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"Quando o mundo estiver unido na busca do

conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder,

então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."
O ECO NEGRO
(The Black Echo)
Michael Connelly
 
Este livro é para W. Michael Connelly e
Mary McEvoy Connelly
 
CAPÍTULO 1
Domingo, 20 de maio
O rapaz não conseguia ver no escuro, mas não
precisava. A experiência e uma grande prática lhe disseram
que estava bom. Limpo e uniforme. Traços suaves, movendo
o braço inteiro enquanto rodava gentilmente o pulso.
Mantendo o tubo em movimento. Sem pingos. Lindo. Ouvia
o silvo do ar saindo e conseguia sentir o rolar da bolinha.
Eram sensações que o confortavam. O cheiro lembrou-o da
meia dentro do bolso e pensou em colocá-la. Talvez a
seguir, decidiu. Não queria parar agora, não queria parar
até ter acabado de desenhar o seu nome de grafiteiro com
um único traço ininterrupto. Mas, de repente, parou quando
o som de um motor se sobrepôs ao do silvo da lata de spray.
Olhou em volta, mas não viu luz nenhuma exceto a do
reflexo branco prateado da lua no reservatório e da
lâmpada fraca por cima da porta da casa das bombas, que
ficava a meio caminho do outro lado da barragem. Mas o
som não morreu. Havia um motor se aproximando. Para o
rapaz, parecia o som de um caminhão. E agora achava que
conseguia ouvir o barulho dos pneus esborrachando o
cascalho da estrada de acesso que rodeava o reservatório. E
estava se aproximando.
Quase três da manhã e havia alguém se aproximando.
Para quê? O rapaz se levantou e atirou a lata de aerossol
por cima da vedação, para a água. Ouviu-a bater no
matagal, errando o alvo por pouco. Tirou a meia do bolso e
decidiu por uma rápida inalação apenas para ganhar
coragem. Enfiou o nariz na meia e inspirou furiosamente os
vapores da tinta. Balançou para trás nos calcanhares e as
pálpebras piscaram involuntariamente. Atirou a meia por
cima da vedação. O rapaz levantou a motocicleta e
empurrou-a para o outro lado da estrada, de volta à erva
alta, aos arbustos e aos pinheiros no sopé da colina. Era um
bom esconderijo, pensou ele, e poderia ver o que estava
chegando. O barulho do motor era agora mais forte. Ele
tinha a certeza de que estava apenas a uns segundos de
distância, mas não via o clarão dos faróis. Isto o confundia.
Mas era demasiado tarde para fugir. Deitou a motocicleta na
erva alta e parou o rodar da roda da frente com a mão.
Depois, se colou ao chão e ficou à espera do que estava
para chegar, de quem estava para chegar.
Harry Bosch conseguia ouvir o helicóptero lá em cima,
em algum lugar por cima da escuridão, às voltas na luz. Por
que é que não aterrissava? Por que é que não trazia ajuda?
Harry estava se deslocando por um túnel escuro e cheio de
fumaça e as pilhas estavam acabando. O clarão da lanterna
ia ficando cada vez mais fraco a cada metro percorrido.
Precisava de ajuda. Precisava de se mover mais depressa.
Precisava chegar ao fim do túnel antes da luz se acabar e
ele ficar sozinho na escuridão. Ouviu o helicóptero dar mais
uma volta. Por que é que não aterrissava? Onde é que
estava o auxílio de que ele precisava? Quando o zumbido
das pás voltou a se afastar, sentiu o terror crescer e se
moveu mais depressa, rastejando sobre os joelhos esfolados
e sangrando, uma mão levantando a luz fraca, a outra
apalpando o chão para se equilibrar. Não olhou para trás,
pois sabia que o inimigo estava atrás dele na escura névoa.
Invisível, mas estava lá. E se aproximando.
Quando o telefone tocou na cozinha, Bosch acordou
imediatamente. Contou os toques, se perguntando se teria
perdido o primeiro ou o segundo, se perguntando se teria
deixado a secretária eletrônica ligada. Não tinha. A
chamada não foi atendida e os toques não pararam senão
depois dos oito exigidos. Distraidamente, se interrogou de
onde é que teria vindo àquela tradição. Por que não seis
toques? Por que não dez? Esfregou os olhos e olhou em
redor. Estava outra vez enfiado na cadeira da sala, a
confortável poltrona reclinável que era a peça central do
seu escasso mobiliário. Considerava-a a sua cadeira da
vigília. Contudo, isto era uma denominação errônea, porque
ele dormia frequentemente na cadeira, mesmo quando não
estava de serviço.
A luz matinal atravessava a abertura nas cortinas e
recortava a sua marca no chão de pinho claro. Ele observou
as partículas de pó que flutuavam preguiçosamente na luz
junto da porta de vidro de correr. A lâmpada do abajur, na
mesa ao lado dele, estava acesa e a televisão encostada à
parede, com o som muito baixo, transmitia um daqueles
programas de Jesus das manhãs de domingo. Na mesa ao
lado da cadeira, estavam os companheiros da insônia:
cartas de jogar, revistas e romances policiais, estes apenas
rapidamente folheados e logo abandonados. Havia um
maço de cigarros amarrotado em cima da mesa e três
garrafas de cerveja vazias de marcas variadas que outrora
tinham feito parte de pacotes de seis da mesma tribo.
Bosch estava completamente vestido, incluindo uma
gravata amarrotada presa à camisa branca com um alfinete
de prata do 187. Levou a mão ao cinto e depois para trás,
para a zona por baixo dos rins. Esperou. Quando o pager
eletrônico tocou, desligou o apito irritante num segundo.
Tirou o aparelho do cinto e olhou para o número. Não se
surpreendeu. Levantou-se da cadeira, se espreguiçou e
descontraiu as articulações do pescoço e da nuca. Dirigiu-se
para a cozinha onde estava o telefone em cima do balcão.
Escreveu: “Domingo, 8:53 A.M.” num bloco de notas que
tirou do bolso do casaco antes de discar o número. Ao
segundo toque, uma voz disse:
— Departamento da Polícia de Los Angeles, Divisão de
Hollywood. Aqui é o agente Pelch, em que posso ajudar?
Bosch disse:
— Uma pessoa pode morrer no tempo que demora a
colocar tudo isso para fora. Deixe-me falar com o sargento
de serviço.
Bosch descobriu um maço de cigarros ainda fechado no
armário da cozinha e acendeu o primeiro cigarro do dia.
Limpou o pó de um copo e encheu-o com água da torneira,
depois tirou duas aspirinas de um frasco de plástico que
também estava no armário. Engolia a segunda quando,
finalmente, um sargento chamado Crowley atendeu a
ligação.
— O quê, eu apanhei-o na igreja? Telefonei para a sua
casa. Ninguém atendeu.
— Crowley, o que tem para mim?
— Bem, eu sei que o fizemos sair ontem à noite naquela
coisa da TV. Mas continua de serviço. Você e o seu parceiro.
Todo o fim-de-semana. Portanto, isso quer dizer que fica
com o DB1 do Lago Hollywood. Dentro de um cano lá em
cima. Na estrada de acesso à Barragem Mulholland. Sabe
onde é?
— Conheço o lugar. Mais alguma coisa?
— A patrulha já saiu. O ME e o SID já foram notificados.
A minha gente não sabe o que tem lá, exceto que é um DB.
O corpo está uns nove metros dentro do cano. Não querem
entrar ali dentro e estragar uma possível cena de crime,
entendeu? Mandei-os entrar em contato com o seu parceiro
pelo pager, mas ele ainda não telefonou para cá. Também
não responde de casa. Pensei que talvez vocês dois
estivessem juntos ou qualquer coisa dessas. Mas depois
pensei, não, ele não é o seu estilo. E você não é o dele.
— Eu ligo para ele. Se eles ainda não entraram lá, como
é que sabem que é um DB e não apenas um tipo qualquer
dormindo?
— Oh, eles entraram um bocadinho, sabe, levando um
pau, ou qualquer coisa do gênero, e espetaram o tipo um
bom bocado. Duro como uma rocha.
— Eles não queriam acabar com a cena de um crime,
mas foram espetar o corpo com um pau? Que maravilha.
Estes tipos entram para isto mal saem do primário ou o
quê?
— Ei, Bosch, recebemos uma chamada, temos de ir ver.
OK? Quer que a gente passe todas as nossas chamadas
sobre cadáveres diretamente para os homicídios sem
verificarmos? Vocês ficavam malucos ao final de uma
semana.
Bosch amassou a ponta do cigarro no lava-louças de aço
inoxidável e olhou pela janela da cozinha. No fundo da
colina, conseguia ver um dos carros elétricos de turistas
passando pelo meio dos enormes estúdios de som bege da
Universal City. Um lado de um dos edifícios do tamanho de
um quarteirão estava pintado de azul celeste, com uns
farrapinhos de nuvens brancas; para filmar os exteriores
quando o exterior natural de L.A. ficava marrom como trigo.
Bosch perguntou:
— Como recebemos a ligação?
 
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1 DB em inglês Dead Body: cadáver.

 
— Anônima para o nove-um-um. Um pouco depois das
quatro da manhã. A operadora disse que veio de uma
cabine pública no Boulevard. Alguém que andava por lá na
brincadeira, descobriu a coisa dentro do cano. Não quis dar
o nome. Disse que era um cadáver no cano, mais nada. Têm
a gravação no centro de comunicações.
Bosch sentiu que estava começando a ficar irritado.
Tirou o frasco das aspirinas de dentro do armário e colocou-
o no bolso. Enquanto pensava na chamada das 04.00, abriu
a geladeira e se inclinou lá para dentro. Não viu nada que o
interessasse. Olhou para o relógio.
— Crowley, se a informação chegou às quatro da
manhã, por que só agora é que estão me chamando, quase
cinco horas depois?
— Olhe Bosch, tudo o que tínhamos era uma chamada
anônima, mais nada. A telefonista disse que era de uma
criança, ainda por cima. Eu não ia mandar um dos meus
homens se meter naquele cano no meio da noite por causa
de uma informação destas. Podia ter sido uma brincadeira.
Podia ter sido uma emboscada. Podia ter sido qualquer
coisa, pelo amor de Deus. Esperei até haver luz e as coisas
acalmarem um pouco por aqui. Mandei alguns dos meus
homens no fim do turno. Por falar em turnos, estou de saída.
Tenho estado à espera de ter notícias deles e de falar
consigo. Mais alguma coisa?
Bosch teve vontade de perguntar se lhe teria ocorrido
que estaria escuro dentro do cano quer fossem
escarafunchar às quatro da manhã ou às oito, mas deixou
passar. De que serviria?
— Mais alguma coisa? Voltou a perguntar Crowley.
Bosch não conseguia se lembrar de mais nada, mas
Crowley preencheu o espaço vazio.
— Provavelmente, não passa de um maluco que se
matou, Harry. Não é nenhum caso um-oitenta-sete
importante. Está sempre acontecendo. Raios, se lembra de
que tiramos um de lá, do mesmo cano, no ano passado...?
Ei, bem, isso foi antes de você vir para Hollywood... Por isso,
o que eu estou dizendo é que um tipo qualquer se enfia
neste mesmo cano, os vagabundos estão sempre indo
dormir ali, é um espertalhão, se injeta com uma carga
valente e pronto. Lá vai ele. Só que nós não encontramos
ele tão depressa dessa vez e, com aquele sol todo batendo
no cano durante um par de dias, o tipo fica assado lá
dentro. Tão assadinho como um peru no Natal. Mas não
cheira tão bem. Crowley soltou uma gargalhada com a sua
própria piada. Bosch não riu. O sargento de serviço
continuou: — Quando tiramos o tipo para fora, ainda tinha a
agulha espetada no braço. Agora é a mesma coisa. Não
passa de um merda, de um caso sem importância. Vá até lá
e quando for meio-dia já estará outra vez em casa, para
tirar uma sesta e se for rápida ainda vai ter tempo de ver os
Dodgers. E no próximo fim-de-semana? É a vez de outro tipo
qualquer aparecer no cano. Você estará de folga. E vão ser
três dias de descanso. Na próxima semana, teremos o
Memorial Day2. Por isso, me faça um favor. Vá ver o que
eles têm lá.
Bosch meditou uns segundos e estava prestes a
desligar, mas de repente perguntou:
 
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2Memorial Day é feriado americano em honra dos

americanos mortos em combate. É comemorado na


última segunda-feira de maio, embora alguns estados
o comemorem no dia 30 de maio.
 
— Crowley, o que quer dizer com essa de “Não terem
descoberto esse outro tão depressa?”. O que o faz pensar
que encontramos este depressa?
— Os meus homens, que estão lá, dizem que este
cadáver não tem mais cheiro do que uma poça de mijo.
Deve ser recente.
— Diga aos seus homens que eu chegarei lá dentro de
quinze minutos. Diga para não mexerem em mais nada da
porra da minha cena.
— Eles...
Bosch sabia que Crowley ia recomeçar a defender os
seus homens, mas desligou antes que tivesse de aturá-lo.
Acendeu outro cigarro enquanto se dirigia à porta da rua
para apanhar o Times que estava no degrau. Abriu os
quatro quilos do jornal de domingo em cima do balcão da
cozinha, perguntando para consigo quantas árvores teriam
morrido. Encontrou o suplemento imobiliário e folheou-o
rapidamente até descobrir um grande anúncio das Valley
Pride Properties3. Percorreu com o dedo a lista das casas em
exposição até encontrar uma com a indicação de
TELEFONAR PARA JERRY. Discou o número.
— Valley Pride Properties, em que podemos ser úteis?
— Jerry Edgar, se faz favor. Passaram-se uns segundos e
Bosch ouviu uns dois estalidos indicativos da transferência
da chamada antes do seu colega aparecer na linha.
— É o Jerry, em que posso ser útil?
— Jed, acabamos de receber uma chamada. Na
Barragem Mulholland. E você nem sequer está com o seu
pager ligado.
— Merda! Disse Edgar e se seguiu um silêncio.
Bosch quase o conseguia ouvir pensando, tendo três
casas para mostrar hoje. O silêncio continuou e Bosch
imaginou o colega no outro lado da linha com o seu terno de
900 dólares e a testa toda franzida.
— Que chamada? Bosch contou o pouco que sabia.
— Se quiser que eu tome conta disto sozinho, não me
importo, disse Bosch. —Se houver alguma coisa com o
Noventa e Oito, eu posso justificar. Digo que ficou
resolvendo aquela coisa da TV e que eu estou tratando do
cadáver no cano.
— Sim, eu sei que faria isso, mas está tudo bem, estou a
caminho. É só o tempo de conseguir alguém que me
substitua aqui.
Combinaram se encontrarem no local onde estava o
corpo e Bosch desligou. Ligou a secretária eletrônica, foi
apanhar dois maços de cigarros no armário e os colocou no
bolso. Abriu outro armário e tirou o coldre de nylon onde
ficava a sua arma, uma Smith & Wesson de 9 mm com um
acabamento acetinado, de aço inoxidável e carregada com
oito balas XTP. Bosch se lembrou do anúncio que tinha visto
uma vez numa revista da polícia. Atuação Terminal Extrema.
Uma bala que se expande no impacto em até 1,5 vezes a
sua largura, atingindo profundidade terminal no corpo e
deixando um máximo de canais de feridas. Quem quer que
tenha escrito aquilo estava coberto de razão.
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3Valley Pride Properties - Propriedades Orgulho

do Vale.
 
Bosch tinha matado um homem um ano antes com um
tiro de uma distância de seis metros. Entrara por baixo do
sovaco direito, saíra pelo mamilo esquerdo, desfazendo o
coração e os pulmões no caminho. XTP. Máximo de canais
de feridas. Prendeu o coldre no cinto, no lado direito para
poder esticar a mão pela frente do corpo e sacar a arma
com a mão esquerda.
Entrou no banheiro e escovou os dentes sem usar pasta.
Passou um pente pelo cabelo e olhou durante um bom
bocado para aqueles seus olhos de quarenta anos, raiados
de vermelho. Depois estudou os cabelos grisalhos que iam
suplantando firmemente os castanhos da cabeleira
encaracolada. Até o bigode estava ficando cinzento. Tinha
começado a ver pelos grisalhos no lavatório quando se
barbeava. Levou a mão ao queixo, mas decidiu que não ia
fazer a barba. E saiu de casa sem mudar sequer de gravata.
Sabia que o seu cliente não ia reclamar.
Bosch descobriu um espaço onde não havia merda de
pombo e apoiou os braços no parapeito do gradeamento
que corria ao longo da parte de cima da Barragem
Mulholland. Com um cigarro pendurado nos lábios, olhou
pela fenda entre as colinas para a cidade lá em baixo. O céu
era de um cinzento carregado e a névoa da poluição era
uma mortalha perfeitamente moldada por cima de
Hollywood. Algumas das torres distantes da baixa da cidade
atravessavam o veneno, mas o resto da cidade estava
debaixo do manto. Parecia uma cidade fantasma. Havia um
ligeiro cheiro a qualquer produto químico na brisa quente e,
passado um tempo, ele o identificou. Malathion. Tinha
ouvido na rádio que os helicópteros da mosca da fruta
andaram na noite anterior pulverizando Hollywood Norte até
ao Desfiladeiro Cahuenga. Pensou no sonho que tivera e se
lembrou do helicóptero que não aterrissava.
 
Atrás de si, estava a extensão azul esverdeada do
reservatório de Hollywood, 228 milhões de litros da água
potável presa na velha e veneranda barragem num
desfiladeiro entre duas das colinas de Hollywood. Uma faixa
de argila seca com cerca de dois metros corria ao longo de
toda a margem, lembrando que L.A. já estava no quarto ano
de seca. Mais ao longe, na margem do reservatório, se
erguia uma vedação com elos de corrente, com três metros
de altura, que rodeava toda a borda da água. Bosch tinha
estudado esta barreira logo que chegara e se perguntara se
a proteção era para as pessoas num dos lados da vedação
ou para a água no outro. Bosch vestia um macacão azul por
cima do terno amarrotado. O suor debaixo dos braços e nas
costas já atravessara as duas camadas de roupa. Estava
com o cabelo húmido e o bigode escorrido. Já tinha estado
dentro do cano. Conseguia sentir as cócegas leves e
quentes dos ventos de Santa Ana secando o suor de sua
nuca. Este ano tinham chegado mais cedo. Harry não era
um homem de grande estatura. Faltavam-lhe uns escassos
centímetros para o metro e oitenta e era magro. Os jornais,
quando o descreviam, o chamavam de rijo. Por baixo do
macacão, os músculos eram como cordas de nylon, força
escondida pela economia do tamanho. O cinzento que lhe
salpicava o cabelo era mais parcial em relação ao lado
esquerdo. Os olhos eram pretos-acastanhados e raramente
traíam qualquer emoção ou intenção.
O cano estava em cima do chão e se estendia por cerca
de cinquenta metros ao longo da estrada de acesso ao
reservatório. Estava todo enferrujado, por dentro e por fora,
vazio e não era utilizado a não ser por aqueles que usavam
o seu interior como abrigo ou o exterior como tela para tinta
de spray. Bosch não fazia a menor ideia da sua utilidade até
o guarda ter fornecido voluntariamente a informação. O
cano era uma proteção contra a lama. “As chuvas fortes”,
dissera o guarda, conseguiam soltar a terra e fazer com que
a lama deslizasse pelas encostas para dentro do
reservatório. O cano de noventa centímetros de largura, ali
abandonado por qualquer projeto desconhecido
apadrinhado pelo distrito ou pelo governo, tinha sido
colocado numa área de deslizamento de terras como a
primeira e única defesa do reservatório. O cano estava
seguro por uma barra de ferro com cerca de dois
centímetros de espessura que passava por cima dele e
estava cravada no cimento por baixo dele. Bosch tinha
enfiado o macacão antes de entrar no cano. As letras LAPD4
estavam impressas nas costas. Depois de tirá-lo da mala do
carro e de tê-lo enfiado, se deu conta de que,
provavelmente estava mais limpo do que o terno que
estava tentando proteger. Mas vestiu-o porquê sempre o
fizera. Era um detetive metódico, supersticioso e tradicional.
Enquanto rastejara de lanterna na mão pelo cilindro
claustrofóbico que tresandava a humidade, tinha sentido a
garganta se apertar e o bater do coração acelerar. Um vazio
familiar nas entranhas dominara-o. Medo. Mas tinha
acendido a lanterna e a escuridão desaparecera juntamente
com aquela sensação assustadora e ele se metera ao
trabalho.
Agora, estava de pé, junto da barragem, fumando e
pensando nas coisas. Crowley, o sargento de serviço, tinha
razão, não havia dúvida que o homem dentro do cano
estava morto. Mas também tinha se enganado. Isto não ia
ser um caso fácil. Harry não ia voltar para casa a tempo
para tirar uma sesta e ouvir a transmissão do jogo dos
Dodgers na KABC. As coisas não estavam certas. Harry
ainda não tinha percorrido três metros dentro do cano
quando tivera a certeza disso. Não havia rastros dentro do
cano. Ou melhor, não havia rastros que servissem fosse
para o que fosse. O fundo do cano estava sujo, cheio de
lama seca cor de laranja e coberto de sacos de papel,
garrafas de vinho vazias, bolas de algodão, seringas usadas,
camas de jornais, lixo dos sem-abrigo e dos drogados. Bosch
tinha estudado tudo aquilo à luz da lanterna enquanto
avançava lentamente até ao corpo. E não tinha encontrado
nenhum rastro claro deixado pelo morto, que estava deitado
dentro do cano com a cabeça virada para frente. Isto não
fazia sentido. Se o morto tivesse se arrastado de moto
próprio, teria havido qualquer indicação disso. Se tivesse
sido arrastado lá para dentro, também teria havido qualquer
indicação. Mas não havia nada e esta falta foi apenas a
primeira das coisas que preocuparam Bosch.
Quando chegou junto do cadáver, descobriu que a
camisa do morto, uma camisa preta de gola rente ao
pescoço, estava puxada para cima da cabeça do homem e
com os braços enfiados lá dentro. Bosch já tinha visto
bastantes pessoas mortas para saber que nada era
literalmente impossível durante os últimos suspiros. Tinha
trabalhado num caso de suicídio em que um homem que
dera um tiro na cabeça, trocara de calças antes de morrer,
aparentemente por não querer que o seu corpo fosse
encontrado coberto de dejetos humanos. Mas a camisa e os
braços do homem morto dentro do cano não pareciam
aceitáveis a Harry. Para Bosch, o corpo parecia ter sido
arrastado para dentro do cano por alguém que o puxara
pelo colarinho. Bosch não tinha mexido no corpo nem tirado
a camisa do rosto dele. Viu que era um homem branco. Não
detectou nenhuma indicação imediata do ferimento fatal.
 
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4 LAPD - Los Angeles Police Department.

 
Depois de ter acabado o exame do corpo, Bosch passou
com todo o cuidado por cima do cadáver, o rosto chegando
a ficar a quinze centímetros dele, e continuara a percorrer
os restantes quarenta metros do tubo. Não encontrou
nenhuns rastos nem nada que tivesse qualquer valor como
prova. Vinte minutos depois, estava outra vez à luz do sol.
Depois mandou entrar um técnico de indícios chamado
Donovan para fazer um mapa do lixo no interior do cano e
fazer um vídeo do corpo no local. A cara de Donovan traiu a
sua surpresa por ter de entrar no cano para um caso que
ele já tinha despachado como um OD5. Teria entradas para
os Dodgers, calculou Bosch.
Depois de ter deixado o cano ao cuidado de Donovan,
Bosch acendera um cigarro e se encaminhara para o
gradeamento da barragem para olhar a cidade poluída e
meditar. No gradeamento, conseguia ouvir o ruído do
trânsito, se filtrando da Hollywood Freeway lá em baixo. Até
parecia suave àquela distância. Como um oceano calmo.
Através da abertura do desfiladeiro, via piscinas azuis e
telhados com telhas à espanhola. Uma mulher com um top
de alças branco e shorts verde-limão passou por ele
correndo ao redor da barragem. Tinha um pequeno rádio
preso no cinto e um fiozinho amarelo levava o som até aos
fones presos à cabeça. Parecia estar num mundo só dela,
sem se dar conta do grupo de policiais à sua frente até
chegar à fita amarela da cena do crime esticada de um lado
ao outro na ponta final da barragem. Ficou uns momentos
correndo no mesmo lugar, o comprido cabelo louro colado
aos ombros com o suor, e observou os policiais que, por sua
vez, estavam quase todos olhando para ela. Depois, deu
meia volta passando de novo por Bosch. Os olhos dele
seguiram-na e a viram se desviar do caminho para evitar
qualquer coisa. Bosch se dirigiu para o lugar e descobriu
vidro no pavimento. Olhou para cima e viu a lâmpada
partida no suporte por cima da porta da casa das bombas.
Mentalmente, tomou nota para perguntar ao guarda se a
lâmpada tinha sido verificada nos últimos tempos.
Quando Bosch voltou para o seu poiso no gradeamento,
a sombra de um movimento lhe chamou a atenção. Olhou
para baixo e viu um coiote farejando pelo meio das agulhas
dos pinheiros e do lixo que cobria a terra por baixo das
árvores à frente da barragem. O animal era pequeno e o
pelo feio tinha grandes áreas peladas. Só havia um pequeno
número deles nas áreas protegidas da cidade, reduzidos a
se alimentarem dos restos deixados pelos humanos.
— Estão puxando-o aqui para fora, disse uma voz atrás
dele.
Bosch se voltou e viu um dos policiais fardados que
tinha sido destacado para a cena do crime. Assentiu com a
cabeça e seguiu atrás dele, se afastando da barragem,
passando por baixo da fita amarela, de retorno ao cano.
Uma cacofonia de resmungos e arquejos ecoava para fora
da boca do cano coberto de grafite. Um homem sem
camisa, com as costas musculosas arranhadas e sujas,
emergia lá de dentro, recuando, arrastando uma folha de
plástico preto grosso em cima da qual estava o corpo. O
morto continuava com o rosto voltado para cima com a
cabeça e os braços escondidos pela camisa preta em volta
deles. Bosch olhou em volta à procura de Donovan e viu-o
guardando uma câmera de vídeo na parte de trás do furgão
azul das peritagens. Harry foi ter com ele.
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5 OD - Over Dose.

 
— Agora vou precisar que volte lá dentro. Todo o lixo
que está lá, jornais, latas, sacos, vi umas agulhas, algodão,
garrafas, preciso disso tudo metido em sacos.
— É para já, respondeu Donovan. Esperou uma fração
de segundo e acrescentou: — Não estou dizendo nada, mas,
Harry, está mesmo convencido que isto é um caso sério?
Que vale a pena ter todo este trabalho?
— Acho que não vamos saber até o cortarem. Começou
a se afastar, mas parou. — Olhe Donnie, eu sei que é
domingo e... Ah... Obrigado por voltar lá.
— Não há problema. São mais horas extras para mim.
O homem sem camisa e um técnico do gabinete do
médico legista estavam de cócoras inclinados sobre o
cadáver. Ambos calçavam luvas brancas de borracha. O
técnico era Larry Sakai, um tipo que Bosch conhecia há
muitos anos, mas de quem nunca gostara. Tinha uma caixa
de apetrechos de pesca aberta no chão, ao lado dele. Tirou
um bisturi de dentro da caixa e fez um corte de dois
centímetros e meio no lado do corpo, logo acima da coxa
esquerda. Não saiu sangue do golpe. Então, tirou da caixa
um termômetro e prendeu-o na extremidade de uma sonda
curva. Enfiou-a na incisão, e de forma precisa, mas bruta,
girou-a e fê-la subir até ao fígado. O homem sem camisa fez
uma careta e Bosch reparou que ele tinha uma lágrima azul
tatuada no canto exterior do olho direito. Pareceu a Bosch
que, de certo modo, era apropriado. Era o máximo de
simpatia que o morto iria receber.
— A hora da morte vai ser uma chatice, disse Sakai. Não
levantou os olhos do trabalho. — Aquele cano, com o calor,
vai distorcer a perda de temperatura no fígado. O Osito fez
uma leitura lá dentro e era de trinta graus. Dez minutos
depois já era trinta e um. Não temos uma temperatura fixa
nem no corpo nem no cano.
— E daí? Perguntou Bosch.
— E daí, quer dizer que não vou informar nada aqui.
Tenho de levá-lo e fazer uns cálculos.
— O que quer dizer é que vai entregá-lo a alguém que
saiba fazer os cálculos? Perguntou
Bosch.
— Vai ter quando for buscar a autópsia, não se
preocupe.
— Agora, quem é que vai se dedicar ao corte hoje?
Sakai não respondeu. Estava ocupado com as pernas do
morto. Agarrou em cada um dos sapatos e manipulou os
tornozelos. Moveu as mãos pelas pernas acima e colocou-as
por baixo das coxas, levantando uma perna de cada vez e
observando quando se dobraram pelo joelho. Depois
carregou com as duas mãos no abdômen como se estivesse
tentando detectar contrabando. Por fim, colocou a mão por
baixo da camisa e tentou virar a cabeça do morto. Não se
mexeu. Bosch sabia que o rigor mortis começava pela
cabeça, se espalhando pelo resto do corpo até chegar às
extremidades.
— O pescoço deste tipo está completamente preso,
disse Sakai. — O estômago também. Mas as extremidades
ainda têm movimento.
Tirou um lápis de trás da orelha e carregou com a ponta
da borracha na pele da parte lateral do torso. Havia umas
manchas cor de púrpura na metade do corpo mais perto do
chão, como se o corpo estivesse meio cheio de vinho tinto.
Era a lividez post mortem. Quando o coração para de
bombear, o sangue procura o nível do chão. Quando Sakai
carregou com o lápis na pele escura, esta não ficou branca,
sinal de que o sangue já tinha coagulado por completo. O
homem estava morto há horas.
— A lividez post mortem está completa, disse Sakai. —
Isso e a rigidez me fazem concluir que este tipo está morto
há seis horas, talvez mesmo oito horas. É aquilo que posso
adiantar, Bosch, até podermos trabalhar as temperaturas.
Sakai não olhou para cima ao dizer isto. Ele e o outro
chamado Osito começaram a virar para fora os bolsos das
calças verdes do morto. Estavam vazios, tal como estavam
os grandes bolsos, tipo sacos, das coxas. Viraram o corpo
para o lado para inspecionarem os bolsos de trás. Enquanto
faziam isto, Bosch se inclinou para olhar de perto para as
costas expostas do morto. A pele estava púrpura da lividez
e da porcaria. Mas não viu arranhões ou marcas que lhe
permitissem concluir que o corpo tinha sido arrastado.
— Nada nas calças, Bosch, disse Sakai continuando a
não olhar para cima.
Depois começaram a puxar delicadamente a camisa
preta para baixo, destapando o rosto. O morto tinha cabelo
hirsuto, mais cinzento do que o preto original. A barba não
estava feita e parecia andar pelos cinquenta anos, o que fez
com que Bosch calculasse que devia andar pelos quarenta.
Havia qualquer coisa no bolso do peito da camisa e Sakai
tirou-a para fora, olhou para ela durante uns curtos
instantes e depois a colocou num saco de plástico que o
companheiro segurava aberto.
— Bingo! Exclamou Sakai entregando o saco a Bosch. —
O equipamento completo. Simplifica-nos imenso o trabalho.
A seguir, Sakai abriu por completo as pálpebras
entreabertas do morto. Os olhos eram azuis com uma
membrana leitosa por cima. As duas pupilas estavam tão
contraídas que tinham o tamanho da mina de uma lapiseira.
Olhavam sem verem para Bosch, cada uma das pupilas um
pequeno vazio negro. Sakai escreveu umas notas numa
prancheta. Tinha chegado a uma conclusão a respeito
daquele caso. Depois, tirou uma almofada de tinta e um
cartão para impressões digitais da caixa ao lado dele.
Cobriu de tinta os dedos da mão esquerda e começou a
comprimi-los no cartão, um de cada vez. Bosch admirou a
perícia e a rapidez com que ele estava trabalhando. Mas, de
repente, parou.
— Ei! Veja isto. Sakai moveu delicadamente o dedo
indicador. Girava em todas as direções. Era evidente que a
articulação estava quebrada, mas não havia qualquer sinal
de inchaço ou hemorragia. — Parece-me post mortem, disse
Sakai.
Bosch se dobrou para ver melhor. Tirou a mão do morto
de Sakai e apalpou-a com as suas mãos, sem luvas. Olhou
para Sakai e depois para Osito.
— Bosch, não comece, ladrou Sakai. — Não se ponha a
olhar para ele. Ele sabe como se faz. Fui eu mesmo quem o
treinou.
 
Bosch não lembrou a Sakai que era ele que dirigia o
furgão do ML que largara um cadáver preso a uma maca de
rodas na Ventura Freeway uns meses atrás. Durante a hora
do rush. A maca rolara pela saída da Lankershim Boulevard
e se chocara com a traseira de um carro num posto de
gasolina. Por causa da divisória em fibra de vidro na cabine,
Sakai só tinha notado que perdera o cadáver quando
chegara à morgue. Bosch entregou a mão do morto ao
técnico da medicina legal. Sakai se voltou para Osito e fez
uma pergunta em espanhol. O pequeno rosto castanho de
Osito ficou muito sério e ele abanou a cabeça numa
negativa.
— Ele nem sequer tocou nas mãos do tipo lá dentro. Por
isso, é melhor esperar até o cortarmos antes de começar a
falar de uma coisa da qual não tem certeza. Sakai terminou
de transferir as impressões digitais para o cartão e depois o
entregou a Bosch.
— Enfie-lhe as mãos num saco, disse-lhe Bosch, embora
não fosse preciso dizer. — E os pés.
Endireitou-se e recuou, começando a abanar o cartão
para secar a tinta. Com a outra mão, levantou o saco de
plástico com a prova que Sakai tinha lhe entregado. Lá
dentro, um elástico prendia uma agulha hipodérmica, um
frasquinho meio cheio de uma coisa qualquer que parecia
água suja, um bocado de algodão e uma carteira de
fósforos. Era o equipamento de um drogado e parecia
razoavelmente novo. A agulha estava limpa e não tinha
sinais de corrosão. O algodão, calculou Bosch, só fora
utilizado como filtro uma ou duas vezes. Havia uns
minúsculos cristais castanho-esbranquiçados no meio das
fibras. Virando o saco, conseguia ver o interior dos dois
lados da carteira de fósforos e viu que só faltavam dois
fósforos. Naquele momento, Donovan saía do tubo
rastejando. Usava um capacete de mineiro equipado com
uma lanterna. Numa das mãos, trazia vários sacos de
plástico, cada um deles contendo ou um jornal amarelado
ou o invólucro de um alimento qualquer ou uma lata de
cerveja amassada. Na outra, trazia uma prancheta onde
tinha feito o diagrama indicando a posição em que cada um
dos artigos fora encontrado dentro do cano. Tinha teias de
aranha penduradas no capacete. O suor escorria pelo rosto
e manchava a máscara respiratória de pintor que tapava a
sua boca e o nariz. Bosch levantou o saco que continha o
equipamento do drogado. Donovan parou imediatamente.
— Descobriu algum fogão lá dentro? Perguntou Bosch.
— Merda, ele é um drogado? Disse Donovan. — Eu
sabia. Porra, para que estamos fazendo isto tudo? Bosch
não respondeu. Esperou que o outro respondesse. — A
resposta é sim, encontrei uma lata de Coca-Cola, disse
Donovan.
O técnico passou em revista os sacos de plástico que
tinha na mão e estendeu um a Bosch. Continha duas
metades de uma lata de Coca-Cola. A lata tinha um aspecto
razoavelmente novo e fora cortada ao meio com uma faca.
A parte de baixo fora invertida e a superfície côncava fora
utilizada como recipiente para aquecer heroína e água. Um
fogão. A maior parte dos drogados já não usava mais
colheres. Andar com uma era motivo para ser preso. As
latas eram fáceis de arranjar, fáceis de utilizar e de jogar
fora.
— Preciso que tire as impressões digitais do kit e do
fogão o mais depressa possível, disse Bosch.
Donovan assentiu com cabeça e levou o seu
carregamento de sacos de plástico para o carro. Bosch
voltou a concentrar a sua atenção nos homens da ML.
— Ele não tinha nenhuma faca, não é? Perguntou Bosch.
— Exatamente, respondeu Sakai. — Porquê?
— Preciso de uma faca. A cena fica incompleta se não
houver uma faca.
— E daí? O tipo é um drogado. Os drogados roubam os
drogados. Provavelmente, os amigos dele levaram-na.
As mãos enluvadas de Sakai enrolaram as mangas da
camisa do morto. Isto revelou uma rede de cicatrizes em
ambos os braços. Marcas antigas de agulhas, crateras
deixadas pelos abcessos e infeções. Na dobra do cotovelo
esquerdo, havia uma marca recente de agulha e uma
enorme hemorragia amarelada por baixo da pele.
— Bingo! Exclamou Sakai. — Eu diria que este tipo
enfiou uma dose valente no braço e, psit, partiu. Como já
disse, é um caso de droga, Bosch. Vai poder ir cedo para
casa. Vai ouvir os Dodgers.
— É o que toda a gente não para de me dizer.
Respondeu Bosch. “E, provavelmente, Sakai tenha razão”,
pensou ele. Mas não queria dar aquilo por encerrado. Havia
demasiadas coisas que não encaixavam. Os rastos que não
existiam dentro do cano. A camisa puxada para cima do
rosto. O dedo partido. Não haver faca. — Por que todas as
marcas são antigas exceto uma? Perguntou mais para si
próprio do que para Sakai.
— Quem sabe? Respondeu Sakai. — Talvez tivesse
parado com disso durante uns tempos e depois decidiu
voltar a usar. Um drogado é um drogado. Não há razões.
Ao olhar fixamente para as marcas nos braços do morto,
Bosch reparou numa tinta azul na pele logo abaixo da
manga que estava enrolada e presa no bíceps esquerdo.
Não conseguia ver o suficiente para entender o que estava
escrito.
— Puxe isso para cima, disse ele apontando.
Sakai puxou a manga até ao ombro, revelando uma
tatuagem azul e vermelha. Era o desenho, tipo caricatura,
de um rato em pé nas patas traseiras, com um enorme e
desagradável sorriso, cheio de dentes. Numa das mãos, o
rato segurava uma pistola e na outra uma garrafa de
qualquer coisa alcoólica com o rótulo xxx. As palavras, azul
por cima e vermelha por baixo, no desenho, estavam
borradas pela idade e pelo esticar da pele. Sakai tentou ler:
— “Força”... Não, “Primeiro”. “Primeiro de Infantaria”6.
Este tipo esteve na tropa. A parte de baixo não faz... É outra
língua. “Non... Gratum... Anum... Ro...” Não consigo decifrar
esta parte.
— Rodendum, disse Bosch. Sakai olhou para ele. —
Latim de sacristão, disse Bosch. — Não presta para nada.
Ele era um rato dos túneis. Vietnam.
— Tanto faz, disse Sakai. Deu um olhar avaliador ao
cadáver e ao cano e continuou: — Bem, ele acabou num
túnel, não é verdade? Uma espécie de túnel.
 
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6 No original “Force”, “First”, “First Infantry”.

 
Bosch estendeu a mão nua para o rosto do homem e
afastou o desgrenhado cabelo preto e cinzento da testa e
dos olhos vazios. O fato de ele estar fazendo isto sem luvas
fez com que os outros parassem o que estavam fazendo
para observarem este comportamento invulgar e, até
mesmo pouco higiênico. Bosch não prestou atenção. Olhou
para o rosto durante um bom tempo, sem dizer nada, sem
ouvir uma única palavra que pudesse ter sido dita. No
instante em que notou que conhecia o rosto, tal como
conhecia a tatuagem, a imagem de um jovem lhe passou
pela cabeça. Esquelético e bronzeado, o cabelo cortado à
escovinha. Vivo, não morto. Levantou-se e se afastou
rapidamente do corpo. Ao fazer aquele movimento
repentino e inesperado, chocou violentamente contra Jerry
Edgar, que, tendo finalmente chegado, tinha se aproximado
do grupo à volta do cadáver. Ambos deram um passo para
trás, momentaneamente estonteados. Bosch levou a mão à
testa. Edgar, que era muito mais alto, levou a dele ao
queixo.
— Merda, Harry! Exclamou Edgar. — Machucou-se?
— Não. E você? Edgar olhou para a mão para ver se
havia sangue.
— Não. Desculpe. Por que resolveu pular desta maneira?
— Não sei. Edgar olhou por cima do ombro de Bosch
para o cadáver e depois foi atrás do colega que se afastava.
— Desculpe Harry, disse Edgar. — Fiquei uma hora
esperando que aparecesse uma pessoa para me substituir.
Vá, diga, o que temos aqui? Edgar continuava a esfregar o
queixo enquanto falava.
— Ainda não tenho a certeza, respondeu Bosch. —
Quero que se meta num destes carros patrulhas que tenha
um TCM. Um que funcione. Vê se consegue a ficha de um
Meadows, Billy... Não, é melhor usar William. A DN deve ser
1950. Precisamos arranjar um endereço da DGV.
— É o morto? Bosch fez que sim com a cabeça. — Nada,
nenhum endereço no BI dele?
— Não há BI. Eu é que o reconheci. Por isso verifique na
caixa. Deve haver um contato qualquer nestes últimos anos.
Pelo menos, qualquer coisa relacionada com drogas na
Divisão de Van Nuys.
Edgar se afastou em direção à fila dos carros pretos e
brancos estacionados, à procura de um com que tivesse um
terminal de computador móvel montado no painel de
instrumentos. Como era um homem possante, parecia que
se deslocava devagar, mas Bosch sabia, por experiência,
que era um homem difícil de acompanhar. Edgar estava
impecavelmente vestido com um terno marrom com uma
fina risca branca. O cabelo estava cortado rente e a pele era
quase tão suave e preta como a da casca de uma berinjela.
Bosch observou-o se afastando sem conseguir evitar
perguntar para os seus botões se ele não teria
cronometrado a sua chegada, de forma a estar
suficientemente atrasado para evitar amarrotar o terno
enfiando um macacão e rastejando dentro de um tubo.
Bosch foi até o porta-luvas do carro e apanhou a
máquina fotográfica Polaroid. Voltou para junto do cadáver,
pôs um pé de cada lado do corpo e se abaixou para tirar
fotografias do rosto. Três deviam chegar, decidiu ele e
colocou as três fotos saídas da máquina em cima do cano
enquanto iam revelando. Não conseguia deixar de olhar
para o rosto, para as mudanças que o tempo fizera. Pensou
naquele rosto e no sorriso inebriado que o franzia na noite
em que todos os ratos do Primeiro de Infantaria saíam da
casa das tatuagens em Saigon. Os esgotados americanos
levaram naquilo quatro horas, mas tinham se tornado
irmãos de sangue ao porem a mesma divisa nos ombros.
Bosch se lembrava da alegria de Meadows com os
camaradas e o medo que todos partilhavam.
Harry se afastou do corpo enquanto Sakai e Osito
desdobravam um grande e pesado saco de plástico preto
com um fecho de correr em todo o comprimento. Quando o
saco estava desdobrado e aberto, os homens da Medicina
Legal ergueram Meadows e colocaram-no lá dentro.
— Parece a porra do Rip Van-Winkle, comentou Edgar ao
se aproximar.
Sakai correu o fecho e Bosch viu que alguns dos cabelos
encaracolados de Meadows tinham ficado presos no fecho.
Meadows não se importaria. Uma vez, tinha dito a Bosch
que estava destinado ao interior de um saco para
cadáveres. “Toda a gente estava”, dissera ele. Edgar
segurava um pequeno bloco de notas numa mão e uma
caneta Cross de ouro na outra.
— William Joseph Meadows, 21-7-50. É ele, Harry?
— Sim, é ele.
— Bem, tinha razão, temos múltiplos contatos. Mas não
só relacionados com a merda da droga. Temos assalto a
banco, tentativa de assalto, posse de heroína. Uma
detenção por vagabundagem aqui mesmo, na barragem, há
cerca de um ano e tal. E ele tinha mesmo umas quantas
queixas relacionadas com a droga. A da Van Nuys a que se
referiu. O que ele era para você, um informante?
— Não. Conseguiu o endereço?
— Mora no Valley. Sepúlveda, ao pé da destilaria. Um
bairro muito ruim para se vender uma casa. Então, se ele
não era o seu informante, como é que conhece este tipo?
— Não o conhecia... Pelo menos, ultimamente. Conheci-
o numa vida diferente.
— O que quer dizer com isso? Quando é que conheceu
este cara?
— A última vez que vi o Billy Meadows foi há vinte anos,
ou qualquer coisa do gênero. Ele era... Foi em Saigon.
— Sim, isso deve ter sido há vinte anos. Edgar se
aproximou das Polaroides e olhou para as três fotos de Billy
Meadows.
— Conhecia-o bem? Perguntou.
— Não muito bem. Quase tão bem como conseguimos
conhecer alguém naquele lugar. Aprende a confiar a sua
vida a pessoas que, depois, quando tudo acaba, descobre
que não conhece a maior parte delas. Nunca mais o vi
desde que voltei. Falei uma vez com ele ao telefone, no ano
passado, mais nada.
— Como é que o reconheceu?
— Ao princípio não o reconheci. Depois vi a tatuagem no
braço. Isso me fez lembrar o rosto. Acho que uma pessoa se
lembra de tipos como ele. Pelo menos, eu me lembro...
— Também acho...
Deixaram que o silêncio se instalasse durante um
bocado. Bosch estava tentando decidir o que fazer, mas só
conseguia pensar na coincidência de ter sido chamado para
a cena de um crime e vir a descobrir Meadows. Edgar
interrompeu o devaneio.
— Então, quer me dizer o que descobriu que parece
esquisito nisto? O Donovan parece apavorado com todo o
trabalho que está lhe dando. Bosch explicou a Edgar todos
os problemas, a ausência de rastros visíveis no interior do
cano, a camisa puxada para cima da cabeça, o dedo partido
e o fato de não haver nenhuma faca.
— Nenhuma faca? Perguntou o companheiro.
— Precisaria de qualquer coisa para cortar a lata ao
meio e fazer um fogão... Se o fogão fosse dele.
— Podia ter trazido o fogão com ele. Podia alguém ter
entrado lá e levado a faca depois do tipo ter morrido. Se é
que havia alguma faca.
— Sim, pode ter sido isso. Não há rastros que nos digam
seja o que for.
— Bem, sabemos pelo cadastro dele que era um
drogado. Era assim quando o conheceu?
— Até certo ponto. Utilizador e passador.
— Ora aí tem, um drogado há muito tempo, não se
consegue prever o que é que eles vão fazer, quando estão
doidões ou não. Casos perdidos, Harry.
— Mas ele tinha largado... Pelo menos, eu julgava que
sim. Só tem uma picada recente no braço.
— Harry, você disse que não via o tipo desde Saigon.
Como é que sabe que ele tinha largado ou não?
— Não o vi, mas falei com ele. Ele me telefonou uma
vez, no ano passado. Em julho ou agosto, penso eu. Tinha
sido apanhado numa ronda pelo carro dos narcóticos em
Van Nuys. Não sei como, talvez por ter lido nos jornais, ou
qualquer coisa assim, sabia que eu era policial e telefonou
para o Departamento de Homicídios. Telefonava da cadeia
de Van Nuys e me perguntou se eu podia ajudá-lo. Ele teria
de passar, o quê, uns trinta dias na cadeia, mas estava de
rastros, disse ele. E ele, ah... Disse só que não podia
cumprir pena desta vez, não era capaz de largar aquilo
assim, sozinho... Bosch se calou sem completar a história.
Passado um bocado, Edgar incitou-o a continuar.
— E?... Harry, o que você fez?
— Eu acreditei nele. Falei com o policial. Lembro-me que
o sobrenome dele era Nuckles. “Um bom nome para um
policial de ronda”, pensei eu. E depois telefonei para a
clínica da Associação de Veteranos de Sepúlveda e coloquei-
o num programa. O Nuckles concordou. Também é um
veterano. Conseguiu que o promotor pedisse ao juiz para
ser brando. Bem, o certo é que a clínica da AV para doentes
ambulatórios o aceitou. Umas seis semanas depois,
telefonei para saber como é que iam as coisas e me
disseram que ele tinha conseguido, fizera a desintoxicação
e que tudo estava correndo bem. Quero dizer, foi o que eles
me disseram. Disseram que estava no segundo nível da
manutenção. Falava com um psiquiatra, terapia de grupo...
Não voltei a falar com Meadows depois daquele primeiro
telefonema. Ele nunca mais telefonou e eu não tentei entrar
em contato com ele. Edgar consultou o bloco de notas.
Bosch conseguia ver que a página para onde ele olhava
estava em branco.
— Olhe Harry, disse Edgar, — Isso foi há um ano. E é
uma porção de tempo para um drogado, não é? Quem
sabe? Ele pode ter descarrilado e voltado à desintoxicação
umas três vezes desde essa altura. Não é isso que nos
interessa agora. A pergunta é: O que quer fazer em relação
a hoje?
— Acredita em coincidências? Perguntou Bosch.
— Não sei. Eu...
— Não há coincidências.
— Harry eu não sei do que está falando. Mas sabe o que
eu penso? Não estou vendo nada que chame a atenção. Um
tipo rasteja para dentro dum tubo às escuras, talvez não
consiga ver o que está fazendo, mete demasiada droga no
braço e pifa. Mais nada. Vai ver tinha outra pessoa qualquer
com ele que apagou os rastros quando saiu. Também levou
a faca. Podem ter sido cem coisas...
— Às vezes, elas não chamam a atenção, Jerry. Aqui, o
problema é esse. É domingo. Toda a gente quer ir para casa.
Jogar golfe. Vender casas. Ver o jogo. Ninguém se rala.
Estão só fingindo. Não vê que é com isso que eles estão
contando?
— Quem são “eles”, Harry?
— Quem fez isso.
Calou-se durante um minuto. Não estava convencendo
ninguém e quase podia incluir ele também. Apelar ao
sentido de dedicação de Edgar era um erro. Ele ia largar o
emprego mal completasse vinte anos. Depois ia pôr um
anúncio do tamanho de um cartão de visita no jornal do
sindicato “Aposentado da LAPD faz descontos para os seus
camaradas” e ganhar um quarto de milhão de dólares
vendendo casas a policiais ou dos policiais no Vale de San
Fernando ou no Vale de Santa Clarita ou no Vale do Antílope,
ou em qualquer outro vale que estivesse sendo o alvo das
máquinas nessa altura.
 
— Para quê entrar no cano? Perguntou Bosch por fim. —
Disse que ele morava lá em cima, no Vale. Em Sepúlveda.
Para que haveria de descer até aqui?
— Harry, quem sabe? O tipo era um drogado. Vai ver a
mulher expulsou-o de casa. Ou se matou lá e os amigos
arrastaram o corpo até aqui porque não queriam ter a
chatice de explicar o que tinha acontecido.
— Isso também é um crime.
— Sim, é um crime, mas não se esqueça de me informar
quando descobrir um promotor que abra um processo por
causa disso.
— O equipamento dele parecia limpo. Novo. As outras
marcas do braço pareciam antigas. Não parece que ele
estivesse outra vez se injetando. Pelo menos, regularmente.
Há qualquer coisa que não casa nisto tudo.
— Bem, não sei se você sabe, com o tratamento e essas
coisas todas, eles devem manter o equipamento limpo.
Bosch olhou para o colega como se não o conhecesse. —
Harry, escute aquilo que eu estou dizendo. Ele pode ter sido
seu camarada lá nos túneis há vinte anos, mas, neste ano,
era um drogado. Nunca irá conseguir explicar todas as
coisas que ele fez. Não sei nada sobre o equipamento ou
dos rastros, mas sei que isto não parece ser um daqueles
casos em que devemos nos matar de trabalhar. Isto é um
daqueles casos das nove as cinco, fins-de-semana e
feriados excluídos. Bosch desistiu pelo menos, naquela
altura.
— Vou até Sepúlveda, disse. — Vem comigo ou vai
voltar para a sua venda de casas?
— Eu faço o meu trabalho, Harry, respondeu Edgar num
tom suave. — Só porque não estamos de acordo não quer
dizer que eu não vá fazer aquilo para o qual me pagam.
Nunca foi assim e nunca será. Mas se não gosta da maneira
como eu trato as coisas, vamos no Noventa e Oito amanhã
de manhã e tentamos conseguir uma troca. Bosch ficou
imediatamente arrependido daquele golpe baixo, mas não o
manifestou. Disse:
— OK. Vai andando para lá, vê se tem alguém em casa.
Vou me encontrar consigo mal acabe de tratar das coisas
aqui.
Edgar se dirigiu para o cano e apanhou uma das
fotografias de Meadows. Enfiou-a no bolso do casaco e
depois desceu a estrada em direção ao carro sem voltar a
dirigir a palavra a Bosch.
Depois de Bosch ter despido o macacão e o dobrar e
arrumar na mala do carro ficou vendo Sakai e Osito pôr o
cadáver em cima de uma maca e levá-lo para a traseira da
van azul. Começou a andar, pensando em qual seria a
melhor forma de conseguir que a autópsia fosse
considerada prioritária, o que queria dizer, que fosse feita
pelo menos no dia seguinte e não quatro ou cinco dias
depois. Apanhou o técnico da medicina legal quando este
estava abrindo a porta do motorista.
— Já vamos embora, Bosch. Bosch pôs a mão na porta,
segurando-a de forma a que esta não se abrisse o suficiente
para Sakai conseguir entrar.
— Quem é que está cortando hoje?
— Hoje? Ninguém.
— Vá lá, Sakai. Quem é que está de serviço?
— Sally. Mas ele nem vai se aproximar deste, Bosch.
— Olha, já estive discutindo com o meu parceiro. Agora,
não comece você também, OK?
— Bosch, você olha. Você ouve. Estou trabalhando
desde as seis da noite passada e esta é a sétima cena onde
já estive. Tivemos atropelados, afogados, um caso de sexo.
As pessoas estão morrendo por se encontrarem conosco,
Bosch. Não há descanso para ninguém e isso quer dizer que
não há tempo para aquilo que você pensa que pode ser um
caso. Por uma vez, ouve o que diz o seu parceiro. Este vai
ser um caso de rotina. Isto quer dizer que vamos pegá-lo na
quarta-feira, talvez quinta. Prometo que não passará de
sexta-feira. E, de qualquer maneira, os resultados dos
tóxicos implicam em dez dias de espera, pelo menos. Sabe
disso. Então, por que essa pressa toda, porra?
— Implicam. Os resultados dos tóxicos implicam dez
dias de espera, pelo menos.
— Vá à merda!
— Diga a Sally que preciso das preliminares hoje. Passo
por lá logo mais.
— Meu Deus, Bosch, ouve o que estou dizendo. Temos
cadáveres nas mesas, amontoados no corredor. Já sabemos
que são oitenta e sete e vão ser os próximos a serem
cortados. O Salazar não vai ter tempo para aquilo que
parece ser, a mim e a todas as outras pessoas que aqui
estão, exceto você, um caso de um drogado. Sem margens
para dúvidas. O que vou lhe dizer para convencê-lo a fazer
o corte hoje?
— Mostre-lhe o dedo. Diz que não havia rastros dentro
do cano. Pense em qualquer coisa. Diz que ele era um tipo
que sabia muito bem o que eram as agulhas para ter
tomado uma overdose.
Sakai encostou a cabeça ao painel lateral da van e
desatou a rir. Depois abanou a cabeça como se uma criança
tivesse dito uma piada.
— E sabe o que ele vai dizer? Que não interessa há
quanto tempo é que eles andam se injetando. Todos
acabam por fazer alguma merda. Bosch, quantos drogados
com sessenta e cinco anos você vê por aí? Nenhum chega a
essa idade. No fim, a agulha acaba com todos. Tal como
esse cara dentro do cano. Bosch se voltou para trás e olhou
em volta para se certificar de que nenhum dos policiais
uniformizados estava vendo ou ouvindo. Depois, fitou o
rosto de Sakai.
— Limite-se a lhe dizer que passo por lá mais tarde,
disse numa voz muito calma. — Se ele não encontrar nada
nas preliminares, então, tudo bem, podem enfiar o corpo
dele no fim da fila do corredor ou pode ir jogá-lo na bomba
de gasolina em Lankershim. Mas vai lhe dizer isso. A decisão
é dele, não sua. Bosch tirou a mão da porta e recuou. Sakai
entrou e bateu com a porta. Ligou o motor e olhou para
Bosch através da janela durante um bom tempo antes de
abri-la.
— Bosch, você é uma porra dum chato. Amanhã de
manhã. É o melhor que consigo fazer. Hoje é impossível.
— O primeiro do dia?
— Mas nos deixe em paz hoje, OK?
— O primeiro?
— Sim. Sim. O primeiro.
— Então, vou deixá-lo em paz. Vemo-nos amanhã.
— Nem pensar. Amanhã vou dormir.
Sakai voltou a fechar a janela e arrancou. Bosch recuou
para deixá-lo passar e, quando o carro desapareceu, ficou
sozinho olhando para o cano. E foi a primeira vez que
reparou nos grafites. Não que não tivesse reparado que o
exterior do tubo estava literalmente coberto de mensagens
pintadas, mas, desta vez, olhou para os rabiscos um a um.
Muitos eram velhos, desbotados, um quadro de letras que
compunham ameaças que; ou já tinham sido esquecidas há
muito, ou já tinham sido concretizadas. Havia slogans:
Abandonem LA. Havia nomes: Ozone, Bomber, Stryker,
muitos outros. Uma das palavras mais recentes chamou a
sua atenção. Eram três letras, a uns três metros e meio do
final do tubo. Sha. As três letras tinham sido pintadas num
único movimento fluído. A parte de cima estava dentada e
depois contornada, dando a impressão de uma boca. Uma
bocarra aberta. Não tinha dentes, mas Bosch conseguia
senti-los. Dava a ideia de que a obra não fora acabada.
Mesmo assim, era um bom trabalho, original e limpo.
Apontou a Polaroid e tirou uma fotografia. Depois se
encaminhou para a van da polícia, enfiando a foto no bolso.
Donovan estava arrumando o seu equipamento numas
prateleiras e os sacos com as provas numas caixas de
madeira de vinho do Napa Valley.
— Encontrou fósforos queimados lá dentro?
— Sim, um recente, respondeu Donovan. — Queimado
até ao fim. A uns três metros da entrada. Está ali, no
diagrama.
Bosch agarrou numa prancheta onde estava um papel
com um diagrama do tubo, mostrando a localização do
corpo e onde estavam os outros materiais retirados do
interior do cano. Reparou que o fósforo fora encontrado a
uns quatro metros e meio do corpo. Donovan lhe mostrou
então o fósforo, metido dentro do seu próprio saco de
plástico.
— Eu depois digo se condiz com a carteira de fósforos
no equipamento dele disse. — Se for nisso que está
pensando.
— E o restante? O que encontraram? Perguntou Bosch.
— Está tudo ali, respondeu Donovan apontando para um
caixote de madeira onde se viam mais sacos plásticos.
Estes continham o lixo apanhado pelos policiais da
patrulha que tinham feito uma busca num raio de cinquenta
metros do tubo. Cada um dos sacos continha a descrição do
local onde o objeto fora encontrado. Bosch tirou os sacos
um a um e examinou o conteúdo. A maior parte era de
porcarias que não deveriam ter nada a ver com o cadáver
dentro do cano. Havia jornais, farrapos de pano, um salto
alto, uma meia com tinta azul seca lá dentro. Era um trapo
para cheirar. Bosch agarrou num saco que continha uma
tampa de lata de tinta spray. O saco seguinte continha a
lata de spray. O rótulo dizia que era Azul Oceano. Bosch
sopesou o saco e notou que a lata ainda continha tinta.
Levou o saco para junto do cano, abriu-o e, carregando com
a ponta de uma caneta no botão, esguichou uma linha azul
ao lado da palavra Sha. Carregou demasiado. A tinta
escorreu pela superfície curva do cano e pingou para o
cascalho. Mas Bosch conseguiu ver que as cores eram
iguais.
Pensou naquilo durante uns instantes. Por que um pintor
de grafite iria jogar fora uma lata ainda com a metade da
tinta? Olhou para o que estava escrito no saco da prova.
Tinha sido encontrada perto da borda do reservatório.
Alguém tentara atirar a lata para no lago, mas falhara. Mais
uma vez, voltou a perguntar: Por quê? Acocorou-se ao pé do
cano e olhou atentamente para as letras. Concluiu que,
fosse qual fosse o nome ou a mensagem, não tinha sido
acabado. Acontecera qualquer coisa que fizera com que o
artista interrompesse o que estava fazendo e tentasse jogar
fora a lata, a tampa e a meia por cima da vedação. Teria
sido a chegada da polícia? Bosch puxou do bloco de notas e
escreveu uma nota para se lembrar de telefonar para
Crowley depois da meia-noite e descobrir se alguém dos
homens dele andara patrulhando o reservatório durante o
turno da madrugada.
Mas se não tivesse sido um tira fazendo com que o tipo
atirasse a lata por cima da vedação? E se o pintor tivesse
visto o cadáver sendo colocado no cano? Bosch pensou no
que Crowley lhe dissera sobre a chamada anônima
informando sobre o cadáver. Um garoto. Teria sido o pintor
que telefonara? Bosch levou outra vez a lata para o carro da
polícia e entregou-a a Donovan.
— Tire as impressões digitais disto depois do
equipamento e do fogão, disse. — Penso que é capaz de
pertencer a uma testemunha.
— Certo, respondeu Donovan.
Bosch entrou no carro e saiu. Desceu as colinas e seguiu
pela rampa da Braham Boulevard para entrar na
autoestrada de Hollywood em direção ao norte. Depois de
ter subido ao longo do Desfiladeiro Cahuenga, seguiu para
oeste pela autoestrada de Ventura e depois outra vez para
norte pela autoestrada de San Diego. Levou cerca de vinte
minutos para percorrer os dezessete quilômetros. Era
domingo e havia pouco trânsito. Saiu em Roscoe, percorreu
mais uns dois quarteirões para este, entrando no bairro de
Meadows em Langdon.
Sepúlveda, tal como a maior parte das comunidades
suburbanas de Los Angeles, tinha bairros bons e ruins.
Bosch não estava esperando ver gramados bem cuidados e
calçadas cheias de Mercedes e Volvos estacionados na rua
de Meadows e não ficou desapontado. Os apartamentos
tinham deixado de ser atraentes há mais de dez anos. Havia
grades em todas as janelas do rés-do-chão e grafite em
todas as portas de garagens. O cheiro penetrante da
destilaria em Roscoe impregnava toda a zona. Tudo aquilo
cheirava como um bar às quatro da manhã.
Meadows morava num bloco de apartamentos com a
forma de um 00 e que fora construído nos anos cinquenta,
quando o cheiro das flores secas do lúpulo não era sentida e
ainda existia esperança no bairro. Havia uma piscina no
meio do pátio, mas há muito que estava cheia de areia e de
terra. Agora, se consistia num terreno com a forma de um
rim cheio de erva castanha rodeado por cimento sujo.
Meadows morava num apartamento de quina no topo das
escadas. Bosch conseguia ouvir o permanente rugido da
autoestrada enquanto subia as escadas e percorria o
corredor na frente dos apartamentos. A porta do 7B não
estava fechada à chave e abria para uma pequena divisão
que era simultaneamente saleta, sala de jantar e cozinha.
Edgar estava encostado ao balcão escrevendo no bloco de
notas.
— Um lugar agradável, não é? Comentou.
— Pois é, respondeu Bosch, olhando em volta. — Não
tem ninguém em casa?
— Não. Falei com a vizinha da porta ao lado e ela me
disse que não vê ninguém por aqui desde anteontem. Disse
que o tipo que morava aqui tinha dito que se chamava
Fields e não Meadows. Doido, hem? Ela disse que ele
morava sozinho. Estava aqui há cerca de um ano e não se
dava com ninguém. Era tudo o que sabia.
— Mostrou-lhe a fotografia?
— Sim, ela reconheceu-o. Mas não gostou de ter de
olhar para a fotografia de um defunto.
Bosch se dirigiu para um pequeno corredor que levava
ao banheiro e a um quarto. Perguntou:
— Forçou a fechadura?
— Não... Estava aberta. Juro. Bati umas duas vezes e,
quando estava me preparando para ir buscar a bolsa no
carro para tratar da porta, resolvi experimentá-la, só por
tentar.
— E ela abriu.
— Abriu.
— Falou com o senhorio?
— O senhorio não está. Deveria estar, mas vai ver saiu
para almoçar ou para se injetar. Acho que toda a turma que
mora por aqui usa drogas.
Bosch voltou para a sala e olhou em volta. Não havia
muito para ver. Um sofá forrado de vinil verde estava
encostado a uma parede, uma cadeira estofada estava
encostada à parede contrária com um pequeno televisor a
cores ao lado, em cima do tapete. Na sala de jantar, havia
uma mesa com tampo de fórmica e três cadeiras em volta.
A quarta cadeira estava sozinha, encostada à parede. Bosch
olhou para uma velha mesa de café cheia de queimaduras
de cigarros em frente do sofá. Em cima dela, havia um
cinzeiro transbordando e um livro de palavras cruzadas.
Havia cartas de baralho dispostas num jogo de solitário que
não fora terminado. Um TV Guide. Bosch não fazia a menor
ideia se Meadows fumava, mas sabia que não tinham
encontrado cigarros no cadáver. Tomou nota mentalmente
para verificar depois. Edgar disse:
— Harry, esta casa foi revistada. Não é só porque a
porta não estava fechada à chave, mas há outras coisas. Foi
tudo revistado. Fizeram um trabalho meio decente, mas se
nota. Foi às pressas. Vá ver a cama e o armário e entenderá
o que eu quero dizer. Vou tentar outra vez o senhorio.
Edgar saiu e Bosch atravessou outra vez a sala em
direção ao quarto. No caminho, sentiu o cheiro a urina. No
quarto, se deparou com uma cama de casal sem cabeceira,
encostada a uma parede. Havia uma descoloração
gordurosa na parede branca no lugar onde Meadows devia
costumar apoiar a cabeça quando estava sentado na cama.
Em frente da cama, encostada à parede havia uma cômoda
velha com seis gavetas. Ao lado da cama, estava uma
mesinha de cabeceira barata de palhinha, com um abajur
em cima. Não havia mais nada no quarto, nem sequer um
espelho. Bosch estudou primeiro a cama. Não estava feita e
as almofadas e os lençóis estavam amontoados no meio.
Bosch reparou que o canto de um dos lençóis estava metido
entre o colchão e o estrado de molas. Era óbvio que a cama
não fora feita assim. Bosch puxou o canto para fora do
colchão e deixou-o solto e caído do lado da cama. Levantou
o colchão como se quisesse olhar para baixo dele e depois o
baixou outra vez. O canto do lençol ficou outra vez entalado
entre o colchão e o estrado das molas. Edgar tinha razão.
A seguir, abriu as seis gavetas da cômoda. A roupa que
havia lá, roupa interior, meias brancas e escuras e várias
camisetas, estava toda muito bem dobrada e não parecia
ter sido mexida. Quando fechou a gaveta esquerda do
fundo, reparou que ela não deslizava com facilidade e não
fechava até ao fim. Puxou-a toda para fora da cômoda.
Depois puxou outra gaveta. A seguir, puxou todas as outras.
Quando tinha todas as gavetas puxadas, inspecionou a
parte de baixo de cada uma delas para ver se estava ou
tinha estado alguma coisa lá presa com fita adesiva. Não
encontrou nada. Voltou a colocá-las, mas foi mudando a
ordem até conseguir que todas deslizassem facilmente e
fechassem por completo.
Quando terminou, as gavetas estavam todas numa
ordem diferente. Na ordem certa. Concluiu que alguém
tinha tirado as gavetas para fora para procurar por baixo e
atrás delas e as tinha voltado a colocar na ordem errada.
Olhou o armário. Só um quarto do espaço disponível era
utilizado. No chão, havia dois pares de sapatos, um par de
Reeboks para correr que estavam sujos de terra e de pó
cinzento e um par de botas com cordões de amarrar que
pareciam ter sido limpas e engraxadas recentemente. Havia
mais pó cinzento dentro dele. Abaixou-se e agarrou um
pouco com as pontas dos dedos. Parecia pó de cimento.
Tirou um saquinho para guardar provas do bolso e colocou
um pouquinho do granulado lá dentro. Depois, voltou a
guardar o saquinho e se levantou. Havia cinco camisas
penduradas em cabides, uma branca com colarinho e
quatro pretas de mangas compridas e sem colarinho, iguais
à que Meadows usava. Em cabides ao lado dos das camisas,
estavam pendurados dois pares de jeans muito desbotados
e dois pares de calças largas estilo Caratê. Os bolsos dos
quatro pares de calças tinham sido virados do avesso. No
chão, um cesto de plástico para a roupa suja continha um
par de calças pretas, camisetas, cuecas e um par de meias.
Bosch fechou o armário e deixou o quarto. Parou no
banheiro e abriu o armário dos remédios. Lá dentro, havia
um tubo de pasta de dentes quase gasto, um frasco de
aspirinas e uma caixa vazia de seringas para insulina.
Quando fechou o armário, olhou para o seu próprio rosto e
viu o cansaço nos olhos. Alisou o cabelo com a mão. Harry
voltou para a sala e se sentou no sofá, à frente do jogo do
solitário por acabar. Edgar entrou.
— O Meadows alugou esta casa no dia um de julho
último, disse ele. — O senhorio já voltou. Era um aluguel
com pagamento mensal, mas ele pagou onze meses
adiantados. Quatrocentos dólares por mês. Isso quer dizer
que ele pagou quase cinco mil de cara. Ele disse que não
pedira referências. Limitou-se a receber o dinheiro. Ele
vivia...
— Disse que ele pagou onze meses? Interrompeu Bosch.
— Foi um acordo, tipo, paga onze e fica com o décimo
segundo de bônus?
— Não, eu lhe perguntei isso e disse que não, que fora
decisão dele. Era exatamente assim que queria pagar. Disse
que ia deixar a casa no dia primeiro de junho, deste ano.
Isso é... O quê... Daqui a dez dias? Ele disse que ele tinha
vindo para cá por causa de um trabalho qualquer, está
convencido que veio de Phoenix. Disse que ele era uma
espécie de supervisor de turno na escavação do túnel do
projeto para o metrô da baixa. Ficou com a impressão que
era só isso que o trabalho ia demorar e que, depois, ele iria
voltar para Phoenix.
Edgar estava olhando para as notas do caderno,
revendo a conversa com o senhorio.
— É praticamente tudo. Identificou-o pela fotografia.
Também o conhecia como Fields. Bill Fields. Disse que ele
tinha um horário muito esquisito, como se estivesse no
turno da noite, ou qualquer coisa dessas. Disse que, na
semana passada, o viu chegar à casa de manhã, em um jipe
bege ou castanho-claro. Não temos o número da placa,
porque ela não estava olhando. Mas disse que estava todo
sujo e foi assim que ficou sabendo que ele estava voltando
do trabalho. Ficaram calados durante alguns instantes.
Pensando. Por fim, Bosch disse:
— Edgar, eu tenho um negócio para lhe propor.
— Tem um negócio para mim? Está bem, vamos ouvir
isso.
— Vá para casa ou volte para a demonstração de casas,
ou outra coisa qualquer. Eu me encarrego disto a partir
daqui. Amanhã vou ver se o Sakai conseguiu a identificação
através do familiar mais próximo. Julgo, se estou me
recordando bem, que o Meadows era da Louisiana. De
qualquer maneira, tenho a autópsia marcada para oito
horas de amanhã. Também posso ir apanhá-la quando for
para a delegacia. Agora, a sua parte: amanhã acabe aquela
coisa da TV da noite passada e vá entregar tudo ao DA. Não
deve haver problemas com isso.
— Quer dizer que fica com a parte que está mergulhada
na merda e me deixa ir passear. O caso travesti-mata-
travesti é do mais claro e chato que há.
— Pois é. Mas há uma coisa que eu também quero.
Amanhã, quando vier do Valley para o serviço, pare na AV
de Sepúlveda e vê se os consegue convencer a deixar ver o
processo do Meadows. Pode ser que haja lá alguns nomes
que possam nos ser úteis. Como já disse, supostamente, ele
andava falando com um psiquiatra na unidade para
pacientes do ambulatório e participando de um desses
grupos idiotas. Talvez um desses tipos andasse se injetando
com ele e saiba o que aconteceu aqui. É muito improvável,
eu sei. Se eles não cooperarem, me telefone que eu vou
conseguir um mandado de busca.
— Parece um bom negócio. Mas estou preocupado
consigo Harry. Quero dizer, você e eu não somos parceiros
há muito tempo e eu sei que, provavelmente, quer trabalhar
de forma a conseguir voltar para o Departamento de
Homicídios na baixa, mas eu não vejo aonde está o ganho
em estarmos a nos cansar com isto. Sim, esta casa foi
virada do avesso, mas a questão não é essa. A questão é
por quê. E perante o aspecto das coisas, não noto nada
muito interessante. O que parece é que alguém despejou o
Meadows lá no cano da barragem depois dele ter batido as
botas e revistou a casa à procura do fornecimento dele. Se é
que ele tinha.
— Provavelmente, foi isso mesmo que aconteceu, disse
Bosch passados uns instantes. —Mas há um par de coisas
que continuam a me aborrecer. Quero pensar nelas mais um
tempo até me sentir seguro.
— Bem, como já disse, por mim, não há problema
nenhum. Está me dando a parte limpa do negócio.
— Acho que vou dar mais uma vista de olhos. Vá
andando. Encontro contigo amanhã quando voltar da
autópsia.
— Tudo bem, companheiro.
— E... Jed?
— Sim?
— Isto não tem nada a ver com eu querer voltar para a
baixa.
Sozinho, Bosch se sentou pensando e examinando a
sala à procura de segredos. Os olhos acabaram por pousar
nas cartas de baralho espalhadas à frente dele em cima da
mesinha. O Solitário. Viu que os quatro ases já estavam
todos de fora. Pegou no monte das cartas restantes e
começou a percorrê-lo, tirando três cartas de uma vez.
Enquanto o fazia, se deparou com o dois e o três de espadas
e o dois de copas. O jogo não tinha chegado a um empate.
Tinha sido interrompido. E nunca fora terminado. Começou a
ficar agitado. Olhou para dentro do cinzeiro de vidro verde e
viu que todas as pontas de cigarro eram de Camel sem
filtro. Era a marca de Meadows ou do assassino? Levantou-
se e começou a andar pela sala. Voltou a sentir o leve cheiro
de urina. Voltou para o quarto. Abriu as gavetas da cômoda
e ficou olhando para o conteúdo delas. Não lhe ocorreu
nada. Dirigiu-se para a janela e olhou para fora, para os
fundos de um dos prédios do outro lado do beco. Havia um
homem com um carrinho de supermercado no beco. Estava
revolvendo com um pau o interior de uma lata de lixo. O
carrinho estava meio cheio de latas de alumínio. Bosch se
afastou da janela e sentou na cama, encostando a cabeça à
parede no lugar em que devia ter estado a cabeceira e onde
a tinta branca parecia ser de um cinzento sujo. A parede
estava fria.
— Diga-me qualquer coisa, sussurrou para ninguém.
Qualquer coisa tinha interrompido o jogo de cartas e
Meadows tinha morrido ali, era o que ele pensava. Depois,
Meadows fora levado para o cano. Por quê? Porque não o
tinham deixado ali?
Bosch encostou a cabeça à parede e olhou diretamente
para o outro lado do quarto. Foi nesse momento que
reparou num prego enfiado na parede. O prego estava a uns
noventa centímetros acima da cômoda e fora pintado de
branco juntamente com a parede, há muito tempo. Era por
isso que não o tinha visto anteriormente. Levantou-se e foi
olhar atrás da cômoda. No espaço de sete centímetros entre
ela e a parede, viu o canto de uma moldura caída. Afastou
com o ombro a cômoda pesada da parede e apanhou a
moldura. Deu uns passos atrás e se sentou na borda da
cama estudando-a. O vidro estava partido numa intrincada
teia de aranha, provavelmente originada pela queda e
obscurecia parcialmente uma fotografia em preto e branco
de vinte por vinte e cinco centímetros. Estava começando a
ficar amarelo-acastanhado em volta das margens. A
fotografia tinha mais de vinte anos. Bosch sabia disso, pois,
entre duas rachaduras do vidro, viu o seu próprio rosto
juvenil, olhando em frente, sorrindo.
Bosch virou a moldura ao contrário e, com todo o
cuidado, dobrou para trás os pregos que mantinham a
cartolina das costas no lugar. Quando estava puxando a
fotografia amarelada para fora, o vidro caiu no chão em
estilhaços. Ele afastou os pés dos vidros, mas não se
levantou. Estudou a fotografia. Não havia nenhuma marca
nem à frente nem atrás que dissesse onde ou quando tinha
sido tirada. Mas ele sabia que devia ter sido por volta do
final de 1969 ou do princípio de 1970, porque alguns dos
homens na fotografia tinham morrido depois disso. Eram
sete na fotografia. Todos ratos dos túneis. Todos sem
camisa, exibindo orgulhosamente as marcas das camisetas
e as tatuagens, as chapas identificadoras de cada um deles
presas umas às outras com fita cola para não tilintarem
quando rastejavam pelos túneis. Tinham de estar no Sector
do Eco do Distrito de Cu Chi, mas Bosch não conseguia ver
nem se lembrar de qual era a aldeia. Os soldados estavam
em pé numa trincheira, colocados de ambos os lados da
entrada de um túnel que não era maior do que do cano
aonde mais tarde Meadows viria ser encontrado morto.
Bosch olhou para si próprio e achou que o seu sorriso na
fotografia era idiota. Agora, à luz do que estava ainda por
vir depois daquele momento ter sido captado, aquele sorriso
envergonhava-o. Depois olhou para Meadows na fotografia
e viu o sorriso fino e o olhar vazio.
Bosch olhou para os estilhaços dos vidros entre os pés e
viu um papel cor-de-rosa, com o tamanho aproximado de
uma entrada de beisebol. Levantou-o pelos cantos e
examinou-o. Era uma cautela de uma loja de penhores na
baixa. O nome do cliente que estava escrito era William
Fields. O artigo penhorado estava descrito como uma
pulseira antiga, de ouro com incrustações de jade. A cautela
tinha a data de seis semanas atrás. Fields tinha conseguido
800 dólares pela pulseira. Bosch enfiou a cautela num saco
para provas que trazia no bolso e se levantou.
A viagem até à baixa levou uma hora por causa do
trânsito que se dirigia para o estádio dos Dodgers. Bosch
ocupou o tempo pensando no apartamento. Tinha sido
revistado, mas Edgar tivera razão. Tinha sido um trabalho
feito às pressas. Os bolsos das calças eram uma indicação
óbvia. Mas as gavetas da cômoda deveriam ter sido
colocadas de volta como devia ser e a fotografia e a cautela
escondida da loja de penhores não deviam ter passado
despercebidos. Qual teria sido a pressa?
Concluiu que fora o fato do corpo de Meadows se
encontrar no apartamento. Tinha de ser removido. Bosch
saiu na Broadway e seguiu para sul, passando pela Times
Square, em direção à casa de penhores situada no Bradbury
Building. A Baixa de L.A. estava tão sossegada como Forest
Lawn na maior parte dos fins-de-semana e ele não esperava
encontrar a Happy Hocker aberta. Estava apenas curioso e
só queria passar por lá e dar uma olhadela na loja antes de
se dirigir para o centro de comunicações. Mas, quando ia
passando em frente da fachada da loja, viu um homem lá
fora com uma lata de spray pintando de preto a palavra
ABERTO numa placa de compensado. Bosch conseguiu ver
os fragmentos de vidro no passeio sujo por baixo do
compensado. Encostou ao meio-fio. O pintor da lata de
spray já entrara quando ele chegou à porta. Entrou,
passando à frente do foco de um olho eletrônico que fez
soar uma campainha em algum lugar por cima de todos os
instrumentos musicais pendurados do teto.
— Não estou aberto, aos domingos não, gritou um
homem do fundo da loja. Estava de pé atrás de uma caixa
registradora cromada que ficava em cima de um balcão de
vidro.
— Não é isso que diz o letreiro que acabou de pintar.
— Sim, mas isso é para amanhã. As pessoas veem as
tábuas na vitrine e julgam que estamos fechados. Eu não
estou fechado. Estou aberto para fazer negócio, exceto nos
fins-de-semana. Só vou ter as tábuas ali durante uns dias.
Pintei ABERTO para as pessoas ficarem sabendo, está
vendo? Recomeço amanhã.
— É o dono do negócio? Perguntou Bosch enquanto
puxava da carteira e mostrava o distintivo. — Isto só lhe vai
tomar uns minutos.
— Oh, policial. Por que não disse logo? Passei o dia todo
esperando a polícia. Bosch olhou em volta, confuso, mas
depois notou.
— Está falando da vitrine? Eu não vim por causa disso.
— O que quer dizer? O policial da patrulha me disse
para esperar por um detetive. Estou aqui desde as cinco da
manhã.
Bosch olhou em redor da loja. Estava cheia da coleção
habitual de instrumentos de sopro, velharias eletrônicas,
joias e artigos para coleções.
— Olhe, Mr....
— Obina. Oscar Obina das casas de penhores de Los
Angeles e Culver City.
— Mr. Obina, os detetives não tratam de casos de
vandalismo nos fins-de-semana. Quero dizer, vai ver até
nem tratam mais durante a semana.
— Qual vandalismo? Isto foi uma penetração. Roubo
qualificado.
— Quer dizer um arrombamento? O que levaram?
Obina apontou para dois balcões expositores de vidro
que flanqueavam a caixa registradora. A placa de cima de
cada um dos balcões fora desfeita em mil pedaços. Bosch
se aproximou e conseguiu ver pequenos artigos de
joalharia, anéis e brincos com ar de baratos, no meio dos
estilhaços. Mas também viu pedestais para joias revestidos
de veludo, placas em espelho e suportes de madeira para
anéis onde deviam estar peças, mas não estavam. Olhou
em volta, mas não viu outros estragos na loja.
— Mr. Obina, eu posso telefonar ao detetive de serviço e
ver se ainda mandam alguém hoje, e se assim for, a que
horas é que vêm. Mas eu não vim por causa disto. Bosch
puxou do envelope de plástico transparente com a cautela
lá dentro. Levantou-o para Obina poder ver. — Poderia me
mostrar esta pulseira?
Mal tinha acabado de dizer aquilo, se sentiu invadido
por um mau pressentimento. O penhorista, um homem
pequeno, redondo, com pele escura e cabelo preto em
tirinhas coladas no crânio calvo, olhou incredulamente para
Bosch, com as espessas sobrancelhas escuras muito
franzidas.
— Não vai fazer o relatório das minhas vitrinas?
— Não, senhor, não vou. Estou investigando um
homicídio. Mostre-me, por favor, a pulseira que foi
penhorada correspondente a esta cautela. Depois, telefono
para o departamento e fico sabendo se alguém vai vir hoje
por causa do seu assalto. Agradeço-lhe a cooperação.
— Arre! Mas que gente! Eu coopero. Mando as minhas
listas todas as semanas, até tiro fotografias dos homens das
penhoras. E quando a única coisa que peço é um detetive
para investigar um roubo, me aparece um que diz que o seu
trabalho são homicídios. Já estou esperando aqui desde as
cinco da manhã!
— Dê-me o telefone. Vou mandar alguém vir.
Obina tirou o fone de um telefone da parede por trás de
uma das vitrinas quebradas e lhe entregou. Bosch ditou o
número para ele discar. Enquanto Bosch falava com o
detetive de serviço em Parker Center, o prestamista
procurou a cautela no livro de registos. A detetive de
serviço, uma mulher que Bosch sabia nunca ter estado
envolvida em alguma investigação de campo com a Divisão
de Assaltos e Homicídios em toda a sua carreira, perguntou
a Bosch como é que ele estava e depois lhe disse que tinha
encaminhado o arrombamento da casa de penhores para a
delegacia da área, embora soubesse que não havia lá
nenhum detetive nesse dia. A delegacia da área era a
Delegacia Central. Mesmo assim, Bosch deu a volta ao
balcão-expositor e discou o número da Delegacia Central.
Não teve resposta. Enquanto o telefone continuava tocando
sem ser atendido, Bosch iniciou uma conversa só de um
lado.
— Sim, fala Harry Bosch, dos detetives de Hollywood.
Queria saber em que pé está o arrombamento da Happy
Hocker na Broadway... Sim, ele está aqui. Sabem quando?...
Hum, hum, hum... Exatamente, Obina, O-B-I-N-A. Olhou para
Obina que assentiu ao ouvi-lo soletrar o nome
corretamente. — Sim, ele está aqui à espera... Certo... Eu
lhe digo. Obrigado. Desligou o telefone. Obina olhou para
ele com as sobrancelhas espessas levantadas em arco.
— Tem sido um dia muito ocupado, Mr. Obina, disse
Bosch. — Os detetives já saíram, e virão aqui. Não devem
demorar muito. Dei o seu nome ao policial de serviço e
disse para mandá-los o mais depressa possível. Bem, e
agora posso ver a pulseira?
— Não. Bosch pescou um cigarro do maço que tirou do
bolso do casaco. Sabia o que estava para vir ainda antes de
Obina ter esticado o braço para uma das vitrinas partidas.
— A sua pulseira... Desapareceu, disse o dono da casa
de penhores. — Estive conferindo no meu registo. Tinha-a
aqui na vitrina porque era uma peça muito bonita, muito
valiosa para mim. Agora, desapareceu. Somos ambas as
vítimas do ladrão, não é?
Obina sorriu, aparentemente feliz por partilhar a sua
desdita. Bosch olhou para o brilho dos estilhaços do vidro no
fundo da vitrina. Concordou com a cabeça dizendo:
 
— É verdade.
— Está um dia atrasado, detetive. Uma pena.
— Disse que só estas duas vitrinas é que tinham sido
roubadas?
— Sim. Quebraram e apanharam. Rápido. Muito rápido.
— A que horas?
— A polícia me telefonou às quatro e meia da manhã. É
a hora que está no alarme. Vim logo. O alarme, quando a
janela foi arrombada, disparou. Os policiais não
encontraram ninguém. Esperaram até eu chegar. Depois,
fiquei esperando os detetives que não vieram. Não posso
limpar as vitrinas até eles chegarem para investigar o
crime.
Bosch estava pensando na hora. O cadáver largado no
cano em qualquer momento antes do telefonema anônimo
para o 911 às quatro da manhã. A casa de penhores
assaltada por volta da mesma hora. Uma pulseira posta no
prego pelo morto fora levada. “Não existem coincidências”,
disse para consigo.
— O senhor me disse qualquer coisa sobre umas
fotografias. Listas e fotografias para especificar os objetos
penhorados?
— Sim, é verdade. Entrego as listas de tudo o que
recebo aos detetives dos penhores. É a lei. Eu coopero cem
por cento. Obina assentia com a cabeça e, de sobrancelhas
franzidas, olhava lugubremente para a vitrine quebrada.
— E quanto às fotografias? Insistiu Bosch.
— Sim, as fotografias. Estes detetives dos penhores...
Eles me pedem para tirar fotografias das minhas melhores
aquisições. Ajuda-os a identificar melhor os objetos
roubados. A lei não obriga, mas eu, claro, coopero em tudo.
Comprei um máquina Polaroid. Guardo as fotografias se eles
quiserem vir ver. Nunca vêm.
— Tem uma fotografia desta pulseira? As sobrancelhas
de Obina voltaram a se arquear enquanto ele considerava
aquela ideia pela primeira vez.
— Acho que sim, respondeu ele e desapareceu por trás
de um cortinado preto que tapava a porta atrás do balcão.
Voltou uns momentos depois com uma caixa de sapatos
cheia de fotografias Polaroid, cada uma delas com uma tira
de papel amarela presa com um clipe. Percorreu
rapidamente as fotografias, puxando de vez em quando
uma para fora, erguendo as sobrancelhas e voltando a
enfiá-la no lugar. Por fim, descobriu aquilo que procurava.
— Aqui está. É esta. Bosch segurou a fotografia e
observou-a atentamente. — Ouro antigo com jade cravado,
muito bonita, disse Obina. — Lembro-me dela, do melhor
que há. Não admira que o filho da mãe que me roubou a
tenha levado. Feita nos anos trinta, México... Dei ao homem
oitocentos dólares. Não pago muitas vezes um preço destes
por uma joia. Lembro-me de um malandro que veio aqui
com um anel do Super Bowl. Mil novecentos e oitenta e três.
Muito bonito. Dei-lhe mil dólares. Nunca veio buscar.
Estendeu a mão para mostrar o enorme anel de ouro que
ainda parecia maior no seu dedo pequenino.
— O tipo que empenhou a pulseira, também se lembra
dele? Perguntou Bosch. Obina pareceu intrigado. Bosch
concluiu que observar as sobrancelhas dele era a mesma
coisa que observar duas lagartas a se atacarem
mutuamente. Tirou do bolso uma das Polaroides de
Meadows e entregou-a ao comerciante. Ele observou-a de
perto.
— O homem está morto, disse Obina passados uns
momentos. As lagartas pareciam estremecer de medo. — O
homem parece morto.
— Não preciso da sua ajuda para saber isso, respondeu
Bosch. — Quero saber se foi ele que empenhou a pulseira.
Obina devolveu a fotografia, dizendo:
— Acho que sim.
— Alguma vez veio aqui penhorar qualquer coisa antes
ou depois da pulseira?
— Não. Acho que me lembraria dele. Digo que não.
— Preciso levar isto disse Bosch, pegando a Polaroid da
pulseira. — Se precisar que a devolva, me telefone.
Pôs um dos seus cartões em cima da caixa registradora.
O cartão era dos baratos, com o nome e o número do
telefone escrito à mão, tudo na mesma linha. Enquanto se
dirigia para a porta da rua, passando por baixo de uma fila
de banjos, Bosch consultou o relógio de pulso. Voltou-se
para Obina que estava outra vez revendo as Polaroides.
— Mr. Obina, o agente de serviço disse que eu lhe
dissesse que se os detetives não chegarem dentro de meia
hora, o senhor deve ir para casa porque eles só virão
amanhã de manhã.
Obina olhou para ele sem dizer palavra. As lagartas
avançaram e colidiram uma contra a outra. Bosch olhou
para cima e se viu refletido na curva de latão polido de um
saxofone pendurado do teto. Um tenor. Depois se voltou e
saiu, a caminho do centro de comunicações para apanhar a
gravação. O sargento de serviço no centro de comunicações
por baixo do City Hall deixou Bosch gravar a chamada para
o 911 de uma das enormes bobinas duplas que nunca
paravam de rolar e gravar os gritos da cidade. A voz do
operador de serviço era feminina e negra. A voz de quem
telefonava era masculina e branca. Parecia de um garoto.
— Nove-um-um, emergência. O que está acontecendo?
— Uh... Uh...
— Posso ajudá-lo? O que quer comunicar?
— Oh, sim, quero comunicar que têm um tipo morto
dentro de um cano.
— Disse que está informando um cadáver?
— Sim, é isso mesmo.
— O que quer dizer com um cano, senhor?
— Ele está num cano ao pé da barragem.
— Que barragem é essa?
— Uh, sabe qual é, aquela onde têm o reservatório de
água e essas coisas todas, o letreiro de Hollywood.
— Está se referindo à barragem de Mulholland, senhor?
Por cima de Hollywood?
— Sim, é isso. Acertou. Mulholland. Não conseguia
lembrar o nome.
— Onde é que está o corpo?
— Lá em cima, têm um grande cano velho. Sabe, aquele
onde as pessoas dormem. O cara morto está dentro do
cano. Está lá.
— Conhece a pessoa?
— Não, porra, nem pensar.
— Não está dormindo?
— Merda, não. O rapaz riu nervosamente. — Está morto.
— Como é que tem certeza?
— Tenho certeza. Só estou lhe dizendo. Se não quiser...
— Pode me dizer o seu nome?
— Para que precisa do meu nome? Eu só o vi. Não fui eu
que o matei.
— Como é que eu posso saber se é um telefonema a
sério?
— Vá ver o cano, ficará sabendo logo. Não sei que mais
o que posso dizer. O quê o meu nome tem a ver com isso?
— Para os nossos registos, senhor. Pode me dizer o seu
nome?
— Uh... Não.
— Senhor, vai ficar aí até chegar um agente?
— Não, já nem estou lá. Não estou lá, minha. Estou...
— Eu sei. Tenho aqui a informação que diz que o senhor
está num telefone público em Grower, perto do Hollywood
Boulevard. Vai esperar pelo agente?
— Como...? Não interessa, tenho de ir embora. Vão
verificar. O corpo está lá. Um morto.
— Senhor, nós gostaríamos de falar...
A chamada foi interrompida. Bosch enfiou o cassete no
bolso e saiu do centro de comunicações pelo caminho por
onde tinha entrado. Há dez meses que Harry Bosch estava
no terceiro andar do Parker Center. Tinha trabalhado na
RHD1, a Divisão dos Assaltos e Homicídios, durante quase
dez anos, mas nunca mais voltara lá depois da sua
suspensão e posterior transferência da Delegacia dos
Homicídios Especiais para os detetives de Hollywood. No dia
em que recebera a ordem, a mesa dele fora limpa por dois
idiotas de Assuntos Internos chamados Lewis e Clarke.
Tinham despejado as coisas dele na mesa dos Homicídios
na Delegacia de Hollywood e depois deixaram uma
mensagem na secretária eletrônica de casa dizendo que era
ali que as podia voltar a encontrar. Agora, dez meses
depois, estava de volta ao andar sagrado dos detetives de
elite do departamento e estava satisfeito por ser domingo.
Não haveria rostos conhecidas. Não haveria motivo para ter
de desviar o rosto. A Sala 321 estava vazia, excetuando o
detetive de serviço durante o fim-de-semana que Bosch não
conhecia. Harry apontou para o fundo da sala ao mesmo
tempo em que dizia:
— Bosch, detetives de Hollywood. Preciso usar a caixa.
O detetive de serviço, um jovem com o corte de cabelo
que conservara desde que saíra dos Fuzileiros, tinha um
catálogo aberto em cima da mesa. Virou a cabeça para
olhar para os computadores ao longo da parede do fundo
como se se quisesse certificar de que eles ainda estavam e
lá depois se voltou de novo para Bosch.
— É suposto usar o da sua divisão, lhe disse. Bosch
passou por ele.
— Não tenho tempo para ir até Hollywood. Tenho uma
autópsia daqui a vinte minutos, mentiu ele.
— Sabe, já ouvi falar de você, Bosch. É verdade. O
espetáculo da TV e isso tudo. Costumava ficar neste andar.
Costumava.
A última frase ficou suspensa no ar como uma nuvem
de poluição e Bosch tentou ignorá-la. Enquanto se dirigia
para os terminais dos computadores, não conseguiu evitar
que os olhos se desviassem para a sua antiga mesa.
Perguntou de si para si quem é que estaria agora a
utilizando. Estava abarrotada. Harry se voltou e olhou para o
detetive de serviço que ainda estava olhando para ele.
— Esta é a sua mesa quando não está de serviço aos
domingos? O rapaz sorriu e assentiu com a cabeça.
— Bem a merece. Está mesmo perfeito para o papel.
Esse cabelo, esse sorriso estúpido. Você vai longe...
— Só porque foi expulso daqui por ter a mania de que
sozinho é um exército... Ah, vá se foder, Bosch, você já não
é mais nada!
Bosch puxou uma cadeira com rodas de uma das mesas
e empurrou-a para frente do PC em cima de uma mesa
encostada à parede do fundo. Apertou um botão e,
segundos depois, as letras cor de âmbar apareceram na
tela: “Homicide Information Tracking Management
Automated Network - HITMAN”. Durante uns curtos
instantes, Bosch sorriu perante aquela necessidade
imparável que o departamento tinha de acrônimos. Parecia-
lhe que todas as unidades, todas as tarefas, todos os
arquivos dos computadores tinham sido batizados com
nomes que davam aos seus acrônimos o ar de ser uma elite.
Para o público, os acrônimos queriam dizer ação, grandes
números de efetivos militarizados aplicados nos problemas
vitais. Havia HITMAN, COBRA, CRASH, BADCATS, DARE. Uma
centena de outros. Estava convencido que, em algum lugar,
no Parker Center, havia alguém que passava o dia todo
inventando acrônimos que despertassem a atenção. Os
computadores tinham acrônimos, até as ideias tinham
acrônimos. Se a sua unidade especial não tivesse um
acrônimos, então não passava de uma merda no
departamento.
Mal entrou no sistema HITMAN, apareceu na tela um
formulário padrão com várias perguntas e ele preencheu os
espaços em branco. Depois escreveu três expressões de
pesquisa: “Mulholland”, “overdose” e “overdose encenada”.
Depois apertou a tecla para executar. Meio minuto depois, o
computador lhe disse que uma pesquisa em oito mil casos
armazenados, com até dez anos no disco do computador
tinha encontrado apenas seis resultados. Bosch puxou-os
um a um. Os primeiros três eram assassinatos não
solucionados de mulheres jovens que foram encontradas
mortas na barragem, no princípio dos anos oitenta. Tinham
sido estranguladas. Bosch leu-os de relance e passou à
frente. O quarto caso era o de um corpo que fora
encontrado flutuando no reservatório cinco anos antes. A
causa da morte não tinha sido afogamento, mas continuava
desconhecida. Os últimos dois eram mortes por overdose. O
primeiro ocorrera durante um piquenique no parque por
cima do reservatório. Bosch achou que parecia muito
normal e passou adiante. O último caso era o de um
cadáver encontrado no cano catorze meses atrás. A causa
da morte fora posteriormente atribuída a uma parada
cardíaca devido a uma overdose de heroína. “O falecido era
conhecido por frequentar a área da barragem e dormir no
cano”, dizia a informação do computador. “Não há mais
desenvolvimentos.”
Era a morte a que Crowley, o sargento de serviço de
Hollywood, tinha mencionado quando acordara Bosch
naquela manhã. Bosch apertou uma tecla e imprimiu a
informação sobre a última morte, embora não parecesse
que tivesse alguma coisa a ver com o seu caso. Saiu do
programa, desligou o computador e ficou sentado durante
uns momentos pensando. Sem se levantar, rolou a cadeira
para outro PC. Ligou-o e digitou a sua senha. Tirou a
Polaroid do bolso, olhou para a pulseira e introduziu a sua
descrição para uma pesquisa nos registos de propriedade
roubada. Isto, por si só, já era uma arte. Teve de descrever a
pulseira da maneira como julgava que os outros policiais o
fariam, policiais que eram capazes de estar introduzindo as
descrições de todo um inventário das joias levadas num
assalto ou num roubo. Descreveu a pulseira muito
simplesmente como “pulseira de ouro antiga com um
desenho de golfinho embutido em jade”. Apertou a tecla e
trinta segundos depois, a tela do computador disse: “Não
foram encontrados resultados”. Tentou outra vez,
escrevendo “pulseira de ouro e jade” e voltou a apertar a
tecla. Desta vez, apareceram 436 resultados. Demasiados.
Precisava arranjar uma rede mais apertada. Escreveu:
“Pulseira de ouro com peixe de jade” e apertou a tecla. Seis
resultados. Já era melhor.
O computador informou que uma pulseira de ouro com
um peixe de jade gravado tinha aparecido em quatro
relatórios de crimes e dois boletins do departamento que
tinham sido colocados no sistema computadorizado desde
que este fora criado em 1983. Bosch sabia que, devido às
imensas duplicações de registos em todos os
departamentos da polícia, todas as seis entradas podiam
ser e provavelmente eram do mesmo caso ou relatório de
uma pulseira perdida ou roubada. Chamou os relatórios
abreviados para a tela do computador e descobriu que a
sua suspeita estava correta. Os relatórios tinham como
origem um único roubo em Setembro na Sixth e Hill na
baixa. A vítima era uma mulher chamada Harriet Beecham,
de setenta e um anos, de Silver Lake. Bosch tentou se
lembrar daquela localização, mas não conseguiu recordar
que edifício ou negócio se tratava. Não havia nenhum
resumo do crime no computador; ia ter de ir aos registos e
tirar uma cópia em papel. Mas havia uma descrição
resumida da pulseira de ouro e jade roubada de Beecham. A
pulseira que Harriet Beecham tinha dado como roubada
podia ou não ter sido a que Meadows tinha empenhado, a
descrição era demasiado vaga. Havia vários números de
relatórios suplementares no relatório do computador e
Bosch anotou-os todos no caderno de notas. Enquanto o
fazia, pensou que a perda de Harriet Beecham tinha gerado
uma quantidade invulgar de papel. A seguir chamou as
informações nos dois boletins. Ambas tinham vindo do FBI,
a primeira tinha saído duas semanas depois de Harriet
Beecham ter sido assaltada. Tinha sido posteriormente
reemitida três meses mais tarde, quando as joias de Harriet
Beecham ainda não tinham sido encontradas. Bosch anotou
o número do boletim e desligou o computador.
Atravessou a sala para a seção dos roubos/assaltos
comerciais. Numa prateleira de aço que percorria toda a
parede do fundo, havia dúzias de dossiês pretos que
continham os boletins dos últimos anos. Bosch puxou para
baixo o que tinham escrito setembro e começou a procurar.
Depressa notou que os boletins não estavam em ordem
cronológica e não tinham saído todos em setembro. De fato,
não havia ordem nenhuma. Ele era capaz de ter de procurar
em todos os dez meses que tinham decorrido desde o
assalto a Beecham até conseguir encontrar o boletim que
precisava. Tirou uma braçada de pastas da prateleira e se
sentou à mesa da seção dos assaltos. Momentos depois,
sentiu a presença de uma pessoa do outro lado da mesa.
— O que quer? Perguntou sem olhar para cima.
— O que eu quero? Repetiu o detetive de serviço. —
Quero saber que porra é que está fazendo, Bosch. Isto não é
o seu local de trabalho. Não pode entrar por aqui como se
fosse o chefe da banda. Põe essa merda outra vez na
prateleira e, se quiser consultá-la, volte aqui amanhã de
manhã e peça, diabos o carreguem. E não me venha com
histórias acerca de uma autópsia. Já aqui está há meia hora!
Bosch levantou a cabeça e olhou para ele. Calculou que
deveria andar pelos vinte e oito anos, talvez vinte e nove,
ainda mais novo do que Bosch quando conseguira entrar
para a Divisão de Assaltos e Homicídios. Ou os padrões
tinham baixado ou a RHD já não era o que era. Bosch sabia
que, de fato, eram as duas coisas. Voltou a olhar para a
pasta dos boletins.
— Estou falando consigo, estúpido! Trovejou o detetive.
Bosch estendeu o pé por baixo da mesa e deu um
pontapé na cadeira à sua frente. A cadeira saltou da mesa e
as costas atingiram violentamente o detetive na virilha. Ele
se dobrou e soltou um som oomf, agarrando a cadeira para
se apoiar. Bosch sabia que agora tinha a sua reputação a
favor dele. Harry Bosch: um solitário, um lutador, um
assassino. Vá lá, menino, ele estava dizendo, faça alguma
coisa.
Mas o jovem detetive se limitou a olhar embasbacado
para Bosch, a fúria e a humilhação que sentia sob controle.
Era um policial que seria capaz de puxar a arma, mas que,
vai ver, não era capaz de apertar o gatilho. E mal Bosch
notou disso, soube que ele iria embora. O jovem detetive
sacudiu a cabeça, abanou as mãos como se estivesse
dizendo: já chega disto, e voltou para a sua mesa.
— Vá lá, fedelho, se queixe de mim, gritou Bosch para
as costas do rapaz.
— Vá se foder! Retorquiu o rapazote fracamente.
Bosch sabia que não tinha com que se preocupar. O
Departamento dos Assuntos Internos nem sequer leria uma
queixa de um agente da polícia sobre outro sem ter uma
testemunha ou uma gravação que a corroborasse. A palavra
de um policial contra a palavra de outro policial era uma
coisa em que nunca tocariam neste departamento. Lá no
fundo, sabiam que a palavra de um policial por si só não
valia nada. Era por isso que os tiras dos Assuntos Internos
andavam sempre aos pares. Uma hora e sete cigarros
depois, Bosch descobriu. Uma fotocópia de outra fotografia
Polaroid da pulseira de ouro e jade fazia parte de um pacote
de cinquenta páginas de descrições e fotografias de
propriedades perdidas num roubo do West Land National
Bank na Sixth e Hill. Agora Bosch já era capaz de visualizar
o endereço e se lembrava do esfumado vidro escuro do
edifício. Nunca tinha entrado no banco. Um assalto a banco
em que tinham levado joias. Não fazia muito sentido.
Estudou a lista. Quase todos os artigos eram peças de
joalheria e eram demasiadas para um vulgar assalto. Só
Harriet Beecham estava anotada como tendo ficado sem
oito anéis, quatro pulseiras e quatro brincos, todas peças
antigas. Além disso, estes artigos estavam listados como
perdidos num roubo e não num assalto.
Procurou um resumo do crime na folha “Fiquem
Atentos”, mas não encontrou nenhum. Apenas o contato no
FBI: Agente Especial E. D. Wish. Depois reparou num
retângulo, na folha “Fiquem Atentos”, em que estavam
anotadas três datas para a data do crime. Um assalto com a
duração de três dias durante o primeiro fim-de-semana de
setembro. O fim-de-semana do Dia do Trabalhador, ele se
recordou. Os bancos da baixa ficam fechados três dias.
Tinha de ser um roubo aos cofres dos depósitos. Um
trabalho feito por um túnel? Bosch se recostou na cadeira e
meditou naquilo. Por que não tinha se lembrado? Um roubo
daqueles devia ter estado nos meios de comunicação
durante dias e dias. Tinha de ter sido discutido no
departamento durante ainda mais tempo. Depois se
lembrou de que estivera no México no Dia do Trabalhador e
que tinha ficado lá durante as três semanas seguintes. O
assalto ao banco tinha ocorrido enquanto ele estava
cumprindo um mês de suspensão por causa do caso
Dollmaker. Inclinou-se para frente, apanhou o telefone e
discou um número.
— Times, Bremmer.
— Fala Bosch. Estou vendo que ainda trabalha aos
domingos, hem?
— Das duas às dez, todos os domingos, sem uma
exceção. Então, o que aconteceu? Não falo contigo desde...
Ah... O seu problema com o caso Dollmaker. Que tal a
Divisão Hollywood?
— Serve. Pelo menos, por agora. Estava falando baixo
para o detetive de serviço não ouvir.
— Ah, com que então é assim? Bem, ouvi dizer que
ficou com o presunto da barragem esta manhã.
Joel Bremmer fazia a cobertura da seção policial do
Times há mais tempo do que a maioria dos policiais
estavam no serviço, incluindo o próprio Bosch. Não havia
muita coisa que ele não ouvisse contar sobre o
departamento ou não pudesse descobrir com um simples
telefonema. Um ano antes telefonara a Bosch para lhe pedir
que comentasse os seus vinte e dois dias de suspensão.
Bremmer soubera disso antes do próprio Bosch. De um
modo geral, o departamento da polícia odiava o Times, e o
Times nunca poupava críticas ao departamento. Mas, no
meio disso tudo, havia o Bremmer em quem todos os
policiais podiam confiar e muitos, como Bosch, confiavam
mesmo.
— Sim, o caso é meu, respondeu Bosch. — No
momento, não é nada de especial. Mas preciso um favor. Se
a coisa se desenrolar como neste momento me parece que
vai acontecer, vai ser uma coisa que você vai querer saber.
Bosch sabia que não precisava jogar nenhuma isca, mas
queria que o repórter soubesse que poderia haver qualquer
coisa mais tarde.
— Do que precisa? Perguntou Bremmer.
— Como sabe, eu não estava na cidade no último Dia do
Trabalhador porque gozava as minhas férias prolongadas,
cortesia do DAI. Por isso, deixei escapar este. Mas houve...
— O trabalhinho do túnel? Não vai me fazer perguntas
sobre o trabalhinho do túnel, não é? Aquele, aqui, na baixa
da cidade? Todas aquelas joias? Títulos negociáveis, ações
da bolsa e talvez até mesmo drogas?
Bosch ouviu a voz do repórter subir uma oitava com a
excitação. Ele tinha acertado, tinha sido um assalto por
meio de um túnel e a história tivera grande impacto. Se
Bremmer estava assim tão interessado, então era um caso
importante. No entanto, Bosch estava surpreso por não ter
ouvido falar nisso quando regressara ao trabalho em
outubro.
— Sim, é esse mesmo, respondeu. — Eu não estava aqui
na altura e, por isso, não o acompanhei. Foi feita alguma
prisão?
— Não, continua aberto. O FBI é que está tratando
disso, segundo as últimas informações que obtive.
— Quero ver os recortes esta noite. Pode ser?
— Vou fazer cópias. Quando é que vem?
— Vou até aí daqui a um pouquinho.
— Posso concluir que isto tem alguma coisa a ver com o
cadáver desta manhã?
— É o que parece. Talvez. Olhe, neste preciso momento
não posso falar. E sei que os tipos do FBI é que têm o caso.
Vou falar com eles amanhã. É por isso que preciso ver os
recortes esta noite.
— Estarei aqui.
Depois de ter desligado o telefone, Bosch olhou para a
fotocópia do FBI da pulseira. Não havia dúvida que era a
peça que fora empenhada por Meadows e que estava na
Polaroid de Obina. A pulseira na fotografia do FBI estava no
pulso cheio de manchas de uma mulher. Três peixinhos
incrustrados nadando numa onda de ouro. Bosch deduziu
que devia ser o pulso de setenta anos de Harriet Beecham e
a fotografia devia, muito provavelmente, ter sido tirada para
efeito do seguro. Olhou para o detetive de serviço que
continuava folheando o catálogo de armas. Tossiu alto,
como tinha visto Nicholson fazer num filme, ao mesmo
tempo em que arrancava a folha do dossiê. O jovem
detetive levantou os olhos e depois voltou para as armas e
as balas. Enquanto Bosch dobrava a folha dentro do bolso, o
seu pager eletrônico apitou. Tomou nota do número e ligou
para a Delegacia de Hollywood, esperando ouvir dizer que
havia outro cadáver esperando por ele. Quem atendeu a
chamada foi um sargento de serviço chamado Art Crocket, a
quem toda a gente tratava por Davey.
— Harry, ainda está na rua?
— Estou em Parker Center. Tinha de verificar umas
coisas.
— Ótimo, então já está perto da morgue. Um técnico de
lá chamado Sakai diz que precisa falar consigo.
— De falar comigo?
— Ele disse para falar que aconteceu uma coisa
qualquer e que vão fazer a autópsia hoje. Neste preciso
momento, por sinal.
Bosch levou cinco minutos para chegar ao County-USC
Hospital e quinze para descobrir um lugar para estacionar. O
gabinete do médico legista ficava atrás de um dos edifícios
do centro médico que tinham sido fechados depois do
terremoto de 87. Era um pré-fabricado amarelo de dois
andares sem qualquer estilo arquitetônico nem vida.
Quando Bosch estava passando as portas de vidro por onde
entravam os vivos para ingressar no átrio da frente, cruzou
com um detetive do gabinete do xerife com quem tinha
passado algum tempo, quando estava trabalhando na
delegacia especial Night Stalker em princípios dos anos
oitenta.
— Olá, Bernie! Cumprimentou Bosch sorrindo.
— Ora, vá se foder, Harry! Respondeu Bernie. — Os
outros também contam!
Bosch ficou uns breves instantes parado vendo o
detetive se dirigir para o parque de estacionamento. Depois
entrou, virando à direita para um corredor pintado no tom
verde do governo, passando por dois conjuntos de portas
duplas, o cheiro ficando cada vez pior. Era cheiro de morte e
de desinfetante industrial. Com a morte levando vantagem.
Bosch entrou na sala da preparação com os seus mosaicos
amarelos. Larry Sakai já estava lá vestindo uma bata de
papel por cima do equipamento hospitalar. Já tinha também
colocado a máscara e as botas de papel. Bosch tirou um
conjunto igual de uma das caixas de papelão em cima de
um balcão de aço inoxidável e começou a se vestir.
— O que houve com o Bernie Slaughter? Perguntou
Bosch. — O que aconteceu que o deixou tão irritado?
— Você. O que lhe aconteceu foi você, respondeu Sakai
sem olhar para ele. — Ontem de manhã recebeu uma
chamada. Um tipo de dezesseis anos matou o melhor amigo
com um tiro. Lá em Lancaster. Parece que foi um acidente,
mas o Bernie está à espera que a gente verifique o trajeto
da bala e os resíduos de pólvora. Quer fechar o caso. Disse-
lhe que íamos tratar disso hoje, ao fim do dia, e por isso, ele
veio para cá. Só que afinal não vamos mexer nisso hoje.
Não me pergunte por quê. Sally deu uma vista de olhos no
corpo quando o trouxeram e disse que íamos tratar dele
hoje. Falei que teríamos que passar à frente de alguém e ele
me disse para passarmos à frente do Bernie. Mas eu não
consegui contatá-lo a tempo dele não vir. É por isso que o
Bernie está irritado. Ele mora muito longe, lá para o
Diamond Bar. É uma grande viagem para nada.
Bosch já tinha posto a máscara, a bata e as botas e foi
atrás de Sakai até à sala das autópsias.
— Então ele devia era estar irritado com Sally e não
comigo, comentou.
Sakai não respondeu. Aproximaram-se da primeira mesa
onde se encontrava Billy Meadows, deitado de costas, nu, o
pescoço preso a um pedaço de madeira de cinco por dez.
Havia seis mesas de aço inoxidável na sala. Todas tinham
calhas ao longo dos lados e buracos de escoamento nos
cantos. Cada uma delas tinha um cadáver em cima. O Dr.
Jesus Salazar estava dobrado sobre o peito de Meadows, as
costas voltadas para Sakai e Bosch.
— Bom tarde, Harry, tenho estado à sua espera, disse
Salazar, continuando a não olhar para eles. — Larry, eu vou
precisar de umas lâminas disto.
O médico legista se endireitou e virou. Na palma da mão
enfiada numa luva de borracha, tinha uma coisa que parecia
um naco quadrado de carne e tecido muscular cor-de-rosa.
Colocou-o num recipiente de aço inoxidável, do tipo
daqueles em que se assam os Brownies e entregou-o para
Sakai.
— Dá-me verticais, uma do trajeto do furo e outras
duas, uma de cada lado, para podermos comparar. Sakai
agarrou o recipiente e saiu da sala a fim de ir para o
laboratório. Bosch viu que o bocado de carne fora cortado
do peito de Meadows, uns dois centímetros e meio por cima
do mamilo esquerdo.
— O que encontrou? Perguntou Bosch.
— Ainda não tenho a certeza. Vamos ver. A questão é: o
que você encontrou Harry? O meu técnico disse que estava
exigindo que fizéssemos a autópsia deste caso ainda hoje.
Por quê?
— Eu lhe disse que precisava dela para hoje porque a
queria despachada amanhã. Pensava que era isso que
tínhamos combinado.
— Sim, foi o que ele me disse, mas eu fiquei curioso.
Adoro um bom mistério, Harry. O que o fez pensar que isto
cheira a esturro, como vocês, os detetives, costumam dizer?
“Já não dizemos”, pensou Bosch. Mal uma expressão
começa a ser usada nos filmes e as pessoas como Salazar
começam a utilizar, passa à história.
— Na altura, eram só umas coisas que não encaixavam,
respondeu Bosch. — Agora já há mais coisas. Em minha
opinião, é um homicídio. Não tem nada de misterioso.
— Que coisas?
Bosch puxou do bloco de notas e começou passando as
páginas enquanto falava. Fez uma lista de tudo o que
achara errado na cena da morte: o dedo quebrado, a falta
de rastros distintos no interior do cano, a camisa puxada
para cima do rosto.
— Ele tinha um kit de droga no bolso e encontramos um
fogão no cano, mas não me parece certo. Dá mais a ideia de
que foi plantado lá. Parece que a picada que o matou é a
que está no braço. As outras cicatrizes nos braços são
antigas. Há anos que ele não andava usando os braços.
— Nisso, tem toda a razão. Além da picada recente no
braço, a zona da virilha é o único lugar em que as picadas
são recentes. No interior das coxas. Uma zona que
normalmente só é utilizada pelas pessoas que se dão
grandes trabalhos para esconder o vício. Mas, também
podia ser a primeira vez que ele voltara a usar o braço. E o
que mais Harry?
— Ele fumava, tenho a certeza disso. Não havia nenhum
maço de cigarros no cadáver.
— Não pode ter havido alguém que tenha roubado do
cadáver? Antes dele ter sido descoberto. Um daqueles
mendigos que andam no lixo?
— É verdade. Mas porquê levar os cigarros e deixar o
equipamento? E ainda há o apartamento dele. Alguém
revistou tudo.
— Pode ter sido alguém que o conhecia. Alguém que
andava procurando o lugar onde ele escondia a droga.
— Também pode ser verdade. Bosch folheou mais umas
páginas do bloco de notas. — O kit encontrado no corpo
tinha cristais de um castanho esbranquiçado no algodão. Já
vi bastante heroína com alcatrão para saber que torna o
algodão castanho escuro, por vezes, até mesmo preto. Por
isso, parece que foi um produto de boa qualidade,
provavelmente estrangeiro, que foi injetado no braço. E isso
não condiz com a maneira como ele vivia. Aquilo é material
da área alta. Salazar meditou uns instantes antes de dizer:
— Isso são suposições, Harry.
— Mas a última coisa é... E eu ainda estou começando a
trabalhar nisto... Que ele esteve envolvido num assalto
qualquer.
Bosch fez um breve resumo do que tinha descoberto
sobre a pulseira, o seu furto do cofre forte do banco e
depois da loja de penhores. O território de Salazar eram os
pormenores forenses do caso. Mas Bosch sempre confiara
em Salazar e descobrira que, por vezes, ajudava debater
outros aspectos de um caso com ele. Tinham se conhecido
em 1974, quando Bosch era um policial que fazia a ronda e
Sally era o novo assistente do médico legista. Bosch fora
encarregado de fazer serviço de guarda e controle de
multidões na East Fifty-Fourth em South-Central onde uma
troca de tiros com o Exército Symbionês de Libertação
deixara uma casa completamente destruída pelo fogo e
cinco cadáveres nos escombros fumegantes. Sally fora
encarregado de descobrir se o corpo de Patty Hearst estaria
em algum lugar, no meio dos escombros. Os dois tinham
passado três dias lá e, quando, finalmente, Sally desistiu,
Bosch tinha ganhado a aposta de que ela ainda estava viva.
Em algum lugar.
Quando Bosch acabou de contar a história da pulseira,
parecia que a preocupação de Sally sobre a morte de
Meadows não ser um mistério fora serenada. Dava a ideia
de que ficara cheio de energia. Voltou-se para um carrinho
de rodas onde estavam amontoados os seus instrumentos
de corte e puxou-o para o lado da mesa de autópsia. Ligou
um gravador ativado por voz e escolheu um escalpelo e
uma vulgar tesoura de poda. Disse:
— Bem, vamos ao trabalho.
Bosch recuou uns passos para evitar qualquer salpico e
se encostou a um balcão onde havia um tabuleiro cheio de
facas, serras e escalpelos. Reparou que um letreiro preso
com fita adesiva num dos lados do tabuleiro dizia: Para
Afiar. Salazar olhou para o corpo de Bill Meadows e
começou:
— O cadáver é o de um caucasiano bem desenvolvido,
com cerca de um metro e setenta e três, setenta e cinco
quilos de peso e um aspecto geral consistente com a idade
de quarenta anos. O corpo está frio e não embalsamado,
com o rigor mortis totalmente instalado e a consequente
lividez cadavérica.
Bosch viu-o começar, mas de repente reparou no saco
plástico com a roupa de Meadows em cima do balcão, ao
lado do tabuleiro dos instrumentos. Puxou-o para si e abriu-
o. O cheiro de urina atacou de imediato as suas narinas e,
por instantes, pensou na sala do apartamento de Meadows.
Calçou um par de luvas de borracha enquanto Salazar
continuava descrevendo o cadáver.
— O indicador esquerdo mostra uma fratura palpável
sem laceração nem contusão petequial nem hemorragia.
Bosch olhou por cima do ombro e viu que Salazar estava
balançando o dedo partido com a ponta rombuda do
escalpelo enquanto falava. Concluiu a descrição exterior do
corpo se referindo aos furos na pele.
— Há feridas de perfurações hemorrágicas, do tipo
hipodérmicas, na zona superior do interior das coxas e no
lado interior do braço esquerdo. A perfuração do braço
exsude um fluído corporal e parece ser mais recente. Sem
crostas. Há outra perfuração na parte superior esquerda do
peito que exsuda uma pequena quantidade de fluído
corporal e parece ser ligeiramente maior do que a causada
pela perfuração hipodérmica.
Salazar pôs a mão em cima do microfone do gravador e
disse se dirigindo a Bosch:
— Vou mandar Sakai preparar umas lâminas desta
perfuração no peito. Parece muito interessante.
Bosch assentiu com a cabeça e se voltou outra vez para
o balcão, começando a abrir as roupas de Meadows. Atrás
dele, ouvia Salazar usar a tesoura de poda para abrir o peito
do morto. O detetive virou todos os bolsos do avesso e
examinou os pedacinhos de fio. Virou as meias do avesso e
examinou o forro das calças e da camisa. Nada. Tirou um
escapelo do tabuleiro marcado “Para Afiar” e cortou os
pontos do cinto de cabedal de Meadows, desfazendo-o todo.
Mais uma vez, nada. Por cima do ombro, ouviu Salazar
dizendo:
 
— O baço pesa cento e noventa gramas. A cápsula está
intacta e ligeiramente enrugada e a parênquima é de um
vermelho pálido e trabécular.
Bosch já tinha ouvido aquilo centenas de vezes. A maior
parte das coisas que o patologista dizia para o seu gravador
não tinha qualquer significado para o detetive. Aquilo que
estava esperando era o resultado final. O que matara a
pessoa estendida na fria mesa de aço inoxidável? Como?
Quem?
— A vesícula biliar tem paredes finas, estava dizendo
Salazar. — Contém alguns centímetros cúbicos de bílis
esverdeada e sem pedras.
Bosch voltou a enfiar as roupas dentro do saco plástico
e selou-o. A seguir, retirou de dentro de outro saco plástico
os pesados sapatos de couro para trabalho que Meadows
trazia calçados. Deu conta da poeira marrom claro que caía
do interior dos sapatos. Outra indicação de que o corpo fora
arrastado para dentro do cano. Os saltos tinham raspado na
lama seca no fundo do cano fazendo com que a poeira
entrasse dentro dos sapatos. Salazar disse:
— A mucosa da bexiga está intacta e contém apenas
sessenta mililitros de urina amarela clara. Os genitais
externos e a vagina não têm nada de particular. Bosch deu
meia volta. Salazar tinha a mão tapando o microfone do
gravador. — Humor de médico legista, disse ele. — Só
queria ver se estava ouvindo, Harry. Um dia pode vir a
testemunhar sobre isto. Para me apoiar.
— Duvido, respondeu Bosch. — Eles não gostam de
matar o júri de tédio.
Salazar ligou a pequena serra elétrica circular que era
utilizada para abrir o crânio. O barulho que ela fazia era
igual ao de uma broca de dentista. Bosch se voltou outra
vez para os sapatos. Estavam bem tratados e engraxados.
As solas de borracha mostravam apenas um desgaste
modesto. Entalada num dos sulcos profundos da sola do
sapato direito, tinha uma pedrinha branca. Bosch tirou-a
para fora com o escalpelo. Era um pedacinho de cimento.
Lembrou-se do pó branco no tapete do armário de
Meadows. Perguntou para si mesmo se o pó ou o pedaço de
pedra da sola do sapato poderiam corresponder ao cimento
que protegera o cofre forte do West Land Bank. Mas, se os
sapatos estavam tão bem tratados, poderia a pedra ficar na
sola durante os nove meses que tinham se passado desde
que o cofre fora assaltado? Parecia improvável. Talvez fosse
do seu trabalho no projeto do metrô. Se é que ele realmente
tinha esse emprego. Bosch enfiou o pedaço de cimento num
pequeno envelope de plástico e colocou-o no bolso,
juntamente com os outros que viera colecionando durante o
dia. Salazar disse:
— O exame da cabeça e do conteúdo do crânio não
revela traumatismos nem situações patológicas subjacentes
nem anomalias congênitas. Harry, nós agora trataremos do
dedo.
Bosch voltou a guardar os sapatos no saco plástico
correspondente e voltou para junto da mesa da autópsia.
— Está vendo aqui? Estes fragmentos? Perguntou ele
enquanto indicava as nítidas pequenas manchas brancas no
negativo. — Havia três delas na articulação partida. Se isto
fosse uma fratura antiga, estes, com o tempo, se teriam
deslocado para a articulação. Não há cicatrizes discerníveis
no raio-X, mas vou dar uma olhadela.
Voltou para junto do corpo e utilizou um escalpelo para
fazer uma incisão em U na pele por cima da articulação do
dedo. A seguir, dobrou a pele para trás e foi espetando o
escalpelo na carne cor-de-rosa, dizendo:
— Não... Não... Nada. Isto foi post mortem, Harry. Acha
que pode ter sido feito por um dos meus homens?
— Não sei, respondeu Bosch. — Não parece. O Sakai
disse que ele e o companheiro tinham sido muito
cuidadosos. Eu sei que não fui eu. Como é que explica não
aparecer nada na pele?
— Isso é uma pergunta interessante. Não sei. A verdade
é que o dedo foi quebrado sem que o exterior tivesse sido
atingido. Não sei responder a isso. Mas não deve ter sido
muito difícil fazê-lo. É só agarrar o dedo e puxar para baixo.
Basta ter estômago para isso. Assim.
Salazar deu a volta à mesa. Levantou a mão direita de
Meadows e puxou o dedo para trás. Não conseguiu arranjar
apoio para fazer a força suficiente e o dedo não se partiu.
— Mais difícil do que eu pensava, comentou. — Talvez o
dedo tenha sido atingido por algum objeto rombudo. Uma
coisa que não ferisse a pele.
Quando Sakai voltou com as lâminas quinze minutos
depois, a autópsia tinha acabado e Salazar estava
costurando o peito de Meadows com um grosso fio
encerado. A seguir usou uma mangueira pendurada por
cima da cabeça para lavar os detritos do corpo e fazer
assentar o cabelo. Sakai prendeu as pernas uma à outra e
os braços ao corpo com corda, para impedir que se movesse
durante os vários estádios do rigor mortis. Bosch reparou
que a corda passava por cima da tatuagem no braço de
Meadows, mesmo por cima do pescoço do rato. Com o
polegar e o indicador, Salazar fechou os olhos de Meadows.
— Leve-o para a geladeira, disse para Sakai. Depois, se
virando para Bosch, continuou: — Vamos ver estas lâminas.
Isto me parece estranho porque o buraco era maior do que
o de uma agulha de droga normal e a sua localização, no
peito, invulgar. O furo é claramente antemortem,
possivelmente, perimortem, só houve uma leve hemorragia.
Mas a ferida ainda não estava cicatrizada. Por isso, estamos
falando de pouquíssimo tempo antes, ou mesmo durante a
morte. Talvez seja a causa da morte, Harry.
Salazar levou as lâminas para um microscópio que
estava em cima da bancada ao fundo da sala. Escolheu uma
das lâminas e colocou-a na placa. Inclinou-se para observar
e meio minuto depois comentou:
— Interessante. Depois olhou rapidamente para as
outras lâminas. Quando acabou, voltou a colocar a primeira
na placa. — OK, basicamente, o que eu fiz foi remover uma
seção, com seis centímetros quadrados, do lugar onde o
furo estava localizado. Entrei no peito, com o corte, numa
profundidade de quatro centímetros. A lâmina é uma
dissecação vertical da amostra, mostrando a trajetória da
perfuração. Está entendendo? Bosch disse que sim com a
cabeça. — Ótimo. É mais ou menos como cortar uma maçã
de forma a expor o trajeto de uma lagarta. A lâmina traça o
caminho da perfuração e qualquer impacto imediato ou
dano. Agora, veja você.
Bosch se inclinou para a ocular do microscópio. A lâmina
mostrava uma perfuração à direita, com cerca de dois
centímetros e meio de profundidade que atravessava a pele
e entrava no músculo, se estreitando em largura como uma
agulha. A cor rosada do músculo passava para um tom
castanho escuro em volta do ponto mais profundo da
perfuração.
— O que isto quer dizer? Perguntou.
— Quer dizer, respondeu Salazar, — Que a perfuração
atravessou a pele, atravessou a faseia, quer dizer, a
camada de gordura fibrosa e depois entrou diretamente no
músculo peitoral. Está vendo a cor mais escura do músculo
em volta da perfuração?
— Sim, estou vendo.
— Harry, isso quer dizer que o músculo está queimado
nesse lugar. Bosch desviou o olhar do microscópio para
Salazar. Pensou que era capaz de notar a linha de um
sorrisinho por baixo da máscara do patologista.
— Queimado?
— Uma arma de aturdir, disse o patologista. — Procure
uma que dispare o seu dardo de elétrodos bem no fundo do
tecido da pele. Uma profundidade de cerca de quatro
centímetros. Embora, neste caso, seja provável que o
elétrodo tenha sido enfiado mais para dentro do peito
manualmente.
Bosch pensou uns instantes. Uma arma de aturdir seria
virtualmente impossível de encontrar e seguir a pista. Sakai
voltou para a sala e se encostou à bancada junto da porta,
observando. Salazar foi buscar no carrinho das ferramentas
três frascos de sangue e dois contendo um líquido
amarelado. Havia também um pequeno recipiente de aço
inoxidável com um pedaço castanho de uma substância que
Bosch reconheceu, pela experiência adquirida naquela sala,
como sendo o fígado.
— Larry, apanhe as amostras para os tóxicos, disse
Salazar. Sakai segurou nelas e desapareceu outra vez da
sala.
— Está falando de tortura? Choques elétricos?
Perguntou Bosch.
— Diria que é o que parece, respondeu Salazar. — Não
suficiente para matar, o traumatismo é muito pequeno. Mas,
possivelmente, foi o suficiente para lhe extrair informações.
Uma carga elétrica pode ser muito persuasiva. Acho que há
muita documentação sobre isso. Com o elétrodo
posicionado no peito do sujeito, provavelmente, ele
conseguiria sentir a eletricidade entrar diretamente no
coração. Ficaria paralisado. Disse-lhes tudo o que eles
queriam e depois, a única coisa que pôde fazer foi olhar
enquanto eles lhe enfiavam no braço a dose fatal de
heroína.
— Podemos provar alguma coisa disto?
Salazar olhou para os mosaicos do chão e levou o dedo
à máscara, coçando o lábio por baixo dela. Bosch estava
morrendo por um cigarro. Estava na sala de autópsias há
quase duas horas.
— Provar alguma coisa? Repetiu Salazar. —
Clinicamente, não. Os testes toxicológicos estarão prontos
daqui a uma semana. Digamos que, por hipótese, eles
demonstrem que houve uma overdose de heroína. Como
vamos provar que foi outra pessoa que a injetou no braço e
não ele mesmo? Clinicamente, não podemos. Mas podemos
provar que no momento da morte, ou pouco antes, houve
uma agressão traumática ao corpo na forma de um choque
elétrico. Ele estava sendo torturado. Depois da morte, há o
dano inexplicável provocado no primeiro dedo da mão
esquerda. Voltou a esfregar a máscara com o dedo e
concluiu: — Eu poderia testemunhar que isto é um
homicídio. A totalidade das provas médicas indica morte nas
mãos de outros. Mas, por agora, não há motivo. Vamos
esperar pelos resultados dos testes e depois voltaremos a
nos debruçar sobre o assunto.
Bosch escreveu um resumo daquilo que Salazar acabara
de dizer no seu bloco de notas. Ia ter de incluir aquilo tudo
no seu relatório.
— Claro que, disse Salazar, — Provar isto num júri de
forma a não ficar qualquer dúvida é outra história. Aqui para
mim, Harry, vai ter de encontrar essa tal pulseira e
descobrir porque valeu a pena torturar e matar um homem
por causa dela. Bosch fechou o bloco de notas e começou a
despir a bata de papel.
O Sol pairava como uma bola de cobre na janela do lado
do motorista e incendiava o céu de cor-de-rosa e laranja
com as mesmas tonalidades intensas das roupas dos
surfistas. “Era uma ilusão maravilhosa”, pensava Bosch
enquanto seguia para norte, pela autoestrada de Hollywood,
a caminho de casa. Aqui, os poentes tinham esse efeito.
Uma pessoa poderia esquecer que era a nuvem de poluição
que fazia com que as cores fossem tão brilhantes, que, por
trás de cada belo quadro podia haver uma história muito
feia. Ele tinha o rádio do carro sintonizado numa estação de
jazz e Coltrane estava interpretando Soul Eyes. No banco ao
lado dele, um dossiê continha os recortes dos jornais de
Bremmer. Estava preso com uma embalagem de seis
Henry’s. Bosch saiu em Barbam e subiu a Woodrow Wilson
entrando nas colinas por cima da Studio City.
A casa dele era composta por uma única divisão em
madeira, com uma estrutura metálica e pouco maior do que
uma garagem em Beverly Hills. Ficava pendurada da colina,
por cima do precipício, e estava apoiada em três pilares de
aço no seu ponto central. Era um lugar muito assustador
para se ficar durante um terremoto, desafiando a Mãe
Natureza a soltar os pilares e fazer a casa escorregar pela
colina abaixo como um trenó. Mas a vista compensava. Da
varanda de trás, Bosch conseguia olhar para nordeste para
lá de Burbank e Glendale. Conseguia ver as montanhas de
uma tonalidade púrpura para lá de Pasadena e Altadena.
Por vezes, conseguia ver as chamas cor de laranja e a
fumaça dos fogos que consumiam os arbustos das colinas. À
noite, o barulho da autoestrada lá em baixo diminuía e os
holofotes da Universal City varriam o céu. Olhar para o
Valley nunca deixava de dar a Bosch uma sensação de
poder que ele não era capaz de explicar a si próprio. Sabia
que era a razão principal que o levara a comprar a casa e a
não querer deixá-la.
Bosch tinha-a comprado há oito anos atrás, antes de a
explosão imobiliária ter se tornado seriamente endêmica,
com uma entrada de 50000 dólares. Isso o deixara com uma
hipoteca de 1400 dólares por mês, que ele podia pagar
facilmente uma vez que as únicas coisas em que gastava
dinheiro eram comida, álcool e jazz. O dinheiro para a
entrada tinha vindo de um estúdio que lhe pagara pelo
direito de usar o nome dele, numa minissérie baseada numa
sequência de assassinatos dos proprietários de salões de
beleza de Los Angeles. Durante as investigações, Bosch e o
seu parceiro foram interpretados por dois atores de TV de
nível médio. O parceiro agarrara nos seus cinquenta mil
dólares e na pensão e se mudara para Enseneda. Bosch
aplicara os seus numa casa que ele não tinha a certeza de
conseguir resistir a um tremor de terra, mas que o fazia se
sentir o príncipe da cidade. Apesar da resolução de Bosch
de nunca se mudar, Jerry Edgar, o seu parceiro atual e
agente imobiliário em tempo parcial, lhe disse que a casa
valia agora o triplo do que ele pagara por ela. Sempre que o
assunto das propriedades imobiliárias vinha à baila, o que
era frequente, Edgar aconselhava Bosch a vendê-la e
comprar outra. Edgar queria fazer negócio. Bosch só queria
ficar onde estava.
Já estava escuro quando ele chegou à casa da colina.
Bebeu a primeira cerveja de pé, na varanda de trás,
olhando para o manto das luzes lá em baixo. Bebeu a
segunda garrafa na sua cadeira das vigias, o dossiê fechado
no colo. Não comera nada durante todo o dia e a cerveja fez
efeito imediato. Sentia-se letárgico, mas agitado, o corpo
dizendo que precisava de comida. Levantou-se, foi até a
cozinha e fez um sanduíche de peru enlatado, que trouxe
para a cadeira com outra cerveja. Quando acabou de
comer, sacudiu as migalhas do sanduíche de cima do dossiê
e abriu. Tinha quatro notas sobre o assalto ao West Land
Bank no Times. Leu-as pela ordem em que foram
publicadas. A primeira era apenas um texto muito curto que
saíra na página três na seção de notícias locais do jornal.
Aparentemente, a informação fora recolhida na terça-feira
em que o roubo tinha sido descoberto. Nessa altura, o LAPD
e o FBI não estavam interessados em falar com a imprensa
ou em deixar que o público soubesse o que tinha
acontecido.
AUTORIDADES INVESTIGAM ASSALTO A BANCO
Uma quantidade não especificada de valores foi
roubada do West Land Bank, na baixa, durante os
três dias de feriado do fim-de-semana, disseram as
autoridades na terça-feira. O assalto, a ser
investigado pelo FBI e pelo Departamento da Polícia
de Los Angeles, foi descoberto quando os gerentes
do banco, localizado na esquina da Hill Street com a
Sixth Avenue, chegaram na terça-feira e descobriram
que os cofres da caixa-forte tinham sido saqueados,
informou o Agente Especial do FBI John Rourke. Ainda
não fora feita uma estimativa da perda de valores.
Mas fontes próximas da investigação disseram que
fora levado mais de um milhão de dólares em joias e
outros valores depositados pelos clientes no banco.
Rourke também se recusou a dizer como os
assaltantes entraram na caixa-forte, mas informou
que o sistema de alarme não estava funcionando
como devia ser. Recusou-se a dar mais informações.
Um porta voz do West Land se recusou, na terça-
feira, a falar sobre o assalto. As autoridades
disseram que não havia prisões nem suspeitos.
Bosch escreveu o nome John Rourke no bloco de notas e
passou para a história seguinte que era muito maior. Tinha
sido publicada um dia depois da primeira e no topo da
primeira página na seção de notícias locais. Tinha um título
duplo e estava acompanhada pela fotografia de um homem
e de uma mulher no interior da caixa-forte, olhando para
uma abertura do tamanho de uma tampa de um poço de
inspeção. Atrás deles estava uma pilha de cofres. A maior
parte das pequenas portas na parede do fundo estava
aberta. O nome de Bremmer constava como o autor da
notícia.
PELO MENOS 2 MILHÕES DE DÓLARES LEVADOS
NO ASSALTO AO BANCO ATRAVÉS DE TÚNEL
BANDIDOS TIVERAM FIM-DE-SEMANA DOS
FERIADOS PARA ESCAVAR E ENTRAR NA CAIXA-FORTE
O artigo desenvolvia a primeira história, incluindo o
pormenor dos criminosos terem aberto um túnel até ao
interior do banco, escavando cerca de cento e cinquenta
metros a partir de um esgoto que passava por baixo da Hill
Street. A história dizia que tinha sido utilizada uma carga
explosiva para arrebentar o chão do cofre-forte. Segundo o
FBI, os ladrões tinham provavelmente passado a maior
parte do fim-de-semana no interior da caixa-forte, abrindo
os cofres. Pensava-se que o túnel do esgoto até à caixa-
forte fora escavado durante as sete ou oito semanas que
antecederam o assalto. Bosch fez uma nota para perguntar
ao FBI como o túnel fora aberto. Se tivesse sido utilizado
equipamento pesado, a maioria dos alarmes dos bancos,
que mediam o som assim como as vibrações da terra, teria
captado o movimento no solo e tocariam. Além disso,
perguntou para si mesmo, por que o explosivo não fizera
disparar os alarmes?
Voltou-se então para o terceiro artigo, publicado no dia
seguinte ao segundo. Este não era escrito por Bremmer,
ainda que aparecesse na primeira página da seção de
notícias locais. Era uma reportagem sobre as dúzias de
pessoas que faziam fila no banco para verem se os seus
cofres estavam entre os que tinham sido arrombados e
esvaziados. O FBI as escoltava até à caixa-forte e depois
apanhava as suas declarações. Bosch leu e releu a história
com toda a atenção, mas encontrou sempre a mesma coisa:
pessoas zangadas ou perturbadas, ou ambas as coisas por
terem perdido o que tinham depositado nos cofres porque
acreditavam que era mais seguro do que tê-los em casa. No
final da história, havia uma referência a Harriet Beecham.
Tinha sido entrevistada quando saía do banco e contara ao
repórter que ficara sem vários objetos preciosos,
colecionados durante as viagens que fizera com Harry, o
marido já falecido. A história dizia que Harriet Beecham
estava limpando as lágrimas com um lenço de renda.
“— Fiquei sem os anéis que ele me comprou na França,
uma pulseira de ouro e jade do México, contara Beecham. —
Quem quer que tenha feito isto, roubou as minhas
recordações”.
Muito melodramático. Bosch perguntou para consigo se
esta última citação não fora inventada pelo repórter. A
quarta nota no dossiê fora publicada uma semana mais
tarde. De autoria de Bremmer, era pequena e fora
enterrada nas últimas páginas das notícias locais, onde eles
enfiavam todas as notícias referentes ao Valley. Bremmer
dizia que a investigação do assalto ao West Land estava
sendo feita exclusivamente pelo FBI. A LAPD tinha fornecido
apoio inicial, mas, à medida que as pistas iam arrefecendo,
o caso ficara nas mãos do FBI. O Agente Especial John
Rourke era novamente citado nesta história. Disse que os
agentes ainda continuavam trabalhando o tempo inteiro no
caso, mas que não tinham feito quaisquer progressos e que
não tinham identificado nenhum suspeito. Nenhum dos
valores roubados dos cofres, dizia ele, tinha aparecido.
Bosch fechou o dossiê. O caso era demasiado
importante para o FBI tratá-lo como um simples assalto a
banco. Gostaria de saber se Rourke teria dito a verdade
sobre a ausência de suspeitos. Pensou se o nome de
Meadows teria aparecido alguma vez. Duas décadas atrás,
Meadows combatera e, por vezes, morara nos túneis por
baixo das aldeias do Vietnam do Sul. Tal como todos os
combatentes dos túneis, ele sabia fazer demolições. Mas
isso era para destruir um túnel com explosivos. Teria
aprendido a arrebentar o chão de cimento e aço da caixa-
forte de um banco? Nessa altura, Bosch se lembrou que
Meadows não teria obrigatoriamente de saber. Ele tinha
certeza que o trabalho do West Land tinha sido feito por
mais de uma pessoa.
Levantou-se e foi buscar outra cerveja na geladeira.
Mas, antes de voltar para a poltrona, passou pelo quarto
onde foi buscar um velho álbum de recortes na gaveta de
baixo da cômoda. Outra vez sentado na cadeira, bebeu
metade da cerveja e abriu o álbum. Havia montes de
fotografias soltas no meio das folhas. Tinha a intenção de
organizá-las, mas nunca chegara sequer a começar. A
verdade é que raramente abria o álbum. As folhas estavam
amareladas e quebradiças, tal como acontecia com as
recordações que as fotografias traziam. Pegou numa
fotografia de cada vez e examinou-a, notando a dada altura
que nunca tinha chegado a colar porque gostava era de
segurar cada uma das fotografias, sentindo-a na mão. Todas
as fotografias tinham sido tiradas no Vietnam. Tal como a
fotografia que encontrara na casa de Meadows, estas eram
quase todas em branco e preto. Nessa altura, em Saigon,
era mais barato revelar fotografias em branco e preto.
Bosch aparecia em algumas das fotografias, mas a maioria
delas foi tirada por ele com uma velha Leica que o pai
adotivo tinha dado antes dele ir embora. Foi um gesto de
reconciliação por parte do velho. Ele não queria que Harry
fosse embora e tinham discutido por causa disso. Era por
isso que a máquina tinha sido oferecida. E aceita. Mas
Bosch não era do gênero de contar histórias quando voltou
e, por isso, as fotografias tinham sido deixadas espalhadas
por entre as páginas do álbum, para nunca serem coladas e
raramente serem vistas.
Se havia um tema recorrente nas fotografias, eram as
caras sorridentes e os túneis. Em quase todas, havia
soldados de pé, numa pose desafiadora, à frente da entrada
de um buraco de onde, provavelmente, tinham acabado de
sair depois de o terem conquistado. Para uma pessoa de
fora, as fotografias pareceriam estranhas, talvez mesmo
fascinantes. Mas, para Bosch, eram tão assustadoras como
as fotografias que ele tinha visto nos jornais, de pessoas
presas nos escombros de carros destruídos esperando que
os bombeiros as tirassem de lá. Eram fotografias das caras
sorridentes de rapazes que desceram até ao inferno e
voltaram para sorrirem para a objetiva. Da luz para a
escuridão, era o que eles chamavam as entradas nos túneis.
Cada uma era um eco negro. Lá dentro não havia nada a
não ser a morte. Mas, mesmo assim, eles iam. Bosch virou
uma folha enrugada do álbum e se deparou com Billy
Meadows olhando para ele. Era incontestável que esta
fotografia fora tirada poucos minutos depois da que Bosch
encontrara no apartamento de Meadows. O mesmo grupo
de soldados. A mesma trincheira e o mesmo túnel. Setor
Echo, Distrito de Chu Chi. Mas Bosch não estava nela
porque tirara a fotografia. A sua Leica tinha apanhado o
olhar vazio e o sorriso empedrado de Meadows a pele clara
parecia cera, mas retesada. “Tinha captado o verdadeiro
Meadows”, pensou Bosch.
Voltou a colocar a fotografia no álbum e passou para a
seguinte. Esta era dele mesmo. Não havia mais ninguém no
enquadramento. A máquina tinha disparado quando ele
estava sem camisa, a tatuagem no ombro muito queimado
recebia o sol poente que entrava pela janela. Atrás dele,
mas desfocada, ficava a entrada escura de um túnel no
chão de palha da cabana. O túnel estava obscurecido,
escuridão ameaçadora, como a boca horripilante no quadro
de Edvard Munch, O GRITO. Era um túnel na aldeia a que
eles chamavam Timbuk1, Bosch se lembrou ao olhar para a
fotografia. O seu último túnel. Não estava sorrindo na
fotografia. Os olhos estavam afundados em olheiras
sombrias. E também não estava sorrindo agora que olhava
para ela. Segurou a fotografia com as duas mãos,
esfregando distraidamente os polegares nas bordas, para
cima e para baixo. Ficou olhando para a fotografia até que a
fadiga e o álcool o arrastaram para um torpor pensativo.
Quase como um sonho. E ele se lembrou daquele último
túnel e de Billy Meadows. Entraram três. Saíram dois.
O túnel fora descoberto durante uma patrulha de rotina
numa pequena aldeia do Setor E. A aldeia não tinha nome
nos mapas de reconhecimento e, por isso, os soldados a
chamavam de Timbuk2. Os túneis não paravam de aparecer
por todos os lados e não haviam ratos que chegassem para
todos. Quando a boca do túnel fora encontrada dentro de
uma palhoça, debaixo de um cesto de arroz, o primeiro
sargento não quis esperar que aparecesse um helicóptero
com mais ratos. Queria sair dali, mas sabia que não podia
sem investigar o túnel. Por isso, o primeiro-sargento tomara
uma decisão, como tantas outras durante a guerra.
Mandara entrar três dos seus próprios homens. Três virgens,
borradas de medo, com uns seis meses de mato, somando o
tempo de todos. O sargento disse para não avançarem
muito, se limitarem a colocar os explosivos e saírem de lá.
“Sejam rápidos e cubram uns aos outros.” Os três soldados
inexperientes entraram obedientemente no buraco. Só que,
meia hora mais tarde, só dois saíram. Os que tinham
conseguido disseram que os três tinham se separado. O
túnel se ramificava em várias direções e eles se separaram.
Estavam contando isto ao primeiro-sargento quando se
ouviu um grande estrondo e uma enorme nuvem de
fumaça, poeira e fragor irrompeu da boca do túnel. Os
explosivos C-4 tinham detonado. O tenente da companhia
apareceu nesse momento e disse que não sairiam da área
sem o homem que faltava. Toda a companhia esperou um
dia que a fumaça e o pó assentassem no túnel e depois dois
ratos dos túneis, Harry Bosch e Billy Meadows, foram
largados por um helicóptero. “Não quero saber se o soldado
desaparecido está morto”, disse o tenente. “Tirem-no de lá”.
Não ia deixar um dos seus homens naquele buraco.
— Vão lá buscá-lo e tragam-no aqui para fora para lhe
dar um enterro decente, disse o tenente. Meadows
respondeu:
— Nós também não deixaríamos um dos nossos ali
dentro.
Bosch e Meadows desceram pelo buraco e descobriram
que a entrada principal dava para uma divisão onde
estavam guardados cestos de arroz e de onde saíam três
outras passagens. Duas tinham desabado com as
explosões. A terceira continuava aberta. Era aquela onde
entrara o soldado desaparecido. E foi nela que os dois
entraram. Rastejaram pela escuridão, Meadows à frente,
usando as lanternas parcimoniosamente, até que chegaram
a um beco sem saída. Meadows apalpou o chão sujo do
túnel até descobrir a porta escondida. Abriu-a e dois
desceram para outro nível do labirinto. Sem dizer uma
palavra, Meadows apontou para um lado e se afastou
rastejando. Bosch sabia que ia para o outro lado. Agora,
cada um deles ficaria sozinho, a não ser que os vietcongues
estivessem esperando lá na frente. O caminho de Bosch era
uma passagem serpenteante que estava tão quente como
um banho de vapor. O túnel cheirava a humidade e a
latrina.
Sentiu o cheiro do soldado desaparecido antes de vê-lo.
Estava morto, o corpo apodrecendo, mas sentado no meio
do túnel com as pernas abertas e esticadas, as pontas dos
dedos viradas para cima. O corpo estava encostado a um
poste preso no chão do túnel. Um pedaço de arame,
cravado uns dois centímetros e meio no pescoço, estava
enrolado à volta do poste e mantinha-o direito. Com medo
de uma armadilha, Bosch não o tocou. Fez incidir o feixe de
luz da lanterna na ferida do pescoço e seguiu o rasto de
sangue seco que descia pela frente do corpo. O morto vestia
uma T-shirt verde com o nome escrito a estêncil branco na
parte da frente. Al Crofton, dizia por baixo do sangue. Havia
moscas atoladas nas crostas de sangue do peito e, por um
breve instante, Bosch se interrogou como é que elas tinham
conseguido chegar lá. Apontou a luz para as virilhas do
soldado morto e viu que também essas estavam negras
com o sangue seco. As calças estavam rasgadas e Crofton
parecia ter sido violentamente atacado por um animal
selvagem.
O suor começou a arder nos olhos de Bosch e a sua
respiração começou a se alterar, mais rápida do que ele
queria. Notou isso de imediato, mas também notou de que
não conseguia fazer nada para impedi-lo. A mão esquerda
de Crofton, com a palma virada para cima estava pousada
no chão, ao lado da coxa. Bosch virou a luz para ela e viu os
testículos ensanguentados. Sufocou o impulso de vomitar,
mas não conseguiu evitar que começasse a arfar. Pôs as
mãos em concha sobre a boca e tentou abrandar as
arfadas. Não resultou. Perdia o controle. Estava entrando
em pânico. Tinha vinte anos de idade e estava apavorado.
As paredes do túnel estavam se apertando à sua volta.
Rebolou para longe do cadáver e deixou cair a lanterna, o
feixe de luz ainda apontado para Crofton. Bosch deu
pontapés nas paredes de barro e se enrolou em posição
fetal. O suor nos olhos foi substituído por lágrimas. No
princípio vieram silenciosas, mas depressa os soluços
sacudiam o corpo todo e o barulho que fazia parecia ecoar
em todas as direções na escuridão, principalmente na
direção do lugar onde Charlie estava sentado à espera.
Na direção do inferno.
 
CAPÍTULO 2
Segunda-feira, 21 de maio
Bosch acordou na sua poltrona de vigia por volta das
quatro da manhã. Tinha deixado aberta a porta de correr
que dava para a varanda e os ventos de Santa Ana
enfunavam as cortinas, como se fossem fantasmas, para
dentro da sala. O vento quente e o sonho o fizeram suar.
Depois, o vento tinha secado a humidade da pele deixando
como que uma capa de sal. Saiu para a varanda e se
encostou ao corrimão de madeira olhando lá para baixo,
para as luzes do Valley. Os holofotes da Universal há muito
que já tinham se apagado e da autoestrada no desfiladeiro
não vinha nenhum ruído de trânsito. Ao longe, talvez em
Glendale, ouviu o barulho de um helicóptero. Procurou e
descobriu a luz vermelha que se deslocava baixinho por
cima da baía. Não estava circulando e não tinha holofotes.
Não era da polícia. Julgou então que conseguia sentir um
leve cheiro do pesticida Malathion, intenso e amargo, no
vento vermelho. Voltou para dentro e fechou a porta de
correr de vidro. Pensou em ir para a cama, mas sabia que
não iria mais conseguir dormir nessa noite. Acontecia
frequentemente com Bosch. O sono vinha cedo. Mas não
durava. Ou não vinha até que o sol nascente recortasse
delicadamente o contorno das colinas no nevoeiro matinal.
Fora até a clínica para perturbações do sono da AV, em
Sepúlveda, mas os psiquiatras não conseguiram ajudar.
Disseram que estava num ciclo. Iria ter períodos extensos
de transes de sono profundo invadidos por sonhos
tortuosos. Isto se seguiria com meses de insônia, o espírito
reagindo defensivamente aos terrores que o esperavam no
sono. A sua mente reprimiu a ansiedade que você sente
pela parte que desempenhou na guerra, dissera o médico.
“Tem de aplacar esses sentimentos durante as horas em
que está acordado para que o seu sono possa correr sem
perturbações.” Mas o médico não compreendia que o que
estava feito estava feito. Não podia recuar para modificar o
que acontecera. Não se pode tapar uma ferida da alma com
esparadrapo. Tomou um banho, fez a barba e depois
estudou o rosto no espelho, se lembrando de como o tempo
fora tão pouco generoso para com Billy Meadows. O cabelo
de Bosch estava ficando grisalho, mas era espesso e
encaracolado. Com exceção dos círculos por baixo dos
olhos, o rosto era liso e bonito. Limpou o resto do creme de
barba e vestiu o terno bege de verão e uma camisa Oxford
azul-clara. Num cabide dentro do armário, descobriu uma
gravata marrom com uns pequenos elmos de gladiador que
não tinha nódoas nem rugas em exagero. Prendeu-a com o
alfinete de gravata do 187, enfiou a arma no cinto e saiu
para a escuridão que já anunciava a aurora. Entrou no carro
e se dirigiu até a baixa para comer uma omelete, torradas e
café no Pantry, em Figueroa. Aberto vinte e quatro horas por
dia desde a Depressão. Um letreiro se gabava de que, desde
essa altura, a casa nunca estivera um único minuto sem
cliente. Bosch, sentado ao balcão, olhou em volta e viu que,
naquele momento, era ele que carregava o recorde em cima
dos ombros. Estava sozinho. O café e os cigarros fizeram
com que Bosch ficasse preparado para enfrentar o dia.
Voltou a seguir pela autoestrada de volta à parte alta de
Hollywood, passando por um mar de carros que lutavam
para chegar à baixa. A Delegacia de Hollywood ficava na
Wilcox, a um par de quarteirões ao Sul do Boulevard, de
onde provinha a maior parte da sua atividade. Bosch
estacionou junto da calçada da frente porque não ia
demorar e não queria ficar preso nos fundos com o
engarrafamento que se gerava com a mudança dos turnos.
Enquanto atravessava o pequeno átrio, viu uma mulher com
um olho negro que estava chorando e preenchendo um
relatório com o agente da recepção. Mas ao fundo do hall,
quando se voltava à esquerda para a sala dos detetives,
estava tudo sossegado. O detetive de serviço no turno da
noite devia ter saído para responder a uma chamada ou
então estava na “suíte dos noivos”, um aposento no
segundo andar onde havia duas camas, o primeiro a chegar,
o primeiro a ser servido. A agitação e o barulho da sala dos
detetives pareciam congelados. Não tinha ninguém lá, mas
as compridas mesas distribuídas por roubo, trânsito, juvenil,
assalto e homicídio estavam todas numa confusão,
inundadas de papelada. Os detetives entravam e saíam da
polícia. A papelada nunca mudava.
Bosch se dirigiu para o fundo da sala e ligou a máquina
de café. Olhou, através de uma porta no fundo da sala, para
o corredor onde ficavam localizadas as celas de detenção.
No meio do corredor que levava à cela, um rapaz branco,
com tranças louras, estava sentado e algemado a um
banco. Um adolescente, não teria mais de dezessete anos,
calculou Bosch. Era contra a lei da Califórnia colocá-lo numa
cela com adultos. O que era a mesma coisa que dizer que
era capaz de ser perigoso para os coiotes colocarem-nos
numa cela na companhia de dobermanns.
— Para onde está olhando? Gritou o rapaz para Bosch
do fundo do corredor.
Bosch não disse nada. Colocou umas colheres de café
dentro do filtro de papel. Um policial uniformizado colocou a
cabeça fora da porta do gabinete do comandante que ficava
mais ao fundo do corredor.
— Já disse, gritou o policial para o jovem. — Volte a falar
e eu vou aí apertar mais um furo das algemas. E depois
como é que vai limpar a bunda no sanitário?
— Acho que vou ter de usar a porra da sua cara!
O policial fardado entrou no corredor e se dirigiu para o
rapaz, os duros sapatos pretos dando passadas compridas e
maldosas. Bosch colocou o recipiente de vidro na máquina
de café e apertou o botão. Afastou-se da porta do corredor e
se dirigiu para a mesa dos homicídios. Não queria ver o que
ia acontecer ao rapaz. Arrastou a cadeira do lugar onde
estava para junto de uma das máquinas de escrever
comunitárias noutra mesa. Os formulários de que precisava
estavam numas divisórias na prateleira por cima da
máquina de escrever. Enfiou no rolo da máquina uma folha
em branco do formulário para o relatório da cena do crime.
Depois, tirou o caderno de notas do bolso e abriu-o na
primeira página.
Ao fim de duas horas datilografando, fumando e
bebendo café ruim, uma nuvem azulada estava pendurada
das luzes do teto por cima da mesa dos homicídios. Bosch
terminara a miríade de formulários que acompanham a
investigação de um homicídio. Levantou-se e foi fazer
fotocópias na Xerox ao fundo do corredor. Reparou que o
rapaz das trancinhas já não se encontrava lá. A seguir, foi
apanhar uma pasta azul nova no armário do material de
escritório, depois de ter aberto a porta com o auxílio do seu
cartão de identificação do LAPD e enfiou um conjunto
desses relatórios nas três argolas. Escondeu o outro
conjunto numa pasta azul velha que conservava na gaveta
de um armário e que era identificado com o nome de um
caso não resolvido. Quando acabou, releu o que acabara de
escrever. Gostou da ordem que a papelada deu ao caso. Em
muitos outros casos anteriores, tinha criado o hábito de
reler a pasta do homicídio todas as manhãs. Ajudava-o a
criar teorias. O cheiro do plástico do dossiê novo lhe
recordou outros casos e encheu-o de energia. Andava
novamente à caça. No entanto, os relatórios que tinha
datilografado e arrumado no livro do homicídio não estavam
completos.
No Relatório Cronológico do Agente Encarregado da
Investigação, tinha deixado de fora várias partes da sua
tarde e noite de domingo. Omitiu a ligação que tinha feito
entre Meadows e o assalto ao Banco West Land. Também
deixou de fora a visita à casa de penhores e ao Times para
falar com Bremmer. Também não havia quaisquer resumos
destas entrevistas. Ainda só estava na segunda-feira, o
segundo dia. Queria esperar até contatar com o FBI antes
de registrar qualquer destas informações no registro oficial.
Primeiro, queria saber, exatamente, o que estava
acontecendo. Era uma precaução que tomava em todos os
casos. Já tinha saído do departamento antes que quaisquer
dos outros detetives tivessem chegado para iniciar um novo
dia de trabalho.
Às nove horas, Bosch já tinha seguido de carro para
Westwood e estava no sétimo andar do Edifício Federal no
Wilshire Boulevard. A sala de espera do FBI era austera, os
habituais sofás cobertos de plástico e a habitual mesa
riscada de apoio com os números velhos do FBI Bulletin
abertos em leque sobre o verniz do falso revestimento de
madeira granulada. Bosch não se deu ao trabalho de sentar
ou ler. Ficou em pé, à frente das cortinas brancas e
transparentes que cobriam as janelas do teto até ao chão,
vendo o panorama. A janela virada para o norte oferecia
uma vista que se estendia do Pacífico para leste, cobrindo o
contorno das Montanhas de Santa Monica, até Hollywood.
As cortinas funcionavam como uma camada de nevoeiro por
cima da camada de poluição. Estava de pé, com o nariz
quase tocando o suave tecido de gaze olhando para baixo,
para o outro lado de Wilshire, para o Cemitério da
Administração dos Veteranos. As pedras tumulares
despontavam da relva bem aparada como filas de dentes de
bebês.
Ao pé da entrada do cemitério, estava acontecendo um
funeral, com uma guarda de honra em sentido. Mas não
havia uma grande multidão de acompanhantes. Mais ao
norte, no topo de uma elevação onde não havia pedras
tumulares, Bosch via vários trabalhadores removendo
torrões de terra e escavando uma comprida faixa de terra
com o auxílio de uma escavadeira. Enquanto apreciava a
vista, ia verificando de tempos em tempos o andamento do
trabalho, mas não conseguia entender o que estavam
fazendo. O buraco era demasiado comprido e largo para
uma campa. Por volta das dez e meia, o funeral do soldado
terminara, mas os trabalhadores do cemitério continuavam
trabalhando na colina. E Bosch continuava esperando ao pé
da cortina. Finalmente, atrás dele, escutou uma voz se
dirigindo à ele.
— Todas essas campas. Umas fileiras tão perfeitas. Faço
o possível para nunca olhar para fora por estas janelas.
Bosch se voltou. Ela era alta e esbelta com cabelo
castanho ondulado até aos ombros e madeixas louras. Um
bronzeado bonito e pouca maquiagem. Parecia rígida e
talvez um pouco cansada demais para aquela hora tão
matutina, com aquele ar que as mulheres policiais e as
prostitutas costumam ter. Vestia uma saia e casaco
castanhos e uma blusa branca com um laço cor de
chocolate. Ele notou as curvas assimétricas das ancas dela
por baixo do casaco. Trazia qualquer coisa pequena do lado
esquerdo, talvez uma Rugar, o que não era usual. Bosch
sempre vira as mulheres detetives levarem a arma nas
bolsas.
— É o cemitério dos Veteranos, disse ela.
— Eu sei.
Ele sorriu, mas não por causa daquilo. Esperara que a
Agente Especial E. D. Wish fosse um homem. Por nenhuma
razão especial a não ser o fato da maioria dos agentes do
FBI destacados para os bancos serem homens. As mulheres
faziam parte da imagem mais recente do FBI e não era
habitual encontrá-las nas delegacias da pesada. Estas eram
fraternidades compostas praticamente só de dinossauros e
marginalizados, tipos que não conseguiam ou não queriam
aguentar o enfoque dado pelo departamento ao combate
cerrado às investigações dos crimes de colarinho branco,
espionagem e droga. Os dias de Melvin Purvis e dos
pistoleiros, estavam praticamente acabados. Os assaltos
aos bancos já não eram vistosos. A maior parte dos ladrões
de bancos não era profissional. Eram drogados que
andavam a procura de dinheiro suficiente para se
aguentarem durante uma semana. Claro que roubar um
banco continuava a ser um crime federal. E era por essa
única razão que o departamento ainda se incomodava.
— Claro, disse ela. — Você deve saber isso. Em que
posso ajudar, detetive Bosch? Sou a agente Wish.
Trocaram um aperto de mão, mas Wish não fez qualquer
movimento em direção à porta por onde tinha entrado.
Estava fechada e a lingueta tinha encaixado. Bosch hesitou
um instante e depois disse:
— Bem, esperei toda a manhã para falar consigo. É
sobre o assalto ao banco... Um dos seus casos.
— Sim, foi o que disse à recepcionista. Peço desculpas
por tê-lo feito esperar, mas não tínhamos nenhuma
entrevista marcada e eu tinha outro assunto urgente.
Gostaria que tivesse telefonado primeiro.
Bosch assentiu com a cabeça, mostrando que
compreendia a situação, mas, mais uma vez, não houve
nenhuma indicação de que ia convidá-lo a entrar. “Isto não
está começando bem”, pensou ele.
— Por acaso não tem café lá dentro? Perguntou.
— Ah... Sim, acho que temos. Mas não podíamos ser
breves? A verdade é que estou mesmo no meio de uma
investigação neste momento.
“E quem não está?”, pensou Bosch. Ela usou uma
chave-cartão para abrir a porta e depois a empurrou toda
para trás, mantendo-a aberta para ele passar. Lá dentro,
levou-o por um corredor onde havia placas nas paredes ao
lado das portas. O FBI não tinha a mesma afinidade com os
acrônimos que a polícia tinha. As placas eram numeradas:
Grupo 1, Grupo 2 e assim por diante. Enquanto iam
andando, ele foi tentando identificar a pronúncia dela. Era
ligeiramente nasal, mas não como a de Nova Iorque.
Filadélfia, ele decidiu, talvez New Jersey. Não era com
certeza do Sul da Califórnia apesar do bronzeado.
— Simples? Perguntou ela.
— Creme e açúcar, por favor.
Ela se voltou e entrou numa sala que estava equipada
como uma pequena cozinha. Havia uma bancada e
armários, uma máquina de café para quatro xícaras, um
micro-ondas e uma geladeira. Aquilo fez lembrar a Bosch os
escritórios de advogados a que tinha ido para prestar
depoimentos. Bonito, perfeito, caro. Ela lhe entregou um
copinho de plástico com café e indicou que se servisse de
creme e açúcar. Ela não ia se servir de nenhum. Se era uma
tentativa para fazê-lo se sentir desconfortável, deu
resultado. Bosch se sentia como se estivesse se impondo e
não como alguém que trazia boas notícias, uma abertura
num caso importante. Seguiu-a pelo corredor e entraram na
porta seguinte que estava marcada como Grupo 3. Era a
unidade dos assaltos aos bancos e dos raptos. A sala tinha
praticamente o tamanho de uma loja de conveniência. Era a
primeira sala de uma delegacia federal em que Bosch
entrava e a comparação com a sua era deprimente. Aqui, a
mobília não tinha nada a ver com nada do que já tinha visto
numa delegacia do LAPD. Tinha até um tapete no chão e um
computador em quase todas as mesas.
Havia três filas de cinco mesas e todas elas, com
exceção de uma, se encontravam vazias. Um homem de
terno cinzento, sentado na primeira mesa da fila do meio,
segurava um telefone. Não levantou a cabeça quando Bosch
e Wish entraram. Excetuando o barulho de fundo de um
scanner em cima de um armário de arquivos ao fundo da
sala, aquilo podia ter passado pelo gabinete de uma
sociedade de venda de propriedades. Wish se sentou à
primeira mesa da primeira fila e fez sinal a Bosch para se
sentar no lugar ao lado. Isto fez com que ele ficasse sentado
entre Wish e o Terno Cinzento ao telefone. Bosch pousou o
café em cima da mesa e notou que o Terno Cinzento não
estava de fato ao telefone, embora o tipo não parasse de
dizer “Hã-hã, hã-hã” ou “Hum-hum” a cada instante. Wish
abriu uma gaveta da mesa e tirou uma garrafa de plástico
com água, parte da qual colocou num copo de papel.
— Tivemos um código duzentos e onze numa caixa
econômica em Santa Monica e quase toda a gente foi para
lá, explicou ela quando o viu observando a sala quase
deserta. — Eu estava fazendo a coordenação a partir daqui.
Foi por isso que você teve de ficar esperando lá fora.
Desculpe.
— Não tem importância. Apanharam-no?
— O que o leva a pensar que foi um só? Bosch encolheu
os ombros.
— As percentagens.
— Bem, eram dois. Um de cada. E, sim, apanhamos.
Estavam num carro roubado de Reseda, cujo roubo já fora
participado ontem. A mulher entrou e tomou conta do
negócio. O homem ficou ao volante. Apanharam a 10 para a
405 e depois entraram no Aeroporto de Los Angeles, onde
deixaram o carro à frente de um carregador na United.
Depois se meteram na escada rolante para o terminal das
chegadas, apanharam um ônibus para a estação Flyaway
em Van Nuys e depois um táxi para fazerem outra vez o
caminho de regresso a Venice. Até outro banco. Tivemos
sempre um helicóptero do LAPD em cima deles. Nunca
olharam para cima. Quando ela entrou no segundo banco,
pensamos que íamos assistir outro 211, por isso, a pegamos
quando estava na fila para um dos caixas. Ele nós pegamos
no parque de estacionamento. Afinal, descobrimos que ela
ia depositar o que tinha roubado do primeiro banco. Uma
transferência interbancária, da forma mais complicada.
Vemos pessoas muito estúpidas neste trabalho, detetive
Bosch. O que posso fazer por si?
— Pode me tratar por Harry.
— Enquanto estou a fazer o quê por si?
— Cooperação interdepartamental, disse ele. O seu
nome apareceu ontem num boletim. Um caso com um ano
lá na baixa. Estou interessado nele. Trabalho nos homicídios
na Divisão de Holly...
— Sim, eu sei, interrompeu a Agente Wish.
— ... wood.
— A recepcionista me mostrou o cartão que você lhe
deu. A propósito, não precisa dele?
Era um golpe baixo. Bosch viu o seu triste cartão de
visita em cima do elegante mata-borrão verde dela. Andara
no bolso dele durante meses e os cantos estavam
encaracolando. Era um daqueles cartões genéricos que o
departamento dava aos detetives que faziam serviço
externo. Tinha gravado o distintivo da Polícia e o número de
telefone da Divisão de Hollywood, mas não tinha nome.
Uma pessoa podia comprar uma almofada de tinta,
encomendar um carimbo e se sentar à mesa no princípio de
cada semana e carimbar uma dúzia de cartões. Ou podia se
limitar a escrever o nome na linha com uma caneta e a não
distribuir demasiados. Bosch tinha optado por esta última
solução. Nada que o departamento fizesse conseguiria que
ele voltasse a se envergonhar.
— Não. Pode ficar com ele, respondeu. — A propósito,
não tem um? Num movimento rápido e impaciente, ela
abriu a gaveta do meio, tirou um cartão de um tabuleirinho
e pousou-o no tampo da mesa ao lado do cotovelo que
Bosch tinha apoiado lá. Ele bebeu outro gole de café
enquanto baixava os olhos para lê-lo. O E era de Eleanor.
— Bem, seja como for, você sabe quem eu sou e de
onde é que venho, começou ele.
— E eu sei algumas coisas sobre si. Por exemplo,
investigou, ou está investigando, um assalto a um banco no
ano passado em que os assaltantes entraram pelo chão. O
caso do túnel. O West Land National. Reparou que tinha
despertado a atenção dela e achou que o Terno Cinzento
tinha sustido a respiração. Tinha atirado o anzol no lugar
certo.
— O seu nome está nos boletins. Eu estou investigando
um homicídio. Estou convencido que está relacionado com o
seu caso e quero saber... Basicamente, quero saber o que
você sabe... Podemos falar dos suspeitos, possíveis
suspeitos... Acho que somos capazes de andar procurando
as mesmas pessoas. Acho que o meu homem pode ter sido
um dos seus assaltantes.
Wish ficou calada durante uns instantes brincando com
um lápis que tinha tirado do mata-borrão. Fez deslizar o
cartão de Bosch em cima do quadrado verde com a ponta
da borracha. O Terno Cinzento continuava fingindo que
estava ao telefone. Bosch olhou para ele e os olhares de
ambos se cruzaram por breves instantes. Bosch baixou a
cabeça e o Terno Cinzento desviou o olhar. Bosch deduziu
que estava olhando para o homem cujos comentários
tinham aparecido nos artigos do jornal. O Agente Especial
John Rourke.
— Você é capaz de fazer melhor do que isto, não é
verdade, detetive Bosch? Perguntou Wish. — Quero dizer,
você se limita a entrar aqui dentro e acenar com a bandeira
da cooperação e espera que eu lhe abra os nossos arquivos.
Bateu três vezes com a ponta do lápis na mesa,
abanando a cabeça como se estivesse ralhando com uma
criança.
— E se me desse um nome? Continuou ela. — E se me
desse uma razão para essa ligação? Geralmente,
costumamos lidar com esses pedidos através dos canais
próprios. Temos agentes de ligação que avaliam os pedidos
das outras agências policiais para partilharmos as nossas
informações e os nossos arquivos. Você sabe isso. Acho que
seria melhor...
Bosch tirou o boletim do FBI com a fotografia da pulseira
da companhia de seguros do bolso. Desdobrou-o e colocou-
o em cima do mata-borrão. Depois, tirou a Polaroid da loja
de penhores e largou-a em cima da mesa.
— West Land National, disse ele batendo com um dedo
no boletim. — A pulseira foi empenhada há seis semanas
atrás numa loja da baixa. Quem a empenhou foi o meu
homem. Agora, está morto. Ela olhou atentamente para a
Polaroid da pulseira e Bosch notou que estava
reconhecendo-a. Ela ainda não tinha esquecido o caso. — O
nome é William Meadows. Encontrei-o ontem de manhã,
dentro de um cano na barragem de Mulholland.
O Terno Cinzento deu o monólogo por terminado
dizendo:
— Agradeço a informação. Preciso desligar. Estamos
encerrando um duzentos e onze. Hum-Hum... Obrigado...
Para si também, obrigado.
Bosch não olhou para ele. Estava observando Wish.
Sentia que ela queria olhar para o Terno Cinzento. Os olhos
saltaram naquela direção, mas regressaram rapidamente à
fotografia. Havia qualquer coisa que não estava certa e
Bosch resolveu se atirar de cabeça e quebrar o silêncio.
— Por que não paramos de dar voltas, agente Wish?
Tanto quanto sei, vocês nunca recuperaram uma única
ação, um único título, uma única moeda, uma única joia,
uma única pulseira de ouro e jade. Não têm nada. Por isso,
vá se lixar com os agentes de ligação. O que eu quero saber
é isto. O meu homem pôs a pulseira no prego; e acabou por
morrer. Por quê? Temos investigações paralelas, não acha?
O mais provável é se tratar até da mesma investigação.
Senão vejamos: O meu homem: ou os assaltantes lhe deram
a pulseira ou ele roubou-a deles. Ou então, muito
possivelmente, era um deles. Vai ver, não era para que a
pulseira aparecesse agora. Ainda não apareceu nada. E ele
resolveu quebrar as regras e vai pôr a dita no prego. Os
outros lhe limpam o sebo, vão à loja de penhores e voltam a
roubá-la. Qualquer coisa deste tipo. O que interessa é que
estamos à procura das mesmas pessoas. E eu preciso que
me deem uma pista para poder começar. Ela ainda
permanecia calada, mas Bosch notou que estava tomando
uma decisão. Desta vez, resolveu esperar.
— Fale-me dele, disse ela por fim.
E ele falou. Contou tudo. O telefonema anônimo. O
cadáver. O fato de o apartamento ter sido revistado. Ter
encontrado a cautela da loja de penhores escondida por trás
da fotografia. O ter ido à loja de penhores só para descobrir
que a pulseira voltara a ser roubada. Não contou que tinha
conhecido Meadows.
— Levaram mais alguma coisa dessa loja de penhores,
ou foi só a pulseira? Ela perguntou quando ele acabou.
— Claro que sim. Mas só para esconder o que realmente
queriam. A pulseira. Em minha opinião, o Meadows foi
morto porque, quem quer que o tenha matado, queria a
pulseira. Foi torturado antes de ser assassinado porque
queriam saber onde é que ela estava. Conseguiram o que
queriam, mataram-no e foram buscar a pulseira. Importa-se
que eu fume?
— Importo-me sim. O que poderia ser assim tão
importante nessa pulseira? Esta pulseira não é mais do que
uma gota no oceano de tudo aquilo que foi levado, de tudo
aquilo que nunca apareceu. Bosch já pensara nisso, mas
não fazia ideia nenhuma. Respondeu:
— Não sei.
— Se ele foi torturado, como você diz, por que a cautela
da loja lá ficou dando azo a que a encontrassem? E por que
tiveram que arrombar a loja de penhores para conseguirem
entrar lá? Você está dizendo que ele falou onde estava a
pulseira, mas não deu a cautela? Bosch também pensara
nisso. Respondeu:
— Não sei. Talvez ele soubesse que eles não o iam
deixar vivo. Por isso, só deu metade do que eles
precisavam. Guardou uma coisa para si. Era uma pista. Ele
deixou a cautela como uma pista.
Bosch pensou no cenário. A primeira vez que tinha
começado a juntar as peças todas fora quando relera os
seus apontamentos e os relatórios que tinha escrito à
máquina. Decidiu que era a altura de dar mais uma cartada.
— Conheci o Meadows há vinte anos.
— Conhecia a vítima, detetive Bosch? A voz dela se
ergueu acusadora. — Por que não disse isso logo que entrou
aqui? Desde quando o LAPD permite que os seus detetives
andem por aí investigando as mortes dos seus amigos?
— Eu não disse isso. Disse que o conheci. Há vinte anos.
E não pedi que me dessem este caso. Estava de serviço e
era a minha vez. Fui chamado. Foi uma... Não queria dizer a
palavra coincidência.
— Isto é tudo muito interessante, disse Wish. Mas
também é bastante irregular. Nós... Eu não sei se o
podemos ajudar. Penso...
— Olhe, quando o conheci, foi no Exército dos Estados
Unidos. O Primeiro de Infantaria no Vietnam. OK? Nós dois
estávamos lá. Ele era aquilo a que se costumava chamar
um rato dos túneis. Sabe o que isso quer dizer?... E eu
também era. Wish não disse nada. Estava outra vez olhando
para a pulseira. Bosch tinha esquecido por completo do
Terno Cinzento. — Os vietnamitas faziam túneis por baixo
das aldeias, disse Bosch. — Alguns já tinham cem anos. Os
túneis iam de palhoça a palhoça, aldeia a aldeia, selva a
selva. Até passavam por baixo dos nossos campos. Havia
por todo o lado. Era esse o nosso trabalho, nós os soldados
dos túneis, nos enfiarmos nessas coisas. Havia outra guerra
completamente diferente por baixo do chão.
Repentinamente, Bosch notou que, sem contar um
psicólogo e um grupo de apoio na AV de Sepúlveda, nunca
tinha falado a ninguém sobre os túneis e sobre aquilo que
fazia lá.
— E o Meadows, bem, ele era bom naquilo. Por mais
estranho que pareça alguém gostar de descer para toda
aquela escuridão só com uma lanterna e uma 45, bem, a
verdade é que ele gostava. Por vezes, entrávamos e
levávamos horas lá dentro, outras vezes, levávamos dias...
E o Meadows... Bem, o Meadows foi a única pessoa que
conheci lá que não tinha medo de ir. A vida ao nível do chão
é que o assustava.
Ela não disse nada. Bosch olhou para o Terno Cinzento
que estava escrevendo num bloco amarelo algo que ele não
conseguia ler. Bosch ouviu alguém comunicar pelo canal
táctico que estava transportando dois prisioneiros para a
cadeia.
— E é assim que, vinte anos depois, você tem um crime
por um túnel e eu um combatente dos túneis morto. Ele foi
encontrado dentro de um cano, um túnel. Estava na posse
de um objeto do seu crime. Bosch apalpou os bolsos todos à
procura dos cigarros e de repente se lembrou de que ela
tinha dito que não. — Temos de trabalhar juntos neste caso.
E já.
Sabia pela expressão do rosto dela que não dera
resultado. Esvaziou a xícara de café, se preparando para se
dirigir para a porta. Não olhou para Wish. Ouviu o Terno
Cinzento voltar a apanhar o telefone e discar um número.
Olhou para baixo, para o resíduo de açúcar no fundo da
xícara. Odiava açúcar no café.
— Detetive Bosch, começou Wish, — Lamento que
tenha esperado tanto tempo na recepção esta manhã.
Tenho muita pena que este soldado que você conhecia,
Meadows, tenha morrido. Quer tenha sido ou não há vinte
anos, tenho mesmo. Tenho simpatia por ele, por si, por
aquilo que podem ter passado... Mas também tenho pena
de, neste momento, não poder ajudar. Vou ter de seguir os
procedimentos protocolares estabelecidos e falar com o
meu supervisor. Entrarei em contato consigo. O mais
depressa possível. Por agora, é tudo o que posso fazer.
Bosch jogou o copinho de café para dentro de um cesto
de papéis ao lado da mesa e estendeu o braço para apanhar
a Polaroid e a página do boletim.
— Podemos ficar com a fotografia? Perguntou a agente
Wish. — Preciso mostrá-la ao meu supervisor. Bosch não
largou a Polaroid. Levantou-se e se colocou em frente da
mesa do Terno Cinzento. Segurou a fotografia à frente do
rosto do homem.
— Ele já viu, disse por cima do ombro enquanto saía do
gabinete.
O subchefe Irvin Irving estava sentado à mesa rangendo
os dentes e contraindo os músculos dos maxilares como se
fossem bolas de borracha dura. Estava perturbado. E este
apertar e ranger de dentes eram um hábito seu quando
estava perturbado ou num estado de espírito solitário e
contemplativo. Em resultado disso, a musculatura dos
maxilares tinha se tornado a característica mais
pronunciada das suas feições. Quando se olhava de frente,
as linhas dos maxilares de Irving eram mais largas do que
as orelhas, que estavam coladas ao crânio rapado e tinham
um feitio que lembrava asas. As orelhas e os maxilares
davam a Irving um ar intimidante se não mesmo estranho.
Parecia que era só boca e que os seus molares eram
capazes de esmagar tubos. E Irving fazia tudo o que podia
para promover esta imagem de um feroz cão de guarda de
ferro-velho que conseguia enterrar os dentes num ombro ou
numa perna e arrancar um pedaço de carne do tamanho de
uma bola de basebol. Era uma imagem que o ajudara a
ultrapassar o seu único entrave enquanto policial de Los
Angeles, o estúpido nome. E também poderia ajudar na sua
longa e há muito planejada ascensão até ao gabinete do
chefe, no sexto andar. Por isso, satisfazia o hábito, ainda
que isso lhe custasse dois mil dólares num novo conjunto de
implantes molares de dezoito em dezoito meses.
Irving apertou com força o nó da gravata em roda do
pescoço e passou a mão pela careca reluzente. Estendeu a
mão para o intercomunicador. Embora pudesse ter apertado
com toda a facilidade o botão do alto-falante e ladrado a
sua ordem, esperou que a sua nova adjunta respondesse
primeiro. Era outro dos seus hábitos.
— Sim, Chefe?
Ele adorava ouvir aquilo. Sorriu e depois se inclinou para
frente até a sua enorme queixada ficar a escassos
centímetros do alto-falante do intercomunicador. Era um
homem que não confiava que a tecnologia pudesse fazer
aquilo que era suposto fazer. Tinha que pôr a boca no alto-
falante e gritar.
— Mary, me traga o dossiê de Harry Bosch. Deve estar
nos ativos. Soletrou o primeiro e o último nome.
— É para já, Chefe.
Irving se recostou para trás, sorriu por entre os dentes
cerrados, mas nessa altura achou que estava sentindo
qualquer coisa desalinhada. Passou com toda a destreza a
língua por cima do último molar inferior esquerdo, à procura
de um defeito na superfície lisa, talvez uma ligeira fissura.
Nada. Abriu a gaveta da mesa e tirou um espelhinho. Abriu
a boca e examinou os dentes de trás. Voltou a guardar o
espelho e tirou um bloco Post-it azul-claro onde fez uma
anotação para telefonar e marcar uma revisão dos dentes.
Fechou a gaveta se lembrando daquela vez em que tinha
enfiado na boca um bolinho num jantar com o vereador do
Westside da cidade. O molar inferior da direita tinha se
desfeito com o bolinho duro. O cão de ferro-velho preferiu
engolir os pedaços do dente a expor a sua fraqueza ao
vereador, de cujo voto poderia vir a precisar e a ter no
futuro.
Durante o jantar, tinha chamado a atenção do vereador
para o fato do seu sobrinho, um mecânico no LAPD, ser
homossexual não assumido. Irving disse que estava fazendo
o melhor que podia para proteger o sobrinho e impedir que
ele fosse descoberto. O departamento era tão homofóbico
como uma igreja do Nebraska e se a notícia se espalhasse e
chegasse aos ouvidos dos soldados rasos, explicou Irving ao
vereador, o agente podia esquecer a hipótese de ser
promovido. Também podia contar com uma perseguição
brutal por parte da restante nata de L.A. Irving não
precisava se referir as consequências, se acontecesse um
escândalo público. Mesmo no liberal Westside, não iria ser
nada útil às ambições de ascensão a Presidente da Câmara
por parte de um vereador.
Irving estava sorrindo com esta lembrança quando a
agente Mary Grosso bateu à porta e entrou no gabinete com
um dossiê de três centímetros de grossura na mão. Pousou-
o no tampo de vidro da mesa de Irving. Não havia mais
nada naquela superfície cintilante, nem sequer um telefone.
— Tinha razão, Chefe. Ainda estava nos arquivos ativos.
O subchefe encarregado da Divisão dos Assuntos Internos
se inclinou para frente e disse:
— Pois é, acho que não cheguei a mandá-lo para os
arquivos, porque tinha a sensação que ainda não tínhamos
nos visto livres do detetive Bosch. Ora vejamos, quer me
parecer que foram Lewis e Clarke. Abriu o dossiê e leu as
anotações na parte de dentro da capa. — Exatamente. Mary
me faça o favor de chamar Lewis e Clarke.
— Chefe, viu-os na sala da delegacia. Estavam se
preparando para uma CDH. Não sei bem de qual caso.
— Bem, Mary, eles vão ter que cancelar a audiência
com a Comissão dos Direitos Humanos. E, por favor, não
use siglas quando falar comigo. Sou um policial lento e
cuidadoso. Não gosto de atalhos. Não gosto de siglas. Vai
acabar aprendendo isso. Agora, vá dizer ao Lewis e ao
Clarke que quero que adiem a audiência e se apresentem
imediatamente.
Contraiu os músculos dos maxilares e manteve-os
assim, duros como bolas de tênis. Mary Grosso se precipitou
para fora do gabinete. Irving se descontraiu e começou a
percorrer as páginas do dossiê, voltando a se familiarizar
com Harry Bosch. Reparou no registro militar de Bosch e na
sua rápida subida no departamento. Das patrulhas para os
detetives e daí para a Divisão dos Assaltos e Homicídios em
oito anos. Depois a queda: transferência administrativa no
ano anterior da Divisão dos Assaltos e Homicídios para
homicídios da Delegacia de Hollywood. Devia ter sido
expulso, se lamentou Irving enquanto estudava as entradas
na cronologia da carreira de Bosch. Em seguida, Irving
analisou o relatório de avaliação de um exame psicológico
feito por Bosch no ano anterior a fim de determinar se ele
deveria ser autorizado a regressar ao serviço depois de ter
matado um homem desarmado. O psicólogo do
departamento escrevera:
Através das suas experiências na guerra e na
polícia, incluindo o supracitado e importante tiroteio
que resultou em fatalidade, o sujeito acabou por
ficar, em grande medida, dessensibilizado em relação
à violência. Fala em termos de violência ou nos
aspectos da violência como sendo uma parte aceita
da sua vida quotidiana, durante toda a sua vida. Por
conseguinte, é improvável que aquilo que aconteceu
anteriormente venha a atuar como um impedimento
psicológico, caso ele venha a se encontrar
novamente em circunstâncias em que tenha de atuar
com força mortal para se proteger a si ou a outros.
Estou certo que será capaz de agir sem a menor
hesitação. Será capaz de apertar o gatilho. De fato, a
sua conversa não revela quaisquer efeitos negativos
provocados pelo tiroteio, a não ser que a sua
sensação de satisfação com o resultado do incidente,
a morte do suspeito, deva ser considerada
inapropriada.
Irving fechou o dossiê e tamborilou em cima dele com
uma unha impecavelmente tratada. A seguir, apanhou de
cima da mesa, um comprido cabelo castanho da agente
Mary Grosso, e jogou-o para o cesto de papéis ao lado da
mesa. “Harry Bosch era um problema”, pensou ele. Um bom
policial, um bom detetive de fato. Ainda que de má vontade,
Irving admirava o trabalho dele nos homicídios,
particularmente a sua propensão pelos assassinos em série.
Mas o subchefe estava convencido que, a longo prazo, os
marginais não trabalhavam bem dentro do sistema. Harry
Bosch era um marginal e iria sê-lo sempre. Não fazia parte
da família do LAPD. E agora tinha chegado ao conhecimento
de Irving algo muito pior. Bosch não só tinha deixado a
família como parecia estar envolvido em atividades que
iriam prejudicar a família, envergonhar a família. Irving
decidiu que tinha de agir com determinação e depressa. Fez
girar a cadeira e ficou olhando pela janela para a Câmara
Municipal do outro lado da Los Angeles Street. Depois, o
olhar desceu, como sempre acontecia, para a fonte de
mármore em frente do Parker Center, o memorial aos
agentes da polícia mortos no cumprimento do dever.
“Estava ali a família”, pensou ele. Estava ali a honra. Cerrou
os dentes com toda a força se sentindo forte e triunfante.
Naquele preciso instante, a porta se abriu.
Os detetives Pierce Lewis e Don Clarke entraram no
gabinete e se perfilaram. Nenhum deles falou. Podiam ser
irmãos. Ambos usavam o cabelo castanho cortado à
escovinha, tinham a mesma amplitude de braços dos
levantadores de pesos e vestiam ternos conservadores de
tecido cinzento. O de Lewis tinha uma risca fininha cor de
carvão, o de Clarke tinha uma castanha. Ambos eram de
constituição larga e baixa. Ambos se deslocavam com uma
ligeira inclinação do corpo para frente como se estivessem
avançando mar dentro, abrindo caminho pelo meio das
ondas com o rosto.
— Meus senhores, disse Irving, — Temos um problema,
um problema prioritário com um agente que já cruzou o
limiar da nossa porta. Um agente com quem os dois já
lidaram com certo sucesso.
Lewis e Clarke olharam um para o outro e Clarke se
permitiu um sorriso, um sorriso pequeno e rápido. Não fazia
a mínima ideia de quem poderia ser, mas gostava da ideia
de perseguir os reincidentes. Ficavam tão desesperados...
— Harry Bosch, disse Irving. Esperou uns instantes para
que o nome lhes dissesse alguma coisa e continuou: — Vão
precisar dar um passeiozinho até à Divisão de Hollywood.
Quero abrir a um ponto oitenta e um imediatamente. O
queixoso vai ser o Federal Bureau of Investigation.
— O FBI? Exclamou Lewis. — O que ele fez?
Irving repreendeu-o por usar a sigla do departamento
federal e mandou os dois sentarem em duas cadeiras à
frente da mesa dele. Passou os dez minutos seguintes
contando o telefonema que recebera do FBI.
— O departamento diz que é demasiada coincidência,
concluiu ele. — E eu concordo. Ele pode estar sujo nesta
história e os agentes federais querem-no fora do caso
Meadows. No mínimo, parece que ele interveio para ajudar
este suspeito, antigo camarada de armas, a evitar passar
uma temporada na prisão no ano passado, possivelmente
para que ele pudesse cometer este assalto ao banco. Se
Bosch sabia disto, ou se teve mais algum envolvimento no
crime, não sei. Mas vamos descobrir o que o detetive Bosch
anda fazendo.
Irving fez aqui uma paragem, contraindo o maxilar com
toda a força, para que a sua mensagem fosse claramente
entendida. Lewis e Clarke sabiam que o melhor era não
interromperem. E Irving continuou:
— Esta oportunidade abre a porta para o nosso
departamento fazer aquilo que não conseguiu realizar
anteriormente em relação a Bosch: eliminá-lo. Os senhores
me informam diretamente. Ah, e eu quero que o supervisor
do Bosch, um tal tenente Pounds, receba cópias dos
relatórios diários. Discretamente. Mas, comigo, vão fazer
mais do que me dar as cópias. Quero relatórios telefônicos
duas vezes por dia, de manhã e à noite.
— Vamos a caminho, disse Lewis, levantando.
— Sejam audaciosos, mas cuidadosos, aconselhou
Irving. — O detetive Harry Bosch já não é a celebridade que
foi em tempos idos. Mas, seja como for, não o deixem
escapar por entre os dedos.
A vergonha que Bosch sentira por ter sido tão pouco
cerimoniosamente mandado embora pela agente Wish,
tinha se transformado em fúria e frustração enquanto
descia pelo elevador. Parecia uma presença física no peito
que saltava para dentro da garganta enquanto a cela de aço
inoxidável descia. Estava sozinho e, quando o Pager no cinto
deu sinal, deixou-o apitar durante os quinze segundos que
lhe eram concedidos em vez de desligá-lo. Engoliu a fúria e
a vergonha que sentia e transformou-as numa resolução.
Quando saiu do elevador, olhou para o número de telefone
no mostrador digital do Pager. O código da área era 818, o
do Valley, mas não reconheceu o número. Dirigiu-se para
uma das cabines telefônicas no pátio em frente do Federal
Building e discou o número. Noventa cêntimos disse uma
voz eletrônica. Felizmente, tinha os trocados necessários.
Colocou as moedas e a ligação foi atendida a meio do toque
por Jerry Edgar.
— Harry, foi logo dizendo, sem um olá sequer, — Ainda
estou aqui, na AV, e sendo empurrado de uns para os
outros. Não têm nenhum arquivo do Meadows. Dizem que
tenho que ir através do DC ou arranjar um mandado de
busca. Digo-lhes que sei que há um processo, sabe, por
causa daquilo que você me contou. Digo-lhes: “Olhem, se
eu arranjar um mandado de busca, vocês são capazes de ir
procurá-lo para saber onde está o processo?”. E eles
andaram a procura durante um bom pedaço e quando
voltaram finalmente foi para me dizerem que sim, tinham
tido um processo, mas tinha desaparecido, fora levado.
Adivinhe quem veio buscar com uma ordem do tribunal, no
ano passado?
— O FBI.
— Sabe de alguma coisa que eu não saiba?
— Não tenho estado propriamente com o bunda na
cadeira. Eles disseram quando o FBI o levou ou por quê?
— Não disseram por quê. O agente do FBI se limitou a
aparecer lá com o mandado e levá-lo. Foi em setembro
passado e ainda não devolveu. Não deu nenhuma
explicação. A porra do FBI nunca tem de dar explicações.
Bosch ficou calado enquanto pensava naquilo. Eles já
sabiam de tudo. Wish sabia da existência de Meadows, dos
túneis e de todo o resto que Bosch tinha acabado de contar.
Tudo aquilo fora uma representação.
— Harry, ainda está aí?
— Sim. Escute. Eles mostraram alguma fotocópia da
papelada ou sabem o nome do agente?
— Não, não conseguiram encontrar a cópia do recibo da
intimação e ninguém se lembra do nome do agente,
excetuando o fato de ser uma mulher.
— Anote este número de onde eu estou. Volte lá, nos
registros, e pede para ver outro processo, só para ver se
está lá. O meu processo.
Ditou a Edgar o número do telefone onde estava, a data
do nascimento, o número do cartão da seguridade social e o
nome completo, soletrando o seu nome próprio verdadeiro.
— Jesus! Isso é o seu nome? Perguntou Edgar. — Harry é
um diminutivo? Como a sua mãe se lembrou de uma
dessas?
— Tinha uma queda pelos pintores do século quinze.
Tem a ver com o nome. Vai lá ver o processo e depois me
telefone. Fico aqui à espera.
— Nem sequer sou capaz de pronunciar isto, meu.
— Rima com anônimo.
— OK. Vou experimentar. A propósito, afinal onde você
está?
— Numa cabine pública. Em frente do FBI.
Bosch desligou antes que o companheiro pudesse fazer
mais perguntas. Acendeu um cigarro e se encostou à cabine
telefônica enquanto observava um pequeno grupo de
pessoas que se deslocava num círculo no comprido relvado
verde à frente do edifício. Seguravam tabuletas e cartazes
feitos em casa, protestando contra uma proposta para
conceder novas licenças petrolíferas na Baía de Santa
Monica. Viu cartazes que diziam: “Digam Não Ao Petróleo”,
“A Baía Ainda Não Está Suficientemente Poluída?”, “Estados
Unidos da Exxon”, etc., etc. Reparou que tinha duas equipes
de notícias de televisão filmando a manifestação.
“A chave era exatamente isso”, pensou ele. Exposição.
Desde que os meios de comunicação viessem e a
manifestação aparecesse no noticiário das seis, o protesto
fora bem sucedido. Bosch viu que o aparente porta-voz do
grupo estava sendo filmado e entrevistado por uma mulher
que ele reconheceu ser do Channel 4. Também estava
reconhecendo o porta-voz, mas não sabia de onde. Ao fim
de alguns instantes observando o à vontade do homem
perante a câmera, durante a entrevista, Bosch identificou-o.
Era um ator de TV que costumava fazer o bêbado numa
popular série de comédia que Bosch tinha visto uma ou
duas vezes. Embora o tipo ainda se parecesse com um
bêbado, o programa já tinha acabado.
Bosch estava no segundo cigarro, encostado à cabine
telefônica e começando a sentir o calor do dia, quando
ergueu os olhos para as portas de vidro do edifício e viu
saindo a agente Eleanor Wish. Estava olhando para baixo,
com a mão metida na bolsa à procura de qualquer coisa e
não o viu. Muito rapidamente e sem analisar porquê, Bosch
se abaixou atrás dos telefones e, usando-os como um
escudo protetor, foi se deslocando à volta deles enquanto
ela passava. O que ela estava procurando na bolsa eram os
óculos. Já os colocara quando passou pelos manifestantes
sem sequer dar uma olhada na direção deles. Subiu a
Veteran Avenue em direção ao Wilshire Boulevard. Bosch
sabia que a garagem do FBI ficava por baixo do edifício.
Eleanor Wish estava andando na direção oposta. Ia a
qualquer lugar ali perto. O telefone tocou.
— Harry, eles também têm o seu processo. O FBI. O que
está acontecendo? A voz de Edgar parecia aflita e confusa.
Ele não gostava de ondas. Não gostava de mistérios. Era o
tipo de homem que cumpria o seu horário das nove as cinco
e nada mais.
— Não sei o que está acontecendo, não quiseram me
dizer, replicou Bosch. — Vá andando para a delegacia.
Conversaremos lá. Se lá chegar antes de mim, quero que
telefone para o projeto do Metrô. Pessoal. Veja se o
Meadows trabalhava lá. Experimenta também com o nome
Fields. Depois trata da papelada relativa à facada da TV.
Como combinamos. Trate da sua parte da combinação. Eu
vou encontrá-lo lá.
— Harry, você me disse que conhecia este tipo, o
Meadows. Acho que devíamos avisar o Noventa e oito que
há um conflito, que deveríamos entregar o caso ao RHD ou
a qualquer outra pessoa que esteja disponível.
— Jed, falamos daqui a pouco. Não faça nada, nem fale
com ninguém, acerca disto até eu chegar aí.
Bosch desligou o telefone e se dirigiu para o Wilshire
Boulevard. Conseguiu ver que Eleanor Wish já tinha virado
em direção à Westwood Village. Encurtou a distância entre
os dois, atravessou para o outro lado da rua e continuou
atrás dela. Teve o cuidado de não se aproximar demasiado
para que o seu reflexo não aparecesse nos vidros das
vitrines para onde ela ia olhando ao passar. Quando chegou
ao Westwood Boulevard, virou para norte e atravessou
Wilshire, para o lado da rua onde Bosch se encontrava. Este
se enfiou na portaria de um banco. Momentos depois ele
voltou a sair para a calçada, mas ela tinha desaparecido.
Olhou para cima e para baixo, correu até à esquina. Viu-a
meio quarteirão mais à frente, subindo a Westwood para
entrar no Village.
Wish diminuiu à frente de umas vitrines e parou numa
loja de artigos esportivos. Bosch conseguia ver manequins
femininos na vitrine, vestindo camisetas e shorts de correr
verde-limão. A moda do ano passado em promoção hoje.
Wish olhou para as roupas durante alguns instantes e
depois continuou, só voltando a parar quando ingressou na
área dos teatros. Entrou no Strattons Bar & Grill. Bosch, do
outro lado da rua, passou pelo restaurante sem olhar e
continuou até à esquina seguinte. Parou em frente do Bruin,
debaixo do toldo do velho teatro e olhou para trás. Ela não
tinha saído. Perguntou para consigo se haveria uma saída
pelos fundos. Consultou o relógio de pulso. Era um
bocadinho cedo para almoçar, mas talvez ela gostasse de
evitar as multidões. Talvez quisesse comer sozinha.
Atravessou a rua para a outra esquina e se colocou debaixo
do toldo do Fox Theater. Conseguia ver através do vidro da
janela da frente do restaurante, mas não conseguiu detectá-
la. Atravessou o parque de estacionamento ao lado do
restaurante e entrou no beco dos fundos. Viu que havia uma
porta de acesso público. Teria ela o notado e usado o
restaurante para escapar? Já tinha se passado muito tempo
desde que ele andara na pegada de uma pessoa, mas não
parecia que ela tivesse dado por ele. Desceu a viela e
entrou pela porta dos fundos.
Eleanor Wish estava sentada sozinha na fila de
reservados de madeira ao longo da parede da direita do
restaurante. Como qualquer policial cuidadoso, tinha se
sentado de frente para a porta, por isso, não viu Bosch
senão quando ele deslizou pelo banco à frente dela e
apanhou o menu que ela já dera uma olhadela e largara.
— Nunca estive aqui, disse-lhe ele. — Há alguma coisa
boa?
— O que é isto? Perguntou ela com a surpresa
claramente estampada no rosto.
— Não sei, pensei que era capaz de querer companhia.
— Você me seguiu?
— Pelo menos, estou sendo muito franco a este
respeito. Sabe uma coisa? Cometeu um erro lá no gabinete.
Mostrou-se demasiado fria. Eu entro por ali adentro com a
única pista que vocês conseguiram em nove meses e você
só quer falar de agentes de ligação e outras bobagens.
Havia qualquer coisa que não estava certa, mas eu não
consegui notar o que era. Agora, já sei.
— Do que está falando? Não interessa, também não
quero saber.
Fez um movimento para deslizar para fora do banco,
mas Bosch estendeu o braço por cima da mesa e lhe
prendeu firmemente o pulso. A pele estava quente e húmida
depois de toda aquela caminhada. Ela parou e se voltou
para Bosch dardejando-o com uns olhos castanhos tão
zangados e excitados que teriam sido capazes de lhe gravar
o nome numa pedra tumular.
— Largue-me! Disse ela com a voz muito controlada,
mas com uma nota de tensão que sugeria que era capaz de
perder a cabeça por completo. Ele largou-a.
— Não vá embora. Por favor. Ela hesitou um instante e
ele trabalhou depressa. Disse: — Está tudo bem.
Compreendo as razões para esta coisa toda, para a
recepção tão fria, para tudo. Tenho de dizer que de fato foi
um bom trabalho, isso que você fez. Não posso lhe levar a
mal.
— Bosch, me ouça, não sei do que está falando. Acho...
— Eu sei que você já sabia do Meadows, dos ratos dos
túneis, de tudo. Você foi buscar os arquivos dele da tropa,
também levou os meus, provavelmente, levou todos os
arquivos de todos os ratos que conseguiram sair vivos
daquele lugar. Deve ter havido qualquer coisa no
trabalhinho do West Land que fez a ligação aos túneis
daqueles tempos. Ela olhou para ele durante um longo
momento e ia começar a falar quando apareceu uma
garçonete com um bloco e um lápis.
— Para mim é só um café simples e uma Evian.
Obrigado, disse Bosch antes que Wish ou a garçonete
tivessem tempo para abrir a boca. A empregada se afastou
escrevendo no bloco.
— Pensava que você era um tira de creme e açúcar,
disse Wish.
— Só quando as pessoas tentam adivinhar aquilo que eu
sou. Os olhos dela pareceram se suavizar, mas apenas um
bocadinho.
— Detetive Bosch, olhe, não sei como soube aquilo que
julga saber, mas não vou discutir o caso West Land. É
exatamente como disse no departamento. Não posso.
Lamento. Acredite que lamento mesmo. Bosch disse:
— Acho que eu devia me sentir ofendido, mas não me
sinto. Foi um passo lógico na investigação. Eu teria feito a
mesma coisa. Vocês agarram em todas as pessoas que
encaixem no perfil rato de túnel e as passam pela peneira.
— Você não é suspeito, Bosch, OK? Por isso, esqueça
isso.
— Eu sei que não sou suspeito. Soltou uma gargalhada
forçada. — Estava cumprindo a minha suspensão no México
e posso provar. Mas você já sabe disso. Por isso, por mim,
tudo bem, eu vou esquecer. Mas preciso daquilo que você
tem sobre Meadows. Você foi buscar os arquivos dele em
setembro. Deve ter feito um trabalho completo sobre ele.
Vigilância, associados conhecidos, antecedentes. Talvez...
Aposto que até o fizeram lá ir e tiveram uma conversa com
ele. Preciso disso tudo agora, hoje, não daqui a três, quatro
semanas, quando um oficial de ligação qualquer resolver
pôr o carimbo.
A garçonete voltou com o café e a água. Wish puxou o
copo para perto de si, mas não bebeu.
— Detetive Bosch, você foi retirado do caso. Lamento.
Não devia ser eu a informá-lo disso. Mas o retiraram do
caso. Quando voltar para o seu gabinete, vai ficar sabendo.
Fizemos um telefonema depois de você ter saído. Ele estava
segurando na xícara do café com as duas mãos, os
cotovelos assentes na mesa. Pousou a xícara no pires com
toda a cautela, não fossem as mãos começarem a tremer.
— O que fizeram? Perguntou Bosch.
— Lamento, disse Eleanor Wish. — Depois de você ter
saído, o Rourke, aquele a quem você enfiou a fotografia
debaixo do nariz, ligou para o número no seu cartão e falou
com um tal de tenente Pounds. Contou-lhe a visita que nos
fizera e sugeriu que havia um conflito, que você estava
investigando a morte de um amigo. Disse mais outras
coisas e...
— Que outras coisas?
— Olhe Bosch, eu sei quem você é. Admito que nós
apanhamos os seus arquivos, que o investigamos. Raios,
para fazer isso, bastavam ler os jornais dessa altura. Você e
aquela coisa do Dollmaker. Por isso, sei o que teve de
passar com os tipos dos Assuntos Internos e isto não vai
ajudar, mas quem decidiu foi o Rourke. Ele...
— Que outras coisas ele disse?
— Disse a verdade. Disse que tanto o seu nome como o
do Meadows tinham aparecido na nossa investigação. Disse
que vocês os dois se conheciam. Pediu para você ser
retirado do caso. Então, nada disto tem qualquer interesse.
Bosch estava olhando para longe, para lá do reservado.
— Quero ouvir a sua resposta, disse ele. — Sou
suspeito?
— Não. Pelo menos não era até ter aparecido lá esta
manhã. Agora, não sei. Estou tentando ser honesta. Quero
dizer, você tem de ver isto se colocando em nossa posição.
Um tipo que investigamos o ano passado entra lá dentro e
diz que está investigando o assassinato de outro tipo que
também investigamos e com grande atenção. O primeiro
diz: “Mostrem os seus dossiês”.
Ela não precisava lhe dizer tudo o que já dissera. Ele
sabia disso e sabia que, provavelmente, ela estava se
colocando numa situação difícil ao lhe dizer fosse o que
fosse. Apesar de toda a merda em que tinha acabado de se
meter, ou em que o tinham metido, Harry Bosch estava
começando a gostar da fria e dura Eleanor Wish.
— Se não quer falar do Meadows, então diga uma coisa
a meu respeito. Disse que tinham me investigado e que
depois tinham largado. Como é que me ilibaram? Foram ao
México?
— Isso e outras coisas. Ela olhou para ele durante uns
instantes antes de continuar. — Você foi ilibado muito
depressa. No princípio, ficamos excitados. Quero dizer,
fomos vasculhar os dossiês das pessoas com experiência de
túneis no Vietnam e, ali mesmo no topo do monte, estava o
famoso Harry Bosch, o superstar dos detetives, livros
escritos sobre os seus casos. Um filme para a TV, uma série.
É o tipo que, por acaso, tinha aparecido os jornais, o tipo
cuja estrela tinha estilhaçado com um mês de suspensão e
uma transferência da elite da Divisão de Assaltos e
Homicídios para... Hesitou.
Ela baixou os olhos para o copo e continuou.
— Por isso, o Rourke começou imediatamente a pensar
que; vai ver era assim que você estava ocupando o tempo,
escavando este túnel para o banco. De herói a vilão, isto era
a sua forma de se vingar da sociedade, uma maluqueira
destas. Mas quando analisamos os seus antecedentes e
fizemos umas perguntas discretas, soubemos que tinha ido
passar o mês no México. Mandamos uma pessoa a
Ensenada para verificar. Estava ilibado. Por essa altura,
também tínhamos conseguido o seu processo da AV em
Sepúlveda... Ah, foi isso, foi com eles que você contatou
esta manhã, não foi?
Ele assentiu com a cabeça. Ela continuou.
— Seja como for, nos arquivos médicos, havia os
relatórios dos psiquiatras... Desculpe. Isto parece uma
invasão tão grande.
— Quero saber.
— A terapia para o PTS. Quero dizer, você está
completamente funcional. Mas tem manifestações de stress
pós-traumático que se revelam na insônia e, entre outras
coisas, na claustrofobia. Um médico até chegou a escrever
que você nunca mais voltaria a entrar num túnel daqueles.
De qualquer maneira, enviamos o seu perfil ao nosso
laboratório de ciências comportamentais em Quântico. Eles
o eliminaram como suspeito, disseram que era improvável
que você cometesse um crime para obter ganhos
financeiros. Calou-se uns instantes, deixando que tudo
aquilo assentasse.
— Aqueles arquivos da AV são velhos, disse Bosch. —
Toda a história é velha. Não vou me sentar aqui
apresentando motivos para ser considerado um suspeito.
Mas essas coisas da AV são velhas. Não vejo um psiquiatra,
da AV ou outro, há cinco anos. E quanto a essa merda da
fobia, entrei num túnel para olhar o Meadows ainda ontem.
O que acha que os seus psiquiatras lá de Quântico
escreveriam sobre isso?
Bosch sentia que o rosto estava ficando vermelha de
vergonha. Tinha falado demasiado. Mas quanto mais se
tentava controlar e disfarçar, mais sangue subia ao seu
rosto. A garçonete de ancas largas escolheu aquele
momento para vir trazer mais café.
— Já querem pedir? Perguntou.
— Não, respondeu Eleanor Wish sem despegar os olhos
de Bosch. — Ainda não.
— Querida, vamos ter uma enchente de gente para o
almoço e vamos precisar da mesa para as pessoas que
querem comer. Ganho a vida com os que têm fome. Não
com os que estão tão zangados que não conseguem comer.
Afastou-se deixando Bosch pensando para consigo que;
vai ver as garçonetes de mesa eram melhores observadoras
do comportamento humano do que a maioria dos policiais.
Eleanor Wish disse:
— Lamento muito tudo isto. Devia ter me deixado
levantar quando eu quis ir embora. A vergonha tinha
desaparecido, mas a raiva continuava lá. Já não estava
olhando para fora do reservado. Estava olhando-a de frente.
— Você julga que me conhece através de uns papéis
num dossiê? Você não me conhece. Diga o que mais sabe.
— Eu não o conheço. Sei coisas a seu respeito, disse ela.
Fez uma pausa para reunir as ideias. — Você é um homem
institucional, detetive Bosch. Toda a sua vida. Abrigos para
jovens, lares adotivos, o exército, depois a polícia. Nunca
largou o sistema. Uma instituição social imperfeita se
seguindo à outra. Bebeu água e pareceu indecisa sem saber
se devia ou não continuar. Continuou: — Hieronymus
Bosch... A única coisa que a sua mãe lhe deu foi o nome de
um pintor que morreu há quinhentos anos. Mas calculo que
tudo o que você já viu tornariam aquelas coisas bizarras dos
sonhos que ele pintava parecer a Disneylândia. A sua mãe
estava sozinha. Teve de abandoná-lo. Você cresceu em lares
adotivos, casas de abrigo para jovens. Sobreviveu a isso e
sobreviveu ao Vietnam e sobreviveu à polícia. Pelo menos,
até agora. Mas é um marginal num emprego para gente que
pertence, faz parte dele. Chegou até ao RHD e trabalhou em
casos muito importantes, mas continuou sempre a ser um
marginal. Fazia as coisas à sua maneira e eles acabaram
pondo-o para fora, exatamente por isso.
Esvaziou o copo parecendo estar dando tempo para que
Bosch pudesse impedi-la de continuar. Mas ele não o fez.
— Bastou um erro, continuou ela. — Matou um homem
no ano passado. Era um assassino, mas isso não teve
importância. Segundo os relatórios, você pensou que ele
estava à procura de uma arma debaixo do travesseiro.
Depois, se descobriu que estava à procura da peruca. Quase
dava para rir, mas o Departamento dos Assuntos Internos
arranjou uma testemunha que disse que já o tinha avisado
anteriormente de que o suspeito guardava a peruca debaixo
do travesseiro. Uma vez que ela era uma prostituta de rua,
a sua credibilidade foi posta em causa. Não foi o suficiente
para o pôr fora da polícia, mas custou o seu posto. Agora,
você trabalha em Hollywood, o lugar a que a maior parte
das pessoas do departamento chama de “esgoto”.
A voz sumiu. Tinha acabado. Bosch não disse nada e se
seguiu um longo período de silêncio. A garçonete passou
pelo reservado, mas percebeu que era melhor não se dirigir
a eles.
— Quando voltar para o seu gabinete, disse Bosch por
fim, — Diga ao Rourke para fazer mais um telefonema. Ele
me tirou do caso, pode voltar a me colocar.
— Não posso fazer isso. Ele não vai fazer isso.
— Ah vai, e lhe diga que tem até amanhã de manhã
para fazer isso.
— Ou então? O quê? O que você pode fazer? Quero
dizer, sejamos honestos. Com o seu cadastro,
provavelmente, amanhã já estará suspenso. Mal o Pounds
desligou o telefone, depois de falar com Rourke, deve ter
telefonado para o Departamento dos Assuntos Internos, se
não foi o próprio Rourke a fazê-lo.
— Não interessa. Ou amanhã de manhã me dizem
qualquer coisa ou fale ao Rourke que vai ler uma
reportagem no Times sobre a forma como um tipo que o FBI
considerava como suspeito num importante assalto a um
banco, ainda mais, um suspeito sob vigilância do FBI, foi
assassinado debaixo do nariz do departamento, levando
consigo as respostas para o célebre assalto ao West Land.
Os fatos podem não estar todos corretos nem na ordem
exata dos acontecimentos, mas não devem errar por muito.
E, mais importante do que isso, vai proporcionar uma boa
leitura. E vai criar ondas até chegar à DC. Vai ser muito
embaraçoso e servirá de alerta para quem matou Meadows.
E assim, nunca irá apanhá-los. E Rourke vai ser sempre
conhecido como o tipo que os deixou escapar. Ela olhou
para ele e abanou a cabeça como se estivesse acima de
toda aquela trapalhada.
— Não sou eu que decido. Vou lhe dizer isso e deixá-lo
decidir o que fazer. Mas, se eu estivesse no lugar dele,
obrigava-o a mostrar o jogo. E lhe digo já, com toda a
franqueza, que é exatamente isso que vou lhe dizer para
fazer.
— Não é blefe nenhum. Você andou me estudando, sabe
que eu vou ter com a imprensa e que a imprensa vai gostar
de me ouvir. Seja esperta. Diga-lhe que não é blefe nenhum.
Eu não tenho nada a perder se fizer isso. E ele não vai ter
nada a perder se me tornar a colocar no caso.
Bosch começou a deslizar no banco para sair do
reservado. Parou e jogou um par de notas de dólar para
cima da mesa.
— Têm o meu dossiê. Sabem onde é que podem entrar
em contato comigo.
— Sim, sabemos, claro que sim, disse ela e depois
chamou: — Bosch? Ele parou e se voltou para trás para
olhar para ela. — A prostituta da rua? Ela estava dizendo a
verdade? Em relação ao travesseiro?
— Não dizem sempre?
Bosch estacionou o carro no parque atrás da delegacia
na Wilcox, acendeu um cigarro e foi fumando até chegar à
porta dos fundos. Apagou a beata no chão e entrou,
deixando atrás de si o cheiro de vômito que saía pelas
janelas gradeadas das celas de detenção nos fundos da
delegacia. Jerry Edgar andava de um lado para o outro no
átrio de entrada dos fundos esperando dele.
— Harry, temos uma reunião urgente com o Noventa e
Oito.
— Sim? Sobre o quê?
— Não sei, mas ele andou entrando e saindo da porta
de vidro de dez em dez minutos à sua procura. Tem o Pager
desligado. E eu vi dois tiras dos Assuntos Internos da baixa
entrar lá para dentro com ele há um bom pedaço.
Bosch assentiu com a cabeça sem dizer nada de
reconfortante ao colega.
— O que está acontecendo? Perguntou Edgar
atabalhoadamente. — Se temos de contar alguma história,
era melhor acertarmos os pormenores antes de entrarmos
lá. Você é que têm experiência nestas merdas, eu não.
— Não tenho a certeza do que está acontecendo. Acho
que estão nos tirando do caso Meadows. Pelo menos a mim.
Parecia muito descontraído com tudo aquilo.
— Harry, eles não chamam os tipos do IAD para fazer
isso. Aconteceu alguma coisa. E só espero que, seja lá o que
for que você tenha feito, não tenha me ferrado também.
Edgar se envergonhou imediatamente do que tinha dito. —
Desculpe Harry, não queria dizer isso.
— Acalme-se. Vamos ver o que o homem quer.
Bosch se dirigiu para a sala de trabalho dos detetives.
Edgar disse que ia cortar pelo gabinete do turno de serviço
e depois entrar pela frente para não parecer que estavam
combinando uma história. Quando Bosch chegou à sua
mesa, a primeira coisa em que reparou foi que a pasta azul
do homicídio do caso Meadows tinha desaparecido. Mas
também reparou que quem quer que a tenha apanhado não
notara o cassete com a gravação da chamada para o 911.
Bosch pegou o cassete e colocou-o no bolso do paletó no
preciso instante em que a voz do Noventa e Oito trovejava
do gabinete envidraçado na parte da frente da sala da
delegacia. Gritou uma palavra apenas: “Bosch!” Os outros
detetives levantaram as cabeças e olharam em volta. Bosch
levantou e se dirigiu vagarosamente para a caixa de vidro,
como chamavam o gabinete do tenente Harvey “Noventa e
Oito” Pounds. Através das janelas, viu as costas dos dois
tiras que estavam sentados com Pounds. Bosch reconheceu-
os como sendo os dois detetives do Departamento dos
Assuntos Internos que tinham tratado do caso Dollmaker.
Lewis e Clark.
Edgar entrou na sala pela porta do átrio da frente no
preciso momento em que Bosch ia passando e entraram os
dois juntos na caixa de vidro. Pounds, com uma expressão
mortiça no olhar, estava sentado à mesa. Os homens dos
Assuntos Internos não se mexeram.
— Primeiro de tudo: nada de fumar, Bosch, está
ouvindo? Disse Pounds. — Esta manhã a delegacia tresanda
a cinzeiro. Nem sequer vou perguntar se foi você.
A política do departamento e da cidade tinha proibido o
fumo em todos os gabinetes partilhados por uma
comunidade, como era o caso das salas da delegacia. Era
permitido fumar num gabinete particular se fosse do próprio
ou se o ocupante do gabinete autorizasse que os visitantes
fumassem. Pounds era um fumante arrependido e muito
militante. A maior parte dos trinta e dois detetives que ele
comandava fumava como uns drogados. Quando Noventa e
Oito não estava por perto, muitos deles iam para o gabinete
dele e dar umas tragadas rápidas em vez de saírem para o
parque de estacionamento onde perderiam os telefonemas
e onde o cheiro a mijo e a vômito migravam das janelas dos
fundos das celas dos bêbados. Pounds tinha o hábito de
fechar à chave a porta do gabinete, mesmo para as
viagenzinhas rápidas pelo corredor até ao gabinete do
comandante, mas qualquer pessoa com um abridor de
cartas conseguia abrir a porta em três segundos. O tenente
estava constantemente encontrando o espaço interior do
seu gabinete empesteado de fumaça. Tinha duas
ventoinhas na sala de três metros por três metros e uma
lata de Gleide em cima da mesa. Uma vez que a fedentina
tinha aumentado com a transferência de Harry Bosch da
Parker Center para os detetives de Hollywood, Noventa e
Oito estava convencido de que Bosch era o maior culpado. E
tinha razão, mas nunca conseguira apanhar Bosch em
flagrante.
— Quer dizer que é este o assunto? Perguntou Bosch. —
Fumar no gabinete?
— Sente-se, ladrou Pounds.
Bosch levantou as duas mãos para mostrar que não
levava um cigarro entre os dedos. Depois se voltou para os
dois homens dos Assuntos Internos.
— Bem, Jed, parece que somos capazes de estar prestes
a partir numa expedição do Lewis e do Clarke. Eu não via
estes dois grandes exploradores em ação desde que me
mandaram para umas férias no México, sem ajuda de custo.
Foi aí que fizeram o seu melhor trabalho. Cabeçalhos de
jornais, entrevistas, a coisa toda. As estrelas dos Assuntos
Internos. As caras dos dois policiais dos Assuntos Internos
ficaram imediatamente vermelhas de fúria.
— Desta vez, podia fazer um favor a si próprio e manter
essa boca fechada, disse Clarke. — Está metido numa bela
confusão, Bosch. Está entendendo?
— Sim, entendo. Obrigado pela dica. Também tenho
uma para vocês. Voltem aos ternos puídos que costumavam
vestir antes de se tornarem lacaios do Irving. Sabem,
aquelas coisas amarelas que condiziam com os seus dentes.
O poliéster lhes cai melhor do que a seda. De fato, um dos
tipos ali na cela da preventiva até disse que os fundilhos
desses ternos estão ficando lustrosos com todo o trabalho
que vocês fazem sentados à mesa.
— Está bem, está bem! Interrompeu Pounds. — Bosch,
Edgar, sentem e se calem por um minuto. Este...
— Meu tenente, eu não disse nada! Começou Edgar. —
Eu...
— Calado! Todos calados! Calem-se durante um minuto!
Ladrou Pounds. Meu Deus! Edgar, para que fique registrado,
estes dois são dos Assuntos Internos, se é que ainda não
sabe, os detetives Lewis e Clarke. O que é...?
— Quero um advogado, disse Bosch.
— Eu também, Edgar acrescentou.
— Ora essa! Disse Pounds. — Vamos conversar sobre
isto e esclarecer umas quantas coisas. Não vamos meter
nenhuma merda da Liga para a Proteção da Polícia. Se
quiserem um advogado, arranjem um depois. Para já, vão se
sentar aqui, os dois, e responder a umas perguntas. Se não
o fizerem, Edgar, você vai saltar para fora desse seu terno
de oitocentos dólares e voltar ao uniforme e você Bosch,
porra, Bosch, provavelmente, desta vez, vai mesmo para a
rua.
Durante alguns instantes se fez silêncio na pequena
sala, embora a tensão entre os cinco homens ameaçasse
estilhaçar os vidros das janelas. Pounds olhou para a sala de
trabalho e viu cerca de uma dúzia de detetives que
pareciam muito ativos, mas que, na realidade, tentavam
escutar, através do vidro, tudo o que podiam do que estava
acontecendo. Alguns tinham tentado ler os lábios do
tenente. Levantou-se e baixou as persianas que cobriam as
janelas. Raramente o fazia. Era uma indicação para os seus
subordinados de que aquilo era sério. Até Edgar mostrou a
sua preocupação soltando um suspiro audível. Pounds
voltou a se sentar. Tamborilou com uma unha comprida no
dossiê de plástico azul que estava fechado em cima da
mesa.
— OK, vamos lá ao que interessa, ele começou. — Vocês
os dois estão afastados do caso Meadows. Isto é a primeira
coisa. Nada de perguntas, estão fora. Agora, começando do
princípio, vão nos contar tudo e mais alguma coisa.
Nesse momento, Lewis com um estalido do fecho abriu
uma pasta e tirou de lá de dentro um gravador. Ligou-o e
colocou-o em cima da mesa imaculada de Pounds.
Bosch só tinha começado a trabalhar com Edgar há oito
meses atrás. Não o conhecia suficientemente bem para
saber se ele aguentava este tipo de tratamento autoritário
ou até que ponto conseguiria se aguentar contra estes filhos
da mãe. Mas conhecia-o suficientemente bem para saber
que gostava dele e que não queria que ele ficasse entalado.
O único pecado dele nesta história toda fora ter querido a
tarde de sábado livre para vender casas.
— Isto é um absurdo, disse Bosch apontando para o
gravador.
— Desligue isso, disse Pounds a Lewis, apontando para
o gravador, que, na realidade, estava mais perto dele do
que de Lewis.
O detetive dos Assuntos Internos se levantou e agarrou
no gravador. Desligou-o, apertou o botão de rebobinar e
voltou a colocá-lo em cima da mesa. Depois de Lewis ter
voltado a sentar, Pounds disse:
— Meu Deus, Bosch! O FBI me telefonou hoje para dizer
que o considera um possível suspeito num maldito assalto a
um banco. Dizem que Meadows era suspeito do mesmo
trabalho e que, por isso, agora você também deveria ser
considerado como suspeito na morte de Meadows. Acha que
não vamos fazer umas perguntas a respeito disto? Edgar
estava respirado ainda mais audivelmente. Estava ouvindo
aquilo pela primeira vez.
— Mantenha o gravador desligado e poderemos
conversar, disse Bosch. Pounds pensou um bocadinho e
respondeu:
— Por agora, não há gravação. Comece a falar.
— Primeiro de tudo, o Edgar não sabe uma vírgula sobre
disto. Ontem fizemos uma combinação. Eu ficava com o
caso Meadows e ele iria para casa. Ficaria com o caso
Spivey, o tipo da TV apunhalado na noite anterior. Esta coisa
do FBI, o assalto ao banco, ele não faz a menor ideia do que
se trata. Deixe-o ir embora.
Pounds parecia estar fazendo questão de não olhar nem
para Lewis, nem para Clarke ou para Edgar. Tinha tomado a
decisão sozinho. Isso provocou um ligeiro tremeluzir de
respeito em Bosch, como uma luz acesa mesmo no centro
de um furacão de incompetência. Pounds abriu a gaveta da
mesa e apanhou uma velha régua de madeira. Pôs-se a
brincar com ela. Finalmente, olhou para Edgar.
— Isso é verdade? O que Bosch está dizendo? Edgar
assentiu com a cabeça. — Sabe que isso faz com que a
coisa fique feia para ele, como se ele estivesse tentando
guardar o caso só para si, escondendo as conexões?
— Ele me disse que conhecia Meadows. Ele foi sempre
muito franco comigo. Era domingo. Não íamos arranjar
alguém que viesse nos substituir por causa dele tê-lo
conhecido há vinte anos. Além disso, a maior parte das
pessoas que aparecem mortas em Hollywood, a polícia
conhece de uma forma ou de outra. Essa história do banco e
isso tudo, ele deve ter descoberto depois de eu ter ido
embora. Só agora, aqui sentado, é que estou ouvindo falar
nisso.
— OK, disse Pounds. — Tem algum dos papéis sobre
este caso? Edgar abanou a cabeça. —OK, então acabe
aquilo sobre... Como é chamaram?... Spivey, isso, o caso
Spivey. Vou arranjar outro parceiro. Não sei quem, mas
depois o informo. É tudo. Vá embora.
Edgar respirou fundo ainda mais audivelmente e se
levantou. Harvey “Noventa e Oito” Pounds deixou que as
coisas assentassem na sala durante alguns momentos
depois de Edgar ter saído. Bosch estava doido por um
cigarro, nem que fosse só para tê-lo na boca. Mas não iria
mostrar uma fraqueza destas agora.
— OK, Bosch, disse Pounds. — Há alguma coisa que
queira nos dizer a respeito disto?
— Há. É tudo mentira.
Clarke esboçou um sorrisinho escarninho. Bosch não lhe
deu a mínima. Mas Pounds lançou ao detetive dos Assuntos
Internos um olhar fulminante que fez aumentar o respeito
de Bosch.
— O FBI me disse hoje que eu não era suspeito, disse
Bosch. — Investigaram-me há nove meses porque
investigaram todos os que serviram nos túneis no Vietnam.
Nessa altura, tinham descoberto uma ligação qualquer com
os túneis. Tão simples como isso. Foi um bom trabalho, eles
tinham de investigar toda a gente. Por isso, me
investigaram e passaram adiante. Raios, eu estava no
México graças a estes dois imbecis quando se deu essa
história do banco. O FBI se limitou...
— Supostamente, disse Clarke.
— Deixe de merdas, Clarke. Só está vendo se arranja
um esquema para ir lá passar as suas férias, à custa dos
contribuintes. Podem telefonar ao FBI para confirmar e
assim poupam dinheiro.
Bosch se voltou então para Pounds e ajeitou a cadeira
de forma a ficar de costas para os dois homens dos
Assuntos Internos. Falou baixo para tornar claro que estava
falando com Pounds e não com eles.
— O FBI me quer fora do caso porque, um; eu os
apanhei completamente desprevenidos quando hoje apareci
de repente fazendo perguntas sobre o assalto ao banco.
Quero dizer, eu era um nome do passado e eles entraram
em pânico e telefonaram para si. E, dois; querem me ver
fora do caso porque, provavelmente, meteram o pé na
merda, quando deixaram Meadows escapar no ano passado.
Ferraram a única oportunidade que tiveram com ele e não
querem que um departamento de fora se meta e veja isso
ou que descubra aquilo que eles não conseguiram descobrir
durante nove meses.
— Não, Bosch, tudo isso é que não passa de um grande
ardil, disse Pounds. — Esta manhã eu recebi um pedido
formal do agente especial encarregado do caso que dirige a
brigada dos bancos, um sujeito chamado...
— Rourke.
— Conhece-o? Bem, ele pediu que...
— Eu fosse imediatamente retirado do caso Meadows.
Disse que eu conheço o Meadows, que, por acaso, era o
principal suspeito no assalto ao banco. Ele acaba de ser
morto e eu estou encarregado do caso. Coincidência? O
Rourke não acha. Eu também não estou lá muito seguro.
— Foi exatamente o que ele disse. Por isso, é a partir
daqui que vamos começar. Conte-nos o que sabe do
Meadows, como é que o conheceu, quando o conheceu, não
deixe nada de fora.
Bosch passou a hora seguinte contando a Pounds a
história de Meadows, dos túneis, da vez que o Meadows
telefonara, quase vinte anos depois, e de como ele, Bosch,
tinha conseguido que ele entrasse para a AV em Sepúlveda
sem sequer o ter visto. Tudo feito apenas pelo telefone.
Durante todo aquele tempo, Bosch nunca se dirigiu aos dois
detetives dos Assuntos Internos, nem deu a entender que
sabia que eles estavam na sala.
— Nunca fiz segredo de que o conhecia, arrematou ele.
— Disse ao Edgar. Entrei lá dentro e disse ao FBI. Acha que
eu teria feito isso se tivesse despachado o Meadows? Nem o
Lewis e o Clarke são assim tão estúpidos.
— Bem... Santo Deus, Bosch, por que não me disse?
Trovejou Pounds. — Por que não está nos relatórios desta
pasta? Por que tenho de saber pelo FBI? Por que os
Assuntos Internos têm de saber pelo FBI?
Então, não fora Pounds que fizera o telefonema para os
Assuntos Internos. Tinha sido Rourke. Bosch perguntou para
consigo se Eleanor Wish sabia disso e tinha mentido, ou se
Rourke teria telefonado aos imbecis quando estava sozinho.
Mal conhecia a mulher, não conhecia a mulher, mas deu por
si torcendo para que ela não estivesse mentindo.
— Só comecei a trabalhar nos relatórios esta manhã,
disse Bosch. — Ia completá-los depois de ter falado com o
FBI. Obviamente, não tive oportunidade.
— Bem, vou poupá-lo desse trabalho, disse Pounds. —
Foi entregue ao FBI.
— O que foi entregue? Perguntou Bosch. — O FBI não
tem jurisdição sobre isto. Isto é um homicídio.
— Rourke disse que eles estão convencidos de que o
assassinato está diretamente ligado com a investigação em
curso sobre o assalto ao banco. Vão incluir isto nas
investigações deles. Nós vamos nomear o nosso próprio
agente para o caso, através de um contato
interdepartamental. Se e quando chegar a altura de acusar
alguém de homicídio, o agente nomeado levará a acusação
ao DA para que esta atue.
— Meu Deus, Pounds! Está acontecendo qualquer coisa.
Não está vendo? Pounds voltou a colocar a régua na gaveta
e fechou-a.
— Sim, acontece qualquer coisa. Mas não a interpreto
como você disse ele. É tudo, Bosch. Isto é uma ordem. Está
fora. Estes dois homens querem falar consigo e você fica
fazendo serviço de mesa até que os Assuntos Internos
concluam a investigação. Calou-se uns segundos antes de
recomeçar com um tom solene. Um homem infeliz com o
que tinha de dizer. — Sabe, mandaram-no para aqui no ano
passado e eu podia tê-lo posto em qualquer lugar. Podia ter
metido na merda da seção dos roubos, às voltas com
cinquenta relatórios por semana, completamente enterrado
em papelada. Mas não fiz. Notei as suas qualidades e o pus
nos homicídios, coisa que julguei que queria. No ano
passado, me disseram que você era bom, mas que não se
mantinha dentro da linha. Agora vejo que tinham razão. Até
que ponto isto vai me prejudicar, não sei. Mas não vou me
preocupar mais com aquilo que poderá ser melhor para
você. Agora, pode falar com esses tipos ou não. A verdade é
que estou nas tintas. Mas é o fim. Está tudo acabado entre
nós. Se, não sei como, conseguir se safar desta, é melhor
tentar arranjar uma transferência porque nunca mais vai
fazer parte da minha seção de homicídios.
Pounds agarrou na pasta azul que estava em cima da
mesa e se levantou. Enquanto se dirigia para a porta, disse:
— Tenho de dar isto a alguém que vá entregar ao FBI.
Vocês, rapazes, podem ficar com o gabinete durante todo o
tempo que precisarem.
Fechou a porta e foi embora. Bosch pensou um pouco e
concluiu que, na verdade, não podia censurar Pounds por
aquilo que ele tinha dito ou feito. Tirou um cigarro e
acendeu-o.
— Ei! Não pode fumar, ouviu o homem, protestou Lewis.
— Vai se foder, respondeu Bosch.
— Bosch, você é um homem morto, disse Clarke. —
Desta vez, vamos queimá-lo na fogueira. Já não é o herói
que foi noutros tempos. Desta vez, não há problema de RP.
Ninguém se vai preocupar com o que lhe acontecer.
Levantou-se e voltou a ligar o gravador. Recitou a data,
os nomes dos três homens presentes e o número que os
Assuntos Internos tinham atribuído ao caso sob
investigação. Bosch reparou que o número do caso já
ultrapassava em cerca de setecentos o do caso da
investigação interna que o tinha mandado para Hollywood,
nove meses antes. Nove meses, e setecentos outros
policiais tinham passado pela mesma tortura idiota. Ia
chegar o dia em que já não restaria ninguém para fazer
aquilo que estava escrito em todos os carros da polícia:
servir e proteger.
— Detetive Bosch. Lewis tomou o comando das
operações num tom calmo e com uma articulação cuidada.
— Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas relacionadas
com a morte de William Meadows. Queira nos informar de
qualquer associação ou conhecimento anterior que tenha
tido com o falecido.
— Recuso-me a responder a todas as perguntas sem a
presença do meu advogado disse Bosch. — Cito o meu
direito a ser representado, consagrado na Declaração dos
Direitos dos Policiais da Califórnia.
— Detetive Bosch, a administração do departamento
não reconhece esse aspecto da Declaração dos Direitos dos
Policiais. É obrigado a responder a estas perguntas e, se não
o fizer, incorrerá numa pena de suspensão ou até mesmo de
expulsão. O...
— São capazes de fazer o favor de afrouxar um pouco
as algemas? Disse Bosch.
— O quê? Berrou Lewis perdendo o tom calmo e
confiante. Clarke levantou e se aproximou do gravador de
cassetes se dobrando por cima dele. — O Detetive Bosch
não está algemado e há duas testemunhas presentes que
podem atestar este fato, disse ele.
— São os dois que me algemaram, disse Bosch. — E me
bateram. Isto é uma violação completa dos meus direitos.
Exijo que estejam presentes um representante do sindicato
e o meu advogado para podermos continuar.
Clarke rebobinou a fita e desligou o gravador. Tinha o
rosto quase roxo de fúria e voltou a enfiar o gravador na
pasta do colega. Foram precisos alguns instantes para que
qualquer um deles conseguisse articular uma palavra.
Clarke disse:
— Vai ser um prazer dar cabo de você, Bosch. Vamos
pôr os papéis da suspensão em cima da mesa do chefe até
ao final do dia. Vá ficar amarrado a uma mesa nos Assuntos
Internos onde podemos mantê-lo debaixo dos olhos. Vamos
começar com uma “Conduta imprópria de um agente”, e
avançar a partir daí, vai ver vamos mesmo até ao homicídio.
Seja como for, já está acabado no departamento. Passou à
história.
Bosch se levantou e os dois detetives fizeram o mesmo.
Bosch deu uma última tragada no cigarro, atirou-o para o
chão, em frente de Clarke, e pisou-o, esfregando-o no
linóleo polido. Sabia que eles preferiam limpar aquilo a
deixarem que Pounds descobrisse que não tinham
conseguido controlar a entrevista, nem o entrevistado.
Passou pelo meio deles, expirou o fumo e saiu do gabinete
sem dizer uma palavra. Lá fora, ouviu a voz quase
descontrolada de Clarke gritando:
— Mantenha-se longe deste caso, Bosch!
Evitando os olhares que o seguiam, Bosch atravessou a
sala de trabalho e se deixou cair na cadeira da sua mesa.
Olhou para Edgar que estava sentado no seu lugar.
— Portou-se bem, disse Bosch. — Deve se safar sem
problemas.
— E você?
— Estou fora do caso e esses dois cretinos vão
apresentar uma queixa escrita de mim. Tenho esta tarde e
um pouco mais antes de receber oficialmente uma
“Suspensão de Serviço”.
— Que grande merda!
 
O subchefe em exercício nos Assuntos Internos tinha de
assinar todas as ordens de Suspensão do Serviço e as
suspensões temporárias. Penalizações mais duras tinham de
ser levadas a uma subcomissão da direção da polícia para
serem aprovadas. Lewis e Clarke iriam começar por tentar
um ROD por conduta imprópria de um agente, ou CUBO,
como era conhecida. Depois iriam trabalhar numa coisa
mais grave para levarem à comissão. Se o subchefe
assinasse um ROD contra Bosch, este teria de ser notificado
segundo os regulamentos do sindicato. Isso queria dizer em
pessoa ou através de conversa telefônica gravada. Mal a
notificação fosse feita, Bosch podia ser destacado para uma
mesa nos Assuntos Internos no Parker Center ou mandado
para casa até à conclusão da investigação. Mas, como
tinham acabado de prometer, Lewis e Clarke iriam pedir a
transferência para o AI. Assim poderiam exibi-lo como um
troféu.
— Precisa de alguma coisa minha para o caso Spivey?
Perguntou a Edgar.
— Não. Tenho tudo pronto. Vou começar a datilografar
mal consiga arranjar uma máquina.
— Chegou a verificar, como pedi, o emprego do
Meadows no projeto do metrô?
— Harry, você... Edgar se arrependeu do que ia dizer. —
Sim, verifiquei. Não sei se interessa para alguma coisa, mas
eles disseram que nunca tiveram ninguém chamado
Meadows nesse projeto. Há um Fields, mas é preto e hoje
estava trabalhando. E Meadows provavelmente não andava
trabalhando sob outro nome qualquer porque eles não têm
nenhum turno da meia-noite. O projeto está adiantado, se é
capaz de acreditar nessa merda. Nessa altura, Edgar gritou:
— Tenho prioridade na Seletric.
— Nem pensar, gritou um detetive dos carros roubados
chamado Minkly. — Sou eu o próximo nessa.
Edgar começou a olhar em volta à procura de outra
máquina. No fim do dia, as máquinas de escrever da sala
valiam ouro. Havia uma dúzia de máquinas para trinta e
dois detetives, isto se fosse incluídas as manuais e as
elétricas com tiques nervosos como não respeitar margens
ou não marcar os espaços.
— Está bem, gritou Edgar. — Então sou depois de você,
Mink. A seguir, Edgar baixou a voz, se voltou para Bosch e
perguntou: — Com quem é que acha que ele me vai pôr?
— O Pounds? Não sei.
Era a mesma coisa do que adivinhar com quem é que a
sua mulher vai casar depois de ter apertado no botão de
parar do cronômetro. Bosch não estava interessado em
especular sobre quem iria ser o novo parceiro de Edgar.
Disse:
— Olha, preciso tratar de umas coisas.
— Claro Harry. Precisa de alguma ajuda? Qualquer coisa
minha?
Bosch abanou a cabeça e apanhou o telefone. Ligou
para o advogado e deixou uma mensagem. Era habitual
serem precisas três mensagens até retornar a ligação e
Bosch tomou nota para não se esquecer de voltar a ligar.
Depois, se voltou para a sua agenda da mesa, descobriu o
número que queria e ligou para o Arquivo dos Registos das
Forças Armadas dos EEUU em St. Louis. Pediu para falar
com um funcionário da polícia e atendeu uma mulher
chamada Jessie St. John. Fez um pedido prioritário de cópias
de todos os registos militares de Billy Meadows. Três dias,
disse St. John. Desligou pensando que nunca veria os
registos. Eles iam chegar, mas ele não estaria nesta
delegacia, na sua mesa, trabalhando naquele caso. A seguir
ligou para Donovan no SID e ficou sabendo que não havia
impressões digitais latentes no kit encontrado no bolso de
Meadows e apenas umas manchas na lata de tinta spray. Os
cristais castanhos claros encontrados no algodão do kit
eram de heroína com 55% de pureza, mistura asiática.
Bosch sabia que a maior parte da heroína vendida nas ruas
e injetada nas veias tinha uma pureza de cerca de 20%. A
maior parte era heroína de alcatrão feita por mexicanos.
Alguém tinha dado a Meadows uma injeção muito forte. Na
opinião de Harry, isso tornava os testes tóxicos que estava
esperando uma mera formalidade. Meadows fora
assassinado.
Nada mais da cena do crime tinha grande utilidade,
excetuando Donovan dizer que o fósforo recentemente
utilizado encontrado no cano não ter sido tirado da carteira
de fósforos do kit de Meadows. Bosch deu a Donovan o
endereço do apartamento de Meadows e pediu para mandar
uma equipe analisá-lo. Disse-lhe para comparar os fósforos
no cinzeiro na mesa de apoio com o da carteira do kit.
Depois desligou perguntando para consigo se Donovan iria
mandar alguém, antes que a notícia de que Bosch estava
fora do caso ou suspenso se espalhasse. O último
telefonema que fez foi para a Medicina Legal. Sakai disse
que tinham conseguido uma identificação do parente mais
próximo. A mãe de Meadows ainda estava viva e fora
contatada em New Ibéria, Louisiana. Ela não tinha dinheiro
para mandá-lo ir nem para enterrá-lo. Não o via há dezoito
anos. Billy Meadows não iria voltar para casa. O condado de
L. A. iria ter de enterrá-lo.
— E a AV? Perguntou Bosch. — Ele era um veterano.
— Certo. Vou ver isso, disse Sakai e desligou.
Bosch se levantou e foi buscar um pequeno gravador
portátil em uma das gavetas do armário das pastas. O
banco de dossiês corria ao longo da parede por trás da
seção de homicídios. Enfiou sub-repticiamente o gravador
no bolso do casaco onde já tinha a gravação da chamada
para o 911 e saiu da sala pelo corredor dos fundos. Passou
pelos bancos das detenções e pelas celas e seguiu até ao
gabinete do CRASH. O gabinete minúsculo estava ainda
mais cheio de gente do que o departamento dos detetives.
Secretárias e arquivos para os cinco homens e uma mulher
estavam enfiadas numa sala que não era maior do que o
segundo quarto num apartamento em Venice. Ao longo de
uma das paredes havia um grupo de armários para pastas
com quatro gavetas cada um. Na parede oposta, havia um
computador e uma impressora. No meio havia três
conjuntos de duas mesas encostadas umas às outras. A
parede do fundo tinha o habitual mapa da cidade com linhas
pretas indicando as dezoito delegacias de polícia. Por cima
do mapa estava o Top 10: fotografias coloridas dos dez
maiores idiotas na Divisão de Hollywood no momento.
Bosch reparou que uma era uma fotografia da morgue. O
rapaz estava morto, mas ainda continuava na lista.
A única pessoa presente era Thelia King, sentada em
frente do computador. Era exatamente isso que Bosch
queria. Também conhecida por O Rei, que ela detestava, e
Elvis, com que não se importava, Thelia King era a perita do
computador no CRASH. Quando alguém queria traçar a
linhagem de um bando ou apenas encontrar um delinquente
juvenil à solta por Hollywood, Elvis era a pessoa com quem
devia entrar em contato. Mas Bosch estava surpreso por ela
estar sozinha. Olhou para o relógio. Passava pouco das duas
horas, muito cedo para as tropas já estarem na rua.
— Onde é que foi toda a gente?
— Ei, Bosch! Disse ela, desviando os olhos da tela. —
Funerais. Temos duas gangues diferentes, e estou falando
de tribos em guerra, enterrando os seus rapazes no mesmo
cemitério no Valley. Mandaram toda a gente para lá para
garantirem que não haverá confronto.
— E por que não foi com a rapaziada?
— Voltei agora mesmo do tribunal. Por isso, antes que
diga por que está aqui, Harry, você não me conta o que
aconteceu hoje no gabinete do “Noventa e Oito” Pounds?
Bosch sorriu. As notícias se espalhavam mais depressa
numa delegacia da polícia do que nas ruas. Fez um breve
resumo do que acontecera na caixa de vidro e da batalha
que o esperava com os Assuntos Internos.
— Bosch, você leva as coisas demasiado a sério, disse
ela. — Por que não arranja qualquer atividade lá fora.
Qualquer coisa que o mantenha são. Como o seu parceiro. É
uma pena que esse filho da mãe seja casado. Ele ganha três
vezes mais vendendo casas do que nós. Preciso de uma
atividadezinha como a dele. Bosch assentiu com a cabeça.
“Mas nos deixarmos levar demasiado pela corrente está
nos carregando para o esgoto”, pensou ele, mas não disse.
Às vezes, acreditava que ele levava as coisas na conta certa
e que todas as outras pessoas não as levavam
suficientemente a sério. Esse é que era o problema. Toda a
gente tinha uma atividade extra.
— De que precisa? Perguntou ela. — É melhor fazer isso
antes que eles divulguem a sua situação. Depois disso,
passa a ser um leproso por aqui.
— Fique onde está, disse ele e, puxando uma cadeira
para o lado dela, explicou o que precisava do computador.
O computador do CRASH tinha um programa chamado
GRIT, outro acrônimo, este para GANG RELATED
INFORMATION TRACKING. Os arquivos continham os
elementos vitais sobre 55000 membros de gangues
identificadas e delinquentes juvenis na cidade. O
computador também se conectava ao computador no
gabinete do xerife, que tinha cerca de 30000 dos seus
próprios membros de gangues nos arquivos. Uma parte do
programa GRIT era o arquivo dos apelidos. Este armazenava
referências de delinquentes por nomes de ruas e conseguia
relacioná-los com os nomes verdadeiros, datas de
nascimento, endereços, etc. Todas os apelidos que
despertavam a atenção da polícia através das fichas das
detenções ou dos relatórios dos interrogatórios de campo
eram introduzidas no sistema. Dizia-se que o GRIT tinha
mais de 90000 apelidos introduzidas lá. Bastava uma
pessoa saber que teclas usar. E Elvis sabia. Bosch lhe deu as
três letras que tinha.
— Não sei se isto é a coisa toda ou só parte, disse ele.
Penso que é só parte. Ela apertou as teclas para abrir os
arquivos GRIT, digitou as letras S-H-A e apertou na tecla
iniciar. Levou cerca de treze segundos. Uma expressão
carrancuda enrugou o rosto cor de ébano de Thelia King.
— Trezentos e quarenta e três resultados, anunciou ela.
— É capaz de estar aí escondido há algum tempo, amor.
Bosch disse para eliminar os negros e os latinos. O tipo
da gravação da chamada para o 911 lhe parecia branco. Ela
apertou mais teclas e as letras amarelas da tela do
computador refizeram a lista.
— Assim já é melhor, dezenove resultados, comentou
Thelia King.
Não havia nenhum apelido apenas com as três letras.
Sha. Havia cinco Shadows, quatro Shahs, dois Sharkeys,
dois Sharkies e um para cada um dos nomes seguintes
Shark, Shabby, Shallow, Shank, Shabot e Shame. Bosch
recordou rapidamente o grafite que tinha visto no cano da
barragem. O dentado, quase como uma boca aberta. A boca
de um tubarão (Shark)?
— Pede as variações para Shark, disse a Thelia King.
Ela voltou a apertar numas quantas teclas e o terço
superior da tela se encheu com outras letras amarelas.
Shark era um rapaz do Valley. Contato limitado com a
polícia; tinha ficado em liberdade condicional e fora
obrigado a limpar grafites depois de ter sido apanhado
pintando os bancos dos ônibus ao longo da Ventura
Boulevard em Tarzana. Tinha quinze anos. “Não era
provável que tivesse estado lá em cima, na barragem, às
três da manhã de um domingo”, pensou Bosch. King foi
buscar o primeiro Sharkie na tela. Estava no momento num
acampamento em Malibu para delinquentes juvenis. O
segundo Sharkie estava morto, tinha morrido numa guerra
de gangues entre os KGB Kids Gone Bad e os Vineland Boyz
em 1989. O nome dele ainda não fora limpo dos registos do
computador. Quando Thelia King chamou o primeiro
Sharkey, a tela se encheu de informações e uma palavra
piscando no fundo da tela dizia “Mais”.
— Ora aqui temos um causador de problemas habitual,
disse ela.
O relatório do computador descrevia Edward Niese, um
branco de dezessete anos de idade, conhecido por andar de
moto amarela, com a matrícula JVN138, e que não tinha
nenhuma ligação com gangues, mas que usava Sharkey
como identificação nos grafites. Um fugitivo frequente de
casa da mãe em Chatsworth. Seguiram-se duas telas de
contatos da polícia com Sharkey. Bosch concluiu, pela
localização de cada detenção, que este Sharkey tinha
preferência por Hollywood e West Hollywood quando fugia.
Leu rapidamente até ao fim da segunda tela, onde
encontrou uma detenção por vagabundagem no
reservatório de Hollywood três meses antes.
— É ele, disse. — Esqueça os outros.
— Cópia em papel?
— Sim.
Ela apertou na tecla para imprimir o arquivo do
computador e apontou para a parede com os armários.
Bosch foi até lá e abriu a gaveta do N. Encontrou a pasta de
Edward Niese e tirou-o para fora. Lá dentro havia uma
fotografia em cores. Sharkey era louro e parecia pequeno na
fotografia. Tinha aquela expressão dolorida e desafiadora
que era tão comum como a acne nos rostos dos
adolescentes de hoje em dia. Bosch notou que aquele rosto
tinha qualquer coisa de familiar. Mas não conseguiu
localizar. Voltou à fotografia. Era datada de dois anos antes.
Thelia King lhe entregou o relatório impresso e ele se sentou
a uma das mesas vazias para estudá-lo assim como ao
conteúdo da pasta. Os crimes mais graves que o rapaz que
chamava a si próprio Sharkey tinha cometido e em que fora
apanhado eram: roubos em lojas, vandalismo,
vagabundagem e posse de maconha. Uma vez ficara vinte
dias no Sylmar Juvenile Hall, na sequência de uma detenção
por posse de droga, mas tinha saído em liberdade
condicional, com a obrigatoriedade de ficar em casa. Todas
as outras vezes que o apanharam fora imediatamente
libertado à guarda da mãe. Era um fugitivo de casa crônico
e um rejeitado pelo sistema.
Na pasta não havia muito mais informações do que as
que constavam no computador. Uma pequena elaboração
nos relatórios das detenções e mais nada. Bosch foi virando
as folhas até descobrir o relatório da acusação de
vagabundagem. Tinha seguido para intervenção preliminar
e fora retirada quando Sharkey concordara em voltar para
casa, para a mãe, e ficar lá. Aparentemente, aquilo não
tinha durado muito tempo. Havia uma informação de que a
mãe o dera como desaparecido ao agente da liberdade
condicional duas semanas mais tarde. Segundo estes
relatórios, ainda não fora pego outra vez. Bosch leu o
resumo da detenção por vagabundagem, feito pelo agente
encarregado da investigação. Dizia:
O A/I entrevistou Donald Smiley, um guarda do
Mulholland Dam, que disse que às 7 A.M. desta data
entrou no cano situado ao longo da estrada de
acesso do reservatório para limpá-lo do lixo
acumulado. Smiley descobriu o rapaz dormindo numa
cama feita de jornais. Estava sujo e incoerente
quando acordou. O sujeito parecia estar sob o efeito
de narcóticos. A polícia foi chamada e o A/I
respondeu. O detido disse ao A/I que andava
dormindo ali há algum tempo porque a mãe não o
queria em casa. O A/I concluiu que o sujeito era um
fugitivo procurado e prendeu-o nesta data por
suspeita de vagabundagem.
“Sharkey era uma criatura de hábitos”, pensou Bosch.
Fora preso no reservatório dois meses antes, mas tinha
voltado lá para dormir na manhã de domingo. Leu os
restantes papéis à procura de indicações de outros hábitos
que o pudessem ajudar a localizá-lo. Em uma ficha de 7,5
por 12,5, Bosch ficou sabendo que Sharkey fora detido e
interrogado, mas não preso, na Santa Monica Boulevard,
perto de West Hollywood, em Janeiro. Sharkey estava
amarrando os cordões de uns Reeboks novos e o agente,
pensando que provavelmente ele os tinha acabado de
roubar, pediu a Sharkey que lhe mostrasse o recibo. Ele
mostrou e as coisas poderiam ter ficado por ali. Mas quando
o rapaz tirou o recibo de uma bolsa na moto, o policial
reparou num saco de plástico que estava lá dentro e pediu
para vê-lo também. O saco continha dez fotografias de
Sharkey. Estava nu em todas, em diversas poses, numas se
acariciava, noutras tinha o pênis ereto. O policial lhe tirou as
fotografias e destruiu-as, mas anotou na ficha que ia alertar
o gabinete do xerife em West Hollywood para o fato de
Sharkey andar distribuindo fotografias aos homossexuais na
Santa Monica Boulevard. E era tudo. Bosch fechou o dossiê,
mas guardou a fotografia de Sharkey.
Agradeceu a Thelia King e saiu do pequeno gabinete.
Estava andando pelo corredor dos fundos da delegacia,
passando pelos bancos de detenção, quando localizou a
familiaridade da fotografia. Agora o cabelo estava mais
comprido e em trancinhas, o desafio a encobrir a expressão
dolorida do rosto, mas Sharkey fora o adolescente que
estava algemado ao banco dos delinquentes juvenis no
princípio da manhã daquele próprio dia. Bosch tinha certeza
absoluta. Thelia não tinha encontrado nenhuma referência
na pesquisa computadorizada porque a detenção ainda não
tinha sido digitada. Bosch entrou no gabinete do
comandante do serviço noturno, explicou ao tenente o que
procurava e lhe foi apontada uma caixa com uma etiqueta
que dizia Serviço A. M. Bosch procurou nos relatórios
empilhados na caixa até encontrar os papéis referentes a
Edward Niese.
Sharkey fora apanhado às 4 A.M., perambulando perto
de um quiosque de jornais em Venice. Um agente da
patrulha pensou que ele estava drogado. Depois de tê-lo
prendido, foi ao computador e descobriu que era um
fugitivo. Bosch leu a folha das prisões relativas aquele dia e
viu que o rapaz tinha ficado detido até às 9 da manhã,
quando o funcionário da liberdade condicional o tinha vindo
buscar. Bosch telefonou para o funcionário da liberdade
condicional em Sylmar Juvenile Hall, mas foi informado que
Sharkey já fora apresentado a um mediador do tribunal
juvenil e entregue à custódia da mãe.
— E esse é que é o maior problema dele, disse o
funcionário. — Esta noite volta a fugir e vai andar por aí,
pelas ruas. Garanto. Foi o que eu disse ao mediador, mas
ele não estava disposto a colocar o jovem numa casa de
delinquentes só porque ele fora apanhado na vadiagem e a
mãe é uma trabalhadora por telefone.
— Uma o quê? Perguntou Bosch.
— Devia estar no arquivo. Pois é, enquanto o Sharkey
anda na rua, a querida e velha mamãe está em casa ao
telefone, dizendo aos tipos que vai lhes mijar dentro da
boca e lhes pôr elásticos nos pênis. Tem anúncios nas
revistas pornôs. Ganha quarenta dólares por quinze
minutos. Aceita Mastercard, Visa, os deixa esperando
enquanto verifica noutro telefone se o número é válido e se
eles têm crédito. Bem, seja como for, ela anda fazendo isto,
tanto quanto sei, há cinco anos. Os anos de formação do
Edward foram passados ouvindo estas merdas. Não admira
que seja um problemático e fugitivo. O que se esperava?
— Há quanto tempo ele foi embora com ela?
— Por volta do meio-dia. Se o quer apanhar lá, é melhor
ir já. Tem o endereço?
— Tenho.
— E, Bosch, só uma coisa. Não esteja esperando de uma
prostituta quando chegar lá. A mãe dele... Não tem o ar do
papel que faz ao telefone, se é que me entende. A voz dela
pode dar conta do recado, mas o rosto assusta até a um
cego. Bosch agradeceu o aviso e desligou.
 
Apanhou a 101 em direção ao Valley e depois a 405
norte para a 118 até chegar a Chatsworth e continuou para
as colinas rochosas e íngremes no canto superior do Valley.
Havia um condomínio comunitário construído naquilo que
ele sabia ter sido noutros tempos um estúdio de cinema.
Fora um dos locais que Charlie Manson e o seu grupo
tinham usado para se esconderem. Dizia-se que partes do
corpo de um dos membros desse grupo ainda continuavam
desaparecidos e enterrados em algum lugar, por ali. A noite
estava quase caindo quando Bosch chegou lá. As pessoas
tinham saído dos empregos e se dirigiam para casa. Havia
muito trânsito nas ruas estreitas do bairro. Muitas portas de
lojas se fechando. Tinha feito uma série de telefonemas
para casa da mãe de Sharkey. Mas chegara muito tarde.
— Não tenho tempo para falar com policiais, disse
Verónica Niese quando abriu a porta e olhou a identificação.
— Mal o trago para casa, ele já está fugindo outra vez. Não
sei para onde é que ele vai. Diga-me o senhor. É o seu
trabalho. Tenho três ligações à espera, uma delas de longa
distância. Tenho de ir. Andava pelos quarenta e tantos,
gorda e cheia de rugas. Era óbvio que usava uma peruca e a
dilatação dos olhos não era idêntica. Tinha o cheiro dos
viciados. Os clientes ficavam muito melhor servidos só com
a voz, com a qual podiam construir um corpo e um rosto.
— Mrs. Niese, não ando a procura do seu filho por nada
que ele tenha feito. Preciso falar com ele por causa de uma
coisa que ele viu. É muito possível que esteja em perigo.
— Ora, mentira! Já ouvi essa muitas vezes.
E bateu a porta na cara dele e ele ficou ali parado.
Passados uns instantes, conseguiu ouvi-la ao telefone e
pensou que era uma pronúncia francesa, mas não tinha a
certeza. Só conseguia entender algumas das frases, mas
que o fez corar. Pensou em Sharkey e concluiu que, na
realidade, ele não era um fugitivo, porque ali não havia
nada do que fugir. Saiu da porta e se dirigiu até o carro.
Tinha chegado o momento de dar o dia por terminado. E
estava ficando sem tempo. Clarke e Lewis já deviam ter
entregado a queixa contra ele. Ia ser mandado para uma
mesa na Divisão dos Assuntos Internos logo de manhã.
Voltou à delegacia e assinou a hora de saída. Toda a gente
já tinha ido embora e não havia nenhum recado na mesa,
nem sequer do advogado. A caminho de casa, parou no
Lucky e comprou quatro latas de cerveja, duas do México,
uma da Inglaterra, chamada Old Nick e uma Henrys. Estava
esperando encontrar uma mensagem de Lewis e Clarke na
secretária eletrônica quando chegasse em casa. Não se
enganou, mas a mensagem não era a que esperava.
— Sei que está aí, por isso escute, disse uma voz que
Bosch reconheceu como sendo a de Clarke. — Eles podem
mudar de opinião, mas não podem mudar a nossa. Vamos
nos ver por aí.
Não havia mais mensagens. Ouviu a mensagem de
Clarke três vezes. Alguma coisa tinha dado errado. Seria
possível que aquela sua fraca ameaça ao FBI, de ir até a
imprensa, tivesse dado resultado? Mas mesmo enquanto
fazia a pergunta, duvidava que a resposta fosse um sim. Por
isso, o que teria acontecido? Sentou-se na sua poltrona e
começou a beber cerveja, as mexicanas primeiro, ao
mesmo tempo em que folheava o álbum da guerra que
tinha se esquecido de guardar. Quando o folheara no
sábado à noite, tinha aberto uma recordação muito sombria.
Deu por si hipnotizado completamente por ela, a passagem
do tempo tinha esmaecido o terror tal como esmaecera as
fotografias. Em determinada altura, depois de escurecer, o
telefone tocou e Harry atendeu antes que a secretária
eletrônica ligasse.
— Bem, disse o tenente Harvey Pounds, — O FBI agora
acha que são capazes de terem sido demasiado severos.
Reavaliaram a situação e querem-no de volta. Vai passar a
ajudar na investigação em tudo o que eles pedirem. Isto
veio da administração, de Parker Center. A voz de Pounds
traía a sua surpresa com aquela reviravolta.
— E os Assuntos Internos? Perguntou Bosch.
— Não fizeram nenhuma queixa. Como já disse, o FBI
voltou atrás e o mesmo aconteceu com os Assuntos
Internos. Por ora.
— Quer dizer que voltei.
— Voltou. Não por minha decisão. Só para que saiba,
passaram por cima de mim porque eu disse que se fossem
todos se ferrar. Há qualquer coisa nisto que cheira mal, mas
acho que vai ter de ficar para mais tarde. Por agora, está
destacado. Vá trabalhar com eles até novas ordens.
— E o Edgar?
— Não se preocupe com o Edgar. Já não lhe diz respeito.
— Pounds, você age como se tivesse feito um favor em
ter me posto na seção dos homicídios quando me
expulsaram do Parker Center. Eu é que lhe fiz um favor,
homem. Por isso, se está esperando que eu peça desculpas,
não conte com isso.
— Bosch, eu não estou esperando nada da sua parte.
Você é que se ferrou. O único problema é que pode ter feito
com que eu também me ferre. Se dependesse de mim, não
teria nada mais a ver com este caso. Estaria era conferindo
as listas das escalas.
— Mas não depende de você, não é?
Desligou antes que Pounds pudesse replicar. Ficou ali
parado pensando durante alguns momentos e ainda tinha a
mão em cima do fone quando ele voltou a tocar.
— O que é?
— Um longo dia, hem? Disse a voz de Eleanor Wish.
— Pensei que era outra pessoa.
— Bem, calculo que já foi informado.
— Já.
— Vai trabalhar comigo.
— Por que mandou retirar os cães?
— Simples, queremos manter esta investigação fora dos
jornais.
— Há mais do que isso. Ela não disse nada, mas não
desligou. Por fim, ele se lembrou de qualquer coisa para
dizer. — Amanhã, o que faço?
— Venha se encontrar comigo de manhã. Em seguida
veremos.
Bosch desligou. Pensou nela e no fato de não saber o
que estava acontecendo. Não gostava daquilo, mas agora
não podia se afastar. Foi para a cozinha e tirou a garrafa de
Old Nick da geladeira.
Lewis estava de costas para o trânsito, usando o corpo
enorme para bloquear o barulho, impedindo-o de entrar na
cabine pública.
— Ele começa a trabalhar com o FBI... Ah... O
departamento, amanhã de manhã. O que quer que a gente
faça? Perguntou Lewis.
Irving não respondeu logo. Lewis imaginou-o no outro
lado da linha, as mandíbulas completamente fechadas.
“Cara de Popeye”, Lewis pensou com um sorriso trocista.
Clarke se aproximou, vindo do carro e sussurrou:
— Qual é a piada? O que ele disse? Lewis mandou-o
embora fazendo uma careta que queria dizer “não me
chateie”.
— Quem era esse? Perguntou Irving.
— Era o Clarke, senhor. Está ansioso por saber qual é a
nossa missão.
— O tenente Pounds falou com o sujeito em causa?
— Sim, falou, respondeu Lewis, perguntando para
consigo se Irving optaria por gravar a conversa. — O
tenente disse que... Ah... Que tinha sido informado que ele
ia trabalhar com o FBI... O departamento. Estão juntando o
homicídio com o assalto ao banco. Ele vai trabalhar com a
Agente Especial Eleanor Wish.
— Que estratagema será o dele? Perguntou Irving,
embora não estivesse esperando nenhuma resposta a ser
dada por Lewis.
Seguiu-se um silêncio na linha durante um bom pedaço
porque Lewis sabia muito bem que não podia interromper os
pensamentos de Irving. Viu que Clark estava outra vez se
aproximando da cabine e mandou-o embora com um gesto
ao mesmo tempo em que balançava a cabeça como se
estivesse tratando com uma criança impetuosa. A cabine
telefônica sem porta ficava ao fundo do Woodrow Wilson
Drive, ao lado do Braham Boulevard atravessando a
Hollywood Freeway. Lewis ouviu o barulho de um reboque
passando na autoestrada e sentiu ar quente entrando na
cabine. Olhou para as luzes das casas na encosta da colina
e tentou descobrir qual vinha da casa de Bosch. Era
impossível dizer. A colina parecia uma gigantesca árvore de
Natal com demasiadas luzes.
— Ele deve ter qualquer poder sobre eles, disse Irving
por fim. — E forçou a entrada. Vou dizer qual vai ser a
missão. Vocês dois vão ficar em cima dele. De forma que ele
não saiba. Mas fiquem com ele. Está tramando alguma.
Descubram o quê. E vão construindo o caso um ponto
oitenta e um. O Departamento Federal de Investigações
pode ter retirado a queixa, mas nós não vamos recuar.
— E quanto ao Pounds, quer que ele seja informado?
— Para si tenente Pounds, detetive Lewis. E sim, vão lhe
dando o relatório diário da vigilância. Deve ser suficiente.
Irving desligou sem dizer mais nada.
— Muito bem, senhor, disse Lewis para o telefone
desligado. Não queria que Clarke soubesse que fora
desconsiderado. — Vamos nos manter em cima dele.
Obrigado, senhor. Boa-noite. E desligou por sua vez se
sentindo envergonhado pelo comandante não ter
considerado necessário lhe dar boa noite. Clarke se
aproximou rapidamente.
— Então?
— Então, vamos voltar a segui-lo amanhã de manhã.
Traga a sua garrafa de xixi.
— Só isso? Só temos que vigiá-lo?
— Por enquanto.
— Merda. Quero revistar a casa desse filho da puta.
Quebrar umas coisas. Provavelmente, ele tem as merdas do
assalto lá na casa.
— Se estiver envolvido... Duvido que seja assim tão
estúpido. Por enquanto, ficamos na retaguarda. Se ele
estiver sujo, logo descobriremos.
— Claro que está sujo. Não se preocupe.
— Veremos.
Sharkey estava sentado no muro de cimento na parte
da frente do parque de estacionamento na Santa Monica
Boulevard. Observava atentamente a entrada iluminada do
7-Eleven do outro lado da rua, analisando quem entrava e
quem saía. A maior parte era de turistas e casais. Ainda não
entrara ninguém sozinho. Ninguém que servisse. O rapaz
chamado Arson se aproximou e disse:
— Isto não vai dar em nada, meu.
O cabelo de Arson era vermelho e estava moldado com
gel numas chamazinhas espetadas. Vestia jeans pretos e
uma T-shirt preta e suja. Estava fumando um Salem. Não
estava drogado e tinha fome. Sharkey olhou para ele e
depois para o lugar onde o terceiro rapaz, conhecido por
Mojo, estava sentado no chão ao lado das motos. Mojo era
mais baixo e mais largo, com o cabelo preto colado à
cabeça e preso num rabicho na nuca. As cicatrizes da acne
faziam com que o rosto dele tivesse sempre um ar soturno.
— Vamos esperar mais uns minutos, disse Sharkey.
— Eu quero comer, meu, protestou Arson.
— Bem, o que acha que eu estou tentando fazer? Todos
nós queremos comer.
— Devíamos é ir ver como é que a Bettijane está se
saindo, disse Mojo. —Já deve ter feito dinheiro suficiente
para nós podermos comer. Sharkey olhou para ele e disse:
— Vocês dois podem ir. Eu vou ficar até conseguir.
Quero comer. Enquanto dizia isto, observava um Jaguar XJ6
castanho que estava estacionando no parque da loja de
conveniência.
— E o tipo do cano? Perguntou Arson. — Acha que já o
encontraram? Podíamos ir lá e revistá-lo, ver se havia algum
troco. Não sei por que não teve culhões para fazer isso
ontem à noite, Shark.
— Ei! Vai você lá em cima sozinho e o revista se quiser,
respondeu Sharkey. — Em seguida veremos quem é que
tem culhões.
Não tinha dito que telefonara para o 911 por causa do
cadáver. Isso seria ainda mais difícil de perdoar do que o
medo que tivera em entrar dentro do cano. Um homem
sozinho saiu do Jaguar. Devia andar pelos trinta e muitos,
cabelo cortado à escovinha, calças brancas largas e casaco
enrolado à volta dos ombros. Sharkey não viu ninguém
esperando no carro.
— Hei, olhem para o Jag, disse ele. Os outros dois
olharam para a loja. — Desta vez é que é. Vamos.
Sharkey desceu do muro e atravessou o bulevar.
Observou o dono do Jaguar através das janelas da loja.
Tinha um sorvete na mão e estava olhando para a prateleira
das revistas. Os olhos rondando constantemente enquanto
observava os outros homens na loja, Sharkey se sentiu
encorajado quando viu o homem se dirigir para a caixa
registradora e pagar o sorvete. Agachou-se em frente da
loja, a grade do Jaguar a um metro e pouco de distância.
Quando o homem saiu, Sharkey esperou que os olhos de
ambos se cruzassem e que o homem sorrisse antes de falar.
— Senhor? Disse ele enquanto se punha em pé. —
Estava pensando se podia me fazer um favor. O homem
olhou em redor do parque de estacionamento antes de
responder.
— Claro. Do que precisa?
— Bem, estava pensando se podia ir lá dentro e me
trazer uma cerveja. Eu lhe dou o dinheiro. Só quero uma
cerveja. Para descontrair, entende? O homem hesitou.
— Não sei... Isso seria ilegal, não seria? Você ainda não
tem vinte e um. Podia me colocar em uma trapalhada.
— Bem, disse Sharkey com um sorriso, — Tem cerveja
em casa? Assim não precisa comprá-la. Dar uma cerveja a
uma pessoa não é nenhum crime.
— Bem...
— Eu não fico muito tempo. Podíamos até relaxar um
bocadinho um com o outro, não é? O homem voltou a olhar
em volta do parque de estacionamento. Não tinha ninguém.
Sharkey pensou que já o tinha amarrado.
— Está bem, disse o homem. — Depois, posso trazê-lo
de volta para aqui se quiser.
— Claro. Isso seria ótimo.
Seguiram para este na Santa Monica até Flores e depois
viraram para sul e percorreram uns dois quarteirões até
chegar a um condomínio. Sharkey nunca olhou em volta ou
tentou olhar para trás pelos espelhos. Eles estavam lá atrás.
Sabia que estavam. Havia um portão de acesso à
propriedade de que o homem tinha a chave e que fechou
atrás deles. Depois entraram na casa.
— Chamo-me Jack, disse o homem. — Quer alguma
coisa?
— Sou o Phil. Tem alguma coisa para comer? Também
tenho alguma fome.
Sharkey olhou em volta à procura do intercomunicador
de segurança e do botão que abria o portão. A maior parte
da mobília do apartamento era de cor clara com um
espesso tapete num tom branco sujo.
— Linda casa.
— Obrigado. Deixe-me ver o que tenho. Se quiser lavar
a roupa, também pode fazê-lo enquanto estiver aqui. Não
faço isto muitas vezes, sabe. Mas quando posso ajudar
alguém, faço isso.
Sharkey seguiu-o até à cozinha. O console da segurança
ficava na parede ao lado do telefone. Quando Jack abriu a
geladeira e se dobrou para olhar lá para dentro, Sharkey
apertou o botão que abria o portão lá fora. Jack não notou.
— Tenho atum. Posso fazer uma salada. Há quanto
tempo é que anda na rua? Não vou chamá-lo de Phil. Se não
quiser me dizer o seu nome verdadeiro, não faz mal.
— Um atum seria ótimo. Não há muito tempo.
— Está limpo?
— Sim, claro.
— Vamos tomar precauções.
Tinha chegado o momento. Sharkey recuou para o hall
de entrada. Jack levantou os olhos da geladeira, uma tigela
de plástico na mão, a boca ligeiramente entreaberta.
Sharkey julgou ver um olhar de reconhecimento no rosto
dele, como se ele soubesse o que estava prestes a
acontecer. Sharkey deu a volta no puxador e abriu a porta.
Arson e Mojo entraram.
— O que é isto? Perguntou Jack embora sua voz traísse
falta de confiança.
Correu para o hall e Arson, que era o maior dos quatro,
lhe deu um murro na ponta do nariz. Ouviu-se um estalido
como o de um lápis a se partir e a tigela de atum caiu ao
chão. E depois, o tapete de um branco sujo se encheu de
sangue.
 
CAPÍTULO 3
Terça-Feira, 22 de maio
Eleanor Wish voltou a telefonar na terça-feira de manhã
quando Harry Bosch estava ajeitando a gravata em frente
ao espelho do banheiro. Disse que queria se encontrar com
ele numa cafeteria em Westwood antes de levá-lo para o
departamento. Ele já tinha tomado duas xícaras de café,
mas disse que iria até lá. Desligou, colocou o botão do
colarinho da camisa branca e ajeitou a gravata em volta do
pescoço. Não conseguia se lembrar da última vez em que
tinha prestado tanta atenção aos pormenores da sua
aparência. Quando chegou lá, ela estava num dos
reservados ao longo da janela da frente. Tinha as duas mãos
ao redor de um copo de água à sua frente e parecia bem
disposta. Havia um prato empurrado para o lado com o
invólucro de papel de um muffin. Dirigiu-lhe um sorriso
delicado quando ele se sentou e chamou a garçonete com a
mão.
— Só café, disse Bosch.
— Já comeu? Perguntou Eleanor Wish quando a
garçonete se afastou.
— Não. Mas estou bem assim.
— Você não come muito, já notei. Disse aquilo mais
como uma mãe do que como uma detetive.
— Então, quem é que vai me dizer o que está
acontecendo? Você ou o Rourke?
— Eu.
A garçonete pousou uma xícara de café em cima da
mesa. Bosch conseguia ouvir quatro vendedores no
reservado ao lado discutindo por causa da conta do café-da-
manhã. Bebeu um gole do café quente.
— Gostaria que o pedido do FBI para eu os ajudar fosse
escrito num papel timbrado e assinado pelo agente especial
sênior responsável pelo departamento de Los Angeles.
Ela hesitou uns instantes, pousou o copo e olhou
diretamente para ele pela primeira vez. Os olhos eram tão
escuros que não deixavam transparecer nada a seu
respeito. Nos cantos, Bosch viu o princípio de uma leve teia
de rugas na pele bronzeada. Na linha do queixo, havia uma
pequena cicatriz branca em forma de crescente, muito
antiga e que mal se via. Perguntou para consigo se a cicatriz
e as rugas a preocupavam, como ele estava convencido que
preocupariam a maior parte das mulheres. Parecia ver no
rosto dela uma leve tristeza, como se um mistério guardado
no interior tivesse conseguido abrir caminho até à
superfície. Talvez fosse cansaço. Fosse como fosse, era uma
mulher atraente. Calculou que deveria andar pelos trinta e
poucos anos.
— Acho que posso conseguir isso, disse ela finalmente.
— Há mais alguma exigência antes de começarmos a
trabalhar? Ele sorriu e abanou a cabeça. — Sabe Bosch,
recebi a sua pasta do homicídio ontem e li-o todo à noite.
Por aquilo que você tem lá e para um dia de trabalho, foi
uma obra bem feita. Com a maioria dos outros detetives,
aquele cadáver ainda estaria na fila de espera na morgue e
inscrito como uma provável OD acidental. Ele não disse
nada. — Por onde acha que devemos começar hoje?
Perguntou ela.
— Estou trabalhando numas coisas que ainda não
estavam na pasta. Por que não me conta primeiro tudo
sobre o assalto ao banco? Preciso das informações
completas. As únicas coisas que sei são as que vocês deram
aos jornais e puseram nos BOLOS. Ponha-me a par e depois
eu pego a partir daí e lhe conto o que sei sobre Meadows. A
garçonete se aproximou para ver como estavam a xícara
dele e o copo dela.
Então Eleanor Wish contou a história do assalto ao
banco. Bosch se lembrou de várias perguntas enquanto ela
falava, mas tentou anotá-las mentalmente para perguntar
depois. Viu que ela se sentia maravilhada com a história, o
planejamento e a execução do golpe. Fossem eles quem
fossem, os construtores do túnel, tinham o respeito dela.
Deu por si a se sentir quase invejoso.
— Por baixo das ruas de LA, disse ela, — Há mais de
seiscentos quilômetros de canos de escoamento das águas
pluviais que são suficientemente largos e altos para poder
andar de carro. A seguir a esses ainda temos mais canos
secundários. Mais cento e sessenta quilômetros por onde se
pode andar em pé, ou pelo menos, rastejar. Isso quer dizer
que qualquer pessoa pode descer até lá em baixo e, se
souber o caminho, se aproximar de qualquer edifício da
cidade. E não é muito difícil descobrir o caminho. Os planos
de toda a rede são do conhecimento público e são
arquivados em armários na sala de registros do condado.
Seja como for, estes tipos utilizaram o sistema de drenagem
para entrar no West Land National.
Bosch já tinha calculado isso mesmo, mas não se deu
ao trabalho de dizer. Ela disse que o FBI estava convencido
que havia pelo menos três homens debaixo do chão e um lá
em cima, para atuar como vigia e outras funções
necessárias. O da parte de cima provavelmente se
comunicava com os outros através de rádio, exceto já perto
do fim por causa do perigo das ondas do rádio poderem
fazer detonar os explosivos. Os homens nos subterrâneos
tinham se deslocado pelo sistema de drenagem em veículos
Honda fora-de-estrada. Havia uma entrada para o sistema
de esgotos pluviais num leito seco na bacia do Los Angeles
River ao nordeste da baixa. Entraram lá dentro,
provavelmente sob a proteção da escuridão e, seguindo os
mapas, se deslocaram através do sistema de túneis até a
um ponto por baixo do Wilshire Boulevard, na baixa, a uns
nove metros de profundidade e a uns 150 metros para oeste
do West Land National. Era uma viagem de cerca de três
quilômetros e meio. Uma máquina de furar industrial, com
uma broca circular de sessenta centímetros de diâmetro,
provavelmente com ponta de diamante, ligada a um
gerador num dos Honda, foi utilizada para abrir um buraco
na parede de cimento, com quinze centímetros de
espessura, no túnel de escoamento de águas. A partir dali,
os homens no subterrâneo começaram a escavar.
— A entrada no cofre forte ocorreu no fim-de-semana do
Dia do Trabalhador, continuou Eleanor Wish. — Pensamos
que eles devem ter começado fazendo o túnel três ou
quatro semanas antes. Só deviam trabalhar à noite. Entrar,
escavar um pedaço e sair ao amanhecer. O DWP tem
inspetores que passam revista, rotineiramente, ao sistema à
procura de rachaduras e outros problemas. Trabalham de
dia, por isso, os criminosos provavelmente não se
arriscaram.
— E o buraco que abriram de lado? Os funcionários da
água e da eletricidade não dariam por isso? Perguntou
Bosch, se sentindo imediatamente aborrecido consigo
mesmo por ter feito uma pergunta antes dela ter acabado.
— Não, respondeu ela. — Eles pensaram em tudo.
Tinham um pedaço de compensado cortado num círculo de
sessenta centímetros de diâmetro. Cobriram-no de cimento,
encontramo-lo lá depois. Pensamos que quando saíam de
manhã, tapavam o buraco com isto e punham mais cimento
em volta das bordas que calcavam cuidadosamente. Ia
parecer que era um cano de drenagem das chuvas que fora
aberto e fechado. Isso é uma coisa muito comum lá em
baixo. Estive lá. Vemos destes canos abertos por todo o
lado. Sessenta centímetros é a medida padrão. Por isso, isto
teria parecido normal. Não dava nas vistas e os criminosos
se limitavam a voltar na noite seguinte, entravam e
cavavam mais um bocadinho em direção ao banco.
Ela disse que o túnel fora escavado principalmente com
ferramentas manuais, pás, picaretas, brocas alimentadas
pelo gerador no Honda. Provavelmente, os homens
utilizaram lanternas, mas também tinham utilizado velas.
Algumas ainda estavam acesas no túnel depois do roubo ter
sido descoberto. Estavam apoiadas em pequenos entalhes
feitos nas paredes.
— Isso o faz se lembrar de alguma coisa? Perguntou
Eleanor Wish. Ele assentiu com a cabeça. — Calculamos que
eles avançavam de três a seis metros por noite, continuou
ela. — Encontramos dois carrinhos de mão no túnel. Tinham
sido divididos ao meio e desmontados para caberem no
buraco de sessenta centímetros e depois tinham sido
montados outra vez para poderem ser usados durante a
escavação. Um ou dois deles deviam ter como função fazer
corridas para fora do túnel e despejar a terra e o lixo da
escavação na linha de drenagem principal. Há uma corrente
de água regular no chão do cano que teria acabado por
arrastar a terra para a corrente do rio. Calculamos que, em
certas noites, o parceiro no exterior deve ter aberto as
bocas de incêndio na Hill para conseguirem que a água
corresse lá em baixo.
— Quer dizer que teriam água lá em baixo mesmo
durante uma seca.
— Mesmo durante uma seca...
Eleanor Wish disse que quando os ladrões chegaram
finalmente por baixo do banco, tinham utilizado os sistemas
elétricos e as linhas telefônicas do próprio banco. Com a
baixa transformada numa cidade fantasma aos fins-de-
semana, a sucursal do banco ficava fechada aos sábados.
Por isso, na sexta-feira, depois da hora de expediente, os
ladrões tinham desligado os alarmes. Um deles deverias ser
o homem dos alarmes. Não Meadows, este devia ser o
homem dos explosivos.
— O engraçado é que eles não precisavam de um
homem dos alarmes, continuou ela. — O alarme do sensor
da caixa-forte tinha passado toda a semana a disparar.
Estes tipos, com as escavações e brocas deviam ter
acionado os alarmes. Durante quatro noites seguidas, a
polícia e o gerente foram chamados lá. Chegou a acontecer
três vezes na mesma noite. Não encontravam nada e
começaram a pensar que o problema devia estar no alarme.
O sensor de movimento e som estava desequilibrado. Por
isso, o gerente chamou a companhia do alarme e eles não
podiam mandar ninguém lá antes do final do fim-de-semana
do Dia do Trabalhador. Por isso o gerente...
— Desligou o alarme, acabou Bosch por ela.
— Exatamente. Ele decidiu que não iria passar todas as
noites do fim-de-semana prolongado sendo chamado ao
banco. Tinha tudo combinado para ir a Springs, para o seu
condomínio, jogar golfe. Desligou os alarmes. Claro que não
trabalha mais no West Land National. Por baixo da caixa
forte, os bandidos usaram uma broca industrial arrefecida a
água, que ficava presa, virada para baixo, na parte de baixo
da placa da caixa-forte, para abrir um buraco de cinco
centímetros e meio através do metro e meio de cimento e
aço. Os analistas da cena do crime do FBI calcularam que
levaram só cinco horas se a broca não tivesse aquecido
demasiado. A água para arrefecê-la vinha de uma torneira
de um cano de água subterrâneo. Utilizaram a água do
banco. Depois de terem aberto o buraco, encheram-no de C-
4, disse ela. — Estenderam o fio pelo túnel que tinham
aberto até ao túnel de drenagem. E foi daí que o fizeram
explodir.
Eleanor disse que os registros das respostas de
emergência do Departamento da Polícia de Los Angeles
mostravam que as 9 e 14 da manhã de sábado, os alarmes
tinham soado num banco do outro lado da rua, em frente do
West Land National e numa joalharia à meio quarteirão de
distância.
— Calculamos que tenha sido a hora da detonação,
disse Eleanor Wish. — Mandaram uma patrulha que revistou
tudo, não descobriu nada, concluiu que os alarmes deviam
ter sido ativados por um tremor de terra e foi embora.
Ninguém se deu ao trabalho de verificar o West Land
National. Os alarmes dele não tinham soltado nem um pio.
Não sabiam que tinham sido desligados. Uma vez dentro da
caixa-forte, continuou ela, — Trabalharam durante os três
dias do fim-de-semana, perfurando as fechaduras dos
cofres, abrindo as gavetas e esvaziando-as. — Encontramos
latas de comida, pacotes de batatas fritas, embalagens de
comida congelada, mantimentos de sobrevivência, contou
Eleanor Wish. — Dá a impressão que eles ficaram lá
dormindo em turnos. No túnel havia uma parte mais larga
que parecia uma pequena divisão. Uma divisão para dormir,
eu acho. Encontramos o padrão de um saco de dormir no
chão de terra. Também encontramos na areia as marcas
feitas pelas coronhas dos M-l6s que traziam com eles. Não
estavam pensando em se renderem se as coisas dessem
errado.
Deixou-o pensar naquilo durante uns momentos e
depois continuou:
— Calculamos que ficaram na caixa-forte umas sessenta
horas, talvez mesmo um bocadinho mais. Abriram
quatrocentos e sessenta e quatro cofres. De setecentos e
cinquenta. Se fossem três, isso dá cerca de cento e
cinquenta e cinco cofres para cada um. Subtraindo cerca de
quinze horas para descansarem e comerem durante os três
dias que estiveram lá, temos cada homem furando três,
quatro cofres por hora. Deviam ter um limite de tempo,
disse ela. — Talvez três horas ou qualquer coisa parecida.
Terça-feira de manhã. Pararam de furar nessa altura, dando
tempo suficiente para arrumarem tudo e saírem. Agarraram
no saque e nas ferramentas e foram embora. O gerente do
banco, com um belo bronzeado de Palm Springs, descobriu
o assalto quando abriu a caixa-forte para mais um dia de
atividade. É tudo, concluiu ela. — A melhor coisa que já vi
ou ouvi falar desde que estou nesta profissão. Muito poucos
erros. Descobrimos muita coisa sobre a maneira como o
fizeram, mas muito pouco sobre quem fez. Meadows foi o
mais perto que conseguimos chegar e agora está morto.
Aquela fotografia que você me mostrou ontem.
— Da pulseira?
— Você tinha razão, é a primeira coisa que apareceu
desses cofres, que a gente saiba.
— Mas agora desapareceu. Bosch ficou esperando que
ela dissesse alguma coisa, mas ela não disse.
— Como é que escolheram as caixas que furaram?
Perguntou ele.
— Parece que foi ao acaso. Tenho um vídeo no gabinete
para mostrar. Mas dá a ideia que disseram: “você fica com
aquela parede, e eu fico com esta”, e assim por diante.
Algumas das caixas ao lado das que foram arrombadas não
foram tocadas. Por quê? Não sei. Não parece ter um padrão.
No entanto, recebemos a informação de que noventa por
cento das caixas que eles abriram tinham coisas lá dentro. A
maior parte são coisas de que não podemos seguir a pista.
Eles escolheram bem.
— Como é que concluíram que eram três?
— Calculamos que seriam precisos pelo menos três para
arrombarem tantos cofres utilizando uma broca. Além disso,
era o número de Hondas. Ela sorriu e ele mordeu a isca.
— OK, como é que sabem isso das Hondas?
— Bem, havia marcas na lama do cano de drenagem e
os identificamos pelos pneus. Também encontramos tinta,
tinta azul, na parede de uma das curvas do tubo de
drenagem. Um deles tinha derrapado e batido na parede. O
laboratório que analisou a tinta em Quântico descobriu o
ano, o modelo e a marca. Corremos todos os vendedores de
Hondas no Sul da Califórnia e descobrimos uma venda de
três num stand em Tustin, quatro semanas antes do Dia do
Trabalhador. O tipo pagou em dinheiro. Deu nome e
endereço falsos.
— Quais?
— O nome é Frederic B. Isley. Ia aparecer outra vez.
Mostramos ao vendedor algumas fotografias, incluindo a de
Meadows, a sua e as de outras pessoas, mas ele não
conseguiu identificar ninguém como sendo Isley. Limpou a
boca com o guardanapo e largou-o em cima da mesa. Ele
não conseguiu ver batom nenhum nele. — Bem, disse ela.
— Já bebi água para uma semana. Vá se encontrar comigo
no departamento e vamos rever tudo o que nós temos e o
que você tem sobre Meadows. Rourke e eu achamos que é a
melhor maneira de começarmos. Esgotamos todas as pistas
do assalto ao banco, temos andado batendo com a cabeça
nas paredes. Talvez o caso Meadows nos dê a oportunidade
de que precisamos. Eleanor Wish pagou a conta, Bosch a
gorjeta.
 
Foram nos respectivos carros para o Federal Building.
Enquanto guiava, Bosch pensou nela e não no caso. Queria
perguntar como tinha arranjado a cicatrizinha no queixo e
não como é que ela tinha relacionado os sapadores do túnel
do West Land com os ratos dos túneis do Vietnam. Queria
saber o que tinha lhe dado aquela expressão doce e triste
ao rosto. Seguiu o carro dela através de um bairro de
apartamentos para estudantes ao pé da UCLA e depois pelo
Wilshire Boulevard. Encontraram-se no elevador na
garagem do Federal Building.
— Acho que é melhor que você trate principalmente
comigo, disse ela enquanto subiam sozinhos no elevador. —
O Rourke... Você e o Rourke não começaram bem e...
— Nem sequer começamos, disse Bosch.
— Bem, se lhe der uma oportunidade, verá que ele é
bom homem. Fez aquilo que pensou ser o melhor para o
caso.
As portas do elevador se abriram no décimo sétimo
andar e ali estava Rourke.
— Ora, aqui estão vocês os dois, disse ele. Estendeu a
mão a Bosch que a apertou sem muita convicção. Rourke se
apresentou.
— Ia agora mesmo descer para tomar um café e comer
um pãozinho, disse ele. Quer me fazer companhia?
— Oh, John, viemos agora mesmo de uma cafeteria,
disse Eleanor Wish. Encontramo-nos consigo aqui.
Bosch e Eleanor Wish estavam agora fora do elevador e
Rourke lá dentro. O agente especial se limitou a concordar
com um aceno de cabeça e as portas se fecharam. Bosch e
Eleanor Wish se dirigiram para a sala.
— De certa forma, ele é um pouco parecido consigo...
Esteve na guerra, disse ela. Dê-lhe uma chance. Você não
vai tornar as coisas mais fáceis se não descongelar um
bocadinho.
Ele deixou passar aquilo. Desceram o corredor para a
sala do Grupo 3 e Eleanor Wish apontou para uma mesa
atrás da dela. Disse que estava vazia uma vez que o agente
que a ocupava fora transferido para o Grupo 2, a divisão de
pornografia. Bosch pousou a pasta em cima da mesa e se
sentou. Olhou em volta da sala. Tinha muito mais gente do
que no dia anterior. Cerca de meia dúzia de agentes
estavam sentados às mesas e três outros estavam de pé ao
fundo da sala junto de um armário onde estava uma caixa
de donuts. Reparou que havia uma televisão e um VCR
numa prateleira ao fundo da sala. Não estava lá no dia
anterior.
— Você disse qualquer coisa acerca de um vídeo, disse
ele a Eleanor Wish.
— Oh, sim. Vou preparar tudo e você pode ver enquanto
eu retorno uns telefonemas.
Tirou um cassete de vídeo de uma gaveta da mesa e se
dirigiram ambos para o fundo da sala. O grupo dos três se
afastou silenciosamente com os seus donuts, alarmados
com a presença de um estranho. Ela enfiou o cassete e
deixou-o sozinho. O vídeo, obviamente gravado com uma
câmera portátil, era uma viagem aos solavancos e nada
profissional pelo rastro dos ladrões. Começava por aquilo
que Bosch deduziu ser o esgoto de drenagem pluvial, um
túnel quadrado que se afastava numa curva para uma
escuridão que o foco da câmera não conseguia alcançar.
Eleanor Wish tinha razão, era enorme. Um caminhão podia
passar por ali. Uma pequena corrente de água se movia
vagarosamente pelo centro do chão de cimento. Havia limo
e algas no chão e nas partes inferiores das paredes e Bosch
quase conseguiu sentir a humidade. A câmera incidiu no
chão verde-acinzentado. Havia rastros de pneus no limo. A
cena seguinte era a entrada para o túnel dos ladrões, um
buraco nítido aberto na parede do esgoto. Um par de mãos
entrou na imagem segurando o círculo de compensado que
Eleanor Wish dissera que fora usado para tapar o buraco
durante o dia. As mãos avançaram mais para dentro da
imagem e depois apareceu uma cabeça de cabelos escuros.
Era Rourke. Vestia um macacão escuro com letras brancas
nas costas. FBI. Levantou o compensado e encostou-o ao
buraco. Encaixava perfeitamente.
O vídeo deu um salto e a cena agora era o interior do
túnel dos ladrões. Bosch se sentiu esquisito ao ver aquilo
que lhe trazia recordações dos túneis escavados à mão por
onde andara rastejando no Vietnam. Uma luz surreal
tremeluzia das velas colocadas de seis em seis metros em
nichos escavados na parede. Depois de se curvar durante
uns dezoito metros, segundo os seus cálculos, o túnel virava
abruptamente para a esquerda. Depois seguia praticamente
direto por uns trinta metros, com as velas ainda
tremeluzindo nas paredes. Por fim, a câmera chegou a um
beco sem saída onde havia uma pilha de entulho, pedaços
de barras e placas de aço torcidas. A câmera subiu até a um
buraco enorme no teto do túnel. A luz jorrava da caixa-forte
por cima. Rourke estava lá em pé, com o seu macacão,
olhando para baixo, na direção da câmera. Passou um dedo
pela garganta e a imagem foi outra vez cortada. Desta vez,
a câmera estava dentro da caixa-forte, um plano da sala
toda. Tal como na fotografia do jornal que Bosch vira, havia
centenas de portas de cofres abertas. Muitas caixas vazias
empilhadas no chão. Dois técnicos da cena do crime
estavam à procura de impressões digitais nas portas.
Eleanor Wish e outro agente olhavam para cima, para a
parede de aço das portas dos cofres e faziam anotações. A
câmera desceu para o chão e para o buraco para o túnel em
baixo. A seguir, a fita ficou preta. Rebobinou-a, tirou-a e
colocou-a em cima da mesa dela.
— Interessante, disse ele. — Vi algumas coisas que já
tinha visto. Nos túneis de lá. Mas nada que tivesse feito
começar a procurar ratos dos túneis em especial. Qual foi a
pista para o Meadows, para as pessoas como eu?
— Primeiro de tudo, o C-4, respondeu ela. — A Divisão
de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo mandaram uma equipe
inspecionar o cimento e o aço do buraco. Havia vestígios do
explosivo. Os tipos da ATF fizeram uns testes e descobriram
o C4. Tenho a certeza que conhece. Foi usado no Vietnam.
Os ratos dos túneis usavam-no para fazer implodir os túneis.
A questão é que agora se podem arranjar coisas muito
melhores, com mais área de impacto, mais fáceis de
manusear e detonar. Até mais barato. Também menos
perigoso e mais fácil de obter. Por isso, deduzimos quer
dizer, o tipo do laboratório ATF deduziu que a razão do C4
ter sido utilizado foi a do manuseador se sentir mais à
vontade com ele, por já o ter utilizado antes. Daí,
concluímos que deveria ser um veterano do Vietnam. Outro
corolário para o Vietnam foram as armadilhas. Pensamos
que antes de subirem para a caixa-forte para começarem a
arrombar os cofres, armadilharam o túnel para protegerem
a retaguarda. Mandamos um cão ATF por precaução, para
termos a certeza que não havia mais C-4 por ali. O animal
obteve uma leitura indicadora de explosivos em dois lugares
do túnel. Ao meio e na entrada aberta na parede do túnel
de drenagem. Mas já não havia mais nada lá. Os ladrões
levaram tudo com eles. Mas descobrimos buracos de
estacas no chão do túnel e pedacinhos de fio nos dois
lugares como aquelas coisinhas que ficam quando se está
cortando fio com um alicate.
— Arames de disparo, disse Bosch.
— Exatamente. Pensamos que eles armadilharam o
túnel para evitarem intrusos. Se aparecesse alguém por trás
deles, o túnel teria ido para os ares. Ficariam soterrados
debaixo da Hill Street. Pelo menos, os construtores do túnel
levaram os explosivos com eles quando foram embora.
Evitaram que tropeçássemos neles.
— Mas, provavelmente, uma explosão dessas teria
rebentado com os ladrões e com os intrusos, comentou
Bosch.
— Sabemos disso. Estes tipos não estavam dispostos a
correr riscos. Estavam fortemente armados, fortificados e
prontos para morrer. Vitória ou suicídio... Bem, seja como
for, nós não nos lembramos do possível envolvimento dos
ratos do túnel até alguém ter apanhado qualquer coisa
quando íamos seguindo os rastros dos pneus no esgoto
principal. Os rastros estavam aqui e ali, não eram contínuos.
Por isso, levamos uns dois dias para completar o traçado
desde o túnel até à entrada junto do rio. Não era direto.
Aquilo lá em baixo é um labirinto. Tinha que se conhecer o
caminho. Calculamos que os tipos não ficavam sentados nos
Hondas com uma lanterna e um mapa todas as noites.
— O Hans e a Gretel? Deixaram migalhas ao longo do
caminho?
— Mais ou menos. As paredes lá em baixo têm uma
porção de tinta. Marcas DWP, para saberem onde é que
estão e que cano vai dar aonde, datas de inspeção, etc. Em
algumas, a tinta é tanta que se parece com uma parede
lateral de um 7-Eleven num bairro de LA oriental. Por isso,
calculamos que os criminosos marcaram o caminho.
Percorremos todo o caminho à procura de marcas
recorrentes. Só havia uma. Uma espécie de símbolo da paz
sem o círculo. Apenas três traços rápidos. Ele conhecia a
marca. Tinha-a usado nos túneis vinte anos antes. Três
cortes rápidos na parede de um túnel feitos com uma faca.
Era o símbolo que eles tinham usado para marcarem o
caminho, para poderem voltar a encontrar o caminho de
saída.
Eleanor Wish continuou:
— Um dos policiais que estava lá nesse dia, isto foi
antes do Departamento de Polícia de Los Angeles ter nos
entregado o caso, um dos tipos dos assaltos disse que o
reconhecia do Vietnam. Ele não era um rato do túnel. Mas
nos falou deles. Foi assim que fizemos a ligação. A partir
daí, fomos ao Departamento da Defesa e à AV e
conseguimos os nomes. Conseguimos o do Meadows. O seu.
Outros.
— Quantos dos outros? Ela empurrou uma pilha com uns
dez centímetros de espessura de arquivos, que estava em
cima da mesa, na direção dele.
— Estão todos aqui. Se quiser, pode ver. Rourke chegou
naquele instante.
— A agente Wish já me falou da carta que você pediu,
disse ele. — Não vejo nenhum problema. Vou escrever
qualquer coisa e vamos tentar que o Agente Especial Sênior
Whitcomb a assine ainda hoje. Como Bosch não disse nada,
Rourke continuou. — Podemos ter reagido de forma
exagerada ontem, mas espero ter conseguido esclarecer
tudo com o seu tenente e a sua gente dos Assuntos
Internos. Esboçou um sorriso que teria feito inveja a um
político. — A propósito, queria lhe dizer que admiro o seu
registro. O seu registro militar. Quanto a mim, também
estive lá três vezes. Mas nunca entrei nesses tenebrosos
túneis. Mas estive lá, até o fim. Uma pena.
— Qual pena? Que tivesse acabado?
Rourke olhou para ele durante um longo momento e
Bosch viu a vermelhidão se espalhar pelo rosto dele, desde
o ponto em que as sobrancelhas escuras se encontravam.
Rourke era um homem muito pálido, com um rosto
encovado que dava a ideia de que ele estava chupando
qualquer coisa amarga. Era alguns anos, não muito, mais
velho que Bosch. Da mesma altura, mas Rourke tinha mais
peso. Ao tradicional uniforme do FBI, blazer azul escuro e
camisa azul clara, ele tinha acrescentado uma gravata
vermelho vivo.
— Olhe detetive, não é obrigado a gostar de mim, tudo
bem, disse Rourke. — Mas, por favor, trabalhe comigo nisto.
Ambos queremos a mesma coisa. Bosch resolveu ceder para
ver o que iria dar.
— O que querem que eu faça? Expliquem exatamente o
quê. Vou andar na sua cauda ou querem mesmo que eu
trabalhe?
— Bosch, você é considerado um detetive de primeira.
Mostre-nos isso. Limite-se a continuar com o seu caso.
Como nos disse ontem, você descobre quem matou
Meadows e nós descobrimos quem assaltou o West Land
National. Por isso, sim, nós queremos o seu melhor. Trabalhe
como faria normalmente, mas com a Agente Especial Wish
como sua parceira. Rourke se afastou, saindo da sala. Bosch
calculou que ele deveria ter a sua própria sala em algum
lugar no sossego do corredor. Bosch se voltou para a mesa
de Eleanor Wish e pegou o monte de pastas.
— OK, vamos então a isto, disse.
Eleanor Wish requisitou um carro do departamento e
dirigiu enquanto Bosch analisava a pilha de relatórios
militares que tinha no colo. Reparou que o seu era o
primeiro. Deu uma olhadela pelos outros, mas só
reconheceu o nome de Meadows.
— Para onde? Perguntou Eleanor Wish quando saiu da
garagem e entrou na Veteran Avenue para pegar a Wilshire.
— Hollywood, respondeu ele. — Rourke é sempre assim
tão formal? Ela virou para leste e sorriu com um daqueles
seus sorrisos que fazia Bosch se perguntar se haveria
alguma coisa entre ela e Rourke.
— Quando quer, respondeu ela. — Mas é um bom
administrador. Dirige bem a equipe. Teve sempre o posto de
chefe, acho eu. Penso que ele disse que esteve
comandando uma unidade ou qualquer coisa dessas quando
esteve na tropa. Lá em Saigon.
“Era impossível que houvesse qualquer coisa entre os
dois”, pensou ele. Uma pessoa não defende o amante
dizendo que ele é um bom administrador. Não havia nada
entre eles.
— Está no ramo errado para ser administrador, disse
Bosch. — Suba a Hollywood Boulevard, ao sul do teatro
chinês.
Iam levar quinze minutos para chegar lá. Abriu o
registro no alto de todos, era o dele e começou a dar uma
vista de olhos pela papelada. No meio de uns relatórios
psiquiátricos de avaliação, descobriu uma fotografia em
preto e branco, quase igual a uma fotografia tirada pela
polícia, de um jovem fardado, o rosto sem marcas da idade
ou da experiência.
— Ficava bem com cabelo à escovinha, disse Eleanor
Wish interrompendo os pensamentos dele. — Lembrei-me
do meu irmão, quando vi essa fotografia pela primeira vez.
Bosch olhou para ela, mas não disse nada. Arrumou a
fotografia e voltou a passar os olhos pelo dossiê, lendo
pedaços de informação sobre um estranho que era ele
próprio. Eleanor Wish disse: — Conseguimos encontrar nove
homens com experiência dos túneis do Vietnam que viviam
no Sul da Califórnia. Investigamos todos. Meadows foi o
único que elevamos à categoria de suspeito. Era um
drogado, tinha registro criminal. Também tinha uma história
de trabalhar em túneis mesmo depois de ter voltado da
guerra. Dirigiu em silêncio durante alguns minutos
enquanto Bosch lia. Depois disse: — Vigiamo-lo durante um
mês inteiro. Depois do assalto.
— O que ele andou fazendo?
— Nada que pudéssemos ver. Era capaz de andar
traficando droga. Nunca tivemos certeza. Ia até Venice
comprar heroína de três em três dias. Mas parecia que era
apenas para consumo pessoal. Poderia andar vendendo,
mas nunca vimos clientes. Nunca teve visitas durante todo
o mês em que andamos vigiando-o. Raios, se nós
tivéssemos conseguido provar que ele andava traficando,
poderíamos tê-lo detido e depois teríamos qualquer coisa
decente com que o pressionar quando falássemos do
assalto ao banco. Voltou a se calar durante alguns
momentos e depois, num tom que Bosch achou que era
mais para convencer a ela própria do que a ele,
acrescentou: — Não estava vendendo.
— Acredito, disse ele.
— Vai me dizer o que vamos procurar em Hollywood?
— Vamos procurar uma testemunha. Uma possível
testemunha. Como é que Meadows vivia durante o mês em
que o vigiaram? Quero dizer, com relação ao dinheiro. Como
é que ele arranjava dinheiro para ir a Venice?
— Tanto quanto descobrimos, vivia do seguro social e
recebia um cheque de incapacidade da AV. Mais nada.
— Por que desistiram ao fim de um mês?
— Não tínhamos nada, e nem sequer tínhamos a
certeza que ele tivesse alguma coisa a ver com o caso.
Nós...
— Quem é que mandou parar?
— Foi Rourke. Ele não podia...
— O administrador.
— Deixe-me acabar. Ele não podia justificar o custo de
uma vigilância contínua sem quaisquer resultados.
Estávamos atuando baseados num palpite, mais nada. Você
está olhando para o assunto retrospectivamente. Mas já
tinham se passado quase dois meses após o assalto. Não
havia nada ali que apontasse para ele. Na realidade,
passado algum tempo, caímos na rotina. Pensamos que,
fossem eles quem fossem já deveriam estar em Mônaco ou
na Argentina. E não comprando heroína de segunda
categoria na praia de Venice e morando num apartamento
deteriorado no Valley. Naquela altura, Meadows não fazia
sentido. Rourke cancelou a vigilância. E eu concordei. Acho
que agora sabemos que enfiamos o pé. Satisfeito? Bosch
não respondeu.
Sabia que Rourke tivera razão em parar com a
vigilância. Não há lugar nenhum em que a visão
retrospectiva funcione melhor do que na atividade policial.
Mudou de assunto.
— Porquê aquele banco? Alguma vez pensaram isso?
Porquê o West Land National? Porquê não o Wells Fargo ou
uma caixa-forte em Beverly Hills? De qualquer maneira é
provável que haja mais dinheiro nos bancos de Beverly Hills.
Você disse que estes túneis subterrâneos vão dar em todo o
lado.
— E vão. Não sei responder a isso. Talvez eles tenham
escolhido um banco da baixa porque queriam três dias
completos para abrir os cofres e sabiam que os bancos da
baixa não abrem aos sábados. Vai ver só Meadows e os
amigos é que sabem a resposta. De que andamos a procura
neste bairro? Não havia nada no seu relatório sobre uma
possível testemunha. Testemunha do quê?
Tinham chegado ao bairro. A rua era ladeada de motéis
em ruínas que já tinham aquele ar deprimente no dia em
que acabaram de ser construídos. Bosch apontou para um
deles, o Blue Chateau, e disse para ela estacionar. Era tão
deprimente como todos os outros dessa rua. Cimento,
design dos princípios dos anos cinquenta. Pintado de azul
com uma faixa de um azul mais claro que já estava
descascando. Era um edifício de dois andares, com um pátio
no meio e toalhas e roupas penduradas em quase todas as
janelas abertas. Um lugar onde o interior rivalizaria com o
exterior na sua desolação, sabia Bosch. Onde os fugitivos se
amontoavam, oito ou dez num quarto, os mais fortes
conseguindo uma cama e os outros dormindo no chão ou
dentro da banheira. Havia lugares como este em muitos dos
quarteirões ao pé do Boulevard. Sempre houvera e sempre
haveria. Ainda sentados no carro do departamento olhando
para o motel, Bosch contou a história do rabisco de tinta por
acabar que encontrara no cano do reservatório de água e
do telefonema anônimo para 911. Disse-lhe que estava
convencido que a voz condizia com a tinta. Edward Niese,
apelido, Sharkey.
— Estes garotos, estes fugitivos, formam bandos de rua,
disse Bosch enquanto saía do carro. — Não são exatamente
gangues. Não é uma questão de território. É para proteção e
negócio. Segundo os arquivos do CRASH, o bando do
Sharkey tem andado vadiando por aqui, no Chateau, nestes
dois últimos meses.
Quando Bosch fechou a porta do carro, reparou num
carro que encostara à calçada meio quarteirão mais acima
da rua. Deu-lhe uma olhadela rápida, mas não reconheceu o
carro. Julgou que conseguia distinguir duas pessoas lá
dentro, mas estava demasiado longe para ter certeza ou
para dizer se eram Lewis e Clarke. Subiu um caminho de
lajes até ao átrio de entrada por baixo de um letreiro de
néon quebrado que indicava o escritório do motel. No
escritório, Bosch viu um velho sentado por trás de uma
janela de vidro com um tabuleiro giratório na base. O
homem estava lendo as notícias locais de Santa Anita. Não
levantou os olhos até Bosch e Eleanor Wish estarem junto
da janela.
— Sim, senhores agentes, em que posso ser útil?
Era um velho gasto cujos olhos tinham desistido de se
preocupar com tudo o que acontecia. Sabia reconhecer os
policiais ainda antes deles mostrarem os distintivos. E sabia
que o melhor era dar o que queriam sem fazer grandes
ondas.
— Um garoto chamado Sharkey, disse Bosch. — Qual é
o quarto?
— Sete, mas ele já foi embora. Acho. A moto dele
costuma ficar ali na entrada quando ele anda por aqui. Não
tem mais moto nenhuma lá. Foi-se. Muito provavelmente.
— Muito provavelmente. Há mais alguém no sete?
— Claro. Sempre há alguém.
— Primeiro andar?
— Sim.
— Porta traseira ou janela?
— As duas coisas. Porta deslizante nos fundos. Muito
cara para se substituir.
O velho esticou a mão para o chaveiro e tirou uma
chave de um gancho marcado 7. Pô-la no tabuleiro por
baixo da janela, entre ele e Bosch.
O detetive Pierce Lewis descobriu um recibo de uma
caixa automática na carteira e usou-o para palitar os
dentes. A boca tinha um sabor qualquer como se ainda
tivesse um pedaço das salsichas do café da manhã em
algum lugar. Passou o papel por entre os dentes, um a um,
até os sentir completamente limpos. Deu um estalido de
desagrado com a boca.
— O que é? Perguntou o detetive Don Clarke. Conhecia
as nuances comportamentais do companheiro. Limpar os
dentes e fazer estalar os lábios queria dizer que havia
qualquer coisa aborrecendo-o.
— Acho que ele nos viu, mais nada, disse Lewis depois
de ter atirado o papel na rua pela janela do carro. — Aquela
olhadelazinha que ele deu para o fundo da rua quando saiu
do carro. Foi muito rápido, mas acho que nos viu.
— Não viu nada. Se visse viria disparado até aqui para
armar uma algazarra ou qualquer coisa dessas. É isso o que
eles fazem. Armam barulho, apresentam queixa. Já teria nos
atirado a Liga de Proteção da Polícia nos calcanhares. Estou
dizendo, os tiras são os últimos a notarem que estão sendo
seguidos.
— Bem... Talvez, respondeu Lewis.
Deixou as coisas ficarem assim. Mas continuou
preocupado. Não queria ferrar esta missão. Já tivera Bosch
agarrado pelos culhões uma vez e o tipo tinha escapado
porque Irving, aquele merda, mandara que Lewis e Clarke
se retirassem. Mas desta vez não ia ser assim, prometeu
Lewis a si mesmo. Desta vez, ele iria até o fundo.
— Está tomando notas? Perguntou ao colega. — O que
acha que eles estão fazendo naquele pardieiro?
— Procurando alguma coisa.
— Está brincando comigo. Acha mesmo?
— Iça, acordou com os pés gelados hoje?
Lewis desviou os olhos do Chateau para Clarke, que
tinha as mãos cruzadas no colo e o assento inclinado para
trás num ângulo de sessenta graus. Com os óculos
espelhados tapando os olhos, era impossível saber se
estava acordado ou não.
— Está anotando ou o quê? Perguntou Lewis em voz
alta.
— Se quer notas, por que você não tira?
— Porque estou dirigindo. O combinado foi esse. Você
não quer dirigir, por isso escreve e tira as fotografias. Vá,
escreva qualquer coisa para podermos mostrar trabalho ao
Irving. Caso contrário ele escreve um um oitenta e um sobre
nós e esquece o Bosch.
— Diz-se um ponto oitenta e um. Não vamos começar
com atalhos, nem mesmo com a nossa linguagem.
— Vá se foder!
Clarke deu uma risadinha trocista e apanhou um bloco
de notas do bolso do paletó e uma caneta Cross de ouro do
bolso da camisa. Quando Lewis se certificou de que estava
tirando notas e voltou a olhar para o motel, viu um
adolescente com tranças louras passar duas vezes pela rua
numa moto amarela. O rapaz parou ao lado do carro onde
Lewis acabara de ver saírem Bosch e a mulher do FBI. O
rapaz fez uma pala com a mão por cima dos olhos e olhou
para dentro do carro pela janela do lado do motorista.
— O que é isto? Perguntou Lewis.
— Um fedelho qualquer, respondeu Clarke levantando
os olhos dos apontamentos. Anda à procura de um rádio
para roubar.
— Se ele avançar, o que faremos? Damos cabo da
vigilância para salvar a porcaria de um rádio do idiota?
— Não vamos fazer nada. E ele não vai avançar. Viu o
rádio Motorola. Sabe que é um carro da polícia. Já está se
afastando.
O rapaz acelerou a moto e deu mais duas voltas
completas pela rua. Enquanto a moto rodava, manteve os
olhos fixos na porta de entrada do motel. Depois atravessou
lentamente o parque de estacionamento e recuou outra vez
para a rua. Parou atrás de um velho ônibus Volkswagen que
estava estacionado no passeio e o escondia do motel.
Parecia estar observando a entrada do Chateau pelas
janelas do velho ônibus. Não reparou nos dois homens do
Departamento dos Assuntos Internos no carro estacionado
atrás dele, a meio quarteirão de distância.
— Vamos garoto se ponha a andar, disse Clark. — Não
quero me ver obrigado a chamar a polícia por sua causa. O
filho da puta do delinquente!
— Pegue a Nikon e tire uma fotografia, disse Lewis. —
Nunca se sabe. Pode acontecer qualquer coisa e talvez
precisemos dela. E, quando estiver fazendo isso, anote
também o número de telefone que está no letreiro do motel.
Vamos precisar telefonar depois para saber o que o Bosch e
a mulher do FBI estiveram fazendo.
Lewis podia ter apanhado com toda a facilidade a
máquina fotográfica que estava no assento e tirado as
fotografias, mas isso seria abrir um precedente perigoso
que podia prejudicar o equilíbrio delicado das regras da
vigilância. O motorista guia. O carona escreve e faz todo o
outro trabalho relacionado com isso. Clarke apanhou
obedientemente a máquina fotográfica, que estava
equipada com zoom, e tirou fotografias do rapaz da moto.
— Tire uma com a placa da moto, disse Lewis.
— Eu sei o que estou fazendo, respondeu Clarke,
pousando a máquina.
— Anotou o número do motel? Vamos precisar telefonar.
— Anotei. Está anotado. Está vendo? Qual é o
problema? Provavelmente, Bosch está comendo a mulher.
Uma bela mulher federal. Vai ver, quando telefonarmos,
vamos descobrir que eles alugaram um quarto. Lewis olhou
para ter a certeza que Clarke escrevia o número no registro
da vigilância.
— E talvez não, disse ele. — Acabaram de se conhecer.
E, de qualquer maneira, ele não é assim tão estúpido. Têm
de estar lá à procura de alguém. Uma testemunha talvez.
— Mas não havia nada a respeito de uma testemunha
na pasta.
— Ele guardou para si. O Bosch é assim mesmo. É assim
que ele trabalha. Clarke não disse nada. Lewis voltou a olhar
para o Chateau. Foi então que reparou que o rapaz tinha
desaparecido. Não havia sinal da moto.
Bosch esperou um minuto para dar tempo a que Eleanor
Wish chegasse ao fundo do Chateau para observar a porta
deslizante do quarto número 7. Inclinou-se, encostou o
ouvido à porta e julgou ouvir uns sussurros e uma ou outra
palavra murmurada. Havia alguém no quarto. Quando
chegou a altura, bateu com força na porta. Ouviu o barulho
de movimento do outro lado da porta, passos rápidos no
carpete, mas ninguém respondeu. Voltou a bater, esperou e
depois ouviu a voz de uma jovem.
— Quem é?
— Polícia, respondeu Bosch. — Queremos falar com
Sharkey.
— Não está aqui.
— Então acho que vamos falar consigo.
— Não sei onde ele está.
— Abra a porta.
Ouviu mais barulho, como se alguém andasse dando
encontrões na mobília. Mas ninguém abriu a porta. Depois
ouviu qualquer coisa rolando, uma porta de vidro deslizando
e abrindo. Meteu a chave na fechadura e abriu a porta a
tempo de apanhar um vislumbre de um homem saindo pela
porta de trás e saltar da varanda para o chão. Não era
Sharkey. Ouviu a voz de Eleanor Wish lá fora, mandando o
homem parar. Bosch fez um inventário rápido do quarto. Um
corredor de entrada com um armário à esquerda, o banheiro
à direita, ambos vazios, excetuando algumas peças de
roupa no chão. Duas camas duplas encostadas às paredes
opostas, uma cômoda com um espelho pendurado na
parede, um tapete amarelo acastanhado muito gasto em
volta das camas e no caminho para o banheiro. A jovem, de
cabelo louro, pequena, com cerca de dezessete anos,
estava sentada na borda de uma das camas com um lençol
enrolado à volta dela. Bosch conseguiu ver o contorno de
um mamilo comprimido contra o lençol encardido que,
outrora, tinha sido branco. O quarto cheirava a perfume
doce e barato.
— Bosch, está tudo bem aí dentro? Gritou Eleanor Wish
do lado de fora. Ele não a conseguia ver por causa de um
lençol pendurado como uma cortina na porta deslizante.
— Tudo bem. E você?
— OK. O que temos?
Bosch se dirigiu para a porta da varanda e olhou para
fora. Eleanor Wish estava de pé, atrás de um homem que
tinha os braços estendidos e as mãos na parede dos fundos
do motel. Devia andar pelos trinta anos, com a pele
amarelada de um homem que acabara de cumprir um mês
numa prisão do condado. As calças estavam abertas na
frente. A camisa xadrez estava mal abotoada. E olhava
fixamente para o chão com o olhar esbugalhado de um
homem que não tinha nenhuma explicação, mas que
precisava desesperadamente de uma. Bosch ficou
momentaneamente espantado pela escolha que o homem
aparentemente tinha feito, de vestir a camisa primeiro que
as calças.
— Ele está limpo, disse ela. — Mas parece um
bocadinho nervoso.
— Parece que temos aliciamento e sexo com uma
menor se quiser perder tempo com isso. Caso contrário,
solte-o. Voltou-se para a jovem sentada na cama. — Nada
de espertezas. Quantos anos você tem e quanto ele pagou?
Não estou aqui para prendê-la.
— Quase dezessete, respondeu ela num tom monótono,
carregado de aborrecimento. —Não me pagou nada. Ele
disse que pagaria, mas ainda não tinha chegado a isso.
— Quem comanda o seu bando? Sharkey? Ele nunca lhe
disse para receber primeiro o dinheiro?
— Sharkey não está sempre por perto. E como soube o
nome dele?
— Ouvi por aí. Onde ele foi hoje?
— Já disse, não sei. O homem da camisa xadrez entrou
pela porta da frente seguido por Eleanor Wish. Tinha as
mãos algemadas atrás das costas.
— Vou prendê-lo. Quero fazer isso. É nojento. Ela
parece...
— Ela me disse que tinha dezoito, disse o da camisa
xadrez.
Bosch se aproximou dele e abriu a camisa com um
dedo. Tinha uma águia com asas abertas no peito. Nas
garras trazia um punhal e uma cruz suástica. Por baixo dizia
UMA NAÇÃO. Bosch sabia que aquilo queria dizer a Nação
Ariana, o bando da supremacia branca das prisões. Soltou a
camisa deixando-a voltar ao lugar.
 
— Ei, há quanto tempo saiu? Perguntou.
— Ei, vá lá, meu, disse o da camisa de xadrez. — Isto é
uma armação. Ela me apanhou na rua. Deixe-me ao menos
colocar as calças. Isto é uma armação.
— Dê-me o meu dinheiro, filho da puta, disse a jovem.
Saltou da cama, o lençol caiu para o chão, e se atirou nua,
para os bolsos das calças do homem.
— Tirem-na de cima de mim! Tirem-na de cima de mim!
Gritou o homem se contorcendo para evitar as mãos dela.
— Estão vendo? Estão vendo? Ela é que devia ir presa e não
eu.
Bosch avançou, separou os dois e empurrou a jovem
para a cama. Colocou-se atrás do homem e disse para
Eleanor Wish:
— Dê-me as suas chaves.
Ela não se mexeu, por isso, ele colocou a mão no bolso
e tirou a chave dele. Uma serve para todas. Abriu as
algemas e empurrou o da Camisa de Xadrez até à porta da
frente. Abriu-a e empurrou-o para fora. O homem parou no
corredor para abotoar as calças o que deu a Bosch a
oportunidade de lhe pôr um pé no rabo e empurrar.
— Cai fora, disse ele enquanto o homem tropeçava pelo
corredor fora. — Este foi o seu dia de sorte!
A jovem estava outra vez enrolada no lençol sujo
quando Bosch voltou a entrar no quarto. Ele olhou para
Eleanor Wish e viu a raiva nos olhos dela. Sabia que não era
só por causa do homem da camisa de xadrez. Bosch olhou
para a jovem e disse:
— Apanhe a sua roupa, vá para o banheiro e se vista!
Quando ela não se mexeu, disse: — Se mexa!
Ela agarrou numas peças de roupa espalhadas pelo
chão ao pé da cama e se dirigiu para o banheiro, deixando o
lençol cair no chão. Bosch se virou para Eleanor Wish.
— Temos muitas coisas para fazer, começou ele. — Você
ia perder o resto da tarde colhendo o testemunho dela e
prendendo o tipo. A verdade é que é uma ofensa comum e
eu é que teria de prendê-lo. E uma dúvida; poderia ser
crime ou contravenção. E bastava uma olhada para o rosto
daquela jovem e o DA iria para a contravenção, se é que
chegaria mesmo a levar a coisa em frente. Não valia a pena
ter tanto trabalho. Aqui, a vida é assim, Agente Wish.
Ela olhou para ele com os olhos fervendo de raiva, os
mesmos olhos que ele tinha visto quando tinha lhe agarrado
o pulso para impedi-la de ir embora do restaurante.
— Bosch, eu tinha decidido que valia a pena. Nunca
mais me faça outra dessa.
Ficaram ali parados, olhando fixamente um para o
outro, tentando não dar parte de fracos até a jovem sair do
banheiro. Vestia uns jeans desbotados e rasgados nos
joelhos e um top preto. Estava descalça e Bosch reparou
que tinha as unhas pintadas de vermelho. Sentou-se na
cama sem dizer uma palavra.
— Precisamos encontrar o Sharkey, disse Bosch.
— Porquê? Tem um cigarro? Ele puxou do maço de
cigarros e sacudiu-o para ela tirar um. Deu-lhe um fósforo e
ela acendeu o cigarro sozinha. — Porquê? Perguntou ela
outra vez.
— Por causa de sábado à noite, disse Eleanor Wish
desabridamente. — Não queremos prendê-lo. Só queremos
fazer umas perguntas.
— E eu? Perguntou a jovem.
— E você o quê? Replicou Eleanor.
— Vão me criar problemas?
— Quer saber se vamos entregá-la à Divisão dos
Serviços da Juventude, não é? Perguntou Bosch. Olhou para
Eleanor Wish tentando avaliar a reação dela. Não conseguiu.
Disse: — Não, não vamos chamar a DSJ se nos ajudar. Como
se chama? O seu nome verdadeiro.
— Bettijane Felker.
— Muito bem, Belttijane, não sabe onde está o Sharkey?
A única coisa que queremos é falar com ele.
— Só sei que ele está trabalhando.
— O que quer dizer? Onde?
— Boytown. Provavelmente, está tratando de negócios
com o Arson e o Mojo.
— Esses são os outros membros do bando?
— Certo.
— A que lugar de Boytown é que eles disseram que
iam?
— Não disseram. Eles costumam é ir para os lugares
onde há gays, eu acho. Está entendendo?
A jovem não podia ou não queria ser mais explícita.
Bosch sabia que não interessava. Tinha os endereços dos
cartões dos interrogatórios e sabia que iria encontrar
Sharkey num lugar qualquer de Santa Monica Boulevard.
— Obrigado, disse ele à jovem e começou a se dirigir
para a porta.
Estava no meio do corredor quando Eleanor Wish saiu e
passou por ele com um passo acelerado e zangado. Antes
que ela dissesse qualquer coisa, ele parou num telefone
público no corredor que levava ao escritório. Agarrou numa
pequena agenda de telefones que trazia sempre consigo,
procurou o número da DSJ e discou-o. Puseram-no em
espera durante dois minutos enquanto uma telefonista
transferia a chamada para uma linha de gravação
automática aonde ele ditou a data, a hora e a localização de
Bettijane Felker, suspeita de ser uma fugitiva. Desligou
perguntando para consigo dali a quantos dias é que eles
iriam receber a mensagem e quantos dias depois disso é
que iriam apanhar Bettijane.
Já tinham entrado em West Hollywood na Santa Monica
Boulevard e ela ainda continuava furiosa. Bosch tinha
tentado se defender, mas compreendera que não havia
maneira de conseguir. Por isso, se deixou ficar sentado em
silêncio ouvindo.
— É uma questão de confiança, disse Eleanor Wish. —
Não me interessa se vamos trabalhar juntos durante muito
ou pouco tempo. Se você vai continuar com essa atitude
você fazer tudo e decidir tudo, nunca haverá a confiança de
que precisamos para sermos bem sucedidos.
Ele olhava fixamente para o espelho do lado do
passageiro, que tinha ajeitado de forma a poder ver o carro
que arrancara atrás deles e os vinha seguindo desde o Blue
Chateau. Tinha certeza que eram Lewis e Clarke. Tinha visto
o pescoço enorme e o cabelo à escovinha de Lewis atrás do
volante quando o carro tinha parado a três carros de
distância num semáforo. Não disse a Wish que estavam
sendo seguidos. E se ela tinha notado a perseguição, não
dissera nada. Estava demasiado envolvida noutras coisas.
Deixou-se ficar ali sentado, observando o carro e ouvindo as
queixas dela sobre a péssima maneira como ele tratara das
coisas. Por fim, disse:
— Meadows foi encontrado no domingo. Hoje já é terça-
feira. É um fato da vida nos homicídios que as
probabilidades, as hipóteses, de resolver um homicídio vão
se tornando cada vez menores à medida que os dias
passam. Por isso, peço desculpas. Não achei que iria nos
ajudar perder um dia detendo um idiota que provavelmente
foi aliciado a ir para um quarto de motel por uma prostituta
de dezesseis anos com a experiência de trinta. Também não
achei que valesse a pena esperar que a DYS viesse buscar a
jovem porque era capaz de apostar o meu ordenado em
como a DYS já sabe quem é a jovem e sabe onde está, se a
quiserem apanhar. Em resumo, queria continuar com isto,
deixar as outras pessoas fazerem o trabalho delas e eu
fazer o meu. E isso queria dizer fazer o que estamos
fazendo agora. Diminua ali, no Ragtime. É um dos lugares
que estava nos cartões.
— Ambos queremos resolver isto, Bosch. Por isso, raios
o partam, não seja tão estupidamente condescendente
como se você tivesse esta nobre missão e eu estivesse aqui
só pelo passeio. Estamos os dois metidos nisto. Não se
esqueça.
Diminuiu à frente da esplanada do café onde homens
aos pares estavam sentados nas cadeiras brancas de ferro
forjado das mesas de tampo de vidro, bebendo chá gelado
com rodelas de laranja presas na borda dos copos. Alguns
dos homens olharam para Bosch e depois desviaram o
olhar, desinteressados. Este varreu com o olhar a área do
salão de jantar, mas não viu Sharkey. Enquanto o carro
passava devagarinho, olhou para a rua lateral onde viu uns
quantos jovens que perambulavam por ali, sem fazerem
nada, mas eram demasiado velhos para ser o Sharkey.
Passaram os vinte minutos seguintes rodando pelos
bares e restaurantes gays, se mantendo quase sempre na
Santa Monica Boulevard, mas não viram o rapaz. Bosch ia
observando, reparando que os tipos dos Assuntos Internos
se mantinham no seu posto, nunca se distanciando mais do
que um quarteirão. Wish nunca disse uma palavra a
respeito deles, mas Bosch sabia que os agentes da
autoridade eram geralmente os últimos a notar que
estavam sendo seguidos, porque eram os últimos a pensar
que poderiam estar sendo vigiados. Eles eram os caçadores
e não as presas. Bosch tinha curiosidade em saber o que
Lewis e Clarke estavam fazendo. Estariam esperando que
ele infringisse alguma lei ou alguma regra da polícia com
uma agente do FBI? Começava a desconfiar que os dois
detetives dos Assuntos Internos estivessem apenas se
exibindo por conta própria. Vai ver, queriam que ele os
visse. Uma espécie de susto psicológico.
Disse a Eleanor Wish para encostar à calçada à frente
do Barneyos Beanery e saltou fora do carro para ir usar o
telefone público ao pé da porta do velho bar. Discou o
número da Divisão dos Assuntos Internos que conhecia de
cor, uma vez que, no ano anterior, tivera de telefonar para
lá duas vezes por dia, quando o tinham obrigado a ficar em
casa enquanto decorriam as investigações. Uma mulher, a
agente da recepção, atendeu ao telefone.
— O Lewis ou o Clarke andam por aí?
— Não senhor, não andam. Posso anotar algum recado?
— Não, obrigado. Uh... Aqui é o tenente Pounds, de
Hollywood. Voltam já para a sala ou demoram? Preciso
confirmar uma coisa com eles.
— Penso que eles estão em código sete até terminar o
turno da tarde. E desligou.
Não estavam de serviço até às quatro. Andavam
aprontando, ou então, desta vez, Bosch tinha dado um
pontapé com demasiada força nos tomates e eles andavam
atrás dele no tempo livre. Voltou para o carro e disse a
Eleanor Wish que telefonara para a sala dele para saber se
tinha mensagens. No momento em que estavam colocando
outra vez o carro no meio do trânsito, viu a moto amarela
encostada num parquímetro a cerca de meio quarteirão de
distância. Estava estacionada em frente de uma loja de
panquecas.
— Ali, disse ele apontando. — Passe devagarinho para
eu ver a placa. Era a moto de Sharkey. Bosch comparou a
placa com os apontamentos que tirara do arquivo do
CRASH. Mas não havia sinal do rapaz. Eleanor deu a volta ao
quarteirão e estacionou no mesmo lugar onde tinham
estado antes.
— Então, ficamos à espera, disse ela. — Deste garoto
que você acha que pode ser uma testemunha.
— Exatamente. É isso que eu penso. Mas não
precisamos perder tempo os dois. Pode me deixar aqui se
quiser. Eu vou para o restaurante e peço uma caneca de
Henryos e uma tigela de chili e controlo a coisa pela janela.
— Eu fico. Bosch se recostou se preparando para a
espera. Puxou os cigarros, mas ela atacou-o ainda antes
dele ter tirado o cigarro do maço.
— Já ouviu falar na avaliação do risco da inalação?
Perguntou ela.
— No quê?
— Fumar cigarro em segunda mão. É mortal, Bosch. A
EPA publicou isso no mês passado, oficialmente. Disse que
era cancerígeno. Três mil pessoas por ano contraem câncer
do pulmão pelo fumo passivo, como eles o chamam. Você
está se matando a si mesmo e a mim. Por favor, não fume.
Bosch voltou a enfiar o maço de cigarros no bolso do
casaco.
Ficaram calados enquanto observavam a moto, que
estava presa com uma corrente ao parquímetro. Bosch
espreitou umas quantas vezes para o espelho retrovisor,
mas não viu o carro da Divisão dos Assuntos Internos.
Também olhava para Eleanor Wish sempre que pensava que
ela não estava olhando. O Santa Monica Boulevard foi
enchendo de carros à medida que a hora do rush se
aproximava. Wish tinha a janela dela fechada para reduzir a
entrada do monóxido de carbono, o que fazia com que o
carro ficasse muito quente.
— Por que está sempre olhando para mim? Perguntou
ela depois de uma hora de vigilância.
— Para si? Não sabia que estava fazendo isso.
— Estava. Está. Alguma vez teve uma mulher como
parceira?
— Não. Mas não era isso que me faria olhar para si. Se é
que estava fazendo isso.
— Então o que é? Pois estava.
— Estava tentando compreendê-la. Porque está aqui,
fazendo isto. Sempre pensei, quero dizer, pelo menos foi o
que sempre ouvi, que a brigada dos bancos no FBI era para
os dinossauros e os fracassados, os agentes demasiado
velhos ou demasiado estúpidos para usarem um
computador ou conseguirem investigar os bens da
escumalha de colarinho branco através da papelada. Pronto,
aí tem. A divisão dos pesos mortos. Você não é um
dinossauro e alguma coisa me diz que não é uma
fracassada. Alguma coisa me diz que você é uma barra,
Eleanor. Ela ficou calada durante uns momentos e Bosch
julgou ver um leve sorriso brincando nos lábios. Depois
desapareceu, se é que tinha estado lá.
— Calculo que isso seja um elogio disfarçado. Se for,
muito obrigada. Tenho as minhas razões para escolher o
lugar onde estou no departamento. E, acredite, posso
escolher mesmo. Quanto aos outros na divisão, não os
caracterizaria como você fez. Acho que essa atitude, que, a
propósito, é partilhada por muitos dos seus colegas...
— Ali está o Sharkey, disse ele.
O rapaz de trancinhas louras tinha saído de um beco
lateral entre a loja de panquecas e um pequeno centro
comercial. Estava acompanhado por um homem mais velho.
Este trazia uma T-shirt que dizia “OS GAYS ESTÃO DE
VOLTA!” Bosch e Eleanor Wish ficaram no carro
observando. Sharkey e o homem trocaram algumas
palavras e depois Sharkey tirou qualquer coisa do bolso que
entregou ao homem. O homem abriu o que parecia ser um
baralho de cartas de jogar. Tirou umas quantas e devolveu
as restantes. Depois deu a Sharkey uma nota verde.
— O que ele está fazendo? Perguntou Eleanor.
— Comprando fotografias de crianças.
— O quê?
— Um pedófilo. O homem mais velho continuou pela
calçada abaixo e Sharkey se dirigiu para a moto. Dobrou-se
para a corrente e o cadeado.
— OK, vamos lá, disse Bosch e saíram os dois do carro.
“Aquilo já chegava para aquele dia”, pensou Sharkey.
Eram horas de recolher. Acendeu um cigarro e se inclinou
por cima do assento da moto para acionar a combinação de
segurança do cadeado Master. As tranças lhe caíram por
cima dos olhos e sentiu o cheiro do produto de óleo de coco
que tinha posto no cabelo na noite anterior em casa do tipo
do Jaguar. Fora depois de Arson ter partido o nariz do
homem e o sangue ter se espalhado por todo o lado.
Endireitou-se e ia começar a enrolar a corrente em volta da
cintura quando os viu se aproximar. Tiras. Estavam muito
perto. Demasiado tarde para fugir. Tentando agir como se
não os tivesse visto, fez uma lista mental de tudo o que
trazia nos bolsos. Os cartões de crédito já tinham sido
vendidos, o dinheiro podia ter vindo de qualquer lugar, tinha
até algum. Estava limpo. A única coisa que eles poderiam
conseguir era a identificação feita pela bicha se o pusessem
numa fila de identificação. Sharkey estava espantado por o
tipo ter feito queixa. Nunca ninguém o fizera. Sharkey sorriu
aos dois tiras que se aproximavam e o homem mostrou um
gravador de cassetes. Um gravador de cassetes? O que era
isto? O homem apertou num botão e, segundos depois,
Sharkey reconheceu a sua voz. De repente, notou do que se
tratava. Aquilo não tinha a ver com o cara do Jaguar. Era por
causa do cano.
— E então? Perguntou Sharkey.
— Então, disse o homem com o gravador, — Queremos
falar consigo a este respeito.
— Meu, eu não tive nada a ver com aquilo. Não vai me
pegar em... Hei! Você é o tipo da delegacia. Sim, o vi lá, na
noite passada. Bem, não vai conseguir que eu diga que fiz
aquela merda lá em cima.
— Acalme-se, Sharkey, disse o homem. — Sabemos que
não foi você. Só queremos saber o que viu, mais nada. Volte
a prender a moto. Nós o traremos outra vez para aqui.
O homem deu o nome dele e o da mulher. Bosch e Wish.
Disse que ela era do FBI, o que tornava tudo muito confuso.
O rapaz hesitou, depois se abaixou e voltou a prender a
moto. Bosch disse:
— Só queremos dar um passeiozinho até Wilcox para
realizar umas perguntas e se possível, fazer um desenho.
— Do quê? Perguntou Sharkey.
Bosch não respondeu; se limitou a fazer um gesto com a
mão, indicando que o acompanhasse e depois apontou para
um Caprice cinzento um pouco mais acima da rua. Era o
carro que Sharkey tinha visto à porta do Chateau. Enquanto
iam andando, Bosch manteve a mão no ombro de Sharkey.
Sharkey ainda não era tão alto como Bosch, mas tinha a
mesma constituição magra e rija. O rapaz vestia uma
camisa riscada vermelha e amarela. Tinha uns óculos
escuros pendurados no pescoço por um fio cor de laranja.
Pô-los enquanto se dirigiam para o Caprice.
— OK, Sharkey, disse Bosch quando chegaram ao carro.
— Sabe como é a norma. Temos de revistá-lo antes de
entrar no carro. Assim não vai ter de ir algemado durante a
viagem. Põe tudo em cima do capô.
— Porra, você disse que eu não era suspeito, protestou
Sharkey. — Não sou obrigado a fazer isto.
— Já disse, são as normas. Devolveremos tudo. Exceto
as fotografias. Isso nós não podemos fazer.
Sharkey olhou primeiro para Bosch, depois para Wish e
depois começou a colocar as mãos nos bolsos dos jeans
puídos.
— Sim, sabemos das fotografias, disse Bosch.
O rapaz pôs 46 dólares e 55 cêntimos em cima do capô,
juntamente com um maço de cigarros, uma carteira de
fósforos, um canivete pequeno preso numa corrente e um
conjunto de fotografias Polaroid. Eram fotografias de
Sharkey e dos outros membros do bando. Em todas elas, os
modelos estavam nus e em vários estágios de excitação
sexual. Enquanto Bosch as ia virando uma a uma, Eleanor
Wish espreitou por cima do ombro dele, mas desviou
rapidamente os olhos. Apanhou o maço de cigarros e
inspecionou-o, descobrindo um cigarro de maconha dentro
dele.
— Acho que também vamos ficar com isso, disse Bosch.
Seguiram para a delegacia em Wilcox porque era hora
do rush e teriam levado uma hora para chegar ao Edifício do
FBI em Westwood. Passava das seis quando chegaram à
sala dos detetives que estava deserta, visto que toda a
gente já tinha ido para casa. Bosch levou Sharkey para uma
das salas de interrogatório de dois metros e meio por dois
metros e meio. Havia uma mesa pequena cheia de
queimadelas de cigarro e três cadeiras na sala. Um letreiro
escrito à mão numa das paredes dizia: “NADA DE
CHORO!” Sentou Sharkey no escorrega, uma cadeira de
madeira com o assento muito encerado e cerca de meio
centímetro de madeira cortada de cada uma das pernas da
frente. A inclinação não era suficiente para se notar à vista
desarmada, mas era o suficiente para a pessoa que se
sentasse na cadeira se sentir desconfortável. Sentar-se-ia
para trás como acontecia com a maioria dos casos difíceis e
iria escorregando devagarinho para frente. A única coisa
que poderia fazer era se inclinar para frente, ficando com o
rosto quase colado ao do seu inquisidor. Bosch disse ao
rapaz para não se mexer dali e saiu da sala para combinar
uma estratégia com Eleanor Wish, fechando a porta atrás de
si. Ela abriu a porta logo a seguir dele tê-la fechado.
— É ilegal deixar um menor numa sala fechada sem
companhia, disse ela. Bosch fechou outra vez a porta.
— Ele não está se queixando, disse ele. — Precisamos
falar. O que acha dele? Quer ser você a tratar do assunto ou
quer que seja eu?
— Não sei, respondeu ela.
Aquilo resolvia a questão. Era um não. Uma entrevista
inicial com uma testemunha, uma testemunha relutante
ainda por cima, exigia uma mistura habilidosa de sacanice,
lisonja, exigência. Se ela não sabia, então não ia.
— Você é que tem fama de ser o perito dos
interrogatórios, disse ela num tom de voz que Bosch achou
trocista. — É o que diz no seu processo. Não sei se isso quer
dizer usar os miolos ou a força. Mas gostaria de ver como
faz. Ele assentiu com a cabeça, ignorando a alfinetada.
Meteu a mão no bolso e tirou os cigarros e os fósforos do
rapaz.
— Entre e lhe dê isto. Quero ir à minha mesa ver as
minhas mensagens e preparar uma gravação. Quando viu a
expressão do rosto dela ao ver os cigarros, acrescentou: —
Primeira regra dos interrogatórios: fazer com que o sujeito
se sinta confortável. Dê-lhe os cigarros. Contenha a
respiração se não gostar. Começou a se afastar, mas ela
perguntou:
— Bosch, o que ele estava fazendo com aquelas
fotografias? “Então era aquilo que a estava incomodando”,
pensou ele.
— Há cinco anos atrás, um garoto como ele teria ido
com aquele homem e teria feito se sabe lá o quê. Hoje em
dia, em vez disso, vende as fotografias. Há tantos
assassinos, doenças e coisas dessas que estes garotos
estão ficando mais espertos. É mais seguro vender as
fotografias do que vender a sua carne.
Ela abriu a porta da sala dos interrogatórios e entrou.
Bosch atravessou a sala da delegacia e foi ver o ferro
cromado em cima da sua mesa onde ficavam espetados os
recados. O advogado tinha finalmente retribuído a
chamada. O mesmo tinha acontecido com Bremmer do
Times, embora tivesse deixado o pseudônimo que tinham
combinado antes. Bosch não queria que ninguém que fosse
meter o nariz na sua mesa ficasse sabendo que a imprensa
telefonara. Bosch deixou as mensagens no ferro, apanhou
no seu cartão de identificação, se dirigiu para o armário do
equipamento e abriu a fechadura. Apanhou uma fita-cassete
nova de noventa minutos e colocou-a no gravador na
prateleira de baixo do armário. Ligou o aparelho para se
certificar que o cassete de backup estava funcionando.
Apertou o botão de gravar e verificou se os dois cassetes
estavam girando. Depois voltou a atravessar a sala até à
entrada e disse a um mensageiro gordo que estava sentado
lá para encomendar uma pizza para ser entregue na
delegacia. Deu ao garoto uma nota de dez dólares e disse
para levá-la à sala dos interrogatórios com três Coca-Colas
quando chegasse.
— O que quer nela? Perguntou o rapaz.
— Do que você gosta?
— Salsicha e pimentão. Odeio anchovas.
— Pois então peça de anchovas.
Bosch voltou para a sala dos detetives. Eleanor Wish e
Sharkey estavam calados quando ele entrou na pequena
sala de entrevistas e teve a sensação de que não deviam
ter conversado muito. Eleanor Wish não gostava do rapaz.
Estava sentada à direita de Sharkey. Bosch se sentou do
lado esquerdo. A única janela da sala era um vidro
espelhado na porta. Podia se olhar lá para dentro, mas não
se podia olhar para fora. Bosch decidiu ser frontal com o
rapaz logo de início. Ele era um garoto, mas provavelmente
era mais sensato do que a maioria dos homens que tinham
sentado no escorrega antes dele. Se entendesse que estava
sendo enganado, começaria a responder às perguntas com
monossílabos.
— Sharkey, vamos gravar isto porque nos poderá vir a
ser útil voltar a ouvir o que foi dito, disse Bosch. — Como já
se disse, não é suspeito, por isso, não precisa se preocupar
com o que disser a não ser, claro, que vá dizer que foi você
que fez.
— Está vendo o que eu queria dizer? Protestou o rapaz
— Eu sabia que ia acabar por dizer isso e que ia ficar na fita.
Merda, já estive numa sala destas, sabe?
— É por isso que não vamos enrolar. Ora vamos
começar isto duma vez para ficar registrado. Sou Harry
Bosch, Departamento da Polícia de LA, esta é Eleanor Wish,
FBI, e você é Edward Niese, também conhecido por Sharkey.
Quero começar por...
— Que merda é esta? Foi o presidente que foi arrastado
para dentro daquele cano? O que o FBI está fazendo aqui?
— Sharkey! Gritou Bosch. — Acalme-se. É só um
programa de intercâmbio. Como quando andava na escola e
vinham uns garotos da França ou qualquer coisa parecida.
Pense que ela veio da França. Está vendo e aprendendo com
os profissionais. Sorriu e piscou o olho a Eleanor. Sharkey
olhou para ela e também sorriu de leve. — Primeira
pergunta, Sharkey, vamos perguntar isto de uma vez para
podermos passar ao que interessa. Foi você que matou o
tipo no reservatório?
— Foda-se, não! Eu...
— Esperem um minuto, esperem um minuto,
interrompeu Eleanor Wish. Olhou para Bosch. — Podemos ir
lá fora só por um momento? Bosch se levantou e saiu. Ela
foi atrás dele e, desta vez, fechou a porta da sala atrás de
si.
— O que está fazendo? Perguntou Bosch.
— O que você está fazendo? Vai ler os direitos do
garoto, ou quer ferrar esta entrevista logo do princípio?
— O que está dizendo? Não foi ele. Ele não é suspeito.
Só estou lhe fazendo perguntas por que estou tentando
criar um padrão de entrevista.
— Não sabemos que ele não é o assassino. Acho que lhe
devíamos dizer quais são os seus direitos.
— Dizemos quais são os direitos e ele vai pensar que
julgamos que ele é um suspeito e não uma testemunha.
Fazemos isso e terminaremos falando para as paredes. Ele
não vai se lembrar de nada. Ela voltou para a sala de
interrogatórios sem dizer mais uma palavra. Bosch seguiu-a
e recomeçou onde tinha parado, sem dizer nada sobre os
direitos do rapaz.
— Matou o tipo no cano, Sharkey?
— Não, meu, nem pensar. Só o vi, mais nada. Já estava
morto. O rapaz olhou para a direita, para Wish ao dizer
aquilo. Depois se endireitou na cadeira.
— OK, Sharkey, disse Bosch. — A propósito, quantos
anos você tem? De onde é?
— Quase dezoito, meu, depois fico livre, respondeu o
rapaz olhando para Bosch. — A minha mãe mora em
Chatsworth, mas eu tento não viver com... Porra, já tem isso
tudo num dos seus livrinhos de apontamentos.
— É gay, Sharkey?
— Nem pensar, meu, respondeu o rapaz, olhando
duramente para Bosch. — Vendo-lhes fotografias, que
grande coisa, porra! Mas não sou um deles.
— Faz mais alguma coisa além de vender fotografias?
Rouba uns quantos quando tem oportunidade? Fica com a
grana? Quem é que vai apresentar queixa? Certo? Agora,
Sharkey voltou a olhar para Eleanor Wish e levantou uma
mão aberta.
— Não faço essas merdas. Pensei que íamos falar do
tipo morto.
— E vamos, Sharkey, disse Bosch. — Só quero ter uma
ideia de com quem estamos lidando, mais nada. Vamos
começar pelo princípio. Conte-nos a história. Mandei vir uma
pizza e há mais cigarros. Temos tempo.
— Não vai levar tempo nenhum. Não vi nada, só vi que
o corpo estava lá. Espero que não seja de anchovas.
Disse tudo aquilo olhando para Wish enquanto se
endireitava na cadeira. Tinha estabelecido um padrão em
que olhava para Bosch quando estava falando a verdade e
para Wish quando estava disfarçando ou mentindo
descaradamente. “Os trapaceiros representavam sempre
para as mulheres”, pensou Bosch.
— Sharkey, disse Bosch, — Se quiser podemos levá-lo
para Sylmar e você passa lá a noite. Podemos recomeçar de
manhã, talvez a sua memória já esteja um bocadinho...
— Estou preocupado com a minha moto. Podem roubá-
la.
— Esquece a moto, disse Bosch se inclinando para
frente de forma a invadir o espaço pessoal do rapaz. — Não
vamos paparicá-lo, Sharkey, ainda não nos contou nada.
Comece com a história e depois pensamos na moto.
— OK, OK. Vou contar tudo.
O rapaz estendeu a mão para os seus cigarros em cima
da mesa e Bosch se afastou e tirou um dos seus. Inclinar-se
para o rosto dele e depois se afastar era uma técnica que
Bosch aprendera durante aquilo que lhe parecia umas mil
horas nestas pequenas divisões. Incline-se para frente,
invada aqueles cinquenta centímetros que é todo deles, o
espaço deles. Afaste-se quando consegue aquilo que quer. É
subliminal. A maior parte do que se passa num
interrogatório da polícia não tem nada a ver com o que é
dito. É a interpretação, as nuances. E, por vezes, aquilo que
não é dito. Acendeu primeiro o cigarro de Sharkey. Eleanor
Wish se recostou na cadeira quando eles soltaram a fumaça
azul.
— Quer um cigarro, agente Wish? Perguntou Bosch. Ela
abanou a cabeça numa negativa. Bosch olhou para Sharkey
e trocaram um olhar cúmplice. Dizia: Eu e você. O rapaz
sorriu. Bosch fez um gesto com a cabeça para ele começar
a contar a sua história e ele começou. E que história.
— Às vezes vou até lá para dormir, disse Sharkey. —
Estão vendo? Quando não arranjo ninguém que me dê
algum dinheiro para pagar o quarto do motel, ou assim. Às
vezes, o quarto do motel do meu bando está muito cheio.
Tenho de sair de lá. Por isso vou até lá, durmo dentro do
cano. Na maior parte das noites, continua quente. Não é
mau. Bom, seja como for, era uma dessas noites. Por isso fui
até lá...
— Que horas eram? Perguntou Eleanor Wish. Bosch lhe
deu um olhar que dizia: “Calma, faça as perguntas depois
de a história ter terminado”. O rapaz estava se portando
bastante bem.
— Devia ser muito tarde, respondeu Sharkey. — Três,
quatro da manhã. Não tenho relógio. Bem, fui até lá. E
entrei no cano e vi o tipo que estava morto. Estava ali
deitado. Saí aqui para fora e fui embora. Não ia ficar ali com
um morto. Quando cheguei aqui embaixo, telefonei para
vocês, nove-um-um. Desviou o olhar de Wish para Bosch. —
E é tudo, disse ele. — Dão uma carona até à minha moto?
Ninguém respondeu, por isso, Sharkey acendeu outro
cigarro e se endireitou na cadeira.
— Isso foi uma linda história, Edward, mas nós
precisamos da história completa, disse Bosch. — E também
precisamos dela certa.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que parece feita por um retardado
mental, é isso que quero dizer. Como viu o corpo lá dentro?
— Tinha uma lanterna, explicou ele a Wish.
— Não, não tinha. Tinhas fósforos, encontramos um.
Bosch se inclinou para frente até ficar com o rosto a trinta
centímetros da do rapaz. — Sharkey, como é que julga que
soubemos que era você que telefonara? Acha que a
telefonista reconheceu a sua voz? “Ah, é o velho Sharkey. É
um bom rapaz, nos telefonou por causa de um cadáver”.
Pense Sharkey. Você assinou o seu nome... Ou pelo menos,
metade, no cano lá em cima. Tiramos as suas impressões
digitais de uma lata de tinta. E sabemos que só rastejou até
o meio do cano. Foi aí que se assustou e fugiu. Deixou um
rastro atrás de si.
Sharkey olhava em frente, os olhos ligeiramente
levantados para a janela espelho na porta.
— Sabia que o corpo lá estava antes de entrar. Viu
alguém arrastá-lo para dentro do cano, Sharkey. Agora olhe
para mim e conte a história verdadeira.
— Olhe, eu não vi o rosto de ninguém. Estava escuro,
meu, disse o rapaz a Bosch. Eleanor soltou um suspiro.
Bosch teve vontade de lhe dizer que, se ela achava que o
rapaz era uma perda de tempo, podia ir embora. — Eu
estava escondido, disse Sharkey. — Porque, tá vendo, no
princípio eu pensei que eles andavam atrás de mim ou
qualquer coisa. Não tive nada a ver com isto. Por que está
me arrastando para isto?
— Temos um homem morto, Edward. Temos de
descobrir por quê. Não estamos interessados em rostos.
Isso não interessa agora. Conte-nos o que viu mesmo e
depois deixa de estar metido nisto.
— Acaba mesmo?
— Acaba mesmo. Bosch voltou a se recostar e acendeu
o seu segundo cigarro.
— Bem, sim, eu estava lá em cima e ainda não estava
muito cansado, por isso fazia as minhas pinturas. Ouvi um
carro se aproximando. Uma merda. E o que era esquisito era
que o estava ouvindo antes de vê-lo. Porque o carro não
tinha as luzes acesas. Por isso, meu, me escondi nos
arbustos da colina ali ao lado, sabe, mesmo ao lado do
cano, mesmo no lugar onde eu escondo a moto enquanto
estou dormindo.
O rapaz estava ficando mais animado, usando as mãos,
abanando a cabeça e olhando quase só para Bosch.
— Merda, eu pensei que aqueles tipos vinham à minha
procura, como se alguém tivesse chamado os tiras por eu
estar pintando as minhas letras, ou qualquer coisa assim.
Por isso, me escondi. De fato, quando chegou lá um dos
tipos sai do carro e diz ao outro que cheira a tinta. Mas
afinal nem sequer me viram. Só pararam ao pé do cano por
causa do cadáver. E também não era um carro. Era um jipe.
— Memorizou a placa? Perguntou Eleanor.
— Não, porra, eu não guardei a placa. Merda, ele tinha
as luzes apagadas e estava muito escuro. Bom, de qualquer
maneira, eles eram três, se contarmos com o morto. Um dos
tipos sai do carro, era o motorista, e puxa o tipo morto para
fora da parte de trás do carro, puxa-o de debaixo de um
cobertor ou qualquer coisa assim. Abriu uma portinha nos
fundos que esses jipes têm e arrastou-o para o chão. Era um
pavor. Eu vi perfeitamente que era verdadeiro, sabe, um
tipo morto a sério. Caiu ao chão ao pé da parede. Como um
morto. Fez um barulho como um corpo. Não foi como na TV.
Como quando eles dizem qualquer coisa como: “Oh, é um
cadáver que ele está arrastando para fora”. Depois ele
arrastou-o para dentro do cano. O outro tipo não o ajudou.
Ficou no jipe. Por isso, o primeiro fez tudo sozinho.
Sharkey deu uma grande tragada no cigarro e depois o
apagou no cinzeiro de lata, que já estava cheio de cinza e
de beatas velhas. Jogou a fumaça pelo nariz e olhou para
Bosch que fez sinal com a cabeça para ele continuar. O
rapaz se endireitou na cadeira.
 
— Eu continuei ali e o tipo saiu do cano um minuto
depois. Não foi mais do que isso. Olhou em volta quando
saiu, mas não me viu. Foi até a um arbusto próximo do lugar
onde eu estava escondido e arrancou um ramo. E depois
voltou para dentro do tubo durante um tempo. Conseguia
ouvi-lo lá dentro varrendo ou qualquer coisa assim com o
ramo. Depois ele voltou a sai e foram embora. Aí, o carro
começou a andar para trás e a luz da marcha a ré acendeu,
tá vendo. Ele mudou logo de marcha, muito depressa. Então
eu o ouvi dizer qualquer coisa sobre não poderem ir de
marcha a ré por causa da luz. Podiam ser vistos. Por isso,
avançaram, para frente, tá vendo, sem luzes. Desceram a
estrada, passaram o reservatório e deram a volta ao outro
lado do lago. Quando passaram por aquela casinha ao pé do
reservatório, quebraram a lâmpada. Vi-a se apagar.
Continuei escondido até deixar de ouvir o motor por
completo. Depois saí. Sharkey interrompeu a história por
uns instantes e Eleanor disse:
— Desculpem, podemos abrir a porta um bocadinho,
para fazer sair um pouco da fumaça?
Bosch estendeu o braço e abriu a porta sem se levantar
ou tentar esconder o aborrecimento.
— Vá, Sharkey, continue, foi tudo o que disse.
— Então, depois deles terem ido embora fui até o cano
e chamei pelo tipo. Sabe, do gênero: “Ei, aí dentro” e “Está
bem?”, coisas dessas. Mas ninguém respondeu. Por isso,
deitei a moto no chão de forma a poder entrar luz e rastejei
para dentro um bocadinho. Também acendi um fósforo,
como disseram. E consegui vê-lo e ele me pareceu bem
morto. Eu ia verificar, mas estava demasiado arrepiado. Saí.
Desci a colina e telefonei para os tiras. Foi tudo o que fiz, e
não há mais nada.
Bosch calculou que o rapaz ia roubar o cadáver, mas
tinha se assustado no meio do caminho. Mas não tinha
importância. O rapaz podia guardar esse segredo. Depois
pensou no ramo arrancado do arbusto e utilizado pelo
homem para limpar os rastros e todos os vestígios dentro do
cano. Perguntou para consigo mesmo porque os policiais
fardados não tinham reparado nem no ramo, nem no
arbusto quebrado durante a busca na cena do crime. Mas
não por muito tempo porque já sabia a resposta.
Desmazelo. Preguiça. Não era a primeira vez que havia
coisas que escapavam e não ia ser a última.
— Vamos saber da pizza, disse Bosch, pondo-se de pé.
— Só demoramos uns minutos.
Fora da sala dos interrogatórios, Bosch controlou a fúria
que sentia e disse:
— A culpa foi minha. Devíamos ter conversado mais
sobre a maneira como queríamos fazer isto antes de
ouvirmos a história dele. Eu gosto de primeiro ouvir o que
eles têm para dizer e só depois fazer perguntas. A culpa foi
minha.
— Não há problema, disse Eleanor secamente. — De
qualquer maneira, ele não parece ser assim tão valioso.
— Talvez. Pensou um bocadinho. — Estava pensando em
voltar lá para dentro e falar mais um pouco com ele, talvez
até ir buscar um livro de fotografias para identificação. E se
ele não começar a ficar melhor da memória, podíamos
hipnotiza-lo. Bosch não tinha maneira de saber qual iria ser
a reação dela à última sugestão. Fê-la de uma forma
descontraída, com alguma esperança de que passasse
despercebida. Os tribunais da Califórnia tinham deliberado
que hipnotizar uma testemunha invalida o testemunho
posterior dessa testemunha no tribunal. Se hipnotizassem
Sharkey, ele nunca poderia ser testemunha em qualquer
processo que pudesse resultar da investigação Meadows.
Eleanor Wish franziu o sobrolho.
— Eu sei, disse Bosch. Perdíamo-lo para o tribunal. Mas
podemos nunca conseguir chegar ao tribunal com o que ele
nos deu agora. Como você acabou de dizer, ele não é assim
tão valioso.
— Só não sei se devemos prescindir já da sua utilidade.
Afinal, ainda estamos no início da investigação.
Bosch se aproximou da porta da sala dos interrogatórios
e olhou para o rapaz através do vidro que só funcionava
para um lado. O rapaz estava fumando outro cigarro.
Pousou-o no cinzeiro e se levantou. Olhou para a janela da
porta, mas Bosch sabia que ele não podia olhar para fora.
Muito rápida e silenciosamente, o rapaz trocou a sua
cadeira com a que Wish estivera utilizando. Bosch sorriu e
disse:
— É um garoto esperto. É capaz de haver ali mais coisas
que não vamos conseguir descobrir se não o hipnotizarmos.
Acho que vale a pena correr o risco.
— Não sabia que você era um dos hipnotizadores do
Departamento da Polícia de Los Angeles. Deve ter me
escapado isso no seu processo.
— Tenho certeza que deve ter havido muita coisa que
lhe escapou, replicou Bosch. Passados uns instantes,
acrescentou: — Suponho que sou um dos últimos que ainda
andam por aqui. Depois de o Supremo Tribunal ter fechado
essa porta, o Departamento desistiu de treinar gente. Só
havia uma turma. Eu era dos mais novos. A maior parte dos
outros já se reformou.
— Seja como for, disse ela, — Não me parece que
devemos fazer isso agora. Vamos conversar com ele mais
um pouco, esperar uns dois dias, antes de desperdiçá-lo
como testemunha.
— Muito bem. Mas daqui a uns dois dias, quem sabe o
acontecerá com um garoto como o Sharkey?
— Oh, mas você está cheio de recursos. Descobriu-o
desta vez. Pode tornar a fazê-lo.
— Quer fazer alguma pergunta lá dentro?
— Não, você está se saindo muito bem. Desde que eu
possa me intrometer sempre que me lembrar de qualquer
coisa... Ela sorriu, ele sorriu e voltaram para a sala dos
interrogatórios que cheirava a suor e a cigarros. Bosch
deixou a porta aberta para arejar. Não foi preciso ela pedir.
— Não há comida? Perguntou Sharkey.
— Ainda está caminho, respondeu Bosch.
Bosch e Wish fizeram Sharkey repetir a história mais
duas vezes, apanhando, aqui e ali, mais uns pormenores
insignificantes. Fizeram-no em equipe. Parceiros, trocando
olhares, acenos sub-reptícios, e até mesmo sorrisos. Bosch
reparou que Wish escorregava algumas vezes na cadeira e
pensou ver um sorriso no rosto infantil de Sharkey. Quando
a pizza chegou, Sharkey protestou por causa das anchovas,
mas, mesmo assim, comeu três quartos da pizza e bebeu
duas das coca-colas. Bosch e Eleanor Wish se abstiveram.
Sharkey disse que o jipe em que o corpo de Meadows fora
transportado era branco sujo ou bege. Disse também que
havia um distintivo na porta do lado, mas não conseguiu
identificar. “Talvez aquilo fosse para parecer um veículo da
DWP”, pensou Bosch. Talvez fosse um veículo da DWP.
Agora é que ele estava mesmo convencido que queria
hipnotizar o rapaz, mas decidiu não voltar a mencionar o
assunto. Esperaria que Eleanor visse por si própria que
tinham de fazê-lo. Sharkey disse que quem ficara no jipe
enquanto o corpo era arrastado para dentro do cano, não
dissera uma palavra durante todo o tempo em que ele
observara. Esta pessoa era menor que o motorista. Sharkey
descreveu ter visto apenas um vulto pouco corpulento, uma
silhueta vaga recortada pelo tênue luar que pairava por
cima do denso pinhalzinho do perímetro do reservatório.
— O que esse outro tipo fez? Perguntou Eleanor Wish.
— Só olhou, acho eu. Como um vigia. Nem sequer
dirigia. Acho que devia ser quem mandava ou coisa assim.
O rapaz tinha conseguido ver melhor o motorista, mas
não o suficiente para descrever o rosto ou fazer um desenho
com os modelos de rostos do kit de identificação que Bosch
tinha trazido para a sala. O motorista tinha cabelo escuro e
era branco. Sharkey não conseguia, ou não queria, ser mais
exato na descrição. Vestia calças e casaco da mesma cor,
talvez um macacão. Sharkey disse que ele também trazia
uma espécie de cinto de equipamento ou avental de
sapateiro. Os bolsos escuros para as ferramentas pendiam
vazios nas ancas e se agitavam como um avental na
cintura. Bosch achou aquilo curioso e fizeram várias
perguntas a Sharkey, partindo de ângulos diferentes, mas
sem conseguir uma descrição melhor. Uma hora depois
tinham terminado. Deixaram Sharkey na sala cheia de
fumaça enquanto conferenciavam lá fora. Eleanor Wish
disse:
— Agora a única coisa que temos a fazer é descobrir um
jipe com um cobertor na parte de trás. Fazer uma
microanálise e comparar os cabelos. O problema é que deve
haver uns dois milhões de jipes brancos ou beges neste
estado. Quer que eu faça um BOLO ou quer ser você a tratar
disso?
— Olhe, há duas horas não tínhamos nada. Agora já
temos muita coisa. Se quiser, me deixe hipnotizar o rapaz.
Quem sabe, pode ser que consigamos o número da placa,
uma descrição melhor do motorista. Talvez ele se lembre de
um nome que tenha sido dito, ou consiga descrever o
emblema da porta. Bosch estendeu as mãos com as palmas
voltadas para cima. A sua oferta estava à disposição, mas
ela já a tinha recusado anteriormente. E voltou a fazê-lo.
— Ainda não, Bosch. Deixe-me falar com Rourke. Talvez
amanhã. Não quero me precipitar para uma coisa que pode
vir a se mostrar um erro. OK? Ele assentiu e deixou cair às
mãos. — E agora? Perguntou ela.
— Bem, o garoto já comeu. Por que não o levamos e
depois você e eu vamos comer qualquer coisa. Há um
lugar...
— Não posso, disse ela.
— ... Em Overland que eu conheço.
— Já tenho planos para esta noite. Pena. Talvez possa
ficar para outra noite.
— Claro.
Dirigiu-se para a porta da sala dos interrogatórios e
olhou pelo vidro. Tudo para evitar mostrar o rosto. Sentia-se
estúpido por ter avançado tão depressa com ela. Disse:
— Se tiver de ir embora, vá. Eu levo-o para um abrigo
ou qualquer coisa dessas para passar a noite. Não é preciso
os dois perderem tempo com isto.
— Tem certeza?
— Sim, eu tomo conta dele. Arranjo um carro patrulha
que nos leve. No caminho, vamos buscar a moto. Depois,
eles me levam ao meu carro.
— Isso é simpático. Quero dizer, ir buscar a moto e
tomar conta dele.
— Bem, fizemos uma combinação com ele, lembra?
— Lembro. Mas você se interessa por ele. Vi como o
tratava. Vê nele alguma coisa de si? Ele virou o rosto para
olhar para ela.
— Não, não especialmente, disse ele. — Ele não passa
de mais uma testemunha que tem de ser entrevistada. Você
acha que agora ele é um filho da mãe. Espere até ele ter
dezoito ou dezenove, se chegar lá. Nessa altura vai ser um
monstro. Vivendo à custa das pessoas. Esta não vai ser a
última vez que ele vai estar sentado naquela sala. Vai
passar a vida toda entrando e saindo daqui até que mate
alguém ou alguém mate a ele. É a lei de Darwin: a
sobrevivência dos mais aptos. E ele está apto a sobreviver.
Por isso, não, não me interesso por ele. Vou metê-lo num
abrigo porque quero saber onde é que ele estará caso
precisarmos dele. Mais nada.
— Um belo discurso, mas não acredito. Já o conheço um
bocadinho, Bosch. Você se interessa, se interessa mesmo. A
maneira como arranjou o jantar e lhe perguntou...
— Olhe, não me interessa quantas vezes leu o meu
processo. Você acha que isso quer dizer que me conhece? Já
lhe disse, são tudo mentiras.
Tinha se aproximado dela, até o rosto ficar a apenas
trinta centímetros do dela. Mas ela desviou os olhos dele,
baixando-os para o caderno de notas, como se o que ela
tinha escrito lá tivesse alguma coisa a ver com o que ele
estava dizendo.
— Olhe, continuou ele, — Nós podemos trabalhar juntos
nisto, vai ver até conseguimos descobrir quem matou
Meadows, se tivermos mais como este garoto de hoje. Mas
nunca seremos parceiros a sério e nunca nos conheceremos
um ao outro. Por isso, vai ver, não devemos agir como se
fôssemos. Não me fale do seu irmãozinho mais novo com o
cabelo à escovinha e de como ele se parece comigo noutros
tempos, porque não sabe como eu era. Um monte de papéis
e de fotografias de um arquivo não dizem nada sobre mim.
Ela fechou o caderno de notas e colocou-o na bolsa.
Finalmente, levantou os olhos para fitá-lo. Ouviu-se bater à
porta do lado de dentro da sala de interrogatórios. Sharkey
estava olhando para si próprio na janela espelhada da porta.
Mas ambos o ignoraram e Eleanor Wish se limitou a
perscrutar Bosch com o olhar.
— Você fica sempre assim quando uma mulher se
recusa a jantar consigo? Perguntou calmamente.
— Não tem nada a ver uma coisa com a outra e você
sabe muito bem.
— Claro. Eu sei. Começou a se afastar e depois disse: —
Ficamos assim, então. Amanhã as nove nos encontraremos
no departamento?
Ele não respondeu e ela foi embora em direção à sala
da delegacia. Sharkey voltou a bater na porta, Bosch olhou
lá para dentro e viu o rapaz espremendo as borbulhas da
acne no espelho da porta. Eleanor se voltou para trás mais
uma vez antes de sair.
— Não estava falando do meu irmãozinho mais novo,
disse ela. — Ele era o meu irmão mais velho. E eu estava
falando de há muito tempo. Do ar dele quando eu era
pequena e ele ia embora por algum tempo, para o Vietnam.
Bosch não olhou para ela. Não foi capaz. Sentiu o que vinha
a seguir. — Lembro-me do rosto dele nessa altura,
continuou ela, — Porque foi a última vez que o vi. É uma
coisa que fica conosco. Ele foi um dos que não voltou. E
saiu.
Harry comeu a última fatia de pizza. Estava fria, ele
detestava anchovas e achou que era aquilo mesmo que
merecia. A mesma coisa com a coca-cola que estava
quente. A seguir, se sentou à mesa na seção dos homicídios
e fez vários telefonemas até descobrir uma cama vazia, ou
melhor, um espaço vazio, num dos abrigos onde não se
faziam perguntas, próximo do Boulevard. No Home Street
Home não tentavam mandar os fugitivos para o lugar de
onde tinham vindo. Sabiam que, na maior parte dos casos, a
casa era um pesadelo pior do que as ruas. Davam às
crianças um lugar seguro para dormir e depois tentavam
mandá-las para qualquer lugar que não fosse Hollywood.
Requisitou um carro sem identificação e levou Sharkey até à
moto. Não cabia no bagageiro, por isso, Bosch fez uma
combinação com o rapaz. Sharkey iria na moto até ao
abrigo e Bosch seguia-o de carro. Quando o rapaz chegasse
lá e se inscrevesse, Bosch lhe devolvia o dinheiro, a carteira
e os cigarros. Mas não as Polaroides nem a maconha. Esses
iam para o lixo. Sharkey não gostou, mas obedeceu. Bosch
lhe disse para ficar no abrigo durante uns dias, embora
soubesse que, provavelmente, o rapaz ia embora logo de
manhã.
— Encontrei-o uma vez. Se precisar, posso voltar a
encontrá-lo, disse ele enquanto o rapaz prendia a moto do
lado de fora da casa.
— Eu sei, eu sei, respondeu Sharkey.
Era uma ameaça vã. Bosch sabia que só encontraria o
rapaz quando ele não soubesse que andavam à procura
dele. Seria uma história muito diferente se ele quisesse se
esconder. Bosch lhe entregou um dos seus cartões baratos e
disse para telefonar se se lembrasse de alguma coisa que
pudesse ajudar.
— Que possa ajudar a quem? A mim ou a você?
Perguntou Sharkey.
Bosch não respondeu. Voltou a entrar no carro e
retornou para a delegacia em Wilcox, prestando atenção no
retrovisor para ver se era seguido. Não viu ninguém. Depois
de ter devolvido o carro, foi à sua mesa e apanhou os
arquivos do FBI. Dirigiu-se até a sala do oficial de serviço
onde o tenente chamou uma das suas patrulhas para dar
uma carona para Bosch até o Federal Building. O agente da
patrulha era um jovem policial com um corte de cabelo
curtíssimo. Asiático. Bosch tinha ouvido na delegacia que se
chamava Gung Ho. Seguiram em silêncio durante os vinte
minutos que levaram até ao Federal Building.
Harry chegou em casa às nove. A luz vermelha do
telefone estava piscando, mas não havia mensagens. Ligou
o rádio para ouvir o relato do jogo dos Dodgers, mas voltou
a desligá-lo cansado de ouvir pessoas falando. Em vez
disso, pôs uns CDs de Sonny Rollins, Frank Morgan e
Branford Marsalis no leitor e preferiu ouvir saxofone.
Espalhou os dossiês em cima da mesa da sala de jantar e
destampou uma garrafa de cerveja. “Álcool e jazz”, ele
pensou, enquanto engolia. Dormir vestido. “É mesmo o
clichê do tira, Bosch”. Um livro aberto. É igualzinho a todos
os outros idiotas que devem se atirar a ela todos os dias.
Dedica-se apenas ao assunto que tem à sua frente. E não
espere nada mais. Abriu o dossiê sobre Meadows, lendo
atentamente todas as páginas, ao passo que, no carro com
Wish, tinha se limitado a dar uma vista de olhos.
Meadows era um enigma para Bosch. Um viciado em
comprimidos, um consumidor de heroína, mas um soldado
que tinha voltado a se alistar para continuar no Vietnam.
Mesmo depois de o terem tirado dos túneis, ele ficou. Em
1970, depois de dois anos de túneis, fora colocado numa
unidade da polícia militar ligada à Embaixada Americana em
Saigon. Nunca mais tinha visto o inimigo em ação, mas
ficara até ao fim. Depois do tratado e da retirada, em 1973,
fora desmobilizado e voltara a ficar, desta vez como um dos
conselheiros civis ligados a embaixada. Toda a gente estava
voltando para casa, exceto Meadows. Só partiu em 30 de
Abril de 1975, o dia da queda de Saigon. Estava num
helicóptero e depois num avião transportando refugiados
para fora do país, a caminho dos Estados Unidos. Foi a sua
última missão governamental: segurança no transporte em
massa dos refugiados para as Filipinas e depois para os
Estados Unidos. De acordo com os registros, Meadows ficou
na Califórnia depois de ter voltado. Mas as suas aptidões
estavam limitadas à polícia militar, assassino dos túneis e
traficante de drogas. Havia uma candidatura à polícia de Los
Angeles no dossiê, mas estava assinalada como recusada.
Tinha sido pego nos testes de droga.
A seguir, constava uma folha do Computador das
Informações Criminais Nacionais com todo o registro de
Meadows. A primeira vez que o prenderam, por posse de
heroína, fora em 1978. Liberdade condicional. No ano
seguinte, foi outra vez preso, desta vez por posse com
intenção de venda. Confessou-se culpado da posse apenas
e pegou dezoito meses em Wayside Honor. Cumpriu dez. Os
dois anos seguintes foram marcados por detenções
frequentes por acusações de abuso sendo marcas frescas
de agulhas um delito para sessenta dias na cadeia. Parecia
que Meadows não saiu da porta giratória da cadeia do
condado até 1981, quando ficou detido por um período de
tempo maior. Por tentativa de assalto, um crime federal. A
folha do NCIC não dizia se fora por assalto a banco, mas
Bosch calculou que devia ter sido para envolver os federais.
A folha dizia que Meadows fora condenado há quatro anos
em Lompoc e cumprira dois.
Saíra há poucos meses quando foi outra vez apanhado
por assalto a banco. Deviam tê-lo assustado. Confessou-se
culpado e voltou para mais cinco anos em Lompoc. Teria
saído após três anos, mas dois anos depois da sentença fora
apanhado numa tentativa de evasão. Pegou mais cinco anos
e foi transferido para Terminal Island. Meadows saiu da TI
em liberdade condicional em 1988. “Todos aqueles anos na
prisão”, pensou Bosch. Nunca soubera dele. O que teria
feito se soubesse? Pensou durante um tempo.
Provavelmente, aquilo tinha mudado Meadows mais do que
a própria guerra. Saíra em liberdade condicional para uma
casa de apoio para veteranos do Vietnam. Era um lugar
chamado Charlie Company e ficava num rancho ao norte de
Ventura, a cerca de sessenta e cinco quilômetros de Los
Angeles. Ficou lá quase um ano.
Depois disso, não havia registros de mais contatos,
segundo a folha. As acusações de posse de droga que
tinham feito com que Meadows tivesse telefonado para
Bosch um ano antes, não estavam registradas. Não havia
mais nenhuma folha. Não havia mais nenhum contato
conhecido com a polícia desde que saíra da prisão. Havia
mais uma folha no processo. Esta estava escrita à mão e
Bosch calculou que devia ser a letra clara e legível de Wish.
Era uma história dos empregos e endereços. Colecionadas
das pesquisas dos registros da Seguridade Social e dos
registros da DGV, as entradas desciam verticalmente do
lado esquerdo do papel. Mas havia espaços em branco.
Períodos de tempo não justificados. Meadows trabalhara
para os serviços de abastecimento de água da Califórnia
quando voltara do Vietnam. Fora inspetor dos dutos. Perdeu
o emprego seis meses depois por atrasos excessivos e
demasiadas faltas por doença. Depois disso, deve ter
tentado traficar heroína porque o emprego legal seguinte só
estava registrado depois de ele ter saído de Wayside em
1979. Foi trabalhar para a DWP como inspetor dos
subterrâneos na divisão dos dutos de recolhimento das
águas pluviais. Perdeu o emprego seis meses depois pelas
mesmas razões do da companhia das águas. Seguiam-se
alguns outros empregos esporádicos. Depois de ter saído da
Charlie Company fora trabalhar para uma companhia de
minas de ouro na Santa Clarita Valley durante alguns
meses. E nada mais.
Havia cerca de uma dúzia de endereços registrados. A
maior parte era de apartamentos em Hollywood. Havia uma
casa em San Pedro antes de ter sido preso em 1979. “Se
estivesse traficando nessa altura, provavelmente obtinha a
droga no porto de Long Beach”, pensou Bosch. O endereço
de San Pedro teria sido útil. Bosch também ficou sabendo
que ele morara no apartamento de Sepúlveda desde que
saíra da Charlie Company. Não havia nada no arquivo sobre
a casa de apoio ou sobre o que Meadows fizera lá. Bosch
descobriu o nome do agente da liberdade condicional de
Meadows na cópia dos seus relatórios de avaliação no final
dos seis meses. Daryl Slater e trabalhava em Van Nuys.
Bosch tomou nota no caderno de apontamentos. Também
escreveu o endereço da Charlie Company. Depois espalhou
a folha das prisões, a história dos empregos, dos endereços
e os relatórios da liberdade condicional à frente dele. Numa
folha de papel, começou a escrever uma cronologia,
começando com Meadows sendo enviado para a prisão
federal em 1981.
Quando acabou, muitos dos espaços em branco
estavam preenchidos. Meadows cumprira um total de seis
anos e meio na prisão federal. Saíra em liberdade
condicional no princípio de 1988, quando entrara para o
programa da Charlie Company. Passara dez meses no
programa antes de se mudar para o apartamento em
Sepúlveda. Os relatórios da condicional mostravam que ele
conseguira emprego na mina de ouro da Santa Clarita
Valley. Terminara a condicional em 1989 e largara o
emprego no dia seguinte, ao o responsável pela liberdade
condicional assinar os papéis. Não voltara a conseguir
nenhum emprego desde essa data, de acordo com a
Administração da Seguridade Social. O IR dizia que
Meadows não entregara nenhuma declaração desde 1988.
Bosch foi à cozinha, tirou uma cerveja da geladeira e fez um
sanduíche de salame e queijo. Ficou em pé, junto do lava-
louça, comendo e bebendo, tentando organizar
mentalmente as coisas relativas ao caso. Estava convencido
que Meadows andara planejando o golpe desde que saíra da
TI ou, pelo menos, desde que saíra da Charlie Company.
Tinha um plano. Trabalhou em empregos legítimos até
acabar o período de liberdade condicional. Depois, se
despediu e o plano entrou em ação. Bosch tinha certeza
disso. E achava que era, por conseguinte, provável, que
tivesse sido ou na prisão ou na casa de apoio que Meadows
tinha se juntado aos homens que assaltaram o banco com
ele. E que o mataram.
Tocaram a campainha. Bosch olhou para o relógio e viu
que eram onze horas. Dirigiu-se à porta e olhou pelo óculo e
viu Eleanor Wish olhando para ele. Recuou, deu uma
olhadela ao espelho no hall de entrada e viu um homem
com cabelo escuro e olhos cansados olhando para ele.
Passou a mão pelo cabelo e abriu a porta.
— Olá, disse ela. — Trégua?
— Trégua. Como é que sabia onde... Bem, não interessa.
Entre.
Ela vestia a mesma roupa, ainda não tinha ido para
casa. Bosch notou que ela notara os arquivos e papéis
espalhados na mesa.
— Estava fazendo serão, disse ele. — Verificando umas
coisas no dossiê de Meadows.
— Ótimo. Um... Estava aqui perto e só queria... Só vim
aqui para dizer que... Bom, tem sido uma semana terrível
até agora. Para os dois. Talvez amanhã possamos
recomeçar esta parceria.
— Sim, disse ele. — E, escute, peço desculpas pelo que
disse há pouco... E lamento muito o que aconteceu ao seu
irmão. Você estava tentando dizer uma coisa simpática e
eu... Pode ficar um bocadinho, beber uma cerveja?
Dirigiu-se à cozinha e foi buscar duas garrafas geladas.
Entregou-lhe uma e fê-la passar pela porta de correr até á
varanda. Estava fresco, mas de vez em quando soprava um
vento quente que vinha do lado escuro do desfiladeiro.
Eleanor Wish olhou para as luzes do Valley. Os holofotes da
Universal City varriam o céu num padrão repetitivo.
— Isto é muito bonito, disse ela. — Nunca estive numa
casa destas antes. Deve ser assustador durante um tremor
de terra.
— É assustador quando passa o caminhão do lixo.
— Então como é que veio parar num lugar destes?
— Umas pessoas, daquelas lá em baixo com os
holofotes, me deram um monte de dinheiro para usarem o
meu nome naquilo que chamaram de “conselhos técnicos”
para um programa de televisão. E eu não tinha mais nada a
fazer com ele. Quando era garoto e vivia no Valley, sempre
pensara em como seria morar numa casa destas. Por isso,
comprei-a. Pertencia a um roteirista de cinema. Era aqui que
ele trabalhava. É muito pequena. Só tem um quarto com
cama. Mas acho que nunca vou precisar de mais.
Ela se encostou à balaustrada e, percorrendo a encosta
com o olhar, fixou-o no arroio. Na escuridão, só havia o
contorno do bosque de carvalhos lá em baixo. Ele também
se encostou e, distraidamente, começou a descascar
pedacinhos da prata dourada do rótulo da cerveja e a jogá-
los fora. O ouro cintilava na escuridão ao flutuar para longe
dos olhos.
— Tenho perguntas para fazer, disse ele. — Quero ir a
Ventura.
— Podemos falar disso amanhã? Não vim aqui para
trabalhar nos arquivos. Ando lendo esses arquivos há quase
um ano.
Ele concordou e ficou calado, decidindo deixá-la chegar
ao que a tinha trazido ali. Passado algum tempo, ela disse:
— Deve de estar muito zangado com a investigação que
fizemos. Depois o que aconteceu ontem. Lamento imenso.
Bebeu um pequeno gole de cerveja e Bosch se deu
conta de que nem sequer tinha lhe perguntado se ela queria
um copo. Deixou as palavras dela pairarem na escuridão
durante uns longos instantes.
— Não, disse, por fim. — Não estou zangado. A verdade
é que não sei o que estou. Ela se voltou e olhou para ele.
— Nós pensamos que você desistiria quando Rourke
arranjou aquela confusão com o seu tenente. Claro, você
conhecia Meadows, mas isso já fora há muito tempo. É isso
que eu não entendo. Para si, isto não é mais um caso
qualquer. Mas por quê? Deve haver mais alguma coisa. Lá
no Vietnam? Porque isto tem tanta importância?
— Calculo que tenho razões. Razões que não têm nada
a ver com o caso.
— Acredito. Mas quer acredite quer não, isso não é o
que me interessa. Estou tentando entender o que está
acontecendo. Preciso saber.
— Que tal está a cerveja?
— Ótima. Diga-me alguma coisa, detetive Bosch. Ele
olhou para baixo e viu um pedacinho do rótulo dourado
desaparecer na escuridão.
— Não sei, disse ele. — Ou melhor, a verdade é que sei
e não sei. Acho que tem a ver com os túneis. Uma
experiência partilhada. Não é nada do gênero dele ter me
salvado a vida ou eu ter salvado a dele. Não é assim tão
fácil. Mas sinto que há qualquer coisa que lhe é devida. Não
interessa o que ele fez ou o tipo de fracassado que se
tornou depois. Talvez devesse ter feito mais alguma coisa
do que uns quantos telefonemas a seu favor no ano
passado. Não sei.
— Não seja tonto, disse ela. — Quando ele lhe telefonou
no ano passado, já estava bem envolvido nesta tramoia.
Estava usando-o nessa altura. Até parece que também o
está usando agora, apesar de morto.
Já não tinha rótulo para descascar. Deu meia volta e
encostou as costas ao parapeito. Com uma das mãos,
rebuscou no bolso e tirou um cigarro. Colocou-o na boca,
mas não acendeu.
— Meadows, disse ele e abanou a cabeça ao se lembrar
do homem, — Meadows era especial... Naquela altura, todos
nós não passávamos de um bando de garotos com medo do
escuro. E aqueles túneis eram horrivelmente escuros... Mas
Meadows, não, ele não tinha medo. Oferecia-se, se oferecia
de novo, voltava a se oferecer outra vez. Da luz para a
escuridão. Foi o que ele disse que era uma missão num
túnel. Nós o chamávamos de eco negro. Era como descer ao
inferno. Uma pessoa está lá em baixo e consegue cheirar o
próprio medo. Era como se estivéssemos mortos quando
estávamos lá em baixo.
Tinham se virado gradualmente e agora estavam de
frente um para o outro. Ele lhe estudou o rosto e viu aquilo
que julgou ser simpatia. Não sabia se era o que queria. Já
tinha deixado disso há muito tempo. Mas não sabia o que
queria.
— Por isso, todos nós, esses garotos assustados,
fizemos uma promessa. Sempre que alguém descia para um
desses túneis, fazíamos uma promessa. A promessa era
que, acontecesse o que acontecesse lá em baixo, ninguém
seria deixado para trás. Não interessava se morria lá em
baixo, não seria ficaria. Porque nos faziam coisas, sabe.
Como os nossos próprios operacionais de psicologia. E
funcionava. Ninguém queria ser deixado para trás, vivo ou
morto. Uma vez, li num livro que não interessa se está
deitado debaixo de uma pedra tumular de mármore numa
colina ou no fundo de uma fossa de petróleo, quando está
morto, está morto. Mas quem quer que tenha escrito isso
não esteve lá. Quando se está vivo, mas assim tão perto da
morte, se pensa nestas coisas. E nessa altura interessa... E
por isso, nós fazíamos a promessa.
Bosch sabia que não tinha explicado nada. Disse que ia
buscar mais uma cerveja. Ela lhe disse que estava bem
assim. Quando ele voltou, ela lhe sorriu, mas não disse
nada.
— Deixe-me contar uma história de Meadows, disse ele.
— A maneira como eles resolviam as coisas era:
destacavam uns quantos, talvez uns três de nós, ratos dos
túneis, para sairmos com uma companhia. Por isso, quando
eles encontravam um túnel, nós descíamos, fazíamos o
reconhecimento, púnhamos as minas, o que fosse preciso.
Bebeu um grande gole de cerveja fresca. — E, por isso, uma
vez, isto deve ter sido em 1969, nós íamos à retaguarda de
uma patrulha. Estávamos num baluarte vietcongue e estava
todo minado de túneis. Seja como for, estávamos a uns
quatro, cinco quilômetros de uma aldeia chamada Nhuan
Luc quando perdemos um dos homens da frente. Ele foi...
Desculpe, provavelmente, não quer ouvir isto. Com o que
aconteceu ao seu irmão e tudo isso.
— Quero ouvir. Por favor.
— Pois este batedor foi morto por um VC que estava
num buraco de aranha. Era o que chamávamos às pequenas
entradas numa rede de túneis. Alguém matou o VC e eu e
Meadows tivemos que descer ao túnel para inspecioná-lo.
Descemos e tivemos imediatamente que nos separar. Era
uma rede enorme. Eu fui por um dos túneis e ele por outro.
Dissemos que íamos avançar durante quinze minutos e
depois colocávamos os explosivos com um tempo de espera
de vinte minutos, depois voltávamos para trás e íamos
colocando mais ao longo do caminho... Lembro-me de ter
encontrado um hospital lá em baixo. Quatro esteiras vazias,
um armário de medicamentos, tudo ali, no meio do túnel.
Lembro-me de ter pensado: Meu Deus, o que vai estar ali ao
virar da esquina, um cinema drive-in ou qualquer coisa
parecida? Quero dizer, aquela gente tinha se enterrado lá
dentro... Bem, de qualquer maneira, havia um altarzinho
com incenso ardendo. Ainda ardendo. Nessa altura, soube
que eles ainda estavam ali, em algum lugar, os vietcongues,
e me assustei. Coloquei uma carga de explosivos e escondi-
a atrás do altar e depois comecei a recuar o mais depressa
que podia. Coloquei mais duas cargas no caminho,
cronometrando tudo para explodirem ao mesmo tempo.
Chego ao lugar da entrada, ao buraco original da aranha, e
nada de Meadows. Esperei cinco minutos e estava ficando
apertado. Ninguém quer ficar lá em baixo quando o C-4
explode. Alguns daqueles túneis têm cem anos. Eu não
podia fazer nada, por isso fui lá para fora. Ele também não
estava lá.
Parou para beber um pouco de cerveja e pensou um
tempo na história. Ela observava-o atentamente, mas não o
pressionou.
— Minutos depois, os meus explosivos explodiram e o
túnel, ou pelo menos a parte onde eu estivera, veio abaixo.
Quem quer que estivesse lá estava morto e enterrado.
Esperamos um par de horas para a fumaça e a poeira
baixarem. Prendemos uma ventoinha e jogamos ar para
dentro da entrada do poço e depois conseguimos ver a
fumaça sendo empurrada para fora e saindo pelos
respiradouros e pelos outros buracos de aranha espalhados
por toda a selva. E quando tudo ficou limpo eu e outro dos
ratos entramos à procura de Meadows. Pensávamos que ele
tinha morrido, mas tínhamos a promessa, acontecesse o
que acontecesse, íamos tirá-lo de lá e mandá-lo para casa.
Mas não o encontramos. Passamos o resto do dia lá em
baixo à procura, mas a única coisa que encontramos foram
VCs mortos. A maior parte deles tinha sido morta a tiro,
alguns tinham a garganta cortada. Todos tinham as orelhas
cortadas. Quando voltamos para cima, o comandante nos
disse que não podíamos esperar mais tempo. Tínhamos
recebido ordens. Fomos embora e eu quebrara a promessa.
Bosch estava olhando fixamente para a noite, sem ver
nada a não ser a história que estava contando.
— Dois dias depois, outra companhia passou pela
aldeia, Nhuan Luc, e alguém descobriu uma entrada para
um túnel numa palhoça. Mandaram os ratos deles lá para
dentro e, ainda não tinham se passado cinco minutos
quando encontraram Meadows. Estava sentado como um
Buda num dos corredores. Sem munições. Dizendo
bobagens. Sem fazer sentido, mas estava bem. E quando
tentaram trazê-lo com ele, não quis. Por fim, tiveram que
amarrá-lo, prendê-lo com uma corda e içá-lo para fora. À luz
do Sol, viram que ele trazia um colar de orelhas humanas.
Presas nas chapas de identificação.
Acabou a cerveja e entrou em casa. Ela seguiu-o até à
cozinha onde ele foi buscar outra garrafa. Ela pousou a dela
meio acabada em cima da bancada.
— E é esta a minha história. Meadows era assim. Foi
para Saigon para se tratar, mas voltou. Não conseguia ficar
longe dos túneis. Contudo, depois daquele, nunca mais foi o
mesmo. Disse-me que tinha se embaralhado e se perdido lá
dentro. Estava sempre na direção errada, matando tudo o
que aparecia pela frente. Dizia-se que tinha trinta e três
orelhas no colar. Uma vez houve alguém que me perguntou
por que Meadows tinha deixado que um dos VCs ficasse
com uma orelha. Está entendendo, por que o número era
ímpar. E eu disse que Meadows tinha deixado que todos
ficassem com uma orelha.
Ela abanou a cabeça. Ele assentiu com a dele. Bosch
disse:
— Quem me dera tê-lo encontrado daquela vez que
voltei para procurá-lo. Abandonei-o.
Ficaram parados olhando para o chão da cozinha
durante um bom pedaço. Bosch jogou o resto da cerveja no
lava-louça.
— Só mais uma pergunta sobre a folha do Meadows e
depois acabou o trabalho disse ele. — Ele foi detido em
Lompoc por causa de uma tentativa de evasão. Depois foi
mandado para TI. Sabe alguma coisa disso?
— Sei. Foi um túnel. Tinham confiança nele e trabalhava
na lavanderia. Os secadores a gás tinham ventiladores
subterrâneos que passavam por baixo do edifício. Escavou
por baixo de um deles. Não mais do que uma hora por dia.
Disseram que, provavelmente, ele andara naquilo durante
seis meses antes de descobrirem, quando os aspersores que
eles usam no campo de jogos durante o verão amoleceram
o chão e este cedeu.
Ele assentiu com a cabeça. Tinha pensado que devia ter
sido um túnel.
— Os outros dois metidos naquilo, continua ela. — Um
traficante de droga e um ladrão de bancos, ainda estão lá
dentro. Não têm nenhuma ligação com isto. Voltou a
assentir com a cabeça. — Acho que é melhor ir embora
agora, disse ela. — Temos muita coisa para fazer amanhã.
— Sim. Eu tenho mais uma porção de perguntas.
— Tentarei responder, se puder.
Passou rente a ele no pequeno espaço entre a geladeira
e a bancada e saiu para o corredor. Ele conseguiu sentir o
perfume dela quando passou. “Um cheiro de maçã”, ele
pensou. Reparou que ela estava olhando para o quadro
pendurado na parede oposta ao espelho do corredor. Era
dividido em três seções emolduradas separadamente. Uma
reprodução de uma pintura do século quinze chamada o
Jardim das Delícias. O pintor era holandês.
— Hieronymus Bosch, disse ela enquanto estudava a
paisagem de pesadelo do quadro. —Quando vi que era o
seu nome completo, me interroguei se...
— Não há nenhuma relação, ele interrompeu. — A
minha mãe, bem, ela gostava das coisas dele. Calculo que
por causa do apelido. Mandou-me esse quadro uma vez.
Disse numa nota que a lembrava de LA. Todas essas
pessoas malucas. Os meus pais adotivos... Eles não
gostavam dele, mas eu guardei-o durante muitos anos.
Tenho-o aqui pendurado há tanto tempo quanto tenho a
casa.
— Mas gosta que lhe chamem Harry.
— Sim, gosto de Harry.
— Boa noite, Harry. Obrigada pela cerveja.
— Boa noite, Eleanor... Obrigado pela companhia.
 
CAPÍTULO 4
Quarta-feira, 23 de maio
Às 10 da manhã, estavam na autoestrada de Ventura,
que atravessa o fundo do Vale de San Francisco para sair da
cidade. Bosch ia dirigindo e seguiam na direção contrária à
corrente do trânsito, em direção a nordeste, para Ventura
County, deixando para trás o manto de poluição que enchia
o Valley como um creme sujo numa tigela. Iam para Charlie
Company. O FBI fizera apenas uma investigação superficial
de Meadows durante um programa extensivo da prisão, no
ano anterior. Eleanor Wish disse que pensara que era de
importância mínima visto que a estadia de Meadows
terminara um ano antes do crime do túnel. Disse que o FBI
pedira uma cópia do processo de Meadows, mas que não
verificara os nomes dos outros presos que faziam parte do
programa na mesma altura que Meadows.
Bosch achava que fora um erro. O registro dos
empregos de Meadows indicava que o assalto ao banco
fazia parte de um plano que ele levara muito tempo
preparando, disse a Wish. O assalto ao banco podia muito
bem ter sido planejado na Charlie Company. Antes de sair,
Bosch telefonara ao agente da liberdade condicional de
Meadows, Daryl Slater, e recebera informações detalhadas
sobre Charlie Company. Slater disse que o lugar era um sítio
de produtos hortícolas, gerida pelo proprietário, um coronel
do exército que se reformara. Tinha um acordo com o
estado e as penitenciárias federais para receber indivíduos
recém-saídos da prisão com a única condição de serem
veteranos da guerra do Vietnam. Isso não era uma
exigência difícil de cumprir, dissera Slater.
Como em todas as outras prisões do país, as da
Califórnia tinham uma grande população de veteranos do
Vietnam. Gordon Scales, o antigo coronel, não se
interessava pelo tipo de crimes que os veteranos pudessem
ter cometido. Só queria voltar a pô-los no bom caminho. O
pessoal do sítio compreendia três pessoas, incluindo o
próprio Scales, e não recebiam mais de vinte e quatro
homens de cada vez. Trabalhavam nos campos das seis as
três, parando apenas uma hora para o almoço ao meio-dia.
Depois do dia de trabalho, havia uma sessão de uma hora
denominada conversa da alma, depois o jantar e a
televisão. Outra hora de religião antes de apagarem as
luzes. Slater disse que Scales utilizava as suas ligações com
a comunidade para arranjar empregos para os veteranos
quando eles se encontravam prontos para enfrentar o
mundo exterior. Em seis anos, a Charlie Company tinha uma
percentagem de recidivas de apenas 11%. Um número tão
invejável que Scales recebera uma referência favorável num
discurso do presidente durante a sua última campanha
eleitoral pelo estado.
— O homem é um herói, disse Slater. — E não é por
causa da guerra. Por causa do que fez depois. Quando uma
pessoa tem um lugar como aquele, que movimenta entre
trinta a quarenta reclusos por ano, e só um em dez volta a
dar com os ossos na cadeia, então estamos falando de um
mérito sensacional. Scales tem uma influência enorme nas
comissões de liberdade condicional, estatais e federais e em
metade dos diretores das prisões deste estado.
— Quer dizer que ele escolhe quem vai para Charlie
Company? Perguntou Bosch.
— Talvez não seja exatamente escolher, mas dá a
aprovação final, sim, disse o agente da Liberdade
Condicional. — Mas o nome deste homem já se espalhou. É
conhecido em todos os blocos de celas onde haja um
veterano cumprindo pena. Estes tipos vão ter com ele.
Escrevem cartas, mandam Bíblias, telefonam, pedem aos
advogados que o contatem. Tudo para conseguirem que
Scales se responsabilize por eles.
— Foi assim que Meadows foi parar lá?
— Tanto quanto sei, foi. Já ia para lá quando me
entregaram. Vai precisar telefonar para Terminal Island e
pedir que consultem os arquivos. Ou falar com Scales.
Bosch informou Eleanor Wish da conversa quando já
estavam na estrada. Fora isso, foi uma longa viagem com
grandes períodos de silêncio. Bosch passou muito tempo a
pensar na noite anterior. Na visita dela. Por que ela tinha ido
lá? Depois de entrarem em Ventura County, voltou a se
concentrar no caso e fez algumas perguntas que anotara
enquanto lia o processo na noite anterior.
— Por que eles não entraram na caixa-forte principal?
No Westland há duas caixas-fortes. A dos depósitos e a do
banco, para as transações a dinheiro e para os caixas
eletrônicos. Os relatórios da cena do crime diziam que as
plantas das duas caixas-fortes eram iguais. A dos cofres era
maior, mas a blindagem do chão era a mesma. Por isso, dá
ideia que Meadows e os sócios podiam ter feito o túnel até à
caixa-forte principal com a mesma facilidade, e depois
podiam entrar, apanhar o que havia lá e saído. Não
precisavam correr o risco de passar todo o fim-de-semana lá
dentro. Nem precisariam rebentar com os cofres.
— Talvez não soubessem que eram iguais. Talvez
julgassem que a caixa principal seria mais difícil.
— Mas nós estamos partindo do princípio que eles
tinham alguns conhecimentos da estrutura da caixa-forte
antes de começarem a trabalhar nisto. Por que não tinham
as mesmas informações em relação à outra?
— Eles não podiam fazer o reconhecimento da caixa-
forte principal. Não é aberta ao público. Mas pensamos que
um deles alugou um cofre na caixa-forte e foi lá dentro para
inspecioná-la. Usou um nome falso, claro. Mas, veja bem,
podiam inspecionar uma das caixas-fortes, mas a outra não.
Bosch assentiu com a cabeça e perguntou:
— Quanto é que havia na caixa-forte principal?
— Assim, de repente, não sei. Devia estar nos relatórios
que lhe entreguei. Se não estiver, estará nalgum outro lá no
Departamento.
— Mas, era mais, não é? Havia mais dinheiro na caixa-
forte principal do que os dois ou três milhões em bens que
eles tiraram dos cofres.
— Acho que deve ter razão.
— Está entendendo o que estou dizendo? Se eles
tivessem entrado na caixa-forte principal, o material estaria
lá em sacos ou pilhas. Ali mesmo à mão para eles poderem
levar. Seria mais fácil. Provavelmente, haveria muito mais
dinheiro e muito menos trabalho.
— Mas, Harry, nós sabemos disso agora. O que eles
sabiam quando entraram lá? Vai ver, julgavam que havia
muito mais nos cofres. Apostaram e perderam.
— Ou talvez tenham ganhado. Ela olhou para ele. —
Talvez houvesse algo nos cofres que nós nem sequer
imaginamos. Que ninguém declarou ter sido roubado.
Qualquer coisa que fazia com que a caixa-forte dos
depósitos fosse um alvo melhor. Que a fizesse valer mais do
que a outra.
— Se está pensando em droga, a resposta é não.
Pensamos nisso. Pedimos à DEA para ir lá e levar um cão.
Ele vasculhou todos os cofres abertos. Nada. Nem vestígios
de droga. Depois farejou à volta dos cofres que os ladrões
não tinham chegado a arrombar e escolheu um. Um dos
menores. Riu por uns instantes e depois continuou: — Por
isso, quando arrombamos este cofre que deixara o cão
maluco, descobrimos cinco gramas de coca num saco. O
desgraçado que guardava o seu fornecimento de coca no
banco foi preso só porque, por puro acaso, alguém tinha se
lembrado de abrir um túnel para entrar lá. Eleanor voltou a
rir, mas Bosch achou que era um riso um pouco forçado. A
história não tinha tanta graça assim. — Bem, seja como for,
o caso contra o tipo foi anulado por um representante do
Ministério Público porque disse que fora uma busca ilegal.
Tínhamos violado a privacidade do tipo quando arrombamos
o cofre sem um mandado.
Bosch saiu da autoestrada para a cidade de Ventura e
continuou para norte.
— Continuo a gostar da teoria da droga, apesar do cão,
disse ele ao fim de um quarto de hora de silêncio. — Eles
não são infalíveis, esses cães. Se a coisa estivesse bem
empacotada e os ladrões a levaram, podia não ter deixado
nenhum vestígio. Um par de cofres com coca lá dentro e o
crime começa a valer a pena.
— A próxima pergunta vai ser sobre as listas dos
clientes, certo? Perguntou ela.
— Certo.
— Bem, nós tivemos um trabalhão com isso.
Investigamos todos, chegando mesmo a levantar as
compras das coisas que eles diziam que estavam nos
cofres. Não descobrimos quem assaltou o banco, mas,
provavelmente, poupamos as companhias de seguros do
banco uns dois milhões por não terem de pagar por coisas
que foram dadas como roubadas e que nunca tinham
existido.
Bosch parou numa bomba de gasolina para poder tirar
um mapa debaixo do banco e procurar o caminho para
Charlie Company. Ela continuou defendendo as
investigações do FBI.
— A DEA investigou todos os nomes na lista dos donos
dos cofres e não descobriu nada. Nós introduzimos os
nomes no NCIC. Encontramos alguns nomes, mas nada
sério, a maior parte eram coisas antigas. Soltou mais uma
daquelas gargalhadinhas falsas. — Um dos donos de um dos
cofres maiores fora condenado por pornografia com
crianças nos anos setenta. Tinha cumprido pena em
Soledad. Bem, depois do assalto ao banco, foi contatado,
mas disse que não tinham roubado nada, pois esvaziara o
cofre há pouco tempo. Mas dizem que os pedófilos nunca
conseguem se separar dos seus materiais, das fotografias e
dos filmes, até mesmo das cartas escritas sobre os garotos.
E no banco não havia nenhum registro dele ter ido ao cofre
nos dois últimos meses antes do roubo. Por isso, calculamos
que o cofre servia para guardar a coleção dele. Mas, de
qualquer maneira, aquilo não tinha nada a ver com o crime.
Nada do que descobrimos tinha.
Bosch descobriu o caminho no mapa e saiu da bomba
de gasolina. A Charlie Company ficava na zona dos
pomares. Pensou na história dela sobre o pedófilo. Havia
qualquer coisa que não soava bem. Revolveu-a na cabeça,
mas não descobriu o que era. Deixou-a ficar pairando e
passou para outra pergunta.
— Por que nada foi recuperado? Todas aquelas joias,
ações e obrigações e não aparece nada, exceto uma
pulseira. Nem sequer alguma das outras coisas sem valor
que foram levadas.
— Estão guardando-as até se sentirem seguros,
respondeu Eleanor. — Foi por isso que Meadows foi
liquidado. Saiu da linha e empenhou a pulseira antes do
combinado, vai ver antes de todos concordarem que já não
havia perigo. Eles descobriram que ele a vendera. Ele não
quis dizer aonde e eles lhe deram choques elétricos até ele
falar. E depois o mataram.
— E, por coincidência, sou eu que sou chamado.
— Acontece.
— Há qualquer coisa nessa história que não bate, disse
Bosch. — Começamos com Meadows sendo espremido,
torturado, certo? Ele lhes diz o que eles querem, eles
injetam no braço dele uma carga valente e vão buscar a
pulseira na loja de penhores. Certo?
— Certo.
— Mas, veja bem, isso não funciona. Eu tenho a cautela.
Estava escondida. Por isso, ele não a deu e eles tiveram que
assaltar a loja e levar a pulseira, disfarçando o que queriam
ao levar outras coisas. Por isso, se ele não lhes deu a
cautela, como é que eles souberam onde estava a pulseira?
— Penso que ele lhes disse, respondeu Eleanor.
— Não acho. Não o vejo dando uma coisa e a não dando
a outra. Não tinha nada a ganhar por guardar a cautela. Se
eles conseguiram arrancar o nome da loja, também teriam
conseguido o papel.
— Então, você está dizendo que ele morreu antes de
dizer fosse o que fosse. E eles já sabiam que a pulseira fora
empenhada.
— Certo. Eles torturaram-no para conseguirem a
cautela, mas ele resistiu, não cedeu. Mataram-no. Depois se
livraram do corpo e revolveram a casa. Mas continuaram a
não encontrar o papel. Por isso, assaltaram a loja de
penhores como se fossem ladrões de terceira categoria. A
pergunta é: se Meadows não lhes disse onde é que tinha
empenhado a pulseira e eles não descobriram a cautela,
como sabiam onde é ela estava?
— Harry, isso é especulação em cima de especulação.
— É o que os tiras fazem.
— Bem, não sei. Pode ter sido uma porção de coisas.
Eles podiam andar seguindo o Meadows porque não
confiavam nele e viram-no entrar na loja. Pode ter sido uma
porção de coisas...
— E pode ser que eles tivessem tido uma pessoa, um
tira, por exemplo, que viu a pulseira nas folhas mensais das
casas de penhores e lhes disse. As folhas vão para todos os
Departamentos de Polícia do país.
— Acho que esse tipo de especulação é irresponsável.
Tinham chegado. Bosch reduziu a velocidade numa
entrada por baixo de um letreiro de madeira com uma
grande águia verde pintada sobre as palavras Charlie
Company. O portão estava aberto e eles seguiram por uma
estrada de cascalho com valas de irrigação de ambos os
lados. A estrada dividia o sítio, tomates do lado direito e
aquilo que pareciam pimentões do lado esquerdo. Mais à
frente, havia um enorme celeiro construído com alumínio e
uma casa baixa ao estilo dos ranchos. Atrás deles, Bosch viu
um pomar de abacateiros. Entraram numa área de
estacionamento circular em frente da casa e Bosch desligou
o motor. Um homem com um avental branco que estava tão
limpo como a cabeça rapada dele apareceu à porta de rede
da entrada da frente.
— O senhor Scales está? Perguntou Bosch.
— O coronel Scales? Não, não está, mas é quase hora
do almoço. Nessa altura, ele volta dos campos.
O homem não os convidou a entrar para saírem do sol
e, por isso, Bosch e Eleanor voltaram para trás e se
sentaram no carro. Poucos minutos depois, chegou uma
empoeirada pick-up branca. Tinha uma águia dentro de uma
grande letra pintada na porta do motorista. Dela saíram três
homens da cabine e mais seis saltaram dos fundos.
Moveram-se rapidamente para a casa. Iam dos trinta e tais
aos quarenta e muitos. Vestiam calças da tropa verdes e
camisetas brancas, ensopadas de suor. Nenhum trazia
bandana, óculos escuros ou mangas arregaçadas. Nenhum
tinha o cabelo mais comprido do que meio centímetro. Os
homens brancos estavam tão queimados que pareciam de
madeira castanha manchada. O motorista, com o mesmo
uniforme, mas com pelo menos mais dez anos, parou e
deixou que os outros entrassem. Enquanto ele se
aproximava, Bosch lhe deu sessenta e poucos anos, mas era
um tipo quase tão sólido como fora aos vinte. O cabelo, o
que se podia ver no crânio cintilante, era branco e a pele
parecia casca de noz. Calçava luvas escuras.
— Desejam alguma coisa? Perguntou ele.
— Coronel Scales? Disse Bosch.
— Exatamente. São da polícia? Bosch assentiu e fez as
apresentações. Scales não pareceu muito impressionado,
mesmo com a menção do FBI.
— Lembra-se que aqui há uns sete, oito meses, o FBI
pediu informações sobre um William Meadows que esteve
algum tempo aqui? Perguntou Eleanor Wish.
— Claro que me lembro. Lembro-me de todas as vezes
que a sua gente telefona ou aparece por aqui fazendo
perguntas sobre os meus rapazes. Não gosto nada, por isso
eu sempre me lembro. Querem informações sobre Billy? Ele
está metido nalguma confusão?
— Agora não está mais, respondeu Bosch.
— O que isso quer dizer? Perguntou Scales. — Até
parece que está dizendo que ele morreu.
— Não sabia? Perguntou Bosch.
— Claro que não. Conte-me o que aconteceu.
Bosch pensou que via uma expressão de genuína
surpresa e depois uma breve sombra de tristeza passou
pelo rosto de Scales. A notícia tinha doído.
— Foi encontrado morto há três dias em LA. Homicídio.
Pensamos que está relacionado com um crime em que ele
esteve envolvido no ano passado e de que o senhor deve
ter ouvido falar quando o FBI o contatou.
— Aquela coisa do túnel? No banco de LA? Perguntou
ele. — Sei aquilo que o FBI me contou. Mais nada.
— Tudo bem, disse Eleanor Wish. — O que precisamos
de si é uma informação mais completa sobre quem aqui
estava na mesma altura em que Meadows estava. Já
cobrimos isto anteriormente, mas estamos fazendo uma
reverificação, a procura de qualquer coisa que possa ajudar.
Está disposto a cooperar conosco?
— Eu sempre coopero com vocês. Não gosto porque
metade das vezes eu acho que vocês têm informações
erradas. A maior parte dos meus rapazes, quando saem
daqui, não volta a ultrapassar a faixa. Temos um bom
recorde aqui. Se Meadows fez aquilo que estão dizendo que
ele fez, é exceção.
— Nós compreendemos, disse ela. — E isto será
estritamente confidencial.
— Está bem, venham para a minha sala e podem
perguntar tudo o que quiserem.
Quando entraram pela porta da frente, Bosch viu duas
mesas compridas naquilo que provavelmente era o
restaurante. Cerca de vinte homens estavam sentados à
frente de pratos com o que parecia serem bifes fritos de
frango e montes de vegetais. Nenhum olhou para Eleanor
Wish. Isto porque estavam dando graças silenciosamente,
com as cabeças baixas, olhos fechados, mãos postas. Bosch
viu tatuagens em quase todos os braços. Quando terminou
a oração, um coro de garfos bateu nos pratos. Uns quantos
dos homens tiraram então algum tempo para olhar para
Eleanor. O homem de avental estava agora parado à porta
da cozinha.
— Coronel, o senhor vai comer com os homens hoje?
Perguntou ele. Scales assentiu, dizendo:
— Estarei livre dentro de poucos minutos.
Percorreram um corredor e entraram numa sala onde
anteriormente deveria ter sido um quarto. Estava
atravancado por uma mesa com um tampo do tamanho de
uma porta. Scales apontou para duas cadeiras à frente dela
e Bosch e Eleanor se sentaram enquanto ele se instalava no
enorme cadeirão estofado atrás da mesa.
— Eu sei exatamente o que sou obrigado por lei a
contar e aquilo do que nem sequer sou obrigado a falar. Mas
estou disposto a fazer mais se isso ajudar e chegarmos a
um acordo. Meadows... Eu imaginava que ele ia acabar
como vocês dizem que acabou. Rezei ao bom Deus que o
guiasse, mas sabia. Vou ajudar. Ninguém deve tirar uma
vida num mundo civilizado. Absolutamente ninguém.
— Coronel, começou Bosch, — Agradecemos a sua
ajuda. Quero que saiba, primeiro de tudo, que sabemos o
tipo de trabalho que o senhor faz aqui. Sabemos que tem o
respeito e o apoio tanto das autoridades estaduais como
das autoridades federais. Mas a nossa investigação do caso
Meadows nos leva a concluir que ele estava envolvido numa
conspiração com outros homens que tinham as mesmas
capacidades que ele e...
— Está dizendo que eram veteranos, interrompeu
Scales. Estava enchendo um cachimbo com tabaco de uma
caixa em cima da mesa.
— Possivelmente. Ainda não os identificamos, por isso,
não podemos ter certeza. Mas se for esse o caso, parece
que há a possibilidade dos conspiradores terem se
encontrado aqui. Sublinho a palavra possibilidade. Por
conseguinte, há duas coisas que queremos do senhor. Poder
ver os registros que ainda tem de Meadows e uma lista de
todos os homens presentes durante os dez meses que ele
esteve aqui. Scales estava calcando o cachimbo e,
aparentemente, não prestava nenhuma atenção. Por fim,
disse:
— Não há qualquer problema com os registros dele...
Está morto. Por outro lado, suponho que deveria telefonar
ao meu advogado para ter certeza que posso fazer isso.
Temos um bom programa aqui. Vegetais e dinheiro do
estado, mas o FBI não cobre nada disto. Dependemos dos
dízimos da comunidade, das organizações cívicas, coisas
assim. A má publicidade secará esse dinheiro mais depressa
do que um vento de Santa Ana. Se ajudar vocês, vou me
arriscar. O outro risco é perder a confiança dos homens que
vem para cá para terem uma segunda oportunidade. A
maior parte dos homens que estava aqui junto com
Meadows já criaram vidas novas. Não são mais criminosos.
Se começar a dar os nomes deles para todos os tiras que
aparecem, isso não formará uma imagem muito bonita do
meu programa, não é?
— Coronel Scales, nós não temos tempo para pormos
advogados analisando isto, disse Bosch. — É um caso de
homicídio. Precisamos destas informações. O senhor sabe
que poderemos obtê-las se formos para os departamentos
estaduais e federais, mas isso ainda levaria mais tempo que
o seu advogado. Também podemos conseguir tudo com
uma intimação, mas pensamos que uma cooperação mútua
seria melhor. Estaremos muito mais dispostos a ser brandos
se tivermos a sua cooperação.
Scales não se mexeu e, mais uma vez, pareceu não
estar ouvindo. Um anel de fumaça azul rodopiou como um
fantasma do fornilho do cachimbo.
— Estou vendo, disse ele, por fim. — Nesse caso, o
melhor é ir buscar esses arquivos, não é verdade?
Levantou-se e se dirigiu para uma fila de armários de
arquivos beges que forravam a parede atrás da mesa.
Escolheu uma gaveta com as letras M-N-O e depois de uma
curta busca tirou uma pasta fina. Deixou-a cair em cima da
mesa ao pé de Bosch.
— Esse é o processo do Meadows, disse ele. — Agora
vamos ver o que mais podemos encontrar aqui.
Foi à primeira gaveta, que não tinha nada escrito no
cartão da ranhura. Correu os processos sem tirar nenhum
para fora. Por fim, escolheu um e se sentou com ele.
— Podem ler esse arquivo à vontade e eu posso fazer
cópias de qualquer coisa que precisem dele, disse Scales. —
Este é o meu organograma principal relativo às pessoas que
passam por aqui. Posso fazer uma lista de todas as pessoas
que Meadows pode ter conhecido aqui. Suponho que
precisem de DNs e PINs?
— Seria uma grande ajuda, obrigado, disse Eleanor.
Levaram apenas quinze minutos lendo todo o processo
de Meadows. Ele tinha iniciado uma correspondência com
Scales no ano anterior ao ser libertado. Tinha o apoio de um
capelão e de um conselheiro interno que o conhecia, porque
fora destacado para a manutenção da sala das admissões e
colocações da prisão. Numa das cartas, Meadows
descrevera os túneis em que estivera no Vietnam e como se
sentira atraído pela sua escuridão.
“A maior parte dos outros tipos tinham medo de descer
lá dentro”, escreveu ele. “Eu queria ir. Nessa altura não
sabia porquê, mas, agora, penso que estava testando os
meus limites. Mas a realização pessoal que obtive disso era
falsa. Eu era tão oco como o chão onde estávamos lutando.
A realização pessoal que agora tenho está em Jesus Cristo e
em saber que Ele está comigo. Se me derem oportunidade e
com a orientação Dele, desta vez sou capaz de fazer as
escolhas certas e deixar estas grades para sempre. Quero
passar do chão oco para o chão consagrado.”
— Piegas, mas bastante sincero, eu acho, disse Eleanor.
Scales levantou os olhos da mesa onde estava escrevendo
nomes, datas de nascimento e os números de identificação
da prisão numa folha de papel amarelo.
— Era sincero, disse ele numa voz que sugeria que não
havia outra alternativa. Quando Billy Meadows saiu daqui,
eu pensava, acreditava sinceramente que ele estava
preparado para o exterior e que largara as antigas alianças
com as drogas e o crime. É óbvio que voltou a cair nessas
tentações. Mas duvido que vocês dois encontrem aqui
aquilo de que andam procurando. Eu vou lhes dar estes
nomes, mas eles não vão ajudar.
— Veremos, respondeu Bosch.
Scales voltou para a sua escrita e Bosch observou-o.
Estava demasiado consumido pela sua fé e lealdade para
entender que podia ter sido usado. Bosch acreditava que
Scales era bom homem, mas um homem que talvez fosse
demasiado rápido para ver suas crenças e esperanças
noutra pessoa, numa pessoa como Meadows, por exemplo.
— Coronel, o que o senhor ganha com isto tudo?
Perguntou Bosch. Desta vez, ele pousou a caneta, ajustou o
cachimbo no maxilar fechado, cruzou as mãos e respondeu:
— Não é o que eu ganho. É o que o Senhor ganha.
Voltou a segurar a caneta, mas depois teve outra ideia. —
Estes rapazes estavam destruídos de várias maneiras
quando regressaram. Eu sei, é uma história velha e toda a
gente já ouviu, já viu os filmes. Mas estes homens
estiveram lá. Milhares regressaram e marcharam,
literalmente, para as prisões. Um dia, eu estava lendo sobre
isso e perguntei para mim mesmo como seria se não
acontecesse uma guerra e estes rapazes nunca tivessem
ido embora. Ficariam em Omaha, em Los Angeles, em
Jacksonville, New Ibéria e sei lá que mais. Teriam ido parar
na prisão? Teriam se transformado em desalojados,
vagabundos e com problemas mentais? Drogados? Para a
maioria deles, duvido. Foi a guerra que fez isso, que os
empurrou para o mau caminho.
Puxou com toda a força no cachimbo apagado.
— Por isso, tudo o que eu faço, com a ajuda da terra e
de alguns livros de orações, é tentar voltar a colocar dentro
deles aquilo que a experiência do Vietnam lhes tirou. E sou
bastante bom nisso. É por isso que estou fornecendo esta
lista, deixando-os ler esse dossiê. Mas não estraguem o que
nós temos aqui. Vocês dois sentem uma desconfiança
natural em relação ao que está acontecendo aqui, e estão
certos. É saudável para pessoas na sua posição. Mas
tenham cuidado com o que há de bom aqui. Detetive Bosch,
o senhor parece ter a idade certa. Também esteve lá?
Bosch assentiu com a cabeça e Scales disse:
— Então você sabe. Voltou a se concentrar na lista. Sem
levantar os olhos, perguntou: — Nos fazem companhia no
almoço? Os vegetais mais frescos do país na estão na nossa
mesa.
Eles se recusaram e levantaram depois de Scales ter
entregado a Bosch a lista com os nomes dos vinte e quatro
homens que encontrara. Quando Bosch se virou para a
porta, hesitou e perguntou:
— Coronel, se importa que eu lhe pergunte que outros
veículos têm aqui? Já vi a pick-up.
— Não me importo que pergunte porque não tenho
nada a esconder. Temos mais dois carros de caçamba aberta
iguais àquela, dois John Deere e um veículo de tração nas
quatro rodas.
— Que tipo de veículo de tração nas quatro rodas?
— Um jipe.
— E de que cor?
— Branco. Por quê?
— Estou apenas tentando esclarecer umas coisas. Mas
calculo que o jipe tem o emblema da Charlie Company na
porta, tal como a pick-up?
— Exatamente. Todos os nossos veículos estão
identificados. Quando vamos a Ventura, temos orgulho no
que conseguimos realizar. Queremos que as pessoas saibam
de onde vêm os vegetais.
Bosch não olhou para os nomes da lista até estar dentro
do carro. Não reconheceu nenhum, mas reparou que Scales
tinha escrito as letras PH em seguida a oito dos vinte e
quatro nomes.
— O que quer dizer? Perguntou Eleanor quando se
inclinou para também ver a lista.
— Purple Heart*, respondeu Bosch. — Mais uma maneira
de dizer para termos cuidado, acho eu.
— E quanto ao jipe? Perguntou ela. — Ele disse que é
branco e que tem um emblema na porta.
— Viu como o pick-up estava sujo. Um jipe branco sujo
poderia parecer bege. Se for o jipe certo.
— Ele não tem o tipo. Scales. Parece honesto.
— Vai ver é. Vai ver são as pessoas a quem ele
empresta o jipe. Não quero insistir no assunto até sabermos
mais.
Deu partida no carro e desceram a estrada de cascalho
até ao portão. Bosch abriu a janela. O céu estava da cor de
jeans desbotados e o ar era invisível e limpo e cheirava a
pimentões verdes frescos. “Mas não por muito tempo”,
pensou Bosch. Agora vamos voltar para a porcaria. No
caminho de volta à cidade, Bosch se desviou da autoestrada
de Ventura e seguiu para sul pelo Malibu Canyon até ao
Pacifico. Iam levar mais tempo, mas o ar limpo era como
uma droga. Ele queria tê-lo durante o mais tempo possível.
— Quero ver a lista das vítimas, disse ele depois de
terem percorrido o desfiladeiro sinuoso e a superfície azul
do oceano já se avistar ao longe. — Aquele pedófilo que
você se referiu. Há qualquer coisa nessa história que está
me intrigando. Por que eles haviam de levar a coleção de
fotos de garotinhos do tipo?
— Harry, vá lá, não vai sugerir que foi uma razão, que
escavaram um túnel durante semanas e depois fizeram
explodir o chão da caixa forte de um banco para roubar uma
coleção de pornografia de garotos?
— Claro que não. Mas isso levanta uma questão. Por que
eles levaram?
— Bem, vai ver queriam-na. Vai ver um deles era
pedófilo e gostou. Quem sabe?
— Ou talvez fizesse parte do disfarce. Levar tudo de
todos os cofres que rebentaram para esconder o fato de que
aquilo que eles realmente queriam estava em um só cofre.
Sabe como é, uma maneira de nublar o quadro, por assim
dizer, arrombando dúzias de cofres. Mas o alvo sempre foi
algo que estava num só cofre. O mesmo princípio do assalto
à loja de penhores: levar uma porção de joias para esconder
que só queriam a pulseira. Mas com a caixa-forte, eles
queriam alguma coisa que depois não iria ser declarada
como roubada, porque iria colocar o dono numa confusão.
Como aconteceu com o pedófilo.
Ela estava calada. Bosch olhou para ela, mas por trás
dos óculos escuros, ela era impenetrável.
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*Medalha atribuída a um membro das forças
armadas americanas que foi ferido em combate.
 
— Quando roubaram o material, o que ele podia dizer?
Continuou ele. — Era uma coisa desse gênero que os
ladrões andavam procurando, só que muito mais valiosa.
Qualquer coisa que faria com que assaltar a caixa-forte dos
depósitos fosse muito mais interessante do que assaltar a
caixa-forte, propriamente dita. Qualquer coisa que fez com
que se tornasse necessário matar Meadows quando ele pôs
em perigo toda a operação ao empenhar a pulseira.
— Parece que está outra vez falando de drogas, disse
ela passado um tempo. — E o cão disse que não havia
drogas. A DEA não encontrou nenhuma ligação na nossa
lista de clientes.
— Talvez sejam drogas ou talvez não. Mas é por isso que
devemos voltar a olhar para a lista dos donos dos cofres. Eu
quero ver a lista. Quero ver se há alguma coisa que faça
surgir uma luz. As pessoas que declararam que nada foi
roubado. É por elas que quero começar.
— Eu arranjo a lista. De qualquer maneira, não temos
mais nada para fazer.
— Bem, temos de ver estes nomes que o Scales nos
deu, disse Bosch. — Estava pensando em levarmos as
fotografias ao Sharkey.
— Bem, acho que vale a pena tentar. Pelo menos,
estamos tentando.
— Não sei. Acho que o rapaz está escondendo qualquer
coisa. Penso que ele é capaz de ter visto um rosto naquela
noite.
— Deixei um memorando ao Rourke sobre a hipnose.
Provavelmente, ele vai nos dizer alguma coisa hoje ou
amanhã.
Apanharam a Pacific Coast Highway que contornava a
baía. A névoa da poluição fora empurrada para terra e
estava suficientemente límpido para poder se ver Catalina
Island. Pararam no Aliceos Restaurante para almoçar e, uma
vez que já era tarde, havia uma mesa livre ao pé da janela.
Eleanor Wish pediu um chá gelado e Bosh uma cerveja.
— Costumava vir a este cais quando era garoto, contou
Bosch. Eles nos colocavam num ônibus e nos levavam a
passear. Nessa época, havia uma loja de iscas lá na ponta.
Eu costumava pescar olhos de boi.
Ela olhou pela janela do restaurante para a ponta do
cais. Sorriu com as recordações dele e ele perguntou onde é
que estavam as dela.
— Por todo o lado. O meu pai era militar. Nunca passei
mais de dois anos no mesmo lugar. Por isso, as minhas
recordações não são de lugares, mas de pessoas.
— Você e o seu irmão eram muito chegados? Perguntou
Bosch.
— Sim, como sempre fora com o meu pai. Ele estava
sempre lá. Até que se alistou e foi embora para sempre.
Trouxeram as saladas para a mesa e eles comeram um
bocadinho, tagarelaram um bocadinho e depois, em
determinada altura, entre a garçonete ter tirado os pratos
da salada e ter posto os pratos para o almoço, ela contou a
história do irmão.
— Todas as semanas ele me escrevia de lá e todas as
semanas dizia que tinha medo, que queria voltar para casa,
disse ela. — Não era uma coisa que ele pudesse dizer ao
pai, ou à mãe. Mas a índole do Michael não era para aquilo.
Nunca devia ter ido. Foi por causa do nosso pai. Não teve
coragem para dizer que não, mas teve coragem de ir para
lá. Não faz sentido. Já alguma vez ouviu uma coisa tão
estúpida?
Bosch não respondeu por que já tinha ouvido muitas
histórias semelhantes, incluindo a sua. E ela pareceu parar
ali. Ou não sabia o que tinha acontecido ao irmão ou não
queria contar os pormenores. Passado um tempo, ela
perguntou:
— E você Harry? Por que foi? Ele já estava esperando a
pergunta, mas em toda a sua vida nunca fora capaz de dar
uma resposta verdadeira, nem sequer a si mesmo.
— Não sei. Não tinha escolha. A vida institucional, como
você mesma já disse. Eu não ia para a universidade. Nunca
cheguei a pensar seriamente no Canadá. Acho que seria
mais difícil ir para lá do que me deixar recrutar e ir para o
Vietnam. E depois, em sessenta e oito, pode se dizer que
ganhei a loteria do recrutamento. O meu número era tão
baixo que eu sabia que iria. Por isso, achei que iria ser mais
esperto do que eles me alistando, pensei que iria escolher o
que queria.
— E depois? Bosch soltou uma pequena gargalhada, da
mesma maneira artificial como ela tinha rido anteriormente.
— Entrei, fiz o treinamento e aquelas coisas todas e
depois chegou a altura de tomar uma decisão e escolhi a
infantaria. Ainda hoje não entendi bem por que. Eles
conseguem nos caçar naquela idade, sabe? Somos
invencíveis. Mal cheguei lá, me ofereci para a brigada dos
túneis. Foi assim uma coisa do gênero da carta que
Meadows escreveu ao Scales. Uma pessoa faz coisas que
nunca conseguirá entender. Sabe o que eu quero dizer?
— Acho que sim, disse ela. — E quanto ao Meadows? Ele
teve oportunidades para ir embora e nunca o fez, continuou
até o fim. Por que alguém iria querer ficar sem ser
obrigado?
— Havia muitos assim, disse Bosch. — Acho que não era
nem vulgar nem invulgar. Alguns simplesmente não
queriam abandonar aquelas paragens. Meadows era um
deles. Também pode ter sido uma decisão comercial.
— Está se referindo às drogas?
— Bem, eu sei que ele andava consumindo heroína
quando estava lá. Sabemos que estava consumindo e
depois vendendo também, quando voltou para aqui. Por
isso, vai ver, quando estava lá, se envolveu no tráfico e
depois não quis abandonar uma coisa boa. Há muita coisa
que aponta para isso. Ele foi transferido para Saigon depois
de ter sido tirado dos túneis. Saigon devia ter sido o lugar
certo para estar, especialmente com a liberdade de
movimentos dada pela embaixada, que ele devia ter como
PM. Saigon era a cidade do pecado. Prostitutas, haxixe,
heroína. Era um mercado livre. Houve uma porção de gente
que se colocou nisso. A heroína deve tê-lo feito ganhar um
bom dinheiro, especialmente se ele tivesse um plano, uma
maneira de trazer alguma para aqui. Ela ia empurrando com
o garfo pedaços do peixe vermelho que não ia comer.
— É injusto, disse ela. — Ele não queria voltar. Alguns
dos rapazes queriam voltar, mas nunca tiveram
oportunidade.
— Nunca houve nada de justo naquele lugar.
Bosch se voltou e olhou pela janela para o oceano.
Havia quatro jovens com roupas de um vermelho brilhante
surfando uma onda.
— E após a guerra, você entrou para a polícia.
— Bem, andei por aí durante algum tempo e depois
entrei para o departamento. Naquela altura, parecia que a
maior parte dos veteranos que eu conhecia, tal como o
Scales disse hoje, ou iam para a polícia ou para as
penitenciárias.
— Não sei Harry. Você parece um tipo solitário. Um
detetive particular, não um homem que tem de receber
ordens de homens por quem não sente respeito.
— Já não há operadores particulares. Toda a gente
recebe ordens... Mas todas estas coisas a meu respeito
estão nos arquivos. Você sabe isto tudo.
— Nem tudo sobre uma pessoa pode ser registrado no
papel. Não é isso que você diz? Ele sorriu enquanto a
garçonete esvaziava a mesa. Perguntou:
— E quanto a si? Qual é a sua história com o FBI?
— Muito simples, para dizer a verdade. Justiça criminal
como especialização, contabilidade como
subespecialização, recrutada da Penn State. Boas
gratificações, bons subsídios, mulheres muito procuradas e
valorizadas. Nada de original.
— Porquê a brigada dos bancos? Pensava que o
caminho mais rápido era antiterrorismo, coisas relacionadas
com a administração, até mesmo drogas. Mas não a brigada
pesada.
— Fiz administração durante cinco anos. Também estive
em DC, o lugar certo para se estar. O problema é que o rei
estava nu, era tudo muito, muito chato. Sorriu e abanou a
cabeça. — Entendi que a única coisa que queria ser era
policial. Por isso, foi nisso que me tornei. Transferi-me para a
primeira boa unidade de rua em que apareceu uma vaga.
LA é a capital dos assaltos aos bancos do país. Quando
apareceu uma vaga aqui, puxei das minhas competências e
consegui a transferência. Pode me chamar de dinossauro, se
quiser.
— É demasiado bonita para isso.
Apesar do bronzeado intenso, Bosch notou que o
comentário deixara-a embaraçada. Também embaraçou a
ele, ter deixado escapar algo assim.
— Desculpe, disse ele.
— Não. Não, foi simpático. Obrigada.
— Bem, é casada, Eleanor? Perguntou e ficou
imediatamente ruborizado, lamentando a sua falta de
sutileza. Ela sorriu com a atrapalhação dele.
— Fui. Mas há muito tempo. Bosch assentiu com a
cabeça.
— Não tem nada... E o Rourke? Vocês os dois parecem...
— O quê? Está brincando?
— Desculpe. Desataram os dois a rir e depois
continuaram com sorrisos e um longo e confortável silêncio.
Depois do almoço, passearam pelo cais indo até ao local
onde, noutros tempos, Bosch estivera parado com uma vara
de pesca na mão. Não havia ninguém pescando. Vários dos
edifícios no final do cais estavam abandonados. Na
superfície da água ao pé de um dos pilares se via o brilho de
um arco-íris. Bosch reparou que os surfistas já tinham ido
embora. “Vai ver, os garotos estavam todos na escola”,
pensou Bosch. “Ou talvez já não se pescasse ali. Vai ver os
peixes se recusavam a vir até tão dentro da baía
envenenada”.
— Há muito tempo que não vinha aqui, disse ele a
Eleanor. Encostaram-se ao parapeito, os cotovelos na
madeira riscada por milhares de facas para isca. — As
coisas mudam.
Regressaram ao Federal Building no meio da tarde.
Eleanor Wish investigou no NCIC os nomes e os números de
identificação dos presos que Scales lhes dera além dos
computadores do departamento de justiça e pediu por fax
fotografias de vários prisioneiros. Bosch apanhou a lista dos
nomes e telefonou para os arquivos militares dos Estados
Unidos em St. Louis, pedindo para falar com Jessie St. John,
a mesma funcionária com quem tinha tratado na segunda-
feira de manhã. Ela disse que o arquivo sobre William
Meadows que Bosch pedira já estava a caminho. Bosch não
lhe disse que já tinha lido a cópia do FBI. Em vez disso,
convenceu-a a ir buscar no computador os nomes que ele
tinha e a lhe dar as biografias básicas de cada homem.
Reteve-a até bem depois do final do seu turno de trabalho
às cinco horas de St. Louis. Mas ela disse que queria ajudar.
Às cinco horas de LA, Bosch e Eleanor tinham vinte e
quatro fotografias acompanhadas de curtos resumos dos
registros militares e prisionais dos homens. Nada do que
tinham ali saltou da mesa de Eleanor e atingiu qualquer
deles na cabeça. Quinze dos homens prestaram serviço no
Vietnam durante o período em que Meadows estivera lá.
Onze deles eram do exército dos Estados Unidos. Nenhum
deles fora rato dos túneis, embora quatro fossem do
Primeiro de Infantaria e estivessem com Meadows durante a
primeira fase deste. Havia dois outros que foram PMs em
Saigon. Concentraram-se nos registros do NCIC dos seis
soldados que tinham pertencido ao Primeiro de Infantaria ou
que foram da polícia militar. Só os PMs é que tinham
cadastro por assaltos a bancos. Bosch procurou nas
fotografias e tirou a desses dois para fora. Olhou
atentamente para os rostos, meio esperando de obter uma
confirmação da parte daqueles olhares duros e
desinteressados que eles tinham voltado para as câmaras
fotográficas.
Chamavam-se Art Franklin e Gene Delgado. Ambos
tinham endereços de Los Angeles. No Vietnam, participaram
das duas comissões em Saigon, mas em unidades da PM
diferentes. E não na da embaixada, em que Meadows
estivera ligado. Mas, de qualquer maneira, estavam na
mesma cidade. Ambos foram desmobilizados em 1973,
mas, tal como Meadows, continuaram no Vietnam como
conselheiros militares civis. Ficaram lá até o fim, Abril de
1975. Não havia a menor dúvida na cabeça de Bosch. Os
três homens; Meadows, Franklin e Delgado já se conheciam
antes de terem se encontrado na Charlie Company no
Condado de Ventura.
Já nos EEUU, a seguir a 1975, Franklin participou de
numa série de assaltos em San Francisco e foi posto à
sombra durante cinco anos. Foi condenado pelo crime
federal de assalto a um banco em Oakland em 1984 e
estava na TI ao mesmo tempo em que Meadows. Foi em
liberdade condicional para Charlie Company dois meses
antes de Meadows deixar o programa. Já Delgado era
estritamente um criminoso estadual; três acusações por
assalto em LA, de que se conseguiu safar com uma pena na
cadeia do condado, depois uma tentativa de assalto a um
banco em Santa Ana em 1985. Declarou-se culpado perante
um tribunal estadual depois de ter conseguido um acordo
com as autoridades federais. Foi para Soledad, saindo em
1985 e chegando à Charlie Company três meses antes de
Meadows. Saiu da Charlie Company um dia depois de
Franklin chegar.
— Um dia, disse Eleanor. — Isto quer dizer que os três
só estiveram juntos na Charlie Company durante um dia.
Bosch olhou para as fotografias e para as descrições
que as acompanhavam. Franklin era o maior dos dois. Um
metro e oitenta, oitenta e seis quilos, cabelo escuro.
Delgado era magro, um metro e sessenta e cinco, sessenta
e cinco quilos. Cabelo escuro, também. Bosch observou
atentamente os rostos dos dois homens ao mesmo tempo
em que pensava nas descrições dos homens no jipe que
tinham largado o cadáver de Meadows.
— Vamos falar com Sharkey, disse ele passado um
tempo.
Telefonou para o Home Street Home e disseram o que
ele já sabia que iam dizer. Sharkey tinha ido embora. Bosch
tentou o Blue Chateau e uma voz velha e cansada disse que
Sharkey e o seu bando tinham se mudado ao meio-dia. A
mãe bateu o telefone quando descobriu que ele não era um
cliente. Já eram quase sete horas. Bosch disse a Eleanor que
tinham de voltar para as ruas para o encontrarem. Ela
respondeu que iria dirigindo. Passaram as duas horas
seguintes em West Hollywood, quase sempre no corredor da
Santa Monica Boulevard. Mas não havia sinais de Sharkey
nem da moto acorrentada a um parquímetro. Interpelaram
uns carros patrulhas do xerife e explicaram de quem
andavam a procura, mas nem sequer aqueles pares de
olhos extras, ajudaram. Pararam junto da calçada do Oki
Dog e Bosch pensou que, vai ver, o rapaz tinha voltado para
casa da mãe e ela tinha desligado o telefone para protegê-
lo.
— Quer dar um passeio até Chatsworth? Perguntou a
Eleanor.
— Por muito que eu gostasse de ver essa bruxa, que
você me diz que Sharkey tem como mãe, estava pensando
era em dar o dia por terminado. Podemos encontrar Sharkey
amanhã. Que tal aquele jantar que não tivemos na noite
passada?
Bosch queria apanhar Sharkey, mas também queria
apanhar a ela. Eleanor tinha razão, havia sempre um
amanhã.
— Parece bom, respondeu ele. — Onde tem vontade de
ir?
— A minha casa.
Eleanor Wish morava numa casa geminada que ela
subalugava e que ficava a dois quarteirões da praia de
Santa Monica. Estacionaram na calçada à frente da casa e,
quando entravam, ela disse a Bosch que, embora morasse
perto, se quisesse ver o oceano tinha de ir até à varanda do
quarto, se inclinar toda e olhar para a direita até ao fundo
do Ocean Parle Boulevard. Podia então ver uma nesga do
Pacífico entre duas torres de um condomínio que tapava a
marginal. “Desse ângulo”, acrescentou ela, também podia
ver dentro do quarto do vizinho da casa ao lado. O vizinho
era um ator de televisão caído em desgraça, que tinha se
tornado um traficantezinho de drogas, com uma procissão
interminável de mulheres entrando pelo quarto. “Acabará
por dar na vista, por assim dizer”, ela comentou. Disse a
Bosch para sentar na sala enquanto ela tratava do jantar.
— Se gosta de jazz, tenho um CD aí que comprei há
pouco tempo, mas que ainda não tive tempo para ouvir.
Ele se dirigiu para a aparelhagem estereofônica, que
estava arrumada em prateleiras ao pé de uma estante de
livros fechada, e apanhou o CD novo. Era FALLING IN LOVE
WITH JAZZ, de Rollins, e Harry sorriu para consigo porque
tinha um em casa. Era um elo de ligação agradável. Abriu o
aparelho, colocou o CD, pôs a música para tocar e começou
a olhar em volta da sala. Havia pequenos tapetes em tons
pastel e cobertas de cores claras na mobília. Havia livros de
arquitetura e revistas sobre casas espalhados em cima de
uma mesinha de tampo de vidro em frente de um sofá azul-
claro. Estava tudo muito arrumado e limpo. Um quadro em
ponto de cruz na parede ao lado da porta dizia “BEM-
VINDO A ESTA CASA”. Letras pequeninas bordadas no
canto diziam EDS 1970, e Bosch perguntou para consigo o
que seria a última letra.
Sentiu outra daquelas ligações psíquicas com Eleanor
Wish quando se voltou e olhou para a parede por cima do
sofá. Emoldurada em madeira preta, estava uma
reprodução de Nighthawks de Edward Hopper. Bosch não
tinha o quadro em casa, mas estava familiarizado com a
pintura e de vez em quando chegava mesmo a pensar nela
quando estava concentrado num caso ou numa vigilância.
Uma vez tinha visto o original em Chicago e ficara plantado
à sua frente, estudando-o durante uma hora. Um homem
calado e sombrio está sentado sozinho ao balcão de um
diner voltado para a rua. Olha para outro cliente à sua
frente, um homem muito parecido com ele, só que o
segundo homem está com uma mulher. De certa forma,
Bosch se identificou com ele, com o primeiro homem. “Eu
sou o solitário”, pensou Bosch. Sou o noitibó. O quadro, com
as suas tonalidades escuras e sombras não se integrava
naquela casa, notou Bosch. Por que Eleanor o tinha? O que
ela via nele?
Observou o resto da sala. Não havia televisão. Só havia
a aparelhagem e alguns livros de advocacia, na estante
encostada à parede em frente do sofá. Aproximou-se e deu
uma vista de olhos na coleção através das portas de vidro.
As duas prateleiras superiores eram quase todos de livros
eruditos das séries livros do mês, e que passavam depois a
livros policiais de escritores como Crumley e Willeford, entre
outros. Tinha lido alguns deles. Abriu a porta de vidro e
puxou para fora um livro intitulado THE LOCKED DOOR.
Tinha ouvido falar do livro, mas nunca o tinha encontrado
para comprar. Abriu-o para ver quantos anos tinha e
resolveu o mistério da última letra no quadro de ponto de
cruz. Na primeira página, a tinta, estava escrito Eleanor D.
Scarletti – 1979. “Ela devia ter ficado com o nome do
marido depois do divórcio”, pensou Bosch. Arrumou o livro e
fechou a estante.
Os livros nas duas últimas prateleiras da estante iam
dos relatos de crimes verdadeiros e dos estudos históricos
da Guerra do Vietnam até aos manuais do FBI. Até havia um
manual sobre a investigação de homicídios do
Departamento da Polícia de LA. Bosch já lera muitos desses
livros. Num deles, até aparecia. Era um livro que o jornalista
do Times Bremmer escrevera sobre o caso conhecido como
“Beauty Shop Slasher”. Um tipo chamado Harvard Kendal, o
açougueiro, matou sete mulheres num ano em San
Fernando Valley. Eram todas proprietárias ou empregadas
de salões de beleza. Esperava que os salões fechassem,
seguia as vítimas até a casa e matava-as lhes abrindo as
gargantas com um cortador de unhas muito afiado. Bosch e
o seu parceiro à altura, tinham chegado a Kendal através do
número de uma placa que a sétima vítima escrevera num
bloco, na noite anterior do seu assassinato. Nunca
descobriram porque ela o fizera, mas os detetives
suspeitavam que tivesse visto Kendal vigiando o salão em
seu carro. Escreveu o número da placa como precaução,
mas depois não tivera o mesmo cuidado ao ir para casa
sozinha. Bosch e o colega chegaram até Kendal através da
placa e descobriram que ele tinha passado cinco anos em
Folston por uma série de assaltos a salões de beleza nas
imediações de Oakland nos anos sessenta. Mais tarde
descobriram que a mãe trabalhara como manicure num
salão de beleza quando ele era pequeno. Tinha treinado o
seu ofício nas unhas do jovem Kendal e os psiquiatras
concluíram que ele nunca conseguira ultrapassar aquela
história. Bremmer escrevera um best-seller a partir daquilo.
E quando a Universal fez um filme partindo dele, o estúdio
pagou a Bosch e ao seu companheiro pela utilização dos
seus nomes e assistência técnica. O dinheiro duplicou
quando o filme deu origem a uma série policial. O
companheiro deixou o departamento e se mudou para
Ensenada. Bosch continuou investindo o seu dinheiro na
casa alçada na colina e virada para o estúdio de onde viera.
Bosch sempre achara que havia uma simbiose inexplicável
nisso.
— Li esse livro muito antes do seu nome ter aparecido
nisto. Não fez parte da pesquisa. Eleanor tinha vindo da
cozinha com dois copos de vinho tinto. Harry sorriu.
— Não ia acusá-la de nada, disse ele. — Além disso, não
é sobre mim. É sobre Kendal. De qualquer forma, tudo
aquilo foi pura sorte. Mas conseguiram fazer um livro e uma
série de televisão com isso. Seja o que for que está lá
dentro cheira bem.
— Gosta de massa?
— Gosto de spaghetti.
— É o que vamos comer. Fiz uma grande panela de
molho no domingo. Adoro passar um dia inteiro na cozinha,
sem pensar em mais nada. Acho que é uma boa terapia
para o stress. E dura e dura. A única coisa que tenho de
fazer é aquecer e cozinhar uma massa. Bosch bebeu um
gole de vinho e continuou observando o que o rodeava.
Ainda não tinha sentado, mas estava se sentindo muito
confortável na presença dela. Apontou para a reprodução de
Hooper.
— Gosto dele. Mas por que uma coisa tão escura? Ela
olhou para o quadro e franziu o sobrolho como se fosse a
primeira vez que pensava no assunto.
— Não sei, respondeu. — Sempre gostei desse quadro.
Há ali qualquer coisa que me atrai. A mulher está com um
homem. Por isso, não sou eu. Se eu fosse alguém, seria o
homem sentado com o seu café. Completamente sozinho,
observando os outros dois que estão juntos.
— Vi-o uma vez em Chicago, disse Bosch. — O original.
Tinha ido lá por causa de uma extradição e tinha de esperar
cerca de uma hora. Por isso, fui ao Art Institute e ali estava
ele. Passei toda essa hora olhando para ele. Há qualquer
coisa nele tal como você disse. Não consigo me lembrar do
caso ou de quem é que tinha ido buscar. Mas me lembro do
quadro.
Sentaram-se à mesa conversando durante quase uma
hora depois de a comida ter desaparecido. Ela lhe falou
mais do irmão e da dificuldade que tivera em ultrapassar a
raiva e a perda. Dezoito anos depois, ainda estava tentando
resolver aquilo, disse ela. Bosch disse que ele também
ainda estava tentando resolver as coisas. De tempos a
tempos, ainda sonhava com os túneis, mas o mais
frequente era precisar lutar contra a insônia. Contou-lhe
como estava confuso quando voltara, como a linha era fina,
a escolha, entre o que ele fizera a seguir e o que o Meadows
fizera. Podia ter sido diferente, disse ele e ela assentiu com
a cabeça parecendo saber que era verdade. Mais tarde, ela
lhe fez perguntas sobre o caso Dollmaker e a sua queda em
desgraça na Divisão dos Assaltos e Homicídios. Era mais do
que curiosidade. Sentiu que havia qualquer coisa
importante no que lhe contava. Ela estava tomando uma
decisão a respeito dele.
— Acho que já conhece as linhas gerais, começou ele. —
Alguém andava estrangulando mulheres, quase todas
prostitutas, e depois pintava o rosto delas com maquiagem.
Base, batom vermelho, muito rouge nas faces, eyeliner bem
marcado. Sempre a mesma coisa todas as vezes. Também
dava banho nos corpos. Mas nunca dissemos que parecia
que estava transformando-as em bonecas. Um idiota
qualquer, acho que foi o tipo chamado Sakai da sala do
médico-legista, deixou escapar que a maquiagem era o
denominador comum. E a seguir esta história de Dollmaker
começou a aparecer na imprensa. Acho que foi o Chanel 4
que primeiro apareceu com o nome. E pegou. Mas a
verdade é que não estávamos conseguindo grandes
resultados. Não conseguimos nada sobre o tipo até ele
chegar aos dois dígitos. Não havia muitas provas físicas. As
vítimas eram largadas em vários lugares, sem nenhum
padrão, por todo o Westside. Sabíamos pelas fibras
encontradas nalguns dos cadáveres que o tipo
provavelmente usava uma peruca ou qualquer outro tipo de
disfarce com cabelos, uma barba falsa, ou qualquer coisa
dessas. As mulheres que foram apanhadas na rua,
conseguimos isolar as horas e os locais dos seus últimos
encontros. Fomos aos motéis que alugam quartos por hora e
não descobrimos nada. Por isso, deduzimos que o tipo
apanhava-as de carro e depois as levava para um lugar
qualquer, talvez a casa dele, ou um lugar seguro que ele
usasse para cometer os crimes. Começamos a vigiar o
Boulevard e os outros lugares onde as profissionais atuam e
devemos ter dado cabo de uns trezentos encontros até
termos sorte. Uma prostituta chamada Dixie McQueen
telefonou para a delegacia numa manhã cedo, dizendo que
acabara de fugir do Dollmaker e perguntava se havia uma
recompensa se o entregasse. Bem, nós andávamos
recebendo chamadas como aquela durante toda a semana.
Quero dizer, onze mulheres assassinadas e as pessoas
começam a aparecer de todos os lados com pistas que não
são pistas de verdade. E o pânico na cidade.
— Eu me lembro, disse Eleanor.
— Mas Dixie era diferente. Eu estava trabalhando no
último turno na sala da delegacia nesse dia e atendi a
ligação. Fui falar com ela. Ela me contou que o tipo que ela
apanhou na Hollywood ao pé da Spa Row, sabe, ao pé da
mansão da Cientologia, a levou para este apartamento-
garagem em Silver Lake. Ela disse que enquanto o tipo
estava se despindo, ela quis ir ao banheiro. Entrou e
enquanto deixava a água correndo, espreitou dentro do
armário por baixo do lavatório, provavelmente para ver se
havia qualquer coisa que valesse a pena roubar. Mas vê
todos estes frasquinhos, caixinhas e todas estas coisas de
mulheres. Olha para aquilo tudo e associa tudo. Assim, de
repente. Bingo! Este tem que ser o tipo. Por isso, fica
aterrorizada e resolve se mandar. Sai do banheiro e o tipo
está na cama. Ela se raspa pela porta da frente. Bem, o que
acontecia era que nós não tínhamos tornado públicas todas
aquelas informações sobre a maquiagem. Ou, melhor, o
idiota que tinha passado a informação para a imprensa não
dissera tudo. Nós sabíamos que o tipo guardava as coisas
das vítimas. Elas eram encontradas com as carteiras, mas
não os cosméticos, batom, rouge, sombras, coisas assim.
Por isso, quando Dixie me contou o que estava dentro do
armário, despertou a minha atenção. Sabia que ela estava
dizendo a verdade. E foi aqui que eu fiz besteira. Eram três
da manhã quando acabei de falar com Dixie. Toda a gente
da delegacia tinha ido para casa e eu fiquei ali pensando
que o tipo podia entender que a Dixie o descobrira e se
mandar. Por isso, fui lá sozinho. Quer dizer, Dixie também
foi comigo para me mostrar o lugar, mas depois ficou no
carro. Mal chegamos lá, vi uma luz acesa por cima da
garagem que ficava atrás daquela casa em ruínas na
esquina da Hyperion. Telefonei pedindo reforços e, enquanto
estou esperando, vejo pela janela, a sombra do tipo
andando de um lado para o outro. Algo me diz que ele está
se preparando para sumir e levar tudo o que estava no
armário com ele. E nós não tínhamos conseguido nenhuma
prova nos onze cadáveres. Precisávamos das coisas que
estavam no armário do banheiro. A outra coisa a considerar
era: e se ele tivesse alguém com ele? Uma substituta da
Dixie? Por isso fui lá. Sozinho. Já sabe o resto. Eleanor disse:
— Entrou sem mandado e disparou quando ele estava
colocando a mão debaixo do travesseiro da cama. Mais
tarde, disse para a equipe de atiradores que julgara ser uma
situação de emergência. Ele tivera tempo suficiente para ter
saído e arranjado outra prostituta. Você disse que isso lhe
dava autoridade para entrar pela porta adentro sem
mandado. Disse que disparou porque julgou que o suspeito
ia apanhar uma arma. Foi um tiro só, na parte superior do
torso, a uma distância de cinco, seis metros, se me recordo
bem do relatório. Mas o Dollmaker estava sozinho e debaixo
do travesseiro estava apenas a peruca dele.
— Só a peruca, disse Bosch. Abanou a cabeça como um
quarterback na manhã de segunda-feira. — A equipe de
atiradores me inocentou. Ligámo-lo a dois dos corpos
através do cabelo da peruca e conseguimos determinar que
os produtos de maquiagem do banheiro tinham pertencido a
oito das vítimas. Não havia a menor dúvida. Era ele. Eu
estava ilibado, mas, nessa altura as moscas varejeiras
apareceram. Uma expedição Lewis e Clarke. Pegaram Dixie
e conseguiram que ela assinasse um depoimento dizendo
que ele guardava a cabeleira debaixo do travesseiro. E que
me dissera isso antes de eu ir lá. Não sei o que eles usaram
contra ela, mas sou capaz de imaginar. Os Assuntos
Internos sempre tiveram raiva de mim. Não gostam de
ninguém que não seja cem por cento da família. Seja como
for, de repente, fico sabendo que vão apresentar uma
queixa do departamento contra mim. Queriam me despedir
e levar Dixie ao júri de acusação para conseguirem me levar
a julgamento. Parecia que a água estava cheia de sangue e
havia dois grandes tubarões brancos. Parou ali, mas Eleanor
continuou:
— No entanto, Harry, os detetives dos Assuntos Internos
interpretaram mal as coisas. Não notaram que a opinião
pública ia ficar do seu lado. Você era conhecido nos jornais
como o tira que resolvera os casos Beauty Shop Slasher e
Dollmaker. Um personagem de um programa de televisão.
Não podiam dar cabo de si sem ficarem sujeitos a um
exame público meticuloso e sem que o departamento
ficasse mal visto.
— Alguém acima deles se tocou e impediu a jogada do
tribunal, disse Bosch. — Tiveram de se contentar em me
suspender e me despromover para os Homicídios de
Hollywood. Bosch segurava o copo de vinho vazio e estava
rodando-o distraidamente entre os dedos, em cima da
toalha. — E aqueles dois tubarões do AI continuam a pairar
por aí, esperando apanharem os restos da matança, disse
ele passado um tempo.
Deixaram-se ficar sentados em silêncio durante um
pedaço. Ele estava esperando que ela fizesse a pergunta
que já fizera uma vez. A prostituta tinha mentido? Mas não
a fez e, passado um pedaço, se limitou a olhar sorrindo para
ele. E ele se sentiu como se tivesse acabado de passar no
teste. Ela começou a retirar os pratos da mesa. Bosch
ajudou-a na cozinha e quando o trabalho estava terminado,
pararam muito perto um do outro, secando as mãos no
mesmo pano da louça, e se beijaram de leve. Depois, como
se seguissem os mesmos sinais secretos, se apertaram um
contra o outro e se beijaram com aquela fome que as
pessoas sozinhas sentem.
— Quero ficar, disse Bosch depois de se ter afastado
momentaneamente.
— E eu quero que fique, disse ela.
Os olhos drogados de Arson estavam brilhantes e
refletiam a noite de néon. Deu uma longa tragada no Kool e
guardou a fumaça preciosa dentro de si. O cigarro tinha sido
mergulhado em pó-de-anjo. O rosto se rasgou num sorriso
enquanto os jatos de fumaça escapavam pelas narinas.
Disse:
— É o único tubarão que conheço que é usado como
isca. Soltou uma gargalhada e deu outra tragada antes de
passar o cigarro a Sharkey, que o afastou porque já tinha
fumado o suficiente. Mojo apanhou-o.
— Pois eu estou ficando farto desta merda, disse
Sharkey. — Desta vez é você.
— Calma, meu. Você é o único que é capaz de se safar
com isso, meu. O Mojo e eu não fazemos o papel tão bem
quanto você. Além disso, nós temos a nossa parte. Você não
é suficientemente grande para dar porrada nesses gays.
— Bem, por que não voltamos outra vez ao 7-Eleven?
Disse Sharkey. — Não gosto disto de não saber quem é.
Gosto mais do 7-Eleven. Lá nós escolhemos a nossa carne,
não são eles que nos escolhem.
— Nem pensar, disse Mojo, falando pela primeira vez. —
Voltamos lá, sem saber se aquele último tipo deu queixa ou
não? Temos que ficar longe durante algum tempo.
Provavelmente, eles estão vigiando o lugar do mesmo
parque de estacionamento que nós usamos.
Sharkey sabia que eles tinham razão. Só achava que
andar por Santa Monica na área dos gays estava ficando
muito sério. “Não demoraria nada”, pensou ele, para os dois
drogados não terem vontade de atacar. Iam querer que ele
fizesse tudo até ao fim, que conseguisse o dinheiro assim.
Sabia que seria nessa altura que lhes diria adeus.
— OK, disse ele descendo o passeio. — Não me fodam.
Começou a atravessar a rua. Arson gritou atrás dele:
— BMW, ou melhor!
“Como se eu precisasse que me dissessem”, pensou
Sharkey. Andou meio quarteirão em direção a La Brea e se
encostou à porta de uma gráfica que estava fechada. Ainda
estava a meio quarteirão do Hot Rods, uma livraria para
adultos. Mas suficientemente perto para atrair o olhar de
alguém que saísse de lá. Se o tira andasse à sua procura.
Olhou para trás, na direção contrária, e viu o clarão do
bagulho na escuridão da entrada do beco onde Mojo e Arson
estavam sentados nas suas motos. Sharkey ainda não
estava ali há dez minutos quando um carro, um Grand Am
novo, parou junto da calçada e a janela elétrica desceu.
Sharkey estava disposto a ignorar este, se lembrando do
BMW, ou melhor, até que viu o brilho do ouro e se
aproximou. A adrenalina lhe subiu em flecha. O pulso que o
motorista tinha pousado no volante estava adornado com
um Rolex Presidential. Se fosse verdadeiro, Arson sabia
onde poderiam conseguir 3000 dólares por ele. Mil para
cada um sem falar no que o tipo poderia ter em casa ou na
carteira. Sharkey examinou o homem. O tipo parecia um
heterossexual, um homem de negócios. Cabelo escuro,
terno escuro. Pelos quarenta e cinco anos, não muito
grande. Sharkey devia até ser capaz de dar conta dele
sozinho. O homem sorriu para Sharkey e disse:
— Ei, como é que vai isso?
— Não vai mal. O que está acontecendo?
— Oh, não sei. Só vim dar uma volta. Quer dar uma
volta?
— Aonde?
— A nenhum lugar especial. Sei de um lugar onde
podemos ir. Para estarmos sozinhos.
— Tem cem dólares consigo?
— Não, mas tenho cinquenta dólares para um basebol
noturno.
— Lançador ou apanhador?
— Sou um lançador. E trouxe a minha luva.
Sharkey hesitou e deu uma olhadela para a entrada
onde tinha visto o clarão do cigarro. Tinha desaparecido.
Deviam estar prontos para avançar. Voltou a olhar para o
relógio.
— Certo, disse ele e entrou no carro.
O carro seguiu para oeste, passando pela entrada do
beco. Sharkey se conteve para não olhar, mas julgou ouvir o
barulho das motos deles acelerando. Vinham atrás.
— Onde é que vamos? Perguntou Sharkey.
— Oh, não posso ir para casa consigo, meu amigo. Mas
sei de um lugar para onde podemos ir. Ninguém nos
incomodará.
— Ótimo.
Pararam no semáforo em Flores o que fez com que
Sharkey se lembrasse do tipo da outra noite. Estavam perto
da casa dele. O Arson andava batendo com mais força, pelo
que parecia. Isto ia precisar terminar em breve ou
acabariam por matar alguém. Esperava que o homem do
Rolex o entregasse pacificamente. Não havia maneira de
saber o que aqueles dois seriam capazes de fazer.
Carregados de pó-de-anjo, estariam prontos para a guerra e
para fazerem sangue. De repente, o carro se lançou para o
cruzamento. Sharkey viu que a luz continuava vermelha.
— O que está acontecendo? Perguntou asperamente.
— Nada. Cansei de ficar esperando. Mais nada.
Sharkey pensou que não haveria nada de suspeito em
olhar para trás naquela altura. Voltou-se e só viu carros
parados esperando no cruzamento. Não havia motos.
“Aqueles filhos da mãe”, ele pensou. Sentiu a humidade que
se começava a formar na cabeça e os primeiros tremores de
medo. O carro virou à direita seguindo o Barnieos Bearney e
subiu a colina em direção a Sunset. Depois viraram para
Highland e o homem com o Rolex voltou a virar para o
norte.
— Já estivemos juntos alguma vez? Perguntou o homem.
— Parece-me familiar. Não sei, vai ver só nos vimos por aí.
— Não, eu nunca... Não acho.
— Olhe para mim.
— O quê? Perguntou Sharkey espantado com a pergunta
e com o tom duro da voz do homem. — Por quê?
— Olha para mim. Conhece-me? Já me viu antes?
— O que é isto? Um anúncio de um cartão de crédito? Já
disse que não, meu.
O homem saiu da estrada e entrou no parque de
estacionamento oriental do Hollywood Bowl. Estava deserto.
Dirigiu depressa e sem dizer mais nada até à zona norte
que estava às escuras. Sharkey pensou, “Se este é o seu
sitiozinho, então o Rolex que tem no braço não é
verdadeiro”.
— Ei, o que estamos fazendo, meu? Perguntou Sharkey.
Estava raciocinando numa maneira de se safar daquilo.
Tinha certeza que Arson e Mojo, drogados como estavam,
tinham se perdido. Estava sozinho com aquele tipo e queria
cair fora.
— O estádio está fechado, disse o Rolex. — Mas eu
tenho a chave dos vestiários. Só temos que entrar no túnel
por baixo do Cahuenga e depois, perto do lugar onde ele
volta a subir, há um pequeno passadiço que nos leva por
toda a volta. Não vai haver ninguém. Trabalho aqui.
Conheço isto.
Por um instante, Sharkey ainda pensou em tentar atacar
o homem sozinho, depois decidiu que não era capaz. A não
ser que houvesse uma maneira de apanhá-lo de surpresa.
Em seguida veria. O homem desligou o motor do carro e
abriu a porta do seu lado. Sharkey abriu a dele, saiu e olhou
para o outro lado da extensão às escuras do parque de
estacionamento. Estava à procura de duas luzes das motos,
mas não havia nenhuma. “Vou tratar deste tipo do outro
lado”, resolveu ele. Iria fazer a sua jogada. Ou bater e
correr, ou apenas correr. Encaminharam-se na direção do
letreiro que dizia Caminho de Peões. Havia um anexo em
cimento com uma porta aberta e depois umas escadas.
Enquanto desciam os degraus brancos, o homem com o
Rolex pôs a mão em cima do ombro de Sharkey e depois lhe
acariciou o pescoço num gesto paternal. Sharkey conseguia
sentir o metal frio da pulseira do relógio. O homem disse:
— Tem certeza que não nos conhecemos, Sharkey? Que
não nos vimos antes?
— Não, meu. Já lhe disse, nunca estive consigo.
Estavam já no meio do túnel quando Sharkey notou que
nunca dissera ao homem como se chamava.
 
CAPÍTULO 5
Quinta- Feira, 24 de maio
Para ele já fora há muito tempo. E, no quarto de
Eleanor, Harry Bosch foi desajeitado como um homem que
está excessivamente consciente de si mesmo e sem prática.
Tal como acontece nas primeiras vezes, não foi bom. Ela
guiou-o com as mãos e com suspiros. E, depois, ele sentiu
vontade de pedir desculpas, mas não o fez. Abraçaram-se e
adormeceram. O cheiro do cabelo dela no rosto dele. O
mesmo aroma de maçã que ele sentira na sua própria
cozinha na noite anterior. Bosch estava apaixonado por ela
e queria respirar o cheiro do seu cabelo a cada minuto.
Passado um tempo, acordou-a com um beijo e voltaram a
fazer amor. Desta vez, ele não precisou que ela o orientasse
e ela não precisou das próprias mãos. Quando acabaram,
Eleanor perguntou num sussurro:
— Acha que uma pessoa pode estar só neste mundo
sem se sentir solitária? Ele não lhe respondeu logo e ela
perguntou: — Está só ou se sente solitário, Harry Bosch? Ele
pensou um tempo naquilo enquanto os dedos dela
desenhavam suavemente a tatuagem do braço dele.
— Não sei, sussurrou ele por fim. — Uma pessoa se
habitua de tal maneira às coisas tal como elas são. E eu
tenho estado sempre só. Acho que isso faz de mim um
solitário. Até agora.
Sorriram na escuridão, se beijaram e pouco depois ele
ouviu a respiração profunda dela dormindo. Bosch se
levantou da cama. Enfiou as calças e foi até a varanda para
fumar. No Ocean Park Boulevard não havia trânsito e ele
conseguia ouvir o barulho do mar ali perto. As luzes
estavam apagadas no apartamento ao lado. Estavam
apagadas em todo o lado exceto na rua. Conseguia ver que
os jacarandás ao longo da calçada estavam perdendo as
flores. Elas tinham caído como neve violeta no chão e nos
carros estacionados ao longo do passeio. Bosch se apoiou
no parapeito e soprou a fumaça para o vento frio da noite.
Quando estava no segundo cigarro, ouviu a porta atrás de si
deslizar, abrir e depois sentiu as mãos dela lhe rodeando a
cintura quando o abraçou por trás.
— Algum problema, Harry?
— Nenhum, estou só pensando. É melhor ter cuidado.
Alerta cancerígeno. Já ouviu falar da servidão do risco da
inalação?
— Avaliação, Harry, não servidão. Em que está
pensando? É assim que a maior parte das noites é para
você? Bosch se virou nos braços dela e lhe beijou a testa.
Ela vestia um robe curto de seda cor-de-rosa. Ele esfregou o
polegar pela curva do pescoço dela.
— Quase nenhuma noite é como esta. Não consegui
dormir, mais nada. Acho que estava pensando numa porção
de coisas.
— Em nós? Perguntou ela lhe dando um beijo no queixo.
— Acho que sim.
— E...? Levou a mão ao rosto dela e lhe desenhou o
maxilar com os dedos.
— Estava pensando como é que arranjou esta
cicatrizinha aqui.
— Oh... Isso foi quando eu era pequena. Eu e o meu
irmão estávamos andando de bicicleta e eu ia ao guidom.
Estávamos descendo uma colina, se chamava Highland
Avenue, isto foi quando moramos na Pensilvânia, e ele
perdeu o controle. A bicicleta começou a derrapar de um
lado para o outro e eu fiquei cheia de medo porque sabia
que íamos cair. E precisamente quando ele de fato deixou
por completo de controlá-la e estávamos caindo, ele gritou:
“Ellie, não vai acontecer nada!” Assim, sem mais nem
menos. E porque ele tinha gritado aquilo, teve razão. Cortei
o queixo, mas nem sequer chorei. Sempre achei que aquilo
era uma coisa especial, ele se ter preocupado mais comigo
do que com ele próprio. Mas o meu irmão era mesmo assim.
Bosch largou o rosto dela e disse:
— Também estava pensando que o que aconteceu entre
nós foi bom.
— Também acho Harry. Bom para um par de noitibós.
Agora, volte para a cama.
Voltaram para dentro. Primeiro Bosch foi ao banheiro e
usou o dedo como escova de dentes e depois voltou a se
enfiar por baixo do lençol com ela. O clarão azul de um
relógio digital na mesinha de cabeceira marcava 2:26 e
Bosch fechou os olhos. Quando voltou a abrir o relógio
marcava 3:46 e havia um som chilreado irritante que vinha
de em algum lugar no quarto. Notou que não estava no
quarto dele. Depois se lembrou de que estava no quarto de
Eleanor Wish. Quando finalmente se orientou, viu a sombra
da figura dela dobrada ao lado da cama, as mãos
vasculhando as roupas dele.
— Onde é que ele está? Perguntou ela. — Não consigo
encontrar.
Bosch apanhou nas calças, passou as mãos ao longo do
cinto até encontrar o pager e desligá-lo sem precisar andar
às apalpadelas. Já fizera aquilo muitas vezes às escuras.
— Bolas! Disse ela. — Que irritante!
Bosch virou as pernas para fora da cama, enrolou o
lençol em volta da cintura e se sentou. Bocejou e depois a
avisou que ia acender a luz. Ela disse que estava bem e
quando a luz acendeu, atingiu-o nos olhos como o cintilar de
um diamante. Quando a sua visão se recompôs, ela estava
de pé à frente dele, nua, olhando para a tela digital do
pager na mão dele. Por fim, Bosch baixou os olhos para ver
o número que não reconheceu. Esfregou o rosto com a outra
mão e passou-a pelo cabelo. Havia um telefone na mesa de
cabeceira e puxou-o para o colo. Discou o número e depois
revolveu a roupa com as mãos à procura de um cigarro que
pôs na boca, mas não acendeu. Eleanor se deu conta da sua
nudez e se dirigiu até a cadeira para apanhar o robe. Depois
de vesti-lo, foi para o banheiro e fechou a porta. Bosch
escutou a água correndo. Do outro lado, atenderam logo no
primeiro toque. Jerry Edgar não atendeu com nenhuma
saudação, apenas com um “Harry, onde é que você está?”.
— Não estou em casa. O que está acontecendo?
— Este garoto que você andava procurando, aquele do
telefonema para o nove-um-um, encontrou-o, não foi?
— Sim, mas nós estamos à procura dele outra vez.
— Quem é o “nós”? Você e a mulher do FBI? Eleanor
saiu do banheiro e se sentou na borda da cama, ao lado
dele.
— Jerry, por que está me telefonando? Perguntou Bosch.
Estava começando a sentir uma sensação de agonia no
peito.
— Qual é o nome do rapaz?
Bosch estava atordoado. Há meses que não adormecia
tão profundamente para agora ser acordado daquela
maneira abrupta. Não conseguia se lembrar do nome
verdadeiro de Sharkey e não queria perguntar a Eleanor
porque Edgar podia ouvir e ficaria sabendo que os dois
estavam juntos. Harry olhou para Eleanor e quando ela
abriu a boca para falar, lhe tocou com o dedo nos lábios
abanando a cabeça.
— É Edward Niese? Perguntou Edgar perante o silêncio.
— É assim que o garoto se chama?
A sensação de agonia desapareceu. Bosch sentiu um
punho invisível se enfiar debaixo das costelas e nas dobras
das entranhas e do coração.
— Certo, disse ele. — É esse o nome.
— Deu-lhe um dos seus cartões?
— Sim.
— Harry, você já não está mais a procura dele.
Encontrou-o.
— Conte-me.
— Venha aqui ver. Estou no estádio. O Sharkey está no
túnel dos peões por baixo do Cahuenga Park, no lado
oriental.
O estacionamento oriental do Hollywood Bowl deveria
estar deserto às quatro e meia da manhã. Mas quando
Bosch e Eleanor Wish subiram a Highland até à entrada do
Cahuenga Park, viram que a ponta norte da zona de
estacionamento estava cheia do grupo habitual de carros
oficiais que indicam o fim violento, ou pelo menos,
inesperado, de uma vida. A fita de plástico amarela de cena
do crime formava um quadrado, fechando a entrada para a
escada que descia para a passagem subterrânea dos peões.
Bosch exibiu o distintivo e deu o nome a um policial
uniformizado que estava controlando a lista dos agentes
que deviam estar presentes. Ele e Eleanor passaram por
baixo da fita e foram recebidos pelo barulho de uma
máquina que ecoava da saída do túnel. Bosch notou pelo
som que era um gerador que alimentava as luzes da cena
do crime. No primeiro degrau, antes de começarem a
descer, se voltou para Eleanor e disse:
— Quer ficar aqui? Não precisamos ir os dois.
— Sou policial, por amor de Deus, respondeu ela. — Já vi
cadáveres antes. Vai se fazer de meu protetor, Bosch?
Deixe-me perguntar uma coisa: você quer ficar aqui e eu
desço?
Espantado com aquela mudança de humor repentina,
Bosch não respondeu. Olhou para ela durante um longo
momento, confuso. Começou a descer uns degraus à frente
dela, mas parou quando viu o corpo grande de Edgar saindo
do túnel e começar a subir as escadas. Edgar viu Bosch e
depois Bosch viu os olhos dele passarem por cima do ombro
dele abarcando Eleanor Wish.
— Hei, Harry disse ele. É a sua nova parceira? Já devem
estar se dando muito bem.
Bosch se limitou a olhar fixamente para ele. Eleanor
ainda estava alguns degraus atrás e, provavelmente, não
tinha ouvido o comentário.
— Desculpe Harry, disse Edgar suficientemente alto
para se fazer ouvir por cima do barulho do gerador. — Fui
inconveniente. Tem sido uma noite péssima. Devia ver
quem é que eu tenho como meu novo parceiro, o inútil do
filho da puta que o “Noventa e Oito” Pounds me arranjou.
— Pensava que ia ficar com...
— Não. Ouça isto: o Pounds me pôs com o Porter dos
carros. O tipo é um imbecil.
— Eu sei. Como é que o conseguiu arrancar da cama
para isto?
— Não estava na cama. Tive de apanhá-lo no Parrot em
North Hollywood. É um daqueles clubes privados para
bêbados. O Porter me deu o número, mal nos disseram que
íamos ser parceiros e falou que é lá que passa a maioria das
noites. Disse que tem um trabalhinho extra como
segurança. Mas eu liguei para a sala dos serviços de folga
no Parker Center e não há nada registrado. A única coisa
que ele faz lá é mergulhar nos copos. Ele devia estar
praticamente desmaiado quando telefonei. O barman disse
que o pager do cinto tocou, mas ele nem ouviu. Harry, eu
acho que o tipo rebentava a escala se o fizéssemos soprar
no bafômetro neste preciso momento.
Bosch assentiu com a cabeça e franziu o sobrolho
durante os três segundos exigidos e depois esqueceu os
problemas de Jerry Edgar. Sentiu Eleanor descer o degrau e
ficar ao seu lado e apresentou-a a Edgar. Eles trocaram um
aperto de mão, sorriram e Bosch disse:
— Então, o que temos?
— Bem, encontramos isto no cadáver, disse Edgar
levantando um saco de plástico transparente.
Lá dentro, estava um montinho de fotos Polaroid. Mais
fotografias de Sharkey nu. Ele não tinha perdido tempo em
refazer o fornecimento. Edgar virou o saco e lá estava o
cartão de Bosch.
— Parece que o garoto era um prostituto em Boytown,
disse Edgar, — Mas se o apanhou uma vez, já sabe isso.
Seja como for, vi o cartão e calculei que devia ser o rapaz
da ligação para o nove-um-um. Se quiser descer e olhar,
esteja à vontade. Já examinamos a cena, por isso pode
mexer no que quiser. Mas não vai conseguir pensar lá
dentro. Alguém passou por ali e quebrou todas as lâmpadas
do túnel. Não sei se foi o criminoso ou se as lâmpadas já
tinham sido quebradas antes. Bem, seja como for, tivemos
que instalar as nossas. E os cabos não eram
suficientemente compridos para podermos ligar o gerador
aqui em cima. Está lá berrando como se tivesse cinco
cavalos-vapor. Virou-se para voltar para o túnel, mas Bosch
estendeu o braço e lhe tocou no ombro.
— Jed, como receberam a chamada disto?
— Anônima. Não foi para o nove-um-um, por isso, não
há gravações nem registros. Foi direto para a delegacia de
Hollywood. Era um homem, foi a única coisa que um
daqueles rapazes gordos que a recebeu, foi capaz de dizer.
Edgar voltou a se enfiar no túnel. Bosch e Eleanor
seguiram atrás dele. Era uma passagem comprida que
curvava para a direita. O chão era de cimento sujo, as
paredes de estuque branco com várias camadas de grafite.
“Nada como uma dose da realidade urbana quando uma
pessoa vai a deixar a sinfonia do estádio”, pensou Bosch. O
túnel estava às escuras, excetuando a mancha de luz
intensa que banhava a cena do crime mais ou menos ao
meio dele. Bosch viu uma figura humana estendida de
costas. Sharkey. Conseguia ver homens de pé trabalhando
no meio da luz. Ia andando com os dedos da mão direita se
arrastando ao longo da parede. Equilibrava-o. Havia um
cheiro de mofo velho no túnel que se misturava com o novo
odor a gasolina vindo do gerador. Bosch sentia as gotas de
suor que começavam a se formar na cabeça e nos sovacos.
A respiração era rápida e superficial. Passaram o gerador
que estava a uns nove metros da entrada e depois de
outros nove metros, estava Sharkey deitado no chão do
túnel sob a luz brutal dos holofotes.
A cabeça do rapaz estava encostada na parede do túnel
num ângulo invulgar. Parecia menor e mais novo do que
Bosch se lembrava. Os olhos estavam meio abertos e
tinham o brilho vítreo familiar dos que não enxergam mais.
Vestia uma camiseta preta com as palavras Guns N’Roses
manchadas de sangue. Os bolsos dos jeans desbotados
estavam virados para fora e vazios. Ao lado dele, se via uma
lata de tinta spray enfiada num saco de provas. Na parede
por cima da cabeça dele, uma inscrição pintada dizia
DESCANSE EM PAZ SHARKEY. Fora aplicada por uma mão
inexperiente e em quantidade demasiada. A tinta preta
tinha escorrido pela parede abaixo em linhas finas, algumas
delas apanhando o cabelo de Sharkey. Quando Edgar gritou:
“Quer ver isto?” por cima do ruído do gerador, Bosch sabia
que ele estava se referindo à ferida. Como a cabeça de
Sharkey fazia um ângulo para frente, a ferida da garganta
não estava visível. Só o sangue. Bosch abanou a cabeça,
recusando. Reparou nos salpicos de sangue na parede e no
chão a cerca de um metro do corpo. Porter, o beberrão,
estava comparando as formas das gotas com as dos cartões
de salpicos de sangue presos numa argola de aço. Um
técnico de cenas de crime chamado Roberge também
estava fotografando as manchas. As gotas salpicadas na
parede eram elípticas, não era preciso cartões de salpicos
para saber que o garoto fora morto ali mesmo, no túnel.
— Pelo aspecto disto, disse Porter em voz alta para
ninguém em particular, — Alguém veio por trás dele aqui,
cortou o pescoço e empurrou-o de encontro à parede ali.
— Só está meio certo, Porter, disse Edgar. — Como é
que alguém aparece atrás de alguém num túnel destes? Ele
estava com outra pessoa e essa pessoa despachou-o. Não
foi nenhum trabalho às escondidas, Porter. Porter colocou os
cartões no bolso e disse:
— Desculpe companheiro.
Não disse mais nada. Era gordo e pesadão com o
aspecto que muitos policiais ficavam quando permaneciam
no serviço mais tempo do que deveriam. Porter ainda
conseguia usar um cinto de tamanho 34, mas por cima dele,
uma barriga tremenda saltava para fora como um toldo.
Vestia um casaco de tweed com os cotovelos esgarçados. A
cara era chupada e pálida como uma torta de farinha, por
trás de um nariz de bêbado que era grande, mal feito e
dolorosamente vermelho. Bosch acendeu um cigarro e
colocou o fósforo queimado no bolso. Agachou-se como um
apanhador de beisebol ao lado do corpo e levantou o saco
com a lata de tinta, sopesando-a. Estava quase cheia e isso
confirmou aquilo que já sabia e temia. Fora ele que tinha
matado Sharkey. De certo modo, pelo menos. Bosch tinha-o
procurado e encontrado, tornando-o valioso, ou
potencialmente valioso, para o caso. Havia alguém que não
podia permitir isso. Bosch ficou ali agachado, com os
cotovelos apoiados nos joelhos, com o cigarro na boca,
fumando e estudando o corpo para se certificar de que não
o iria esquecer.
Meadows fizera parte desta coisa, o círculo de
acontecimentos inter-relacionados que levaram a que o
matassem. Mas Sharkey não. Era lixo da rua e a sua morte
ali, provavelmente, tinha poupado a vida de outras pessoas
mais tarde. Mas não merecia isto. Nesta história, ele era um
inocente. E isso significava que as coisas tinham se
descontrolado e que havia novas regras para ambos os
lados. Bosch apontou com a mão para o pescoço de Sharkey
e um dos investigadores da Medicina Legal desencostou o
corpo da parede. Bosch apoiou uma mão no chão para se
equilibrar e fitou durante muito tempo o pescoço e a
garganta rasgados. Não queria esquecer um único
pormenor. A cabeça de Sharkey descaiu para trás expondo a
grande ferida aberta. Os olhos de Bosch não se desviaram
nem uma fração de segundo. Quando, finalmente, levantou
os olhos do corpo, reparou que Eleanor já não estava no
túnel. Levantou-se e fez sinal a Edgar para que o seguisse
até lá fora para conversarem. Harry não queria gritar mais
alto do que o barulho do gerador. Quando saíram do túnel,
viu que Eleanor estava sentada sozinha no primeiro degrau
do topo das escadas. Passaram por ela e Harry pousou a
mão no ombro dela ao passar. Sentiu que ficara rígido com
o toque. Quando ele e o companheiro estavam
razoavelmente longe do barulho, Harry perguntou:
— O que os técnicos conseguiram?
— Nada. Uma porra de nada, disse Edgar. — Se foi obra
de uma gangue, é a mais limpa que já vi. Não há uma única
impressão digital, nem sequer parcial. A lata de tinta de
spray está limpa. Não há arma. Não há testemunhas.
— O Sharkey tinha um bando, costumavam ficar num
motel perto do Boulevard, mas ele não tinha nada a ver
com gangues, disse Bosch. — Está nos arquivos. Era um
espertalhão. Sabe como é, com as Polaroides, vivia
enrolando homossexuais e coisas assim.
— Está dizendo que ele está nos arquivos das gangues,
mas não pertencia a uma gangue?
— Exatamente. Edgar assentiu com a cabeça e disse:
— Mesmo assim ele pode ter sido despachado por
alguém que julgasse que ele era de alguma. Eleanor veio se
encontrar com eles, mas não disse nada.
— Você sabe que isto não é obra de gangues, Jed, disse
Bosch.
— Sei?
— Sim, sabe. Se fosse, não haveria ali uma lata de tinta
cheia. Nenhum tipo de uma gangue larga uma coisa
daquelas. Além disso, quem pintou aquela parede lá dentro
não tinha mão para aquilo. A tinta escorreu. Quem o fez,
não sabia patavina de pintura de paredes.
— Venha aqui só por um segundo, disse Edgar.
Bosch olhou para Eleanor e fez sinal que estava tudo
bem. Ele e Edgar se afastaram alguns passos e pararam ao
pé da fita amarela.
— O que este garoto contou e como ele andava por aí à
solta se fazia parte de um caso? Perguntou Edgar.
Bosch contou a história em linhas gerais e disse que não
sabiam se Sharkey seria importante para o caso. Mas,
aparentemente, alguém achava que sim ou então não quis
se arriscar esperando até saber. Enquanto falava, Bosch
olhou para as colinas e viu a primeira luz da alvorada
recortando as grandes palmeiras do topo. Edgar deu um
passo para o lado e também levantou a cabeça. Mas não
estava olhando para o céu. Tinha os olhos fechados. Por fim,
se voltou para Bosch.
— Harry, sabe que fim-de-semana é este? Perguntou
ele. — É o fim-de-semana do Memorial Day. É o maior fim-
de-semana de três dias deste ano. O início do verão. No ano
passado, vendi quatro casas nesse fim-de-semana, ganhei
quase tanto quanto num ano inteiro como policial. Bosch
ficou perplexo com a súbita reviravolta na conversa.
— O que está querendo me dizer?
— O que estou dizendo é... Não vou me esfolar
trabalhando neste caso. Não vai estragar este fim-de-
semana como aconteceu no último. Por isso, o que eu estou
dizendo é que, se quiser ficar com ele, eu vou ter com o
Pounds e digo que você e o FBI querem ficar com ele,
porque tem a ver com aquele em que vocês já estão
trabalhando. Caso contrário, vou trabalhar nele
simplesmente como se fosse um dos das nove às cinco.
— Diga ao Pounds aquilo que quiser Jed. Não tenho
nada com isso. Bosch começou a andar em direção a
Eleanor e Edgar disse:
— Só uma coisa. Quem sabia que você encontrara o
garoto? Bosch parou e olhou para Eleanor. Sem se voltar
para trás, respondeu:
— Apanhamo-lo na rua. Entrevistamo-lo na delegacia de
Wilcox. Os relatórios seguiram para o departamento. O que
quer dizer com isso, Jed?
— Nada, respondeu Edgar. — Mas Harry, vai ver você e
o FBI deviam ter tomado conta da testemunha um
bocadinho melhor. Poupar-me-iam tempo e teriam salvo a
vida do rapaz.
Bosch e Eleanor voltaram para o carro em silêncio. Mal
se encontraram lá dentro, Bosch perguntou:
— Quem é que sabia?
— O que quer dizer? Perguntou ela.
— Aquilo que ele perguntou ali atrás, quem é que sabia
do Sharkey? Ela pensou um tempo. Depois disse:
— Do meu lado, Rourke recebeu os resumos diários dos
relatórios e o memorando sobre a hipnose. Os resumos vão
para os registros e são feitas cópias para o agente especial
sênior. A fita da gravação da entrevista que me deu está
fechada à chave na minha mesa. Não foi transcrita. Por isso,
acho que qualquer pessoa podia ter lido aqueles resumos.
Mas nem sequer pense nisso, Harry. Ninguém... Não pode
ser.
— Bem, eles sabiam que nós tínhamos o rapaz e que ele
podia ser importante. O que isso diz? Têm que ter alguém
com acesso a informações internas.
— Harry, isso é especulação. Pode ter acontecido uma
porção de coisas. Tal como você mesmo disse, o
encontramos na rua. Qualquer pessoa podia estar vendo. Os
próprios amigos dele, aquela jovem, qualquer pessoa podia
ter espalhado que andávamos a procura de Sharkey.
Bosch pensou em Lewis e Clarke. Deviam tê-lo visto
caçando Sharkey. Que papel eles estavam desempenhando?
Nada fazia sentido.
— O Sharkey era um filho da mãe, disse ele. — Acha
que ele ia entrar assim, sem mais nem menos, com uma
pessoa qualquer neste túnel? Acho que ele não teve
possibilidade de recusar. E para isso, era preciso uma
pessoa com um distintivo.
— Ou talvez alguém com dinheiro. Sabe que ele ia com
qualquer pessoa desde que houvesse dinheiro metido no
assunto. Ela não ligou o carro e ficaram ali sentados
pensando. Por fim, Bosch disse:
— O Sharkey foi uma mensagem.
— O quê?
— Uma mensagem para nós. Está vendo? Deixaram o
meu cartão com ele. Foi a única coisa que deixaram. E
mataram-no num túnel. Querem que a gente saiba quem
fez isto. Querem que a gente saiba que eles têm alguém
aqui dentro. Estão rindo de nós. Ela ligou o carro.
— Para onde?
— Para o FBI.
— Harry, tenha cuidado com essa coisa de um homem
no nosso meio. Se tentar vender isso e não for verdade,
pode dar aos seus inimigos aquilo de que precisam para o
enterrarem. “Inimigos”, Bosch pensou. “Quem serão os
meus inimigos desta vez?”.
— Fui eu que causei a morte daquele garoto. O mínimo
que posso fazer é descobrir quem o matou.
Bosch olhou para o cemitério de veteranos, através das
cortinas de algodão da sala de espera, enquanto Eleanor
Wish destrancava a porta das salas do departamento. O
nevoeiro rasteiro ainda não havia se dissipado e levantado
do campo das lápides, e lá de cima, parecia que um milhar
de fantasmas estava se erguendo dos seus túmulos ao
mesmo tempo. Bosch conseguia ver o corte escuro
escavado na crista da colina do lado norte do cemitério,
mas continuava a não entender o que era aquilo. Parecia
uma grande vala comum, uma extensa ranhura, uma ferida
enorme. A terra exposta estava tapada com folhas de
plástico preto.
— Quer café? Perguntou Eleanor Wish atrás dele.
— Claro, respondeu ele.
Afastou-se das cortinas e entrou atrás dela. O
departamento estava deserto. Entraram na cozinha da sala
e ele ficou vendo enquanto ela despejava algumas colheres
retiradas de um pacote de café moído dentro do
reservatório com o filtro e ligava a máquina. Ficaram de pé,
em silêncio, vendo o café pingar devagarinho para dentro
de um recipiente de vidro em cima da placa de
aquecimento. Bosch acendeu um cigarro e tentou pensar
apenas no café que estavam fazendo. Ela afastou a fumaça
com a mão, mas não lhe disse para apagar o cigarro.
Quando o café ficou pronto, Bosch bebeu-o puro e sentiu-o
atingir o seu estomago como um tiro. Encheu uma segunda
xícara e levou as duas para a sala. Acendeu um cigarro na
ponta do outro quando chegou à sua mesa temporária.
— É o último, prometeu quando a viu olhar.
Eleanor encheu uma xícara com água de uma garrafa
que guardava na gaveta da mesa.
— Alguma vez esgotou essa coisa? Perguntou ele.
Eleanor ignorou a pergunta.
— Harry, não podemos nos culpar pela morte de
Sharkey. Se a culpa fosse nossa, então teríamos de oferecer
proteção a todas as pessoas com quem falamos. Devíamos
ir buscar a mãe dele e metê-la num programa de proteção
de testemunhas? E a jovem do quarto do motel que o
conhecia? Está vendo? Seria uma maluquice. Sharkey era o
Sharkey. Quando se vive segundo as leis da rua, se morre
segundo as leis da rua. Bosch não disse nada logo. Depois
disse apenas:
— Deixe-me ver os nomes.
Eleanor puxou o dossiê do caso do West Land. Folheou-o
e tirou uma cópia impressa de computador com várias
folhas dobradas como um acordeom. Jogou-a para cima da
mesa dele.
— Essa é a cópia completa, disse ela. — Todos os que
tinham cofre. Há umas notas escritas à frente de alguns
nomes, mas provavelmente não são relevantes. Bosch
começou a desdobrar a cópia e notou que continha uma
longa lista de nomes e cinco listas menores marcados de A
à E. Perguntou o que eram e ela deu a volta à mesa para
olhar por cima do ombro de Bosch. Ele voltou a sentir o
cheiro à maçã do cabelo dela.
— A lista comprida, como eu já disse, é a lista de todas
as pessoas que tinham cofre. É uma lista geral. Depois
fizemos cinco divisões, de A à E. A primeira, a A, é a dos
cofres arrendados três meses antes do assalto. Quanto à B,
fizemos uma divisão só com as pessoas que não declararam
perdas com o assalto. A C é a dos becos sem saída; os
donos dos cofres que, ou estavam mortos ou que não
conseguimos descobrir porque tinham mudado de endereço
ou deram informações falsas quando os alugaram. A quarta
e a quinta são listas resultantes da comparação com as três
primeiras. A D é a das pessoas que alugaram os cofres nos
três meses anteriores e que não declaram perdas. A E é a
das pessoas da lista dos becos sem saída que também
tinham alugado os cofres três meses antes. Entendeu? Ele
tinha entendido.
A ideia do FBI fora que a casa-forte tivera de ser
analisada por dentro pelos ladrões antes do assalto e isso,
muito provavelmente, fora conseguido facilmente entrando
no banco e alugando um cofre. Dessa maneira, tinham
acesso legítimo; quem tivesse alugado o cofre podia entrar
lá sempre que quisesse durante as horas de expediente e
observar tudo. Por isso, a lista das pessoas que tinham
alugado um cofre nos últimos três meses tinha boas
hipóteses de incluir o batedor. Segundo, era provável que
esse batedor não quisesse atrair as atenções sobre si depois
do roubo e, por isso, podia não declarar como tendo sido
roubado algo do seu cofre. Isso o colocaria na lista D. Mas
se ele não tivesse declarado nada ou tivesse dado
informações não verificáveis, o nome dele estaria na lista E.
Só havia sete nomes na lista A e cinco na lista E. Um dos
nomes da E tinha um círculo em toda a volta. Frederic B.
Isley, de Park La Brea, o nome do homem que tinha
comprado os três ATVs Honda em Tustin. Os outros nomes
tinham uns V de visto à frente.
— Lembra-se? Perguntou Eleanor. — Eu disse que esse
nome iria aparecer outra vez. Harry assentiu. — Isley, disse
ela. — Pensamos que é o batedor. Alugou o cofre nove
semanas antes do assalto. Os registros do banco indicam
que ele fez ao todo quatro visitas à caixa-forte durante as
sete semanas seguintes. Mas, depois do assalto, nunca mais
voltou, fosse lá ele quem fosse. Nunca preencheu um
relatório. E quando tentamos entrar em contato,
descobrimos que o endereço era falso.
— Têm alguma descrição?
— Nenhuma que nos servisse para alguma coisa.
Pequeno, moreno e talvez bonito, foi o melhor que os
funcionários da caixa-forte conseguiram. Deduzimos que
este tipo era o batedor ainda antes de descobrirmos a
história dos ATVs. Quando o dono de um cofre quer ver o
cofre, o funcionário leva-o lá dentro, abre a portinha e
depois o acompanha até a uma das salas para esse efeito.
Quando ele acaba, voltam os dois a levar a caixa para
dentro e o cliente escreve as suas iniciais no cartão do
cofre. Mais ou menos como numa biblioteca. Por isso,
quando fomos ver o cartão do sujeito, deparamos com as
iniciais FBI. Você é uma pessoa que não gosta de
coincidências. Nós também não gostamos. Achamos que
havia alguém de gozação conosco. Mais tarde, isso foi
confirmado quando seguimos o rastro dos ATVs até Tustin.
Harry bebeu mais um gole de café.
— Não é que nos tenha servido de muito, continuou ela.
— Nunca o encontramos. No entulho da caixa-forte, depois
do assalto, descobrimos o cofre dele. Procuramos
impressões digitais, assim como na porta. Nada. Mostramos
aos funcionários da caixa-forte várias fotografias, a do
Meadows também estava lá e eles não conseguiram
reconhecer ninguém.
— Podíamos lhes mostrar as do Franklin e do Delgado, e
ver se algum deles era Isley.
— Sim. É o que vamos fazer. Volto já.
Ela se levantou, saiu e Bosch voltou ao café e à lista.
Leu todos os nomes e endereços, mas nada lhe despertou a
memória, excetuando a mancheia de celebridades, políticos
e outros semelhantes que tinham cofres. Bosch estava
lendo a lista pela segunda vez quando Eleanor regressou.
Trazia uma folha de papel que colocou na mesa dele.
— Fui até a sala do Rourke. Ele já mandou a maior parte
da papelada que eu entreguei para os registros. O
memorando da hipnose ainda estava na caixa, por isso, ele
ainda não deve tê-lo visto. Agora já não serve para nada e é
melhor que ele não o veja.
Harry deu uma olhadela no memorando, dobrou a folha
e guardou-a no bolso.
— Com toda a franqueza, disse ela, — Não acho que
algum dos papéis ficou visível durante o tempo suficiente...
Quero dizer, não vejo como. E Rourke... Ele é um tecnocrata
e não um assassino. Como falaram de você, ele não iria se
passar para o outro lado por causa de dinheiro.
Bosch olhou para ela e deu consigo desejando fazer
qualquer coisa que lhe agradasse, que a pusesse outra vez
do seu lado. Não conseguia se lembrar de nada e não era
capaz de compreender aquela nova frieza nos modos dela.
— Esqueça isso, disse ele e, depois, olhando outra vez
para as listas, acrescentou: — Até que ponto vocês levaram
as investigações destas pessoas que não declaram perdas?
Ela olhou para a folha onde Bosch fizera um círculo em volta
da lista B. Havia dezenove nomes na lista.
— Investigamos cada um dos nomes para ver se tinham
registros criminais, começou ela. — Fizemos uma entrevista
telefônica e, mais tarde, uma entrevista cara a cara. Se
algum agente sentisse vibrações estranhas ou se alguma
das histórias não soasse bem, ia lá outro agente, sem se
fazer anunciar, para fazer mais uma entrevista. Como que
para ter uma segunda opinião. Não tive nada a ver com
essa parte. Tínhamos uma segunda equipe que tratou da
maior parte das entrevistas pessoais. Se estiver interessado
nalgum nome em especial, posso ir buscar os resumos das
entrevistas.
— E quanto aos nomes vietnamitas que aparecem nas
listas? Contei trinta e quatro donos de cofres com nomes
vietnamitas, quatro estão na lista dos que não declararam
perdas, um na dos becos sem saída.
— O que têm os vietnamitas de especial?
Provavelmente, também haverá uma lista, se a quiser fazer,
de chineses, coreanos, brancos, pretos e latinos. Estes
bandidos eram a favor da igualdade.
— Sim, mas vocês descobriram uma ligação com o
Vietnam relativamente ao Meadows. Agora temos o Franklin
e o Delgado possivelmente envolvidos. Os três foram PMs
no Vietnam. Temos a Charlie Company, que pode ou não
fazer parte disto. Portanto, depois de Meadows ter passado
a ser um suspeito e vocês começarem a ir buscar os
registros militares de ratos dos túneis, fizeram mais alguma
investigação relacionada com os vietnamitas das listas?
— Não... Bem, sim. Em relação aos estrangeiros
residentes, colocamos os nomes deles no INS para ver há
quanto tempo estavam aqui, se estavam legais. Mas,
praticamente, foi só isso. Calou-se durante uns instantes e
depois disse: — Estou vendo aonde quer chegar. É uma
falha na forma como tratamos do assunto. Só passamos a
considerar que Meadows era um suspeito, algumas
semanas depois do assalto. Nessa altura, a maior parte
dessas pessoas já tinha sido entrevistada. Depois de termos
começado a olhar para Meadows, não me parece que
tenhamos voltado para trás para ver se algum dos nomes
da lista tinha alguma coisa a ver com ele. Pensa que um
destes vietnamitas pode ter feito parte disto?
— Nem sei em que estou pensando. Estou só à procura
de conexões. Coincidências que não são coincidências.
Bosch tirou o caderno de notas do bolso e começou a
fazer uma lista de nomes, datas de nascimento e endereços
dos vietnamitas que possuíam cofres. Pôs os nomes dos
quatro que não tinham declarado perdas e o da lista dos
becos sem saída no princípio. Tinha acabado de escrever os
nomes e de fechar o caderno, quando Rourke entrou na
sala, com o cabelo ainda molhado do banho matinal. Trazia
uma caneca de café que dizia Boss num dos lados. Viu
Bosch e Eleanor e olhou para o relógio.
— Estão começando cedo.
— A nossa testemunha apareceu morta, disse Eleanor
sem qualquer expressão no rosto.
— Santo Deus! Onde? Pegaram alguém?
Eleanor abanou a cabeça e olhou para Bosch com uma
expressão de aviso para ele não começar nada. Rourke
também olhou para ele.
— Tem a ver com isto? Perguntou ele. — Há alguma
prova disso?
— Achamos que sim, respondeu Bosch.
— Santo Deus!
— Já disse isso, comentou Bosch.
— Devemos tirar o caso ao Departamento da Polícia de
Los Angeles? Juntá-lo às investigações do Meadows?
Perguntou aquilo olhando para Eleanor. Bosch não fazia
parte da equipe das tomadas de decisão. Ela não
respondeu, por isso, Rourke acrescentou:
— Devíamos ter oferecido proteção? Bosch não
conseguiu resistir:
— Contra quem? Uma madeixa do cabelo molhado
saltou do lugar e caiu na testa de Rourke. O rosto ficou
muito vermelho.
— Que raio quer dizer?
— Como é que sabia que o LAPD tinha o caso?
— O quê?
— Acabou de perguntar se deviam tirar o caso ao LAPD.
Como é que sabia que eram eles que o tinham? Nós não
dissemos.
— Parti desse princípio. Bosch, não gosto da insinuação
que isso implica e não gosto nada de você. Está insinuando
que eu ou alguém... Se estiver dizendo que há uma fuga de
informações policiais neste departamento, então eu mesmo
pedirei uma investigação interna ainda hoje. Mas lhe digo já
que se houve alguma fuga não foi do departamento.
— Então de onde é que podia ter sido, porra? O que
aconteceu aos relatórios que lhe entregamos? Quem é que
os viu? Rourke abanou a cabeça.
— Harry, não seja ridículo. Compreendo como se sente,
mas vamos nos acalmar e pensar um minuto. A testemunha
foi pega na rua e interrogada na Delegacia de Hollywood,
depois foi largada num abrigo público para jovens. E, por
último, você anda sendo seguido pelo seu próprio
departamento, detetive. Lamento, mas aparentemente nem
a sua própria gente confia em você.
A expressão de Bosch endureceu. Sentia-se traído.
Rourke só podia ter sabido da vigilância através de Eleanor.
Ela tinha topado com Lewis e Clarke. Por que não lhe dissera
nada em vez de ir contar para Rourke? Bosch olhou para
ela, mas ela estava olhando para a mesa. Voltou a olhar
para Rourke que estava abanando a cabeça para cima e
para baixo como se fosse uma mola.
— Sim, ela notou a vigilância logo no primeiro dia.
Rourke olhou em redor da sala vazia, obviamente desejoso
de ter mais público. Estava deslocando o peso do corpo de
um pé para o outro como um pugilista esperando
impacientemente no seu canto que o novo round
começasse para poder desferir o murro final no adversário
debilitado. Eleanor Wish continuava calada, sentada à mesa.
E, nesse momento, pareceu a Bosch que fora há um milhão
de anos que tinham estado abraçados na cama. Rourke
disse: — Vai ver você devia olhar para si próprio e para o
seu departamento antes de começar a fazer acusações
irresponsáveis. Bosch não disse nada. Limitou-se a se
levantar e a se dirigir para a porta.
— Harry, onde é que vai? Perguntou Eleanor da mesa.
Ele deu meia volta e olhou para ela durante um breve
instante, depois continuou a andar.
Lewis e Clarke viram o Caprice de Bosch mal ele saiu da
garagem do edifício federal. Clarke ia dirigindo.
Obedientemente, Lewis apontou a hora no registro.
— Leva o diabo no cu, disse ele. — É melhor nos
aproximarmos mais dele.
Bosch tinha voltado para o ocidente na Wilshire e seguia
na direção da 405. Clarke aumentou a velocidade para se
manter atrás dele no meio do trânsito da hora do rush
matinal.
— Eu também teria o diabo metido em qualquer parte
se tivesse acabado de perder a minha única testemunha,
disse Clarke. — Se tivesse feito com que a matassem.
— Como?
— Você viu. Ele enfiou o garoto no abrigo e foi embora
todo contente. Não sei o que o rapaz viu ou o que contou,
mas foi suficientemente importante para precisar ser
eliminado. Bosch devia ter tomado conta dele muito melhor.
Mantê-lo fechado a cadeado.
Na 405, seguiram para sul. Bosch ia dez carros mais à
frente, se mantendo agora na faixa lenta. A autoestrada
estava carregada com uma massa poluente e mal cheirosa
de aço em movimento.
— Acho que ele vai apanhar a 10, disse Clarke. — Vai
para Santa Monica. Vai ver, vai voltar a casa dela,
provavelmente esqueceu a escova de dentes. Ou ela vai
voltar para se encontrar com ele e terem uma sessão
matinal. Sabe o que lhe digo? Digo para o deixarmos ir e
voltamos para falar com Irving. Acho que podemos arranjar
qualquer coisa com esta história da testemunha. Talvez
negligência. Há o suficiente para conseguirmos levá-lo a
tribunal administrativo. Ele seria pelo menos atirado para
fora dos homicídios e, se o Harry Bosch não estiver
autorizado a trabalhar nos homicídios, pega na trouxa e vai
embora. Mais um sulco na coronha do nosso revólver.
Lewis refletiu sobre a ideia do colega. Não era má. Era
capaz de dar resultado. Mas não queria terminar vigilância
por sem Irving mandar.
— Mantenha-se atrás dele, disse ele. — Quando ele
parar em qualquer lugar, eu meto uma moeda e vejo o que
o Irving quer fazer. Quando ele me ligou esta manhã por
causa do garoto, parecia bastante alvoroçado. Como se as
coisas estivessem ficando perfeitas. Por isso, não quero
largar isto sem ele mandar.
— Como quiser. A propósito, como Irving soube tão
depressa que o garoto fora despachado?
— Não sei. Atenção agora. Ele vai entrar na 10.
Seguiram o Caprice cinzento de Bosch pela autoestrada
de Santa Monica. Agora estavam se afastando da cidade,
seguindo na direção contrária do trânsito e havia menos
carros. Mas Bosch já não estava acelerando. E passou as
saídas para Clover Field e Lincoln que levavam à casa de
Eleanor Wish, se mantendo na autoestrada até ela curvar
por dentro do túnel e sair por baixo dos penhascos da praia,
agora como a autoestrada da Costa do Pacífico. Bosch
seguiu para o norte ao longo da costa com o sol brilhando
intensamente por cima dele e as montanhas de Malibu
como uns meros farrapos opacos na neblina ao fundo.
— E agora? Perguntou Clarke.
— Não sei. Fique um pouco para trás.
Não havia muito trânsito na autoestrada da Costa do
Pacífico e estavam tendo dificuldade em sempre manter
pelo menos um carro entre eles e o carro de Bosch. Embora
Lewis continuasse a acreditar que os tiras nunca se davam
ao trabalho de ver se estavam sendo seguidos, hoje, estava
fazendo uma exceção a esta teoria com Bosch. A
testemunha dele fora assassinada, era possível que,
instintivamente, ele pudesse desconfiar que alguém o
seguira e que ainda andasse.
— Pois é, se deixe ficar aqui atrás. Temos o dia todo e
ele também.
A velocidade de Bosch se manteve constante durante os
sete quilômetros seguintes até ele virar para um parque de
estacionamento ao pé do Aliceos e do cais de Malibu. Lewis
e Clarke continuaram em frente. Oitocentos metros mais à
frente, Clarke fez uma inversão de marcha ilegal e voltou
para trás. Quando pararam no parque de estacionamento, o
carro de Bosch ainda estava lá, mas não viram Bosch.
— Outra vez o restaurante? Disse Clarke. — Ele deve
adorar este lugar.
— Ainda nem sequer está aberto à esta hora.
Começaram ambos a olhar para todas as direções.
Havia outros quatro carros ao fundo do parque e as grades
nos topo indicavam que pertenciam ao grupo de surfistas
que subiam e desciam no mar ao sul do cais. Por fim, Lewis
viu Bosch e apontou. Estava a meio caminho da ponta do
cais, andando com a cabeça baixa e o cabelo esvoaçando.
Lewis olhou em volta, à procura da máquina fotográfica e se
lembrou de que ainda estava no porta-malas. Tirou um
binóculo do porta-luvas e experimentou apontá-lo para a
figura cada vez menor de Bosch. Foi olhando até Bosch
chegar à ponta do estrado de madeira e apoiar os cotovelos
no parapeito.
— O que ele está fazendo? Perguntou Clarke. — Deixe-
me ver.
— Você dirige. Eu observo. De qualquer maneira, ele
não está fazendo nada. Está só encostado.
— Tem de estar fazendo qualquer coisa.
— Está pensando. OK?... Olha. Está acendendo um
cigarro. Satisfeito? Está fazendo qualquer coisa... Espere um
minuto.
— O quê?
— Merda! Devíamos ter a máquina fotográfica
preparada.
— Que história é essa merda de “nós”? Hoje a tarefa é
sua. Eu estou dirigindo. O que ele está fazendo?
— Jogou qualquer coisa fora. Na água.
Com o binóculo, Lewis via o corpo de Bosch encostado
ao parapeito. Ele estava olhando para a água lá em baixo.
Não havia mais ninguém no cais tanto quanto Lewis
conseguia ver.
— O que ele jogou? Conseguiu ver?
— Porra, como é que posso saber o que ele jogou? Não
consigo ver a superfície da água daqui. Quer que eu vá lá
fora e peça a um daqueles rapazes do surf para ir até lá e
ver? Não sei o que ele jogou.
— Acalme-se! Só estava perguntando. Bem, consegue
se lembrar da cor do objeto que ele atirou?
— Parecia branco, como uma bola. Mas flutuou.
— Julgava que disse que não conseguia ver a superfície.
— Quero dizer, flutuou ao cair. Acho que era um lenço
ou um papel qualquer.
— O que ele está fazendo agora?
— Só está ali encostado ao parapeito. Está olhando para
baixo, para a água.
— Crise de consciência. Talvez pule e nós poderemos
esquecer esta merda toda. Clarke deu uma risadinha com a
sua própria piada sem graça nenhuma. Lewis não riu.
— Claro. Tenho certeza que é isso mesmo que ele vai
fazer.
— Dê-me esse binóculo e vá telefonar. Veja o que o
Irving quer que a gente faça.
Lewis lhe entregou o binóculo e saiu do carro. Primeiro,
foi até ao porta-malas, abriu e tirou a Nikon. Colocou a lente
comprida e depois deu a volta até à janela do motorista e
entregou-a a Clarke.
— Tire uma fotografia para termos qualquer coisa para
mostrar ao Irving.
Lewis correu para o restaurante à procura de um
telefone. Estava de volta em menos de três minutos. Bosch
continuava encostado ao parapeito na ponta final do cais.
— O chefe diz para não interrompermos a vigilância em
circunstância alguma, informou Lewis. — Também disse que
os nossos relatórios são uma merda. Quer mais pormenores
e mais fotografias. Fotografou-o? Clarke estava demasiado
ocupado olhando através da máquina para responder. Lewis
pegou o binóculo e olhou. Bosch continuava sem se mexer.
Lewis não conseguia entender. O que ele estaria fazendo?
Pensando? Por que ele tinha vindo tão longe só para fazer
isso?
— O Irving que se foda, disse Clarke de repente
largando a máquina no colo para olhar para o colega. — E
sim, tirei umas fotografias. Chega para o Irving ficar feliz.
Mas ele não está fazendo nada. Está ali, só encostado.
— Já não está mais, disse Lewis ainda olhando pelo
binóculo. — Liga o motor. São horas do espetáculo.
Bosch se afastou do cais depois de ter atirado o
memorando da hipnose numa bola para a água. Como uma
flor lançada para um mar agitado, se aguentou uns breves
momentos à superfície e depois afundou, desaparecendo
por completo. A sua resolução de descobrir o assassino de
Meadows estava agora ainda mais forte: agora também
queria justiça para Sharkey. Quando estava de regresso pelo
velho cais de madeira, viu o Plymouth que o estivera
seguindo sair do parque de estacionamento do restaurante.
“São eles”, pensou. Mas não tinha importância. Não se
preocupava com o que eles tinham visto ou julgavam ter
visto. Agora as regras eram novas e Bosch tinha os seus
próprios planos para Lewis e Clarke.
Seguiu para leste na 10, em direção à cidade. Nunca se
deu ao trabalho de olhar para o retrovisor à procura do
carro preto porque sabia que ele estava lá. Queria que
estivesse. Quando chegou a Los Angeles Street, estacionou
numa zona proibida em frente ao US Administration
Building. No terceiro andar, atravessou umas das salas de
espera atravancadas de gente do Serviço de Naturalização
e Imigração. Aquilo cheirava como uma cadeia. Suor, medo
e desespero. Uma mulher aborrecida estava sentada atrás
de uma janela de vidro deslizante fazendo as palavras
cruzadas do Times. Passados alguns momentos, ela
levantou a cabeça e olhou para Bosch. Ele estava
mostrando o distintivo.
— Conhece uma palavra com cinco letras para um
homem que está constantemente infeliz e só? Perguntou ela
depois de ter empurrado a janela para abri-la e ter
verificado se tinha estragado alguma unha.
— Bosch.
— O quê?
— Detetive Harry Bosch. Anuncie-me. Quero falar com o
Hector V.
— Primeiro tenho de perguntar, disse ela num tom
amuado. Murmurou qualquer coisa para um telefone, depois
apanhou no estojo do distintivo de Bosch e colocou o dedo
no nome do cartão de identificação. A seguir desligou.
— Ele disse para entrar por trás. Apertou um botão da
fechadura da porta ao lado da janela. — Disse que você
sabe o caminho.
Bosch apertou a mão de Hector Villabona numa sala de
trabalho abarrotada, ainda menor do que a de Bosch.
— Preciso um favor. Preciso de algum tempo de
computador.
— Ok.
Era disso que Bosch gostava em Hector V. Ele nunca
perguntava o quê ou quando antes de decidir. Era do tipo
vamos-fazer. Não entrava nos jogos que Bosch acabara por
acreditar que toda a gente na sua profissão se dedicava.
Hector rolou a cadeira até a um IBM numa mesa encostada
à parede e digitou a sua senha.
— Quer verificar nomes, certo? Quantos?
Bosch mostrou a lista dos trinta e quatro nomes. Hector
assobiou baixinho e disse:
— OK, vamos vê-los, mas são vietnamitas e se os casos
deles não estiverem sendo tratados nesta sala, os registros
não estarão aqui. Só tenho o que está no computador. Datas
de entrada, documentação, cidadania, tudo o que estiver no
computador. Sabe como é, Harry.
Bosch sabia. Mas também sabia que a Califórnia era o
lugar onde a maior parte dos refugiados vietnamitas se
instalava depois da travessia. Hector começou escrevendo
os nomes com dois dedos e, vinte minutos depois, Bosch
estava olhando para a cópia dos resultados.
— O que andamos procurando, Harry? Perguntou Hector
enquanto examinava a lista com ele.
— Não sei. Vê alguma coisa que pareça invulgar?
Passaram-se alguns momentos e Bosch pensou que Hector
não tinha visto nada de invulgar. Um beco sem saída. Mas
estava enganado.
— OK, este aqui. Acho que vai descobrir que ele tem
ligações.
O nome era Ngo Van Binh. Não significava nada para
Bosch a não ser que tinha vindo da lista B; Binh não tinha
declarado nada como tendo sido roubado do seu cofre.
— Ligações?
— Tem influência, disse Hector. — Ligações políticas, eu
acho que seria esse o termo. Está vendo, o número do caso
dele tem o prefixo GL. Esses são arquivos tratados pelo
nosso departamento dos casos especiais em DV.
Geralmente, o SCB não trata de pessoas comuns. Muito
político. Trata de casos de pessoas como o Xá, os Marcos,
desertores russos se forem cientistas ou bailarinos. Coisas
dessas. Coisas que eu nunca vejo.
Balançou a cabeça e pôs o dedo no papel.
— OK, depois nós temos as datas; são muito próximas.
Aconteceu muito depressa, o que me diz que este caso teve
valentes influências. Não conheço este tipo de lado
nenhum, mas sei que este tipo conhece pessoas. Olhe para
a data da entrada, 4 de maio de 1975. Apenas quatro dias
depois do tipo ter saído do Vietnam. Ora é só calcular. O
primeiro dia é para chegar a Manila e o último para entrar
nos Estados Unidos. Isso deixa apenas dois dias de intervalo
em Manila para conseguir autorização e passagem visada
para o continente. Nessa altura eles estavam chegando a
Manila em barcos transbordando. Impossível em dois dias a
não ser que tivesse azeitado alguém. O que eu quero dizer
é que este tipo, este Binh, já trazia a autorização. Tinha
ligações. Não é assim tão invulgar, porque havia uma
porção de gente que tinha. Nós recebemos aqui uma porção
de gente quando a merda explodiu para todo o lado. Muitos
deles eram da elite. Muitos deles tinham dinheiro para
pagar e passaram como sendo da elite.
Bosch olhou para a data em que Binh saíra do Vietnam.
30 de Abril de 1975. O mesmo dia em que Meadows saíra
pela última vez do Vietnam. O dia em que Saigon caíra nas
mãos do Exército do Norte.
— E esta DOD? Continuou Villabona apontando para
outra data. — Um tempo muito curto para receber a
documentação. 14 de maio. Quer dizer, dez dias depois de
chegar, o tipo recebe um visto. É muito rápido para um Zé
Ninguém. Ou neste caso, para o Ngo comum.
— Então o que conclui?
— É difícil dizer. Ele podia ter sido um operacional. Ou
podia apenas ter dinheiro suficiente para sair de
helicóptero. Ainda corre uma porção de boatos sobre esse
tempo. Pessoas que enriqueceram. Os lugares nos
transportes militares chegavam a dez mil dólares cada. Não
há a menor dúvida que os vistos ainda custavam mais.
Nunca nada foi confirmado.
— Pode ir buscar o arquivo deste tipo?
— Claro. Se estivéssemos em DC. Bosch ficou olhando
para ele e Hector acrescentou: — Todos os GLs estão lá,
Harry. É lá que as pessoas com quem as pessoas têm
ligações estão. Tá entendendo? Bosch não respondeu. —
Não fique zangado, Harry. Eu vou ver o que consigo fazer.
Vou dar uns telefonemas. Vai passar por aqui mais tarde?
Bosch lhe deu o número do FBI, mas não lhe disse que
era do FBI. Voltaram a trocar um aperto de mão e Bosch
saiu. No átrio olhou para a rua pelas portas de vidro fumê, à
procura de Lewis e Clark. Finalmente viu o Plymouth preto
virar a esquina quando os dois detetives dos Assuntos
Internos completaram outra volta ao quarteirão. Bosch saiu
e desceu os degraus até ao carro. Usando a visão periférica,
viu o carro dos Assuntos Internos diminuir e se encostar à
calçada enquanto os dois esperavam que ele entrasse no
carro e arrancasse. Bosch fez o que eles queriam. Porque
era o que ele queria.
A Woodrow Wilson Drive subia serpenteando, no sentido
contrário ao dos ponteiros do relógio, em volta das
Hollywood Hills, o asfalto rachado e remendado nunca
suficientemente largo para passarem dois carros sem terem
de reduzir cautelosamente a velocidade. Quando se sobe,
as casas à esquerda rastejam na vertical pela encosta
acima. Aquilo era dinheiro antigo, sólido e seguro. Telhados
e reboco à espanhola. À direita, as casas mais modernas
erguem destemidamente as suas divisões em estrutura de
madeira por cima das ravinas rochosas de arbustos
castanhos e margaridas do desfiladeiro. Estão equilibradas
em estacas e esperança e tão tenuamente agarradas à
beira da colina como os seus proprietários às posições que
ocupam nos estúdios lá em baixo. A casa de Bosch era a
quarta a contar da ponta do lado direito.
Quando fez a última curva, a casa ficou à vista. Ele
olhou para a madeira escura, para o desenho caixa de
sapato, à procura de um sinal de que qualquer coisa tinha
mudado como se o exterior da casa pudesse lhe dizer se
havia algo de errado com o interior. Nessa altura, olhou pelo
espelho retrovisor e viu a frente do Plymouth preto
aparecendo na curva. Bosch estacionou debaixo do telheiro
ao lado da casa e saiu. Entrou sem olhar para trás, para o
carro que o vigiava. Tinha ido até ao cais para pensar no
que Rourke dissera. E ao fazê-lo, pensou na chamada que
estava registada na sua secretária-eletrônica. Agora, se
dirigiu para a cozinha e ouviu as mensagens gravadas.
Primeiro, havia a chamada que entrara na terça-feira e
depois a mensagem de Jerry Edgar às primeiras horas da
manhã, quando Edgar telefonara à procura de Bosch para
lhe dizer para ir ter com ele no Hollywood Bowl. Bosch
voltou a posicionar a fita para trás e ouviu a chamada, se
censurando em silêncio por não ter dado conta da sua
importância da primeira vez que a ouviu.
Alguém telefonara, escutara a mensagem gravada dele,
e desligara depois de ouvir o primeiro sinal. O desligar ficara
gravado na fita. A maioria das pessoas, quando não queria
deixar recado, teria simplesmente desligado mal ouvisse a
voz gravada de Bosch, dizendo que não estava em casa.
Ou, se pensassem que Bosch estava em casa, teriam
chamado pelo nome dele mal ouvissem o sinal. Mas esta
pessoa tinha ouvido a mensagem toda e só tinha desligado
quando ouvira o sinal. Por quê? Bosch tinha deixado passar
aquilo da primeira vez, mas agora estava convencido de
que a chamada fora um teste para um transmissor. Foi ao
armário ao lado da porta e apanhou o binóculo. Foi até à
janela da sala e olhou por uma nesga da cortina à procura
do Plymouth preto. Estava meio quarteirão mais acima.
Lewis e Clarke tinham passado pela casa, dado a volta e
estacionado junto da calçada, virados para baixo e prontos
para continuar a perseguição se Bosch saísse. Com o
binóculo, Bosch conseguia ver Lewis ao volante vigiando a
casa. Clarke encostara a cabeça no encosto do banco e
tinha os olhos fechados.
Nenhum deles parecia estar usando fones. Mesmo
assim, Harry tinha de se certificar. Sem tirar os olhos do
binóculo, esticou a mão para a porta da frente, abriu-a uns
centímetros e voltou a fechá-la. Os homens no carro não
mostraram qualquer reação. Clarke continuou com os olhos
fechados. Lewis continuou limpando os dentes com um
cartão de visita. Bosch concluiu que se eles tivessem posto
um microfone lá dentro, este estaria transmitindo para um
receptor que estaria longe. Era mais seguro assim.
Provavelmente, uma bobina minúscula ativada pelo som
escondida no exterior da casa. Esperariam até ele se afastar
no carro e depois um deles saltaria do carro recolheria
rapidamente a bobina, substituindo-a por uma nova. Depois
poderiam apanhá-lo antes dele descer a colina e entrar na
autoestrada. Afastou-se da janela e fez uma inspeção rápida
à sala e à cozinha. Verificou a parte de baixo das mesas e os
objetos elétricos, mas não encontrou o microfone e também
não estava esperando encontrá-lo. O lugar inteligente, como
ele sabia, era o telefone que ele estava guardando para o
fim. Tinha uma fonte de alimentação e a sua colocação ali
daria uma boa recepção do interior da casa assim como de
todas as conversas que se fizessem pelo telefone.
Bosch segurou o telefone e com um canivete pequenino
que estava preso ao porta-chaves abriu a tampa do bocal.
Lá dentro, não havia nada que não devesse estar. Tirou a
tampa do fone. Estava lá. Usando o canivete, levantou o
microfone com todo o cuidado. Preso atrás dele por um
pequeno ímã tinha um transmissor pequeno, achatado e
redondo com o tamanho aproximado de uma moeda de
vinte e cinco cêntimos. Dois fios presos ao aparelho que, ele
sabia, era ativado pelo som e se chamava T-9. Um dos fios
estava enrolado em volta de um dos fios do receptor do
telefone, roubando eletricidade para o microfone. O outro fio
entrava na caixa do telefone. Bosch puxou-o para fora com
todo o cuidado e saiu a fonte de energia suplementar: uma
caixa pequena e delgada contendo apenas uma pequena
pilha AA. O microfone era alimentado pela corrente do
telefone, mas se o telefone fosse desligado, a pilha podia
fornecer a energia necessária para cerca de oito horas.
Bosch desligou o aparelho do telefone e colocou-o em cima
da mesa. Agora estava se alimentando da pilha. Ficou
olhando para ele, pensando no que devia fazer. Era uma
escuta clássica da polícia. Capacidade de alcance, de quatro
metros e meio a seis, preparado para apanhar tudo o que
fosse dito na sala. O alcance da transmissão era mínimo,
talvez uns vinte e cinco metros, no máximo, dependendo da
quantidade de metal dentro do edifício.
Bosch foi outra vez até à janela da sala e olhou para a
rua. Lewis e Clarke continuavam a não mostrar sinais de
alerta ou de que o microfone tivesse sido descoberto. Lewis
já acabara de limpar os dentes. Bosch ligou o estéreo e pôs
um CD de Wayne Shorter. Depois saiu pela porta da cozinha
para o telheiro do carro. Não podia ser visto do carro dos
Assuntos Internos. Encontrou o gravador no primeiro lugar
onde procurou: a caixa de junção por baixo do contador de
eletricidade na parede do fundo do telheiro. As duas bobinas
de cinco centímetros estavam girando ao som do saxofone
de Shorter. O gravador Nagra, tal como o T-9, estava ligado
à corrente da casa, mas tinha uma pilha de reserva. Bosch
desligou-o e levou-o para dentro, colocando-o em cima da
mesa, ao lado do microfone.
Shorter estava acabando “502 Blues”. Bosch se sentou
na cadeira da vigília, acendeu um cigarro e se pôs a olhar
para o aparelho enquanto tentava imaginar um plano.
Estendeu a mão, voltou a rebobinar a fita e apertou o play.
A primeira coisa que ouviu foi a sua própria voz dizendo que
não estava lá, depois a mensagem de Jerry Edgar sobre
Hollywood Bowl. Os sons seguintes eram da porta abrindo e
fechando por duas vezes e depois o saxofone de Wayne
Shorter. Tinham mudado as fitas pelo menos uma vez desde
o último telefonema que ele fizera. Foi então que notou que
a visita de Eleanor Wish fora gravada. Pensou naquilo e
perguntou para consigo se o microfone teria apanhado o
que fora dito na varanda dos fundos. As histórias de Bosch a
respeito de si próprio e de Meadows. Ficou furioso ao pensar
naquela intromissão, no momento delicado roubado por
aqueles dois homens no Plymouth preto.
Fez a barba, tomou um banho e vestiu roupa lavada, um
terno castanho claro com uma camisa Oxford cor-de-rosa e
uma gravata azul. Depois, voltou à sala e colocou o
microfone e o transmissor nos bolsos do paletó. Espreitou
outra vez pelas cortinas com o binóculo: continuava a não
haver movimento no interior do carro do Departamento dos
Assuntos Internos. Voltou a sair pela porta lateral e desceu
cuidadosamente pelo talude até à base do primeiro pilar,
uma viga de aço. Atravessou com toda a prudência o
declive por baixo da sua casa. Pelo caminho, reparou que os
arbustos secos estavam salpicados com farrapinhos de
prata dourada, o rótulo da garrafa de cerveja que ele tinha
arrancado e jogado fora pela varanda quando estava com
Eleanor.
Mal chegou ao outro lado da casa, atravessou a colina,
seguindo por baixo das três casas de pilares seguintes.
Depois da terceira, trepou a encosta e, na curva, olhou para
a estrada. Agora estava atrás do Plymouth preto. Arrancou
os carrapichos das bainhas das calças e avançou
descontraidamente para a rua. Aproximou-se sem ser
notado da porta do lado do passageiro. A janela estava
aberta e, no preciso instante em que abriu a porta de
rompante, pensou que ouvia ressonar dentro do carro. A
boca de Clarke estava aberta e os olhos ainda fechados
quando Bosch se inclinou para dentro do carro e segurou os
dois homens pelas gravatas de seda. Bosch colocou o pé no
degrau da porta para servir de alavanca e puxou os dois
homens para ele. Embora fossem dois, a vantagem era de
Bosch. Clarke estava desorientado e Lewis não tinha muito
mais noção que ele do que estava acontecendo. Puxá-los
pelas gravatas queria dizer que qualquer luta ou resistência
só serviria para aumentar o aperto das gravatas em volta
do pescoço, cortando o ar.
Saíram quase de boa vontade, tropeçando como cães
presos pela coleira e aterraram ao lado de umas palmeiras
plantadas a cerca de um metro da calçada. Tinham os
rostos vermelhos e contorcidos. Levaram as mãos aos
pescoços, agarrando os nós das gravatas enquanto se
debatiam para voltar a colocar o ar nos pulmões. As mãos
de Bosch foram aos cintos e arrancaram as algemas.
Enquanto os dois detetives dos Assuntos Internos engoliam
arfadas de ar através das gargantas reabertas, Bosch
conseguiu algemar a mão esquerda de Lewis à mão direita
de Clarke. Depois, do outro lado da árvore, colocou a mão
de Lewis no outro conjunto de algemas. Mas Clarke notou o
que Bosch estava fazendo e tentou levantar e se libertar.
Bosch voltou a segurá-lo pela gravata e puxou-o para
baixo com toda a força. O rosto de Clarke veio para frente e
bateu na palmeira. Ficou momentaneamente atordoado e
Bosch fechou a última algema no pulso dele. Os dois tiras
do AI estavam no chão, presos um ao outro, com a palmeira
no meio do círculo dos braços de ambos. Bosch tirou as
armas dos coldres e depois recuou para recuperar o fôlego.
Atirou as armas para o assento da frente do carro deles.
— Tá ferrado, conseguiu finalmente Clarke rosnar com a
garganta inchada. Levantaram-se e ficaram de pé com a
palmeira no meio dos dois. Pareciam dois adultos
apanhados brincando de “minha machadinha”.
— Agressão a um colega, duas acusações, disse Lewis.
— Conduta imprópria. Agora, com mais meia dúzia de
outras coisas que já temos, vamos acabar com você, Bosch.
Tossiu violentamente e o cuspe atingiu o paletó do terno de
Clarke. — Solte-nos e talvez possamos esquecer isto.
— Nem pensar. Não vamos esquecer porra nenhuma,
disse Clarke para o colega. — Ele vai cair como um idiota
em chamas. Bosch tirou o aparelho de escuta do bolso e
segurou-o na palma da mão de forma a que eles o vissem.
— Quem é que se vai ferrar? Perguntou. Lewis olhou
para o microfone, notou o que era e disse:
— Nós não sabemos nada a respeito disso.
— Claro que não, disse Bosch. Tirou o gravador do outro
bolso e estendeu-o também. — Um Nagras sensível ao som,
é o que vocês usam nos seus trabalhinhos, legais ou não,
não é verdade? Descobri-o no meu telefone. Ao mesmo
tempo em que notava que vocês, seus macacos, têm estado
me seguindo por toda a cidade. Não é de concluir que vocês
também puseram o microfone para poderem ouvir além de
ver?
Nem Lewis nem Clarke responderam e Bosch também
não estava esperando que o fizessem. Reparou numa
pequena gota de sangue no canto de uma das narinas de
Clarke. Um carro que subia a Woodrow Wilson diminuiu e
Bosch puxou do distintivo e mostrou-o. O carro continuou
andando. Os dois detetives dos Assuntos Internos não
gritaram pedindo ajuda, o que fez com que Bosch
começasse a se sentir seguro. Isto ia ser jogado à maneira
dele. O departamento tivera tanta má publicidade por ter
feito escutas ilegais em funcionários, dirigentes dos direitos
civis, e até mesmo em estrelas de cinema, que estes dois
não iam levantar problemas com aquilo. Salvar a própria
pele vinha primeiro do que esfolar Bosch.
— Têm um mandado dizendo que podem me pôr sob
escuta?
— Ouve o que estou dizendo, Bosch, disse Lewis. — Já
disse que...
— Não me parece. É preciso ter provas da existência de
um crime para conseguir um mandado. Pelo menos, é o que
sempre ouvi. Mas o Departamento dos Assuntos Internos
não costuma se preocupar com essas coisas. Sabe o que o
seu caso de agressão parece, Clarke? E quando vocês dois
estiverem me levando à Comissão de Direitos e tentando
conseguir que me demitam por tê-los arrastado para fora do
carro, eu vou levar vocês dois, o seu patrão Irving, o
Departamento dos Assuntos Internos, o chefe de Polícia e à
porra da cidade inteira a um tribunal federal num processo
da Quarta Emenda. Busca e detenção ilegais. E levo junto
também o Presidente da Câmara. Que tal? Clarke cuspiu na
grama aos pés de Bosch. Uma gota de sangue do nariz lhe
caiu na camisa branca. Disse:
— Não pode provar que fomos nós, porque não fomos.
— Bosch, o que quer? Perguntou Lewis furioso, o rosto
ainda mais vermelho do que quando a gravata fora
apertada à volta do pescoço como se fosse um nó de forca.
Bosch começou a andar vagarosamente ao redor dos
dois, para eles precisarem virar as cabeças constantemente
ou se dobrarem em volta da árvore para poderem ver.
— O que eu quero? Bem, por muito que despreze os
dois, não estou particularmente interessado em arrastar as
suas bundas para um tribunal. Arrastá-los pela calçada já foi
suficiente. O que eu quero...
— Bosch, devia mandar examinar a porra da sua
cabeça, explodiu Clarke.
— Cale-se, Clarke, ordenou Lewis.
— Cale-se você, retorquiu Clarke.
— Por acaso, até já a examinaram, disse Bosch. — E
continuo preferindo ter a minha a ter uma das suas. Vocês
iam precisar de um proctologista para examinar as suas.
Disse isto quando passava por trás de Clarke. Depois se
afastou alguns passos e continuou andando em volta deles.
— Ora bem, vou dizer uma coisa: estou disposto a
esquecer disto. A única coisa que têm de fazer é responder
a umas perguntas e ficamos com este mal entendido
acertado. Solto ambos. Afinal de contas, fazemos parte da
Família, não é assim?
— Que pergunta Bosch? Perguntou Lewis. — Do que
está falando?
— Quando começaram a vigilância?
— Terça-feira de manhã, quando estava saindo do FBI,
respondeu Lewis.
— Não lhe diga nada, disse Clarke ao colega.
— Ele já sabe. Clarke olhou para Lewis e abanou a
cabeça como se não quisesse acreditar no que estava
ouvindo.
— Quando é que puseram o microfone em minha casa?
— Não pusemos, disse Lewis.
— Mentira. Mas não interessa. Viram-me interrogar o
garoto em Boytown.
Foi uma afirmação e não uma pergunta. Bosch queria
que eles pensassem que ele sabia praticamente tudo e só
precisava preencher umas lacunas.
— Sim, disse Lewis. — Foi o nosso primeiro dia. Quer
dizer que nos viu. E daí, porra?
Harry viu Lewis levar a mão na direção do bolso do
paletó. Avançou rapidamente e colocou a mão primeiro.
Tirou um chaveiro que incluía uma chave das algemas.
Atirou as chaves para dentro do carro. Por trás de Lewis,
disse:
— A quem que contaram?
— Contar? Sobre o garoto? Disse Lewis. — A ninguém.
Não contamos a ninguém, Bosch.
— Vocês escrevem um relatório diário da vigilância, não
escrevem? Tiram fotografias, não tiram? Aposto que há uma
máquina no banco de trás do seu carro. A não ser que
tenham esquecido e a deixaram no porta-malas.
— Claro que fazemos isso tudo. Bosch acendeu um
cigarro e recomeçou a andar.
— Para onde é que foi tudo? Passaram-se alguns
instantes antes que Lewis respondesse. Bosch viu-o trocar
um olhar com Clarck.
— Entregamos o primeiro relatório e o rolo ontem.
Colamos na caixa do chefe. Como de costume. Nem sequer
sei se ele já olhou para ele. Foi o único relatório que fizemos
até agora. Por isso, Bosch, tire estas algemas. Isto é
embaraçoso. As pessoas estão a nos ver e essa merda toda.
Podemos continuar falando depois.
Bosch se colocou entre os dois e, soprando a fumaça
para cima deles, disse que as algemas ficavam até a
conversa acabar. Depois se inclinou para o rosto de Clarke e
perguntou:
— Quem mais recebeu uma cópia?
— Do relatório da vigilância? Ninguém recebeu uma
cópia, Bosch, respondeu Lewis. — Isso seria violar as regras
do departamento.
Bosch soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeça ao
ouvir aquilo. Sabia que eles não iriam admitir nenhuma
ilegalidade ou violação das regras do departamento.
Começou a se afastar em direção a casa.
— Espere um minuto, espere um minuto, Bosch! Gritou
Lewis — Entregamos uma cópia ao seu tenente. Está bem?
Volte aqui! Bosch voltou a se aproximar deles, e Lewis
continuou: — Ele queria se manter informado. Tivemos que
entregar. O DC, o Irving, deu a autorização. Fizemos o que
nos mandaram fazer.
— O que o relatório dizia sobre o garoto?
— Nada. Que era um garoto qualquer, mais nada... “o
sujeito se envolveu numa conversa com um adolescente. O
adolescente foi transportado para a Delegacia de Hollywood
para interrogatório formal”, qualquer coisa parecida com
isto.
— Identificaram-no no relatório?
— Não havia nome. Nós nem sequer sabíamos o nome
dele. Palavra, Bosch. Só andamos vigiando você. Agora, tire
as algemas.
— E quanto à Home Street Home? Vocês me viram levá-
lo para lá. Estava no relatório?
— Sim, estava no relatório. Bosch voltou a se aproximar
para muito perto deles.
— E agora aqui está a pergunta importante. Se já não
há mais a queixa do FBI, por que o Departamento dos
Assuntos Internos continua em cima de mim? O FBI ligou
para Pounds e retirou a queixa. E depois, vocês agem como
se tivessem sido mandados parar, mas não pararam. Por
quê? Lewis ia começar a dizer qualquer coisa, mas Bosch
interrompeu-o. Queria que fosse Clarke a responder. — Está
pensando demasiado depressa, Lewis. Clarke não disse uma
palavra. — Clarke, o garoto que viu comigo acabou por ser
morto. Alguém o matou porque ele falou comigo. E as
únicas pessoas que sabiam que ele tinha falado comigo era
você e o seu colega. Aconteceu qualquer coisa e se eu não
conseguir as respostas que preciso, vou expor isto tudo, vou
tornar tudo público. E vocês vão acabar com os suas bundas
sendo investigadas pelos Assuntos Internos. Clarke disse as
suas primeiras palavras em cinco minutos.
— Vá se foder! Lewis se intrometeu.
— Olhe Bosch, eu explico. O FBI não confia em você. A
coisa é essa. Disseram que se meteram no caso, mas a nós
disseram que não tinham certeza a seu respeito. Disseram
que forçou a sua entrada e que eles vão colocá-lo debaixo
de olho para terem certeza de que não está aprontando
alguma. É tudo. Por isso, nos disseram para recuar, mas
para continuarmos em cima. Foi o que fizemos. É tudo.
Agora nos solte. Mal consigo respirar e os pulsos estão
começando a me doer com estas algemas. Colocou-as
muito apertadas. Bosch se voltou para Clarke.
— Onde é que está a sua chave das algemas?
— No bolso da frente, respondeu ele. Estava muito
calmo, se recusando a olhar para o rosto de Bosch. Bosch
deu a volta por trás dele e lhe rodeou a cintura com as duas
mãos. Tirou o porta-chaves do bolso de Clarke e depois lhe
murmurou ao ouvido:
— Clarke, se voltar a entrar em minha casa, mato-o.
Depois puxou as calças e as cuecas dos dois detetives
até aos tornozelos e começou a se afastar. Atirou o porta-
chaves para dentro do carro.
— Filho da puta! Gritou Clarke. — Eu mato-o primeiro
Bosch!
Enquanto conservasse o microfone e o Nagra em seu
poder, Bosch estava razoavelmente convencido de que
Lewis e Clarke não iriam tentar que o departamento
apresentasse queixa contra ele. Tinham mais a perder do
que ele. Um processo e um escândalo público lhes
interrompia a carreira no patamar para o sexto andar. Bosch
entrou em seu carro e voltou para o Edifício Federal.
Demasiadas pessoas souberam de Sharkey ou tiveram
oportunidade de saber, compreendeu ele quando tentava
fazer uma avaliação da situação. Não havia nenhuma
maneira simples de identificar o informante interno. Lewis e
Clarke tinham visto o rapaz e passado a informação para
Irving, Pounds e se sabia lá a quem mais. Rourke e o
funcionário dos registros do FBI também sabiam. E estes
nomes nem sequer incluíam as pessoas da rua que podiam
ter visto Sharkey com Bosch, ou que tinham ouvido que
Bosch andava a procura dele. Bosch sabia que ia ter de
esperar que os acontecimentos evoluíssem.
No Federal Building, a recepcionista ruiva por trás da
janela de vidro do andar do FBI fê-lo esperar enquanto
ligava para o Grupo 3. Voltou a observar o cemitério através
da cortina de gaze e viu várias pessoas trabalhando na
trincheira aberta na colina. Estavam forrando a ferida da
terra com blocos de pedra preta onde, com o Sol, refulgiam
intensos pontos de luz branca. E finalmente, Bosch achou
que sabia o que eles estavam fazendo. A fechadura da porta
atrás dele zumbiu e Bosch entrou. Era meio-dia e meia e
toda a gente saíra exceto Eleanor Wish. Estava sentada à
mesa comendo um sanduíche de salada de ovo, do tipo das
que são vendidas numas caixas de plástico triangulares, em
todas as cafeterias dos edifícios governamentais que ele
conhecia. A garrafa de plástico e o copo de papel estavam
em cima da mesa. Trocaram um tímido “olá”. Bosch sentia
que as coisas entre eles tinham mudado, mas não sabia
quanto.
— Está aqui desde manhã? Perguntou ele.
Ela respondeu que não. Disse-lhe que levara as
fotografias de Franklin e Delgado aos funcionários da caixa-
forte do West Land National e que uma das mulheres tinha
identificado Franklin como sendo Fredric B. Isley, o dono do
cofre na caixa-forte. O batedor.
— É o suficiente para um mandado, mas o Franklin não
aparece, disse ela. — Rourke mandou uma equipe aos
endereços que a DGV tinha dele e do Delgado. Telefonaram
há pouco. Ou eles se mudaram ou nunca moraram naqueles
lugares. Parece que desapareceram.
— E agora? O que se segue?
— Não sei. Rourke está falando em fechar a loja por
agora, até os apanharmos. Provavelmente, vai precisar
voltar para os Homicídios. Quando apanharmos um deles,
voltamos a chamar para trabalhá-lo em relação ao
homicídio de Meadows.
— E também no do Sharkey. Não se esqueça.
— Sim, esse também. Bosch assentiu com a cabeça.
Estava acabado. O departamento ia fechar o caso. — A
propósito, tens um recado, disse ela. — Telefonaram para
você e deram o nome Hector. Mais nada.
Bosch se sentou à mesa ao lado dela e discou o número
direto de Hector Villabona. Ele atendeu ao segundo toque.
— Bosch.
— Ei, o que está fazendo com o FBI? Perguntou ele. —
Telefonei para o número que me deu e alguém me disse que
era o FBI.
— É uma longa história. Eu depois eu conto. Conseguiu
alguma coisa?
— Não consegui grande coisa, Harry e também não vou
conseguir. Não consigo obter o arquivo. Este Binh, seja lá
quem for, tem algumas ligações. Tal como calculamos. O
arquivo dele ainda está como classificado. Telefonei para um
tipo que conheço lá e pedi para ele me mandar. Ele me
retornou dizendo que era impossível.
— Por que ainda é secreto?
— Quem sabe, Harry? È por isso que ainda está como
classificado. Para que as pessoas não possam descobrir esta
merda.
— Bem, obrigado. Agora também já não parece tão
importante.
— Se tiver uma fonte no Departamento de Estado,
alguém com peso, é possível que tenham mais sorte do que
eu. Eu não passo de um insignificante. Mas, há uma coisa
que este tipo que eu conheço deixou escapar.
— O quê?
— Bem, veja bem, eu lhe dei o nome do Binh. E quando
ele me telefonou disse: “Lamento. O arquivo do capitão Binh
é classificado”. Foi exatamente assim que ele disse.
Capitão, ele chamou. Por isso este tipo deve ter sido militar.
Provavelmente, foi por isso que o tiraram de lá tão
depressa. Se for militar, não há dúvida que lhe salvaram o
couro.
— Pois é, disse Bosch. Depois agradeceu a Hector e
desligou. Voltou-se para Eleanor e perguntou se ela tinha
alguns contatos no Departamento de Estado. Ela abanou a
cabeça negativamente. — Serviços Secretos militares, CIA,
qualquer coisa dessas? Insistiu Bosch. — Alguém com
acesso aos computadores? Ela pensou durante uns
instantes e disse:
— Bem, há um tipo no andar do Estado. Conheço-o mais
ou menos de DC. Mas o que está acontecendo, Harry?
— Pode lhe telefonar e dizer que precisa de um favor?
— Ele não fala ao telefone de assuntos de serviço.
Teremos de ir lá.
 
Bosch se levantou. Fora da sala, quando estavam
esperando do elevador, contou do Binh, do seu posto militar
e do fato dele ter saído do Vietnam no mesmo dia que
Meadows. As portas do elevador se abriram, eles entraram
e ela apertou o botão do sétimo andar. Estavam sozinhos.
— Você sempre soube que eu estava sendo seguido
pelos Assuntos Internos, disse Bosch.
— Os vi.
— Mas sabia antes de tê-los visto, não sabia?
— Isso faz alguma diferença?
— Acho que faz. Por que não me disse? Ela levou um
tempo para responder. O elevador parou.
— Não sei, respondeu por fim. — Desculpe. Não o fiz
logo e depois, quando quis contar não fui capaz. Pensei que
ia estragar tudo. Calculo que, de certa maneira, estragou do
mesmo jeito.
— Por que não me disse Eleanor? Porque ainda tem
dúvidas a meu respeito? Ela olhou para o canto do elevador
em aço inoxidável.
— No princípio, sim, nós não estávamos seguros de
você. Não vou mentir sobre isso.
— E depois do princípio? A porta se abriu no sétimo
andar. Eleanor saiu dizendo:
— Ainda está aqui, não é?
Bosch saiu atrás dela. Agarrou-a pelo braço e fê-la
parar. Ficaram ali parados enquanto dois homens com
ternos cinzentos quase iguais corriam para a porta aberta
do elevador.
— Sim, ainda aqui estou, mas você não me disse nada
acerca deles.
— Harry, nós não poderemos falar disso noutra altura?
— O problema é que eles nos viram com Sharkey.
— Foi o que eu pensei.
— Bem, por que não disse nada quando eu falei do
informante interno, quando estava perguntando a quem
tinha falado do garoto?
— Não sei.
Bosch olhou para os pés. Sentia-se como se fosse o
único homem no planeta que não compreendia o que estava
acontecendo.
— Falei com eles, disse ele. — Eles garantem que só nos
viram com o garoto. Nunca se deram ao trabalho de
investigar do que se tratava. Disseram que não tinham a
identificação dele. O nome do Sharkey não constava dos
relatórios deles.
— E você acredita neles?
— Nunca tinha acreditado antes. Mas não os vejo
envolvidos nisto. Não encaixa. Eles andam apenas atrás de
mim e são capazes de tudo para me apanharem. Mas não
de matar uma testemunha. Isso seria uma loucura.
— Talvez eles estejam dando informações a alguém que
esteja envolvido e não saibam. Bosch voltou a pensar em
Irving e Pounds.
— É uma possibilidade. O que interessa é que há
alguém metido nisto de dentro. Em algum lugar. Isto nós
sabemos. E pode ser do meu lado. Pode ser do seu. Por isso,
vamos precisar ter muito cuidado em relação às pessoas
com quem falamos e o que dizemos.
Passado um instante, olhou-a nos olhos e perguntou:
— Acredita em mim? Ela levou muito tempo, mas por
fim assentiu com a cabeça. — Não consigo pensar em
nenhuma outra forma de explicar o que está acontecendo.
Eleanor se dirigiu para a recepcionista enquanto Bosch
se deixava ficar ligeiramente para trás. Alguns minutos
depois, uma jovem saiu de uma porta que estivera fechada
e levou-os por uns corredores até a uma pequena sala. Não
tinha ninguém sentado à mesa. Sentaram-se nas duas
cadeiras em frente da mesa e esperaram.
— Com quem é que vamos falar? Perguntou Bosch num
murmúrio.
— Eu o apresento e ele dirá o que ele quiser que você
saiba a respeito dele, respondeu ela.
Bosch ia lhe perguntar o que aquilo queria dizer, quando
a porta se abriu e um homem entrou. Parecia andar pelos
cinquenta anos, cabelo prateado muito bem cuidado e
penteado, compleição forte sob o blazer azul. Os olhos
cinzentos do homem eram tão baços como as brasas numa
churrasqueira no dia seguinte. Sentou-se e não olhou para
Bosch. Manteve os olhos fixos em Eleanor Wish.
— Ellie, é bom vê-la de novo, ele disse. — Como tem
passado? Ela respondeu que estava ótima, trocaram mais
umas amabilidades e apresentou Bosch.
O homem se levantou e se esticou por cima da mesa
para trocarem um aperto de mão.
— Bob Ernest, vice-subsecretário, comércio e
desenvolvimento, prazer em conhecê-lo. Então isto quer
dizer que é uma visita oficial e não apenas uma visitinha
para ver um velho amigo?
— Pois é, lamento Bob, mas estamos trabalhando numa
coisa e precisamos de ajuda.
— Tudo o que eu puder Ellie, disse Ernest. Estava
irritando Bosch e Bosch só o conhecia há um minuto.
— Bob, precisamos de umas informações sobre uma
pessoa cujo nome apareceu num caso em que estamos
trabalhando, explicou Eleanor Wish. — Penso que está numa
posição que o permitirá nos conseguir essas informações
sem grande dificuldade e sem perder muito tempo.
— O nosso problema é exatamente esse, acrescentou
Bosch. — É um caso de homicídio. Não temos muito tempo
para podermos usar os canais habituais. Para esperar pelas
coisas de Washington.
— Um residente estrangeiro?
— Vietnamita, respondeu Bosch.
— Quando é que veio para aqui?
— 4 de maio, 1975.
— Ah, logo a seguir à queda. Estou vendo. Digam-me,
em que raio de homicídio é que o FBI e o Departamento da
Polícia de Los Angeles estão trabalhando juntos e que
envolve uma história tão antiga e, ainda por cima, também
a história de outro país?
— Bob, começou Eleanor dizendo, — Acho que...
— Não, não responda, exclamou Ernest. — Acho que
tem razão. Será melhor compartimentalizarmos as
informações. Ernest se dedicou a endireitar o mata-borrão e
os objetos em cima da mesa. Para começar, não havia nada
fora do lugar. — Para quando é que precisam dessas
informações? Perguntou por fim.
— Agora, respondeu Eleanor.
— Nós ficamos esperando, acrescentou Bosch.
— Claro que compreendem que posso não conseguir
muita coisa, especialmente tão em cima da hora?
— Claro, respondeu Eleanor.
— Deem-me o nome.
Ernest fez deslizar uma folha de papel por cima do
mata-borrão. Eleanor escreveu o nome de Binh e empurrou-
o para ele. Ernest olhou para o nome durante uns curtos
instantes e se levantou sem tocar no papel.
— Vou ver o que posso fazer, disse ele e saiu da sala.
Bosch olhou para Eleanor.
— “Ellie”?
— Por favor, não admito que ninguém me chame assim.
É por isso que não atendo os telefonemas dele e nunca os
retribuo.
— Quer dizer, até agora. Vai ficar lhe devendo um favor.
— Se ele descobrir alguma coisa. E você também vai
ficar.
— Acho que vou precisar deixar que ele me trate por
Ellie. Ela não sorriu. — Afinal, como é que conheceu este
tipo? Ela não respondeu. Bosch disse: — Provavelmente está
ouvindo o que nós estamos dizendo.
Olhou em volta da sala, embora, obviamente, qualquer
aparelho de escuta que pudesse haver deveria estar
escondido. Puxou dos cigarros quando viu um cinzeiro em
cima da mesa.
— Por favor, não fume, pediu Eleanor.
— Só um.
— Conheci-o quando estávamos em Washington. Já nem
me recordo a propósito do quê. Ele também era vice
qualquer coisa do Departamento de Estado nessa altura.
Tomamos umas bebidas. Mais nada. Algum tempo depois,
ele se transferiu para aqui. Quando me viu no elevador e
descobriu que também tinha sido transferida, começou a
telefonar.
— CIA, certo? Ou qualquer coisa muito parecida.
— Mais ou menos. Acho eu. Não interessa se ele
conseguir o que queremos.
— Mais ou menos. Conheci uns tipos como ele durante a
guerra. Por muita coisa que ele nos venha a dizer hoje, vai
ficar sempre muita coisa de fora. Para tipos deste calibre, a
informação é a moeda de troca deles. Nunca dão tudo. Tal
como ele disse, eles compartimentalizam tudo. São capazes
de nos deixar morrer antes de dizerem tudo.
— Podíamos parar de falar agora?
— Claro... Ellie.
Bosch ocupou o tempo fumando e olhando para as
paredes vazias. O tipo não fez nenhum esforço para fazer
com que aquilo parecesse um gabinete a sério. Não havia
bandeira no canto. Nem sequer uma fotografia do
presidente. Ernest voltou ao fim de vinte minutos e, nessa
altura, Bosch já estava no seu segundo cigarro. Quando o
vice-subsecretário do comércio e desenvolvimento entrou
na sala de mãos vazias, disse:
— Detetive, se importaria de não fumar aqui dentro?
Acho isso muito desagradável numa sala fechada. Bosch
apagou o cigarro na tigelinha preta no canto da mesa.
— Desculpe, disse ele. — Vi o cinzeiro. Pensei que...
— Não é um cinzeiro, detetive, disse Ernest num tom
sombrio. — É uma tigela de arroz com trezentos anos.
Trouxe-a comigo depois da minha passagem no Vietnam.
— Também já estava trabalhando no comércio e
desenvolvimento nessa época?
— Desculpe Bob, mas descobriu alguma coisa?
Intrometeu-se Eleanor.
— Sobre o nome? Ernest levou um bom tempo para
afastar os olhos de Bosch. — Descobri muito pouca coisa,
mas o que consegui é capaz de ser útil. Este homem, Binh,
é um antigo policial militar de Saigon. Um capitão... Bosch,
você é veterano desta altercação?
— Está se referindo à guerra? Sim, sou.
— Claro que é, disse Ernest. — Diga-me, esta
informação lhe diz alguma coisa?
— Não muito. Eu passei quase toda a minha passagem
no interior do país. Não vi grande coisa de Saigon, exceto os
bares dos Ianques e as salas de tatuagens. O tipo era
capitão da polícia, isso devia ter algum significado para
mim?
— Suponho que não. Por isso, me deixe lhe dizer. Como
capitão, Binh dirigia a unidade de combate às drogas do
departamento de polícia. Bosch pensou naquilo e disse:
— OK, provavelmente, era tão corrupto como tudo o que
estava relacionado com aquela guerra.
— Suponho que, vindo do interior do país, você não
sabe muita coisa sobre o sistema, a maneira como as coisas
funcionavam em Saigon? Perguntou Ernest.
— Por que não nos explica? Parece que isso era do seu
departamento. O meu era apenas tentar me manter vivo.
Ernest ignorou a provocação. Resolveu também ignorar
Bosch. Só olhou para Eleanor enquanto falava.
— Era tudo muito simples, na verdade, explicou ele. —
Se negociasse em substâncias, carne humana, jogo,
qualquer outra coisa no mercado negro, era obrigada a
pagar uma tarifa local, um dízimo para a casa, por assim
dizer. Esse pagamento mantinha a polícia local afastada.
Praticamente, garantia que o negócio não seria
interrompido dentro de certos limites. Só tinha de se
preocupar com a polícia militar dos Estados Unidos. Claro,
eles também podiam ser comprados, calculo eu. Sempre se
falou nisso. Bem, seja como for, o sistema funcionou
durante anos, desde o princípio do princípio até depois da
retirada americana, até, eu calculo, 30 de Abril de 1975, o
dia em que Saigon caiu. Eleanor assentiu com a cabeça e
ficou esperando que ele continuasse. — O envolvimento
militar americano durou mais de uma década, antes disso
eram os franceses. Estamos falando de muitos, muitos anos
de intervenção estrangeira.
— Milhões, disse Bosch.
— O quê?
— Está falando de milhões de dólares de subornos.
— Sim, exatamente. Dezenas de milhões quando se
soma os anos todos.
— E onde o capitão Binh se encaixa nisso? Perguntou
Eleanor.
— Veja, disse Ernest, — A informação que tínhamos na
altura era que a corrupção dentro da polícia de Saigon era
orquestrada ou controlada por uma tríade chamada Os Três
do Diabo. Pagava ou não fazia negócio. Era muito simples.
Por coincidência, ou melhor, por não haver coincidência
nenhuma, a polícia de Saigon tinha três capitães cujos
domínios correspondiam perfeitamente, por assim dizer, aos
da tríade. Um capitão encarregado do vício. Outro dos
narcóticos. Outro da patrulha. Segundo as nossas
informações, esses três capitães eram na realidade a dita
tríade.
— Está sempre dizendo “As nossas informações”. Isso
quer dizer as informações do comércio e desenvolvimento?
Onde é que foi buscar isto?
Ernest recomeçou a ajeitar as coisas em cima da mesa
e depois se dirigiu a Bosch dando um olhar gelado.
— Detetive, veio ter comigo à procura de informações.
Mas, se veio saber qual é a fonte dessas informações, então
está muito enganado, pois veio ter com a pessoa errada.
Pode acreditar no que eu lhe digo ou não. Isso não tem
qualquer importância para mim. Os dois homens se
entreolharam fixamente, mas não disseram mais nada.
— O que aconteceu? Perguntou Eleanor. — Aos
membros da tríade? Ernest desviou os olhos de Bosch e
respondeu:
— O que aconteceu foi que quando os Estados Unidos
retiraram as suas tropas em 1973, a fonte de recursos da
tríade ficou bastante reduzida. Mas, como qualquer
entidade de negócios responsável, eles já estavam
esperando isso e procuraram uma maneira de substituí-la. E
as nossas informações à época eram de que eles mudaram
consideravelmente de posições. Nos princípios da década
de setenta passaram do papel de proteção às operações da
droga em Saigon para o de se tornarem parte dessas
operações. Através dos contatos políticos e militares e,
evidentemente, do poder da polícia, se solidificaram como
intermediários de toda a heroína que vinha das montanhas
e era levada para os Estados Unidos.
— Mas não durou, disse Bosch.
— Oh, não. Claro que não. Quando Saigon caiu em abril
de setenta e cinco, eles tiveram de sair. Tinham ganho
milhões, se calcula que entre quinze a dezoito milhões de
dólares americanos cada um. Não teriam o menor valor na
nova cidade Ho Chi Minh e, de qualquer maneira, também
não ficariam vivos. A tríade tinha de sair de lá se não queria
enfrentar o pelotão de fuzilamento do Exército do Norte. E
tinham que sair com o dinheiro...
— E como o fizeram? Perguntou Bosch.
— Era dinheiro sujo. Dinheiro que nenhum capitão da
polícia vietnamita podia ou devia ter. Suponho que podiam
ter mandado para Zurique, mas é preciso não nos esquecer
de que estamos lidando com a cultura vietnamita. Nascida
da confusão e da desconfiança. Da guerra. Esta gente nem
sequer confiava nos bancos do seu próprio país. E, além
disso, já não era dinheiro.
— O quê? Perguntou Eleanor sem notar.
— Tinham andado convertendo-o. Sabe o que são
dezoito milhões em dinheiro? Se calhar enche uma sala. Por
isso, eles arranjaram maneira de encolhê-lo. Pelo menos, é
o que julgamos.
— Pedras preciosas, disse Bosch.
— Diamantes, disse Ernest. — Dizem que com o tipo
certo de diamantes, dezoito milhões de dólares deles cabem
em duas caixas de sapatos.
— E num cofre de uma caixa-forte, disse Bosch.
— É possível, sim, mas, por favor, não quero saber
aquilo que não preciso saber.
— O Binh era um dos capitães, disse Bosch. — Os outros
dois quem eram?
— Disseram-me que um deles se chamava Van Nguyen.
E se pensa que morreu. Nunca saiu do Vietnam. Morto pelos
outros dois ou pelo Exército do Norte. Mas nunca saiu. Foi
confirmado pelos nossos agentes em Ho Chi Minh depois da
queda. Os outros dois saíram. Vieram para aqui. E ambos
tinham passes, arranjados através das ligações e do
dinheiro, calculo eu. Nisso não os posso ajudar... Havia o
Binh, que ao que parecem vocês descobriram, e o outro era
Nguyen Tran. Veio com Binh. Para onde foram e o que
fizeram aqui... Nisso não posso ajudar. Já se passaram
quinze anos. Mal eles fizeram a travessia, deixaram de ser
preocupação nossa.
— Por que vocês os deixaram entrar?
— Quem é que diz que deixamos? Precisa notar detetive
Bosch, que muitas destas informações foram conseguidas
depois.
Ernest se levantou. Aquilo fora toda a informação que
ele estava disposto a compartimentalizar naquele dia.
Bosch não queria voltar para o departamento. As
informações de Ernest eram como anfetaminas no seu
sangue. Queria andar a pé. Queria falar, queria fazer
barulho. Quando entraram no elevador apertou no botão
para o átrio de entrada e disse a Eleanor que iam sair. O
departamento parecia um aquáriozinho. Ele queria um
espaço grande. Para Bosch sempre parecera que em todas
as investigações, as informações iam aparecendo
devagarinho, como a areia caindo lenta e regularmente pelo
gargalo de uma ampulheta. Em determinado momento,
havia mais informação no fundo da ampulheta. E então, a
areia na parte de cima parecia começar a cair mais
depressa, até se transformar numa cascata. Estava nesse
momento com Meadows, o assalto ao banco, a coisa toda.
As coisas estavam começando se juntar. Saíram pelo átrio
da frente e atravessaram para o relvado onde havia oito
bandeiras dos Estados Unidos e uma do estado da Califórnia
adejando preguiçosamente nos postes dispostos em
semicírculo. Desta vez não havia ninguém protestando. O ar
estava quente e anormalmente húmido para a época do
ano.
— Temos mesmo que andar aqui fora? Perguntou
Eleanor. — Preferia estar lá em cima, onde estaríamos ao pé
do telefone. Podia tomar um café.
— Quero fumar.
Dirigiram-se para norte, na direção do Wilshire
Boulevard. Bosch disse:
— Estamos em 1975. Saigon está prestes a ir pelo cano
abaixo. O capitão da Polícia Binh paga pessoas para tirá-lo e
a sua parte dos diamantes dali para fora. A quem é que
paga, não sabemos. Mas sabemos que ele consegue
tratamento VIP durante toda a viagem. A maior parte das
pessoas saiu de barco, ele foi de avião. Quatro dias de
Saigon aos Estados Unidos. Está acompanhado por um
conselheiro civil americano para ir aplainando as coisas. E
Meadows. Ele...
— Ele pode ter estado acompanhado, disse ela. —
Esquece-se da palavra “pode”.
— Não estamos no tribunal. Estou dizendo da maneira
como vejo as coisas, OK? Depois, se não gostar, pode dizer
da sua maneira. Ela levantou os braços como se estivesse
se rendendo e Bosch continuou. — Portanto, Meadows e
Binh estão juntos. 1975. Meadows está trabalhando na
segurança dos civis ou qualquer coisa parecida. Ele também
está se mandando de lá. Pode ter ou não conhecido Binh
dos seus negócios paralelos, do tráfico de heroína. O mais
provável é ter conhecido. Provavelmente até trabalhou para
Binh. Ora, ele pode ter sabido ou não o que o Binh
carregava consigo. O mais provável é que pelo menos
tivesse alguma ideia. Bosch parou para organizar as suas
ideias e Eleanor, relutantemente, continuou.
— Binh traz consigo o seu desagrado cultural ou
desconfiança em colocar o dinheiro nas mãos dos
banqueiros. Além disso, também tem um problema
adicional. O dinheiro dele não é legal. Não foi declarado, é
desconhecido e é ilegal tê-lo com ele. Não pode declarar
nem fazer um depósito normal porque isso daria na vista e
ele seria obrigado a se explicar. Por isso, guarda a sua nada
pequena fortuna na segunda coisa melhor: uma caixa-forte
de um banco. Aonde vamos?
Bosch não respondeu absorvido nos seus próprios
pensamentos. Estavam em Wilshire. Quando o sinal para
andar faiscou por cima do cruzamento, avançaram com o
fluxo de corpos. No outro lado da rua, viraram para o
ocidente, caminhando ao longo das sebes que bordejavam o
cemitério dos veteranos. Bosch retomou a história.
— OK, então Binh colocou a sua parte no cofre de um
banco. Começa o seu grande sonho americano como
refugiado. Só que ele é um refugiado rico. Entretanto,
Meadows volta no fim da guerra, não consegue se encaixar
na confusão da vida normal, não consegue vencer o vício da
droga e começa a traficar para alimentar o vício. Mas as
coisas não são tão fáceis como em Saigon. É apanhado,
passa algum tempo na prisão. Sai, volta, sai e, finalmente
começa a cumprir tempo a sério por crimes federais
relacionados com assalto a banco.
Havia uma abertura na sebe e um caminho de lajes.
Bosch entrou por ele e pararam para olhar a vastidão do
cemitério, as filas de pedras gravadas de um branco polido
pelo tempo que se recortavam no mar de relva. A sebe alta
abafava o ruído da rua. De repente, havia uma grande paz.
— Parece um parque, comentou Bosch.
— É um cemitério, sussurrou ela. — Vamos embora.
— Não é preciso sussurrar. Vamos dar uma volta. É
sossegado. Eleanor hesitou, mas depois foi atrás dele
quando ele seguiu pelo caminho das lajes até a um carvalho
velho que fazia sombra às campas de um grupo de
veteranos da Primeira Guerra Mundial. Continuou a
conversa.
— Bem, então agora temos Meadows na TI. Não se sabe
como, ouve falar desta Charlie Company. Atrai a atenção
deste soldado-pastor que dirige a comunidade, consegue o
seu apoio e sai mais cedo da TI. Na Charlie Company entra
em contato com dois velhos camaradas da guerra. Ou pelo
menos é aquilo que supomos. Delgado e o Franklin. Só que
só há um dia em que os três estão todos juntos na Charlie
Company. Apenas um dia. Está me dizendo que eles
cozinharam isto tudo neste único dia?
— Não sei, disse Bosch. — Pode ter acontecido. Mas
duvido. Pode ter sido planejado mais tarde, depois de eles
terem estabelecido contato. O importante é que estão
juntos, ou muito perto, em Saigon, em 1975. Agora temo-los
outra vez juntos na Charlie Company. A seguir, Meadows
acaba o cursinho, arranja uns quantos empregos para
disfarçar até acabar a liberdade condicional. Depois, se
despede e desaparece.
— Até?
— Até ao assalto ao West Land. Entram e arrombam os
cofres todos até encontrarem o do Binh. Ou talvez já
soubesse qual era o dele. Devem tê-lo seguido quando
andavam preparando o golpe e devem ter descoberto onde
é que ele guardava o que restava da sua parte dos
diamantes. Precisamos voltar a consultar os registros da
caixa-forte para vermos se este Frederic B. Isley alguma vez
fez uma visita ao mesmo tempo em que Binh. Aposto que
vamos descobrir que fez. Viu qual era o cofre de Binh
porque esteve lá ao mesmo tempo em que ele. Depois,
durante o assalto à caixa-forte, rebentaram o cofre dele e a
seguir os outros, levando tudo como camuflagem. A
genialidade disto foi que o Binh não podia declarar o que
fora roubado porque, legalmente, não existia. Eles sabiam
disso. Foi perfeito. E o que fez que assim fosse foi eles
levarem todas as outras coisas para encobrir o alvo
verdadeiro. Os diamantes.
— O crime perfeito, disse ela. — Até Meadows ter
empenhado a pulseira com os golfinhos de ouro. É isso que
faz com que o matem. O que nos trás outra vez à pergunta
que já fazíamos há uns dias atrás. Por quê? É outra coisa
que não faz sentido: por que, se Meadows ajudou a saquear
a caixa-forte, ele estava vivendo naquele pardieiro? Era um
homem rico que não agia como um homem rico.
Bosch continuou andando em silêncio durante um
pedaço. Era a pergunta para a qual ele vinha à procura de
uma resposta desde o seu encontro com Ernest. Pensou no
pagamento adiantado de onze meses do aluguel de
Meadows. Se estivesse vivo, estaria se mudando na semana
seguinte. Enquanto passeavam pelo jardim de pedras
brancas, tudo parecia encaixar. Já não havia areia nenhuma
na parte de cima da ampulheta. Por fim, falou.
— Porque o crime perfeito ainda estava na metade. Ao
empenhar a pulseira, denunciou-o cedo demais. Por isso,
tinha de morrer e eles precisavam recuperar a pulseira.
Ela parou e olhou para ele. Estavam parados na estrada
que dava acesso à seção da Segunda Guerra Mundial. Bosch
reparou que as raízes de outro velho carvalho tinham
empurrado algumas das lápides gastas, desalinhando-as.
Pareciam dentes à espera das mãos de um dentista.
— Explique isso que acabou de dizer, disse Eleanor.
— Eles arrombaram vários cofres para encobrirem que o
que realmente queriam era o que estava dentro do cofre do
Binh. Certo? Ela assentiu. Continuavam parados. — OK. Por
isso, para continuarem a encobrir, o que tinham de fazer?
Libertarem-se de todas as outras coisas de maneira a que
elas nunca mais fossem encontradas. E eu não estou
falando em as venderem a passadores. Estou dizendo se
verem livres delas, destruírem-nas, afundarem-nas,
enterrarem-nas para sempre, em qualquer lugar onde nunca
mais fossem descobertas. Porque no minuto em que a
primeira peça de joalheria, ou qualquer moeda antiga, ou
qualquer ação aparecesse e a polícia descobrisse, teriam
uma pista e iriam à procura.
— Então acha que Meadows foi morto por ter
empenhado a pulseira? Perguntou Eleanor.
— Não foi exatamente por causa disso. Há outras
correntes se movendo no meio disto tudo. Por que, se
Meadows tinha uma parte dos diamantes do Binh, ele havia
de se incomodar com uma pulseira que valia apenas uns
milhares de dólares? Por que ele havia de viver da maneira
que vivia? Não faz sentido.
— Está me confundindo, Harry.
— Também estou confuso. Mas analise isto nesta
perspectiva só por um minuto. Digamos que eles Meadows
e os outros sabiam onde é que os dois, Binh e o outro
capitão, o Nguyen Tran estavam e onde ambos tinham
guardado o que restava dos diamantes que tinham trazido
para aqui. Digamos que havia dois bancos e os diamantes
estavam em duas caixas-fortes. E digamos que eles iam
assaltar as duas. Primeiro, limpam o banco do Binh. E agora
vão atacar o do Tran.
Ela assentiu com a cabeça para indicar que estava
acompanhando. Bosch sentia a excitação a aumentar.
— OK. Estas coisas demoram tempo planejando,
preparando toda a estratégia, para executarem numa altura
em que o banco esteja fechado três dias seguidos, porque é
desse tempo todo que precisam para abrir o número
suficiente de cofres para fingirem que era isso que queriam.
E depois há o tempo que precisam para escavar o túnel.
Tinha se esquecido de acender um cigarro. Notou isso
naquele momento e colocou um na boca.
— Está me acompanhando? Ela assentiu. Ele acendeu o
cigarro. — OK, vejamos o que seria a melhor coisa a fazer
depois de assaltar o primeiro banco, mas antes de limpar o
segundo? Fica quietinha e não deixa transparecer nada. Vê-
se livre de todas as coisas que tirou como camuflagem,
todas as coisas das outras caixas. Não fica com nada. E
senta em cima da caixa dos diamantes do Binh. Não
começa a negociá-los porque isso pode atrair a atenção
para você e estragar o segundo golpe. De fato, Binh deve
ter posto gente farejando, à procura dos diamantes. Quero
dizer, ao longo destes anos, ele andava provavelmente
vendendo-os aos poucos e devia estar familiarizado com a
rede de receptadores de diamantes. Por isso, eles também
tinham de ter cuidado com ele.
— Quer dizer que Meadows quebrou as regras, disse ela.
— Ele guardou uma coisa. A pulseira. Os sócios descobriram
e o mataram. Depois assaltaram a casa de penhores e
recuperaram a pulseira. Abanou a cabeça admirando o
plano. — A coisa seria perfeita se ele não tivesse feito
aquilo.
Bosch concordou. Ficaram ali parados, olhando um para
o outro e depois para o cemitério. Bosch jogou fora o cigarro
e pisou-o. Ao mesmo tempo, olharam para o topo da colina
e viram as paredes negras do Memorial aos Veteranos do
Vietnam.
— O que aquilo está fazendo aqui? Perguntou ela.
— Não sei. É uma réplica. Com metade do tamanho.
Mármore falso. Acho que eles andam com ele de um lado
para o outro pelo país inteiro para o caso de alguém o
querer ver e não poder ir a DC. Eleanor soltou um queixume
e se voltou para ele.
— Harry, nesta segunda-feira é o Memorial Day!
— Eu sei. Os bancos fecham dois dias. Alguns três.
Temos de descobrir o Tran.
Ela se preparou para voltar para o FBI. Ele deu um
último olhar ao memorial. A comprida placa de mármore
fingido com todos os nomes gravados estava cravada na
encosta da colina. Um homem com um uniforme cinzento
varria a calçada à frente dele. Havia um monte de flores
violetas de um jacarandá. Harry e Eleanor permaneceram
calados enquanto saíam do cemitério e voltavam pela
Wilshire em direção ao Edifício Federal. Foi então que ela fez
a pergunta com que Bosch andava as voltas na cabeça e
para a qual ainda não encontrara uma resposta satisfatória.
— Porquê agora? Porquê todo este tempo? Já se
passaram quinze anos.
— Não sei. Vai ver é o momento exato, mais nada.
Pessoas, coisas, forças invisíveis, se juntam de tempos em
tempos. É o que eu acredito. Quem sabe? Se calhar
Meadows esqueceu por completo de Binh e, um dia, viu-o
na rua por acaso, e lhe veio tudo outra vez à memória. O
plano perfeito. Vai ver o plano era de outra pessoa qualquer
ou então foi pensado naquele dia em que os três passaram
juntos na Charlie Company. Os porquês nunca se sabem
com exatidão. Só precisamos saber “como” e “quem”.
— Sabe Harry, se eles andam por aí, ou como deveria
dizer, aí por baixo, escavando um túnel novo, então temos
menos de dois dias para encontrá-los. Temos de mandar
gente lá para baixo para procurá-los.
Ele pensou que mandar uma equipe para baixo da
cidade à procura de uma possível entrada para um túnel
dos bandidos era procurar uma agulha num palheiro. Ela
tinha lhe dito que havia mais de dois mil e quatrocentos
quilômetros de túneis por baixo de LA. Era possível que não
conseguissem encontrar o túnel dos bandidos mesmo que
tivessem um mês. A chave tinha de ser Tran. Descobrir o
último capitão da polícia e em seguida descobrir o banco. Aí
encontrariam os bandidos. E os assassinos de Billy
Meadows. E de Sharkey.
— Acha que Binh nos entregaria Tran? Perguntou ele.
— Ele não informou que a sua fortuna fora roubada do
banco, por isso, não me parece o gênero de pessoa que nos
vá dizer onde está o Tran.
— Exatamente. Acho que o melhor é tentarmos
descobri-lo por nós mesmos antes de irmos falar com Binh.
E melhor deixar o Binh como último recurso.
— Vou já para o computador.
— Certo.
 
O computador do FBI e as redes de computadores a que
ele tinha acesso não divulgaram o paradeiro de Nguyen
Tran. Bosch e Eleanor não encontraram qualquer referência
a ele no DMV, INS, IRS ou nos arquivos da Seguridade
Social. Não havia nada nos arquivos de nomes fictícios dos
registros do Condado de Los Angeles. Nenhuma menção
dele nos registros do DWP, nem nos registros dos eleitores
ou dos impostos sobre a propriedade. Bosch telefonou para
Hector Villabona e confirmou que Tran entrara nos Estados
Unidos no mesmo dia de Binh, mas não havia mais
registros. Passado três horas olhando para as letras
amarelas da tela do computador, Eleanor desligou-o.
— Nada, disse ela. — Ele está usando um nome
diferente. Mas não o mudou legalmente, pelo menos neste
país. Ninguém tem o rastro do tipo.
Ficaram sentados desiludidos e calados. Bosch bebeu o
último gole de café de uma xícara de plástico. Passava das
cinco e a sala de trabalho estava deserta. Rourke tinha ido
para casa depois de ter sido informado das últimas
novidades e de decidir não mandar ninguém para os túneis.
— Sabem quantos quilômetros de túneis para controle
das águas há em LA? Tinha perguntado. — Aquilo lá em
baixo é como um sistema de autoestradas. Estes tipos, se é
que estão de fato lá em baixo, podem estar em qualquer
lugar. Íamos andar aos tropeções no escuro. Eles teriam
tudo a favor deles e algum dos nossos podia acabar por
ficar ferido. Bosch e Eleanor sabiam que ele tinha razão.
Não discutiram com ele e se colocaram ao trabalho para
descobrirem Tran. E tinham fracassado.
— Sendo assim, agora temos mesmo de ir ter com o
Binh, disse Bosch depois de acabar de beber o café.
— Acha que ele vai cooperar? Perguntou ela. — Ele vai
saber que se queremos o Tran, é porque devemos conhecer
o passado dele. E os diamantes.
— Não sei o que ele fará, respondeu Bosch. — Amanhã
vou falar com ele. Tem fome?
— Vamos falar com ele amanhã, corrigiu ela e depois
sorriu. — E sim, tenho fome. Vamos embora.
Comeram num grill na Broadway em Santa Monica.
Eleanor escolheu o restaurante e, uma vez que ficava perto
do apartamento dela, Bosch se sentia muito bem disposto e
descontraído. Um trio tocava num pequeno estrado de
madeira ao canto da sala, mas as paredes de tijolo da casa
abafavam o som tornando-o praticamente inaudível. Depois,
Eleanor e Bosch se deixaram ficar confortavelmente
sentados bebendo expressos. Havia entre eles um
sentimento de ternura que Bosch sentia, mas não sabia
explicar. Não conhecia esta mulher que estava sentada à
sua frente. Um olhar para aqueles duros olhos castanhos lhe
disse isso. Queria se colocar por trás deles. Tinham feito
amor, mas ele queria estar apaixonado. Queria-a.
Parecendo, como sempre, ler os pensamentos dele, ela
perguntou:
— Vem para casa comigo hoje à noite?
Lewis e Clarke estavam no segundo nível do
estacionamento da garagem do outro lado da rua, meio
quarteirão abaixo do Broadway Bar & Grill. Lewis estava fora
do carro, agachado junto ao parapeito, observando através
da máquina fotográfica. A objetiva com trinta centímetros
de comprimento estava apoiada num tripé e apontada para
a porta da frente do restaurante, a cem metros de distância.
Esperava que as luzes por cima da porta fossem suficientes.
Tinha um rolo de alta velocidade na máquina, mas a
pintinha vermelha piscando no visor estava lhe dizendo
para não tirar a fotografia. Ainda não havia luz suficiente.
Apesar disso, resolveu experimentar. Queria uma fotografia.
— Não vai conseguir nada, disse Clarke atrás dele. —
Com esta luz é impossível.
— Deixa-me fazer o meu trabalho. Se não conseguir,
não consegui. Quem é que se importa?
— O Irving?
— Bem, ele que se foda. Ele nos disse que queria mais
documentação. É o que vai ter. Só estou tentando fazer
aquilo que o homem quer.
— Devíamos tentar ir lá embaixo, ao pé daquela deli,
fotografar mais de perto... Clarke se calou e virou ao ouvir
passos. Lewis manteve os olhos fixos na câmara, esperando
poder tirar a foto do restaurante. Os passos pertenciam a
um homem com o uniforme azul de um segurança.
— Posso lhes perguntar o que estão fazendo aqui?
Perguntou o guarda. Clarke lhe mostrou o distintivo e disse:
— Estamos trabalhando.
O guarda, um jovem negro, deu um passo em frente
para ver melhor o crachá e a identificação e estendeu a
mão para segurá-lo. Clarke levantou-o abruptamente,
pondo-o fora do alcance dele.
— Não toque nisso, mano. Ninguém mexe no meu
crachá.
— Isso diz LAPD. Vocês entraram em contato com o
Departamento da Polícia de Santa Monica? Eles sabem que
estão aqui?
— Porra, mas quem quer saber disso? Deixe-nos em
paz. Clarke lhe deu as costas. Ao ver que o guarda não ia
embora se voltou outra vez e perguntou: — Filho, você
precisa de alguma coisa?
— Esta garagem é o meu território, detetive Clarke.
Posso ficar onde muito bem entender.
— Pode é sair daqui. Eu posso... Clarke ouviu o
obturador da máquina fotográfica se fechando e o barulho
do zumbido automático. Virou-se para Lewis que se
endireitou sorrindo.
— Consegui... Uma fotografia de primeira, disse Lewis
enquanto se endireitava. — Eles estão de saída, vamos
embora!
Lewis dobrou as pernas telescópicas da objetiva e
entrou rapidamente para o assento do passageiro do
Caprice cinzento pelo qual tinham trocado o Plymouth preto.
— Até à vista, mano, disse Clarke para o guarda
enquanto deslizava para trás do volante.
O carro recuou obrigando o segurança a saltar para o
lado para sair do caminho. Clarke olhou pelo espelho
retrovisor e sorriu enquanto seguia em direção à rampa de
saída. Viu o guarda falando num rádio que tinha na mão.
— Fale o que quiser rapazinho! Disse ele.
O carro dos Assuntos Internos parou ao lado da cabine
de saída. Clarke entregou o bilhete e dois dólares ao homem
na cabine. Ele aceitou, mas não levantou o cano riscado de
preto e branco que servia de barreira.
— O Benson diz que eu tenho de segurá-los aqui,
rapazes, disse o homem da cabine.
— O quê? Quem é o Benson, porra? Perguntou Clarke.
— É o segurança. Ele disse para esperarem um minuto.
Naquele preciso instante, os dois agentes dos Assuntos
Internos viram Bosch e Eleanor Wish passar de carro pela
frente da garagem em direção à Fourth Street. Iria perdê-
los. Clarke exibiu o distintivo ao empregado.
— Estamos em serviço. Levanta a porra da barreira. Já!
— Ele já vem aí. Tenho de fazer o que ele diz. Senão
perco o emprego.
— Se não levantar essa merda, vai ficar sem ela, meu
imbecil, berrou Clarke. Meteu o pé a fundo e acelerou o
motor para mostrar que ia passar por ela.
— Por que acha que temos um cano em vez de uma
barreirinha de madeira? Vá. Avance. Aquele cano vai lhe
rebentar o para-brisa. Façam o que quiserem, mas ele já
está chegando.
No retrovisor, Clarke viu o guarda descendo a rampa. A
cara de Clarke estava ficando vermelha de raiva. Sentiu a
mão de Lewis no braço.
— Calma, parceiro, disse Lewis. — Eles estavam de mão
dada quando saíram do restaurante. Não vamos perdê-los.
Vão para casa dela. Aposto uma semana de salário que é lá
que vamos encontrá-los.
Clarke sacudiu a mão e respirou fundo. Isso fez com que
a sua expressão assumisse um ar mais plácido.
No Ocean Park Boulevard, Bosch descobriu um lugar
para estacionar o carro do lado oposto ao prédio de Eleanor.
Estacionou, mas não fez nenhum movimento para sair do
carro. Olhou para ela, sentindo a mesma emoção de
minutos antes, mas sem saber ao certo onde iriam chegar
com aquilo. Ela pareceu notar, também sentia isso. Pousou
a mão em cima da dele e se inclinou para frente para beijá-
lo. Sussurrou:
— Venha comigo.
Ele saiu e se dirigiu para o lado dela. Eleanor já saíra e
fechara a porta. Deram a volta à parte da frente do carro e
depois pararam ao lado dele, esperando que um carro que
se aproximava passasse. O carro trazia os faróis altos
acesos e Bosch desviou os olhos para olhar para Eleanor.
Por isso, foi ela que notou de que os faróis se viravam para
eles.
— Harry?
— O quê?
— Harry!
Bosch se voltou outra vez para o carro que se
aproximava e viu que as luzes na realidade, eram quatro
feixes de dois conjuntos de faróis quadrados ao lado uns dos
outros incidindo sobre eles. Nos poucos segundos que
restavam, Bosch chegou à conclusão que o carro não ia
passar por eles, mas que estava avançando para cima
deles. Não havia tempo, contudo, o tempo pareceu ficar em
suspensão. Naquilo que lhe pareceu ser uma câmara lenta,
Bosch se virou para a direita, para Eleanor. Mas ela não
precisava de ajuda. Simultaneamente saltaram para cima
do capô do carro de Bosch. Ele estava rolando por cima dela
e os dois estavam rolando para o chão quando o carro se
ergueu violentamente e ouviram um som estridente de
metal se rasgando. Com a visão periférica, Bosch viu uma
chuva de chamas azuis. Depois aterrou em cima de Eleanor
na estreita faixa de relva que havia entre o meio-fio e a
calçada propriamente dita. Estavam salvos, Bosch
conseguiu notar. Assustados, mas salvos, pelo menos
naquele momento.
Levantou-se com a arma firmemente agarrada com as
duas mãos. O carro que tinha vindo contra eles não dava
sinais de parar. Já estava a uns bons cinquenta metros para
este, se afastando e ganhando velocidade. Bosch disparou
uma bala que lhe pareceu ter ricocheteado na janela de
trás, demasiado fraca, àquela distância, para penetrar no
vidro. Ouviu a arma de Eleanor disparar duas vezes ao seu
lado, mas não viu nenhum dano no carro em fuga. Sem
dizerem uma palavra, entraram no carro de Bosch pela
porta do lado contrário ao do motorista. Bosch conteve a
respiração enquanto fazia girar a chave, mas o motor
começou a trabalhar e o carro se afastou da calçada com
um guinchar de pneus. Bosch girou o volante de um lado
para o outro à medida que acelerava. A suspensão parecia
um pouco solta. Não fazia ideia da extensão dos estragos.
Quando tentou olhar para o espelho lateral, viu que este
tinha desaparecido. Quando acendeu as luzes, só o farol do
lado de Eleanor estava funcionando.
O carro que tentara atropelá-los tinha um avanço de
pelo menos cinco quarteirões e estava chegando à parte
onde a Ocean Park Boulevard sobe e depois desce e
desaparece. As luzes do carro se apagaram no preciso
momento em que ele descia a encosta desaparecendo do
campo de visão. “Está se dirigindo para Bundy Drive”,
pensou Bosch. Dali era uma corridinha até à 10. E aí,
desapareceria por completo e eles nunca mais o veriam.
Bosch apanhou o rádio e transmitiu um pedido de auxílio.
Mas não conseguiu fazer uma descrição do carro, só pôde
indicar a direção em que seguiam.
— Ele vai para a autoestrada, Harry! Gritou Eleanor. —
Está bem?
— Estou. E você? Viu a marca?
— Estou bem. Só assustada. Não vi a marca. Americano
me parece. Uh... Faróis quadrados. Não vi a cor, escuro é
tudo o que sei. Não vamos conseguir apanhá-lo se ele
chegar à autoestrada.
Seguiam para leste pela Ocean Park, paralela a 10, que
fica a uns oito quarteirões de distância para o norte.
Aproximaram-se do topo da subida e Bosch apagou o único
farol que funcionava. Quando começaram a descer, viu o
vulto do carro, de luzes apagadas, passando o cruzamento
iluminado em Lincoln. Sim, ele ia para a Bundy. Em Lincoln,
Bosch virou à esquerda e apertou a fundo o acelerador.
Voltou a acender as luzes. E, quando o carro aumentou de
velocidade, ouviram o barulho de qualquer coisa batendo. O
pneu da frente, do lado direito e o alinhamento estavam
danificados.
— Aonde vai? Perguntou Eleanor.
— Vou entrar na autoestrada.
Mal Bosch acabara de dizer aquilo, apareceram os sinais
da entrada da autoestrada e o carro fez uma ampla curva
para a direita entrando na rampa. O pneu aguentou. Desceu
a rampa à toda a velocidade em direção ao trânsito.
— Como é que vamos saber? Gritou Eleanor. O barulho
do pneu era muito forte agora, um batimento quase
contínuo.
— Não sei. Procure faróis quadrados. Um minuto depois,
estavam entrando pela Bundy, mas Bosch não fazia a
mínima ideia se tinha conseguido passar à frente do outro
carro ou se ele já ia muito à frente. Vinha um carro subindo
a rampa e entrando na faixa. Era branco e estrangeiro.
— Não é, gritou Eleanor.
Bosch voltou a pisar no acelerador e continuou. O
coração batia no peito quase tão depressa como o pneu, em
parte com a excitação da corrida, em parte com a excitação
de ainda estar vivo e não todo quebrado no meio da rua, em
frente do apartamento de Eleanor. Segurava o volante com
as duas mãos bem separadas uma da outra, incitando o
carro a avançar como se estivesse segurando as rédeas de
um cavalo. Deslocavam-se pelo meio do trânsito escasso a
cento e quarenta por hora, os dois olhando para as frentes
dos carros que passavam, à procura dos faróis quadrados ou
de um lado direito amassado. Meio minuto depois, os nós
dos dedos de Bosch, brancos como a neve enroladas em
volta do volante, se aproximaram de um Ford castanho que
seguia a uns cento e dez quilômetros por hora na faixa
lenta. Bosch virou o volante e, saindo detrás dele,
ultrapassou-o. Eleanor tinha a arma segura com as duas
mãos, mas estava segurando-a abaixo da janela para não
ser vista do lado de fora do carro. O motorista branco nem
sequer olhou para eles ou mostrou ter reparado neles.
Quando passaram para frente, Eleanor gritou:
— Faróis quadrados, ao lado uns dos outros!
— É o carro? Perguntou Bosch excitado.
— Não consigo... Não sei. Não consigo ver o lado direito.
Pode ser. O tipo não mostra reação nenhuma.
Estavam agora com um avanço de três quartos do
comprimento dum carro. Bosch apanhou a luz portátil que
estava no chão do carro e, esticando o braço para fora da
janela, colocou-a no teto. Ligou a luz azul giratória e
começou lentamente a desviar o Ford para o meio-fio.
Eleanor pôs a mão fora da janela e fez sinal ao carro para
parar. O motorista começou a obedecer. Bosch freou
bruscamente e deixou que o outro carro entrasse a toda a
velocidade no acostamento; a seguir, Bosch guinou o carro
e entrou no acostamento atrás dele. Quando os dois carros
tinham parado ao lado de uma barreira de som, Bosch
notou de que estava com um grande problema. Ligou o farol
alto, mas só o do lado do passageiro é que continuava
funcionando. O carro da frente estava muito perto da
barreira para Bosch e Eleanor conseguirem ver se o lado
direito estava amassado. Entretanto, o motorista continuava
sentado no seu lugar praticamente todo envolvido pela
escuridão.
— Merda! Exclamou Bosch. — OK. Não saia até eu dizer
que está tudo em ordem, está bem?
— Está, respondeu ela.
Bosch teve de jogar violentamente todo o seu peso de
encontro à porta para consegui-la abrir. Saiu do carro com a
arma numa mão e uma lanterna na outra. Segurava a luz à
frente, afastada do corpo, e apontava-a para o motorista do
carro da frente. Com o barulho do trânsito nos ouvidos,
Bosch começou a gritar, mas a buzina de um caminhão
diesel abafou-o e uma rajada de vento provocada pelo
caminhão que passava empurrou-o para frente. Bosch
tentou outra vez, gritando ao motorista para pôr as duas
mãos de fora da janela de forma a que ele as pudesse ver.
Nada. Bosch voltou a gritar a ordem. Passado um longo
momento, com Bosch posicionado ao lado do para-choque
esquerdo do carro castanho, o motorista acabou por
obedecer. Bosch varreu a janela de trás com a luz da
lanterna e viu que não havia mais ninguém dentro do carro.
Avançou e fazendo incidir a luz em cima do motorista,
mandou-o sair devagarinho.
— O que é isto? Protestou o homem.
Pequeno, pele pálida, cabelo avermelhado e bigode
transparente. Abriu a porta do carro e saiu com as mãos no
alto. Vestia uma camisa branca e calças beges presas com
suspensórios. Olhou para a fila de carros que passava por
eles quase como se agradecesse ter uma testemunha para
o pesadelo que estava passando.
— Posso ver o distintivo? Gaguejou ele.
Bosch se precipitou para frente, fê-lo dar meia volta e
atirou-o contra os fundos do carro, a cabeça e as mãos em
cima do teto. Com uma mão na nuca do homem,
segurando-o, e a outra encostando a arma à orelha dele,
Bosch gritou a Eleanor que estava tudo em ordem.
— Vai ver a parte da frente.
O homem por baixo de Bosch soltou um gemido, como
um animal assustado, e Bosch sentiu que ele estava
tremendo. Bosch não desviou os olhos dele para ver onde
Eleanor estava. De repente, a voz dela soou mesmo atrás
dele.
— Solte-o, disse ela. — Não é ele. Não há estragos.
Enganamo-nos de carro.
 
CAPÍTULO 6
Sexta-feira, 25 de maio
 
Foram interrogados pela polícia de Santa Monica, pela
Patrulha das autoestradas da Califórnia, pelo LAPD e pelo
FBI. Tinham chamado uma unidade da DUI para fazer um
teste de alcoolemia em Bosch. Tinha passado. E às duas da
manhã, ele estava sentado na sala de interrogatórios do
departamento Los Angeles Ocidental, morto de cansaço,
perguntando para consigo se a Guarda Costeira e o IR iriam
ser os próximos. Ele e Eleanor foram separados e não a via
desde que tinham chegado três horas antes. Aborrecia-o
não poder estar com ela para protegê-la dos inquisidores. O
tenente Harvey “Noventa e Oito” Pounds entrou na sala
naquele momento e informou Bosch de que tinham
terminado por aquela noite. Bosch notou que “Noventa e
Oito” estava zangado, e não era só por ter sido obrigado a
sair de casa.
— Que tipo de policial não anota a placa do carro que o
tentou atropelar? Perguntou ele. Bosch estava habituado ao
segundo sentido das perguntas. Fora assim toda a noite.
— Tal como já disse a todos antes de si, eu estava um
pouquinho ocupado na altura. Tentava salvar a pele.
— E este tipo que mandou parar, interrompeu Pounds.
— Bolas, Bosch, você parou-o no acostamento da
autoestrada. Todos os idiotas com telefone no carro estão
ligando para o nove-um-um e participando um rapto, um
assassinato e só Deus sabe o que mais. Não podia ter dado
uma olhada no lado direito do carro antes de mandá-lo
parar?
— Foi impossível. Tudo isso está explicado no relatório
que datilografámos, tenente. Já repeti umas dez vezes.
Pounds reagiu como se não o tivesse ouvido.
— E ainda por cima ele é advogado.
— E daí? Perguntou Bosch, perdendo a paciência. —
Pedimos desculpas. Foi um engano. O carro parecia o
mesmo. E se ele vai processar alguém, vai ser o FBI. Eles
têm as costas largas. Por isso, não se preocupe.
— Não, ele vai nos processar a ambos. Já está falando
disso, por amor de Deus! E não é altura para tentar ser
engraçado, Bosch.
— Também não é altura para estarem preocupados em
decidir se agimos bem ou mal. Nenhum desses tipos que
apareceu aqui para me interrogar pareceu preocupado com
o fato de alguém poder estar tentando nos matar. Só
querem saber a que distância é que eu estava quando
disparei e se eu colocara em perigo alguém que estivesse
passando e por que mandara parar aquele carro sem justa
causa. Bem, que se foda, homem. Há alguém que quer me
matar, a mim e à minha colega. Peço desculpas de não me
sentir especialmente incomodado com o advogado que
ficou com a suspensão torcida. Pounds estava preparado
para aquela argumentação.
— Bosch, pelas provas que temos, pode se ter tratado
apenas de um bêbado. E o que quer dizer com isso de
“colega”? Está apenas emprestado para esta investigação.
E, depois desta noite, acho que o empréstimo vai ser
retirado. Passou cinco dias inteiros com este caso e,
segundo o que Rourke me disse, não conseguiu nada.
— Não era nenhum bêbado Pounds. Éramos um alvo. E
estou me lixando para o que o Rourke diz. Vou resolver este
caso. E se o senhor parar de minar o esforço feito, se
acreditar na sua gente por uma vez e se conseguir tirar
esses cretinos dos Assuntos Internos de cima de mim, é
muito capaz de ainda vir receber uma parte das honras
quando isso acontecer. As sobrancelhas de Pounds se
ergueram como uma montanha-russa.
— Sim, eu sei do Lewis e do Clarke, disse Bosch. — E sei
que os relatórios deles são passados para você. Aposto que
não lhe contaram a conversazinha que tivemos? Apanhei-os
farejando à volta da minha casa.
Era evidente, pela expressão do rosto de Pounds, que
ele não tinha ouvido nada. Lewis e Clarke estavam sendo
muito discretos e Bosch não ia ser entalado por causa do
que lhes fizera. Começou a se interrogar sobre o paradeiro
dos dois detetives dos Assuntos Internos quando ele e
Eleanor quase foram atropelados.
Entretanto, Pounds ficou calado durante muito tempo.
Era um peixe nadando à volta da isca que Bosch tinha
lançado, parecendo saber que havia um anzol lá dentro,
mas pensando que era capaz de haver uma maneira de
comer a isca sem o anzol. Finalmente, disse a Bosch para o
pôr a par das investigações da semana. Tinha engolido o
anzol. Bosch lhe expôs o caso e, embora Pounds não tivesse
dito uma palavra durante os vinte minutos que se seguiram,
Bosch conseguiu notar pelos movimentos das sobrancelhas
quando ele estava ouvindo qualquer coisa que Rourke tinha
se esquecido de lhe contar. Quando a história acabou, não
houve mais referências da parte de Pounds à possibilidade
de Bosch ser retirado do caso. No entanto, Bosch estava se
sentindo muito cansado daquilo tudo. Queria dormir, mas
Pounds ainda tinha mais perguntas.
— Se o FBI não vai mandar ninguém para os túneis,
devíamos ser nós a fazê-lo? Perguntou ele.
Bosch notou que ele estava pensando na possibilidade
de estar presente no momento das detenções, se houvesse
alguma. Se ele pusesse gente do Departamento da Polícia
de Los Angeles nos túneis de drenagem, o FBI não poderia
excluir o departamento quando chegasse o momento de
receberem o crédito das detenções. Pounds receberia uma
palmada nas costas do chefe se conseguisse se defender de
uma manobra dessas. Mas Bosch acabara por acreditar que
o raciocínio de Rourke estava correto. Uma equipe nos
túneis corria o risco de tropeçar nos ladrões e de morrer
alguém.
— Não, respondeu Bosch a Pounds. — Primeiro vamos
ver se conseguimos localizar Tran e descobrir onde ele
guarda a fortuna. Por aquilo que sei, até pode não ser num
banco. Pounds se levantou, tendo ouvido o suficiente. Disse
a Bosch que podia ir embora. Quando o tenente se dirigia
para a porta da sala dos interrogatórios, disse:
— Bosch, eu não creio que vá ter qualquer problema por
causa do incidente desta noite. Parece-me que você fez
aquilo que pôde. O advogado ficou com as penas
encrespadas, mas vai se acalmar. — Só mais uma coisa,
continuou Pounds. — O fato disto ter acontecido mesmo à
frente da porta da casa da agente Wish é um tanto
preocupante porque dá um certo ar de indecoro. Só uma
sugestãozinha, não é? Você estava apenas acompanhando-
a até à porta, não é verdade?
— Não me ralo nada com o que possa parecer, tenente,
respondeu Bosch. — Eu não estava de serviço.
Pounds olhou para Bosch durante uns instantes, abanou
a cabeça como se Bosch tivesse acabado de ignorar a sua
mão estendida e saiu pela porta da pequena sala. Bosch foi
encontrar Eleanor sentada sozinha na sala de
interrogatórios a lado da dele. Tinha os olhos fechados e a
cabeça apoiada nas mãos, os cotovelos em cima do tampo
estragado da mesa. Abriu os olhos quando ele entrou. Sorriu
e ele se sentiu imediatamente curado da fadiga, da
frustração e da raiva. Era um sorriso como o que uma
criança dirige a outra quando se conseguiram safar de
qualquer coisa perante os adultos.
— Já está tudo terminado? Perguntou ela.
— Sim. E com você?
— Já aqui estou há mais de uma hora. Quem eles
queriam pegar era você.
— Como de costume. O Rourke foi embora?
— Sim. Disse que quer que eu o contate de hora a hora
amanhã. E quanto ao que aconteceu esta noite, ele acha
que não tem tido uma rédea apertada nisto.
— Nem em você.
— Parece que também há qualquer coisa desse gênero.
Queria saber o que estávamos fazendo em minha casa.
Disse-lhe que só estava me acompanhando até porta. Bosch
se sentou exausto do outro lado da mesa e colocou um
dedo dentro do maço de cigarros à procura do último.
Colocou-o na boca, mas não o acendeu.
— Além de estar enervado ou ciumento com o que
poderíamos estar fazendo, quem Rourke pensa que tentou
nos matar? Perguntou. — Um motorista bêbado, como a
minha gente parece acreditar?
— De fato, ele mencionou a teoria do motorista
embriagado. Também perguntou se tenho um ex-namorado
ciumento. Além disso, parece não haver uma grande
preocupação com a hipótese de poder ter alguma coisa a
ver com o nosso caso.
— Não pensara nesse ângulo do ex-namorado. O que
respondeu?
— É tão esperto quanto ele, respondeu ela exibindo o
seu sorriso radioso. — Respondi que não tem nada a ver
com isso.
— Boa resposta. Também se aplica a mim?
— A resposta é não. Deixou-o em suspenso durante uns
segundos depois acrescentou: — Isto é, não há ex-
namorado ciumento. Por isso, podemos ir embora e voltar
para o ponto em que estávamos há... Olhou para o relógio.
— Cerca de quatro horas atrás?
Bosch estava acordado na cama de Eleanor Wish muito
antes da luz da madrugada se insinuar através da cortina
que tapava a porta de vidro deslizante. Incapaz de vencer a
insônia acabou por se levantar e tomar um banho no
banheiro do andar de baixo. A seguir, vasculhou os armários
da cozinha e a geladeira e começou a preparar um
pequeno-almoço de café, ovos e pão de passa e canela. Não
conseguiu encontrar bacon. Quando ouviu o chuveiro
desligar no andar de cima, subiu com um copo de suco de
laranja e encontrou-a em frente do espelho do banheiro.
Estava nua entrançando o cabelo, que tinha dividido em
três grossas madeixas. Ficou fascinado observando-a
enquanto ela penteava destramente o cabelo numa trança
francesa. Eleanor aceitou o suco de laranja e um longo beijo
de Bosch. Enfiou o robe curto e desceu para tomar o café-
da-manhã. A seguir, Harry abriu a porta da cozinha e saiu
para a varanda para fumar um cigarro.
— Sabe, disse ele do lado de fora da porta. — Estou feliz
por não ter acontecido nada.
— Está se referindo a ontem à noite, na rua?
— Sim. A você. Não sei se seria capaz de enfrentar a
situação. Sei que acabamos de nos conhecer e isso, mas...
Uh... Interesso-me. Sabe?
— Eu também.
Bosch tinha tomado um banho, mas a roupa que usava
estava tão lavada como o cinzeiro de um carro usado.
Passado um pedaço, disse que tinha de passar em casa
para se trocar. Eleanor disse que iria para o FBI para ver o
que havia na sequência das atividades da noite anterior e o
que conseguia obter do arquivo de Binh. Combinaram se
encontrar na Delegacia de Hollywood, na Wilcox, porque
ficava mais perto dos escritórios de Binh e porque Bosch
precisava entregar o carro danificado. Acompanhou-o à
porta e se beijaram como se ela estivesse se despedindo
dele ao ir para um dia de trabalho normal numa firma de
contabilidade.
Quando Bosch chegou em casa, não encontrou nenhum
recado na secretária-eletrônica nem sinais de que alguém
tivesse entrado lá. Fez a barba, mudou de roupa e, a seguir,
desceu a colina, atravessando o Nichols Canyon e depois
subiu até à Wilcox. Estava sentado à sua mesa, pondo em
dia os formulários dos Relatórios Cronológicos do Agente da
Investigação quando Eleanor apareceu às dez horas da
manhã. A sala estava cheia e a maioria dos detetives que
eram do sexo masculino pararam com o que estavam
fazendo para a apreciarem. Ela tinha um sorriso contrafeito
quando se sentou na cadeira de aço ao lado da mesa dos
homicídios.
— Há algum problema?
— Acho que preferia ter atravessado a Biscailuz, disse
ela, se referindo à cadeia do xerife na baixa.
— Oh! Pois é, alguns destes tipos são capazes de sorrir
com mais lascívia do que a maioria dos exibicionistas
ordinários. Quer um copo de água?
— Não. Estou bem. Está pronto?
— Vamos lá.
Apanharam o novo carro de Bosch que, na realidade, já
tinha três anos e mais de cento e vinte e cinco mil
quilômetros. O responsável pela frota de carros da
delegacia, um encarregado permanente daquele serviço
desde que ficara sem quatro dedos ao apanhar
estupidamente uma bomba de Halloween, disse que era o
melhor que conseguira arranjar na altura. As contenções no
orçamento tinham impedido que se substituíssem os carros,
embora o conserto dos carros velhos fosse mais cara ao
departamento. Pelo menos, descobriu Bosch depois de ter
começado a andar, o ar condicionado funcionava
relativamente bem. Aproximava-se uma frente de Santa Ana
e as previsões indicavam que o fim-de-semana do feriado ia
ser anormalmente quente.
A investigação que Eleanor fizera revelara que Binh
tinha um escritório e uma loja na Vermont, perto da
Wilshire. Naquela área, havia mais lojas de coreanos do que
de vietnamitas, mas coexistiam. Tanto quanto Eleanor tinha
conseguido descobrir, Binh controlava vários negócios que
importavam do Oriente roupa barata, material eletrônico e
de vídeo, que depois movimentavam na Califórnia e no
México. Muitos dos artigos que os turistas pensavam que
estavam adquirindo barato no México e que depois traziam
para os Estados Unidos já tinham passado por aqui. No
papel, tudo aquilo parecia ter bons resultados, embora
fossem artigos insignificantes. No entanto, era o bastante
para levar Bosch a se perguntar se Binh precisava dos
diamantes. Ou se alguma vez tivera algum.
Binh possuía o edifício onde ficavam os escritórios e a
loja de equipamento vídeo. Era um salão de venda de
automóveis dos anos trinta que fora convertido há anos,
antes mesmo de Binh o ter visto. Um bloco de cimento não
reforçado com grandes janelas na fachada da frente com a
garantia de vir abaixo com o primeiro tremor de terra
decente que houvesse. Mas para alguém que tinha
conseguido sair do Vietnam da forma que Binh saíra, os
tremores de terra, provavelmente, eram considerados como
um inconveniente menor e não um risco. Depois de terem
conseguido um espaço livre para estacionar do outro lado
da rua da Benos Electronics, Bosch disse a Eleanor que
queria que fosse ela a conduzir o interrogatório, pelo
menos, no início. Binh era capaz de se sentir mais inclinado
a falar com a policial federal do que com os policiais locais.
Combinaram um plano para levá-lo a falar de coisas triviais
e depois perguntarem por Tran. Bosch não lhe disse que
também tinha um segundo plano em mente.
— Não tem nada o ar de um lugar dirigido por um tipo
com uma caixa cheia de diamantes guardada na caixa-forte
de um banco, comentou Bosch quando saíam do carro.
— Quer dizer que tinha no banco, corrigiu ela. — E
lembre que ele não podia exibir os diamantes. Tinha de ser
igual a todos os outros imigrantes vulgares. O aspecto de
viver um dia de cada vez. Os diamantes, se é que havia
algum, eram uma garantia para esta loja, para a sua
história de sucesso americano. Mas tinha de parecer que ele
tinha começado do zero.
— Espera um segundo, disse Bosch quando chegaram
ao outro lado da rua.
Disse a Eleanor que se tinha esquecido pedir a Jerry
Edgar para substituí-lo numa ida ao tribunal marcada para
essa tarde. Apontou para um telefone público numa estação
de serviço ao lado do prédio de Binh e correu para lá.
Eleanor ficou para trás olhando para as vitrines da loja.
Bosch ligou para Edgar, mas não lhe falou de nenhuma ida
ao tribunal.
— Jed, eu preciso de um favor. Nem sequer vai precisar
se levantar. Edgar hesitou como Bosch já esperava que
acontecesse.
— Do que precisa?
— Não é assim que devia responder. Devias dizer:
“Claro, Harry, do que precisa?”.
— Ora, Harry, deixe disso, sabemos muito bem que
estamos sendo investigados. Temos de ser muito
cuidadosos. Diz o que precisa. Eu logo digo se posso fazer.
— A única coisa que quero é que me ligue daqui a dez
minutos. Preciso sair de uma reunião. Basta me mandar- um
toque e quando eu telefonar para aí, pode pousar o telefone
durante um par de minutos. Se eu não telefonar, me manda
outro toque passado cinco minutos. Mais nada.
— É só isso que precisa? Um toque?
— Exatamente. Dez minutos a contar de agora.
— OK, Harry, respondeu Edgar, com um tom de alívio na
voz. — Ei, ouvi falar naquela coisa de ontem à noite. Foi por
um triz. E o que corre por aqui é que não foi nenhum
bêbado. Tenha cuidado consigo.
— Sempre. O que está acontecendo em relação ao
Sharkey?
— Nada. Interroguei o bando dele, tal como você me
disse. Dois deles dizem que estiveram com ele nessa noite.
Acho que eles andavam caçando gays. Dizem que o
perderam de vista depois dele entrar num carro. Isso foi
umas duas horas antes da recepção ter recebido a ligação
dizendo que ele estava no túnel do estádio. Calculo que
quem estava no carro é que despachou.
— Descrição?
— Do carro? Não muito boa. Cor escura, carro
americano. Novo. Mais nada.
— Que tipo de faróis?
— Bem, lhes mostrei o livro dos carros e eles
escolheram faróis da retaguarda diferentes. Um escolheu
redondos, o outro diz que são retangulares. Mas, em relação
aos da frente. Os dois dizem...
— Quadrados. Quadrados ao lado uns dos outros.
— Exato. Ei, Harry, está pensando que é o mesmo carro
que se jogou em você e na mulher do FBI? Jesus! Temos que
nos juntar para discutirmos isto.
— Mais tarde. Talvez mais tarde. Entretanto, me ligue
daqui a dez minutos.
— Dez minutos, certo.
Bosch desligou e foi se encontrar com Eleanor que
olhava para os CDs de música em exposição. Entraram na
loja, sacudiram dois vendedores, deram a volta em uma
pilha de caixas de câmaras de vídeo de 500 dólares cada e
disseram a uma mulher de pé junto de uma caixa
registradora no fundo da loja que queriam falar com Binh. A
mulher olhou para eles com uma expressão vazia até que
Eleanor mostrou o distintivo e o cartão do FBI.
— Esperem aqui, disse a mulher e desapareceu por uma
porta atrás da caixa registradora.
A porta tinha uma pequena janela espelhada que
lembrou a Bosch a sala de interrogatórios em Wilcox. Olhou
para o relógio. Tinha oito minutos. O homem que apareceu
pela porta atrás da caixa registradora parecia ter uns
sessenta anos. O cabelo era branco. Era baixo, mas Bosch
conseguiu notar que, noutros tempos, fora fisicamente
poderoso para o seu tamanho. Largo e atarracado, agora
estava amolecido por uma vida mais fácil do que a que
tivera na sua terra natal. Usava óculos com armações
prateadas e uma coloração rosada e uma camisa de
colarinho aberto e calças largas. O bolso do peito pendia
com o peso de quase uma dúzia de canetas e uma lanterna
de bolso. Ngo Van Binh era a discrição personificada.
— Mr. Binh? Chamo-me Eleanor Wish. Pertenço ao FBI.
Este é o detetive Bosch, Departamento da Polícia de Los
Angeles. Gostaríamos de lhe fazer umas perguntas.
— Sim, disse ele, a expressão severa do rosto imutável.
— É a respeito do assalto ao banco onde o senhor tinha
um cofre.
— Não declarei nenhuma perda, o meu cofre só tinha
objetos de valor sentimental.
“Os diamantes tinham um valor muito elevado no que
dizia respeito aos sentimentos”, pensou Bosch, mas disse
apenas:
— Mr. Binh, podemos ir para o seu gabinete e conversar
em particular?
— Sim, mas eu não sofri nenhuma perda. Vão ver. Está
nos relatórios.
Eleanor esticou a mão, incitando Binh a indicar o
caminho. Foram atrás dele, passando a porta com a janela
de espelhos, e entraram numa sala enorme que parecia um
armazém. Havia centenas de caixas de aparelhos
eletrônicos em prateleiras de aço que chegavam até ao
teto. Passaram depois para uma sala menor que era uma
oficina de montagem ou consertos. Uma mulher sentada
num banco levava uma tigela de sopa à boca. Não levantou
os olhos quando eles passaram. Havia duas portas no fundo
da divisão e a procissão entrou por uma delas na sala de
Binh. Era aqui que Binh despia a sua roupagem de
camponês. O gabinete era grande e luxuoso, com uma
mesa e duas cadeiras à direita e um sofá de pele escura em
forma de L à esquerda. O sofá estava colocado na borda de
um tapete oriental com um dragão de três cabeças em
posição de ataque e se voltava para duas paredes cobertas
de livros e de equipamento estereofônico e de vídeo, de
uma categoria muito superior à que Bosch tinha visto na
parte da frente da loja. “Devíamos tê-lo pego em casa”,
pensou Bosch. Ver como é que ele vivia e não como é que
ele trabalhava.
Bosch inspecionou rapidamente a sala e viu um telefone
branco em cima da mesa. Seria perfeito. Era uma
antiguidade, daqueles em que o fone estava pousado por
cima do disco de discagem. Binh se encaminhou para a
mesa, mas Bosch interpelou-o muito depressa.
— Mr. Binh? Seria possível sentarmo-nos aqui, no sofá?
Gostaríamos de manter isto o mais informal possível. Nós
passamos os dias sentados à mesa, para falar a verdade.
Binh encolheu os ombros como se não lhe fizesse
diferença visto que eles já estavam incomodando onde quer
que sentassem. Era um gesto caracteristicamente
americano e Bosch estava convencido que a sua aparente
dificuldade com o inglês era apenas parte da fachada que
ele usava para melhor se isolar. Binh se sentou num dos
lados do sofá em forma de é e Eleanor e Bosch se sentaram
do outro.
— Um escritório muito bonito, comentou Bosch olhando
em volta. Não viu mais nenhum telefone na sala. Binh
assentiu com a cabeça. Não ofereceu nem chá, nem café,
nem nenhuma conversa de circunstância. Limitou-se a
perguntar:
— O que querem, se faz favor? Bosch olhou para
Eleanor. Ela disse:
— Mr. Binh, nós estamos apenas a repetir os passos que
já foram dados. O senhor não declarou nenhuma perda
financeira no assalto à caixa-forte. Nós...
— Isso é verdade. Nenhuma perda.
— Exatamente. O que guardava no seu cofre?
— Nada.
— Nada?
— Papéis e coisas assim, nenhuns valores. Eu já disse
isto a todos.
— Sim, nós sabemos. Pedimos desculpas por estarmos
incomodando novamente. Mas o caso continua em aberto e
nós temos de voltar atrás para ver se deixamos escapar
alguma coisa. Poderia me dizer em pormenor que papéis é
que perdeu? Podia ser uma ajuda para nós, caso
recuperássemos alguma coisa, se pudéssemos identificar a
quem pertencia.
Eleanor tirou um livrinho de apontamentos e uma
caneta da carteira. Binh olhou para os dois visitantes como
se lhe fosse totalmente impossível entender como é que
essa informação podia ser útil. Bosch disse:
— O senhor ficaria surpreendido como, por vezes, as
menores coisas podem...
O pager tocou e Bosch tirou o aparelho do cinto e olhou
para o número no mostrador. Levantou-se e olhou em volta
como se estivesse olhando para a sala pela primeira vez.
Perguntou para consigo se não estaria exagerando.
— Mr. Binh? Posso usar o seu telefone? É local.
Binh assentiu com a cabeça e Bosch se dirigiu para a
mesa, se inclinou e pegou no fone. Fingiu que estava outra
vez consultando o número no pager e discou o número de
Edgar. Deixou-se ficar de pé, de costas para Eleanor e Binh.
Olhou para a parede como se estivesse admirando a
tapeçaria de seda lá pendurada. Ouviu Binh começar a
descrever a Eleanor os papéis relativos à sua imigração e
naturalização que foram tirados do cofre. Bosch enfiou o
pager no bolso do casaco e tirou o canivetezinho, o
microfone T-9 e a pequena pilha que tinha desligado do seu
próprio telefone.
— Aqui é o Bosch, quem me ligou? Perguntou ele para o
telefone quando Edgar atendeu. Depois de Edgar ter
pousado o telefone, disse: — Espero alguns minutos, mas
lhe diga que estou no meio de uma entrevista. O que é
assim tão importante?
Continuando de costas e com o Binh ainda falando,
Bosch se virou ligeiramente para a direita e inclinou a
cabeça como se estivesse segurando o telefone junto da
orelha esquerda, de forma a que Binh não o pudesse ver.
Baixou o fone até à altura do estômago, usou o canivete
para fazer saltar a tampa do bocal aclarando a garganta ao
mesmo tempo. Depois tirou o receptor áudio, estivera
treinando para fazer isso enquanto esperava o novo carro
na garagem da delegacia de Wilcox. Usou os dedos para
empurrar o microfone e a pilha para dentro do tubo do fone.
Voltou a colocar o receptor e fechou a tampa, tossindo com
força para tapar o ruído.
— OK, disse Bosch para o telefone. — Bem, diga que eu
vou telefonar para ele quando tiver acabado isto aqui.
Obrigado.
Pousou o telefone enquanto guardava o canivete. Voltou
para o sofá onde Eleanor estava escrevendo no seu
caderno. Quando acabou, olhou para Bosch e este notou,
sem ter sido preciso nenhum sinal, que a entrevista ia
mudar de rumo.
— Mr. Binh, disse ela-, — Tem certeza que era só isso
que tinha no cofre?
— Sim, claro, por que está insistindo?
— Mr. Binh, nós sabemos quem o senhor é e em que
circunstâncias é que conseguiu entrar neste país. Sabemos
que era um oficial da policial.
— Sim, e então? O que tem isso?...
— Também sabemos outras coisas...
— Sabemos, se intrometeu Bosch, — Que o senhor era
muitíssimo bem pago como oficial da policial em Saigon, Mr.
Binh. Sabemos que parte do seu trabalho era pago em
diamantes.
— O que quer dizer, o que ele diz? Perguntou Binh,
olhando para Eleanor e apontando para Bosch. Estava
caindo na defesa da barreira da língua. Parecia saber cada
vez menos inglês à medida que a entrevista progredia.
— Sabemos dos diamantes que trouxe para aqui do
Vietnam, capitão Binh, respondeu ela. — Sabemos que os
guardava no cofre da caixa-forte. Estamos convencidos que
os diamantes foram a motivação para o assalto à caixa-
forte. A notícia não o abalou, era possível que ele também
já tivesse deduzido o mesmo. Não se mexeu. Disse:
— Isso não é verdade.
— Mr. Binh, temos o seu cadastro, disse Bosch. —
Sabemos tudo a seu respeito. Sabemos que estava em
Saigon, aquilo que fazia. Sabemos o que trouxe consigo
quando veio para aqui. Não sei em que está metido; agora
parece tudo legal, mas a verdade é que não nos interessa.
Aquilo que nos interessa mesmo é quem limpou a caixa-
forte. E limparam-na por sua causa. Eles levaram a garantia
disto tudo e de tudo o resto que o senhor possui. Ora, eu
acho que aquilo que estamos lhe dizendo, provavelmente, o
senhor já tinha descoberto ou pelo menos levantado a
hipótese. De fato, é muito capaz de ter pensado que o seu
antigo sócio Nguyen Tran estava por trás disto porque ele
sabia o que o senhor tinha e talvez mesmo o lugar aonde
estava. Não é uma dedução nada má, mas achamos que
está errada. De fato, pensamos que ele é o próximo da lista.
Nem uma fenda se formou na pedra que era o rosto de
Binh. — Mr. Binh, queremos falar com Tran, disse Bosch. —
Onde ele está?
Binh olhou para baixo, através do tampo de vidro da
mesa em frente dele, para o dragão das três cabeças do
tapete. Uniu as mãos no colo, abanou a cabeça e
perguntou:
— Quem é esse Tran?
Eleanor deu um olhar de aviso para Bosch e tentou
salvar aquela espécie de entendimento que tivera com o
homem antes dele se ter intrometido.
— Capitão Binh, disse ela, — Nós não estamos
interessados em investigá-lo. Apenas queremos impedir
mais um assalto a um banco antes que ele aconteça. Não
pode nos ajudar, por favor? Binh não respondeu. Olhava
para as mãos.
— Olhe Binh, não sei o que o senhor tem andado a fazer
em relação a isto, disse Bosch. — É capaz de ter posto umas
pessoas à procura das mesmas pessoas que nós queremos,
não sei. Mas uma coisa eu garanto desde já: o senhor está
fora disto. Por isso, nos diga onde está Tran.
— Não conheço esse homem.
— O senhor é a nossa última esperança. Temos que
encontrar Tran. As pessoas que limparam a si, essas
pessoas estão outra vez nos túneis. Neste preciso instante.
Se não conseguirmos chegar ao Tran neste fim-de-semana,
não vai sobrar nada nem para si nem para ele. Binh
permaneceu uma estátua, tal como Bosch estava à espera.
Eleanor se pôs de pé.
— Pense nisso, Mr. Binh, disse ela.
— O tempo está se esgotando para nós e também para
o seu sócio, disse Bosch enquanto se dirigiam para a porta.
Depois de terem passado a porta do salão de vendas,
Bosch olhou para os dois lados da rua e atravessou a
Vermont correndo para junto do carro. Eleanor seguiu-o a
pé, a fúria fazendo com que as passadas fossem rígidas e
contidas. Bosch entrou e colocou a mão por baixo do
assento da frente à procura do Nagra. Ligou-o e escolheu a
velocidade máxima de gravação. Estava convencido de que
a expectativa não ia ser longa. Esperava que todo aquele
equipamento eletrônico da loja não estragasse a recepção.
Eleanor entrou pela porta do passageiro e começou a
queixar-se.
— Foi magnífico, não haja dúvida, disse ela. — Agora
nunca mais conseguiremos arrancar nada daquele cara. Ele
vai telefonar ao Tran e... Que raio é isso?
— Uma coisa que apanhei daqueles idiotas. Eles
puseram um microfone no meu telefone. O truque mais
velho do manual dos Assuntos Internos.
— E você colocou-o no... Ela apontou para o outro lado
da rua e Bosch assentiu. — Bosch, faz alguma ideia do que
pode nos acontecer, do que isto significa? Vou voltar lá e
tirar... Abriu a porta do carro, mas Bosch se esticou e voltou
a fechá-la.
— Não quer fazer isso. È a nossa única maneira de
chegar ao Tran. O Binh não ia nos contar nada, fosse lá
como fosse que tivéssemos feito a entrevista. E lá no fundo
desses olhos zangados, você sabe isso muito bem. Por isso,
ou é isto ou nada. Binh avisa Tran e nunca mais saberemos
onde ele está, ou usamos isto para encontrá-lo. Talvez.
Provavelmente, não demoraremos a saber. Eleanor olhou
para frente abanando a cabeça.
— Bosch, isso pode significar os nossos empregos.
Como é que pôde fazer isto sem me consultar?
— Por duas razões. Pode significar o meu emprego. Você
não sabia.
— Nunca poderia provar. Tudo isto parece uma cilada.
Eu mantive-o ocupado enquanto você se dedicava a essa
sua charadazinha ao telefone.
— Foi uma cilada, só que você não sabia. Além disso,
Binh e Tran não são os alvos da nossa investigação. Não
estamos recolhendo provas contra eles, estamos recolhendo
provas partindo deles. Isto nunca aparecerá num relatório. E
se ele descobrir o microfone, nunca poderá provar que fui
eu. Não há nenhum número de registro. Eu vi. Os cretinos
não foram suficientemente estúpidos para deixarem
maneira de identificá-lo. Estamos a salvo. Não se preocupe.
— Harry, isso dificilmente me...
A luz vermelha no Nagra começou a piscar. Alguém
estava usando o telefone de Binh. Bosch verificou se a fita
estava rodando.
— Eleanor, você decide, disse Bosch segurando o
gravador na palma da mão. — Desligue-o se quiser. A
escolha é sua.
Ela se virou e olhou para o gravador e depois para
Bosch. Nesse preciso momento o barulho da marcação
parou e se fez silêncio no carro. Um telefone começou a
tocar na outra ponta da linha. Ela virou o rosto. Alguém
atendeu ao telefone. Foram trocadas algumas palavras em
vietnamita e depois o silêncio outra vez. A seguir, apareceu
outra voz na linha e começou uma conversa, também em
vietnamita. Bosch notou que uma das vozes pertencia a
Binh. O outro parecia um homem mais perto da idade de
Bosch. Eram Binh e Tran, outra vez juntos. Eleanor sacudiu a
cabeça e deu uma curta gargalhada.
— Brilhante, Harry, agora quem é que vamos arranjar
para traduzir? Não vamos deixar que mais ninguém escute
isso, não podemos nos arriscar.
— Não quero nenhuma tradução, respondeu ele.
Desligou o gravador e voltou a enrolar a fita para trás. —
Pegue o bloco e a caneta.
Bosch ajustou a velocidade do gravador para a mais
baixa possível e apertou no botão para ouvir. Quando a
discagem começou, estava suficientemente lenta para ele
conseguir contar os cliques. Bosch ditou os números para
Eleanor que os anotou no bloco. Tinham o número para
onde Binh tinha ligado. O número de telefone tinha como
código de área 714. Orange County. Bosch ligou o receptor;
a conversa telefônica entre Binh e o homem desconhecido
continuava. Desligou e apanhou no microfone do rádio do
carro. Deu ao expedidor o número e pediu o nome e o
endereço correspondentes. Ia demorar alguns minutos
enquanto alguém verificava o número. Entretanto, Bosch
pôs o carro para funcionar e seguiu para o sul, em direção a
Interestadual 10, já fizera a ligação com a 5 e seguia na
direção de Orange County quando o expedidor o voltou a
entrar em contato. O número de telefone pertencia a uma
loja chamada Tan Phu Pagoda em Westminster. Bosch olhou
para Eleanor que olhou para o outro lado.
— A pequena Saigon, disse ele.
Bosch e Eleanor Wish chegaram a Tan Phu Pagoda uma
hora depois de terem saído da loja de Binh. A loja era num
shopping na Bolsa Avenue e onde não havia nem um letreiro
escrito em inglês. O edifício era de estuque branco com
paredes de vidro na meia dúzia de lojas que cercavam o
parque de estacionamento. Cada uma delas era um
pequeno estabelecimento que vendia praticamente só
coisas desnecessárias como equipamento eletrônico ou
camisetas. Em cada uma das pontas, havia dois
restaurantes vietnamitas que competiam um com o outro.
Ao lado de um dos restaurantes, havia uma porta de vidro
que levava a um escritório ou a uma loja sem vitrine para a
rua. Embora nem Bosch nem Eleanor conseguissem decifrar
as palavras na porta, notaram imediatamente que devia ser
a entrada para os escritórios do centro comercial.
— Precisamos entrar ali e confirmar que este lugar é do
Tran, ver se ele está e se há outras saídas, disse Bosch.
— Nem sequer sabemos qual é o aspecto dele, lembrou
Eleanor.
Ele pensou durante uns momentos. Se Tran não usasse
o seu nome verdadeiro, não seria boa ideia pô-lo de
sobreaviso entrando ali dentro e perguntando por ele.
— Tenho uma ideia, disse Eleanor. — Descubra um
telefone. Depois eu entro no escritório. Você disca o número
que apanhou na fita e enquanto estiver lá, e eu vejo se
toca. E aproveito para também ver se encontro o Tran e se
há outras saídas.
— Pode ter telefones tocando lá de dez em dez
segundos, objetou Bosch. — Pode ser a casa das caldeiras
ou um ginásio. Como poderá saber que sou eu? Ela ficou
uns segundos calada.
— O mais provável é que não falem inglês, ou pelo
menos que não falem muito bem, disse ela. — Por isso,
pede a quem atender ao telefone para falar em inglês ou
para chamar alguém que o faça. Quando conseguirem
alguém, diga qualquer coisa que faça a pessoa ter uma
reação que eu possa ver.
— Quer dizer, se o telefone tocar num lugar que você
consiga ver.
Eleanor encolheu os ombros, os olhos mostrando que
estava cansada de ele estar sempre colocando abaixo as
sugestões dela.
— Olha é a única coisa que podemos fazer. Ande, ali
tem um telefone.
Ele saiu do parque de estacionamento e se dirigiu para
uma cabine telefônica em frente de uma loja de bebidas
alcoólicas um pouco mais abaixo. Eleanor Wish voltou a pé
para o Tan Phu Pagoda e Bosch ficou vendo até ela chegar à
porta do escritório. Colocou uma moeda de vinte e cinco
cêntimos no telefone e discou o número que escrevera no
bloco de notas à frente da loja de Binh. A linha estava
ocupada. Voltou a olhar para a porta do escritório. Eleanor
tinha desaparecido. Voltou a colocar a moeda e a discar o
número. Ocupado. Fez o mesmo duas vezes seguidas até
ouvir o sinal de chamada. Estava pensando que tinha se
enganado no número quando atenderam.
 
— Tan Phu, disse uma voz masculina. “Jovem, asiático,
na casa dos vinte e poucos”, pensou Bosch. Não era Tran.
— Tan Phu? Perguntou Bosch.
— Sim, por favor.
Bosch não conseguiu se lembrar de nada para dizer.
Assobiou para dentro do bocal do fone. A reação foi um
violento ataque verbal em staccato de que Bosch não
conseguiu entender uma única palavra. Depois, o telefone
do outro lado foi desligado com toda a força. Bosch entrou
no carro e se dirigiu outra vez para o parque de
estacionamento do centro comercial. Estava percorrendo-o
muito lentamente quando Eleanor apareceu à porta de vidro
acompanhada por um homem. Um asiático. Tal como Binh,
tinha cabelo grisalho e uma aura de força não declarada,
músculos inflexíveis. Abriu a porta para Eleanor e baixou a
cabeça quando ela agradeceu. Ficou vendola se afastar e
depois desapareceu dentro do escritório.
— Harry, disse ela quando entrou no carro, — O que
disse ao tipo que atendeu ao telefone?
— Nem uma palavra. Então, era aquele escritório?
— Sim. Acho que era o nosso Mr. Tran que me abriu a
porta. Um sujeito simpático.
— E o que você fez para ficarem assim tão bons
amigos?
— Disse-lhe que era uma agente imobiliária. Quando
entrei, pedi para falar com o patrão. Então, o Senhor de
Cabelo Cinzento entrou por uma porta de um escritório nos
fundos. Disse que se chamava Jimmie Bok, que
representava investidores japoneses e perguntei se estava
interessado em aceitar uma oferta pelo centro comercial.
Ele disse que não. Num inglês muito fraco, me disse: “Eu
compro, não vendo”. Depois me acompanhou até à porta.
Mas acho que é o Tran. Há qualquer coisa nele.
— Sim, eu vi, disse Bosch. Apanhou o rádio e disse para
a recepção para introduzir o nome Jimmie Bok nos
computadores do NCIC e do DMV.
Eleanor descreveu o interior do escritório. Uma área de
recepção central, um corredor por trás com quatro portas,
incluindo uma ao fundo que parecia uma saída, a julgar pela
fechadura dupla. Não viu mulheres. Pelo menos quatro
homens, sem contar com Bok. Dois deles pareciam
seguranças contratados. Levantaram-se do sofá da
recepção quando Bok saiu da porta do meio do corredor.
Bosch saiu do estacionamento e deu a volta ao
quarteirão. Virou para a viela que passava por trás do
centro comercial. Parou quando já andara o suficiente para
conseguir ver uma Mercedes dourada estacionada próxima
da porta dos fundos do complexo. Havia uma fechadura
dupla na porta.
— Tem de ser o carro dele, disse Eleanor Wish.
Resolveram que o melhor era vigiar o carro.
Bosch passou por ele e foi até ao final da viela onde
estacionou atrás dum caixote de lixo. Depois notou que este
estava cheio do lixo do restaurante. Recuou e saiu por
completo da viela. Estacionou na rua lateral de forma a
poderem ver pela janela do lado oposto ao do motorista os
fundos do Mercedes. Bosch também podia olhar para
Eleanor.
— Bem, acho que agora é só esperar, disse ela.
— Acho que sim. Não temos maneira de saber se ele vai
fazer alguma coisa depois do aviso do Binh. Vai ver fez
qualquer coisa depois do Binh ter sido limpo no ano passado
e nós estamos apenas perdendo tempo.
Bosch recebeu uma resposta pela rádio do expedidor:
Jimmie Blok tinha uma folha limpa como motorista. Vivia em
Beverly Hills e não tinha cadastro. Nada mais.
— Vou voltar ao telefone, anunciou Eleanor. Bosch olhou
para ela. — Tenho que entrar em contato. Vou dizer para
Rourke que estamos em cima deste tipo e ver se ele
consegue libertar alguém para telefonar para alguns bancos
e pedir para introduzirem o nome dele nos computadores.
Para ver se é cliente. Também gostaria de introduzir o nome
dele no computador das propriedades. Ele disse: “Eu
compro, não vendo.” Gostaria de saber o que ele compra.
— Dê um tiro se precisar de mim, disse Bosch e ela
sorriu enquanto abria a porta.
— Quer alguma coisa para comer? Perguntou. — Estou
pensando em ir buscar qualquer coisa para o almoço de um
desses restaurantes ali da frente.
— Só café, respondeu ele. Não comia comida vietnamita
há vinte anos. Ficou vendo-a se encaminhar para a parte da
frente do centro comercial.
Cerca de dez minutos depois de ela ter saído, enquanto
vigiava a Mercedes, Bosch viu um carro passando do outro
lado da viela. Reconheceu-o imediatamente como um carro
da polícia. Um Ford LTD branco sem capas nas rodas,
apenas as calotas baratas que mostravam as rodas brancas.
Estava muito longe para conseguir ver quem estava lá
dentro. Passou a olhar alternadamente para a Mercedes e
para o espelho retrovisor para ver se o LTD estava dando a
volta no quarteirão. Mas se passaram cinco minutos e ele
não voltou a aparecer. Eleanor Wish voltou dez minutos
depois disso. Trazia um saco castanho engordurado de onde
tirou um café e duas embalagens douradas. Arroz e
caranguejo cozinhados no vapor, explicou ela. Ele recusou a
oferta e abriu a janela. Bebeu um gole do café que ela lhe
estendeu e fez uma careta.
— Parece que foi feito em Saigon e mandado para aqui,
comentou. — Falou com Rourke?
— Falei. Ele vai mandar alguém investigar Bok e mandar
uma mensagem para o pager se descobrirem alguma coisa.
Quer saber, através do rádio, mal a Mercedes comece a se
mover.
Passaram duas horas facilmente conversando de
ninharias e vigiando a Mercedes dourada. Finalmente, Bosch
anunciou que ia mudar de posição dando uma volta no
quarteirão só para agitar um bocadinho as coisas. O que
não disse foi que estava aborrecido, que tinha o rabo
dormente e que queria ver se via o LTD branco.
— Acha de devíamos telefonar para ver se ele ainda lá
está e desligar se ele atendesse? Perguntou Eleanor.
— Se o Binh o avisou, uma chamada dessas era capaz
de abalá-lo, de fazê-lo pensar que estava acontecendo
qualquer coisa e de torná-lo mais cauteloso.
Contornou a esquina e passou na frente do centro
comercial. Não viu nada de invulgar que despertasse a
atenção. Deu a volta ao quarteirão e voltou a estacionar no
mesmo lugar. Não tinha visto o LTD. Mal regressaram à
posição inicial, o pager de Eleanor Wish deu sinal e ela saiu
para ir telefonar outra vez. Bosch se concentrou na
Mercedes dourada e esqueceu o LTD. Mas depois de Eleanor
já ter saído há vinte minutos, começou a ficar nervoso. Já
passava das três da tarde e Bok/Tran ainda não saíra como
eles esperavam que fizesse. Havia qualquer coisa que não
parecia certa. Mas o quê? Bosch levantou os olhos para a
esquina do centro comercial, estudando-a enquanto
esperava que Eleanor aparecesse à esquina do edifício
branco. Ouviu um barulho, um impacto surdo. Dois ou três
iguais. Tiros? Pensou em Eleanor e o coração lhe subiu à
garganta como se tivesse sido empurrado por um punho
fechado. Ou teriam sido portas se fechando? Olhou para a
Mercedes, mas só conseguia ver o porta-malas e as
lanternas traseiras. Não viu ninguém próximo do carro.
Voltou olhando para frente. Nada de Eleanor. Outra vez para
a Mercedes, e viu as luzes dos freios se acendendo. Bok
estava indo embora. Bosch ligou o carro e avançou até à
esquina, os pneus fazendo saltar o cascalho enquanto
acelerava. Na esquina, viu Eleanor que vinha pela calçada
em direção a ele. Buzinou e fez sinal para ela se apressar.
Eleanor correu para o carro e estava entrando quando a
Mercedes apareceu no espelho retrovisor de Bosch saindo
da viela e virando na direção deles.
— Abaixe-se! Disse e empurrou Eleanor para baixo. A
Mercedes passou por eles e virou. Ele lhe soltou o pescoço.
— Mas que merda pensa que está fazendo? Perguntou
ela quando se endireitou. Bosch apontou para a Mercedes
que se afastava.
— Iam passar por nós. Teriam lhe reconhecido porque
esteve lá no escritório hoje de manhã. Por que demorou
tanto?
— Tiveram de ir à procura do Rourke. Não estava na
sala. Bosch arrancou e começou seguindo a Mercedes a
uma distância de dois quarteirões. Passado um bom pedaço,
, Eleanor perguntou:
— Ele está sozinho?
— Não sei. Não o vi entrar. Estava olhando para a
esquina vendo se a via. Acho que ouvi mais de uma porta
do carro fechando. Tenho certeza que ouvi.
— Mas não sabe se o Tran era uma das pessoas que
entraram?
— Não sei. Mas está ficando tarde. Achei que devia ser
ele.
De repente, Bosch deu conta de que podia ter caído no
truque mais antigo do manual da vigilância. Bok ou Tran, ou
quem quer que ele fosse, podia muito simplesmente ter
mandado um dos seus empregados no carro de cem mil
dólares para afastar os seus perseguidores.
— O que acha, voltamos para trás? Perguntou ele.
Eleanor Wish não respondeu até ele olhar para ela.
— Não, disse ela. — Ficamos com o que temos. Não
comece a duvidar de si mesmo. Tem razão em relação às
horas. Há muitos bancos que fecham as cinco antes de um
fim-de-semana prolongado. Ele tinha de se mexer. Foi
avisado pelo Binh. Acho que é ele.
Bosch se sentiu melhor. A Mercedes virou para oeste e
depois para norte na Golden State Freeway em direção a
Los Angeles. O trânsito se arrastava vagarosamente para
entrar na baixa da cidade e o carro dourado seguiu para
oeste na Santa Monica Freeway, saindo na Robertson as
vinte para as cinco. Estavam entrando em Beverly Hills. O
Wilshire Boulevard estava cheio de bancos de ambos os
lados, desde a baixa ate ao mar. Quando a Mercedes virou
para oeste, Bosch sentiu que deviam estar perto. “Tran
devia guardar o seu tesouro num banco próximo de casa”,
pensou ele. Tinham feito a aposta certa. Descontraiu-se um
pouco e por fim, se voltou para Eleanor para perguntar o
que o Rourke dissera quando ela tinha falado com ele ao
telefone.
— Confirmou com a sala de Orange County que o
Jimmie Bok é Nguyen Tran. Ele mudou de nome há nove
anos. Devíamos ter procurado em Orange County. Esqueci-
me da Pequena Saigon. Além disso, continuou ela, — Se
este tipo, o Tran, tinha diamantes é bem capaz de já ter
gasto todos. Os registros de propriedade mostram que ele
possui mais dois centros comerciais como aquele dali. Em
Monterey Park e Diamond Bar.
Bosch disse para consigo que continuava sendo
possível. Os diamantes podiam ser a garantia para o
império das propriedades imobiliárias. Tal como acontecia
com Binh. Manteve os olhos fixos na Mercedes, agora a
apenas a um quarteirão de distância porque a hora do rush
estava no seu auge e ele não queria ficar para trás.
Observou as janelas pretas do carro se deslocarem ao longo
da rua rica e disse para consigo que estavam se dirigindo
para os diamantes.
— E guardei o melhor para o fim, anunciou Eleanor. —
Mr. Bok, também conhecido por Mr. Tran, controla os seus
inúmeros bens através de uma corporação. O nome da dita
corporação, de acordo com a investigação dos registros
feita pelo Agente Especial Rourke, não é outra senão a
Diamond Holdings, Incorporated.
Passaram o Rodeo Drive e entraram no centro do
distrito comercial. Os edifícios que ladeavam o Wilshire
Boulevard assumiam um ar mais imponente, como se
soubessem que tinham mais dinheiro e mais classe lá
dentro. Em certas áreas, o trânsito diminuía para um passo
de caracol e Bosch se aproximou até ficar há dois carros
atrás do Mercedes, não querendo perder o carro num
semáforo. Estavam quase na Santa Monica Boulevard e
Bosch estava começando a pensar que se dirigiam para
Century City. Olhou para o relógio. Eram quatro e cinquenta.
— Se este tipo vai para Century City, não me parece
que vá conseguir chegar a tempo.
Nesse preciso instante, a Mercedes fez uma curva para
a direita e entrou numa garagem de estacionamentos.
Bosch diminuiu ao mesmo tempo em que se aproximava da
calçada e, sem dizer uma palavra, Eleanor saltou do carro e
entrou na garagem. Bosch virou à direita na rua seguinte e
deu a volta ao quarteirão. Os parques de estacionamento e
as garagens despejavam carros, impedindo-o de avançar
uma e outra vez. Quando, finalmente, deu a volta toda,
Eleanor estava parada na calçada exatamente no mesmo
lugar onde tinha saltado do carro. Ele parou e ela se inclinou
para dentro da janela.
— Lá, disse ela apontando para o outro lado da rua,
meio quarteirão à frente.
Havia uma estrutura redonda que sobressaía em relação
à rua, partindo do primeiro andar de um edifício de
escritórios com vários andares. As paredes do semicírculo
eram de vidro. E, dentro deste enorme salão de vidro, Bosch
viu a porta de aço polido de uma caixa-forte. Um letreiro no
exterior do edifício dizia “Beverly Hills Safe & Lock”. Olhou
para Eleanor e viu que ela estava sorrindo.
— O Tran estava no carro? Perguntou-lhe.
— Claro. Você não comete um erro desses. Ele retribuiu
o sorriso. Depois viu um espaço livre num parquímetro logo
ali à frente. Dirigiu-se para lá e estacionou. — Desde que
começamos a pensar que devia haver uma segunda caixa-
forte, a única coisa em que pensei foi em bancos, disse
Eleanor Wish. — Sabe Harry? Talvez um de poupanças e
empréstimos. Mas passo de carro por este lugar umas duas
vezes por semana. Pelo menos. E nunca me lembrei de tal
coisa.
Tinham descido a Wilshire e estavam parados do outro
lado da rua, à frente da Beverly Hills Safe & Lock Company.
Na realidade, ela estava atrás dele, olhando para o edifício
por cima do ombro dele. Tran, ou Bok como era agora
conhecido, tinha-a visto e não queriam se arriscar a que ele
a visse ali. A calçada estava cheia de funcionários de
escritórios que saíam em torrentes pelas portas de vidro
giratórias dos edifícios, se dirigindo para os
estacionamentos das garagens na tentativa de conseguirem
nem que fosse apenas um avanço de cinco minutos na
entrada no trânsito de um fim-de-semana prolongado.
— Mas faz sentido, disse Bosch. — Ele vem para aqui,
não confia em bancos, como disse o seu amigo do
Departamento de Estado. Por isso, descobre uma caixa-forte
que não é um banco. Esta. Mas é ainda melhor. Desde que
tenha dinheiro para pagar, estes lugares não precisam
saber quem você é. Não há nenhuma regulamentação
federal porque não são bancos. Pode alugar um cofre e só
se identificar com uma carta ou um número de código.
A Beverly Hills Safe & Lock Company tinha todo o ar de
um banco, mas estava muito longe de ser um. Não tinha
conta-poupança nem conta de depósito. Nenhum
departamento de empréstimos, nenhum caixa. Aquilo que
oferecia era o que estava visível na janela da frente. A sua
caixa-forte de aço polido. Era um negócio que protegia
valores e não dinheiro. Numa área como Beverly Hills, era
um negócio precioso. Os ricos e famosos guardavam ali as
suas joias, as suas peles, os seus contratos pré-nupciais. E
estava ali tudo à vista. Atrás do vidro. O negócio ocupava o
andar de baixo do J.C. Stock Building, de catorze andares,
uma estrutura sem nada de notável excetuando o salão da
caixa-forte em vidro que se sobressaía, num meio círculo,
da fachada do primeiro andar. A entrada para a Beverly Hills
Safe & Lock ficava no lado do edifício que dava para a
Rincon Street, onde mexicanos com casacos amarelos
curtos estavam à espera, prontos para tomarem conta do
carro de um cliente rico.
Depois de Bosch ter largado Eleanor na calçada e ter ido
dar a volta ao quarteirão, ela vira Tran e dois guarda-costas
saírem do Mercedes dourado e se dirigirem para o edifício.
Se desconfiavam que podiam estar sendo seguidos, não
deram qualquer sinal disso. Nunca olharam para trás. Um
dos guarda-costas transportava uma mala de aço. Eleanor
disse:
— Acho que descobri que pelo menos um dos guarda-
costas estava armado. O casaco do outro era demasiado
largo.
— É ele?
— Sim lá está ele.
Tran estava escoltado por um homem com um terno
azul de banqueiro ao entrar na caixa-forte. Um guarda-
costas com a mala de aço seguia atrás deles. Bosch viu os
olhos do homenzarrão varrer a calçada do lado de fora, até
Tran e o Terno de Banqueiro desaparecerem pela porta
aberta da caixa-forte. O homem com a mala ficou à espera.
Bosch e Eleanor também ficaram à espera, observando. Uns
três minutos mais tarde, Tran saiu seguido pelo Terno de
Banqueiro que transportava um cofre de metal do tamanho
de uma caixa de sapatos de senhora. O guarda-costas
fechou a retaguarda e os três homens saíram da sala de
vidro, desaparecendo de vista.
— Chique! Serviço personalizado, Eleanor comentou. —
Beverly Hills em tudo. Provavelmente, está levando-lo para
uma sala particular onde ele fará a transferência.
— Acha que pode entrar em contato com Rourke e
arranjar alguém para seguir Tran quando ele sair daqui?
Perguntou Bosch. Use um telefone fixo. Não podemos nos
comunicar pelo ar por que os tipos lá em baixo podem ter
alguém aqui em cima ouvindo as nossas frequências.
— Parto do princípio que vamos ficar aqui, com a caixa-
forte? Perguntou ela. Bosch assentiu. Ela pensou uns
instantes e disse: — Vou telefonar. Ele vai ficar contente por
saber que descobrimos o lugar. Já vamos poder mandar a
equipe dos túneis lá para baixo. Olhou em volta, viu um
telefone público ao lado de um ponto de ônibus na próxima
esquina e fez menção de se afastar, mas Bosch lhe segurou
no braço.
— Eu vou entrar lá dentro, ver como é. Não se esqueça:
eles a conhecem, por isso se mantenha longe até eles irem
embora.
— E se eles saírem antes dos reforços chegarem?
— Eu fico com a caixa-forte. O Tran não me interessa.
Quer as chaves? Pode levar o carro e segui-lo.
— Não, fico com a caixa-forte. Consigo.
Deu meia volta e se dirigiu para o telefone. Bosch
atravessou o Wishire Boulevard e entrou no Safe & Lock,
passando por um guarda armado que estava se
aproximando da porta com uma argola de chaves na mão.
— Já estamos fechando, senhor, disse o guarda que
tinha o bambolear e a rudeza de um ex-policial.
— É só um minuto, disse Bosch sem parar.
O Terno de Banqueiro, que tinha acompanhado Tran até
à caixa-forte, era um dos três jovens louros sentados em
mesas antigas em cima de um tapete cinza e espesso na
área da recepção. Levantou os olhos dos papéis, avaliou o
ar de Bosch e disse a um dos colegas mais novos:
— Mr. Grant, se não se importa, atenda este senhor.
Embora a sua resposta não verbalizada fosse um não, o
homem chamado Grant se levantou, deu a volta à mesa e,
com o melhor sorriso falso do seu arsenal, se aproximou de
Bosch.
— Pois não senhor? Disse o homem. — O senhor está
pensando em abrir um depósito na caixa-forte conosco?
Bosch ia começar a formular uma pergunta quando o
homem estendeu a mão e disse:
— James Grant, me pergunte tudo o que quiser. Embora
tenhamos pouco tempo. Vamos fechar para o fim-de-
semana dentro de alguns minutos. Grant puxou para cima a
manga do paletó para olhar o relógio e confirmar a hora do
fechamento.
— Harvey Pounds, disse Bosch lhe apertando a mão. —
Como sabia que eu não tinha uma conta?
— Segurança, Mr. Pounds. Nós vendemos segurança. Eu
conheço de vista todos os nossos clientes. E o mesmo
acontece com Mr. Avery e Mr. Bernard, disse ele se voltando
ligeiramente na direção do Terno de Banqueiro e do outro
vendedor que baixaram a cabeça muito formalmente.
— Não estão abertos aos fins-de-semana? Perguntou
Bosch tentando se mostrar desapontado. Grant sorriu.
— Não, senhor. Achamos que os nossos clientes são do
tipo de pessoas que têm planos muito bem delineados,
vidas muito bem planejadas. Reservam os fins-de-semana
para se divertirem e não para tratarem de negócios como
fazem as outras pessoas. Está me compreendendo? Nada
de corridas para os bancos, para as ATMs. Os nossos
clientes estão muito acima disso, Mr. Pounds. E nós
também. Com certeza que entende isso.
Havia um tom irreverente na voz dele ao dizer aquilo.
Mas Grant tinha razão. Aquele lugar era tão finório como um
escritório de direito comercial, com o mesmo horário e com
os mesmos homens cheios de si. Bosch olhou
ostensivamente em volta. Num recanto à direita, onde havia
uma fila de oito portas, viu os dois guarda-costas de Tran,
um de cada lado da terceira porta. Bosch fez um gesto de
assentimento para Grant e sorriu.
— Bem, estou vendo que têm guardas em todo o lado. È
exatamente desse tipo de segurança que ando à procura.
— Peço desculpas, Mr. Pounds, mas aqueles homens
estão apenas esperando um cliente que está numa das
nossas salas particulares. No entanto, posso lhe garantir
que os nossos dispositivos de segurança nunca poderão ser
postos em causa. Está pensando em alugar um cofre
conosco, senhor? O homem tinha uma simpatia ainda mais
melíflua do que a de um evangelista. Bosch não gostava
dele nem da sua atitude.
— Segurança, Mr. Grant, eu estou à procura de
segurança. Quero alugar um cofre na caixa-forte, mas
preciso estar tranquilo com a segurança, tanto no que diz
respeito a problemas interiores como a problemas do
exterior, se é que estou me fazendo entender.
— Claro Mr. Pounds, mas tem alguma ideia do custo do
nosso serviço, da segurança que fornecemos?
— Não sei nem me interessa Mr. Grant. Está vendo, o
dinheiro não está em causa. A paz de espírito sim.
Entendeu? Na semana passada, o meu vizinho do lado,
estou falando de apenas três portas mais abaixo do último
presidente, foi assaltado. O alarme não foi obstáculo para
eles. Levaram coisas muito valiosas. Não quero ficar
esperando que me aconteça a mesma coisa. Hoje em dia,
não há nenhum lugar seguro.
— É uma verdadeira vergonha, Mr. Pounds, disse Grant,
uma nota de excitação incontrolada na voz. — Não sabia
que as coisas estavam ficando assim em Bel Air. Mas não
podia estar mais de acordo com o seu plano de ação. Sente-
se na minha mesa e podemos conversar. Quer um café,
talvez um brandy? Estamos quase na hora das bebidas.
Apenas um dos servicinhos que nós podemos fornecer e que
uma instituição bancária não pode.
Grant esboçou uma gargalhada, silenciosamente,
balançando a cabeça para cima e para baixo. Bosch
declinou a oferta e o vendedor se sentou à mesa, puxando a
cadeira para frente.
— Ora, me deixe então lhe dizer como é que nós
basicamente trabalhamos. Somos completamente livres em
relação a qualquer agência governamental. Calculo que o
seu vizinho se sentiria feliz com isso. Piscou o olho a Bosch
que perguntou:
— Vizinho?
— O antigo presidente, bem entendido. Bosch assentiu
e Grant continuou: — Fornecemos uma longa lista de
serviços de segurança, tanto aqui como na sua casa, até
mesmo uma escolta armada, se for necessário. Somos os
melhores consultores em questões de segurança. Nós...
— E quanto à caixa-forte? Interrompeu Bosch. Sabia que
Tran devia estar saindo da sua sala particular a qualquer
momento e queria estar na caixa-forte nessa altura.
— Sim, claro, a caixa-forte. Como viu, está à vista de
todo o mundo. O círculo de vidro, como a chamamos, é
talvez o nosso estratagema de segurança mais brilhante.
Quem iria tentar arrombá-lo? Está à vista vinte e quatro
horas por dia. Aqui mesmo, no Wilshire Boulevard. Genial,
não é? O sorriso de Grant exibia um enorme triunfo. Acenou
ao de leve com a cabeça num esforço para conseguir um
sinal de concordância da parte do cliente.
— E quanto ao que fica por baixo? Perguntou Bosch e a
boca do homem descaiu, voltando a uma linha séria.
— Mr. Pounds, o senhor não pode estar esperando que
eu lhe explique todo o nosso sistema de segurança, mas
posso lhe garantir que a caixa-forte é impenetrável. Só aqui
entre nós, o senhor não encontra uma caixa-forte nesta
cidade com tanto cimento e aço no chão, nas paredes e no
teto como na nossa. E a parte elétrica? O senhor não podia,
me desculpe a expressão, soltar um pum na sala circular
sem fazer disparar os sensores de som, movimento e calor.
— Posso vê-la?
— A caixa-forte?
— Evidentemente.
— Evidentemente.
Grant endireitou o paletó e levou Bosch para a caixa-
forte. Uma parede de vidro e uma armadilha dividiam a
caixa-forte semicircular do resto da Beverly Hills Safe &
Lock. Grand apontou para o vidro e disse:
— Vidro temperado duplo. Fita de alarme vibratório
entre as duas placas para tornar impossível qualquer
interferência. O mesmo acontece com as janelas exteriores.
Basicamente, a sala da caixa-forte está selada em duas
camadas de vidro com uma espessura de três quartos de
polegada.
Voltando a usar a mão como um modelo apontando
para os preços num comercial televisivo, Grant indicou um
aparelho parecido com uma caixa ao lado da porta para a
armadilha. Tinha o tamanho aproximado de um reservatório
de água dum escritório e um círculo de plástico branco na
parte de cima. No círculo estava desenhado a preto o
contorno de uma mão, com os dedos abertos.
— Para entrar na caixa-forte, a sua mão tem de estar no
arquivo. A estrutura óssea. Deixe lhe mostrar.
Colocou a mão direita na silhueta preta. O aparelho
começou a zumbir e a cobertura plástica se acendeu da
parte de dentro. Uma barra de luz varreu pela parte de
baixo o plástico e a mão de Grant, como se fosse uma
máquina Xerox.
— Raios-X, disse Grant. — Mais eficaz do que as
impressões digitais, e o computador consegue processá-lo
em seis segundos.
Seis segundos depois, a máquina emitiu um apito curto
e a fechadura eletrônica da primeira porta da armadilha se
abriu com um estalido.
— Está vendo, Mr. Pounds, aqui a sua mão passa a ser a
sua assinatura. Não há necessidade de nomes. O senhor dá
um código ao seu cofre e põe a estrutura dos ossos da sua
mão no nosso arquivo. A única coisa de que precisamos é
de seis segundos do seu tempo. Bosch ouviu atrás de si
uma voz que reconheceu como sendo do Terno de
Banqueiro, o homem que se chamava Avery:
— Ah, Mr. Long, já terminámos?
Bosch virou a cabeça e viu Tran sair da salinha. Agora
era ele que transportava a pasta. E um dos guarda-costas
transportava o cofre. O outro olhou diretamente para Bosch.
Bosch se voltou outra vez para Grant e perguntou:
— Podemos entrar?
Entrou atrás de Grant para a armadilha. A porta fechou-
se atrás deles. Estavam numa sala de vidro e aço branco
com o dobro do tamanho de uma cabine telefônica. Havia
uma segunda porta ao fundo. Atrás dela estava um guarda
fardado.
— Isto é apenas um pormenor que fomos buscar na
Cadeia do Condado de LA explicou Grant. — Esta porta à
nossa frente não pode ser aberta a não ser que a outra
atrás de nós esteja fechada e trancada. Maury, o nosso
guarda armado, faz a última verificação visual e abre a
última porta. Está vendo, Mr. Pounds, nós aqui temos o
toque humano e o toque eletrônico.
Fez sinal com a cabeça a Maury que destrancou e abriu
a última porta da armadilha. Bosch e Grant entraram na
caixa-forte. Bosch não se deu ao trabalho de dizer que
acabara de enganar com êxito os elaborados obstáculos de
segurança ao ter jogado com a ambição de Grant lhe
enfiando uma touca com um endereço de Bel Air.
— E agora, a caixa-forte, disse Grant levantando a mão
como um anfitrião simpático.
A caixa-forte era maior do que Bosch tinha imaginado.
Não era larga, mas se estendia bastante para trás, para o
interior do edifício J. C. Stock. Havia cofres ao longo das
duas paredes e numa estrutura de aço que corria o centro
da sala. Os dois começaram a descer o corredor para o lado
esquerdo enquanto Grant explicava que os cofres do centro
serviam para armazenar as coisas maiores. Bosch viu que
as portas eram muito maiores do que as dos cofres das
paredes laterais. Algumas eram suficientemente grandes
para uma pessoa poder entrar lá. Grant viu que Bosch
estava olhando para estas e sorriu:
— Peles, disse ele. — Martas. Fazemos um bom negócio
guardando peles caras, casacos compridos, o que quiser. As
senhoras de Beverly Hills guardam-nas aqui quando não é a
estação delas. É uma economia enorme em seguros, para
não falar na paz de espírito.
Bosch se desligou do discurso do vendedor e se
concentrou na entrada de Tran na caixa-forte, seguido por
Avery. Tran continuava carregando a pasta e Bosch viu uma
placa estreita de aço brilhante no pulso dele. Estava
algemado à pasta. A adrenalina de Bosch subiu
vertiginosamente. Avery se aproximou de um cofre aberto
com o número 237 e enfiou o cofre de depósitos no seu
interior. Fechou a porta e utilizou uma chave numa das duas
fechaduras da porta. Tran se aproximou por sua vez e
colocou a sua chave na outra fechadura e rodou-a. Depois
fez um gesto com a cabeça para Avery e saíram os dois da
caixa-forte, sem que Tran tivesse olhado uma só vez que
fosse para Bosch. Mal Tran desapareceu, Bosch anunciou
que já tinha visto o suficiente e se dirigiu para a saída.
Aproximou-se do vidro duplo e olhou lá para fora, para o
Wilshire Boulevard, vendo Tran, ladeado pelos dois
imponentes guarda-costas, se dirigir para o estacionamento
da garagem onde tinha deixado a Mercedes. Ninguém o
seguiu. Bosch olhou em volta, mas não viu Eleanor.
— Há algum problema, Mr. Pounds? Perguntou Grant
atrás dele.
— Sim, respondeu Bosch. Meteu a mão no bolso do
casaco e tirou o distintivo policial com o crachá. Segurou-a
por cima do ombro para Grant poder ver. — É melhor ir
chamar o gerente desta coisa. E não volte a me chamar de
Pounds.
Lewis estava parado num telefone público à frente de
um restaurante aberto vinte e quatro horas por dia
chamado Darlings. Estava na esquina e à distância de um
quarteirão da Beverly Hills Safe & Lock. Já tinha passado
mais de um minuto desde que a agente Mary Grosso tinha
atendido ao telefone e dissera que ia chamar o subchefe
Irving. Lewis estava pensando que se o homem queria
informações de hora a hora, ainda por cima por telefone
então, o mínimo que ele podia fazer era atender a merda da
chamada de imediato. Mudou o telefone para a outra orelha
e vasculhou o bolso à procura de qualquer coisa com que
palitar os dentes. O pulso lhe doeu quando raspou no bolso.
Mas pensar em ter sido algemado por Bosch só fazia com
que ficasse furioso, por isso, tentou se concentrar na
investigação. Não fazia a mínima ideia do que estava
acontecendo, do que Bosch e a mulher do FBI andavam
tramando. Mas Irving estava convencido que havia tramoia
e o mesmo acontecia com Clarke. Se assim fosse, jurou
Irving a si próprio no telefone público, iria ser ele quem
colocaria as algemas nos pulsos de Bosch.
Um velho mendigo com olhos assustadiços e cabelo
branco arrastou os pés até ao telefone a seguir ao de Lewis
e foi ver a ranhura dos trocos. Estava vazia. Esticou um
dedo para a ranhura do telefone que Lewis estava usando,
mas o policial dos Assuntos Internos lhe deu um tapa.
— O que aí estiver é meu, avozinho, disse Lewis. Sem se
intimidar, o vagabundo perguntou:
— Tem uma moeda de vinte e cinco cêntimos para eu
poder arranjar qualquer coisa para comer?
— Vá se foder, disse Lewis.
— O quê? Perguntou uma voz.
— O quê? Repetiu Lewis e depois notou que a voz tinha
vindo do telefone. Era Irving. — Oh, não, senhor, não era
consigo. Não notei que estava... Uh... Estava falando, uh...
Estou aqui com um problema com uma pessoa... Eu...
— É assim que fala com um cidadão?
Lewis colocou a mão no bolso das calças e tirou uma
nota de dólar. Estendeu-a ao velho de cabelos brancos e lhe
fez sinal para ir embora.
— Detetive Lewis, está aí?
— Sim, Chefe. Desculpe. Já resolvi o problema. Queria
fazer o relatório. Houve um desenvolvimento importante.
Esperava que esta última frase desviasse a atenção de
Irving da indiscrição anterior. Irving disse:
— Diga-me lá o que tem. Ainda tem o Bosch debaixo de
olho? Lewis respirou fundo, aliviado.
— Sim, senhor, respondeu ele. O detetive Clarke está
vigiando enquanto eu falo consigo.
— Muito bem, então me conte. É sexta-feira à noite,
detetive, e eu gostaria de chegar a casa numa hora
razoável.
Lewis passou os quinze minutos seguintes pondo Irving
a par da perseguição que Bosch fizera ao Mercedes dourado
desde Orange City até à Beverly Hills Safe & Lock. Disse que
a perseguição terminara na casa dos depósitos, que parecia
ter sido o destino planejado.
— O que eles estão fazendo agora, o Bosch e a mulher
do FBI?
— Ainda estão lá. Parece que estão interrogando o
gerente. Aconteceu qualquer coisa. Dá a ideia de que eles
não sabiam para onde iam, mas que mal chegaram a este
lugar, souberam logo que era aqui.
— Aqui o quê?
— É isso. Não sei. Seja lá o que for que eles andem
tramando. Penso que o tipo que eles seguiram fez um
depósito. Há uma caixa-forte, muito grande, dentro desta
coisa.
— Sim, eu sei de que está falando.
Irving ficou calado durante um bom pedaço e Lewis,
tendo terminado o relatório, sabia que o melhor era não
interromper. Começou a sonhar acordado com a ideia de
algemar as mãos de Bosch atrás das costas e de passá-lo
pela frente de um batalhão de câmaras de televisão. Ouviu
Irving aclarar a garganta.
— Não sei qual é o plano deles, disse Irving. — Mas
quero que continuem em cima deles. Se eles não voltarem
para casa esta noite, vocês também não voltam.
Compreendido?
— Sim, senhor.
— Se eles deixaram que a Mercedes Benz fosse embora,
então é porque o que queriam era a caixa-forte. Vão pôr a
caixa-forte sob vigilância. E vocês, pela sua parte, vão
continuar vigiando-os.
— Sim, Chefe, respondeu Lewis, embora ainda não
tivesse compreendido nada.
Irving passou os dez minutos seguintes dando
instruções ao seu detetive e explicando a sua teoria sobre o
que estava se passando com a Beverly Hills Safe & Lock.
Lewis puxou de um bloco de notas e de uma caneta e fez
uns apontamentos rápidos. No fim do diálogo-monólogo,
Lewis deu o seu número de telefone de casa a Lewis e disse:
— Não avancem sem terem a minha autorização prévia.
Podem telefonar para esse número a qualquer hora do dia
ou da noite. Compreendido?
— Sim, senhor, respondeu Lewis pressurosamente.
Irving desligou sem mais uma palavra.
Bosch esperou na área da recepção que Eleanor
chegasse sem dizer a Grant e aos outros vendedores o que
estava acontecendo. Eles ficaram de pé, atrás das mesas
elegantes, de bocas abertas. Quando Eleanor chegou à
porta, esta estava fechada. Ela bateu e mostrou o distintivo.
O guarda deixou-a entrar e ela entrou na área da recepção.
Quando o vendedor chamado Avery abriu a boca para falar,
Bosch disse:
— Esta é a agente Eleanor Wish do FBI. Está comigo.
Nós vamos entrar num desses gabinetes particulares para
os clientes e termos uma conversa particular. Só vamos
demorar um minuto. Se houver alguém que seja o
encarregado, gostaríamos de falar com ele mal ele
aparecesse.
Grant, ainda atordoado, apontou para a segunda porta
da sala. Bosch entrou na terceira porta e Eleanor foi atrás
dele. Fechou a porta no rosto dos três vendedores e
trancou-a.
— Então, o que temos? Não sei o que vou dizer a eles,
murmurou enquanto olhava em redor da mesa e das duas
cadeiras da sala à procura de um pedaço de papel ou de
qualquer outra coisa que Tran lá pudesse ter deixado. Não
havia nada. Abriu as gavetas da mesa de mogno. Havia
canetas, lápis, envelopes e um monte de folhas de papel
timbrado. Nada mais. Havia uma máquina de faxes em cima
de uma mesa encostada à parede em frente da porta, mas
estava desligada.
— Observamos e esperamos, respondeu ela falando
muito depressa. — Rourke diz que está juntando uma
equipe dos túneis. Eles vão entrar e procurar. Primeiro vão
se encontrar com a DWP para ver exatamente o que há lá
em baixo. Devem ser capazes de calcular qual o melhor
lugar para um túnel e depois começam por aí. Harry acha
mesmo que acertamos? Ele assentiu com a cabeça. Tinha
vontade sorrir, mas não o fez. A excitação dela era
contagiosa.
— Ele conseguiu arranjar quem seguisse Tran à tempo?
Perguntou. — A propósito, aqui o conhecem por Mr. Long.
Bateram à porta e uma voz disse:
— Com licença, com licença. Bosch e Eleanor
ignoraram-na.
— Tran, Bok e agora Long, disse Eleanor. — Não sei nada
sobre a vigilância. Rourke disse que ia tentar. Dei-lhe a
placa do carro e disse onde é que a Mercedes estava
estacionado. Acho que só vamos saber depois. Ele disse que
também ia mandar uma equipe para combinar a vigilância
conosco. Vamos ter uma reunião de vigilância na garagem
do outro lado da rua às oito horas. O que eles dizem aqui?
— Ainda não lhes disse o que está acontecendo.
Voltaram a bater à porta. Desta vez, mais alto.
— Bem, vamos lá falar com o chefe.
O dono e diretor da Beverly Hills Safe & Lock Company
era o pai de Avery, Martin B. Avery III. Tinha a mesma
origem de muitos dos seus clientes e queria que toda a
gente soubesse. Existia um escritório particular ao fundo da
sala. Por trás da mesa, havia uma grande coleção de
fotografias emolduradas que atestavam o fato dele não ser
apenas mais um trapaceiro se alimentando dos ricos. Era
um deles. Havia Avery III com vários presidentes, um ou
dois magnatas do cinema e algumas realezas inglesas. Uma
das fotografias era de Avery e o Príncipe de Gales
completamente vestidos para o jogo do pólo, embora Avery
parecesse ser demasiado gordo na cintura e ter as
bochechas demasiado balofas para ser um grande cavaleiro.
Bosch e Eleanor resumiram a situação e ele se mostrou
imediatamente cético. Disse que a sua caixa-forte era
inexpugnável. Disseram para que ele guardasse os
discursos promocionais e pediram para ver os desenhos e
planos operacionais da caixa-forte. Avery III virou ao
contrário o seu mata-borrão de 60 dólares e lá estava o
diagrama colado atrás. Era evidente que Avery III e os seus
elegantes vendedores estavam sobrevalorizando a caixa-
forte.
Começando pela camada exterior e indo para dentro era
uma placa de aço com dois centímetros e meio de
espessura seguida por trinta centímetros de cimento
reforçado a aço e seguidos por outros dois centímetros e
meio de aço. A caixa-forte era mais espessa na parte de
baixo e no topo, onde havia mais uma camada de sessenta
centímetros de cimento. Como acontecia com todas as
caixas-fortes, a coisa mais impressionante era a grossa
porta de aço, mas isso era apenas para vista. Tal como o
raio-X da mão e a armadilha. Eram só espetáculo. Bosch
sabia que se os bandidos andassem mesmo lá por baixo,
teriam muito pouca dificuldade em vir à superfície para
respirarem. Avery III disse que o alarme da caixa-forte tinha
disparado nas duas noites anteriores, tendo mesmo soado
duas vezes na noite de quinta-feira. Em todas às vezes, ele
fora chamado pela polícia de Beverly Hills. Por sua vez, ele
tinha chamado o filho, Avery IV, e tinha-o mandado falar
com os agentes. Os policiais e o filho tinham voltado a ligar
o alarme depois de terem verificado que não havia
nenhuma anomalia. “Não fazíamos a mínima ideia de que
podia haver alguém nos esgotos aqui por baixo”, disse
Avery III. Disse aquilo como se a palavra “esgotos” fosse
imprópria para os seus lábios. “Difícil de acreditar, difícil de
acreditar”.
Bosch fez mais algumas perguntas detalhadas sobre o
funcionamento da caixa-forte e os sistemas de segurança.
Sem notar a importância do que estava dizendo, Avery III
mencionou com ar muito natural que, ao contrário das
caixas-fortes convencionais dos bancos, a sua caixa-forte
tinha um sistema que anulava o sistema de abertura
retardada. Tinha um código que podia introduzir no
computador e que limpava as coordenadas das horas de
abertura. Assim, podia abrir a caixa-forte quando quisesse.
— Temos de responder às necessidades dos nossos
clientes, explicou ele. — Se uma senhora de Beverly Hills
telefona num domingo porque precisa da sua tiara para um
baile de caridade, quero poder ir apanhar a tiara. Está
vendo, é o serviço que vendemos.
— Todos os seus clientes sabem deste seu serviço de
fim-de-semana? Perguntou Eleanor.
— Claro que não, respondeu Avery III. — Só alguns
escolhidos. Está vendo, temos um preço elevado.
Precisamos ter um guarda da segurança para podermos
fazer isso.
— Quanto tempo é preciso para fazer a anulação e abrir
as portas? Perguntou Bosch.
— Não muito. Introduzir o código no teclado ao lado da
porta da caixa-forte é uma questão de segundos. Depois, se
introduz o código para a abertura do cofre-forte, depois se
gira a roda e a porta se abre sob o seu próprio peso. Trinta
segundos, talvez um minuto, talvez menos.
“Não era suficientemente depressa”, pensou Bosch. O
cofre de Tran era localizado perto da parte da frente da
caixa-forte. Seria aí que os bandidos estariam trabalhando.
Veriam e provavelmente ouviriam a porta da caixa-forte
sendo aberta. Não seriam apanhados de surpresa.
 
Uma hora depois, Eleanor e Bosch tinham regressado ao
carro. Tinham mudado para o segundo nível da garagem do
outro lado do Wilshire Boulevard a leste do Beverly Hills
Safe & Lock. Depois de terem deixado Avery III e terem
tomado a posição de vigilância, tinham visto Avery IV e
Grant empurrar e fechar a enorme porta de aço da caixa-
forte. Giraram a roda e escreveram no teclado do
computador, trancando-a. A seguir, as luzes no interior do
estabelecimento se apagaram todas com exceção das do
interior da sala envidraçada da caixa-forte. Essas ficavam
sempre acesas como símbolo da segurança que ofereciam.
— Acha que eles virão esta noite? Perguntou Eleanor.
— É difícil de dizer. Sem Meadows, têm um homem a
menos. Podem estar atrasados.
Tinham dito a Avery III para ir para casa e ficar
esperando de ser chamado. O proprietário tinha
concordado, mas se mantivera cético em relação ao cenário
que Bosch e Eleanor tinham descrito.
— Vamos precisar tirá-los dos subterrâneos, disse Bosch
a Eleanor, com as mãos agarrando o volante como se
estivesse dirigindo. — Nunca conseguiríamos abrir aquela
porta suficientemente depressa.
Bosch olhou indolentemente para a sua esquerda e viu
o LTD branco com rodas da polícia estacionado na calçada a
um quarteirão de distância. Estava parado próximo de uma
boca de incêndio e tinha duas figuras lá dentro. Continuava
tendo companhia.
Bosch e Eleanor estavam de pé ao lado do carro dele
que estava estacionado no segundo andar da garagem
virado para a parede divisória do lado sul. A garagem ficara
virtualmente vazia há mais de uma hora, mas a caixa de
cimento armado cheirava a tubos de escape e óleo
queimado. Bosch tinha certeza de que o cheiro de óleo era
do carro dele. O para-anda-para da perseguição desde a
Pequena Saigon fora violento demais para o carro de
substituição. Da posição em que se encontravam, podiam
olhar para o outro lado do Wilshire Boulevard e ver, ao
ocidente, a caixa-forte iluminada da Beverly Hills Safe &
Lock à distância de meio quarteirão. Mais para baixo do
Wilshire Boulevard, o céu estava cor-de-rosa e o sol poente
laranja forte. As luzes começavam a se acender na cidade e
o trânsito estava diminuindo. Bosch olhou para o leste do
Wilshire Boulevard e viu o LTD branco estacionado junto da
calçada, as sombras dos seus ocupantes por trás das
janelas escurecidas. Às oito horas, uma procissão de três
carros, o último um carro-patrulha de Beverly Hills, subiu a
rampa e atravessou os espaços de estacionamento vazios
em direção ao lugar onde Bosch e Eleanor estavam de pé
junto à parede.
— Bem, se os nossos criminosos tiverem um vigia em
qualquer destes edifícios altos e ele viu este desfile, pode
apostar que está mandando-os pular fora, comentou Bosch.
Rourke e outros quatro homens saíram dos dois carros
descaracterizados. Bosch notou logo pelos ternos que
vestiam que três deles eram agentes. O terno do quarto
homem estava um bocadinho gasto, os bolsos deformados
como os de Bosch. Trazia um tubo de papelão. Harry
calculou que devia ser o supervisor da DWP que Eleanor
dissera que viria. Três policiais fardados de Beverly Hills, um
deles com galões de capitão no colarinho, saíram do carro-
patrulha. O capitão também trazia um tubo de papel.
Convergiram todos para o carro de Bosch e utilizaram o teto
como mesa de reuniões. Rourke fez as apresentações muito
rapidamente. Os três policiais do Departamento da Polícia
de B. H. estavam presentes porque a operação corria na sua
jurisdição. Também eram úteis porque a Beverly Hills Safe &
Lock tinha apresentado um plano do edifício à divisão da
segurança comercial do departamento. “Iriam apenas
participar como observadores na reunião”, explicou Rourke,
e seriam chamados a intervir mais tarde se o departamento
fosse preciso para dar apoio. Dois dos agentes do FBI,
Hanlon e Houck, iriam se encarregar da vigilância noturna
com Bosch e Eleanor Wish. Rourke queria que vigiassem a
Beverly Hills Safe & Lock de pelo menos dois ângulos
diferentes. O terceiro agente era o coordenador da SWAT do
FBI. E o último homem era Ed Gearson, o supervisor das
instalações subterrâneas da DWP.
— OK, vamos preparar os planos da batalha, anunciou
Rourke quando acabou de fazer as apresentações. Tirou o
tubo de cartão de Gearson sem pedir licença e puxou um
rolo com um mapa. — Isto é um plano esquemático da DWP
para esta área. Tem todas as linhas úteis, os túneis e as
galerias. Diz exatamente o que existe lá em baixo.
Desenrolou o mapa acinzentado com linhas azuis em
cima do capô. Os três policiais de Beverly Hills seguraram a
outra ponta com as duas mãos. Estava ficando escuro na
garagem e o homem da SWAT, um agente chamado Heller,
segurou uma caneta-lanterna com um raio
surpreendentemente amplo e forte por cima da planta.
Rourke tirou uma caneta do bolso da camisa e puxou por ela
até a transformar num ponteiro.
— OK, nós estamos... Aqui... Antes de ele conseguir
encontrar o lugar, Gearson esticou o braço e pôs um dedo
em cima do mapa. Rourke levou a caneta até ao lugar.
— Sim, exatamente aqui, disse ele e deu um olhar para
Gearson que dizia claramente “Não me ferre”. Os ombros do
homem da DWP pareceram se encolher ainda mais dentro
do casaco. Toda a gente em redor do carro se aproximou
para estudar a localização.
— A Beverly Hills Safe & Lock fica aqui, disse Rourke. —
A caixa-forte é aqui. Podemos ver a sua planta, capitão
Orozco?
Orozco, que tinha a estrutura de uma pirâmide
invertida, ombros largos e ancas estreitas, desenrolou a
planta em cima da da DWP. Era uma cópia do desenho que
Avery III tinha mostrado para Bosch e a Eleanor.
— Duzentos e setenta oito metros quadrados de espaço
na caixa-forte, disse Orozco. —Pequenos cofres particulares
ao longo das paredes e armários no meio. Se eles estiverem
ali em baixo, podem subir através do chão em qualquer
lugar ao longo dos dois corredores. Por isso, estamos
falando de uma área de uns seis metros quadrados em que
eles podem subir através do chão.
— Muito bem, capitão, disse Rourke, — Se levantar isso
e voltarmos a olhar para o mapa da DWP, poderão localizar
essa área neste preciso lugar. Com uma caneta fluorescente
amarela, marcou o chão da caixa-forte no mapa. — Usando
isto como guia, podemos ver as estruturas subterrâneas
que oferecem uma proximidade maior. O que acha Mr.
Gearson?
Gearson se inclinou mais uns centímetros por cima do
capô do carro e estudou o mapa. Bosch também se inclinou.
Viu umas linhas grossas que presumiu que indicavam as
linhas de drenagem Este-Oeste mais importantes. O tipo de
túneis que eles iriam procurar. Reparou que correspondiam
às ruas de maior superfície: Wilshire, Olympic, Pico. Gearson
apontou para a linha da Wilshire, dizendo que corria nove
metros abaixo do solo e que era suficientemente larga para
deixar passar um caminhão. Com o dedo, o homem da DWP
traçou a linha Wilshire para leste durante dez quarteirões
até à Robertson, uma importante linha de drenagem das
águas pluviais de norte para sul.
— Desta interseção, disse ele, é apenas um quilômetro
e meio para sul até a uma galeria de drenagem aberta que
corre ao longo da autoestrada de Santa Monica.
A abertura na galeria era tão grande como uma porta
de garagem e só estava fechada por um portão com um
cadeado.
— Diria que é aqui que eles podem entrar, disse
Gearson. — É como seguir as ruas da superfície. Pegamos a
Roberson até à Wilshire. Viramos à esquerda e estamos
praticamente aqui, próximo da sua linha amarela. A caixa-
forte. Mas não acho que eles fossem escavar um túnel
partindo da linha Wilshire.
— Não? Perguntou Bosch. — E porquê?
— Muito movimento é essa a razão, respondeu Gearson,
sentindo que era ele o homem que tinha as respostas ao ver
os nove rostos olhando para ele. — Temos sempre gente da
DWP lá em baixo nestas linhas principais. A procura de
racha, bloqueios, problemas de qualquer tipo. E a Wilshire é
a mais importante aqui em baixo, a este e a oeste. Tal como
aqui em cima. Se alguém abrisse um buraco na parede, eles
veriam logo. Está vendo?
— E se eles conseguissem esconder o buraco?
— Está falando daquilo que fizeram há um ano ou coisa
assim naquele assalto da baixa. Sim, isso talvez pudesse
voltar a funcionar noutro lugar qualquer, mas na linha da
Wilshire haveria muitas probabilidades de serem vistos.
Agora andamos à procura desse tipo de coisas. E, tal como
disse, há muito movimento na linha da Wilshire. Seguiu-se
um período de silêncio enquanto pensavam naquilo.
— Então, Mr. Gearson, onde é que eles escavariam para
entrar nesta caixa-forte? Perguntou Bosch por fim.
— Temos todos os tipos de ligações lá em baixo. Não
pensem que nós não pensamos nisto com frequência
quando estamos trabalhando lá em baixo. Estão vendo, o
crime perfeito é isso. Eu tenho pensado muito em coisas
deste gênero, especialmente desde que li essa história nos
jornais. Penso que se estão dizendo que o que eles querem
é entrar na caixa-forte, vão precisar fazer como eu disse:
entrar pela Robertson e depois passar para a linha da
Wilshire. Mas depois eu acho que eles passariam para um
dos túneis de serviço para ficarem longe das vistas. Os
túneis de serviço têm entre metro, metro e meio de largura.
São redondos. Há muito espaço para mover equipamento e
trabalhar. Ligam às linhas das artérias principais aos tubos
de drenagem das águas pluviais das ruas e aos sistemas
utilitários dos edifícios que ficam aqui. Voltou a pôr a mão
sob a luz e traçou as linhas menores de que estava falando
no mapa da DWP. — Se fizeram isto como deve ser,
continuou ele, — O que fizeram foi entrar pelo portão
próximo da autoestrada e transportar de carro o
equipamento até à Wilshire e depois seguiram para a sua
área alvo. Descarregaram o equipamento, esconderam-no
num desses túneis de serviço, como nós os chamamos, e
depois voltaram a levar os veículos para fora. Regressaram
a pé e começaram a trabalhar no túnel. Raios, eles podiam
trabalhar nisso durante cinco, seis semanas antes de nós
termos ocasião de ir verificar essa linha em particular.
Bosch continuava pensando que parecia tudo demasiado
simples.
— E quanto a estas outras linhas das águas das chuvas?
Perguntou ele, indicando Olympic e Pico no mapa. Havia
uma rede de cruzamentos dos túneis de serviço menores
que corriam para norte por baixo destes em direção à caixa-
forte. — E que tal utilizar um destes e subir por trás da
caixa-forte?
Gearson esticou o lábio inferior com um dedo e
respondeu:
— Boa ideia. Também temos estes. Mas a coisa é que
estas linhas não nos levam para tão perto da caixa-forte
como estas de Wilshire. Está vendo o que eu quero dizer?
Por que eles haveriam de escavar um túnel de cem metros
quando podem escavar um de trinta metros aqui.
Gearson gostava de ter audiência, da ideia de saber
mais do que os ternos e os uniformes em volta dele. Depois
de acabar o seu discurso, balançou nos calcanhares, com
uma expressão satisfeita estampada no rosto. Bosch sabia
que, muito provavelmente, o homem estava coberto de
razão em todos os pormenores.
— E quanto à remoção da terra? Perguntou Bosch. —
Estes tipos estão escavando um túnel através de terra,
rocha e cimento. Onde é que eles se veem livres disso?
Como?
— Bosch, Mr. Gearson não é um detetive, disse Rourke.
— Duvido que ele conheça todas as nuances de...
— Fácil, interrompeu Gearson. — Os chãos dos túneis
principais como Wilshire e Robertson têm uma gradação de
três graus para o centro. Há sempre água correndo pelo
centro, mesmo durante dias secos. Pode não estar
chovendo aqui em cima, mas há sempre água correndo lá
em baixo, sabem? Ficariam surpreendidos com a
quantidade. Ou são transbordos dos reservatórios ou da
utilização comercial, ou de ambos. Quando o seu
departamento dos bombeiros recebe uma chamada, para
onde é que pensam que vai a água quando eles acabam de
apagar o fogo? Por isso, aquilo que estou dizendo é que se
tiveram água suficiente, eles podem tê-la usado para
remover a terra ou o que você lhe quiser chamar.
— Serão toneladas, disse Hanlon, falando pela primeira
vez.
— Mas não são muitas ao mesmo tempo. Vocês
disseram que eles estão há vários dias escavando. Se
tiverem espalhado isso ao longo dos dias, a água corrente
podia ter se encarregado disso. Ora bem, se eles estão num
destes túneis de serviço, precisariam descobrir uma
maneira de arranjarem água que corresse dali para o cano
principal. Eu verificaria as bombas de incêndio desta área.
Se tiverem uma jogando água ou se houver algum relatório
de alguém ter aberto uma, já sabem, são os seus rapazes.
Um dos policiais fardados se inclinou para o ouvido de
Orozco e disse qualquer coisa. Orozco se inclinou para cima
do capô e levantou um dedo por cima do mapa. Depois o
desceu sobre uma linha azul.
— Tivemos uma bomba de incêndio vazando há duas
noites aqui.
— Alguém a abriu, disse o policial fardado que tinha
murmurado ao capitão, — E usou um alicate para cortar a
corrente que segura a tampa. Levaram a tampa e os
bombeiros demoraram uma hora para chegar lá com uma
substituta.
— Isso deve ter sido uma porção de água, disse
Gearson. — Deve ter dado conta de parte da remoção da
terra. Olhou para Bosch e sorriu. Bosch lhe retribuiu o
sorriso. Ficava satisfeito quando as peças do puzzle
começavam a se encaixar.
— Antes disso, me deixem ver, foi no sábado à noite,
tivemos um fogo colocado, disse Orozco. — Uma
butiquezinha atrás do Edifício da Bolsa, na Rincon.
Gearson olhou para o lugar que Orozco apontou no
mapa como sendo a localização da butique. Pôs o dedo no
lugar da localização da bomba de incêndio.
— A água destas duas coisas teve de correr para estes
três coletores de rua, aqui, aqui e aqui, disse ele movendo a
mão todo à vontade por cima do papel cinzento. — Estes
dois escoam para esta linha. O outro escoa para esta. Os
investigadores olharam para as duas linhas de drenagem.
Uma corria paralelamente à Wilshire, por trás do J. C. Stock
Building. A outra corria perpendicularmente à Wilshire, à
direita e ao lado do edifício.
— Seja ela qual for, estamos olhando para quê, um
túnel de trinta metros? Perguntou Eleanor Wish.
— Pelo menos, respondeu Gearson. — Se eles
conseguiram avançar direto. Podem ter encontrado
equipamentos subterrâneos ou rocha dura e terem de se
desviar um pedaço. Duvido que seja possível abrir um túnel
direto lá em baixo.
O perito da SWAT puxou pela manga de Rourke e os dois
se afastaram para longe do grupo e conferenciaram em
murmúrios. Bosch olhou para Eleanor e disse muito
baixinho:
— Eles não vão descer.
— O que quer dizer?
— Isto não é o Vietnam. Ninguém é obrigado a descer.
Se Franklin e o Delgado e mais outra pessoa qualquer estão
lá em baixo numa dessas linhas, não há nenhuma maneira
segura de entrar lá de surpresa. Eles têm todas as
vantagens. Saberiam que estávamos entrando. Ela estudou
o rosto dele, mas não disse nada. — Seria uma manobra
errada, continuou Bosch. —Sabemos que eles estão
armados e que, provavelmente, têm armadilhas montadas.
Sabemos que eles são assassinos.
Rourke voltou para o grupo reunido ao redor do carro e
pediu a Gearson para esperar num dos carros do FBI
enquanto ele acabava de falar com os investigadores. O
homem da DWP se afastou em direção ao carro de cabeça
baixa, desapontado por já não fazer parte do plano.
— Não vamos atrás deles, disse Rourke depois de
Gearson fechar a porta do carro. — É muito perigoso. Eles
têm armas, explosivos... Nós não podemos contar com o
elemento da surpresa. Tudo somado, teríamos perdas
pesadas... Por isso, vamos preparar uma armadilha.
Deixamos a coisa correr normalmente e depois estaremos
lá, à espera, em segurança, quando eles saírem. Nessa
altura, teremos a surpresa a nosso favor. Hoje à noite, a
SWAT vai fazer um reconhecimento ao longo da linha
Wilshire. Vamos pedir uns homens da DWP ao Gearson e
procurar o local de entrada deles. Depois, nos instalamos e
esperamos naquela que for mais bem localizada. O que for
mais seguro do nosso ponto de vista. Seguiu-se um curto
silêncio, interrompido por uma buzina na rua, antes de
Orozco protestar.
— Espere aí um minuto, espere um minuto!
Esperou até que todos os rostos estivessem virados
para ele. Exceto o de Rourke. Ele nem sequer olhou para
Orozco.
— Não podemos estar falando em ficarmos aqui
sentados, com os dedos metidos nos rabos, deixando que
esses tipos rebentem um caminho até à caixa-forte, disse
Orozco. — Deixá-los entrar e abrir umas duas centenas de
cofres e depois irem embora com toda a calma. A minha
obrigação é proteger a propriedade dos cidadãos de Beverly
Hills, que provavelmente, até são noventa por cento dos
clientes desse negócio. Não estou nisso.
Rourke dobrou o ponteiro da caneta, colocou-o no bolso
de dentro do casaco e só depois é que falou. Continuou a
não olhar para Orozco.
— Orozco, o seu protesto pode ficar registrado em ata,
mas nós não estamos lhe pedindo que alinhe conosco, disse
Rourke. Bosch reparou que além de não se dirigir a Orozco
pela patente, Rourke tinha abandonado toda a pretensão de
ser cortês. — Isto é uma operação federal, continuou
Rourke. — Você está aqui só por cortesia profissional. Além
disso, se a minha ideia estiver correta, eles vão abrir só um
cofre. Quando descobrirem que está vazio, cancelam a
operação e abandonam a caixa-forte.
Orozco estava vencido. O rosto dele demonstrava.
Bosch notou que não tinham lhe explicado muitos
pormenores da investigação. Teve pena dele, ali deixado a
secar por Rourke.
— Há coisas que não podemos discutir nesta altura,
disse Rourke. — Mas nós estamos convencidos de que o
alvo deles é apenas um dos cofres. Temos razão para
acreditar que ele agora já se encontra vazio. Quando os
bandidos entrarem na caixa-forte e abrirem esse cofre e
descobrirem que está vazio, nós estamos convencidos de
que irão embora à toda velocidade. Agora o nosso trabalho
é estarmos preparados para isso.
Bosch perguntou para consigo se a suposição de Rourke
estaria correta. Os ladrões iriam recuar? Ou pensariam que
tinham se enganado de cofre e continuariam abrindo-os, à
procura dos diamantes de Tran? Ou iriam saquear os outros
cofres com a esperança de roubarem o suficiente para
compensarem todo aquele trabalho com o túnel? Bosch não
sabia. Pelo menos, não tinha tanta certeza como Rourke,
mas a verdade é que sabia que o agente do FBI podia estar
só se armando para afastar Orozco.
— E se eles não recuarem? Perguntou Bosch. — E se
eles continuarem a arrombar?
— Nesse caso, teremos um longo fim-de-semana pela
frente, respondeu Rourke, — Porque vamos ficar esperando
que eles saiam.
— De qualquer maneira, você vai dar cabo do negócio,
disse Orozco apontando na direção do Stock Building. — Mal
se souber que alguém rebentou um buraco na caixa-forte
que eles têm em exposição ali naquela vitrine grande,
nunca mais terão a confiança do público. Ninguém voltará a
guardar os seus bens lá. Rourke olhou para ele
inexpressivamente. A súplica do capitão estava caindo em
saco furado. — Se podem apanhá-los depois do assalto,
porque não antes? Perguntou Orozco. — Por que não
abrimos aquele lugar, não pomos uma sirene tocando, não
fazemos bastante barulho e não pomos mesmo um carro-
patrulha lá na frente? Fazer qualquer coisa que os faça
saber que estamos aqui, que sabemos o que está
acontecendo. Isso vai assustá-los e eles fogem antes de
arrombarem a casa. Apanhamo-los e salvamos o negócio.
Se não os apanharmos, continuamos a salvar o negócio e
podemos sempre apanhá-los noutra altura.
— Capitão, disse Rourke, a falsa delicadeza outra vez
em ação. — Se deixar que eles saibam que estamos aqui,
tira a nossa única vantagem, a surpresa, e dá origem a um
tiroteio nos túneis e talvez até aqui em cima, nas ruas,
aonde eles não vão se preocupar com quem será ferido,
com quem morrerá. Incluindo eles mesmos e mais uns
inocentes que estejam passando. Nessa altura, como é que
explicamos ao público, e até mesmo a nós próprios, que
fizemos isto assim porque queríamos salvar um negócio?
Rourke esperou um segundo para que as suas palavras
fizessem efeito e depois continuou:
— Capitão, eu não vou arriscar na questão da segurança
nesta operação. Não posso. Estes homens estão lá em
baixo, não são de se assustarem. Eles matam. Que
saibamos, já foram duas pessoas, incluindo uma
testemunha. E isto só nesta semana. Nem pensar que os
vamos deixar escapar. Porra, nem pensar.
Orozco se inclinou por cima do capô e enrolou o seu
mapa. Enquanto fazia estalar um elástico em volta dele,
disse:
— Espero que não façam merda, meus senhores. Se
fizerem nem eu nem o meu departamento conteremos as
nossas críticas ou os pormenores daquilo que foi discutido
nesta reunião. Vou queimar a sua bunda em praça pública.
Boa-noite.
Deu meia volta e se dirigiu para o carro patrulha. Os
dois policiais fardados seguiram-no. As outras pessoas todas
se limitaram a assistir. Quando o carro-patrulha desceu a
rampa, Rourke disse:
— Bem, ouviram o homem. Não podemos fazer merda
nisto. Mais alguém quer sugerir alguma coisa?
— E que tal pormos gente na caixa-forte agora e
esperar que eles apareçam? Perguntou Bosch. Não pensara
naquilo a sério, mas resolveu atirar com a ideia tal como
tinha lhe ocorrido.
— Não, respondeu o homem da SWAT. — Se pusermos
pessoas na caixa-forte elas ficam encurraladas. Sem
opções. Sem saídas. Nem sequer deixaria que os meus
homens se oferecessem.
— Podiam ficar feridos com a explosão, disse Rourke. —
Não há maneira de sabermos onde ou quando é que os
criminosos vão aparecer. Bosch assentiu em silêncio.
Tinham razão.
— Podemos abrir a caixa-forte e entrar mal soubermos
que eles já estão lá dentro? Perguntou um dos agentes.
Bosch não conseguia se lembrar de se era Hanlon ou Houck.
— Sim, respondeu Eleanor Wish, — Há uma maneira de
anular a abertura retardada. Teríamos que ir buscar Avery, o
dono, e trazê-lo aqui.
— Segundo o que o Avery disse, parece que isso levaria
muito tempo, disse Bosch. —Demasiado lento. O Avery pode
desprogramá-la e abri-la, mas é uma porta de duas
toneladas que abre sob o seu próprio peso. Levaria pelo
menos meio minuto para abri-la. Talvez menos, mas os tipos
lá dentro continuariam a estar em vantagem. É o mesmo
risco do que lhes aparecer nos túneis.
— E uma explosão de luz? Sugeriu um dos agentes. —
Abrimos a porta da caixa-forte só um nadinha e atiramos lá
para dentro uma granada de luz. Depois entramos e
caçamo-os. Bosch e o homem da SWAT abanaram a cabeça
ao mesmo tempo
— Não. Por duas razões, disse o homem da SWAT. — Se
eles armadilharem os túneis, como pensamos que farão, a
explosão pode detonar as cargas. Podíamos ver o Wilshire
Boulevard ali fora afundar uns metros e nós não queremos
isso. Pensem só na papelada que teríamos de preencher.
Ninguém sorriu e continuou: — Em segundo lugar, nós
estamos falando de uma sala de vidro. A nossa posição lá
dentro seria muito vulnerável. Se tiverem um vigia, estamos
mortos. Pensamos que eles vão entrar com os rádios
desligados quando tiverem os explosivos preparados. Mas,
imaginemos que não fazem isso e o vigia os informa que
nós estamos lá. Eles podem estar preparados para nos
atirar alguma coisa enquanto nós estivermos jogando
qualquer coisa lá para dentro. Rourke acrescentou aquilo
que pensava:
— Não se preocupem com o vigia. Se nós colocarmos
uma equipe da SWAT nessa sala de vidro e eles vão ver na
televisão. Teremos todos os canais de LA com uma câmara
na calçada e o trânsito interrompido até Santa Monica. Seria
um verdadeiro circo. Por isso, esqueçam. A SWAT vai se
reunir com o Gearson, fazer o reconhecimento e descobrir
as saídas junto da autoestrada. Esperamos lá por eles e
apanhamo-los segundo as nossas condições. Ponto final. O
homem da SWAT assentiu e Rourke continuou: — A partir
desta noite, vamos ter a caixa-forte sob vigilância durante
as vinte e quatro horas do dia. Quero Wish e Bosch
concentrados no lado do edifício que está a caixa-forte.
Hanlon e Houck na Rincon Street de forma a poderem ver a
porta de entrada. Se der a ideia de que vai começar, quero
ser alertado para depois eu alertar a SWAT. Utilizem
telefones de rede fixa. Não sabemos se eles estão
monitorando as nossas frequências. Vocês, os que vão ficar
vigiando, têm de combinar um código para usarem no rádio.
Toda a gente entendeu?
— E se houver um alarme? Perguntou Bosch. — Já houve
três esta semana. Rourke pensou uns instantes e
respondeu:
— Tratem tudo de forma rotineira. Encontre-se com o
gerente de serviço, o Avery, ou lá quem for, à porta, voltem
a acionar o alerta e mandem-no embora. Vou entrar em
contato com o Orozco e dizer para mandar as patrulhas
caso haja alarme, mas que seremos nós que tomaremos
conta da situação.
— O Avery é quem vai receber a chamada, disse Eleanor
Wish. — Ele já sabe o que nós achamos que vai acontecer
aqui. E se ele quiser abrir a caixa-forte e dar uma olhadela
lá dentro?
— Não deixem. É simples. A caixa-forte é dele, mas a
vida dele estará correndo perigo. Nós podemos impedir isso.
Rourke olhou para os rostos à sua volta. Não havia mais
perguntas.
— Então, estamos combinados. Quero as pessoas em
posição daqui a noventa minutos. Isso dá tempo aos que
vão passar aqui a noite para comerem, mijarem e beberem
café. Wish me dê relatórios da situação, por linhas de terra,
à meia-noite e às seis da manhã. Entendido?
— Entendido.
Rourke e o homem da SAWT entraram no carro onde
Gearson estava esperando e desceram a rampa. Bosch,
Eleanor Wish, Hanlon e Houck combinaram um código para
usarem quando quisessem se comunicar via rádio.
Decidiram trocar os nomes das ruas da área sob vigilância
com os das ruas da baixa. A ideia era que se alguém
estivesse escutando a frequência de segurança 5, pensaria
que estava ouvindo os relatórios de uma vigilância na área
da Broadway e da First Street na baixa em vez de Wilshire e
Rincon Street em Beverly Hills. Também combinaram se
referir à caixa-forte como loja de penhores enquanto
estivessem se comunicando pelo rádio. Feito isso, os dois
conjuntos de investigadores se separaram, combinando
entrar em contato no início da vigilância. Mal o carro de
Hanlon e Houck começou a descer a rampa, Bosch, sozinho
com Eleanor pela primeira vez desde que os planos foram
preparados, perguntou o que ela pensava daquilo tudo.
— Não sei. Não gosto da ideia de permiti-los entrar na
caixa-forte e depois deixá-los à solta lá por baixo. Tenho as
minhas dúvidas de que a turma da SWAT consiga tratar de
tudo.
— Bem, creio que acabaremos por ficar sabendo.
Um carro subiu a rampa e se dirigiu para eles. As luzes
cegaram Bosch e, por um instante, ele se lembrou do carro
que os tinha tentado atropelar na noite anterior. Mas o carro
se desviou e parou. Eram Hanlon e Houck. A janela do lado
do passageiro estava aberta e Houck estendeu um grosso
envelope castanho para fora da janela.
— Correio, Bosch, disse o agente. — Esquecemos que
tínhamos de entregar esta coisa. Alguém do seu
departamento foi entregar isto no nosso departamento,
disse que você estava esperando disto, mas que não tinha
passado pela Wilcox para apanhar.
Bosch apanhou o envelope e segurou-o, mas manteve-o
afastado do corpo. Houck reparou no ar pouco seguro de
Bosch e disse:
— O tipo se chamava Edgar, um tira preto. Disse que
isso estava há dois dias na sua caixa de correio e que
achava que era capaz de ser importante. Disse que ia
mostrar uma casa a uma pessoa qualquer em Westwood e
que tinha resolvido entregar isso quando andava pela área.
Parece uma coisa legítima?
Bosch assentiu e os dois agentes foram embora. O
envelope pesado estava selado, mas o remetente era o
Arquivo dos Registos dos Serviços Militares dos EEUU em
Saint Louis. Rasgou uma das pontas do envelope e olhou lá
para dentro. Continha um dossiê cheio de papéis.
— O que é isso? Perguntou Eleanor.
— É o processo de Meadows. Tinha me esquecido que o
pedira. Pedi na segunda-feira antes de saber que vocês
estavam no caso. Bem, seja como for, já vi isto tudo. Atirou
o envelope para o banco traseiro do carro pela janela
aberta.
— Tem fome? Perguntou ela.
— Pelo menos, quero café.
— Conheço um lugar.
Bosch estava bebendo um café fumegante de uma
xícara de plástico que tinha trazido do restaurante, uma
casa italiana na Pico, por trás da Century City. Estava no
carro, de volta ao seu posto no segundo andar da garagem
de estacionamento no Wilshire Boulevard, do lado oposto à
caixa-forte. Eleanor Wish abriu a porta e entrou depois de
ter feito o telefonema da meia-noite para Rourke.
— Encontraram o jipe.
— Onde?
— O Rourke diz que a SWAT fez uma volta de
reconhecimento pelo esgoto das águas pluviais de Wilshire,
mas não descobriu sinais de intrusos ou de alguma entrada
para o túnel. Parece que o Gearson tinha razão. Estão
enfiados numa das linhas menores. Bem, seja como for, os
tipos da SWAT desceram para a bacia de drenagem junto da
autoestrada para prepararem a armadilha. Estavam
estudando três saídas dos túneis para se posicionarem
quando descobriram o jipe. Rourke disse que há um parque
de estacionamento num terreno abaixo, próximo da
autoestrada. Tem um jipe bege lá com um atrelado coberto.
Os três ATVs azuis estão dentro do atrelado.
— Ele vai arranjar um mandado?
— Sim, tem uma pessoa à procura de um juiz. Por isso,
vão arranjar. Mas não vão se aproximar do jipe enquanto
não tiverem acabado a operação. Pode acontecer de o plano
ter um deles saindo e apanhando os ATVs. Ou já ter alguém
aqui fora que vá levá-los para dentro.
Bosch assentiu com a cabeça e bebeu um gole de café.
Era a atitude mais inteligente. Lembrou-se que tinha um
cigarro ardendo no cinzeiro e atirou-o fora pela janela. Como
se adivinhasse o que ele estava pensando, ela disse:
— O Rourke disse que, pelo que eles conseguiram ver,
não há nenhum cobertor dentro do jipe. Mas se for o jipe
onde Meadows foi levado para o reservatório, ainda deve
haver fibras lá dentro como prova.
— E quanto ao desenho que o Sharkey viu na porta?
— O Rourke disse que não havia nenhum. Mas pode ter
havido e eles podem tê-lo tirado quando largaram o jipe ali.
Bosch depois de pensar uns segundos, perguntou:
— Não se incomoda ver como tudo está se encaixando
tão bem?
— Devia?
Bosch encolheu os ombros. Olhou para a parte de cima
da Wilshire. A calçada em frente da bomba de incêndio
estava vazia. Desde que tinham voltado do jantar, Bosch
nunca mais tinha visto o LTD branco, que ele estava
convencido que era um carro dos Assuntos Internos. Não
sabia se Lewis e Clarke andavam por perto ou tinham
desistido por aquela noite.
— Harry, o bom trabalho de detecção compensa quando
os casos se resolvem, disse Eleanor. — Quero dizer, ainda
nos falta muito para sairmos das trevas, mas acho que,
finalmente, temos algum controle sobre o que está
acontecendo. Bolas, a nossa visão disto tudo já está muito
melhor do que há três dias atrás. Por isso, por que se
preocupa quando algumas coisas começam a se encaixar?
— Há três dias o Sharkey ainda estava vivo.
— Bem, enquanto está assumindo as culpas disso, por
que não junta todas as outras pessoas que fizeram uma
escolha e acabaram mortas? Não pode alterar essas coisas,
Harry. E você não é um mártir.
— O que quer dizer com “escolha”? O Sharkey não
escolheu nada.
— Escolheu, sim. Quando escolheu as ruas, ele sabia
que podia morrer nas ruas.
— Não pode acreditar nisso. Ele não passava dum
garoto.
— Acredito que as merdas acontecem. Acredito que o
melhor que consegue fazer neste trabalho é chegar ao fim
sem prejuízos. Há pessoas que ganham e outras que
perdem. Felizmente, metade das vezes são os tipos bons
que ganham. Somos nós, Harry.
Bosch esvaziou a xícara e se deixou ficar sentado em
silêncio durante um pedaço. Tinham uma boa visão da
caixa-forte, instalada no meio da sala de vidro, como se
fosse um trono. Ali fora, à vista de toda a gente, polida e
brilhante sob as luzes fortes do teto, dizia ao mundo:
“Levem-me”, pensou ele. “E alguém ia levar. E nós vamos
deixar”. Eleanor apanhou o rádio, apertou duas vezes no
botão de transmissão e disse:
— Broadway Um para a Primeira, vocês estão me
ouvindo?
— Estamos ouvindo, Broadway. Alguma coisa? Era a voz
de Houck no receptor. Havia muito barulho de estática
porque as ondas de rádio ricocheteavam nos prédios altos
da área.
— Só verificando. Qual é a sua posição?
— Estamos a sul da porta da casa de penhores. Temos
uma visão desimpedida.
— Estamos a este. Conseguimos ver o... Desligou o
botão do microfone e se voltou para Bosch. — Esquecemo-
nos de um código para a caixa-forte. Tem alguma ideia?
Bosch abanou a cabeça, mas depois disse:
— Saxofone. Já vi saxofones pendurados nas vitrines das
casas de penhores. Instrumentos musicais. Montes deles.
Ela voltou a ligar o microfone.
— Desculpem First Street, tivemos um problema
técnico. Estamos a este da casa de penhores, temos o piano
da vitrine à vista. Não há atividade no interior.
— Mantenham-se acordados.
— É claro. Terminado, Broadway. Bosch sorriu e abanou
a cabeça.
— O que foi? Perguntou ela. — O que foi agora?
— Já vi instrumentos musicais nas casas de penhores,
mas nunca vi um piano. Quem vai pôr um piano no prego?
Era preciso um caminhão. Demos cabo do disfarce. Apanhou
o microfone, mas sem ligar disse: — First Street. Não é um
piano que está na vitrine. É um acordeom. Foi engano
nosso.
Ela lhe deu um murro no ombro e disse para esquecer o
piano. Ficaram num silêncio descontraído. Os trabalhos de
vigilância eram o pesadelo da existência de muitos
detetives. Mas nos seus quinze anos de carreira, Bosch
nunca se tinha importado de fazer vigilâncias. De fato,
muitas vezes até gostava quando tinha boa companhia. Ele
definia uma boa companhia não pela conversa, mas pela
falta dela. Quando não havia necessidade de conversar para
se sentir confortável, isso era a companhia certa. Bosch
pensou no caso e observou o trânsito que passava pela
frente da caixa-forte. Recapitulou os acontecimentos como
tinham acontecido, por ordem, do princípio até ao momento
atual. Reviu as cenas, ouviu os diálogos, uma e outra vez.
Achava que esta recapitulação dos fatos o ajudava muitas
vezes a decidir o passo seguinte. Aquilo que estava
remoendo nessa altura, passando vezes sem conta, como
se fosse um dente frouxo, com a língua por cima dele, era a
tentativa de atropelamento. O carro que tinha se atirado
para cima deles na noite anterior. Porquê? O que eles
sabiam naquela altura que os tornava assim tão perigosos?
Parecia uma ação estúpida, matar um policial e uma agente
federal. Por que tinham feito aquilo? Depois, o seu espírito
vagueou para a noite que tinham passado juntos depois de
todas as perguntas feitas pelos respectivos supervisores.
Eleanor estava assustada. Mais do que ele. E, enquanto a
abraçava na cama, tinha se sentido como se estivesse
acalmando um animal assustado. Abraçando-a e
acariciando-a enquanto ela respirava de encontro ao seu
pescoço. Não tinham feito amor. Tinham se limitado a se
abraçar. De certo modo, parecia mais íntimo.
— Está pensando na noite passada? Perguntou ela.
— Como é que sabe?
— Um palpite. Alguma ideia?
— Bem, acho que foi agradável. Acho que nós...
— Estava me referindo a quem tentou nos matar ontem
à noite.
— Oh! Não, não tenho nenhuma ideia. Eu estava
pensando no depois.
— Oh... Sabe Harry, ainda não agradeci, por ter ficado
comigo assim, sem esperar nada.
— Eu é que devia agradecer.
Voltaram a se embrenhar nos seus pensamentos.
Encostado à porta, com a cabeça apoiada no vidro, Bosch
raramente desviava os olhos da caixa-forte. O trânsito no
Wilshire Boulevard era pouco, mas contínuo. Pessoas que se
dirigiam ou regressavam dos clubes na Santa Monica
Boulevard ou em volta da Rodeo Drive. Provavelmente,
havia uma première no Academy Hall ali perto. Bosch tinha
a impressão que todas as limusines de L. A. estavam
trabalhando no Wilshire Boulevard naquela noite. Carros
compridos, de todas as marcas e cores passavam um
seguindo ao outro. Moviam-se com tal suavidade que
pareciam flutuar. Eram lindos e intrigantes com as suas
janelas escuras. Como mulheres exóticas com óculos de sol.
“Um carro construído só para esta cidade”, pensou Bosch.
— Meadows já foi enterrado? A pergunta surpreendeu-o.
Perguntou para consigo o que a teria levado a falar daquilo.
— Não, respondeu. — Será na segunda-feira, no
cemitério dos veteranos.
— Um funeral no Memorial Day, parece muito
apropriado. Quer dizer que a sua vida de crime não o
desqualificou para ser levado para um solo tão sagrado?
— Não. Ele prestou serviço no Vietnam. Guardaram um
espaço para ele. Provavelmente, também há um lá para
mim. Por que está perguntando isso?
— Não sei. Só estava pensando. Vai?
— Se não estiver aqui sentado vigiando esta caixa-
forte...
— Será simpático da sua parte. Sei que ele significou
qualquer coisa para você. Num dado momento da sua vida.
Ele deixou cair o assunto, mas ela acrescentou passado uns
instantes: — Harry, me fale daquilo que disse no outro dia.
O que queria dizer?
Ele desviou os olhos da caixa-forte pela primeira vez
para olhar para Eleanor. O rosto dela estava na escuridão,
mas os faróis de um carro que passava na rua iluminou-a
por uns instantes e viu que ela tinha os olhos pousados
nele. Voltou a olhar para a caixa-forte.
— Não há nada para contar, a sério. É só que nós
chamávamos a um dos intangíveis.
— Intangíveis?
— Não havia um nome para isso, por isso tivemos que
inventar um. Era a escuridão, o vazio húmido que sentíamos
quando estávamos lá em baixo, sozinhos naqueles túneis.
Era como se estivéssemos num lugar onde nos sentíssemos
mortos e enterrados na escuridão. Mas continuássemos
vivos. E estávamos assustados. A nossa própria respiração
parecia ecoar na escuridão, suficientemente alta para nos
denunciar. Pelo menos, era o que nós pensávamos. Não sei.
É difícil de explicar. Era apenas. Ela deixou passar algum
tempo e depois disse:
— Acho que ir ao funeral é simpático.
— Há algum problema?
— O que quer dizer?
— Aquilo que disse. A maneira como está falando. Não
parece bem desde ontem à noite. Como se alguma coisa...
Não sei, esquece.
— Eu também não sei Harry. Sabe, depois da adrenalina
desaparecer, acho que fiquei cheia de medo. Fez-me
começar a pensar nas coisas.
Bosch assentiu com a cabeça, mas não disse nada. Os
seus pensamentos derivaram para uma ocasião no
Triângulo, quando uma companhia que tinha sofrido
pesadas baixas dos atiradores furtivos, tropeçou na entrada
para uma rede de túneis. Bosch, Meadows e um par de
outros ratos dos túneis chamados Jarvis e Harahan foram
largados numa LZ vizinha, escoltados até ao buraco. A
primeira coisa que fizeram foi colocar dentro do buraco dois
foguetes de fumaça LZ, um azul e outro vermelho, e
empurrar a fumaça para dentro com uma ventoinha Mighty
Mite, para descobrirem as outras entradas dos túneis.
Passados muito pouco tempo começaram a aparecer
colunas de fumaça de uma dúzia de lugares, numa área de
duzentos metros e em todas as direções. A fumaça estava
saindo dos buracos das aranhas que os atiradores furtivos
usavam como posições para dispararem ou para entrarem
ou saírem de dentro dos túneis. Havia tantos que a selva
estava começando a ficar negra com a fumaça. Meadows
estava doidão. Colocou uma fita-cassete no reprodutor
portátil que trazia sempre com ele e começou a tocar
“Purple Haze” de Hendrix aos berros para dentro do túnel.
Para Bosch, além dos seus sonhos era uma das recordações
mais vivas da guerra. Depois daquilo nunca mais tinha
gostado de rock and roll. A energia sacudida da música lhe
recordava demasiado a guerra.
— Alguma vez foi ver o Memorial? Perguntou Eleanor.
Não precisou dizer a qual estava se referindo. Só havia um
verdadeiro, o de Washington. Mas depois, Bosch se lembrou
da comprida réplica negra que tinha visto instalar no
cemitério próximo do edifício federal.
— Não, respondeu ele passado um tempo. — Nunca fui.
Depois do ar da selva ter clareado e a fita de Hendrix
ter acabado, os quatro entraram no túnel enquanto os
soldados restantes da companhia se sentavam em cima das
mochilas para comerem e esperarem. Uma hora depois, só
Bosch e Meadows tinham saído. Meadows trazia consigo
três escalpos. Levantou-os para os tropas da superfície os
poderem ver e gritou:
— Estão olhando para o irmão de sangue pior de todos.
E foi assim que o nome apareceu. Mais tarde
descobriram Jarvis e Harahan nos túneis. Tinham caído em
armadilhas punji. Estavam mortos. Eleanor disse:
— Eu fui visitá-lo quando estava em DC. Não tinha
conseguido me obrigar a ir no dia da dedicatória em oitenta
e dois. Mas, alguns anos depois, consegui finalmente tomar
coragem. Queria ver o nome do meu irmão. Pensei que
talvez isso me ajudasse a compreender as coisas, o que
tinha lhe acontecido.
— E ajudou?
— Não. Ainda tornou tudo pior. Fez-me sentir zangada.
Deixou esta necessidade de justiça, se isto faz algum
sentido. Queria justiça para o meu irmão.
O silêncio voltou a encher o carro e Bosch voltou a
encher a xícara de café. Estava começando a sentir os
efeitos da cafeína, mas não conseguia parar. Estava viciado.
Viu um par de bêbados que cambaleavam na rua junto da
janela de vidro à frente da caixa-forte. Um dos homens
levantou as duas mãos no ar como se estivesse tentando
medir o tamanho da enorme porta da caixa-forte. Passado
um tempo, se afastaram. Bosch pensou na raiva que
Eleanor devia ter sentido por causa do irmão. A impotência.
Pensou na sua própria raiva. Ele conhecia esses
sentimentos, talvez não com o mesmo grau, mas de uma
perspectiva diferente. Toda a gente que fora tocada pela
guerra conhecia uma parte desses sentimentos. Nunca
conseguira resolvê-los e não tinha certeza de querer
resolver. A raiva e a tristeza lhe davam qualquer coisa que
era melhor do que o completo vazio. Era isso que Meadows
sentia? Gostaria de saber. O vazio. Seria isso que o fizera
saltar de emprego para emprego, de agulha para agulha,
até ter sido final e fatalmente consumido nesta última
missão? Bosch decidiu que iria ao funeral de Meadows, lhe
devia isso.
— Sabe aquilo que me contou no outro dia sobre aquele
tipo, o assassino Dollmaker? Perguntou Eleanor.
— O que tem?
— Os Assuntos Internos, tentaram arranjar um problema
dizendo que você o executou?
— Sim, já lhe contei. Eles tentaram. Mas não era
verdade. A única coisa que conseguiram fazer foi me dar
uma suspensão por ter quebrado os procedimentos.
— Bem, só queria dizer que mesmo que eles tivessem
razão, estavam errados. Seria justiça, aqui na minha
maneira de ver. Sabia o que iria acontecer com um tipo
como esse. Olhe para o Caçador Noturno. Ele nunca irá
parar na câmara de gás. Ou então, só daqui a vinte anos.
Bosch estava se sentindo desconfortável. Só costumava
pensar nos seus motivos e nas suas ações no caso
Dollmaker quando estava sozinho. Nunca tinha falado sobre
isso com ninguém. Não estava entendendo onde ela queria
chegar com aquilo. Ela disse:
— Sei que se fosse verdade nunca poderia admitir, mas
acho que, quer tenha sido consciente ou
inconscientemente, você tomou uma decisão, você fez uma
escolha. Queria fazer justiça por todas aquelas mulheres, as
vítimas dele. E talvez também pela sua mãe.
Chocado, Bosch se voltou para ela e estava quase lhe
perguntando como ela sabia da mãe dele e como tinha se
lembrado de fazer uma relação entre ela e o caso
Dollmaker. Mas, de repente, se recordou dos arquivos.
Provavelmente estava lá, em algum lugar. Quando tinha se
candidatado ao departamento, tivera de responder num
formulário qualquer se ele ou alguém da sua família já fora
vítima de um crime. Tinha ficado órfão aos onze anos, tinha
ele escrito, quando a mãe fora encontrada estrangulada
num beco junto do Hollywood Boulevard. Não precisara
dizer qual era o modo de vida dela. O local e o crime já
diziam o suficiente. Quando recuperou a calma, Bosch
perguntou a Eleanor aonde ela queria chegar.
— A lado nenhum... Respondeu ela. — Só que... Bem eu
respeito isso. Se fosse eu, gostaria de ter feito a mesma
coisa, acho eu. Espero que conseguisse ser suficientemente
corajosa. Bosch olhou para ela, a escuridão escondendo os
rostos de ambos. Já era tarde e não passava nenhum farol
de carro para mostrar um ao outro.
— É melhor ficar com o primeiro turno de sono. Eu bebi
demasiado café. Ela não respondeu. Ele se ofereceu para ir
buscar um cobertor que tinha no porta-malas, mas ela
recusou.
— Alguma vez ouviu o que o J. Edgar Hoover disse sobre
a justiça?
— Provavelmente, disse uma porção de coisas, mas não
me lembro de nenhuma assim de repente.
— Ele disse que a justiça é apenas um incidente da lei e
da ordem. Acho que ele tinha razão.
Não disse mais e, passado um tempo, Bosch ouviu a
respiração dela se tornar mais funda e prolongada. Quando,
muito raramente, passava um carro, ele olhava para o rosto
dela quando a luz a iluminava. Dormia como uma criança,
com a cabeça encostada às mãos. Abriu a janela e acendeu
um cigarro. Fumou enquanto perguntava para consigo se
podia ou queria se apaixonar por ela e ela por ele. Estava
excitado e angustiado com aquela ideia, tudo ao mesmo
tempo.
 
CAPÍTULO 7
Sábado, 26 de maio
 
A madrugada cinzenta apareceu por cima da rua e
encheu o carro com uma luz fraca. A manhã também trouxe
com ela uma chuva miudinha que molhou a rua e deu
origem a uma mancha de condensação na metade inferior
das janelas do Beverly Hills Safe & Lock. Era a primeira
chuva de qualquer tipo há vários meses, tanto quanto Bosch
conseguia se lembrar. Eleanor Wish dormia e ele observou a
caixa-forte: as luzes de teto ainda cintilavam no remate de
aço cromado e polido.
Passava das seis horas, mas Bosch tinha se esquecido
da chamada de controle para Rourke e deixou Eleanor
dormir. De fato, durante a noite não a tinha acordado para
poder dormir durante o seu turno. Não se sentia cansado.
Houck contatou pelo rádio às três e meia para se certificar
de que havia alguém acordado. Depois disso, não houvera
mais interrupções nem atividade na sala da caixa-forte.
Durante o resto da noite, Bosch pensara alternadamente em
Eleanor Wish e na caixa-forte que estava vigiando. Estendeu
a mão para a xícara em cima do console e tentou descobrir
nem que fosse um gole de café frio, mas estava
completamente vazia. Atirou-a por cima do banco para o
chão. Ao fazê-lo reparou na encomenda de Saint Louis no
assento de trás. Esticou-se para trás e apanhou o envelope
castanho. Tirou o grosso monte de papéis para fora e
começou a folheá-lo distraidamente, levantando os olhos
para a caixa-forte a intervalos de poucos segundos.
A maior parte dos registros militares de Meadows já ele
tinha visto. Mas rapidamente notou de que havia vários que
não estavam no dossiê do FBI que Eleanor tinha lhe dado.
Este era muito mais completo. Havia uma fotocópia do
recrutamento e do exame médico. Também havia relatórios
médicos de Saigon. Tinha recebido tratamento por duas
vezes para a sífilis e uma para uma reação de stress agudo.
Enquanto folheava os documentos, parou quando os seus
olhos caíram numa cópia de uma carta de duas páginas de
um congressista de Louisiana chamado Noone. Curioso,
Bosch começou a ler. Estava datada de 1977 e era dirigida a
Meadows para a embaixada de Saigon. A carta com o selo
oficial do congressista, agradecia a Meadows a sua
hospitalidade e ajuda durante a recente visita para
recolhimento de fatos pelo congressista. Noone referia que
fora uma surpresa agradável encontrar um conterrâneo de
New Ibéria naquele país estranho. Bosch perguntou para
consigo se seria de fato uma coincidência assim tão grande.
Provavelmente, Meadows fora destacado para a segurança
do congressista a fim de criarem uma boa relação entre eles
e o legislador poder voltar para Washington com uma
opinião muito boa do pessoal e do moral no sudeste da
Ásia. Não há coincidências.
A segunda página da carta dava os parabéns a
Meadows pela sua excelente carreira e se referia os bons
relatórios que Noone recebera a respeito de Meadows da
parte do comandante deste. Bosch continuou a ler. Era
mencionado o envolvimento de Meadows na anulação de
uma tentativa de entrada ilegal na embaixada durante a
estadia do congressista. Um tenente Rourke tinha fornecido
os pormenores dos atos heroicos de Meadows à comitiva
oficial do congressista. Bosch sentiu um frêmito por baixo
do coração, como se o sangue estivesse escoando lá de
dentro. A carta terminava com uma conversa sem
importância sobre a paróquia da terra. Havia ainda a grande
e floreada assinatura do congressista e uma nota
datilografada no canto esquerdo da margem: Ce: Divisão de
Registos, Exército EU, Washington DC. Tenente John H.
Rourke, Embaixada Americana, Saigon,VN. Dalily Iberian; à
atenção do editor de notícias.
Bosch ficou olhando para a segunda página durante
muito tempo sem se mover ou respirar. Na realidade,
pensou que estava começando a sentir uma sensação de
náusea e limpou a testa com a mão. Tentou se recordar se
já teria ouvido o nome intercalar de Rourke ou a inicial. Não
conseguia se lembrar. Mas não tinha importância. Não havia
dúvida. Não ha coincidências. O pager de Eleanor tocou,
sobressaltando os dois como se fosse um tiro. Ela se
endireitou no assento e começou revolvendo a carteira à
procura do pager.
— Oh, meu Deus! Que horas são? Perguntou ela ainda
desorientada. Ele disse que eram seis e vinte e só nessa
altura se lembrou de que deviam ter contatado com Rourke
vinte minutos antes. Voltou a enfiar a carta no montão de
papéis e os colocou dentro do envelope. Atirou-o para o
banco de trás.
— Tenho de ir telefonar, disse Eleanor.
— Ei, espera uns minutos até acordar, replicou Bosch
muito depressa. — Eu telefono. De qualquer maneira, tenho
de descobrir um banheiro e vou buscar café e água. Abriu a
porta do carro e saiu antes de ela ter tempo para protestar
contra a ideia.
— Harry, porque me deixou dormir? Perguntou ela.
— Não sei. Qual é o número dele?
— Eu devia lhe telefonar.
— Deixe que eu ligo. Qual é o número?
Ela lhe deu o número e Bosch caminhou até à esquina e
depois percorreu a curta distância até ao restaurante aberto
vinte e quatro horas por dia, chamado Darlings. Fez todo o
caminho completamente atordoado, ignorando os
vagabundos que tinham saído com o sol, tentando absorver
a ideia de que era Rourke quem estava dentro do esquema.
O que ele estava fazendo? Havia uma parte que faltava e
que Bosch não conseguia descobrir. Se Rourke era o insider,
então por que ele havia autorizado a montar a vigilância na
caixa-forte? Queria que a sua gente fosse apanhada? Viu os
telefones públicos em frente do restaurante.
— Está atrasada, disse Rourke atendendo ao telefone no
meio do primeiro toque.
— Esquecemos.
— Bosch? Onde está Wish? Ela devia telefonar.
— Não se preocupe com isso, Rourke. Ela está vigiando
a caixa-forte como é a sua obrigação. O que você está
fazendo?
— Tenho esperado ter notícias antes de ir para aí. Vocês
adormeceram ou quê? O que está acontecendo aí?
— Não está acontecendo nada. Mas você já sabia, não é
verdade?
Seguiu-se um silêncio durante o qual um velho
vagabundo se aproximou da cabine telefônica e pediu
dinheiro a Bosch. Bosch pousou a mão no peito do homem e
afastou-o com um empurrão firme.
— Ainda aí está, Rourke? Perguntou para o telefone.
— O que quis dizer? Como eu sei o que está
acontecendo aí se vocês não ligam como estava
combinado? E você sempre com essas insinuações veladas.
Bosch, eu não consigo entendê-lo.
— Deixe lhe perguntar uma coisa. Pôs mesmo gente nas
saídas dos túneis, ou aquela planta e o seu ponteiro e o tipo
da SWAT foram só fachada?
— Chame a Wish ao telefone. Você não sabe o que está
dizendo.
— Lamento, ela não pode vir ao telefone neste
momento.
— Bosch eu estou lhe dando ordem para regressar. Há
qualquer coisa errada. Você passou toda a noite fora com
esta coisa. Acho que você devia... Não, eu vou mandar duas
pessoas descansadas para aí. Vou precisar telefonar ao seu
tenente e...
— Você conhecia o Meadows.
— O quê?
— Aquilo que eu disse. Você conhecia o Meadows. Tenho
o processo dele, homem. O processo completo. Não a
versão censurada que você deu à Wish para me dar. Você
foi o CO dele na embaixada de Saigon. Eu sei. Mais silêncio.
Depois:
— Eu fui CO de uma porção de gente, Bosch. Não
conheci todos. Bosch abanou a cabeça.
— Isso é muito fraco, tenente Rourke. Muito fraco
mesmo. Isso foi pior do que se limitar a reconhecer o fato.
Vou lhe dizer uma coisa, até à vista.
Bosch desligou e entrou no Darlings onde pediu dois
cafés e duas águas minerais. Ficou próximo da caixa
registradora esperando que a jovem tratasse do pedido e
olhando para a rua pela janela. A única coisa em que
conseguia pensar era em Rourke. A jovem veio para a caixa
registradora com o pedido numa caixa. Pagou, deu uma
gorjeta e voltou para a cabine telefônica. Bosch voltou a
ligar para o número de Rourke sem mais nenhuma intenção
para além de ver se ele estava ao telefone ou se já saíra.
Desligou no décimo toque. Depois ligou para a central de
Hollywood e pediu ao operador para ligar para a central do
FBI e perguntar se eles tinham uma equipe da SWAT
trabalhando na área de Wilshire ou nas imediações de
Beverly Hills e se precisavam de ajuda. Enquanto esperava,
tentou entender o esquema de Rourke. Abriu um dos cafés
e bebeu um gole.
O operador voltou à linha com a confirmação de que o
FBI tinha uma operação de vigilância da SWAT no distrito de
Wilshire. Não precisavam de reforços. Bosch agradeceu e
desligou. Agora estava convencido que sabia o que Rourke
estava fazendo. O que acontecia é que não havia ninguém
tentando arrombar a caixa-forte. A cilada na caixa-forte era
exatamente isso, uma cilada. A caixa-forte era um
chamariz. Bosch pensou na forma como ele tinha deixado
Tran seguir o seu caminho depois de tê-lo seguido até à
caixa-forte. O que ele fizera fora forçar o segundo capitão a
se mostrar, com os seus diamantes e dar oportunidade ao
Rourke para caçá-lo. Bosch fizera o jogo dele. Quando Bosch
voltou para o carro, viu que Eleanor estava lendo o dossiê
de Meadows. Ainda não tinha chegado à carta do
congressista.
— Onde esteve? Perguntou ela bem-humorada.
— O Rourke estava cheio de perguntas. Tirou-lhe o
dossiê das mãos e disse: — Há aqui uma coisa que quero
que você veja. Onde arranjou o dossiê do Meadows que me
mostrou?
— Não sei. O Rourke me deu. Porquê? Encontrou a carta
e entregou-a sem dizer nada.
— O que é isto? Mil novecentos e setenta e três?
— Leia. Isto é o dossiê do Meadows, aquele que eu pedi
para copiarem e mandarem de Saint Louis. Não há nenhuma
carta igual a esta no dossiê que o Rourke entregou para me
dar. Ele limpou-o. Leia, e vai entender porquê.
Deu uma olhada na porta da caixa-forte. Não estava
acontecendo nada, nem ele esperava que estivesse. Depois
a observou enquanto ela lia. Ela ergueu uma sobrancelha
enquanto dava uma vista de olhos às duas folhas, sem ver o
nome.
— Sim, então ele foi uma espécie de herói, é o que diz
aqui. Não vejo... Os olhos se arregalaram quando chegou ao
fim. — Com conhecimento ao tenente John Rourke.
— Uh-uh. Não notou a primeira referência. Apontou para
a frase que identificava Rourke como CO de Meadows. — A
toupeira. O que acha que devíamos fazer?
— Não sei. Tem certeza? Isto não prova nada.
— Se fosse uma coincidência ele devia ter dito que
conhecia o tipo, esclarecer a situação. Como eu fiz. Eu
informei. Ele não, porque não queria que se soubesse desta
conexão. Perguntei-lhe quando falei com ele ao telefone.
Mentiu. Não sabia que tínhamos isto.
— Agora ele sabe que você sabe?
— Exatamente. Não sei o que ele pensa que eu sei.
Desliguei o telefone na cara dele. A pergunta agora é: o que
fazemos em relação a isto? Provavelmente, estamos só
perdendo o nosso tempo aqui. Tudo isto não passa de uma
charada. Ninguém vai entrar naquela caixa-forte.
Provavelmente, despacharam o Tran depois de ele ter ido
buscar os diamantes. Levámo-lo direitinho ao matadouro.
Nesse momento notou que vai ver o LTD branco
pertencia aos ladrões e não a Lewis e Clarke. Eles tinham
seguido Bosch e Eleanor até ao Tran.
— Espera um minuto, disse Eleanor. — Não sei. E os
alarmes durante esta semana toda? A bomba de incêndio e
o fogo posto? Tem que estar acontecendo tal como nós
pensamos.
Olharam os dois para a caixa-forte. A chuva tinha
parado, o sol já tinha nascido por completo e fazia com que
a porta de aço refulgisse. Finalmente, Eleanor falou.
— Acho que temos de arranjar ajuda. Temos o Hanlon e
o Houck sentados do outro lado do banco e a SWAT, a não
ser que isso também faça parte da charada do Rourke.
Bosch lhe disse que verificara a vigilância da SAWT e que
ficara sabendo que eles estavam de fato no local.
— Então o que o Rourke está fazendo? Perguntou ela.
— Apertando em todos os botões.
Andaram à volta daquilo durante alguns minutos e
acabaram por resolver chamar Orozco da polícia de Beverly
Hills. Primeiro, Eleanor contatou Hanlon e Houck. Bosch
queria que eles se mantivessem nas suas posições.
— Ei, rapazes, estão acordados? Perguntou ela para o
Motorola.
— Com dificuldade. Sinto-me como aquele tipo preso no
carro no viaduto logo depois do terremoto de Oakland.
Aconteceu alguma coisa?
— Não, estávamos só verificando. Como está a porta da
frente?
— Ninguém bateu durante toda a noite. Ela desligou e
ficaram uns instantes em silêncio antes de Bosch se virar
para abrir a porta e ir telefonar a Orozco. Parou e se voltou
para ela outra vez.
— Ele morreu, disse.
— Quem morreu?
— O tipo no viaduto.
Naquele preciso momento houve uma pancada que
balançou ligeiramente o carro. Não foi exatamente um
barulho, mas uma vibração, um impacto, não muito
diferente do primeiro balanço de um tremor de terra. Não
houve mais vibrações. Mas, passado um ou dois segundos,
se ouviu um alarme. O toque, forte e nítido, vinha da
Beverly Hills Safe & Lock Company. Bosch se sentou muito
direito, olhando para a caixa-forte. Não se via nenhuma
indicação de intrusos. Quase imediatamente, o rádio
crepitou com a voz de Hanlon.
— Temos uma campainha. Qual é o nosso plano de
ação? Nem Bosch nem Eleanor responderam de imediato à
chamada. Estavam olhando para a caixa-forte,
completamente abismados. Rourke tinha deixado que os
seus homens caíssem direitinhos numa armadilha. Pelo
menos, era o que parecia.
— Filho da puta! Exclamou Bosch. — Eles estão lá
dentro. Diga ao Hanlon e ao Houck para ficarem quietos até
recebermos ordens, disse.
— E quem vai dar as ordens? Perguntou Eleanor. Bosch
não respondeu. Estava pensando no que acontecia na caixa-
forte. Por que razão Rourke teria levado os seus homens
para uma cilada?
— Pode não ter conseguido avisá-los, dizer que os
diamantes já não estavam mais lá e que nós estávamos
aqui em cima, disse ele. — Quero dizer, há vinte e quatro
horas atrás nós não sabíamos da existência deste lugar nem
o que estava acontecendo. Se calhar, quando descobrimos,
já era tarde. Eles já tinham avançado muito lá por baixo.
— Por isso, eles estão agindo conforme tinham
planejado, disse Eleanor.
— Se tiverem feito o trabalho de casa eles vão estourar
primeiro o cofre do Tran, se souberem qual deles é. Vão
descobrir que está vazio e depois? O que eles farão? Cavar,
ou rebentar com mais cofres até conseguirem colocar a mão
em coisas suficientes para fazerem com que tudo valesse a
pena?
— Acho que se vão se mandar, respondeu ela. — Penso
que quando eles abrirem o cofre do Tran e não encontrarem
os diamantes, vão notar que há qualquer coisa que não está
certa e caem fora. Quer dizer que não temos muito tempo.
Calculo que eles vão ter tudo a postos na caixa-forte, mas
só vão começar a furar quando tivermos reativado o alarme
e desaparecido da cena. Podemos atrasar um bocadinho a
reativação, mas não demasiado, senão eles podem ficar
desconfiados e fugir, à procura da nossa gente e prontos
para atacá-los nos túneis. Bosch saiu do carro e se voltou
para olhar Eleanor.
— Apanhe o rádio. Diga a esses tipos para ficarem
quietos, depois mande uma mensagem aos homens da
SWAT. Diga que pensamos que há pessoas dentro da caixa-
forte.
— Vão querer saber porque não é o Rourke que está
falando com eles.
— Pense em qualquer coisa. Diga que não sabe onde
está Rourke.
— Aonde vai?
— Vou me encontrar com o carro patrulha que vai
responder ao alarme. Vou lhe dizer para chamarem Orozco.
Bateu com a porta e desceu a rampa da garagem. Eleanor
começou a fazer os contatos via rádio.
Quando Bosch se aproximou da Beverly Hills Stock &
Lock Company, tirou a carteira com o distintivo do bolso,
dobrou-a para trás e prendeu-a no bolso do peito do casaco.
Virou a esquina da sala de vidro e correu para os degraus da
entrada no preciso momento em que um carro patrulha de
Beverly Hills parava, com as luzes faiscando, mas sem
sirene. Os patrulheiros saíram, desenfiando os cacetes dos
tubos de PVC das portas e enfiando-os depois nas argolas
dos cinturões. Bosch se apresentou, disse o que estava
fazendo e pediu para enviarem uma mensagem ao capitão
Orozco o mais depressa possível. Um dos policiais disse que
o gerente, um tipo chamado Avery, estava sendo chamado
para vir desligar o alarme depois que a polícia revistasse o
local. Tudo rotina. Disseram que já conheciam o sujeito, era
o terceiro alarme em que foram chamados nessa semana.
Também informaram que já tinham ordens para informarem
Orozco de todas as chamadas que houvesse daquele local,
fosse qual fosse a hora.
— Quer dizer que estas chamadas não eram falsos
alarmes? Perguntou o que se chamava Onaga.
— Não temos certeza, respondeu Bosch. — Mas
queremos tratar esta como se fosse falso alarme, o gerente
é chamado, ele e vocês voltam a acionar o alarme e cada
um vai à sua vida. OK? Tudo muito calmo e descontraído.
Nada de invulgar.
— De acordo, disse o outro policial. O nome da placa
presa no bolso dizia Johnston. Segurando o cacete preso no
cinto, deu uma corrida até ao carro para ligar a Orozco.
— Aqui temos o nosso Mr. Avery, disse Onaga.
Um Cadillac branco parou suavemente junto da calçada
atrás do carro-patrulha de Beverly Hills. Avery III, que vestia
uma camisa esportiva cor-de-rosa e jeans, saiu do carro e
veio encontrá-los. Reconheceu Bosch e cumprimentou-o
pelo nome.
— Houve um arrombamento?
— Mr. Avery, nós pensamos que é capaz de haver
qualquer problema, mas não sabemos. Precisamos de
tempo para investigar. O que queremos que o senhor faça é
abrir o escritório e dar uma volta como fez das outras vezes
em que os alarmes dispararam no princípio desta semana.
Depois, volte a ligar o alarme e feche tudo outra vez.
— Só isso? E se...
— Mr. Avery, o que nós queremos que o senhor faça
depois é entrar no carro e ir embora como costuma fazer,
como se fosse voltar para casa. Mas quero que dê a volta
naquela esquina e que vá até ao Darlings. Entre e tome um
café. Eu, ou vou lá encontrar consigo para dizer o que está
acontecendo, ou mando-o chamar. Quero que se
descontraia. Nós podemos resolver qualquer situação que
venha a surgir aqui. Temos outras pessoas investigando,
mas, por uma questão de aparências, queremos fazer com
que isto passe como mais outro falso alarme.
— Estou vendo, respondeu Avery tirando um porta-
chaves do bolso. Aproximou-se da porta e abriu-a. — E a
propósito, isto que está tocando não é o alarme da caixa-
forte. É o alarme exterior que é acionado pelas vibrações na
janela da sala da caixa-forte. Eu sei. Tem um som diferente,
está vendo?
Bosch deduziu que os homens nos túneis tinham
desativado o sistema de alarme da caixa-forte sem terem
notado que o alarme exterior era um sistema diferente.
Onaga e Avery entraram e Bosch entrou atrás deles.
Enquanto Harry estava parado na entrada à procura de
fumaça e sem ver nenhuma, cheirando o ar à procura de
cordite e sem sentir o cheiro dela, entrou Johnston. Bosch
levou o dedo aos lábios para avisar o agente que não devia
gritar por cima do barulho do alarme. Johnston assentiu com
a cabeça, pôs as mãos em volta da boca encostando-a à
orelha de Bosch e disse que Orozco estaria ali dentro de
vinte minutos, no máximo. Morava no Valley. Bosch
concordou, esperando que fosse suficientemente depressa.
O alarme foi desligado e Avery e Onaga saíram do escritório
de Avery e avançaram para a entrada onde Bosch e
Johnston esperavam. Onaga olhou para Bosch e abanou a
cabeça indicando que não havia nada anormal.
— Costuma ir verificar a sala da caixa-forte? Perguntou
Bosch.
— Só costumamos dar uma vista de olhos, respondeu
Avery. Dirigiu-se para a máquina do raio-X e ligou-a
explicando que levava cinquenta segundos para aquecer.
Deixaram passar o tempo sem falar. Por fim, Avery pousou a
mão no leitor. Este leu-a e aprovou a estrutura óssea e a
fechadura da primeira porta da armadilha se abriu.
— Uma vez que não tenho o meu guarda dentro da sala
da caixa-forte, tenho de desligar a fechadura da segunda
porta, disse Avery. — Cavalheiros, se não se importam,
façam o favor de não olhar quando entrarmos.
Os quatro homens entraram na divisória minúscula e
Avery apertou uns botões, marcando a combinação da
fechadura da segunda porta. Esta se abriu com um estalido
e eles entraram na sala da caixa-forte. Não havia nada para
ver a não ser aço e vidro. Bosch se aproximou da porta da
caixa-forte e encostou o ouvido, mas não ouviu nada.
Dirigiu-se para a parede de vidro e olhou para o Wilshire
Boulevard. Conseguiu ver que Eleanor estava outra vez
dentro do carro no segundo andar da garagem. Virou a sua
atenção para Avery que se veio colocar ao seu lado como se
quisesse olhar lá para fora, mas que, em vez disso, se
encostou a ele numa posição conspirativa.
 
— Lembre-se que eu posso abrir a caixa-forte, disse ele
num murmúrio. Bosch olhou para ele, abanou a cabeça e
disse:
— Não, não quero fazer isso. É demasiado perigoso.
Vamos embora.
Avery ficou com uma expressão verdadeiramente
perplexa estampada no rosto, mas Bosch se afastou. Cinco
minutos depois, a Beverly Hills Safe & Lock estava outra vez
vazia e trancada. Os dois policiais voltaram para o carro-
patrulha e Avery foi embora. Bosch voltou a pé para a
garagem. A rua já tinha mais movimento e o barulho do dia
tinha começado. A garagem estava começando a se encher
de carros e do cheiro dos escapamentos. Dentro do carro,
Eleanor Wish lhe disse que Hanlon, Houck e a equipe da
SWAT se mantinham nas suas posições. Ele lhe disse que
Orozco vinha a caminho. Bosch gostaria de saber quanto
tempo os homens dentro do túnel levariam para se sentirem
seguros e começarem a furar. Orozco ainda ia demorar dez
minutos. Era muito tempo.
— E o que fazemos quando ele chegar? Perguntou
Eleanor.
— É a cidade dele, ele decide, respondeu Bosch. — Nós
vamos nos limitar a explicar a situação e fazer o que ele
quiser. Dizer que estamos no meio de uma operação e que
já não sabemos em quem podemos confiar. Pelo menos, não
podemos confiar no homem que nos comanda.
Ficaram sentados em silêncio durante um ou dois
minutos. Bosch acendeu um cigarro e Eleanor não disse
nada. Parecia perdida nos seus pensamentos, uma
expressão intrigada no rosto. Ambos olhavam nervosamente
para os relógios de trinta em trinta segundos.
Lewis esperou que o Cadillac branco que estava
seguindo tivesse virado para norte na Wilshire. Mal o carro
deixou de ser visto da Beverly Hills Safe & Lock, Lewis
pegou a luz azul de emergência no chão do carro e colocou-
a no console. Ligou-a, mas o motorista do Cadillac já estava
encostando, à frente do Darlings. Lewis saiu do carro e se
dirigiu para o Caddy; foi interceptado a meio do caminho
pelo próprio Avery.
— O que está acontecendo, agente? Perguntou Avery.
— Detetive, disse Lewis e mostrou o distintivo. —
Assuntos Internos, LAPD. Preciso de lhe fazer umas
perguntas, senhor. Nós estamos investigando um homem, o
detetive Harry Bosch, com quem estava agora mesmo
conversando no Beverly Hills Safe & Lock.
— O que quer dizer com esse “nós”?
— Deixei o meu colega na Wilshire para ele poder
continuar com o seu negócio debaixo de olho. Mas o que eu
gostaria era que o senhor viesse até ao meu carro para
podermos conversar durante uns minutos. Está
acontecendo alguma coisa e eu preciso saber o quê.
— Esse detetive Bosch... Hei, como eu sei que o senhor
é mesmo o que diz ser?
— Como sabe que ele é? A coisa é assim: nós andamos
vigiando o detetive Bosch há uma semana, senhor, e
sabemos que ele está envolvido em atividades que, se não
forem ilegais, são pelo menos embaraçosas para o
departamento. Nesta altura, não temos certeza. É por isso
que precisamos do senhor. Importa-se de me acompanhar
até ao carro, por favor?
Avery deu dois passos hesitantes em direção ao carro
dos Assuntos Internos e depois pareceu se decidir. Dirigiu-se
rapidamente para o lado do passageiro e entrou no carro.
Avery se identificou como o proprietário do Beverly Hills
Safe & Lock e fez um curto resumo do que dissera nos dois
encontros que tivera com Bosch e Wish. Lewis ouviu sem
fazer comentários e depois abriu a porta.
— Espere aqui, por favor. Volto já.
Lewis se encaminhou para a Wilshire e parou na esquina
durante alguns momentos, aparentemente à procura de
alguém, depois fez uma cena complicada consultando o
relógio. Voltou para o carro e se sentou ao volante. Na
Wilshire, Clarke estava à espera na entrada de uma loja
vigiando a caixa-forte. Viu o sinal de Lewis e voltou para o
carro com ar descontraído. Quando Clarke entrou no banco
de trás, Lewis disse:
— Aqui o Mr. Avery diz que o Bosch disse para ir para o
Darlings e esperar. Disse também que vai ver havia gente
dentro da caixa-forte. Vindas dos subterrâneos.
— O Bosch disse o que ele ia fazer? Perguntou Clarke.
— Nem uma palavra, respondeu Avery.
Ficaram todos calados pensando. Lewis não conseguia
entender. Se Bosch estava sujo, o que ele estava fazendo?
Pensou mais um tempo nisto e compreendeu que se Bosch
estivesse envolvido no assalto à caixa-forte, estaria na
posição ideal uma vez que fosse o homem que dava as
ordens do lado de fora. Podia criar uma grande confusão na
forma como estavam cobrindo o assalto. Podia mandar toda
gente para o lugar errado enquanto os seus homens na
caixa-forte sairiam em segurança na direção contrária.
— Ele está controlando toda a gente, disse Lewis, mais
para si próprio do que para os outros dois homens sentados
no carro.
— Quem, o Bosch? Perguntou Clarke.
— É ele quem está controlando o assalto. Nós não
podemos fazer mais nada a não ser assistir. Não podemos
entrar na caixa-forte. Não podemos ir para baixo do chão
nem sabermos para onde ir. Ele já tem a equipe da SWAT do
FBI imobilizada próximo da autoestrada. Eles estão
esperando de uns ladrões que não vão aparecer, porra!
— Esperem um minuto, esperem um minuto, disse
Avery. — A caixa-forte. Vocês podem entrar lá.
Lewis se virou todo no assento para olhar para Avery. O
dono da caixa-forte explicou que os regulamentos de
segurança dos bancos federais não se aplicavam à Beverly
Hills Safe & Lock porque não era um banco e que ele tinha o
código do computador que abria a caixa-forte.
— Disse isso ao Bosch? Perguntou Lewis.
— Ontem e hoje.
— Ele já sabia?
— Não. Pareceu surpreso. Fez perguntas muito
pormenorizadas sobre o tempo que levaria para abrir a
porta, o que eu tinha de fazer, coisas assim. E hoje, quando
tivemos o alarme, lhe perguntei se devíamos abri-la. Ele
disse que não. Só disse para eu sair dali.
— Merda! Exclamou Lewis muito excitado. — É melhor
telefonar para Irving.
Saltou do carro e correu para o telefone público na
frente do Darlings. Discou o número da casa de Irving e não
atenderam. Discou o da delegacia e só atendeu o agente de
serviço. Mandou o agente entrar em contato Irving pelo
pager dando o número da cabine. Depois esperou cinco
minutos, passeando de um lado para o outro à frente do
telefone, preocupado com o tempo que ia se passando. O
telefone nunca tocou. Usou o outro ao lado para telefonar
para o agente de serviço a fim de se certificar que Irving
fora contatado. Tinha. Lewis decidiu que não podia esperar.
Tinha de ser ele a tomar a decisão e ele sairia como herói.
Abandonou os telefones e voltou para o carro.
— O que ele disse? Perguntou Clarke.
— Vamos entrar, respondeu Lewis. E arrancou com o
carro. O rádio da polícia deu sinal por duas vezes e se ouviu
a voz de Hanlon.
— Ei, Broadway, temos vistas aqui na First. Bosch
apanhou o rádio.
— O que têm, First? Não se vê nada na Broadway.
— Temos três homens brancos entrando do nosso lado.
Estão usando uma chave. Parece o homem que esteve aqui
há pouco consigo. Velho. Calças riscadinhas. Avery. Bosch
levou o microfone à boca e hesitou, sem ter certeza do que
iria dizer.
— E agora? Perguntou a Eleanor. Tal como Bosch, ela
estava olhando fixamente para a parte de baixo da rua,
para a caixa-forte, mas não havia sinal de visitantes. Não
disse nada.
— Uh... First, disse Bosch para o microfone. — Veem
algum veículo?
— Não vimos, respondeu a voz de Hanlon. — Limitaram-
se a aparecer a pé, vindo do beco do nosso lado. Devem ter
estacionado lá. Quer que gente vá ver?
— Não, esperem um minuto.
— Agora estão lá dentro, não temos mais contato visual.
Ordens, por favor. Bosch se voltou para Wish erguendo as
sobrancelhas. Quem poderia ser?
— Pede a descrição dos dois que estão com Avery, disse
ela. Ele obedeceu.
— Brancos, começou Hanlon, — Os dois de terno,
usados e amarrotados. Camisas brancas. Ambos na casa
dos trinta e poucos. Um com cabelo ruivo, entroncado, um
metro e oitenta, oitenta e cinco quilos. O outro, cabelo
castanho escuro, mais magro. Não sei, diria que estes tipos
são policiais.
— O Heckle e o Jeckle? Disse Eleanor.
— O Lewis e o Clarke. Têm de serem eles.
— O que eles estão fazendo lá? Bosch não sabia.
Eleanor lhe tirou o rádio.
— First? O rádio deu um estalido. — Há razões para
julgarmos que os dois tipos de terno são agentes da polícia
de Los Angeles. Fiquem atentos.
— Lá estão eles, disse Bosch, quando três figuras
apareceram no clarão da luz da caixa-forte. Abriu o porta-
luvas e apanhou o binóculo.
— O que eles estão fazendo? Perguntou Eleanor
enquanto ele focava a imagem.
— O Avery está próximo do teclado ao lado da porta.
Acho que ele vai abrir aquela maldita coisa.
Através do binóculo, Bosch viu Avery se afastar do
teclado do computador e se dirigir para a roda cromada na
porta da caixa-forte. Viu Lewis se virar ligeiramente e olhar
na direção da garagem. Haveria ali um ligeiro sorriso? Bosch
pensou que via um. Depois, pelo binóculo, viu Lewis tirar a
arma do coldre debaixo do braço. Clarke fez a mesma coisa
e Avery começou a girar a roda, o capitão manobrando o
Titanic.
— Aqueles estúpidos filhos da mãe! Estão abrindo!
Bosch saltou do carro e começou a correr pela rampa
abaixo. Tirou a arma do coldre e levantou-a no ar enquanto
corria. Deu uma olhada para a Wilshire e viu uma abertura
no trânsito ainda escasso. Lançou-se para o outro lado da
rua, com Eleanor a uma pequena distância. Bosch ainda
estava a uma distância de vinte e cinco metros e sabia que
ia chegar demasiado tarde. Avery tinha parado de girar a
roda da porta e Bosch viu-o empurrá-la com toda a força. A
porta começou se abrir lentamente. Bosch ouviu a voz de
Eleanor atrás de si.
— Não! - gritava ela. — Avery! Não!
Mas Bosch sabia que o vidro duplo tornava a caixa-forte
à prova de som. Avery não a conseguia ouvir e Lewis e
Clarke não parariam de fazer o que estavam fazendo
mesmo que a ouvissem. Para Bosch, o que aconteceu
pareceu um filme. Um filme antigo numa televisão sem
som. A porta da caixa-forte se abrindo devagarzinho, com a
sua faixa de escuridão interior se alargando, dando à
imagem uma qualidade quase subaquática, etérea, uma
inevitabilidade em câmara lenta. Bosch se sentia como se
estivesse numa escada rolante andando em sentido
contrário, correndo, mas sem conseguir se aproximar. Tinha
os olhos fixos na porta da caixa-forte. A margem preta ia se
tornando cada vez mais larga.
Então, o corpo de Lewis entrou no campo de visão de
Bosch, avançando em direção à porta que se abria. Quase
de imediato, impelido por uma força invisível, Lewis saltou
violentamente para trás. As mãos se levantaram e a arma
bateu no teto e depois caiu silenciosamente no chão.
Enquanto pedalava para trás, para fora da caixa-forte, a
cabeça e as costas rebentaram e o sangue e o cérebro se
espalharam pela parede de vidro atrás dele. Enquanto Lewis
era projetado para longe da porta da caixa-forte, Bosch
conseguiu ver o clarão da boca da arma na escuridão do
interior. E então, as teias de rachadura rasgaram o vidro
duplo quando as balas a atingiram silenciosamente. Lewis
bateu num dos painéis de vidro enfraquecido e se
despenhou no passeio, um metro abaixo.
Agora, a porta da caixa-forte estava meio aberta e o
atirador tinha o campo mais livre. A rajada da metralhadora
se virou para Clarke, que estava de pé, desprotegido, a boca
aberta com o choque. Bosch já conseguia ouvir os tiros. Viu
Clarke tentar fugir da linha de fogo. Mas foi um esforço
inútil. Também ele foi atirado para trás pela força das balas.
O corpo se chocou com Avery e ambos caíram por cima um
do outro no chão de mármore polido. Os disparos da caixa-
forte pararam.
Bosch saltou pela abertura onde estivera a parede de
vidro e deslizou apoiado no peito pelo mármore e pela
poeira de vidro. No mesmo instante, olhou para dentro da
caixa-forte e viu o vulto de um homem desaparecer pelo
chão abaixo. O movimento provocou um remoinho no pó de
cimento e na fumaça que enchiam a caixa-forte. Como um
mágico, o homem se limitou a desaparecer na névoa.
Depois, da escuridão mais interior, apareceu um segundo
homem enquadrado pela moldura da porta. Avançava para
o buraco, se deslocando lateralmente e traçando um arco
amplo com uma metralhadora M-16, de um lado para o
outro. Bosch reconheceu Art Franklin, um dos homens da
Charlie Company.
Quando o buraco negro da M-16 se virou na direção
dele, Bosch empunhou a arma com as duas mãos, os
cotovelos apoiados no chão frio, e disparou. Franklin
disparou ao mesmo tempo. Os tiros dele foram altos e
Bosch ouviu mais vidro se estilhaçando atrás dele. Bosch
disparou mais dois tiros para dentro da caixa-forte. Ouviu
um fazer ricochete na porta de aço. O outro acertou em
Franklin na parte superior direita do peito, atirando-o de
costas para o chão. Mas, num movimento rápido, o homem
ferido rolou sobre si próprio e se enfiou de cabeça pelo
buraco adentro. Bosch manteve a arma apontada para o
vão da porta da caixa-forte esperando mais alguma outra
pessoa. Mas não havia mais nada, apenas o barulho de
Avery e Clarke, arquejando e gemendo no chão, à esquerda
dele. Bosch se levantou, mas manteve a arma apontada
para a caixa-forte. Eleanor trepou lá para dentro,
empunhando a Beretta. Agachados como os atiradores,
Eleanor e Bosch foram se aproximando da porta, cada um
do seu lado. Havia um interruptor próximo do teclado do
computador na parede de aço à direita da porta. Bosch
apertou o interruptor e o interior da caixa-forte ficou
inundado de luz. Fez sinal com a cabeça e Eleanor entrou
primeiro. Ele seguiu-a. Estava vazia. Bosch saiu e se dirigiu
rapidamente para Clarke e Avery ainda caídos no chão.
Avery dizia:
— Meu Deus! Meu Deus!
Clarke tinha as duas mãos à volta da garganta e arfava
tentando respirar, o rosto tão vermelho que por um instante
bizarro, Bosch teve a sensação que ele se estava se
estrangulando a si próprio. Estava atravessado em cima da
parte média do corpo de Avery e o sangue dele cobria os
dois.
— Eleanor! Gritou Bosch. — Peça reforços e uma
ambulância. Diga à SWAT que eles vão sair. Pelo menos,
dois. Armas automáticas.
Puxou Clarke de cima de Avery e, agarrando-o pelo
ombro do paletó, arrastou-o para fora da linha de fogo da
caixa-forte. O detetive dos Assuntos Internos tinha levado
uma bala no pescoço. O sangue escorria pelo meio dos
dedos e tinha bolinhas de sangue nos cantos da boca e mais
sangue na cavidade torácica. Estava tremendo e entrando
em estado de choque. Estava morrendo. Harry se voltou
para Avery, que tinha sangue no peito e no pescoço e um
pedaço de massa esponjosa húmida e amarelo-acastanhada
na face. Um pedaço do cérebro de Lewis.
— Avery, foi atingido?
— Sim, uh... Uh, acho... Não sei, ele conseguiu
responder numa voz estrangulada.
Bosch se ajoelhou ao lado dele e inspecionou
rapidamente o corpo e a roupa ensanguentada. Não estava
ferido e Harry lhe disse. Bosch voltou para o lugar onde
estivera a janela de vidro duplo e olhou para baixo, para
Lewis estendido de costas na calçada. Estava morto. As
balas, tendo-o atingido num arco ascendente, deixaram as
suas marcas pelo corpo acima. Havia ferimentos de entrada
de balas na coxa direita, no estômago, no lado esquerdo do
peito e no lado esquerdo da testa. Morreu antes de bater
contra o vidro. Os olhos estavam abertos, olhando para
nada. Nesse momento, Eleanor Wish entrou no átrio.
— Os reforços já vêm a caminho, disse ela. Tinha o rosto
muito vermelho e estava respirando quase com tanta
dificuldade como Avery. Parecia que quase não controlava
os movimentos dos olhos que saltitavam de um lado para o
outro.
— Quando os reforços chegarem, disse Bosch, — Diga
que se eles entrarem nos túneis há um dos nossos lá em
baixo. Quero que diga a mesma coisa à sua gente da SWAT.
— Do que está falando?
— Vou descer. Acertei um, não sei com que gravidade.
Era Franklin. Outro desceu à frente dele. Delgado. Mas
quero que os “bons” saibam que estou lá dentro. Diga que
estou de terno. Os dois que eu vou caçar vestem roupas de
camuflagem.
Abriu a arma e retirou os três cartuchos gastos e
substituiu-os por balas que tinha no bolso. Ouvia uma sirene
ao longe. Ouviu uma pancada seca e olhou através da
parede de vidro e do átrio para a porta da frente onde viu
Hanlon batendo com a coronha da arma no vidro da porta.
Daquele ângulo, o agente do FBI não podia ver que a
parede de vidro da sala da caixa-forte estava despedaçada.
Bosch lhe fez sinal para dar a volta.
— Espere um minuto, disse Eleanor Wish. — Não pode
fazer isto, Harry, eles têm armas automáticas. Espera até
chegarem os reforços e pensaremos num plano. Ele se
dirigiu para a porta da caixa-forte falando ao mesmo tempo.
— Eles já levam uma grande dianteira, tenho de ir. Não
se esqueça de avisá-los que estou lá dentro.
Passou pela frente dela e entrou na caixa-forte,
apertando o interruptor da luz ao entrar. Olhou pela borda
para o buraco da explosão. Era uma queda de uns dois
metros e meio. Havia pedaços de cimento e de aço no
fundo. Conseguiu ver sangue nos destroços e uma lanterna.
Havia muita luz. Se eles estivessem lá em baixo esperando
por ele, seria um alvo perfeito. Recuou para trás da porta da
caixa-forte. Encostou o ombro e começou a empurrar
lentamente a enorme placa de aço para fechá-la. Agora,
Bosch conseguia ouvir o barulho de várias sirenes que se
aproximavam. Olhando para a rua, viu uma ambulância e
dois carros da polícia que desciam a Wilshire. O carro
descaracterizado com Houck lá dentro parou com um chiar
de pneus e ele saiu com a arma na mão. A porta já estava
meio fechada e, finalmente, começou a se mover sob o seu
próprio peso. Bosch deu a volta e voltou a se enfiar dentro
da caixa-forte. Ficou parado, inclinado sobre o buraco da
explosão, enquanto a porta ia se fechando devagarzinho e a
luz ia diminuindo. Notou de que já estivera naquela posição
muitas vezes. Era sempre na borda, à entrada, que era o
momento mais assustador, mais aterrorizador para ele. No
momento em que saltasse para dentro do buraco, seria o
momento em que estaria mais vulnerável. Se Franklin ou
Delgado estivessem lá em baixo, esperando-o, apanhavam-
no.
— Harry! Ouviu Eleanor chamando, embora não
entendesse como a voz dela conseguia se fazer ouvir
através da abertura que agora já só tinha a largura de uma
folha de papel. — Harry, tenha cuidado! Podem ser mais do
que dois.
A voz dela ecoou na sala de aço. Olhou para o buraco e
se controlou. Quando ouviu a porta se fechar atrás de si
com um estalido e só havia escuridão, saltou. Ao cair em
cima do entulho, Bosch se agachou e disparou um tiro com
a sua Smith & Wesson para a escuridão e depois se
estendeu deu ao comprido no fundo do túnel. Era um truque
da guerra. Dispare antes que eles disparem contra você.
Mas não tinha ninguém esperando. Não houve nenhum tiro
em resposta. Nenhum ruído, excetuando o barulho distante
de passos correndo no chão de mármore por cima e no
exterior da caixa-forte. Lembrou-se de que devia ter avisado
Eleanor, devia ter lhe dito que o primeiro tiro iria ser dele.
Segurou o isqueiro longe do corpo e acendeu-o. Outro
truque da guerra. Depois apanhou a lanterna, acendeu-a e
olhou em volta. Viu que tinha disparado o seu tiro para um
beco sem saída. O túnel que os ladrões tinham escavado
até à caixa-forte ia para o outro lado. Oeste, não este como
eles tinham pensado quando estiveram estudando a planta
na noite anterior. Isso queria dizer que eles não tinham
vindo da linha das águas pluviais como Gearson pensara.
Não tinham vindo da Wilshire, talvez tivessem vindo da
Olympic ou da Pico a sul ou da Santa Monica a norte. Bosch
compreendeu que o homem da DWP e todos os outros
agentes e policiais foram habilmente induzidos ao erro por
Rourke. Nada iria ser como eles tinham planejado ou
pensado.
Harry estava entregue a si próprio. Dirigiu o feixe de luz
para o interior da garganta negra do túnel. Descia e depois
subia, lhe dando apenas cerca de nove metros de
visibilidade. O túnel seguia para ocidente. A equipe da SWAT
estava esperando a sul e a leste. Estariam esperando
ninguém. Segurando a lanterna virada para a direita e
afastada do corpo, começou a rastejar pela passagem. O
túnel não tinha mais de um metro e trinta de altura e talvez
uns noventa centímetros de largura. Avançou lentamente,
com a arma na mesma mão que utilizava para rastejar.
Havia cheiro de cordite no ar e uma fumaça azulada pairava
no feixe de luz da lanterna. “Névoa púrpura”, Bosch pensou.
Sentiu que estava transpirando abundantemente pelo calor
e pelo medo. De três em três metros, parava para limpar o
suor dos olhos com a manga do paletó. Não despiu o paletó
porque não queria ficar diferente da descrição dada às
pessoas que viriam seguindo ele. Não queria ser morto pelo
fogo dos seus.
O túnel se curvava alternadamente para a esquerda e
para a direita durante uns cinquenta metros, fazendo com
que Bosch começasse a ficar confuso com a direção em que
seguia. A determinada altura, mergulhava por baixo de um
cano de esgoto. Por vezes, Bosch conseguia ouvir o rugido
do trânsito que fazia com que parecesse que o túnel estava
respirando. De nove em nove metros, havia uma vela acesa,
colocada num nicho escavado na parede do túnel. Nos
detritos pedregosos do fundo do túnel, procurou fios de
armadilhas, mas só encontrou um rastro de sangue.
Passados uns minutos de lento avanço, apagou a
lanterna e se apoiou nos calcanhares para descansar e
tentar controlar o barulho da respiração. Mas parecia que
não conseguia colocar suficiente ar nos pulmões. Fechou os
olhos por uns instantes e quando os reabriu, notou que
havia uma luz fraca vinda da curva mais à frente. A luz era
demasiado firme para ser uma vela. Começou a avançar
devagarinho, mantendo a lanterna apagada. Quando deu a
volta à curva, o túnel se alargou. Era uma divisão.
“Suficientemente alta para poder ficar de pé e
suficientemente larga para poder morar durante a
escavação”, pensou.
A luz vinha de um abajur de querosene em cima de uma
pequena geladeira no canto de uma divisão subterrânea.
Também havia dois colchões enrolados e um fogão a gás
Coleman portátil. Havia ainda um sanitário químico portátil.
Viu duas máscaras para gás e também duas mochilas com
comida e equipamento dentro. E havia sacos de plástico
com lixo. Era o acampamento, como aquele que Eleanor
tinha presumido que fora usado, durante a escavação do
túnel para a caixa-forte do West Land. Bosch olhou para o
equipamento e se lembrou do aviso de Eleanor sobre a
possibilidade de eles serem mais do que dois. Mas ela
estava enganada. Só havia duas coisas de tudo.
O túnel continuava para o outro lado do quarto do
acampamento, onde havia outro buraco com noventa
centímetros de largura. Bosch desligou a chama do abajur
para não ficar iluminado por trás e rastejou para dentro da
passagem. Nas paredes deste não havia velas. Usou
intermitentemente a lanterna, ligando-a para se orientar e
depois rastejar uma pequena distância no meio da
escuridão. De quando em quando parava, segurava a
respiração e escutava. Mas o barulho do trânsito parecia
estar mais longe. E não ouvia mais nada. Uns quinze metros
depois do acampamento o túnel chegava a um beco sem
saída, mas Bosch viu um contorno circular no chão. Era um
círculo de compensado tapado com uma camada de terra.
Vinte anos atrás, ele teria chamado de um buraco de ratos.
Recuou, se agachou e estudou o círculo. Não viu nenhum
sinal que indicasse que fosse uma armadilha. Na verdade,
ele não estava esperando que fosse. Se os ladrões tivessem
armadilhado a abertura, seria para impedir a entrada e não
a saída. Os explosivos estariam deste lado do círculo.
Mesmo assim, tirou o canivete do porta-chaves e passou a
ponta, com todo o cuidado, pela borda do círculo e depois o
levantou cerca de um centímetro. Apontou a lanterna e não
viu nem fios, nem quaisquer outras coisas presas do outro
lado da placa de compensado.
Levantou-a toda. Não houve tiros. Rastejou para a borda
do buraco e viu que havia outro túnel lá em baixo. Deixou
cair o braço com a lanterna lá para dentro e acendeu-a.
Girou-a de um lado para o outro e se preparou para os tiros
inevitáveis. Mais uma vez, não houve nenhum. Viu que a
passagem inferior era completamente redonda. Era de
cimento liso com algas escuras e um fio de água no fundo
da curva. Era um conduto de escoamento de águas pluviais.
Saltou pelo buraco e escorregou de imediato no lodo, caindo
de costas. Endireitou-se e, usando a lanterna, começou à
procura de rastros no lodo escuro. Não havia sangue, mas
nas algas havia marcas de raspadelas que podiam ter sido
feitas por pés que tentavam arranjar apoio. O fio de água
seguia na mesma direção das marcas.
Nesta altura, já tinha perdido o sentido de orientação,
mas pensava que estava se dirigindo para norte. Desligou a
lanterna e avançou lentamente durante seis metros antes
de voltar a acendê-la. Quando o fez, viu que os rastros se
confirmavam. Havia uma mancha de uma mão
ensanguentada na parede curva do cano. Meio metro mais à
frente, havia outra. Franklin estava perdendo sangue e
forças muito rapidamente, calculou ele. Tinha parado ali
para verificar o estado do ferimento. Já não devia estar
muito longe. Lentamente, tentando reduzir o barulho da
respiração, Bosch foi avançando. O cano cheirava como
uma toalha molhada e o ar estava suficientemente húmido
para lhe deixar a pele coberta com uma fina capa de água.
O ruído do trânsito rugia de qualquer lugar ali perto. Ouvia o
barulho de sirenes. Sentiu que o cano estava descendo
gradualmente e que essa inclinação fazia com que a água
escorresse.
Ele estava descendo cada vez mais para o interior da
terra. Tinha cortes nos joelhos que sangravam e ardiam à
medida que ele escorregava e se arrastava pelo fundo. Ao
fim de uns trinta metros, Bosch parou e acendeu a lanterna
que continuava a segurar ao lado do corpo, mas afastada,
com a arma preparada na outra mão. Mais adiante, na
parede curva havia mais sangue. Quando desligou a
lanterna, notou que havia uma mudança na escuridão mais
à frente. Havia luz com um toque de madrugada. Podia ver
que o tubo acabava, ou melhor, ligava a uma passagem
onde havia uma luz fraca. Nessa altura, se deu conta que
conseguia ouvir água. Uma grande quantidade de água
comparada com a que continuava a correr entre os joelhos
dele. Parecia que, lá mais à frente, corria um rio.
Moveu-se lenta e silenciosamente até à fraca luz. O tubo
onde ele estava agachado era uma abertura num dos lados
de um comprido corredor. Estava num tributário. Ao longo
do chão do grande corredor, se movia água preta com um
brilho de prata. Era um canal subterrâneo. Olhando para
ela, Bosch não conseguiu saber se a água tinha cinco
centímetros ou um metro de profundidade. Pondo-se de
cócoras à borda dela, primeiro procurou ouvir outros sons
que não fossem o suave marulhar da água. Não ouvindo
nada, esticou devagarinho a parte superior do corpo para
olhar para o fundo da passagem. A água corria para a
esquerda dele. Primeiro olhou para esse lado e conseguiu
ver que o contorno da passagem de cimento se curvava
gradualmente para a direita. Havia algumas réstias de luz
que se infiltravam a intervalos regulares de aberturas no
teto. Calculou que esta luz vinha dos buracos de drenagem
abertos nos poços de inspeção nove metros acima. Era uma
linha de uma rua principal, como diria Ed Gearson. De qual,
Bosch não sabia e também não estava interessado em
saber. Não havia nenhuma planta para ele poder seguir,
para lhe dizer o que devia fazer.
Virou-se para olhar na direção contrária à corrente e
enfiou imediatamente a cabeça dentro do tubo como uma
tartaruga. Encostada à parede interior da passagem, viu
uma figura escura. E Bosch tinha visto dois olhos cor de
laranja brilhando na escuridão, olhando diretamente para
ele. Bosch não se mexeu e mal respirou durante quase um
minuto. O suor escorria para dentro dos olhos, fazendo-os
arder. Fechou-os, mas não conseguiu ouvir mais nada a não
ser o barulho da água preta. Então, devagarinho, voltou a se
aproximar da borda do tubo até conseguir voltar a ver o
vulto escuro. Não tinha se movido. Dois olhos, como os
olhos estranhos de uma pessoa que olha diretamente para o
clarão do flash de uma máquina fotográfica, olhavam para
Bosch. Meteu a lanterna de fora, virando-a naquela direção,
e acendeu-a. Com a luz, viu Franklin caído de encontro à
parede; tinha a M-16 pendurada ao peito, mas as mãos
estavam tombadas na água. A ponta da coronha também
estava dentro da água. Franklin trazia uma máscara que
Bosch levou alguns segundos para entender que não era
uma máscara. O que ele colocara eram uns óculos de visão
noturna.
— Franklin, acabou! Gritou Bosch. — Sou policial.
Não houve resposta e Bosch não estava esperando que
houvesse. Olhou mais uma vez para um lado e para o outro
da linha principal e saltou para a água. Esta apenas lhe
cobria os tornozelos. Manteve a luz e a arma apontadas
para a figura imóvel, mas estava convencido de que não iria
precisar da arma. Franklin estava morto. Bosch viu que o
sangue ainda escorria de uma ferida no peito na frente da
camiseta preta. Depois se misturava com a água e era
levado. Bosch verificou o pescoço do homem à procura da
pulsação, mas não sentiu nenhuma. Meteu a arma no coldre
e puxou a M-16 por cima da cabeça do homem. A seguir,
tirou os óculos de visão noturna do cadáver e os colocou.
Olhou para um lado do corredor e depois para o outro.
Era como se estivesse olhando para uma velha televisão em
preto e branco. Mas os brancos e os cinzentos tinham uma
tonalidade amarelada. Ia levar algum tempo para se
adaptar, mas conseguia ver melhor o caminho com os
óculos e, por isso, decidiu ficar com eles. Depois, passou
revista nos bolsos das calças de campanha de Franklin.
Encontrou fósforos e um maço de cigarros completamente
encharcados. Havia um carregador de balas que Bosch
enfiou no bolso e uma folha de papel dobrada e molhada de
onde escorria tinta azul. Bosch desdobrou-a
cuidadosamente e viu que fora um mapa desenhado à mão.
Não havia nomes identificando nada. Apenas linhas azuis
borradas. Tinha um quadrado quase no centro que Bosch
interpretou como representando a caixa-forte. As linhas
azuis eram os túneis de drenagem. Revirou o mapa nas
mãos, mas o padrão não lhe pareceu familiar. Uma linha
que corria à frente da caixa era a que estava desenhada
com um traço mais carregado. Calculou que podia ser a
Wilshire ou a Olympic. As linhas que interceptavam estas
eram as das ruas perpendiculares Robertson, Doheny,
Rexford e outras. Havia um emaranhado de mais linhas que
continuavam para o lado da página. Depois um círculo com
um X. O ponto de saída.
Bosch decidiu que o mapa era inútil, pois ele não sabia
onde estava ou que direção é que tinha seguido. Jogou-o na
água e ficou vendo-o flutuar. Nesse preciso momento,
decidiu que iria seguir o sentido da corrente. Uma escolha
tão boa como qualquer outra.
Bosch chapinhou pela água, se movendo com a
corrente, numa direção que pensava ser o oeste. A água
preta batia contra a parede em pequenos redemoinhos
alaranjados. A água lhe cobria os tornozelos e enchia os
sapatos, fazendo com que os seus passos fizessem barulho
e fossem inseguros. Pensou em como Rourke tinha jogado
tão bem com aquilo tudo. Não interessava que o jipe e os
ATVs tivessem sido encontrados próximo da autoestrada.
Era tudo um engodo, uma armadilha. Rourke e os seus
bandidos tinham mostrado o óbvio e depois tinham feito o
oposto. Rourke tinha convencido toda a gente a acreditar
naquilo enquanto preparavam os planos de batalha na noite
anterior. A equipe da SWAT estava lá esperando com uma
recepção a que ninguém ia assistir.
Procurou sinais de rastros no corredor, mas não
encontrou nada. A água levava com ela todas as hipóteses
disso. Havia marcas pintadas nas paredes, até mesmo
grafite das gangues, mas tudo podia estar ali há anos.
Olhou para aquilo, mas não reconheceu nada como um sinal
ou indicação de direções. Desta vez, Hansel e Gretel não
tinham deixado nenhum rastro. Os barulhos do trânsito
estavam ficando mais fortes e havia mais luz. Bosch
levantou os óculos de visão noturna e viu cones de luz azul
que se infiltravam a cada trinta metros dos poços de
inspeção e dos esgotos. Passado um pedaço, chegou a uma
interseção e, enquanto a água da sua linha colidia e saltava
com a água que vinha do outro canal, Bosch rastejou ao
longo da parede lateral e, muito devagarinho, olhou pela
esquina. Não viu nem ouviu ninguém. Não tinha nenhuma
ideia de qual o caminho que devia seguir. Delgado podia ter
seguido em qualquer das direções. Bosch resolveu seguir o
novo corredor para a direita porque isso o levaria, pensava
ele, para mais longe da armadilha da SWAT. Não tinha dado
mais de três passos dentro do novo túnel quando ouviu uma
voz vinda da frente perguntando num murmúrio:
— Artie vai conseguir? Vá lá. Despache-se, Artie!
Bosch parou. A voz vinha de uns vinte metros mais à
frente. Mas ele não conseguia ver ninguém. Sabia que
foram os óculos da visão noturna que ele trazia, os olhos cor
de laranja, que o tinham impedido de cair numa
emboscada. Mas o disfarce não ia durar muito. Se se
aproximasse, Delgado iria perceber imediatamente que ele
não era Franklin.
— Artie! Gritou a voz rouca outra vez. — Ande!
— Já vou, respondeu Bosch num sussurro.
Deu um passo e, instintivamente, soube que não tinha
dado resultado. Delgado sabia. Mergulhou para frente
levantando ao mesmo tempo a M-16. Bosch viu um
redemoinho de movimento à frente e para a esquerda e
depois viu o brilho da boca de uma arma. O barulho dos
tiros no túnel de cimento foi ensurdecedor. Bosch respondeu
e deixou o dedo no gatilho até ouvir o injetor ficar sem
balas. Tinha os ouvidos retinindo, mas conseguiu notar que
Delgado, ou quem quer que fosse que estava à frente,
também tinha parado. Bosch ouviu-o carregar outra vez a
arma e depois o barulho de pés correndo no chão seco.
Harry se levantou de um salto e correu, tirando o carregador
vazio e substituindo-o pelo outro enquanto corria. Vinte e
cinco metros depois, chegou a um cano tributário. Tinha
cerca de sete metros e meio de diâmetro e Bosch teve de
subir um degrau para entrar. Havia algas pretas no fundo,
mas não havia água. Caído no lodo, viu um carregador vazio
de uma M-16.
Bosch estava no túnel certo, mas já não ouvia os passos
de Delgado. Começou a avançar rapidamente dentro do
túnel. Havia uma ligeira subida e, passados cerca de trinta
segundos, chegou a uma divisão que era uma encruzilhada
iluminada sob uma grade de um esgoto. O cano continuava
o seu caminho do outro lado desta divisão. Bosch não teve
outro remédio senão continuar por ele, mas desta vez o
cano descia gradualmente. Percorreu mais cinquenta metros
antes de conseguir ver que a linha por onde seguia
desembocava numa passagem mais larga numa linha
principal. Conseguia ouvir a água correndo por cima da
cabeça. Bosch notou demasiado tarde de que estava se
movendo demasiado depressa para conseguir parar.
Quando se desequilibrou e escorregou nas algas em direção
à abertura, ficou claro que tinha vindo atrás de Delgado
para cair numa armadilha. Bosch enterrou os calcanhares
no lodo preto, num esforço inútil para conseguir parar. Em
vez disso, entrou no novo corredor com os pés à frente e os
braços girando para tentar se equilibrar.
Pareceu-lhe estranho, mas sentiu a bala entrar no
ombro antes de ouvir o barulho do disparo. Foi como se um
gancho tivesse descido lá de cima, tivesse se enfiado no
ombro e depois o tivesse puxado para trás, levantando-o e
largando-o no chão logo a seguir. Largou a arma e caiu de
uma altura que lhe pareceu uns trinta metros. Mas claro que
não era. O chão do corredor com os seus cinco centímetros
de água se levantou como uma parede de água e atingiu-o
na parte detrás da cabeça. Os óculos saltaram e ele ficou
vendo, indolente e desinteressadamente, as faíscas
desenharem arcos por cima dele e as balas baterem na
parede e ricochetearem. Quando voltou a si, parecia que
estivera desmaiado durante horas, mas notou depressa que
foram apenas alguns segundos. O barulho dos tiros ainda
ecoava pelo túnel. Sentiu o cheiro da cordite. Ouviu outra
vez passos correndo. “Se afastando”, pensou ele. Esperou.
Bosch rebolou na escuridão e na água e estendeu as mãos
para procurar a M-16 e os óculos de visão noturna. Desistiu
passado um tempo e tentou sacar a sua arma. O coldre
estava vazio. Sentou-se e se encostou à parede. Notou que
tinha a mão direita adormecida. A bala tinha atingido a
articulação do ombro, e o braço era percorrido por uma dor
surda desde o ponto de impacto até à mão morta. Sentia o
sangue escorrer por baixo da camisa, pelo peito e pelo
braço. Era um contraponto quente para a água fria que lhe
girava em volta das pernas e dos testículos.
Deu conta que estava arquejando e tentou regular a
absorção de ar. Estava entrando em estado de choque. Mas
não podia fazer nada. O barulho dos passos se afastando
parou. Bosch conteve a respiração e escutou. Por que ele
tinha parado? Estava livre. Bosch usou as pernas como
tesouras ao longo do chão do túnel à procura de uma das
armas. Não encontrou nada e estava demasiado escuro
para ver onde elas tinham caído. A lanterna também tinha
desaparecido. Então, ouviu uma voz, demasiado longe e
demasiado abafada para poder ser identificada ou
compreendida, mas alguém estava falando. E depois, ouviu
uma segunda voz. Dois homens. De repente, a segunda voz
se tornou estridente, depois houve um tiro e depois outro.
“Tinha se passado muito tempo entre os dois tiros”, pensou.
Não fora a M-16.
Enquanto pensava no significado daquilo, ouviu outra
vez o barulho de passos dentro de água. Passado um
tempo, notou que os passos na escuridão vinham na direção
dele. Não havia nada de apressado nos passos que
avançavam pela água em direção a Bosch. Lentos, certos,
metódicos, como os de uma noiva caminhando pela nave da
igreja. Bosch estava sentado encostado à parede e voltou a
varrer o fundo escorregadio com as pernas, na esperança de
descobrir uma das armas. Tinham desaparecido. Ele estava
fraco e cansado, indefeso. A dor surda no braço tinha
aumentado para uma palpitação. A mão direita continuava
totalmente incapacitada e ele estava comprimindo a
esquerda contra a carne do ombro. Tremia violentamente, o
corpo em estado de choque, e sabia que não demoraria a
ficar inconsciente e que não voltaria a acordar.
Agora Bosch conseguia ver o brilho de uma pequena
lanterna que avançava pelo túnel em direção a ele. Olhava
fixamente para ela com a boca aberta. Alguns dos controles
dos músculos já estavam cedendo. Passados curtos
instantes, os passos ruidosos pararam à frente dele e a luz
ficou ali pendurada por cima da cabeça dele como um sol.
Era apenas uma lapiseira lanterna, mas mesmo assim era
ainda demasiado brilhante; não conseguia ver por trás dela.
De qualquer maneira, sabia de quem era o rosto que estava
lá, de quem era a mão que segurava a luz e o que estava na
outra.
— Diga-me, disse ele, num murmúrio rouco. Não notara
de como tinha a garganta seca. —Isso e o seu ponteirinho
fazem parte de algum conjunto?
Rourke baixou o feixe de luz até ele apontar para o
chão. Bosch olhou em redor e viu a M-16 e a sua própria
arma ao lado uma da outra na água próximo da parede
contrária. Demasiado longe para chegar nelas. Reparou que
Rourke, que vestia um macacão preto enfiado numas botas
de borracha, tinha outra M-16 apontada para ele.
— Você matou o Delgado, disse Bosch. Uma afirmação,
não uma pergunta. Rourke não falou. Sopesou a arma que
tinha na mão. — Agora vai matar um policial? É essa a
ideia?
— É a única maneira de eu conseguir me safar disto. A
ideia é que, primeiro, Delgado o despachou com isto.
Levantou a M-16. — E depois eu o matei. Vou sair como um
herói.
Bosch não sabia se devia dizer alguma coisa sobre
Eleanor Wish. Podia pôr a vida dela em perigo. Mas também
podia salvar a vida dele.
— Esqueça Rourke, acabou por dizer. — Wish sabe.
Contei para ele. Há uma carta no dossiê de Meadows. Liga-o
a tudo isto. Provavelmente, ela já contou a toda a gente lá
em cima. Desista agora e me arranje ajuda. Vai ser melhor
se me tirar daqui. Estou entrando em choque, homem!
Bosch não teve a certeza, mas julgou ter visto uma
ligeira mudança no rosto de Rourke, nos olhos dele.
Continuavam abertos, mas era como tivessem parado de
ver, como se a única coisa que ele estivesse vendo fosse o
que estava dentro. Depois voltaram, olhando para Bosch
sem simpatia, apenas desprezo. Bosch cravou os
calcanhares no limo e tentou se erguer contra a parede para
ficar de pé. Mas mal se tinha movido uns centímetros,
Rourke se inclinou e empurrou-o para baixo com toda a
facilidade.
— Fique aí, não se mexa, porra! Acha que vou tirar você
daqui? Calculo que nos tenha custado cinco, talvez seis
milhões daquilo que o Tran tinha no cofre dele. Tinha de ser
pelo menos isso. Você fodeu o crime perfeito. Não vai sair
daqui.
Bosch deixou cair a cabeça, até ficar com o queixo
encostado ao peito. Os olhos se reviravam dentro das
pálpebras. Queria dormir, mas estava lutando contra o sono
com todas as suas forças. Gemeu, mas não disse nada.
— Você foi a única coisa deixada ao acaso na porra do
plano. E o que aconteceu? O único risco de alguma coisa
correr mal, e corre. Você é a porra da Lei de Murphy em
carne e osso, homem!
Bosch conseguiu olhar para cima, para Rourke. Foi uma
luta terrível, depois, o braço são deixou de apertar a ferida
do ombro. Já não tinha forças para mantê-lo ali.
— O quê? Conseguiu dizer. — O... O... Que é... Que quer
dizer?... Acaso?
— O que eu quero dizer é coincidência. Ser você a
receber aquela chamada por causa de Meadows. Isso não
fazia parte do plano, Bosch. Acredita nesta merda?
Pergunto-me quais são as probabilidades. Quero dizer,
Meadows é metido num cano onde sabíamos que já tinha
dormido outras vezes. Estamos contando que ele só seria
descoberto uns dois dias mais tarde e que depois leve uns
dois, talvez até três dias para que alguém o consiga
identificar através das impressões digitais. Entretanto, é
registrado como um caso de overdose, uma insignificância.
O tipo tem um cartão de drogado nos arquivos. Por que
não? Mas o que acontece? Há este garoto que comunica
logo a porra do cadáver. Abanou a cabeça. — O homem
perseguido, e quem é chamado? Um merda de um tira que
até conhecia a porra do morto e que o identifica em dois
segundos. Um idiota de um camarada dos túneis da porra
do Vietnam. Eu próprio não acredito nesta merda. Ferrou
tudo com isso, Bosch. Até a sua própria vida miserável... Ei,
ainda está aqui comigo?
Bosch sentiu que lhe levantavam a cabeça, a coronha
da arma debaixo do queixo.
— Ainda está comigo? Voltou Rourke a perguntar e
depois espetou a coronha da arma no ombro direito de
Bosch.
Isto deu origem a uma onda de choque de uma dor
néon vermelho que desceu pelo braço, atravessou o peito e
chegou aos testículos. Gemeu e arquejou tentando respirar
e depois avançou lentamente com a mão esquerda para a
arma. Não foi o suficiente. Só apanhou ar. Engoliu um
vômito e sentiu gotas de suor escorrendo pelo cabelo
molhado.
— Não está com muito bom aspecto, disse Rourke. —
Estou aqui pensando que, se calhar, nem vou precisar fazer
isto. Vai ver, o meu homem, o Delgado, ajeitou o assunto
com um tiro.
A dor fizera com que Bosch voltasse a si. Pulsou por
todo ele, deixando-o alerta, ainda que só temporariamente.
Rourke continuava inclinado em cima dele e Bosch viu algo
pendurado no peito e na cintura do agente do FBI. Bolsos.
Trazia o macacão vestido pelo avesso. Houve qualquer coisa
que fez clique no cérebro de Bosch. Lembrou-se de Sharkey
dizer que tinha visto um cinto de ferramentas vazio à volta
da cintura do homem que enfiou o cadáver no cano do
reservatório. Era Rourke. Também trazia o macacão pelo
avesso naquela noite. Porque dizia FBI nas costas. Não
queria arriscar que alguém visse. Era uma informaçãozinha
completamente inútil naquela altura, mas, por uma razão
qualquer, Bosch se sentiu satisfeito por conseguir encaixar
mais uma peça do puzzle.
— Está sorrindo de quê, morto? Perguntou Rourke.
— Vá se foder.
Rourke levantou o pé e deu um pontapé no ombro de
Bosch, mas Bosch estava à espera disso. Agarrou no
calcanhar com a mão esquerda e empurrou para cima e
para o lado. O outro pé de Rourke escorregou na camada
espessa de lodo e algas e o desequilibrou. Caiu de costas
fazendo água saltar para todos os lados. Mas não deixou
cair a arma como Bosch estava esperando. E pronto. Não
havia mais nada a fazer. Bosch fez um esforço pouco
convicto para agarrar a arma, mas Rourke lhe tirou os dedos
da coronha com a maior das facilidades e empurrou-o outra
vez contra a parede. Bosch se inclinou para o lado e
vomitou para a água. Sentiu uma nova torrente de sangue
escorrendo do ombro e descendo pelo braço abaixo. Rourke
se levantou da água. Aproximou-se e encostou a coronha da
arma à testa de Bosch.
— Sabe, Meadows costumava me falar dessa história.
Dessa merda toda. Bem, Harry, aqui está você. É o fim.
— Por que ele morreu? Sussurrou Bosch. — Meadows.
Por quê? Rourke recuou e olhou para um lado e para o outro
do túnel antes de responder.
— Você sabe o porquê. Ele foi um errado lá, era um
errado aqui. Foi por isso que ele morreu.
Rourke pareceu estar revendo mentalmente uma
lembrança qualquer e abanou a cabeça com desprezo. —
Correu tudo perfeitamente, excetuando ele. Ele guardou a
pulseira. Uns golfinhozinhos de jade e ouro. Rourke olhava
fixamente para a escuridão. Uma expressão melancólica se
desenhou no rosto dele. — Foi só isso que ele tirou, disse
ele. — Está vendo, o plano se baseava numa total fidelidade
para ser bem sucedido. Meadows... Ele não fez isso!
Sacudiu a cabeça, ainda zangado com o morto e se
calou. Foi nesse momento que Bosch julgou que ouvia um
barulho de passos, em algum lugar, ainda ao longe. Não
tinha certeza se tinha ouvido mesmo ou se era apenas o
que ele esperava ouvir. Mexeu a perna esquerda dentro
d’água. Não o suficiente para fazer com que Rourke
apertasse o gatilho, mas o suficiente para fazer com que a
água se agitasse e cobrisse o som dos passos. Se eles
existiam.
— Ele ficou com a pulseira, disse Bosch. — Foi só isso?
— Foi o suficiente, respondeu Rourke zangado. — Não
podia aparecer nada. Não está vendo? Isso era a beleza da
coisa. Não iria aparecer nada. Livrávamo-nos de tudo,
exceto dos diamantes. E esses nós iríamos guardar até
termos realizado os dois assaltos. Mas aquele idiota não
conseguiu esperar até terminarmos o segundo trabalhinho.
Rouba aquela pulseirinha barata e põe-la no prego para
comprar droga. Vi nos relatórios das lojas de penhores. Sim,
depois do assalto ao West Land, fomos ao Departamento da
Polícia de Los Angeles e pedimos para eles nos mandarem
as listas mensais dos penhores para também as podermos
examinar. Começamos a recebê-las no departamento. A
única razão porque dei pela pulseira e os seus não deram
foi porque eu estava à procura dela. A equipe dos penhores
procura milhares de coisas. Eu só andava à procura daquela
única coisa. Sabia que alguém ficara com ela. Havia uma
porção de coisas que foram dadas como roubadas daquela
primeira caixa-forte que não estava nas merdas que nós
trouxemos de lá. Armações com o seguro. Mas a pulseira
dos golfinhos eu sabia que era verdade. Aquela velha
senhora... Chorando. A história por trás daquilo, com o
marido e toda aquela merda do valor sentimental. Fui eu
próprio que a entrevistei. E sabia que ela não estava
mentindo. Por isso, soube que um dos meus homens do
túnel ficara com ela.
“Mantenha ele falando”, pensou Bosch. Ele continua
falando e você acaba por se safar. Daqui para fora. Daqui
para fora. Vem alguém aí, o meu braço está doendo. Riu no
seu delírio e isso fê-lo voltar a vomitar. Rourke se limitou a
continuar falando.
— Apostei no Meadows logo de início. Quando um tipo
se mete na agulha... Sabe como é. Por isso, quando a
pulseira apareceu, foi o primeiro com quem fui me
encontrar.
Rourke se calou então, perdido nos seus pensamentos e
Bosch fez mais barulho na água com os pés. Agora a água
parecia quente e era o sangue que escorria pelo corpo que
estava frio. Finalmente, Rourke disse:
— Sabe, na verdade não sei se o deva beijar ou matar,
Bosch. Você nos custou milhões neste golpe, mas também é
verdade que a minha parte do primeiro aumentou muito
agora que os meus dois homens morreram. Provavelmente,
feitas as contas, até fico com o mesmo.
Bosch não acreditava que conseguisse ficar acordado
por muito mais tempo. Sentia-se cansado, indefeso e
resignado. A capacidade de se manter alerta tinha
desaparecido por completo. Mesmo agora, quando
conseguiu levantar a mão e atirá-la contra o ombro desfeito,
não sentiu a dor. Não conseguia voltar a se sentir desperto.
Deixou-se cair na contemplação da água que se movia
lentamente ao redor das suas pernas. Estava tão quente e
ele estava tão frio. Só queria se deitar e puxá-la para cima
de si como se fosse um cobertor. Queria dormir dentro dela.
Mas uma voz, vinda de em algum lugar, lhe disse para se
aguentar. Pensou em Clarke. O sangue. Olhou para o feixe
de luz na mão de Rourke e fez mais uma tentativa.
— Porquê este tempo todo? Perguntou numa voz que
era pouco mais do que um sussurro. — Todos estes anos. O
Tran e o Binh. Porquê só agora?
— Não há resposta para isso, Bosch. Às vezes as coisas
todas se encaixam. Como o cometa de Halley. Aparece de
setenta em setenta anos, ou uma coisa assim. As coisas se
juntam. Eu os ajudei a trazerem os diamantes para aqui.
Preparei tudo. Fui bem pago e nunca achei o contrário. E um
dia, a semente plantada há todos esses anos saiu da terra.
Estava ali para ser apanhada e, nós a apanhamos. Eu
apanhei! Foi por isso que foi agora.
Um sorriso vanglorioso encheu o rosto de Rourke. Voltou
a apontar o cano da arma para um ponto no rosto de Bosch.
A única coisa que Bosch podia fazer era olhar.
— O meu tempo está acabando, Bosch e o seu também.
Rourke segurou a arma com as duas mãos e afastou os
pés à largura dos ombros. Naquele momento final, Bosch
fechou os olhos. Libertou a mente de todos os pensamentos
exceto o da água. Tão quente, como um cobertor. Ouviu
dois tiros de espingarda, ecoando como trovões pelo túnel
de cimento armado. Lutou para abrir os olhos e viu Rourke
encostado à outra parede, com as duas mãos no ar. Uma
segurava a M-16, a outra a lapiseira-lanterna. A arma caiu e
bateu ruidosamente na água, depois a lapiseira-lanterna.
Oscilou na água, a lâmpada ainda acesa. Projetou um
padrão rodopiante no teto e nas paredes do túnel enquanto
se afastava vagarosamente com a corrente. Rourke não
disse uma única palavra. Deslizou pela parede abaixo,
olhando fixamente para a sua direita, na direção de onde
Bosch achava que os tiros tinham vindo e deixando um
rastro de sangue que o ia acompanhando até abaixo. Na luz
que ia se extinguindo, Bosch conseguiu ver a surpresa
estampada no rosto dele e depois uma expressão decidida
nos olhos. Rapidamente ficou sentado, tal como Bosch,
encostado à parede, a água se movendo ao redor das
pernas, os olhos mortos já sem verem o que quer que fosse.
Nessa altura as coisas ficaram todas desfocadas para
Bosch. Queria fazer uma pergunta, mas não conseguia
articular a palavra. Havia outra luz no túnel e pensou que
ouvia uma voz, uma voz de mulher, lhe dizendo que estava
tudo bem. A seguir pensou que via o rosto de Eleanor Wish
flutuando dentro e fora do foco. E depois ela desapareceu
na escuridão profunda. E, por fim, essa escuridão foi tudo o
que viu.
 
CAPÍTULO 8
Domingo, 27 de maio
Bosch sonhava com a selva. Meadows estava lá, assim
como todos os outros soldados do álbum de fotografias de
Harry. Estavam de pé, ao redor do buraco no fundo de uma
trincheira coberta de folhas. Por cima deles, uma névoa
cinzenta se agarrava ao topo da cúpula da selva. O ar
estava calmo e quente. Bosch tirava fotografias dos outros
dois ratos com a sua máquina fotográfica. Meadows iria
descer para baixo do chão, disse ele. Da luz para a
escuridão. Olhou para Bosch através da máquina fotográfica
e disse:
— Lembre-se da promessa, Hieronymus.
— Rima com anônimos, disse Bosch.
Mas antes de lhe poder dizer para não ir, Meadows
saltou de pé para dentro do buraco e desapareceu. Bosch
correu para a borda do buraco e olhou lá para dentro, mas
não viu nada a não ser uma escuridão tão negra como breu.
Os rostos ficavam focados e depois voltavam a desaparecer
na escuridão. Havia Meadows, Rourke, Lewis e Clarke. Ouviu
atrás de si uma voz que reconhecia, mas a quem não
conseguia atribuir um rosto.
— Harry, vamos homem. Preciso falar consigo.
Nesse momento, Bosch se tornou consciente de uma
dor intensa no ombro, que ia do cotovelo até ao pescoço.
Alguém estava lhe batendo na mão esquerda, dando
pancadinhas leves. Abriu os olhos. Era Jerry Edgar.
— Ora bem, até que enfim, disse Edgar. — Não tenho
muito tempo. O tipo que está à porta me disse que eles
devem estar aparecendo a qualquer momento. Além disso,
vai deixar a delegacia. Queria falar consigo antes dos
chefões falarem. Teria aqui vindo ontem, mas isto estava
inundado de gente do FBI. Além disso, ouvi dizer que esteve
delirando durante quase todo o dia passado.
Bosch se limitava a olhar para ele.
— Nestas coisas, continuou Edgar, — Sempre ouvi dizer
que é melhor uma pessoa dizer que não se lembra de nada.
Deixe-os dizer aquilo que quiserem. Quero dizer, quando
leva um tiro, não há nenhuma maneira de saber se está
mentindo quando diz que não se lembra. A mente se fecha,
quando há um insulto traumático ao corpo. Já li isso.
Nesta altura, Bosch notou que estava num quarto de
hospital e começou a olhar para o que o rodeava. Reparou
em cinco ou seis jarras de flores e que o quarto tinha um
cheiro adocicado e putrificado. Reparou também que tinha
uns cintos para o imobilizarem à volta do peito e da cintura.
— Está no MLK, Harry. Mmm, os médicos dizem que vai
ficar bom. Mas ainda têm de trabalhar um bom pedaço
nesse seu ombro. Edgar baixou a voz para um murmúrio. —
Entrei as escondidas. Acho que as enfermeiras estão na
mudança de turno ou assim. O policial da porta, ele é da
patrulha de Wilshire, me deixou entrar porque anda
vendendo e deve ter ouvido dizer que isso é território meu.
Disse-lhe que aceitava analisar a proposta dele se me
deixasse entrar durante cinco minutos.
Bosch ainda não tinha falado. Não tinha certeza de ser
capaz. Sentia-se como se estivesse flutuando numa camada
de ar. Tinha dificuldade em se concentrar nas palavras de
Edgar. O que ele queria dizer com aquilo dos pontos? E por
que é que ele estava no Martin Luther King, Drew Medical
Center próximo de Watts? A última coisa de que se
recordava era de estar em Beverly Hills. No túnel. O UCLA
Med Center ou o Cedars teriam sido mais perto.
— Seja como for, Edgar estava dizendo, — Só estou
tentando contar o que está acontecendo, aquilo que é
possível, antes que os finórios cheguem aqui e comecem a
foder a sua cabeça. Rourke está morto. Lewis está morto.
Clarke está mal, na máquina e ouvi dizer que só o estão
aguentando por causa dos órgãos. Mal consigam ter toda a
gente que precisa deles à postos, desligam o interruptor.
Como é que se sentiria se acabasse com o coração, ou o
olho ou outra coisa qualquer daquele imbecil. Bem, como eu
já disse, deves se safar disto sem problemas. De qualquer
maneira, com um braço desses, pode conseguir os seus
oitenta por cento, sem perguntarem mais nada. Em serviço.
Tem o futuro garantido. Sorriu para Bosch que se limitou a
olhar para ele sem a menor expressão. A garganta de Harry
estava seca e rachada quando, por fim tentou falar.
— MLK?
Saiu um tanto fraquinho, mas se entendia. Edgar
encheu um copo com água de um jarro em cima da mesa de
cabeceira e lhe deu. Bosch desapertou as fivelas dos cintos,
se sentou e bebeu, sentindo imediatamente uma onda de
náusea. Edgar não deu por nada.
— É um clube para as facas e as armas de fogo. É para
aqui que trazem os tipos das gangues depois das rusgas.
Não há melhor lugar no país para ir, com um ferimento de
bala, e muito menos aqueles doutores todos finórios lá do
UCLA. Aqui é que treinam os médicos militares. Para eles
poderem estar preparados para os feridos de guerra.
Trouxeram-no de helicóptero.
— Que horas são?
— Passa um pouco das sete, domingo de manhã. Perdeu
um dia.
Nessa altura, Bosch se lembrou de Eleanor. Era ela que
estava no túnel quando fora o fim? O que tinha lhe
acontecido? Edgar pareceu ler os pensamentos dele.
Ultimamente, toda a gente andava fazendo isso.
— A senhora sua colega está ótima. Você e ela estão na
ribalta. São uns heróis. Heróis. Bosch pensou naquilo.
Passado um pedaço, Edgar disse: — Tenho de ir. Se
souberem que falei consigo, me mandam para Newton.
Bosch assentiu com a cabeça. A maior parte dos
policiais não se importaria de prestar serviço na Divisão de
Newton. Tinham ação durante as vinte e quatro horas do
dia. Mas não era o caso de Jerry Edgar, agente imobiliário.
— Quem vem?
— Os de costume, eu acho. O Departamento dos
Assuntos Internos, o dos Tiroteios Envolvendo Agentes. O
FBI também vai estar. Bev Hills, também. Acho que toda a
gente ainda está tentando entender que porra aconteceu lá
em baixo. E só têm você e Wish para lhes contar.
Provavelmente, vão querer garantir que vocês os dois
contem a mesma história. E por isso que eu estou dizendo
que você não se lembra de nada. Está ferido, meu. É um
agente ferido. Em serviço. Tem o direito de não se lembrar
do que aconteceu.
— O que você sabe do que aconteceu?
— O departamento não abre a boca. Nem sequer se
ouvem boatos sobre isto. Quando ouvi dizer que aquilo tinha
ido abaixo, fui lá e o Pounds já estava lá. Viu-me e ordenou
que fosse embora. O filho da puta do “Noventa e Oito” não
me quis dizer a ponta de um corno. Por isso, só sei o que
vem na imprensa. A carga de mentiras de costume. Ontem
à noite a TV não sabia nada. O Times desta manhã também
não trazia grande coisa. O departamento e o FBI, bem eles
parecem que se puseram de acordo para fazer de toda a
gente soldados destemidos.
— Toda a gente?
— Sim. O Rourke, o Lewis, o Clarke... Todos eles
tombaram no cumprimento do dever.
— Wish disse essas coisas?
— Não. Ela não está na história. Quer dizer, não é
citada. Calculo que vão guardá-la em segredo até terem
terminado a investigação.
— Qual é a história oficial?
— O Times conta que o departamento diz que Lewis,
Clarke e você faziam parte da equipe de vigilância que o FBI
tinha montado na caixa-forte. Ora, eu sei que isso é uma
mentira porque você nunca teria deixado aqueles dois
palhaços se aproximarem um centímetro sequer de uma
operação sua. Além disso, eles são dos Assuntos Internos.
Acho que o Times também acha que há qualquer coisa
nesta história que cheira mal. Aquele tipo que você
conhece, o Bremmer, me telefonou ontem para saber o que
eu tinha ouvido. Mas eu não abri o bico. Se o meu nome
aparecer no jornal por causa disto, ainda me acontece coisa
pior do que Newton. Se existe alguma coisa pior.
— Pois é, disse Bosch. Afastou os olhos do antigo
companheiro e ficou imediatamente deprimido. Até parecia
que o braço tinha começado a latejar mais intensamente.
— Olhe Harry, disse Edgar, meio minuto depois. — É
melhor eu ir andando. Não sei quando eles vão aparecer,
mas vão. Tenha cuidado e faça como eu disse. Amnésia.
Depois aceita os oitenta por cento de incapacidade por
cumprimento do dever e mande-os à merda.
Edgar apontou com um dedo para a testa e acenou com
a cabeça. Harry assentiu distraidamente e Edgar foi
embora. Bosch conseguiu ver um policial fardado sentado
numa cadeira do lado de fora da porta. Passado um tempo,
Bosch apanhou o telefone que estava preso à grade ao
longo da cama. Não conseguiu ouvir o sinal de discar, por
isso, apertou o botão para chamar a enfermeira e alguns
minutos depois apareceu uma que informou que o telefone
estava desligado, por ordem do Departamento da Polícia de
Los Angeles. Pediu um jornal e ela abanou a cabeça. A
mesma coisa. Ficou ainda mais deprimido. Sabia que tanto o
Departamento da Polícia de LA como o FBI tinham
problemas de relações públicas enormes com o que tinha se
passado, mas não conseguia ver como seria possível
encobri-lo. Demasiadas agências. Demasiadas pessoas.
Nunca conseguiriam abafar aquilo. Seria possível que
fossem tão estúpidos que estivessem tentando?
Desapertou a correia em volta do peito e tentou se
sentar. Ficou tonto e o braço gritou para deixá-lo em paz.
Sentiu-se dominado por uma náusea e apanhou num
recipiente de aço inoxidável que estava na mesa-de-
cabeceira. A sensação abrandou. Mas fez retornar uma
recordação de estar no túnel com o Rourke na manhã
anterior. Começou a se lembrar de pedaços da conversa de
Rourke. Tentou encaixar as informações novas com o que já
sabia. Depois, pensou nos diamantes, o espólio escondido
do trabalhinho do West Land, e se já teriam sido
encontrados. Onde? Por muito que ele admirasse a
concepção do crime, não conseguia se forçar a admirar o
autor. Rourke. Bosch sentiu a fadiga se apoderar dele como
uma nuvem cobrindo o sol. Deixou-se cair outra vez contra
o travesseiro. E a última coisa em que pensou antes de
adormecer foi naquilo que Rourke dissera no túnel. Aquela
parte sobre ir receber um quinhão maior porque Franklin,
Delgado e Meadows estavam mortos. Foi então que Bosch,
enquanto deslizava para dentro do buraco negro da selva
para onde Meadows tinha saltado antes, se deu conta de
todo o significado daquilo que Rourke dissera.
O homem sentado na cadeira das visitas usado um
terno riscadinho de 800 dólares, botões de punho de ouro e
um anel com uma pedra ônix rosada. Mas não era um
disfarce.
— Departamento dos Assuntos Internos, certo?
Perguntou Bosch com um bocejo. Acordei de um sonho para
um pesadelo.
O homem se sobressaltou. Não tinha reparado que
Bosch tinha aberto os olhos. Levantou-se e saiu do quarto
do hospital sem dizer uma palavra. Bosch voltou a bocejar e
olhou em volta do quarto à procura de um relógio. Não
havia nenhum. Voltou a soltar o cinto do peito e tentou se
sentar. Desta vez, estava bem melhor. Não houve tonturas.
Não houve agonias. Olhou para os arranjos florais em cima
do parapeito da janela e da cômoda. Pareceu-lhe que o
número delas era capaz de ter aumentado enquanto ele
estava dormindo. Perguntou para consigo mesmo se haveria
algumas de Eleanor. Ela teria vindo? Provavelmente, eles
não a deixariam.
Um minuto depois, o de terno riscadinho voltou com um
gravador na mão à frente de uma procissão de quatro
outros homens de terno completo. Um era o tenente Bill
Halley, chefe da delegacia dos Tiroteios Envolvendo Agentes
do Departamento da Polícia de Los Angeles e outro era o
subchefe Irvin Irving, o responsável pelo Departamento de
Assuntos Internos. Bosch calculou que os outros dois fossem
do FBI.
— Se soubesse que tinha tantos ternos à minha espera,
colocara o despertador disse Bosch. — Mas não me deram
nem um relógio despertador, nem um telefone que
funcione, uma TV ou um jornal.
— Bosch, você sabe quem eu sou, disse Irving, e
apontou com a mão para os outros. — E conhece o Halley.
Este é o agente Stone e este é o agente Folsom, do FBI.
Irving olhou para o terno riscadinho e apontou com a
cabeça para a mesa-de-cabeceira. O homem avançou e
colocou o gravador em cima da mesa, pôs o dedo no botão
para gravar e olhou para Irving. Bosch olhou para ele e
disse:
— Você não tem direito a uma apresentação? O terno
riscadinho ignorou-o, como, aliás, todos os outros.
— Bosch eu quero fazer isto depressa e sem precisar
aturar o seu humor peculiar, disse Irving.
Contraiu os impressionantes músculos da queixada e
fez sinal com a cabeça ao terno riscadinho. O gravador foi
ligado. Irving disse a data, o dia e a hora num tom seco.
Eram onze e trinta da manhã. Bosch só tinha dormido
algumas horas. Mas se sentia muito mais forte do que
quando Edgar estivera lá. Irving acrescentou os nomes dos
presentes no quarto, dando desta vez um nome ao terno
riscadinho. Clifford Galvin, Jr. O mesmo nome, menos a
parte do júnior, do outro subchefe do departamento. “O
Júnior estava sendo apadrinhado e condenado”, pensou
Bosch. Já estava na faixa rápida, sob a asa do Irving.
— Vamos fazer isto do princípio, disse Irving. — Detetive
Bosch comece por nos contar tudo sobre este assunto
desde o momento em que se colocou nele.
— Têm uns dois dias? Irving se encaminhou para o
gravador e apertou o botão da pausa.
— Bosch, disse ele, — Todos nós sabemos que você é
um tipo muito esperto. Mas hoje não vamos ouvir as suas
graças. Só parei o gravador desta vez. Se tornar a fazer
isso, terei o seu distintivo num bloco de vidro na terça-feira
de manhã. E isso é só porque amanhã é feriado. E não
pense numa pensão por incapacidade no cumprimento do
dever. Tratarei de conseguir que receba oitenta por cento de
nada.
Ele estava se referindo à prática do departamento de
proibir que um policial reformado pudesse ficar com o seu
distintivo. O diretor e o concelho municipal não gostavam da
ideia de que algumas das antigas figuras importantes da
cidade pudessem andar passeando pela cidade exibindo
distintivos. Extorsões, refeições gratuitas, passagens
gratuitas, era um escândalo que eles conseguiam prever a
centenas de quilômetros de distância. Por isso, se a pessoa
queria levar o distintivo consigo, podia fazê-lo:
elegantemente montado num bloco de plástico transparente
com um relógio decorativo. Tinha cerca de dez centímetros
quadrados. Muito grande para caber num bolso.
Irving fez sinal com a cabeça e o Júnior apertou outra
vez o botão. Bosch contou tudo como fora, não deixando
nada de fora e parando apenas quando o Júnior precisou
trocar o cassete. Fizeram-lhe uma ou duas perguntas, mas,
praticamente deixaram-no falar sem interromper. Irving quis
saber o que Bosch tinha jogado fora no cais de Malibu.
Bosch mal se lembrava. Ninguém tomou notas. Limitaram-
se a olhar para ele enquanto contava tudo. Finalmente, ao
fim de uma hora e meia, Bosch acabou de contar a história.
Irving olhou para Júnior e fez sinal com a cabeça. Júnior
desligou o gravador. Quando eles já tinham acabado as
perguntas, Bosch começou com as dele.
— O que encontraram em casa do Rourke?
— Isso não é da sua conta, respondeu Irving. .
— O diabo que não é! Faz parte da investigação de um
homicídio. O Rourke era o assassino. Ele me confessou.
— A sua investigação foi transferida para outra pessoa.
Bosch não disse nada porque a raiva subiu e lhe apertou
a garganta. Olhou em volta do quarto e reparou que
nenhum dos outros, nem mesmo o Júnior, olhava para ele.
Irving disse:
— Bem, agora antes de começar a andar por aí dando
com a língua nos dentes acerca de colegas mortos no
cumprimento do dever, eu teria o cuidado de ver se
conhecia os fatos todos. E teria o cuidado de me certificar
que tinha provas que corroborassem esses fatos. Não
queremos que comecem a espalhar boatos sobre bons
homens. Bosch não conseguiu se conter.
— Acredita mesmo que vão conseguir se safar com isso?
E os seus dois idiotas? Como vai explicar isso? Primeiro,
põem um microfone em minha casa, depois se metem à toa
na merda de uma vigilância e são mortos a tiro. E quer fazer
deles heróis. A quem quer enganar?
— Detetive Bosch, já foi explicado. Isso não é um
assunto que lhe diga respeito. E também não lhe cabe
contradizer as declarações públicas do Departamento de
Polícia ou do FBI sobre este assunto. Isto, detetive, é uma
ordem. Se falar à imprensa sobre isto, será a última vez que
o fará como detetive da polícia de Los Angeles. Agora era
Bosch que não conseguia olhar para eles. Olhou para as
flores em cima da mesa e perguntou:
— Então para que serviu a gravação, as declarações,
toda esta gente importante aqui contigo? Qual é a utilidade
disto se o senhor não quer saber a verdade?
— Nós queremos a verdade, detetive. Você está
confundindo isso com aquilo que escolhemos dizer ao
público. Mas, longe dos olhares do público, lhe garanto que
vamos completar a sua investigação e tomar as medidas
apropriadas.
— Isso é patético.
— Também você é, detetive. Também você. Irving se
inclinou por cima da cama com o rosto suficientemente
perto para que Bosch conseguisse sentir o cheiro do hálito
azedo. — Esta é uma daquelas raras ocasiões em que tem o
seu futuro nas suas próprias mãos, detetive Bosch. Faça o
que é certo e talvez volte para a Divisão dos Assaltos e
Homicídios. Ou pode pegar aquele telefone, sim, vou
mandar a enfermeira ligá-lo, e telefonar para os seus
amigos daquele pasquim da Spring Street. Mas se o fizer, é
melhor lhes perguntar se há possibilidade de um ex-detetive
dos homicídios fazer carreira lá.
Os cinco saíram então do quarto, deixando Bosch
sozinho com a sua raiva. Ele se levantou na cama e estava
pronto para atirar com o braço bom de encontro a uma jarra
de margaridas em cima da mesa de cabeceira, quando a
porta se abriu e Irving voltou a entrar. Sozinho. Sem
gravador.
— Detetive Bosch, isto não é oficial. Disse aos outros
que tinha me esquecido de entregar isto.
Tirou um cartão do bolso do casaco e pô-lo em pé no
peitoril da janela. Na parte da frente estava uma mulher-
policial de grandes seios e a camisa do uniforme
desapertada até à cintura. Estava batendo
impacientemente com o cassetete na mão. Um balão que
lhe saía da boca dizia “Fique Bom Depressa Ou...” Bosch
teria de ler a parte de dentro para entender a piada.
— Não me esqueci. Só queria lhe dar uma palavra em
particular. Ficou calado aos pés da cama até Bosch fazer um
gesto de assentimento com a cabeça. — Você é bom
naquilo que faz detetive Bosch. Todos sabem isso. Mas isso
não quer dizer que seja um bom agente da polícia. Recusa-
se a fazer parte da Família. E isso não é bom. E, entretanto,
veja bem, eu tenho de proteger este departamento. Para
mim, isso é o trabalho mais importante do mundo. E uma
das melhores maneiras de fazer isso é controlar a opinião
pública. Manter toda a gente feliz. Por isso, se isso significar
fazer um par de simpáticos comunicados à imprensa e
arranjar dois funerais bem grandes com o Presidente da
Câmara, as câmaras de televisão e todos os chefões
presentes, será isso mesmo que farei. A proteção deste
departamento é mais importante do que o fato de dois
policiais estúpidos terem feito merda. E acontece o mesmo
com o Departamento Federal de Investigação. Eles fazem-
no em picadinho antes de se flagelarem publicamente com
o Rourke. Por isso, aquilo que estou lhe dizendo a única
regra que existe, diz que você tem de se alinhar conosco.
— Isso é uma armação e o senhor sabe muito bem.
— Não, não sei. E bem lá no fundo, você também não.
Deixe-me perguntar uma coisa. Por que, em sua opinião,
Lewis e Clarke foram mandados parar quando da
investigação do caso Dollmaker? Quem você julga que
puxou as rédeas?
Quando Bosch não respondeu, Irving assentiu com a
cabeça.
— Está vendo, nós tivemos que tomar uma decisão.
Seria melhor ver um dos nossos detetives arrastado pelos
jornais e levado a tribunal, ou que ele fosse despromovido e
transferido sem alarido? Deixou a pergunta no ar durante
uns segundos antes de continuar. — Mais uma coisa. Lewis
e Clarke vieram ter comigo na semana passada com a
história daquilo que você lhes fez. Algemá-los àquela
árvore. Muito brutal, foi muito brutal aquilo. Mas eles
estavam tão felizes como um par de chefes de torcida
depois de uma noite com a equipe de futebol. Tinham-no
preso pelos culhões e estavam prontos para colocar no
papel naquele preciso momento.
— Eles me tinham preso, mas eu também os tinha.
— Não. É isso que eu estou lhe dizendo. Eles vieram ter
comigo com esta história do microfone no telefone, aquilo
que você lhes disse. Mas na verdade eles não tinham posto
nenhum microfone no seu telefone, como você julgava. Eu
verifiquei. É isso que eu estou lhe dizendo. Eles tinham-no
bem ferrado.
— Então, quem...? Bosch se calou de imediato. Sabia
qual era a resposta.
— Eu lhe disse para aguentarem uns dias. Para
observarem, para verem o que acontecia. Estava
acontecendo alguma coisa. Era sempre muito difícil puxar
as rédeas daqueles dois homens quando se tratava de si.
Eles passaram da linha, se excederam quando decidiram
interpelar aquele sujeito, o Avery, e depois quando lhe
disseram para levá-los à caixa-forte. Pagaram o preço.
— E quanto ao FBI? O que eles dizem sobre o
microfone?
— Não sei e não vou perguntar. Se o fizesse, eles
responderiam: “Qual microfone?”. Você sabe isso tão bem
como eu.
Bosch assentiu, se sentindo imediatamente farto do
homem. Havia um pensamento que estava tentando lhe
entrar na cabeça e que ele não queria deixar entrar.
Desviou os olhos de Irving e olhou para a janela. Irving
voltou a lhe dizer para pensar no departamento antes de
fazer fosse o que fosse e foi embora. Quando teve certeza
que Irving já tinha chegado ao fundo do corredor, Bosch
brandiu o braço atirando com a jarra das margaridas ao
chão e fazendo-a rebolar até ao canto do quarto. A jarra era
de plástico e não se partiu. O único estrago foi entornar a
água e as flores espalhadas. O rosto de fuinha de Galvin
Júnior entrou e saiu do quarto. Ele não disse nada, mas foi
uma indicação para Bosch de que o homem dos Assuntos
Internos estava a postos no corredor. Era para protegê-lo?
Ou ao departamento? Bosch não sabia. Já não sabia nada.
Bosch empurrou para o lado um tabuleiro com uma refeição
institucional, em que não tocara, de rolinho de peru com
molho, milho, inhame, um pãozinho duro, que era suposto
ser macio, e um pudim de morangos com chantilly.
— Se comer isso, é capaz de nunca mais sair aqui.
Levantou os olhos. Era Eleanor. Estava parada na porta
aberta, sorrindo. Ele retribuiu o sorriso. Não conseguiu
evitar.
— Eu sei.
— Como está, Harry?
— OK. Vou ficar bem. Posso nunca mais poder voltar a
fazer flexões, mas conseguirei sobreviver com isso. Como
está, Eleanor?
— Estou bem, respondeu ela e o seu sorriso cortou-lhe o
coração. — Fizeram-no passar pela moedora de carne hoje?
— Oh, sim. Em fatias e quadradinhos. Os melhores e os
mais inteligentes do meu belo departamento mais um par
dos seus amigos estiveram me torturando toda a manhã. Há
uma cadeira deste lado.
Ela deu à volta à cama, mas continuou de pé ao lado da
cadeira. Olhou em volta e uma leve ruga lhe franziu a testa,
como se ela conhecesse o quarto e por isso soubesse que
havia qualquer coisa que não estava bem.
— Também fizeram o mesmo comigo. Ontem à noite.
Não quiseram me deixar vir aqui até tê-lo interrogado.
Ordens, não queriam que combinássemos a história. Mas
acho que as nossas histórias saíram bem. Pelo menos, não
voltaram a me interrogar depois de falarem consigo.
Disseram-me que não era preciso mais nada.
— Encontraram os diamantes?
— Não, pelo menos que eu saiba, mas eles já não me
contam grande coisa. Hoje tinham duas equipes
trabalhando nisso, mas eu já estou fora. Fui posta na mesa
até isto acalmar e a equipe que trata dos tiroteios faz o
trabalho. Provavelmente, ainda estão na casa do Rourke.
— E quanto ao Tran e ao Binh? Estão colaborando?
— Não. Recusam-se a dizer uma palavra que seja. Sei
disso através de um amigo que esteve no interrogatório.
Não sabem nada sobre diamantes nenhum. Provavelmente,
organizaram a turma deles, tipo destacamento armado.
Também vão se juntar à caça do tesouro.
— Onde pensa que o tesouro possa estar?
— Não faço a mínima ideia. Esta coisa toda, Harry, deu
conta de mim. Já não sei o que pensar de nada.
E isso incluía o que ela pensava dele, ele sabia. Não
disse nada e passado um tempo o silêncio se tornou
desconfortável.
— O que aconteceu, Eleanor? O Irving me disse que
Lewis e Clarke interceptaram Avery. Mas é a única coisa que
sei. Não compreendo.
— Eles nos viram vigiando a caixa-forte durante toda a
noite. Devem ter metido nas cabeças que éramos os vigias.
Se partisse da presunção de que você era um policial sujo,
como eles fizeram, era capaz de ter chegado à mesma
conclusão. Por isso, quando o viram afastar Avery e mandar
os policiais fardados para casa, imaginaram que sabiam
qual era o seu jogo. Pegaram o Avery no Darlings e ele lhes
contou da sua visita no dia anterior e dos alarmes todos
desta semana e depois deixa escapar que você não quis
que ele abrisse a caixa-forte.
— E eles perguntaram: “Quer dizer que o senhor pode
abrir a caixa-forte?” e lá foram eles, se esgueirando pelo
beco.
— Eles tinham essa mania de quererem ser heróis.
Apanhar ao mesmo tempo os policiais sujos e os ladrões.
Um belo plano até ao ajuste de contas.
— Coitados dos estúpidos idiotas.
— Coitados dos estúpidos idiotas. O silêncio voltou, mas
desta vez Eleanor não esperou que ele se instalasse.
— Bem, só queria ver como estava. Ele assentiu.
— E... E dizer... “Aqui está”, pensou ele, o beijo de
despedida. —... Que decidi desistir. Vou deixar o FBI.
— E quanto ao... O que vai fazer?
— Não sei. Mas tenho que ir embora daqui, Harry. Tenho
algum dinheiro, por isso, vou viajar durante algum tempo e
depois verei o que quero fazer.
— Eleanor, por quê?
— Eu não... É difícil explicar. Tudo o que aconteceu. Tudo
neste trabalho se transformou em merda. E acho que não
vou ser capaz de voltar a trabalhar naquela sala depois de
tudo o que aconteceu.
— Mas volta para Los Angeles? Ela olhou para as mãos e
depois voltou a olhar em volta do quarto.
— Não sei Harry. Desculpe. Parecia que... Não sei, neste
momento estou muito confusa em relação às coisas.
— Quais coisas?
— Não sei. Nós. Aquilo que aconteceu. Tudo.
O silêncio voltou a encher o quarto e parecia tão alto
que Bosch só esperava que uma enfermeira ou até mesmo
Galvin Júnior metessem a cabeça lá dentro para verem se
estava tudo bem. Precisava desesperadamente de um
cigarro. Deu conta de que era a primeira vez naquele dia
que pensava em fumar. Agora, Eleanor olhava para os pés e
ele olhava para o tabuleiro da comida. Agarrou no pão e
começou a atirá-lo ao ar e a apanhá-lo como se fosse uma
bola de beisebol. Passado um tempo, os olhos de Eleanor
fizeram a sua terceira viagem à volta do quarto sem verem
fosse lá o que fosse de que ela andava à procura. Bosch não
conseguia entender.
— Não recebeu as flores que eu mandei?
— Flores?
— Sim, mandei margaridas. Como as que crescem na
colina por baixo da sua casa. Não as vejo aqui.
“Margaridas”, Bosch pensou. A jarra que ele tinha jogado de
encontro à parede. “Onde estão os malditos dos cigarros”,
queria gritar.
— Provavelmente, trazem-nas mais tarde. Aqui, só
fazem entregas uma vez por dia. Ela franziu a testa. —
Sabe, continuou Bosch, — Se Rourke sabia que tínhamos
encontrado a segunda caixa-forte e a estávamos vigiando e
se sabia que nós tínhamos visto o Tran entrar e limpar o
cofre dele, por que ele não mandou os homens saírem? Isso
é que está me incomodando nesta coisa toda. Por que ele
continuou com o plano? Ela abanou a cabeça devagarinho.
— Não sei. Talvez... Bem, venho pensando que talvez
ele quisesse que eles fossem mortos. Ele conhecia aqueles
tipos, vai ver ele sabia que a coisa iria acontecer, que eles
iriam morrer atirando, que sem eles ele ficaria com todos os
diamantes da primeira caixa-forte.
— Sim. Mas sabe, estive me lembrando de coisas
durante todo o dia. De quando estávamos lá em baixo. Tem
me voltado à memória e lembro que ele não disse que ia
ficar com tudo. Disse qualquer coisa sobre a sua parte ser
maior agora que Meadows e os outros dois estavam mortos.
Ele continuou a usar a palavra “parte”, como se ainda
houvesse alguém com quem dividir. Ela ergueu as
sobrancelhas.
— Talvez, mas isso é só uma questão de semântica,
Harry.
— Talvez.
— Tenho de ir embora. Sabe quanto tempo vai ficar
aqui?
— Não me disseram, mas penso que amanhã dou alta a
mim mesmo. Estou pensando em ir ao funeral do Meadows
nos veteranos.
— Um funeral no Memorial Day. Parece-me apropriado.
— Quer vir comigo?
— Mmm, não. Não me parece que queira ter mais
alguma coisa a ver com Mr. Meadows... Mas vou estar no
departamento amanhã. Limpando a minha mesa e
escrevendo relatórios do estado dos casos que vou passar
aos outros agentes. Pode passar por lá, se quiser. Faço café,
como da outra vez. Mas, sabe, não acredito que se vão
deixá-lo sair tão depressa, Harry. Não com um ferimento à
bala. Precisa descansar. De sarar um bocadinho.
— Claro, disse Bosch. Ele sabia que ela estava lhe
dizendo adeus.
— OK, então, talvez a gente volte a se ver.
Ela se inclinou e lhe deu um beijo de adeus e ele sabia
que era um adeus a tudo o que tinha existido entre eles. Ela
já tinha quase passado a porta quando ele abriu os olhos.
— Só uma última coisa, disse ele e ela se voltou e olhou
para ele. — Como me encontrou Eleanor? Sabe, nos túneis
com o Rourke. Ela ergueu as sobrancelhas outra vez.
— Bem, eu desci com o Hanlon. Mas quando saímos do
túnel escavado à mão, nos separamos. Ele foi para um lado
naquela primeira linha e eu fui para o outro. Escolhi a certa.
Encontrei o sangue. Depois encontrei Franklin. Morto. E
depois disso, foi um pouquinho de sorte. Ouvi os tiros e
depois as vozes. Quase só a voz do Rourke. Fui atrás. Por
que se lembrou disso agora?
— Não sei. Surgiu de repente. Salvou a minha vida.
Olharam um para o outro. A mão dela estava na
maçaneta da porta e esta estava aberta apenas o suficiente
para permitir que Bosch conseguisse olhar para lá dela e ver
que Galvin Júnior ainda estava ali, sentado numa cadeira do
corredor.
— A única coisa que posso dizer é obrigado. Ela fez um
som como se estivesse mandando ele se calar, rejeitando a
gratidão dele.
— Não precisa dizer nada.
— Não se demita. Ele viu a abertura da porta
desaparecer e com ela o Júnior. Ela ficou ali parada, em
silêncio.
— Não vá embora.
— Preciso ir. Até depois, Harry. Abriu a porta outra vez,
desta vez toda. — Adeus, Harry, disse e desapareceu.
Bosch permaneceu sem se mexer, deitado na cama do
hospital durante mais de uma hora. Estava pensando em
duas pessoas: Eleanor Wish e John Rourke. Durante muito
tempo, fechou os olhos e se concentrou na expressão do
rosto de Rourke quando caiu na água preta. “Eu também
ficaria surpreso”, pensou Bosch, mas também havia outra
coisa lá, qualquer coisa que ele não conseguia identificar.
Uma espécie de olhar conhecedor, de reconhecimento e de
resolução não de que estava morrendo, mas de outro
conhecimento secreto.
Passado um tempo, se levantou e deu alguns passos
hesitantes à volta da cama. Sentia o corpo fraco, mas todos
os sonos daquelas últimas trinta e seis horas tinham-no
feito ficar agitado. Depois de ter conseguido se orientar e
dos seus ombros terem feito uma adaptação dolorosa à
gravidade, começou a nadar para frente e para trás ao lado
da cama. Vestia um pijama verde-claro do hospital e não
uma daquelas batas abertas atrás que teria achado
humilhante. Passarinhou pelo quarto de pés descalços,
parando para ler os cartões que tinham vindo com as flores.
A liga protetora mandara uma das jarras. As outras tinham
vindo de dois policiais que ele conhecia, mas de quem não
era particularmente chegado, da viúva de um antigo
parceiro, do seu advogado do sindicato e de outro antigo
parceiro que morava em Ensenada.
Afastou-se das flores e se encaminhou para a porta.
Abriu-a uma nesga e viu Galvin Júnior ainda sentado lá,
lendo um catálogo de equipamento policial. Bosch abriu a
porta toda. A cabeça de Galvin deu um salto e ele fechou a
revista de supetão e enfiou-a numa pasta que tinha próximo
aos pés. Não disse nada.
— Então Clifford, eu espero poder tratá-lo assim, o que
está fazendo aqui? Acham que corro perigo?
O policial mais novo não disse nada. Bosch olhou para
um lado e para o outro do corredor e viu que estava
completamente deserto até à divisória das enfermeiras ao
fundo do corredor a uns quinze metros de distância. Olhou
para a porta do seu quarto e viu que estava no número 313.
— Detetive, por favor, volte para o seu quarto, acabou
por dizer Galvin. — Só estou aqui para impedir que a
imprensa entre no seu quarto. O subchefe pensa que eles
vão tentar entrar aqui para conseguirem uma entrevista e a
minha função é impedir isso, impedir que o incomodem.
— E se eles utilizarem o método furtivo de, Bosch fez
uma grande representação fingindo que olhava de uma
ponta para a outra do corredor para se certificar que
ninguém podia ouvi-los, — Usarem o telefone? Galvin soltou
um suspiro ruidoso e continuou a não olhar para Bosch.
— As enfermeiras estão controlando as chamadas que
entram. Só família, e, segundo me disseram, você não tem
família, por isso, não há telefonemas.
— Como àquela senhora agente do FBI passou por si?
— Tinha autorização do Irving. Volte para o seu quarto,
por favor.
— Claro.
Bosch se sentou na cama e tentou rever mentalmente o
caso todo. Mas, quanto mais virava e revirava as várias
partes dele na cabeça, mais crescia aquela sensação de
ansiedade de que estar sentado na cama de um hospital era
uma perda de tempo. Sentiu que estava à beira de qualquer
coisa, de uma forma de entrar na lógica do caso. O trabalho
de um detetive era percorrer o trilho das provas, examinar
cada uma delas e trazê-las à luz. No final do trilho, o que
tinha no cesto fazia ganhar ou perder o caso. Bosch tinha
um cesto cheio, mas começava a pensar que havia pedaços
que faltavam. O que ele tinha deixado escapar? O que o
Rourke lhe dissera no fim? Não tanto com as palavras que
usara, mas com o seu significado. E a expressão do rosto
dele. Surpresa. Mas surpresa com o quê? Estava chocado
com a bala? Ou chocado de onde e de quem viera? Podiam
ter sido as duas coisas, concluiu Bosch, mas de qualquer
maneira, o que queria dizer?
A referência que Rourke fizera da sua parte ter ficado
maior com as mortes de Meadows, Franklin e Delgado
continuava a perturbar Bosch. Tentou se colocar na posição
de Rourke. Se todos os seus sócios tivessem morrido e ele
fosse o único beneficiário do assalto à primeira caixa-forte,
diria: “A minha parte aumentou” ou diria simplesmente: “É
tudo meu”? Bosch tinha a impressão que teria dito a última
frase, a não ser que ainda houvesse alguém com quem
partilhar o bolo. Decidiu que tinha de fazer qualquer coisa.
Tinha de sair daquele quarto. Não estava em prisão
domiciliar, mas sabia que se fosse embora, Galvin estava ali
para segui-lo e informar Irving. Experimentou o telefone e
descobriu que fora ligado, tal como Irving prometera. Não
podiam telefonar para lá, mas Bosch podia telefonar para
fora.
Levantou-se e foi olhar o armário. Sapatos, meias e
calças, mais nada. As calças tinham marcas de fricção, mas
foram limpas e engomadas pelo hospital. O paletó esportivo
e a camisa, muito provavelmente, tinham sido cortados com
uma tesoura na urgência e ou foram jogadas fora, ou
metidos num saco para as provas. Apanhou a roupa e se
vestiu, enfiando a parte de cima do pijama nas calças
quando acabou. Ficou com um ar de bronco, mas serviria
até arranjar outra roupa lá fora. A dor no braço era menos
intensa quando punha o braço à frente do peito, por isso,
começou a pôr o cinto em volta dos ombros para usar como
apoio. Mas, decidindo que isso faria com que ele desse nas
vistas ao sair do hospital, voltou a enfiar o cinto nas
presilhas das calças. Abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e
descobriu a carteira e o distintivo, mas não havia arma.
Quando estava pronto, apanhou o telefone em cima da
mesa de cabeceira, ligou para a operadora e pediu para
ligar ao posto de enfermagem do terceiro andar. Uma voz
feminina atendeu e Bosch se identificou como o subchefe
Irving.
— É capaz de chamar o detetive Galvin, o meu homem
que está sentado na cadeira ao fundo do corredor, ao
telefone? Preciso falar com ele.
 
Bosch pousou o telefone em cima da cama e se dirigiu
na ponta dos pés para a porta. Abriu-a apenas o suficiente
para ver Galvin sentado na cadeira, outra vez lendo o
catálogo. Bosch ouviu a enfermeira chamá-lo ao telefone e
Galvin se levantou. Bosch esperou dez segundos antes de
olhar para o fundo do corredor. Galvin ainda ia a caminho do
posto de enfermagem. Bosch saiu do quarto e começou a
andar silenciosamente na direção oposta. Ao fim de dez
metros, havia um cruzamento de corredores e Bosch
escolheu o da esquerda. Chegou a um elevador com um
letreiro por cima da porta que dizia “Só Para Uso do Pessoal
do Hospital” e apertou o botão. Quando o elevador chegou,
era uma coisa de aço inoxidável e madeira falsa com outra
porta na parte de trás, suficientemente grande para pelo
menos duas camas poderem ser empurradas lá para dentro.
Apertou o botão de rés-do-chão e as portas se fecharam. O
seu tratamento para o ferimento da bala terminara.
O elevador largou Bosch na sala das urgências.
Atravessou-a e saiu para a noite. No caminho para a
Delegacia de Hollywood num táxi, pediu ao taxista para
parar no seu banco, onde tirou dinheiro de uma caixa-
eletrônica, e depois num drugstore Sav-On, onde comprou
uma camisa esportiva barata, um pacote de maços de
cigarros, um isqueiro, visto que não conseguia acender
fósforos, algodão, ataduras novas e um apoio para o braço.
O apoio era azul marinho. Seria perfeito para um funeral.
Pagou ao taxista à porta da delegacia na Wilcox e entrou
pela porta da frente, onde sabia que havia menos
probabilidades de ser reconhecido ou de lhe dirigirem a
palavra. Na recepção estava um calouro que ele não
conhecia com o mesmo motoqueiro gordo com o rosto
marcado pela acne que tinha trazido a pizza para Sharkey.
Bosch mostrou o distintivo e passou sem dizer uma palavra.
A sala de trabalho dos detetives estava às escuras e
deserta, como acontecia na maior parte das noites de
domingo, mesmo em Hollywood. Bosch tinha um abajur de
mesa preso à mesa de trabalho e acendeu-o em vez de usar
as luzes do teto da sala, que podiam atrair a curioAIDSde
dos agentes das patrulhas na sala do comandante de
serviço ao fundo do corredor. Harry não estava com
disposição para responder a perguntas, mesmo às bem
intencionadas dos policiais fardados.
Primeiro se dirigiu ao fundo da sala e pôs uma cafeteira
de café para trabalhar. Depois entrou numa das salas de
interrogatórios para vestir a camisa nova. O ombro disparou
setas de dor que lhe atravessaram o peito e o braço quando
despiu a camisa do hospital, se sentou numa cadeira e
examinou as ataduras para ver se havia sinais de sangue.
Não havia. Com todo o cuidado, e com muito menos dores,
enfiou a camisa nova, era GG. Tinha um pequeno desenho
com uma montanha, um sol e uma paisagem marinha no
lado esquerdo e as palavras City of Angels. Bosch tapou
tudo quando pôs a tira para o braço e a ajustou para mantê-
lo bem encostado ao peito. O café já estava feito quando
acabou de se mudar. Levou uma xícara fumegante para a
mesa, acendeu um cigarro e tirou o livro do homicídio e os
outros dossiês do caso Meadows da gaveta de um armário.
Olhou para a pilha e não sabia por onde começar nem o que
andava procurando. Começou lendo tudo na esperança de
que alguma coisa que não fizesse sentido despertasse a sua
atenção.
Estava à procura de qualquer coisa, um nome novo,
uma discrepância nas declarações de alguém, qualquer
coisa que tivesse sido ignorada anteriormente por não ser
importante, mas que agora parecesse diferente. Releu
rapidamente os seus próprios relatórios porque ainda se
lembrava da maior parte das informações. Depois releu o
registro militar de Meadows. Era a versão menor, a que fora
entregue pelo FBI. Não fazia a menor ideia do que tinha
acontecido aos registros mais completos que recebera de
St. Louis e que tinha deixado no carro quando correra para a
caixa-forte na manhã anterior. Nessa altura, se deu conta de
que também não sabia onde estava o carro.
Bosch não conseguiu nada dos relatórios militares.
Quando estava olhando para a miscelânea de relatórios no
fim do dossiê, as luzes do teto se acenderam e entrou um
velho policial de ronda chamado Pederson. Dirigia-se para
uma das máquinas de escrever com um relatório de uma
detenção na mão e só reparou em Bosch quando já estava
sentado. Olhou em volta quando sentiu o cheiro do cigarro e
do café e viu o detetive de braço ao peito.
— Harry, como vai isso? Deixaram você sair muito
depressa. O que correu por aqui é que ficara machucado
seriamente.
— Foi só um arranhão, Peds. Ficamos bem pior com as
unhas dos eles-elas que engavetamos aos sábados à noite.
Pelo menos, com uma bala, não precisamos de nos
preocupar com a merda da AIDS.
— Para quem fala...
Pederson massajou instintivamente o pescoço onde
ainda tinha as cicatrizes dos arranhões infligidos por um
travesti infectado com o vírus da AIDS que se andava se
prostituindo. O velho policial tinha suado durante dois anos
de testes de três em três meses, mas não tinha apanhado o
vírus. Era uma história que tinha se tornado uma lenda de
pesadelo na divisão e que era, provavelmente, a única
razão da ocupação média das celas das prostitutas na
cadeia da delegacia ter baixado para metade desde essa
altura. Ninguém queria prendê-las a não ser por homicídio.
— Bem, seja como for, disse Pederson, — Lamento que
tudo aquilo tenha acabado em merda, Harry. Ouvi dizer que
o segundo policial tinha passado para código sete há pouco.
Dois policiais e um agente federal mortos num tiroteio. Para
não falar do seu braço todo fodido. Provavelmente, é uma
espécie de recorde nesta cidade. Importasse que eu beba
uma xícara?
Bosch apontou para a cafeteira. Não tinha ouvido dizer
que Clarke tinha morrido. Código sete. Fora de serviço, para
sempre. Continuava a não conseguir ter pena dos dois
policiais dos Assuntos Internos e isso fazia com que tivesse
pena de si próprio. Fazia com que sentisse que o
endurecimento do coração agora estava completo. Já não
sentia compaixão por ninguém, nem sequer por dois
desgraçados imbecis e idiotas que meteram o pé na merda
e arranjaram maneira de serem mortos.
— Aqui ninguém diz patavina, dizia Pederson enquanto
se servia, — Mas quando eu li aqueles nomes no jornal,
disse: “Uauuu! Eu conheço esses tipos.” Lewis e Clarke.
Eram dos Assuntos Internos, não pertenciam a nenhuma
vigilância de bancos. As pessoas chamavam àqueles dois os
grandes idiotas. Andavam sempre farejando e revolvendo
tudo, à procura de uma maneira de foder alguém. Acho que
toda a gente sabe que é isso que eles eram, exceto a TV e o
Times. Bem, seja como for, não há dúvida que é curioso,
mas o que eles estariam fazendo lá?.
Bosch não ia morder a isca. Pederson e os outros
policiais iam precisar descobrir por outra fonte o que tinha
realmente acontecido na Beverly Hills Safe & Lock. De fato,
ele começava a duvidar que Pederson tivesse qualquer
relatório para escrever à máquina. Ou teria o calouro da
recepção espalhado a notícia de que Bosch estava no
departamento e o velho policial de ronda seria o
encarregado de sondá-lo? Pederson tinha o cabelo mais
branco do que a neve e era considerado um policial velho,
mas, na realidade, era pouco mais velho do que Bosch.
Tinha feito a ronda do Boulevard, a pé ou de carro, no turno
da noite durante vinte anos e isso era suficiente para trazer
cabelos brancos a um homem novo. Bosch gostava de
Pederson. Era uma fonte inesgotável de informações sobre a
rua. Raramente havia um homicídio no Boulevard sem que
Bosch conferenciasse com ele para ver o que os
informantes dele andavam dizendo. E normalmente, ele
tinha informações corretas.
— Sim, é curioso, disse Bosch. Não acrescentou mais
nada.
— Está escrevendo relatórios sobre o seu tiroteio?
Perguntou Pederson depois de se ter sentado em frente de
uma máquina de escrever. Quando Bosch não respondeu,
acrescentou: — Tem mais algum desses cigarros?
Bosch se levantou e levou um maço inteiro a Pederson.
Pousou-os na máquina de escrever à frente dele e disse que
eram para ele. Pederson notou a mensagem. Não era nada
de pessoal, mas Bosch não ia falar do assunto,
principalmente sobre o que dois tiras do Departamento dos
Assuntos Internos andavam fazendo lá. Pederson começou a
trabalhar na máquina de escrever depois daquilo e Bosch
voltou ao seu livro do homicídio. Acabou de lê-lo sem que
nem uma lâmpada de quarenta watts acendesse em sua
cabeça. Ficou ali sentado, com a máquina de escrever
matraqueando como pano de fundo, fumando e tentando
pensar no que poderia fazer mais. Não havia nada. Tinha
chegado a um beco sem saída. Decidiu telefonar para casa
e ouvir as mensagens na secretária-eletrônica. Pegou o
telefone, mas depois pensou que era melhor não o usar e
voltou a largá-lo. Com a esperança de que o seu telefone de
mesa não fosse uma linha privada, deu a volta e foi até ao
lugar de Jerry Edgar e usou a dele. Ligou para a sua
secretária-eletrônica, discou o código e ouviu enquanto ela
repassava uma dúzia de chamadas. As primeiras nove eram
de policiais e alguns velhos amigos lhe desejando uma
rápida recuperação. As últimas três, as mensagens mais
recentes, eram do médico que o estivera tratando, de Irving
e de Pounds.
— Mr. Bosch, daqui é o Dr. McKenna. Considero que foi
muito pouco sensato e muito perigoso ter saído do hospital.
Está se arriscando a agravar os seus problemas. Se ouvir
esta mensagem, faça o favor de voltar para o hospital.
Estamos guardando a cama. Não poderei tratá-lo nem
considerá-lo como meu doente se não regressar. Por favor.
Obrigado.
Irving e Pounds não estavam tão preocupados com o
bem estar de Bosch. A mensagem de Irving dizia:
“Não sei onde está nem o que anda fazendo,
detetive Bosch, mas é melhor que tenha sido só por
não gostar da comida do hospital. Pense no que lhe
disse detetive. Não faça nenhuma bobagem das que
ambos nos venhamos a arrepender”.
Irving não se tinha dado ao trabalho de se identificar,
mas não precisava. Acontecia o mesmo com Pounds. O
recado dele era o último. Era o coro.
“Bosch telefone para aminha casa logo que seja
possível. Informaram-me que saiu do hospital e
precisamos conversar. Bosch, não está autorizado,
repito, não está autorizado a continuar com nenhuma
linha de investigação relacionada com o tiroteio de
sábado. Telefone”.
Bosch desligou. Não ia telefonar para nenhum dos dois.
Ainda não. Enquanto estava sentado no lugar de Edgar
reparou num livro de rascunhos em cima da mesa onde
estava escrito o nome Veronica Niese. A mãe de Sharkey.
Também estava lá um número de telefone. Edgar devia ter
lhe telefonado para notificá-la da morte do filho. Bosch
pensou nela ouvindo a secretária-eletrônica, esperando que
fosse mais uma chamada de um dos ordinários dos seus
clientes e, em vez disso, ser o Jerry Edgar para dizer que o
filho estava morto. Pensar no rapaz fez com que Bosch se
lembrasse da entrevista. Ainda não a tinha transcrito.
Resolveu ouvi-la e voltou para o seu lugar na mesa. Tirou o
gravador de uma das gavetas. A fita não estava lá.
Lembrou-se de que a tinha dado a Eleanor.
Dirigiu-se ao armário dos equipamentos, tentando
calcular se o interrogatório ainda estaria na fita de
segurança. A fita de segurança rebobinava
automaticamente quando chegava ao fim e depois
começava a gravar por cima. Dependendo do número de
vezes que o sistema de gravação da sala de interrogatórios,
tivesse sido utilizado desde a sessão de terça-feira com
Sharkey, o interrogatório do rapaz podia estar ainda intato
na gravação de segurança. Bosch fez saltar o cassete do
gravador e trouxe-o para a sua mesa de trabalho. Colocou-o
no seu gravador portátil, pôs uns fones e rebobinou a fita
até ao princípio. Foi rebobinando-a, parando de vez em
quando para ouvir uns segundos, tentando distinguir a sua
própria voz, ou a de Sharkey ou de Eleanor e avançando a
seguir dez segundos na velocidade mais alta. Repetiu este
processo durante vários minutos até que chegou à
entrevista com o Sharkey na última metade da fita. Mal a
encontrou, rebobinou o cassete até ao princípio da
entrevista para ouvi-la toda. Fê-lo demasiado depressa e
acabou ouvindo meio minuto do final de um interrogatório
anterior. Depois ouviu a voz de Sharkey.
— Para onde está olhando?
— Não sei. Era Eleanor.
— Estava pensando se me conhecia. Parece-me familiar.
Não me dei conta de que estava olhando.
— O quê? Por que eu a havia de conhecer? Nunca me
meti em nenhuma merda federal. Não sei...
— Não interessa. Pareceu-me familiar, mais nada.
Estava só pensando se você me reconhecia. Por que não
esperamos até vir o detetive Bosch?
— Sim. OK. Certo.
Seguia-se um pedaço de silêncio na gravação. Ao ouvir
aquilo, Bosch se sentiu confuso. Depois notou que, o que
acabara de ouvir fora dito antes dele entrar na sala de
interrogatórios. O que ela estivera fazendo? O silêncio da
fita acabou e Bosch ouviu a sua própria voz:
— Sharkey, vamos gravar isto porque nos poderá vir a
ser útil voltar a ouvir o que foi dito. Como já disse, não é
suspeito, por isso, não tem...
Bosch parou a fita e voltou para trás até à troca de
palavras entre o rapaz e Eleanor. Voltou a ouvi-la uma e
outra vez. De todas às vezes, se sentiu como se tivessem
lhe dado um murro no coração. Tinha as mãos suando e os
dedos escorregavam nos botões do gravador. Por fim,
arrancou os fones e atirou-os para cima da mesa. “Merda!”.
Pederson parou de datilografar e olhou para ele.
 
CAPÍTULO 9
Memorial Day
Quando Bosch chegou ao cemitério dos veteranos em
Westwood, passava pouco da meia-noite.
Tinha requisitado um carro novo na garagem da frota de
Wilcox e depois passara pelo apartamento de Eleanor Wish.
Não havia luzes acesas e se sentiu como um adolescente
vigiando a namorada que o largara. Embora estivesse
sozinho no carro, se sentiu envergonhado. Não sabia o que
teria feito se houvesse uma luz acesa. Voltou para trás, em
direção ao cemitério a leste, pensando em Eleanor e em
como ela o tinha traído no amor e no trabalho, tudo ao
mesmo tempo. Começou com a hipótese de Eleanor ter
perguntado a Sharkey se a reconhecia porque era ela que
estivera no jipe que levara o cadáver de Meadows para o
reservatório. Ela estivera à procura de uma indicação de
que o rapaz tinha compreendido isso e a tinha reconhecido.
Mas ele não a tinha reconhecido. Sharkey continuara
falando depois de Bosch ter se juntado ao interrogatório
dizendo que tinha visto duas pessoas que ele julgava serem
homens. Disse que o menor ficara no jipe, no lugar do
passageiro, e não tinha ajudado em nada com o cadáver. Na
opinião de Bosch o engano do rapaz devia ter lhe salvo a
vida. Mas ele sabia que fora ele quem tinha condenado o
rapaz quando sugeriu que o hipnotizassem. Eleanor tinha
informado Rourke, que sabia que não podia se arriscar a
isso.
Depois havia a questão do porquê. O dinheiro era a
resposta óbvia, mas Bosch não se sentia muito confortável
em atribuir este motivo a Eleanor. Havia mais alguma coisa.
Os outros envolvidos Meadows, Franklin, Delgado e Rourke
todos partilhavam de uma ligação com o Vietnam assim
como um conhecimento direto dos dois alvos: Binh e Tran.
Como Eleanor encaixava nisto? Bosch pensou no irmão dela,
morto no Vietnam. Seria a ligação? Lembrava-se de que ela
lhe dissera que o nome dele era Michael, mas ela não
dissera como ou quando ele fora morto. Bosch não a tinha
deixado. Agora lamentava tê-la impedido quando,
aparentemente, ela quisera falar dele. Ela tinha mencionado
o memorial em Washington e como ele a tinha modificado.
O que ela poderia ter visto que pudesse fazer isso? O que o
muro poderia ter dito que ela já não soubesse?
Seguiu até ao cemitério no Sepúlveda Boulevard e levou
o carro até aos grandes portões de ferro que estavam
fechados cortando o acesso à estrada de cascalho. Bosch
saiu do carro e caminhou até aos portões, mas estavam
fechados com uma corrente e um cadeado. Espreitou por
entre as grades pretas e viu uma pequena casa de pedra a
cerca de trinta metros da estrada de cascalho. Viu o clarão
azul-claro da luz de uma televisão na cortina de uma janela.
Voltou para o carro e ligou a sirene. Deixou-a tocar até
aparecer uma luz por trás da cortina. O guarda do cemitério
saiu uns momentos depois e se encaminhou para os portões
com uma lanterna na mão, enquanto Bosch tirava a carteira
com o distintivo e segurava aberta pelo meio das grades. O
homem usava calças escuras e uma camisa azul-clara com
uma identificação de lata no peito.
— É da polícia? Perguntou ele. Bosch teve vontade de
responder que não, que era da Amway. Em vez disso, disse:
— Departamento de Polícia de Los Angeles. Gostaria
que me abrisse o portão. O guarda fez incidir a luz da
lanterna no distintivo e na identificação. Com a luz, Bosch
conseguiu ver as suíças brancas no rosto do homem e sentir
o cheiro leve a Bourbon e a suor.
— Qual é o problema, agente?
— Detetive. Estou trabalhando na investigação de um
homicídio, Mr...?
— Kester. Homicídio? Temos muita gente morta aqui,
mas julgo que podemos dizer que esses casos estão
fechados.
— Mr. Kester, eu não tenho tempo para explicar os
pormenores todos, mas o que eu preciso é de ver o
memorial do Vietnam, a réplica que está aqui em exposição
durante o fim-de-semana.
— O que está acontecendo com o seu braço? E onde
está o seu companheiro? Vocês não andam sempre aos
pares?
— Fui ferido, Mr. Kester. O meu companheiro está
trabalhando noutro ângulo da investigação. O senhor vê
demasiada televisão naquela sua salinha. Isso são coisas
dos tiras da televisão.
Bosch disse esta última parte com um sorriso, mas já
estava começando a ficar farto do velho guarda. Kester se
voltou, olhou para a casa do cemitério e voltou a olhar para
Bosch.
— Viu a luz da TV, não foi? Essa eu descobri. Uh, isto é
propriedade federal e não sei se posso abrir sem...
— Olhe Kester, eu sei que é um funcionário público e
que eles já não despedem ninguém desde que o Truman era
presidente. Mas se começar a me tornar a vida difícil por
causa disto, eu vou lhe tornar a vida difícil. Faço queixa de
si por beber no trabalho na terça-feira de manhã. Agora
vamos a isto. Abra o portão e eu não o chateio. Só preciso
dar uma olhadela no muro. Bosch chocalhou a corrente.
Kester olhou com uma expressão mortiça para o cadeado e
depois pescou um anel de chaves do cinto e abriu o portão.
— Desculpe, disse Bosch.
— Não me parece que isto seja correto, disse Kester
furioso. — Afinal, o que a pedra preta tem a ver com um
homicídio?
— Vai ver, tem tudo, respondeu Bosch.
Começou a andar para o carro, mas depois deu meia
volta, tendo se lembrado de uma coisa que tinha lido acerca
do memorial.
— Há um livro. Diz onde estão os nomes no muro.
Podemos procurá-los lá. Está lá, próximo do muro? Kester
tinha uma expressão intrigada no rosto que Bosch
conseguia ver mesmo na escuridão.
— Não sei de livro nenhum. A única coisa que sei, é que
os tipos do Serviço de Parques dos EEUU trouxeram essa
coisa para aqui e a montaram. Foi preciso uma máquina
grande para abrir um buraco na colina. Eles têm um tipo
qualquer que fica com ele durante as horas normais das
visitas. A esse deve perguntar pelo livro. E não me pergunte
onde ele está. Nem sequer sei como se chama. Vai demorar
ou deixo aberto?
— É melhor fechar. Eu vou chamá-lo quando for embora.
Bosch passou com o carro pelo portão depois do velhote
tê-lo aberto e subiu até a uma área de estacionamento
perto da colina. Bosch conseguia ver o brilho da pedra na
ferida profunda aberta na elevação. Não havia luzes e a
área estava deserta. Apanhou uma lanterna que tinha no
assento do carro e começou a subir a encosta.
Primeiro, girou a luz de um lado para o outro para ficar
com uma ideia do tamanho do muro. Tinha cerca de dezoito
metros de comprimento, estreitando nas duas
extremidades. Depois se aproximou o suficiente para
conseguir ler os nomes. Foi inundado por um sentimento
inesperado. Um pavor. Não queria ver estes nomes, ele
compreendeu de súbito. Ia haver demasiados que ele
conhecia. E o que era pior, podia encontrar nomes que não
sabia que estavam lá. Girou a lanterna e viu uma mesa de
leitura em madeira, a parte de cima inclinada e com um
rebordo para segurar um livro, como uma estante da Bíblia
numa igreja. Mas quando se
aproximou, viu que não havia nada lá. As pessoas do
serviço dos parques deviam ter levado a lista com eles
como medida de segurança. Bosch se virou e olhou para
trás, para o muro, a extremidade mais afastada se diluindo
na escuridão. Verificou os cigarros e viu que tinha um maço
quase cheio. Confessou a si próprio que já estava esperando
que fosse assim mesmo. Teria de ler cada um dos nomes.
Sabia antes de vir. Acendeu um cigarro e virou a lanterna
para o primeiro painel do muro.
Passaram quatro horas até ele encontrar o primeiro
nome que conhecia. Não era Michael Scarletti. Era Darius
Coleman, um rapaz que Bosch tinha conhecido no Primeiro
de Infantaria. Coleman foi o primeiro homem que Bosch
tinha conhecido, realmente conhecido, a ir pelos ares. Toda
a gente o chamava de “Cake”. Tinha uma tatuagem no
braço, feita com uma faca, que dizia: Cake. E foi morto por
disparos dos seus próprios companheiros quando um
tenente de vinte e dois anos deu as coordenadas erradas
para um ataque aéreo no Triângulo. Bosch estendeu o braço
para o muro e passou os dedos pelas letras do nome do
soldado morto. Tinha visto pessoas fazendo aquilo na
televisão e nos filmes. Imaginou Cake com um cigarro de
maconha atrás da orelha, sentado em cima da sua mochila
e comendo bolo de chocolate de uma lata. Ele estava
sempre negociando para conseguir o bolo dos outros. Os
cigarros faziam-no ansiar por chocolate.
Depois disso, Harry passou para os outros nomes,
parando apenas para acender cigarros, até ficar sem
nenhum. Em perto de mais outras quatro horas, tinha
encontrado mais três dúzias de nomes de soldados que
tinha conhecido e que sabia que tinham morrido. Não houve
nenhuma surpresa nos nomes e por isso, o seu receio a
esse respeito fora infundado. Mas o desespero veio de outra
coisa. Uma pequena fotografia de um homem fardado
estava entalada numa fenda estreitinha entre os painéis de
mármore falso do memorial. O homem oferecia o seu sorriso
orgulhoso e sincero ao mundo. Agora não passava de um
nome num muro. Bosch segurou a fotografia na mão e
virou-a ao contrário. Dizia: “George, temos saudades do seu
sorriso. Todo o nosso amor, Mãe e Teri”. Bosch voltou a
colocar com todo o cuidado a fotografia na fenda, se
sentindo um intruso em algo muito privado. Pensou em
George, um homem que nunca conhecera, e se sentiu triste
por nenhuma razão que fosse capaz de explicar a si próprio.
Passado um tempo, continuou.
No fim, depois de 58 132 nomes, havia um que não
tinha visto. Michael Scarletti. Bosch olhou para o céu.
Estava ficando cor de laranja a este e sentia uma ligeira
brisa que vinha do noroeste. Ao sul, o Edifício Federal se
erguia por cima das árvores do cemitério como uma
gigantesca e escura pedra tumular. Bosch se sentia perdido.
Não sabia por que estava ali nem se o que tinha descoberto
significava alguma coisa. Michael Scarletti ainda estava
vivo? Tinha existido alguma vez? O que Eleanor dissera
sobre a sua visita ao Memorial tinha parecido tão real e
verdadeiro. Como alguma destas coisas poderia fazer
sentido? A luz da lanterna estava fraca e desaparecendo.
Apagou-a.
Bosch dormiu umas duas horas dentro do carro no
cemitério. Quando acordou, o sol estava alto no céu e, pela
primeira vez, reparou que os jardins do cemitério estavam
inundados de bandeiras, cada túmulo assinalado por uma
pequena Old Glory de plástico com uma vara de madeira.
Pôs o carro para trabalhar e, muito devagarinho, avançou
pelas estradas estreitas do cemitério, à procura do lugar
onde Meadows iria ser enterrado. Foi difícil de encontrar.
Estacionadas no meio-fio de uma das estradas que
serpenteava para a seção nordeste do cemitério, se viam
quatro carros com antenas de micro-ondas. Também havia
um grupo de outros carros. Os repórteres. Bosch não estava
esperando todas aquelas câmaras de TV nem de todos
aqueles repórteres. Mas mal viu esta multidão, notou que
tinha se esquecido de que os feriados eram dias de poucas
notícias. E o crime do túnel, como fora batizado pela mídia,
ainda era um assunto quente. Os vampiros do vídeo iam
precisar de imagens novas para os noticiários da noite.
Decidiu ficar no carro e observar enquanto a pequena
cerimônia junto do caixão cinzento de Meadows era filmada
em quadruplicado. Era presidido por um ministro todo
amarrotado que provavelmente vinha de umas missões da
baixa da cidade. Não havia ninguém que estivesse
verdadeiramente acompanhando o funeral, excetuando
alguns profissionais dos VFW. Também havia uma guarda de
honra constituída por três homens de sentido. Quando
acabou, o ministro apertou no pedal do freio com o pé e o
caixão desceu lentamente. As câmaras se aproximaram. A
seguir, as equipes dos jornalistas se separaram em direções
diferentes para filmar os repórteres fazendo as suas
intervenções finais em locais diferentes do cemitério.
Espalharam-se num semicírculo. Assim, cada um dos
repórteres daria a ideia de que ele ou ela tinha sido o único
a estar presente. Bosch reconheceu algumas das pessoas
que já tinham lhe enfiado microfones no rosto em ocasiões
anteriores. Então reparou que um dos homens que ele tinha
julgado ser um dos acompanhantes profissionais era, na
realidade, Bremmer. O repórter do Times se afastou da
campa e começou a se dirigir para um dos carros
estacionados ao longo da estrada de acesso. Bosch esperou
até Bremmer estar quase ao lado do carro dele antes de
abrir a janela e chamar por ele.
— Harry! Pensava que estava no hospital ou qualquer
coisa parecida.
— Resolvi aparecer por aqui. Mas não sabia que ia haver
circo. Vocês não têm nada melhor para fazer?
— Hei, eu não estou com eles. Aquilo é um chiqueiro.
— O quê?
— Os repórteres da televisão. É isso que eles chamam a
uma destas bacanais. Então, o que está fazendo aqui?
Nunca imaginei que saísse tão cedo.
— Fugi. Porque não entra e damos uma volta? Depois,
apontando com a mão para os repórteres da Televisão,
Bosch concluiu: — Eles são capazes de me ver aqui e de se
atirarem a nós, nos deixando esborrachados.
Bremmer deu a volta e entrou no carro. Bosch seguiu o
caminho na direção da parte ocidental do cemitério.
Estacionou à sombra de um carvalho frondoso, de onde
podiam ver o memorial do Vietnam. Haviam várias pessoas
à volta dele, passeando devagarinho, a maior parte
homens, a maior parte sozinhos. Todos olhavam para a
pedra preta em silêncio. Alguns dos homens vestiam
casacos camuflados com as mangas arrancadas.
— Já viu os jornais ou a TV em relação a esta coisa?
Perguntou Bremmer.
— Ainda não. Mas ouvi o que foi divulgado.
— E?
— Mentiras. Pelo menos, a maior parte.
— Pode me contar?
— Desde que não seja envolvido.
Bremmer assentiu. Conheciam-se há muito tempo.
Bosch não tinha de pedir promessas e Bremmer não tinha
de relembrar as diferenças entre declarações off the record,
declarações de fontes internas e declarações não atribuíveis
a ninguém. Tinham uma confiança mútua construída na
credibilidade anterior e que funcionava nos dois sentidos.
— Há três coisas que devias investigar, disse Bosch. —
Ninguém fez perguntas em relação a Lewis e Clarke. Eles
não faziam parte da minha vigilância. Estavam trabalhando
para o Irving dos Assuntos Internos. Por isso, quando
conseguir comprovar isso, pressiona-os para que expliquem
o que eles estavam fazendo.
— O que eles estavam fazendo?
— Isso vai precisar saber noutro lugar qualquer. Sei que
tens outras fontes no departamento.
Bremmer estava escrevendo num bloco de notas com
argolas, fino e comprido, do tipo que denunciava sempre os
jornalistas. Ia acenando com a cabeça enquanto escrevia.
— Segunda, descobre o que há quanto ao funeral do
Rourke. Provavelmente, vai ser em algum lugar, fora deste
estado. Nalgum lugar suficientemente longe para que os
jornalistas daqui não se incomodem em mandar alguém.
Mas, mesmo assim, mande alguém. Alguém com uma
câmera. Provavelmente, ele vai ser o único presente. Tal
como o funeral de hoje. Isso deve lhe dizer qualquer coisa.
Bremmer levantou os olhos dos apontamentos.
— Quer dizer que não vai ser o funeral de um herói?
Está dizendo que o Rourke fazia parte desta coisa ou que
apenas colocou o pé na merda? Meu Deus, o FBI e nós, os
jornalistas estão apresentando o tipo como se ele fosse o
John Wayne reencarnado.
— Pois, bem, vocês lhe deram vida depois da morte.
Também podem tirá-la, acho eu.
Bosch olhou para ele durante uns instantes, pensando o
quanto lhe devia dizer, o que era seguro dizer. Por um breve
instante, se sentiu tão ultrajado que teve vontade de contar
a Bremmer tudo o que sabia e mandar para o inferno o que
aconteceria sobre o que Irving dissera. Mas não o fez. Voltou
a se controlar.
— Qual é a terceira coisa? Perguntou Bremmer.
— Consiga os registros militares de Meadows, Rourke,
Franklin e Delgado. Isso deve lhe dar o embrulho todo. Eles
estiveram no Vietnam, ao mesmo tempo, na mesma
unidade. E aí que esta história toda começa. Quando chegar
aí, me telefone e eu tentarei preencher os buracos que
ainda tiver.
Então, repentinamente, Bosch se sentiu farto daquela
charada orquestrada pelo seu departamento e pelo FBI. A
lembrança do rapaz, Sharkey, não parava de lhe vir à
cabeça. Deitado de costas, a cabeça torcida naquele ângulo
estranho e agoniante. O sangue. Iam limpar aquilo como se
não tivesse importância nenhuma.
— Há uma quarta coisa, disse ele. — Havia um garoto.
Quando a história de Sharkey estava terminada, Bosch pôs
o carro em movimento e levou Bremmer pelo caminho
abaixo, até ao carro dele. Os repórteres das televisões
tinham abandonado o cemitério e um homem num pequeno
trator lançava terra para dentro da cova de Meadows. Havia
outro homem que estava apoiado em uma pá observando.
— Provavelmente, vou precisar de um emprego quando
a sua história sair, comentou Bosch enquanto observava os
coveiros.
— Não vai aparecer como fonte. Além disso, quando eu
conseguir os registros militares, eles falarão por si mesmos.
Vou conseguir enrolar os funcionários das informações
públicas do departamento de forma a me confirmarem parte
destas outras coisas e a parecer que partiu tudo deles. E
depois, quase no final da história, vou dizer: “O detetive
Harry Bosch se recusou a fazer qualquer comentário.”. Que
tal?
— Provavelmente, vou precisar de um emprego quando
a sua história sair. Bremmer se limitou a olhar durante um
longo momento para o detetive.
— Vá até à campa?
— Sou capaz. Depois de me deixar em paz.
— Vou embora já. Abriu a porta, saiu e depois se
inclinou lá para dentro.
— Obrigado, Harry. Esta vai ser boa. Há cabeças que
vão rolar. Bosch olhou tristemente para o jornalista e
abanou a cabeça.
— Não, não vão.
Bremmer ficou olhando para ele com uma expressão
perplexa e Bosch lhe fez um aceno de despedida. O
jornalista fechou a porta e se dirigiu para o seu carro. Bosch
não tinha nenhuma concepção errada a respeito de
Bremmer. O jornalista não era guiado por nenhum sentido
genuíno de ultraje ou pelo seu papel enquanto cão de
guarda para o público. Tudo quanto ele queria era uma
história que mais nenhum repórter tivesse. Bremmer estava
pensando nisso e, vai ver, também no livro que viria depois
e no filme para a televisão e no dinheiro e na fama que
alimentava o ego. Era isso que o motivava e não o ultraje
que fizera com que Bosch lhe contasse a história. Bosch
sabia isso e aceitava. Era assim que as coisas funcionavam.
“As cabeças nunca rolam”, disse para consigo. Ficou
vendo os coveiros acabar o seu trabalho. Passado um tempo
saiu do carro e se aproximou. Havia um pequeno ramo de
flores ao lado da bandeira enfiada no suave chão cor de
laranja. As flores eram do VFW. Bosch olhou para a cena
sem saber o que devia sentir. Vai ver, uma espécie de
afeição sentimental ou de remorso. Desta vez, Meadows
estava debaixo do chão para sempre. Bosch não sentia
nada. Passado mais um tempo levantou os olhos da campa
e olhou para o Edifício Federal. Começou a andar nessa
direção. Sentia-se como um fantasma saído do túmulo à
procura de justiça. Ou talvez apenas de vingança.
Se ela ficou surpresa por ser Bosch que tinha tocado a
campainha, Eleanor Wish não deixou transparecer. Harry
tinha mostrado de relance o distintivo ao guarda do rés-do-
chão e lhe tinham apontado o elevador. Não havia
recepcionista trabalhando no feriado, por isso ele tinha
tocado a campainha da noite. Foi Eleanor quem veio abrir a
porta. Vestia jeans desbotados e uma blusa branca. Não
tinha arma no cinto.
— Pensei que era capaz de aparecer, Harry. Foi ao
funeral?
Ele assentiu com a cabeça, mas não fez nenhum
movimento em direção à porta que ela mantinha aberta.
Eleanor olhou para ele durante muito tempo, as
sobrancelhas arqueadas, naquela sua encantadora
expressão interrogativa.
— Bem, vai entrar ou ficar aí fora o dia todo?
— Estava pensando que podíamos dar um passeio.
Conversar um pouco.
— Tenho de ir buscar o meu cartão de acesso para
poder voltar a entrar. Fez um movimento para voltar para
dentro e depois parou. — Duvido que já tenha ouvido isto,
porque eles ainda não tornaram público. Encontraram os
diamantes.
— O quê?
— Sim. Conseguiram ligar o Rourke a uns cofres de um
armazém público em Huntington Beach. Encontraram os
recibos num lugar qualquer. Esta manhã, eles conseguiram
arranjar a ordem do tribunal e abriram-nos. Tenho estado a
ouvir a rádio interna. Dizem que são centenas de
diamantes. Vão precisar arranjar um avaliador. Tínhamos
razão, Harry. Diamantes. Você tinha razão. Também
encontraram as outras coisas num segundo cofre. O Rourke
não tinha se desfeito delas. Os donos dos cofres vão
recuperar os seus pertences. Vai haver uma conferência de
imprensa, mas duvido que eles vão dizer de quem são os
cofres.
Ele se limitou a assentir com a cabeça e ela
desapareceu pela porta. Bosch se dirigiu para os elevadores
e apertou o botão enquanto esperava por ela. Ela trazia a
bolsa quando saiu. Isso fê-lo ficar muito consciente de que
não tinha uma arma. E, se sentiu envergonhado consigo
mesmo por ter pensado, mesmo que por um breve instante,
que isso era um motivo de preocupação. Não falaram
enquanto desciam, nem enquanto não saíram do prédio e
se viram na calçada se dirigindo para o Wilshire Boulevard.
Bosch estivera pesando as palavras, perguntando para
consigo se a descoberta dos diamantes poderia ter algum
significado. Ela parecia estar esperando que ele começasse,
não se sentindo muito à vontade naquele silêncio.
— Gosto da tira azul, disse ela por fim. — Afinal, como
se sente? Estou muito espantada por terem deixado você
sair tão cedo.
— Limitei-me a sair. Sinto-me bem. Parou para colocar
um cigarro na boca. Tinha comprado um maço numa
máquina do átrio. Acendeu-o com o isqueiro.
— Sabe, disse ela, — Isto seria uma boa altura para
desistir disso. Começar de novo. Ele ignorou a sugestão e
inalou profundamente a fumaça.
— Eleanor, me fale do seu irmão.
— Do meu irmão? Já falei.
— Eu sei. Quero ouvir outra vez. O que lhe aconteceu e
o que aconteceu quando visitou o muro em Washington.
Disse que isso mudou tudo para você. Por que é que as
coisas mudaram para você? Estavam no Wilshire Boulevard.
Bosch apontou para o outro lado da rua e atravessaram na
direção do cemitério.
— Deixei o meu carro ali. Depois o trago de volta.
— Não gosto de cemitérios. Já lhe disse.
— Quem gosta?
Passaram pela abertura da sebe e o barulho do trânsito
acalmou. À frente deles se estendia a enorme expansão de
gramado verde, pedras brancas e bandeiras americanas.
— A minha história é igual à de milhares de outras,
disse ela. O meu irmão foi para lá e não voltou. Só isso. E
depois, sabe, ir ao memorial, bem, me encheu de uma
porção de sentimentos diferentes.
— Raiva?
— Sim, também havia isso.
— Ultraje?
— Sim, acho que sim. Não sei. Era muito pessoal. O que
está acontecendo, Harry? O que é que isto tem a ver com...
Com seja o que for?
Estavam no caminho de cascalho que corria ao longo
das filas de pedras brancas. Bosch estava encaminhando-a
na direção da réplica.
— Disse que o seu pai era um militar de carreira.
Conseguiu os pormenores do que aconteceu ao seu irmão?
— Ele conseguiu, mas ele e a minha mãe nunca me
disseram nada de fato. Dos pormenores. Quero dizer, só me
disseram que ele estava quase voltando para casa e eu
recebera uma carta dele dizendo que ia voltar. Depois,
assim, tipo na semana seguinte, sabe, eles me disseram
que ele fora morto. Afinal, não voltou para a casa. Harry
está me fazendo sentir... O que quer? Não compreendo.
— Claro que compreendeu Eleanor.
Ela parou e olhou para o chão. Bosch viu a cor do rosto
dela mudar para um tom mais pálido do que já tinha. E a
expressão passou a ser de resignação. Como os rostos das
mães e das esposas que ele tinha visto quando notificava o
parente mais próximo. Não era preciso lhe dizer que alguém
tinha morrido. Elas abriam a porta; sabiam do que se
tratava. E agora o rosto de Eleanor mostrava que ela sabia
que Bosch conhecia o seu segredo. Levantou os olhos e
olhou para frente, para longe dele. O olhar dela parou no
memorial preto que cintilava ao sol, no topo da elevação.
— É aquilo, não é? Trouxe-me aqui para eu ver aquilo.
— Acho que podia pedir para me mostrar onde está o
nome do seu irmão. Mas nós dois sabemos que não está lá.
— Não... Não está.
Ela ficara trespassada ao ver o memorial. Bosch
conseguia lhe ver no rosto que a resistência da casca dura
tinha desaparecido. O segredo queria vir para fora.
— Então, me conte.
— Eu tive mesmo um irmão e ele morreu. Nunca menti
Harry. Nunca disse que ele fora morto lá. Disse que ele
nunca tinha voltado e não voltou. Isso é verdade. Mas ele
morreu aqui, em Los Angeles. A caminho de casa. Em 1973.
Pareceu se perder nas recordações. Depois voltou a si.
— Espantoso. Quero dizer, conseguir sobreviver àquela
guerra e depois não fazer a viagem de regresso a casa. Não
faz sentido. Tinha dois dias de escala em Los Angeles na
viagem para DC. Para estar presente na festa de boas-
vindas ao herói que tínhamos preparado. Havia um emprego
seguro e simpático que o pai conseguira no Pentágono. Só
que o encontraram num bordel em Hollywood. A agulha
ainda estava espetada no braço. Heroína.
Olhou para o rosto de Bosch e depois desviou o olhar.
— Era isso que parecia, mas não era assim. Foi
considerada uma overdose, mas ele foi assassinado. Tal
como Meadows tantos anos depois. Mas o meu irmão ficou
registrado como Meadows era para ter ficado registrado.
Bosch pensou que ela era capaz de começar a chorar. Ele
precisava mantê-la no trilho, contando a história.
— O que está acontecendo, Eleanor? O que isto tem a
ver com Meadows?
— Nada, respondeu ela e olhou para trás, para o
caminho que tinham percorrido.
— Agora está mentindo.
Ele sabia que havia qualquer coisa. Tinha uma sensação
pavorosa nas entranhas de que tudo aquilo girava em torno
dela. Pensou nas margaridas que ela lhe mandara para o
quarto do hospital. Na música que tinham posto a tocar no
apartamento dela. Na maneira como ela o tinha descoberto
nos túneis. Demasiadas coincidências.
— Tudo, disse ele, — Tudo fazia parte do seu plano.
— Não, Harry.
— Eleanor, como sabia que há margaridas na colina por
baixo da minha casa?
— Vi-as quando...
— A sua visita foi à noite, se lembra? Não podia ver
nada por baixo do alpendre. Deixou que aquilo assentasse
um bocadinho. — Já estivera lá antes, Eleanor. Quando eu
estava tratando do Sharkey. E depois a visita mais tarde,
nessa mesma noite, aquilo não foi uma visita. Foi um teste.
Como o telefonema em que desligaram. Era você.
Porque foi você que colocou o microfone no meu telefone.
Esta coisa toda foi... Por que não me conta?
Ela concordou sem olhar para ele. Ele não conseguia
desviar os olhos dela. Ela se controlou e começou:
— Alguma vez teve uma coisa que fosse o seu centro, a
verdadeira semente da sua existência? Toda a gente tem
uma verdade inalterável no seu íntimo. Para mim, era o meu
irmão. O meu irmão e o seu sacrifício. Foi assim que eu lidei
com a morte dele. Tornando-os maiores do que a vida.
Fazendo dele um herói. Era a semente que eu protegi e
alimentei. Construí uma capa dura à sua volta e regava-a
com a minha adoração e à medida que ela ia crescendo, ia
se tornando uma parte maior de mim. Transformou-se na
árvore que dava sombra à minha vida. E então,
completamente de repente, um dia desapareceu. A verdade
era falsa. A árvore foi cortada, Harry. Já não havia sombra.
Apenas o sol ofuscante.
Calou-se por uns instantes e Bosch observou-a
atentamente. Pareceu-lhe de repente tão frágil que ele
queria levá-la correndo para uma cadeira antes que ela
desmaiasse. Eleanor segurou um cotovelo com uma das
mãos e levou a outra mão aos lábios. Bosch compreendeu
então o que ela estava dizendo.
— Você não sabia, não é? Perguntou Bosch. — Os seus
pais... Ninguém lhe contou a verdade. Ela assentiu com a
cabeça.
— Cresci pensando que ele era o herói que a minha mãe
e o meu pai diziam que ele era. Eles me protegeram.
Mentiram. Mas como eles haviam de saber que um dia seria
construído um monumento e que iriam pôr todos os nomes
lá... Todos os nomes menos o do meu irmão.
Ela se calou, mas desta vez ele ficou esperando que ela
continuasse.
— Um dia, há alguns anos atrás, fui ao memorial. E
pensei que havia um engano qualquer. Havia um livro lá,
um índex de nomes, eu procurei e ele não estava na lista.
Não havia Michael Scarletti. Gritei para os funcionários dos
parques: “Como é que puderam deixar o nome de uma
pessoa de fora do livro?”. E passei o resto do dia lendo os
nomes no muro. Todos eles. Ia lhes mostrar como estavam
enganados. Mas... Ele também não estava lá. Eu não
conseguia... Sabe o que é passar quase quinze anos da sua
vida acreditando numa coisa, construindo as suas crenças
em redor de um único e cintilante fato e ter... Descobrir que
durante todo esse tempo ele era, na realidade, como um
câncer crescendo aqui dentro? Bosch limpou as lágrimas de
sua face com a mão. Inclinou o rosto para a dela.
— E então o que você fez Eleanor? O punho apertado
contra os lábios se contraiu mais, os nós dos dedos tão
desprovidos de sangue como os de um cadáver.
Bosch notou um banco mais abaixo do caminho e,
segurando-a pelo ombro, encaminhou-a para lá.
— Toda esta coisa, disse ele depois de estarem
sentados. — Eu não compreendo, Eleanor. Esta coisa toda..
Queria uma espécie de vingança contra...
— Justiça. Vingança não, desforra não.
— Há alguma diferença? Ela não respondeu. — Conte o
que você fez.
— Confrontei os meus pais. E, finalmente, eles me
contaram tudo sobre LA. Passei revista a todas as coisas
que tinha dele e descobri uma carta, a última carta dele.
Ainda estava nas coisas que ficaram na casa dos meus pais,
mas tinha me esquecido. Está aqui.
Abriu a bolsa e tirou a carteira para fora. Bosch
conseguiu ver o punho da arma dela dentro da bolsa. Ela
abriu a carteira e tirou uma folha de um bloco dobrada ao
meio. Delicadamente, desdobrou-a e segurou de maneira
que Bosch pudesse ler. Ele não a tocou.
Eliie,
Já me falta tão pouco tempo aqui que
praticamente consigo sentir o sabor dos caranguejos
de casca mole. Devo estar em casa dentro de uma ou
duas semanas. Primeiro, tenho de fazer uma parada
em Los Angeles para ganhar algum dinheiro. Há! Há!
Tenho um plano (mas não diga ao Velho). Preciso
entregar uma encomenda “diplomática” em LA, mas
é capaz de haver uma maneira de fazer uma coisa
melhor com ela. Quando eu voltar, talvez a gente
possa ir outra vez a Poconos, antes de precisar voltar
a trabalhar para a “máquina de guerra”. Sei o que
pensa daquilo que estou fazendo, mas não posso
dizer não ao Velho. Vamos ver como as coisas correm.
Uma coisa é certa: estou contente por sair deste
lugar. Estive no mato durante seis semanas antes de
conseguir um descanso aqui em Saigon. Não quero
voltar, por isso, arranjei maneira de eles estarem me
tratando de disenteria. (Pergunta ao Velho o que é!
Há! há!) A única coisa que tive de fazer foi comer
comida de restaurante nesta cidade e ficar com os
sintomas. Bem, seja como for, por agora é tudo.
Estou a salvo e não demorarei a estar em casa. Por
isso, tira os apetrechos para os caranguejos do
barracão.
Saudades, Michael
Voltou a dobrar a carta com todo o cuidado e colocou-a
na mala.
— O Velho? Perguntou Bosch.
— O meu pai.
— Certo.
Ela estava recuperando a compostura. O rosto estava
ficando com aquela expressão dura que Bosch tinha visto no
dia em que a conhecera. Os olhos desceram do rosto dele,
para o peito e para o braço na tira de pano azul.
— Não tenho nenhum gravador, Eleanor, disse ele. —
Estou aqui só por mim. Quero saber só para mim.
— Não era isso que eu estava observando, respondeu
ela. — Eu sei que não traria um gravador. Estava pensando
no seu braço. Harry, se existir alguma coisa para que
acredite em mim, em que consiga acreditar agora, eu digo
que não havia a mínima intenção de fazer sofrer fosse quem
fosse. Ninguém... Toda a gente ia ficar perdendo. Mas só
isso. Depois daquele dia... No memorial, procurei e voltei a
procurar até acabar por descobrir o que tinha acontecido
com o meu irmão. Usei o Ernest do State, usei o Pentágono,
o meu pai, usei tudo o que pude e descobri o que
acontecera ao meu irmão. Ela tentou ler os olhos dele, mas
ele se esforçou por não revelar os pensamentos atrás deles.
— E?
— E foi como o Ernest nos contou. No fim da guerra, os
três capitães, a tríade, tinham uma parte ativa no
transporte de heroína para os Estados Unidos. Um dos
canais era Rourke e os seus homens da embaixada, a polícia
militar. Isso incluía Meadows, Delgado e Franklin.
Descobriam aqueles que estavam prestes a irem embora
nos bares em Saigon e faziam uma proposta: alguns
milhares de dólares para passar pela alfândega um
embrulho fechado e com o selo diplomático. Nada de
especial. Podiam arranjar maneira deles receberem um
estatuto temporário de correios, metê-los num avião e
alguém iria estar esperando a encomenda em LA. O meu
irmão foi um dos que aceitou... Mas o Michael tinha um
plano. Não era preciso ser-se um gênio para descobrir o que
estavam transportando. E, por isso, ele deve ter pensado
que podia chegar aqui e fazer um negócio melhor com outra
pessoa qualquer. Não sei até que ponto ele tinha planejado
a coisa ou sequer se já tinha tudo combinado. Mas não
interessa. Eles descobriram e o mataram.
— Eles?
— Não sei quem. Gente que trabalhava para os
capitães. Para Rourke. Foi perfeito. Mataram-no de uma
maneira que o exército, a família, praticamente toda a
gente, iria querer manter em segredo. Por isso, o caso foi
rapidamente dado como fechado e ficou tudo assim.
Bosch ficou sentado ao lado dela enquanto ela contava
o resto da história e não a interrompeu até a história ter
chegado ao fim, até ter saído de dentro dela como um
demônio.
Ela contou que o primeiro que encontrara fora Rourke.
Estava, para grande surpresa dela, no FBI. Ela tinha movido
os seus cordõezinhos e conseguira se transferir de DC para
a equipe dele. Ela tinha um sobrenome diferente do irmão.
Rourke não sabia quem ela era. Depois, Meadows, Franklin e
Delgado foram facilmente localizados nas prisões. Não iam
para lado nenhum.
— Rourke era a chave, disse ela. — Comecei a trabalhá-
lo. Acho que pode dizer que o seduzi com o plano.
Bosch sentiu qualquer coisa se partir e se soltar dentro
dele, qualquer sentimento final por ela.
— Insinuei claramente que queria dar um golpe. Sabia
que ele iria alinhar porque era um corrupto há anos. E era
ganancioso. Uma noite, me contou a história dos diamantes,
de como tinha ajudado estes dois tipos a saírem de Saigon
com caixas cheias de diamantes. Eram Tran e Binh. A partir
daí, foi fácil planejar tudo. Rourke recrutou os outros três e
puxou uns cordõezinhos, anonimamente, para conseguir
que eles saíssem mais cedo e fossem para o Charlie
Company. Era um plano perfeito e Rourke estava mesmo
convencido que era dele. Era isso que o fazia perfeito. No
fim, eu iria desaparecer com o tesouro. O Tran e o Binh
seriam roubados e ficariam sem a fortuna que tinham
passado a vida a juntar e os outros quatro iriam saborear o
melhor golpe das suas carreiras e verem tudo desaparecer.
Seria a melhor maneira de fazê-los sofrer mais. Mas
ninguém fora deste círculo ia ser magoado... As coisas
aconteceriam assim.
— Mas Meadows tirou a pulseira, disse Bosch.
— Sim. O Meadows tirou a pulseira. Via-a nas listas das
lojas de penhores que o Departamento da Polícia de Los
Angeles nos manda. Era rotina, mas eu entrei em pânico.
Aquelas listas vão para todas as unidades de roubo no
condado. Pensei que alguém podia reparar, Meadows seria
apanhado para ser interrogado e jogava aqui para fora a
história toda. Contei para Rourke. E ele também entrou em
pânico. Esperou até termos o segundo túnel quase pronto e
depois, ele e os outros dois confrontaram Meadows. Eu não
estive lá.
Os olhos dela estavam fixos num ponto distante. Já não
havia qualquer emoção na voz dela. Era apenas uma linha
plana. Bosch não precisava incitá-la. O resto saiu a jato.
— Eu não estive lá, repetiu ela. — Rourke me telefonou.
Disse que Meadows morreu sem dar a cautela. Disse que
conseguira maneira de parecer uma overdose. O filho da
mãe disse mesmo que conhecia pessoas que já o tinham
feito, há muitos anos, e que tinham se safado com isso. Está
vendo? Ele estava falando do meu irmão. Quando ele disse
aquilo, eu soube que o que estava fazendo estava certo...
Bom, de qualquer maneira, ele precisava da minha ajuda.
Tinham revistado a casa de Meadows e não tinham
conseguido descobrir a cautela da loja de penhores. Isso
significava que Delgado e Franklin iam assaltar a loja e
trazer a pulseira. Mas Rourke queria a minha ajuda com
Meadows. O cadáver. Não sabia o que iria fazer com ele.
Ela disse que sabia, pelo cadastro de Meadows, que ele
fora preso por vadiagem no reservatório. Não fora difícil
convencer Rourke que seria um bom lugar para largar o
corpo.
— Mas eu também sabia que o reservatório pertencia à
Divisão de Hollywood e que, se não fosse você a atender a
chamada, iria pelo menos ouvir falar disso e que,
provavelmente, iria se interessar quando Meadows fosse
identificado. Está vendo, eu sabia de você e de Meadows. E
sabia agora que Rourke já tinha perdido o controle. Você era
a válvula de segurança no caso de eu precisar pôr um ponto
final naquilo tudo. Não ia deixar que Rourke voltasse a se
safar com aquilo. Varreu as pedras com o olhar e,
distraidamente, levantou uma mão deixou-a cair no colo,
uma pequena demonstração de resignação. — Depois de
termos metido o corpo dele no jipe e de o termos tapado
com o cobertor, o Rourke voltou atrás para dar uma última
vista de olhos à casa. Eu fiquei lá fora. Havia uma chave de
ferro para os pneus na parte de trás. Agarrei nela e lhe bati
nos dedos com ela. Nos dedos do Meadows. Para que
alguém visse que fora um assassínio. Lembro-me tão bem
do barulho. O osso. Tão alto. Pensei que o Rourke era capaz
de tê-lo ouvido...
— E Sharkey? Perguntou Bosch.
— Sharkey, disse ela pensativamente, como se
estivesse tentando usar o nome pela primeira vez. — Depois
da entrevista, disse ao Rourke que Sharkey não tinha visto
as nossos rostos no reservatório. Até pensara que eu era um
homem, sentado no jipe. Mas cometi um erro. Mencionei
que tínhamos discutido a hipótese de o hipnotizarmos.
Embora se eu tivesse impedido e estivesse convencida de
que não o faria sem mim, Rourke não confiava em você. Por
isso, fez o que fez com o Sharkey. Depois de termos sido
chamados lá e de eu vê-lo, eu... Ela não acabou, mas Bosch
queria saber tudo.
— Você o quê?
— Mais tarde, confrontei o Rourke e lhe disse que ia
acabar com tudo porque ele tinha perdido o controle e
andava matando gente inocente. Ele me disse que não
havia maneira de parar. O Franklin e o Delgado estavam no
túnel e era impossível contatá-los. Eles desligaram os rádios
quando levaram o C-4 lá para dentro. É demasiado instável.
Disse que não havia maneira de parar aquilo sem mais
derramamento de sangue. Depois, na noite seguinte, você e
eu quase fomos atropelados. Foi Rourke, tenho certeza.
Ela contou que depois daquilo, eles, os dois, tinham
jogado um jogo mudo de desconfiança e suspeitas mútuas.
O assalto à Beverly Hills Safe & Lock continuou como
planejado e Rourke convenceu Bosch e todos os outros a
não entrarem nos subterrâneos para impedi-lo. Tivera de
deixar Franklin e Delgado prosseguir embora já não
houvesse diamantes no cofre de Tran. Rourke também não
podia se arriscar a ir lá avisá-los. Por fim, Eleanor acabara o
jogo quando seguiu Bosch pelos túneis e matou Rourke, os
olhos dele fixos nela enquanto deslizava para dentro da
água preta.
— E é a história toda, arrematou ela baixinho.
— O meu carro está naquele lado, disse Bosch se
levantando do banco. — Agora vou levá-la de volta.
Encontraram o carro no caminho de acesso e Bosch
reparou que os olhos dela se demoraram na terra fresca em
cima da campa de Meadows antes de entrar. Bosch
perguntou para consigo se ela estaria vendo do Edifício
Federal quando o caixão tinha descido à terra. Enquanto
seguia para a saída, Harry disse:
— Por que não foi capaz de esquecer? O que aconteceu
ao seu irmão foi noutro tempo, noutro lugar. Por que não
esqueceu?
— Nem sabe quantas vezes perguntei isso a mim
mesma e quantas vezes não consegui encontrar uma
resposta. Ainda não consegui.
Estavam nos semáforos de Wilshire e Bosch estava
pensando no que ia fazer. E mais uma vez, ela lhe leu os
pensamentos, captou a sua indecisão.
— Vai me entregar, Harry? É capaz de ter muita
dificuldade em fundamentar o seu caso. Estão todos mortos.
Pode parecer que também estava envolvido. Vai se arriscar
a isso?
Ele não disse nada. A luz mudou e ele seguiu para o
Edifício Federal, parando junto da calçada próximo do jardim
das bandeiras. Ela disse:
— Se significar alguma coisa para você, aquilo que se
passou entre nós, não fazia parte de nenhum plano. Sei que
nunca saberá se isso é verdade, mas eu queria dizer...
— Não diga, disse ele. — Não diga uma palavra sobre
isso. Passaram-se alguns momentos de um silêncio
desconfortável.
— Vá me deixar assim?
— Acho que seria melhor para você, Eleanor, se se
entregasse. Arranje um advogado e se entregue. Diga que
não teve nada a ver com os homicídios. Conte a história do
seu irmão. São pessoas razoáveis e vão querer resolver tudo
discretamente, evitar o escândalo. O procurador-geral
provavelmente deixará que se declare culpada de qualquer
coisa inferior a homicídio. E o FBI fará o mesmo.
— E se eu não me entregar? Vai lhes contar?
— Não. Como você disse, estou demasiado envolvido
nisso. Eles nunca acreditariam no que eu lhes contasse.
Pensou durante muito tempo. Não queria falar o que ia
dizer a seguir a não ser que estivesse seguro de que era
mesmo o que pensava. E que conseguiria e iria mesmo
fazê-lo.
— Não, não vou lhes contar... Mas, se dentro de alguns
dias não ouvir dizer que se entregou, vou contar ao Binh. E
vou contar ao Tran. Não preciso de lhes provar nada. Conto-
lhes a história com os fatos suficientes para eles saberem
que é verdade. E nessa altura, sabe o que eles vão fazer?
Vão fingir que não sabem de que raio eu estou falando e
vão me mandar embora. E depois vão atrás de você,
Eleanor, à procura do mesmo tipo de justiça que você
conseguiu para o teu irmão.
— Era capaz de fazer isso, Harry?
— Já disse que sim. Dou dois dias para se entregar.
Depois lhes conto a história. Ela olhou para ele e a
expressão dolorida do rosto lhe perguntava porquê. Harry
disse: — Alguém tem de responder pelo Sharkey.
Ela se virou, pôs a mão no trinco da porta e olhou pela
janela do carro para as bandeiras que ondulavam com a
brisa de Santa Ana. Não olhou para ele quando disse:
— Então, isso quer dizer que eu estava enganada ao seu
respeito.
— Se está se referindo ao caso Dollmaker, a resposta é
sim, estava enganada ao meu respeito. Voltou a cabeça
para olhar para ele com um sorriso desmaiado enquanto
abria a porta. Inclinou-se e muito rapidamente, lhe deu um
beijo na face.
— Adeus, Harry Bosch.
No momento seguinte, estava fora do carro, parada ao
vento olhando para ele. Harry se esticou e fechou a porta.
Enquanto se afastava, olhou uma vez pelo espelho
retrovisor e viu-a ainda na calçada. Estava parada ali como
uma pessoa que tivesse deixado cair uma coisa qualquer na
sarjeta. Depois disso, Bosch não voltou a olhar para trás.
 
EPÍLOGO
Na manhã seguinte ao Memorial Day, Harry Bosch
voltou a dar entrada no MLK, onde foi severamente
repreendido pelo médico que pareceu, pelo menos a Harry,
ter um prazer perverso em lhe arrancar do ombro as
ataduras aplicadas em casa e em utilizar em seguida uma
solução salina que fazia arder para limpar a ferida. Passou
dois dias descansando e depois foi levado para a sala de
operações para voltarem a ligar os músculos que foram
arrancados do osso pela bala.
No segundo dia de recuperação depois da operação,
uma ajudante de enfermeira lhe deixou um Los Angeles
Times já com um dia para ele se entreter durante umas
horas. A história de Bremmer estava na primeira página e
era acompanhada de uma fotografia de um padre de pé em
frente de um caixão solitário num cemitério de Syracuse.
Era o caixão do Agente Especial John Rourke do FBI. Bosch
conseguiu notar pela fotografia que tinham mais
acompanhantes, ainda que membros da imprensa, do que
no funeral de Meadows. Mas Bosch abandonou a primeira
página depois de ter dado uma olhadela rápida aos
primeiros parágrafos e ter notado que não se falava de
Eleanor.
Passou para a dos esportes.
No dia seguinte, teve uma visita. O tenente Harvey
Pounds disse a Bosch que quando estivesse restabelecido
iria se apresentar outra vez nos homicídios de Hollywood.
Pounds disse que nenhum deles tinha possibilidade de
escolha. A ordem tinha vindo do andar das chefias no Parker
Center. O tenente não tinha muito mais para dizer e nem
sequer se referiu ao artigo. Bosch recebeu a notícia com um
sorriso e um aceno de assentimento, não querendo deixar
transparecer a mais leve sugestão daquilo que sentia ou
pensava.
— Claro que isto depende de ser capaz de passar num
exame físico do departamento quando tiver recebido alta
dos médicos daqui, acrescentou Pounds.
— Claro, disse Bosch.
— Sabe Bosch, alguns agentes quereriam a
incapacidade, a reforma com oitenta por cento. Podia
arranjar um emprego no setor privado e se sair muito bem.
— Ah, disse Harry, — Aqui está a razão da visita. É isso
que o departamento quer que eu faça, tenente? Perguntou
ele. — O senhor é o mensageiro?
— Claro que não. O departamento quer que faça o que
quiser fazer, Harry. Estou só vendo as vantagens da
situação. Sabe, apenas uma coisa para pensar. Segundo eu
sei, a investigação particular é um mercado em crescimento
nos anos noventa. Já não há confiança, sabe? Hoje em dia
as pessoas compilam em segredo informações completas
sobre o passado médico, financeiro, romântico das pessoas
com quem vão se casar.
— Isso não me parece o meu tipo de emprego.
— Quer dizer que aceita os homicídios?
— Assim que passar no exame médico.
No dia seguinte, teve outra visita. Esta era esperada.
Era uma advogada do gabinete do procurador-geral.
Chamava-se Chávez e queria saber o que tinha se passado
na noite em que Sharkey fora morto. Eleanor Wish tinha se
entregado, Bosch ficou sabendo. Disse à advogada que
estivera com Eleanor, confirmando o álibi dela. Chávez disse
que tivera de confirmar antes de começarem a discutir um
acordo. Fez mais algumas perguntas e depois se levantou
da cadeira das visitas para ir embora.
— O que vai lhe acontecer? Perguntou Bosch.
— Não posso falar sobre esse assunto, detetive.
— Off the records.
— Off the records, obviamente, ela vai para a prisão,
mas, provavelmente, não será por muito tempo. O clima
que se vive é o indicado para isto ser tratado com muita
discrição. Ela se apresentou voluntariamente, trouxe um
bom advogado e parece que não esteve diretamente
envolvida nas mortes. Se quiser saber o que eu penso, ela
vai se safar disto. Vai se declarar culpada e cumprir um
máximo de trinta meses em Tehachapi. Bosch assentiu com
a cabeça e Chávez foi embora.
Harry também foi embora no dia seguinte, mandado
para casa com seis semanas de licença para se recuperar
antes de voltar a se apresentar na delegacia de Wilcox.
Quando chegou a casa, na Woodrow Wilson, encontrou um
papel amarelo na caixa de correio. Levou-o aos correios e
trocou-o por um embrulho largo e chato em papel castanho.
Não abriu até chegar a casa. Era de Eleanor Wish, embora
não dissesse. Era uma coisa que ele simplesmente sabia.
Depois de rasgar o papel e o forro de plástico de bolinhas,
descobriu uma reprodução emoldurada do Nighthawks de
Hopper. Era o quadro que ele tinha visto pendurado por
cima do sofá dela na primeira noite que estivera com ela.
Bosch pendurou o quadro no corredor próximo da porta
da frente e, de quando em quando, parava para estudá-lo
quando entrava, especialmente depois de um dia ou de
uma noite cansativa de trabalho. O quadro nunca deixava
de fasciná-lo ou de evocar memórias de Eleanor Wish. A
escuridão. A profunda solidão. O homem sentado sozinho, o
rosto virado para as sombras.
“Sou aquele homem”, pensava Harry Bosch todas as
vezes que olhava para ele.
 
FIM

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