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Converted by ePubtoPDF
Título original: Payday
Copyright © Tacles Ltd 2021
Publicado pela primeira vez no Reino Unido em língua inglesa em 2021 pela
Sphere, um selo do Little, Brown Book Group.
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela
Trama, selo da EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos
reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em
sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio,
seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do
copirraite.
EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A.
Rua Candelária, 60 — 7.º andar — Centro — 20091-020
Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel.: (21) 3882-8200
W162a Walden, Celia
Acerto de contas / Celia Walden ; traduzido por Giu Alonso. – 2.ed. – Rio de
Janeiro : Trama, 2022.
320 p.
Formato: e-book com 1,4 MB
ISBN 978-65-89132-44-8
1. Literatura inglesa – suspense. I. Alonso, Giu. II. Título.
CDD: 820
CDU: 821.111
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1. Jill
Capítulo 2. Alex
Capítulo 3. Jill
Capítulo 4. Nicole
Capítulo 5. Alex
Capítulo 6. Nicole
Capítulo 7. Jill
Capítulo 8. Jill
Capítulo 9. Nicole
Capítulo 10. Alex
Capítulo 11. Jill
Capítulo 12. Nicole
Capítulo 13. Alex
Capítulo 14. Jill
Capítulo 15. Jill
Capítulo 16. Nicole
Capítulo 17. Alex
Capítulo 18. Jill
Capítulo 19. Nicole
Capítulo 20. Alex
Capítulo 21. Jill
Capítulo 22. Nicole
Capítulo 23. Alex
Capítulo 24. Jill
Capítulo 25. Nicole
Capítulo 26. Alex
Capítulo 27. Jill
Capítulo 28. Nicole
Capítulo 29. Alex
Capítulo 30. Jill
Capítulo 31. Nicole
Capítulo 32. Alex
Capítulo 33. Jill
Capítulo 34. Jill
Capítulo 35. Nicole
Capítulo 36. Jill
Agradecimentos
Colofão
PRÓLOGO
JILL
Quinta-feira, 5 de agosto
A
tende, atende, atende.
Sentada na frente de sua garagem, usando blusa
e saia sociais com pantufas forradas em fleece, Jill
encarava a letra solitária na tela do iPhone. “A”. Essa inicial
que parecia uma confissão de culpa. Como sua funcionária,
seria natural que Alex estivesse na sua lista de contatos,
profissionais e pessoais. Só que nada na conexão de Jill a “A”
era legítimo, que dirá justificável — e, há cerca de meia
hora, ela tinha muito a esconder.
Bem-vindo ao serviço de mensagens da O2. A pessoa
para quem você está tentando ligar não está disponível no
momento.
As pessoas não dizem que o caos tem um som: um ritmo
revolto, estrondoso e intravenoso. E ensurdecedor. Não
dizem que, uma vez que você tenha convidado esse ruído
branco para a sua vida, não há como desligá-lo.
Finalizando a ligação — deixar um recado era arriscado
demais, e depois das quatro tentativas anteriores de falar
com Alex, Jill já tinha se precavido ao esconder sua
identidade nessa ligação —, ela se deixou cair para a frente
e apoiou a testa no volante, se obrigando a respirar.
Inspirar, expirar; inspirar, expirar — devagar, isso, devagar.
Cada expiração embaçava o logotipo cromado no centro do
volante, e Jill o observava desembaçar em formas
irregulares antes de expirar de novo.
A polícia falou que entraria em contato. Foi o que Paul
dissera. Poderia levar horas. Ou minutos. Não podia ter essa
conversa sem falar com Alex antes.
— Onde você está? — Em voz alta, as palavras eram
assustadoras. Autoritárias. E ela se perguntou o que os
vizinhos pensariam se a vissem sentada no carro, falando
sozinha. Ela se perguntou se Stan, dentro de casa, já tinha
notado sua ausência, e quanto um ser humano conseguiria
suportar antes de desligar, como um sistema elétrico
sobrecarregado.
A vibração do celular a tirou do devaneio, mas era só
outra mensagem de Paul. Está no noticiário. Com os dedos
trêmulos, Jill enfiou a chave na ignição, ligou o rádio e ficou
ouvindo entorpecida uma conversa inflamada entre um
apresentador da rádio e um defensor do veganismo antes
de, enfim, começarem as notícias. Jamie era o terceiro na
lista. Só que ele não era mais Jamie e sim “um homem de
46 anos, encontrado empalado nas vigas de um prédio em
construção no noroeste de Londres”.
Era só uma questão de tempo antes de as pessoas do
escritório descobrirem que o morto era o chefe delas, e
enquanto um repórter “no local” dava detalhes que Jill
jamais esqueceria, ela imaginou a notícia se espalhar em
gritos surpresos e e-mails desesperados e sem pontuação
pulando de um computador ao outro. Viu mãos levadas a
bocas, lágrimas de descrença: loucura. Como sócios de
Jamie, era seu trabalho e de Paul fazerem uma declaração;
“lidar” com as consequências. Mas ir para o trabalho
também era inimaginável — pelo menos até falar com Alex.
E ainda havia Nicole.
O nome da colega não estava disfarçado por uma inicial,
embora devesse estar, e vê-lo na tela do celular não a fez
se sentir menos nauseada. Seu próprio nome teria um efeito
similar nas outras duas mulheres, ela percebeu. Estavam
ligadas a isso agora.
Você ligou para Nicole Harper. Não posso atender no
momento, mas você sabe o que fazer…
O fato de que as ligações para as duas mulheres
estivessem caindo na caixa postal, apesar de várias
tentativas, não estava certo. Mas, por outro lado, nada disso
estava certo, e o que Jill poderia fazer além de tentar de
novo e de novo?
— Alô?
A voz de Nicole parecia artificialmente alegre, como se
estivesse fingindo para ela. Então Jill se lembrou de que
havia tirado a identificação de seu número.
— É… — Ela pigarreou. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou ao fundo,
seguida por uma confusão de gritos infantis alegres. —
Perdão, quem?
Ela ouviu o sino de uma porta se fechando, toda a alegria
trancada atrás dela.
— Aqui é a Jill. — Ela fechou os olhos.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha,
e estão trazendo o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não. — Ela teve que impedir Nicole de continuar
falando e fazê-la escutar. — Jamie morreu. Encontraram o
corpo hoje de manhã. A polícia quer falar comigo. Vão
querer falar com você também. — As palavras saíram
emboladas. — E, Nicole… — Ela ouviu a própria voz baixar
de tom. — … não estou conseguindo falar com Alex.
Houve um barulho abafado do outro lado da linha,
seguido por um silêncio. Então outro barulho e um sussurro:
— Como?
— Ainda não sabem. Ele foi encontrado perto do Vale
Theatre hoje cedo. Tem uma construção atrás…
— Ele estava no teatro?
A mudança no tom fez Jill se sentar ereta. Não era só
alarme, mas reconhecimento.
— Se você souber de alguma coisa…
Do outro lado da linha, Nicole soltou um gemido baixo.
Então houve um barulho de engasgo. E enquanto esperava,
Jill viu seu próprio pé na pantufa batendo impaciente perto
dos pedais. Não tinha tempo para isso.
— Temos que encontrar Alex.
Silêncio.
— Nicole, está aí?
— No teatro… tem uma construção pequena de vidro no
telhado…
Uma batidinha na janela fez Jill dar um pulo, todas as
sinapses agora em alerta total, todas as palavras de Nicole
abafadas, e, ao erguer a cabeça, ela viu o rosto de Stan a
observando.
CAPÍTULO 2
ALEX
Três meses antes
JILL
NICOLE
ALEX
NICOLE
A surpresa no
interrompeu
rosto de Alex foi gratificante, e Nicole
o e-mail que estava digitando para
aproveitar a sensação. Foi bom dizer aquilo em voz alta;
melhor ainda era descobrir que não estava sozinha.
— Eu não…
— Odeia, sim. E eu não te culpo. Então pode falar: qual é
a história de verdade?
— Sobre…?
— Por que Jamie se livrou de você? Porque você
engravidou? Porque Hayden era amiguinho dele? Teve esses
rumores.
Pelo olhar de relance de Alex para Jill e de volta para si,
Nicole sabia que havia ultrapassado o limite. Mas algo além
do álcool em seu sangue a forçou a continuar.
— Qual é. Acho que todas sabemos que o menino de ouro
é famoso por dar o famoso jeitinho quando precisa.
Nicole queria muito que Jill soubesse disso, percebeu.
Tanto que estava disposta a arriscar falar disso na frente da
chefe. Porque, embora Jill e Jamie sempre tivessem sido
próximos, ela, acima de tudo, sempre parecera uma figura
justa e profissional. Se seu protegido tivesse feito algo
errado, era justo que Jill soubesse disso.
— Se isso conta para você, Joyce sempre disse que você
era brilhante. — A voz geralmente serena e baixa de Jill
estava mais aguda, oscilando com o álcool, e Nicole
percebeu que, em todos esses anos, ela nunca a tinha visto
bêbada antes.
A fundadora da BWL fazia parte daquele tipo antiquado que
nunca demonstra qualquer pingo de vulnerabilidade no
escritório. Nicole nunca nem tinha visto Jill retocando o
batom no banheiro. Justa e firme na administração de uma
empresa criada por ela e pelo marido para preservar a
história em vez de destruí-la, Jill era a prova do que
mulheres que não são impedidas por homens são capazes
de realizar. O que só aumentou sua necessidade de tirar a
venda dos olhos dela.
— Nicole tem razão? — Jill continuou com gentileza. —
Você acha que Jamie tinha algum, bem, outro motivo para
encerrar seu vínculo, além da situação da diligência devida?
Nicole observou Alex avaliar a situação… e decidir que
não tinha nada a perder.
— Eu não ia dizer nada, mas toda aquela confusão com
Khalvashi não foi culpa minha, foi do Jamie. Ele me disse
especificamente para deixar a papelada incompleta. Não sei
o motivo, mas imagino que tenha sido porque ele sabia que
Khalvashi era ilegal e queria que a venda fosse fechada
mesmo assim. A Property Week tinha acabado de fazer uma
matéria grande sobre ele, e talvez a pressão de manter a
sua imagem de “Jamie Negócio-Fechado” tenha afetado a
cabeça dele. — Ela pausou. — Aí, quando você e Paul viram
que faltavam coisas, ele me culpou e usou isso como
desculpa para se livrar de mim. Eu não ia dizer nada porque
Jamie me prometeu que me compensaria, que me arrumaria
outro emprego. E eu acreditei, que nem uma idiota.
Enquanto Jill absorvia isso, Nicole a olhava com atenção.
Ela foi pega de surpresa, mas não estava chocada.
— Ele tem feito mesmo umas besteiras ultimamente. Se
comportando, não sei…
Foi a vez de Nicole se surpreender.
— Achei que ele nunca fazia nada errado aos seus olhos.
— Ah, é? — Jill soltou uma risada seca e, tomando dois
goles seguidos de vinho, olhou para Jamie, que enfim havia
parado de falar e estava pedindo várias bebidas no bar. —
Não, eu não diria isso.
As três já estavam bem altas, mas o pescoço de Jill
parecia ter perdido a capacidade de manter sua cabeça
parada, e Nicole desejou que Alex não enchesse a taça da
chefe tão rápido.
— Eu sei que Jamie sempre te admirou — disse Alex, e
embora Jill assentisse, seus olhos permaneceram céticos. —
E, olha, depois de tudo que você já fez por ele, tenho
certeza de que sempre vai te admirar.
O que de início pareceu reconfortante estava começando
a soar como uma provocação, como se Alex estivesse
querendo que Jill concordasse que seu pupilo havia se
transformado em um monstro. Ou talvez que ele sempre
fora um.
— Foi você que o trouxe para a empresa, não foi?
— Anos atrás, e ele sempre foi meio metido…
— Mas agora parece algo a mais? — insistiu Alex. — Senti
isso também. Até antes de eu sair de licença, tinha alguma
coisa no jeito dele… meio desrespeitosa.
— A meu respeito? — Jill ergueu os olhos rapidamente.
— Não me entenda mal…
— Pode falar.
— Mas ele fazia uns comentários… sobre você estar
atrasada. Ou no hospital com seu… marido. — Ao ouvir isso,
Jill estremeceu. — Só umas coisinhas: “Ah, Jill não vai
participar dessa reunião de novo.” Ou “Jill não vai aparecer
hoje.”
Alex estava mesmo insistindo. Aquela moça não só estava
chateada por ter perdido o emprego, percebeu Nicole, mas
perturbada também, e algo na intensidade de seu olhar a
preocupou. Mas, considerando que ela também estava
interessada em continuar essa conversa, Nicole empurrou o
pensamento para outro canto do cérebro.
— O que mais me incomodava — continuou Alex, se
inclinando para a frente — era quando ele falava de você
assim na frente dos clientes.
— Ele falava essas coisas na frente dos clientes?
— Às vezes. E sempre parecia meio insensível. Seu
marido…
— Está com câncer. — Jill passou o dedo pela borda da
taça. — Stan está sendo tratado. Sempre quis manter as
questões de saúde em segredo por muitas razões, inclusive
pelo fato de que não é da conta de mais ninguém. Mas você
ouviu isso… do Jamie?
— Sim… eu… ele mencionou por cima.
— Por alto.
— Eu sinto muito, Jill, mas a verdade é que… — ela deu
uma olhada para Nicole, como se estivesse confirmando se
deveria continuar — … ele contou para quase todo mundo.
Isso sempre me deixava desconfortável. Como se estivesse
usando Stan…
— Usando Stan como?
— Bom, usando o fato de seu marido estar… doente…
para colocar…
— Para me colocar de lado?
— Bom, para se colocar na frente. Pelo menos era assim
que eu sentia.
— Certo.
Pelo movimento rápido do peito de Jill sob o cardigã bege,
Nicole percebia como ela estava se esforçando para
controlar a raiva.
Mas Alex não tinha terminado.
— Isso sem falar das piadas… — murmurou. — Sobre
mulheres. Sobre mulheres mais velhas. — Ela lançou um
olhar envergonhado para Jill. — E sim, sobre você.
— Bom, Jamie sempre teve um senso de humor
inapropriado. Já falei mais de uma vez que ele deveria se
controlar.
Jill estava tentando recuperar parte do autocontrole. Isso
tudo era tão vergonhoso. Mas, pela expressão de Alex, as
coisas só iriam piorar.
— Eu sei. Olha, na maior parte do tempo eu mesma
achava engraçado. Mas aí ele dizia umas coisas… — disse
ela, hesitando. — Sobre o que ele chamava de…
Nicole sabia o que Alex estava prestes a dizer. Ela já o
tinha ouvido fazer a mesma piada. E estava dividida entre
querer que Jill soubesse e torcer para que ela fosse
poupada.
— … de sua “RBF”.
— Não sei do que você está falando.
— “Resting Bitch Face”. — As palavras saíram tão
baixinho que por um segundo Nicole não tinha certeza de
que a chefe ouvira. — Significa “Cara involuntária de
escrota”, é um termo das mídias sociais para mulheres
que… quando algumas mulheres têm uma expressão
agressiva que… todas nós às vezes…
— Entendi a ideia. E daí? Eu tenho isso?
— Ele dizia que você ficava com essa cara nas reuniões,
às vezes. E que isso piorou conforme você, sabe, ficou mais
velha. Que os clientes achavam desagradável.
— Sei. — Jill assentiu, tensa.
— Ele dizia…
— Continue.
— Ele brincava que, no seu aniversário de sessenta anos,
ele te mandaria para a Harley Street para fazer algumas
plásticas.
Jill fechou os olhos.
— Certo.
Ao perceber que, uma vez terminados os discursos, o
barulho no pub também diminuiu, Alex baixou ainda mais a
voz.
— Desculpe, Jill. Eu sei que é… difícil. Mas o que diabos
aconteceu com ele?
— Porque ele era um cara tão incrível antes? — Nicole
virou o corpo em direção à parede para dar um trago
disfarçado no cigarro eletrônico. Isso causou uma expressão
quase cômica de pânico em Alex, que olhou dela para os
funcionários do pub e de volta para ela. — O que eles vão
fazer, me prender? Relaxa.
Mas Jill não percebeu nada nisso, mergulhada em
pensamentos.
— Jamie nunca foi exatamente do tipo sensível. Quer
dizer, ele é um dos homens mais competitivos que já
conheci, mas é isso que faz com que ele seja tão bom no
trabalho. E o humor dele… Mas eu sempre achei que ele
tinha um bom coração.
— Então isso me faz questionar se você o conhecia
direito. — Nicole cuspiu as palavras com uma nuvem de
vapor de água.
Do outro lado do local, alguém gritou:
— Últimos pedidos!
Foi só quando nenhuma delas reagiu que Nicole percebeu
como elas acabaram se metendo naquela situação tão
curiosa.
— O que você quer dizer?
— Que eu… Merda. — Ela ergueu os olhos. — Ele está
vindo para cá.
Quando Nicole baixou o olhar para o celular, sentiu Alex
tateando para calçar os sapatos de volta por baixo da mesa,
se preparando, imaginou, para fugir.
— Alex. Ainda está por aqui?
Era de pensar que ele sentiria alguma vergonha frente à
mulher que tinha acabado de demitir, mas não. Ele estava
aqui para falar com Jill. As pessoas só interessavam a Jamie
quando lhe eram úteis. Depois disso, elas paravam de
existir.
— Gostou do discurso? — perguntou à sócia.
— Adorei. — O rosto de Jill estava pétreo. — A gente não
sabia se você não ia parar de falar nunca.
Nicole bufou e soltou uma risada, e Jamie estreitou os
olhos.
— Será que as meninas já não beberam demais? Amanhã
tem escola e tal.
Houve uma pausa de um milissegundo.
— Não sei se você pode nos chamar mais de “meninas”,
Jamie — murmurou Nicole, com os olhos ainda fixos no
celular. — Afinal, ninguém aqui tem menos de trinta anos.
Aliás, outro favorito seu, “moças”, também está fora de
moda.
Alex olhou de Nicole para Jamie e depois para Jill,
controlando um sorriso.
— Bom, então vou deixar vocês, mulheres, no seu
simpósio feminista. Está ficando tarde. — Ele deu de ombros
naquele colete matelassê dele e foi embora.
Depois de a porta ter se fechado atrás dele, a risada das
três foi tão alta e repentina que cerca de meia dúzia de
clientes ainda presente se virou para olhar.
— Será que as meninas já não beberam demais? —
repetiu Nicole com uma voz grossa que reverberou pelo
pub. Mas, enquanto a risada das outras duas logo cessou,
Nicole não pareceu conseguir se controlar, e foi só quando a
expressão das colegas foi substituída de humor para alerta
que ela percebeu que seus olhos estavam encharcados.
Jill ergueu a mão e a pousou com cautela nas costas dela.
— Você está bem?
— Estou. — Nicole pigarreou fazendo barulho. — Não.
Não, eu só… tem uma coisa…
— O quê?
— Achei que ia conseguir esquecer. Olha, eu sei. Não sou
dessas, entende? Tenho 43 anos, sabe, tenho um bom senso
de humor. Gosto de flertar e eu… — Quando as últimas
pessoas seguiram para a saída, as três sorriram e
acenaram, e a conversa foi pausada. — Eu nunca fui de
escutar merda calada. Sempre fui assim. Mas o
comportamento do Jamie…
— Nicole. — A voz de Jill estava séria agora. — O que quer
que tenha acontecido, só fala logo.
Depois de respirar fundo, Nicole começou:
— Era só um flerte idiota e inofensivo no início. Sedução
profissional, sabe? Para manter as coisas interessantes…
fazer o dia passar um pouco mais rápido. Enfim, acho que
ele pensou que eu estava a fim mesmo. Todo mundo soube
do Ian, né? — Ela olhou para Jill, esperando que admitir o
casinho idiota que tivera no escritório anos atrás não
afetasse suas perspectivas na BWL. Mas é claro que a chefe
tinha ouvido as fofocas. Todo mundo tinha. — Foi muito
antes de você entrar, Alex. Ele saiu da empresa já faz anos.
Mesmo assim, acho que até você deve ter ouvido falar.
Alex hesitou, então assentiu brevemente.
— Ouça, quem sou eu para julgar alguém — murmurou. —
Eu sou a garota que engravidou de um cara do trabalho,
lembra? Um cara que, aliás, não poderia ter fugido mais
rápido que fugiu.
— Ouvi falar. E sinto muito que Hayden tenha sido tão…
— Nicole engoliu em seco. — Melhor nunca esperar muito
dos homens, né? Mas pelo menos nem você nem Hayden
eram casados. — Uma risada súbita. — Pelo menos você
não tem uma letra A escarlate no peito.
Alex e Jill esperaram.
— Bem, enfim, é óbvio que Jamie me via como um “jogo”.
Ele dizia coisas sobre minhas roupas, coisas simpáticas, e
depois coisas menos simpáticas, até que um dia, enquanto
esperávamos para entrar na sala de conferências, ele
apareceu e disse: “Você está muito comível hoje, Nic.”
— Nossa. — Alex ficou surpresa, mas Jill de fato congelou,
chocada, a taça suspensa a meio caminho da boca.
— Ele disse o quê?
— Aí ele começou a ser mais direto, se aproximando para
ver plantas dos projetos no meu computador e se
encostando em mim para que eu sentisse o…
Em outro contexto, o rosto de Jill, distorcido pela
descrença, teria sido engraçado.
— Nicole — disse ela enfim. — Não se ofenda, mas será
que você de alguma forma entendeu mal? Será que ele não
estava brincando? Ou será que você, bom, fez Jamie pensar
que isso fosse algo que você queria?
— Será que ela “deu a entender” que queria isso? — Alex
interferiu, e Nicole ficou grata pela interrupção. — Eu sei
que as coisas eram muito diferentes vinte anos atrás, mas
essa desculpa não cola mais agora.
— Certo. — Jill ergueu as mãos. — Olhe, eu tinha que
perguntar. E, aliás, as coisas não eram tão diferentes assim
dez, vinte, trinta anos atrás. Por mais que todo mundo
agora goste de pensar que foram as primeiras a reclamar.
— Tá bom. Então você deve imaginar como essa situação
deve ter sido para a Nicole.
— Eu não preciso imaginar — retrucou Jill. — Isso era
quase senso comum quando eu era jovem. E não foi só com
esse lado dos homens que eu tive que lidar. Você tem ideia
de quantas vezes eu fui subestimada e deixada de lado na
minha carreira? Quantos comentários idiotas sobre a minha
aparência tive que ignorar? O dobro do esforço que tive que
trabalhar para provar que era tão boa quanto qualquer
homem?
— Então você entende que não tem relação com nada
que Nicole tenha feito. Você sabe que isso é sobre Jamie.
Isso é assédio.
Jill empalideceu.
— Meu Deus. — Alex encarou Nicole. — Eu sempre achei
que ele tinha uma quedinha por você. Tipo, às vezes eu o
via seguindo você com os olhos pelo escritório, mas ele não
devia ser o único. E nunca achei que ele faria nada, bem…
nada assim.
As duas ficaram em silêncio enquanto Nicole cutucava as
cutículas, decidindo se deveria continuar ou não. Tinha sido
loucura falar tanto. Mas agora não adiantava voltar atrás.
— Por que você não fez uma denúncia? — perguntou Alex
baixinho. — A gente não precisa mais aguentar essas
coisas, né? Quer dizer, essa não é toda a ideia de ser
mulher depois do #MeToo?
Nicole abriu um sorriso tristonho.
— Sim. Mas eu não queria fazer um escândalo. Eu sou
casada, e todo mundo sabe que eu já tive um caso com um
cara do trabalho, então duvido muito que o RH teria empatia
por mim. Só Deus sabe que isso também não me ajudaria
em nada com futuros empregadores.
— Mas isso não tem nada a ver!
— Eu sei, eu sei, mas é o seguinte. — Nicole se abaixou
para dar outra tragada no cigarro eletrônico. — Não vou
denunciá-lo. Ponto-final.
— Ainda bem.
Tanto Nicole como Alex se viraram para Jill. Julgando pelo
seu tom bem diferente — claro e pragmático —, ela havia
entrado no modo “contenção de problemas”.
— Digo, como Nicole falou, eu entendo por que denunciá-
lo não vai necessariamente ajudar.
— Não vai ajudar a empresa, né?
Bêbada ou não, Jill parecia ter decidido que não aceitaria
mais que falassem com ela assim.
— Essa não é a questão. O que quer que esteja
acontecendo com Jamie, fazendo bullying com os outros,
menosprezando as pessoas, agora isso… acaba agora. Não
me importo se ele é sócio da empresa. Não vou aceitar
nenhum tipo de abuso na minha empresa. Vou… vou falar
com ele.
— Porque isso vai facilitar a minha vida?
— Bom, vai fazer com que ele pare. — Jill largou a taça na
mesa com um tinido.
— Ele vai parar, depois vai achar uma maneira de me
fazer pagar, não acha? — Nicole balançou a cabeça. — Não
vou poder me sentar numa reunião com ele depois disso.
Teria que sair da empresa. E ainda tem você, a sua situação,
agora que sabe disso. Porque, se não denunciar ele, você
vai ser acusada de abafar o caso. — Jill não tinha pensado
nisso. — Por outro lado, que eu saiba, você pode estar
cobrindo as merdas do Jamie há anos.
Em minutos a conversa passou de fraternal a combativa.
Jamie tinha ido embora, mas de alguma forma continuava
causando problemas.
— Ei — Alex interrompeu. — Talvez exista outra maneira
de impedir isso. De impedir Jamie.
Nicole e Jill a encararam, o mesmo pensamento no olhar
das duas: Mas você não faz mais parte disso.
— Eu poderia deixar para lá se ele tivesse cumprido a
promessa de me arrumar outro emprego.
— Ah, Jamie fala o que for preciso no momento — cuspiu
Nicole, sem se importar se parecia amarga. Ela estava
amarga. — E não liga para quem vai pagar pelos erros dele
desde que não seja ele. Porque, no fim, para Jamie,
mulheres são convenientes ou dispensáveis.
— Mas não podemos deixar que ele se safe disso. Ele
mentiu para você, para Jill, para mim.
Encarar essas bombas sobre seu antigo protegido parecia
deixar Jill chocada. Sendo a mais velha das três, sabia que
caberia a ela tentar consertar isso, e Nicole viu sua
oportunidade.
— Se Jamie estava tentando fazer isso com Khalvashi,
sabe-se lá o que fez com outros clientes.
Jill assentiu, concordando. E quando o barman anunciou
que estava na hora de “virar as bebidas”, ela fez algo
surpreendente.
— Vou te dar isso aqui — disse Jill ao rapaz, entregando
uma nota dobrada de cinquenta libras. — E em troca quero
que você nos traga uma última garrafa de rosé e nos dê
mais uma hora.
Só quando as portas do pub foram trancadas e uma nova
garrafa de vinho foi trazida, Jill se voltou para Alex.
— Prossiga.
— O que estou dizendo — continuou Alex, encorajada
pela atenção das duas mulheres — é que ele precisa
aprender uma lição. Ele precisa pagar.
— E como vamos fazer isso? — Cansada do subterfúgio,
Nicole agora estava abertamente fumando seu cigarro
eletrônico.
— Bem, você está certa de dizer que nós duas não
podemos seguir pelos meios legais. Eu, porque perderia um
processo de uma demissão injusta em um piscar de olhos,
ele costurou tudo muito bem. Você porque…
— Ian seria sugado pelo drama se eu fizesse uma
denúncia? Por mais que tenham nos falado para gritar o
nome desses homens aos quatro ventos, por mais que
tenham nos falado que temos poder, ninguém se importa
muito se denunciar um assédio vai nos transformar em
leprosas profissionais depois, não é?
— Verdade. — Alex fez uma pausa, claramente gostando
do segundo em que as prendeu nele. — Bem, acho que
temos que encontrar outra maneira. Porque existem
diferentes tipos de poder, e talvez o nosso seja…
— Por favor, não diga “poder suave” — gemeu Nicole. —
Odeio essa expressão.
— Eu também — comentou Jill. — Como se isso fosse o
melhor que as mulheres podem fazer.
— Vocês não estão entendendo. Estou falando de
derrubar Jamie de uma forma que não possa ser rastreada
até nós, algo que ele faria por conta própria se não
estivesse sempre sendo protegido.
Pela sua visão periférica, Nicole viu Jill piscar duas vezes
em rápida sucessão, interpretando isso como uma crítica a
ela.
— Só estou falando de dar um empurrãozinho nele. Não
exatamente de “poder suave”…
— Mas um poder furtivo. — Sob o sarcasmo, Nicole estava
falando sério.
— E não seria difícil — murmurou Jill —, considerando o
quão imprudente ele está sendo.
— Não, não, seria fácil. — Alex se inclinou para a frente.
— As coisas que eu vi. As coisas que sei. Basta pensar no
que todas nós descobrimos esta noite. Aposto que, se
começarmos a procurar, Jamie vai acabar se mostrando tão
diferente da pessoa que todos pensam que ele é que não
vai ter nem graça.
Por um momento, Nicole receou que Alex pudesse ter ido
longe demais — ter perdido Jill, pelo menos. Mas, depois de
uma breve hesitação, sua chefe perguntou:
— E essas coisas que você viu enquanto trabalhava com
ele, acha que podem nos ajudar?
De todas as surpresas daquela noite — o vinho, o olhar
irritado de Jamie ao vê-las à mesa e as revelações dessas
duas mulheres com quem Nicole só trocara palavras
profissionais antes —, aquele “nós” era de alguma forma a
mais agradável. Nada une mais as pessoas, ela pensou
ironicamente, do que o ódio.
— Nós três devemos saber muita coisa que podemos usar.
— Alex fez uma pausa, mordeu o lábio. — É apenas uma
questão de descobrir quais são os pontos fracos de Jamie.
Durante um tempo, elas bebericaram o vinho. Então
Nicole arfou.
— A Lista D — disse para Jill.
A “Lista D” de Jamie era uma piada interna dos altos
executivos da BWL. Uma compilação de todas as falhas e
fraquezas estruturais que tornariam uma propriedade
menos vendável, incluindo uma previsão detalhada de tudo
que poderia dar errado no futuro, o documento era
basicamente um antiargumento de venda — algo a ser
expurgado do disco rígido do escritório no momento em que
os documentos fossem assinados.
Mais de uma vez, Nicole presenciou Jill discutir com Jamie
sobre o cinismo daquele documento em reuniões
particulares da empresa: “Só de saber que está lá, fico
nervosa”, dizia. E Nicole sentia o mesmo no fundo. Mas
Jamie sempre riu de suas preocupações. Como um lembrete
do que não deveria ser informado ao cliente a menos que
fosse legalmente obrigatório, a Lista D era parte crucial do
processo de venda dele. “E se ninguém além de mim ver
essa lista”, ele protestava, “qual o problema?”
Jill sustentou o olhar de Nicole.
— Você quer dizer…
— Quero dizer, e se a Lista D de Jamie se tornasse pública
de alguma forma? Isso seria constrangedor, não seria?
Jill mordeu o interior da bochecha.
— Sim. Mas para a empresa também, não só para ele.
Nicole teve que admitir que tinha razão.
— Verdade.
— Desculpe — Alex interrompeu —, mas o que
exatamente é a “Lista D”?
Sendo assistente, Alex não teria acesso às reuniões em
que o dossiê duvidoso de Jamie era citado, percebeu Nicole,
e os olhos da jovem se arregalaram enquanto ela explicava
isso.
— Mas pode haver outras maneiras de talvez… Bem,
mandar um recado para Jamie? — Jill insistiu.
— Ou até mesmo de dar um susto forte nele. — As
bochechas de Alex estavam vermelhas. — Porque, caso
contrário, os homens simplesmente não sofrem nenhuma
consequência, não é? De nada! E toda vez que isso
acontece, eles sabem que podem levar as coisas ainda mais
longe na próxima vez.
Por um instante, Nicole se perguntou o quão profunda era
a antipatia de Alex pelos homens. Será que teria se
consolidado ao longo dos anos, como a dela, ou seria
motivada por algo muito pior do que os tratamentos de
Hayden e Jamie?
— Então, é só uma questão de encontrar a oportunidade
certa para pegar Jamie e mostrar a ele — concluiu Alex. —
Na verdade, estaríamos fazendo um favor a ele.
— Estaríamos fazendo um favor às mulheres —
interrompeu Nicole, convidando-as, com um movimento
ascendente da taça, a brindar ao homem que por muito
tempo viveu na impunidade. — A Jamie.
Alex levantou a taça dela:
— A derrubar um homem não tão legal.
CAPÍTULO 7
JILL
5 de agosto
Delegacia de Kilburn
– V ocê—disse
Sim.
que o sr. Lawrence era muito respeitado.
JILL
Dois meses e meio antes
NICOLE
ALEX
P
or que o leite sempre ferve muito mais rápido do
que qualquer outra coisa? Como seria possível, em
questão de segundos, ir de vacilante e deixando
marcas fracas na lateral da panela para borbulhante e
espirrando em Alex como agora? Ela observava,
hipnotizada, os respingos brancos acertando a parte de trás
do fogão, desaparecendo entre a gordura e as manchas de
comidas grudadas ali que aumentavam desde o nascimento
de Katie. Ela observou as marcas se formarem na beirada
da panela indo de marrom a sépia, e o líquido se reduzindo
até virar uma sopa coagulada. Aí desligou o fogo. Ela nem
queria um chocolate quente mesmo. Tudo o que queria era
uma boa noite de sono — e seu emprego de volta.
Do tapetinho de atividades Katie balbuciou, e Alex se
virou, culpada por ter esquecido a existência da filha por
sequer um minuto. “E se você sair de casa e esquecer o
bebê?”, ela perguntou para Joyce durante a gravidez. “Não
é como uma chave”, a colega respondeu, rindo. “O bebê
está no primeiro plano da sua mente o tempo todo. Eles são
pessoinhas também, não se esqueça, mesmo antes de
conseguirem falar.”
Só que Katie não parecia uma pessoinha. Olhando para a
mãe, os belos olhos azuis inexpressivos, ela parecia mais
uma criatura alienígena, julgando silenciosamente todos os
seus fracassos.
— Está se divertindo aí embaixo?
Alex se abaixou ao lado da filha, preparando o nariz para
o cheiro sempre presente de talco, e balançou um dos
macaquinhos pendurados acima de Katie. Ela havia
comprado o “tapete de atividades” de oitenta libras por 15
no brechó, uma pechincha que só fez sentido dias depois,
quando descobriu que o elefante eletrônico com orelhas que
acendiam só tocava uma das “vinte alegres melodias”
anunciadas na caixa amassada. Graças a esse problema, a
música “The Wheels on the Bus” às vezes começava sua
melodia enjoativa sem ser pressionada — uma vez até
despertando Alex e Katie durante a madrugada —, só
porque podia. Depois de três meses, Alex se viu trincando
os dentes quando as primeiras notas atravessavam o
apartamento, e ela se esticou para desligar o aparelho.
Como algo tão pequeno podia precisar de tanta coisa? Ela
havia comprado tudo aquilo pelo preço mais barato, em
brechós ou no eBay, mas os sete mil que a mãe emprestara
já tinham acabado, e Alex sabia muito bem que em poucos
meses haveria toda uma nova lista de necessidades: o
berço teria que ser trocado por uma caminha com um novo
colchão, e logo ela precisaria de um cadeirão e uma
cadeirinha de banho, grades de proteção para cama e um
assento de carro.
Ela pensou no prazo de agosto que sua mãe lhe fizera
prometer que cumpriria. Alex teria que devolver o dinheiro
até lá… ou o pai ficaria sabendo.
— Ele não pode saber — a mãe sussurrara pelo telefone.
Desde que Alex se lembrava, seu pai era sempre referido
com aquele “ele” temeroso. E esse havia sido mais
temeroso que o normal.
— Eu tirei dinheiro da conta nova que abrimos, então ele
não vai notar que não está lá até termos que transferir o
depósito.
— Depósito?
— Na casa nova.
Alex não comentou que nunca tinha visto a casa velha,
que nunca tinha sido convidada — e que a maioria das
pessoas não precisavam esperar um convite para visitar os
próprios pais.
Igualmente temerosa do que “ele” diria, Alex nem tinha
conseguido se forçar a contar à mãe que perdera o
emprego, se permitindo um único momento de sinceridade:
— Eu preciso de você, mãe. Quero dividir esses primeiros
meses com você, quero dividir as experiências de Katie com
você. Eu não esperava que meu pai entrasse no primeiro
avião para cá… — Mas que tipo de homem não deixaria a
esposa conhecer a única neta?
Em geral tão boa em defender o marido — “ele está
cansado”, “ele está irritado”, e o sempre útil “ele não faz
por mal” —, a mãe de Alex ficou em silêncio do outro lado
da linha até oferecer um resignado “Você sabe como o seu
pai é”.
Alex sabia. Só não esperava que os outros homens da sua
vida fossem tão ruins quanto.
Tirando o celular do bolso do roupão que ela jogara por
cima da calça jeans e da camiseta em vez de ter vestido um
casaco, Alex rolou a tela até o número de Hayden e suspirou
profundamente. A expressão dele — descrente, depois
horrorizada — quando ela lhe contou. A voz fria e
desconfiada: “Como você tem certeza que o bebê é meu?”
Não conseguia fazer isso. Não quando suas últimas palavras
para ele haviam sido: “Se você não quer fazer parte da vida
da Katie, eu vou criar minha filha sozinha. Prometo, nunca
vou te pedir nada.” Não quando fizera a mesma promessa
silenciosa em relação ao pai 13 anos antes, a jornada de
criação dele terminada antes mesmo que ela tivesse idade
para votar.
Continuou rolando a tela do celular até o J; mais um
homem frouxo, mais um desperdício de espaço, além do
namorado e do pai. “Jamie Casa”, “Jamie Celular”, “Jamie
Casa de Devon”. Ela tinha mais números do homem que
ficou em sua vida por menos de um ano do que dos próprios
pais — e sentia uma relutância profunda em ligar para
qualquer um deles. Olhando dos números até o relógio
piscando abaixo da televisão — 17:24 — para Katie, Alex
tentou pedir à filha algum tipo de sinal, mas lá estavam
somente aqueles olhos azuis inexpressivos: poços sem
fundo de necessidade. Alex era a única que podia atender
àquela necessidade, e sentindo o que restava de seu
orgulho se esvair, tocou na tela e levou o celular à orelha.
Jamie atendeu imediatamente.
— Al, estou ocupado.
Ela ouviu o barulho distante de música em um pub e o
tilintar de copos, o final de uma piada sendo contada e as
risadas a seguir. Até para Jamie, era cedo para estar no
Firkin.
— Vou ser rápida. — Ela seguiu, de olhos fechados: — Eu
tinha bebido um pouco… na despedida da Joyce. E posso ter
sido um pouco… firme. — Nem de perto tão firme quanto
gostaria, seu merdinha inútil e traidor. — Enfim, percebi que
não era o momento certo para a gente ter aquela conversa.
Desculpe.
Ela se sentia fisicamente enjoada por pedir desculpas a
ele, mas já fazia mais de uma semana sem ter uma palavra
de Jill ou Nicole. Se ainda houvesse alguma chance —
qualquer que fosse — de Jamie ajudá-la, valeria a pena.
— Mas aquele trabalho… eu estava contando mesmo com
ele… — esticando-se para segurar o pezinho da filha, ela o
apertou com força o bastante para Katie fazer uma careta
pré-choro, antes de soltar. — Eu preciso mesmo do
emprego, Jamie. Estou quase sem dinheiro. E se você acha
que o seu amigo não precisa de uma assistente… — Ela
respirou fundo. — Quer dizer, será que tem… alguma outra
pessoa que possa precisar? Ou seria possível… — ela se
contorceu de vergonha pelo que estava prestes a dizer — …
considerando que nós dois sabemos que o que aconteceu
não foi culpa minha, considerando que você me deve uma,
Jamie… Eu só estou meio apertada, entende? Só preciso do
suficiente para acertar as coisas.
— Alex. — Jamie parecia mais entediado que irritado, e
ela o imaginou parado à porta do pub, onde não tinha tanto
barulho, gesticulando para os colegas bêbados da BWL para
avisar que já voltaria. — Foi o que eu te falei: não tem
trabalho. Eu me confundi. Olha, eu sinto muito e te desejo
tudo de bom. Espero que você saiba disso. Agora você tem
a pequena…
— Katie.
— Agora você tem a pequena Katie. No fim das contas,
família é o que importa, não é? Tenho que desligar.
Ao ouvir a ligação ser desconectada, Alex afastou o
telefone da orelha e encarou a tela sem acreditar.
— Seu merdinha!
Assustada com o tom de voz da mãe, Katie soltou um
soluço que se transformou em uma reclamação aguda.
Estava cedo demais para a próxima mamada, e a agente
comunitária de saúde do NHS [ 01 ] tinha alertado Alex sobre
os riscos de “alimentar demais a bebê”, mas ela ergueu a
camiseta mesmo assim.
— Pega! Pega!
Mais uma vez, Katie se recusou a pegar o bico do peito,
virando a cabeça como fizera todas as vezes desde a
despedida de Joyce.
Alex não era supersticiosa, mas estava começando a se
perguntar se tê-la tirado do peito naquela única noite e ter
se permitido ser consumida pelo ódio que agora corria
venenoso por suas veias tinham azedado seu leite.
Na manhã depois da festa, ela havia acordado de ressaca,
ainda sonolenta, mas nas nuvens. Não fora a única a ser
enganada por Jamie e, por mais chocante que tenham sido
as revelações de Nicole, aquela foi toda a confirmação de
que precisava. Alex não fez nada de errado, mas Jamie? Ele
era uma pessoa horrível de verdade. E com a fundadora da
BWL agora ciente de quem seu protegido realmente era, Alex
respirou aliviada, sabendo que o acerto de contas viria. Só
que aquele dia havia passado, e então o seguinte, sem a
aguardada ligação ou mensagem de Jill ou Nicole, e a
felicidade de Alex se transformou em dúvida. Será que ela
exagerou a raiva das outras duas em sua memória?
Imaginou a cumplicidade no seu plano? Não. Não estava
aumentando nada. Elas só estavam se protegendo.
Apontando o seio intumescido para Katie com uma das
mãos e limpando as lágrimas com a outra, Alex rosnou:
— Você quer a mamadeira? Toma então.
Cansada demais para insistir, ela preparou a mamadeira,
deitou a filha no colo e prendeu a respiração até ver os
músculos nas bochechas de Katie que sugavam
mecanicamente ficarem cada vez mais lentos até parar, e
ela fechar os olhos.
Como as mães que não trabalham lidavam com esses
dias infinitos? Alex trabalhava muito na BWL, e os dias antes
de uma conferência ou de uma grande venda eram
esgotantes… mas nada desse jeito. Nada assim. Não havia
um empregador no mundo ocidental que não permitiria que
você fizesse xixi quando precisasse. Embora, é claro, se
você tivesse um homem, ou outro responsável ali, as coisas
seriam diferentes. Haveria algum tipo de interação humana,
para começar.
Com quem Alex tinha falado desde que acordara — desde
que fora acordada —, logo antes das quatro da manhã? Com
a recepcionista incomodada do médico, em uma conversa
que não durou mais de trinta segundos. Com a voz
automática da caixa postal dos pais. “Por que Katie não
quer mais mamar no peito?”, ela queria desesperadamente
perguntar à mãe. “Por quê? É a única coisa que eu sei
fazer.” Mas mesmo assim não deixou mensagem, sabendo
que o pai poderia interceptá-la e ouvir o desespero em sua
voz. O cara do posto de conveniência naquela manhã foi
capaz de fazer toda a transação sem nem mesmo um aceno
de cabeça, provavelmente de saco cheio de interações
humanas, ou talvez um pouco enojado pelo bebê babão
grudado no peito dela. A forma como algumas pessoas te
olham quando você se senta ao lado delas no ônibus ou no
metrô, como se você tivesse alguma doença. E Alex não
culpava quem se levantava e se afastava, revirando os
olhos para os gritos de Katie. Bebês eram sujos, fedorentos
e barulhentos — até o seu. Seu laptop estava
tentadoramente perto, despontando sob um jornal Metro
manchado de café na mesa de centro, e Alex avaliou rápido
os riscos que toda mãe de um bebê dormindo é forçada a
correr para se certificar de alguns minutos de liberdade.
Tendo passado Katie com segurança dos seus braços para o
sofá, ela clicou na caixa que vinha checando uma dúzia de
vezes por dia, esperando receber uma mensagem
conciliatória de Jamie — e prendeu a respiração ao ver o e-
mail.
Espremido entre a newsletter de um supermercado e um
lembrete do eBay para “pagar o saco de dormir infantil”
havia um e-mail de Ashley Bucknall; assunto: encerramento
de contrato. De imediato algo pareceu estranho. Por um
minuto, Alex deixou o cursor flutuar sobre a mensagem, e
quando clicou nela se surpreendeu por não haver nada
escrito no e-mail, só um documento do Word em anexo.
Abrindo o que se revelou ser só três páginas, Alex logo leu o
conteúdo da primeira, uma carta:
Prezada srta. Fuller, como discutido pessoalmente em 4
de maio deste ano, por favor, fique ciente de que a BWL
está encerrando seu contrato de trabalho iniciado em…
Conforme lia, Alex enfiava as unhas no sofá. Confira a
seguir os detalhes do pagamento completo e final da sua
licença-maternidade. Isso deve englobar os valores até esta
data. Como é comum em demissões por falta grave… Aqui
as palavras ficaram borradas na tela. “Falta grave”? Ela
olhou para Katie, como se a bebê adormecida pudesse
ajudá-la a compreender. Mas é claro que não podia. Nada
poderia. E a verdadeira extensão das mentiras de Jamie se
tornou clara para Alex. Nada do que foi dito naquela reunião
era verdade: a “negligência” que ela teoricamente
cometera, a promessa de manter a demissão em segredo e
a afirmação de que os documentos do desligamento diriam
que “você simplesmente pediu demissão”. Mas como
conseguiria outro emprego com aquilo no seu registro
pessoal? Mas a maior mentira de todas tinha sido o
emprego na JLL, como uma cenoura pendurada à sua frente
para conseguir que fosse embora sem criar escândalo e
então afastada assim que Alex estivesse fora do caminho.
É engraçado como o amor é próximo ao ódio, como é
forte a vontade de ver o rosto de alguém quando você está
preso no olho do furacão dessas emoções. Como uma
adolescente, Alex abriu a pesquisa de imagens do Google,
mordendo o interior das bochechas enquanto passava de
uma foto para outra do mentiroso de olhos simpáticos que
era Jamie. Durante todo o tempo em que trabalhou para ele,
nunca ocorreu a Alex olhar as redes sociais do chefe, já que
todos os detalhes da vida dele eram seu ganha-pão. E teria
sido difícil para a maioria das pessoas sentir curiosidade
sobre um homem que, ao beber, dividia tantas informações
particulares quanto Jamie. Até o mais fugaz companheiro de
copo no Firkin saberia de tudo, desde confusões conjugais
causadas por seus surtos de fumante às escondidas (“Juro
que ela sente o cheiro em mim a um quilômetro de
distância!”) e sua tendência a esquecer a aliança em
qualquer lugar (“Se um dia eu perder essa aliança, Maya vai
pirar”) ao preço exorbitante da suíte de frente para o mar
na Antígua que ele estava prestes a alugar para o Ano-
Novo. Mas quando ela rolou para encontrar as páginas de
Jamie no Facebook e no Instagram, a sensação foi a de
encontrar um tesouro virtual.
Ali, ao alcance dos dedos, estavam dez anos da vida de
Jamie: uma coleção inestimável de festas, aniversários e
minisseparações matrimoniais, noites no pub e encontros e
tudo que pudesse servir de objeto de vanglória. Conforme
ela passava por uma série de posts do tipo “homem de
família”, Alex se viu cada vez mais intrigada pela mulher
que foi tão hipnotizada por aquele embuste que até se
casou com ele.
Alex já tinha visto muitas fotos da esposa de Jamie, que
mais parecia uma modelo, tanto nas prateleiras do ex-chefe
como no celular dele, e, por estar familiarizada com o
contraste agradável das sobrancelhas escuras e do cabelo
louro-mel, as maçãs do rosto esculpidas e os lábios
carnudos, e porque ele sempre estava falando da aparência
dela como se fosse uma vitória dele, Alex havia ignorado a
beleza dela. Mas concentrando-se em Maya, ela foi forçada
a concordar que havia algo naquela esposa troféu do oeste
de Londres que a elevava acima do restante.
Maya tinha uma beleza limpa e típica de modelos, que
conseguia ser, ao mesmo tempo, acolhedora e alienante.
Mas era o frescor — do tipo que pouquíssimas mulheres
mantêm depois dos vinte e tantos anos — o mais
desconcertante. Maya era uns bons anos mais velha que
Alex, mas do cabelo aos lábios pintados apenas com um
brilho rosa-coral quase transparente, à pele levemente
bronzeada dos braços, tudo tinha um quê de intocável, uma
originalidade — como se a vida nunca tivesse conseguido
deixar sua marca nela, ou como se Maya tivesse sido
protegida de qualquer coisa desagradável que pudesse tê-la
marcado.
Alex se pegou voltando a uma imagem específica no
Instagram. Tirada alguns meses antes, exatamente 16 dias
depois de Maya ter dado à luz (Alex fez as contas), que a
mostrava de pé no quintal da casa deles em Bedford Park,
de jeans e suéter. Ao esticar a mão, protegida pela luva de
jardinagem, para quem quer que estivesse tirando a foto —
Jamie, provavelmente —, a boca aberta em um protesto
brincalhão, o suéter de Maya se ergueu alguns centímetros,
mostrando a parte de baixo da barriga dela. “Por favor!”,
Alex quase conseguia ouvi-la dizendo ao marido orgulhoso.
Porque, embora a barriga de Maya parecesse perfeita aos
olhos de Alex, sem uma veia ou estria à vista, para Maya,
ela ainda não havia recuperado o corpo pré-gravidez. Jamie
saberia como a esposa se sentia. Ela teria comentado
naquela manhã enquanto ele saía de cima dela, sem fôlego,
beliscando uma infinitesimal dobra de pele e fazendo bico:
“Olha só o que você fez comigo.” E Jamie riria, dizendo que
Maya continuava tão linda como sempre, talvez até se
inclinando para beijar sua barriga.
Jamie só havia postado mais uma vez desde aquele dia.
Uma foto de um parque do oeste de Londres, no primeiro
fim de semana de maio. A toalha xadrez estava lá, mas
aquela não era a bagunça comum de um piquenique: nada
de ovos cozidos e minissalsichas para aquela família. Em
vez disso, havia alguma coisa parecida com uma quiche
embrulhada em papel pardo, um pomelo descascado e
cortado em fatias, e parte de uma garrafa verde que devia
ser de Sancerre ou Chablis — dois dos favoritos de Jamie,
ela sabia — despontando de um cooler. A pequena Elsa
dormia no peito de Maya, e Christel fazia careta atrás do
pai: “Minhas meninas.”
Esses dois posts fizeram Alex mergulhar na vida de Maya.
Jamie talvez fosse um mentiroso, um assediador e muito
provavelmente um traidor, mas não havia dúvida de que ele
ainda era fascinado pela mulher com que havia se casado. E
se Maya era uma das coisas que Jamie mais valorizava além
do trabalho, então Alex ia precisar se aproximar um pouco
mais… e descobrir como poderia utilizar aquilo a seu favor.
Com os dedos se movendo à velocidade da luz pelo
teclado, buscou “Maya Lawrence” e começou uma
investigação completa nas mídias sociais dela. Como não
tinha pensado em fazer isso antes? O Facebook e o
Instagram de Maya começavam lá quando ela ainda era
Maya Juhl, “design de interiores”, fotografada encostada no
quadro de inspirações de um estúdio em Copenhagen,
usando um jeans boyfriend rasgado. Bonita demais para ser
levada a sério, ela passou a usar óculos de armação preta
grossa e uma expressão desafiadora nos meses seguintes:
sempre aboletada no braço de algum sofá absurdamente
minimalista ou cruzando os braços no primeiro plano do
lobby de algum hotel monocromático que supostamente
deveria ter sido obra sua. Mas algo havia acontecido
quando ela se mudou para Londres — Jamie? E Maya se
tornara uma mulher mais leve, mais brincalhona; uma
mulher que usava vestidos leves e alpargatas, lambia a
espuma da cerveja do lábio superior e tirava selfies
beijando uma versão mais jovem e mais magra de Jamie.
A época dos bebês — Christel e depois Elsa — veio a
seguir, e Alex ficou impressionada com a complacência da
fotogênica família Lawrence, foto após foto da prole perfeita
sendo enfiada goela abaixo das pessoas no que era
apresentado como uma demonstração de amor altruísta
mas era, na verdade, um narcisismo extremo. Assim como
as fotos infinitas do quintal verdejante e da estufa em
Bedford Park, com os tomates que Maya se esforçava muito
para fazer as pessoas acreditarem que tinham sido
plantados por ela mesma, e um post muito Mulheres
perfeitas da semana anterior que mostrava um daqueles
porta-comprimidos semanais nas cores do arco-íris, lotado
de pílulas pseudossaudáveis. “Colocando o marido num
cronograma de vitaminas!”
O post mais recente era sobre algum tipo de aulinha de
mamãe e bebê. Fotografada em um círculo de mães
paparicadas e risonhas de Chiswick, Maya estava com as
pernas vestidas em lycra dobradas à sua frente no formato
de um losango, intensamente concentrada na cabecinha de
Elsa, apoiada em seus pés. Quando Alex se concentrou na
legenda — “Aulinha de ginástica na Bumps & Babies. Ótimo
lugar para fazer novos amigos!” —, sentiu um nó no
estômago ao perceber como a experiência do início da
maternidade podia ser diferente para as duas.
O zumbido de um patinete elétrico parando do lado de
fora tirou Alex do transe, e ao se aproximar da janela ela viu
a figura de capuz familiar na esquina lá embaixo, os clientes
esquivos saindo de carros e portas para fazer os pedidos da
noite, a bolsa tipo carteiro da Fila sendo remexida
rapidamente em busca de cocaína, maconha ou o que quer
que as pessoas precisassem comprar com regularidade
alarmante. Já passava das oito agora, e como ela deixara
Katie dormir cedo demais, a filha ficaria acordada a noite
toda. Mas ela ficaria acordada a noite toda de qualquer
maneira. Sempre ficava. E embora Alex se sentisse vazia de
tão cansada, ainda estava agitada demais para dormir —
quase tão agitada quanto na madrugada depois da festa de
Joyce, quando descobriu como seria fácil colocar em prática
aquele plano do pub.
O “engano” com a Lista D junto ao e-mail de Hugo Mears
tinham sido um experimento. Se isso fosse divulgado e
deixasse ao mesmo tempo Jill e Nicole nervosas, melhor
ainda. Alex não esperava que sua antiga senha de acesso à
intranet da BWL ainda funcionasse — a que ela usava para
mudar horários de reuniões e voos para Jamie, marcar
motoristas que conseguia acompanhar na base de dados do
escritório do início ao fim da corrida e editar documentos
fora do escritório. E, é verdade, não funcionou. A ideia de
Jamie, tão ocupado, tendo o trabalho de chamar a TI para
mudar a senha a irritou por um momento, até que uma
piada que ele havia feito por causa de um artigo sobre
senhas pouco seguras no Evening Standard voltou à sua
mente. “Quem ainda usa o aniversário como senha?”, Alex
tinha rido. “Culpado”, o chefe havia confessado com uma
careta. E ela deu uma bronca em Jamie por não cuidar da
segurança. Ele não era burro, mas era preguiçoso — e
quando Alex tentou a sequência “123456”, a senha
provisória que a TI sempre manda para que fosse alterada
imediatamente, o portal da BWL se abriu à sua frente.
Uma lista de funcionários responsáveis por cada projeto
estava disponível no portal principal, junto aos documentos
detalhando visitas, contratos e negócios daquela semana,
mas outra senha foi necessária para acessar o e-mail e a
agenda de Jamie, e essa não se provou tão fácil de
descobrir. A data do casamento de Jamie não funcionava
mais e os aniversários de Maya, Christel e Elsa, todos
falharam, com e sem um “1” no final. As palavrinhas
vermelhas “Esqueceu sua senha?” a provocavam. Quantas
tentativas mais até a senha ser bloqueada? Mais uma, mais
duas? Olhando pela janela para a sequência de sobrados
vitorianos malconservados em frente, Alex forçou a mente a
vaguear, algo que fazia nas raras ocasiões em que esquecia
a senha do cartão. Então digitou seis letras: NICOLE.
“Predador de merda”, resmungou quando a caixa de
entrada de Jamie se abriu à sua frente.
Alex soube o que fazer no segundo em que viu a reunião
do projeto Minerva com os O’Ceallaigh na agenda de Jamie.
Se a Lista D era uma piada tão popular na BWL, e se Jill e
Nicole estavam cientes dela, então certamente alguém teria
acesso a esse arquivo. E quando uma rápida busca na caixa
de entrada dele resultou em um e-mail de Mears
aconselhando “transparência” — algo de que Alex agora
sabia bem que seu ex-chefe não era fã —, ela decidiu
colocar a mensagem no pacote também, só para dar mais
uma cutucada vergonhosa. Com apenas alguns cliques, os
documentos estavam no arquivo da apresentação de Jamie,
que Alex tinha certeza de que ele nem se incomodaria em
revisar no dia: nunca fazia isso. Porém, por mais que ela
tenha se divertido ao ler as trocas de e-mail sobre a
“cagada do Minerva” que continuavam surgindo dias
depois, Jamie já parecia estar se safando.
Nos dias que se seguiram à despedida de Joyce, Alex
estava desesperada por qualquer tipo de reconhecimento
de Nicole ou Jill. Agora estava claro que as duas a tinham
apagado da mente — e o plano que criaram juntas. Mas
Alex não conseguia fazer isso. Não o faria. E claramente
uma ligeira gafe profissional não era o suficiente. Não para
Jamie… nem para ela. Abrindo o laptop de novo, ela digitou
“Bumps & Babies”. Como era mesmo a frase que ele
sempre dizia, sem saber a dor que causava a ela? “Família é
o que mais importa”? E, depois de hesitar por um segundo,
ela clicou em “Agendar uma aula”.
CAPÍTULO 11
JILL
– N ãoJamie
sei como posso ser mais claro em relação a isso.
falava devagar, alongando as vogais e
pontuando cada palavra com um aceno de cabeça, e Jill se
sentia tentada a lembrá-lo de que não era nem filha dele
nem sua assistente.
— Sinceramente não sei como isso aconteceu. As plantas
da propriedade estavam bem ali no meu tablet, e eu tinha
repassado a apresentação do Minerva no dia anterior. Só
pode ter sido um erro na hora de nomear o arquivo. Talvez
até algum tipo de erro do sistema?
“Só pode ter sido” era uma das expressões favoritas de
Jamie, sua reação automática a qualquer tipo de erro ou
confusão. Dessa vez, no entanto, Jill suspeitava de que a
surpresa abismada dele pudesse ser genuína. Será que
aquilo era coisa de Nicole? Ou de Alex? Ou das duas,
colocando em prática um plano que Jill desconsiderou como
sendo loucura de bêbado?
— Olha, a gente já falou disso mil vezes. Sabemos bem
que a culpa é minha, tá? Não tem ninguém aqui discutindo
isso.
Inclinando a cabeça para o lado, Jill observou o colega.
Sua linguagem corporal continuava lânguida e controlada:
as pernas esticadas, as mãos cruzadas atrás da nuca. Ela
queria que essa conversa estivesse acontecendo no
escritório dela, onde a dinâmica de poder estaria mais a seu
favor. Queria também que Jamie estivesse mais
envergonhado e menos combativo.
— Não tem a ver com culpa, Jamie. — Dando uma olhada
no relógio, ela suspirou. — Tem a ver com se certificar de
que estaremos mesmo prontos para quando os irmãos
O’Ceallaigh vierem em menos de duas horas.
— Eu estou pronto — insistiu ele. — Vou entrar lá, ser
franco com eles e falar sobre todos os problemas da
propriedade, explicar que o motivo pelo qual não tinha
mencionado o terreno da JLL na região foi porque eu não
achava que a venda ia ser fechada…
— Ou seja, mentir.
— … e vou vender a propriedade para eles tudo de novo.
Vou dizer que ter um Westfield logo do outro lado da ponte
vai ajudar os negócios, não dificultar, blá-blá-blá. — Ele se
inclinou para a frente. — Você acha que eu não sei o quanto
isso é importante? Eu sou bem crescidinho, Jill.
— Tem certeza de que não quer que eu participe da
reunião?
— Tenho.
— É só que a gente teve muito trabalho para convencer
os dois a voltar.
— Eu sei. Principalmente porque fui eu que passei a
última semana ralando para que isso acontecesse.
— Uma semana na qual poderíamos estar mostrando a
propriedade para outras pessoas, Jamie. Mas você insistiu
que a gente segurasse. — Ela deu de ombros. — Pode ser
até que os O’Ceallaigh já tenham desistido da gente e
começado a conversar com a JLL, nossa concorrente mais
“transparente”.
— Jill! Eu posso consertar isso. Não era você que sempre
me dizia, muito tempo atrás, para não correr atrás dos
outros quando cometesse um erro? “Apenas conserte”?
— Era. — Ela ficou satisfeita por ele ter se lembrado. — E
a garrafa de Glenlochy vintage foi um toque de mestre.
— Obrigado. É quase como se eu soubesse o que estou
fazendo.
— Cruzes, você está tão na defensiva.
Jamie respirou fundo, engolindo o que quer que estivesse
prestes a dizer.
— Só quero que você pare de me microgerenciar. Já
resolvi.
— Então tá. — Ela ajeitou a saia. — Foto nova da pequena
Elsa?
Jamie girou a cadeira para pegar a foto emoldurada da
família na prateleira atrás da mesa.
— Ela não é linda? — Jamie passou o polegar pelos três
sorrisos brilhantes e o embrulhinho confuso no centro de
todos e entregou a fotografia para Jill.
— Uma graça. — Ela havia dominado aquele tom gentil ao
longo dos anos, mesmo que nunca tivesse sentido a
pontada no útero, imaginava, que as mães sentiam. — Maya
pensa em voltar a trabalhar em algum momento? Ela
comentou alguma coisa assim faz um tempinho.
— Ah, acho que não. Não dá pra fazer isso agora. Nós
temos ajuda, mas não vou deixar meus filhos serem criados
por estranhos.
Jamie colocou a foto de volta na prateleira, ao lado de
uma antiga da esposa, no auge da “trofeuzice” dela, em
uma praia em algum lugar impressionante. E, embora Jill
tivesse visto a foto um milhão de vezes e observado o short
curto, a camisa transparente e a fileira de pulseiras
refletindo o sol, embora estivesse bem ciente de que, em
termos de desejo masculino, aquela mulher era
basicamente o padrão, a palavra que surgiu, indesejada, na
sua cabeça enquanto voltava para seu escritório era
“comível”.
“Você está muito comível hoje.” Não foi isso que Nicole
alegou que Jaime havia dito? Expulsando a lembrança com
um balançar de cabeça, ela pegou o telefone para retornar
a primeira ligação aos clientes da lista que sua nova
assistente deixara na mesa, decepcionada, mas não
surpresa, por perceber que Kellie com “ie” tinha a caligrafia
de uma garotinha de primário.
— Edward, é a Jill. Só queria saber se você chegou a
pensar sobre a propriedade da Portland Road.
Edward Dinnigan gostava de falar. Depois de colocá-lo no
viva voz, Jill pegou o celular para ver se Stan tinha mandado
alguma mensagem, e depois começou a checar os e-mails.
Quando só faltava responder os três últimos, Edward ainda
não parecia estar nem um pouco próximo do fim da
descrição da viagem de iate que havia feito para Èze.
— Porcaria — ela reclamou ao clicar rápido demais em um
e-mail com cara de spam.
— Perdão?
— Não foi nada. Você estava dizendo que ficou feliz de ter
os estabilizadores.
Raxugdy@sharklaser.com; assunto: COM AMIGOS ASSIM. Isso
não era nada bom. Precisaria pedir para Tara, da TI, verificar
se tinha baixado algum vírus. Mas a mensagem não pedia
que ela clicasse em nenhum link… nem que fizesse nada.
Não, parecia ser só o encaminhamento de uma troca de
mensagens entre Jamie e Paul, em janeiro. O assunto dizia
CLARENDON CENTRE, uma propriedade comercial de 14 mil
metros quadrados vendida com relutância no mês seguinte
por muito menos do que o valor pedido, e a conversa era
sobre como a BWL estava tendo dificuldade para vender o
lugar. Foi só quando chegou ao terceiro e-mail, de Jamie,
que Jill entendeu por que tinham encaminhado aquilo para
ela.
Pensando aqui, não podemos cuidar disso nós mesmos?
VSQ está bem lelé ultimamente. Sessentões senis além de
tudo? Pode ser… De qualquer forma, não sei se esse é o
tipo de imagem que queremos passar agora. Sem contar
que ela não deveria estar em casa, cuidando do Stan?
— Edward?
— Desculpe, estou falando sem parar. Sobre a Portland
Road…
— Perdão. — Jill estava sentindo uma onda de calor quase
cinematográfica subindo ao rosto. Só que não havia nada de
cômico nisso ou na sensação de que as proporções da sala
tinham se alterado. — Tem alguém na outra linha que está
insistindo muito. — A voz dela parecia de outra pessoa. —
Posso te ligar depois?
Se não fosse pela referência à idade, ela pensou
enquanto relia a troca de e-mails, devagar dessa vez,
percebendo e agradecendo a recusa de Paul em responder
as piores partes do e-mail de Jamie — Ela está passando por
um momento difícil, mas tenho a sensação de que o
trabalho ajuda, não atrapalha —, Jill poderia ter se
convencido de que a mensagem não era sobre ela. Como
estava, porém, não havia dúvidas de que ela era “Você
Sabe Quem”, e de que, se Jamie realmente havia escrito
aquelas palavras, ele não era só o assediador e oportunista
que ela descobrira naquela noite no pub, mas algo muito
pior.
CAPÍTULO 12
NICOLE
ALEX
E
la estava meia hora adiantada. Apesar da
interminável crise de Katie nos confins da estação
Hammersmith, do desarrumar e rearrumar da bolsa
de maternidade no banco da plataforma e de uma longa
busca por uma lixeira na qual não queria deixar explosivos,
apenas uma fralda fedorenta, Alex ainda conseguiu chegar
na Bumps & Babies com meia hora de antecedência.
Quando Alex empurrou a porta, Katie finalmente tinha
parado de chorar e havia caído no sono no canguru, a
barriga cheia de fórmula. Alex afundou em uma cadeira na
recepção espaçosa, grata demais pelo pequeno momento
de calma para se perguntar o que estava fazendo ali.
Ladeado por uma butique de artigos para o lar e um café
“artesanal” na Chiswick High Road, o lugar era espaçoso,
bem-iluminado e estilizado até demais. A recepção era
decorada para parecer uma cozinha provençal, cheia de
azulejos rachados, canos decorativos em cinza-chumbo e
móveis rústicos de fazenda. Ao lado da fileira de potes
esmaltados, propositadamente envelhecidos cujas etiquetas
diziam “Café”, “Thé” e “Sucre”, uma placa avisava:
“Mamães e papais, sirvam-se à vontade.” Na mesa de pinho
maciço ao centro do cômodo havia uma bandeja de
barrinhas de cereal caseiras que Alex estava morrendo de
vontade de pegar, mas não ousava.
Por uma porta aberta mais adiante no corredor principal
ela vislumbrava um grupinho de grávidas guardando os
tapetes de yoga, o sotaque estridente de Chiswick audível
de onde estava.
— Dá para imaginar fazer um lance num leilão que você
não tem dinheiro para pagar?
— Jules deve ter ficado para morrer.
— Eu ficaria.
Quando passaram por Alex, lhe lançaram olhares de
avaliação e os sorrisos vieram depois. Ela não conseguiu
evitar e pensou que, mesmo prestes a parir, aquelas
mulheres pareciam mais elegantes e arrumadas do que ela.
Nenhum funcionário tinha aparecido ainda, e a ideia de
que poderia simplesmente sair daquele lugar ao qual não
pertencia fez um raio de adrenalina atravessar suas veias.
Com certeza haveria algum jeito de recuperar o depósito da
matrícula, feita por impulso naquela noite em que se
inscrevera como “Lexie” — apelido que insistiam em chamá-
la nas aulas de computação na Norwich, para distingui-la da
outra Alex, mais bonita. Só que ficar de pé às pressas
acordou Katie, e ao abrir a porta, desesperada para fugir
antes que alguém chegasse, lá estava uma mulher de
cabelo louro-mel, com um bebê quase exatamente da
mesma idade de Katie, embrulhada em um sling carmim:
Maya.
— Opa! Perdão, pode passar.
Além de uma uniformidade nas vogais e um leve enrolar
do R, ninguém imaginaria que inglês não era a língua
materna de Maya. Isso Alex já tinha percebido nas poucas e
curtas conversas pelo telefone com ela. Mas não podia
imaginar sem vê-la cara a cara como seus olhos verdes
eram compreensivos — pareciam mergulhar em você e
realmente te ver. E apesar de ter afastado mais cedo as
preocupações de última hora de que aquela mulher
desconhecida de alguma forma saberia quem ela era,
naquele momento Alex sentiu um horror renovado de que
Maya franziria a testa e perguntaria: “O que você está
fazendo aqui?”
— Caramba, alguém não está nada contente.
— Oi?
— Sua bubu.
“Bubu”, “embrulhinho”: Alex não sabia qual odiava mais.
Enquanto as duas mulheres faziam uma dancinha
desconfortável para ver quem passaria pela porta, os
choramingos de Katie se transformaram em um colapso
completo.
— Ela está com um pouco de cólica — murmurou Alex,
tentando enfiar a chupeta na boca da filha. — Pelo menos é
o que eu acho que é.
Com um resmungo irritado, Katie jogou a chupeta longe.
A essa altura, Alex só queria dar o fora dali. Humilhada
mais uma vez pelas disparidades entre ela e aquela loira de
rosto gentil que conseguia usar uma legging com recortes
transparentes quatro meses depois de parir, ela tentou
pegar a chupeta no chão, sem sucesso. Isso não ia dar
certo, não com Katie presa ao seu peito.
— Pode voltar. — Maya riu. — Eu pego. Não está com
pressa, né?
— Eu…
Desistindo, Alex voltou para a recepção e se sentou de
novo.
Separada de Maya momentaneamente por um bando de
mães, Alex tentou criar alguma desculpa que a tiraria dali
rápido. Mas quando todas as mulheres tinham passado,
Maya já recuperara a chupeta de Katie e deixara Elsa no
tapetinho de atividades no canto, e agora vinha na direção
de Alex com os braços estendidos.
— Quer que eu tente uma coisa? — perguntou, elevando
a voz acima dos gritos de Katie. — A minha mais velha tinha
cólicas horríveis, e tem uma coisa que os médicos
dinamarqueses sempre recomendam. Ah… — Ela balançou
a cabeça, rindo, e não havia nada falso na sua confusão. —
Eu sou da Dinamarca. Meu marido sempre diz que começo
as conversas pela metade. Voltando: meu nome é Maya.
— Sou… — Os ombros de Alex se tensionaram com o som
angustiado dos gritos de Katie. — Lexie. Desculpa pela
confusão.
— A regra número um da maternidade: nunca se desculpe
por coisas que estão além do seu controle. É a sua
primeira?
Alex assentiu.
— Passa pra cá.
Alex obedeceu. Porque não havia mais nada a fazer.
Porque sempre se intimidava por mulheres mandonas e
porque tinha visto uma morena musculosa perto das
barrinhas se encolhendo por causa do barulho.
— Vamos melhorar essa barriguinha? Vamos?
Ver a esposa de Jamie segurar sua filha deveria ter
incomodado Alex mais do que incomodou.
Mas os movimentos de Maya foram gentis e precisos
quando ela levou Katie até um banco almofadado no canto,
deitou-a de costas e pedalou suas perninhas para a frente e
para trás até que parasse de chorar.
— Isso ajuda a diminuir a pressão no estômago —
explicou, passando a mão na barriga de Katie. — Às vezes
eu queria que fizessem em mim também.
Ela se virou para olhar para Alex, que sentiu uma risada
borbulhar garganta acima.
Mas agora Maya a observava com uma expressão
questionadora.
— Lexie? É você?
E Alex se virou e percebeu que uma ruiva de cabelo curto
com uma lista impressa olhava ao redor.
— Lexie? Tem alguém chamada Lexie aqui?
A esposa de Jamie tinha parado de fazer carinho em Katie
e estava de pé encarando-a.
— Te pegaram.
Alex sentiu um nó na garganta.
— Eu… Quê?
— Você ia fugir, né? Eu quase fiz a mesmíssima coisa na
primeira vez em que vim. Não sou muito de “mamãe e
bebê” também. Mas pode acreditar, é bem divertido, na
verdade.
— Imagino que…
— Lexie está aqui — disse Maya em voz alta.
Não havia como fugir agora.
— Certo, então está todo mundo aqui. Yoga para Bebês é
ao meio-dia, então vamos para o Estúdio Um para balançar
essas fraldas!
A aula foi exatamente tão vergonhosa quanto Alex temia,
mas, mesmo assim, ela se surpreendeu ao perceber que se
divertia, chegando até a engolir uma crise de riso pela
careta que Maya fez quando a instrutora falou de
“abordagem de criação pele e alma”.
— Para que lado você está indo? — Maya perguntou
enquanto todo mundo reunia suas coisas, pegando-a de
surpresa.
— Para casa.
— E isso fica?
— Fica em… Stamford Brook.
Não havia motivo para uma pessoa que morava em Acton
fizesse um curso na Bumps & Babies. E Alex conhecia bem
Stamford Brook, depois de passar um verão cuidando da
casa de uma amiga perto da Shepherd’s Bush Road.
— Eu adoro aquela área! — Maya não parecia estar com
pressa de ir a lugar nenhum, o que estava deixando Alex
nervosa de novo. — A gente procurou lugar por lá, mas eu
queria muito um jardim espaçoso. Aí acabamos em Park,
Bedford Park, então nem posso reclamar.
Depois de colocar a ainda serena Elsa no sling, Maya
pegou duas garrafas gratuitas de algo que se declarava ser
“água alcalina” na saída, passou uma para Alex e
inconscientemente seguiu no mesmo passo que ela.
— A professora é um pouco exagerada, mas já conheci
algumas mulheres bem legais aqui na B&B ao longo dos
anos.
— Anos?
A palavra saiu desdenhosa, o questionamento implícito de
“é assim mesmo que você passa o seu tempo?”,
dolorosamente óbvio, e uma pontada de mágoa perpassou
no rosto de Maya.
— Bom, quando se tem dois filhos, meio que junta tudo. E
elas só têm vinte meses de diferença, então não tive muito
tempo para me recuperar.
Alex imaginou a casa clássica e espaçosa que explorara
minuciosamente pela internet, com o quintal retangular
bem-arrumado nos fundos. Imaginou toda a ajuda que Maya
tinha ao seu dispor: a sogra de quem Jamie nunca parava de
reclamar, as amigas sempre presentes, as babás. De quanto
tempo ela precisaria para se recuperar?
— Quer dizer, eu tenho sorte — admitiu Maya, como se
lesse a mente de Alex. — Temos uma babá incrível. Mas
meu marido trabalha demais.
— No quê?
— No mercado imobiliário. Ele é sócio na BWL e tem que
viajar bastante, então o coitado está sempre se sentindo
culpado por não passar muito tempo com as meninas…
Todas aquelas bebedeiras em hotéis de luxo pela Europa
com o coleguinha Hayden e Jamie ainda tinha tempo para
se sentir culpado?
— … e eu ainda arranco a cabeça dele se estiver cansado
demais para fazer tudo que planejei para nós e para as
crianças.
Maya balançou a cabeça com… não, não podia ser. Mas
era: aquela mulher maravilhosa sentia mesmo vergonha do
tipo de esposa que era para… Jamie! O mesmo Jamie que
nunca perdia uma oportunidade de dizer para quem
quisesse ouvir o pai dedicado e presente que era.
— Bom, é compreensível que essas coisas não sejam tão
importantes para ele.
— Talvez devessem ser.
Percorriam as calçadas movimentadas de Chiswick na
hora do almoço e Alex tentou manter a voz calma.
Mas Maya a olhou com a testa franzida.
— Você tem um marido que é um superpai, né?
— Pois é.
— Sortuda. Eu sempre me sinto mal por dar mais trabalho
a Jamie. Quer dizer, quando preciso de uma mão para
alguma coisa, peço para que ele ajude. Coisas bobas, tipo a
entrevista da creche de Christel essa semana…
— Entrevista da creche? — Alex se arrependeu da
pergunta no momento em que saiu da sua boca; é claro que
mulheres como Maya mandariam os filhos para as escolas
mais caras que o oeste de Londres tinha a oferecer.
— Bom, você sabe, a Greenleaf… não é uma creche
qualquer.
— Entendi.
Até Alex tinha ouvido falar da Greenleaf, com suas mães
supermodelos, seus pais investidores e sua longa lista de
espera.
— E eles vão entrevistar Christel?
Maya riu.
— Você é tão engraçada. Dá para imaginar, uma
entrevista com uma menininha de dois anos? Na verdade,
ela está bem feliz na creche atual, mas é claro que a
Greenleaf é tipo o Santo Graal.
— É claro.
— Bom, essa situação toda está sendo muito estressante,
você precisa fazer tanta coisa, bajular tanta gente. Eles têm
pouquíssimas vagas! Mas eu finalmente consegui essa
entrevista, então estou contando que Jamie vai usar o
charme dele como sempre e conquistá-los.
Sementinhas estavam brotando na mente de Alex. Era
esse tipo de informação que ela viera buscar.
Enquanto Alex tomava um gole de água, Maya olhou para
a mão dela.
— Deixo minha aliança e meu anel de noivado em casa
quando vou fazer exercício — ela se antecipou.
— Eu deveria fazer isso também. Mas é bom se lembrar
onde a guardou. Meu marido passa o tempo todo mexendo
na aliança e a deixa em lugares aleatórios pela casa. É
minha birrinha, como vocês dizem. O seu marido… no que
ele trabalha?
Alex se desviou de um carrinho de gêmeos que vinha
bem na sua direção.
— Ele trabalha no centro.
Tinha quase certeza de que ninguém fazia mais
perguntas além disso, porque pouca gente entendia ou se
importava com isso.
— E você, Lexie?
Essa não era tão fácil. Mas elas estavam perto da rua
Turnham Green Terrace a essa altura, onde Alex torcia para
que Maya fosse para casa, e seus olhos se detiveram em
uma mulher ao celular dando uma risada afetada próxima a
uma loja de maquiagens.
— Marketing… de beleza. — Assim que disse isso, Alex
percebeu que tinha sido burrice. Gente que trabalhava na
indústria de beleza não se parecia com ela. — Mas trabalho
na parte de tecnologia. — explicou, gesticulando para si
mesma. — Como você já deve ter imaginado.
As duas pararam de caminhar quando chegaram ao fim
da rua, e Alex sentia emoções conflitantes: alívio porque as
perguntas, cada vez mais difíceis de responder, iam cessar
e irritação por perceber que estava se divertindo na
companhia de Maya.
— Por que você faz isso? — Impassível à multidão saindo
para almoçar, Maya estava parada na esquina, olhando para
Alex com os olhos estreitados. — Se colocando para baixo o
tempo todo. Você fez isso a manhã inteira.
— Eu só… — Alex desistiu de tentar encontrar uma
desculpa irreverente. — Não sei.
— Desculpa. Nós dinamarqueses… somos muito diretos.
— Não. — Mais uma vez, Alex sentiu que Maya tinha uma
habilidade curiosa de ver através dela, perceber os
equívocos e a imprudência. — Ser direto é… bom.
Elas estavam no caminho de todo mundo, talvez uma
visão excêntrica, uma de frente para a outra com bebês
presos ao peito, mas Maya não se mexeu.
— Eu era uma designer de interiores bem-sucedida —
disse ela. — Sabe, antes.
Aquela informação — com todas as vulnerabilidades que
continha — ficou suspensa no ar por um momento.
— Eu consigo imaginar isso.
Maya piscou duas vezes. Sob o sol, seus olhos eram de
um verde-cáqui quase sintético de tão intenso. Ela não era
só bonita como uma modelo, percebeu Alex. Havia mais ali.
Isso também a irritou. Jamie não merecia nada raro ou
diferente.
— Eu estava planejando voltar a trabalhar antes dessa
pequena aqui nascer. Mas, depois que você já passou três,
quatro anos fora, precisa se perguntar o que realmente tem
a oferecer para as pessoas.
— Aposto que você tem muito a oferecer.
Parecia fazer muito tempo desde que Alex tinha estado
com alguém que queria algo mais. Só que não era um
homem esperando um beijo no fim da noite, e, ela
percebeu, logo antes de Maya falar, o que ela queria.
— Estou morrendo de fome. Você não quer almoçar… lá
em casa?
— Ah. — Isso foi tão inesperado que Alex não conseguiu
pensar em uma desculpa rápido. — Que ideia ótima. Mas na
verdade tenho um compromisso, e Katie tem que tirar a
soneca…
Sempre dê apenas uma desculpa. Não era isso que se
dizia? Duas desculpas e parece que você está mentindo.
— É claro.
Houve aquele mesmo lampejo de mágoa de novo, logo
encoberto como da primeira vez. O que deixou Alex
perplexa. Maya não podia estar solitária, certo? Talvez
decepcionada com o merda com que se casou. Mas
solitária?
— Desculpa. Fica para a próxima!
Alex já tinha começado a se afastar, mas o que realmente
queria era fugir: para longe de Maya e sua filha
assustadoramente impassível, para longe da riqueza
sufocante daqueles cafés e delicatéssens que vendiam
açafrão em pó e prêmios de consolação pelos maridos
ausentes e traidores. Para longe de suas próprias mentiras
sem sentido.
Maya, porém, não desistia tão fácil.
— Espera. Lexie. — E foi o que ela fez, ao ouvir Maya
implorando sem fôlego. — Venha lá para casa almoçar e
tomar uma taça de rosé no jardim comigo. Hoje é a folga da
babá, e a verdade é que, por mais que eu ame essa
garotinha, vou enlouquecer se não tiver um adulto com
quem conversar.
E, quando ela se calou, Alex sorriu. Era arriscado e errado.
Era uma loucura. No entanto, ela se ouviu dizendo:
— Tudo bem. Adoraria ver onde você mora.
CAPÍTULO 14
JILL
– D ágrupinho
para vocês falarem baixo? — Jill rosnou para o
reunido do lado de fora do seu escritório. —
Estou em uma ligação para Doha e não estou ouvindo
merda nenhuma.
— Desculpa.
Paul ainda teve a decência de pedir desculpas, mas Jamie
só a olhou com irritação.
— Ou gritem o quanto quiserem — resmungou ela ao
fechar a porta —, só façam isso no escritório de vocês.
Era óbvio que algo tinha dado muito errado, e quando Jill
terminou a ligação, arriscando a única frase em árabe que
sabia como um floreio final meio sem jeito, ela se deu conta
sobre o que deveria ser: Minerva.
Eles passaram?, perguntou por e-mail para Jamie. E a
resposta dele veio segundos depois: Sim.
Jill encarou a mensagem monossilábica e sem remorso, se
perguntando quando e por que o homem que considerara
por anos um colega leal e um amigo não só havia perdido
todo o respeito por ela como também tinha decidido que ela
era o inimigo.
Já fazia uma semana desde que Jill recebera aquele e-mail
anônimo, e durante esse tempo ela tinha checado e
rechecado cada palavra e frase, chegando até a se levantar
no meio da noite para bater datas e horários da troca de
mensagens com as reuniões no calendário da intranet da
BWL. Nem Jamie nem Paul tiveram reuniões nos horários
exatos em que as mensagens foram enviadas. Outra busca
rápida pela sua caixa de entrada também revelou que Jamie
nunca tinha usado o termo “VSQ” em conversas com ela.
Havia uma última opção: Paul. Mas, ao olhar para o
escritório dele, do outro lado do andar, onde o sócio
examinava a planta de uma construção, Jill se sentiu
reticente. Só de mostrar aquela troca de mensagens já a
faria parecer fraca aos olhos dele — como se Jill temesse em
segredo que fosse mesmo uma “sessentona senil”. Poderia
até plantar na cabeça de Paul a semente da ideia de que
sua hora já havia expirado. Os dois homens eram amigos,
além de tudo, e ficaram ainda mais próximos depois de o
casamento de Paul acabar. Desde então ele preferia discutir
os detalhes tortuosos do divórcio com Jamie, não com ela,
algo que a deixou feliz até aquele momento. Se ele
reconhecesse as palavras maldosas de Jamie enviadas a ele
meses atrás, será que sequer admitiria? Ou permaneceria
leal ao colega?
Depois de ir e voltar incontáveis vezes nos últimos dias
entre a convicção absoluta de que o e-mail era real e a
certeza de que era falso, ou falsificado, Jill decidiu acabar
com aquela loucura naquele momento e chamou Tara, da TI,
para passar em seu escritório.
— É uma questão um pouco sensível, então tem que ficar
apenas entre nós — começou, hesitante, antes de falar de
uma vez. Aquela questão já ocupara demais de seu tempo.
— Melhor você vir aqui e dar uma lida.
Quando a jovem se inclinou para ler a troca de e-mails no
monitor, Jill ficou prestando atenção nas suas reações. Seus
lábios se torceram de leve em uma expressão
envergonhada ao ler as mensagens, e então Tara se
endireitou e se virou para a chefe:
— Você quer saber quem te mandou isso? Porque não vai
ser fácil.
Jill pensou nos olhos febris de Alex naquela noite no pub
— “Só estou falando de dar um empurrãozinho nele” — e no
leve sorriso de Nicole ao murmurar as palavras “poder
furtivo”. Já que uma ou ambas estava por trás da
humilhação da Lista D de Jamie, não seria possível que o e-
mail fosse uma ação parecida? Mas se a mensagem fora
escrita e enviada para lembrá-la do pacto que fizeram no
pub e que ela tinha renegado, estavam fazendo tudo
errado. Muito havia sido dito e bebido naquela noite, e
embora Jill ainda estivesse em choque por suas descobertas
sobre Jamie e ciente de que não poderia ignorar seu
comportamento, tinha que haver uma forma melhor de lidar
com ele do que com aquele plano pueril que elas criaram.
— Eu só quero saber, Tara, se é legítimo: se as
mensagens foram escritas como estão aqui, ou se foram,
sabe, editadas.
— Isso eu talvez consiga fazer. Pode me dar algumas
horas?
O telefone tocou, e por um momento Jill torceu para que
fosse Jamie ligando para se desculpar e assegurá-la de que
o que ela entendera sobre isso e o resto estava errado. Mas
o número na tela, ela percebeu, era o seu próprio.
— Stan. Está tudo bem?
— Sim e não, meu amor. Mas não quero que você se
preocupe. Passei a manhã sentindo um pouco de dor e
tontura, e o dr. Jacks acha que é melhor eu ir para o
hospital.
— A manhã toda? Por que você não falou nada?
— Estou falando agora, amor.
Stan sempre fora imperturbável e, por uma ironia, o
câncer parecia só ter aumentado essa característica,
imbuindo-o de um tipo de tranquilidade fatalista que, longe
de acalmar Jill, no fundo a enlouquecia.
— Tá. Chego aí em quarenta minutos.
— Não, não, por favor, não precisa vir. Eu prometo que
vou ligar assim que acabar. Inclusive no site do Prostate
Cancer UK eles dizem que isso pode acontecer.
— A gente não tinha falado que não ia procurar essas
coisas no Google?
Do outro lado do escritório, Jill viu Jamie saindo do
elevador com um daqueles cafés gelados de que gostava.
Por todos esses anos ela considerou a predileção dele por
doces como uma curiosidade simpática. Agora que ele
deveria ficar de cabeça baixa, se esforçando
desesperadamente para resolver a confusão que havia
causado, parecia um ultraje que estivesse se deliciando com
uma guloseima espumosa como se estivesse tudo bem.
Ela observou Jamie abrir caminho pelo setor do
marketing, parando na mesa de uma linda morena de olhos
amendoados, que usava um vestido de verão cor de
centáurea-azul. O sobrenome dela era italiano, Jill lembrou,
algo sexy e exótico, e tinha aquele tipo de lábio superior
que parecia deixar a boca o tempo todo entreaberta
sensualmente. Mas, em vez de parecer satisfeita com a
atenção de Jamie, Jill percebeu que ela aparentava
desconforto.
— Eu prefiro ir para o hospital com você.
— Eu sei que sim. Mas estou dizendo que não quero que
você vá, e o táxi já chegou. Te ligo do hospital.
— Não esquece. Não esquece de ligar no segundo em
que…
Mas Stan já tinha desligado.
Jamie ainda conversava com a morena, se inclinando de
vez em quando para pegar algo de um pacote na mesa
dela, o qual jogava para cima e pegava com a boca como
uma foca. Sem tirar os olhos dele, Jill encheu um copo de
Evian da garrafa que sempre ficava na sua mesa e virou a
água de uma vez só.
Observar Jamie naquele momento era como olhar a foto
de alguém em um daqueles aplicativos de “distorção facial”
que sua sobrinha adolescente a fez experimentar uma vez
com Stan. Lá estava ele: familiar e ao mesmo tempo
assustadoramente desvirtuado. E estava mesmo assediando
aquela menina, como fizera com Nicole, bem na frente de
todo mundo? Será que ela realmente tinha sido tão cega
esse tempo todo?
Alimentada pela força da raiva, Jill empurrou a porta do
escritório de supetão, seguindo a passos largos pela mesa
de uma assustada Kellie — “Você tem uma ligação do cara
da avaliação em dois minutos!” — e pegou uma diagonal
direta até Jamie.
A garota a viu antes dele, e a imagem indesejada de si
mesma como um tipo de matrona escolar determinada a
defender suas alunas não a ajudou a se acalmar em nada.
— Jamie?
Ele se virou surpreso, mas também, ligeiramente
desafiador, ela pensou.
— Jill.
— Você tem um segundo?
Ela já estivera em algumas situações profissionais difíceis
ao longo dos anos, e até então sempre teve facilidade para
se manter calma. O fato de que hoje em dia era considerado
aceitável que mulheres se comportassem de maneira
emotiva no ambiente de trabalho, como se o gênero por si
só permitisse isso, deixava Jill perplexa. Ela podia contar nos
dedos quantas vezes tinha erguido a voz no escritório, e
certamente nunca havia se permitido demonstrar nenhum
outro sinal físico de descontrole.
Apenas algumas semanas antes ela enfiara sob o nariz de
Stan um artigo da FT sobre como chorar no trabalho era
uma “reação humana aceitável, que em geral acometia
profissionais de alto desempenho”, e os dois riram da ideia
de Jill chorando abertamente numa sala de reuniões. “Você
nunca foi de chorar nem em casa”, disse ele. E embora
fosse verdade que ela não havia derramado lágrimas
quando ele recebeu o diagnóstico, Jill se sentiu contente por
Stan não ter visto como ela ficou no dia que se seguiu a
todos os exames. Ele estava deitado na cama do hospital, o
rosto pálido virado para a janela enquanto o oncologista
falava sobre a “equipe multidisciplinar” que faria parte da
vida dele a partir dali, e os efeitos colaterais imediatos que
a medicação e a radioterapia causariam: uma piora inicial
nos sintomas, dores nos ossos e na coluna, sangue na urina.
Ela assentiu e gracejou até conseguir dar um “pulinho no
banheiro”, onde apoiou a testa nos azulejos e soltou um
soluço tão violento que a fez se tremer por inteiro.
— Tenho vários — respondeu Jamie com um sorriso tenso,
e Jill ficou satisfeita por isso, pelo menos. Se ele dissesse
que não podia falar agora, na frente da garota, Jill teria que
levar isso como um desafio.
— Parece que as suas amêndoas com mel foram salvas
pelo gongo. — Ele deu um sorrisinho para a garota. — Mas
acho que vou roubar umazinha só para a viagem? —
Jogando a amêndoa no ar, Jamie esticou o pescoço e a
pegou com a boca. E então fez uma reverência. — Jill, você
já conheceu a Sophia? Ela veio do escritório de Manchester
em março.
Mas aquilo tudo era algum tipo de demonstração de
poder com o qual Jill sinceramente não estava com
paciência de lidar. Assentindo meio impaciente para a
moça, ela fez um sinal para o escritório.
— Vamos?
Nada mais foi dito até chegarem à sala de reuniões, onde
Jamie segurou a porta para ela, em um excesso de
cavalheirismo que antes Jill achava charmoso, mas que
agora suspeitava ser falsidade. Tudo aquilo fazia parte dos
fingimentos de Jamie.
— Água — arfou ele, deixando na mesa o que restava do
frappé e se servindo de um copo da Evian dela. — Esse
troço me deixa morrendo de sede.
Jill resolveu continuar de pé enquanto ele bebia. Ao
terminar, se virou para ela com sorriso confuso e perguntou:
— Qual é o seu problema, exatamente, Jill?
— Meu problema? — questionou ela, tentando disfarçar
como estava chocada com o tom de voz dele.
— É. — Ele se sentou com as pernas afastadas.
— Eu ia te perguntar a mesma coisa. Acabamos de perder
um cliente importantíssimo e recebo de você apenas um e-
mail com uma palavra só.
— Não perdemos ninguém, Jill. Eles passaram uma única
oferta.
— Certo. E vamos esperar para ver se eles voltam para a
próxima.
— Eu posso te prometer que vão voltar.
Reclinado na cadeira, Jamie colocou as mãos na nuca,
expandindo o peito.
Jill não conseguiu deixar essa atitude presunçosa para lá.
— Como? — Ela deu a volta na mesa com passos largos
para encará-lo, mas continuou de pé. — Sempre admirei sua
confiança, Jamie, mas chega um ponto em que vira
simplesmente imprudência. Eu te falei que essa Lista D era
uma má ideia, e você não me ouviu. Então eu preciso saber
melhor o que está acontecendo aqui. — O som da sua mão
espalmada na mesa a alarmou: ela não era assim, não se
comportava desse jeito. — Quero dizer, você nem pensou
em ir me contar que os O’Ceallaigh abriram mão da oferta
mais cedo.
— Isso aconteceu só umas horas atrás.
— Eles vieram aqui na empresa?
— Não. — Uma sombra cobriu o rosto dele. — Não, teve
um mal-entendido e… Enfim, dessa vez foi culpa deles.
Foi só então que Jill enfim se sentou.
— O que foi culpa deles?
— Eles acharam que a reunião seria lá, mas estava
marcado para ser aqui…
— Espera aí. Você fez merda de novo?
— Não, Jill. Eles se confundiram. Estava escrito na agenda
da intranet que a reunião seria aqui na BWL. — Ele balançou
a cabeça. — Mas não importa. A gente fez a reunião por
vídeo.
— Eu acho difícil de acreditar que isso não importe. Seja
como for, eu, assim como Paul, gostaria de saber dessas
coisas assim que elas acontecem.
— Posso terminar?
— Por favor.
— Confia em mim, ninguém está mais chateado com essa
situação do Minerva do que eu. Mas a única coisa que eu
posso fazer agora é tentar encontrar algum outro
comprador para…
— Exatamente. — Jill não conseguiu se segurar. — Então
se concentre nisso, não numa garota qualquer do
marketing.
— Como é?
— Você sabe do que eu estou falando.
— Hum… — Ele fez um gesto teatral, levando a mão ao
queixo como quem não entendia. — Não sei, não. Sério,
você está ouvindo o que está dizendo? O nome dela é
Sophia. E eu achei que você fazia muita questão de que as
pessoas novas fossem bem recebidas.
— Não estou nem aí para o nome dela.
O silêncio que se seguiu poderia ter se transformado em
algo mais hostil se uma batidinha leve no vidro atrás dela
não tivesse interrompido a conversa.
— Desculpa, Jill, mas é o seu marido de novo — a
assistente articulou com a boca do outro lado da parede de
vidro.
É claro que ela havia deixado o telefone no mudo.
— Obrigada, Kellie.
Ela ficou de pé.
De repente, porém, Jamie estava ao seu lado, os olhos
castanhos brilhantes cheios de compaixão.
— O Stan está bem?
Ela assentiu, mas ele percebeu sua hesitação.
— Vai ficar com o seu marido.
Então Jamie fez algo que só tinha feito poucas vezes ao
longo dos anos: a abraçou. E, em vez de se afastar, o que
poderia ter acontecido meia hora antes, ela sentiu um
pouco de sua raiva se esvair e se pegou abraçando-o de
volta. Aqueles eram tempos difíceis para os dois, tão difíceis
que ela estava questionando tudo: até ele.
A questão do Minerva tinha sido uma armação contra ele,
isso era óbvio. E por que confiar em Nicole ou Alex no lugar
de uma pessoa que conhecia muito melhor do que qualquer
uma das duas, e que dirá em um e-mail claramente enviado
por alguém tão vingativo? O fato de ela ter pedido que Tara
investigasse isso agora a enchia de vergonha. Jill diria para
ela esquecer aquilo e depois ia falar com Stan.
— Eu só preciso que você confie que eu consigo lidar com
essas coisas — disse Jamie ao soltá-la. — Isso é o mais
importante pra mim agora, com tudo que você e Stan estão
passando.
Jill assentiu de novo, mais decidida, e quando foi desligar
o computador viu com alívio que Tara já tinha respondido.
Segundo a mensagem, ela tinha “99% de certeza de que os
e-mails foram escritos pelo remetente naquelas datas e
horas”. Ela também lamentava “se não era isso que você
queria ouvir”.
CAPÍTULO 15
JILL
5 de agosto
– V ocêPorvaisua
conseguir fazer isso?
visão de olho de peixe, a expressão
questionadora de Paul estava distorcida, o escritório de
plano aberto atrás da parede de vidro distorcido em um
pesadelo panorâmico curvo.
— Não sei.
— Fiz um rascunho. De um e-mail. Para a empresa toda. O
aviso deveria seguir algo parecido, você não acha?
Da impressora, Paul tirou uma folha de papel e lhe
entregou.
Para: Toda a equipe
Assunto: [Nome da empresa] sente muito pela perda de [Inserir cargo],
[Inserir nome e sobrenome do funcionário]
Prezada equipe da [Nome da empresa].
No dia [Inserir data], nossa equipe sofreu uma perda terrível. Noss[o/a]
[Inserir cargo], [Inserir nome e sobrenome do funcionário], faleceu devido
[Inserir causa da morte]. El[e/a] era uma parte essencial da nossa equipe
e todos sentiremos falta de sua positividade.
Jill levantou os olhos da impressão e a devolveu para Paul.
— O que é isso?
— Merda. Esse é o e-mail padrão.
Folheando os papéis na bandeja da impressora, ele
encontrou o que estava procurando.
— É esse aqui.
Jill ficou encarando o colega.
— Esse é o e-mail padrão para…
— Para avisos sobre falecimentos de funcionários, sim. Foi
o RH que me enviou. Porque agora que a notícia já saiu em
todos os jornais… e a polícia avisou que vai precisar falar
com as pessoas e coletar outros depoimentos, precisamos
enviar isso agora.
O documento certo ainda estava nas suas mãos, mas Jill
nem tentou lê-lo, os olhos ainda em Paul.
— Então você preencheu as lacunas. Colocou a causa da
morte de Jamie — ela murmurou. — Você mencionou que
ele ainda estava vivo quando o encontraram de manhã? Foi
o que falaram no jornal. Algo deve ter amortecido a queda
dele, disseram, ou ele teria morrido na hora. Mas não. Ele
sobreviveu por horas. Horas. Até ser separado daquelas
vigas. Foi aí que ele sangrou até morrer.
— Jill.
— Mas ele era “parte essencial da nossa equipe”. E
vamos “sentir falta de sua positividade”?
— Eu sei que é difícil.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Para responder a sua
pergunta, não. Não consigo fazer isso.
CAPÍTULO 16
NICOLE
Seis semanas antes
– E uestava
não falei isso pra ele, Jen, eu juro. Só disse que você
solteira.
— É que eu não sei se estou interessada em nada, sabe?
— Eu sei, e foi isso que eu falei. A gente pode só tomar
um drinque.
— Verdade.
— Talvez dois, se ele for tão gato quanto parece no Insta.
Me empresta o rímel?
Sempre que possível Nicole preferia usar o banheiro
feminino do terceiro andar. O que estava agora era maior e
com uma iluminação melhor, mas às seis da tarde de sexta
as pias ficavam lotadas de maquiagem, as cabines cheias
de garotas colocando roupas ainda mais justas… e isso a
irritava. Porque ela nunca tinha participado muito dessa
coisa de paquera, não da forma prolongada e gloriosamente
casual que aquelas garotas faziam. Nossa, ela já estava
casada quando tinha a idade delas. E porque, ao se
preparar para jantar com o marido depois de um dia longo
como aquele, não sentia a mesma animação que elas. Na
verdade se sentia cansada — e no fundo se ressentia por
não comerem um simples curry em frente à TV.
Mesmo assim, Nicole tinha trabalhado até tarde três
vezes naquela semana, e Ben, que só se interessava por
aventuras quando envolviam experimentar todos os
restaurantes novos do oeste de Londres, tinha reservado
uma mesa naquele lugar de tapas que tinha sido aberto na
Fulham Road, recomendado por Jay Rayner. Ela não
conseguiria desmarcar agora.
Fugindo do bolo de lenços de papel manchados de base
ao lado da pia, Nicole se inclinou para o espelho e começou
a passar o batom. Em geral ela achava tranquilizador o
processo de contornar e pintar o que os homens sempre lhe
disseram ser seu melhor traço, mas naquele dia o contorno
ficou torto e sua cor de sempre pareceu empalidecê-la.
Tirando uma folha da papeleira, ela o removeu.
— Escuro demais — sugeriu a mulher atrás dela.
— Perdão?
— Você é tão linda. Mas seu batom… ele te apaga.
Nicole ficou tentada a dizer que usava aquela cor já fazia
quase uma década.
— Tenta esse.
O gloss rosa claro, levemente cintilante, era jovem
demais para Nicole, e ela sempre achou que pegar
emprestado o batom de outra mulher era pouco higiênico,
mas agradeceu mesmo assim e sentiu um prazer estranho
em passá-lo nos lábios, imaginando a surpresa de Ben
quando ela surgisse parecendo alguém que não sua esposa.
— Então, continua.
As duas mulheres continuaram a fofocar.
— Ele perguntou casualmente pra Sophia se ela estava,
tipo, saindo com alguém. Depois ficou todo “Ah, espero que
você esteja se sentindo bem recebida aqui. A gente pode
sair pra tomar uma depois do trabalho, pra se conhecer
melhor”.
— Mentira.
— Juro! Aí, escuta só, ele pega e diz: “É bom você saber
que eu não aceito não como resposta.”
— Para.
— Foi o que me disseram.
Um intervalo na conversa foi permeado por risadas
femininas distantes e pelo som de lábios com gloss sendo
pressionados.
— Eu não me importaria em ir tomar uma com ele.
— Calma! Aí a Sophia foi beber com ele.
— Sério?
— Pois é. E no dia seguinte ela contou pra Sandra, que
contou pra Emma, que ele realmente não aceita ouvir não…
tipo, de um jeito que deixou ela superdesconfortável.
— Forçou a barra?
— Tipo, demais…
Um aviso, que Nicole não viu, a silenciou.
— Meninas, de quem vocês estão falando? — Nicole teve
o cuidado de manter os olhos no espelho.
Elas se entreolharam, só então percebendo que Nicole era
uma executiva sênior.
— Só estou curiosa! — Ela deu uma risadinha. E se fosse
segredo de Estado, vocês não deveriam estar fofocando no
banheiro.
— Uma amiga nossa do marketing.
— Não, estou falando do cara do “bem recebida”.
— Ah. — Outro olhar conspiratório.
— Jamie?
As duas a encaravam agora, claramente chocadas pela
própria indiscrição.
— Olha…
— Nossa, todo mundo sabe como ele é. E o que é dito no
banheiro feminino…
— Fica no banheiro feminino — completou a mais
escandalosa, com uma risadinha. — É. Foi o Jamie. Mas não
conta pra ninguém? A Sophia é superlegal e faz pouco
tempo que veio pra cá. Ela não quer arrumar problema. Eu
nem sei se ela sai com caras casados.
— Entendi.
Fechando a nécessaire de maquiagem Nicole deu uma
última olhada para seu reflexo e parou ao abrir a porta
antes de sair.
— Inclusive, na minha experiência, são os homens
casados que tendem a arrumar problema.
— Desculpa, desculpa!
Se Ben não chegasse sempre adiantado, ela não estaria
sempre se sentindo atrasada. Mas ele tinha conseguido uma
mesa boa, com vista para a Fulham Road, e ela sabia que o
marido estava gostando de observar as garotas bonitas de
Chelsea com seus namorados de camisas Ralph Lauren
entrando e saindo dos pubs da área.
Pegando o copo quase vazio de gim e tônica de Ben, ela
virou o restante do drinque.
— Preciso de um desses urgente.
Ben fez um sinal pedindo mais dois para o garçom e
depois ergueu o copo, agora com uma mancha brilhante de
gloss rosa.
— Quer me contar alguma coisa?
Ele não tinha gostado. É claro que não. Ela não conhecia
ninguém mais relutante a mudanças do que Ben, ainda
mais quando se tratava dela.
— É só uma coisa que estou experimentando. Você odiou.
— O quê? Me dá uma chance de me acostumar. — Ele
inclinou a cabeça para trás, avaliando-a. — Você fica… Não
sei, diferente. Dia difícil?
— Só… longo. Tive que levar alguns clientes novos ao
antigo teatro hoje e depois de lá fui para Kensington para
outra reunião. Passei a manhã inteira presa no trânsito e
ninguém está querendo aquele lugar em Shepherd’s Bush
que peguei em março. — Tirando o casaco, ela suspirou
profundamente. — Talvez as pessoas só não estejam
comprando nada agora. Enfim: chato, chato, chato. E como
foi o seu dia?
— Bom, a azeda daquela mãe solo que você odeia, a das
sobrancelhas, estava na saída da escola hoje.
— Ah, ela é insuportável.
— Estava bem conversadeira, para variar. Até falou de
marcar um encontro para as crianças.
— De jeito nenhum. — Nicole lançou um olhar ansioso
para o bar nos fundos do restaurante lotado.
— Calma, Nicole.
— Eles são lerdos demais.
— O lugar está lotado.
— Então deveriam contratar mais gente.
— Bom… — Ben desconversou com um tom de voz
animado. — Chloe disse que estava falando de nós na
escola hoje. Mais de você, na verdade. Parece que hoje eles
precisavam descrever o trabalho dos pais.
— É mesmo?
— Pois é. Então ela disse: “A mamãe vende prédios, dos
grandes.”
— Ela disse isso mesmo?
Sua bebida estava vindo e Nicole já se sentia mais leve.
Se ao menos pudesse fingir que não ouvira aquela conversa
no banheiro…
— E que “o papai cuida de mim”.
Havia um misto de emoções no sorriso dele, e até no
estado distraído em que estava ela conseguia identificar a
maioria delas: orgulho e constrangimento; vergonha e
rebeldia. As mesmas emoções que ele deveria sentir todas
as vezes em que selecionava a caixinha castradora de
“cuidador principal” em formulários. Por outro lado, embora
não tivesse adquirido aquele título voluntariamente, Ben
parecia saber como sua contribuição à família era
importante e deveria odiar a ideia de que os outros
pensassem menos dele por fazer o trabalho mais
importante de todos.
Nicole segurou a mão dele.
— Eu nunca menosprezo o que você faz. E a Chloe te ama
demais. Vocês dois são o melhor time que existe. Sendo
sincera, às vezes eu até fico com ciúmes.
— A gente sempre vai estar bem enquanto você estiver
aqui com a gente.
Ele sorriu. Aquilo deveria fazer Nicole se sentir segura,
amada, mas em vez disso só trouxe a sensação conhecida
de estar sendo sufocada aos poucos.
Ela observou o bronzeado no rosto do marido, obtido
depois de tantas tardes no parque, e o azul tranquilo de
seus olhos, e sentiu uma pontada igualmente familiar de
não ser boa o bastante para ele.
— Eu nem imagino como as pessoas conseguem fazer
isso sozinhas — continuou Ben, sabendo que qualquer coisa
muito melosa a deixava desconfortável. — E aí, o que
vamos pedir? — Ele voltou a atenção ao cardápio. — O que
você acha de alguns aperitivos? Rayner disse que o steak
tartare era “imperdível”. Ah, tem um menu degustação,
mas você nunca gosta muito.
— Contanto que tenha lula e aqueles croquetinhos, eu já
fico feliz.
Enquanto Ben lia a lista de pratos para o garçom, Nicole
não se sentia nada feliz. Não conseguia tirar da cabeça a
conversa que havia entreouvido. Aí veio Ben comentar
sobre a mãe solo da escola de Chloe, o que a fez se lembrar
de Alex. Nicole pensou na mulher com quem havia dividido
as longas horas da madrugada naquela noite: o esforço todo
que ela fizera, mudando o cabelo, os murmúrios sombrios
sobre “as coisas que eu vi, as coisas que sei”. Alex parecia
tão grata por Nicole e Jill estarem lhe dando atenção, tão
animada para se conectar a elas. Era como se ela só
quisesse fazer parte de alguma coisa. Algo na obviedade
daquela gratidão deixou Nicole desconfortável de início. Mas
lembrou-se de que, ao fim da noite, se sentira não só unida
àquela mulher intensa e sardenta a quem nunca tinha dado
atenção antes, mas até vagamente defensora dela. Se o
que dizia era verdade, Alex tinha sido usada como bode
expiatório e agora estava vivendo a maternidade solo, sem
emprego à vista depois do fim da licença-maternidade.
Talvez estivesse tão envolvida com a filha que já não se
importasse mais; talvez já tivesse encontrado outro
emprego. Ou talvez Alex tivesse encontrado uma forma de
seguir com seu plano sozinha.
Ben continuou citando a crítica de Rayner, e Nicole se
lembrou da única vez em que havia sido demitida, quando
ainda era uma estudante tentando ganhar um extra em
uma lanchonetezinha pretensiosa em Bristol. O dono a
chamara no estoque um dia, citando sua “conduta” como o
principal motivo para a demissão, além do fato de que ela
ficava “passando a mão no cabelo” enquanto servia os
clientes, e Nicole só havia assentido, pegado o dinheiro
devido e, antes de sair, olhado por cima do ombro para
lançar um “Se pronuncia ciabatta, Lee, não siabarta”.
Quando o rosto gordo e comum do dono surgiu em sua
mente, Nicole se surpreendeu ao perceber que ainda o
odiava.
— É óbvio que o Oscar escolheu Westwick para a merda
do comercial. Não te falei que ele ia fazer isso?
— Eles responderam? — Nicole pegou outra pimenta
Padrón. — Não me surpreende. Claro que ele ia escolher
alguém tão metido quanto ele. Azar o dele. Se fosse eu,
uma olhada no seu portfólio já bastaria para te contratar.
Ficou incrível depois que a gente repaginou.
Ben pestanejou.
— Não me diz que você não mandou o que a gente
atualizou.
— Eu só achei que se ele realmente me quisesse para o
trabalho…
— Ben.
Nicole se sentiu afundar, cansada de ser o motor sempre
por trás do marido oscilante.
— Deixa pra lá, tá? Só deixa pra lá.
Comeram em silêncio por alguns minutos, tirando
camarões de palitinhos de madeira e cuspindo as cascas na
palma da mão discretamente, ambos dolorosamente cientes
de como deveriam parecer tensos e tristes comparados aos
casais que flertavam e se divertiam nos bares no entorno.
— Quem está com a Chlo?
— Susanna.
— Acha que as duas vão brincar de hospital de novo?
Será que era por isso que os casais arranjavam cachorros
depois que os filhos saíam de casa? Para ter algo com que
preencher o silêncio?
— Provavelmente.
— Me desculpa. — Ela se inclinou para ele. — As coisas
estão meio confusas no trabalho e está todo mundo
estressado.
— Como assim, confusas?
— Jill e Paul estão putos com Jamie depois daquele
desastre do Minerva que te contei. Os clientes desistiram.
— Mas isso não tem nada a ver com você, tem? Foi culpa
do Jamie.
Nicole não gostava de ouvir o nome dele saindo da boca
do marido, mas não conseguira se conter e havia contado a
Ben a situação.
— Foi, mas agora todo mundo está sendo pressionado
para compensar.
Embora Jamie fosse a última pessoa de quem Nicole
quisesse falar, ela se pegou fazendo um relatório completo
das burradas recentes dele — e de como ele se safara com
facilidade de todas.
— Posso dizer uma coisa? — Ben franziu a testa. — Parece
que você está passando tempo demais preocupada com
Jamie Lawrence.
Nicole baixou a almôndega espetada no garfo de volta
para o prato.
— Não estou, não.
— Está, sim.
— Porque só homens se safam dessas coisas. E porque
toda vez que ele não sofre nenhuma consequência —
continuou, consciente de estar repetindo as palavras de
Alex —, sabe que pode levar as coisas ainda mais longe.
— Mas pelo que você me falou, não parece que ele está
se safando dessa.
Nicole encarou o marido sem vê-lo. Ela sentira certo alívio
depois daquela conversa bêbada no bar, como se contar
àquelas mulheres o que tinha passado, ouvir as
experiências delas e decidir que Jamie deveria ser punido
por suas ações tivessem sido o suficiente para acalmar sua
raiva. Mas vê-lo escapar das consequências da merda do
Minerva só reacendera sua raiva. E de novo ao ouvir a
conversa no banheiro feminino. “É bom você saber que eu
não aceito não como resposta”, ele havia dito para a tal de
Sophia. E Nicole sabia bem demais que isso era verdade.
Depois de tirar os pratos, o garçom permaneceu por
perto.
— Vocês gostariam de ver o cardápio de sobremesas?
Eles responderam ao mesmo tempo:
— Por que não?
— Não, obrigada.
O que Nicole queria naquele momento, o que precisava
mais do que tudo, era saber se era mesmo Alex quem
estava por trás da história do Minerva. De jeito nenhum ela
esperaria que o fim de semana acabasse até segunda para
descobrir, estava fora de questão. Porque, se Alex de
alguma forma tinha colocado o plano em prática, não
estava funcionando. E Nicole agora sabia que precisava
desesperadamente que funcionasse.
— Ben, eu tenho que ir.
Ela havia soltado aquelas palavras sem pensar, mas,
assim que as ouviu, sabia o que precisava fazer.
— Como assim?
Ela se concentrou de novo nele: Ben, que recortara a
crítica do restaurante meses atrás e se esforçara para
colocá-los na lista de espera. Ben, que ficava ainda mais
sexy no verão, quando deixava a barba crescer — algo de
que ela se esquecia e voltava a perceber toda vez que a
estação começava. Ben, que sempre pedia comida demais e
gostava de transformar os jantares deles em maratonas de
quatro horas.
— Eu esqueci de mandar um arquivo… e é urgente. Tenho
que dar um pulinho no escritório, mas vai ser coisa rápida.
— O quê? Por que você não faz isso daqui?
Ele indicou o iPhone que ficava sempre ao lado do prato
de Nicole durante as refeições — por mais que Ben odiasse.
— Não está no celular. O arquivo ficou na área de
trabalho.
Sabendo que aquilo não fazia sentido e que parecia uma
mentira porque era mentira, Nicole passou um dos braços
pela manga do casaco e pegou a bolsa com a outra mão.
— Desculpa, Ben. Eu sou uma idiota. Mas o jantar foi
ótimo. Rayner tinha razão. — Isso não ia funcionar. — Você
não queria sobremesa, queria?
— Talvez quisesse. — Ben a olhava de cara feia, como se
ela tivesse perdido a cabeça. — Você vai mesmo voltar pro
escritório agora?
— Tenho que ir. Desculpa. Aqui. — Ela colocou o cartão de
crédito em cima da mesa.
— Ah, pelo amor de Deus. Eu posso pagar.
— Com o quê? — ela se perguntou, a impaciência
deixando-a cruel. Mas o táxi para o qual gesticulara com
agitação já estava encostando, e ela puxou o rosto de Ben,
furioso, para um beijo. — Só preciso consertar uma coisinha.
Ou então vou ficar pirando o fim de semana todo. Chego em
casa em uma hora, no máximo.
Até encontrar o endereço de que precisava na intranet da
BWL e chegar em Acton já era quase dez. A rua de Alex era
meio assustadora, com um grupinho de rapazes de moletom
na esquina claramente no meio de alguma negociação, e
Nicole teve que pedir para o taxista dar a ré quando eles
passaram direto pelo número da casa.
Ela hesitou por um segundo antes de tocar a campainha
de cima sem identificação. Mas estava lá e precisava de
esclarecimentos. Ao ouvir uma janela se abrir no segundo
andar, Nicole deu dois passos para trás, se forçando a sorrir
quando viu o rosto cansado de Alex inclinando-se para fora.
CAPÍTULO 17
ALEX
T
ranquilizada pelo som do motorzinho da bomba de
leite como uma canção de ninar, Alex andou sem
rumo pelos três cômodos do apartamento,
mordiscando um biscoito de chocolate. Quando os dois
saquinhos estivessem cheios, ela teria dez — todos datados
com canetinha hidrocor — alinhados na porta da geladeira,
e pensar nisso a enchia de satisfação.
Aquele período do dia, entre nove e dez da noite, quando
Alex finalmente caía na cama, sabendo que teria que
levantar uma hora e meia depois, era o único em que se
sentia ela mesma. Às vezes era o único momento em que
ela conseguia aproveitar Katie também. Deitadinha no
berço, puxando o ar em respirações imperceptivelmente
rasas, que nas primeiras semanas a deixavam em pânico, a
filha parecia em paz, livre da tirania dos desejos constantes
e insaciáveis.
Satisfeita de que o rosto de Katie estivesse livre de
qualquer roupa de cama — o Pais de primeira viagem
exigira que “pelúcias, encostos ou posicionadores devem
ser retirados antes de dormir” —, Alex se sentou à mesa e,
ainda presa à bomba, deu um duplo clique no portal da BWL.
Desde aquela tarde com Maya, verificar os movimentos
cotidianos de Jamie havia se tornado um ritual noturno pelo
qual ela ansiava.
Naquela noite, os cantos de sua boca se ergueram tão de
leve que mal chegou a formar um sorriso ao perceber o tom
tenso dos e-mails de Jill para o sócio cada vez mais
negligente. “Realmente precisamos dos três sócios
presentes nas reuniões do financeiro, J. Essa já estava
marcada há semanas.” Todos aqueles meses trabalhando
para Jamie ensinaram a Alex que ele não respondia bem a
broncas. E pela resposta dele — “Eu me atrasei vinte
minutos, Jill. Tenho quase certeza de que não perdi nada”
—, ele estava bem distante de arrependido quanto ela
esperava.
Jill claramente pensou que tinha passado dos limites
aquela noite no pub e se arrependeu de ter falado de forma
tão aberta. Ela precisava entender que não estava
exagerando, que sua reação havia sido cem por cento
apropriada. E naquele momento Jill devia estar fumegando.
Paul, no entanto, parecia quase inabalado pelo
comportamento de Jamie. Tirando um e-mail levemente
crítico depois da questão Minerva, suas mensagens
continuavam agradáveis como sempre. Enquanto a bomba
de leite zumbia, Alex checou o restante dos e-mails do dia;
ela saberia o que estava procurando quando encontrasse.
Relia um e-mail furioso de Maya, que encaminhara a
mensagem da Greenleaf lamentando não poder oferecer
uma vaga a Christel — Quando os pais deixam de
comparecer à entrevista sem aviso prévio, precisamos
aceitar que a inscrição de seu(ua) filho(a) na Greenleaf não
é prioridade —, sentindo uma pontada de arrependimento
por atrapalhar a vida da mulher cuja gentileza naquela
semana a desarmou, quando o interfone tocou.
Pronta para gritar para o entregador que ele tinha que
tocar nos viciados-em-delivery do apartamento 3, Alex
envolveu os seios motorizados com um cardigã, abriu a
janela e olhou para baixo, encontrando uma mulher parada
em frente à porta.
— Nicole?
Com os olhos vidrados, um brilho de suor na testa, que
refletia o holofote de segurança do prédio, e algo cintilante
nos lábios, sua ex-colega parecia ter bebido.
— Desculpa, eu sei que está tarde.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta saiu mais
ríspida do que era sua intenção. — Espera aí.
Arrancando as faixas de velcro do peito e xingando
quando o leite escorreu pela barriga, Alex abotoou o casaco
e correu para o térreo.
— Você quer entrar? — De novo, ela percebeu quão
grossa parecia. Mas ver aquela mulher inteligente e
levemente distante que só conhecia em um contexto
profissional parada ali na sua porta a deixou confusa. Será
que Jamie tinha sido demitido? Não. Ela saberia se tivesse
sido. Será que Nicole tinha sido demitida, então? Será que
ele tinha feito algo com ela? — Melhor você entrar.
Foi só quando elas chegaram ao topo das escadas que
Alex parou para pensar em como o apartamento devia
parecer para um estranho. Nos dois primeiros meses,
quando a agente comunitária de saúde vinha visitá-la com
alguma regularidade, ela havia tentado manter as coisas
arrumadas, mas nas últimas semanas o cesto de roupa suja
tinha desaparecido sob a montanha de lençóis para lavar e
Alex já estava chutando pilhas de roupas usadas para os
cantos. Os restos de um queijo quente que havia preparado
naquela manhã, morrendo de fome depois de tirar o leite,
ainda estavam em um prato no sofá, ao lado de uma pilha
de correspondência fechada e propagandas. Na mesinha,
entre os cabos embolados da bomba, as duas garrafas de
leite do peito pela metade.
— Só me deixa tirar isso da frente — murmurou ela,
catando a engenhoca humilhante e levando tudo para a
cozinha. — Posso, hum, te oferecer um chá?
— Por favor. — Nicole pegou o prato com os restos do
sanduíche e a seguiu. — Ou… algo mais forte?
— Não precisa sussurrar, Katie está derrubada.
— Ah.
No freezer, Alex achou uma garrafa velha de vodca — um
presente do penúltimo Natal de que ela havia se esquecido.
— Desculpa. — Por que continuava se desculpando? — Só
tenho isso. E não sei se vodca de canela vai ser bom, não.
— Qualquer coisa serve.
— Não tem gelo.
— Tudo bem.
— Vamos…?
Alex indicou a sala, e as duas se sentaram nos extremos
do sofá, parecendo desconfortáveis.
— É útil ter um traficante aqui na porta.
Se o nervosismo de Nicole era uma admissão de
arrependimento por ter ficado em silêncio, Alex ia deixá-la
ansiosa por mais um tempinho.
— Né? — Ela deu uma olhada para a janela. — Ele deve
se dar muito bem. Está aqui toda noite vendendo sabe Deus
o quê.
— Ritalina. — Nicole pigarreou. — É o que os jovens
curtem hoje em dia, parece. A “droga dos estudos”, eles
chamam. Te ajuda a virar a noite estudando, te mantém
acordado.
— Não preciso de ajuda com isso no momento.
— Não mesmo. Claro, na minha época a gente fazia isso
com comprimidos de cafeína e um litro de Coca-Cola.
Alex assentiu e esperou.
— Olha, eu sei que isso é estranho e que a gente não se
falou desde a despedida da Joyce…
Ela teve a decência de parecer envergonhada. Porque
aquela noite trouxera um senso de proximidade. Não tinha
sido imaginação de Alex. Elas fizeram um plano, trocaram
telefones… e nada, por quase duas semanas. Mas Nicole
parecia querer desesperadamente ser perdoada.
— A gente tinha bebido muito. — Alex deu de ombros. —
E olha, não é como se a gente…
— Bom, não. Mas eu deveria ter perguntado, ter visto
como você estava.
Uma pausa.
— Então foi por isso que você veio? Para ver como eu
estava?
— Não. — Nicole tomou um gole de vodca e estremeceu.
— Esquisito. Mas não é ruim. Não, eu vim porque as coisas
estão… bem, estranhas no trabalho desde aquela noite.
Jamie… — Sua boca se crispou de leve ao falar o nome dele.
— Bom, ele estragou uma venda superimportante.
Alex franziu a testa, adorando a sensação de estar mais
no controle que Nicole.
— Que venda?
— Lembra daquela propriedade, Minerva? Perto de
Gunnersbury? É uma longa história, mas os irmãos
O’Ceallaigh iam fazer uma oferta e ele estragou a venda.
Sabendo que Nicole estava atenta às suas reações, Alex
tomou um gole da bebida mas a cuspiu no copo
imediatamente.
— Isso é nojento. Tem gosto de talco. Esse cheiro… fica
em tudo. Você já deve ter esquecido. Bom, continua. O que
houve com a propriedade?
— A Lista D, que discutimos naquela noite. De algum jeito
ela entrou no meio dos documentos da apresentação. — Ela
parou de falar, com os olhos ainda fixos em Alex. — E desde
então outras coisas aconteceram. Coisas pequenas. Ele está
se confundindo com horários e datas. Aparecendo atrasado
em reuniões. E eu sei que Jamie pode ser arrogante e
preguiçoso às vezes, mas…
— Mas?
— Mas não acho que Jill queira afundar o barco, não
importa o que tenha sido dito naquela noite…
— O que nós dissemos naquela noite.
— Tá. De ele aprender uma lição.
— Ah, eu me lembro do que a gente disse. Foi você e Jill
que parecem ter esquecido totalmente. O que não é
surpresa para ninguém, considerando que as duas têm
ótimos empregos que gostariam de manter.
Nicole balançou a cabeça.
— Eu não esqueci de nada. Não consegui — continuou, as
palavras jorrando. — Olha, eu não posso falar por Jill…
inclusive, mal troquei duas palavras com ela desde aquela
noite, e você sabe como ela sempre foi próxima do Jamie.
Mas eu estava jantando com o meu marido e comecei a
contar como as coisas estão tensas no escritório, e Alex… —
Nicole se inclinou para ela, sua expressão indo de
preocupada para curiosa. — O que aconteceu com o
Minerva e todo o resto… Foi você, não foi?
Alex secou uma gota de água na borda do copo, mas não
respondeu.
— Nossa, Alex. Eu não queria… Não chora.
Até Nicole dizer aquilo, Alex nem tinha percebido que
estava chorando. Mas a sensação era boa. Porque ela não
havia chorado desde o nascimento de Katie, e aquelas
foram lágrimas de esforço, não de tristeza ou sequer de dor,
por causa da anestesia. E quando abriu a porta do
apartamento no dia seguinte, o peso da bebê e da
cadeirinha fisgando no seu útero recém-implodido,
enquanto as palavras de um artigo sensacionalista do Daily
Mail — “Carregar recém-nascidos em assentos de carro
coloca novas mães em risco de prolapso” — zumbiam em
seus ouvidos, tudo o que ela queria fazer era se enrolar na
cama e chorar. Ela não tinha ninguém mais para ampará-la,
tinha? E a pessoa que ela mais queria estava a quilômetros
de distância, em Portugal, ainda pedindo permissão ao
marido para visitá-la. Não houve tempo para chorar, porém,
porque os lençóis ainda estavam manchados de um rosa
marmorizado de quando sua bolsa tinha estourado, e ao
puxá-los, descobrindo que o colchão também estava
encharcado, o desejo de chorar de Alex foi substituído pela
raiva. Nada disso… nada disso poderia ser desfeito.
Das profundezas da bolsa, Nicole tirou um lenço e o
entregou a ela.
— Eu mexi em alguns documentos, troquei algumas datas
e horários. O Minerva… foi tão fácil. Jamie nunca repassa os
arquivos das apresentações. Eu sempre colocava tudo na
mesa dele, pedindo para que ele desse uma última olhada,
mas… — Ele sempre se safava sem trabalhar, sem se
responsabilizar. — Então achei que, se talvez Jill e Paul
vissem como ele é arrogante, como faz as próprias regras
quando e como quer, que aí…
— Aí o quê? — Nicole insistiu, sem parecer surpresa ou
irritada. — Que aí ele seria demitido? Nós te contamos sobre
a Lista D em segredo. Não era para você usar.
Um grito agudo como uma sirene atravessou o
apartamento.
— Merda. — Alex baixou o copo, limpando o nariz na
manga do casaco. — Ela acordou.
— Xiu… — Nicole ergueu o indicador. — Espera.
As duas ficaram em silêncio por um minuto. Silêncio.
— Se você sempre sair correndo, ela nunca vai aprender a
se acalmar sozinha.
Alex abriu um meio sorriso choroso.
— Não imaginava que você seria uma mãezona tão
centrada.
— Por que todo mundo diz isso? Talvez eu não seja, mas
meu Deus, amo minha filha mais do que consigo aguentar
na maior parte do tempo. Só que meu marido… — Ela deu
de ombros. — Ele é mais participativo do que eu. É melhor
nisso do que eu. E tudo isso, tudo que você está passando,
parece que aconteceu faz tanto tempo. É incrível como você
esquece rápido. Mas de algumas coisas você acaba
lembrando. — Com alguns drinques, Nicole já parecia mais
calorosa. — Me escuta — continuou, baixinho. — Não vou
fingir que não fiquei feliz de ver Jamie se ferrar. E depois do
que ele te fez, eu entendo por que você quer que ele saiba
qual a sensação de ser culpado por algo que não fez. Mas
como você conseguiu? Você não… hackeou o sistema, né?
Alex encarou Nicole, mas permaneceu quieta.
— Mas isso não é crime?
— Talvez — admitiu Alex. Aquilo era algo que ela
deliberadamente evitava pensar. — Ele mudou a senha da
intranet, mas não foi difícil adivinhar a nova. E eu só fiz isso
porque ele mentiu. Ele mentiu sobre tudo. Eu não fui
desligada, fui demitida por “erro grave”. E como diabos vou
encontrar outro emprego agora? Como é que vou pagar…
Ela pensou no tremor na voz da mãe quando ligou mais
cedo para avisar que “talvez eu precise de um pouco mais
de tempo — naquele empréstimo”. O sussurro confirmou
quão importante era que o pai dela nunca descobrisse sobre
o empréstimo, e como só a possibilidade de ele descobrir
sobre aquele acordo entre as duas poderia causar o tipo de
cena que Alex forçara a própria memória a bloquear,
sabendo que nunca seria capaz de fazer isso enquanto a
mãe e o pai morassem sob o mesmo teto.
— Sinto muito. — Nicole apertou os lábios. — Mas isso
quer dizer que você acessou os e-mails dele também?
Alex decidiu ir com cuidado.
— Só uma vez.
— Recentemente?
— Dei uma olhada ontem à noite.
Algo indecifrável surgiu no rosto de Nicole, que abriu a
boca como se para fazer uma pergunta antes de voltar a
fechá-la.
— Eu sei que não deveria ter entrado, e juro que não vou
entrar de novo. Só queria ver se o Minerva tinha…
— Saído de acordo com o plano? Bom, sim. Mas você não
pode voltar a fazer isso. É sério. Se não por todo o resto,
porque você vai ser pega.
— Não vou. Mas é tão… difícil. — A palavra saiu devagar,
propositada e cheia de ódio. — Eu olho para ele e para a
família perfeita dele e penso em como a vida deles é fácil.
Se elas não estivessem tão próximas, talvez Alex não
teria notado Nicole se encolher.
— Você conhece a Maya?
Nicole balançou a cabeça.
— Só a vi uma vez, de longe, no aniversário da empresa,
sabe? E ela parecia… não sei. A gente não conversou. E
você?
— Não. — Um especialista em linguagem corporal saberia
que o aceno de cabeça veio um milissegundo tarde demais.
— A gente se falava pelo telefone às vezes — continuou
Alex, omitindo o fato de que haviam conversado na tarde
anterior… para marcar outra tarde preguiçosa na casa de
Maya e Jamie. — Na verdade, ela parece…
— Legal?
— É. Bem legal, mesmo.
Seria por isso que Alex tinha concordado em sair com
Maya de novo? Seria tão simples assim? Ou seria algo mais
maléfico: mantenha seus inimigos perto? Até a próxima vez,
ela não teria certeza.
— Quer dizer, eu sei que eles estão longe de ser o casal
perfeito. Como ele se comportou com você… e você não
deve ter sido a única.
Nicole desviou o olhar.
— Não.
— Mas eles fingem bem.
Pegando o iPhone, Alex cutucou a tela até uma imagem
de Jamie e Maya aparecer.
— Olha só para eles. Olha só a vida perfeita de catálogo
escandinavo.
Queria fazer Nicole rir, ou pelo menos sorrir, tentando
aliviar o peso daquela conversa, mas ao erguer os olhos
percebeu que Nicole não parecia achar graça. Ela parecia
nauseada.
— Por que é que você está vendo isso?
— É o Instagram do Jamie. E não é fechado. Olha, dá uma
olhada nesse post do fim de semana passado.
— Não. — Nicole afastou o celular. — Não quero ver isso.
Essas coisas todas, a vida dele, não é da nossa conta. E eu
não tenho nada contra a Maya. Ela não tem culpa do que o
marido apronta.
— O marido apronta e muito, pode acreditar.
— Como assim?
— Que até quando está de castigo por fazer várias
besteiras, e essas são só as que a BWL descobriu, até quando
deveria manter a cabeça baixa e trabalhar, Jamie encontra
tempo para ficar dando em cima das lindas funcionárias
novas.
Nicole parecia estar prendendo a respiração, e Alex
percebeu a própria insensibilidade.
— Desculpa. O que ele fez com você…
— Esquece isso. De quem você está falando?
— Tem uma garota nova no escritório, Sophia alguma
coisa? Ele está trocando e-mails com ela. Acho que até
foram beber juntos, e parece que…
Mas sua convidada se levantou de repente.
— Merda, já é mais de meia-noite. Olha, desculpa por
aparecer aqui tão tarde. Eu tenho que ir, de verdade. Falei
para o meu marido que ia direto para casa. — Nicole olhava
de um lado para o outro com aflição. — Cadê meu casaco?
— Na cozinha.
Mas quando ela não se mexeu, Alex adivinhou que havia
mais. Algo que Nicole nunca havia dito em voz alta. E ela
tinha quase certeza do que se tratava.
— Não foi só assédio, foi?
Um segundo se passou. Nicole voltou a se sentar no sofá.
— Vou precisar de mais uma dose.
CAPÍTULO 18
JILL
NICOLE
ALEX
JILL
NICOLE
M
aldita Jill. Claro que ela tinha que estar bem ali
quando a mensagem apitou: Old Ship às 4?
Mas Nicole não achava que ela tivesse visto;
tinha certeza que não.
Quantas vezes tinha dito a Jamie para não escrever
mensagens no campo do assunto do e-mail? Não mandar e-
mails e ponto-final? Porém, tendo sempre saído impune,
Jamie parecia acreditar que era intocável.
Ela não tinha nenhum problema com Jill. Na verdade,
Nicole sempre gostou muito da fundadora da empresa,
assim como de tudo que ela representava: sem filhos, mas
aparentemente feliz; ambiciosa e realizada pelo trabalho de
uma maneira que as mulheres não deveriam ser ou não era
permitido que fossem. Mas, depois do que ela
precipitadamente contou a ela e — pior ainda — a Alex,
Nicole deu a partida em algo que agora sentia que não
conseguiria parar. E, no entanto, não tinha tido notícias de
Alex desde sua visita tarde da noite. Talvez com o bebê —
mesmo depois do que Nicole lhe dissera —, ela decidira
deixar Jamie em paz?
Enquanto corria pela King Street em direção ao rio,
dividida entre o desejo de fazer Jamie esperar e a
necessidade de descobrir do que aquele encontro se
tratava, Nicole se perguntou se a carta de Jill poderia ser
verdadeira. Se fosse, não era possível que Jamie tivesse
motivos para se preocupar? Afinal, Jill estava com a cabeça
cheia. No entanto, dado o estado preocupante de Alex
quando Nicole a viu naquele apartamento imundo, poderia
muito bem ter sido coisa dela. Mais uma vez, ela sentiu
aquele frio na barriga, o frio que você sente na infância
segundos antes de o vaso ou a janela se espatifar, quando a
bola ainda estava em movimento. Ela que tinha colocado a
bola em movimento, primeiro no pub e depois naquela noite
no apartamento de Alex.
Era o primeiro dia do que os jornais estavam chamando
de “nossa onda de calor de Honolulu”. Atividades esportivas
escolares estavam sendo canceladas e jardineiros eram
encorajados a “amar seus gramados marrons” em uma
tentativa de economizar água. E, embora ainda não tivesse
alcançado os quarenta graus previstos naquele fim de
semana, a ausência de qualquer tipo de vento impunha
uma curiosa estase nas ruas de Hammersmith, como se
toda a vizinhança participasse de um daqueles desafios dos
manequins viralizados alguns anos antes. Do lado de fora
dos cafés vazios e das lojinhas de uma libra, os funcionários
se debruçavam imóveis e silenciosos nos balcões das lojas,
e até mesmo os alunos que esperavam nos pontos de
ônibus pareciam anormalmente abatidos.
Nicole, em comparação, se sentia mais viva do que há
meses, como se todo o seu sistema tivesse pegado no
tranco. Uma velha canção do Oasis que ela havia escutado
em looping durante a faculdade tocava no último volume
em uma loja de celulares e, ao começar o refrão, ela sentiu
a beleza da melodia de novo. Talvez fosse por isso que as
pessoas tinham casos? Aquela sensação da vida
acontecendo de novo, uma injeção de juventude. O que
Nicole percebeu de repente, à medida que o eco de seus
saltos na passagem subterrânea de ladrilhos aumentava e
ela emergia piscando para a luz da margem do rio, era que
não estava pronta para voltar ao torpor.
Passando um dedo sob cada olho, onde seu rímel teria
escorrido nas rugas, ela ajustou sua expressão para parecer
menos ansiosa. Fora do Old Ship, a parte de trás
parcialmente obscurecida da cabeça de um homem acabou
não sendo a de Jamie, e ela tentou em vão se lembrar da
cor da camisa que ele estava usando no escritório mais
cedo.
— Nic!
Lá estava ele, um pouco mais adiante, encostado na
mureta baixa do rio sobre a qual sua cerveja estava
apoiada, o cigarro na mão.
— Você voltou a fumar? — perguntou ela quando os dois
estavam perto o suficiente para se tocar.
— Mais ou menos. Maya encontrou um maço que nem era
meu outro dia, deixado pelo cara do ar-condicionado ou sei
lá quem, e surtou. A ironia é que eu não tocava em um
cigarro há meses, mas se as pessoas vão pensar o pior de
você de qualquer maneira…
Embora seu coração tenha afundado diante da menção
imediata de Maya, Nicole ficou satisfeita. Obviamente ele
estava com problemas em casa, e um Jamie fumante era
um Jamie no mau caminho em todos os sentidos. Só uma
coisa — a ideia de ela ser algo que ele fazia quando estava
se comportando mal, um mau hábito — a irritava.
— Por que estou aqui?
Ela tomou o cigarro da mão dele e deu uma tragada, a
atitude despertando vagas lembranças do exibicionismo da
adolescência: corações perfurados por flechas desenhados
com esferográfica em coxas lisas, gargalhadas altas o
suficiente para os meninos ouvirem. E por baixo de tudo, a
angústia adolescente.
— Esqueci como cigarro de verdade é bom.
— É mesmo? — Jamie chupou a espuma de cerveja do
lábio superior e puxou-a para si.
— Ei. — Protegendo os olhos com a mão, ela examinou os
arredores. — Qualquer um pode nos ver.
— Eu dei uma olhada.
— Ah, é?
— Relaxa.
— Eu vou, assim que você me pagar uma bebida.
— Foda-se a bebida.
— Que encantador.
A centímetros de distância, eles se olharam, e Nicole se
perguntou como seria conhecer aquele rosto, com todas as
sardas, os sulcos e as rugas, como conhecia o de Ben;
aceitar que faria parte de sua vida diária. Vê-lo envelhecer.
— Jamie, por que estou aqui?
— Por quê? Porque não consigo parar de pensar em nós
dois… no teatro. — Nicole sentiu uma contração na parte
inferior do abdômen. Odiava o poder que ele tinha sobre
seu corpo, mesmo quando não havia força, nem mesmo um
contato, apenas palavras. — Porque deve haver um motivo
pelo qual não conseguimos ficar longe um do outro.
Nicole olhou para além dele, para o rio. Uma frota de
remadores passou rapidamente aos comandos do timoneiro.
— Eu costumava pensar assim. Mas agora…
— Agora o quê?
Ela deu de ombros.
— Agora sei que é só um jogo para você. Porque é, não é?
— Não! — Os dedos dele apertaram o tecido verde do seu
vestido, puxando-a para mais perto, entre as pernas dele. E,
quando estava com raiva ou discordava de algo, Jamie
parecia tão jovem. Ela tinha se esquecido disso. — Não é
verdade.
— Mas você ama sua esposa.
Dizer aquilo em voz alta não foi tão doloroso quanto
achava que seria. Na verdade, parecia bastante adulto,
civilizado. Só que ela não deveria tocá-lo enquanto dizia
isso. Não poderia nem olhar para ele. Nicole se moveu para
ficar ao lado dele na parede, de onde contemplou as
profundezas tenebrosas do Tâmisa.
— Eu realmente acho que você ainda ama Maya. E sei
que você ama suas filhas. Sei que ficar longe delas… Bem,
posso imaginar o que isso faria com você. Não é a mesma
coisa para mim, para as mulheres. Eu entendo. Eu poderia
deixar Ben e ainda ficar com Chloe. Ainda acordar com ela
todos os dias e colocá-la na cama todas as noites. — Mesmo
enquanto dizia essas palavras, ela se perguntava como isso
funcionaria, lembrando-se da testa franzida da filha nas
raras ocasiões em que precisou levá-la para longe do pai e
tentando imaginar como seria dizer a ela “não se preocupe,
você vai ver o papai de novo no próximo fim de semana”. —
Eu estive pensando desde… Bem, desde aquela tarde no
Vale Theatre. E achei que tivesse superado você. Pensei
mesmo. Mas voltar ao jeito que éramos… Não posso fazer
isso. Não depois do que aconteceu da última vez. — Ela
balançou a cabeça. — Não é o que eu quero. Não estou
mais com raiva, mas…
— Você sabe que vai completar dois anos — ele se
inclinou e beijou seu pescoço — na próxima quarta-feira.
— Não faça isso! — Ela se virou, com raiva dele e de si
mesma. — Não finja que isso é mais do que um caso. Você e
eu já tivemos casos antes; não precisamos fingir.
— Não, Nic. Eu quero que isto seja outra coisa. Quero dar
uma chance para a gente. Não consigo dormir, não consigo
funcionar direito. É como se minha mente estivesse
zumbindo, zumbindo…
Ela tinha que admitir que havia algo de frenético em seu
comportamento: suas palavras se embolando e…
— Jamie, você está tremendo. Quantos cafés você tomou
hoje?
— Porque dessa vez estou pronto. As coisas lá em casa
simplesmente não estão dando certo comigo e a Maya. Para
ser sincero, sinto que não faço nada direito, é como se ela
estivesse sempre tentando me criticar ou me pegar no
flagra. — Ele puxou outro cigarro do maço. — Eu perdi
minha aliança outro dia. Literalmente desapareceu. E Maya
ficou toda “Eu disse que isso ia acontecer!” e “Talvez isso
esteja nos dizendo algo”. Não tenho tempo para esse tipo
de superstição de merda.
— Então isso é sobre ela? — A boca de Nicole ficou rígida,
o ressentimento a deixando feia por fora e por dentro. —
Sua querida e doce esposa não está prestando atenção o
suficiente em você? Deixe-me perguntar uma coisa, Jamie:
algum dia você terá atenção suficiente?
Pego de surpresa pelo seu tom, ele a olhou.
— Quando você ficou tão amarga?
— Ah, não sei. Em algum momento nos últimos dois anos.
Por alguns instantes, nenhum deles falou.
— Ben quer que eu me demita. Que eu procure outro
emprego.
— O quê?
— Ele percebe que estou infeliz. Não sabe por quê, acha
que é o trabalho, mas talvez ele esteja certo.
— Não. — Jamie balançou a cabeça. — Não. Você está
infeliz por causa dele, não do trabalho ou de mim. E você
pode tentar pedir demissão se quiser, mas eu não vou
deixar. Você não vai ter uma rescisão. Não vou te dar nem
uma carta de referência, e vou garantir que você entre na
lista de restrições de todas as agências imobiliárias de
Londres.
— Jamie…
— Não.
Com firmeza, ele a ergueu contra a parede. E, quando se
colocou entre as pernas dela, Nicole as sentiu envolverem a
cintura dele de uma maneira instintiva, uma maneira a qual
ela sabia ser velha demais, mas não se importou. Eles se
beijaram e foi tão profundo, íntimo e satisfatório quanto
sexo. Ela se ouviu gemer.
— Eu te amo, Nic. E quero ficar com você. Você nunca vai
ser feliz com Ben, não é? Você sabe disso agora. E quanto
mais cedo puder seguir com sua vida… comigo, mais cedo
todos podem começar a se recuperar.
— Olha só você, todo zen.
Jamie não sorriu.
— É verdade.
Uma lágrima deslizou em uma vertical perfeita por baixo
dos óculos de sol dela, e ele a enxugou. Nicole nunca se
permitiu chorar na frente de Jamie antes, e parecia
significativo que agora conseguisse.
— Nic. — Ele empurrou seus óculos até a linha do cabelo
e segurou seu queixo com a mão trêmula.
— Você não está bem, está?
— Não. Olhe para mim. Eu não sei o que está
acontecendo comigo. Nos últimos dias, não consegui me
concentrar em nada. Estou nervoso, não consigo comer e
eu… Nic, não estar com você está me matando. Mas, sim,
dessa vez estou pronto.
— Eu não acredito em você.
— Por causa de antes? Maya estava grávida, pelo amor de
Deus. Você tem que entender que não era a hora certa.
Ela assentiu minimamente com a cabeça.
— Mas preciso saber que você está falando sério sobre
contar a Ben?
Do nada, uma imagem lhe veio à mente: Ben segurando
uma Chloe chorosa em seu ombro no Hyde Park enquanto o
balão de hélio da Patrulha Canina subia cada vez mais alto
no céu. “Pense em todos os outros balões que foram para o
céu dos balões”, ele murmurou. “Então ele não vai ficar
sozinho.” E ao ouvir as palavras “céu dos balões”, as
lágrimas de Chloe apenas se intensificaram.
— Não fui eu quem quebrei minha promessa da última
vez.
— Não. — Ele assentiu com a cabeça. — Mas não me
lembro de você ter prometido nada.
Nicole sabia o que ele estava fazendo: tentando induzi-la
a dividir a responsabilidade pelo que acontecera — ou
deixara de acontecer — da última vez.
— Você realmente está dizendo que não confia em mim
para contar?
— Como posso ter certeza de que você vai fazer isso?
— Jamie…
— Não, quer dizer, como qualquer um de nós pode saber?
— Ele tocou sua cerveja, pensativo. — Mas e se houvesse
uma maneira de nós dois termos certeza? Uma maneira de
contarmos ao mesmo tempo, até mesmo no mesmo lugar…
— Fazer Maya e Ben nos encontrarem num tipo de terapia
em grupo, você quer dizer?
— É uma ideia — brincou ele, passando o polegar pela
parte interna da coxa dela. — Não, quero dizer que nós
podemos levá-los a algum lugar público: um restaurante
lotado. Mas separadamente. Você reserva sua mesa, eu
reservo a minha, e não podemos sair até ambos termos
contado.
Nicole se desvencilhou.
— Você está falando sério?
— Sim. Veja só: estaríamos passando pela mesma coisa
ao mesmo tempo. E, para nos ajudar a ir adiante,
poderíamos marcar de nos encontrarmos em algum lugar
depois, em um hotel ou qualquer lugar.
Nicole o olhou. Era uma ideia maluca, ensandecida. Mas
também podia ser genial. Porque, por mais que todo o seu
ser se encolhesse diante da ideia de contar a Ben e implodir
sua vida com uma única frase, saber que Jamie estaria lá
também, vê-lo passando pelo mesmo inferno — bem,
poderia dar a ela a coragem de que precisava.
— É uma maluquice. E arriscado.
— Como assim? — Ele tomou um longo gole de cerveja, e
não pela primeira vez ela se perguntou se Jamie sentia as
reverberações de suas palavras e ações da mesma forma
que as outras pessoas.
— Bem, e se Maya me reconhecer?
— Vocês nunca se conheceram.
— Nós estivemos no mesmo lugar duas vezes. — A
precisão era humilhante e ela deliberadamente omitiu a
parte seguinte. — Em dois eventos, uma festa de Natal e
outra coisa. E mulheres…
Jamie ergueu uma sobrancelha.
— Ao contrário de vocês, nós reparamos nas coisas, nas
pessoas, no que está abaixo da superfície.
— Tá. Mas não estou sugerindo que a gente marque em
um lugarzinho intimista. Pensei em um restaurante grande e
barulhento como o Angelini’s — disse ele. Angelini’s era
uma enorme brasserie em Green Park com longos bancos, a
queridinha das subcelebridades e dos homens de negócios
do centro. — E nós especificamos onde queremos nos
sentar, então não estaremos em mesas próximas, mas
podemos pelo menos nos ver do outro lado do restaurante.
Deveria ter sido revoltante, mas o lado de Nicole
aventureiro gostou da ideia. Isso daria a ambos uma data da
qual não poderiam escapar e colocaria um fim ao
sofrimento que ela alimentara por tempo demais. Além
disso, nada poderia ser pior do que o status quo.
— E, a partir dessa noite, nós estaríamos livres?
— Exatamente. Não seria incrível?
Debaixo do vestido, a mão de Jamie subiu até o elástico
da calcinha.
— Imagine — ele estava dizendo — quando nós dois
estivermos livres, todas as coisas que poderíamos fazer? A
gente pode viajar nesse verão. Ir aonde você quiser…
Aquele lugar em Antibes que você vive falando. Qualquer
lugar.
— Vamos para Biarritz.
Ele riu.
— Está bem. Por quê?
— Não sei. Sempre quis ir. Pelo surfe?
Ele jogou a cabeça para trás.
— Você surfa?
— Não.
— Eu também não.
Com as testas juntas, eles riram.
— Nós não sabemos muito um sobre o outro, não é?
E o beijo deles então foi diferente: longo, preguiçoso e
cheio de uma contida alegria mútua com a decisão súbita
de mudança de vida.
— Mas pense em como nos divertiremos descobrindo
tudo?
Fechando os olhos por um segundo, Nicole se permitiu um
momento de pura felicidade. O corpo quente e sólido de
Jamie estava entre suas pernas, o couro de seu cinto
pegajoso contra a parte interna de suas coxas e, até que ela
decidisse soltá-lo, ele era dela.
A risada de uma mulher, estridente de álcool, os
alcançou, e Nicole adivinhou sem olhar que aquela mulher
sem rosto estava com um homem, marido ou amante. Atrás
dela, outra frota de remadores passou pela água.
— Remando! Calma!
O choro de um bebê abafou as últimas palavras do
timoneiro. Soara como “com força”, e ela tentou elaborar
uma piada — o tipo de trocadilho bobo de duplo sentido que
ela e Jamie sempre faziam um para o outro —, mas o choro
do bebê agora estava dolorosamente alto, e, quando Nicole
abriu os olhos, irritada pela interrupção e determinada a
buscar a fonte dela, viu uma mulher parada um pouco longe
no puxadinho verde triste perto do pub. A mulher tinha um
bebê amarrado ao peito e estava olhando diretamente para
ela: Alex.
CAPÍTULO 23
ALEX
– S uaAlex
vagabunda mentirosa.
tinha esperado na passagem subterrânea,
sabendo que Nicole viria atrás dela, e quando ouviu seus
passos desesperados descendo a rampa para o acinzentado
frio abaixo da Great West Road, Alex sentiu uma nova onda
de raiva, mais forte do que a primeira. Saindo da parede
recuada de onde estivera esperando, ela cuspiu as palavras
na cara de Nicole.
Por um momento, as duas apenas se encararam, Nicole
com dificuldade para recuperar o fôlego; Alex ciente, sem
realmente se importar, de que um fio de saliva pendurado
em seu lábio inferior ameaçava cair.
— Jamie deixou para você resolver, não é? — Ainda não
havia sinal dele na passagem subterrânea. — Aquele
covarde de merda.
— Ele não te viu, graças a Deus. Alex, o que você está
fazendo aqui?
— Isso é tudo que você tem a dizer?
Quando pegara um Uber para o Old Ship, Alex não tinha
parado para pensar no que faria quando chegasse lá, muito
menos em como se explicaria. Mas depois de entrar no e-
mail de Jamie pela terceira vez naquele dia e descobrir as
trocas de mensagem com Nicole acontecendo em tempo
real, ela precisava descobrir sobre o que era o encontro. Por
que ela havia concordado? E o que Jamie queria dela?
— Como você sabia que íamos… — Então Nicole
entendeu. — Você está lendo os e-mails dele de novo.
— Claro que estou. Eu nunca parei.
Com as bochechas úmidas e toda desgrenhada, uma
mancha rosa circundando a boca onde o batom borrara com
os beijos, Nicole parecia estar lutando contra uma variedade
de emoções. Pelos olhares rápidos para baixo em direção a
seu peito, Alex percebeu que era nauseante que aquela
cena estivesse se desenrolando na frente de Katie,
esquecida por Alex ainda amarrada a ela, e ainda berrando.
— Sua filha…
— Katie. O nome dela é Katie.
— Bem, Katie está surtando. Ela está com fome?
A preocupação no rosto de Nicole só aumentou ainda
mais a raiva de Alex.
— É sério que você vai me dar um sermão sobre como
cuidar da minha filha? Quando você está mentindo para seu
marido, sua filha e para todo mundo!
— Eu não estou dando sermão. Eu só…
A silhueta de um casal contra a boca branca e brilhante
da passagem subterrânea apareceu, sua risada
descontraída morrendo ao assimilar a cena e passar às
pressas em silêncio.
— Você é só uma mentirosa do caralho, é o que você é.
Você mentiu para mim e para Jill. Então você foi falar
comigo, foi até o meu apartamento e me contou mais
mentiras.
Nicole fechou os olhos.
— O quê? Vocês dois… — Só de dizer aquelas palavras já
fez o estômago de Alex revirar. — Não acabou de acontecer,
não é?
— Não.
— Quanto tempo?
Nicole desviou o olhar.
— Quanto tempo?
— Olha, eu não deveria ter dito o que disse naquela noite
no pub. E depois, quando fui ao seu apartamento, estava
com tanta raiva que não conseguia pensar direito. Mas não
era… — Nicole interrompeu-se e tentou outra vez. — Não
era mentira. Jamie e eu, o que fazemos, como somos um
com o outro… É complicado.
— “Complicado?” — Parecia muito simples pelo que Alex
estava vendo. — Você me disse que ele te estuprou.
— Eu nunca falei isso. — Mas Nicole não estava mais
olhando para ela. — Alex!
Alex seguiu a direção dos olhos de Nicole até a filha, que
estava ameaçando vomitar, a boca em um O agoniado, e
lhe pareceu estranho que não tivesse ouvido Katie até
Nicole apontá-la, desde que se viu paralisada naquele
puxadinho verde surrado perto do rio, imobilizada pela visão
de Jamie e Nicole se agarrando na parede como
adolescentes.
Alex não sabia quanto tempo tinha ficado parada ali, mas
foi o suficiente para absorver a sensualidade selvagem da
risada de Nicole e a familiaridade dos quadris de Jamie
entre suas pernas. Aqueles dois corpos se conheciam bem.
E que Nicole tivesse mentido sobre o assédio e tê-la feito
acreditar em algo ainda pior, que ela pudesse ter se
sentado no sofá de Alex — “Eu disse não; eu pedi para ele
parar” — quando o tempo todo o relacionamento tinha sido
consensual? Não era apenas uma traição; era algo que Alex
não podia, não iria aceitar. Tinham ido longe demais.
— Você tem leite?
— O quê? — Remexendo na bolsa, Alex encontrou uma
mamadeira e a colocou na boca da filha. — Como você
chamaria, então? O que você e Jamie “fazem”?
— Nós… — A voz de Nicole ficou tão baixa que era quase
inaudível. — Nós fazemos joguinhos. Sempre fizemos. Às
vezes as coisas ficam violentas. Uma vez… uma vez… eu
pedi para ele parar, e ele não entendeu, não ouviu ou
pensou que eu estava…
— Você gosta de joguinhos ou ele gosta? — Agora estava
começando a fazer sentido. — Porque às vezes as coisas
podem começar como um jogo, só que, quando você quer
parar, a outra pessoa não deixa.
— Não.
— E se essa pessoa tem todo o poder, se essa pessoa é
seu chefe, então ainda é abuso. Se essa pessoa não para
quando você diz “não”, seja ela seu chefe, seu namorado ou
até mesmo seu marido, ainda é estupro.
— Não, você entendeu errado.
Todo o arrependimento havia sumido do rosto de Nicole,
deixando apenas uma impaciência mal disfarçada. Mas Alex
insistiu mesmo assim:
— Acho que você me contou o que aconteceu naquela
noite porque sabia que o que havia acontecido entre vocês
não estava certo. Mas talvez ele tenha feito você achar que
era. Ou talvez você simplesmente morra de medo do Jamie.
Nicole balançava a cabeça, murmurando coisas que Alex
não conseguia mais entender.
— Por que você não consegue ver o que ele está fazendo
com você?
Ajeitando o cabelo para trás, Nicole suspirou.
— Porque estou apaixonada por ele.
Alex olhou para ela e para aquela boca borrada idiota.
Então riu.
— O que quer que seja… E, aliás, um terapeuta deve ter
um termo para isso… Você não está apaixonada por Jamie.
— Não sei quais experiências negativas você teve, Alex, e
talvez essa conversa seja sobre isso, mas eu e Jamie… Não
é o que você está pensando. Você tem que entender como
eu estava me sentindo quando contei aquilo. Se eu tivesse
ideia que a gente voltaria a ficar junto…
— “Voltaria a ficar junto”? — Alex repetiu com uma voz
enojada de adolescente.
— Estou tentando explicar. Achei que teria uma
oportunidade antes de você…
— Descobrir que você era uma vagabunda mentirosa que
estava dormindo com o cara que deveríamos derrubar?
Nicole franziu a testa, mas não por causa do insulto.
— O que aconteceu com sua mão?
Alex olhou para sua mão direita, em carne viva depois de
tanto esfregar, e ainda assim fedendo a talco infantil.
— Eczema. Às vezes aparece. Continue.
— Eu estava tão magoada. Ele tinha feito promessas em
Frankfurt. Decidimos tentar fazer dar certo.
— Vocês dois estavam juntos em…? — Alex gemeu. — É
claro. Para que mais servem conferências senão para
transar com seu chefe? Você percebe o quanto isso é clichê,
o quanto você é clichê?
— Claro que vai parecer isso para você. — Nicole deu de
ombros. — Mas as pessoas nem sempre acertam de
primeira. E você não pode culpar um lado ou outro por isso.
Você não é casada, não consegue entender.
— Acho que entendo. — Alex pensou na mãe, cujo cada
passo era ditado pelo marido. E ela pensou em Hayden.
Nicole estava errada: era sempre claro de quem era a culpa.
— Tá. — Nicole então se endireitou, desafiadora após o
choque inicial de ser descoberta. — Bem, sem ofensa, mas
a essa altura eu não me importo com o que os outros vão
achar.
— O.k. Então, me deixa perguntar só mais uma coisa: o
que mudou? Em relação a antes, quero dizer. Quando queria
derrubar Jamie, quando me disse que ele te estuprou…
— Você precisa parar de dizer isso.
— Quando você me disse que ele te estuprou, Nicole —
repetiu Alex, mais alto.
— Você não está ouvindo! Ele ia se separar da Maya antes
do Natal, e achei que ele estava falando sério. — Alex
bufou. — Mas ela estava grávida de Elsa e depois do parto…
Bem, ele não conseguia suportar a ideia de deixar a filha
tão pequena.
— Ah, Jamie é mesmo o pai do ano.
— Não estou pedindo para você acreditar em mim, só
estou tentando explicar por que fiz o que fiz, que não era
um joguinho. Eu realmente o odiava tanto quanto você. E
achava mesmo que tudo estava acabado. Por que eu teria
concordado com o que planejamos se não fosse isso? Mas,
então, na semana passada, Jamie e eu…
— Ah, me poupe dos detalhes.
Alex começou a balançar Katie, que exalava calor de sua
fralda.
— Tudo bem — Nicole tentou sorrir. — Mas, enfim, nós nos
resolvemos. Agora há pouco. E ele está um caco, Alex. É por
isso que sei que dessa vez vai ser diferente. Eu nunca o vi
assim. Ele diz que não tem conseguido comer…
— Ah, é? Está com dificuldade para dormir também, não
é?
— Sim. Sim, ele está. Ele está um caos.
Por mais furiosa que estivesse, Alex não pôde deixar de
sorrir. Depois de todos aqueles meses administrando o
pequeno e lucrativo negócio na esquina de sua rua e
acordando Katie com a maldita scooter, o traficante se
provou útil. Nicole também havia desempenhado um papel
involuntariamente. Pode ser que ele nunca tenha tido um
cliente com um bebê amarrado ao peito antes, mas, quando
ela pediu Ritalina — “a dose mais alta que você tiver” —, o
homem não expressou surpresa nem julgamento,
procurando em sua bolsa Fila e contando 14 comprimidos
brancos parecidos com analgésicos. Ela os tinha enfiado na
caixa de vitaminas de “dias da semana” de Jamie na visita
seguinte à casa de Maya. Ele ia ver como era ficar acordado
a noite toda, todas as noites, com o coração e a mente
acelerados.
— Enfim — estava dizendo Nicole, e sua calma fez Alex
querer gritar: Não é o amor deixando o seu homem perdido,
meu bem, é uma dose colossal de estimulantes! — Não é da
sua conta. Vamos tentar fazer tudo certo dessa vez.
Alex deu um passo para trás.
— Você quer dizer que vão contar ao seu marido e a
Maya?
Um lampejo de algo. Preocupação? Suspeita? A referência
à esposa de Jamie tinha sido muito casual, familiar.
— Você não… Você não entrou em contato com Maya,
entrou?
— Vou deixar isso por sua conta. E que conversa divertida
será, quer dizer, se isso realmente acontecer.
— Vai acontecer.
— Quando?
— Em breve. — Nicole olhou para a luz que entrava pelo
final da passagem subterrânea, claramente desesperada
para fugir. — Lamento por tudo o que você está passando,
assim como lamento ter escondido coisas de você. Mas,
como falei, não é mais da sua conta. — Nicole engoliu em
seco. — Sei que você está tentando atiçar Jill de novo, Alex.
Eu sei sobre os e-mails e as cartas.
— Oi?
— Não começa. Eu sei que é você, tudo aquilo. E isso foi
longe demais. Jamie tem seus defeitos, mas não escreveria
aquele tipo de coisa sem um bom motivo.
— “Bom motivo”? Não estou acreditando!
— Talvez ele acredite sinceramente que seria melhor
tanto para a empresa como para Jill se ela se distanciasse…
— E eu? Não houve nada de “sincero” na minha
demissão, não é?
Nicole a examinava de uma maneira que ela não gostou.
Nem um pouco.
— Você já pensou que pode ter um motivo válido? Porque,
por mais duro que pareça, pela maneira como você tem se
comportado, também não sei se me sentiria confortável
tendo você por perto. Essa sua obsessão…
— Obsessão?
— Você não consegue ver no que isso se tornou? Mas
nada do que você fizer vai mudar alguma coisa. — Então,
mais suavidade: — É em Katie que você deveria se
concentrar agora, não no seu ex-chefe, em mim ou em nada
disso.
Nenhuma ideia. Nicole não tinha a menor ideia.
— Ei, eu não era só boa no meu trabalho, era a melhor.
Pergunte a qualquer um. E Jamie tirou isso de mim para
salvar a própria pele. Ele…
Mas, de repente, Alex desistiu. Ela estava cansada e com
sede — com tanta sede. E, agora que o choque do caso de
Nicole e Jamie estava passando, Alex começou a olhá-lo sob
uma nova luz. Jamie não teria coragem de terminar esse
casamento, mas Maya talvez tivesse. E ela precisaria de um
ombro amigo quando isso acontecesse. Alex poderia ser
esse ombro amigo, poderia ajudar a juntar os cacos, se
tornaria indispensável.
Sem nem ao menos um último olhar para Nicole, Alex
começou a se afastar.
— Tenho que levar Katie para casa para a soneca.
— Ei! — Nicole correu atrás dela. — Você não vai fazer
nenhuma burrice, vai? Alex? Sei que Jamie cometeu erros,
se comportou mal, mas eu também. Você também! É hora
de deixarmos tudo isso no passado.
Emergindo, piscando, sob a vastidão luminosa da Great
West Road, Alex se virou para Nicole uma última vez:
— Sua burra. — O sol destacou fios brancos, um de cada
lado do cabelo repartido de Nicole, e Alex quase sentiu pena
dela. — Esses e-mails que tenho lido? Já li meses, anos
atrás, de antes mesmo de trabalhar para Jamie. É a primeira
coisa que leio quando acordo e a última depois da mamada
de Katie na hora de dormir. É por isso que sei que na sexta-
feira passada ele e Maya fizeram um depósito para uma
casa de cinco quartos em Barnes. É georgiana. Maya
sempre gostou desse estilo. E eles precisavam de mais
espaço, sabe, caso ela ceda e tenha um terceiro filho, como
Jamie já está implorando que ela tenha.
Conforme o tráfego passava zunindo por elas em ondas
sonoras, Alex percebeu que não era apenas uma expressão:
a cor pode realmente sumir do rosto de uma pessoa, sugada
pelo choque.
— Há uma garagem dupla e “armários nos beirais”, seja
lá o que for isso. Mas foi o pátio interno que conquistou
Maya.
— Você diria qualquer coisa, não é? Bem, eu não acredito
em você. — Envolvendo a alça de sua bolsa, os nós dos
dedos de Nicole estavam brancos.
— Pois deveria.
— Essa conversa acabou.
Nicole começou a se afastar, mas Alex não aceitou. Em
duas passadas rápidas a alcançou. Mas dessa vez teve o
cuidado de manter o tom controlado.
— Se Jamie acabar não sendo o homem que você pensa
que ele é. Se eu estiver certa…
Nicole virou a cabeça com impaciência.
— Ligue para mim. É só o que digo. Porque sei o que seria
necessário para acabar com ele. E não é muito.
— Procure ajuda, Alex. Você precisa. — O trânsito quase
abafou a última frase de Nicole: — E não me ligue nunca
mais.
CAPÍTULO 24
JILL
NICOLE
ALEX
– N ão.—Não começa.
Ei — repreendeu Alex, estacionando uma Katie
adormecida no carrinho ao lado da mesa. — Não estou aqui
para dizer “eu avisei”. Nem vou perguntar o que aconteceu
esta noite. Só estou aqui para dizer que tentei no outro dia.
Puxando uma cadeira, ela viu os olhos vazios de Nicole, o
rímel que se acumulara nas linhas finas nas olheiras, e a
boca nua. Nunca a tinha visto sem batom antes, e havia
algo indecente na nudez de seu rosto.
— Se nós… você… acertarmos, então você nunca mais
vai ter que ver Jamie de novo. Ele vai embora; vai sumir.
Com teto baixo e paredes grudentas, não era o tipo de
pub para o qual se leva um bebê — muito menos depois das
nove da noite. Mas quando viu o nome de Nicole piscar em
seu celular, Alex adivinhou o que tinha acontecido. “Chego
em Victoria em meia hora. Encontre um bar e me espere.”
Pouco mais de trinta minutos depois, ela entrou, topando
com o carrinho em tornozelos e ignorando olhares de
desaprovação até que avistou Nicole sentada, no segundo
drinque de vodca e tônica, em um canto.
— Presta atenção. Jamie é bom nessas coisas, ele é
especialista em ferrar os outros, lembra? Eu achei que isso
já estaria claro agora. Mas, por favor, não se sinta burra.
Nicole deu um sorriso lacrimoso.
— É difícil não se sentir uma burra quando você acabou
de terminar seu casamento por alguém que não está nem
aí.
Alex pensou no que ela disse.
— Na verdade, não acho que seja isso. Jamie
provavelmente se importa. Vocês dois não teriam durado
tanto se ele não se importasse. Ele só…
— Se importa mais com Maya?
— Eu tentei te avisar.
Cotovelos na mesa, Nicole agarrou o rosto com as mãos.
— E eu sabia! Sabia que alguma coisa estava errada
quando vi os dois no restaurante. O jeito como só ela estava
falando e ele ficava lá ouvindo, quando deveria ser o
contrário.
Alex deu de ombros.
— Acho que ele nunca teve a intenção de deixá-la.
Nicole a encarou.
— Então por quê…? Que tipo de filho da puta doente faz
algo assim?
Outro dar de ombros.
— Você sabe melhor como responder isso do que eu.
Talvez essa coisa toda no restaurante fosse uma espécie de
preliminar para ele? Algo que o excita? Pelo que você me
disse, Jamie, bem… é um doente.
Nicole fez um barulho, parte soluço, parte ganido, e Alex
achou melhor pressionar.
— Mas o que o excita não é só doentio… é ilegal, não é?
Nicole ergueu os olhos vermelhos de sua vodca com
tônica, confusa a princípio, então cansada.
— Eu te disse…
Mas Alex a silenciou com um dedo.
— Me deixe terminar. Se o que acabou de acontecer nos
diz alguma coisa, é que você tem um ponto cego no que diz
respeito a Jamie. E entendo que a sua relação seja
“complicada”, como você disse, mas se o que me contou
naquela noite no meu apartamento realmente aconteceu
entre vocês…
— Foi só uma vez, e…
Alex se recostou com força na cadeira, os braços
cruzados.
— Você está se ouvindo? Uma vez só já é demais. Então,
por que protegê-lo? Ainda mais quando você agora sabe
que tipo de homem ele é e do que é capaz? — Alex se
inclinou sobre a mesa. — Quando você sabe que isso faz
parte dele.
Nicole piscou.
— Então, o que você quer que eu faça?
— A questão não é o que eu quero. É você fazer o que
deveria ter feito meses atrás para proteger outras mulheres
de homens como Jamie. E, sim — esta seria a parte
complicada —, significaria se expor um pouco. As pessoas
saberiam o que Jamie fez com você; bem, o RH pelo menos.
Mas não precisariam saber sobre o que veio antes.
Nicole estava negando com a cabeça.
— Não, não. Isso não pode acontecer. Olha só, contei para
o Ben hoje que estava saindo com outra pessoa. Se eu
acusar meu chefe de… Não, não posso deixar que Ben fique
sabendo.
— Ele não vai nem descobrir. Você sabe quão secretas as
reclamações desse tipo são? No momento da acusação você
se torna uma vítima: protegida. E é assim que deve ser. Por
isso, mesmo que Ben de alguma forma acabe descobrindo,
ele nunca, nem em um milhão de anos, pensaria que você
teve um relacionamento consensual com o Jamie. — Não
teve a intenção de soar sarcástica, mas Nicole deu uma
risada seca. — Olha, eu não me importo mais com o que
você fez. Fomos todas enganadas por ele, seduzidas e
depois enganadas, não? — Alex deu um pequeno sorriso de
encorajamento. — Mas isso vai acabar com ele, sem dúvida.
— Eu entendo, mas… — Os olhos de Nicole se fixaram em
algo na mesa, e Alex interpretou a distração como a tontura
induzida pelo álcool antes de se lembrar do estado dos nós
dos dedos de suas mãos agora, depois de outra sessão de
limpeza queimar a pele fina. — Suas mãos! — balbuciou
Nicole. — Alex, seu eczema. Você precisa ir ao médico, está
bem feio.
— Como eu disse — Alex puxou a manga da camisa para
baixo o máximo que pôde —, parece pior do que é. Nicole,
preciso que você se concentre.
— Eu estou concentrada.
— Ótimo. Então me escute: você já está bastante
exposta, não é? Entende, se eu sei sobre você e Jamie,
então outras pessoas podem saber, não?
Nicole respirou fundo e assentiu.
— Tá. E você não pode estar achando que, depois do que
aconteceu hoje, dá para seguir como sempre na BWL,
olhando Jamie nos olhos todos os dias, sentando cara a cara
com ele nas reuniões, brindando na festa de Natal. E,
quando ele começar outro caso, o que provavelmente já
começou, bem debaixo do seu nariz… digamos com aquela
garota, Sophia…
— Isso não vai acontecer — disse Nicole baixinho. — Pelo
que ouvi, ela não quer mais saber dele.
Alex ergueu uma sobrancelha.
— Ele a levou para sair… e fez alguma coisa, foi direto
demais. Assustou ela, sei lá. E talvez… — Ela parou, tentou
de novo. — Talvez não tenha sido um acidente. Talvez ele
goste de forçar a barra. Mas Alex: eu não vou sair. Não
quando me dediquei, passei anos para chegar onde estou.
Não quando mereço virar sócia da BWL. Não vou deixá-lo
tirar tudo que ainda me resta.
Dois jovens parados no bar olharam para Nicole antes de
voltarem, rápido demais, a fitar as próprias canecas. E Alex
observou aquela mulher, prestes a passar de uma fantasia
masculina a um fantasma, digerindo o perigo de sua
posição na vida. Alex não tinha nada a perder com a idade
— ela sempre foi invisível. E por mais sofrimento que isso
tenha trazido a ela na adolescência, estava grata por nunca
ter que viver o tipo de perda que Nicole estaria enfrentando
agora. Uma perda da qual, por baixo de seu asco com a
ideia dos “últimos anos bons” de uma mulher, ela estaria
muito ciente.
— Eles vão precisar encontrar outro sócio — continuou
Alex. — Para substituir Jamie, quero dizer.
Nicole olhou para ela.
— Aham. E aí vão me dar o trabalho de Jamie? E quanto à
polícia? E se ele for preso e eu tiver que provar ou alguma
coisa assim?
— Eu prometo que você será protegida. De jeito nenhum
a empresa vai querer que tudo isso se torne público ou
envolva a polícia. Só você pode decidir isso. Do ponto de
vista legal, eles não são obrigados a fazer, lembra? Não, a
menos que você queira prestar queixa, o que não vai
querer. E se decidir chamar do que foi, ou algo menos
explícito, um assédio, talvez, Jamie será mandado embora,
como deveria ter acontecido há muito tempo, por motivos
que muitas pessoas já sabem. Mas os verdadeiros motivos
para sua “saída” serão mantidos por debaixo dos panos.
Acredite em mim, é mais do que perfeito, é a coisa certa a
fazer.
Quando Alex terminou de explicar o resto, Nicole apenas
assentiu.
— Preciso deitar.
Nicole ficou em silêncio enquanto Alex a escoltava para
fora do pub e a ajudava a entrar em um Uber à espera.
Depois que a porta foi fechada, e Alex voltou a atenção para
Katie, apertando o cobertor em volta de seu corpinho
inquieto no ar frio da noite, ela ouviu o barulho da janela
sendo aberta atrás dela.
— Depois disso, chega — disse Nicole. — Você tem que
me prometer. Nada mais de tramas, de planos. Chega.
Alex ficou feliz que um único aceno rápido de cabeça
tenha sido suficiente para amenizar o pânico nos olhos de
Nicole. Poderia nunca a entender, mas havia se afeiçoado a
ela, Alex percebeu. E não gostaria de mentir
descaradamente para ela.
CAPÍTULO 27
JILL
NICOLE
ALEX
“E
le está fora. Suspenso sem previsão de
retorno.”
Alex tinha passado a manhã toda
esperando a ligação de Nicole, checando o celular tantas
vezes na primeira meia hora da aulinha para bebês que por
fim a instrutora lhe deu uma bronca por “não estar presente
no seu momento mãe”.
Sem ter recebido nenhuma ligação ao término da aula,
Alex começou a questionar se Nicole tinha conseguido levar
o plano adiante. Mas o efeito calmante de Maya era tal que,
caminhando junto a ela em direção à casa de Maya para o
almoço, Alex esquecera o celular no bolso do casaco até
aquele apito abafado; até as palavras que esperara meses,
não só horas, para ouvir.
— Notícia boa? — perguntou Maya depois de uma
conversa curta em que Nicole deu a notícia, junto s outro
fato: “Ele está fora, e parece que está enchendo a cara em
todos os bares de Hammersmith, pelo que falaram.”
— A melhor possível. — Alex sorriu. — Não vou encher
seu saco com detalhes. Mas não é ótimo quando um plano
funciona?
Maya nem se preocupava mais em convidar Alex para o
almoço depois da Bumps & Babies. Era um acordo entre as
duas que, duas vezes por semana, sem falha, elas
seguiriam para a casa de Maya, muitas vezes passando pela
Turnham Green Terrace. Às vezes, quando Maya precisava
fazer algo ou Alex tinha percebido que Maria chegaria mais
cedo, ela ficava só uma ou duas horas, sabendo que um
segundo encontro com a babá talvez fosse o gatilho para
uma lembrança definitiva. Mas em outras ocasiões passava
a tarde inteira lá.
Ficou mais grata pela distração do que nunca, tendo
enfim se forçado naquela manhã a ligar para a mãe e dizer
que não ia conseguir pagar o empréstimo a tempo: que
tinha perdido o emprego, que era mesmo a decepção que o
pai sempre a considerara. Ela ainda ouvia o pânico na voz
da mãe — “Mas o que eu vou fazer? O que vou falar para
ele?” —, e sua resposta fraca: “Desculpa, mãe. Desculpa
mesmo.”
Mas ela não podia pensar nisso agora. A única coisa que
importava era que Jamie estava fora. O plano tinha
funcionado. E isso: o barulho dos pratos sendo empilhados
por Maya na cozinha, a soneca que as meninas tirariam em
breve, e as horas preguiçosas de vinho e bate-papo que as
duas aproveitariam.
Ela não estava preocupada com a possibilidade de Jamie
voltar para casa. Já tinha visto o ex-chefe fazendo a
peregrinação dele em bares antes, e essa com certeza seria
ainda mais prolongada que a maioria. E também, como
Maria ia levar Christel para uma festa de aniversário depois
da escola, isso significava que Alex tinha a maior parte da
tarde à sua frente, e ela se deitou na esteira que Maya tinha
estendido na grama para elas, tentando não pensar na
tristeza que sentia ao sair daquela casa e voltar para a sua,
vazia, como a sua vida. Cada vez mais aquela tristeza se
transformava em algo profundamente pior, com Katie
chorando de soluçar e sentindo o mesmo, e Alex sem
conseguir fazer o necessário para acalmá-la.
Olhando para Maya agora, enquanto ela se curvava sobre
as meninas, o vestido de verão rosa claro decotado que ela
usava escorregando para revelar seios firmes envoltos em
um sutiã de algodão branco, Alex se maravilhou novamente
com aquela tranquilidade sobrenatural. Ela conhecera
mulheres serenas e centradas, mas esses atributos em
geral vinham às custas de outros, tornando-as chatas ou
pedantes.
— Não sei como você faz isso, acalmar Katie só de estar
por perto. — Alex se moveu alguns centímetros para ficar
com o rosto na sombra. — Às vezes ela está totalmente
doida e é só olhar pra você que… — Ela balançou a cabeça.
— Você parece uma encantadora de bebês.
Maya se sentou à mesa, se equilibrando nos ombros de
Alex ao fazê-lo.
— Que legal você dizer isso. Acho que ela só estava com
um pouco de cólica. Mas já está melhorando, não está,
bebezinha? Estou mais preocupada com essas suas
queimaduras, Lexie. E sabe de uma coisa? Eu já fiz quase a
mesma coisa, quase enfiei a mão no forno sem colocar as
luvas.
Alex tinha se esquecido da gaze que começou a enrolar
nas mãos para tentar conter os olhares e as perguntas. Ela
havia esquecido também qual era a história exata de
queimadura que contou a Maya uma semana antes.
— Ah, na verdade está quase bom. Já quase não sinto.
Talvez seja seu suco de uva francês que esteja ajudando.
Uma caixa do rosé favorito de Maya chegara no fim de
semana — um presente do “marido encantador, mas
levado, que tem algumas compensações para fazer” — e
Alex se permitiu ficar um pouco altinha durante o longo
almoço. “Como assim, você nunca bebeu Minuty?”,
questionou Maya ao tirar a garrafa da geladeira, colocando
alguns cubos de gelo em cada copo. “Vai mudar sua vida!”
E na boca de qualquer outra pessoa teria sido um clichê
horrível, mas na de Maya — com seu leve sotaque — tinha o
charme de uma frase adulta imitada por uma criança. E,
sim, o vinho era bom, mas tinha sido Maya que mudara a
vida de Alex.
Uma brisa suave soprou uma rajada de pétalas cor-de-
rosa sobre as meninas, e as duas mulheres se entreolharam
e riram.
— O que será que elas pensam de tudo? — murmurou
Maya quando parou de rir, amarrando o sling marrom como
uma echarpe ao redor dos ombros. — Da vida?
Ela balançou a cabeça, envergonhada por sua seriedade
repentina. Mas Alex assentiu, ávida para tranquilizá-la de
que já tivera pensamentos semelhantes, mesmo que não
fosse o caso. Ainda assim, parecia um seguimento natural e
uma prova de que ela era o tipo certo de mãe ao sugerir
que elas também se deitassem ao lado das filhas e
olhassem para o mundo — que também tentassem vê-lo
com novos olhos. Porque algo nisso parecia novo para Alex,
agora que Jamie fora derrubado e Jill tinha adivinhado que
tudo vinha dela — bem, de todas elas, na verdade. Não que
o e-mail que a fundadora da BWL tinha enviado para a conta
anônima de Alex naquela manhã a tenha incomodado. Elas
planejaram tudo isso juntas, então ninguém diria nada a
ninguém.
— Ahhh. — Maya suspirou ao deixar a cabeça loira e
macia recostar na esteira. — Fiquei tonta.
— Bom, a gente bebeu uma garrafa inteira, né?
— Verdade. — Maya fechou os olhos. — Mas rosé… não
conta, né? E já é quase final da semana.
— Uma quarta?
— Tanto faz.
Maya ficou em silêncio, e por um momento Alex se
perguntou se ela tinha dormido, mas ao olhar para a amiga
percebeu que seus olhos estavam abertos e fixos na
magnólia acima delas.
— Lex?
Alex se apoiou nos cotovelos.
— É o seu celular?
Mal dava para ouvir o apito vindo da mesa da cozinha,
onde deixara o aparelho.
— Acho que eu cochilei por um momento.
Alex entrou na cozinha pé ante pé, torcendo um pouco
para que a pessoa que estivesse tentando falar com ela
tivesse desistido. E desistiu. Mas, assim que ela leu as
palavras na tela — “Ligação perdida: Nicole” —, o celular
começou a tocar de novo.
— Oi? — Ela estava grogue do sol e do vinho. Apoiando o
celular no ombro, pegou um copo no escorredor e encheu
de água gelada da pia. — Olha, eu estou meio enrolada…
Mas Nicole não estava ouvindo.
— Ele está… na minha casa… marido?
As frases de Nicole, interrompidas por ondas de estática
como se ela estivesse atravessando um túnel em alta
velocidade, vinham em fragmentos. Alex pensou em
desligar e culpar o sinal.
— Não estou te ouvindo. Você o quê?
Enquanto Nicole continuava fazendo barulhos
incompreensíveis, Alex deu uma olhada pela janela da
cozinha para a rua quieta com fileiras de sicômoros, e se
imaginou como a dona do copo azul chique que ela enchia
de água, daquela casa e daquela vida. De tudo, menos o
marido. Ela não o queria. A partir daquele dia, ninguém o
quereria.
— Nicole? Onde você está?
Uma caminhonete do mercado parou na calçada em
frente e o motorista saiu, os fones caindo das orelhas para o
bolso, a boca se movendo em silêncio com a música. Ele
tirou cestas de plástico vermelho da parte de trás e as
empilhou em frente à porta dos vizinhos, enquanto as
palavras de Nicole finalmente começaram a fazer sentido.
— Na minha casa.
Alex podia apostar que conseguiria listar todos os itens
naquelas cestas: os inevitáveis avocados e as embalagens
de leite de amêndoas para alguma suposta alergia; os bifes
orgânicos e o mel de Manuka.
— Quem está na sua casa?
— Jamie estava na porra da minha casa. Duas horas
atrás.
Alex colocou o copo na pia.
— O quê?
— Duas horas atrás. Ben me ligou. Parece que estava
bêbado. Claramente foi encher a cara antes de decidir me
confrontar. Ele sabe, Alex. É claro que sabe.
Olhando pelas portas abertas do pátio para o jardim, onde
as três figuras ainda continuavam deitadas na grama, Alex
abaixou a voz e conseguiu soltar um fraco:
— De jeito nenhum, não tão rápido. Mas, claro, eles vão
precisar contar os detalhes da alegação mais para frente.
O que quer que Alex tinha dito para tranquilizá-la, Nicole
devia saber disso, certo?
— Não foi isso que você me falou ontem à noite. E que
merda que ele foi fazer na minha casa? Ben não me contou
o que ele disse, mas eu estou enlouquecendo, Alex.
Nicole agora soluçava.
— Calma. Como eu falei, o RH não vai ter contado a ele
que foi você, não agora.
— Eu só… Eu achei que eu teria um tempo, em que ele se
acalmaria e eu resolveria minha vida. Você me prometeu
que eu ficaria segura.
O tom de voz de Nicole tinha ido de sofrido para
acusador, e isso estava começando a irritar Alex.
— Só espera. Logo tudo isso vai acabar.
Na rua, uma loira que era velha demais para usar aquela
calça jeans rasgada assinava o recebimento das compras.
— Eu nunca deveria ter topado isso.
— Nicole. — Alex respirou fundo. — Ninguém te forçou a
nada. E não esqueça — completou, sussurrando — que
ontem à noite você estava num bar me dizendo como Jamie
tinha estragado a sua vida.
Uma pausa enquanto Nicole parecia deixar as lágrimas
correrem.
— Minha filha estava lá! Chloe viu tudo!
Alex ouviu uma confusão de buzinas e um palavrão de
Nicole, e o barulho ao fundo diminuiu.
— Quer dizer, como ele se atreve? Como se atreve a
entrar na minha casa, na minha vida, depois do que fez?
— Bom, aposto que não vamos precisar vê-lo nunca mais.
— A qualquer minuto Katie acordaria e começaria a chorar.
E Maya ia se perguntar por que ela estava demorando
tanto. Alex precisava desligar. — Olha, eu te ligo depois, tá?
— Aham. — Nicole parecia meio doida. — Tudo bem. Te
ligo depois, assim que eu encontrar ele.
— Ótimo. — Alívio… Então um aperto no peito. — Espera,
Nicole? Encontrar quem?
O homem do mercado empilhava as cestas na rua e,
enquanto esperava Nicole responder, Alex se perdeu em
seus movimentos metódicos. Em seguida, seguiu a direção
dos olhos do homem, que registravam a chegada de algo ou
alguém na rua tranquila. Uma mulher se aproximando com
passos rápidos e decididos; uma mulher com um celular na
orelha, parada a menos de um metro de Alex, agora, do
outro lado da janela da cozinha. Uma mulher cujas palavras,
quando finalmente saíram, não foram silenciadas pelo vidro
entre elas, mas soaram assustadoramente altas em seu
ouvido:
— Jamie — disse Nicole, a encarando. — Assim que eu
encontrar Jamie.
Por um segundo tudo ficou paralisado, como se uma
membrana estivesse protegendo-a da repentina pressão
atmosférica. Então os ouvidos de Alex estalaram e tudo
aconteceu ao mesmo tempo: a campainha, o choro de
Katie, Maya na porta, segurando sua filha com a cara
vermelha, a boca uma máscara da tragédia.
— Acho que tem alguém com fome!
De novo, a campainha.
— Aqui.
Entregando Katie para Alex, Maya foi para a porta de
entrada.
— Espera.
Maya se virou.
— Não…
Mas era tarde demais; em um segundo tudo isso teria
acabado.
— Um minuto, só vou atender — respondeu Maya com um
sorriso. — Olá.
A parede que separava a entrada da cozinha era fina, e
de sua posição na cabeceira da mesa da cozinha, Alex
conseguia captar uma infinidade de inflexões nessa palavra.
Reconhecimento, antes de tudo, porque, embora as duas
mulheres nunca tivessem sido apresentadas, haviam se
visto mais de uma vez em ocasiões sociais. Confusão: o
rosto de Nicole era provavelmente um daqueles que só fazia
sentido em um contexto profissional. E outra coisa: uma
tensão que sugeria alguma forma de conhecimento prévio
da parte de Maya.
— Maya… Eu… — A coragem que a havia impulsionado
segundos antes parecia ter desaparecido. — Não sei se você
vai se lembrar de mim. Sou Nicole Harper.
As duas estavam trocando um aperto de mãos?
— Nós nunca fomos apresentadas, mas eu trabalho com
seu marido e nós…
— É claro que eu me lembro. — Talvez Alex tivesse
imaginado aquele desconforto. — Entra.
O som de botas de salto na entrada, do tipo que causa
danos irreparáveis num piso de madeira como aquele; do
tipo que deixa marcas no carpete.
Katie — que tinha se aquietado pela possibilidade de ser
alimentada — começou a chorar de novo com impaciência
e, vendo sua bolsa ali perto, Alex tentou pegar a mamadeira
com as mãos trêmulas.
— Desculpa. — A voz ainda instável de Nicole na entrada,
onde os passos haviam parado. — Você está com…
— Não, não. É a filha de uma amiga. A minha ainda está
dormindo. Como posso te ajudar?
A tranquilidade de Maya se transformou em algo mais
vigoroso, e uma esperança louca se acendeu em Alex:
Nicole devia ter adivinhado que, se Alex estava ali, Jamie
não estaria. Talvez não entrasse na casa. Talvez Maya se
livrasse dela antes que tivesse a chance de dizer muito
mais. Então, Alex poderia encontrar um lugar tranquilo para
ligar para Nicole e explicar sua presença ali.
— Estou procurando Jamie. Não conseguimos encontrá-lo.
E depois do que aconteceu hoje…
— Perdão, não entendi.
— Você não…? Ele não está aqui?
— Não. — Maya soltou uma risada frustrada. — Achei que
ele estivesse no escritório. O que houve?
— Aconteceu… uma coisa. E estou tentando ligar para o
celular dele. Perdão, achei que você já soubesse. Jamie foi
suspenso.
Silêncio. Então um murmúrio:
— Melhor você entrar.
Quando as duas mulheres apareceram na porta, Maya,
sempre uma anfitriã graciosa, conduziu aquela mulher
quase desconhecida para a sua cozinha antes de procurar o
celular. Alex se sentiu dividida em duas. Uma parte sua
queria fugir do confronto inevitável, e outra parte — a que
cada vez mais saía de si mesma — estava apenas curiosa
para ver como Nicole reagiria.
— Essa é a minha amiga Lexie. Só vou acordar minha
filha, aí tentamos ligar para o celular de Jamie.
Apoiada no balcão, Nicole absorveu a cena em silêncio:
Alex sentada à mesa da cozinha de Jamie com a filha no
colo; a tigela de frutas na mesa ao lado de uma garrafa de
vinho vazia.
— Lexie?
Talvez houvesse uma forma de sair dessa; talvez Maya
não precisasse saber. Mas Alex teria que falar rápido.
— Eu ia te contar. E eu sei que você falou para não me
meter com a Maya.
— Não se meter com ela? — sussurrou Nicole com raiva.
— Alex, “Lexie”, mas que merda está acontecendo? — Uma
pausa. — Me diz que isso é só um apelido. Me diz que ela
sabe quem você é.
Balançando a cabeça, Alex levou o indicador aos lábios.
— Isso é doido pra cacete, você sabe disso, né?
— Isso tudo era pra ser… — sob a mesa, Alex apertou a
mão machucada na quina da madeira, sentindo a onda de
dor a acalmando quando as beiradas ásperas apertaram a
gaze e os ferimentos quase cicatrizados embaixo. — Era
parte do plano.
— Meu Deus — gemeu Nicole. Ela precisava falar baixo.
— Eu sei, eu sei. Mas as coisas que consegui fazer e
descobrir aqui foram muito úteis… para nós!
— Não, não, não. Eu não tenho nada a ver com isso.
Nunca quis arrastar Maya para essa situação.
— Será que dá para falar baixo?! — Nicole não estava
entendendo. — Todas aquelas coisas no escritório, o e-mail
sobre a Jill que eu editei, não iam ser o suficiente. Não está
vendo? Eu precisava de mais acesso. Como você acha que
eu consegui fazer isso nesses meses todos? Os cigarros, a
aliança dele. — Alex ansiava pelo crédito, percebeu naquele
momento. — Tudo isso fui eu. A aliança já está no lixão a
essa altura, e eu misturei ritalina nas vitaminas dele, para
deixá-lo nervoso, para deixá-lo do jeito que ele deixou a
gente. E Ainsley…
— O jantar foi culpa sua. Claro que foi.
— Não foi difícil. Algumas modificações no menu que a
assistente de Jamie tinha preparado para Maya resolveram.
E enquanto Jamie estava tomando um drinque antes do
jantar com Hayden… — ela pausou antes de completar seu
triunfo — … Eu deixei uma fralda de Katie no banheiro das
visitas.
Mas Nicole não parecia impressionada; ela parecia
chocada.
— Funcionou, não? Funcionou! Maya nunca nem percebeu
que fui eu. Estava tão ocupada arrumando a casa que achou
que ela tinha deixado a fralda!
No jardim, Maya finalmente tinha conseguido acordar Elsa
e estava voltando, com a esteira jogada acima do ombro.
Isso só deu a Alex segundos para explicar algo crucial:
— Mas eu gosto dela, Nicole. Mesmo. Nós somos amigas.
Maya é totalmente diferente dele. Ela é gentil e engraçada e
uma pessoa boa mesmo.
As duas ficaram em silêncio quando Maya entrou, Elsa
bocejando, e Nicole abriu um sorriso forçado.
— Agora vamos tentar ligar para o papai, tá?
Maya apoiou Elsa no peito e depois na cintura de novo ao
discar.
— Caixa postal — comentou. Então, no telefone: —
Querido, Nicole, do escritório, está aqui. Ela me contou o
que houve. Estão tentando falar com você. Se puder, liga de
volta?
Alex esgueirou o olhar para Nicole, cujos olhos iam de um
canto a outro da sala, absorvendo os detalhes da vida do
amante.
— Você quer um chá ou…
O telefone fixo tocou.
— Ah, pronto.
Com quer que Maya estivesse falando, não era Jamie.
— Ele… Que horas foi isso? É claro que deveria me dizer.
— Aí, mais estridente: — Como assim, não vão dizer? Certo.
Obrigada, Jill.
As três permaneceram paradas. Alex ficou aliviada ao
ouvir o choro de Katie preenchendo o silêncio. O olhar
irritado de Maya para sua filha pegou Alex de surpresa.
— Lexie, você se importa de só… — Ela indicou o
tapetinho de atividades, sem precisar se explicar. — Eu só
preciso entender o que está acontecendo e não consigo
com…
— Claro. Quer que eu leve Elsa também?…
Mas Maya se afastou dela involuntariamente. Um
triângulo vermelho havia aparecido no pescoço dela, na
parte da pele exposta pelo sling enrolado como um
cachecol, e o olhar de Maya percorreu a cozinha, atordoado
por um momento.
— Na verdade, sabe de uma coisa? Acho que vou pedir
para vocês duas irem embora. Desculpa, eu tenho que… —
Ela se virou para Nicole. — Quando você disse que meu
marido tinha sido suspenso, não falou o motivo.
Com os lábios apertados em uma linha fina, Nicole olhou
em volta, sem jeito.
— Eu estava mostrando uma propriedade para um cliente
quando aconteceu. Mas houve uma… acusação. Jill te
contou? Mas, olha, me desculpa por te atrapalhar. — Ela
indicou a saída. — Vou deixar você em paz agora.
— Tá. — Maya olhava pela janela da cozinha, para uma
rua e um mundo que deveriam parecer muito diferentes
agora. — Assédio sexual — completou, saindo de seu
estupor e encarando Nicole. — Foi isso que Jill falou. Que
uma mulher no escritório está dizendo que ele… abusou
dela.
— Maya. — Alex foi para o lado dela na hora, a mão
erguida, mas sem tocar no braço da amiga.
— Eu só não… — Maya apertou a têmpora.
— Deixe a Elsa comigo.
— Não, não. Eu estou bem. Só preciso ficar sozinha. —
Então, para Nicole: — Para responder a sua pergunta, eu
espero que meu marido esteja com o advogado dele.
— Certo. — Nicole assentiu e se virou para sair,
murmurando um último “Sinto muito” enquanto saía.
Se não fosse a total ausência de qualquer barulho
acidental naquele exato momento — nenhum cortador de
grama do vizinho, nenhum carro passando lá fora, nenhum
bebê chorando —, talvez Nicole não tivesse ouvido as
palavras que a esposa de Jamie, com os olhos ainda no
celular, falou:
— Sua vagabunda burra.
Alex parou de enfiar lenços umedecidos e protetor solar
de volta na bolsa e encarou Maya. Ela parecia a mesma
mulher gentil, brilhante e centrada que conhecera tão bem
nos últimos dois meses, mas aquela voz e aquelas palavras
pertenciam a outra pessoa.
Nicole reapareceu na porta da cozinha.
— O que foi que você disse?
Maya se aproximou dela com Elsa ainda nos braços, e por
um momento Alex teve a dramática sensação de que Maya
estapearia Nicole, mas, em vez disso, ela se sentou na
cabeceira da mesa da cozinha, com as pernas ligeiramente
afastadas e Elsa no colo, e começou a desabotoar o vestido.
Então, com um pequeno suspiro de irritação por ter que se
repetir:
— Eu te chamei de vagabunda burra.
As duas mulheres se entreolharam, Nicole tão surpresa
que um tremor correu sob a pele, Maya com uma frieza
quase divertida. Agachada ao lado de Katie no canto do
cômodo, Alex fora esquecida.
— Não vai perguntar por quê? — Baixando os olhos para
Elsa, Maya tirou uma das mangas do vestido do ombro,
revelando o sutiã branco. — Já vai, meu amor. Já vai.
Outro inclinar do mesmo ombro permitiu que a alça
caísse, e, se recostando para ficar confortável, Maya puxou
o bojo para baixo e tirou o seio intumescido, coberto de
veias azuis e com o mamilo marrom, trazendo a cabeça da
filha para si. Durante todo esse processo, seus olhos nunca
deixaram os de Nicole.
— Você não vai perguntar por que eu te chamei de
vagabunda? — continuou, a voz entediada. — Acredito que
é porque você acha que uma esposa tinha o direito de falar
assim com a mulher que está trepando com o marido dela.
Só uma confusão rara de palavras — especialmente em
tempos verbais — mostrava que Maya não era uma falante
nativa de inglês. Podia ser charmoso, ou podia dar um peso
às suas sentenças, como naquele momento. Alex olhava de
Nicole, na porta da cozinha, a bolsa pendurada na ponta dos
dedos, para Maya, majestosa, alimentando a filha, e se
perguntou o que a mantinha ali, na casa do amante,
ouvindo o veneno cuspido pela esposa dele. Por que não foi
embora? No momento em que ouviu Maya dizer aquelas
palavras, por que não tinha ido embora? Jamie não estava lá
e ele era o único motivo da vinda dela. Ela estava
estragando a tarde das duas, e agora precisava mesmo ir
embora.
— Direito?
Era um desafio — um que Maya respondeu com uma
expressão levemente confusa.
— Sim, o direito. Certeza de que é esperado, até.
Nicole engoliu em seco, claramente tentando recuperar o
controle.
— Olha, eu não sei o que você acha que sabe ou o que
Jamie te contou.
— Ah, por favor. — Maya inclinou a cabeça para o lado
com uma expressão entristecida. — Podemos partir do
princípio que eu sei de tudo? Do teatro, das
mensagenzinhas safadas quando você deveria estar
aproveitando as tardes em família com a sua filhinha. Os
hotéis, Best Western e Hilton, e aquela ideiazinha idiota do
Angelini’s. Então, quando eu digo tudo, quero dizer tudo.
Como? Porque eu organizei tudo isso. Eu escolhi você.
— Do que você está falando?
Devagar, Nicole deixou a bolsa no chão.
— Ele te chama de “Nikki”? Não. Não, ele te chama de
“Nic”, né? — Ela sorriu e balançou a cabeça. — Não importa.
Você é casada, não é? Isso sempre foi parte do acordo. Bom,
a questão é que você entende. O tédio, sabe? A mesma
coisa, com a mesma pessoa, ano após ano. Todos estamos
entediados. E não acho que sejam os homens que ficam
entediados primeiro. Acho que eles só cedem à tentação
primeiro.
— Do que você está…
— Jamie estava entediado. Eu estava entediada. Mas eu
não ia deixar nosso casamento acabar e fazer as crianças
enfrentarem um divórcio por alguns minutos, alguns
segundos, do quê? De nada. E, bom… — Maya estreitou os
olhos e mais uma vez Alex se perguntou quem era aquela
mulher que ela achava que conhecia. — Eu comecei a
pensar que talvez gostasse da ideia dele com outra pessoa.
— Vocês dois… Vocês são doentes.
Maya refletiu.
— Não acho que seja verdade. Eu fiquei chateada, sabe,
na primeira vez, quando descobri sobre a assistente dele,
anos atrás. Para começo de conversa, ela era ralé, e era um
clichê tão absurdo que obviamente as pessoas iam começar
a notar. Eu não gosto que saibam sobre meu marido traidor.
Não gosto de pena.
— Jessica? — A voz de Nicole estava rouca.
— Era esse o nome dela? Nem me lembrava. Mas foi ruim.
E eu nunca ia passar por aquilo de novo. Então, se ele fosse
ter outra pessoa, teria que ser nos meus termos. — Maya
pausou, reposicionando a cabeça da filha delicadamente. —
A festa de Natal, dois anos atrás. Você estava com um
vestido preto com aquela gola espalhafatosa e aqueles
sapatos. Eu tenho o mesmo modelo em nude. Por isso que
notei. Por isso que notei você.
O peito de Nicole subia e descia cada vez mais rápido.
— Acho que Jamie já tinha percebido que você era, sabe,
alguém que ele gostaria de comer. Provavelmente até já
tinha imaginado isso quando estava comigo, e no táxi para
casa eu mencionei que você provavelmente não dificultaria
a vida dele.
Nicole enrubesceu.
— Você não sabe nada de mim.
— Ah, acho que qualquer pessoa conseguiria ver isso. E
depois vimos que você era adequada e que nunca ia largar
seu marido.
— Você não sabe mesmo do que está falando. — De
alguma forma Nicole conseguiu reunir forças para retrucar.
— Porque eu larguei meu marido. Então seu joguinho não
funcionou.
Ignorando-a, Maya continuou:
— Mas na verdade só havia duas regras: que ele me
conta tudo, todas as vezes. E que quando eu disser que
acabou, acabou.
Ela ergueu os olhos verde-acinzentados de novo para
Nicole.
— Você devia saber que ele não ia ser esse tipo de
homem, não? O que termina tudo, larga a família e começa
de novo? Afinal, você era a única presa em um casamento
infeliz, Nicole. Nós estamos ótimos, sempre estivemos. —
Ela deu de ombros. — Mas ele fica… — ela pensou — …
animado demais, se deixa levar. Então talvez tenha te
prometido coisas? Coisas que ele não poderia, nem queria,
cumprir. Mas essa é parte do charme, não? E ter segredos é
tão divertido. Só que Jamie não é muito bom em guardá-los.
— Eu não… — Nicole a encarava fixamente. — Tem
alguma coisa muito errada com vocês dois.
— Talvez. — Elsa tinha acabado de mamar e estava
desmaiada em um estupor de leite no seio que Maya
voltava a cobrir devagar. — Sendo assim, por que você não
sai da minha casa?
— Eu vou sair. — Nicole deu um passo, mas não parecia
conseguir se forçar a ir embora. — Mas, só para avisar, eu
não acredito nisso. Porque se eu era só algum… tipo de
jogo, então por que Jamie apareceu na minha casa hora
atrás? — Maya fez um minúsculo movimento de cabeça,
traindo sua surpresa. — Esse é o único motivo pelo qual
estou aqui. Para dizer que, se ele apareceu lá para humilhar
meu marido ainda mais, não precisa. — As palavras eram
interrompidas por soluços. — Não precisa! Porque ele já foi
humilhado! Eu larguei ele, como a gente planejou.
Nicole chorava feio, Alex percebeu, alheia, as
sobrancelhas puxando a pele da testa em uma série de
rugas fundas, os cantos da boca se retorcendo em uma
careta. Talvez Nicole soubesse disso, porque em segundos
já estava secando as lágrimas com raiva.
— E se ele não queria que a gente, que eu fosse em
frente com o plano, então por que inventar aquela história
do Angelini’s? Quem faz uma coisa dessas, se não está
pensando em ir até o fim?
Maya assentiu, quase com empatia.
— Disso, admito, eu não sabia. E dizer que fiquei surpresa
quando ele me contou por que me levou àquele
restaurante… — Era a primeira vez desde que a conhecera
que Alex via Maya aturdida. — Não que tenha durado muito:
a gente mal tinha pedido e ele já tinha confessado. E
quando olhei em volta e vi você lá com…
— Espera — interrompeu Nicole. — Você sabia que eu
estava lá?
— Você não está prestando atenção? Sim, eu sabia que
você estava lá, você e aquele seu pobre marido. Então
deixei algumas coisas bem claras. Primeiro, que ele não ia
deixar as crianças nem a mim, naquele dia nem nunca. E
segundo, que se ele quisesse ver as filhas de novo e, ah, se
não estivesse a fim de ser chutado da BWL por todos
aqueles, hum, atalhos que faz no trabalho… Sim, eu sei bem
que Jamie gosta de apressar acordos de um jeito que Jill e
Paul não ficariam felizes. Se ele não quisesse isso, era
melhor que comesse o bife e bebesse o vinho dele e
deixasse você se virar.
— Você sabia, e me deixou acabar com o meu
casamento?
Alex pensou na conversa que ela e Nicole tiveram no pub
na noite anterior: ela dizendo que havia algo na “dinâmica
de poder” entre marido e mulher que era estranho. Era por
isso. Esse tempo todo, elas viam Maya como a mulher
traída, quando era ela, e não Jamie, que estava no controle
desde o início.
Mas nada disso realmente importava agora. O que
importava era tirar Nicole da casa. Porque todo aquele
drama consumia um tempo precioso, e Maya estaria se
segurando por orgulho. Ela não podia desmoronar na frente
da mulher com quem o marido estava dormindo, mas Alex
imaginou as feições serenas da amiga entrando em colapso
no momento em que Nicole saísse, e sabia o quanto Maya
precisaria dela então. Foi por isso que Alex ignorou o pedido
de Maya para ser deixada sozinha.
— Nicole. — Pela surpresa no olhar das duas quando Alex
se levantou, elas tinham mesmo esquecido que ela
continuava ali. — Você já falou o que tinha que falar, mas
Maya pediu para você sair. — Seus ouvidos estavam
tapados de novo, e, embora conseguisse ouvir a própria
voz, parecia estranha, vinda de outra pessoa. — Ela é legal
demais para repetir, mas eu não sou, e é melhor você ir
embora agora.
Para sua surpresa, Alex viu que Nicole estava sorrindo —
talvez por descrença, mas ainda assim sorrindo. Isso a
irritou.
— Eu falei: vai embora.
Nicole balançou a cabeça.
— Não se preocupe, estou indo. Aliás, Maya — ela ergueu
a voz quando já estava na entrada —, o nome da sua amiga
não é Lexie. É Alex. Alex Fuller. Isso deve soar familiar para
você, já que ela era a assistente do seu marido até alguns
meses atrás… quando ele demitiu ela por má conduta.
Quando Nicole foi embora, finalmente os ouvidos de Alex
se destaparam. Pelo olhar de Maya, pela forma como ela
segurava a cabeça de Elsa, de um jeito protetor, como se
estivesse… Espera, ela estava com medo? Alex sabia que
tinha que agir rápido.
— Maya.
Correndo até ela, Alex se ajoelhou aos seus pés, enfiando
o rosto no tecido fresco, limpo e redentor do vestido da
amiga.
— Sai daqui.
A voz de Maya não estava certa. Nada daquilo estava
certo. Era como se a mulher que ela conhecia estivesse
sendo interpretada por uma substituta.
— Você não entende. Quando a gente se conheceu, eu
estava…
— Sai daqui!
Mas Alex não ia sair. Não até que fizesse Maya entender.
Ela contaria sobre Jamie, sobre o que ele fizera com ela. E
como ela chegou à Bumps & Babies naquele dia. Porque
agora, mais do que nunca, elas precisavam uma da outra.
Enquanto Alex tentava abraçar mãe e filha, a voz de Maya
estremeceu em um sussurro, depois morreu, voltando mais
forte.
— Sai de perto de mim ou eu juro por Deus que vou
chamar a polícia.
Com um único movimento, ela empurrou Alex para trás e
ficou de pé em um instante, segurando Elsa junto ao peito.
O que não deu a Alex outra escolha. Maya precisava se
acalmar. Se ela só ficasse quieta, Alex poderia fazê-la
entender. Ela se lançou sobre a amiga, segurando o sling
que Maya sempre usava frouxo como um lenço — aquele
pano idiota e supercomplicado que só supermães como ela
conseguiam dominar —, e agarrou-se firmemente a ele.
— Essas últimas semanas — soluçava Alex enquanto
Maya arfava e tentava em vão soltar o tecido cruzado em
torno do pescoço — foram as melhores da minha vida.
Porque você não se importa quem as pessoas são ou de
onde vieram. E você me entende. Você me entende!
Ela encarou a amiga nos olhos, mas não havia
compreensão ou simpatia. Só medo. Enquanto Alex fazia
força, Maya parecia estar escapando dela, o branco dos
olhos se avermelhando, até ela cair no chão.
— Eles estão vindo! Vão chegar a qualquer minuto — veio
a voz de Nicole de trás dela.
Espera: Nicole ainda estava lá? Sua voz parecia
estranhamente estridente, agitada, como as sirenes que se
avolumavam do lado de fora. De repente, Alex se sentiu
muito cansada. Maya parou de dizer todas aquelas coisas
maldosas. Ela não estava dizendo nada agora — só estava
deitada, imóvel, no chão de ladrilhos. E Alex a faria
entender, mas não agora. O que ela precisava agora era
chegar em casa e ir se deitar.
Estremecendo conforme as sirenes ficavam mais altas,
mais próximas, Alex pegou Katie e saiu pela porta da frente.
CAPÍTULO 30
JILL
NICOLE
C
omo nenhuma das mães havia mencionado Ben,
Nicole sabia que elas sabiam. Fazia menos de uma
semana desde que ela se mudara, mas, de alguma
forma, elas sabiam. E por algum motivo o fato de ela estar
se separando do marido a tornava popular de um jeito que
nenhuma tentativa anterior de integração com aquelas
mulheres havia conseguido.
Desde que tinham chegado ao Bella Boos, a cafeteria
infantil horrivelmente cor-de-rosa onde a coleguinha de
Chloe comemorava o aniversário, um fluxo constante de
mães viera lhe perguntar como ela estava, e a anfitriã já
completara sua taça de prosecco duas vezes.
— Dizem que é a maquiagem branca — disse a mãe da
aniversariante, se sentando ao seu lado depois de uma
volta no salão servindo sanduíches.
— Perdão? — Nicole questionou ao mesmo tempo que
uma explosão de buzinas de festa soou.
— Palhaços. Dizem que é a maquiagem branca que
assusta as crianças, até os adultos. Então quando Annie
comentou que tinha usado recreadores infantis na festa da
mais velha, que tem aquela coulrofobia, coulrofobia?
— Medo de palhaços?
— Isso. Enfim, aí eu achei que seria perfeito para a festa
de Lizzie. Que eles pareceriam menos bizarros, você não
acha? Considerando como as crianças dessa idade são
assustadiças?
Enquanto ela comentava sobre os “terrores noturnos” que
Lizzie tivera no outono anterior, Nicole só assentia e tomava
um gole de prosecco. Não ligava que não estivesse muito
gelado ou que fosse cedo demais para beber. Também não
se importava com a maquiagem branca dos palhaços. Ela só
queria que a normalidade e a pureza daquele momento
cheio de balões cor-de-rosa durassem para sempre, que as
preocupações e conversas inconsequentes daquelas
mulheres abafassem as memórias das últimas 24 horas e
silenciassem o barulho — aquele barulho de revirar o
estômago — da cabeça de Maya batendo como um ovo nos
ladrilhos da cozinha. Como isso nunca tinha sido o suficiente
para ela? Por que ela procurava excitação e perigo quando
tudo de que precisava estava bem aqui?
Quando Nicole ligou para Ben naquela manhã, implorando
para que ele a deixasse levar Chloe à festa que apareceu
num lembrete — e um alívio — em seu celular, não
esperava que ele concordasse. Mas, depois de testemunhar
aquela cena na cozinha de Maya na tarde anterior, e das
horas gastas com a polícia e na sala de espera do hospital
— onde só depois da meia-noite lhe asseguraram de que “A
sra. Lawrence está bem. Assustada e machucada, mas
medicada e bem” —, ela precisava ver a filha.
Ben deixou o seu segundo “por favor” pairando no ar,
contente pela humilhação dela, fazendo com que ela a
sentisse, antes de enfim responder:
— Tá bom. Mas Chloe precisa estar de volta às seis. Se
comer depois disso, fica muito agitada e eu levo horas para
colocá-la para dormir. — Como se Nicole já fosse uma
estranha que precisava de explicações sobre a filha. — E eu
consegui aquele emprego na empresa de software no norte
de Londres, então vou aproveitar para me preparar.
Quando tentou parabenizá-lo pelo trabalho, Ben a
interrompeu e desligou. Não podia mais ficar surpresa ou
feliz por ele. Não depois de tudo que acontecera. Não
depois de Jamie ter aparecido na porta deles totalmente
fora de si. E, embora o marido tivesse dito que a conversa
foi breve e que Jamie estava “bêbado demais para fazer
sentido”, Nicole ainda se sentia mal pensando no que ele
poderia ter falado. O que teria acontecido na cozinha de
Maya se ela não estivesse lá para chamar a polícia?
Quando um acidente de trânsito é evitado por pouco, é só
depois, quando a pessoa para trêmula no acostamento da
estrada, que o impacto evitado é sentido. Nicole estava no
acostamento agora, aliviada e grata pelo pior não ter
acontecido — por Jamie não ter contado a Ben e por Maya,
que ficaria bem —, mas ainda tremia por sua própria
imprudência.
Ela fez tudo que podia para consertar aquilo. Informou à
polícia sobre a obsessão de Alex pelo homem que a demitiu
e deu o endereço dela — imaginava que os policiais já a
teriam encontrado, não? Havia uma coisa, porém, que ainda
não tivera coragem de fazer: contar para Jill. Nicole chegou
a abrir seu contato, o dedo pairando sobre o ícone de ligar,
antes de desligar o celular, incapaz de descrever os eventos
do dia anterior. Era ela, não Jill, que deveria ter notado o
quão instável Alex estava, e ainda assim o comportamento
violento dela envolvia as duas na situação.
— Que brincadeira é essa?
O celular dela estava tocando na bolsa, mas Nicole não
tinha vontade nenhuma de atender.
— Ah, você sabe. Moedinha risadinha.
Nicole balançou a cabeça. Por que sempre tinha a
sensação de que aquelas mulheres estavam falando uma
língua que ela não compreendia?
— É como se fosse passa anel, só que em vez do anel…
Nicole sorriu e assentiu, mas voltou à cozinha de Maya
em Chiswick, tentando tirar Alex de cima dela, os braços
pesados e os movimentos assustadoramente ineficientes. E,
ao se abaixar ao lado de Maya, enquanto esperava a
ambulância chegar, vendo o sangue escorrer da cabeça
dela tingindo o rejunte entre os azulejos de mármore em
fileiras de carmim, seu único pensamento tinha sido: “Isso é
tudo minha culpa.”
Eles não a deixaram acompanhar Maya ao hospital e, por
um momento horrível, Nicole imaginou Jamie chegando e a
encontrando ali, enquanto segurava sua filhinha. O som de
uma chave na porta fez seu coração apertar, mas então
uma mulher filipina baixinha apareceu, segurando uma
menina — Christel — pela mão. Lembrando-se do sangue,
de todo aquele sangue, Nicole bloqueou o caminho delas.
— Aconteceu uma coisa. Maya foi levada para o St. Mary’s
— ela disse à babá.
Entregou Elsa para ela, tentando ignorar o rosto tristonho
de Christel, e sentiu uma vontade tão grande de escapar
daquele ambiente tóxico e sentir o cheiro de cabelo limpo
da própria filha que ficou tonta.
— Vou para lá agora — assegurara à mulher assustada. —
E ligo assim que souber de alguma coisa. — hesitou. — Você
pode… pode ligar para o pai das meninas?
Enquanto a mãe de Lizzie ia “dar uma olhada no bolo”,
Nicole aproveitou o breve momento sozinha para dar uma
olhada no celular. Duas ligações perdidas de um número
desconhecido. Seria a polícia, dizendo que haviam
encontrado Alex? Mesmo se tivessem deixado recado, ela
não tinha coragem de escutar.
Não importava quantas vezes Nicole pensasse sobre
aquela noite, procurando alguma brecha de absolvição, não
conseguia se livrar da responsabilidade por Alex, e ela havia
visto de perto a instabilidade de Alex se desenvolver. Tinha
até percebido sinais de alerta, mas escolhera ignorá-los
porque a fixação de Alex por Jamie, pela vingança, servia a
ela.
— Quer um refil? — Há quanto tempo a anfitriã estava de
olho nela? O suficiente para vê-la virando a taça de
prosecco em um só gole, de olhos fechados. A pergunta a
seguir com certeza seria… — Semana difícil?
Pronto.
— Sim. — Nicole estava cansada demais para dizer de
outra forma. — Mas acho que você já sabe disso. Parece que
todo mundo já sabe que eu e Ben terminamos. — Era uma
forma tão adolescente de descrever a destruição de duas,
não, três vidas, embora ela não suportasse pensar dessa
forma. — Está sendo complicado. Vai ser complicado.
— Aposto que sim.
De repente, outra mãe, provavelmente uma das
admiradoras de Ben, tinha se metido na conversa,
assentindo com uma expressão de pena.
Nicole respirou fundo.
— Só fico contente por ele estar sendo tão civilizado
nessa situação toda.
E era verdade.
A pele translúcida da nuca da filha, sentada de costas
para Nicole — tão inocente, tão exposta pela maria-
chiquinha —, trouxe lágrimas aos seus olhos. De onde veio
aquela sarda? Era uma sarda ou uma pinta, e o que mais ela
havia perdido? Todas aquelas viagens de negócios que tinha
feito pareciam administráveis, agradáveis, até, se Nicole
fosse sincera consigo mesma. Mas talvez porque ela sabia
que a filha estaria lá sempre que quisesse, sempre que
precisasse ouvi-la tagarelar sobre Peppa Pig. E todos os dias
que passava sem Chloe, Nicole acordava com a sensação de
que estava sem um membro.
— Ela é linda — murmurou a mãe de Lizzie no seu ouvido,
os olhos se demorando em Nicole o suficiente para que
surgisse a vontade de se virar e falar, ainda sorrindo: “Sim,
essa é a cara de uma mulher cujo casamento foi para o
espaço.”
Em vez disso, Nicole se pegou rindo.
— Ela é mesmo. Eu posso falar isso? Nunca sei.
E talvez tudo fosse ficar bem? Seria demorado e dolorido,
mas ficaria bem.
— Eu estou tão confusa! — ribombou a recreadora,
olhando para baixo com as mãos nos quadris para o círculo
de rostinhos hipnotizados. — Mas acho que está na hora do
bolo!
Mais uma vez o celular de Nicole vibrou na bolsa. Dessa
vez ela sabia que precisava atender.
— Alô?
— É… — Uma pausa. — Aqui é a Jill.
— Um segundo. — Uma língua de sogra soou, e Nicole
tapou o outro ouvido, seguindo para a porta. — Perdão,
quem?
— Aqui é a Jill.
Ela devia querer uma atualização, mas Nicole não tinha
nada de novo para dizer.
— Desculpa, estou numa festa infantil com a minha filha,
e estão trazendo o bolo agora. Posso te ligar depois?
— Não.
Depois, Nicole ficaria obcecada com o quando. Em que
momento exatamente ela soube que Jamie estava morto?
Foi naquele “não”? Foi no silêncio pesado antes de Jill
continuar a falar? Porque, quando ela falou — “Jamie
morreu” —, de alguma forma Nicole já sabia.
— Encontraram o corpo hoje de manhã. A polícia quer
falar comigo. Vão querer falar com você também. E, Nicole
— A voz de Jill ficou mais baixa —, não estou conseguindo
falar com a Alex.
Apoiando-se no batente da porta cor-de-rosa, Nicole se
encolheu, o choque atravessando seu corpo inteiro.
— Como?
Ele havia sido encontrado atrás do Vale Theatre naquela
manhã, explicou Jill. Ainda estava vivo na hora, mantido
pelas estruturas de metal que o empalaram. Mas sangrou
até a morte na ambulância. A voz de Jill estava aguda, em
pânico:
— Temos que encontrar Alex.
Nicole tentou falar.
— Nicole, está aí?
— Sim. No teatro… — ela conseguiu dizer. — Tem uma
construção pequena de vidro no telhado. Só a gente sabia
disso. — O fato de que ela ainda conseguia formar frases
coerentes era incrível. — Eu o levei para ver o lugar. Nós…
Jill? Jill?
Mas a ligação havia sido desligada.
CAPÍTULO 32
ALEX
D
e sua posição de cabeça para baixo na cama, a
pintura parecia um gato. Um gato ou talvez um
tigre, pintado naquele estilo meio aguado que
deixa pinceladas na tela. Mas se girasse a cabeça para olhar
a imagem do jeito certo, ela mais parecia uma menina, com
olhos profundos e ferinos. Os olhos da sua mãe.
— Isso… — ela falou para a mulher que apareceu ao seu
lado. — O que é isso?
— O que é o quê? — Ela não tirou os olhos da prancheta
que segurava.
— A pintura. É um gato ou uma menina?
Quando a mulher ergueu os olhos para relancear a
pintura, Alex percebeu que ela era jovem, com uma boca
triste e… por que estava usando um jaleco?
— Ah, é uma raposa.
Alex tentou focalizar os olhos, mas suas pálpebras
estavam pesadas e os cantos pareciam grudados, como se
tivesse dormido de maquiagem.
— Onde é que eu estou?
A ruga horizontal profunda na testa da mulher se
suavizou, mas seu tom de voz permaneceu distante.
— Você está no hospital… — ela olhou a prancheta — …
sra. Fuller. Está dormindo já faz bastante tempo. Quase dois
dias. Como está se sentindo? — Sem esperar resposta,
continuou: — Seu médico já vai chegar e te explicar tudo,
agora que você acordou.
— Hospital? — Mas a enfermeira já estava saindo. — Dois
dias? Ei! — Sua voz estava fraca depois de tanto tempo sem
usá-la. — Isso não é uma raposa!
Tentando demonstrar isso com um gesto, Alex ouviu algo
pesado e com rodinhas se mover atrás do ombro esquerdo,
e se virou para ver um suporte de soro ao seu lado. Ela
seguiu o trajeto do líquido cor de xixi indo da bolsa para o
cateter preso ao seu antebraço.
— Ei, volta aqui!
Batendo o suporte na estrutura de metal da cama, Alex
conseguiu fazer barulho o suficiente para trazer a
enfermeira de volta.
— Pode parar com isso, sr. Fuller? Eu falei, pode parar
com isso!
— Por que eu estou aqui? Cadê… — Uma lembrança,
distante, mas que se desenevoava, ia e vinha. Algo vital de
que ela estava se esquecendo. — Eu tenho que sair daqui.
Mas a enfermeira tinha sumido e mandado um homem
baixinho de barba entrar. Ele se sentou ao pé da cama.
— Meu nome é dr. Chua.
Alex sentia um gosto metálico na boca: remédios.
— O que tem nesse soro? Posso… Posso beber água?
O médico entregou para ela um copo de papel e esperou
pacientemente enquanto Alex bebia. Ele parecia simpático,
diferente daquela vaca da enfermeira.
— Você estava muito desidratada quando chegou — ele
explicou, indicando o soro.
— Mas, doutor… — De novo, aquela suspensão da
respiração: algo havia sido esquecido, deixado para trás.
Mas o quê? Percebendo uma faixa avermelhada nos nós dos
dedos, onde segurava o copo de papel, Alex se lembrou de
esfregá-los e do cheiro do talco de bebê: Katie. Um som tão
agudo soou que ela pensou ter vindo de um alarme na rua
lá embaixo. Só quando o rosto do dr. Chua se elevou,
preocupado, sobre ela, Alex entendeu que o som tinha vindo
de sua boca. — Katie — sussurrou. — Cadê minha filha? O
que vocês fizeram com ela?
— Sra. Fuller… Alex. — O dr. Chua segurou sua mão. —
Sua filha está bem e em segurança com a sua mãe.
— Com a minha… — Marcas fundas pontilhavam as
bochechas do médico, resquícios de acne da adolescência.
— Isso não… Não. Você não entende. Ela está em Portugal.
Sem respondê-la, o dr. Chua se aproximou da grande
janela retangular ao lado da porta e com um puxão abriu as
persianas para mostrar o corredor do hospital, antes de
voltar ao seu lado na cama.
O cérebro de Alex levou alguns segundos para
compreender o rosto que a encarava do outro lado das ripas
brancas.
— Sua mãe chegou na manhã depois de você ser
internada. Tirando algumas saídas para levar sua filha para
passear e mamar, ela passou o tempo todo aqui.
— Mãe — Alex articulou com a boca quando elas se
encararam pelo vidro.
A sua mãe estava com os lábios apertados, como fazia
quando tentava não chorar, mas seus olhos sorriam. Ela
piscou uma, duas, três vezes, e Alex reconheceu o código
que as duas haviam criado na sua infância: uma forma de
tranquilizarem uma à outra depois das piores explosões de
seu pai. Três piscadas significam “Eu te amo”.
— Ela pode entrar. Mas primeiro eu e você precisamos
conversar. — O dr. Chua a encarou com tranquilidade por
um momento. — Você tem alguma ideia de por que está
aqui?
Alex não conseguia tirar os olhos da mãe. A mãe, que
tinha vindo e ficado. Mas como? Será que o pai já não
descobrira sobre o empréstimo? Ela não queria pensar em
como a mãe havia pagado por aquele segredo. Mesmo
assim, de alguma forma, ele havia permitido que ela
entrasse em um avião e viesse.
— Você está passando por um período difícil, não está? —
O dr. Chua ergueu uma sobrancelha fina. — Pode me contar
um pouco sobre isso? Começou quando Katie nasceu, talvez
logo depois?
— Você acha que… Não, não. Isso não é uma coisa de
pós-parto. — O remédio que lhe deram estava deixando-a
enjoada. Ela engoliu em seco. — Eu não estava dormindo
muito, tendo que fazer tudo sozinha… Bom, não tem sido
fácil.
O dr. Chua assentia, compreensivo.
— Eu só achei que, se conseguisse acertar… Sabe? Se
conseguisse ser uma mãe tão boa para Katie quanto era
boa no meu trabalho. — Seu estômago se revirou com a
lembrança. — Mas aí tiraram meu emprego de mim.
Uma após a outra, as memórias começaram a voltar,
como mensagens detidas por uma conexão ruim, e Alex
começou a chorar tanto que perdeu o controle dos músculos
do rosto. Envergonhada, ela virou o rosto para o outro lado,
enfiando-o no travesseiro.
— Alex, às vezes, quando uma pessoa passa por um
trauma, como a perda de um familiar ou de um emprego
que significa muito para ela, isso pode despertar ou
exacerbar uma questão que já existia, adormecida, havia
algum tempo. Também é possível que isso aconteça após o
parto. Seja como for, nós achamos que o que você teve foi
um episódio psicótico.
Alex o encarou.
— No desenvolvimento desse episódio, a realidade às
vezes parece distorcida ou até dominada por paranoias,
manias e fixações em certas coisas ou pessoas. — Ele
pausou, mas não por tempo o suficiente para estar
esperando uma resposta. Ainda bem, porque ela não tinha
ideia do que ele estava falando. — Mas esses sentimentos
tendem a ter uma origem. E nós gostaríamos de explorar
diferentes fatores que contribuíram para essa situação: o
impacto da perda do seu emprego… — Ele fez uma pausa,
dando uma olhada para a mãe de Alex. — Seu pai,
provavelmente.
— Meu pai?
— Eu conversei com a sua mãe. Ela nos contou um pouco
da sua história, de como você teve problemas na infância e
na adolescência, do medo que sentia do seu pai, muitas
vezes com motivo.
— Ela disse isso?
O dr. Chua assentiu.
— Ela… — Alex olhou para a mãe. — Ela te contou mais
alguma coisa? Que não era só comigo?
— Sua mãe não é minha paciente — respondeu o médico
com firmeza. — Então não cabe a mim discutir as
experiências dela. Mas vou dizer que a violência doméstica
raramente se restringe a só membro da família.
— Violência…
— Acho que vocês duas têm muito o que conversar.
Porque isso… — Ele fez um gesto indicando a situação atual
de Alex, e, embora sua voz fosse calorosa e empática, ela
sentiu uma onda de vergonha com a natureza simplificadora
do pronome. — Isso não é você, Alex. E imagino que não se
sinta como você mesma já faz um tempo. Mas quando
tivermos uma ideia melhor do que está acontecendo aqui —
ele deu uma batidinha na têmpora direita —, vamos poder
começar um tratamento. Tudo bem?
O que mais Alex poderia fazer além de concordar?
— Agora vou sair e dar um minuto para você conversar
com a sua mãe a sós. Mas vai ter que ser rápido, porque
temos algumas coisas importantes a discutir.
Mais uma vez, Alex concordou, desesperada para ouvir a
voz da mãe e enfiar o rosto na curva morna do pescoço
dela. Mas, depois de alguns murmúrios no corredor, quando
a mãe apareceu na porta, Alex só conseguia pensar em
como a decepcionara, como o pai dela devia ter ficado
furioso por causa do dinheiro… e agora isso.
O rosto contorcido, ela conseguiu dizer:
— Desculpa, mãe. Desculpa por tudo.
Mas seus soluços foram abafados pela blusa da mãe, e
pelo que pareceu um longo tempo as duas só ficaram ali
abraçadas. Quando Alex tentou falar de novo, perguntando
por Katie, a mãe explicou que ela estava em casa, em
segurança, com uma babá, e que não precisava se
preocupar. Outras perguntas foram abafadas enquanto a
mãe continuava acariciando seu cabelo em um ritmo lento e
constante.
— Meu amor.
— Mãe…
— Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Com isso, Alex se forçou a sair do abraço.
— Como? Como que vai ficar tudo bem? Eu não vou
conseguir te pagar o empréstimo, mãe.
— Eu não ligo para isso. Não ligo para nada disso, amor.
Tudo que importa é que você se trate, que você fique
melhor…
— Mas o meu pai… A casa nova…
A mãe dela cerrou a mandíbula.
— Não tem casa nova nenhuma. Não para nós, não para
mim. — Ela apoiou o rosto da filha na palma da mão. — Eu
deveria ter dado um ponto-final nesse comportamento anos
atrás, décadas atrás. E eu teria feito isso se tivesse ideia do
que isso te causou. Mas eu era fraca, eu…
— Você estava com medo.
Sua mãe assentiu, e Alex viu que ela lutava contra as
lágrimas antes de seu rosto assumir uma expressão que
nunca havia visto: parte raiva, parte determinação.
— Quando recebemos a ligação… quando descobrimos o
que tinha acontecido com você, e ele tentou me impedir de
entrar no avião… — Ela balançou a cabeça. — Nem eu nem
você nunca mais vamos sentir medo ou vamos ser
controladas por ele, isso eu te prometo. E eu vou ficar aqui
com você… — a mãe a puxou para outro abraço — …
enquanto você precisar de mim. Vamos ser eu, você e
aquela garotinha linda.
— Desculpem-me por interromper. — O dr. Chua já tinha
voltado.
— Ela não pode ficar só mais uns minutos? — pediu Alex.
Uma mensagem silenciosa foi transmitida entre o médico
e sua mãe.
— Meu bem, vou dar uma olhada em Katie. Mas volto em
uma ou duas horas.
Alex se agarrou a ela, mas sua mãe se afastou com
gentileza e a beijou na testa.
— É só por algumas horas, eu prometo. E, se o dr. Chua
achar que não tem problema, posso até trazer a Katie.
Dessa vez o dr. Chua puxou uma cadeira.
— Os sedativos que te demos podem estar te deixando
um pouco tonta. Em longo prazo, precisaremos prescrever
para você um antipsicótico e um antidepressivo. Encontrar a
combinação certa de medicamentos pode levar tempo,
então você terá que aguentar firme, mas é importante que
entenda que estamos lidando com algo um pouco menos
previsível do que depressão ou até psicose pós-parto aqui e,
portanto, mais difícil de controlar.
— Minha mãe… — Alex pigarreou. — Ela falou de uma
ligação, que alguma coisa aconteceu. O que aconteceu? O
que eu fiz?
— Já vou chegar nisso — respondeu ele baixinho. —
Falamos com amigos e colegas e eles nos disseram que
você tem se concentrado bastante no homem que te
demitiu nas últimas semanas e meses. De forma doentia.
Uma pessoa descreveu como uma obsessão.
Flashes, como se seu cérebro estivesse entrando e saindo
de sintonia de novo: Jamie segurando Katie, cercado por
mulheres babando nele. Como ela permitiu que ele a
tocasse? E quando isso aconteceu? Jamie atrás de uma
mesa, lendo em voz alta algum manual de RH. Jamie em um
pub, cheio de si, rolando em aplausos. A programação
semanal de Jamie, com todos os seus blocos codificados por
cores.
— Achamos que essa fixação teve seu ápice nesse
episódio.
Alex voltou a se sentir enjoada.
— Você ficou violenta, Alex.
— Não. Não pode ser. — Ela nunca tinha erguido a mão
para ninguém na vida adulta. — Eu nunca…
— Você foi até a casa do seu chefe e atacou a esposa
dele.
Maya. Ah, Deus.
— As filhas dela…?
— As filhas dela estão bem. Mas Maya se machucou.
— Não. Maya é minha amiga. Eu nunca faria nada contra
ela.
— Mas foi o que aconteceu. Ela teve que ir para o
hospital.
— Não, não…
Alex tentou se erguer. Precisava sair dali, descobrir o
quanto daquilo era verdade, se é que era.
— Eu preciso que você se acalme e se concentre, porque
a próxima parte é importante.
Exausta, ela se recostou no travesseiro.
— Você teve sorte. A esposa do seu chefe vai ficar bem,
e, pelo que fiquei sabendo, não quer prestar queixa. Mas
poderia ter sido muito pior.
O seio de Maya, cheio de veias azuis, exposto. Pétalas de
magnólia caindo como confete. Uma manta de piquenique
xadrez e Katie de costas, bracinhos levantados em ângulos
retos. Nicole estava lá, e Jill. Não, não Jill, só Nicole, prestes
a estragar tudo. E durante tudo isso, o monótono subir e
descer das sirenes.
— Você tem certeza… — Alex engoliu e tentou de novo. —
Você tem certeza de que foi a esposa do meu chefe que
eu…
— Tenho certeza. E minha única preocupação é a sua
saúde e o seu tratamento, mas a polícia quer falar com
você. Eu sou obrigado a avisá-los de que você está
consciente agora. Porque eles estão tentando descobrir para
onde você foi depois.
— Depois?
— Depois.
As sirenes estavam ficando cada vez mais altas. A única
forma de bloqueá-las era entrar na estação de metrô mais
próxima. Foi isso que ela fez depois.
— Eu peguei o metrô para casa. Com Katie.
— Sabemos que você foi para casa primeiro. E, de novo,
essa não é a minha preocupação. Mas não foi lá que você
foi encontrada mais tarde naquela noite. Sua filha, Katie, foi
encontrada no apartamento, sozinha. Ela estava bem. Ela
está bem, você tem que entender isso, mas a polícia
encontrou outras coisas lá, Alex: do seu antigo chefe, e-
mails particulares dele. E o que eles estão tentando
descobrir é se você foi a outro lugar naquela noite, se você
encontrou o sr. Lawrence. — O dr. Chua se aproximou. —
Essas são as perguntas que a polícia vai fazer a você.
Porque Jamie Lawrence morreu, Alex. E a polícia acha que
você teve algo a ver com isso.
CAPÍTULO 33
JILL
7 de agosto
JILL
– J ill?Agachado
Vem dar uma olhada nisso.
perto dos galhos baixos e amplos de um
freixo no Jardim da Reflexão do Crematório de Mortlake,
Stan começou a ler as mensagens deixadas nas folhinhas
prateadas pelos enlutados.
— “Você era tudo para mim, Ted.” “JJ, você vai morar para
sempre no meu coração.” “Te amo mais que todas as
estrelas do universo, minha querida Anita.”
No luto, a emoção humana é reduzida a letras de música.
E talvez não houvesse nada de errado com isso; talvez, no
final, banalidades sejam as coisas mais honestas que as
pessoas conseguem transmitir. Contudo, não havia nada de
honesto na presença de Jill ali, fingindo “celebrar a vida e
lamentar o falecimento” de James Edward Lawrence,
quando ela não podia, em sã consciência, fazer nem uma
coisa nem outra.
— Acho que não consigo fazer isso.
A cerimônia ia começar em dez minutos — e Jill sentia
suas costelas apertarem vilmente.
— É claro que consegue. — Stan se levantou. — Você
ficou acordada até sei lá que horas escrevendo.
— Eu sei. Mas eu não deveria ter concordado em escrever
o elogio fúnebre. Não… cabe a mim.
Pela pausa do marido, ela percebeu, com um pânico
crescente, que ele sentia o mesmo. E havia mais uma coisa.
— Você não deveria ter que estar aqui. — Jill passou os
braços em torno da cintura do marido, alarmada ao
perceber como suas mãos se encontravam nas costas dele
com facilidade, como se a própria substância dele estivesse
se esvaindo. — Você não deveria ter que…
— Encarar a morte de frente? — Virando-se para a
esposa, Stan levantou seu queixo. — Ei. Eu e a morte já
somos amigos faz muito tempo. Eu sei que é pedir demais,
mas queria que você fizesse as pazes com ela como eu. Ou
de algum jeito… voltar a não saber.
Como ela poderia fazer isso? Era naquilo que pensava
assim que acordava, procurando sob as cobertas o corpo
cálido e reconfortante do marido antes mesmo de abrir os
olhos, e era seu último pensamento antes de cair no sono.
Então, não, ela não seria capaz de suspender a realidade.
Mas, se Stan queria que ela fosse corajosa, então era assim
que ela agiria.
Nos dias seguintes àquela última conversa com a polícia,
aos resultados da autópsia e à declaração oficial de suicídio,
Jill tinha ido e voltado da culpa para a fúria. Diferente de
Jamie, seu marido não tinha a chance de escolher como ou
quando ia morrer. Ele nem sequer pôde escolher como
contar à esposa quanto tempo lhe restava: deixando
escapar o que sabia naquela noite, Jamie roubara isso de
Stan. E mesmo assim… o quão desesperado Jamie estaria
para fazer o que fez? Certamente ele sentia que o mundo
estava se fechando ao seu redor. Um mundo que ela, Nicole
e Alex haviam manipulado para que fizesse exatamente
aquilo.
Atrás das roseiras e das macieiras que cercavam o Jardim
da Reflexão, o vislumbre de um carro fúnebre surgiu.
Stan tinha razão. Ela estava ali agora e precisava
enfrentar aquilo.
— É melhor a gente ir.
Quando deram a volta na cerca viva, uma criancinha de
preto saiu do carro atrás do carro fúnebre. Jill quase deu as
costas e fugiu.
— Aquelas meninas… — murmurou. — Não vou aguentar.
— Eu sei, amor. — A voz do marido já não estava tão
firme quanto antes. — Vamos.
Lá estava Maya — com a postura bem ereta, usando um
vestido de linho preto e decote quadrado simples,
segurando Elsa no quadril —, assentindo para as pessoas
reunidas enquanto passava pelo arco da entrada do
crematório. Ao se aproximarem, porém, Jill percebeu outra
figura: uma mulher com um chapéu preto de abas largas e
óculos escuros, sozinha, de pé ao longe.
— Ela veio.
Nicole ergueu os olhos do guia de orações que segurava e
encarou Jill, a incredulidade pelo que lera espelhando a
emoção da mulher mais velha.
— Maya não quis fazer o discurso fúnebre… — explicou
Jill, na defensiva. — Então me pediu e eu… não pude
recusar. O pai de Jamie vai fazer o principal. O meu vai ser
curto. É só um… Bom. Mas você? A Maya te viu?
Jill pensou nas manchetes que surgiram depois da morte
de Jamie: ILUSTRE CORRETOR IMOBILIÁRIO SE JOGA PARA A MORTE APÓS
ACUSAÇÃO DE ASSÉDIO; CORRETOR DE IMÓVEIS DEMITIDO É ENCONTRADO
EMPALADO EM OBRA.
— Foi ela que me pediu para vir — respondeu Nicole em
voz baixa, se balançando um pouco nos saltos altos. — E eu
não poderia… deixar de vir.
Algo no rosto excessivamente maquiado de Nicole
relaxou, e, enquanto as duas se encaravam, Jill sentiu a
própria raiva e recriminações desaparecem, junto às de
Nicole. Toda aquela amargura, e ódio, exauriu as duas.
— Stan? — Depois de uma conversa breve com Paul, o
marido dela se juntara às duas. — Essa é a Nicole.
— Já nos conhecemos. — Stan. Sempre educado e
comedido, mesmo nas circunstâncias mais difíceis. — Acho
que eu já tinha me afastado da empresa quando você
começou, não?
— Exato.
Aquela troca era o mesmo preâmbulo banal de qualquer
reunião social, com o mesmo silêncio de “o que mais temos
para falar?” ao ser concluída — silêncio que Nicole
preencheu perguntando sobre a saúde de Stan. Mas,
conforme o diálogo continuava, ficou evidente para Jill que
qualquer tipo de interação estava sendo muito difícil para
Nicole. Algo curioso havia acontecido com a boca dela, os
lábios pintados de magenta se curvando de forma
estranhamente dura nas vogais, e naquele momento Jill
compreendeu o quanto custava a Nicole estar ali, apesar
dos óculos escuros, do chapéu e do batom. Aquilo tinha sido
mais do que um caso. Talvez perder Jamie fosse a maior
tragédia da vida dela.
Nos primeiros acordes de “The Lark Ascending”, de Vaughan
Williams, as pessoas pararam de conversar, ajeitando
gravatas, blazers e rostos em expressões sóbrias. O calor da
mão de Stan aquecia as costas de Jill enquanto ele a guiava
pelo corredor do crematório. Quando ela se voltou para ele
com um último olhar suplicante, ele assentiu de leve.
— Em uma hora isso já vai ter acabado — murmurou ele
quando se sentaram.
Que ele compreendesse, sem saber o que ela fizera, que
Jill queria se distanciar de tudo que tivesse conexão com
Jamie depois daquele dia era um milagre. E enquanto um
pastor de cabelo raspado e expressão arrebatada garantia
aos presentes que Deus “ouviria seus lamentos e os
confortaria”, “acenderia uma vela por eles” e “estaria com
vocês no vale mais sombrio”, Jill observava a pequena
Christel, três bancos à frente, brincando com uma fadinha
de plástico, fazendo-a caminhar para a frente e para trás na
madeira polida do banco.
Será que Maya comprara o brinquedo para a ocasião?
“Seu papai se matou. Ele está naquele caixão ali porque não
quis esperar você perder seu primeiro dente, se tornar uma
mulher e ir ao seu primeiro encontro. Mas toma, um
presente.” Ali, a distância entre ela e as mulheres com filhos
pareceu maior do que nunca. Jill só precisava pensar em si
mesma e em Stan; a dor de perdê-lo e de viver sem ele.
Como Maya conseguiria permanecer forte não só por si
mesma, mas por Christel e Elsa, para sempre?
Com passos pesados, o pai de Jamie seguiu até o altar da
capela e parou em frente ao caixão do filho. Jill percebeu
que o terno preto parecia pouco usado, embora não fosse
novo — era do tipo que homens aos sessenta anos
compravam quando começavam a perder alguns amigos e
percebiam que mais perdas viriam. Um “uniforme de
funeral” que nenhum pai jamais imaginaria ter que usar
para enterrar o próprio filho.
O cabelo branco dele brilhava contra a pele bronzeada do
rosto — um rosto expressivo e honesto —, e Jill se lembrou
das fotos do apartamento em Alicante que Jamie havia
mostrado a ela uma vez no celular, orgulhoso de poder dar
aos pais a aposentadoria que sonharam, mas esnobe
demais para visitar — “o sol e o vinho não compensam os
bandidinhos”. Jamie não mencionava muito os pais, mas,
nas raras ocasiões em que o assunto surgia, Jill se lembrou,
seu tom sempre fora amoroso.
Ted Lawrence devia ter se tornado pai no final da
adolescência ou aos vinte e poucos anos. Em contraste com
o cabelo, o rosto dele era jovem e sem rugas, os olhos do
mesmo castanho aveludado de Jamie. Ele era
provavelmente travesso também, em circunstâncias
normais. Trabalhava com alguma coisa de aquecimento
central. Caldeiras, era isso: Ted consertava caldeiras em
Sevenoaks, onde ele e a esposa, Laura, moraram até se
aposentar. Ela estava lá, ao lado de Maya, os soluços
incontroláveis audíveis pela capela inteira. Jill não
aguentava olhar para ela.
— Ver tantas pessoas aqui hoje, saber o quanto o nosso
filho era amado, é um grande conforto para mim e para a
minha esposa — começou o sr. Lawrence devagar, tirando
um lenço de papel amassado do bolso e alisando-o com a
palma da mão no leitoril. — Mas estou aqui com meu
coração partido. — Ele hesitou, e Jill desejou que ele
conseguisse superar aquilo antes de se lembrar que não
havia como superar aquele tipo de luto. — Eu e Laura nunca
achamos que teríamos que lidar com a perda do nosso filho,
nosso único filho. Eu me atrevo a dizer que ninguém acha
que isso pode acontecer. Mas perder um filho assim.
Sabendo que ele sentia não ter nenhuma alternativa, que
não podia contar com ninguém. — O sr. Lawrence balançou
a cabeça. — Porque Jamie tinha muitos planos, sabe? Para o
futuro. E ele estava trabalhando para torná-los realidade.
Então isso… — Assentindo para a esposa, os olhos do pai de
Jamie se encheram de lágrimas. — Isso não faz sentido. Ele
sempre foi um otimista, desde menininho. Ele nunca
deixava a gente dormir até mais tarde nos fins de semana.
Ele aparecia com o sol, pulando na cama, dizendo para a
gente acordar. Não é, Lau?
A resposta da esposa foi um soluço estrangulado. Ele
seguiu.
— E era sempre a mesma coisa. “O que a gente vai fazer
hoje, pai?” Como se todos os dias fossem uma nova
aventura. E eu sabia que o normal com que eu e a mãe dele
estávamos acostumados não seria o suficiente para Jamie.
Ele queria algo especial, e conseguiu. Ele conseguiu uma
esposa maravilhosa… — Ted sorriu para Maya — … e filhas,
e uma casa, e um trabalho melhor do que qualquer coisa
que poderíamos imaginar. Ser sócio em uma firma… — a
voz dele se engasgou — … de primeira linha em Londres…
aparecendo em jornais e revistas.
Pelo canto do olho, Jill podia ver a mãe de Jamie
assentindo com veemência sob as lágrimas. Ela imaginou os
artigos emoldurados nas paredes — uma geladeira coberta
de lembranças com os sucessos de Jamie — e uma visão
contrastante das matérias que saíram depois da morte dele.
— Si que esse sucesso foi maculado no final, ou… ou… —
Jill se encolheu com a tristeza daquele homem buscando em
vão a palavra correta para descrever o que acontecera com
o filho ao fim da vida. — Mas hoje não precisamos pensar
nisso. Hoje lembramos de tudo que Jamie conquistou. O que
não foi nenhuma surpresa para nós. Porque eu o levava
comigo em alguns trabalhos quando ele era um rapazinho,
sabe, e quando eu explicava para o cliente que
provavelmente a caldeira inteira precisaria ser trocada, e o
cliente se zangava, sabe: “Mas quanto isso vai me custar?”
Bom, era aí que Jamie sempre falava alguma coisa como
“Meu pai consegue consertar qualquer coisa, pode confiar
nele”. E desde pequeno ele tinha esse efeito nas pessoas.
Os homens o adoravam, e as mulheres também. — O lábio
dele se curvou, um toque de orgulho macho pelo sucesso do
filho com o sexo oposto. — E, apesar do que ele fez, sei que
ele nos amava também.
Quando o queixo do sr. Lawrence se apoiou no peito e
seus ombros começaram a tremer, o pastor se aproximou e
sussurrou algumas palavras no ouvido dele.
— Não, eu… só quero dizer mais uma coisa: sempre
teremos orgulho de você, meu filho. E esperamos que você
esteja em paz.
Durante a leitura do Eclesiastes e toda a execução de
“Supermarket Flowers”, de Ed Sheeran, Stan segurou a mão
de Jill, apertando-a de leve quando ela se levantou para
discursar.
— Sr. e sra. Lawrence, Maya, tenho certeza de que falo
por todos quando digo que, se pudéssemos aliviar um
pouco do sofrimento de vocês, nós o faríamos. Mas espero
que vocês tenham algum conforto em saber que todos aqui
partilhamos dessa dor.
Nicole estava lá no fundo, a terceira do corredor, tão
sombria e incômoda quanto uma mancha na lente, e, atrás
do leitoril, Jill transferiu o peso de um pé para o outro.
— Todos aqui conheciam Jamie em diferentes níveis… —
Mantenha-se em um contexto profissional, disse a si mesma
na noite anterior, e vai ficar tudo bem. — E eu, que percebi
seu potencial 12 anos atrás, o trouxe para a BWL e trabalhei
ao lado dele esse tempo todo, pude vê-lo crescer na vida
profissional e na pessoal. Eu o vi se transformar em um
marido e em um pai amoroso para Christel e Elsa. Eu o vi
ascender de corretor júnior para sócio. — Ela pigarreou. —
Mas aquela sede por aventura de que o senhor falou, sr.
Lawrence, sempre foi uma das características mais
marcantes dele. — Porque você sempre queria mais, não é,
Jamie? Por quê? Não havia aventura suficiente para você na
vida adulta? Ou você só ficou mimado, pelos seus pais,
pelas mulheres, pelo sucesso, por mim? — Isso sem falar no
carisma de Jamie, no seu magnetismo, que eram… —
exaustivos, destruidores — perceptíveis por qualquer um
que o conhecesse. Quando ele estava conversando com
alguém, fosse quem fosse, aquela pessoa sempre se sentia
a mais importante do mundo. Esse é um dom raro, sem
dúvida. — Um dom do qual você abusou, Jamie, várias e
várias vezes, para conseguir o que queria. — Em um
mercado como o nosso, em que o charme é tão importante,
essa característica deu a ele uma energia, um poder, que o
impulsionava sempre em frente. — E tornava fácil demais
atropelar os outros, Jamie. Ela pausou. — O fato de que por
baixo daquela fachada brilhante havia uma alma
atormentada não era algo que muitos de nós
suspeitávamos. Mas Jamie deixou sua marca em todos aqui
enquanto esteve conosco. Mais uma vez, tenho certeza de
que falo por todos quando digo que ele não será esquecido.
CAPÍTULO 35
NICOLE
Dezembro
– E le Ovai aviso
te pegar, ele vai te pegar!
veio tarde demais. “Suzie Pong”, a
lavadeira suja que Nicole não tinha lembrança nenhuma de
estar no Aladdin original, já se inclinava por cima dela e
pegava Ben pela mão.
— Pode levantar — gritou ela com a voz esganiçada, a
barba por fazer e a mancha de batom nos dentes visíveis de
perto. — Vou precisar de um aprendiz na minha lavanderia,
e você parece perfeito. — Girando Ben pela cintura para
fazê-lo encarar a plateia, Suzie Pong berrou: — Vocês não
acham que ele parece perfeito, senhoras, senhores e
amigues não binários?
Um coro de assobios e gritos abafou os protestos do
marido, e Nicole se encolheu no assento, deixando Ben ser
arrastado pelo corredor até o palco.
— Alguma coisa me diz que o papai vai ser feito de bobo
— sussurrou ela no ouvido da filha.
Quando Chloe explodiu em uma de suas risadinhas,
mostrando os dentes descombinados, Nicole sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Todos esses anos ouvindo amigas reclamando da cafonice
sentimental natalina que as inundava no shopping ou no
ringue de patinação quando os primeiros acordes de “Last
Christmas”, do Wham!, começavam a tocar, Nicole nunca
tinha entendido. Até este ano. Até ela quase perder tudo e
ter que lutar para recuperar sua vida, pedaço a pedaço.
Ao voltar para casa, aquelas ondas de emoção a
dominaram várias vezes por dia. Eram tão fortes que a
deixavam tonta e surgiam do nada: quando estava
colocando três lugares na mesa ou tentando encontrar o par
da meia estampada de estrelinhas nas roupas emboladas
recém-saídas da secadora. Quando pegava cartas na caixa
de correio endereçadas ao sr. e à sra. Harper. Quando, ao
subir para o quarto de hóspedes em que Ben a fizera dormir
por mais de um mês, teve um vislumbre da nuca do marido
editando vídeos para a produtora na qual agora trabalhava.
Todas as coisas que antes a faziam se sentir enclausurada
agora eram lembretes tangíveis da verdadeira felicidade.
Porque não era ver seu sobrenome ser aplicado à parede da
recepção com o de Paul e Jill, depois de todos aqueles anos,
ou a primeira carta escrita no papel timbrado da BWL, afinal,
mas algo bem mais sutil. E, quando saiu para celebrar sua
promoção no mês anterior e sua nova assistente mostrara a
tatuagem que estava removendo, Nicole ficou fascinada
pelos fragmentos de tinta preta visivelmente sendo
destruídos, ponto a ponto, sentindo que aquele mesmo
processo de purificação acontecia dentro de si. E que, com
Ben e Chloe ao seu lado, a toxicidade na sua corrente
sanguínea com o tempo seria eliminada.
Por causa disso, Nicole não sentiu a tensão usual quando
Ben comentou sobre a excursão que faziam todo ano antes
do Natal para o teatro.
— É claro que vamos — insistira ela.
E como Nicole explicaria que a banalidade do evento era
que o tornava tão significativo? Mais ainda do que aquela
primeira noite que passaram juntos na mesma cama,
quando, apesar das três taças de Merlot que Ben virara,
talvez de propósito, a sensação era que ele tinha se forçado
a passar logo por aquilo, mantendo os olhos fixos em um
ponto distante da cabeceira até acabar. Naquela tarde de
sábado, porém, no teatro — com as discussões sobre dar ou
não chocolate para Chloe e uma corrida desesperada ao
banheiro feminino no intervalo —, Nicole sentia que a
família era quase igual a todas as outras.
— Minha nossa! Isso não parece certo. O que vocês
acham?
Risadas encheram o auditório, e Nicole olhou para o
marido em cima do palco. Preso a um varal por dois
pregadores gigantes que puxavam sua camisa como se
fosse um boneco de ventríloquo, Ben estava se esforçando
para parecer tranquilo. “As duas piores palavras do
mundo?”, ele brincara em um dos primeiros encontros com
ela. “Teatro interativo.”
Sim, Ben estava odiando cada segundo daquilo. Daquele
jeito que casais que estão juntos há muito tempo são
capazes de perceber as emoções um do outro, Nicole
conseguia sentir as ondas de irritação emanando dele. Mas
sabendo que Chloe estaria se divertindo vendo o pai no
palco, Ben aguentaria com um sorriso no rosto. E aguentar a
humilhação, Nicole agora compreendia, era a maior prova
de amor.
De forma tão graciosa quanto tinha sido arrancado do
assento, Ben foi chutado do palco — “Uma salva de palmas
para o meu aprendiz! Estou mandando esse aqui direto para
o olho da rua!” —, e quaisquer que fossem as palavras bem-
humoradas que ele tivesse sussurrado no seu ouvido ao se
sentar de novo foram abafadas pela música eletrônica,
“Firestarter”, do Prodigy, enquanto o elenco se juntava no
palco para a cena final.
— Mamãe! Eu tô com fome! — choramingou Chloe
enquanto eles desciam lentamente as escadas do teatro e
saíam para as ruas lotadas de Hammersmith decoradas
para o Natal.
— Como que você pode estar com fome? — questionou
Nicole, se abaixando para fechar o casaco da filha. — Você
acabou com uma barra inteira de chocolate quase sozinha.
— Ela não almoçou direito. A gente pode dar uma
passada nas barraquinhas.
Seguindo o olhar do marido e sentindo os aromas doces e
salgados — churros, carne assada e algo quente e alcoólico
de frutas —, Nicole deu uma olhada na fileira de barracas do
outro lado da rua.
— Vamos nessa — concordou. Então, vendo uma caixa de
correio, avisou: — Já encontro vocês.
O cartão de Natal ficara esquecido na sua bolsa a semana
toda e, alisando as beiradas dobradas, Nicole checou o
endereço uma última vez — “Alex Fuller, Oak View Cottage,
Albion Road, Marden, Tonbridge” — e enfiou o cartão pela
fresta.
— É só um apartamento alugado, e é minúsculo — Alex
lhe contara. — Então minha mãe ficou com o quarto e eu
fico no sofá-cama da sala, mas assim que o dinheiro do
divórcio sair ela vai comprar um lugar maior para a gente. É
tão tranquilo aqui, até a Katie está dormindo a noite inteira!
Você tem que vir nos visitar.
Nicole prometeu que iria, sabendo que isso nunca
aconteceria, que essa era a última coisa que ambas
precisavam ou desejavam, e que qualquer coisa além de
raras ligações só traria à tona lembranças dolorosas. Uma
garotinha de preto no funeral do pai; duas garotinhas que
passariam o primeiro de muitos Natais sem ele.
Mas Nicole havia desenvolvido uma série de estratégias
evasivas para banir Christel e Elsa de sua mente sempre
que elas apareciam. Segurando a mão enluvada de Chloe,
os três seguiram para as barraquinhas natalinas.
— Você se lembra da última vez — comentou ela, olhando
para Ben com um sorriso —, que eu desenvolvi um olfato
bizarro?
— Se eu me lembro? Você sabia o que eu estava fazendo
para o jantar antes de sequer abrir a porta.
— Da última vez o quê? — perguntou a filha.
Os dois sabiam que ela nunca deixaria o assunto para lá.
Levando Chloe para um canto, longe da multidão que
passava com rapidez, Ben colocou a mão na bochecha
corada da menina.
— O que você acharia de ter um irmãozinho ou
irmãzinha?
Os olhos de Chloe foram e voltaram de Ben para Nicole.
Então, por um segundo, uma sombra franziu as
sobrancelhas dela.
— E a gente moraria todo mundo junto? Eu, você, a
mamãe e meu irmãozinho ou irmãzinha?
— É claro, filha. — Por cima da touca de pompom da filha,
Ben encarou Nicole. — Eu nunca deixaria nada mudar isso.
Observando a felicidade no rosto do marido se espalhar
para o da filha, Nicole rezou pela milionésima vez para que
o bebê chegasse só algumas semanas mais tarde.
CAPÍTULO 36
JILL
E
ste livro surgiu graças à infinita paciência e ao olho
clínico da minha agente, Eugenie Furniss. Cada “Ai!”
rabiscado seu, Eugenie, me fez mais feliz do que
você pode imaginar, e o agora falecido, meu grande amigo
e agente, Ed Victor, ficaria tão feliz de saber que você
continuou de onde ele parou.
Minha editora, Ro-sanna Forte, fez os melhores
comentários que qualquer autor poderia querer. Obrigada
por acreditar na história e nos personagens de Acerto de
contas a ponto de ficar irritada com o que Jamie dizia — o
que me forçava a te relembrar que “ele não existe de
verdade”.
Thalia Proctor, Laura Vile, Stephanie Melrose e toda a
equipe da Sphere na Little, Brown Book Group foram
brilhantes e incansáveis, e estou muito animada para
trabalhar com todos vocês de novo no próximo livro.
Tenho uma dívida especial com Alexandra Kordas da 42
Management & Production, cuja energia e entusiasmo
iluminaram muitos dias cansativos da quarentena. Também
sou profundamente grata a Malcolm Ward, por ler algumas
das passagens mais sinistras que já passaram por sua caixa
de e-mails; a Simon Raw, por me colocar em contato com o
incrível gerente de palco do Her Majesty’s Theatre, Stewart
Arnott, e a Emily McCullagh, por seu conhecimento e suas
respostas rápidas, apesar de ter coisas muito mais
importantes para fazer.
Um obrigada especial a Mike Beveridge, do Canal and
River Cruises Ltd, por me fornecer informações que
pesquisa nenhuma traria; a John Goodall por dividir seu
vasto conhecimento sobre arquitetura; a Vincent Galea por
seu conhecimento jurídico. É preciso deixar claro que
qualquer erro cometido é de minha responsabilidade.
Obrigada aos meus amigos Darryl Samaraweera, Jessica
Fellowes, Kate Johnson, Caroline Graham e Alice Evans, pela
ajuda, pelo apoio e pelo tempo, e a Paul Paolella, por ser a
inspiração por trás “daquela cena”.
É só por causa da generosidade do Telegraph —
permitindo que eu tirasse um ano sabático — e da
assistência de Maria Flor que fui capaz de encontrar tempo
para escrever. Que você tenha lido Acerto de contas inteiro
em uma única noite insone, Cory, significa muito para mim.
Sou infinitamente grata à minha família: Olly, Frank,
mamãe e papai. Elise, você me ajudou mais do que
qualquer outra criança de nove anos do mundo, criando
reviravoltas cada vez mais sombrias. E, Piers, obrigada por
aguentar minhas perguntas aleatórias e muitas vezes
nojentas — “Será que Jamie deveria sobreviver ao ser
empalado, ou deveria morrer na hora?” —, em geral tarde
da noite, quando você estava tentando pegar no sono. Você
tem razão: eu preciso melhorar minha conversa na hora de
dormir.
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro
EDITOR RESPONSÁVEL
André Marinho
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Júlia Ribeiro
Adriano Barros
REVISÃO DE TRADUÇÃO
Fernanda Belo
REVISÃO
Alessandra Volkert
DIAGRAMAÇÃO
Douglas Kenji Watanabe
PRODUÇÃO DE EBOOK
S2 Books
[ 01 ] N.T.: National Health Service [Serviço Nacional de Saúde].