre do Minerva que te contei. Os clientes desistiram.
— Mas isso não tem nada a ver com você, tem? Foi culpa
do Jamie.
Nicole não gostava de ouvir o nome dele saindo da boca
do marido, mas não conseguira se conter e havia contado a
Ben a situação.
— Foi, mas agora todo mundo está sendo pressionado
para compensar.
Embora Jamie fosse a última pessoa de quem Nicole
quisesse falar, ela se pegou fazendo um relatório completo
das burradas recentes dele — e de como ele se safara com
facilidade de todas.
— Posso dizer uma coisa? — Ben franziu a testa. — Parece
que você está passando tempo demais preocupada com
Jamie Lawrence.
Nicole baixou a almôndega espetada no garfo de volta
para o prato.
— Não estou, não.
— Está, sim.
— Porque só homens se safam dessas coisas. E porque
toda vez que ele não sofre nenhuma consequência —
continuou, consciente de estar repetindo as palavras de
Alex —, sabe que pode levar as coisas ainda mais longe.
— Mas pelo que você me falou, não parece que ele está
se safando dessa.
Nicole encarou o marido sem vê-lo. Ela sentira certo alívio
depois daquela conversa bêbada no bar, como se contar
àquelas mulheres o que tinha passado, ouvir as
experiências delas e decidir que Jamie deveria ser punido
por suas ações tivessem sido o suficiente para acalmar sua
raiva. Mas vê-lo escapar das consequências da merda do
Minerva só reacendera sua raiva. E de novo ao ouvir a
conversa no banheiro feminino. “É bom você saber que eu
não aceito não como resposta”, ele havia dito para a tal de
Sophia. E Nicole sabia bem demais que isso era verdade.
Depois de tirar os pratos, o garçom permaneceu por
perto.
— Vocês gostariam de ver o cardápio de sobremesas?
Eles responderam ao mesmo tempo:
— Por que não?
— Não, obrigada.
O que Nicole queria naquele momento, o que precisava
mais do que tudo, era saber se era mesmo Alex quem
estava por trás da história do Minerva. De jeito nenhum ela
esperaria que o fim de semana acabasse até segunda para
descobrir, estava fora de questão. Porque, se Alex de
alguma forma tinha colocado o plano em prática, não
estava funcionando. E Nicole agora sabia que precisava
desesperadamente que funcionasse.
— Ben, eu tenho que ir.
Ela havia soltado aquelas palavras sem pensar, mas,
assim que as ouviu, sabia o que precisava fazer.
— Como assim?
Ela se concentrou de novo nele: Ben, que recortara a
crítica do restaurante meses atrás e se esforçara para
colocá-los na lista de espera. Ben, que ficava ainda mais
sexy no verão, quando deixava a barba crescer — algo de
que ela se esquecia e voltava a perceber toda vez que a
estação começava. Ben, que sempre pedia comida demais e
gostava de transformar os jantares deles em maratonas de
quatro horas.
— Eu esqueci de mandar um arquivo… e é urgente. Tenho
que dar um pulinho no escritório, mas vai ser coisa rápida.
— O quê? Por que você não faz isso daqui?
Ele indicou o iPhone que ficava sempre ao lado do prato
de Nicole durante as refeições — por mais que Ben odiasse.
— Não está no celular. O arquivo ficou na área de
trabalho.
Sabendo que aquilo não fazia sentido e que parecia uma
mentira porque era mentira, Nicole passou um dos braços
pela manga do casaco e pegou a bolsa com a outra mão.
— Desculpa, Ben. Eu sou uma idiota. Mas o jantar foi
ótimo. Rayner tinha razão. — Isso não ia funcionar. — Você
não queria sobremesa, queria?
— Talvez quisesse. — Ben a olhava de cara feia, como se
ela tivesse perdido a cabeça. — Você vai mesmo voltar pro
escritório agora?
— Tenho que ir. Desculpa. Aqui. — Ela colocou o cartão de
crédito em cima da mesa.
— Ah, pelo amor de Deus. Eu posso pagar.
— Com o quê? — ela se perguntou, a impaciência
deixando-a cruel. Mas o táxi para o qual gesticulara com
agitação já estava encostando, e ela puxou o rosto de Ben,
furioso, para um beijo. — Só preciso consertar uma coisinha.
Ou então vou ficar pirando o fim de semana todo. Chego em
casa em uma hora, no máximo.
Até encontrar o endereço de que precisava na intranet da
BWL e chegar em Acton já era quase dez. A rua de Alex era
meio assustadora, com um grupinho de rapazes de moletom
na esquina claramente no meio de alguma negociação, e
Nicole teve que pedir para o taxista dar a ré quando eles
passaram direto pelo número da casa.
Ela hesitou por um segundo antes de tocar a campainha
de cima sem identificação. Mas estava lá e precisava de
esclarecimentos. Ao ouvir uma janela se abrir no segundo
andar, Nicole deu dois passos para trás, se forçando a sorrir
quando viu o rosto cansado de Alex inclinando-se para fora.
CAPÍTULO 17

ALEX

T
ranquilizada pelo som do motorzinho da bomba de
leite como uma canção de ninar, Alex andou sem
rumo pelos três cômodos do apartamento,
mordiscando um biscoito de chocolate. Quando os dois
saquinhos estivessem cheios, ela teria dez — todos datados
com canetinha hidrocor — alinhados na porta da geladeira,
e pensar nisso a enchia de satisfação.
Aquele período do dia, entre nove e dez da noite, quando
Alex finalmente caía na cama, sabendo que teria que
levantar uma hora e meia depois, era o único em que se
sentia ela mesma. Às vezes era o único momento em que
ela conseguia aproveitar Katie também. Deitadinha no
berço, puxando o ar em respirações imperceptivelmente
rasas, que nas primeiras semanas a deixavam em pânico, a
filha parecia em paz, livre da tirania dos desejos constantes
e insaciáveis.
Satisfeita de que o rosto de Katie estivesse livre de
qualquer roupa de cama — o Pais de primeira viagem
exigira que “pelúcias, encostos ou posicionadores devem
ser retirados antes de dormir” —, Alex se sentou à mesa e,
ainda presa à bomba, deu um duplo clique no portal da BWL.
Desde aquela tarde com Maya, verificar os movimentos
cotidianos de Jamie havia se tornado um ritual noturno pelo
qual ela ansiava.
Naquela noite, os cantos de sua boca se ergueram tão de
leve que mal chegou a formar um sorriso ao perceber o tom
tenso dos e-mails de Jill para o sócio cada vez mais
negligente. “Realmente precisamos dos três sócios
presentes nas reuniões do financeiro, J. Essa já estava
marcada há semanas.” Todos aqueles meses trabalhando
para Jamie ensinaram a Alex que ele não respondia bem a
broncas. E pela resposta dele — “Eu me atrasei vinte
minutos, Jill. Tenho quase certeza de que não perdi nada”
—, ele estava bem distante de arrependido quanto ela
esperava.
Jill claramente pensou que tinha passado dos limites
aquela noite no pub e se arrependeu de ter falado de forma
tão aberta. Ela precisava entender que não estava
exagerando, que sua reação havia sido cem por cento
apropriada. E naquele momento Jill devia estar fumegando.
Paul, no entanto, parecia quase inabalado pelo
comportamento de Jamie. Tirando um e-mail levemente
crítico depois da questão Minerva, suas mensagens
continuavam agradáveis como sempre. Enquanto a bomba
de leite zumbia, Alex checou o restante dos e-mails do dia;
ela saberia o que estava procurando quando encontrasse.
Relia um e-mail furioso de Maya, que encaminhara a
mensagem da Greenleaf lamentando não poder oferecer
uma vaga a Christel — Quando os pais deixam de
comparecer à entrevista sem aviso prévio, precisamos
aceitar que a inscrição de seu(ua) filho(a) na Greenleaf não
é prioridade —, sentindo uma pontada de arrependimento
por atrapalhar a vida da mulher cuja gentileza naquela
semana a desarmou, quando o interfone tocou.
Pronta para gritar para o entregador que ele tinha que
tocar nos viciados-em-delivery do apartamento 3, Alex
envolveu os seios motorizados com um cardigã, abriu a
janela e olhou para baixo, encontrando uma mulher parada
em frente à porta.
— Nicole?
Com os olhos vidrados, um brilho de suor na testa, que
refletia o holofote de segurança do prédio, e algo cintilante
nos lábios, sua ex-colega parecia ter bebido.
— Desculpa, eu sei que está tarde.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta saiu mais
ríspida do que era sua intenção. — Espera aí.
Arrancando as faixas de velcro do peito e xingando
quando o leite escorreu pela barriga, Alex abotoou o casaco
e correu para o térreo.
— Você quer entrar? — De novo, ela percebeu quão
grossa parecia. Mas ver aquela mulher inteligente e
levemente distante que só conhecia em um contexto
profissional parada ali na sua porta a deixou confusa. Será
que Jamie tinha sido demitido? Não. Ela saberia se tivesse
sido. Será que Nicole tinha sido demitida, então? Será que
ele tinha feito algo com ela? — Melhor você entrar.
Foi só quando elas chegaram ao topo das escadas que
Alex parou para pensar em como o apartamento devia
parecer para um estranho. Nos dois primeiros meses,
quando a agente comunitária de saúde vinha visitá-la com
alguma regularidade, ela havia tentado manter as coisas
arrumadas, mas nas últimas semanas o cesto de roupa suja
tinha desaparecido sob a montanha de lençóis para lavar e
Alex já estava chutando pilhas de roupas usadas para os
cantos. Os restos de um queijo quente que havia preparado
naquela manhã, morrendo de fome depois de tirar o leite,
ainda estavam em um prato no sofá, ao lado de uma pilha
de correspondência fechada e propagandas. Na mesinha,
entre os cabos embolados da bomba, as duas garrafas de
leite do peito pela metade.
— Só me deixa tirar isso da frente — murmurou ela,
catando a engenhoca humilhante e levando tudo para a
cozinha. — Posso, hum, te oferecer um chá?
— Por favor. — Nicole pegou o prato com os restos do
sanduíche e a seguiu. — Ou… algo mais forte?
— Não precisa sussurrar, Katie está derrubada.
— Ah.
No freezer, Alex achou uma garrafa velha de vodca — um
presente do penúltimo Natal de que ela havia se esquecido.
— Desculpa. — Por que continuava se desculpando? — Só
tenho isso. E não sei se vodca de canela vai ser bom, não.
— Qualquer coisa serve.
— Não tem gelo.
— Tudo bem.
— Vamos…?
Alex indicou a sala, e as duas se sentaram nos extremos
do sofá, parecendo desconfortáveis.
— É útil ter um traficante aqui na porta.
Se o nervosismo de Nicole era uma admissão de
arrependimento por ter ficado em silêncio, Alex ia deixá-la
ansiosa por mais um tempinho.
— Né? — Ela deu uma olhada para a janela. — Ele deve
se dar muito bem. Está aqui toda noite vendendo sabe Deus
o quê.
— Ritalina. — Nicole pigarreou. — É o que os jovens
curtem hoje em dia, parece. A “droga dos estudos”, eles
chamam. Te ajuda a virar a noite estudando, te mantém
acordado.
— Não preciso de ajuda com isso no momento.
— Não mesmo. Claro, na minha época a gente fazia isso
com comprimidos de cafeína e um litro de Coca-Cola.
Alex assentiu e esperou.
— Olha, eu sei que isso é estranho e que a gente não se
falou desde a despedida da Joyce…
Ela teve a decência de parecer envergonhada. Porque
aquela noite trouxera um senso de proximidade. Não tinha
sido imaginação de Alex. Elas fizeram um plano, trocaram
telefones… e nada, por quase duas semanas. Mas Nicole
parecia querer desesperadamente ser perdoada.
— A gente tinha bebido muito. — Alex deu de ombros. —
E olha, não é como se a gente…
— Bom, não. Mas eu deveria ter perguntado, ter visto
como você estava.
Uma pausa.
— Então foi por isso que você veio? Para ver como eu
estava?
— Não. — Nicole tomou um gole de vodca e estremeceu.
— Esquisito. Mas não é ruim. Não, eu vim porque as coisas
estão… bem, estranhas no trabalho desde aquela noite.
Jamie… — Sua boca se crispou de leve ao falar o nome dele.
— Bom, ele estragou uma venda superimportante.
Alex franziu a testa, adorando a sensação de estar mais
no controle que Nicole.
— Que venda?
— Lembra daquela propriedade, Minerva? Perto de
Gunnersbury? É uma longa história, mas os irmãos
O’Ceallaigh iam fazer uma oferta e ele estragou a venda.
Sabendo que Nicole estava atenta às suas reações, Alex
tomou um gole da bebida mas a cuspiu no copo
imediatamente.
— Isso é nojento. Tem gosto de talco. Esse cheiro… fica
em tudo. Você já deve ter esquecido. Bom, continua. O que
houve com a propriedade?
— A Lista D, que discutimos naquela noite. De algum jeito
ela entrou no meio dos documentos da apresentação. — Ela
parou de falar, com os olhos ainda fixos em Alex. — E desde
então outras coisas aconteceram. Coisas pequenas. Ele está
se confundindo com horários e datas. Aparecendo atrasado
em reuniões. E eu sei que Jamie pode ser arrogante e
preguiçoso às vezes, mas…
— Mas?
— Mas não acho que Jill queira afundar o barco, não
importa o que tenha sido dito naquela noite…
— O que nós dissemos naquela noite.
— Tá. De ele aprender uma lição.
— Ah, eu me lembro do que a gente disse. Foi você e Jill
que parecem ter esquecido totalmente. O que não é
surpresa para ninguém, considerando que as duas têm
ótimos empregos que gostariam de manter.
Nicole balançou a cabeça.
— Eu não esqueci de nada. Não consegui — continuou, as
palavras jorrando. — Olha, eu não posso falar por Jill…
inclusive, mal troquei duas palavras com ela desde aquela
noite, e você sabe como ela sempre foi próxima do Jamie.
Mas eu estava jantando com o meu marido e comecei a
contar como as coisas estão tensas no escritório, e Alex… —
Nicole se inclinou para ela, sua expressão indo de
preocupada para curiosa. — O que aconteceu com o
Minerva e todo o resto… Foi você, não foi?
Alex secou uma gota de água na borda do copo, mas não
respondeu.
— Nossa, Alex. Eu não queria… Não chora.
Até Nicole dizer aquilo, Alex nem tinha percebido que
estava chorando. Mas a sensação era boa. Porque ela não
havia chorado desde o nascimento de Katie, e aquelas
foram lágrimas de esforço, não de tristeza ou sequer de dor,
por causa da anestesia. E quando abriu a porta do
apartamento no dia seguinte, o peso da bebê e da
cadeirinha fisgando no seu útero recém-implodido,
enquanto as palavras de um artigo sensacionalista do Daily
Mail — “Carregar recém-nascidos em assentos de carro
coloca novas mães em risco de prolapso” — zumbiam em
seus ouvidos, tudo o que ela queria fazer era se enrolar na
cama e chorar. Ela não tinha ninguém mais para ampará-la,
tinha? E a pessoa que ela mais queria estava a quilômetros
de distância, em Portugal, ainda pedindo permissão ao
marido para visitá-la. Não houve tempo para chorar, porém,
porque os lençóis ainda estavam manchados de um rosa
marmorizado de quando sua bolsa tinha estourado, e ao
puxá-los, descobrindo que o colchão também estava
encharcado, o desejo de chorar de Alex foi substituído pela
raiva. Nada disso… nada disso poderia ser desfeito.
Das profundezas da bolsa, Nicole tirou um lenço e o
entregou a ela.
— Eu mexi em alguns documentos, troquei algumas datas
e horários. O Minerva… foi tão fácil. Jamie nunca repassa os
arquivos das apresentações. Eu sempre colocava tudo na
mesa dele, pedindo para que ele desse uma última olhada,
mas… — Ele sempre se safava sem trabalhar, sem se
responsabilizar. — Então achei que, se talvez Jill e Paul
vissem como ele é arrogante, como faz as próprias regras
quando e como quer, que aí…
— Aí o quê? — Nicole insistiu, sem parecer surpresa ou
irritada. — Que aí ele seria demitido? Nós te contamos sobre
a Lista D em segredo. Não era para você usar.
Um grito agudo como uma sirene atravessou o
apartamento.
— Merda. — Alex baixou o copo, limpando o nariz na
manga do casaco. — Ela acordou.
— Xiu… — Nicole ergueu o indicador. — Espera.
As duas ficaram em silêncio por um minuto. Silêncio.
— Se você sempre sair correndo, ela nunca vai aprender a
se acalmar sozinha.
Alex abriu um meio sorriso choroso.
— Não imaginava que você seria uma mãezona tão
centrada.
— Por que todo mundo diz isso? Talvez eu não seja, mas
meu Deus, amo minha filha mais do que consigo aguentar
na maior parte do tempo. Só que meu marido… — Ela deu
de ombros. — Ele é mais participativo do que eu. É melhor
nisso do que eu. E tudo isso, tudo que você está passando,
parece que aconteceu faz tanto tempo. É incrível como você
esquece rápido. Mas de algumas coisas você acaba
lembrando. — Com alguns drinques, Nicole já parecia mais
calorosa. — Me escuta — continuou, baixinho. — Não vou
fingir que não fiquei feliz de ver Jamie se ferrar. E depois do
que ele te fez, eu entendo por que você quer que ele saiba
qual a sensação de ser culpado por algo que não fez. Mas
como você conseguiu? Você não… hackeou o sistema, né?
Alex encarou Nicole, mas permaneceu quieta.
— Mas isso não é crime?
— Talvez — admitiu Alex. Aquilo era algo que ela
deliberadamente evitava pensar. — Ele mudou a senha da
intranet, mas não foi difícil adivinhar a nova. E eu só fiz isso
porque ele mentiu. Ele mentiu sobre tudo. Eu não fui
desligada, fui demitida por “erro grave”. E como diabos vou
encontrar outro emprego agora? Como é que vou pagar…
Ela pensou no tremor na voz da mãe quando ligou mais
cedo para avisar que “talvez eu precise de um pouco mais
de tempo — naquele empréstimo”. O sussurro confirmou
quão importante era que o pai dela nunca descobrisse sobre
o empréstimo, e como só a possibilidade de ele descobrir
sobre aquele acordo entre as duas poderia causar o tipo de
cena que Alex forçara a própria memória a bloquear,
sabendo que nunca seria capaz de fazer isso enquanto a
mãe e o pai morassem sob o mesmo teto.
— Sinto muito. — Nicole apertou os lábios. — Mas isso
quer dizer que você acessou os e-mails dele também?
Alex decidiu ir com cuidado.
— Só uma vez.
— Recentemente?
— Dei uma olhada ontem à noite.
Algo indecifrável surgiu no rosto de Nicole, que abriu a
boca como se para fazer uma pergunta antes de voltar a
fechá-la.
— Eu sei que não deveria ter entrado, e juro que não vou
entrar de novo. Só queria ver se o Minerva tinha…
— Saído de acordo com o plano? Bom, sim. Mas você não
pode voltar a fazer isso. É sério. Se não por todo o resto,
porque você vai ser pega.
— Não vou. Mas é tão… difícil. — A palavra saiu devagar,
propositada e cheia de ódio. — Eu olho para ele e para a
família perfeita dele e penso em como a vida deles é fácil.
Se elas não estivessem tão próximas, talvez Alex não
teria notado Nicole se encolher.
— Você conhece a Maya?
Nicole balançou a cabeça.
— Só a vi uma vez, de longe, no aniversário da empresa,
sabe? E ela parecia… não sei. A gente não conversou. E
você?
— Não. — Um especialista em linguagem corporal saberia
que o aceno de cabeça veio um milissegundo tarde demais.
— A gente se falava pelo telefone às vezes — continuou
Alex, omitindo o fato de que haviam conversado na tarde
anterior… para marcar outra tarde preguiçosa na casa de
Maya e Jamie. — Na verdade, ela parece…
— Legal?
— É. Bem legal, mesmo.
Seria por isso que Alex tinha concordado em sair com
Maya de novo? Seria tão simples assim? Ou seria algo mais
maléfico: mantenha seus inimigos perto? Até a próxima vez,
ela não teria certeza.
— Quer dizer, eu sei que eles estão longe de ser o casal
perfeito. Como ele se comportou com você… e você não
deve ter sido a única.
Nicole desviou o olhar.
— Não.
— Mas eles fingem bem.
Pegando o iPhone, Alex cutucou a tela até uma imagem
de Jamie e Maya aparecer.
— Olha só para eles. Olha só a vida perfeita de catálogo
escandinavo.
Queria fazer Nicole rir, ou pelo menos sorrir, tentando
aliviar o peso daquela conversa, mas ao erguer os olhos
percebeu que Nicole não parecia achar graça. Ela parecia
nauseada.
— Por que é que você está vendo isso?
— É o Instagram do Jamie. E não é fechado. Olha, dá uma
olhada nesse post do fim de semana passado.
— Não. — Nicole afastou o celular. — Não quero ver isso.
Essas coisas todas, a vida dele, não é da nossa conta. E eu
não tenho nada contra a Maya. Ela não tem culpa do que o
marido apronta.
— O marido apronta e muito, pode acreditar.
— Como assim?
— Que até quando está de castigo por fazer várias
besteiras, e essas são só as que a BWL descobriu, até quando
deveria manter a cabeça baixa e trabalhar, Jamie encontra
tempo para ficar dando em cima das lindas funcionárias
novas.
Nicole parecia estar prendendo a respiração, e Alex
percebeu a própria insensibilidade.
— Desculpa. O que ele fez com você…
— Esquece isso. De quem você está falando?
— Tem uma garota nova no escritório, Sophia alguma
coisa? Ele está trocando e-mails com ela. Acho que até
foram beber juntos, e parece que…
Mas sua convidada se levantou de repente.
— Merda, já é mais de meia-noite. Olha, desculpa por
aparecer aqui tão tarde. Eu tenho que ir, de verdade. Falei
para o meu marido que ia direto para casa. — Nicole olhava
de um lado para o outro com aflição. — Cadê meu casaco?
— Na cozinha.
Mas quando ela não se mexeu, Alex adivinhou que havia
mais. Algo que Nicole nunca havia dito em voz alta. E ela
tinha quase certeza do que se tratava.
— Não foi só assédio, foi?
Um segundo se passou. Nicole voltou a se sentar no sofá.
— Vou precisar de mais uma dose.
CAPÍTULO 18

JILL

O relatório de vendas trimestral sempre era feito para ser


uma leitura factual, mas Jill gostava — aquilo a
tranquilizava —, e conforme passava o indicador lentamente
pela lista de vendas potenciais e anteriores, de vez em
quando fazendo uma anotação na margem com a caneta
Cartier na qual Stan mandou gravar a data do casamento
deles para as bodas de rubi, ela se sentia calma como não
se sentia havia semanas.
Foi só quando chegou nas vendas de Jamie que Jill
estreitou os olhos para o papel. Os custos dele sempre
foram elevados, os números muitas vezes não batendo com
exatidão. Mas não era a discrepância comum que chamara
a sua atenção, e sim o quanto os números do trimestre dele
estavam altos.
Jill tinha imaginado que as vendas dele cairiam
consideravelmente, devido à confusão com o Minerva, mas
alguma venda tinha sido fechada naquele período, não
mencionada a ela por Jamie, que aumentava os números a
um nível normal.
Por que Jamie não tinha imediatamente se gabado da
venda do pub no começo da Westbourne Grove, Jill não
conseguia imaginar. Ela nunca foi muito fã de Adrian Spiro,
o incorporador de imóveis grego que queria transformar a
propriedade em um hotel-butique, mas não era isso que a
incomodava. Então Jill se lembrou: Spiro tinha desistido, de
início, em cima da hora. Alguma coisa a ver com o
planejamento ou a designação histórica.
Ela mandou um e-mail de uma linha só para Jamie: Como
você conseguiu fazer Spiro mudar de ideia?
A resposta dele foi imediata: Daquele meu jeitinho, com
dois emojis de braço flexionado. Embora Jill soubesse que
isso significaria dias de Jamie agindo de forma
insuportavelmente presunçosa, ela não podia ser grosseira,
e começou a digitar um “Parabéns” quando outro e-mail
pulou na sua caixa de entrada.
Raxugdy@sharklaser.com.
Com cautela, ela abriu: era outra troca de e-mails. Dessa
vez — como se alguém estivesse olhando por cima do seu
ombro — entre Jamie… e Spiro.
O inglês do bilionário grego não era dos melhores, e de
qualquer forma os dois pareciam estar falando em algum
tipo de código que Jill levou alguns segundos para decifrar.
A “escadaria de carvalho esculpido” tinha sido o problema,
ela se lembrou, depois de ter encontrado o arquivo original
no sistema. Aquela escadaria se tornou o pesadelo de
qualquer incorporador no instante em que um possível aviso
de preservação do edifício fora mencionado.
PSC: o conselho só vai emitir esse aviso daqui a dez dias,
Jamie comentou em um e-mail respondendo à mensagem
em que Spiro recuava do negócio. E eu sei que você estava
planejando começar os trabalhos no início da semana que
vem. Me liga quando receber isso?
O e-mail seguinte não fazia referência a nenhuma ligação
e era uma simples confirmação de que Spiro tinha mudado
de ideia e estava preparado para finalizar o negócio “assim
que possível”. Que reviravolta.
Jill deu uma olhada na data do e-mail, depois ligou para
Paul.
— Estou indo encontrar com meu advogado, Jill. A Olivia
está aprontando de novo. Você acredita que agora ela está
pedindo o chalé de Devon também? Isso sem falar nas
taxas de manutenção extorsivas que está exigindo e na
custódia do Barnaby.
— Perdão… Barnaby?
— Nosso cachorro whippet.
— Entendi. — Jill definitivamente não estava com tempo
para uma das reclamações de divórcio de Paul no momento.
— É rapidinho: o lugar na Westbourne Grove que Spiro
comprou. Eu nem sabia que a venda tinha sido finalizada…
e tão rápido. Você sabe quando eles começaram a trabalhar
lá?
— No início da semana, acho. — Ele pareceu tenso. —
Imagino que o Telegraph tenha entrado em contato?
— O quê? Não. Por quê?
— Eu ia te ligar para ver se você já estava sabendo.
— Sabendo do quê?
— Da escadaria, aquela porcaria shakespeariana…
— Jacobina.
— É, isso. Bom, enfim, o troço todo caiu ontem à noite.
Parece que a estrutura não estava tão sólida quanto se
esperava, e depois que eles começaram a trabalhar…
Mas quando Paul disse as palavras “os conservacionistas
estão pirando”, ela parou de escutar.
— Paul. — Ela passou a ponta do dedo pelas três palavras
no topo do papel timbrado da BWL, três palavras sobre as
quais ela e Stan demoraram tanto a se decidir, décadas
antes: HISTÓRIA. HERANÇA. PRESERVADAS. — Quando você e seu
advogado acabarem, precisamos conversar. Porque vamos
precisar de uma revisão interna sobre isso… e sobre Jamie.
Então ela encontrou o e-mail original de
Raxugdy@sharklaser.com, com o assunto “Com amigos
assim?”. Logo antes de encaminhá-lo com três cliques
rápidos, ela acrescentou uma única frase ao início da
mensagem: Com amigos assim, Jamie?
CAPÍTULO 19

NICOLE

– S ó pode ser sacanagem.


Ela estava em pé de costas para a parede,
tentando encontrar o melhor ângulo para capturar no
celular as pilastras ornamentais em torno do palco quando
as luzes se apagaram. O pessoal se irritou quando ela levou
Rupert Jones para uma segunda visita ao teatro, mas o
responsável tinha conseguido colocá-los para dentro de
novo, e, embora Nicole pudesse jurar que se lembrava do
local onde o homem encontrou os fusíveis, tentar navegar
por aquela escuridão apalpando o nada seria um desafio.
Era início da tarde, mas só uma pequena faixa de luz
natural entrava pelas janelas laterais da entrada principal, o
auditório abobadado uma massa de recantos sombreados.
O fato de que aquele lugar estivesse tão silencioso, com
nada além de uma sirene ou buzina abafada vinda da
Kilburn Lane atravessando as paredes carmim, era tudo
menos tranquilizador. Nicole queria ter trazido alguém com
ela para responder aos detalhes que Rupert ainda desejava
saber. A mente dela foi das saídas de incêndio
antiquíssimas, que davam para os fundos do terreno, para
os homens sem-teto que tinha visto deitados nos sacos de
dormir sujos de mijo na estação. Se eles ainda não tinham
encontrado a casa dos sonhos mais espetacular do nordeste
de Londres, era com certeza uma questão de tempo.
Usando o celular para iluminar, Nicole foi tateando pelo
corredor central e passou pelas fileiras de réplicas
horrorosas de cadeiras Ambassador que deviam ter sido
instaladas nos anos 1970 ou início dos 1980. À esquerda do
palco, camuflada pelas molduras neoclássicas, estava a
porta estreita de que ela se lembrava, mas e a maçaneta?
Passando a mão espalmada de cima a baixo, Nicole não
encontrou nada.
— Merda.
Estremecendo quando uma farpa deslizou sob a pele, ela
ergueu o iPhone para inspecionar o dano. Lá estava: um
pequeno traço preto logo dentro da curva da sua linha da
vida. Teria espremido a farpa bem ali, à meia-luz, se algo
mais, refletido na tela do celular, não tivesse atraído sua
atenção. Um movimento atrás de sua orelha esquerda;
depois o branco úmido de um olho.
Antes que ela pudesse se virar, Jamie a agarrou pelo
braço, girando-a em sua direção.
— Que merda é essa que você está tentando fazer,
mandando aquele e-mail para Jill? Você achou que eu não ia
descobrir? Que eu não saberia que foi você?
— Jamie, cacete! Que susto! — Agitando o braço, ela
tentou se soltar. — Qual o seu problema?
Claramente havia algo de errado com ele. A boca estava
ressecada, o hálito azedo. Ele a encarou, puxando uma
pelinha do lábio inferior com os dentes.
— Qual você acha que é o problema, Nic?
— Não tenho a menor ideia. Dá para me soltar?
Ele ainda apertava seu braço com força — o suficiente
para que ela não conseguisse se soltar sem cair. Dando dois
passos deselegantes para trás, eles se desequilibraram,
colidindo com os assentos da fileira da frente.
— Ai!
— Você acha que vai me foder com esses joguinhos? —
rosnou Jamie, fazendo-a recuar tanto em uma das poltronas
Ambassador que ela precisou se segurar no apoio de braço
para não cair. — Você acha que vai fazer meus sócios
ficarem contra mim mandando uma merda qualquer que
teoricamente eu escrevi?
— Eu não tenho ideia do que você está falando. — Nicole
odiava o tremor na sua voz. — Me solta.
— Mas não é isso que você quer de verdade, é?
Jamie estava tão próximo que, ao rir baixinho no rosto
dela, Nicole sentiu algo quente, meio fermentado como pão
e cerveja, por baixo do cheiro de álcool. De repente, sua
saia foi erguida e a calcinha empurrada para o lado em uma
série de gestos decididos e quase mecânicos.
— Jamie, eu não estou brincando, me deixa…
Mas a mão dele tinha subido para o pescoço dela,
apertando sua traqueia, e a última palavra saiu menos que
um sussurro, quase um gorgolejar.
A risada de Jamie então foi estridente, ecoando pelo
auditório escuro.
— O que foi? Não te ouvi.
E, incapaz de se conter por mais tempo, ela começou a rir
também, selvagem e rouca, apertando a boca na dele e
deleitando-se, como sempre, àquele momento de
submissão.
Adiar aquele momento aumentava o prazer de Nicole.
Isso ela entendeu logo no início do caso deles. Mas foi
apenas no final do relacionamento de 18 meses que ela
entendeu o porquê: ceder depressa demais não apenas
banalizava o que eles estavam fazendo, mas tornava aquilo
muito parecido com o que ela e Ben faziam duas vezes por
semana — uma delas sempre aos domingos de manhã,
antes que Chloe acordasse. E havia algo mais. Quanto mais
perigosos eles se tornavam, mais seus sentimentos por
Jamie se aprofundavam: profundos o suficiente para serem
amor — mas um tipo de amor selvagem que ela nunca
sentiu pelo marido. O tipo que, com o tempo, deixou de
satisfazê-la e só a deixava ansiosa pela próxima vez antes
mesmo de sair do lado de Jamie.
Quando ela reuniu coragem para expressar esse
pensamento, cinco meses antes, Jamie admitiu que sentia o
mesmo, prometendo deixar a esposa e “fazer aquilo
funcionar, não importavam as consequências”. E talvez
fosse culpa de Nicole por acreditar nele. Mas quando ele
voltou atrás nessa promessa, ela ficou amarga, destruída e
condenada a aguentar dia após dia reuniões em salas de
conferências com um homem que agora odiava.
Era por isso que todo mundo alertava contra casos de
escritório, não era? Não por causa dos riscos que ela e Jamie
tinham corrido quando estavam juntos — se pegando nos
elevadores da BWL e o sexo frenético e raivoso que faziam
em salas de reuniões escuras e, uma vez, a trepada no chão
do vestiário da academia do escritório —, mas porque a vida
profissional se tornava impossível depois que o caso
acabava.
O fato de aquilo ter sido tão diferente dos casinhos
passageiros de escritório, ou de qualquer relacionamento
que Nicole já teve, só tornava tudo mais difícil de esquecer.
Incapaz de evitar pensar nas sessões selvagens dos dois
sempre que estava na mesma sala que Jamie, ela se sentiu
traída pelo próprio corpo e pelo mesmo desejo que
continuava sentindo nos últimos meses por ele.
 
— Eu estava falando sério naquela noite em Frankfurt.
Jamie estava apoiado em um dos cotovelos, e ela se
lembrou de que ele sempre falava demais logo depois,
quando ela gostava de ficar quieta e parada, aproveitando
os tremores que atravessavam seu corpo depois do clímax.
— A noite em que você prometeu que largaria a Maya? —
Ela virou o rosto para o outro lado, não querendo que Jamie
visse a mágoa nos seus olhos. — Ah, claro que não estava.
Ao se concentrar nos números nos encostos das cadeiras
— 8A, 8B —, Nicole se pegou pensando em quem se sentara
ali ao longo dos anos. Será que aquelas pessoas
conseguiram tudo que queriam na vida ou tiveram que viver
como dava?
— Porque olha só pra você — continuou ela —, ainda com
a linda sra. Lawrence, ocupado compartilhando sua prole
feliz com estranhos nas mídias sociais. Então é impossível,
Jamie. É impossível que você estivesse falando sério.
Alguns meses atrás, Nicole talvez tivesse dificuldade de
manter a voz tão calma. Todas aquelas promessas e planos
feitos enquanto eles assaltavam o frigobar no quarto gelado
demais do Hilton: ela levava aquilo a sério. E talvez ele não
tivesse percebido sua seriedade? Talvez ele a considerasse
o tipo de mulher que tinha casos, como todo mundo na BWL
parecia pensar depois daquele primeiro caso idiota que todo
mundo soube no escritório. Mas, para Nicole, esses planos
eram a promessa de uma nova vida. E quando ela e Jamie
fizeram a apresentação para o Zech Group na manhã
seguinte, Nicole não entrelaçou a perna na de Jamie
embaixo da mesa de conferência como normalmente faria,
sabendo que em questão de semanas, dias, horas, eles não
precisariam mais desses momentos roubados.
Sim, o percurso até lá seria doloroso, mas Chloe era
jovem demais para entender completamente ou se lembrar
de uma separação, e se ela e Ben lidassem bem com tudo
(o que aconteceria, porque seu marido era um homem
decente), poderiam acabar sendo um daqueles casais
divorciados que permanecem próximos, e até
compartilhariam uma ou outra reclamação sobre seus
respectivos novos cônjuges enquanto tomavam café.
Ter passado do planejamento daquela nova vida e ter
conversado com um advogado de divórcio que encontrou na
internet para tudo estar acabado em uma única frase
abafada — “Agora não é a hora” — deixou Nicole tão sem
chão que ela nem tentou esconder. Na terça-feira antes do
Natal, ela foi direto para a cama, reclamando de uma
infecção alimentar, e por uma semana ficou deitada ali
usando a mesma camiseta desbotada. Então, uma manhã,
Chloe trouxe seu livro Ant and Bee and the Doctor,
inventando as palavras que ainda não sabia ler em um
esforço para animar a mãe. Depois que as lágrimas
finalmente pararam de cair pelo rosto de Nicole, ela
conseguiu dizer: “Você pode chamar o papai?”
Quando Ben se sentou em silêncio na beira da cama,
esperando que ela falasse primeiro, Nicole estava
convencida de que ele sabia. Ela iria confessar tudo, até
sobre seu plano de se separar e começar uma nova vida
com Jamie. Antes que fizesse isso, porém, seu marido
começou a contar o telefonema que tivera mais cedo com
um amigo de um amigo: um terapeuta que achava que
Nicole poderia estar sofrendo de depressão — “muito
possivelmente algo hormonal”. Então ele se adiantou e
marcou uma consulta para ela.
A risada de Nicole surpreendeu a ambos.
— Ben, se você acha que estou com algum tipo de fossa
pré-menopausa — respondeu ela com a voz rouca depois de
secar os olhos —, está tão longe da verdade que não tem
nem graça. Eu tenho 41 anos, não 51.
Ouvindo a risada, Chloe voltou ao quarto e, com a voz
baixinha, perguntou:
— O papai disse que você não é você mesma. Quem é
você então, mamãe?
O que a fez ter que enxugar os olhos de novo.
— Sou eu mesma, joaninha. Estou aqui. E não vou a lugar
nenhum, prometo.
Isso e a distração do Natal a ancoraram de volta à sua
vida. Dessa vez, Nicole decidiu, ela não só faria de qualquer
jeito, mas seria a melhor mãe e esposa que pudesse ser.
Exceto pelo relógio TAG que guardara como lembrança
debaixo de uma pilha de calças jeans na última gaveta,
esquecido por Jamie na mesa de cabeceira de um hotel
meses antes, ela tinha conseguido erradicá-lo de sua vida.
— Então, todos esses meses… você estava me odiando?
— Jamie estava ajeitando o cabelo dela, uma mecha escura
de cada vez, tirando-o do seu rosto. — Eu não te culparia.
— Ainda bem. E sim, estava.
Era óbvio que ele achava isso mais elogioso do que triste,
o que a irritou.
— Você parou de me responder. Me ignorou total.
— Você falou que estava tudo acabado! O que esperava?
— Quando ele não respondeu, ela continuou: — Você achou
mesmo que eu ficaria satisfeita em continuar tudo como
antes? — Lembrando as mil e uma razões pelas quais ela
jurara nunca mais ceder a ele, Nicole se sentou e começou
a procurar o celular embaixo dos assentos. — Bom, não.
Desculpe. Não. — Como tinha acabado naquela situação de
novo? — Tenho que ir.
— Nic, espera. — Ele se ergueu para ficar na mesma
altura que ela. — Eu preciso que você acredite que estava
falando sério, naquela noite. Cada palavra. Eu já tinha
planejado tudo na minha cabeça. Os lugares aonde a gente
iria nas férias. Onde a gente moraria e se as meninas se
dariam bem quando ficassem mais velhas.
Nicole balançou a cabeça.
— Durante toda a gravidez da Maya, eu só pensava que
nós não poderíamos fazer nada até ela ter o bebê. Mas aí
Elsa nasceu… e não sei se foi porque era menina ou porque
ela era tão pequena, sabe?
— Duas semanas prematura, eu sei.
Meu Deus, como ela odiava saber essas coisas. A data
prevista do parto de Maya, o queijo feta que a esposa de
Jamie tanto desejava no último trimestre, o ciúme de
Christel que a fez beliscar a coxa da irmãzinha com força
suficiente para fazê-la uivar assim que ela foi trazida do
hospital. Saber dessas coisas fazia Nicole se sentir como se
estivesse do lado de fora de uma janela espiando a vida
deles. Uma vida que não poderia ser tão invejável assim, já
que Jamie estava ali com ela. E mesmo que “E agora?”
fosse uma pergunta óbvia depois de tantos meses
separados, Nicole odiava aquele apelo feminino implícito
depois do sexo, e não tinha certeza de que conseguiria
suportar a humilhação de perguntar aquilo.
Ben tinha sido o único homem que ela conheceu que fez
essa pergunta — literalmente — depois da primeira vez em
que transaram. E embora Nicole soubesse bem antes de se
casar que o que eles tinham nunca seria o suficiente para
saciá-la, ele era seu melhor amigo. Então, quando ele a
levou para jantar naquele restaurante flutuante horrível em
Bristol, no dia seguinte às provas finais, ela olhou pelas
escotilhas para as águas verde-oliva do rio Severn,
esperando que ele mostrasse o anel que ela achou
escondido na gaveta da mesa semanas antes.
A noite em que Nicole encontrou o anel foi a primeira vez
em que traiu Ben, e ela realmente acreditou que seria a
última. Não tinha nenhuma lembrança do rosto do homem,
mas se lembrava dos tetos abobadados úmidos daquela
boate em algum porão do centro de Bristol e das batidas na
porta do banheiro feminino quando terminaram. Ela
também se lembrava do alívio, da sensação de
encerramento quando tudo acabou, como se agora aquela
curiosa parte retorcida de si mesma que ansiava por ser
dominada e subjugada poderia ser aposentada com pouca
ou nenhuma resistência. Ben ia pedir sua mão em
casamento e ela ia dizer sim. Tudo seria mais simples de
agora em diante — sincero e verdadeiro. E assim foi, até
Ian. Aquele estúpido e nada importante Ian, a “droga de
entrada” que a deixou com um buraco em forma de caso
extraconjugal em sua vida — e a levou para drogas mais
pesadas.
— Eu nunca tive a intenção de te magoar — continuou
Jamie. — É só que Elsa nasceu e… eu ficava me
perguntando quem protegeria ela e Christel se o pai delas
não estivesse por perto.
Abrandando um pouco ao se lembrar de ter os mesmos
pensamentos sobre Chloe quando a ideia de se separar de
Ben começou a parecer real, Nicole assentiu.
— E eu sabia que Maya encontraria outra pessoa assim —
ele estalou os dedos —, num piscar de olhos.
— O.k., já entendi que a sua esposa é um partidão, Jamie.
— Nicole começou a procurar os sapatos e a fechar a blusa.
— Não é… era só a ideia de outro cara cuidando das
minhas filhas quando deveria ser eu, sabe, porque meu pai
estava sempre trabalhando…
— E olha o merda que você se tornou.
— Exatamente.
Pausando, ela tocou a bochecha dele com o indicador.
— Você não é um merda.
E, por um momento, os dois pararam de abotoar e fechar
zíperes e só se encararam.
— Eu te deixei mal, né?
Ela não daria a ele a satisfação de saber o quanto.
— Vem. — Ela estendeu a mão e puxou o amado para
ficar em pé. — Eu preciso mesmo voltar para o escritório.
Mas quero te mostrar uma coisa antes. — Era por isso que
ela não tinha contado do telhado para Rupert no outro dia?
— Não dá para ver daqui, e nas plantas parece parte do
telhado. É loucura, você não vai acreditar.
Tateando pela passagem escondida atrás do palco, os
dois subiram escadas de madeira estreitas e mofadas até
chegarem ao alto. Ali, entre uma confusão de fios elétricos,
havia uma escada de corda que levava a um alçapão no
telhado.
— Aonde você está me levando?
— Confia em mim — ela respondeu olhando para trás,
subindo à frente dele com cuidado. — Vai valer a pena.
Preste atenção onde pisa.
— Estou ocupado prestando atenção em outra coisa
agora.
De sua arriscada posição atrás dela na escada, Jamie
abriu um sorriso safado, e Nicole sentiu uma pontada da
antiga animação ao empurrar o alçapão, se erguendo o
mais delicadamente possível até a estrutura abobadada no
telhado do prédio: um tipo de cúpula, do tamanho exato
para duas pessoas sentadas.
— Você está bem?
Jamie a seguiu, de boca aberta com a vista que os
recebeu.
Da posição deles naquela redoma de vidro no telhado,
tinham uma vista de 360 graus do noroeste de Londres,
com a faixa verde do Queen’s Park à frente e as curvas do
Kensal Green Cemetery à esquerda. Tão bem planejada
quanto uma cidade desenhada por uma criança, Londres se
estendia até os céus primaveris cor de caneta Bic
pontilhados por uma ou outra nuvem.
— Não é incrível? — Jamie só conseguia balançar a
cabeça em descrença enquanto Nicole falava. — E ainda
melhora.
Esticando-se para uma escotilha na base da cúpula,
Nicole abriu um painel de vidro curvado, gesticulando para
que Jamie a seguisse até o telhado plano de ardósia.
— Vem.
Por um momento eles ficaram sentados ali — joelhos
junto ao peito —, perdidos em pensamentos em uma
Londres silenciosa que, daquela posição secreta e sagrada,
parecia ser só deles.
— O que é isso? Onde estamos? — balbuciou Jamie entre
risos.
— Te falei que valia a pena — disse Nicole, vendo o
sorriso dele aumentar quando passou a explicar os detalhes
mecânicos da estrutura.
— Sua nerd — sussurrou Jamie, segurando sua mão. —
Você ama essas coisas.
— E você não? — Ela se virou para ele. — Não é isso que
nos diferencia daqueles corretores sem coração que não se
importam nem um pouco com o que vendem ou se vai
permanecer de pé um ano depois?
— Claro.
Sem querer pensar demais nas motivações profissionais
dele, Nicole se voltou para a vista.
— Tudo parece tão pequeno, tão desimportante daqui. —
Ela apertou os dedos dele.
— Talvez seja.
Jamie se inclinou para beijar seu pescoço, mas a
respostinha pronta fez com que Nicole voltasse para o
planeta Terra com um solavanco.
Ele achava que poderia jogar essas cantadas para ela
como fez com a nova garota, a tal da Sophia? Depois do que
fez com ela no final do ano passado, Nicole não o deixaria
pensar que poderia tê-la nas condições que quisesse. Por
mais frágil que estivesse hoje, aquele não era mais o caso.
Exausta das constantes idas e vindas de Jamie, Nicole
desviou o rosto com firmeza.
— Não. — Até ela achou que sua voz não era convincente.
— Não podemos voltar para como as coisas eram. E o jeito
que você falou comigo antes? Me acusando? O que foi
aquilo?
— Eu sei. Nossa, sinto muito. Não sei no que estava
pensando.
— Você nem explicou o que eu teoricamente fiz: mandei
um e-mail?
Jamie gemeu.
— Esquece que eu falei isso. Eu sei que não foi você.
— Então me conta.
Com hesitação, ele contou sobre o e-mail que Jill
encaminhara para ele, e a revisão interna que ela pediu
depois de o Telegraph transformar o “escândalo Spiro” em
destaque de página inteira.
— Isso pode ser sério. Mas eu juro que nunca escrevi as
palavras naquele e-mail, Nic. Eu tinha preocupações sobre
Jill? Com certeza, ainda tenho. Porque ela não está
totalmente aqui agora. Não desde que Stan ficou doente.
— O marido dela está com câncer. O quanto você estaria
concentrado se Maya tivesse câncer?
— Olha. — Jamie respirou fundo. — Conheço Jill e Stan faz
anos. Foram eles que me trouxeram para a empresa,
lembra? E não… não fale de Maya.
Ela ficou irritada.
— Ah, nossa. Desculpa.
— Mas eu não seria burro a ponto de escrever aquele tipo
de coisa num e-mail. Mas não importa. Eu realmente acho
que Jill deveria tirar mais do que, hum… uma licença
temporária. Ela já está na idade de se aposentar.
Nicole fez uma careta.
— Meu pai trabalhou até os 72 anos. Não lembro de
ninguém questionar isso.
Jamie tentou passar a mão na cintura dela.
— Então… isso é tipo uma coisa feminista?
A mais básica das sugestões sobre igualdade entre
gêneros tinha a tendência de causar reviradas de olho em
Jamie; era uma piada interna dos dois quando estavam
juntos. Só que naquele momento o humor de Nicole parecia
tão precário quanto sua posição naquele telhado, a trinta
metros de altura, e ela não conseguiu se forçar a rir.
— Vamos, eu tenho que ir.
— Por que você se importa tanto com isso? Você nem
conhece a Jill.
— Eu tenho mesmo que ir embora. — Nicole foi
engatinhando até o alçapão. — Mas acho que eu me
importo com Jill porque já trabalhei com ela o suficiente
para saber que ela é muito boa no que faz. E você, de todas
as pessoas, estar falando dela pelas costas desse jeito, só
parece… Mas, sei lá, acho que lealdade não deve ser seu
ponto forte.
Eles desceram a escada de corda em um clima bem
diferente, e atravessaram o auditório lado a lado, mas em
silêncio, até a porta. Do lado de fora, em meio à ebulição
raivosa da hora do rush, Jamie se virou para ela.
— Eu não escrevi aquele e-mail.
— Acredito em você. — Nicole suspirou, aliviada ao
perceber que o que dizia era sincero. — Acho que só
imaginei que você pudesse ser um mentiroso além de um
traidor.
— Tá — respondeu Jamie sem emoção, já exausto daquele
julgamento. — E talvez eu mereça ouvir isso de você. Mas
se não foi você, Nic, quem foi?
— Não tenho ideia — disse ela, já de costas, com um
aceno fraco, ao começar a descer a Kilburn Lane.
Nicole não ia contar a ele que aquilo era a cara de Alex,
muito menos que papel havia desempenhado em incentivar
a ex-assistente dele a continuar com “o plano”. Tudo o que
Nicole dissera naquela noite no pub era verdade — sobre o
início do caso deles. Só que ela não mencionou como
incentivou os gestos e as palavras “inadequados” de Jamie.
Omitiu o fato de que, no dia em que ele a chamou de
“comível”, ela foi para casa e relembrou a cena várias vezes
enquanto Ben dormia ao seu lado, sufocando seu último
gemido estremecido com um travesseiro.
Nem uma palavra do que ela dissera a Alex no
apartamento naquela noite tinha sido mentira também.
Estimulada por sua descoberta de que Jamie havia tentado
embarcar em joguinhos semelhantes com Sophia, ela
arrastou de volta à luz aquela vez — e tinha sido apenas
uma — que Jamie tinha ido longe demais. Se ele interpretou
mal seus sinais ou se ficou excitado em observá-la se
debatendo e se engasgando, Nicole nunca saberia. Tinha
sido tão perto de quando eles se separaram que ela
enterrou o ocorrido com todo o resto — até aquela noite no
pub. Ao ouvir Alex e Jill descrevendo as humilhações que
sofreram nas mãos de Jamie ela compreendeu pela primeira
vez o quanto ele gostava de fazer jogos de poder com todas
as mulheres de sua vida, o que despertou sua memória. O
chão de um quarto de hotel, a cabeça dolorosamente
pressionada contra a válvula do radiador, a mão direita dele
apertando seu pescoço com cada vez força. Como ele
estava ignorando seus pedidos arfantes — “Pare” —, ela
forçou uma risada estrangulada, esperando que dissipasse
qualquer agressão que tivesse surgido. “Tá. Chega. Agora
para.” Eles nunca tiveram uma “palavra de segurança”,
nem tinham sequer discutido essa ideia. Teria feito
diferença? Lembrando-se do vazio nas pupilas de Jamie e da
frouxidão de sua mandíbula enquanto seu ritmo acelerava
em estocadas raivosas até ele desabar, ela não tinha
certeza. Mas o choque no rosto de Jamie quando ela
finalmente conseguiu empurrar o peso morto de cima dela
e, chutando e xingando, ficou de pé parecia tão… genuíno.
— Cacete, eu te machuquei de verdade — Jamie se
lamentara.
Ela havia ficado grata pelas desculpas e pelos pedidos de
perdão que abafaram a dúvida se repetindo na sua mente:
Mas você não parou. Por que você não parou, Jamie, quando
eu pedi?
Nicole nunca, nem para si mesma, tinha usado a palavra
que seu cérebro rejeitou como incorreta — impossível? — à
época. E naquela noite com Alex, ela não precisou usá-la.
Porque na loucura que a tomou depois de ver aquelas fotos
beatificas da vida familiar de Jamie, além de saber sobre
sua última presa no escritório, Nicole tinha passado de
tentar evitar que sua assistente rottweiler enfiasse os
dentes nos calcanhares de Jamie para atiçar a fera a
destruí-lo pedaço por pedaço.
Só que nem por um segundo Nicole tinha imaginado que
se veria de novo com Jamie. As engrenagens que colocou
em movimento… e se fosse tarde demais para pará-las?
CAPÍTULO 20

ALEX

– N em—ouse tirar os sapatos! Pode colocar de volta.


Sério?
Alex estava apoiada na parede da entrada de Maya,
empurrando o calcanhar do tênis direito.
— Lexie — disse Maya, rindo. — Já falamos disso semana
passada. Não somos suíços. Além disso, acabei de
convencer meu marido a comprar um daqueles novos
Dyson Cyclones ou sei lá o nome. Parece um sabre de luz, o
que tenho certeza de que ele no fundo ama, como todos
esses nerds velhos de Star Wars. Agora, vem, vamos
almoçar.
Quando entrou ali na semana anterior, empolgada com o
risco que corria, mesmo que tivesse garantido que seu ex-
chefe estaria no trabalho até tarde, seu primeiro
pensamento foi que as mídias sociais de Jamie não faziam
jus a casa. A casa vitoriana geminada tinha sido
inteligentemente remodelada em uma casa de família
moderna, de plano aberto, com móveis minimalistas e arte
contemporânea ousada cobrindo as paredes. Por dentro,
parecia que valia muito mais do que as 3.250 milhões de
libras que o Zoopla tinha avaliado.
— Nossa, que lindo, Maya. Nem parece que estamos em
Londres, né?
— Você acha? Levamos séculos para deixar a casa do
jeito que queríamos. E agora já estou ficando com coceira
de me mudar para mais longe, mas não muito longe. Talvez
Richmond ou Barnes.
Depois de tirar Elsa do sling vermelho que sempre parecia
carregar pendurado no pescoço para a filha, Maya colocou
as meninas no tapetinho no canto oposto da sala, onde a
cozinha era contígua a uma sala de jantar/varanda com
treliças. Lá, as duas menininhas balbuciavam contentes
enquanto as mães desfrutavam do tipo de tarde de lazer
que Alex tinha começado a achar que nunca mais teria
permissão de ter.
Hoje, em vez de instalá-la à mesa da cozinha, Maya levou
Alex até a varanda que dava para o jardim. Entre as duas
magnólias em cascata em cada extremidade do gramado
ficava um balanço e um escorregador: não do tipo feio e de
plástico que você encontra em parquinhos públicos, mas um
conjunto retrô de madeira pintado à mão que Jamie tinha
suado para montar sozinho.
O sol alto atravessava o vidro e iluminava a ampla mesa
de faia e um cheiro inebriante de orquídeas e madeira seca
preenchiam o cômodo.
— Eu passaria o dia todo aqui se pudesse, mas nessa
época do ano as meninas acham muito quente.
— Nossa, Maya, é incrível. A Christel está na creche?
— Sim. Nossa babá vai buscá-la. O que significa que não
preciso dirigir e que podemos beber uma tacinha de rosé.
— Ótimo.
Alex sorriu. Só que a fantasia que ela vivia desde que
tinha ido na Bumps & Babies naquela manhã havia acabado
de implodir. Porque uma lembrança estava lhe voltando:
uma filipina sorridente deixando Christel com o pai no
escritório ao final do dia, meses atrás. Alex estava muito
grávida na época, e as duas trocaram algumas palavras.
Sobre o quê e se seria o suficiente para ela identificar Alex
hoje, ela não sabia. Mas de repente o risco que estava
correndo, a loucura de estar aqui como “Lexie, mãe de
Chiswick” na casa do seu ex-chefe a atingiu com tanta força
que ela se levantou de repente, atingindo a taça de vinho
com as costas da mão e fazendo-a se espatifar nas lajotas
do piso.
— Ah! Maya, sinto muito. Eu vou… Você tem papel-
toalha?
— Por favor, pode deixar que eu limpo.
Em um instante ela voltou da cozinha com uma vassoura
e uma pá.
— Olha só para mim, te enchendo de vinho quando você
precisa é de comida, certo?
— Sabe, pensando bem, talvez seja melhor a gente deixar
o almoço para outro dia. — A garganta de Alex estava seca
e seu olhar ia de Katie no tapetinho para sua bolsa no sofá,
avaliando como poderia sair depressa sem que parecesse
estranho. — A Christel vai estar em casa a qualquer
momento e você…
Maya ergueu os olhos de onde estava agachada no chão,
quase limpo da bagunça de Alex.
— Elas vão para o parque depois da escola, então só
voltam depois das quatro. Relaxe!
Quando Alex checou o relógio na parede pelo canto do
olho e viu que, ainda bem, não eram nem duas, sentiu o
alívio dominar seu corpo.
— Agora, vou fazer uma saladinha Caesar rapidinho para
nós, tudo bem? Não vou levar dois minutos. — Então, da
cozinha: — Eu também tenho essas quedas de glicose… É a
amamentação. Você não fica exausta?
— Por causa disso e por acordar cinco vezes à noite —
respondeu Alex.
— Acho que os homens nunca vão entender o que esse
nível de cansaço faz com a gente. E ainda assim nós
seguimos em frente. Jamie é um dos homens mais
enérgicos que já vi, mas o sono para ele é sagrado. Não
sobrevive sem dormir. Qualquer coisa menos de oito horas e
o homem fica destruído.
Eu sei — eu me lembro. Era eu que tinha que consertar
todos os erros que ele cometia quando estava com jet lag
ou ficava bebendo até tarde.
— Meu marido é igual — respondeu Alex com uma risada,
mais calma agora.
E era tão bom estar nessa casa branca e arejada com
essa mulher loira e agradável. Sim, Maya era mimada e
vivia em outro mundo, mas as duas pareciam compartilhar
muitas das mesmas preocupações, e havia algo
reconfortante em sua presença física: tudo, desde sua pele
perfeita e simetria escandinava até suas vogais uniformes
que acalmavam os pensamentos incessantes de Alex. Até
Katie parecia mais pacífica na companhia dela. E enquanto
as duas andavam preguiçosamente pela Chiswick High Road
depois da aulinha de bebês, a conversa indo de bobagens
(“esses mamilos do tamanho de um pires que você tem
agora? Não entre em pânico — eles vão voltar ao normal”)
para assuntos sérios (“o isolamento dos primeiros meses:
ninguém fala sobre isso”), Alex se sentia mais feliz e
relaxada do que nos últimos meses.
Mas foi a bondade de Maya que mais a surpreendeu na
mulher que escolheu se casar com Jamie Lawrence. Ela
tinha alguma ideia com que tipo de monstro estava
vivendo?
— Espero que não se importe que eu tenha ligado — ela
sussurrou no início da aula. — Para ser sincera, fiquei um
pouco preocupada com você. Como se você… — Ela parecia
envergonhada. — Não sei… Parecia que você precisava de
uma amiga do peito. Eu sei que eu preciso.
Alex percebeu que Maya havia escolhido a expressão
mais cafona que pôde para tornar a declaração mais leve. O
que era bem gentil. Ela não queria presumir ou dar a
entender que Alex não tinha amigos, mas a frustração que
ambas claramente sentiram em ser profissionais
transformadas em mães em tempo integral não era algo
que muitas admitiam da maneira fácil e imediata como elas
no primeiro dia em que se conheceram. E, por mais
diferente que fosse o estilo de vida delas, isso as unia.
Então, quando Maya sugeriu de novo um almoço em sua
casa, dessa vez Alex não resistiu.
A curiosidade, maldosa no meio de um dia tão
despreocupado, só apareceu quando efetivamente entrou
na casa de Jamie. Porque, até que Alex fosse confrontada
por aquelas fotos de seu ex-chefe nas prateleiras, tinha sido
fácil esquecer que havia qualquer ligação entre ele e aquela
mulher de quem ela relutantemente começava a gostar. E,
ao olhar de uma foto do ex-chefe e Maya rindo no dia do
casamento, cobertos de confete, a uma dos dois usando
suéteres de Natal ironicamente iguais em algum lugar rico e
nevado, Alex foi forçada a suprimir um tremor ao pensar no
que aquele simpático homem de família havia feito com
Nicole.
Maya tinha acabado de servir a salada quando a porta da
frente bateu, assustando as duas.
— Olá! — veio uma vozinha filipina cantarolante do
corredor. — Voltamos mais cedo! Christel não está se
sentindo muito bem.
— Ah, meu amorzinho.
Quando Maya saiu correndo para receber a filha, Alex,
com o sangue latejando nos ouvidos, se forçou a pensar.
Tinha que haver uma maneira de escapar.
— Está com fome, meu amor?
Pegando a filha do tapetinho e torcendo para Maya não se
lembrar que Katie tinha acabado de tomar uma mamadeira,
Alex foi se esconder na varanda fechada e inclinou o corpo
na direção da parede como uma mulher amamentando
faria.
— Pega a mamadeira! — sussurrou ela, baixando a
cabeça em um agradecimento silencioso quando a filha
obedeceu.
Não há distração maior do que o próprio filho, e quando
ela ouviu os murmúrios maternais de Maya no cômodo ao
lado, se sentiu tranquilizada que as duas mulheres estariam
envolvidas demais com Christel para notá-la.
— Ela comeu alguma coisa no caminho para casa? — Alex
ouviu Maya perguntar à babá entre um beijo e outro na
filha.
— Só uns palitinhos de queijo e uvas-passas.
— Você acha que ela ainda está com fome?
— Quer que eu faça alguma coisa pra ela?
Diga que não. Não, obrigada. Pode tirar o resto do dia.
Estamos bem. Porque Katie tinha decidido que já estava
bom de fórmula, e suas bochechas coravam lentamente
pelo calor abafado da varanda fechada. A qualquer minuto
ela começaria a gritar e alertaria a babá da presença das
duas.
Alex ainda estava bolando uma estratégia de fuga quando
ouviu Maya dizer à babá que não, elas estavam bem. E por
que não tirava o resto do dia de folga? Fechando os olhos,
Alex soltou um longo e controlado suspiro: alguém lá em
cima estava cuidando dela.
Quando voltou a abri-los, uma mulher pequena de
cabelos bem-arrumados estava parada na porta da varanda,
com um copo de água gelada.
— Achei que você ia querer isso. Está tão quente aqui!
Seu sorriso era tão largo e direto quanto naquele dia no
escritório, mas quando Alex pegou o copo, os olhos da babá
foram de Katie para o rosto de Alex, onde se demoraram, o
questionamento implícito.
— Obrigada. Eu sou a… Lexie.
— Maria.
Mas ela não se moveu.
— Estou derretendo — balbuciou Alex para a musselina
de Katie, com receio de erguer o rosto. — Mas já vou
terminar o mamá dela.
A mulher franziu a testa.
— Você e… o sr. Lawrence?
Era parte afirmação, parte pergunta, e antes que Alex
conseguisse pensar em uma resposta, a cabeça de Maya
apareceu na porta e ela riu.
— Não, essa é minha amiga Lexie. Da Bumps & Babies. A
Katie é só um mês mais velha que a Elsa.
Alex ficou tensa ao ver aquele fato agitar a consciência de
Maria de novo. Elas teriam feito um comentário sobre as
datas de parto no escritório; na verdade, ela se lembrava de
comentar exatamente isso.
— Pode ir. — Maya estava salvando a pele dela e nem
sabia. — Christel pode ver um pouquinho de TV, né, querida?
Descansa enquanto a mamãe e a Lexie terminam de
almoçar. Katie e Elsa devem estar prontas para a soneca.
E realmente Katie parecia a ponto de apagar no calor, e
depois de balançar a cabeça de forma quase imperceptível
— será que ela se lembraria? — Maria desistiu e se despediu
com um aceno.
— Eu sei que estamos no meio da semana, e juro que não
sou alcoólatra... — Maya estava tirando os pratos e mordeu
o lábio — … mas será que podemos tomar mais uma taça?
A não ser que você tenha que ir?
E Alex riu, em parte porque, depois do que tinha acabado
de acontecer, não havia nada que ela quisesse mais, e em
parte pela ideia de ter que estar em algum lugar. Graças ao
desgraçado do seu marido, Alex pensou enquanto elas
brindavam, ela não tinha absolutamente nenhum lugar
onde estar.
Na segunda taça, ela já estava tomada pela mesma
sensação irracional de bem-estar que sentiu naquela casa
na semana anterior. Maya a achava engraçada, ou pelo
menos parecia achar — jogando a cabeça para trás e
gargalhando com algumas das histórias sobre Kieran (Alex
ficou orgulhosa de ter pensado no nome do seu marido
ficcional tão rápido). E quando brindaram com mais uma
taça, Alex se surpreendeu ao contar uma anedota sobre os
pais.
— Meu pai não gosta que minha mãe beba. Ele não gosta
que ela faça quase nada, na verdade. Ele é… — ela
procurou a palavra correta e se contentou com um
eufemismo — … controlador. Eu me lembro que uma vez ele
deixou minha mãe entrar num clube do livro. E ela ficou tão
animada pela companhia daquelas mulheres, pela sensação
de liberdade, acho, que voltou do primeiro encontro meio
altinha. E foi isso. — Alex balançou a cabeça. — Ele nunca
mais deixou ela voltar. Chamou minha mãe de “uma
vergonha”.
— Lexie, que horror.
— Não é? — Ela nunca tinha contado essas coisas para
ninguém. — O casamento deles, eu nunca aguentaria.
Graças a Deus eu achei um homem como Kieran, né?
— Mas é difícil, né? — Maya disse, os olhos escurecidos
em um verde-musgo por causa do vinho. — Quer dizer, no
início eles te veneram, mas aos poucos você consegue
sentir que está ficando, sei lá, irritante, em mil pequenas
maneiras. E não tem nada que você possa fazer.
— Eu acho que Jamie ainda te venera. Quero dizer, pelo
jeito que você fala! E deveria mesmo! Além disso, você não
se irrita com ele às vezes?
— Ah, com certeza. Mas eu tenho sorte. Casei com um
homem bom. — Maya pousou a mão no peito. — Então se
alguma coisa realmente me incomoda, eu falo com ele, nós
conversamos, e quase sempre ele entende meu ponto de
vista e para de fazer aquilo. Como o negócio de fumar
escondido que te contei semana passada. Depois que o
confrontei e falei como eu ficava chateada, ele jurou nunca
mais fazer isso, e sei que é verdade. É do segredo que eu
não gosto, sabe?
— Parece que ele te respeita muito. — Alex abriu um
sorriso, mas por dentro era só ironia. Aham, Jamie
respeitava tanto a mulher que mantinha um maço de
Marlboro Light na gaveta do escritório. Ele a respeitava
tanto que estuprava colegas de trabalho.
— No final, respeito é o que mais importa — disse Maya.
— O resto… — ela baixou a voz até um sussurro abafado —
… a intimidade. Bom, eu sei que importa, mas quando
vocês já estão há alguns anos juntos… — Os olhos dela
foram de Alex para sua taça de vinho, como se estivesse
tentando pesar se o que queria dizer seria excessivo, cedo
demais. — E é mais difícil ficar no clima com um recém-
nascido, sabe. Eu me lembro disso com Christel. Mas agora,
com duas bebês, e eu um pouco mais velha…
— Maya, você parece que tem vinte anos!
— Bem que eu queria! — Ela riu. — Vou fazer 36 na
semana que vem. Seja como for, estou demorando mais
para voltar… sabe… ao clima agora.
Alex estava gostando disso. Uma ideia de como ela
poderia usar essas confidências já se formava na sua
mente.
— Não deve ser fácil para os homens — cutucou ela.
— Com certeza. — O tom de Maya ficou mais sério. — Mas
acho que, considerando o que passamos, eles poderiam ser
um pouco mais…
— Sensíveis?
— Sim!
— Porque qualquer pressão só vai piorar as coisas.
— Exatamente! — Maya parecia aliviada. — Jamie sempre
foi bem insaciável nessa parte, o que eu adorava, mas
agora… Para ser sincera, a gente já discutiu algumas vezes
por causa disso.
— Tenho certeza de que a maioria dos casais já teve esse
tipo de briga. Tenho sorte que Kieran entende meu lado. —
Alex estava começando a gostar bastante desse marido de
fantasia. — E não sei Jamie, mas você tem todo direito de
ficar irritada se ele está sendo insensível.
— Você tem razão.
— Maya, posso usar o toalete?
Alex subiu, como indicado, para usar o banheiro no andar
de cima — “É melhor para as visitas” — e deu uma olhada
rápida no armário atrás do espelho. Não havia nada ali além
de uma vela Diptyque e o porta-comprimido colorido de
vitaminas que Alex reconheceu do post de Maya no
Instagram. Estava prestes a sair quando avistou algo
metálico no peitoril da janela. A aliança de Jamie.
Enquanto ouvia Maya tentando acordar Christel com
gentileza da soneca lá embaixo, Alex guardou a joia no
bolso e seguiu para o próximo andar, parando só para
colocar o maço aberto de Marlboro Light que trouxera
consigo debaixo de uma toalha no armário do corredor —
onde seria facilmente encontrado —, antes de dar uma
olhada no quarto de Jamie e Maya. Era perigoso, ela sabia,
mas Alex queria ver onde ele dormia.
Grande, com poucos móveis e as paredes azuis, o quarto
deles dava para o jardim com uma enorme janela saliente
dupla. Alex olhou para fora por um momento, tentando
imaginar como Jamie se sentia quando abria as cortinas
pela manhã, com Maya deitada vestindo uma camisola de
seda como a que estava espreitando sob o travesseiro,
preguiçosamente planejando o que comeriam no café da
manhã.
Será que ele olhava daquela bela, gentil e inteligente
mulher que claramente o adorava para a vista de seu
castelo e se perguntava quanto tempo… quanto tempo
tinha até ser pego? Será que estava ao menos ciente de
que era uma fraude que não merecia tudo aquilo? A
resposta para ambas as perguntas tinha que ser não.
Ninguém que fosse grato pelo que tinha se arriscaria como
Jamie vinha fazendo há anos — na vida profissional e
pessoal. Alex não era burra: entendia que a graça estava no
perigo, como acontecia com parlamentares e suas
assessoras, presidentes e suas estagiárias. Era a mesma
provocação machista do parquinho: “Você não me pega.” Só
que Jamie estava prestes a ser pego em todos os sentidos.
Talvez aí ele seria grato por tudo o que havia perdido.
Suas tardes com Maya estavam rendendo muito assunto.
Mas, embora toda aquela informação privilegiada a tivesse
animado na primeira vez em que esteve naquela casa, e
mudar o horário da entrevista da Greenleaf tivesse rendido
a mesma onda de poder que mudar o local da reunião, a
derradeira, com os irmãos O’Ceallaigh no calendário virtual
de Jamie, seu relacionamento com a esposa dele logo
assumiu uma forma inesperada: a de uma amizade genuína.
Havia algo completamente direto em Maya, pensou Alex, ao
voltar para casa com Katie naquela tarde, parando por um
segundo para jogar a fina aliança de ouro escondida no
bolso em uma caçamba de lixo. E a ironia de Maya ser
casada com um homem que não parecia ser capaz de abrir
a boca sem mentir era bem clara para ela.
Alex estava se perguntando se sua sede de vingança
estaria perto de ser saciada quando se conectou à intranet
da BWL e viu a troca de e-mails entre Jamie e Jill sobre Spiro
acontecendo em tempo real. Se a pergunta de Jill sobre
como Jamie “conseguiu fechar” um negócio aparentemente
morto — apenas para ser de repente fechado a uma
velocidade vertiginosa — não tivesse sido o suficiente para
despertar suas suspeitas, o uso excessivo de emojis teria
feito isso. Como seu sorriso extralargo, isso sempre era um
sinal de desonestidade de Jamie, e Alex não tinha sido
capaz de resistir a jogar a merda da historinha com Spiro no
ventilador, o coração acelerando enquanto os dedos
deslizavam pelo teclado, como se alimentados por alguma
força externa.
Como tinha sido fácil ler os e-mails até encontrar uma
mensagem que encorajava o escorregadio incorporador
grego a resolver as coisas por conta própria. Se Jamie tinha
se envolvido mais do que isso, Alex nunca saberia, mas uma
rápida ligação anônima para o Telegraph logo fez com que
alguém com habilidades investigativas superiores desse
uma olhada no caso. E embora o artigo subsequente fosse
mais problemático para Spiro do que para Jamie, o impacto
que isso teria na reputação de BWL sem dúvida não seria
ignorado por Jill ou Paul. Dada a aparente grande
probabilidade de que o suave empurrãozinho de Alex fizesse
o mundo de Jamie virar de pernas para o ar sozinho, talvez
tudo o que restasse a ela fosse assistir de camarote.
No entanto, enquanto esperava que a caixa de entrada
dele abrisse naquela noite, ela experimentou a habitual e
não totalmente desagradável agitação no estômago. Será
que ele tinha de alguma forma descoberto o que ela estava
fazendo e então havia mudado a senha? Mas ela entrou,
rolando de uma mensagem para a outra até ter um
panorama completo do dia de Jamie Lawrence, com todas
as tensões e micro-humilhações que ele merecia.
Só uma coisa a abalou: impaciente demais para ler os e-
mails em ordem cronológica, Alex clicou em uma
mensagem enviada no final da tarde em que Jamie
combinava de se encontrar com um amigo para uma
cerveja “comemorativa” naquela noite. Em resposta ao “O
que estamos comemorando, cara?”, Jamie respondeu:
“Tinha algo tirando meu sono que parece que vai ser
resolvido. Falo mais depois.”
Passando os olhos pelas caixas de entrada e saída e a
lixeira de Jamie, e ignorando os extratos bancários, recibos
de compras on-line e nomes femininos desconhecidos que
ela normalmente teria aberto, Alex se sentia enjoada. Ela
ainda conseguia distinguir o cheiro do talco Johnson,
embora tivesse certeza de já ter lavado as mãos, mas ainda
assim aquele fedor floral doentio a seguia por toda parte.
Precisaria lavá-las de novo com algo mais forte, mas nada
parecia funcionar. Até mesmo o perfume que havia usado
um dia desses só conseguiu reforçar o cheiro enjoativo de
alguma forma. Ela se perguntou se algum tipo de
detergente para louças seria forte o suficiente para resolver
aquilo. Mas primeiro precisava se certificar de que Jamie
não tinha, sabe-se lá como, conseguido se livrar de outra
armadilha.
Surgiu um breve e-mail de Paul: Fiz o que pude, amigo.
Ela sabe que todos os sócios precisam concordar com uma
revisão, e não sei se ela está com energia para tentar me
convencer agora, então vamos torcer para que ela deixe o
assunto Spiro para lá. É claro que acredito que você não
teve nada a ver com aquilo — o cara sempre foi esquisito
para cacete. E o fato de você ter Ainsley mordiscando
Minerva vai ajudar, com certeza.
Alex franziu a testa. Paul devia estar se referindo a Harry
Ainsley, o magnata que virou estrela de TV, o que era uma
vitória para Jamie — e um golpe para ela.
Obs.: Vá devagar com Jill? Ela passou pelo pão que o
diabo amassou. Mas talvez você esteja certo sobre a outra
questão.
É bom ver que a rede dos garotos estava firme e forte. E
Alex estava disposta a apostar que a “outra coisa” era o
suposto ciúme profissional de Jill. Porque isso é o que as
mulheres eram, certo? Ciumentas e mesquinhas.
Ela achou uma troca de e-mails subsequentes de Jill: Paul
acha que podemos resolver isso sem uma revisão formal. E
se todos concordarmos e você conseguir colocar suas
contas em ordem para Alan a tempo, talvez seja mais fácil.
Espero que compreenda que nada disso foi pessoal — ao
contrário do seu e-mail de 8 de janeiro, ao qual Jamie
respondeu: Acho que nós dois sabemos que isso é mentira.
O fato de que você nem se preocupou em me perguntar se
escrevi aquilo para começo de conversa (coisa que não fiz)
prova que você já tinha um problema comigo antes disso. E
isso parece pessoal.
— Não acredita nas ladainhas dele — resmungou Alex
consigo mesma.
Mas Jill não respondeu, e os olhos de Alex acabaram indo
para o nome de Hayden, que apareceu duas vezes em
rápida sucessão na caixa de entrada de Jamie, às 11h02 e
11h14.
Em um ato de desespero devido a uma conversa com a
mãe — “Não quero incomodar, mas o dinheiro… você vai
devolver a tempo, né?” — naquela manhã, Alex finalmente
tinha decidido ligar para Hayden antes de sair de casa para
encontrar Maya na Bumps & Babies. Ele reagiu como
esperado — com um ríspido “Não! O que aconteceu com
‘me deixar fora disso’?” —, fazendo-a se odiar ainda mais. E
ela sabia, antes mesmo de clicar neles, que os e-mails
seriam sobre ela.
Acabei de falar com a “desequilibrada”. Quer dinheiro (de
jeito nenhum, óbvio). Ainda nem acredito que o bebê é
meu, pra começar.
É isso que acontece com uma trepada por pena, amigão,
Jamie tinha respondido.
Alex congelou. Jamie estava usando aquela expressão ou
era algo que Hayden tinha dito numa conversa deles? As
aspas sugeriam a segunda opção.
Pensando na noite em que Katie foi concebida e em como
aqueles fortes braços masculinos ao seu redor pareciam
tudo no momento, Alex se sentiu tonta por outra onda de
raiva.
O cheiro que subia de seus dedos chegou a um nível
insuportável. Alex conseguia visualizar as partículas de talco
sendo sugadas pela sua cavidade nasal e indo para seus
pulmões a cada inspiração. Lá, elas se prendiam a
minúsculos filamentos — esse termo era a resposta a uma
questão do vestibular —, obstruindo a respiração de Alex
até sufocá-la. Quando ela se inclinou na pia do banheiro,
esfregando as mãos até que qualquer indício do cheiro
desaparecesse, a ideia nascida na mesa da cozinha de Maya
se cristalizou em um plano nítido. Alex tinha vários deles
agora, na verdade, graças ao ar puro que podia respirar e à
uma tarde tranquila com Maya. E o primeiro poderia ser
colocado em prática imediatamente.
Alex poderia ter passado uma hora só no site da loja
Agent Provocateur, passando com rapidez de um conjunto
de lingerie que mais parecia uma gaiola chamado “o
Whitney”, cujos “bojos com alças estrategicamente
posicionadas” permitiam “vestir ou despir o mamilo
conforme desejado”, para outro, de cetim roxo, “Clancie”,
com elaborados “efeitos recortados”. O Whitney venceu,
evocando, como afirmava, “uma sensação de
aprisionamento”, o que era perfeito. Depois de digitar o
número do cartão Amex de Jamie, fornecido para ocasiões
como essa, para compra de presentes, Alex acrescentou um
recado: “Mal posso esperar para te ver nisso. Bjs.”
Maya merecia coisa melhor do que um homem que fazia
o que Jamie fez com Nicole; um homem que falava sobre
mulheres como ele fazia tão casualmente em seus e-mails
para Hayden, e Alex ia se certificar de que ela soubesse
disso. Depois que Maya descobrisse o que seu marido
estava aprontando, ela nunca se arrependeria de tê-lo
expulsado de sua vida. E talvez fosse ser difícil por um
tempo, mas Alex estaria lá para ajudá-la.
CAPÍTULO 21

JILL

– J ill!Ela estava passando pela catraca e prestes a entrar


no elevador quando o grito da recepcionista a forçou a
voltar.
Jill gostava de Lydia, mas quando aquela menina te
segurava, era impossível saber quando você conseguiria
escapar.
— Estou com um pouco de pressa.
— Desculpe! Só queria te dar isso. — Lydia entregou a Jill
um envelopinho branco com seu nome escrito. — Alguém
deixou na minha mesa mais cedo.
Foi só depois de ter retornado as ligações que perdera
naquela manhã e de começar a comer a salada grega
comprada por Kellie para o seu almoço que ela se lembrou
do envelope. Quando abriu e tirou a folha A4 que havia lá
dentro, Jill parou de mastigar e cuspiu um caroço de
azeitona na mão. Parecia um print de uma carta formal
enviada por Jamie dois dias antes — e um dia depois que ela
pedira uma revisão formal do seu envolvimento com a
questão Spiro — para os membros do conselho da BWL. Jill a
leu duas vezes para ter certeza, mas lá estava, preto no
branco: a carta sugeria que Jill fosse forçada a se aposentar.
 
Como cofundadora da bwl, a sra. Barnes é responsável por criar uma das
empresas mais poderosas e importantes no histórico do ramo imobiliário do
país. Além disso, como sócia, ela foi parte fundamental da companhia por mais
de vinte anos e nos ajudou a atravessar tempestades ocasionais. Não é preciso
dizer que seu conhecimento de mercado e sua capacidade de gerenciamento
sejam inigualáveis, e eu me sinto honrado por ter podido trabalhar abaixo e ao
lado de uma profissional desse calibre ao longo de tantos anos.
Infelizmente, porém, sinto que as complexas questões pessoais que ela está
sendo forçada a enfrentar em casa, por mais trágicas que sejam, impactaram
suas habilidades, assim como minha confiança de que ela seja capaz de liderar
a bwl ao seu próximo passo. Os mercados estão mudando e com eles
compradores e incorporadores — compradores e incorporadores que mais de
uma vez declararam preferir trabalhar com alguém mais afinado com a
perspectiva moderna.
Por mais que me entristeça ter que apontar isso a este estimado conselho,
minha principal responsabilidade está e sempre estará com a bwl, e é com o
coração pesado e o interesse da companhia em mente que escrevo esta carta.
Embora Paul Wilkinson tenha deixado claro para mim que não compartilha da
minha visão sobre a sra. Barnes no momento, estou convencido de que isso vai
mudar em breve, e respeitosamente peço por um momento de seu tempo para
discutir essa situação delicada pessoalmente.
Com os melhores cumprimentos,
 
Jamie Lawrence
 
Talvez fossem os eventos das últimas semanas,
culminando naquele e-mail anônimo e na relutante
aceitação de que era possível passar 12 anos ao lado de
alguém sem nunca conhecer a pessoa de verdade. Ou
talvez fosse simplesmente porque, com tudo o que ela e
Stan estavam passando, Jill estivesse se tornando imune a
surpresas desagradáveis. Fosse qual fosse o motivo, tudo o
que ela sentiu naquele momento foi um cansaço que ia até
os ossos.
— Jill? — Kellie enfiou a cabeça na sala, mas Jill não tirou
os olhos da carta.
— Hum?
— A reunião? Com Harry Ainsley? Está começando agora.
— Ah, caramba. Claro que sim.
Pegando o arquivo do Minerva e a velha agenda pela qual
Jamie e Paul sempre zombavam dela, Jill atravessou o
escritório a passos rápidos, na velocidade exata para não
chamar a atenção, até a sala de conferência.
— Harry! Que bom te ver.
O astro da TV, pequeno e barbado, se inclinou para a
frente, permitindo que ela o beijasse na bochecha e, com
um pequeno suspiro interno, Jill observou a testa sempre
franzida e o chamativo terno de três peças que se tornara
sua marca registrada. Desde que seu programa Gazumped!
se tornou um sucesso, Harry passou a acreditar no próprio
hype, e naquele dia ela não estava a fim de lidar com a
performance grosseira de que o público dele tanto gostava.
— Vamos nos sentar? — perguntou ela a Harry e seus
acompanhantes, garotos do East End melhorados, todos
com 1,65 m, todos em ternos igualmente chamativos,
ignorando Jamie, que estava de pé ao lado da janela com
uma expressão de paciência infinita.
— Claro. Estávamos só esperando você.
— Bom, aqui estou. — Jill mal aguentava olhar para ele,
ainda com dificuldade para engolir a carta que tinha
acabado de ler, e sem dúvida não se desculparia por um
atraso de três minutos. — Então, Harry, eu sei que você já
recebeu as informações sobre o Minerva e já sabe que a JLL
fez uma venda para Westfield do outro lado do rio, caso
tenha alguma ideia de fazer algo semelhante com o local. —
Ela se certificou de encarar Jamie. — E acredito que temos
algumas imagens aqui que podem ajudar a dar uma
forcinha para a sua imaginação.
— Minha imaginação está ótima, até onde eu sei —
rosnou Harry. O grupinho explodiu em risadas como tinha
que fazer sempre que Harry dizia algo considerado
“clássico”.
— Claro que está. — As palavras pareciam pesadas na
língua, o sorriso dela falso. — Mas você vai nos deixar
mostrar o que nossa equipe do digital bolou para você, não
vai? Jamie?
Jill encarou as pupilas escuras e dilatadas de Jamie, que
se remexia no assento com movimentos nervosos e ríspidos
de um jeito que ela nunca vira antes, e pareceu impossível
que ele não percebia as perguntas que ela lhe lançava
silenciosamente. Você realmente escreveu aquele e-mail
para o Paul, não foi, Jamie? E a carta… Aquela carta? Todos
esses meses você esteve tentando me arrancar daqui. Por
quê? Porque não tinha mais “confiança nas minhas
habilidades”? Ou porque agora que eu te trouxe até onde
você quis chegar, sou uma lembrança indesejada de onde já
esteve? Você disse que o aconteceu a Stan era “trágico”, o
que é errado. Porque Stan não morreu, não é? E graças a
Deus eu nunca pensei em você como um filho, como meu
marido disse uma vez. Porque para uma mãe você não seria
só uma decepção, seria um desolamento.
— Jamie. — Ela pigarreou. — Quer fazer as honras?
Depois que o vídeo de 22 minutos começou, Harry sendo
guiado cômodo por cômodo de cinco potenciais
construções, Jill respirou fundo e abriu a agenda no colo,
sabendo o que encontraria antes de começar a voltar as
páginas até a primeira semana de janeiro.
E lá estava: J, Ivy — 19h30. Stan tinha sido internado com
retenção urinária aguda dois dias antes. A infecção era tão
grave que Jamie, ao visitá-lo naquela tarde, o encontrou
delirando. Quando Stan confundiu Jill com uma enfermeira,
ela ficou tão agitada que foi forçada a sair do quarto por um
momento para se recompor.
Depois, Jamie insistiu em levá-la para jantar. “Não vou
deixar você ficar naquela sala de espera pentelhando as
enfermeiras por atualizações a noite toda. Você precisa
comer, beber uma taça de vinho e desabafar.”
Ele tinha razão. Na mesa no canto, ela falou e bebeu por
horas. E Jamie a ouviu, falando apenas para dizer a coisa
certa. Ninguém que já tinha visto Jamie falar com uma
multidão acreditaria que ele fosse capaz de tamanha
intimidade, sempre buscando se aprofundar fazendo
perguntas. Talvez essa fosse uma das razões pela qual ele
sempre chamara a atenção das mulheres. Porque se existe
uma coisa que as mulheres amam é que lhe façam
perguntas. “Como você se sentiu naquele momento?” “E
depois?” E embora Jill nunca tivesse considerado a si
mesma muito similar às outras mulheres, ali era
exatamente do que ela precisava. E talvez fosse por isso
que ela não tinha visto nada de estranho no que agora
percebia serem perguntas cuidadosamente feitas sobre a
ideia de se aposentar.
“Stan vai precisar de você mais do que nunca a partir de
agora.” “O que importa é que você esteja ao lado dele
agora, não acha?” E: “Você deu sua vida à BWL, Jill. Vocês
dois. Talvez seja a hora de se concentrar em vocês? Peguem
o Lady J e saiam para viajar, aproveitar a vida.”
Mas a pergunta que realmente sobressaía, meses depois,
que a fazia imaginar se, de verdade, sob todos os pretextos,
Jamie talvez não fosse só um pouco amoral e sim um
daqueles “psicopatas do dia a dia” falado na televisão, foi a
que ele fizera quando a ajudou a entrar no táxi no final da
noite. “Você sabe que sempre vou estar ao seu lado, não
sabe?”
O vídeo continuava passando, e Harry estava com o rosto
apoiado nas mãos, puxando as bochechas para baixo como
um buldogue triste. Mas Jamie estava se contorcendo de
uma forma ligeiramente maníaca enquanto observava algo
ou alguém além do vidro do aquário, o que começava a
atrair olhares dos acompanhantes de Harry. Ao inclinar o
pescoço, Jill percebeu que era Nicole, curvada na mesa do
topógrafo sênior apontando algo no monitor dele. Seu
vestido, um tubinho verde-folha que exibia suas pernas e
cintura definidas, ficou um pouco esticado nos quadris com
o movimento, a curva do quadril claramente delineada sob
o tecido. “Porque, no fim, para Jamie, mulheres são
convenientes ou dispensáveis”, dissera Nicole naquela
noite.
Longe de ser uma bolha de insanidade, aquela conversa
— aquele plano — estava se tornando uma das conversas
mais lúcidas que Jill tivera em anos. E se talvez, enquanto
ela erradicara pensamentos de acerto de contas de sua
mente, Nicole e Alex tinham seguido em frente sem chamar
a atenção?
— Tem alguma chance de isso acabar logo? — O tom
truculento de Harry a tirou de seus devaneios.
— É bem impressionante, né? — Com um sorriso nervoso,
Jamie começou seu discurso de venda, mas não da forma
fluente que lhe era comum. Na verdade, estava bem
confuso. Interrompido por pausas durante as quais ele
passava a língua pelos dentes várias vezes, gaguejando, se
perdendo em pensamentos. Algo estava errado, e Ainsley
percebia. — Sinceramente, dá para construir um
condomínio de luxo inteiro num terreno desse tamanho.
Jamie sempre carregava no sotaque e fingia um costume
com classes sociais mais baixas quando falava com Harry. E
embora isso nunca a tivesse incomodado antes, hoje
parecia significativo. Jamie poderia alterar sua
personalidade para o que fosse necessário no momento. O
que for preciso para fazer a venda — não era isso que ela
sempre dizia a ele? E ele foi bem-sucedido se vendendo
para ela por anos.
— Bom, espero que pelo menos agora você tenha um
panorama geral do que pode estar disponível — comentou
Jill. — E sei que você e Jamie planejaram uma visita ao local.
Vou ficar feliz em participar, se você achar que seria útil?
— Não precisa. — Harry ficou de pé, e Jill nem se
incomodou de forçar a barra dessa vez. — Está tudo
resolvido.
— Bom, prazer em te ver, Harry.
— Sempre um prazer, Jamie. Meu assistente vai entrar em
contato para marcar a visita.
— Ótimo, ótimo. — Lá estava Jamie com aquela língua de
novo. Será que estava… drogado? — E o que vocês acham
daquele jantar? Vamos marcar, hein?
O grupinho de Harry já tinha saído da sala, mas Jamie
parou na porta para essa última pergunta, deliberadamente
impedindo a saída de Jill. Ele queria que ela ouvisse aquilo.
— Marcamos na sexta? A Maya está louca para conhecer
Trish.
Jill tentou se ocupar com o arquivo que segurava; tudo
para esconder a irritação que Jamie sabia que aquela
conversa causaria nela. Ela e Jamie estavam tentando
convencer Harry a sair para um jantar fazia anos. Se ele
conseguisse isso, estaria no caminho certo para limpar a
barra com os membros do conselho.
— Aham. Sabe Deus como você arrumou aquela mulher,
cara — resmungou Harry. — Muita areia para o seu
caminhãozinho mesmo.
— No momento acho que ela concordaria — ela ouviu
Jamie dar uma risadinha ao caminhar devagar com Ainsley,
a mão pousada de forma dominante nas costas do cliente.
E, ela estaria imaginando?, ele falar e gesticular rápido
demais? — Acho que vou dormir no sofá, infelizmente. —
Essa parte Jill não sabia se era para ela ouvir ou não, então
prestou o dobro de atenção. — Na verdade, você vai gostar
dessa, Harry. Eu sempre comprava umas lingeries para ela
naquela loja, Agent sei lá o quê, de aniversário. — Ele
estava rindo como um adolescente. — E não fiz isso esse
ano, por causa do bebê e tal. Mas, sei lá como, a loja fez
uma confusão e chegou um embrulho gigante. — Ele baixou
a voz. — Amigo, estou falando de coisa de bondage, sabe?
Tipo couro, tachas. Óbvio que Maya está furiosa.
Jill não acreditava no que estava ouvindo. Jamie estava de
novo tentando fingir que sua total falta de sensibilidade era
culpa de outra pessoa.
Ela só via as costas de Harry, mas ele era um homem de
família, que adorava a esposa e observava o shabat. Jamie
errou na mão, assim como tinha errado no presente de
aniversário de Maya — e, pela sua cara, já tinha percebido.
Mas agora ele tinha que terminar a história.
— Enfim, foi um erro da loja, acontece, o que foi muito
engraçado…
Jill não conseguiu ouvir mais a conversa dos dois, mas
achou que Harry parecia ainda mais decepcionado que o
normal quando as portas do elevador se fecharam. A última
frase de Jamie, “Vamos marcar esse jantar, hein?”, tinha um
tom de desespero ainda maior.
Todo o episódio não foi apenas estranho, mas
preocupante. A percepção e a intuição de Jamie foram o que
o impulsionaram hierarquia acima, e era como se tudo o
que antes o tornava mais afiado, mais perceptivo e melhor
do que os outros em seu trabalho estivesse se desfazendo
diante de seus olhos. A menos que tenha sido uma ilusão o
tempo todo? Mas não havia tempo para refletir sobre isso.
Depois de pegar a carteira da mesa, Jamie deixou o prédio,
sem dúvida para uma de suas doses de glicose, e isso
significava que ela precisava ser rápida.
— Foi você? — Jill enfiou a carta na cara de Nicole.
— Perdão?
Era a primeira vez que as duas trocavam mais do que
algumas palavras educadas desde a festa de Joyce, e
certamente a primeira vez que Jill vinha até a mesa dela.
— A carta. — Ela baixou a voz. — E o e-mail. Eu sei o que
você e Alex estão tentando fazer, Nicole, e se isso tem a ver
com tudo que falamos naquela… naquela noite, bom, não
precisa: as máscaras já caíram. Mas não sei se essa é a
melhor maneira…
— Jill — interrompeu Nicole. Ela só relanceou o olhar para
a carta e continuou a digitar furiosamente no seu teclado. —
Eu não sei do que você está falando.
— Estou te pedindo para ler isso.
A mulher mais nova ergueu os olhos para ela, e era como
se estivesse pesando algo, embora Jill não conseguisse de
forma alguma decifrar o quê. Por fim, depois de verificar
que ninguém estava olhando, Nicole pegou a carta, engoliu
em seco e leu.
— Isso não… Jill, eu não tenho nada a ver com isso.
Ela assentiu. Estava óbvio.
— E não sei se Jamie escreveu isso ou não.
— Você acha que… — As duas ficaram em silêncio quando
a diretora de marketing passou com um cliente. — Então
você acha — sussurrou Jill — que pode ser Alex, tentando
forçar as coisas? Você teve notícias dela?
Nicole engoliu em seco de novo.
— Não. Acho que deve ser só alguém querendo jogar
merda no ventilador. Juro que não tive nada a ver com isso.
— Apesar do que ele…?
Nicole parecia tão mortificada que Jill se sentiu culpada
por comentar.
— Eu preferia esquecer que a gente falou sobre isso.
— Desculpa.
— Não, não, é só que… Eu tenho uma reunião com um
cliente.
— Claro. Desculpa de novo. Eu só… Não quero que você
pense que eu permitiria que isso acontecesse de novo. Você
me contaria, né? Bom, tudo bem, vou te deixar em paz.
Pegando a carta na mesa de Nicole, Jill viu que havia uma
foto de uma garotinha de cabelos escuros e olhos claros no
colo do pai colada na baia. Ela não sabia nada sobre Nicole,
percebeu. E mesmo assim, pelo que havia sido conversado
naquela noite no bar, havia uma estranha familiaridade
entre elas.
— Sua filha?
Nicole assentiu. Estava desligando o computador e
pegando a bolsa. Com os dois círculos rosados que
apareceram em suas bochechas enquanto elas estavam
conversando e os olhos bem maquiados, Jill nunca tinha
visto Nicole tão bonita.
— Eu preciso mesmo…
— Claro, é melhor você ir.
Jill a observou indo em direção ao elevador, apertando o
botão repetidas vezes enquanto ele não chegava, e levou
um momento para perceber que o que estava sentindo era
decepção. E se tudo o que elas disseram naquela noite
fosse verdade? E se Jamie precisasse mesmo de um
empurrãozinho?
CAPÍTULO 22

NICOLE

M
aldita Jill. Claro que ela tinha que estar bem ali
quando a mensagem apitou: Old Ship às 4?
Mas Nicole não achava que ela tivesse visto;
tinha certeza que não.
Quantas vezes tinha dito a Jamie para não escrever
mensagens no campo do assunto do e-mail? Não mandar e-
mails e ponto-final? Porém, tendo sempre saído impune,
Jamie parecia acreditar que era intocável.
Ela não tinha nenhum problema com Jill. Na verdade,
Nicole sempre gostou muito da fundadora da empresa,
assim como de tudo que ela representava: sem filhos, mas
aparentemente feliz; ambiciosa e realizada pelo trabalho de
uma maneira que as mulheres não deveriam ser ou não era
permitido que fossem. Mas, depois do que ela
precipitadamente contou a ela e — pior ainda — a Alex,
Nicole deu a partida em algo que agora sentia que não
conseguiria parar. E, no entanto, não tinha tido notícias de
Alex desde sua visita tarde da noite. Talvez com o bebê —
mesmo depois do que Nicole lhe dissera —, ela decidira
deixar Jamie em paz?
Enquanto corria pela King Street em direção ao rio,
dividida entre o desejo de fazer Jamie esperar e a
necessidade de descobrir do que aquele encontro se
tratava, Nicole se perguntou se a carta de Jill poderia ser
verdadeira. Se fosse, não era possível que Jamie tivesse
motivos para se preocupar? Afinal, Jill estava com a cabeça
cheia. No entanto, dado o estado preocupante de Alex
quando Nicole a viu naquele apartamento imundo, poderia
muito bem ter sido coisa dela. Mais uma vez, ela sentiu
aquele frio na barriga, o frio que você sente na infância
segundos antes de o vaso ou a janela se espatifar, quando a
bola ainda estava em movimento. Ela que tinha colocado a
bola em movimento, primeiro no pub e depois naquela noite
no apartamento de Alex.
Era o primeiro dia do que os jornais estavam chamando
de “nossa onda de calor de Honolulu”. Atividades esportivas
escolares estavam sendo canceladas e jardineiros eram
encorajados a “amar seus gramados marrons” em uma
tentativa de economizar água. E, embora ainda não tivesse
alcançado os quarenta graus previstos naquele fim de
semana, a ausência de qualquer tipo de vento impunha
uma curiosa estase nas ruas de Hammersmith, como se
toda a vizinhança participasse de um daqueles desafios dos
manequins viralizados alguns anos antes. Do lado de fora
dos cafés vazios e das lojinhas de uma libra, os funcionários
se debruçavam imóveis e silenciosos nos balcões das lojas,
e até mesmo os alunos que esperavam nos pontos de
ônibus pareciam anormalmente abatidos.
Nicole, em comparação, se sentia mais viva do que há
meses, como se todo o seu sistema tivesse pegado no
tranco. Uma velha canção do Oasis que ela havia escutado
em looping durante a faculdade tocava no último volume
em uma loja de celulares e, ao começar o refrão, ela sentiu
a beleza da melodia de novo. Talvez fosse por isso que as
pessoas tinham casos? Aquela sensação da vida
acontecendo de novo, uma injeção de juventude. O que
Nicole percebeu de repente, à medida que o eco de seus
saltos na passagem subterrânea de ladrilhos aumentava e
ela emergia piscando para a luz da margem do rio, era que
não estava pronta para voltar ao torpor.
Passando um dedo sob cada olho, onde seu rímel teria
escorrido nas rugas, ela ajustou sua expressão para parecer
menos ansiosa. Fora do Old Ship, a parte de trás
parcialmente obscurecida da cabeça de um homem acabou
não sendo a de Jamie, e ela tentou em vão se lembrar da
cor da camisa que ele estava usando no escritório mais
cedo.
— Nic!
Lá estava ele, um pouco mais adiante, encostado na
mureta baixa do rio sobre a qual sua cerveja estava
apoiada, o cigarro na mão.
— Você voltou a fumar? — perguntou ela quando os dois
estavam perto o suficiente para se tocar.
— Mais ou menos. Maya encontrou um maço que nem era
meu outro dia, deixado pelo cara do ar-condicionado ou sei
lá quem, e surtou. A ironia é que eu não tocava em um
cigarro há meses, mas se as pessoas vão pensar o pior de
você de qualquer maneira…
Embora seu coração tenha afundado diante da menção
imediata de Maya, Nicole ficou satisfeita. Obviamente ele
estava com problemas em casa, e um Jamie fumante era
um Jamie no mau caminho em todos os sentidos. Só uma
coisa — a ideia de ela ser algo que ele fazia quando estava
se comportando mal, um mau hábito — a irritava.
— Por que estou aqui?
Ela tomou o cigarro da mão dele e deu uma tragada, a
atitude despertando vagas lembranças do exibicionismo da
adolescência: corações perfurados por flechas desenhados
com esferográfica em coxas lisas, gargalhadas altas o
suficiente para os meninos ouvirem. E por baixo de tudo, a
angústia adolescente.
— Esqueci como cigarro de verdade é bom.
— É mesmo? — Jamie chupou a espuma de cerveja do
lábio superior e puxou-a para si.
— Ei. — Protegendo os olhos com a mão, ela examinou os
arredores. — Qualquer um pode nos ver.
— Eu dei uma olhada.
— Ah, é?
— Relaxa.
— Eu vou, assim que você me pagar uma bebida.
— Foda-se a bebida.
— Que encantador.
A centímetros de distância, eles se olharam, e Nicole se
perguntou como seria conhecer aquele rosto, com todas as
sardas, os sulcos e as rugas, como conhecia o de Ben;
aceitar que faria parte de sua vida diária. Vê-lo envelhecer.
— Jamie, por que estou aqui?
— Por quê? Porque não consigo parar de pensar em nós
dois… no teatro. — Nicole sentiu uma contração na parte
inferior do abdômen. Odiava o poder que ele tinha sobre
seu corpo, mesmo quando não havia força, nem mesmo um
contato, apenas palavras. — Porque deve haver um motivo
pelo qual não conseguimos ficar longe um do outro.
Nicole olhou para além dele, para o rio. Uma frota de
remadores passou rapidamente aos comandos do timoneiro.
— Eu costumava pensar assim. Mas agora…
— Agora o quê?
Ela deu de ombros.
— Agora sei que é só um jogo para você. Porque é, não é?
— Não! — Os dedos dele apertaram o tecido verde do seu
vestido, puxando-a para mais perto, entre as pernas dele. E,
quando estava com raiva ou discordava de algo, Jamie
parecia tão jovem. Ela tinha se esquecido disso. — Não é
verdade.
— Mas você ama sua esposa.
Dizer aquilo em voz alta não foi tão doloroso quanto
achava que seria. Na verdade, parecia bastante adulto,
civilizado. Só que ela não deveria tocá-lo enquanto dizia
isso. Não poderia nem olhar para ele. Nicole se moveu para
ficar ao lado dele na parede, de onde contemplou as
profundezas tenebrosas do Tâmisa.
— Eu realmente acho que você ainda ama Maya. E sei
que você ama suas filhas. Sei que ficar longe delas… Bem,
posso imaginar o que isso faria com você. Não é a mesma
coisa para mim, para as mulheres. Eu entendo. Eu poderia
deixar Ben e ainda ficar com Chloe. Ainda acordar com ela
todos os dias e colocá-la na cama todas as noites. — Mesmo
enquanto dizia essas palavras, ela se perguntava como isso
funcionaria, lembrando-se da testa franzida da filha nas
raras ocasiões em que precisou levá-la para longe do pai e
tentando imaginar como seria dizer a ela “não se preocupe,
você vai ver o papai de novo no próximo fim de semana”. —
Eu estive pensando desde… Bem, desde aquela tarde no
Vale Theatre. E achei que tivesse superado você. Pensei
mesmo. Mas voltar ao jeito que éramos… Não posso fazer
isso. Não depois do que aconteceu da última vez. — Ela
balançou a cabeça. — Não é o que eu quero. Não estou
mais com raiva, mas…
— Você sabe que vai completar dois anos — ele se
inclinou e beijou seu pescoço — na próxima quarta-feira.
— Não faça isso! — Ela se virou, com raiva dele e de si
mesma. — Não finja que isso é mais do que um caso. Você e
eu já tivemos casos antes; não precisamos fingir.
— Não, Nic. Eu quero que isto seja outra coisa. Quero dar
uma chance para a gente. Não consigo dormir, não consigo
funcionar direito. É como se minha mente estivesse
zumbindo, zumbindo…
Ela tinha que admitir que havia algo de frenético em seu
comportamento: suas palavras se embolando e…
— Jamie, você está tremendo. Quantos cafés você tomou
hoje?
— Porque dessa vez estou pronto. As coisas lá em casa
simplesmente não estão dando certo comigo e a Maya. Para
ser sincero, sinto que não faço nada direito, é como se ela
estivesse sempre tentando me criticar ou me pegar no
flagra. — Ele puxou outro cigarro do maço. — Eu perdi
minha aliança outro dia. Literalmente desapareceu. E Maya
ficou toda “Eu disse que isso ia acontecer!” e “Talvez isso
esteja nos dizendo algo”. Não tenho tempo para esse tipo
de superstição de merda.
— Então isso é sobre ela? — A boca de Nicole ficou rígida,
o ressentimento a deixando feia por fora e por dentro. —
Sua querida e doce esposa não está prestando atenção o
suficiente em você? Deixe-me perguntar uma coisa, Jamie:
algum dia você terá atenção suficiente?
Pego de surpresa pelo seu tom, ele a olhou.
— Quando você ficou tão amarga?
— Ah, não sei. Em algum momento nos últimos dois anos.
Por alguns instantes, nenhum deles falou.
— Ben quer que eu me demita. Que eu procure outro
emprego.
— O quê?
— Ele percebe que estou infeliz. Não sabe por quê, acha
que é o trabalho, mas talvez ele esteja certo.
— Não. — Jamie balançou a cabeça. — Não. Você está
infeliz por causa dele, não do trabalho ou de mim. E você
pode tentar pedir demissão se quiser, mas eu não vou
deixar. Você não vai ter uma rescisão. Não vou te dar nem
uma carta de referência, e vou garantir que você entre na
lista de restrições de todas as agências imobiliárias de
Londres.
— Jamie…
— Não.
Com firmeza, ele a ergueu contra a parede. E, quando se
colocou entre as pernas dela, Nicole as sentiu envolverem a
cintura dele de uma maneira instintiva, uma maneira a qual
ela sabia ser velha demais, mas não se importou. Eles se
beijaram e foi tão profundo, íntimo e satisfatório quanto
sexo. Ela se ouviu gemer.
— Eu te amo, Nic. E quero ficar com você. Você nunca vai
ser feliz com Ben, não é? Você sabe disso agora. E quanto
mais cedo puder seguir com sua vida… comigo, mais cedo
todos podem começar a se recuperar.
— Olha só você, todo zen.
Jamie não sorriu.
— É verdade.
Uma lágrima deslizou em uma vertical perfeita por baixo
dos óculos de sol dela, e ele a enxugou. Nicole nunca se
permitiu chorar na frente de Jamie antes, e parecia
significativo que agora conseguisse.
— Nic. — Ele empurrou seus óculos até a linha do cabelo
e segurou seu queixo com a mão trêmula.
— Você não está bem, está?
— Não. Olhe para mim. Eu não sei o que está
acontecendo comigo. Nos últimos dias, não consegui me
concentrar em nada. Estou nervoso, não consigo comer e
eu… Nic, não estar com você está me matando. Mas, sim,
dessa vez estou pronto.
— Eu não acredito em você.
— Por causa de antes? Maya estava grávida, pelo amor de
Deus. Você tem que entender que não era a hora certa.
Ela assentiu minimamente com a cabeça.
— Mas preciso saber que você está falando sério sobre
contar a Ben?
Do nada, uma imagem lhe veio à mente: Ben segurando
uma Chloe chorosa em seu ombro no Hyde Park enquanto o
balão de hélio da Patrulha Canina subia cada vez mais alto
no céu. “Pense em todos os outros balões que foram para o
céu dos balões”, ele murmurou. “Então ele não vai ficar
sozinho.” E ao ouvir as palavras “céu dos balões”, as
lágrimas de Chloe apenas se intensificaram.
— Não fui eu quem quebrei minha promessa da última
vez.
— Não. — Ele assentiu com a cabeça. — Mas não me
lembro de você ter prometido nada.
Nicole sabia o que ele estava fazendo: tentando induzi-la
a dividir a responsabilidade pelo que acontecera — ou
deixara de acontecer — da última vez.
— Você realmente está dizendo que não confia em mim
para contar?
— Como posso ter certeza de que você vai fazer isso?
— Jamie…
— Não, quer dizer, como qualquer um de nós pode saber?
— Ele tocou sua cerveja, pensativo. — Mas e se houvesse
uma maneira de nós dois termos certeza? Uma maneira de
contarmos ao mesmo tempo, até mesmo no mesmo lugar…
— Fazer Maya e Ben nos encontrarem num tipo de terapia
em grupo, você quer dizer?
— É uma ideia — brincou ele, passando o polegar pela
parte interna da coxa dela. — Não, quero dizer que nós
podemos levá-los a algum lugar público: um restaurante
lotado. Mas separadamente. Você reserva sua mesa, eu
reservo a minha, e não podemos sair até ambos termos
contado.
Nicole se desvencilhou.
— Você está falando sério?
— Sim. Veja só: estaríamos passando pela mesma coisa
ao mesmo tempo. E, para nos ajudar a ir adiante,
poderíamos marcar de nos encontrarmos em algum lugar
depois, em um hotel ou qualquer lugar.
Nicole o olhou. Era uma ideia maluca, ensandecida. Mas
também podia ser genial. Porque, por mais que todo o seu
ser se encolhesse diante da ideia de contar a Ben e implodir
sua vida com uma única frase, saber que Jamie estaria lá
também, vê-lo passando pelo mesmo inferno — bem,
poderia dar a ela a coragem de que precisava.
— É uma maluquice. E arriscado.
— Como assim? — Ele tomou um longo gole de cerveja, e
não pela primeira vez ela se perguntou se Jamie sentia as
reverberações de suas palavras e ações da mesma forma
que as outras pessoas.
— Bem, e se Maya me reconhecer?
— Vocês nunca se conheceram.
— Nós estivemos no mesmo lugar duas vezes. — A
precisão era humilhante e ela deliberadamente omitiu a
parte seguinte. — Em dois eventos, uma festa de Natal e
outra coisa. E mulheres…
Jamie ergueu uma sobrancelha.
— Ao contrário de vocês, nós reparamos nas coisas, nas
pessoas, no que está abaixo da superfície.
— Tá. Mas não estou sugerindo que a gente marque em
um lugarzinho intimista. Pensei em um restaurante grande e
barulhento como o Angelini’s — disse ele. Angelini’s era
uma enorme brasserie em Green Park com longos bancos, a
queridinha das subcelebridades e dos homens de negócios
do centro. — E nós especificamos onde queremos nos
sentar, então não estaremos em mesas próximas, mas
podemos pelo menos nos ver do outro lado do restaurante.
Deveria ter sido revoltante, mas o lado de Nicole
aventureiro gostou da ideia. Isso daria a ambos uma data da
qual não poderiam escapar e colocaria um fim ao
sofrimento que ela alimentara por tempo demais. Além
disso, nada poderia ser pior do que o status quo.
— E, a partir dessa noite, nós estaríamos livres?
— Exatamente. Não seria incrível?
Debaixo do vestido, a mão de Jamie subiu até o elástico
da calcinha.
— Imagine — ele estava dizendo — quando nós dois
estivermos livres, todas as coisas que poderíamos fazer? A
gente pode viajar nesse verão. Ir aonde você quiser…
Aquele lugar em Antibes que você vive falando. Qualquer
lugar.
— Vamos para Biarritz.
Ele riu.
— Está bem. Por quê?
— Não sei. Sempre quis ir. Pelo surfe?
Ele jogou a cabeça para trás.
— Você surfa?
— Não.
— Eu também não.
Com as testas juntas, eles riram.
— Nós não sabemos muito um sobre o outro, não é?
E o beijo deles então foi diferente: longo, preguiçoso e
cheio de uma contida alegria mútua com a decisão súbita
de mudança de vida.
— Mas pense em como nos divertiremos descobrindo
tudo?
Fechando os olhos por um segundo, Nicole se permitiu um
momento de pura felicidade. O corpo quente e sólido de
Jamie estava entre suas pernas, o couro de seu cinto
pegajoso contra a parte interna de suas coxas e, até que ela
decidisse soltá-lo, ele era dela.
A risada de uma mulher, estridente de álcool, os
alcançou, e Nicole adivinhou sem olhar que aquela mulher
sem rosto estava com um homem, marido ou amante. Atrás
dela, outra frota de remadores passou pela água.
— Remando! Calma!
O choro de um bebê abafou as últimas palavras do
timoneiro. Soara como “com força”, e ela tentou elaborar
uma piada — o tipo de trocadilho bobo de duplo sentido que
ela e Jamie sempre faziam um para o outro —, mas o choro
do bebê agora estava dolorosamente alto, e, quando Nicole
abriu os olhos, irritada pela interrupção e determinada a
buscar a fonte dela, viu uma mulher parada um pouco longe
no puxadinho verde triste perto do pub. A mulher tinha um
bebê amarrado ao peito e estava olhando diretamente para
ela: Alex.
CAPÍTULO 23

ALEX

– S uaAlex
vagabunda mentirosa.
tinha esperado na passagem subterrânea,
sabendo que Nicole viria atrás dela, e quando ouviu seus
passos desesperados descendo a rampa para o acinzentado
frio abaixo da Great West Road, Alex sentiu uma nova onda
de raiva, mais forte do que a primeira. Saindo da parede
recuada de onde estivera esperando, ela cuspiu as palavras
na cara de Nicole.
Por um momento, as duas apenas se encararam, Nicole
com dificuldade para recuperar o fôlego; Alex ciente, sem
realmente se importar, de que um fio de saliva pendurado
em seu lábio inferior ameaçava cair.
— Jamie deixou para você resolver, não é? — Ainda não
havia sinal dele na passagem subterrânea. — Aquele
covarde de merda.
— Ele não te viu, graças a Deus. Alex, o que você está
fazendo aqui?
— Isso é tudo que você tem a dizer?
Quando pegara um Uber para o Old Ship, Alex não tinha
parado para pensar no que faria quando chegasse lá, muito
menos em como se explicaria. Mas depois de entrar no e-
mail de Jamie pela terceira vez naquele dia e descobrir as
trocas de mensagem com Nicole acontecendo em tempo
real, ela precisava descobrir sobre o que era o encontro. Por
que ela havia concordado? E o que Jamie queria dela?
— Como você sabia que íamos… — Então Nicole
entendeu. — Você está lendo os e-mails dele de novo.
— Claro que estou. Eu nunca parei.
Com as bochechas úmidas e toda desgrenhada, uma
mancha rosa circundando a boca onde o batom borrara com
os beijos, Nicole parecia estar lutando contra uma variedade
de emoções. Pelos olhares rápidos para baixo em direção a
seu peito, Alex percebeu que era nauseante que aquela
cena estivesse se desenrolando na frente de Katie,
esquecida por Alex ainda amarrada a ela, e ainda berrando.
— Sua filha…
— Katie. O nome dela é Katie.
— Bem, Katie está surtando. Ela está com fome?
A preocupação no rosto de Nicole só aumentou ainda
mais a raiva de Alex.
— É sério que você vai me dar um sermão sobre como
cuidar da minha filha? Quando você está mentindo para seu
marido, sua filha e para todo mundo!
— Eu não estou dando sermão. Eu só…
A silhueta de um casal contra a boca branca e brilhante
da passagem subterrânea apareceu, sua risada
descontraída morrendo ao assimilar a cena e passar às
pressas em silêncio.
— Você é só uma mentirosa do caralho, é o que você é.
Você mentiu para mim e para Jill. Então você foi falar
comigo, foi até o meu apartamento e me contou mais
mentiras.
Nicole fechou os olhos.
— O quê? Vocês dois… — Só de dizer aquelas palavras já
fez o estômago de Alex revirar. — Não acabou de acontecer,
não é?
— Não.
— Quanto tempo?
Nicole desviou o olhar.
— Quanto tempo?
— Olha, eu não deveria ter dito o que disse naquela noite
no pub. E depois, quando fui ao seu apartamento, estava
com tanta raiva que não conseguia pensar direito. Mas não
era… — Nicole interrompeu-se e tentou outra vez. — Não
era mentira. Jamie e eu, o que fazemos, como somos um
com o outro… É complicado.
— “Complicado?” — Parecia muito simples pelo que Alex
estava vendo. — Você me disse que ele te estuprou.
— Eu nunca falei isso. — Mas Nicole não estava mais
olhando para ela. — Alex!
Alex seguiu a direção dos olhos de Nicole até a filha, que
estava ameaçando vomitar, a boca em um O agoniado, e
lhe pareceu estranho que não tivesse ouvido Katie até
Nicole apontá-la, desde que se viu paralisada naquele
puxadinho verde surrado perto do rio, imobilizada pela visão
de Jamie e Nicole se agarrando na parede como
adolescentes.
Alex não sabia quanto tempo tinha ficado parada ali, mas
foi o suficiente para absorver a sensualidade selvagem da
risada de Nicole e a familiaridade dos quadris de Jamie
entre suas pernas. Aqueles dois corpos se conheciam bem.
E que Nicole tivesse mentido sobre o assédio e tê-la feito
acreditar em algo ainda pior, que ela pudesse ter se
sentado no sofá de Alex — “Eu disse não; eu pedi para ele
parar” — quando o tempo todo o relacionamento tinha sido
consensual? Não era apenas uma traição; era algo que Alex
não podia, não iria aceitar. Tinham ido longe demais.
— Você tem leite?
— O quê? — Remexendo na bolsa, Alex encontrou uma
mamadeira e a colocou na boca da filha. — Como você
chamaria, então? O que você e Jamie “fazem”?
— Nós… — A voz de Nicole ficou tão baixa que era quase
inaudível. — Nós fazemos joguinhos. Sempre fizemos. Às
vezes as coisas ficam violentas. Uma vez… uma vez… eu
pedi para ele parar, e ele não entendeu, não ouviu ou
pensou que eu estava…
— Você gosta de joguinhos ou ele gosta? — Agora estava
começando a fazer sentido. — Porque às vezes as coisas
podem começar como um jogo, só que, quando você quer
parar, a outra pessoa não deixa.
— Não.
— E se essa pessoa tem todo o poder, se essa pessoa é
seu chefe, então ainda é abuso. Se essa pessoa não para
quando você diz “não”, seja ela seu chefe, seu namorado ou
até mesmo seu marido, ainda é estupro.
— Não, você entendeu errado.
Todo o arrependimento havia sumido do rosto de Nicole,
deixando apenas uma impaciência mal disfarçada. Mas Alex
insistiu mesmo assim:
— Acho que você me contou o que aconteceu naquela
noite porque sabia que o que havia acontecido entre vocês
não estava certo. Mas talvez ele tenha feito você achar que
era. Ou talvez você simplesmente morra de medo do Jamie.
Nicole balançava a cabeça, murmurando coisas que Alex
não conseguia mais entender.
— Por que você não consegue ver o que ele está fazendo
com você?
Ajeitando o cabelo para trás, Nicole suspirou.
— Porque estou apaixonada por ele.
Alex olhou para ela e para aquela boca borrada idiota.
Então riu.
— O que quer que seja… E, aliás, um terapeuta deve ter
um termo para isso… Você não está apaixonada por Jamie.
— Não sei quais experiências negativas você teve, Alex, e
talvez essa conversa seja sobre isso, mas eu e Jamie… Não
é o que você está pensando. Você tem que entender como
eu estava me sentindo quando contei aquilo. Se eu tivesse
ideia que a gente voltaria a ficar junto…
— “Voltaria a ficar junto”? — Alex repetiu com uma voz
enojada de adolescente.
— Estou tentando explicar. Achei que teria uma
oportunidade antes de você…
— Descobrir que você era uma vagabunda mentirosa que
estava dormindo com o cara que deveríamos derrubar?
Nicole franziu a testa, mas não por causa do insulto.
— O que aconteceu com sua mão?
Alex olhou para sua mão direita, em carne viva depois de
tanto esfregar, e ainda assim fedendo a talco infantil.
— Eczema. Às vezes aparece. Continue.
— Eu estava tão magoada. Ele tinha feito promessas em
Frankfurt. Decidimos tentar fazer dar certo.
— Vocês dois estavam juntos em…? — Alex gemeu. — É
claro. Para que mais servem conferências senão para
transar com seu chefe? Você percebe o quanto isso é clichê,
o quanto você é clichê?
— Claro que vai parecer isso para você. — Nicole deu de
ombros. — Mas as pessoas nem sempre acertam de
primeira. E você não pode culpar um lado ou outro por isso.
Você não é casada, não consegue entender.
— Acho que entendo. — Alex pensou na mãe, cujo cada
passo era ditado pelo marido. E ela pensou em Hayden.
Nicole estava errada: era sempre claro de quem era a culpa.
— Tá. — Nicole então se endireitou, desafiadora após o
choque inicial de ser descoberta. — Bem, sem ofensa, mas
a essa altura eu não me importo com o que os outros vão
achar.
— O.k. Então, me deixa perguntar só mais uma coisa: o
que mudou? Em relação a antes, quero dizer. Quando queria
derrubar Jamie, quando me disse que ele te estuprou…
— Você precisa parar de dizer isso.
— Quando você me disse que ele te estuprou, Nicole —
repetiu Alex, mais alto.
— Você não está ouvindo! Ele ia se separar da Maya antes
do Natal, e achei que ele estava falando sério. — Alex
bufou. — Mas ela estava grávida de Elsa e depois do parto…
Bem, ele não conseguia suportar a ideia de deixar a filha
tão pequena.
— Ah, Jamie é mesmo o pai do ano.
— Não estou pedindo para você acreditar em mim, só
estou tentando explicar por que fiz o que fiz, que não era
um joguinho. Eu realmente o odiava tanto quanto você. E
achava mesmo que tudo estava acabado. Por que eu teria
concordado com o que planejamos se não fosse isso? Mas,
então, na semana passada, Jamie e eu…
— Ah, me poupe dos detalhes.
Alex começou a balançar Katie, que exalava calor de sua
fralda.
— Tudo bem — Nicole tentou sorrir. — Mas, enfim, nós nos
resolvemos. Agora há pouco. E ele está um caco, Alex. É por
isso que sei que dessa vez vai ser diferente. Eu nunca o vi
assim. Ele diz que não tem conseguido comer…
— Ah, é? Está com dificuldade para dormir também, não
é?
— Sim. Sim, ele está. Ele está um caos.
Por mais furiosa que estivesse, Alex não pôde deixar de
sorrir. Depois de todos aqueles meses administrando o
pequeno e lucrativo negócio na esquina de sua rua e
acordando Katie com a maldita scooter, o traficante se
provou útil. Nicole também havia desempenhado um papel
involuntariamente. Pode ser que ele nunca tenha tido um
cliente com um bebê amarrado ao peito antes, mas, quando
ela pediu Ritalina — “a dose mais alta que você tiver” —, o
homem não expressou surpresa nem julgamento,
procurando em sua bolsa Fila e contando 14 comprimidos
brancos parecidos com analgésicos. Ela os tinha enfiado na
caixa de vitaminas de “dias da semana” de Jamie na visita
seguinte à casa de Maya. Ele ia ver como era ficar acordado
a noite toda, todas as noites, com o coração e a mente
acelerados.
— Enfim — estava dizendo Nicole, e sua calma fez Alex
querer gritar: Não é o amor deixando o seu homem perdido,
meu bem, é uma dose colossal de estimulantes! — Não é da
sua conta. Vamos tentar fazer tudo certo dessa vez.
Alex deu um passo para trás.
— Você quer dizer que vão contar ao seu marido e a
Maya?
Um lampejo de algo. Preocupação? Suspeita? A referência
à esposa de Jamie tinha sido muito casual, familiar.
— Você não… Você não entrou em contato com Maya,
entrou?
— Vou deixar isso por sua conta. E que conversa divertida
será, quer dizer, se isso realmente acontecer.
— Vai acontecer.
— Quando?
— Em breve. — Nicole olhou para a luz que entrava pelo
final da passagem subterrânea, claramente desesperada
para fugir. — Lamento por tudo o que você está passando,
assim como lamento ter escondido coisas de você. Mas,
como falei, não é mais da sua conta. — Nicole engoliu em
seco. — Sei que você está tentando atiçar Jill de novo, Alex.
Eu sei sobre os e-mails e as cartas.
— Oi?
— Não começa. Eu sei que é você, tudo aquilo. E isso foi
longe demais. Jamie tem seus defeitos, mas não escreveria
aquele tipo de coisa sem um bom motivo.
— “Bom motivo”? Não estou acreditando!
— Talvez ele acredite sinceramente que seria melhor
tanto para a empresa como para Jill se ela se distanciasse…
— E eu? Não houve nada de “sincero” na minha
demissão, não é?
Nicole a examinava de uma maneira que ela não gostou.
Nem um pouco.
— Você já pensou que pode ter um motivo válido? Porque,
por mais duro que pareça, pela maneira como você tem se
comportado, também não sei se me sentiria confortável
tendo você por perto. Essa sua obsessão…
— Obsessão?
— Você não consegue ver no que isso se tornou? Mas
nada do que você fizer vai mudar alguma coisa. — Então,
mais suavidade: — É em Katie que você deveria se
concentrar agora, não no seu ex-chefe, em mim ou em nada
disso.
Nenhuma ideia. Nicole não tinha a menor ideia.
— Ei, eu não era só boa no meu trabalho, era a melhor.
Pergunte a qualquer um. E Jamie tirou isso de mim para
salvar a própria pele. Ele…
Mas, de repente, Alex desistiu. Ela estava cansada e com
sede — com tanta sede. E, agora que o choque do caso de
Nicole e Jamie estava passando, Alex começou a olhá-lo sob
uma nova luz. Jamie não teria coragem de terminar esse
casamento, mas Maya talvez tivesse. E ela precisaria de um
ombro amigo quando isso acontecesse. Alex poderia ser
esse ombro amigo, poderia ajudar a juntar os cacos, se
tornaria indispensável.
Sem nem ao menos um último olhar para Nicole, Alex
começou a se afastar.
— Tenho que levar Katie para casa para a soneca.
— Ei! — Nicole correu atrás dela. — Você não vai fazer
nenhuma burrice, vai? Alex? Sei que Jamie cometeu erros,
se comportou mal, mas eu também. Você também! É hora
de deixarmos tudo isso no passado.
Emergindo, piscando, sob a vastidão luminosa da Great
West Road, Alex se virou para Nicole uma última vez:
— Sua burra. — O sol destacou fios brancos, um de cada
lado do cabelo repartido de Nicole, e Alex quase sentiu pena
dela. — Esses e-mails que tenho lido? Já li meses, anos
atrás, de antes mesmo de trabalhar para Jamie. É a primeira
coisa que leio quando acordo e a última depois da mamada
de Katie na hora de dormir. É por isso que sei que na sexta-
feira passada ele e Maya fizeram um depósito para uma
casa de cinco quartos em Barnes. É georgiana. Maya
sempre gostou desse estilo. E eles precisavam de mais
espaço, sabe, caso ela ceda e tenha um terceiro filho, como
Jamie já está implorando que ela tenha.
Conforme o tráfego passava zunindo por elas em ondas
sonoras, Alex percebeu que não era apenas uma expressão:
a cor pode realmente sumir do rosto de uma pessoa, sugada
pelo choque.
— Há uma garagem dupla e “armários nos beirais”, seja
lá o que for isso. Mas foi o pátio interno que conquistou
Maya.
— Você diria qualquer coisa, não é? Bem, eu não acredito
em você. — Envolvendo a alça de sua bolsa, os nós dos
dedos de Nicole estavam brancos.
— Pois deveria.
— Essa conversa acabou.
Nicole começou a se afastar, mas Alex não aceitou. Em
duas passadas rápidas a alcançou. Mas dessa vez teve o
cuidado de manter o tom controlado.
— Se Jamie acabar não sendo o homem que você pensa
que ele é. Se eu estiver certa…
Nicole virou a cabeça com impaciência.
— Ligue para mim. É só o que digo. Porque sei o que seria
necessário para acabar com ele. E não é muito.
— Procure ajuda, Alex. Você precisa. — O trânsito quase
abafou a última frase de Nicole: — E não me ligue nunca
mais.
CAPÍTULO 24

JILL

– M ais devagar, Harry. Você não está falando coisa com


coisa.
Endireitando-se, Jill massageou a lombar, onde a
capinagem estava começando a cobrar seu preço. Seus
vizinhos tinham um jardineiro que cuidava da pequena área
verde ao lado do barco, mas Stan sempre foi orgulhoso
demais para fazer o mesmo. Sabendo o quanto ele ficava
chateado com o espinheiro-branco rodeado de mato e o
acúmulo de lixo nos vasos de plantas, Jill, que nunca tinha
ligado muito para jardinagem, começou a passar algumas
horas dando um tapa no grosso nas manhãs de sábado,
enquanto o marido lia ao seu lado.
— Não, eu não falei com Jamie.
Perto da cerca, o brilho de um papel de bala chamou a
sua atenção e ela se abaixou para pegá-la. Por que as
pessoas eram tão nojentas?
— Sim, ontem à noite. Você e Trish foram jantar lá, não
foi? — Diante da sobrancelha erguida de Stan, Jill
murmurou: — Ainsley.
Olhando por cima da edição de capa dura de Pelos canais
franceses que ela lhe dera no último Natal, seu marido
revirou os olhos.
— Isso não parece… Sim, eu imagino… Aposto que ela
ficou. Não consigo imaginar o que ele estava pensando.
Jamie tem estado um pouco… Bem, é claro que não está.
Harry, vou ligar para ele agora, mas tenho certeza de que
falo por todos nós quando digo que sinto muito. Parece uma
confusão, e, se eu conheço Jamie, ele vai ficar morrendo de
vergonha. Ouça, já te ligo de volta. O quê? Você está? Bem,
posso pelo menos… Não? Certo. Ok. Bem, por favor, não
deixe que isso afete nossa relação de trabalho. Harry?
Harry?
— O que foi isso?
Jill se sentou na ponta da espreguiçadeira dele e tirou as
luvas.
— Uma coisa muito estranha. Jamie recebeu Ainsley e a
esposa para jantar ontem à noite. Você sabe há quanto
tempo estamos tentamos trazê-lo para o nosso lado, mas
ele é um sujeito escorregadio, então estávamos contando
com esse jantar do Jamie. Eu disse que ele estava de olho
na propriedade do Minerva, né? Mas, enfim, Ainsley acabou
de ligar para dizer que o jantar foi um desastre. Um
desastre! Maya serviu carne de porco…
— O quê? Mas ela deve saber que ele e Trish são judeus,
não?
— Como podia não saber? E tem mais, eles mandaram
uma lista de alergias e preferências. Tenho a impressão de
que Trish é bem fresca, como era de esperar, e Maya
aparentemente ignorou tudo.
— Não parece a cara dela fazer isso.
— Stan, ela serviu vinho branco com a carne de porco, o
que aparentemente causou uma “queimação terrível” no
Harry. — Não gostando da preocupação no rosto do marido,
ela sorriu. — E justo quando parecia que não poderia ficar
pior, Harry vai ao banheiro e… — Jill levou as mãos ao rosto.
— Meu Deus, Stan, ele disse que havia uma fralda, uma
fralda suja, bem no chão do banheiro de visitas. Maya deve
ter trocado a fralda no último minuto e esqueceu de jogá-la
no lixo ou algo assim.
Ao ouvir isso, Stan colocou Pelos canais franceses de lado
e se endireitou.
— Isso é…
— Horrível. Eu sei.
— Mas também completamente atípico. Digo, nunca vi
Maya ser descuidada com nada. Ela é tão controlada, não é?
— Pois é… mas Jamie está todo esquisito, como você
sabe. Outro dia ele estava agindo feito um maníaco com
Ainsley na nossa reunião de apresentação. De verdade,
muito estranho mesmo. Talvez esse segundo bebê tenha, eu
não sei, tirado ela dos eixos, ou os dois. Talvez estejam com
problemas sérios.
— Bem, se ele tem assediado mulheres no escritório,
aposto que estão mesmo. Mas você tem certeza de que
essa história já passou?
— Ah, sim. — Levantando-se, Jill vestiu as luvas. — A
mulher, Nicole, foi bem clara de que quer deixar tudo para
trás. Mas vou ficar de olho em Jamie. E se ele sair da linha
nessa questão… Mas agora preciso descobrir o que de fato
aconteceu ontem à noite.
— Boa ideia. Não queremos nos desentender com Ainsley
de jeito nenhum, né? — Stan não se mexeu para pegar o
livro de volta, ela notou. E, mais uma vez, Jill se sentiu uma
idiota por ter contado a ele sobre a ligação.
— Vai ficar tudo bem, você sabe. De verdade.
— Quando Jamie for chutado?
A surpresa a fez se sentar de novo ao lado dele. Ela
contara ao marido sobre a investigação que havia pedido
quando os problemas com Spiro vieram à tona, mas não
sobre o e-mail e a carta, já que ainda não tinha certeza de
que Alex não estava envolvida.
— O que te faz dizer isso?
— Bem, ele não pode continuar fazendo essas lambanças,
não é? Veja só o seu estado, tendo que ficar resolvendo os
problemas que ele cria. Sem falar nos custos à empresa.
Aquela história com a Nicole… e depois Spiro? Já foi ruim ter
sido notícia no Telegraph, mas, se algum dia ficar provado
que Jamie o incentivou a destruir um prédio histórico, a
reputação da BWL estaria arruinada. Nossa empresa, Jill,
nosso bebê.
— Shhh… — Ela beijou o marido na testa. — Não quero
que você se preocupe com nada. Agora, já tomou seus
comprimidos?
— Sim, Enfermeira Ratched.
— Bom garoto. — Ela ergueu o telefone. — Pode ir tirar
uma soneca. Só vou demorar alguns minutos.
Ela demorou muito mais do que isso, caminhando ao
longo do canal até o Puppet Theatre Barge, com a cabeça
baixa e a voz furiosa de Jamie na orelha. Ele planejara tudo
meticulosamente — chegando a fazer com que a assistente
de Harry mandasse por e-mail uma lista dos vinhos e
sobremesas favoritos dele para que Maya pudesse preparar
tudo para o jantar. Mas as coisas começaram a dar errado
logo no começo, disse ele, com os pratos de presunto de
Parma e o Montrachet. E Maya, que estava com uns
“humores estranhos” desde que ele voltara tarde do
trabalho, reagiu mal ao ser puxada de lado e criticada.
— Não é pedir muito, é, Jill? Sabe, eu tinha dado a ela
uma lista de instruções, pelo amor de Deus. E Ainsley te
contou — ele estava rouco de descrença — o que aquela
mulher deixou no banheiro?
— Bem, se é assim que você fala com ela, não estou
surpresa que ela tenha reagido mal. Talvez Maya esteja
cansada, Jamie. Talvez ela estivesse te mostrando os dois
dedos do meio.
Em sua impaciência para descobrir se o jantar tinha sido
de fato um desastre tão grande quanto Harry havia descrito,
Jill havia se esquecido do oportunismo, do frequente
desdém e da carta. Deixara de lado seu ódio. Mas as
palavras cheias de desprezo — “aquela mulher” —
trouxeram tudo de volta à tona. E quando, com uma voz
carregada de sarcasmo, ele implorou para que ela “cortasse
esse papo de ‘pobres mulherzinhas’ por um segundo para
nós lidarmos com isso”, ela parou e respirou fundo cinco
vezes, assim como aquele manual de apoio idiota de Stan
do Serviço Nacional de Saúde havia instruído os dois a
fazerem em momentos de emoções mais fortes.
— Nós?
Quando as coisas não iam bem, era sempre “nós”, “nos”
e “nosso”. Jamie era generoso quando se tratava de dividir
seu desconforto e sua responsabilidade quando fazia merda.
— Quer saber? Acho que você é que vai ter que resolver
esse. Já cansei de apagar os seus incêndios.
— Apagar meus incêndios? Quando você já teve de fazer
isso?
— E que tal você parar de culpar sua esposa e assumir
parte da responsabilidade?
— Eu não causei isso!
— Tá, então, pelo menos aceite os fatos. — Com
agilidade, Jill desviou de um turista agachado segurando um
mapa à sombra da ponte da Warwick Avenue. — Harry está
mortalmente ofendido pela experiência e vai fazer questão
de ficar o mais longe possível da BWL daqui para a frente.
Para ser sincera, não sei se posso culpá-lo. O que significará
não uma, mas duas grandes oportunidades de negócio
arruinadas… por você. Então, a ideia de que não estou apta
a trabalhar? Bem, é muito engraçada, Jamie. Porque agora
eu diria que seu emprego está por um fio.
Tão exultante que se sentia embriagada, Jill apertou o
botãozinho vermelho e encostou-se na grade, os braços
estendidos e o rosto voltado para cima em direção ao sol.
Não podia ser tão simples, podia? Mas, ao checar seus
sentimentos em busca de culpa, nostalgia ou algo assim,
um aperto no coração que fosse, ficou aliviada ao descobrir
que a ideia de tirar Jamie de sua vida para sempre não lhe
trazia nada além de satisfação.
CAPÍTULO 25

NICOLE

– P odemos ajudar com alguma bagagem?


Nicole olhou para a garota. Ela não devia ter mais
de 18 anos. Esse era sem dúvida seu primeiro emprego. A
camisa branca parecia herança do uniforme escolar e o
minúsculo buraco abaixo do seu lábio tivera um piercing
recentemente.
— Não. — Ela ergueu a bolsa Longchamp alto o suficiente
para ser vista por cima da mesa da recepção. — Só isso.
Ela poderia muito bem ter dito “Só vim transar”, e a
menina reconheceu isso com um breve piscar de olhos.
— E sua taça de champanhe de boas-vindas?
— Talvez depois do jantar, quando meu… — Nicole se
debateu para encontrar a palavra certa, algo que gostaria
de nunca mais precisar fazer depois daquela noite. —
Quando meu parceiro chegar.
O hotel-butique tinha sido uma escolha de Nicole — “Se
eu souber que você vai se juntar a mim depois, à noite, tudo
será suportável” — e enquanto subia para a “suíte superior”
que tinha reservado para eles no terceiro andar, ela tentou
imaginar o rosto de Jamie quando parasse diante da casa
branca com terraço em reboco, parcialmente escondida por
glicínias penduradas em uma rua secundária de South
Kensington.
Ele ficaria surpreso, com certeza. Quando, depois de
alguns meses de caso, Jamie tinha sugerido levar Nicole ao
Blakes, ela gemeu de desgosto. Nada estragava mais uma
transa do que hotéis projetados para isso, e era por isso que
ela sempre preferiu hotéis como o Hilton e Best Western:
cubos da cor bege com luzes frias e um ar-condicionado
zumbindo. Isso se precisassem usar algo tão banal quanto
um quarto de hotel. Se pudesse escolher, Nicole teria
optado por uma cabine de banheiro ou um beco sem pensar
duas vezes. Mas aquela noite era diferente: aquela noite era
o início de sua nova vida.
Fresco e bonito, com espelhos ladrilhados e almofadas
chiques artisticamente contrastantes espalhadas pela cama
king size, o quarto parecia saído da Elle Decoration ou da
casa de férias daquelas mães donas de casa obcecadas por
status, que conseguem medir o quão longe chegaram na
vida pela marca das velas nos quatro cantos de suas
banheiras.
Já passava das seis e Nicole sabia que precisava tomar
banho e se trocar antes de chamar o Uber que a levaria ao
Angelini’s às 19h15 — 15 minutos antes de Ben. O que
permitiria resolver quaisquer erros com os lugares ou trocas
de mesa, embora esperasse ter sido descritiva o suficiente
ao telefone. Se pudesse olhar nos olhos de Jamie antes,
receberia a coragem de que precisava.
Em vez de se despir, no entanto, ficou parada na janela,
observando os turistas lanchando no pequeno jardim abaixo
e tentando não imaginar o rosto e a voz de Ben quando ela
lhe contasse. Seus lábios se moveram enquanto ela
ensaiava as palavras que decidira usar: “Eu ainda amo você
e sempre vou amar, mas não acho que algum dia vou
realmente conseguir te fazer feliz.”
Era covardia distorcer a situação, como se só se
importasse com o bem-estar do marido, mas ela e Jamie
tinham que manter o caso em segredo por enquanto.
Alguns meses depois, o relacionamento deles poderia vir à
tona como algo que aconteceu de forma inesperada,
natural, quando os dois se vissem solteiros. “Lembre-se de
que só precisa ser mais ou menos plausível”, ela apontara
para Jamie. “É uma gentileza dar aos dois a opção de
acreditar que não começou antes.” Mas será que era
mesmo uma gentileza o que estavam prestes a fazer?
Depois de ter ansiado por este momento por meses,
Nicole agora teria dado qualquer coisa por uma semana, dia
ou hora a mais. O vestido azul que escolhera na noite
anterior parecia errado — muito feminino, muito coquete.
Mas o que se usava para terminar um casamento de 17
anos? A calça e a blusa que escolhera antes lhe pareceram
frias, transacionais. E o vestido tinha a vantagem de ser
relativamente novo, sem lembranças ligadas a ele.
— É uma boa ideia. — Ben sorrira, levantando os olhos
surpresos de seu Guardian quando ela lhe contou sobre a
reserva do restaurante naquela manhã. — Seria bom se
você tivesse dito alguma coisa antes. Mesmo assim, tenho
certeza de que consigo encontrar alguém para cuidar de
Chloe.
Foi só quando Nicole disse ao marido que já havia pedido
a Suzy da casa da frente para ficar de babá que ela sentiu
as bochechas esquentarem sob o olhar dele. Bem tinha
sempre sido o responsável por cuidar de crianças e
restaurantes. A coisa toda corria o risco de soar um pouco
bem orquestrada demais.
— Qual é a ocasião?
“Eu preciso ter um motivo para sair com meu marido?”
seria a resposta óbvia, mas Nicole não teve coragem de
dizer algo tão irreverente e ficou grata pelo resmungo da
filha.
— Eu não gosto da Suzy.
— Claro que gosta, querida. Vocês duas sempre jogam
aquele seu jogo de contar lagartas, lembra?
Tudo aquilo estava ficando pesado demais, e Nicole se
afastou do marido e da filha para preparar torradas que
ninguém queria. A ideia de Ben relembrando suas mentiras
quando acordasse sem ela na manhã seguinte dando
náusea a ela.
— E então?
— Então o quê?
— Então, por que isso?
— Só achei que seria legal.
Seria legal ter a vida que você achava ter sendo destruída
enquanto comia casquinha de caranguejo? A ideia toda
estava começando a parecer maluca, errada, mas ela tinha
que ir em frente agora. Os dois tinham.
— Aqui está, querida. Coma sua torrada.
— Já comi uma com o papai.
— Certo. — Nicole engoliu em seco. — Mas você tem que
tomar um café da manhã de verdade ou vai ficar com fome
às dez.
Nicole segurava a torrada na palma da mão como uma
garçonete seguraria uma bandeja, ela percebeu. Era
ridículo. E tudo na cena naquela sala lhe parecia uma
encenação lúgubre.
— A mamãe acabou de fazer, querida. Coma. — Dobrando
a torrada ao meio, Nicole a entregou à filha.
— Mas eu não queria!
— Não quero saber. Toma.
— Eu não quero. Não estou com fome!
Ben franziu a testa para ela.
— Nic, acho que ela já comeu o suficiente.
— Está bem. — Largando o triângulo seco no prato de
café da manhã do marido, Nicole flagrou o olhar
interrogativo de Chloe para o pai. Em vez de fazê-la se
sentir culpada como normalmente faria, o olhar apenas a
magoou ainda mais. Tinha saído de casa com o pensamento
vingativo de que, por mais doloroso que fosse, os próximos
meses poderiam pelo menos dar a ela a chance de
reconquistar algum espaço no coração da filha, um
pensamento do qual sentia vergonha agora, enquanto se
olhava uma última vez no espelho do quarto do hotel e saía
pela porta.
O Angelini’s já estava movimentado quando ela chegou.
Não havia sinal de Jamie, mas havia um punhado de casais
debruçados sobre cardápios espalhados pelo salão e dois
grandes grupos de homens de negócios que nitidamente
estavam lá desde o almoço zurrando de cada lado do bar
central. O volume do barulho a tirou do transe em que se
encontrava desde o registro no hotel: isto era real.
— Com licença?
A loira na recepção se virou para ela, o telefone
pressionado contra a orelha agora visível.
— Um minuto, por favor — ela articulou.
E Nicole assentiu. Ela não precisava passar por isso. Podia
sair do restaurante agora, ligar para Ben e dizer que tivera
um imprevisto. Então, todos os envolvidos, de Ben e Chloe a
Maya e aquelas duas crianças, simplesmente seguiriam com
sua vida, alheios à bomba que acabavam de evitar.
— Vestido novo?
O braço dele estava envolvendo a sua cintura, a barba
por fazer era familiar contra a lateral de seu pescoço, e por
um momento Nicole se perguntou qual dos dois homens
era. Então se virou para dar um beijo no marido.
— Você chegou cedo — disse ela.
— Eu sei. Quando o metrô é pontual, tudo dá errado.
— Claro. E não, é antigo — disse ela, uma meia mentira,
puxando o tecido azul.
— É bonito.
— Obrigada.
Nicole desejou que ele não parecesse tão animado quanto
um menino, e estava ansiosa para se sentar. A qualquer
momento, Jamie e Maya chegariam.
— Com licença?
— Sim. — A recepcionista parecia estar desligando o
telefone e erguendo os olhos para eles em câmera lenta. —
O nome? Harper? Ah, sim, aqui está você.
Pegando dois menus, ela os levou até a mesa. E Nicole
ficou aliviada ao descobrir que era o banquinho estofado
que ela tinha pedido na segunda parte do restaurante, mas
com uma boa visão da primeira.
— Lembra daqueles almoços compridos que
costumávamos ter naquele bufê à vontade chinês em
Bristol?
Ben insistiu em se sentar ao lado dela no banquinho —
“assim podemos olhar as pessoas” — e fitava com clara
fascinação o grupo de homens de negócios fazendo um
enorme pedido de conhaque.
— Lembro. — Nicole olhou de volta para o menu. — Quem
me dera uma conta da empresa para gastar como eles. No
que você pensou?
— Eu nem olhei ainda. — Ele colocou a mão no braço
dela. — Relaxa. Não há por que ter pressa. Suzy disse que
poderia ficar até a hora que precisássemos.
— Ótimo. — O sorriso de Nicole parecia congelado no
rosto. Ela precisava de uma bebida. — Com licença? — A
voz dela estava um pouco alta, muito desesperada.
A garçonete se aproximou.
— Um vodca martíni para mim, por favor, e ele vai querer
um gim-tônica.
Ela sabia que tinha soado ríspida, mas não se importou.
Também sabia o que Ben diria ao se inclinar na direção da
garçonete, ansioso como sempre em amenizar qualquer
antagonismo que Nicole pudesse ter instigado.
— É uma emergência médica.
A garçonete respondeu alguma coisa não tão engraçada
ou sagaz, mas Nicole não a ouviu porque Jamie e Maya
tinham acabado de entrar.
Ela usava um vestido de seda ocre que não deveria ficar
bem em uma loira, mas ficou — talvez por causa dos tons
dourados e marrons de sua pele. Ele usava jeans e uma
camisa azul-clara que ela não tinha visto antes. A
recepcionista foi mais atenciosa com eles do que com Nicole
e Ben? Parecia que sim. Havia algo inegavelmente
impactante nos dois lado a lado.
— Bem, têm que ser os camarões da Baía de Dublin, não?
A gente vai pedir um aperitivo?
Ben estava tão absorto no cardápio que não percebeu
que ela seguia Jamie e Maya com os olhos enquanto eram
conduzidos a uma mesa do outro lado do restaurante que,
no entanto, ainda estava em sua linha de visão. Jamie
estava certo: ninguém iria reconhecer ninguém ali.
— Nic?
— Desculpa?
— Os camarões?
— Sim, pode pedir.
Houve uma pequena hesitação enquanto Maya decidia
onde se sentar, e Jamie finalmente optou pela cadeira de
frente para Nicole, a esposa diante dele, Nicole reparou que
o vestido de Maya tinha as costas surpreendentemente
decotadas e a pele bronzeada lisa estava à mostra quase
até a cintura.
Nicole prendeu a respiração. Era isso. Exatamente como
tinham planejado. E a qualquer momento ele levantaria os
olhos para ela.
— Se bem que a lula parece boa. Mas trinta libras? Um
pouco demais para uma entrada.
— Peça o que quiser.
Ela estava com medo de olhar para baixo, caso perdesse
Jamie.
— Tá, tive uma ideia. Eu peço os camarões, você a lula e
nós dividimos os dois? Acho que vou até pedir um bife… Ah,
vamos pegar o espinafre refogado à parte?
Havia algo de ridículo no interesse de seu marido pela
comida do restaurante.
— Perfeito. — Ela fechou o menu. — Cadê o meu martíni?
Como se fosse um comando, a garçonete apareceu com
as bebidas, urubuzando ansiosa na frente deles e tapando o
campo de visão de Nicole.
— Você tem um bom Sauvignon Blanc?
— Sim, o Domaine Chatelain Pouilly-Fumé é um dos meus
favoritos, mas, se quiser algo um pouco mais estimulante,
temos o Crux Marlborough…
Quando a garçonete se inclinou para a frente para
apontá-los no menu, Jamie finalmente ergueu os olhos para
encontrar os dela. Ele estava sorrindo por causa de algo que
Maya tinha dito, mas seus olhos estavam intensos,
excitados, e Nicole apertou as coxas debaixo da mesa,
sentindo uma onda de prazer subir por seu corpo. Em
apenas algumas horas o pior teria passado — e sua vida de
verdade poderia começar.
— Parece ótimo.
— O Crux?
— Sim.
— Não o Pouilly?
— Desculpe? — Quão complicado podia ser pedir uma
garrafa de vinho? — Isso, Crux.
Ben riu. E, então, depois que a garçonete se afastou:
— Estimulante?
— Oi?
— Vinho pode ser “estimulante”?
Ela conseguiu dar uma risadinha, mas não foi o suficiente
para suavizar a preocupação no rosto dele.
— Você está bem? Hoje de manhã você parecia um
pouco…
— É, me desculpe. Eu ando tão ocupada no trabalho e
dormi mal ontem à noite por algum motivo.
Ben começou seu discurso de sempre sobre Nicole
trabalhar demais, que em geral a irritava porque era o
trabalho árduo dela que sustentava a família. Esta noite,
porém, não parecia importar e ela se viu concordando com
tudo o que o marido disse. Duas taças de champanhe foram
levadas para a mesa de Jamie, e Nicole achou estranho, de
mau gosto, que ele tivesse concordado em beber algo tão
comemorativo em um momento como aquele.
Uma garçonete mais jovem e mais bonita foi anotar o
pedido deles, rindo de algo que Jamie disse, e Maya parecia
estar fazendo muitas perguntas. Era bem a cara dela, não?
Ser dessas mulheres que perguntavam como as coisas eram
preparadas e os ingredientes dos molhos: tudo que Nicole
nunca ligou. Era isso que Jamie gostava nela? Quão
diferente ela era da esposa dele? Será que ele sentiria falta
da mãe excêntrica e delicada de seus filhos, quando
estivesse acordando todos os dias com Nicole?
Ela se virou para Ben, já inebriada pelo martíni.
— Você acha que sou muito dominadora?
— O quê? — Ele engasgou um pouco com seu gim-tônica.
— Hã… não.
— Você sabe o que quero dizer. A questão do trabalho. —
Ela fez uma pausa. — Você nunca gosta quando peço seu
drink para você, não é?
— Eu gosto de praticamente tudo em você, se quer saber.
— Tipo?
— Você quer uma lista? Está bem. Eu gosto de como você
é inteligente e decidida. Gosto de como você sempre
preenche aqueles formulários de viagem que eu detesto e
de como você fica bem com aquelas leggings com listras
néon estranhas. Gosto de como você é uma ótima mãe,
mesmo que nunca, jamais, tenha carregado um pacote de
lenços umedecidos na bolsa.
— Eu não sou.
— O quê?
— Não sou uma boa mãe. Pelo menos nunca sinto que
sou.
— Não fale bobagens. É por causa de hoje de manhã?
Chloe adora você.
— Eu sei. Mas às vezes não posso deixar de sentir… —
Nicole olhou para cima, alarmada, quando o que parecia ser
uma quantidade desnecessária de comida foi colocada na
mesa. Nada daquilo seria comido. Porque ela não poderia
ficar ali se empanturrando para depois contar a Ben que o
casamento deles havia acabado. E eles com certeza não
iriam comer depois que ela dissesse o que foi ali dizer. —
Meu Deus, Ben, por que você sempre pede comida demais?
Pela maneira como o sorriso sentimental dele
desapareceu, seu tom tinha sido mais duro do que ela
pensava.
— É só… É demais, não? Sempre é demais.
— Nah, eu não comi nada desde o almoço.
Ele sorriu, erguendo a taça de vinho para ela, e foi um
gesto tão apreensivo que ela sentiu algo implodir
suavemente por dentro.
— Ben…
Mas a boca dele já estava cheia de lula.
— Isso tá tão bom — ele conseguiu com a boca cheia. —
Aqui, experimente.
— Não, tudo bem. — Nicole se esquivou da garfada de
comida e se permitiu outro olhar rápido na direção de Jamie,
fazendo o tipo de pacto supersticioso no qual confiara como
a adolescente indecisa que fora: Se ele olhar agora, a
próxima palavra que vai sair da minha boca será “Acabou”.
Mas Jamie não olhou para ela. E não estava olhando para
sua esposa também, mas para o próprio prato enquanto
ouvia atentamente o que quer que Maya estivesse dizendo.
Desviando o olhar, Nicole continuou:
— Não é só a Chloe que sinto que estou decepcionando o
tempo todo. Às vezes eu sinto… — Seria essa a maneira de
começar? Havia alguma maneira de começar “vou deixar
você”? — Bem, na verdade, na maioria das vezes, também
me sinto uma péssima esposa para você.
— Do que você está falando?
A essa altura, Ben ainda estaria pensando que estavam
em uma daquelas sessões de revisão conjugal que os casais
fazem quando finalmente conseguem passar uma ou duas
horas sem os filhos. Se bem que ele a conhecia. Ele reparou
que ela não havia tocado na comida, mas estava na
segunda taça de vinho, e Nicole captou uma centelha de
medo animal nos olhos do marido.
— Só que eu sei que tenho trabalhado que nem uma
louca, e a verdade é que amo o meu trabalho, você sabe
disso…
— Mas significa que você está atolada na maior parte do
tempo? E cansada. Acho que você precisa. Nós dois
precisamos… é de umas férias. — Ele se inclinou para a
frente. — Por que não passamos uma hora na Expedia hoje
à noite, pesquisando todos os lugares que nunca visitamos
mas sempre quisemos ir? — Ele estava entrando em pânico
e era uma agonia assistir. — Olhar as ofertas do fim de
agosto e, sei lá, reservar alguma coisa? Podemos até…
— Não.
— O quê? — Ben riu. — Não para qual parte?
— Não para as férias. Não para tudo. — Olhe para mim,
Jamie. Eu preciso de você. — Nós não podemos continuar,
Ben, não desse jeito. — E foi como chegar à superfície
depois de prender a respiração por um longo tempo. Mas
esse alívio não durou. Enquanto o marido a encarava ainda
segurando o garfo, mas de um jeito estranho, como se
tivesse se esquecido para que servia, Nicole percebeu algo
que a fez estremecer de tristeza: Ben estivera esperando
por isso pelos últimos 21 anos.
— Nic…
— Eu sinto muito. — Ela abriu a boca para dizer “Eu
tentei”, mas pensou melhor. — Eu amo você. Mas não de
uma maneira… Não é o suficiente.
Ele sorriu, mas era o sorriso desagradável de alguém que
nunca pararia de sofrer.
— Você não me ama o bastante?
— Eu não acho que sinto… o que deveria.
— Como alguém deve se sentir depois de 17 anos de
casamento?
Ben tinha bastante determinação, lembrou Nicole, que só
aparecia quando algo ameaçava a esposa ou a filha — e em
qualquer outra circunstância seria admirável. Se tivesse
conseguido usá-la para o trabalho ou para a vida, os dois
poderiam ter tido uma chance.
— Acho que devia sentir mais do que eu sinto. — Não
havia como suavizar isso. — Não estou dizendo isso para te
ferir. Só estou sendo sincera. — Ela tomou outro gole de
vinho. — Ben, éramos tão jovens quando ficamos juntos, e
ainda somos. Você não pode… — Ela tentou de novo. — Não
precisamos passar o resto da nossa vida sentindo que tem
algo faltando.
— Não sinto que nada está faltando. — Seu rosto estava
duro, obstinado. — Tenho tudo que eu quero.
— Entendi. — E então bem baixinho, em um sussurro: —
Mas eu não, Ben. E eu gostaria de ter. Eu queria que você
fosse o suficiente, mas…
— Você não está tentando. Você está dizendo tudo isso
porque chegou à idade em que…
— Ah, por favor, não comece com isso. Não tem nada a
ver com a minha idade, ou o “período da minha vida”, ou “a
grama é mais verde”, nem nada do tipo. — Olhou de soslaio
para Jamie, que não poderia duvidar, por suas expressões e
linguagem corporal, de que Nicole estava cumprindo sua
parte no trato. Mas ele ainda ouvia a esposa em silêncio. E
como ela sabia que Ben não desistiria de tentar fazê-la
mudar de ideia até que dissesse algo que o faria odiá-la, o
olhou bem nos olhos e disse: — Chloe é minha filha: eu a
amo e preciso dela na minha vida. Mas nós, Ben… Não há
futuro para nós.
— Eu posso mudar.
— Não é por causa disso. E eu não quero que você mude.
— Eu posso encontrar um emprego. Sei que você odeia
que eu não esteja trabalhando. Sei que você acha que
passo o dia em casa…
— Ben! Eu não acho isso. O que você fez por Chloe e por
mim…
— E então? Deve ter um jeito. — Ele fez menção de tocar
o braço dela, mas ela se afastou.
— Não tem. Não tem jeito, porque tem outra pessoa
que…
— Ah, meu Deus. — Ben recuou e finalmente largou o
garfo. — Você me trouxe aqui, até este lugar, para me dizer
que encontrou outra pessoa?
— Eu não ia contar assim — murmurou ela. — Mas você
não estava ouvindo. Você insiste e insiste, e é como se
você…
— Quem é?
— Não importa.
— Quem é?
— Eu só acho…
— Você não vai me contar? — interrompeu Ben, deixando
o guardanapo na mesa. — O que eu acho é que quero ir
para casa.
É sabido que momentos assim vão ser puro sofrimento,
mas ninguém nunca diz como, acima de tudo, eles são
simplesmente estranhos. Ben estava mais ou menos de pé,
com os joelhos dobrados, mas encurralado no assento por
outras mesas e clientes.
— Com licença — murmurou ele. Mas estava muito
barulhento e ninguém se mexeu.
— Ben. — Ela sentiu que precisava dizer isso, afinal tinha
Chloe para pensar. — Eu não vou voltar para casa hoje à
noite.
— Claro que não. — E um pouco mais alto: — Com
licença.
— Acho que se nós dois tirarmos um tempo para…
— Uhum. E o que devo dizer à sua filha, por curiosidade?
— Deixe-me ajudar. — Um garçom finalmente o avistara e
veio ajudar a puxar a mesa. — O toalete é lá embaixo,
senhor.
— Não. — Ben tinha um ponto rosa em cada maçã do
rosto. — Não, eu só quero ir embora.
E, finalmente livre, o guardanapo caindo no chão, o seu
marido cruzou o salão do restaurante, passando por Jamie e
Maya, e saiu pela porta.
Em um restaurante menor, isso poderia ter causado certo
rebuliço, mas, embora os clientes de cada lado de Nicole
tivessem lançado um ou dois olhares curiosos para ela e
para a comida quase intocada na mesa, ninguém mais
pareceu registrar o que havia acontecido. Ninguém exceto a
garçonete, que já tinha visto brigas conjugais demais
cuidadosamente contidas para contar nos dedos — ou para
se importar.
— Você ainda vai comer isso?
— Er, não. — Como se isso não tivesse claro. — E
provavelmente é melhor cancelar os pratos principais.
Desculpe, meu marido teve que sair correndo.
— Entendi. Quer que eu traga a conta?
Nicole olhou para a garrafa de vinho pela metade em seu
balde de gelo ao lado da mesa. Então olhou para Jamie, que
ainda não parecia um homem terminando o casamento. Na
verdade, pela linguagem corporal, os dois mais pareciam
estar em um encontro.
— Não. — Nicole tinha feito viagens de negócios demais
para se sentir constrangida por ficar sozinha em um
restaurante. E sentia um desejo mórbido de ver Maya
sofrendo como acabara de acontecer com Ben.
Apontando para a taça de vinho, ela disse:
— Vou ficar e terminar minha bebida.
Se a garçonete achou estranho ou não, Nicole não se
importava. Estava ocupada demais observando Maya, que
tinha pegado a bolsa da mesa e se inclinara na direção de
Jamie, como se fosse sair. Estava com raiva? Chorando?
Nicole não conseguia ver a expressão dela. Mas quando ela
enfim se levantou, se virando para Jamie para dizer mais
alguma coisa, Nicole teve um vislumbre de dentes brancos:
Maya estava sorrindo.
Alguma coisa estava errada. Tudo estava errado. E,
enquanto observava a recepcionista mostrar a Maya onde
ficava o banheiro feminino, Jamie finalmente olhou para ela.
Nicole ergueu o queixo um pouquinho, fazendo a pergunta,
implorando e suplicando, mas não havia sinais de consolo
ou solidariedade no rosto dele, e ela levou um momento
para ler a expressão culpada e as palavras que ele estava
articulando com a boca: “Não consigo. Desculpa”.
CAPÍTULO 26

ALEX

– N ão.—Não começa.
Ei — repreendeu Alex, estacionando uma Katie
adormecida no carrinho ao lado da mesa. — Não estou aqui
para dizer “eu avisei”. Nem vou perguntar o que aconteceu
esta noite. Só estou aqui para dizer que tentei no outro dia.
Puxando uma cadeira, ela viu os olhos vazios de Nicole, o
rímel que se acumulara nas linhas finas nas olheiras, e a
boca nua. Nunca a tinha visto sem batom antes, e havia
algo indecente na nudez de seu rosto.
— Se nós… você… acertarmos, então você nunca mais
vai ter que ver Jamie de novo. Ele vai embora; vai sumir.
Com teto baixo e paredes grudentas, não era o tipo de
pub para o qual se leva um bebê — muito menos depois das
nove da noite. Mas quando viu o nome de Nicole piscar em
seu celular, Alex adivinhou o que tinha acontecido. “Chego
em Victoria em meia hora. Encontre um bar e me espere.”
Pouco mais de trinta minutos depois, ela entrou, topando
com o carrinho em tornozelos e ignorando olhares de
desaprovação até que avistou Nicole sentada, no segundo
drinque de vodca e tônica, em um canto.
— Presta atenção. Jamie é bom nessas coisas, ele é
especialista em ferrar os outros, lembra? Eu achei que isso
já estaria claro agora. Mas, por favor, não se sinta burra.
Nicole deu um sorriso lacrimoso.
— É difícil não se sentir uma burra quando você acabou
de terminar seu casamento por alguém que não está nem
aí.
Alex pensou no que ela disse.
— Na verdade, não acho que seja isso. Jamie
provavelmente se importa. Vocês dois não teriam durado
tanto se ele não se importasse. Ele só…
— Se importa mais com Maya?
— Eu tentei te avisar.
Cotovelos na mesa, Nicole agarrou o rosto com as mãos.
— E eu sabia! Sabia que alguma coisa estava errada
quando vi os dois no restaurante. O jeito como só ela estava
falando e ele ficava lá ouvindo, quando deveria ser o
contrário.
Alex deu de ombros.
— Acho que ele nunca teve a intenção de deixá-la.
Nicole a encarou.
— Então por quê…? Que tipo de filho da puta doente faz
algo assim?
Outro dar de ombros.
— Você sabe melhor como responder isso do que eu.
Talvez essa coisa toda no restaurante fosse uma espécie de
preliminar para ele? Algo que o excita? Pelo que você me
disse, Jamie, bem… é um doente.
Nicole fez um barulho, parte soluço, parte ganido, e Alex
achou melhor pressionar.
— Mas o que o excita não é só doentio… é ilegal, não é?
Nicole ergueu os olhos vermelhos de sua vodca com
tônica, confusa a princípio, então cansada.
— Eu te disse…
Mas Alex a silenciou com um dedo.
— Me deixe terminar. Se o que acabou de acontecer nos
diz alguma coisa, é que você tem um ponto cego no que diz
respeito a Jamie. E entendo que a sua relação seja
“complicada”, como você disse, mas se o que me contou
naquela noite no meu apartamento realmente aconteceu
entre vocês…
— Foi só uma vez, e…
Alex se recostou com força na cadeira, os braços
cruzados.
— Você está se ouvindo? Uma vez só já é demais. Então,
por que protegê-lo? Ainda mais quando você agora sabe
que tipo de homem ele é e do que é capaz? — Alex se
inclinou sobre a mesa. — Quando você sabe que isso faz
parte dele.
Nicole piscou.
— Então, o que você quer que eu faça?
— A questão não é o que eu quero. É você fazer o que
deveria ter feito meses atrás para proteger outras mulheres
de homens como Jamie. E, sim — esta seria a parte
complicada —, significaria se expor um pouco. As pessoas
saberiam o que Jamie fez com você; bem, o RH pelo menos.
Mas não precisariam saber sobre o que veio antes.
Nicole estava negando com a cabeça.
— Não, não. Isso não pode acontecer. Olha só, contei para
o Ben hoje que estava saindo com outra pessoa. Se eu
acusar meu chefe de… Não, não posso deixar que Ben fique
sabendo.
— Ele não vai nem descobrir. Você sabe quão secretas as
reclamações desse tipo são? No momento da acusação você
se torna uma vítima: protegida. E é assim que deve ser. Por
isso, mesmo que Ben de alguma forma acabe descobrindo,
ele nunca, nem em um milhão de anos, pensaria que você
teve um relacionamento consensual com o Jamie. — Não
teve a intenção de soar sarcástica, mas Nicole deu uma
risada seca. — Olha, eu não me importo mais com o que
você fez. Fomos todas enganadas por ele, seduzidas e
depois enganadas, não? — Alex deu um pequeno sorriso de
encorajamento. — Mas isso vai acabar com ele, sem dúvida.
— Eu entendo, mas… — Os olhos de Nicole se fixaram em
algo na mesa, e Alex interpretou a distração como a tontura
induzida pelo álcool antes de se lembrar do estado dos nós
dos dedos de suas mãos agora, depois de outra sessão de
limpeza queimar a pele fina. — Suas mãos! — balbuciou
Nicole. — Alex, seu eczema. Você precisa ir ao médico, está
bem feio.
— Como eu disse — Alex puxou a manga da camisa para
baixo o máximo que pôde —, parece pior do que é. Nicole,
preciso que você se concentre.
— Eu estou concentrada.
— Ótimo. Então me escute: você já está bastante
exposta, não é? Entende, se eu sei sobre você e Jamie,
então outras pessoas podem saber, não?
Nicole respirou fundo e assentiu.
— Tá. E você não pode estar achando que, depois do que
aconteceu hoje, dá para seguir como sempre na BWL,
olhando Jamie nos olhos todos os dias, sentando cara a cara
com ele nas reuniões, brindando na festa de Natal. E,
quando ele começar outro caso, o que provavelmente já
começou, bem debaixo do seu nariz… digamos com aquela
garota, Sophia…
— Isso não vai acontecer — disse Nicole baixinho. — Pelo
que ouvi, ela não quer mais saber dele.
Alex ergueu uma sobrancelha.
— Ele a levou para sair… e fez alguma coisa, foi direto
demais. Assustou ela, sei lá. E talvez… — Ela parou, tentou
de novo. — Talvez não tenha sido um acidente. Talvez ele
goste de forçar a barra. Mas Alex: eu não vou sair. Não
quando me dediquei, passei anos para chegar onde estou.
Não quando mereço virar sócia da BWL. Não vou deixá-lo
tirar tudo que ainda me resta.
Dois jovens parados no bar olharam para Nicole antes de
voltarem, rápido demais, a fitar as próprias canecas. E Alex
observou aquela mulher, prestes a passar de uma fantasia
masculina a um fantasma, digerindo o perigo de sua
posição na vida. Alex não tinha nada a perder com a idade
— ela sempre foi invisível. E por mais sofrimento que isso
tenha trazido a ela na adolescência, estava grata por nunca
ter que viver o tipo de perda que Nicole estaria enfrentando
agora. Uma perda da qual, por baixo de seu asco com a
ideia dos “últimos anos bons” de uma mulher, ela estaria
muito ciente.
— Eles vão precisar encontrar outro sócio — continuou
Alex. — Para substituir Jamie, quero dizer.
Nicole olhou para ela.
— Aham. E aí vão me dar o trabalho de Jamie? E quanto à
polícia? E se ele for preso e eu tiver que provar ou alguma
coisa assim?
— Eu prometo que você será protegida. De jeito nenhum
a empresa vai querer que tudo isso se torne público ou
envolva a polícia. Só você pode decidir isso. Do ponto de
vista legal, eles não são obrigados a fazer, lembra? Não, a
menos que você queira prestar queixa, o que não vai
querer. E se decidir chamar do que foi, ou algo menos
explícito, um assédio, talvez, Jamie será mandado embora,
como deveria ter acontecido há muito tempo, por motivos
que muitas pessoas já sabem. Mas os verdadeiros motivos
para sua “saída” serão mantidos por debaixo dos panos.
Acredite em mim, é mais do que perfeito, é a coisa certa a
fazer.
Quando Alex terminou de explicar o resto, Nicole apenas
assentiu.
— Preciso deitar.
Nicole ficou em silêncio enquanto Alex a escoltava para
fora do pub e a ajudava a entrar em um Uber à espera.
Depois que a porta foi fechada, e Alex voltou a atenção para
Katie, apertando o cobertor em volta de seu corpinho
inquieto no ar frio da noite, ela ouviu o barulho da janela
sendo aberta atrás dela.
— Depois disso, chega — disse Nicole. — Você tem que
me prometer. Nada mais de tramas, de planos. Chega.
Alex ficou feliz que um único aceno rápido de cabeça
tenha sido suficiente para amenizar o pânico nos olhos de
Nicole. Poderia nunca a entender, mas havia se afeiçoado a
ela, Alex percebeu. E não gostaria de mentir
descaradamente para ela.
CAPÍTULO 27

JILL

– C omo assim, você não pode me dizer? Não pode me


dizer por quê?
Bem antes de a raiva abafada de Jamie atravessar as
paredes de vidro da sala dele, Jill soube que alguma coisa
estava acontecendo. Como pássaros pousados em um
arame, a fileira de topógrafos juniores se movia para a
esquerda e para a direita pela longa linha de mesas em
frente aos elevadores, trocando informações com acenos de
certeza e pios de descrença. Era uma cena que ela já tinha
testemunhado antes, mas em geral na manhã seguinte às
grandes festas de escritório.
Talvez por nunca ter sido alvo de fofoca, mesmo quando
jovem, Jill não se opusesse tanto a isso quanto Paul e Jamie.
Na verdade, ela sempre gostara em segredo. Algumas
afirmações estridentes se elevaram acima do chilreio
coletivo — “Amy diz que ele sempre foi um tarado com ela,
até apertou a bunda dela uma vez”; “Desculpe, mas isso é
mentira, não acredito em uma palavra!” — e ela fez uma
anotação mental para perguntar para Kellie qual dos
corretores de meia ou gravata espalhafatosa estava se
comportando mal.
Isso acabou não sendo necessário. Ao se aproximar de
sua sala, ouviu Jamie levantar a voz e identificou à primeira
vista que eram Ross e Jayne do RH sentados em frente a ele.
— Eles estão lá há quase uma hora — sussurrou Kellie. —
Paul estava tentando falar com você. Estão dizendo que
alguém o acusou de assédio.
Jill tirou o celular da bolsa: quatro chamadas não
atendidas. Havia se esquecido de ativar o som quando saiu
do hospital naquela manhã. Sua mente voltou aos lábios
carmesins de Nicole, amargos e finos: “Não vou denunciá-lo.
Ponto-final.” Mas, se ela não tinha denunciado Jamie,
parecia que outra pessoa o fizera.
— Droga. — Então, ciente do silêncio e dos rostos virados
para ela: — Cancele minhas ligações, está bem? Cadê o
Paul?
— Na sala dele.
— Minha nossa.
Paul não se afastou da janela quando a ouviu entrar; ficou
ali de costas para Jill, olhando para o emaranhado feio e
cinza do viaduto de Hammersmith abaixo.
— É uma confusão dos diabos.
— Sim. Desculpa. O celular estava desligado.
— O que você sabe?
— Nada. Acabei de ficar sabendo.
Ele se virou.
— Eles estão suspendendo Jamie, com efeito imediato.
Estão dizendo isso pra ele agora.
Jill só conseguiu assentir.
Afundando de volta em sua cadeira, Paul olhou para o
nada.
— É ruim, Jill, muito ruim. As palavras que o RH está
usando… Nós dois e a empresa precisamos nos afastar
disso. Imediatamente.
O que quer que Jill esperasse, não era isso. Paul sempre
apoiara Jamie, sempre o defendera.
— Pensei que você e Jamie…
— Eu e Jamie o quê? Saímos para uma cerveja de vez em
quando? Jogamos golfe vez ou outra? Bem, eu não vou ser
arrastado para essa confusão, eu já lhe digo. Você entende
como alegações desse tipo são tóxicas?
— Estou ciente.
— Os jornais ficam sabendo e de repente começam a usar
a palavra “endêmica”, falando sobre uma “cultura de
assédio” e pintando a BWL como uma espécie de “Clube do
Bolinha”. Para você tá tudo bem, Jill, porque é mulher.
Em qualquer outra circunstância, ela teria rido da
declaração.
— Não estou entendendo.
— Sou o único outro homem na sociedade, não sou?
Jill não teve tempo de se impressionar com quão
egocêntricas as pessoas ficavam com o medo, com a
rapidez com que aquele instinto de pura autopreservação é
ativado, eliminando qualquer lealdade anterior.
— Mesmo que eu não seja arrastado nesse nível —
continuou ele —, se isso vazar, quem vai querer fazer
negócios com a gente? Não posso me dar ao luxo de levar
um golpe agora. Não com o divórcio a ponto de me tirar
tudo.
— Nós sabemos quem é a mulher?
Paul a encarou.
— É Nicole Harper. Achei que você soubesse.
Ela tentou engolir.
— Não. Eu… Certo.
— Mas Jamie não sabe disso. O RH não está dando
detalhes até que ele esteja fora do prédio, e é aí que devem
apresentar as alegações contra ele, imagino. Mas, por
enquanto, só você e eu podemos saber que houve uma
reclamação.
— As pessoas já sabem, Kellie e outros. Eu ouvi
comentários no caminho.
— Merda.
Era culpa dela? Culpa dela por não ter relatado a
perseguição sobre a qual Nicole lhe contara, uma
perseguição que levou a um assédio?
— No momento, é claramente a palavra dela contra a
dele. Mas sabemos que ela não quer prestar queixa, o que
é… útil, para nós, quero dizer.
Eles caíram em um silêncio sombrio.
— O RH disse mais alguma coisa? — perguntou ela depois
de um tempo.
— Até que investiguem as alegações por completo, não
podem nos dizer muito mais. Mas Ross disse que muitas
vezes há um padrão de comportamento nesses casos, e
quando uma mulher faz uma denúncia…
— Meu Deus.
— Então, temos isso para aguardar ansiosamente.
Paul cutucou uma área ressecada do couro cabeludo.
— Sabe, é alguém que conhecemos, em quem confiamos
e com quem trabalhamos há anos! Você… — Ele apontou
para ela e então, percebendo o quão acusatório parecia,
deixou a mão cair sobre a mesa. — Bem, você o conhece
melhor do que eu. Vocês dois eram amigos, amigos de
verdade. E sei que ele gosta de mulheres, mas… Jamie não
é o tipo de homem que faz isso, é?
— Não faço ideia do tipo de homem que Jamie seja. —
Pouco tempo atrás, Jill teria sido incapaz de esconder a
tristeza de sua voz. Agora era como se estivesse falando
sobre um estranho. — Eu não disse nada para você, mas
nos últimos meses o comportamento de Jamie tem andado
muito estranho. Coisas das quais eu não sabia antes vieram
à tona. — Ela pensou no e-mail. — Incompetência.
Deslealdade. E agora a revisão interna. E eu suspeito que
ele vinha sendo muito franco com você ultimamente sobre o
que achava de mim. Mas nada chega aos pés disso. A gente
deveria ter imaginado, não é? Talvez apenas não quisesse
ver.
Mas Paul estava balançando a cabeça.
— Não. Não vou levar a culpa. É disso que estou falando!
E nós dois sabemos que não dá para se recuperar disso.
Seja verdade ou não, não importa. A merda não só gruda,
ela mancha. Precisamos tirar Jamie de cena. De vez.
O que a velha Jill faria? A Jill que lidaria até com as piores
“surpresas” profissionais da maneira mais racional e
eficiente possível.
— Acho que temos que deixar nossos sentimentos de lado
e começar a preparar uma declaração caso precisemos
declarar algo publicamente.
Foi quando estavam no primeiro rascunho, ambos ainda
desejando com fervor jamais precisar usá-lo, que o som da
voz erguida de Jamie os colocou de pé. Tinham ouvido uma
ou duas explosões mais altas desde que Jill viera para a sala
de Paul, mas esta veio do meio do escritório.
— Lá vamos nós. Mas ouça, acho que é melhor nenhum
de nós se envolver e deixar Ross fazer o trabalho dele.
Distraída demais pelo confronto público que agora ocorria
entre Jamie e Ross do lado de fora, no meio do escritório, Jill
só conseguiu assentir.
A cena teria sido cômica — o diretor do RH era quase meio
metro mais baixo do que Jamie e muito mais redondo — se
a situação não fosse tão séria.
— É uma pergunta simples. O que Pete está fazendo
aqui?
Eles estavam do lado de fora da sala de Jamie, e, ao
esticar o pescoço, Jill pôde ver que o maior e mais
benevolente dos três seguranças da BWL estava de pé, um
pouco mais afastado ao lado de Jayne, a braço direito loira e
mais imponente de Ross.
— Podemos ter essa conversa na sua sala?
Como que para lembrá-lo a direção de sua sala, Ross
estendeu o braço e Jill ficou surpresa pela onda de antipatia
que sentiu naquele momento, não por Jamie, mas por seu
obsequioso diretor de RH. Quantos anos ele devia ter
passado vendo aquele homem bonito e carismático dominar
o escritório? Agora era o seu momento. A situação talvez o
divertisse.
— Já conversamos, Ross — ela ouviu Jamie contra-atacar
—, e ainda não sei de nada, a não ser que supostamente
ataquei… ataquei… uma funcionária.
Qualquer que tenha sido a resposta da gerência de RH em
seguida, provocou uma nova explosão.
— Você não pode esperar até eu sair? Tem que fazer isso
agora? Não. Desculpe. De qualquer forma, quero meu
casaco.
Havia mais de cem pessoas no andar, mas, exceto pelo
toque de um ou outro telefone e o zumbido da
fotocopiadora, o lugar estava silencioso, todos os pescoços
tensos, todos os olhos grudados na tela sem enxergá-la.
— É sério que você não vai me deixar pegar meu casaco?
O que você acha que vou fazer lá? — Jamie olhou de Ross
para Jayne. — Deletar toda a pornografia do computador?
Depois de alguma ordem murmurada que Jill não
conseguiu ouvir, Pete entrou rapidamente no escritório de
Jamie, ajoelhou-se e desapareceu debaixo da mesa —
reaparecendo segundos depois com um cabo nas mãos.
— Certo, já chega, vou ligar para meu advogado. Isto é…
inaceitável. — Jamie usava aquela linguagem pateticamente
autoritária de novo, como se acreditasse que poderia se
salvar ou alguma imagem de dignidade com formalidades
profissionais. E Jill sentiu a crescente inquietação contra a
qual vinha lutando desde o início da conversa com Paul se
reafirmar. Algo estava errado, e não de uma maneira óbvia.
Não, era a reação de Jamie que estava errada. Porque, por
mais que Jill tivesse começado a questionar o quão bem o
conhecia, aquele homem estava sinceramente surpreso
com as acusações feitas contra ele.
— Ashley, pode ligar para Simon Oliver? Agora. E não
quero saber se ele está almoçando ou no clube. Diga que
preciso que me retorne imediatamente.
Mas os olhos de sua assistente estavam fixos no
computador de Jamie, que era carregado para fora da sala.
— Ashley?
Enquanto a pobre garota piscava para ele, então para
Ross, Jill se perguntou se ela ia cair no choro.
— Eu… eu…?
Ross balançou a cabeça para ela.
— Não posso ligar para meu advogado? — Jamie olhou em
volta, agitado. — Isso está mesmo acontecendo? Ei,
meninas, me ajudem aqui? — Jamie havia ido para o eixo
central, os braços estendidos. — Deve ser uma de vocês.
Não precisa ficar tímida. A não ser… Espera, a não ser que
vocês também não se lembrem. Porque não me lembro de
ter atacado ninguém. E não é o tipo de coisa que você
esquece, não é?
A camisa de Jamie escapara para fora da calça na parte
de trás e seu cabelo estava todo bagunçado para cima.
— Foi você? — perguntou ele a uma agente júnior, que
olhava com atenção para seu computador. — Por acaso eu
abri a porta de um jeito que te deixou “desconfortável” ou
falei que gostei da sua saia? É uma saia muito bonita. Posso
dizer isso? Ou é um “ataque verbal”? Provavelmente. —
Quando não houve reação, Jamie começou a balançar as
mãos na frente do rosto dela. — Oi! Oi! Estou falando com
você! — o que a fez se sobressaltar alarmada e todas as
mulheres próximas ficarem imóveis para não serem notadas
e perseguidas. — Vamos lá! Ninguém vai confessar ter sido
atacada por mim? Uma de vocês chega com uma mentira,
uma palhaçada que, aliás, eu não posso nem saber qual é, e
de repente eu virei a porra do Harvey Weinstein? Cadê a
prova…? Cadê a prova?
Pelo canto do olho, Jill viu Ross, ladeado por Pete, indo
rápido em uma diagonal em direção a Jamie.
— Ah, é, eu esqueci, não precisamos mais de provas, não
é? Porque se uma mulher diz, se é a verdade dela, então é a
única verdade.
— Já chega, Jamie — disse Ross, acrescentando outra
coisa que ela não conseguiu ouvir.
— Pior? Como isso poderia ficar pior? Você inventa que
sou um tipo de predador que ataca mulheres; não só
mulheres, mas minhas funcionárias; e é para eu
simplesmente desaparecer em silêncio, sem saber quem
foi?
— Jamie. — Ross estendeu a mão para dar um tapinha no
braço dele antes de refletir, e por um segundo Jill teve o
pensamento absurdo de que Jamie poderia dar um soco
nele. — Como explicamos, as alegações serão esclarecidas
em seu devido tempo.
A um sinal de Ross, Pete se aproximou e segurou o braço
de Jamie com uma mãozona.
— Vamos lá, meu amigo, está na hora de ir.
— Amigo? — Jamie deu um passo teatral para trás. —
Ainda sou seu amigo, Pete? Eu era seu amigo quando você
me deu o currículo da sua filha e me pediu para procurar
um estágio para ela, não foi? Eu com certeza era seu amigo
quando arranjei para ela aquela vaga temporária na salinha
dos correios. E agora não sou mais. Na verdade, você quer
me jogar na rua.
— Você precisa ir e esfriar a cabeça.
— Porque tudo vai parecer melhor amanhã de manhã?
Acho que não. Mas vou embora… depois de pegar meu
casaco.
Jamie deu um passo em direção à sala dele e Pete
também, barrando o caminho do chefe.
— Não faça nenhuma besteira, Jamie.
— Pete está certo. Já basta. Entendo que a situação seja
desconcertante. Para todos. Mas agora precisamos que você
vá embora.
Apesar de tudo, Jill sentiu uma onda de vergonha alheia
por seu antigo amigo quando Pete, com a mão firme no
braço de Jamie, o “levou” até o elevador para sair.
Foi então que todo o andar pareceu soltar a respiração
em uníssono. E depois que os murmúrios diminuíram — um
exame adequado da situação seria feito no pub mais tarde
—, todos voltaram ao trabalho. Todos, exceto Jill, que ainda
estava ali, com a mão na maçaneta, na sala de Paul.
— Paul?
— Oi? — O parceiro dela estava curvado sobre a mesa, a
cabeça entre as mãos.
— Não perguntei antes porque estava com vergonha.
Porque eu tinha certeza de que sabia a resposta e que
alguém estava pregando uma peça em mim. Mas Jamie por
acaso enviou para você um e-mail, um tempo atrás,
referindo-se a mim como “VSQ” e — ela se contorceu —
“senil”, sugerindo que eu não passava mais “a imagem
certa” para a empresa, esse tipo de…?
A maneira como Paul se mexeu na cadeira, sua recusa em
olhá-la nos olhos, a fez parar de falar.
— Tivemos uma breve troca de e-mails, uns quatro ou
cinco meses atrás, na qual ele, hã, me disse que estava
preocupado com você e achava que você deveria tirar uma
licença. Mas “senil”? Ele nunca usou uma palavra dessas
em nenhuma mensagem para mim. E “VSQ”? O que isso quer
dizer?
O alívio a fez sorrir.
— Deixa pra lá. Deve ter sido… uma brincadeira. — Alex.
Devia ter sido Alex.
É claro que Paul não reagira às palavras grosseiras de
Jamie naquele e-mail porque aquele linguajar só tinha sido
adicionado mais tarde, quando o e-mail estava sendo
editado — por uma ex-assistente vingativa.
— Mas eu deveria te dizer — lá estava aquele olhar
suspeito de novo — que houve uma carta enviada ao
conselho, sugerindo que você fosse…
— Aposentada?
— Tentei convencer Jamie a desistir e me recusei a
participar. Mas ele estava preocupado que a doença de Stan
estivesse cobrando seu preço. Ele falou disso algumas vezes
para mim. — Paul corou. — E para outros, infelizmente.
Atribuí a atitude ao ego dele: Jamie sempre quer… sempre
quis… ser o macho alfa, não é?
Talvez fosse simples assim. Jamie não era o homem que
ela pensava que ele fosse, e o fato de ele ter escrito aquela
carta era mais do que traiçoeiro; era imperdoável. Porém, se
as palavras naquele e-mail foram manipuladas para fazê-lo
parecer pior do que de fato era, como Jill poderia ter certeza
de que Nicole não estava fazendo a mesma coisa agora? Se
o relato dela tinha sido exagerado, isso não tornava a
punição que decidiram infligir a ele pior do que o crime em
si?
Ela já estava na metade do caminho de volta para sua
sala quando Paul gritou:
— Jill, por que a pergunta?
Uma vez em sua mesa, ela enviou um e-mail.
 
Para: Raxugdy@sharklaser.com
De: Jill Barnes
Eu sei que você alterou aquele e-mail. O que mais você fez, Alex? O que
mais?
 
A resposta veio minutos depois: um lembrete arrepiante
do laço que as unia.
 
De: Raxugdy@sharklaser.com
Para: Jill Barnes
Um brinde a derrubar um homem não tão legal.
CAPÍTULO 28

NICOLE

– A inda não está visualizando bem?


Rupert Jones se moveu devagar e em silêncio ao
redor da galeria, massageando a lateral do pescoço com os
nós dos dedos enquanto olhava para cima e para baixo em
direção às quatro fileiras de camarotes dispostas em um
semicírculo ao redor do palco. Os camarotes, e o ainda
surpreendente teto trompe l’œil, não importava quanto
tempo passasse o admirando, sempre foram as
características mais impressionantes do teatro a seus olhos.
Mas depois da reunião com o conselho do departamento de
planejamento na semana anterior — uma reunião em que
um número alarmante de limitações inesperadas foi imposto
ao desenvolvimento estrutural da propriedade —, Nicole
tinha sentido uma queda acentuada no entusiasmo de
Rupert.
Cabia a ela deixá-lo empolgado de novo, mas, depois de
uma noite insone no hotel e da ligação para o RH que
finalmente teve coragem de fazer naquela manhã, Nicole
não sabia se ainda tinha forças. No entanto, precisava
fechar o negócio.
— Originalmente, os camarotes tinham suas próprias
entradas nos lados norte e sul — informou ela com uma
alegria que achou fisicamente dolorosa de simular. — Ao
que parece, os teatros da época tinham sempre essa
disposição, uma entrada para o rei…
— … E outra para o Príncipe de Gales — murmurou
Rupert, olhando para o arco do proscênio. — Sim. Eu
também li o relatório.
— Claro que sim. — Nicole desejou ter parado para
comprar o ibuprofeno de que tanto precisava no caminho
até ali. A parte de trás de seu crânio doía depois de toda a
bebida da noite anterior, e não tinha consumido nada além
de café preto no café da manhã. — É tudo muito fascinante,
não é?
Fascinante? Seu telefone zumbiu alto na bolsa. Ela o
colocara para vibrar depois das duas primeiras chamadas
perdidas e agora se arrependia de não tê-lo desligado de
uma vez.
— Desculpa.
— Atenda.
— Não, não. De qualquer forma, você ouviu o que o
planejamento disse sobre levar o palco para trás, então é
uma grande vantagem, mesmo que…
— É basicamente a única alteração estrutural que tenho
permissão de fazer.
— Bem, eles não disseram exatamente isso — rebateu
ela, sorrindo, embora fosse verdade. — Mas eles poderiam
ter sido mais prestativos, eu concordo. Ainda estou
convencida…
Um zumbido mais insistente quando uma mensagem de
voz foi recebida.
— Alguém realmente quer falar com você.
Ele se virou, e Nicole aproveitou a oportunidade para
pegar o celular na bolsa e verificar se era Ben, finalmente
retornando suas ligações. Mas Rupert escolheu aquele
momento para falar:
— Não vou mentir: aquela reunião da semana passada
mudou as coisas.
— Claro que sim. — Ela se sentia repetitiva e lenta,
incapaz de fazer seu trabalho e, ainda assim, perfeitamente
ciente de como era importante fechar o negócio antes de
deixarem o local. Do contrário, Rupert não fecharia, ela
tinha certeza disso. E, no entanto, havia algo humilhante
sobre essa parte de seu trabalho, lembrando-a, como
sempre, de que não passava de uma vendedora, fixando-se
na indecisão daquele momento crucial antes de se
solidificar em um “não”.
— Olha, tenho certeza de que você, dentre todas as
pessoas, consegue encontrar uma maneira de contornar
essas coisas. E, na verdade, manter o lugar do jeito que
está, com as restaurações necessárias, claro, vai apenas
aumentar o charme, não? — Ela estava entrando em
desespero e ele sabia disso. — Este lugar é tão original!
Quer dizer, eu nunca vi nada assim.
A expressão facial de Rupert estava irredutível. Estava na
hora de aumentar a aposta.
— E preciso dizer, recebi uma ligação de outro possível
comprador. Claro que posso evitar outras visitas à
propriedade por, bem, uma semana, talvez dez dias, se
necessário? — Ela fingiu o constrangimento profissional que
teria sentido se estivesse dizendo a verdade. — Mas em
algum momento terei que dar um retorno e dizer se ainda
está disponível ou não.
Rupert sustentou o olhar dela por um segundo,
divertindo-se com a falta de jeito de sua tática.
— Outro possível comprador, hein?
— Isso mesmo. — Quanto mais se mente, mais fácil fica. E
agora cada frase que Nicole abria a boca parecia estar cheia
de mentiras. — Mas consigo um tempinho. Digo, no segundo
em que vi este lugar, pensei: “É a cara do Rupert.” E vim
falar com você primeiro porque sei que está procurando um
local no noroeste tem, não sei, uns 18 meses… ou mais?
Por cima da balaustrada, ela vislumbrou a curva da
primeira fileira de poltronas das cadeiras Ambassador. 8A:
aquele era o número — branco sobre preto — para o qual
ela tinha olhado depois, enquanto estavam deitados. E, por
um momento, se viu de cima junto a ele: ofegantes e
satisfeitos no tapete gasto. O lugar pareceu abafado, a
umidade a pinicando na axila e entre os seios, trazendo o
cheiro do suor da véspera. Ela não tinha pensado em levar
uma troca de roupa para o hotel, apenas em sobreviver ao
jantar. Porque depois nada mais importaria: depois, só
haveria ela e Jamie.
— E como eu ia dizendo… — Distraída com a acidez do
próprio hálito, Nicole se esqueceu completamente do que
estava dizendo. Não ajudou que Rupert a estivesse
examinando daquele jeito.
— Você está bem? Parece… — Ele fez um gesto vago com
a mão em sua direção, e ela sentiu uma pontada de
vergonha de como devia parecer desalinhada, da blusa
amarrotada à maquiagem aplicada no metrô. Estar
impecável era parte de quem ela era; hoje Nicole se sentia
como se estivesse desmoronando.
— Desculpe, Rupert. Sabe, eu estou… Na verdade, não
estou me sentindo muito bem. Você se importa se eu for ao
toalete um segundo? Assim você tem tempo para olhar um
pouco mais?
No banheiro mal iluminado, ela procurou por uma cabine
limpa o suficiente onde pudesse se sentar, mesmo que por
um segundo, antes de desistir e afundar no chão, as costas
na parede. Com dedos trêmulos, ela pegou o celular,
olhando para a imagem do protetor de tela como se as duas
pessoas na imagem não tivessem nada a ver com ela. Syon
Park, um domingo gelado, sete… não, oito meses atrás.
Chloe nos ombros de Ben, mal se vendo o cachimbo de
bolhas de sabão que ela comprara para a filha no caminho
na mão da menina. A repreensão afetuosa de Ben à esposa,
quando ela insistiu que visitassem a loja de presentes
primeiro: “Você nunca consegue esperar, não é?” E sua
culpa ao interpretar a frase, sabendo que havia enviado
uma mensagem a Jamie provando exatamente isso no
caminho até lá: Me diga que consegue escapar amanhã?
Preciso de você.
Ross, o diretor do RH, tinha ligado duas vezes e deixado
uma mensagem de voz que ela não teve forças para ouvir. A
terceira mensagem, no WhatsApp, era de Anita, uma colega
do setor de Desenvolvimento de Projetos. O relacionamento
das duas sempre se limitara a pausas para um cigarro
eletrônico e fofocas de celebridades em uma rua secundária
de Hammersmith atrás do escritório cheia de lixo. Nunca
tinham saído para beber juntas ou entrado em contato por
qualquer meio que não o e-mail. Meu Deus — você ficou
sabendo?, dizia a mensagem dela. Jamie foi suspenso!
Ela sabia que isso aconteceria. Do silêncio de Ross do
outro lado da linha depois que ela arrastou os preâmbulos
sem sentido o máximo que pôde e, por fim, conseguiu
proferir aquela frase, recitá-la, na verdade, porque era essa
a sensação. Basta dizer a primeira frase e o resto vem,
porque precisa vir: você não tem escolha depois de as
primeiras palavras serem ditas.
— Ross, estou ligando para relatar um assédio. Jamie, ele
me assediou.
Ela sabia que ele seria suspenso, porém, foi só enquanto
assentia silenciosamente às instruções de Ross para
escrever um e-mail com uma declaração “incluindo todos os
detalhes que você lembra sobre o ocorrido”, as
transformações começaram a ser absorvidas.
— Sei que pode ser difícil para você — ele havia dito,
mais profissional do que tranquilizador, como uma mulher
no cargo dele sem dúvida teria sido —, mas também é vital
em termos de como procederemos a partir daqui.
— Mas eu não quero prestar queixa — ela se apressou em
dizer, em pânico. — Não quero envolver a polícia. Não
posso… passar por nada disso. — Alex havia jurado que não
seria necessário, mas ela precisava ter certeza. — Eu não
tenho que fazer isso, tenho? — Ela estava parada na janela
do quarto de hotel observando os mesmos turistas da
véspera raspando o finalzinho de seus ovos Benedict,
enquanto ela estava na ligação. Enquanto assistiam a um
espetáculo no West End ou faziam o que quer que as
pessoas viessem a fazer em Londres, ela afundava sua vida.
E agora faria o mesmo com a de Jamie.
— Neste momento, a declaração vai ser vista apenas por
nós — enfatizou Ross. — E será seguida de uma
investigação. Mas Nicole: vamos precisar que você fique
fora do escritório hoje enquanto lidamos com isso.
— Claro.
Ross então disparou a falar sobre a confidencialidade do
processo e sobre “minimizar as especulações dos colegas
de trabalho”, e o tempo todo Nicole teve a sensação curiosa
de cair em um poço sem fundo.
— Nicole? Você ainda está aí?
— Estou.
— Não preciso dizer que não deve haver contato direto
com o acusado.
— Sim. Quer dizer, não. Não vou entrar em contato com
ele.
O acusado. Como se estivesse num drama de TV. Ela
pensou nos CEOs, ministros e atores que foram demitidos à
primeira menção de “impropriedade”, que dirá assédio, nos
primeiros meses do Me Too. “Não me foi dito o que
supostamente fiz”, dissera um deputado. E naquela época
Nicole não tinha acreditado que isso pudesse ser verdade.
Naqueles pensamentos casuais que o noticiário pode
provocar, ela se perguntou sobre as esposas e os filhos:
tinham sido pegos de surpresa? Os sussurros nos portões
escolares foram ruins o suficiente para fazê-los mudarem de
escola ou as crianças também foram consideradas vítimas e
recebidas com empatia?
Aquela palavra — acusado — a obrigou a pensar na
pessoa que havia afastado de sua cabeça desde o início:
Maya. Quanto tempo até ela descobrir? E será que seria
uma daquelas mulheres que negavam a verdadeira
natureza do marido? O tipo que você vê nos jornais
orgulhosamente de mãos dadas com um pedófilo do lado de
fora do tribunal? Claro, Jamie podia confessar um caso.
Dizer que não era um santo e não importava quem fosse a
mulher, porque nunca significou nada, mas ele não era um
monstro — e não tinha feito aquilo.
Alex a tinha avisado que poderia sentir pontadas de
culpa, mas que, toda vez que sentisse isso, ela deveria se
obrigar a lembrar: “Eu disse não.” E se ela podia fazer Jamie
sentir até mesmo um pingo do sofrimento fluindo por ela
agora, então era a forma mais pura de justiça.
Rupert devia estar se perguntando por que ela estava
demorando tanto. Apoiando-se na pia para ficar de pé,
Nicole se debruçou sobre a torneira e jogou água no rosto.
Tarde demais, se lembrou da maquiagem nos olhos e ficou
parada por um momento, paralisada pelas gotas que
escorriam por seu rosto como lágrimas lamacentas.
Quando terminou de limpar o rosto e respirou fundo duas
vezes diante do espelho, Rupert já tinha visto as galerias e a
esperava do lado de fora, no átrio do teatro.
— Rupert, sinto muito. Eu realmente estava me sentindo
um pouco mal, mas estou bem melhor agora.
Ele ergueu os olhos do celular, tentando mascarar a
irritação. E ela se perguntou qual teria sido a última vez que
Rupert Jones fora obrigado a esperar.
— Eu estava pensando em levá-lo para comer alguma
coisa? Isso nos daria a chance de elaborar um plano e levá-
lo de volta ao conselho e…
— Acho que não.
Ele respondeu tão baixinho que, por um momento, Nicole
torceu para ter ouvido errado. Porque não era só “não” para
um almoço, ela sabia. Era “não” para a venda — não para
tudo. E por que isso importava tanto agora, Nicole não tinha
certeza, exceto que a sensação de queda estava de volta,
como se tudo que importava estivesse escapando de suas
mãos.
— Rupert…
Em sua persistência, o zumbido parecia estar ficando
mais alto, e enquanto ela enfiava a mão na bolsa e
procurava o celular entre os detritos de sua vida — batons,
canetas, pós compactos, baterias descarregadas e cabos
elétricos misteriosos —, Rupert se virou com um aceno e
saiu porta afora.
Se o rosto de outra pessoa tivesse aparecido em sua tela
naquele momento, Nicole poderia ter jogado o aparelho
contra a parede, mas era seu marido, era Ben, e o alívio a
deixou tonta.
— Ben. Finalmente. Estou tentando falar com você a
manhã toda. Por favor, por favor, podemos conversar? Onde
você está? Posso ir ver você agora? E a Chloe, como ela
está?
Ela teria continuado se Ben não a tivesse interrompido
em um tom grave e comedido:
— Seu chefe, Jamie, está sentado na nossa cozinha. E ele
está caindo de bêbado.
CAPÍTULO 29

ALEX

“E
le está fora. Suspenso sem previsão de
retorno.”
Alex tinha passado a manhã toda
esperando a ligação de Nicole, checando o celular tantas
vezes na primeira meia hora da aulinha para bebês que por
fim a instrutora lhe deu uma bronca por “não estar presente
no seu momento mãe”.
Sem ter recebido nenhuma ligação ao término da aula,
Alex começou a questionar se Nicole tinha conseguido levar
o plano adiante. Mas o efeito calmante de Maya era tal que,
caminhando junto a ela em direção à casa de Maya para o
almoço, Alex esquecera o celular no bolso do casaco até
aquele apito abafado; até as palavras que esperara meses,
não só horas, para ouvir.
— Notícia boa? — perguntou Maya depois de uma
conversa curta em que Nicole deu a notícia, junto s outro
fato: “Ele está fora, e parece que está enchendo a cara em
todos os bares de Hammersmith, pelo que falaram.”
— A melhor possível. — Alex sorriu. — Não vou encher
seu saco com detalhes. Mas não é ótimo quando um plano
funciona?
Maya nem se preocupava mais em convidar Alex para o
almoço depois da Bumps & Babies. Era um acordo entre as
duas que, duas vezes por semana, sem falha, elas
seguiriam para a casa de Maya, muitas vezes passando pela
Turnham Green Terrace. Às vezes, quando Maya precisava
fazer algo ou Alex tinha percebido que Maria chegaria mais
cedo, ela ficava só uma ou duas horas, sabendo que um
segundo encontro com a babá talvez fosse o gatilho para
uma lembrança definitiva. Mas em outras ocasiões passava
a tarde inteira lá.
Ficou mais grata pela distração do que nunca, tendo
enfim se forçado naquela manhã a ligar para a mãe e dizer
que não ia conseguir pagar o empréstimo a tempo: que
tinha perdido o emprego, que era mesmo a decepção que o
pai sempre a considerara. Ela ainda ouvia o pânico na voz
da mãe — “Mas o que eu vou fazer? O que vou falar para
ele?” —, e sua resposta fraca: “Desculpa, mãe. Desculpa
mesmo.”
Mas ela não podia pensar nisso agora. A única coisa que
importava era que Jamie estava fora. O plano tinha
funcionado. E isso: o barulho dos pratos sendo empilhados
por Maya na cozinha, a soneca que as meninas tirariam em
breve, e as horas preguiçosas de vinho e bate-papo que as
duas aproveitariam.
Ela não estava preocupada com a possibilidade de Jamie
voltar para casa. Já tinha visto o ex-chefe fazendo a
peregrinação dele em bares antes, e essa com certeza seria
ainda mais prolongada que a maioria. E também, como
Maria ia levar Christel para uma festa de aniversário depois
da escola, isso significava que Alex tinha a maior parte da
tarde à sua frente, e ela se deitou na esteira que Maya tinha
estendido na grama para elas, tentando não pensar na
tristeza que sentia ao sair daquela casa e voltar para a sua,
vazia, como a sua vida. Cada vez mais aquela tristeza se
transformava em algo profundamente pior, com Katie
chorando de soluçar e sentindo o mesmo, e Alex sem
conseguir fazer o necessário para acalmá-la.
Olhando para Maya agora, enquanto ela se curvava sobre
as meninas, o vestido de verão rosa claro decotado que ela
usava escorregando para revelar seios firmes envoltos em
um sutiã de algodão branco, Alex se maravilhou novamente
com aquela tranquilidade sobrenatural. Ela conhecera
mulheres serenas e centradas, mas esses atributos em
geral vinham às custas de outros, tornando-as chatas ou
pedantes.
— Não sei como você faz isso, acalmar Katie só de estar
por perto. — Alex se moveu alguns centímetros para ficar
com o rosto na sombra. — Às vezes ela está totalmente
doida e é só olhar pra você que… — Ela balançou a cabeça.
— Você parece uma encantadora de bebês.
Maya se sentou à mesa, se equilibrando nos ombros de
Alex ao fazê-lo.
— Que legal você dizer isso. Acho que ela só estava com
um pouco de cólica. Mas já está melhorando, não está,
bebezinha? Estou mais preocupada com essas suas
queimaduras, Lexie. E sabe de uma coisa? Eu já fiz quase a
mesma coisa, quase enfiei a mão no forno sem colocar as
luvas.
Alex tinha se esquecido da gaze que começou a enrolar
nas mãos para tentar conter os olhares e as perguntas. Ela
havia esquecido também qual era a história exata de
queimadura que contou a Maya uma semana antes.
— Ah, na verdade está quase bom. Já quase não sinto.
Talvez seja seu suco de uva francês que esteja ajudando.
Uma caixa do rosé favorito de Maya chegara no fim de
semana — um presente do “marido encantador, mas
levado, que tem algumas compensações para fazer” — e
Alex se permitiu ficar um pouco altinha durante o longo
almoço. “Como assim, você nunca bebeu Minuty?”,
questionou Maya ao tirar a garrafa da geladeira, colocando
alguns cubos de gelo em cada copo. “Vai mudar sua vida!”
E na boca de qualquer outra pessoa teria sido um clichê
horrível, mas na de Maya — com seu leve sotaque — tinha o
charme de uma frase adulta imitada por uma criança. E,
sim, o vinho era bom, mas tinha sido Maya que mudara a
vida de Alex.
Uma brisa suave soprou uma rajada de pétalas cor-de-
rosa sobre as meninas, e as duas mulheres se entreolharam
e riram.
— O que será que elas pensam de tudo? — murmurou
Maya quando parou de rir, amarrando o sling marrom como
uma echarpe ao redor dos ombros. — Da vida?
Ela balançou a cabeça, envergonhada por sua seriedade
repentina. Mas Alex assentiu, ávida para tranquilizá-la de
que já tivera pensamentos semelhantes, mesmo que não
fosse o caso. Ainda assim, parecia um seguimento natural e
uma prova de que ela era o tipo certo de mãe ao sugerir
que elas também se deitassem ao lado das filhas e
olhassem para o mundo — que também tentassem vê-lo
com novos olhos. Porque algo nisso parecia novo para Alex,
agora que Jamie fora derrubado e Jill tinha adivinhado que
tudo vinha dela — bem, de todas elas, na verdade. Não que
o e-mail que a fundadora da BWL tinha enviado para a conta
anônima de Alex naquela manhã a tenha incomodado. Elas
planejaram tudo isso juntas, então ninguém diria nada a
ninguém.
— Ahhh. — Maya suspirou ao deixar a cabeça loira e
macia recostar na esteira. — Fiquei tonta.
— Bom, a gente bebeu uma garrafa inteira, né?
— Verdade. — Maya fechou os olhos. — Mas rosé… não
conta, né? E já é quase final da semana.
— Uma quarta?
— Tanto faz.
Maya ficou em silêncio, e por um momento Alex se
perguntou se ela tinha dormido, mas ao olhar para a amiga
percebeu que seus olhos estavam abertos e fixos na
magnólia acima delas.
— Lex?
Alex se apoiou nos cotovelos.
— É o seu celular?
Mal dava para ouvir o apito vindo da mesa da cozinha,
onde deixara o aparelho.
— Acho que eu cochilei por um momento.
Alex entrou na cozinha pé ante pé, torcendo um pouco
para que a pessoa que estivesse tentando falar com ela
tivesse desistido. E desistiu. Mas, assim que ela leu as
palavras na tela — “Ligação perdida: Nicole” —, o celular
começou a tocar de novo.
— Oi? — Ela estava grogue do sol e do vinho. Apoiando o
celular no ombro, pegou um copo no escorredor e encheu
de água gelada da pia. — Olha, eu estou meio enrolada…
Mas Nicole não estava ouvindo.
— Ele está… na minha casa… marido?
As frases de Nicole, interrompidas por ondas de estática
como se ela estivesse atravessando um túnel em alta
velocidade, vinham em fragmentos. Alex pensou em
desligar e culpar o sinal.
— Não estou te ouvindo. Você o quê?
Enquanto Nicole continuava fazendo barulhos
incompreensíveis, Alex deu uma olhada pela janela da
cozinha para a rua quieta com fileiras de sicômoros, e se
imaginou como a dona do copo azul chique que ela enchia
de água, daquela casa e daquela vida. De tudo, menos o
marido. Ela não o queria. A partir daquele dia, ninguém o
quereria.
— Nicole? Onde você está?
Uma caminhonete do mercado parou na calçada em
frente e o motorista saiu, os fones caindo das orelhas para o
bolso, a boca se movendo em silêncio com a música. Ele
tirou cestas de plástico vermelho da parte de trás e as
empilhou em frente à porta dos vizinhos, enquanto as
palavras de Nicole finalmente começaram a fazer sentido.
— Na minha casa.
Alex podia apostar que conseguiria listar todos os itens
naquelas cestas: os inevitáveis avocados e as embalagens
de leite de amêndoas para alguma suposta alergia; os bifes
orgânicos e o mel de Manuka.
— Quem está na sua casa?
— Jamie estava na porra da minha casa. Duas horas
atrás.
Alex colocou o copo na pia.
— O quê?
— Duas horas atrás. Ben me ligou. Parece que estava
bêbado. Claramente foi encher a cara antes de decidir me
confrontar. Ele sabe, Alex. É claro que sabe.
Olhando pelas portas abertas do pátio para o jardim, onde
as três figuras ainda continuavam deitadas na grama, Alex
abaixou a voz e conseguiu soltar um fraco:
— De jeito nenhum, não tão rápido. Mas, claro, eles vão
precisar contar os detalhes da alegação mais para frente.
O que quer que Alex tinha dito para tranquilizá-la, Nicole
devia saber disso, certo?
— Não foi isso que você me falou ontem à noite. E que
merda que ele foi fazer na minha casa? Ben não me contou
o que ele disse, mas eu estou enlouquecendo, Alex.
Nicole agora soluçava.
— Calma. Como eu falei, o RH não vai ter contado a ele
que foi você, não agora.
— Eu só… Eu achei que eu teria um tempo, em que ele se
acalmaria e eu resolveria minha vida. Você me prometeu
que eu ficaria segura.
O tom de voz de Nicole tinha ido de sofrido para
acusador, e isso estava começando a irritar Alex.
— Só espera. Logo tudo isso vai acabar.
Na rua, uma loira que era velha demais para usar aquela
calça jeans rasgada assinava o recebimento das compras.
— Eu nunca deveria ter topado isso.
— Nicole. — Alex respirou fundo. — Ninguém te forçou a
nada. E não esqueça — completou, sussurrando — que
ontem à noite você estava num bar me dizendo como Jamie
tinha estragado a sua vida.
Uma pausa enquanto Nicole parecia deixar as lágrimas
correrem.
— Minha filha estava lá! Chloe viu tudo!
Alex ouviu uma confusão de buzinas e um palavrão de
Nicole, e o barulho ao fundo diminuiu.
— Quer dizer, como ele se atreve? Como se atreve a
entrar na minha casa, na minha vida, depois do que fez?
— Bom, aposto que não vamos precisar vê-lo nunca mais.
— A qualquer minuto Katie acordaria e começaria a chorar.
E Maya ia se perguntar por que ela estava demorando
tanto. Alex precisava desligar. — Olha, eu te ligo depois, tá?
— Aham. — Nicole parecia meio doida. — Tudo bem. Te
ligo depois, assim que eu encontrar ele.
— Ótimo. — Alívio… Então um aperto no peito. — Espera,
Nicole? Encontrar quem?
O homem do mercado empilhava as cestas na rua e,
enquanto esperava Nicole responder, Alex se perdeu em
seus movimentos metódicos. Em seguida, seguiu a direção
dos olhos do homem, que registravam a chegada de algo ou
alguém na rua tranquila. Uma mulher se aproximando com
passos rápidos e decididos; uma mulher com um celular na
orelha, parada a menos de um metro de Alex, agora, do
outro lado da janela da cozinha. Uma mulher cujas palavras,
quando finalmente saíram, não foram silenciadas pelo vidro
entre elas, mas soaram assustadoramente altas em seu
ouvido:
— Jamie — disse Nicole, a encarando. — Assim que eu
encontrar Jamie.
 
Por um segundo tudo ficou paralisado, como se uma
membrana estivesse protegendo-a da repentina pressão
atmosférica. Então os ouvidos de Alex estalaram e tudo
aconteceu ao mesmo tempo: a campainha, o choro de
Katie, Maya na porta, segurando sua filha com a cara
vermelha, a boca uma máscara da tragédia.
— Acho que tem alguém com fome!
De novo, a campainha.
— Aqui.
Entregando Katie para Alex, Maya foi para a porta de
entrada.
— Espera.
Maya se virou.
— Não…
Mas era tarde demais; em um segundo tudo isso teria
acabado.
— Um minuto, só vou atender — respondeu Maya com um
sorriso. — Olá.
A parede que separava a entrada da cozinha era fina, e
de sua posição na cabeceira da mesa da cozinha, Alex
conseguia captar uma infinidade de inflexões nessa palavra.
Reconhecimento, antes de tudo, porque, embora as duas
mulheres nunca tivessem sido apresentadas, haviam se
visto mais de uma vez em ocasiões sociais. Confusão: o
rosto de Nicole era provavelmente um daqueles que só fazia
sentido em um contexto profissional. E outra coisa: uma
tensão que sugeria alguma forma de conhecimento prévio
da parte de Maya.
— Maya… Eu… — A coragem que a havia impulsionado
segundos antes parecia ter desaparecido. — Não sei se você
vai se lembrar de mim. Sou Nicole Harper.
As duas estavam trocando um aperto de mãos?
— Nós nunca fomos apresentadas, mas eu trabalho com
seu marido e nós…
— É claro que eu me lembro. — Talvez Alex tivesse
imaginado aquele desconforto. — Entra.
O som de botas de salto na entrada, do tipo que causa
danos irreparáveis num piso de madeira como aquele; do
tipo que deixa marcas no carpete.
Katie — que tinha se aquietado pela possibilidade de ser
alimentada — começou a chorar de novo com impaciência
e, vendo sua bolsa ali perto, Alex tentou pegar a mamadeira
com as mãos trêmulas.
— Desculpa. — A voz ainda instável de Nicole na entrada,
onde os passos haviam parado. — Você está com…
— Não, não. É a filha de uma amiga. A minha ainda está
dormindo. Como posso te ajudar?
A tranquilidade de Maya se transformou em algo mais
vigoroso, e uma esperança louca se acendeu em Alex:
Nicole devia ter adivinhado que, se Alex estava ali, Jamie
não estaria. Talvez não entrasse na casa. Talvez Maya se
livrasse dela antes que tivesse a chance de dizer muito
mais. Então, Alex poderia encontrar um lugar tranquilo para
ligar para Nicole e explicar sua presença ali.
— Estou procurando Jamie. Não conseguimos encontrá-lo.
E depois do que aconteceu hoje…
— Perdão, não entendi.
— Você não…? Ele não está aqui?
— Não. — Maya soltou uma risada frustrada. — Achei que
ele estivesse no escritório. O que houve?
— Aconteceu… uma coisa. E estou tentando ligar para o
celular dele. Perdão, achei que você já soubesse. Jamie foi
suspenso.
Silêncio. Então um murmúrio:
— Melhor você entrar.
Quando as duas mulheres apareceram na porta, Maya,
sempre uma anfitriã graciosa, conduziu aquela mulher
quase desconhecida para a sua cozinha antes de procurar o
celular. Alex se sentiu dividida em duas. Uma parte sua
queria fugir do confronto inevitável, e outra parte — a que
cada vez mais saía de si mesma — estava apenas curiosa
para ver como Nicole reagiria.
— Essa é a minha amiga Lexie. Só vou acordar minha
filha, aí tentamos ligar para o celular de Jamie.
Apoiada no balcão, Nicole absorveu a cena em silêncio:
Alex sentada à mesa da cozinha de Jamie com a filha no
colo; a tigela de frutas na mesa ao lado de uma garrafa de
vinho vazia.
— Lexie?
Talvez houvesse uma forma de sair dessa; talvez Maya
não precisasse saber. Mas Alex teria que falar rápido.
— Eu ia te contar. E eu sei que você falou para não me
meter com a Maya.
— Não se meter com ela? — sussurrou Nicole com raiva.
— Alex, “Lexie”, mas que merda está acontecendo? — Uma
pausa. — Me diz que isso é só um apelido. Me diz que ela
sabe quem você é.
Balançando a cabeça, Alex levou o indicador aos lábios.
— Isso é doido pra cacete, você sabe disso, né?
— Isso tudo era pra ser… — sob a mesa, Alex apertou a
mão machucada na quina da madeira, sentindo a onda de
dor a acalmando quando as beiradas ásperas apertaram a
gaze e os ferimentos quase cicatrizados embaixo. — Era
parte do plano.
— Meu Deus — gemeu Nicole. Ela precisava falar baixo.
— Eu sei, eu sei. Mas as coisas que consegui fazer e
descobrir aqui foram muito úteis… para nós!
— Não, não, não. Eu não tenho nada a ver com isso.
Nunca quis arrastar Maya para essa situação.
— Será que dá para falar baixo?! — Nicole não estava
entendendo. — Todas aquelas coisas no escritório, o e-mail
sobre a Jill que eu editei, não iam ser o suficiente. Não está
vendo? Eu precisava de mais acesso. Como você acha que
eu consegui fazer isso nesses meses todos? Os cigarros, a
aliança dele. — Alex ansiava pelo crédito, percebeu naquele
momento. — Tudo isso fui eu. A aliança já está no lixão a
essa altura, e eu misturei ritalina nas vitaminas dele, para
deixá-lo nervoso, para deixá-lo do jeito que ele deixou a
gente. E Ainsley…
— O jantar foi culpa sua. Claro que foi.
— Não foi difícil. Algumas modificações no menu que a
assistente de Jamie tinha preparado para Maya resolveram.
E enquanto Jamie estava tomando um drinque antes do
jantar com Hayden… — ela pausou antes de completar seu
triunfo — … Eu deixei uma fralda de Katie no banheiro das
visitas.
Mas Nicole não parecia impressionada; ela parecia
chocada.
— Funcionou, não? Funcionou! Maya nunca nem percebeu
que fui eu. Estava tão ocupada arrumando a casa que achou
que ela tinha deixado a fralda!
No jardim, Maya finalmente tinha conseguido acordar Elsa
e estava voltando, com a esteira jogada acima do ombro.
Isso só deu a Alex segundos para explicar algo crucial:
— Mas eu gosto dela, Nicole. Mesmo. Nós somos amigas.
Maya é totalmente diferente dele. Ela é gentil e engraçada e
uma pessoa boa mesmo.
As duas ficaram em silêncio quando Maya entrou, Elsa
bocejando, e Nicole abriu um sorriso forçado.
— Agora vamos tentar ligar para o papai, tá?
Maya apoiou Elsa no peito e depois na cintura de novo ao
discar.
— Caixa postal — comentou. Então, no telefone: —
Querido, Nicole, do escritório, está aqui. Ela me contou o
que houve. Estão tentando falar com você. Se puder, liga de
volta?
Alex esgueirou o olhar para Nicole, cujos olhos iam de um
canto a outro da sala, absorvendo os detalhes da vida do
amante.
— Você quer um chá ou…
O telefone fixo tocou.
— Ah, pronto.
Com quer que Maya estivesse falando, não era Jamie.
— Ele… Que horas foi isso? É claro que deveria me dizer.
— Aí, mais estridente: — Como assim, não vão dizer? Certo.
Obrigada, Jill.
As três permaneceram paradas. Alex ficou aliviada ao
ouvir o choro de Katie preenchendo o silêncio. O olhar
irritado de Maya para sua filha pegou Alex de surpresa.
— Lexie, você se importa de só… — Ela indicou o
tapetinho de atividades, sem precisar se explicar. — Eu só
preciso entender o que está acontecendo e não consigo
com…
— Claro. Quer que eu leve Elsa também?…
Mas Maya se afastou dela involuntariamente. Um
triângulo vermelho havia aparecido no pescoço dela, na
parte da pele exposta pelo sling enrolado como um
cachecol, e o olhar de Maya percorreu a cozinha, atordoado
por um momento.
— Na verdade, sabe de uma coisa? Acho que vou pedir
para vocês duas irem embora. Desculpa, eu tenho que… —
Ela se virou para Nicole. — Quando você disse que meu
marido tinha sido suspenso, não falou o motivo.
Com os lábios apertados em uma linha fina, Nicole olhou
em volta, sem jeito.
— Eu estava mostrando uma propriedade para um cliente
quando aconteceu. Mas houve uma… acusação. Jill te
contou? Mas, olha, me desculpa por te atrapalhar. — Ela
indicou a saída. — Vou deixar você em paz agora.
— Tá. — Maya olhava pela janela da cozinha, para uma
rua e um mundo que deveriam parecer muito diferentes
agora. — Assédio sexual — completou, saindo de seu
estupor e encarando Nicole. — Foi isso que Jill falou. Que
uma mulher no escritório está dizendo que ele… abusou
dela.
— Maya. — Alex foi para o lado dela na hora, a mão
erguida, mas sem tocar no braço da amiga.
— Eu só não… — Maya apertou a têmpora.
— Deixe a Elsa comigo.
— Não, não. Eu estou bem. Só preciso ficar sozinha. —
Então, para Nicole: — Para responder a sua pergunta, eu
espero que meu marido esteja com o advogado dele.
— Certo. — Nicole assentiu e se virou para sair,
murmurando um último “Sinto muito” enquanto saía.
Se não fosse a total ausência de qualquer barulho
acidental naquele exato momento — nenhum cortador de
grama do vizinho, nenhum carro passando lá fora, nenhum
bebê chorando —, talvez Nicole não tivesse ouvido as
palavras que a esposa de Jamie, com os olhos ainda no
celular, falou:
— Sua vagabunda burra.
Alex parou de enfiar lenços umedecidos e protetor solar
de volta na bolsa e encarou Maya. Ela parecia a mesma
mulher gentil, brilhante e centrada que conhecera tão bem
nos últimos dois meses, mas aquela voz e aquelas palavras
pertenciam a outra pessoa.
Nicole reapareceu na porta da cozinha.
— O que foi que você disse?
Maya se aproximou dela com Elsa ainda nos braços, e por
um momento Alex teve a dramática sensação de que Maya
estapearia Nicole, mas, em vez disso, ela se sentou na
cabeceira da mesa da cozinha, com as pernas ligeiramente
afastadas e Elsa no colo, e começou a desabotoar o vestido.
Então, com um pequeno suspiro de irritação por ter que se
repetir:
— Eu te chamei de vagabunda burra.
As duas mulheres se entreolharam, Nicole tão surpresa
que um tremor correu sob a pele, Maya com uma frieza
quase divertida. Agachada ao lado de Katie no canto do
cômodo, Alex fora esquecida.
— Não vai perguntar por quê? — Baixando os olhos para
Elsa, Maya tirou uma das mangas do vestido do ombro,
revelando o sutiã branco. — Já vai, meu amor. Já vai.
Outro inclinar do mesmo ombro permitiu que a alça
caísse, e, se recostando para ficar confortável, Maya puxou
o bojo para baixo e tirou o seio intumescido, coberto de
veias azuis e com o mamilo marrom, trazendo a cabeça da
filha para si. Durante todo esse processo, seus olhos nunca
deixaram os de Nicole.
— Você não vai perguntar por que eu te chamei de
vagabunda? — continuou, a voz entediada. — Acredito que
é porque você acha que uma esposa tinha o direito de falar
assim com a mulher que está trepando com o marido dela.
Só uma confusão rara de palavras — especialmente em
tempos verbais — mostrava que Maya não era uma falante
nativa de inglês. Podia ser charmoso, ou podia dar um peso
às suas sentenças, como naquele momento. Alex olhava de
Nicole, na porta da cozinha, a bolsa pendurada na ponta dos
dedos, para Maya, majestosa, alimentando a filha, e se
perguntou o que a mantinha ali, na casa do amante,
ouvindo o veneno cuspido pela esposa dele. Por que não foi
embora? No momento em que ouviu Maya dizer aquelas
palavras, por que não tinha ido embora? Jamie não estava lá
e ele era o único motivo da vinda dela. Ela estava
estragando a tarde das duas, e agora precisava mesmo ir
embora.
— Direito?
Era um desafio — um que Maya respondeu com uma
expressão levemente confusa.
— Sim, o direito. Certeza de que é esperado, até.
Nicole engoliu em seco, claramente tentando recuperar o
controle.
— Olha, eu não sei o que você acha que sabe ou o que
Jamie te contou.
— Ah, por favor. — Maya inclinou a cabeça para o lado
com uma expressão entristecida. — Podemos partir do
princípio que eu sei de tudo? Do teatro, das
mensagenzinhas safadas quando você deveria estar
aproveitando as tardes em família com a sua filhinha. Os
hotéis, Best Western e Hilton, e aquela ideiazinha idiota do
Angelini’s. Então, quando eu digo tudo, quero dizer tudo.
Como? Porque eu organizei tudo isso. Eu escolhi você.
— Do que você está falando?
Devagar, Nicole deixou a bolsa no chão.
— Ele te chama de “Nikki”? Não. Não, ele te chama de
“Nic”, né? — Ela sorriu e balançou a cabeça. — Não importa.
Você é casada, não é? Isso sempre foi parte do acordo. Bom,
a questão é que você entende. O tédio, sabe? A mesma
coisa, com a mesma pessoa, ano após ano. Todos estamos
entediados. E não acho que sejam os homens que ficam
entediados primeiro. Acho que eles só cedem à tentação
primeiro.
— Do que você está…
— Jamie estava entediado. Eu estava entediada. Mas eu
não ia deixar nosso casamento acabar e fazer as crianças
enfrentarem um divórcio por alguns minutos, alguns
segundos, do quê? De nada. E, bom… — Maya estreitou os
olhos e mais uma vez Alex se perguntou quem era aquela
mulher que ela achava que conhecia. — Eu comecei a
pensar que talvez gostasse da ideia dele com outra pessoa.
— Vocês dois… Vocês são doentes.
Maya refletiu.
— Não acho que seja verdade. Eu fiquei chateada, sabe,
na primeira vez, quando descobri sobre a assistente dele,
anos atrás. Para começo de conversa, ela era ralé, e era um
clichê tão absurdo que obviamente as pessoas iam começar
a notar. Eu não gosto que saibam sobre meu marido traidor.
Não gosto de pena.
— Jessica? — A voz de Nicole estava rouca.
— Era esse o nome dela? Nem me lembrava. Mas foi ruim.
E eu nunca ia passar por aquilo de novo. Então, se ele fosse
ter outra pessoa, teria que ser nos meus termos. — Maya
pausou, reposicionando a cabeça da filha delicadamente. —
A festa de Natal, dois anos atrás. Você estava com um
vestido preto com aquela gola espalhafatosa e aqueles
sapatos. Eu tenho o mesmo modelo em nude. Por isso que
notei. Por isso que notei você.
O peito de Nicole subia e descia cada vez mais rápido.
— Acho que Jamie já tinha percebido que você era, sabe,
alguém que ele gostaria de comer. Provavelmente até já
tinha imaginado isso quando estava comigo, e no táxi para
casa eu mencionei que você provavelmente não dificultaria
a vida dele.
Nicole enrubesceu.
— Você não sabe nada de mim.
— Ah, acho que qualquer pessoa conseguiria ver isso. E
depois vimos que você era adequada e que nunca ia largar
seu marido.
— Você não sabe mesmo do que está falando. — De
alguma forma Nicole conseguiu reunir forças para retrucar.
— Porque eu larguei meu marido. Então seu joguinho não
funcionou.
Ignorando-a, Maya continuou:
— Mas na verdade só havia duas regras: que ele me
conta tudo, todas as vezes. E que quando eu disser que
acabou, acabou.
Ela ergueu os olhos verde-acinzentados de novo para
Nicole.
— Você devia saber que ele não ia ser esse tipo de
homem, não? O que termina tudo, larga a família e começa
de novo? Afinal, você era a única presa em um casamento
infeliz, Nicole. Nós estamos ótimos, sempre estivemos. —
Ela deu de ombros. — Mas ele fica… — ela pensou — …
animado demais, se deixa levar. Então talvez tenha te
prometido coisas? Coisas que ele não poderia, nem queria,
cumprir. Mas essa é parte do charme, não? E ter segredos é
tão divertido. Só que Jamie não é muito bom em guardá-los.
— Eu não… — Nicole a encarava fixamente. — Tem
alguma coisa muito errada com vocês dois.
— Talvez. — Elsa tinha acabado de mamar e estava
desmaiada em um estupor de leite no seio que Maya
voltava a cobrir devagar. — Sendo assim, por que você não
sai da minha casa?
— Eu vou sair. — Nicole deu um passo, mas não parecia
conseguir se forçar a ir embora. — Mas, só para avisar, eu
não acredito nisso. Porque se eu era só algum… tipo de
jogo, então por que Jamie apareceu na minha casa hora
atrás? — Maya fez um minúsculo movimento de cabeça,
traindo sua surpresa. — Esse é o único motivo pelo qual
estou aqui. Para dizer que, se ele apareceu lá para humilhar
meu marido ainda mais, não precisa. — As palavras eram
interrompidas por soluços. — Não precisa! Porque ele já foi
humilhado! Eu larguei ele, como a gente planejou.
Nicole chorava feio, Alex percebeu, alheia, as
sobrancelhas puxando a pele da testa em uma série de
rugas fundas, os cantos da boca se retorcendo em uma
careta. Talvez Nicole soubesse disso, porque em segundos
já estava secando as lágrimas com raiva.
— E se ele não queria que a gente, que eu fosse em
frente com o plano, então por que inventar aquela história
do Angelini’s? Quem faz uma coisa dessas, se não está
pensando em ir até o fim?
Maya assentiu, quase com empatia.
— Disso, admito, eu não sabia. E dizer que fiquei surpresa
quando ele me contou por que me levou àquele
restaurante… — Era a primeira vez desde que a conhecera
que Alex via Maya aturdida. — Não que tenha durado muito:
a gente mal tinha pedido e ele já tinha confessado. E
quando olhei em volta e vi você lá com…
— Espera — interrompeu Nicole. — Você sabia que eu
estava lá?
— Você não está prestando atenção? Sim, eu sabia que
você estava lá, você e aquele seu pobre marido. Então
deixei algumas coisas bem claras. Primeiro, que ele não ia
deixar as crianças nem a mim, naquele dia nem nunca. E
segundo, que se ele quisesse ver as filhas de novo e, ah, se
não estivesse a fim de ser chutado da BWL por todos
aqueles, hum, atalhos que faz no trabalho… Sim, eu sei bem
que Jamie gosta de apressar acordos de um jeito que Jill e
Paul não ficariam felizes. Se ele não quisesse isso, era
melhor que comesse o bife e bebesse o vinho dele e
deixasse você se virar.
— Você sabia, e me deixou acabar com o meu
casamento?
Alex pensou na conversa que ela e Nicole tiveram no pub
na noite anterior: ela dizendo que havia algo na “dinâmica
de poder” entre marido e mulher que era estranho. Era por
isso. Esse tempo todo, elas viam Maya como a mulher
traída, quando era ela, e não Jamie, que estava no controle
desde o início.
Mas nada disso realmente importava agora. O que
importava era tirar Nicole da casa. Porque todo aquele
drama consumia um tempo precioso, e Maya estaria se
segurando por orgulho. Ela não podia desmoronar na frente
da mulher com quem o marido estava dormindo, mas Alex
imaginou as feições serenas da amiga entrando em colapso
no momento em que Nicole saísse, e sabia o quanto Maya
precisaria dela então. Foi por isso que Alex ignorou o pedido
de Maya para ser deixada sozinha.
— Nicole. — Pela surpresa no olhar das duas quando Alex
se levantou, elas tinham mesmo esquecido que ela
continuava ali. — Você já falou o que tinha que falar, mas
Maya pediu para você sair. — Seus ouvidos estavam
tapados de novo, e, embora conseguisse ouvir a própria
voz, parecia estranha, vinda de outra pessoa. — Ela é legal
demais para repetir, mas eu não sou, e é melhor você ir
embora agora.
Para sua surpresa, Alex viu que Nicole estava sorrindo —
talvez por descrença, mas ainda assim sorrindo. Isso a
irritou.
— Eu falei: vai embora.
Nicole balançou a cabeça.
— Não se preocupe, estou indo. Aliás, Maya — ela ergueu
a voz quando já estava na entrada —, o nome da sua amiga
não é Lexie. É Alex. Alex Fuller. Isso deve soar familiar para
você, já que ela era a assistente do seu marido até alguns
meses atrás… quando ele demitiu ela por má conduta.
Quando Nicole foi embora, finalmente os ouvidos de Alex
se destaparam. Pelo olhar de Maya, pela forma como ela
segurava a cabeça de Elsa, de um jeito protetor, como se
estivesse… Espera, ela estava com medo? Alex sabia que
tinha que agir rápido.
— Maya.
Correndo até ela, Alex se ajoelhou aos seus pés, enfiando
o rosto no tecido fresco, limpo e redentor do vestido da
amiga.
— Sai daqui.
A voz de Maya não estava certa. Nada daquilo estava
certo. Era como se a mulher que ela conhecia estivesse
sendo interpretada por uma substituta.
— Você não entende. Quando a gente se conheceu, eu
estava…
— Sai daqui!
Mas Alex não ia sair. Não até que fizesse Maya entender.
Ela contaria sobre Jamie, sobre o que ele fizera com ela. E
como ela chegou à Bumps & Babies naquele dia. Porque
agora, mais do que nunca, elas precisavam uma da outra.
Enquanto Alex tentava abraçar mãe e filha, a voz de Maya
estremeceu em um sussurro, depois morreu, voltando mais
forte.
— Sai de perto de mim ou eu juro por Deus que vou
chamar a polícia.
Com um único movimento, ela empurrou Alex para trás e
ficou de pé em um instante, segurando Elsa junto ao peito.
O que não deu a Alex outra escolha. Maya precisava se
acalmar. Se ela só ficasse quieta, Alex poderia fazê-la
entender. Ela se lançou sobre a amiga, segurando o sling
que Maya sempre usava frouxo como um lenço — aquele
pano idiota e supercomplicado que só supermães como ela
conseguiam dominar —, e agarrou-se firmemente a ele.
— Essas últimas semanas — soluçava Alex enquanto
Maya arfava e tentava em vão soltar o tecido cruzado em
torno do pescoço — foram as melhores da minha vida.
Porque você não se importa quem as pessoas são ou de
onde vieram. E você me entende. Você me entende!
Ela encarou a amiga nos olhos, mas não havia
compreensão ou simpatia. Só medo. Enquanto Alex fazia
força, Maya parecia estar escapando dela, o branco dos
olhos se avermelhando, até ela cair no chão.
— Eles estão vindo! Vão chegar a qualquer minuto — veio
a voz de Nicole de trás dela.
Espera: Nicole ainda estava lá? Sua voz parecia
estranhamente estridente, agitada, como as sirenes que se
avolumavam do lado de fora. De repente, Alex se sentiu
muito cansada. Maya parou de dizer todas aquelas coisas
maldosas. Ela não estava dizendo nada agora — só estava
deitada, imóvel, no chão de ladrilhos. E Alex a faria
entender, mas não agora. O que ela precisava agora era
chegar em casa e ir se deitar.
Estremecendo conforme as sirenes ficavam mais altas,
mais próximas, Alex pegou Katie e saiu pela porta da frente.
CAPÍTULO 30

JILL

– A lto. Cabelo castanho-claro. —


Provavelmente está bem bêbado.
Jill hesitou. —

Outra negativa. Era a terceira desde que ela começara a


descer a King Street, procurando Jamie em cada pub
sombrio.
— Você acha que ele talvez tenha passado por aqui mais
cedo? — ela perguntou, mas o barman já estava servindo
outro cliente.
Lá, no trecho mais movimentado da rua principal, perto
da estação, Jill parou, descalçou o pé do salto que abrira um
buraco na meia-calça e sentiu uma onda de dor reprimida
se dissipar. Demorou um segundo para encontrar o telefone
da casa de Jamie em seus contatos, mas, quando seu
polegar pairou sobre o ícone de ligação, ela decidiu de novo
não ligar. E se Maya atendesse? E se ele não tivesse
contado a ela ainda?
Voltou a tentar o celular dele, mas só ouviu a mesma
mensagem: “Olá, você ligou para Jamie. Estou disponível —
mas não agora.” Aquele jeito de falar, atrevido e popular,
que só aparecia na secretária eletrônica e em reuniões: uma
vez ela perguntou por que ele fazia isso. “Compradores
gostam”, ele respondera. “Faz você parecer um cara legal,
sabe? Confiável.” E na hora ela pensou: “Por que você
precisaria se esforçar para parecer algo que já é?”
Ansiosas para pegar o trem e começar a beber, as
pessoas passavam por ela aos empurrões. Ainda tinha o
Belushi’s na esquina, mas será que Jamie iria a um bar
esportivo? Jill já não sabia mais a resposta para essa ou
qualquer outra pergunta do tipo “O que Jamie faria?”. E,
ainda assim, lá estava ela, indo contra seu bom senso e o
de Stan, que tinha sido atipicamente lacônico quando ela
ligou para ele do escritório mais cedo para dizer que talvez
se atrasasse porque queria, precisava, encontrar Jamie.
— Por que você não deixa o Jamie para lá?
— Porque… — Ela começou a explicar, mas não tinha
como contar ao marido sobre Alex e a confirmação de seu
envolvimento, do envolvimento de todas elas. — Você tinha
que ter ouvido ele no escritório mais cedo. Estava tão
nervoso.
No escritório vazio de Jamie, uma faxineira estava
passando o aspirador.
— Você percebe que ainda está, mesmo depois de tudo
que vem acontecendo, acobertando o que ele fez, né? —
perguntou Stan, com uma risada exasperada.
— Você não entende.
— Não, não mesmo. — Ele suspirou. — Jamie colheu o que
plantou.
Como ela explicaria que já não tinha mais certeza de
nada? Sim, a carta era verdadeira, mas não o e-mail, nem
talvez a denúncia que fizera Jamie ser suspenso. O quanto
Alex e Nicole estavam dispostas a fazer para derrubá-lo?
Ao empurrar as portas do Belushi’s, ciente de que
continuar perguntando as mesmas coisas aos atendentes a
faria ser confundida com uma esposa zangada atrás do
marido, Jill percebeu que a culpa que estava sufocando
havia se transformado em uma espécie de superstição.
Como se, apenas por causa daquela conversa idiota de
bêbado ter acontecido, as três pudessem ter causado
aquela onda de coisas ruins.
— Com licença — ela gritou para o barman acima do
barulho. — Um gim e tônica? Duplo, por favor.
Ela engoliu o drinque em três goles e esperou que isso
aguçasse sua mente, mas emergindo do Belushi’s poucos
minutos depois, piscando por causa da luz, eram quase seis
da tarde e o sol sangrava no céu rosa do crepúsculo.
Incapaz de decidir se tentaria ligar para Jamie de novo, se
iria direto para aquele pub, sabe-se lá o nome, em
Hammersmith Grove ou se apenas desistia e ia para casa,
Jill parou por um momento, envolta por uma nuvem de
fumaça alheia do lado de fora. Então ligou para Maya. Se
Jamie estivesse em casa, ela ao menos poderia desistir e
entrar em contato pela manhã. Tudo seria resolvido. Só que
ele não estava em casa. E, quando Maya atendeu ao
primeiro toque, parecendo tensa e esperançosa, Jill sabia
que precisava contar a ela.
Depois de assegurar que isso era tudo que ela ou
qualquer outra pessoa fora do RH sabia, pediu que Maya
esperasse. Jamie estaria em casa assim que parasse de se
embriagar até a inconsciência e amanhã ele poderia traçar
um plano com o advogado. Jill foi direta e otimista — teve a
sensação de que Maya não estava sozinha, em todo o caso
—, mas, quando ela ligou de volta, segundos depois, para
avisar que, é claro, se localizasse Jamie primeiro, o
mandaria para casa, ninguém atendeu. Para Jill isso
significou que o marido de Maya acabara de passar pela
porta, até que viu o nome de Jamie piscar em seu celular.
— Cadê você? Caramba, Jamie. Estou ligando sem parar.
Todo mundo está preocupado com você.
— Todo mundo?
Jill se afastou da aglomeração e tapou a orelha com a
mão. Onde quer que Jamie estivesse era barulhento, e ele
estava falando arrastado.
— A Maya, para começar. Por que você não ligou para
ela?
— E dizer o quê?
Jill ia ser obrigada a contar.
— Olha, eu acabei de falar com ela. Achei que você
poderia ter ido para casa. Ela pareceu muito preocupada. Eu
tinha que falar alguma coisa.
— Claro que sim.
— Eu só estava tentando ajudar. — Uma música alta
abafou suas palavras. — Só me diz onde você está.
Demorou menos de 15 minutos para chegar ao Crown &
Sceptre, um pub triangular em um terraço, onde foi a
comemoração do aniversário de Paul anos antes, mas o
lugar já estava lotado de bebuns com camisetas do Queens
Park Rangers (QPR). Claro que tinha um jogo passando.
Esticando o pescoço, ela viu Jamie, curvado sobre uma
caneca de cerveja de meio litro na ponta de uma longa
mesa de homens usando cachecóis listrados azuis e
brancos.
— Com licença. Perdão. Posso passar?
O alívio quando encontrou uma cadeira e finalmente se
sentou superou qualquer mal-estar, e eles ficaram sentados
em silêncio por um momento.
— Por que você está aqui?
Ele estava com os olhos vidrados e distantes.
— Stan me fez a mesma pergunta. — Ela tentou sorrir. —
Para ele, você colheu o que plantou. E parte de mim acha
isso também. Eu sei a verdade sobre o que aconteceu com
Alex, Jamie, sei que você a usou como bode expiatório para
as suas merdas. Que você roubou e mentiu e usou a doença
de Stan e a minha distração no escritório para subir. E sei
que você mandou aquela carta para o conselho. O e-mail foi
alterado, tudo bem, mas a carta, essa foi você que
escreveu.
Um vislumbre de algo. Não arrependimento, mais irritação
por ter sido pego.
— E pode ser que você não sinta nenhuma lealdade a
mim, a Stan ou sequer ao seus funcionários. Você pode ficar
tranquilo mentindo e enrolando os outros, mas eu não. É por
isso que estou aqui. Porque você merece ser punido… mas
só pelo que fez. E estou preocupada que exista algum tipo
de… — Ela estava entrando em terreno perigoso. — …
vingança contra você.
Limpando a espuma da cerveja do lábio, Jamie arregalou
os olhos e riu.
— Você acha que eu não sei disso? Você não acha que
passei as últimas horas repassando tudo que tem
acontecido na minha vida nos últimos tempos e somando
dois mais dois? — Jill queria estar com uma bebida na mão.
— Porque eu vou te contar que, quando você é chutado…
— Suspenso.
— Vamos chamar pelo que é. Quando você é chutado por
uma coisa que não fez, e a mulher com quem você passou
18 meses tendo um caso não só não te liga mas nem
atende suas ligações, não é difícil fazer as contas.
— Você e Nicole?
— Ahá! Então foi ela. Eu sabia que era ela!
Os outros homens na mesa deram uma olhada.
— Meu Deus, Jamie, eu não podia falar nada. O RH é que
está no comando.
— Bom, obrigado pelo aviso. E, sim, eu e Nicole
estávamos juntos. Estávamos apaixonados! — As palavras
de Jamie saíram esganiçadas e ele colocou a mão na frente
da camisa. — E a gente ia tentar fazer dar certo. — Ele
hesitou, franziu a testa, deu um gole na cerveja. — Mas eu
decepcionei ela. Não consegui… ir até o final. E agora ela
me acusou de assédio. Acho que Biarritz não vai mais rolar.
Ele já não falava mais coisa com coisa, mas Jill entendeu
o bastante para concluir o resto. É claro que os dois
estiveram juntos. Havia algo neles — uma dureza, uma
escuridão interna — que fazia sentido. Não entendia como
não tinha visto antes.
— Eu deveria ter imaginado. Acho que só pensei que você
seria louco de trair Maya.
Ele deu uma risada.
— Minha santa esposa traída. Você não tem ideia. Nicole
não foi a primeira. Fiz uma burrice anos atrás.
— Sua assistente.
— É. — Ele a encarou. — Sempre achei que você tinha
descoberto.
Jill relembrou a conversa que teve com Stan no canal no
dia seguinte ao da festa de despedida da Joyce: sobre a
assistente que havia ido embora de repente, sem
explicação.
— Foi irrelevante, ela era irrelevante, mas Maya nunca me
deixou esquecer. E vou te dizer, desde então é ela que
decide tudo. A história com Nicole foi ideia dela… para
começo de conversa. Mas aí saiu do controle, dela e do
meu. Sabe de uma coisa? — Ele se inclinou para a frente. —
Vocês falam que nós é que somos os vilões, mas as
mulheres são doentes, manipuladoras, escrotas. Nic gostava
dos nossos joguinhos. Pelo menos eu achava que ela
gostava. Aí tudo começou a ir pelos ares: as “confusões” no
trabalho, em casa. Não sei como não percebi, e só Deus
sabe como ela estava fazendo isso, mas o tempo todo era
ela…
Jill ergueu a mão para interrompê-lo.
— Não, não, Jamie, não foi tudo…
Ele não estava ouvindo.
— Isso vai destruir tudo. Maya nunca vai me perdoar.
Jill imaginou Maya, bonita e loira, nos portões da escola —
os olhares atravessados, os sussurros. Não, ela não o
perdoaria. E, apesar de tudo, Jill se sentiu mal por Jamie.
Talvez ele não fosse o homem que imaginava, mas também
não era o vilão que elas haviam criado naquela noite no bar.
— Vai acontecer uma investigação completa e vou me
certificar de que você será avaliado de forma justa.
— Legal da sua parte. Obrigado.
— Ei. É melhor que nada. Seu comportamento comigo,
depois de eu ter te acolhido, de ter te ensinado tudo, ter te
promovido e te convidado para jantar… A gente já tirou
férias juntos, pelo amor de Deus.
Ele fez uma careta do tipo “não me venha com essa de
novo”.
— Isso importa agora?
Jill de ombros.
— Não — ele respondeu por ela. — Então vou falar com
sinceridade. — Sem conseguir pronunciar os Rs direito, a
palavra saiu “sinceidade”. — Eu fui cortado. Estou fora. Mas
você também deveria cair fora. Você passou quarenta anos
na empresa — falou, arrastando as palavras. — Não está
bom?
Ele encarava Jill com os olhos desfocados, a cabeça
girando no pescoço sem controle, como uma boneca
articulada.
— Certo. Acho que já dissemos o que tínhamos para dizer.
— Ela pegou a bolsa debaixo da mesa. — Vou chamar um
táxi para você.
— Sempre tão adulta, né, Jill? Vai se foder.
O palavrão pareceu um tapa, e, dessa vez, quando os
torcedores do jogo olharam para eles, não estavam rindo.
Jamie, porém, nem notou a atenção que atraía, a boca
retorcida ao dizer:
— Não estamos mais na sala da diretoria. E nós dois
sabemos que não vai ter nenhuma justiça comigo. A BWL
nunca vai limpar meu nome, vai? Só Nic pode fazer isso,
mas ela não vai, não agora. Eu sabia que tinha sido ela, por
isso que fui na casa dela e tive uma palavrinha com aquele
marido bundão dela.
— Você falou com Ben?
— Pode ter certeza que sim, porra. Fui lá. Troquei uma
ideia com o sr. Harper. Vi a casa. Conheci a filhinha da
Nicole. Muito fofa, aliás.
Jill cobriu o rosto com as mãos.
— Não, não, não.
— Ele é gente fina, o Ben. Ou era até o momento que
contei que a esposa dele me fez ser demitido. E que, se eu
assediei a Nicole, ela deve ter gostado, porque não parou de
me procurar. Até queria largar ele para ficar comigo.
Esse era o limite de Jill.
— Estou indo embora.
— Espera.
Ao ficar de pé, Jamie derrubou a caneca, que se espatifou
no chão.
— Cara! — O homem ao lado dele ficou de pé num pulo,
encarando a calça jeans ensopada sem acreditar. — Mas
que…? Você não vai nem pedir desculpas?
Mas Jamie nem reagiu, mal percebendo o que tinha feito.
Jill olhou para o homem.
— Sinto muito. Ele está… bem abalado. Pode deixar que
vou…
— Eu não estou abalado porra nenhuma.
— Ei! Em vez de falar assim com a moça, que tal me pedir
desculpa?
Jill não estava gostando nada daquilo e começou a buscar
uma saída entre a multidão do bar. Stan estava certo:
aquela tinha sido uma má ideia.
— Desculpa pela merda da sua calça. — Pegando a
carteira no bolso de trás, Jamie tirou uma nota de vinte
libras e jogou na cara do homem. — É da Primark, imagino?
Aqui, compra duas dessas. Jill, pra onde você vai? Achei que
a gente ia conversar.
Ela não pensou por um segundo que Jamie tentaria
impedi-la, mas ele segurava a alça da sua bolsa e a puxava
para baixo.
— Para com isso, você está passando vergonha.
Ela alcançou o celular, clicou no aplicativo de táxi
corporativo e chamou um motorista para Jamie. Aquele era
o limite da sua gentileza.
— O táxi chega em seis minutos. Vai para casa, para a
sua esposa.
— É, eu mal posso esperar para ter essa conversa — ele
riu sem humor. — Só mais uma coisa: eu estava sendo leal.
Eu estava sendo leal à empresa quando falei que era melhor
você ficar em casa. Você já estava uma bagunça, você é
uma bagunça, e você vai ficar pior até muito depois que ele
se for.
As palavras flutuaram entre eles: depois que ele se for.
Parecia o título de um daqueles romances água com açúcar
de banca de jornal sobre uma mulher de Buckinghamshire
que aprendia a viver e a amar de novo. Depois.
— Stan não vai a lugar algum. Você sabe disso.
A centímetros um do outro, se encarando nos olhos, Jill o
viu perceber sua vulnerabilidade. E viu que ele se focou
naquilo.
— Isso é alguma negação alucinada? Ou ele realmente
não te contou?
Ela tentou muito se concentrar na dor do seu pé direito,
mas isso, junto a todo o resto, pareceu ter sido abafado por
algo tão imenso e pesado que amortecia o restante.
— Stan não vai passar do Natal. Ele me falou isso em
janeiro, naquele dia que fui ao hospital. Quando você saiu
do quarto e…
— Não.
— Ele não queria que você soubesse na época, que tinha
se espalhado para a coluna e os nódulos linfáticos. Mas
achei que ele ia te dizer quando estivesse pronto.
— Não.
Ela ergueu a mão para se proteger das palavras dele, e
Jamie agarrou seu pulso com força.
— Por que eu inventaria uma coisa dessas?
Tudo aconteceu muito rápido. Um braço sardento surgiu
atrás de Jamie, prendendo-o em uma chave de braço. O
grito distante de “É melhor você tirar as mãos dela agora,
amigo”. As pessoas se afastaram quando dois, não, três dos
homens com cachecóis azuis e brancos, liderados pelo de
calça jeans encharcada de cerveja, arrastaram Jamie pelo
pub até a porta, a camisa úmida embolada, expondo alguns
centímetros da barriga branca e mole, o salto de um de
seus sapatos de camurça se soltando enquanto ele era
arrastado pelo chão. E, embora Jill soubesse que deveria
detê-los, ela esperou até que o primeiro e o segundo socos
acertassem e o terceiro o derrubasse, antes de implorar aos
homens que parassem.
Jamie ainda estava caído perto das lixeiras do bar, com os
lábios escorregadios de sangue, quando o carro parou. Jill
colocou uma nota de vinte libras na mão do motorista —
“ajude-o a chegar em casa, sim?” — antes de ir embora.
Enquanto saía em busca de um táxi, ignorando o toque
persistente do celular na bolsa, seu único pensamento era
“depois que ele se for”.
Foi só ao ver a nuca do marido acima da poltrona que as
lágrimas vieram. Sem uma palavra, Jill enfiou o rosto
molhado no pescoço dele e, depois de um pequeno susto,
sentiu o corpo dele afundar com a assimilação do que Jill
devia saber.
Mesmo enquanto chorava — “Por que você escondeu isso
de mim? Por quê?” —, Jill sabia a resposta. Era ver a esposa
reduzida àquilo que Stan queria evitar. Se soubesse antes,
ela não teria sido capaz de suportar.
— Ter que ouvir isso de Jamie, Stan, o fato de que ele
sabia e eu não… Mas existem drogas experimentais que
você pode tentar. Tem um hospital em Bordeaux com uma
taxa de sucesso incrível…
O marido não disse nada, balançando a cabeça e a
puxando num abraço desengonçado. E por um tempo os
dois ficaram ali parados, Stan alisando o cabelo dela e Jill
esperando que os soluços dessem lugar à respiração
trêmula.
Então, porque não havia mais nada a dizer:
— Camomila?
Jill assentiu, limpou o rosto e foi com Stan para a cozinha,
onde ficaram parados lado a lado esperando a água ferver,
como já tinham feito milhares de vezes antes — antes
daquele dia, depois do qual nada mais seria o mesmo.
Ao ver o laptop no lugar de sempre na bancada, Jill se
surpreendeu ao pensar que deveria checar como Jamie
estava, se tinha chegado em segurança.
— Depois de tudo que ele fez? — murmurou Stan,
olhando por cima do ombro de Jill, que tinha começado a
acompanhar o carro no sistema da empresa.
— Eu sei. Mas ele entrou numa briga.
Stan soprou o chá.
— Não acha que era uma questão de tempo? Ele é um
fardo, amor. Deixe Jaime cuidar de si mesmo agora.
— Vou fazer isso. Só para ficar com a consciência limpa.
Como se para reforçar o pedido do marido, o círculo
multicolorido ficou girando na tela enquanto o computador
carregava, e Jill se sentiu tomada por uma onda de cansaço.
— Vamos. — Stan pegou sua mão e, com um último olhar
para o laptop aberto, Jill se deixou ser puxada do banquinho
da cozinha. — Vamos deitar.
 
Mais tarde, no escuro do quarto e enevoada pelo calmante
que Stan insistira que ela tomasse, Jill se permitiu chorar de
novo. Torcia para que o marido estivesse dormindo e ficou
triste quando ele estendeu a mão quente para ela, tocando
sua perna.
— Meu amor…
— Desculpa. Eu só queria que você tivesse contado para
mim, não para ele. Eu sei que você e Jamie ficaram
próximos com os anos, mas…
Stan se virou de lado para encará-la na escuridão.
— Não foi por isso. Eu fiquei tão perturbado que nem
sabia o que estava dizendo. Então contei para ele o que os
médicos tinham descoberto: o quanto o câncer tinha se
espalhado, o prognóstico. Depois, acho que fiquei torcendo
para ter sonhado com tudo aquilo. Nunca achei que ele iria
me trair, a nós dois, como aconteceu. — Ele segurou a mão
dela debaixo do cobertor. — Mas esqueça Jamie.
Jill queria dizer a ele que não conseguia, e por que não.
Estava pronta para fazer isso naquele momento e admitir
que, embora o ex-sócio fosse culpado de muitas coisas —
infidelidade, oportunismo, traição e de uma deslealdade tão
grande contra ela e Stan que a abalava até o âmago —, ela
também tivera um papel em um plano cheio de mentiras e
enganações.
— Stan, tem uma coisa que eu tenho…
Porém, antes de conseguir terminar, os olhos de Jill se
fecharam.
CAPÍTULO 31

NICOLE

C
omo nenhuma das mães havia mencionado Ben,
Nicole sabia que elas sabiam. Fazia menos de uma
semana desde que ela se mudara, mas, de alguma
forma, elas sabiam. E por algum motivo o fato de ela estar
se separando do marido a tornava popular de um jeito que
nenhuma tentativa anterior de integração com aquelas
mulheres havia conseguido.
Desde que tinham chegado ao Bella Boos, a cafeteria
infantil horrivelmente cor-de-rosa onde a coleguinha de
Chloe comemorava o aniversário, um fluxo constante de
mães viera lhe perguntar como ela estava, e a anfitriã já
completara sua taça de prosecco duas vezes.
— Dizem que é a maquiagem branca — disse a mãe da
aniversariante, se sentando ao seu lado depois de uma
volta no salão servindo sanduíches.
— Perdão? — Nicole questionou ao mesmo tempo que
uma explosão de buzinas de festa soou.
— Palhaços. Dizem que é a maquiagem branca que
assusta as crianças, até os adultos. Então quando Annie
comentou que tinha usado recreadores infantis na festa da
mais velha, que tem aquela coulrofobia, coulrofobia?
— Medo de palhaços?
— Isso. Enfim, aí eu achei que seria perfeito para a festa
de Lizzie. Que eles pareceriam menos bizarros, você não
acha? Considerando como as crianças dessa idade são
assustadiças?
Enquanto ela comentava sobre os “terrores noturnos” que
Lizzie tivera no outono anterior, Nicole só assentia e tomava
um gole de prosecco. Não ligava que não estivesse muito
gelado ou que fosse cedo demais para beber. Também não
se importava com a maquiagem branca dos palhaços. Ela só
queria que a normalidade e a pureza daquele momento
cheio de balões cor-de-rosa durassem para sempre, que as
preocupações e conversas inconsequentes daquelas
mulheres abafassem as memórias das últimas 24 horas e
silenciassem o barulho — aquele barulho de revirar o
estômago — da cabeça de Maya batendo como um ovo nos
ladrilhos da cozinha. Como isso nunca tinha sido o suficiente
para ela? Por que ela procurava excitação e perigo quando
tudo de que precisava estava bem aqui?
Quando Nicole ligou para Ben naquela manhã, implorando
para que ele a deixasse levar Chloe à festa que apareceu
num lembrete — e um alívio — em seu celular, não
esperava que ele concordasse. Mas, depois de testemunhar
aquela cena na cozinha de Maya na tarde anterior, e das
horas gastas com a polícia e na sala de espera do hospital
— onde só depois da meia-noite lhe asseguraram de que “A
sra. Lawrence está bem. Assustada e machucada, mas
medicada e bem” —, ela precisava ver a filha.
Ben deixou o seu segundo “por favor” pairando no ar,
contente pela humilhação dela, fazendo com que ela a
sentisse, antes de enfim responder:
— Tá bom. Mas Chloe precisa estar de volta às seis. Se
comer depois disso, fica muito agitada e eu levo horas para
colocá-la para dormir. — Como se Nicole já fosse uma
estranha que precisava de explicações sobre a filha. — E eu
consegui aquele emprego na empresa de software no norte
de Londres, então vou aproveitar para me preparar.
Quando tentou parabenizá-lo pelo trabalho, Ben a
interrompeu e desligou. Não podia mais ficar surpresa ou
feliz por ele. Não depois de tudo que acontecera. Não
depois de Jamie ter aparecido na porta deles totalmente
fora de si. E, embora o marido tivesse dito que a conversa
foi breve e que Jamie estava “bêbado demais para fazer
sentido”, Nicole ainda se sentia mal pensando no que ele
poderia ter falado. O que teria acontecido na cozinha de
Maya se ela não estivesse lá para chamar a polícia?
Quando um acidente de trânsito é evitado por pouco, é só
depois, quando a pessoa para trêmula no acostamento da
estrada, que o impacto evitado é sentido. Nicole estava no
acostamento agora, aliviada e grata pelo pior não ter
acontecido — por Jamie não ter contado a Ben e por Maya,
que ficaria bem —, mas ainda tremia por sua própria
imprudência.
Ela fez tudo que podia para consertar aquilo. Informou à
polícia sobre a obsessão de Alex pelo homem que a demitiu
e deu o endereço dela — imaginava que os policiais já a
teriam encontrado, não? Havia uma coisa, porém, que ainda
não tivera coragem de fazer: contar para Jill. Nicole chegou
a abrir seu contato, o dedo pairando sobre o ícone de ligar,
antes de desligar o celular, incapaz de descrever os eventos
do dia anterior. Era ela, não Jill, que deveria ter notado o
quão instável Alex estava, e ainda assim o comportamento
violento dela envolvia as duas na situação.
— Que brincadeira é essa?
O celular dela estava tocando na bolsa, mas Nicole não
tinha vontade nenhuma de atender.
— Ah, você sabe. Moedinha risadinha.
Nicole balançou a cabeça. Por que sempre tinha a
sensação de que aquelas mulheres estavam falando uma
língua que ela não compreendia?
— É como se fosse passa anel, só que em vez do anel…
Nicole sorriu e assentiu, mas voltou à cozinha de Maya
em Chiswick, tentando tirar Alex de cima dela, os braços
pesados e os movimentos assustadoramente ineficientes. E,
ao se abaixar ao lado de Maya, enquanto esperava a
ambulância chegar, vendo o sangue escorrer da cabeça
dela tingindo o rejunte entre os azulejos de mármore em
fileiras de carmim, seu único pensamento tinha sido: “Isso é
tudo minha culpa.”
Eles não a deixaram acompanhar Maya ao hospital e, por
um momento horrível, Nicole imaginou Jamie chegando e a
encontrando ali, enquanto segurava sua filhinha. O som de
uma chave na porta fez seu coração apertar, mas então
uma mulher filipina baixinha apareceu, segurando uma
menina — Christel — pela mão. Lembrando-se do sangue,
de todo aquele sangue, Nicole bloqueou o caminho delas.
— Aconteceu uma coisa. Maya foi levada para o St. Mary’s
— ela disse à babá.
Entregou Elsa para ela, tentando ignorar o rosto tristonho
de Christel, e sentiu uma vontade tão grande de escapar
daquele ambiente tóxico e sentir o cheiro de cabelo limpo
da própria filha que ficou tonta.
— Vou para lá agora — assegurara à mulher assustada. —
E ligo assim que souber de alguma coisa. — hesitou. — Você
pode… pode ligar para o pai das meninas?
Enquanto a mãe de Lizzie ia “dar uma olhada no bolo”,
Nicole aproveitou o breve momento sozinha para dar uma
olhada no celular. Duas ligações perdidas de um número
desconhecido. Seria a polícia, dizendo que haviam
encontrado Alex? Mesmo se tivessem deixado recado, ela
não tinha coragem de escutar.
Não importava quantas vezes Nicole pensasse sobre
aquela noite, procurando alguma brecha de absolvição, não
conseguia se livrar da responsabilidade por Alex, e ela havia
visto de perto a instabilidade de Alex se desenvolver. Tinha
até percebido sinais de alerta, mas escolhera ignorá-los
porque a fixação de Alex por Jamie, pela vingança, servia a
ela.
— Quer um refil? — Há quanto tempo a anfitriã estava de
olho nela? O suficiente para vê-la virando a taça de
prosecco em um só gole, de olhos fechados. A pergunta a
seguir com certeza seria… — Semana difícil?
Pronto.
— Sim. — Nicole estava cansada demais para dizer de
outra forma. — Mas acho que você já sabe disso. Parece que
todo mundo já sabe que eu e Ben terminamos. — Era uma
forma tão adolescente de descrever a destruição de duas,
não, três vidas, embora ela não suportasse pensar dessa
forma. — Está sendo complicado. Vai ser complicado.
— Aposto que sim.
De repente, outra mãe, provavelmente uma das
admiradoras de Ben, tinha se metido na conversa,
assentindo com uma expressão de pena.
Nicole respirou fundo.
— Só fico contente por ele estar sendo tão civilizado
nessa situação toda.
E era verdade.
A pele translúcida da nuca da filha, sentada de costas
para Nicole — tão inocente, tão exposta pela maria-
chiquinha —, trouxe lágrimas aos seus olhos. De onde veio
aquela sarda? Era uma sarda ou uma pinta, e o que mais ela
havia perdido? Todas aquelas viagens de negócios que tinha
feito pareciam administráveis, agradáveis, até, se Nicole
fosse sincera consigo mesma. Mas talvez porque ela sabia
que a filha estaria lá sempre que quisesse, sempre que
precisasse ouvi-la tagarelar sobre Peppa Pig. E todos os dias
que passava sem Chloe, Nicole acordava com a sensação de
que estava sem um membro.
— Ela é linda — murmurou a mãe de Lizzie no seu ouvido,
os olhos se demorando em Nicole o suficiente para que
surgisse a vontade de se virar e falar, ainda sorrindo: “Sim,
essa é a cara de uma mulher cujo casamento foi para o
espaço.”
Em vez disso, Nicole se pegou rindo.
— Ela é mesmo. Eu posso falar isso? Nunca sei.
E talvez tudo fosse ficar bem? Seria demorado e dolorido,
mas ficaria bem.
— Eu estou tão confusa! — ribombou a recreadora,
olhando para baixo com as mãos nos quadris para o círculo
de rostinhos hipnotizados. — Mas acho que está na hora do
bolo!
Mais uma vez o celular de Nicole vibrou na bolsa. Dessa
vez ela sabia que precisava atender.
— Alô?
— É… — Uma pausa. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou, e Nicole
tapou o outro ouvido, seguindo para a porta. — Perdão,
quem?
— Aqui é a Jill.
Ela devia querer uma atualização, mas Nicole não tinha
nada de novo para dizer.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha,
e estão trazendo o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não.
Depois, Nicole ficaria obcecada com o quando. Em que
momento exatamente ela soube que Jamie estava morto?
Foi naquele “não”? Foi no silêncio pesado antes de Jill
continuar a falar? Porque, quando ela falou — “Jamie
morreu” —, de alguma forma Nicole já sabia.
— Encontraram o corpo hoje de manhã. A polícia quer
falar comigo. Vão querer falar com você também. E, Nicole
— A voz de Jill ficou mais baixa —, não estou conseguindo
falar com a Alex.
Apoiando-se no batente da porta cor-de-rosa, Nicole se
encolheu, o choque atravessando seu corpo inteiro.
— Como?
Ele havia sido encontrado atrás do Vale Theatre naquela
manhã, explicou Jill. Ainda estava vivo na hora, mantido
pelas estruturas de metal que o empalaram. Mas sangrou
até a morte na ambulância. A voz de Jill estava aguda, em
pânico:
— Temos que encontrar Alex.
Nicole tentou falar.
— Nicole, está aí?
— Sim. No teatro… — ela conseguiu dizer. — Tem uma
construção pequena de vidro no telhado. Só a gente sabia
disso. — O fato de que ela ainda conseguia formar frases
coerentes era incrível. — Eu o levei para ver o lugar. Nós…
Jill? Jill?
Mas a ligação havia sido desligada.
CAPÍTULO 32

ALEX

D
e sua posição de cabeça para baixo na cama, a
pintura parecia um gato. Um gato ou talvez um
tigre, pintado naquele estilo meio aguado que
deixa pinceladas na tela. Mas se girasse a cabeça para olhar
a imagem do jeito certo, ela mais parecia uma menina, com
olhos profundos e ferinos. Os olhos da sua mãe.
— Isso… — ela falou para a mulher que apareceu ao seu
lado. — O que é isso?
— O que é o quê? — Ela não tirou os olhos da prancheta
que segurava.
— A pintura. É um gato ou uma menina?
Quando a mulher ergueu os olhos para relancear a
pintura, Alex percebeu que ela era jovem, com uma boca
triste e… por que estava usando um jaleco?
— Ah, é uma raposa.
Alex tentou focalizar os olhos, mas suas pálpebras
estavam pesadas e os cantos pareciam grudados, como se
tivesse dormido de maquiagem.
— Onde é que eu estou?
A ruga horizontal profunda na testa da mulher se
suavizou, mas seu tom de voz permaneceu distante.
— Você está no hospital… — ela olhou a prancheta — …
sra. Fuller. Está dormindo já faz bastante tempo. Quase dois
dias. Como está se sentindo? — Sem esperar resposta,
continuou: — Seu médico já vai chegar e te explicar tudo,
agora que você acordou.
— Hospital? — Mas a enfermeira já estava saindo. — Dois
dias? Ei! — Sua voz estava fraca depois de tanto tempo sem
usá-la. — Isso não é uma raposa!
Tentando demonstrar isso com um gesto, Alex ouviu algo
pesado e com rodinhas se mover atrás do ombro esquerdo,
e se virou para ver um suporte de soro ao seu lado. Ela
seguiu o trajeto do líquido cor de xixi indo da bolsa para o
cateter preso ao seu antebraço.
— Ei, volta aqui!
Batendo o suporte na estrutura de metal da cama, Alex
conseguiu fazer barulho o suficiente para trazer a
enfermeira de volta.
— Pode parar com isso, sr. Fuller? Eu falei, pode parar
com isso!
— Por que eu estou aqui? Cadê… — Uma lembrança,
distante, mas que se desenevoava, ia e vinha. Algo vital de
que ela estava se esquecendo. — Eu tenho que sair daqui.
Mas a enfermeira tinha sumido e mandado um homem
baixinho de barba entrar. Ele se sentou ao pé da cama.
— Meu nome é dr. Chua.
Alex sentia um gosto metálico na boca: remédios.
— O que tem nesse soro? Posso… Posso beber água?
O médico entregou para ela um copo de papel e esperou
pacientemente enquanto Alex bebia. Ele parecia simpático,
diferente daquela vaca da enfermeira.
— Você estava muito desidratada quando chegou — ele
explicou, indicando o soro.
— Mas, doutor… — De novo, aquela suspensão da
respiração: algo havia sido esquecido, deixado para trás.
Mas o quê? Percebendo uma faixa avermelhada nos nós dos
dedos, onde segurava o copo de papel, Alex se lembrou de
esfregá-los e do cheiro do talco de bebê: Katie. Um som tão
agudo soou que ela pensou ter vindo de um alarme na rua
lá embaixo. Só quando o rosto do dr. Chua se elevou,
preocupado, sobre ela, Alex entendeu que o som tinha vindo
de sua boca. — Katie — sussurrou. — Cadê minha filha? O
que vocês fizeram com ela?
— Sra. Fuller… Alex. — O dr. Chua segurou sua mão. —
Sua filha está bem e em segurança com a sua mãe.
— Com a minha… — Marcas fundas pontilhavam as
bochechas do médico, resquícios de acne da adolescência.
— Isso não… Não. Você não entende. Ela está em Portugal.
Sem respondê-la, o dr. Chua se aproximou da grande
janela retangular ao lado da porta e com um puxão abriu as
persianas para mostrar o corredor do hospital, antes de
voltar ao seu lado na cama.
O cérebro de Alex levou alguns segundos para
compreender o rosto que a encarava do outro lado das ripas
brancas.
— Sua mãe chegou na manhã depois de você ser
internada. Tirando algumas saídas para levar sua filha para
passear e mamar, ela passou o tempo todo aqui.
— Mãe — Alex articulou com a boca quando elas se
encararam pelo vidro.
A sua mãe estava com os lábios apertados, como fazia
quando tentava não chorar, mas seus olhos sorriam. Ela
piscou uma, duas, três vezes, e Alex reconheceu o código
que as duas haviam criado na sua infância: uma forma de
tranquilizarem uma à outra depois das piores explosões de
seu pai. Três piscadas significam “Eu te amo”.
— Ela pode entrar. Mas primeiro eu e você precisamos
conversar. — O dr. Chua a encarou com tranquilidade por
um momento. — Você tem alguma ideia de por que está
aqui?
Alex não conseguia tirar os olhos da mãe. A mãe, que
tinha vindo e ficado. Mas como? Será que o pai já não
descobrira sobre o empréstimo? Ela não queria pensar em
como a mãe havia pagado por aquele segredo. Mesmo
assim, de alguma forma, ele havia permitido que ela
entrasse em um avião e viesse.
— Você está passando por um período difícil, não está? —
O dr. Chua ergueu uma sobrancelha fina. — Pode me contar
um pouco sobre isso? Começou quando Katie nasceu, talvez
logo depois?
— Você acha que… Não, não. Isso não é uma coisa de
pós-parto. — O remédio que lhe deram estava deixando-a
enjoada. Ela engoliu em seco. — Eu não estava dormindo
muito, tendo que fazer tudo sozinha… Bom, não tem sido
fácil.
O dr. Chua assentia, compreensivo.
— Eu só achei que, se conseguisse acertar… Sabe? Se
conseguisse ser uma mãe tão boa para Katie quanto era
boa no meu trabalho. — Seu estômago se revirou com a
lembrança. — Mas aí tiraram meu emprego de mim.
Uma após a outra, as memórias começaram a voltar,
como mensagens detidas por uma conexão ruim, e Alex
começou a chorar tanto que perdeu o controle dos músculos
do rosto. Envergonhada, ela virou o rosto para o outro lado,
enfiando-o no travesseiro.
— Alex, às vezes, quando uma pessoa passa por um
trauma, como a perda de um familiar ou de um emprego
que significa muito para ela, isso pode despertar ou
exacerbar uma questão que já existia, adormecida, havia
algum tempo. Também é possível que isso aconteça após o
parto. Seja como for, nós achamos que o que você teve foi
um episódio psicótico.
Alex o encarou.
— No desenvolvimento desse episódio, a realidade às
vezes parece distorcida ou até dominada por paranoias,
manias e fixações em certas coisas ou pessoas. — Ele
pausou, mas não por tempo o suficiente para estar
esperando uma resposta. Ainda bem, porque ela não tinha
ideia do que ele estava falando. — Mas esses sentimentos
tendem a ter uma origem. E nós gostaríamos de explorar
diferentes fatores que contribuíram para essa situação: o
impacto da perda do seu emprego… — Ele fez uma pausa,
dando uma olhada para a mãe de Alex. — Seu pai,
provavelmente.
— Meu pai?
— Eu conversei com a sua mãe. Ela nos contou um pouco
da sua história, de como você teve problemas na infância e
na adolescência, do medo que sentia do seu pai, muitas
vezes com motivo.
— Ela disse isso?
O dr. Chua assentiu.
— Ela… — Alex olhou para a mãe. — Ela te contou mais
alguma coisa? Que não era só comigo?
— Sua mãe não é minha paciente — respondeu o médico
com firmeza. — Então não cabe a mim discutir as
experiências dela. Mas vou dizer que a violência doméstica
raramente se restringe a só membro da família.
— Violência…
— Acho que vocês duas têm muito o que conversar.
Porque isso… — Ele fez um gesto indicando a situação atual
de Alex, e, embora sua voz fosse calorosa e empática, ela
sentiu uma onda de vergonha com a natureza simplificadora
do pronome. — Isso não é você, Alex. E imagino que não se
sinta como você mesma já faz um tempo. Mas quando
tivermos uma ideia melhor do que está acontecendo aqui —
ele deu uma batidinha na têmpora direita —, vamos poder
começar um tratamento. Tudo bem?
O que mais Alex poderia fazer além de concordar?
— Agora vou sair e dar um minuto para você conversar
com a sua mãe a sós. Mas vai ter que ser rápido, porque
temos algumas coisas importantes a discutir.
Mais uma vez, Alex concordou, desesperada para ouvir a
voz da mãe e enfiar o rosto na curva morna do pescoço
dela. Mas, depois de alguns murmúrios no corredor, quando
a mãe apareceu na porta, Alex só conseguia pensar em
como a decepcionara, como o pai dela devia ter ficado
furioso por causa do dinheiro… e agora isso.
O rosto contorcido, ela conseguiu dizer:
— Desculpa, mãe. Desculpa por tudo.
Mas seus soluços foram abafados pela blusa da mãe, e
pelo que pareceu um longo tempo as duas só ficaram ali
abraçadas. Quando Alex tentou falar de novo, perguntando
por Katie, a mãe explicou que ela estava em casa, em
segurança, com uma babá, e que não precisava se
preocupar. Outras perguntas foram abafadas enquanto a
mãe continuava acariciando seu cabelo em um ritmo lento e
constante.
— Meu amor.
— Mãe…
— Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Com isso, Alex se forçou a sair do abraço.
— Como? Como que vai ficar tudo bem? Eu não vou
conseguir te pagar o empréstimo, mãe.
— Eu não ligo para isso. Não ligo para nada disso, amor.
Tudo que importa é que você se trate, que você fique
melhor…
— Mas o meu pai… A casa nova…
A mãe dela cerrou a mandíbula.
— Não tem casa nova nenhuma. Não para nós, não para
mim. — Ela apoiou o rosto da filha na palma da mão. — Eu
deveria ter dado um ponto-final nesse comportamento anos
atrás, décadas atrás. E eu teria feito isso se tivesse ideia do
que isso te causou. Mas eu era fraca, eu…
— Você estava com medo.
Sua mãe assentiu, e Alex viu que ela lutava contra as
lágrimas antes de seu rosto assumir uma expressão que
nunca havia visto: parte raiva, parte determinação.
— Quando recebemos a ligação… quando descobrimos o
que tinha acontecido com você, e ele tentou me impedir de
entrar no avião… — Ela balançou a cabeça. — Nem eu nem
você nunca mais vamos sentir medo ou vamos ser
controladas por ele, isso eu te prometo. E eu vou ficar aqui
com você… — a mãe a puxou para outro abraço — …
enquanto você precisar de mim. Vamos ser eu, você e
aquela garotinha linda.
— Desculpem-me por interromper. — O dr. Chua já tinha
voltado.
— Ela não pode ficar só mais uns minutos? — pediu Alex.
Uma mensagem silenciosa foi transmitida entre o médico
e sua mãe.
— Meu bem, vou dar uma olhada em Katie. Mas volto em
uma ou duas horas.
Alex se agarrou a ela, mas sua mãe se afastou com
gentileza e a beijou na testa.
— É só por algumas horas, eu prometo. E, se o dr. Chua
achar que não tem problema, posso até trazer a Katie.
Dessa vez o dr. Chua puxou uma cadeira.
— Os sedativos que te demos podem estar te deixando
um pouco tonta. Em longo prazo, precisaremos prescrever
para você um antipsicótico e um antidepressivo. Encontrar a
combinação certa de medicamentos pode levar tempo,
então você terá que aguentar firme, mas é importante que
entenda que estamos lidando com algo um pouco menos
previsível do que depressão ou até psicose pós-parto aqui e,
portanto, mais difícil de controlar.
— Minha mãe… — Alex pigarreou. — Ela falou de uma
ligação, que alguma coisa aconteceu. O que aconteceu? O
que eu fiz?
— Já vou chegar nisso — respondeu ele baixinho. —
Falamos com amigos e colegas e eles nos disseram que
você tem se concentrado bastante no homem que te
demitiu nas últimas semanas e meses. De forma doentia.
Uma pessoa descreveu como uma obsessão.
Flashes, como se seu cérebro estivesse entrando e saindo
de sintonia de novo: Jamie segurando Katie, cercado por
mulheres babando nele. Como ela permitiu que ele a
tocasse? E quando isso aconteceu? Jamie atrás de uma
mesa, lendo em voz alta algum manual de RH. Jamie em um
pub, cheio de si, rolando em aplausos. A programação
semanal de Jamie, com todos os seus blocos codificados por
cores.
— Achamos que essa fixação teve seu ápice nesse
episódio.
Alex voltou a se sentir enjoada.
— Você ficou violenta, Alex.
— Não. Não pode ser. — Ela nunca tinha erguido a mão
para ninguém na vida adulta. — Eu nunca…
— Você foi até a casa do seu chefe e atacou a esposa
dele.
Maya. Ah, Deus.
— As filhas dela…?
— As filhas dela estão bem. Mas Maya se machucou.
— Não. Maya é minha amiga. Eu nunca faria nada contra
ela.
— Mas foi o que aconteceu. Ela teve que ir para o
hospital.
— Não, não…
Alex tentou se erguer. Precisava sair dali, descobrir o
quanto daquilo era verdade, se é que era.
— Eu preciso que você se acalme e se concentre, porque
a próxima parte é importante.
Exausta, ela se recostou no travesseiro.
— Você teve sorte. A esposa do seu chefe vai ficar bem,
e, pelo que fiquei sabendo, não quer prestar queixa. Mas
poderia ter sido muito pior.
O seio de Maya, cheio de veias azuis, exposto. Pétalas de
magnólia caindo como confete. Uma manta de piquenique
xadrez e Katie de costas, bracinhos levantados em ângulos
retos. Nicole estava lá, e Jill. Não, não Jill, só Nicole, prestes
a estragar tudo. E durante tudo isso, o monótono subir e
descer das sirenes.
— Você tem certeza… — Alex engoliu e tentou de novo. —
Você tem certeza de que foi a esposa do meu chefe que
eu…
— Tenho certeza. E minha única preocupação é a sua
saúde e o seu tratamento, mas a polícia quer falar com
você. Eu sou obrigado a avisá-los de que você está
consciente agora. Porque eles estão tentando descobrir para
onde você foi depois.
— Depois?
— Depois.
As sirenes estavam ficando cada vez mais altas. A única
forma de bloqueá-las era entrar na estação de metrô mais
próxima. Foi isso que ela fez depois.
— Eu peguei o metrô para casa. Com Katie.
— Sabemos que você foi para casa primeiro. E, de novo,
essa não é a minha preocupação. Mas não foi lá que você
foi encontrada mais tarde naquela noite. Sua filha, Katie, foi
encontrada no apartamento, sozinha. Ela estava bem. Ela
está bem, você tem que entender isso, mas a polícia
encontrou outras coisas lá, Alex: do seu antigo chefe, e-
mails particulares dele. E o que eles estão tentando
descobrir é se você foi a outro lugar naquela noite, se você
encontrou o sr. Lawrence. — O dr. Chua se aproximou. —
Essas são as perguntas que a polícia vai fazer a você.
Porque Jamie Lawrence morreu, Alex. E a polícia acha que
você teve algo a ver com isso.
CAPÍTULO 33

JILL
7 de agosto

– É uma formalidade, como falei ao telefone, sra. Barnes.


Só estamos colocando os pingos nos is. Então, se
puder reler a declaração e assinar aqui no final, estará tudo
certo.
Era o mesmo detetive com quem falara 48 horas antes, o
detetive Silver, mas em uma sala bem diferente — mais
clara, mais arejada — e em uma atmosfera bem diferente.
— Você quer uma xícara de chá, uma água?
Ele então a deixou sozinha, revivendo os detalhes
horripilantes das últimas horas de Jamie — detalhes que Jill
mal conseguia se lembrar de ter dado, de tão nervosa que
estava na sua última visita à delegacia. Respirando fundo,
ela começou a reler a sequência de frases curtas, confusas
e muitas vezes gramaticalmente incorretas no papel à sua
frente.
“Na noite do dia quatro de agosto, quarta-feira, eu deixei
o sr. Lawrence do lado de fora do bar Crown & Sceptre, em
Shepherd’s Bush, por volta de 21h15, onde ele havia sido
socado e chutado por três torcedores do QPR. Os homens
estavam irritados com o comportamento dele no pub. Ele
tinha derramado cerveja em um deles.”
Ela tomou um gole do chá morno e continuou.
“A gente teve uma discussão sobre o comportamento dele
nos últimos meses e sua suspensão [causada por uma
alegação de assédio feita pela supervisora de projetos
especiais da BWL, Nicole Harper].” Aqui Jill parou. Ela não
dissera nada à polícia sobre Nicole e Jamie terem tido um
caso consensual, sem querer se meter nos detalhes turvos
de um relacionamento que ela certamente nunca
compreenderia. Que Nicole e Maya faziam parte de algum
joguinho sórdido agora era óbvio. Mas, quando ambas foram
excluídas de imediato do inquérito policial, Jill decidiu deixar
que elas decidissem o quanto queriam contar.
“O sr. Lawrence estava muito bêbado, então chamei um
táxi corporativo pela conta da BWL — nós usamos a empresa
Addison Lee — para levá-lo para casa. Dei ao motorista uma
nota de vinte libras para que ele se certificasse de que
Jamie chegaria em casa, em segurança. Depois fui direto
para a minha casa.”
Aquela declaração, desprovida de todas as emoções
conflituosas que havia sentido naquela noite — raiva pelo
comportamento de Jamie para com ela, pena pelo que ele
se tornara, vergonha de sua parte na queda que, em
retrospecto, talvez fosse inevitável, e enfim a dor visceral
da descoberta do diagnóstico terminal de Stan —, parecia o
relato de outra pessoa, de uma noite que ela, Jill, jamais
poderia ter vivido.
“Eu ia verificar se Jamie tinha sido mesmo deixado em
segurança pelo sistema da BWL. Estava preocupada com ele
e pensei em fazer isso. Mas quando cheguei em casa me
distraí com meu marido, que não estava bem.” Não estava
bem. Uma imagem dela agarrada a Stan, lágrimas
umedecendo a lã do suéter dele. A dor profunda que
poderia diminuir com o tempo, mas que faria parte de sua
vida para sempre agora.
Será que, se ela tivesse realmente verificado o trajeto de
Jamie, como tinha pensado em fazer — quando chegou a
logar no sistema antes de largar o laptop aberto na mesa da
cozinha —, a morte dele poderia ter sido evitada? Será que
sua preocupação seria o suficiente ao perceber que o trajeto
dele havia sido modificado para o Vale Theatre para mandar
ajuda até lá? Ou será que ela — o que era mais provável —
teria fechado o computador e deixado o homem
responsável por tanta dor lidar com o próprio caos?
“Na manhã seguinte, na manhã de quinta-feira, 5 de
agosto, decidi tirar o dia de folga do trabalho para cuidar do
meu marido. Então, em torno de 13h, recebi uma ligação do
meu sócio, Paul Wilkinson, que me contou o que
aconteceu.”
Ainda confusa com o calmante que Stan havia dado a ela
na noite anterior, Jill tinha enviado um e-mail para Kellie
avisando que não iria ao escritório. Então se sentou e
começou uma lista de tarefas. Qualquer coisa para reduzir a
velocidade dos pensamentos no seu cérebro, para
reestabelecer alguma aparência de ordem.
Uma última viagem pelo Canal Grand Union era do que
eles precisavam. Uma última caminhada pelos lagos
escalonados perto de Tring até Marsworth e voltando pelos
reservatórios. Um último bife com cerveja no pub Half Moon
— se o médico permitisse. O início de setembro seria ideal.
Mais tarde, as noites ficariam frias no Lady J. Mas primeiro
eles precisavam se sentar e discutir os planos funerários de
Stan, as ideias que haviam dividido sobre o assunto depois
de enterros ao longo dos anos foram nada mais que
autoindulgência. E Jill estava pensando em como abordar
isso quando o telefone tocou.
Em um tom curiosamente monótono e clínico, Paul
conseguiu informar o que ela precisava saber — que Jamie
morrera, que havia sido encontrado naquela manhã em um
canteiro de obras atrás do Vale Theatre, que ainda não se
sabia o que havia acontecido —, e Jill tateou atrás de si para
afundar num banquinho.
A sequência dos acontecimentos se tornara horrivelmente
clara mais tarde, quando Nicole descreveu a cena na
cozinha de Maya. Alex, obcecada e enlouquecida, primeiro
atacou a esposa de Jamie em casa, depois o seguiu de
alguma forma até o teatro, levando até o fim sua vingança?
Um brinde a derrubar um homem não tão legal.
— Então, como estamos?
A cabeça do detetive Silver apareceu na porta.
— Eu, hum… — Jill deu uma olhada nas últimas palavras
de sua declaração e na linha pontilhada abaixo. Tanto havia
sido deixado de fora, mas os fatos ali listados, preto no
branco, estavam corretos. Tudo que ela precisava fazer era
assinar seu nome abaixo deles, assinar a morte de Jamie. —
Você disse que isso é só uma formalidade. — Ela ergueu a
cabeça para o detetive. — É porque você sabe? Você sabe
como ele morreu.
O detetive fechou a porta atrás de si e se sentou à sua
frente. Seus olhos eram gentis, mas cansados, e a camisa
tinha a leve marca acetinada de um ferro de passar. Talvez
não houvesse uma sra. Silver em casa para cuidar dele.
— O médico-legista vai dar o veredito oficial. — Ele parou.
— Mas, sim, sra. Barnes, estamos confiantes de que
sabemos o que aconteceu.
— Então vocês falaram com a Alex? Ela está consciente?
— Sim. Ela ainda está mal, mas está recebendo cuidados
médicos. — A empatia na voz dele foi inesperada. — A sra.
Fuller não estava nem um pouco perto do Vale Theatre no
dia 4: vários vizinhos confirmaram que a ouviram gritando e
caminhando desorientada pelas ruas em torno da casa dela
até tarde daquela noite.
— O quê? Mas… — A pergunta morreu nos seus lábios. —
Jamie se matou.
O policial assentiu.
— Ouvimos uma mensagem de voz que ele deixou para a
sra. Lawrence enquanto ela estava no hospital. Era… — ele
franziu os lábios, talvez ansioso para evitar uma dor
desnecessária para ela — … bem conclusiva. Falou que
sentia que as coisas estavam “todas contra ele”, e não é
incomum que homens em situações assim sintam que não
há como escapar, como fugir, especialmente sob a
influência de álcool ou drogas.
Jill assentiu, agradeceu… e assinou a linha pontilhada.
De todas as emoções que lutavam para serem ouvidas
dentro de si enquanto saía do prédio feio de tijolos
vermelhos na Salusbury Road, ela ficou surpresa ao
perceber que a mais forte de todas era a raiva. Era típico de
Jamie fazer um gesto final tão egoísta. Trair Stan, destruir a
vida dela… E então chamar toda a atenção para si.
CAPÍTULO 34

JILL

– J ill?Agachado
Vem dar uma olhada nisso.
perto dos galhos baixos e amplos de um
freixo no Jardim da Reflexão do Crematório de Mortlake,
Stan começou a ler as mensagens deixadas nas folhinhas
prateadas pelos enlutados.
— “Você era tudo para mim, Ted.” “JJ, você vai morar para
sempre no meu coração.” “Te amo mais que todas as
estrelas do universo, minha querida Anita.”
No luto, a emoção humana é reduzida a letras de música.
E talvez não houvesse nada de errado com isso; talvez, no
final, banalidades sejam as coisas mais honestas que as
pessoas conseguem transmitir. Contudo, não havia nada de
honesto na presença de Jill ali, fingindo “celebrar a vida e
lamentar o falecimento” de James Edward Lawrence,
quando ela não podia, em sã consciência, fazer nem uma
coisa nem outra.
— Acho que não consigo fazer isso.
A cerimônia ia começar em dez minutos — e Jill sentia
suas costelas apertarem vilmente.
— É claro que consegue. — Stan se levantou. — Você
ficou acordada até sei lá que horas escrevendo.
— Eu sei. Mas eu não deveria ter concordado em escrever
o elogio fúnebre. Não… cabe a mim.
Pela pausa do marido, ela percebeu, com um pânico
crescente, que ele sentia o mesmo. E havia mais uma coisa.
— Você não deveria ter que estar aqui. — Jill passou os
braços em torno da cintura do marido, alarmada ao
perceber como suas mãos se encontravam nas costas dele
com facilidade, como se a própria substância dele estivesse
se esvaindo. — Você não deveria ter que…
— Encarar a morte de frente? — Virando-se para a
esposa, Stan levantou seu queixo. — Ei. Eu e a morte já
somos amigos faz muito tempo. Eu sei que é pedir demais,
mas queria que você fizesse as pazes com ela como eu. Ou
de algum jeito… voltar a não saber.
Como ela poderia fazer isso? Era naquilo que pensava
assim que acordava, procurando sob as cobertas o corpo
cálido e reconfortante do marido antes mesmo de abrir os
olhos, e era seu último pensamento antes de cair no sono.
Então, não, ela não seria capaz de suspender a realidade.
Mas, se Stan queria que ela fosse corajosa, então era assim
que ela agiria.
Nos dias seguintes àquela última conversa com a polícia,
aos resultados da autópsia e à declaração oficial de suicídio,
Jill tinha ido e voltado da culpa para a fúria. Diferente de
Jamie, seu marido não tinha a chance de escolher como ou
quando ia morrer. Ele nem sequer pôde escolher como
contar à esposa quanto tempo lhe restava: deixando
escapar o que sabia naquela noite, Jamie roubara isso de
Stan. E mesmo assim… o quão desesperado Jamie estaria
para fazer o que fez? Certamente ele sentia que o mundo
estava se fechando ao seu redor. Um mundo que ela, Nicole
e Alex haviam manipulado para que fizesse exatamente
aquilo.
Atrás das roseiras e das macieiras que cercavam o Jardim
da Reflexão, o vislumbre de um carro fúnebre surgiu.
Stan tinha razão. Ela estava ali agora e precisava
enfrentar aquilo.
— É melhor a gente ir.
Quando deram a volta na cerca viva, uma criancinha de
preto saiu do carro atrás do carro fúnebre. Jill quase deu as
costas e fugiu.
— Aquelas meninas… — murmurou. — Não vou aguentar.
— Eu sei, amor. — A voz do marido já não estava tão
firme quanto antes. — Vamos.
Lá estava Maya — com a postura bem ereta, usando um
vestido de linho preto e decote quadrado simples,
segurando Elsa no quadril —, assentindo para as pessoas
reunidas enquanto passava pelo arco da entrada do
crematório. Ao se aproximarem, porém, Jill percebeu outra
figura: uma mulher com um chapéu preto de abas largas e
óculos escuros, sozinha, de pé ao longe.
— Ela veio.
Nicole ergueu os olhos do guia de orações que segurava e
encarou Jill, a incredulidade pelo que lera espelhando a
emoção da mulher mais velha.
— Maya não quis fazer o discurso fúnebre… — explicou
Jill, na defensiva. — Então me pediu e eu… não pude
recusar. O pai de Jamie vai fazer o principal. O meu vai ser
curto. É só um… Bom. Mas você? A Maya te viu?
Jill pensou nas manchetes que surgiram depois da morte
de Jamie: ILUSTRE CORRETOR IMOBILIÁRIO SE JOGA PARA A MORTE APÓS
ACUSAÇÃO DE ASSÉDIO; CORRETOR DE IMÓVEIS DEMITIDO É ENCONTRADO
EMPALADO EM OBRA.
— Foi ela que me pediu para vir — respondeu Nicole em
voz baixa, se balançando um pouco nos saltos altos. — E eu
não poderia… deixar de vir.
Algo no rosto excessivamente maquiado de Nicole
relaxou, e, enquanto as duas se encaravam, Jill sentiu a
própria raiva e recriminações desaparecem, junto às de
Nicole. Toda aquela amargura, e ódio, exauriu as duas.
— Stan? — Depois de uma conversa breve com Paul, o
marido dela se juntara às duas. — Essa é a Nicole.
— Já nos conhecemos. — Stan. Sempre educado e
comedido, mesmo nas circunstâncias mais difíceis. — Acho
que eu já tinha me afastado da empresa quando você
começou, não?
— Exato.
Aquela troca era o mesmo preâmbulo banal de qualquer
reunião social, com o mesmo silêncio de “o que mais temos
para falar?” ao ser concluída — silêncio que Nicole
preencheu perguntando sobre a saúde de Stan. Mas,
conforme o diálogo continuava, ficou evidente para Jill que
qualquer tipo de interação estava sendo muito difícil para
Nicole. Algo curioso havia acontecido com a boca dela, os
lábios pintados de magenta se curvando de forma
estranhamente dura nas vogais, e naquele momento Jill
compreendeu o quanto custava a Nicole estar ali, apesar
dos óculos escuros, do chapéu e do batom. Aquilo tinha sido
mais do que um caso. Talvez perder Jamie fosse a maior
tragédia da vida dela.
 
Nos primeiros acordes de “The Lark Ascending”, de Vaughan
Williams, as pessoas pararam de conversar, ajeitando
gravatas, blazers e rostos em expressões sóbrias. O calor da
mão de Stan aquecia as costas de Jill enquanto ele a guiava
pelo corredor do crematório. Quando ela se voltou para ele
com um último olhar suplicante, ele assentiu de leve.
— Em uma hora isso já vai ter acabado — murmurou ele
quando se sentaram.
Que ele compreendesse, sem saber o que ela fizera, que
Jill queria se distanciar de tudo que tivesse conexão com
Jamie depois daquele dia era um milagre. E enquanto um
pastor de cabelo raspado e expressão arrebatada garantia
aos presentes que Deus “ouviria seus lamentos e os
confortaria”, “acenderia uma vela por eles” e “estaria com
vocês no vale mais sombrio”, Jill observava a pequena
Christel, três bancos à frente, brincando com uma fadinha
de plástico, fazendo-a caminhar para a frente e para trás na
madeira polida do banco.
Será que Maya comprara o brinquedo para a ocasião?
“Seu papai se matou. Ele está naquele caixão ali porque não
quis esperar você perder seu primeiro dente, se tornar uma
mulher e ir ao seu primeiro encontro. Mas toma, um
presente.” Ali, a distância entre ela e as mulheres com filhos
pareceu maior do que nunca. Jill só precisava pensar em si
mesma e em Stan; a dor de perdê-lo e de viver sem ele.
Como Maya conseguiria permanecer forte não só por si
mesma, mas por Christel e Elsa, para sempre?
Com passos pesados, o pai de Jamie seguiu até o altar da
capela e parou em frente ao caixão do filho. Jill percebeu
que o terno preto parecia pouco usado, embora não fosse
novo — era do tipo que homens aos sessenta anos
compravam quando começavam a perder alguns amigos e
percebiam que mais perdas viriam. Um “uniforme de
funeral” que nenhum pai jamais imaginaria ter que usar
para enterrar o próprio filho.
O cabelo branco dele brilhava contra a pele bronzeada do
rosto — um rosto expressivo e honesto —, e Jill se lembrou
das fotos do apartamento em Alicante que Jamie havia
mostrado a ela uma vez no celular, orgulhoso de poder dar
aos pais a aposentadoria que sonharam, mas esnobe
demais para visitar — “o sol e o vinho não compensam os
bandidinhos”. Jamie não mencionava muito os pais, mas,
nas raras ocasiões em que o assunto surgia, Jill se lembrou,
seu tom sempre fora amoroso.
Ted Lawrence devia ter se tornado pai no final da
adolescência ou aos vinte e poucos anos. Em contraste com
o cabelo, o rosto dele era jovem e sem rugas, os olhos do
mesmo castanho aveludado de Jamie. Ele era
provavelmente travesso também, em circunstâncias
normais. Trabalhava com alguma coisa de aquecimento
central. Caldeiras, era isso: Ted consertava caldeiras em
Sevenoaks, onde ele e a esposa, Laura, moraram até se
aposentar. Ela estava lá, ao lado de Maya, os soluços
incontroláveis audíveis pela capela inteira. Jill não
aguentava olhar para ela.
— Ver tantas pessoas aqui hoje, saber o quanto o nosso
filho era amado, é um grande conforto para mim e para a
minha esposa — começou o sr. Lawrence devagar, tirando
um lenço de papel amassado do bolso e alisando-o com a
palma da mão no leitoril. — Mas estou aqui com meu
coração partido. — Ele hesitou, e Jill desejou que ele
conseguisse superar aquilo antes de se lembrar que não
havia como superar aquele tipo de luto. — Eu e Laura nunca
achamos que teríamos que lidar com a perda do nosso filho,
nosso único filho. Eu me atrevo a dizer que ninguém acha
que isso pode acontecer. Mas perder um filho assim.
Sabendo que ele sentia não ter nenhuma alternativa, que
não podia contar com ninguém. — O sr. Lawrence balançou
a cabeça. — Porque Jamie tinha muitos planos, sabe? Para o
futuro. E ele estava trabalhando para torná-los realidade.
Então isso… — Assentindo para a esposa, os olhos do pai de
Jamie se encheram de lágrimas. — Isso não faz sentido. Ele
sempre foi um otimista, desde menininho. Ele nunca
deixava a gente dormir até mais tarde nos fins de semana.
Ele aparecia com o sol, pulando na cama, dizendo para a
gente acordar. Não é, Lau?
A resposta da esposa foi um soluço estrangulado. Ele
seguiu.
— E era sempre a mesma coisa. “O que a gente vai fazer
hoje, pai?” Como se todos os dias fossem uma nova
aventura. E eu sabia que o normal com que eu e a mãe dele
estávamos acostumados não seria o suficiente para Jamie.
Ele queria algo especial, e conseguiu. Ele conseguiu uma
esposa maravilhosa… — Ted sorriu para Maya — … e filhas,
e uma casa, e um trabalho melhor do que qualquer coisa
que poderíamos imaginar. Ser sócio em uma firma… — a
voz dele se engasgou — … de primeira linha em Londres…
aparecendo em jornais e revistas.
Pelo canto do olho, Jill podia ver a mãe de Jamie
assentindo com veemência sob as lágrimas. Ela imaginou os
artigos emoldurados nas paredes — uma geladeira coberta
de lembranças com os sucessos de Jamie — e uma visão
contrastante das matérias que saíram depois da morte dele.
— Si que esse sucesso foi maculado no final, ou… ou… —
Jill se encolheu com a tristeza daquele homem buscando em
vão a palavra correta para descrever o que acontecera com
o filho ao fim da vida. — Mas hoje não precisamos pensar
nisso. Hoje lembramos de tudo que Jamie conquistou. O que
não foi nenhuma surpresa para nós. Porque eu o levava
comigo em alguns trabalhos quando ele era um rapazinho,
sabe, e quando eu explicava para o cliente que
provavelmente a caldeira inteira precisaria ser trocada, e o
cliente se zangava, sabe: “Mas quanto isso vai me custar?”
Bom, era aí que Jamie sempre falava alguma coisa como
“Meu pai consegue consertar qualquer coisa, pode confiar
nele”. E desde pequeno ele tinha esse efeito nas pessoas.
Os homens o adoravam, e as mulheres também. — O lábio
dele se curvou, um toque de orgulho macho pelo sucesso do
filho com o sexo oposto. — E, apesar do que ele fez, sei que
ele nos amava também.
Quando o queixo do sr. Lawrence se apoiou no peito e
seus ombros começaram a tremer, o pastor se aproximou e
sussurrou algumas palavras no ouvido dele.
— Não, eu… só quero dizer mais uma coisa: sempre
teremos orgulho de você, meu filho. E esperamos que você
esteja em paz.
Durante a leitura do Eclesiastes e toda a execução de
“Supermarket Flowers”, de Ed Sheeran, Stan segurou a mão
de Jill, apertando-a de leve quando ela se levantou para
discursar.
— Sr. e sra. Lawrence, Maya, tenho certeza de que falo
por todos quando digo que, se pudéssemos aliviar um
pouco do sofrimento de vocês, nós o faríamos. Mas espero
que vocês tenham algum conforto em saber que todos aqui
partilhamos dessa dor.
Nicole estava lá no fundo, a terceira do corredor, tão
sombria e incômoda quanto uma mancha na lente, e, atrás
do leitoril, Jill transferiu o peso de um pé para o outro.
— Todos aqui conheciam Jamie em diferentes níveis… —
Mantenha-se em um contexto profissional, disse a si mesma
na noite anterior, e vai ficar tudo bem. — E eu, que percebi
seu potencial 12 anos atrás, o trouxe para a BWL e trabalhei
ao lado dele esse tempo todo, pude vê-lo crescer na vida
profissional e na pessoal. Eu o vi se transformar em um
marido e em um pai amoroso para Christel e Elsa. Eu o vi
ascender de corretor júnior para sócio. — Ela pigarreou. —
Mas aquela sede por aventura de que o senhor falou, sr.
Lawrence, sempre foi uma das características mais
marcantes dele. — Porque você sempre queria mais, não é,
Jamie? Por quê? Não havia aventura suficiente para você na
vida adulta? Ou você só ficou mimado, pelos seus pais,
pelas mulheres, pelo sucesso, por mim? — Isso sem falar no
carisma de Jamie, no seu magnetismo, que eram… —
exaustivos, destruidores — perceptíveis por qualquer um
que o conhecesse. Quando ele estava conversando com
alguém, fosse quem fosse, aquela pessoa sempre se sentia
a mais importante do mundo. Esse é um dom raro, sem
dúvida. — Um dom do qual você abusou, Jamie, várias e
várias vezes, para conseguir o que queria. — Em um
mercado como o nosso, em que o charme é tão importante,
essa característica deu a ele uma energia, um poder, que o
impulsionava sempre em frente. — E tornava fácil demais
atropelar os outros, Jamie. Ela pausou. — O fato de que por
baixo daquela fachada brilhante havia uma alma
atormentada não era algo que muitos de nós
suspeitávamos. Mas Jamie deixou sua marca em todos aqui
enquanto esteve conosco. Mais uma vez, tenho certeza de
que falo por todos quando digo que ele não será esquecido.
CAPÍTULO 35

NICOLE
Dezembro

– E le Ovai aviso
te pegar, ele vai te pegar!
veio tarde demais. “Suzie Pong”, a
lavadeira suja que Nicole não tinha lembrança nenhuma de
estar no Aladdin original, já se inclinava por cima dela e
pegava Ben pela mão.
— Pode levantar — gritou ela com a voz esganiçada, a
barba por fazer e a mancha de batom nos dentes visíveis de
perto. — Vou precisar de um aprendiz na minha lavanderia,
e você parece perfeito. — Girando Ben pela cintura para
fazê-lo encarar a plateia, Suzie Pong berrou: — Vocês não
acham que ele parece perfeito, senhoras, senhores e
amigues não binários?
Um coro de assobios e gritos abafou os protestos do
marido, e Nicole se encolheu no assento, deixando Ben ser
arrastado pelo corredor até o palco.
— Alguma coisa me diz que o papai vai ser feito de bobo
— sussurrou ela no ouvido da filha.
Quando Chloe explodiu em uma de suas risadinhas,
mostrando os dentes descombinados, Nicole sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Todos esses anos ouvindo amigas reclamando da cafonice
sentimental natalina que as inundava no shopping ou no
ringue de patinação quando os primeiros acordes de “Last
Christmas”, do Wham!, começavam a tocar, Nicole nunca
tinha entendido. Até este ano. Até ela quase perder tudo e
ter que lutar para recuperar sua vida, pedaço a pedaço.
Ao voltar para casa, aquelas ondas de emoção a
dominaram várias vezes por dia. Eram tão fortes que a
deixavam tonta e surgiam do nada: quando estava
colocando três lugares na mesa ou tentando encontrar o par
da meia estampada de estrelinhas nas roupas emboladas
recém-saídas da secadora. Quando pegava cartas na caixa
de correio endereçadas ao sr. e à sra. Harper. Quando, ao
subir para o quarto de hóspedes em que Ben a fizera dormir
por mais de um mês, teve um vislumbre da nuca do marido
editando vídeos para a produtora na qual agora trabalhava.
Todas as coisas que antes a faziam se sentir enclausurada
agora eram lembretes tangíveis da verdadeira felicidade.
Porque não era ver seu sobrenome ser aplicado à parede da
recepção com o de Paul e Jill, depois de todos aqueles anos,
ou a primeira carta escrita no papel timbrado da BWL, afinal,
mas algo bem mais sutil. E, quando saiu para celebrar sua
promoção no mês anterior e sua nova assistente mostrara a
tatuagem que estava removendo, Nicole ficou fascinada
pelos fragmentos de tinta preta visivelmente sendo
destruídos, ponto a ponto, sentindo que aquele mesmo
processo de purificação acontecia dentro de si. E que, com
Ben e Chloe ao seu lado, a toxicidade na sua corrente
sanguínea com o tempo seria eliminada.
Por causa disso, Nicole não sentiu a tensão usual quando
Ben comentou sobre a excursão que faziam todo ano antes
do Natal para o teatro.
— É claro que vamos — insistira ela.
E como Nicole explicaria que a banalidade do evento era
que o tornava tão significativo? Mais ainda do que aquela
primeira noite que passaram juntos na mesma cama,
quando, apesar das três taças de Merlot que Ben virara,
talvez de propósito, a sensação era que ele tinha se forçado
a passar logo por aquilo, mantendo os olhos fixos em um
ponto distante da cabeceira até acabar. Naquela tarde de
sábado, porém, no teatro — com as discussões sobre dar ou
não chocolate para Chloe e uma corrida desesperada ao
banheiro feminino no intervalo —, Nicole sentia que a
família era quase igual a todas as outras.
— Minha nossa! Isso não parece certo. O que vocês
acham?
Risadas encheram o auditório, e Nicole olhou para o
marido em cima do palco. Preso a um varal por dois
pregadores gigantes que puxavam sua camisa como se
fosse um boneco de ventríloquo, Ben estava se esforçando
para parecer tranquilo. “As duas piores palavras do
mundo?”, ele brincara em um dos primeiros encontros com
ela. “Teatro interativo.”
Sim, Ben estava odiando cada segundo daquilo. Daquele
jeito que casais que estão juntos há muito tempo são
capazes de perceber as emoções um do outro, Nicole
conseguia sentir as ondas de irritação emanando dele. Mas
sabendo que Chloe estaria se divertindo vendo o pai no
palco, Ben aguentaria com um sorriso no rosto. E aguentar a
humilhação, Nicole agora compreendia, era a maior prova
de amor.
De forma tão graciosa quanto tinha sido arrancado do
assento, Ben foi chutado do palco — “Uma salva de palmas
para o meu aprendiz! Estou mandando esse aqui direto para
o olho da rua!” —, e quaisquer que fossem as palavras bem-
humoradas que ele tivesse sussurrado no seu ouvido ao se
sentar de novo foram abafadas pela música eletrônica,
“Firestarter”, do Prodigy, enquanto o elenco se juntava no
palco para a cena final.
— Mamãe! Eu tô com fome! — choramingou Chloe
enquanto eles desciam lentamente as escadas do teatro e
saíam para as ruas lotadas de Hammersmith decoradas
para o Natal.
— Como que você pode estar com fome? — questionou
Nicole, se abaixando para fechar o casaco da filha. — Você
acabou com uma barra inteira de chocolate quase sozinha.
— Ela não almoçou direito. A gente pode dar uma
passada nas barraquinhas.
Seguindo o olhar do marido e sentindo os aromas doces e
salgados — churros, carne assada e algo quente e alcoólico
de frutas —, Nicole deu uma olhada na fileira de barracas do
outro lado da rua.
— Vamos nessa — concordou. Então, vendo uma caixa de
correio, avisou: — Já encontro vocês.
O cartão de Natal ficara esquecido na sua bolsa a semana
toda e, alisando as beiradas dobradas, Nicole checou o
endereço uma última vez — “Alex Fuller, Oak View Cottage,
Albion Road, Marden, Tonbridge” — e enfiou o cartão pela
fresta.
— É só um apartamento alugado, e é minúsculo — Alex
lhe contara. — Então minha mãe ficou com o quarto e eu
fico no sofá-cama da sala, mas assim que o dinheiro do
divórcio sair ela vai comprar um lugar maior para a gente. É
tão tranquilo aqui, até a Katie está dormindo a noite inteira!
Você tem que vir nos visitar.
Nicole prometeu que iria, sabendo que isso nunca
aconteceria, que essa era a última coisa que ambas
precisavam ou desejavam, e que qualquer coisa além de
raras ligações só traria à tona lembranças dolorosas. Uma
garotinha de preto no funeral do pai; duas garotinhas que
passariam o primeiro de muitos Natais sem ele.
Mas Nicole havia desenvolvido uma série de estratégias
evasivas para banir Christel e Elsa de sua mente sempre
que elas apareciam. Segurando a mão enluvada de Chloe,
os três seguiram para as barraquinhas natalinas.
— Você se lembra da última vez — comentou ela, olhando
para Ben com um sorriso —, que eu desenvolvi um olfato
bizarro?
— Se eu me lembro? Você sabia o que eu estava fazendo
para o jantar antes de sequer abrir a porta.
— Da última vez o quê? — perguntou a filha.
Os dois sabiam que ela nunca deixaria o assunto para lá.
Levando Chloe para um canto, longe da multidão que
passava com rapidez, Ben colocou a mão na bochecha
corada da menina.
— O que você acharia de ter um irmãozinho ou
irmãzinha?
Os olhos de Chloe foram e voltaram de Ben para Nicole.
Então, por um segundo, uma sombra franziu as
sobrancelhas dela.
— E a gente moraria todo mundo junto? Eu, você, a
mamãe e meu irmãozinho ou irmãzinha?
— É claro, filha. — Por cima da touca de pompom da filha,
Ben encarou Nicole. — Eu nunca deixaria nada mudar isso.
Observando a felicidade no rosto do marido se espalhar
para o da filha, Nicole rezou pela milionésima vez para que
o bebê chegasse só algumas semanas mais tarde.
CAPÍTULO 36

JILL

– Q uinze mil horas… esse é o tempo que


lâmpadas econômicas teoricamente duram.
essas

Baixando o Sunday Times, Jill, aninhada no sofá, lançou


um olhar para o marido. Stan não se movia fazia meia hora,
ainda encarando a parede da casa-barco, enquanto
cutucava o buraco cheio de fios acima de sua cabeça. Ao
lado dele, na lareira do Lady J, estava a arandela defeituosa
que ele estava decidido a consertar.
— Ótimo, mas essas lâmpadas nunca iluminam direito.
Então são quinze mil horas de lusco-fusco… — Ela procurou
na página de opiniões a coluna do seu escritor favorito, mas
ele havia sido substituído por um “colunista convidado”
estranhamente jovem. — Bom, mas a lâmpada não era o
problema, era?
— Não. Mas acho que finalmente entendi o que estava
atrapalhando — resmungou ele, prendendo a moldura
retangular da luminária na parede antes de dar um passo
para trás. — Só levei três anos e meio.
— Não faz tudo isso.
— Faz, sim. — Stan se virou para ela com um sorriso. —
Lembra daquele fim de semana quando Prue e Alan vieram,
e nós fomos até Milton Keynes?
— Que ela perdeu o aparelho de surdez várias vezes.
— E a gente passou quase a tarde toda procurando
aquela porcaria.
— E aí achamos atrás do sofá. — E a testa franzida de Jill
se suavizou. — É verdade! — Ela encostou a mão na boca.
— Você tem razão. Foi naquele fim de semana! Na última
noite, quando estava chovendo, e a gente jantou aqui…
Você não conseguiu ligar a porcaria das luzes.
— Exatamente. Isso está me incomodando desde então.
— Stan indicou o interruptor atrás do sofá. — Faz as honras?
Esticando o braço acima da confusão de jornais ao seu
redor, Jill apertou o interruptor.
Nada.
Stan gemeu.
Jill deu uma risadinha.
— Deixa para lá. Vem aqui. — Ela deu um tapinha no
assento ao seu lado. — Vou fazer um chá.
— Não, não. — O marido já tinha voltado para a parede e
desaparafusava a luminária. — Vou resolver isso agora.
Essas quinze mil horas começam hoje.
Jill pegou a seção de propriedades, contraindo os ombros
ritmicamente enquanto folheava as páginas em uma
tentativa de aliviar o aperto no peito: tudo para impedir que
sua mente fizesse contas involuntárias. Quinze mil horas
dava quanto? Mais de um ano e meio. Quase dois. Aquela
lâmpada não tinha nada a ver com a irritação de Stan ou
com um item na sua lista de afazeres. Ele estava fazendo
aquilo por ela.
Aceitar que seu marido estava morrendo tinha sido mais
fácil do que conversar com ele sobre a vida que eles ainda
viviam, e as primeiras escorregadelas — “Temos que
lembrar de podar a clêmatis no início de maio, antes que as
folhas entupam o duto de água”, “Me lembre de convidar
Steph ano que vem” — eram o suficiente para fazer Jill sair
do cômodo e se trancar no banheiro mais próximo até
conseguir respirar de novo.
Não ajudava que Stan conseguisse rir dessas situações, e
ela o avisara semanas antes que qualquer tipo de humor
mórbido não só não seria ridículo, como também repulsivo
para ela. Ao mesmo tempo, conforme a morte de Jamie
ficava no passado, junto a todo o terror que levara àquela
semana transformadora, a mente organizada de Jill tinha
encontrado algum conforto ao saber que simplesmente
haveria um antes… e um depois. Da próxima vez que o
seguro da casa precisasse ser pago; da próxima vez que as
calhas precisassem de limpeza; da próxima vez que aquela
lâmpada idiota de quinze mil horas precisasse ser trocada,
Stan não estaria mais com ela. E Deus sabe que ele tinha
feito as pazes com isso havia muito tempo.
Que o marido tivesse superado todas as expectativas e
chegado a dezembro era “mérito dela”, o dr. Jacks
continuava repetindo — embora ela estivesse mais inclinada
a considerar que era relacionado à vida saudável que os
dois compartilhavam: uma alimentação boa, longas
caminhadas e décadas de ar puro do rio. Mas, quando eles
enfim receberam o sinal verde para a viagem de Grand
Union, três meses depois do que tinham planejado, o
médico a puxou de lado, entregou cinco páginas de
instruções médicas e completou:
— Você sabe que as pessoas podem acabar tendo uma
sensação falsa de segurança em casos como o de Stan,
começam a achar que a equipe médica errou. — Ele pausou.
— Acredite que eu gostaria de que fosse o caso. Mas… —
Ele balançou a cabeça. — Você sabe que é improvável que
Stan chegue até o Natal, não sabe?
Ela assentiu, engolindo o nó na garganta, e perguntou:
— Mas a viagem? Você está dizendo que não podemos
fazer a viagem?
Por que aquela viagem significava tanto, Jill só percebeu
naquela primeira manhã, quando ela e Stan despertaram
em um rio enevoado perto de Tring Summit. No verão, a
água ficava lotada de cruzeiros de três dias all inclusive,
mas só marinheiros experientes como eles pensariam em
passar por ali em dezembro. E tirando outro barco que
parecia fundido à margem a que estava ancorado de tanto
musgo e líquens grudados na lateral de ardósia, só havia o
Lady J.
Sim, estava bem mais frio do que esperavam, o bastante
para acordá-los pouco depois das seis naquela manhã, mas
depois de encher uma garrafa térmica de café, ajudar Stan
a vestir o casaco mais grosso e aquecer dois croissants, eles
se sentaram no deque traseiro embaixo do cobertor
assistindo ao céu tingido de laranja clarear até um rosa
claro.
— Não é uma bênção? — murmurou Stan.
E era. Mas não era fácil viver no momento quando todos
esses momentos já eram memórias a serem guardadas a
sete chaves: das piadas do marido às imagens mentais de
suas mãos manchadas. Porque, se ela conseguisse juntar
lembranças o suficiente, talvez durassem pelo resto da sua
vida.
Eles tinham feito uma lista de regras antes de saírem de
Londres. Nada de falar sobre morte — de qualquer forma, os
últimos detalhes do funeral já haviam sido acertados antes
da partida —, nada de Jill enchendo a paciência por
recomendações médicas. Stan era bem crescidinho e
conseguia se lembrar dos remédios sozinho. Não precisava
que Jill se preocupasse. Tirando uma caneca de cerveja com
a torta salgada de carne ao molho de cerveja preta durante
o almoço no Half Moon, nada de álcool para ele (o médico
recomendara evitar). E, tirando uma janela de meia hora à
tarde em que Jill podia ver os e-mails e ligar para o
escritório caso necessário, nenhum trabalho seria feito ou
discutido. Antes de ligar os motores do Lady J, eles
concordaram com essas regras e partiram de Little Venice
determinados a obedecê-las.
É claro que no terceiro dia e naquele domingo todas as
regras já tinham sido quebradas, menos uma. Em uma
questão de horas, Jill já tinha atormentado Stan sobre os
remédios. Ele se lembrara de ter trazido todos? Até os que
ficavam do lado da chaleira? O marido tinha bebido a
primeira cerveja antes mesmo de passarem por Brentford,
e, quando a garçonete anotou o pedido do almoço no Half
Moon naquele dia, Stan olhou do menu para a esposa.
— Você não vai mesmo negar a um homem moribundo a
chance de dividir uma bela garrafa de vinho tinto com a
esposa, vai?
A loira bonita, de nariz arrebitado e com não mais que 17
anos, achando que era uma piada, havia rido. Porque a ideia
de que pessoas normais que almoçavam no pub aos
domingos e depois iam embora para morrer era digna de
risada. Então Jill perguntou à moça se eles ainda tinham
aquele Ribera gostoso, “o Vega alguma coisa que bebemos
três anos atrás e adoramos”, e os dois terminaram uma
garrafa inteira durante as quatro horas que passaram ali, e
pediram mais duas taças para terminar com os crumbles de
maçã.
Chovia quando eles saíram do pub, e Jill ficou feliz em
cancelar os planos de caminharem juntos para abrir espaço
para um tarde lânguida, lendo jornais juntos, trocando
cadernos em uma ordem determinada décadas antes. Só
que, em vez de se aconchegar com ela, Stan ficara
obcecado pela arandela.
— Ah.
Por um período depois que a morte de Jamie veio a
público, Jill se acostumou a ver o nome dele no noticiário.
Mas o caso tinha sido encerrado há tempos — declarado
como um “suicídio óbvio” — e já fazia semanas desde que
ela encontrara algo sobre o ex-colega ou o Vale Theatre. Por
isso, o impacto dessas palavras a desestabilizaram quase
tanto quanto a foto sorridente ao lado.
— O quê? — Ainda atento à fiação, Stan não se virou.
— Tem um artigo no Times sobre a venda do Vale Theatre
para Creighton Mackintosh. Um artigo grande.
— Essa venda ia vazar mais cedo ou mais tarde. Roger
Creighton é famoso. Você está preocupada que eles pensem
que nós que a vazamos?
— Não, não. Ele até deu uma declaração para a matéria.
Disse que quer transformá-lo no “maior teatro em
funcionamento do oeste de Londres”.
— Bom pra ele.
Jill assentiu, os olhos sendo atraídos de volta para o
parágrafo sobre Jamie e a “trágica história recente do
prédio”, com aquela fotografia desafiadoramente vital ao
lado.
— Eles requentaram a história toda. — Ela balançou a
cabeça, pesarosa. — É a última coisa que Maya e as
meninas precisam.
Buscando alguma forma abstrata de se tranquilizar, Jill
ergueu o rosto para o marido, mas ele continuava de costas,
e ela observou as marcas da máquina que o barbeiro Johnny
tinha passado, no que Stan chamava de uma “máquina dois
de leve”, antes de partirem.
— Isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Assim que a
notícia do assédio saiu… Aí tem o teatro, com a cúpula
esquecida… É ambrosia para os jornalistas, né?
Desejando nunca ter comprado o jornal que permitira que
Jamie voltasse para a vida deles, mesmo brevemente, Jill
virou a página. Mas era tarde demais. E, como uma porta
que não fecha direito, não importa a força que se use, algo
emperrou.
— Você sabia sobre a cúpula? — comentou ela, mais para
si mesma do que para Stan, lembrando-se de imediato que,
mesmo durante o auge da cobertura da imprensa sobre a
morte de Jamie, não houve menção à estrutura de vidro
escondida no telhado do teatro. Na verdade, a única pessoa
que havia mencionado a existência daquilo tinha sido
Nicole.
Por baixo da camisa polo promocional que ela comprara
para Stan, as omoplatas dele estavam rígidas, os tendões
do pescoço tensos sob aquela “máquina dois de leve” — e
ainda havia tempo para deixar a pergunta para lá. Ao ver os
ombros do marido relaxarem, porém, ela sabia que era
tarde demais, e o sussurro de medo no seu âmago se
transformou em um uivo.
— O que ele fez com você… O que fez com a empresa
que passamos a vida toda construindo…
— Shhh.
O cotovelo de Stan se ergueu enquanto ele girava a
chave de fenda.
— Jamie não tinha respeito por nada.
— Shhh.
— Nenhum respeito pelas mulheres, por aquela pobre
menina que ele usou de bode expiatório. Nenhum respeito
nem pela minha morte.
Com os olhos ainda na nuca do marido, Jill relembrou a
última vez que vira Jamie. A verdade que ele cuspira na sua
cara. O computador aberto na mesa da cozinha quando ela
desistiu de acompanhar a viagem dele para casa no banco
de dados da empresa. O calmante que o marido lhe dera:
aquele mesmo pescoço se desfocando suavemente
conforme o remédio fazia efeito.
— Ele estava tão bêbado quando cheguei lá. — A voz de
Stan ficou baixa e rouca a ponto de Jill não reconhecê-la. —
Bêbado e desesperado para me mostrar aquela
“curiosidade” do teatro.
A arandela estava presa à parede. Stan deixou a chave de
fenda com delicadeza na lareira.
— Ele teria caído de qualquer forma.
Por um segundo, os dois ficaram em silêncio.
Então Jill ouviu a própria voz, direta e professoral:
— Agora chega.
Libertando-se da paralisia que ameaçava engoli-la, ela
estendeu o braço atrás do sofá e ligou o interruptor. Ficou
claro, muito claro. E quando Stan finalmente se virou para
encará-la, ela desejou ter de volta aquelas velhas sombras
para poder se esconder. Mas não havia como voltar atrás.
Grata pelas pernas ainda serem capazes de carregá-la, Jill
foi até a cozinha e pegou o Nicholson Waterway Guide na
gaveta.
— Agora que dá para ler, vamos ver para onde vamos
agora.
Porque o que importava era a construção de novas
memórias. Se eles continuassem se movendo, sempre em
frente, mesmo que devagar, mais cedo ou mais tarde
algumas das lembranças antigas seriam esquecidas.
AGRADECIMENTOS

E
ste livro surgiu graças à infinita paciência e ao olho
clínico da minha agente, Eugenie Furniss. Cada “Ai!”
rabiscado seu, Eugenie, me fez mais feliz do que
você pode imaginar, e o agora falecido, meu grande amigo
e agente, Ed Victor, ficaria tão feliz de saber que você
continuou de onde ele parou.
Minha editora, Ro-sanna Forte, fez os melhores
comentários que qualquer autor poderia querer. Obrigada
por acreditar na história e nos personagens de Acerto de
contas a ponto de ficar irritada com o que Jamie dizia — o
que me forçava a te relembrar que “ele não existe de
verdade”.
Thalia Proctor, Laura Vile, Stephanie Melrose e toda a
equipe da Sphere na Little, Brown Book Group foram
brilhantes e incansáveis, e estou muito animada para
trabalhar com todos vocês de novo no próximo livro.
Tenho uma dívida especial com Alexandra Kordas da 42
Management & Production, cuja energia e entusiasmo
iluminaram muitos dias cansativos da quarentena. Também
sou profundamente grata a Malcolm Ward, por ler algumas
das passagens mais sinistras que já passaram por sua caixa
de e-mails; a Simon Raw, por me colocar em contato com o
incrível gerente de palco do Her Majesty’s Theatre, Stewart
Arnott, e a Emily McCullagh, por seu conhecimento e suas
respostas rápidas, apesar de ter coisas muito mais
importantes para fazer.
Um obrigada especial a Mike Beveridge, do Canal and
River Cruises Ltd, por me fornecer informações que
pesquisa nenhuma traria; a John Goodall por dividir seu
vasto conhecimento sobre arquitetura; a Vincent Galea por
seu conhecimento jurídico. É preciso deixar claro que
qualquer erro cometido é de minha responsabilidade.
Obrigada aos meus amigos Darryl Samaraweera, Jessica
Fellowes, Kate Johnson, Caroline Graham e Alice Evans, pela
ajuda, pelo apoio e pelo tempo, e a Paul Paolella, por ser a
inspiração por trás “daquela cena”.
É só por causa da generosidade do Telegraph —
permitindo que eu tirasse um ano sabático — e da
assistência de Maria Flor que fui capaz de encontrar tempo
para escrever. Que você tenha lido Acerto de contas inteiro
em uma única noite insone, Cory, significa muito para mim.
Sou infinitamente grata à minha família: Olly, Frank,
mamãe e papai. Elise, você me ajudou mais do que
qualquer outra criança de nove anos do mundo, criando
reviravoltas cada vez mais sombrias. E, Piers, obrigada por
aguentar minhas perguntas aleatórias e muitas vezes
nojentas — “Será que Jamie deveria sobreviver ao ser
empalado, ou deveria morrer na hora?” —, em geral tarde
da noite, quando você estava tentando pegar no sono. Você
tem razão: eu preciso melhorar minha conversa na hora de
dormir.
DIREÇÃO EDITORIAL

Daniele Cajueiro

EDITOR RESPONSÁVEL
André Marinho

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Júlia Ribeiro
Adriano Barros

REVISÃO DE TRADUÇÃO
Fernanda Belo

REVISÃO
Alessandra Volkert

DIAGRAMAÇÃO
Douglas Kenji Watanabe

PRODUÇÃO DE EBOOK
S2 Books
[ 01 ] N.T.: National Health Service [Serviço Nacional de Saúde].

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