Você está na página 1de 512

Copyright © 2019 por Loren F.

Todos os direitos reservados.

Título: DEATH

Capa: Freyajadarkk

Revisão e Diagramação: Ana França (Portfólio D'Ana)

Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer


meios, sem o consentimento do(a) autor(a) desta obra.
Esta é uma obra de ficção. Todos os nomes, lugares,
acontecimentos e descrições são fruto da mente da autora.
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Texto revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa.
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Epílogo
Bônus
Agradecimentos
“Combater e morrer é pela morte derrotar a
morte, mas temer e morrer é fazer-lhe
homenagem com um sopro servil.”
— William Shakespeare
Ele teve medo de morrer?
Ele gritou, com todas as suas forças, até sua garganta doer?
Ele clamou por socorro?
Clamou por misericórdia?
Sua pele estava pálida e fria. Seus olhos estavam abertos,
esbugalhados, completamente parados e sem vida. A expressão
vazia.
O que este homem fez para merecer a morte?
Ele pecou muito? Ou só teve o azar de cruzar com o
assassino?
Apertei o botão que ligava o gravador com o indicador e
suspirei, antes de começar:
— Homem. 45 anos. Estatura média. Conforme o conteúdo
em seu estômago, entrou em óbito há aproximadamente quatro
horas. Ele apresenta hematomas na região do pescoço, indício de
enforcamento. Não são marcas de dedos. É algo como um pedaço
de fio, ou um enforca gato. Encontrei uma cicatriz na lateral do
abdômen. É uma cicatriz cirúrgica. A vítima pode ter tido algum
problema nos rins e precisou operar. Foi feita há um tempo
relativamente grande e não deve ter relação com o assassinato.
Calcei as luvas azuis e levei minhas mãos até sua boca. Abri
seus lábios e analisei o interior.
— Quatro de seus dentes foram arrancados de forma bruta.
Os dois incisivos centrais, o incisivo lateral direito e o canino direito.
Os dentes ao redor dos que foram arrancados possuem marcas
horizontais e grossas. Eles provavelmente foram forçados para
também serem retirados, mas por algum motivo não foram. O objeto
usado pode ter sido uma ferramenta comum, como um alicate de
tamanho médio. Há sinais de luta espalhados por todo o seu corpo.
Ele tentou se defender, o que me leva crer que o assassino é um
homem forte.
Estiquei minha mão, a palma levantada para cima, e
aguardei.
Um segundo.
Dois segundos.
Três segundos.
Encarei Robin ao meu lado, que tinha os olhos por baixo dos
óculos de proteção pregados no corpo sobre a mesa. Sua
expressão era de transe.
— Robin — chamei, com a voz firme.
Seu corpo estremeceu e ela me encarou. Notando que eu
estava esperando que ela me entregasse o objeto, arregalou os
olhos escuros, como se lembrasse o real motivo de estar ali. Se
esticou até a mesa com todos os instrumentos, agarrou o bisturi e
me entregou em seguida.
Lancei a ela um olhar de repreensão e ela baixou a cabeça.
— Incisão sendo feita...— eu disse.
Pressionei a ponta do bisturi contra a pele do corpo, ao final
do corte que já havia feito na altura do estômago, e o arrastei em
uma linha reta até o umbigo do homem.
— Separador — pedi.
A garota prontamente me entregou o instrumento e eu
afastei as duas pontas. Os órgãos estavam aparentemente bem,
exceto pelos rins.
— A vítima tem apenas um rim. Minha hipótese pode ter sido
equivocada. Talvez, este seja o modus operandi do assassino.
Sequestrar e matar pacientes que já passaram por uma Nefrectomia
ou por algum outro problema, como cálculo renal. Se outros corpos
sem um rim forem encontrados, o perfil dele já pode ser traçado.
Enquanto eu suturava o corpo do pobre homem, meus olhos
involuntariamente se dirigiram para sua mão direita. Algo ali chamou
a minha atenção. Eu sabia exatamente a diferença de uma simples
sujeira embaixo da unha, e de sangue seco.
— Encontrei resquícios de sangue abaixo das unhas dos
dedos indicador, médio e anelar da mão direita. Vou colher amostras
e fazer os exames de reconhecimento de DNA.
Desliguei o gravador e voltei a fechar o corpo do homem.
A agulha de sutura se infiltrava na pele gélida e ligava uma
ponta à outra.
O ciclo se repetia.
Ponto por ponto.
Empurrei a mesa assim que terminei. As rodinhas se
arrastavam pelo chão, e era tudo o que eu e Robin escutávamos
durante o expediente. Eu gostava do silêncio que se instalava. Era
assustador, e eu amava tudo o que era definido como assustador.
Me sentia quase confortável.
Eu passava horas trancada no necrotério e, a noite, quando
chegava em meu apartamento no centro de Detroit, ficava mais
alguns minutos sentada no sofá da sala, bebendo um vinho e sem
absolutamente nada em meus ouvidos além dos sons de fora.
Empurrei o homem para a gaveta gelada e fechei a porta
prateada, de número 004. Tirei as luvas, a máscara e os óculos de
proteção. Joguei fora no primeiro lixo de materiais infectantes que vi,
junto com o avental que vestia.
Caminhei até a pia, meus sapatos batendo contra o chão
cinza e ecoando como se estivesse em uma caverna. Meus olhos
encararam Robin, enquanto eu lavava minhas mãos. Ela estava
concentrada, seus fios negros estavam severamente amarrados em
um coque no topo da cabeça, seus olhos presos nas etiquetas para
identificar os tubos com as amostras do sangue para as análises.
Sequei minhas mãos, soltei meus cabelos e vesti meu jaleco.
Caminhei até a garota com os óculos de grau na ponta do nariz.
— Robin — chamei.
Ela levantou a cabeça, me encarando.
— É a terceira vez que isso acontece.
Robin suspirou, desapontada.
— Desculpe, doutora. Eu ainda não me acostumei.
Robin Allen era uma boa garota. Estava cursando o último
ano de medicina e foi esperta o suficiente para conseguir um estágio
remunerado no departamento. E, na verdade, eu não tinha muito o
que reclamar dela. Ela era inteligente, e foi a única ajudante que
ainda não vomitou por causa do estado que alguns corpos chegam.
Alguns eu nem chamaria de corpos.
— Tente pensar em coisas boas quando estiver aqui — eu
disse.
Andei até o balcão que ela estava, me sentando em um dos
bancos e calçando mais uma vez um par de luvas azuis. Me estiquei
até os tubos com as amostras e peguei um deles com a ponta dos
dedos.
— Como você consegue? — sua voz soou novamente.
— Consigo o quê?— questionei, preparando o microscópio.
— Pensar em coisas boas quando está aqui.
Parei o que estava fazendo e virei meu rosto em sua direção
. Robin ajeitava seus óculos de grau enquanto observava o
ambiente.
— É tudo tão cinza, mórbido, sozinho... — continuou — Tudo
aqui cheira a morte. Como consegue ficar bem aqui? Como
consegue pensar em coisas boas?
Seus olhos escuros e curiosos se voltaram para mim
novamente.
Acho que o conselho que dei à Robin não passava de um
daqueles que nós falamos para as pessoas fazerem, quando nós
mesmos não seguimos. Aquele ditado "faça o que eu digo, mas não
faça o que eu faço", nunca se aplicou tão bem.
Acontece que eu não tinha pensamentos bons.
Todos eram lembranças podres de uma vida podre.
Talvez seja por isso que eu sempre aguentei toda essa
paisagem sombria que me rodeava. Eu não era acostumada com
coisas boas, então, conviver com coisas ruins era normal. Natural.
Eu não tinha um bom exemplo de vida para ser objeto de
comparação.
Na verdade, a vida que levava hoje era o mais próximo de
boa que eu provavelmente poderia alcançar.
E, bem, eu aprendi que a morte pode ser tão reconfortante
quanto é assustadora.
— Eu só penso, Robin — eu disse, voltando minha atenção
para o microscópio.— Deveria tentar.
Silêncio.
Eu e Robin não tínhamos uma relação de parceria, como
deveria acontecer em um ambiente de trabalho. Nós apenas nos
aturávamos. Ela precisava de dinheiro e de conhecimento sobre
anatomia, nada que um bom necrotério não renda. Detroit era uma
cidade relativamente violenta, e material para estudo — os corpos
— nunca faltariam. E, modéstia parte, não havia um pedaço sequer
do corpo de um humano que eu não soubesse identificar.
Ela poderia sair daqui traumatizada. E também, sairia com
um conhecimento inegavelmente amplo.
— Vou fazer o relatório.
Escutei seus passos se afastando de mim e, em seguida, o
som dos seus dedos digitando freneticamente o laptop.
Concentrei-me no sangue que estava analisando. Aquele era
provavelmente mais um caso comum. O assassino sequestra a
vítima por algum motivo qualquer. Talvez vingança, ou só prazer. Ele
a tortura e, depois de fazê-la sentir muita dor, tira sua vida de uma
forma rápida. Quase como se já estivesse enjoado daquilo e
pudesse jogar a vítima fora, como se joga um brinquedo quebrado.
Algumas vezes, quando Robin finalizava o relatório clínico e
eu precisava oferecer um laudo, eu colocava a minha opinião em
relação ao assassino.
Psicopata?
Sociopata?
Apenas uma pessoa completamente perturbada?
Eu percebia.
Percebia na forma como os corpos eram encontrados.
Percebia pelos hematomas.
Pelos sinais.
E entre todos eles, os mais fáceis de identificar, com certeza,
eram os Seriais Killers.
Eles matavam como se aquilo fosse a coisa mais prazerosa
que já haviam inventado.
Matavam com todos os detalhes que poderiam colocar.
Detalhes que nunca deixavam de ser captados pelo meu radar.
E assinavam. Assinavam como um maldito pintor assina seu
quadro. Sua obra prima.
E, droga, aquilo me interessava.
Muito.
Eu nunca segui um caminho, um norte, um lema, mas eu
sempre tive uma frase tatuada em minha mente:
Manter os amigos por perto. A morte mais perto ainda.
O corredor do subsolo compreendia a todas as cenas de
filmes de terror. As luzes espalhadas no teto eram fracas, algumas
até mesmo piscavam. As paredes eram em um tom escuro mas,
mesmo assim, eu conseguia enxergar algumas manchas
amarronzadas de mofo.
Era compreensível.
O necrotério ficava no subsolo.
Poucas pessoas desciam até aqui.
Por que gastar dinheiro com manutenção, certo?
O Departamento Investigativo do Michigan, ou D.I.M, para os
íntimos, estava entre os melhores. Eu não sei se foi sorte, se foi
minha competência ou um pouco dos dois, mas eu passei na prova
com louvor e era a melhor médica legista deste lugar, sem querer
ser egocêntrica. Eu sabia que, mesmo se algum dia eu resolvesse
parar e fazer outra coisa, ter o D.I.M no currículo abriria todas as
portas, janelas, sacadas e tetos solares que poderiam existir.
Mesmo sabendo que eu nunca pararia.
Enquanto os passos de Robin e os meus ecoavam no
corredor, como se realmente estivéssemos em um dos filmes de
terror que assistia quando ficava entediada, eu ajeitava o jaleco em
meu corpo e meus cabelos — eles estavam um pouco mais
rebeldes naquele dia. Lembro que costumava ficar horas em frente
ao espelho, encarando todos os meus traços e tentando de todas as
formas ajeitar as ondas escuras que meus cabelos ostentavam. Eu
gostava delas, assim como gostava das ondas do mar.
Infelizmente, nem todos tinham a mesma opinião.
— O que acha que ele quer com a gente?— Robin
perguntou.
Chegamos ao final do corredor e eu apertei o botão do
elevador.
Dei de ombros.
— Não deve ser nada demais.
— Nada demais?— Robin questionou.
Suspirei e me virei para ela. Robin também vestia um jaleco,
mas diferente do meu, o dela permanecia fechado. Seus fios negros
despojados chegavam até seus ombros e, a todo momento, a garota
precisava empurrar seus óculos de grau para cima. Era uma mania
que eu detestava profundamente.
Por que ela não comprou uma armação do seu tamanho?
Estilo?
Pressa?
Não sabia o motivo, mas com certeza ficava levemente
irritada com o fato de que, de vinte em vinte segundos, Robin
empurrava seu óculos com a ponta do indicador para cima.
— Da última vez que ele nos chamou, doutora Foster,
mostrou fotos de uma criança que nós nem sabíamos se era
realmente uma criança... — comentou e fez uma careta, sua pele
ficando pálida — céus, eu não conseguia nem identificar o que era o
quê, ali. Eu não gosto nem de lembrar.
— Que tipo de médica você quer ser, Allen?— perguntei.
Robin franziu as sobrancelhas e voltou seu olhar para mim.
— O quê?
— Se não tem estômago para ver o que está vendo aqui,
sugiro que procure outra profissão. Médicos precisam ser frios,
Allen. É melhor aprender agora do que quebrar a cara depois.
Pin.
As portas do elevador se abriram.
Entrei primeiro enquanto Robin, ainda se recuperando do
baque de minhas palavras, me acompanhava atordoada. Apertei o
botão do último andar. As portas se fecharam novamente, tirando a
visão do corredor mórbido do subsolo.
A música baixa que ecoava na caixa de metal me fazia ter
dor de cabeça. Era aquele tipo de música que mais ninguém
aguenta escutar, mas que implora para ser tocada e ter ao menos
um pouco de barulho para aliviar o peso do ambiente.
— Quero ser o tipo de médica que salva vidas, doutora
Foster. Não que se contenta ironicamente em viver com a morte —
escutei sua voz baixa.— Médicos não precisam ser frios. Eles
precisam ser humanos.
Eu juntei minhas mãos em frente ao corpo.
Ainda restava um pouco de humanidade em mim?
— Se está tão incomodada com seu emprego, Allen,
aproveite a viagem até o último andar e peça demissão para ele.
Muitos outros estudantes de medicina, ironicamente, matariam para
estar no seu lugar — rebati, imitando seu tom de voz.
Robin se calou.
Eu me calei.
Nem mesmo a música ridícula eliminava o peso entre nós.
Sinto como se Robin fosse uma criança, que está pouco a
pouco perdendo sua inocência.
O mundo não é bonito.
O mundo não é humano.
Pin.
O elevador apitou novamente.
As portas prateadas se abriram, revelando um cenário
totalmente diferente do que nós viemos.
Tinha luz.
Quase senti a necessidade de tampar meus olhos para que
os mesmos não perdessem a capacidade de enxergar.
Era engraçado pensar no quanto o prédio do D.I.M poderia
facilmente ser comparado com o paraíso e estar abraçado as trevas.
A cobertura era o céu. O subsolo o inferno.
Então, eu era uma espécie de diabo?
O último andar do departamento era provavelmente a parte
mais rica do prédio inteiro. O saguão era enorme, e uma parede de
vidro o percorria de ponta a ponta. Dava para ver a cidade toda de
onde estávamos. O carpete no chão era em um tom de cinza
escuro, e sofás amarronzados enfeitavam um canto do ambiente.
Logo à frente do elevador, uma mesa de madeira escura abrigava
uma mulher de trinta e poucos anos que eu, sinceramente, achava
um tanto desnecessária.
— Doutora Foster...— ela cumprimentou.
O som de sua voz me causava enjoo.
Lutei para não revirar os olhos e saí do elevador. Robin me
seguia sem dizer absolutamente nada.
— Green.
Seu nome saiu com um tom amargo.
Admirei Katherine Green por muito tempo. Eu era quase
como uma fã anônima. Katherine parecia ser poderosa e dona de si.
Ela não se importava com os comentários que passeavam pela
boca dos fofoqueiros do departamento. Ela usava as roupas que
queria, a maquiagem que queria, saía com quem queria. Eu
basicamente queria ser ela quando crescesse.
Isso, é claro, antes de ela furar bruscamente e sem dó o meu
olho.
Tinha um cara.
E eu gostava desse cara.
Só que fica difícil ter um encontro quando todos sabem
exatamente o que você faz. Ser médica legista pode assustar.
E é claro que Katherine daria seu jeitinho de roubar o certo
cara e, de quebra, me humilhar com palavras que eu nunca
esqueceria.
— Ele me chamou.
— É claro que chamou... — rebateu.— Ele só te chama
quando precisa de você, não é?
Se controla, Sadie.
Katherine levou suas mãos até o coque feito no topo de sua
cabeça e, quase que em uma câmera lenta patética, soltou seus fios
loiros. Abriu um dos botões de sua camisa social e, com um sorriso
vitorioso, se levantou de sua cadeira, caminhando graciosamente
até a porta atrás de sua mesa.
Como eu disse: Desnecessária.
Encarei Robin, que tinha as sobrancelhas franzidas para
mim.
— O quê? — perguntei rudemente, tentando aumentar minha
fama de chefe malvada.
Ela negou com a cabeça e, mais uma vez, se encolheu.
— Não abaixe tanto a cabeça, Robin.
A garota respirou fundo e soltou o ar com força.
— Eu juro que não consigo te entender — ela murmurou.
Fiquei com vontade de rir.
Era legal confundir Robin.
— Sadie, querida... — escutei a voz de Katherine e a
encarei. — Pode entrar.
Caminhei até a porta escura, a qual Katherine me aguardava
com um sorriso irônico nos lábios vermelhos, e me surpreendi com o
que vi no interior da sala luxuosa de móveis luxuosos.
Não havia só ele.
Haviam mais dois pares de olhos que se focaram em mim
rapidamente.
Atrás da mesa grandiosa de diretor do departamento, estava
Thomas Walker sentado na cadeira almofadada escura.
Aquele era o cara.
O cara que eu gostava.
Thomas Walker tinha quarenta e poucos anos de pura
inteligência e charme. Ele tinha os cabelos negros e os olhos da
mesma cor, tão expressivos que algumas vezes eu me pegava
encarando-o como uma idiota. Estava sempre vestido em um terno
social e, Deus, ele era bonito. Bonito demais.
Não foi surpresa nenhuma ele escolher Katherine.
Ela era tão bonita quanto ele.
Eu nunca teria chance com alguém como Thomas Walker.
— Doutora Foster — ele cumprimentou, me oferecendo um
sorriso gentil.
Soltei um sorriso amarelo e levemente nervoso.
Olhei para o segundo indivíduo na sala. Blaine Donovan era
um dos investigadores do departamento, mas eu sabia que ele
preferia ficar com a cara enfiada em computadores, rastreando e
hackeando contas de criminosos e nos ajudando com suas
habilidades na tecnologia.
Os olhos azuis do garoto avaliaram a mim, depois avaliaram
Robin. Ficaram mais tempo em Robin, enquanto ele passava os
dedos por seus cabelos castanhos e o canto de seus lábios subiam
levemente.
Robin corou.
A última pessoa na sala, encostada na parede do canto e de
braços cruzados, me fez estremecer.
Sua presença intimidante me fez engolir em seco.
Seus olhos avelã me fitavam.
Eles me avaliavam.
Me julgavam.
Devan Caldwell. O melhor detetive do departamento. O gênio
das bombas. Desenhista profissional.
Caldwell era como um mito. A lenda. Não houve uma
investigação que ele perdera. Não houve um assassino que
entrasse em sua teia de aranha e saísse impune.
E agora, eu era um simples inseto completamente grudado
na teia.
E ele — a aranha — vinha em minha direção, abrindo e
fechando suas presas e me encarando com seus olhos mortais.
Olhos estes que viam cada detalhe do meu rosto. Do meu
corpo. Do meu comportamento.
Naquele momento, eu era a criminosa.
Devan estava me examinando exatamente do mesmo jeito
que examinava seus suspeitos.
Tentei não deixar transparecer o quanto fiquei incomodada
com seu olhar e ergui o nariz, para devolver o mesmo olhar que ele
me lançava.
Se os seus olhos tinham um radar, os meus tinham um
melhor ainda.
Seus cabelos eram dourados, a barba rala, por fazer,
enfeitava seu maxilar quadrado e bem marcado. Seus lábios
estavam sempre em uma linha reta, a postura sempre dura. A
camisa social preta cobria seus músculos bem definidos, a calça
jeans surrada gerava um contraste com a peça de cima.
E a arma presa ao coldre na cintura.
Todos os detetives tinham armas, até eu tinha uma, mas ele
era o único que sempre a levava consigo.
Em qualquer circunstância.
Interrompendo qualquer coisa que estivesse acontecendo ali,
Thomas se levantou de sua cadeira, limpou a garganta e encarou a
porta.
— Katherine, querida. Entre e feche a porta, por favor.
"Querida."
Olhei para a loira, que sorriu e fechou a porta.
E é claro que ela não deixou de me oferecer seu olhar
vitorioso.
— Vocês são os melhores do departamento... — Thomas
disse, encarando todos nós.
— Obrigado, chefe. Sei disso — Blaine sorriu como uma
criança.
— Guarde seus comentários narcisistas para depois, Blaine
— Thomas retrucou, sério — Bom, voltando ao assunto, vocês são
os melhores do departamento e eu preciso de vocês para um caso.
Walker se sentou na ponta de sua mesa, ainda com uma
perna apoiando seu corpo, e segurou um pequeno controle que
estava depositado sobre alguns livros. Ao apertar um botão, as
cortinas de sua sala se fecharam e a parede de vidro já não permitia
mais que a luz do sol entrasse. Mais um botão clicado e o projetor,
que apontava para a parede lateral, iluminou o local revelando a
imagem de um corpo.
Mulher.
1,75.
Na faixa etária dos 30 anos.
Seus olhos estavam abertos e suas íris azuis pareciam
pálidas.
E o que mais chamou atenção: sua cabeça estava raspada.
O cabelo da mulher foi totalmente cortado.
Apesar de ser algo simples e que, aquele corpo não chegava
aos pés de outros completamente assustadores que já passaram
por aqui, aquela imagem era bizarra.
Thomas clicou mais um botão e outra imagem apareceu.
Desta vez, o foco estava no braço da mulher. Cravado com
provavelmente um canivete ou qualquer outra coisa cortante, as
letras maiúsculas rasgavam a pele branca da pobre mulher:
"DEATH".
— Assassino em série — eu disse.
Thomas assentiu.
— O assassino se auto intitula como Morte. E, acreditem, de
onde veio esse corpo, vieram outros.
Eu franzi as sobrancelhas, confusa.
— Eu não entendo o que estou fazendo aqui, Walker. Esse
caso parece comum.
— E ele é...— afirmou.— Só que é longe de Detroit.
Precisamos passar um tempo nessa cidade, se quisermos pegar
esse cara.
Eu assenti, entendendo.
— E onde é?— Robin perguntou.
— É em uma cidade do interior. Coolley.
Coolley.
Coolley.
A palavra ecoou por mais alguns segundos, antes de eu
sentir meu coração parar de bater por um instante.
Minha visão embaçou.
Tudo ficou preto.
Desmaiar não era como eu imaginava.
Eu era médica, sabia exatamente as causas básicas para um
desmaio.
Queda de pressão.
Uma provável anemia.
Algum quadro infeccioso que possa ter gerado febre.
Dor extrema.
Este foi o exato motivo para eu ter desmaiado.
Quando fiz residência em um dos hospitais de Detroit, eu
atendi uma garota que estava tendo desmaios consecutivos. Pelo
menos duas vezes durante semana, ela desmaiava. Sua mãe a
obrigou a fazer um teste de gravidez. Negativo. Foram realizados
testes para possíveis tumores. Negativo. Para possíveis doenças
infecciosas. Negativo.
Em uma de suas internações a garota, como sempre,
desmaiou. As enfermeiras me chamaram e disseram que ela não
acordava de jeito nenhum.
Mandei que todas saíssem do quarto, porque já sabia o que
estava acontecendo.
Eu aprendi muitos macetes na faculdade, e apliquei um deles
naquela garota. Entre os ossos da caixa torácica, havia o Esterno.
Ele servia para ligar as costelas. E, no final do Esterno, havia outro
osso muito menor. O Apêndice Xifóide.
A tática que aprendi chamava-se "acorda bêbado". Ela
basicamente consistia em pressionar o Apêndice Xifóide com uma
das falanges dos dedos. A dor era tanta que pessoas bêbadas
levantavam na hora, e quase demonstravam sinais de consciência.
Mas pacientes que estavam inconscientes não sentiam
aquela dor.
Não fazia nem cócegas.
E, quando eu pressionei o Apêndice Xifóide daquela garota,
ela deu um pulo e gemeu de dor.
Estava fingindo.
Sentei ao seu lado, na poltrona, segurei sua mão e perguntei
o que estava acontecendo dentro dela. Ela começou a chorar
dolorosamente, enquanto tentava dizer o motivo para tudo aquilo,
com dificuldade, pois os soluços desesperados não davam trégua.
As únicas palavras que entendi foram "padrasto" e "abuso".
Ela fingia os desmaios para ser internada e,
consequentemente, ficar longe dele.
Acionei a assistente social do hospital, uma das psicólogas,
e contei o que estava acontecendo para sua mãe. Ela chorou mais
do que a garota. Tudo estava acontecendo bem debaixo do seu
nariz. E, o fato de ela ter se casado com aquele homem nojento,
induzia a mulher a se culpar pelo que estava acontecendo.
Eu neguei com a cabeça.
"O único culpado nesta história é ele. Não faça isso consigo
mesma. Sua filha precisa de você, e você precisará dela. Uma é o
apoio da outra, e juntas vão conseguir seguir em frente. Já tomei as
medidas necessárias para que ele pague pelo que fez", eu disse.
O padrasto foi preso e elas puderam voltar em paz para
casa, não sem antes me agradecer um bilhão de vezes.
A única diferença entre mim e aquela garota, era que a dor
extrema me fez realmente desmaiar.
E, quando eu acordei e lembrei de tudo, a única coisa que eu
queria era nunca ter aberto os olhos novamente.
Coolley.
Coolley.
A voz de Thomas ainda ecoava em minha cabeça quando eu
abri os olhos e encarei o teto branco. Eu não escutava sons de
máquinas ou de pés pisando no chão por todos os lados, então eu
provavelmente não estava em um hospital. Minhas costas tocavam
algo macio. Era um sofá. Eu sentia algo gelado correr por dentro de
meu braço, e quando encontrei a bolsa de soro pendurada no
suporte, sabia exatamente quem havia feito aquilo.
Robin.
Em um leve rompante de adrenalina, eu me sentei tão
rapidamente que o peso que atingiu minha cabeça quase me fez
desmaiar novamente.
Aguardei alguns segundos para meu cérebro voltar ao seu
devido lugar.
— Se eu fosse você, continuaria deitada.
A voz rouca e grossa fez com que um arrepio percorresse
meu corpo.
Girei meu rosto na direção e encarei o homem sentado atrás
da mesa. Devan Caldwell tinha os olhos concentrados em um
caderno fino, seus dedos longos prendendo fortemente um grafite
que corria para lá e para cá sobre a folha.
Devan era o astro do departamento. O menino dos olhos de
Thomas.
Soube de um caso em que ele foi o único a conseguir
desarmar uma bomba, que estava presa a uma criança em um
parque cheio de crianças. E de outro, o qual ele pegou um
assassino que arrancava as unhas de suas vítimas e as colecionava
como uma garota coleciona bonecas. Ou quando ele conseguiu
fazer um retrato falado idêntico ao assassino, o que contribuiu cem
por cento para sua prisão.
Eram histórias e mais histórias exaltando seus atos heroicos.
E o pior de tudo, era que todas eram verdadeiras.
E eu sabia o seu truque.
Seu truque não passava de pensar o óbvio, e depois, pensar
o contrário do óbvio.
Pessoas com doenças mentais nunca eram óbvias. Elas
eram imprevisíveis, e Devan sabia exatamente como lidar com elas.
Ele tinha uma carreira brilhante.
Eu tinha uma carreira brilhante.
Ele com certeza era solitário.
Eu mais ainda.
Talvez seja essa a semelhança entre mim e Caldwell.
Eu trabalhava no D.I.M há três anos, e cruzei com Devan
pouquíssimas vezes. Uma vez no elevador. Outra vez no refeitório.
Outra na copa e, a quarta, na sala de Thomas antes de perder a
consciência. E em três anos, eu nunca havia escutado sua voz.
Exceto por agora.
Passei meus olhos ao redor do local. A sala era infinitamente
menor que a de Thomas, mas provavelmente era a melhor dentre os
detetives. Era desorganizada. Haviam pilhas de papéis no chão,
sobre a mesa. Alguns livros também estavam espalhados pelo local
e as cortinas estavam fechadas, permitindo que só uma parte dos
raios de sol entrassem.
— Por que estou na sua sala?— eu perguntei, levando
minha mão até o equipo conectado ao soro e parando o
gotejamento.
— Porque eu quis.
Meus dedos, que estavam tentando tirar o esparadrapo que
prendia o acesso venoso ao meu braço, pararam subitamente por
suas palavras.
Eu franzi as sobrancelhas e o encarei. Devan ainda tinha os
olhos avelã no desenho que fazia, mas sua outra mão alcançou um
objeto depositado sobre sua mesa.
Meu crachá.
A dificuldade de tirar o esparadrapo sumiu, e eu arranquei o
acesso com força. Vi a marca vermelha sobressaltar. O crachá que
deveria estar pendurado em meu pescoço, estava agora em suas
mãos, contendo todas as informações que ele precisava para teclar
em seu computador e achar tudo.
Tudo.
Eu estava espumando de raiva.
Me levantei rapidamente e andei a passos duros até Devan,
arrancando o objeto de suas mãos.
— Quem você pensa que é?! — esbravejei.
Os olhos avelã do homem finalmente saíram do caderno, e
me fitaram.
Pela segunda vez no dia, eles me avaliaram.
Devan fechou seu caderno e o jogou sobre sua mesa, junto
com o grafite. Lentamente, ele apoiou suas mãos na mesa e se
levantou. Eu precisei inclinar alguns centímetros minha cabeça para
trás, porque Devan era grande e só assim eu conseguiria encarar
seus olhos.
— Eu sou um detetive, doutora Foster. Eu investigo, e
precisava das informações do seu crachá para investigar você.
Engoli em seco.
Eu não queria que ele soubesse.
Não queria que absolutamente ninguém soubesse.
— E eu sei porque você desmaiou, Foster... — murmurou ele
— Você era dessa cidade. Era de Coolley.
Aquilo não foi uma pergunta.
— Agora, por que você passou mal, hm?— questionou,
levando uma das mãos até seu queixo, em uma postura pensativa
— Você deve ter um trauma e tanto.
— Você não tinha o direito — disse entredentes.
— Você faz parte da equipe. E antes de um caso eu sempre
investigo os integrantes. Sabe, para evitar futuras dores de cabeça
— deu de ombros — mas eu estou curioso, doutora Foster... —
continuou, apoiando suas mãos novamente na mesa e chegando
mais perto de mim — Você vai aceitar o caso ou será covarde e
fugir? Como fez em Coolley?
Eu senti que Devan tinha a capacidade de ver tudo dentro de
mim. Senti que ele estava a um fio de me desvendar por completo.
Eu fugi de Coolley.
Fugi como uma maldita covarde.
Exatamente do jeito que ele disse.
Percebendo que eu não responderia à sua pergunta,
Caldwell soltou um curto sorriso sem mostrar os dentes, como se já
tivesse o que queria. Ele esticou o braço até sua gaveta, abriu e de
lá, tirou um lenço.
Estendeu para mim.
— Está sangrando.
Eu olhei na direção do meu braço e percebi o caminho
vermelho que meu segue fazia por minha pele, saindo do lugar em
que Robin conectou o acesso em mim. O líquido viscoso escorria
sem brecha, manchando minha pele e meu jaleco, até parar na
ponta do meu dedo indicador e pingar no chão, tingindo o carpete
claro sob nossos pés.
Peguei o lenço de sua mão e, sem nem mesmo encará-lo,
dei as costas e saí de sua sala.
Devan Caldwell tinha um rostinho bonito e corpo escultural,
mas encarando seus olhos avelã gélidos, tudo o que eu vi foi um
demônio.
A garrafa de vinho estava quase na metade.
Eu não bebia com frequência. Na verdade, aquela garrafa eu
havia deixado guardada no fundo do armário por muito, muito
tempo. Eu ganhei na faculdade, quando estava me formando. Minha
professora de anatomia, Eva Moore, parecia verdadeiramente
gostar de mim. E eu também gostava dela. Participava de todas as
suas aulas, marcava presença em todas as suas palestras e ficava
me perguntando se algum dia eu seria tão extraordinária quanto ela.
Depois de um tempo, nós começamos a discutir sobre
teorias do campo da medicina. Nossas conversas evoluíram para
sonhos futuros e, mais tarde, nossas vidas. Eu omitia grande parte
dela, é claro, enquanto Eva me dizia até mesmo sobre como seu
marido era bom.
E eu tinha certeza que aquele "bom" tinha duplo sentido.
Acabamos nos tornando amigas. E quando eu me formei, ela
fez questão de me presentear com aquela garrafa de vinho tinto lote
1990, e palavras bonitas me parabenizando por ter conseguido me
formar com honras.
Ela dizia que meu futuro seria excepcionalmente brilhante.
Excepcionalmente brilhante era um termo tão forte que eu
apenas sorri fraco, omitindo meus planos de ser legista.
Será que ela ficaria decepcionada com o fato de que eu
estudei por anos para salvar vidas, e agora trabalhava diretamente
com o que médicos deveriam evitar?
Levantei a taça até a altura dos meus olhos e observei o
líquido cor de sangue.
A kitnet que eu alugava ficava no centro da cidade. Eu
morava aqui desde que botei os pés em Detroit. Cheguei a dividi-lo
por um tempo com uma garota. Ela precisava de um lugar para ficar
e eu precisava dividir as contas. Nos dávamos muito bem, mas
depois que a faculdade acabou, nos afastamos e meio que
perdemos o contato. Entretanto, no final das contas, eu não me
importava com isso.
Gostava de ficar sozinha. Gostava de pensar que este era
meu cantinho verdadeiro. Era o único lugar onde eu não teria que
colocar máscaras e contar mentiras sobre mim.
Era pequeno. Uma cozinha apertada, uma sala apertada, um
banheiro apertado e uma escada estreita de madeira branca, que
me levava à minha cama. Não havia um quarto, e eu gostava disso.
Não havia um canto do local que eu não pudesse enxergar,
independente do lugar que eu estivesse. Isso, me transmitia
segurança.
Respirei fundo, antes de jogar o resto do vinho pela minha
garganta e depositar a taça na mesinha de centro. O relógio
pregado na parede cinza marcava duas da madrugada.
Não conseguia dormir.
Nem se eu enfiasse muitos e muitos calmantes goela abaixo.
Eles nunca dariam conta da minha insônia.
Alcancei meu notebook do outro lado do sofá e abri sua tela.
A luz forte me fez praguejar. Assim que meus olhos se acostumaram
com a iluminação repentina, meus dedos se direcionaram para o
mouse e o indicador se arrastou pelo retângulo plano, levando a
seta até a aba minimizada.
O relatório abriu.
Comecei a digitar.
"Laudo:
Caso Andrew Morgan, 45.
Morte por enforcamento.
Sinais claros de tortura.
A vítima apresenta indícios que me fazem acreditar que o
assassino tenha forte relação com órgãos, mais precisamente com
rins. Ele pode ter passado por um trauma ligado à um transplante,
em algum parente ou nele mesmo. Talvez tenha um fundo
emocional tão grande quanto estas hipóteses. Ou, na pior das
opções, tráfico de órgãos.
É possível que ele consiga informações sobre pacientes que
tenham recebido ou transplantado um rim em hospitais ou clínicas.
Sugiro que procurem por homens fortes que trabalham em centros
de saúde. Pode ser um médico, um enfermeiro, um recepcionista ou
um segurança. Qualquer um que tenha acesso à prontuários
antigos.
Diagnóstico:
Provável Esquizofrenia."
Levei a seta até o botão em negrito, escrito "enviar". Todo o
relatório de seis páginas foi enviado por e-mail, no endereço de
Thomas Walker.
Thomas Walker... até seu nome soava bem.
Era impressionante o quanto Thomas me fazia sentir como
uma adolescente. Ele tinha algo que me cativava. Eu não sabia se
era o seu charme absurdo, ou sua inteligência igualmente absurda.
Só sabia que, no dia que fui para a entrevista, eu literalmente me
encantei. Ele foi gentil e me fez ficar calma. Era quase como se ele
tivesse me jogado algum feitiço muito potente.
O problema era que Thomas nunca me viu como eu o via.
Nem Thomas, nem nenhum dos malditos homens daquele
maldito departamento.
Será que eu cheirava a morte?
Saber o que eu fazia incomodava tanto?
Ou eu não era tão atraente.
A última vez que transei foi na faculdade. Eu nem sabia mais
como era flertar.
Estava prestes a me esticar novamente até a garrafa de
vinho e despejar mais bebida na taça, quando meu notebook apitou.
O som agudo pareceu ter ecoado várias e várias vezes em meus
ouvidos. Voltei meus olhos para ele, e meu coração disparou
quando vi o que era.
Thomas respondeu meu e-mail.
Ele nunca respondia quando eu enviava meus relatórios.
Alguns segundos se passaram, enquanto minha cabeça
ainda tentava entender a notificação em negrito, que brilhava como
se eu estivesse em um desenho animado e havia encontrado o
tesouro.
Com a mão levemente trêmula, arrastei mais uma vez a seta
e cliquei na caixa.
"Não deveria estar dormindo, doutora Foster? Temos uma
viagem agendada para às sete."
Aí meu Deus.
O que eu faço?
Engoli em seco e levei meus dedos para o teclado.
"Eu não vou."
Enviado.
Juntei minhas mãos, nervosa.
O notebook apitou.
"Alguma chance de te convencer? Robin não parece muito
confiante em ir sozinha."
Eu suspirei.
"Ela consegue dar conta. Tenho muito o que fazer aqui em
Detroit."
Mentirosa.
Eu não peguei a taça desta vez. Minha mão agarrou a
garrafa e meus lábios foram diretamente para o gargalo, tomando
um grande gole da bebida alcoólica que me faria ter dores de
cabeça.
"É uma pena. Você era nossa carta na manga, Sadie."
Ele disse meu nome.
Ele disse meu nome.
Não sorria muito, Foster.
"Está tentando me fazer mudar de ideia com elogios?"
Alguns segundos depois, o notebook não apitou.
Mais alguns segundos, e nenhuma notificação.
Mais alguns goles, e nenhuma resposta.
A ansiedade quase me matava. Atualizei a página e, como
um passe de mágica, a mensagem surgiu.
"Espero que esteja funcionando."
O som agudo soou novamente.
"Vá dormir, doutora Foster. Você tem um voo para pegar."
Eu sorri mais ainda.
"Já disse que não vou."
A resposta não demorou tanto para chegar, desta vez.
"Ok. Vou fingir que acredito. Até o aeroporto.
Ps. Bom trabalho com o relatório. Você nunca decepciona."
Aquela mensagem e os goles a mais no vinho foram o
suficiente para me fazer levantar do sofá de dar pulinhos de alegria.
Meus cabelos se soltaram do coque bem feito e meu sorriso
estava de rasgar o rosto.
Ele gosta do meu trabalho.
Isso quer dizer algo, não quer?
Tem que dizer.
Eu parei de pular quando o toque do meu celular soou. Ainda
sorrindo feito a idiota que eu era, atendi:
— Foster.
— Oi, doutora! Sou eu, Robin.
Ofegante, me sentei no sofá. A sombra do sorriso ainda
estava ali.
— Por que está acordada a essa hora, Robin? O vôo é logo
cedo, não é?
— É! É sim, é que... — escutei um suspiro desapontado —
Eu não posso fazer isso. Não sozinha.
Seu tom saiu baixo.
Eu soltei o ar.
— Já conversamos sobre isso, Robin... — eu disse — Você
vai se sair bem. Eu não posso ir nessa viagem. Tenho muito o que
fazer.
Mentirosa.
— Droga! Eu sei, desculpe, eu só... — bufou — Por favor,
doutora Foster. Eu não consigo fazer isso sozinha. Eu...
Sua frase parou na metade.
Fechei os olhos com força.
— Olha, Robin...
— Por favor... — ela me interrompeu.
A garota estava apavorada. Ela estava implorando. Eu
conseguia sentir seu medo, mesmo estando do outro lado da linha.
Deixei minha cabeça pender para baixo.
Senti uma dor extrema.
Se eu voltasse para aquele lugar, provavelmente teria de
aguentar isso durante todo o tempo. Ao mesmo tempo, sabia que o
que estava fazendo com Robin não era certo.
Ela era só uma garota. Eu deixei o peso todo em suas costas
por puro egoísmo.
"Você vai aceitar o caso ou será covarde e fugir?" Caldwell
disse.
Ele estava certo.
Eu era uma covarde.
Só que já estava na hora de parar de fugir.
— Ok... — disse, quase em um sussurro.
— Ok? — Robin questionou, o tom de voz surpreso.
— É. Ok, Robin. Agora vá dormir e me deixe em paz.
Escutei um grito de comemoração.
— Obrigada! Muito obrigada, doutora! Vou deixar você em
paz. Boa noite! Obrigada mais uma vez!
A linha ficou muda, e então, o barulho agudo e contínuo se
fez presente. Soltei o ar com força.
Eu já não estava tão feliz quanto há segundos atrás.
Levei meus dedos novamente até o teclado e digitei um novo
e-mail para Thomas Walker.
"Até o aeroporto."
Meus olhos negros estavam sem brilho.
Nunca tiveram.
As olheiras abaixo deles estavam profundas.
Sempre estiveram.
Meus cabelos pretos ondulados e levemente volumosos,
desciam completamente sem vida até metade de minhas costas.
Nunca tiveram.
Minhas sardas, que enfeitavam meu nariz e uma parte das
maçãs do meu rosto estavam estupidamente apagadas.
Sempre estiveram.
Sem vida.
Sem brilho.
Apagada.
Profundamente ridícula eu era.
O espelho redondo do banheiro minúsculo revelava a
imagem de uma mulher cansada. Já deveria ter me acostumado
com essa imagem, eu a via todos os malditos dias quando acordava
e quando ia dormir.
Nunca fui a garota mais bonita, ou a mais feliz, ou a mais
iluminada. Eu não fazia muita diferença. Na verdade, eu poderia
facilmente ser comparada a um Apêndice. Ter minha presença ou
não ter era quase a mesma coisa, mas, enquanto o Apêndice era só
o abrigo de bactérias boas para o organismo, eu transbordava
coisas ruins. Escuridão. Podridão. Só que, assim como ele, se eu
me inflamasse demais, causaria estragos.
Eu explodiria.
E toda a podridão se espalharia tão rápido quanto fumaça.
Contaminaria tudo e todos à minha volta. Causaria uma
infecção tão grande, que nem o melhor dos antibióticos poderia
curar. Nem o melhor dos médicos poderia controlar.
E eu sorriria com os olhos brilhando, dizendo o quanto
aquela destruição era linda.
Respire fundo, Sadie.
É só uma temporada na cidade.
Depois você pode voltar à sua vida patética e cômoda.
Abri a torneira e formei uma concha com as mãos, abrigando
a maior quantidade de água que conseguia.
Joguei em meu rosto.
Mais duas conchas de água e eu já estava pronta para abrir
a porta, e fingir enfrentar o mundo lá fora.
Sequei meu rosto, destranquei a porta e saí do banheiro.
O silêncio do avião era interrompido apenas por alguns
cochichos. Uma comissária de bordo elegante, com um vestido
social tão vermelho quanto o batom em seus lábios, caminhava pelo
corredor empurrando um carrinho preenchido de bolachas, lanches
pequenos, chás, cafés e algumas garrafas minúsculas de uísque.
Minha cabeça doía só de pensar em álcool.
Eu não deveria ter tomado aquela garrafa inteira.
Ainda estava tentando descobrir se o enjoo que eu sentia era
por conta da ressaca, ou pelo fato de estar voando diretamente e
literalmente para o inferno.
Forcei meus pés a caminharem pelo corredor estreito, por
entre as poltronas, em direção à minha, ao lado de Robin. No meio
do percurso, uma mulher alta e loira se levantou de uma delas,
ajeitando seus cabelos. Os olhos verdes de Katherine Green me
mediram de cima abaixo, antes de me lançar um sorriso esnobe e
passar por mim, trombando propositalmente em meu ombro.
O enjoo aumentou.
A equipe era pequena. Éramos eu, Robin, Blaine — o gênio
da computação —, Thomas e Caldwell. Eu não entendia a
necessidade de Katherine nessa viagem também.
Na verdade, eu não entendia muita coisa.
Principalmente o meu ataque de coragem ao respirar fundo e
pisar neste avião. Era quase como se eu estivesse correndo em
câmera lenta e com um sorriso estampado no rosto, diretamente à
minha forca.
Cheguei em minha poltrona e me sentei rapidamente. Eu
fechei os olhos e respirei fundo, tentando me acalmar.
Eu não podia ter um ataque de ansiedade no meio deste
avião.
Ter ataques de ansiedade viraram rotina quando eu fugi de
Coolley. Eu tinha pesadelos todas as noites, e assim que eu
acordava deles, não conseguia mais me acalmar. Eu só parei de ter
quando comecei a tomar remédios para insônia antes de dormir. Eu
ficava tão dopada e com um sono tão pesado que não sobrava
espaço para pesadelos e, consequentemente, crises de ansiedade.
E se eu não quisesse ter uma agora mesmo, para relembrar
aquela época, eu tinha que me acalmar:
Um.
Dois.
Três.
Respira fundo.
Quatro.
Cinco.
Seis.
Uma mão tocou a minha.
Eu abri meus olhos e virei meu rosto para o lado. Robin tinha
os olhos escuros em uma mistura de compaixão e compreensão.
Seus cabelos negros e finos estavam presos em um rabo de cavalo,
seus óculos, como sempre, escorregando pelo seu nariz.
— Você tem medo de avião, não é?
Não.
Não é isso, Robin.
Está longe de ser.
Eu engoli em seco e afirmei com a cabeça.
— É... é exatamente isso... — menti.
Robin soltou um sorriso fraco.
— Está tudo bem, Sadie. Eu também tenho... — sua mão
agarrou um pouco mais a minha, seus dedos se entrelaçando com
os meus.— Eu sempre fico nervosa quando vou viajar. Mas aí eu
coloco um filme e consigo relaxar... — apontou para a tela na
poltrona à frente. — Você quer?
Sua outra mão alcançou sua orelha, e Robin me ofereceu um
dos fones de ouvido.
Dizem que se uma pessoa oferece seu fone de ouvido, é
porque ela realmente se importa.
Allen se importava comigo o suficiente para dividir um fone
de ouvido?
Deus, eu era uma vadia com ela!
Eu abri um sorriso fraco e agradecido, tirando delicadamente
minha mão da sua.
— Não precisa, Robin. Já estou melhor, obrigada.
A garota me ofereceu um sorriso gentil, antes de voltar a
colocar o fone em seu ouvido e seus olhos na tela.
Robin era provavelmente a pessoa mais doce que já
conheci.
Ajeitei-me em minha poltrona, até estar confortável o
suficiente para não surtar. Cruzei meus braços e encarei o corredor
do avião. Até meus olhos encontrarem os dele.
Devan estava a duas poltronas de diferença, na outra
metade do avião. Sua cabeça estava virada discretamente em
minha direção, seus olhos avelã não perdendo um movimento meu.
Seus cabelos dourados estavam bagunçados como sempre
estiveram, a barba rala por fazer dava a impressão de que ele
cuidava dela todos os malditos dias, com rituais excepcionalmente
metrossexuais. Mas eu sabia que ele só havia acordado e dirigido
até o aeroporto. A camisa social branca, que abraçava
perfeitamente seu corpo perfeito, dava um ar angelical a ele.
Um verdadeiro anjo do inferno.
Ele estava me observando desde que me viu chegar no
aeroporto. Acho que ele esperava que eu realmente não fosse.
Esperava que eu fugisse como uma coelhinha assustada.
Ele traçou meu perfil como traça o perfil dos seus criminosos.
A palavra covarde estava no topo da lista.
Eu não sabia o que Devan havia visto em mim, mas
provavelmente não gostou da minha cara. Ele me olhava como se
eu fosse simplesmente medíocre. Como se eu me resumisse a
nada.
Não que eu não fosse. Só não gostava que ele soubesse
disso, mas ele sabia.
Caldwell sempre sabe quando pessoas escondem coisas, e
eu definitivamente escondia muitas, muitas coisas.
Seus olhos ficaram focados em mim por mais alguns
segundos, antes de ele se virar para frente e deixar de me observar
como um predador prestes a atacar.
Um arrepio percorreu meu corpo.
E não era um arrepio bom.
Era um arrepio que anunciava que aquele olhar, algum dia,
provavelmente me mataria.
Ele me inflamaria.
Eu realmente não me importava, e nem vou me importar
quando minhas chamas estiverem tão ardentes, que todos sentiriam
o fogo me queimar mesmo a metros e mais metros de distância.
Ele poderia me abastecer com vários outros daqueles
olhares, se quisesse.
Eu guardaria cada um deles.
E, quando eu explodisse, faria questão de ele ser o primeiro
atingido.
A minha primeira observação foi: nada mudou.
Absolutamente nada.
As ruas ainda eram perfeitamente asfaltadas.
Algumas poucas de paralelepípedos.
As árvores que enfeitavam o acostamento davam um tom
verde para a cidade. Acho que o prefeito se preocupava demais em
manter as aparências, e resolveu gastar todo o dinheiro dos
impostos plantando várias delas, deixando a educação, a saúde e a
segurança de lado.
Principalmente a segurança.
Afinal, o assassino precisava de uma boa tela para pintar
suas obras com o sangue de suas vítimas. As imagens das folhas
esverdeadas com pingos em vermelho escarlate rapidamente
atingiram minha mente.
Era adoravelmente perturbador.
— Já vi pelo menos dez garotas que preciso do número —
Blaine disse, no banco da frente.
Enquanto o carro percorria Coolley em uma velocidade
assustadoramente lenta, Blaine observava a cidade com seus olhos
de águia, reparando em provavelmente todas as garotas que
surgiam nas ruas. Algumas passeavam com seus animais de
estimação, outras faziam exercícios, e a maioria caminhava
despreocupadamente pelas calçadas, como se a razão de estarmos
aqui fosse completamente insignificante.
Será que elas sabem?
Elas precisam saber.
Quatro corpos de quatro mulheres foram encontrados, em
pontos distintos, mas relativamente movimentados.
Por que elas não pareciam nenhum pouco preocupadas?
— Você é um idiota.
Girei meu rosto e encarei Robin, que rolava os olhos e
voltava a encarar a janela.
Franzi as sobrancelhas.
Robin sendo rude gratuitamente com alguém?
Algo de errado não estava nada certo.
Robin era do tipo de garota que prefere manter a boca
fechada a ser rude com alguém. Ela era educada demais para jogar
a merda toda no ventilador.
— Mas você sabe, linda, eu jogaria fora todos os números e
guardaria só o seu.
Blaine encarou Robin pelo espelho e lhe lançou uma piscada
de olho. A garota tentou esconder o sorriso, mas falhou
miseravelmente.
Donovan sorriu de volta.
Eles transaram.
Eles com certeza transaram.
Além de ter que voltar para minha cidade natal de merda, eu
teria que segurar vela para os dois pombinhos.
Ótimo.
Assim que o avião pousou, dois carros estavam à nossa
espera no aeroporto da cidade vizinha a Coolley. Em um carro,
Katherine e Thomas juntamente com a maioria de nossas malas,
seguiam em nossa frente, guiando todo o percurso. No segundo
carro, eu e Robin ocupávamos os bancos de trás. Ela tinha um dos
fones em seu ouvido e os olhos na janela. A garota parecia animada
com a viagem, já que, segundo ela, a cidade era "uma graça" —
tirando o fato de estarmos aqui só para abrir corpos e investigar o
caso —. Caldwell segurava o volante com as duas mãos. Seus
olhos sempre atentos, revezavam entre olhar para frente, olhar para
os espelhos retrovisores e o espelho central. Sua expressão séria.
Implacável. Dura. Não havia nem a sombra de um sorriso ali. Blaine,
por outro lado, não parou de falar um só segundo. Sua voz estava
ecoando em meus ouvidos durante todos os malditos setenta
minutos de viagem entre a outra cidade e Coolley.
Estava me controlando para não mandá-lo calar a boca e
nos dar alguns minutos de paz. Era quase como se eu estivesse
viciada no silêncio e estava começando a entrar em abstinência, já
que o garoto no banco do carona não permitia que ele nos
preenchesse novamente.
— Vocês dois não falam muito, não é?— Blaine comentou.
Os olhos do garoto estavam no espelho central, me
encarando, e depois se voltaram para Devan.
Nenhum dos dois fez o mínimo esforço para responder à sua
pergunta.
— Ok...— Blaine voltou a dizer. — Vamos ficar com o silêncio
constrangedor.
Aleluia.
Por breves segundos, os olhos de Caldwell encontram os
meus através do espelho, mas não ficaram por tanto tempo como
ficaram no avião. Ignorei sua insistência em me analisar e suspirei,
encostando minha cabeça na janela, enquanto brincava com meus
dedos.
Eu não conseguia sentir nada além de um incômodo
constante, corroendo minha alma como o ácido corrói o metal.
Por fora eu parecia bem.
Por dentro eu era um furacão.
Um furacão que estava devastando absolutamente tudo.
Minha mente e meu coração eram os maiores atingidos.
— Sabe uma coisa interessante?
— Você não disse que ficaria com o silêncio constrangedor?
— a voz potente e baixa de Devan interrompeu Blaine.
Aquela era a primeira vez que ele falava desde o começo da
viagem.
Blaine ignorou totalmente o protesto de Devan, e continuou:
— Coolley foi eleita a cidade mais segura deste ano.
Não pude deixar de soltar uma curta risada.
Os olhos de todos se voltaram para mim. Robin me encarava
com o cenho franzido. Blaine se virou totalmente em minha direção.
Os olhos de Devan, pelo espelho, poderiam me queimar.
Eu sentia queimar.
— Você discorda?— Blaine perguntou.— Vamos. Quero ouvir
sua voz.
Eu engoli em seco, desconfortável com toda a atenção
bruscamente voltada para mim.
— Bem, é... — comecei, com a voz trêmula.— É irônico, já
que estamos aqui porque a cidade claramente não está segura.
Isso, Foster.
Você foi bem.
O problema era que eu sabia que havia acabado de mentir
descaradamente.
A cidade sempre foi segura.
Menos para mim.
— Exatamente! — Blaine exclamou, voltando sua atenção
para frente novamente — Vocês já pensaram...
O garoto continuou a tagarelar suas teorias da conspiração,
enquanto Robin também voltava a ignorá-lo e encarava a rua pela
janela, mas um olhar ainda estava em mim.
Devan queria mergulhar fundo. Queria encontrar meus
segredos mais profundos e usá-los contra mim. O básico ele já
descobriu. Já descobriu que nasci nesta cidade, e provavelmente
onde morei até meus dezoito anos, mas ele não poderia descobrir o
que estava dentro de mim.
Seu desejo por abrir mais minhas cicatrizes para enxergar o
que há dentro delas, nunca seria o suficiente para saber de tudo. Só
eu poderia dizer.
E quando eu finalmente falar alto, elas sangrarão até que
não haja mais nada dentro de mim.
Ainda restará algo de Sadie Foster?
Não.
Serão só cacos espalhados de Sadie Foster. Pedaços que
ninguém ousa catar, porque são pontudos e sombrios demais para
serem guardados.
Muito menos para serem colados.
Devan reduziu a velocidade quando chegamos ao nosso
destino. A casa era grande, quase ocupava um quarteirão inteiro, e
sua fachada era completamente coberta por verde. Aquele jardim
provavelmente gerava despesas tão caras quanto o aluguel de um
ano do meu apartamento. Entretanto, eu não poderia negar que era
impressionante e lindo. Era quase como se estivéssemos entrando
em um paraíso.
Um paraíso infernal.
Pelo menos para mim.
Nós ficaríamos hospedados na casa do prefeito até que as
peças se encaixem e o caso se solucione. E eu esperava,
profundamente, que o assassino não nos desse tanto trabalho e que
revelasse seu rosto logo.
Caldwell parou o carro atrás de Thomas. Blaine foi o primeiro
a sair, empolgado demais para esperar que nós saíssemos também.
Robin foi logo depois. Ela bateu a porta do carro e se afastou, indo
até Donovan, Thomas e Katherine, que também já estavam do lado
de fora.
Devan me olhou novamente pelo espelho.
Mas não disse nada.
Ele nunca precisava dizer nada.
E eu sempre sabia o que seus olhos felinos murmuravam:
"Fuja, Foster."
"Seja covarde mais uma vez."
E eu sentia raiva.
Sentia raiva de Devan.
Ao mesmo tempo, queria que ele continuasse.
Porque, se ele continuasse, eu sempre teria um incentivo
maior para fazer o contrário do que ele esperava que eu fizesse.
Era quase como um alto flagelo.
E movida por esse pensamento, levei minha mão até a
maçaneta da porta e abri. Em uma ótima demonstração de
infantilidade, bati a porta fortemente, na intenção de fazê-lo ficar
irritado.
O que não funcionou, é claro.
Devan tinha a mesma expressão neutra e indiferente de
sempre.
Alcancei os outros.
Logo depois, Devan chegou.
Antes que eu pudesse entender qual baboseira Blaine falava
para Robin desta vez, a porta de entrada da casa se abriu, e de lá,
um casal saiu.
O ar sumiu de meus pulmões.
A mulher era jovem, eu chutaria que ela provavelmente teria
minha idade. Seus cabelos eram vermelhos e lisos, eles chegavam
até seus ombros. Não tinha certeza se aquela cor era natural. Seus
olhos carregavam um castanho claro, quase mel, e seus lábios
estavam pintados de um tom de rosa claro. Eu não a conhecia. Não
fazia ideia de quem aquela mulher poderia ser. Por isso, o choque
mesmo veio logo depois, quando encarei o homem que segurava
sua cintura enquanto nos oferecia um sorriso.
Os cabelos que antes eram escuros, agora, eram grisalhos.
Ele usava um terno, e acho que nunca o vi sem estar vestido
socialmente. Ele tinha algumas poucas rugas na lateral dos olhos e
na testa.
Blake Anderson.
Blake Anderson se tornou o prefeito da cidade, e agora, eu
queria atender ao pedido de Devan e correr para longe.
Porque vê-lo ali, doeu.
Doeu.
Doeu.
— Prefeito Anderson...— Thomas cumprimentou,
estendendo-lhe a mão.
Blake não hesitou em segurá-la.
— Detetive Walker, seja bem-vindo — ele disse.— Desculpe
não poder ir buscá-los pessoalmente. As coisas estão meio agitadas
por aqui. Fizeram uma boa viagem?
— Ah, sim. Fizemos sim. Só estamos um pouco cansados.
— Oh, isso não será problema. Esta casa abriga vários
quartos. Somos só eu e minha esposa, Maddie.
Ele encarou a garota ao seu lado.
— Muito prazer, detetives.
Os olhos da mulher passaram por todos nós, até pararem no
homem ao meu lado.
Devan.
Não revire os olhos, Sadie.
— Detetive Blaine Donovan — o garoto se apresentou e o
cumprimentou com um aperto de mão.
Blake sorriu para ele, e voltou seus olhos para Robin.
— Robin Allen, senhor. Sou auxiliar da doutora Foster.
Ai, não.
Ai, não.
Ai, não.
Ela disse meu sobrenome.
Blake juntou levemente as sobrancelhas e voltou seus olhos
castanhos para mim.
— Foster?
Coragem, Sadie.
Minha expressão estava séria quando eu levantei o nariz,
sem nenhum tipo de vergonha e ainda orgulhosa por carregar este
sobrenome, estendi minha mão para Blake e murmurei:
— Doutora Sadie Foster.
Os olhos do homem se arregalaram e sua pele empalideceu.
Com receio, ele estendeu sua mão e apertou a minha brevemente,
se afastando logo em seguida.
É claro que ele se afastou.
Eu tinha algo muito pior que uma doença viral:
Os Foster's foram marcados pela morte.
Os pingos de chuva molhavam meus cabelos e minha pele.
Minhas roupas e meus sapatos.
Estava gelado. Era como se várias agulhas estivessem
caindo do céu e furando minha pele. Eu queria entrar no casarão e
me enfiar debaixo dos cobertores, mas eu não poderia desistir de
tudo só por causa de uma chuva.
Nós combinamos.
Ele prometeu que viria.
Onde você está, Chase?
A noite estava escura. A luz da lua era a única coisa que
iluminava a rua, já que a tempestade fez com que toda a energia de
Coolley acabasse. Os trovões eram tão estrondosos que eu me
encolhia a cada um deles. A mochila em minhas costas já pesava, e
o frio estava quase me congelando. Meus cabelos molhados caíam
sobre meu rosto toda vez que eu abaixava a cabeça para olhar
meus sapatos e o vestido quadriculado em meu corpo.
Ele estava demorando, mas eu tinha certeza de que ele viria.
Ele nunca me deixaria.
Ele prometeu.
As grades do grande portão me separavam da rua. Poucos
carros passavam de cinco em cinco minutos. Eles eram dirigidos
com cuidado pela curva que ficava bem em frente ao grande
casarão.
O orfanato Coolley abrigava trinta e cinco crianças deixadas
pela família, ou que ficaram sozinhas no mundo.
Eu era uma destas crianças que ficaram sozinhas no mundo.
Não há um dia que passe sem que a diretora esfregue isso
em minha cara.
Os Foster's. A família marcada pela morte.
Meus avós morreram em um incêndio na casa onde
moravam. Pelo menos foi o que ela me disse. A casa era um pouco
mais isolada da cidade, e só perceberam que ela estava ardendo
em chamas quando viram a fumaça subir pelo céu escuro. Minha
mãe estava grávida de mim. Disseram que depois da morte deles,
ela desenvolveu hipertensão gestacional. Eu não sei exatamente o
que isso significa, mas sei que fez minha mãe também ser tirada de
mim.
Quando eu nasci, Elisabeth Foster morreu. Complicações no
parto. Disseram que sua pressão subiu muito e ficou difícil reverter.
E apesar de ninguém se lembrar do meu aniversário, eu
sabia que ele era exatamente no mesmo dia e exatamente na
mesma hora em que minha mãe morreu.
Éramos só eu, minha irmã mais velha e meu pai. Nós íamos
embora desta cidade, íamos para longe e nunca mais voltar.
Um caminhão bateu em nosso carro, na rodovia principal.
Eu fui a única sobrevivente.
— Sadie!
Levantei minha cabeça e meus olhos encontraram o garoto
correndo em minha direção, pela calçada da rua.
Meu corpo instantaneamente relaxou e eu pude respirar
melhor.
Eu sabia que ele viria.
Eu abri um sorriso largo saí do meu esconderijo, atrás da
árvore. Corri até o portão e agarrei suas grades.
— Chase...
O garoto parou a minha frente. Seus cabelos negros
estavam caindo sobre sua testa, grudando-se a ela. Ele estava
completamente encharcado, assim como eu. Seus olhos verdes
tinham um brilho preocupado, enquanto ele tocava minhas mãos
presas às grades.
Chase era dois anos mais velho que eu, e ele já esteve do
outro lado do portão. Ele já foi um órfão. Era o único que se
preocupava comigo, o único que me defendia e o único que me
fazia companhia. Contudo, Chase era tão encantador, que Blake e
Lea Anderson não se importaram com sua idade já avançada, e o
adotaram mesmo assim.
Meu melhor amigo se foi, assim como todas as pessoas em
minha vida, mas ele vinha me visitar todos as noites.
Escondido, é claro.
Seus pais adotivos não gostavam que ele tivesse contato
comigo, afinal, a maldição dos Foster's se tornou conhecida pela
cidade e eles não queriam que algo de ruim acontecesse à seu filho.
E eu não os culpo. A cidade inteira acreditava nisso, e talvez,
se eu estivesse do outro lado do portão, também acreditaria.
— Desculpe a demora. Minha mãe não parava de falar sobre
a minha nova escola e...
— Tá tudo bem, Chase. Você está aqui agora. Só quero sair
desse lugar.
Chase sabia tudo o que acontecia aqui no orfanato. Eu tive
uma trégua durante o período que ele esteve aqui, mas logo que ele
soube que seria adotado, nós percebemos que tudo voltaria.
Então combinamos. Nós esperaríamos um mês depois de
sua adoção, e nos encontraríamos a noite, no portão principal.
Eu iria fugir.
Sei que uma garota de dez anos e um garoto de doze não
teriam chance nenhuma. Mas eu precisava tentar, e Chase
precisava me ajudar.
E eu nem precisei dizer. Chase sempre sabia quando eu
precisava que ele fosse "meu herói", como ele mesmo se nomeou.
O garoto levou sua mão até o zíper de sua jaqueta cinza,
com o logo da NASA no peito, e o arrastou para baixo. Tirou ela de
seu corpo, e segurando com apenas uma mão, esticou seu braço
pelo buraco entre as grades, colocando o moletom sobre meus
ombros.
— Não sei se vai fazer alguma diferença...— ele disse,
abaixando levemente a cabeça. Eu sabia que aquele era um gesto
seu de timidez.
Conhecia Chese como a palma da minha mão.
Eu sorri em agradecimento.
— Ok. Eu assisti um documentário policial outro dia, e eles
disseram como ladrões conseguem entrar nas casas — informou,
enfiando sua mão no bolso da frente de sua calça e tirando um
grampo de lá.— E minha mãe tem muitos desses. Eu vou tentar ser
rápido.
Chase se ajoelhou na altura das correntes e segurou o
cadeado em suas mãos. Eu puxei a jaqueta para me cobrir melhor,
enquanto encarava todos os lados, preocupada com a possibilidade
de sermos pegos.
Chase tinha a expressão concentrada, enquanto trabalhava
no cadeado.
— Rápido, Chase...
— Calma, pequena. Vai dar tudo certo.
Eu assenti, tentando acreditar em suas palavras e relaxando
um pouco mais ao ouvir o apelido.
Mas não durou muito.
Senti uma mão agarrar fortemente meu pulso, e fui puxada
bruscamente para trás.
— Achou que ia se livrar de mim, pestinha?
O desespero atingiu meu corpo inteiro. Eu me virei para a
pessoa, e encarei a mulher alta de cabelos escuros encharcados. A
diretora Charlotte Collins tinha um sorriso diabólico nos lábios e os
olhos perversos brilhando em minha direção.
— Diretora Collins, por favor! A culpa é minha!— escutei
Chase gritar.
Eu voltei meus olhos para meu melhor amigo. Ele parecia
estar mais desesperado que eu.
— Diretora, por favor...— eu disse, tentando me livrar de seu
aperto.— Você não gosta de mim. Por que não me deixa ir?!
Minha voz saiu abafada pelo som da tempestade, que havia
aumentado, mas ela escutou.
Ela escutou porque sorriu.
— Eu já sabia do seu planinho há uma semana, Sadie...—
ela murmurou, apertando mais ainda meu pulso.— Tatum me
contou.
É claro que contou.
Minhas lágrimas começaram a se misturar com as gotas da
chuva.
— Eu queria dar um pouquinho de esperança pra você, só
para arrancá-la depois.
— Diretora Collins, escuta...— Chase disse.— Sadie precisa
sair daqui. Você não entende. O...
— Acha que eu não sei, Chase?— perguntou, voltando seu
olhar para meu amigo.
O garoto franziu as sobrancelhas.
Eu franzi as sobrancelhas.
— O quê...?— perguntei em um sussurro.
Charlotte sorriu.
— Eu sei de tudo, querida... — afirmou lentamente.— tudo.
Eu neguei com a cabeça diversas vezes.
Não era possível.
Todos os sons se tornaram apenas murmúrios distantes.
Tudo se abafou. Eu sabia que Chase e Charlotte discutiam. Sabia
que a chuva ainda caía e que os trovões ainda estrondavam.
Um zumbido entrou em meus ouvidos.
Eu queria chorar. Eu queria gritar.
Eu queria matar.
Queria matar Charlotte.
Infelizmente meus pés se prenderam no lugar e eu não
conseguia me mexer. Não consegui mover um músculo sequer por
segundos, que mais pareceram horas eternas, quando escutei meu
nome.
A voz abafada de Chase chamava por mim, e ecoava em
minha cabeça.
— Sadie!
Eu saí do transe e encarei meu amigo, enquanto o aperto de
Collins aumentava.
— Sadie, me escuta, eu vou falar com meu pai. Vou contar
tudo para ele. Vou te tirar daqui.
— Duvido que ele queira ajudar — Collins disse, começando
a me puxar em direção à casa.
Não.
Não.
Não.
Eu puxei meu braço e consegui me desprender do aperto de
Charlotte, correndo até o grande portão. Chase enfiou as mãos para
o lado de dentro e segurou fortemente as minhas.
— Chase, por favor, me tira daqui. Por favor...
— Eu não vou descansar enquanto não ver você longe
daqui, Sadie. Mesmo que isso signifique ficar longe de você.
Eu olhei dentro dos olhos do meu melhor amigo, tremendo.
Eu estava apavorada. Desesperada.
— Se despeçam, crianças. Vou pessoalmente até os
Anderson informar suas fugidas na calada da noite, Chase. Duvido
que eles irão deixar isso acontecer novamente — Charlotte
murmurou atrás de mim.
Voltei a encarar o verde dos olhos de Chase, agora, tão
temerosos quanto os meus.
— Não desiste de mim, por favor.
Chase segurou meu rosto com as duas mãos.
— Eu nunca desistiria de você, pequena.
Eu assenti freneticamente, porque sabia que era verdade.
— Até as estrelas?— perguntou.
Eu sorri em meio as lágrimas.
— Até as estrelas.
Eu mal terminei de pronunciar as palavras, quando fui
puxada novamente.
— Já chega dessa melação toda — Charlotte proferiu me
puxando com agressividade, me fazendo cair e gemer de dor
quando meu joelho atingiu uma pedra pontuda.
— Não machuca ela!— Chase gritou, dando passos para
trás.— Eu vou falar com meus pais agora mesmo!
Vi quando Chase se virou e correu alguns metros.
E, desta vez, não foi o barulho dos trovões que me fez
estremecer. Foi o barulho da freada. Da buzina. Da lataria do carro
batendo contra o corpo de Chase.
Tudo virou nada.
Charlotte parou de me puxar.
Eu petrifiquei no lugar.
Observei o motorista saindo do carro e colocando as mãos
na cabeça, encarando o corpo ensanguentado de Chase jogado no
chão.
Dor.
Eu, que ainda estava caída no chão pela queda, me sentei
lentamente enquanto tentava me convencer de que a cena em
minha frente era uma mentira. Era uma alucinação.
Mas não era.
Eu senti vontade de vomitar.
No entanto, não foi vômito que saiu pela minha boca.
Foi um grito.
— CHAAAAAAAAAAASE!
Eu me sentei rapidamente, ofegante e soltando murmúrios
de medo. Atordoada, olhei para todos os lados. A imagem do quarto
da casa do prefeito me fez respirar fundo. Ele estava escuro, a
varanda estava aberta e a cortina flutuava para lá e para cá,
enquanto algumas lágrimas quentes e silenciosas escorriam por
meu rosto.
Um sonho.
Um pesadelo.
Uma lembrança em forma de pesadelo.
Toda a dor daquela noite não parece ter bastado. Ela sempre
voltava, e voltava e voltava, me torturando em doses homeopáticas.
— Sadie?
Olhei para o lado, na segunda cama do quarto. Robin
acendia a lâmpada do abajur e colocava seu óculos de grau.
Me apressei em secar meu rosto.
— Está tudo bem? Você está pálida... — ela murmurou com
a voz de sono, mas com um tom de preocupação.
— Está... — eu murmurei, com a voz fraca. — Está tudo
bem. Volte a dormir, Allen.
Robin assentiu, ainda receosa, e apagou a luz. A escuridão
voltou. Esperei que ela estivesse de olhos fechados para me
levantar, com as mãos tremendo e um nó na garganta, e caminhar
até o armário em que arrumamos nossas coisas durante a tarde.
Alcancei minha mala de mão, no alto, e a puxei. Abri o zíper e tirei o
que queria de lá de dentro.
Caminhei para o banheiro e tranquei a porta. A luz do poste
do lado de fora era tudo o que eu precisava para enxergar as coisas
ali. Eu entrei na banheira vazia e me sentei. Encostei as costas e
encarei o que tinha em minhas mãos.
A jaqueta cinza com o logo da NASA no peito.
Eu enterrei meu rosto naquela jaqueta e abafei meus
soluços, que ecoaram pelo resto da noite.
As passadas no chão do corredor do hospital poderiam ser
escutadas de longe. Eram completamente ritmadas. Quase seguiam
um padrão, como soldados de um exército prontos para a guerra.
Eu e a equipe caminhávamos em direção ao elevador, que
nos levaria até o andar onde ficava o necrotério do Hospital Coolley.
Era difícil dizer que aquilo era realmente um hospital. Era
pequeno demais. Haviam poucos quartos para internação, um
pronto socorro que estava completamente vazio e o centro cirúrgico
só realizava exames invasivos, como endoscopia e colonoscopia.
Não havia sequer uma cirurgia marcada. Literalmente nenhuma.
O pior de tudo era a unidade de terapia intensiva. Não havia
nem ao menos um monitor cardíaco.
Era quase desesperador.
Acho que as pessoas não ficavam doentes em Coolley.
Talvez eu esteja tão acostumada com a correria dos hospitais de
Detroit, que um hospital no interior me deixou levemente assustada.
Não que eu ache ruim, ainda bem que não haviam doentes na
cidade, eu não era uma mulher gelada com o coração de pedra.
Menos mal para todos eles. Só que eu percebi tantos erros naquele
hospital, que meus dedos coçavam para alcançar meu celular, ligar
para assistentes sociais e denunciar toda a lista de falhas que
comecei a fazer desde que pisei aqui.
O xerife Bloom conduzia a equipe, um pouco mais a frente.
Ele vestia um uniforme verde musgo e andava sempre com a mão
no coldre e de peito estufado, como se soubesse que era a
autoridade máxima naquele lugar. Não sei se ele sempre foi assim,
ou se estava fazendo aquilo só porque estava intimidado com a
presença da melhor equipe do melhor departamento de segurança
do estado. Eu poderia fazer uma análise completa do
comportamento dele, mas estava ocupada observando os
funcionários do hospital.
Todos eram esquisitos.
Tudo neste lugar era esquisito.
Robin estava um pouco nervosa. Eu sabia disso porque,
conforme andávamos, ela desabotoava e abotoava um dos botões
de seu jaleco a todo momento. Eu não tinha certeza se era porque
estávamos prestes a dissecar cadáveres, pelo menos desta vez.
Acho que ela também se questionava o porquê daquele
hospital estar às moscas. Não duvidava de que ela também estava
reparando em todos os itens que já estavam em minha lista.
Nós descemos até o andar do necrotério e caminhamos pelo
corredor largo. Avistei duas macas encostadas à parede, ambas de
lados diferentes. As coisas aqui em baixo eram bem diferentes do
subsolo do D.I.M.. As luzes iluminavam perfeitamente bem. Não era
tão sombrio, apesar da imensidão branca, que cobria do chão ao
teto, incomodar meus olhos.
— Vocês duas podem entrar. O resto de nós pode ficar na
outra sala, para dar mais conforto à vocês. Aí dentro é meio
apertado — o xerife disse quando paramos em frente à porta dupla
azul escuro, no final do corredor.
Eu assenti. Robin foi a primeira a entrar na sala do
necrotério, provavelmente para arrumar os materiais e querendo
acabar logo com tudo isso
Thomas me lançou um sorriso encorajador e puxou
Katherine pela mão, até entrarem na porta ao lado. Blaine foi logo
em seguida, não sem antes passar seu olhar observador de detetive
por todo o local. O xerife o seguiu, e Devan, que permanecia calado
como sempre, enfiou as mãos nos bolsos e me encarou.
Me inspecionou.
— Faça o que faz de melhor, Foster — sua voz rouca soou.
Eu soltei um sorriso amarelo e assenti.
Pelo menos ele reconhecia que eu era boa.
Me dando as costas, Caldwell passou uma das mãos pelos
cabelos dourados e entrou pela segunda porta.
Eu suspirei, antes de me virar e empurrar as portas do
necrotério.
Ele era realmente apertado.
Haviam apenas seis gavetas, quando o normal seriam nove
ou dez. No pequeno e estreito balcão da sala, apenas um
microscópio. No que deveriam ser várias gavetas de instrumentos,
era apenas uma, grande, com todos eles amontoados e espremidos
como se fossem laranjas. E, na parede em frente à mesa cirúrgica,
um retângulo com vidro transparente, que permitia que as pessoas
da outra sala enxergassem todo o procedimento.
Coloquei minhas mãos na mesa que estava no centro do
local e a empurrei em direção às geladeiras.
— Tudo pronto, Robin?— eu perguntei.
Uni duni duni tê...
— Tudo sim, doutora.
Salamê minguê...
— Ótimo.
O cadáver colorê...
— Tente ser rápida, doutora Foster — escutei a voz de
Thomas saindo das pequenas caixas de som nos cantos da sala,
que tinham quase o mesmo efeito que um interfone.
Escolhido foi...
— Eu sempre sou rápida, Walker — disse.
Vo...
— Não tenho dúvidas disso — ele retrucou.
Cê!
Geladeira número 005.
Eu abri, e de lá, puxei o primeiro corpo que eu iria examinar,
até que ele estivesse sobre a mesa cirúrgica.
— Robin, pegue a ficha do 005 e leia para mim, por favor —
pedi.
Logo escutei seus passos agitados e suas mãos procurando
pela ficha, enquanto eu puxava a mesa de volta para o seu lugar,
desta vez, com um corpo sobre ela.
— O nome dela era Violet Adams...— Robin começou,
enquanto eu observava a mulher sem vida.— Ela tinha vinte e cinco
anos e trabalhava na floricultura da cidade.
Prendo meu cabelo em um rabo de cavalo, tiro meu jaleco e
coloco o avental.
— Ela foi encontra pela manhã, há uma semana atrás.
Estava no estabelecimento que trabalhava. A chefe dela disse que a
última vez que a viu, foi na noite passada ao assassinato. Elas
haviam combinado que ela fecharia a floricultura no final do
expediente, e abriria na manhã seguinte. Violet teria sido a última a
sair e a primeira a entrar.
Eu assenti. Pego o par de luvas azuis, colocando-as em
minhas mãos e volto minha atenção à garota. A cabeça raspada era
um sinal de que nós realmente estávamos lidando com um
assassino em série, que tinha algum tipo de fetiche com cabelos.
Era muito comum assassinos colecionarem coisas de suas vítimas.
Já peguei um que colecionava dedos.
— Nos diga o que vê, Foster — a voz de Devan ecoou na
sala.
Eu respirei fundo, analisando cada pedaço da anatomia da
garota.
— Ok. Essa garota claramente morreu afogada. Eu não
preciso nem checar seus pulmões para saber disso. Conseguem
ver?— eu disse, mas aquela pergunta era retórica já que eu a
respondi no mesmo instante.— Quando há uma morte por
afogamento, a pele fica cianótica. Azulada. É por causa da falta de
oxigenação. Fora que ela está com o corpo coberto por edemas,
entendem? A quantidade de líquido que entrou dentro dos pulmões
foi tão grande que o corpo inchou. Em casos de acidentes em mares
e piscinas, o corpo geralmente afunda. Mas nós sabemos que esse
afogamento foi provocado, não é?
— Alguém que trabalhe com piscinas? Que faça manutenção
delas?— Blaine perguntou.
Eu comprimir os lábios, ainda analisando todos os traços
dela.
— Hm... Não sei. Talvez. Mas seria muito óbvio, não seria?
Quer dizer, morte por afogamento é um dos tipos de morte mais
fáceis de diagnosticar. O assassino não mataria uma vítima
afogada, sendo que as primeiras pessoas que desconfiaríamos
seriam aqueles que trabalham com manutenção em piscinas.
— Ou talvez seja exatamente isso que ele quer que a gente
pense — Caldwell disse.
Subi meu olhar para o vidro que nos separava. Caldwell
estava de braços cruzados, o ombro apoiado no canto esquerdo do
vidro. Ele tirou os olhos do corpo e os colocou em mim.
— É tão óbvio que nós nunca pensaríamos nisso, entende?
— continuou.— O que mais encontrou aí, Foster?
Voltei meus olhos para o cadáver frio e encarei o braço
esquerdo. A palavra "DEATH" também estava lá.
— Eu vou coletar uma amostra e analisar, mas...— comentei.
— Eu tenho quase certeza de que isso foi escrito quando ela ainda
estava viva. As letras estão meio tremidas, ela se debateu para se
soltar dele. O assassino é um homem. Só assim para ter força o
suficiente para prendê-la e ainda conseguir rasgar sua pele.
Estendi minha mão e Robin prontamente me entregou o
bisturi. O levei até o tórax da garota, mas antes que eu começasse a
incisão, meus olhos enxergaram outra coisa.
O pulso da garota estava com marcas roxas, provavelmente
feitas pelas cordas ou correntes que a amarraram. Mas não foi isso
que eu vi. O que eu vi foi uma joaninha pequena, desenhada da
mesma forma que a palavra DEATH foi escrita, com algo cortante
que arranhou sua pele delicadamente.
Pulso direito.
Joaninha.
Meus olhos seguiram o caminho até minha mão direita, que
segurava o bisturi. A manga do avental e a luva cobriam meu pulso
parcialmente, mas eu conseguia enxergar a linha negra que formava
uma tatuagem.
Pulso direito.
Joaninha.
A faculdade me fez realizar algumas loucuras. Eu não tinha
muitos amigos, mas conheci pessoas legais que me fizeram bem,
durante um tempo. Eles me levaram para bares, festas, boates. Eu
não era acostumada com aquilo, mas confesso que gostava.
Gostava da agitação, de bebida e de algumas drogas ilícitas que
eles usavam. Aquilo era bom o bastante para me fazer esquecer da
minha vida.
Em uma das noites que saímos, eu bebi tanto que, no outro
dia, além da dor de cabeça pela ressaca, eu tinha uma tatuagem no
pulso direito.
Uma joaninha.
Eu gostava delas. Lembro que, quando eu ficava chateada
com algo que acontecia no orfanato, eu corria até a grande árvore
da frente, me sentava debaixo dela e chorava. E, quando eu
desenterrava o rosto das minhas mãos e secava meus olhos,
encontrava uma joaninha com as cores preta e vermelha pousada
em meu joelho. Ela era linda. Aquela era uma das poucas
lembranças boas que carreguei em minha infância. Acho que ficou
em meu subconsciente e, quando eu estava mais alterada do que
deveria, tatuei uma em minha pele. Aquela joaninha ficaria marcada
em mim pelo resto de minha vida.
E também, estaria marcada no corpo das vítimas de um
assassinato.
Pelo menos até elas não servirem de comida para os bichos
debaixo da terra.
— Por que eu sinto que você está envolvida em tudo isso,
Foster?
Levantei meu olhar para a outra ponta da mesa. Devan
Caldwell estava de costas para mim, a cintura apoiada na mesa e os
olhos no quadro, que continha todas as fotos, todas as pistas, todas
as hipóteses ligadas por um fio de lã vermelho.
— Não é porque eu tenho uma tatuagem idêntica a uma das
vítimas, Caldwell, que isso faz de mim uma assassina.
Caldwell soltou uma curta risada nasalada.
A sala de reunião da casa do prefeito era retangular e ampla.
Uma mesa de madeira escura e doze lugares ocupava grande parte
dela. Enquanto os outros descansavam do dia lotado de
informações, eu e Caldwell não conseguíamos arrumar tempo para
fechar os olhos. Nossas mentes funcionavam da mesma forma. E,
apesar de nossas diferenças, nós tínhamos o mesmo objetivo:
pegar esse filho da puta.
— É engraçado ver você argumentando. É quase como se
quisesse me matar também.
Eu revirei os olhos.
— Esse eu assumo. Vontade não falta.
Devan se desencostou da mesa e levou seu olhar até mim.
— Está com medo, Foster?
Sim.
— Não.
O fato de coincidentemente o assassino ter rasgado a pele
daquelas garotas desenhando uma joaninha exatamente igual a
minha, definitivamente me assustou. Eu me fiz de inabalável, e
ninguém nunca perceberia. Eu era ótima em fingir.
Pensei em não contar sobre aquela pista, mas eu não
poderia fazer isso. Pessoas estavam morrendo e eu não mediria
esforços para achar o culpado. Pensei também em passar o resto
da viagem de mangas compridas, mas é óbvio que não daria certo.
Eu estava cercada por investigadores. Os melhores detetives do
departamento. Eles gravaram cada traço meu e, no momento em
que falei sobre a joaninha, Blaine logo reconheceu.
Foi estranho. Todos me encararam de um jeito esquisito, até
mesmo Robin. Mas logo cederam à hipótese de que era apenas
uma infeliz coincidência.
E eu realmente esperava que fosse uma.
— Está sim.
Eu bufei.
— Por que não cuida da sua vida e me deixa em paz,
Caldwell?! — disse entredentes, me levantando e apoiando as mãos
na mesa fria. — Você é tão amargo que sente a necessidade de
fazer com que os outros sejam também. Você não tem nada na vida
além do seu trabalho e a necessidade de diminuir os outros. Você é
ridículo, Devan.
As palavras saíram sem controle nenhum. Eram afiadas e
rápidas, na intenção e cortá-lo, de quebrá-lo.
— Você me acusa, mas quem garante que não esteja
envolvido nisso também, hm? Você é sempre tão calado, tão
reservado. Talvez desconte toda a podridão da sua vida nessas
garotas.
Devan estava sério. E, depois de alguns instantes de silêncio
e com a minha voz ainda escoando pela sala, passo por passo, ele
foi se aproximando. Tudo o que escutávamos naquela sala eram
seus sapatos batendo contra o chão de madeira e, é claro, meu
coração. Ele batia rapidamente por causa da adrenalina, mas não
era de nervosismo.
Não era de ansiedade.
Era de raiva.
Ódio.
Devan Caldwell era a única pessoa que me fazia ter raiva.
Ele parou a um passo de mim. Seus olhos avaliaram os
meus olhos, meus traços, antes de seus lábios murmurarem:
— Sabe rezar, Foster?— perguntou.
Eu engoli em seco.
Devan se aproximou mais, ficando a centímetros do meu
rosto.
Prendi a respiração.
— Eu espero que sim, porque eu reconheço um criminoso
quando encontro um, e você é claramente uma criminosa, doutora...
— disse com a voz baixa e ameaçadora, suas mãos fechadas em
punho. — E se você não sabe rezar, sugiro que aprenda. Porque eu
vou cavar, Foster. Eu vou cavar fundo, bem fundo, até descobrir
todos os seus pecados. E quando isso acontecer, tudo o que você
vai poder fazer é se ajoelhar e rezar.
Cada palavra foi dita como uma promessa.
Aquilo era uma promessa.
Devan me destruiria.
Uma tensão se instalou entre nós, e acredito que até
pessoas de outros cômodos da casa poderiam sentir.
A porta da sala foi aberta bruscamente.
— Pessoal, o jantar... — Robin disse, mas parou de falar
quando nos viu. — Está tudo bem?
— Claro, por que não estaria? — Devan comentou, cruzando
os braços com um sorriso irônico nos lábios e se afastando de mim.
— Não é, doutora Foster?
Eu encarei Robin, que tinha um olhar preocupado em minha
direção. Era quase como se eu fosse uma garota patética sofrendo
bullying pelo cara grandão e popular, e ela, a garota gentil que
estava disposta a me defender com unhas e dentes.
Tudo o que eu fiz foi acenar.
— Está tudo bem. Já estamos indo, Robin.
A garota ainda receosa, assentiu e saiu, fechando a porta.
Não conseguia olhar para Devan.
Não conseguia olhar porque tudo o que ele disse era a mais
pura e completa verdade.
Eu era uma criminosa.
Caldwell não disse mais nada, e nem precisava. Ele já havia
dado seu recado. Andou para fora da sala e me deixou ali, sozinha,
com as mãos tremendo e as lembranças pregadas na cabeça.
Os passos silenciosos.
Os gemidos.
O grito abafado.
Chacoalhei a cabeça e tentei respirar fundo, minha visão se
tornando dupla e um zumbido ecoando em meus ouvidos.
Eu precisava ficar longe de tudo isso, pelo menos por alguns
instantes. Com este pensamento na cabeça, eu saí da sala e, meio
cambaleante, caminhei pelo corredor, tonta.
Puxei o ar.
Soltei.
Puxei o ar.
Soltei.
Com a visão embaçada e sem forças para andar até meu
quarto, entrei na primeira porta que surgiu. Estava escuro, então eu
passei minha mão pela parede e alcancei o interruptor, ligando a luz.
Desabei no chão.
Caí sentada, de costas para a parede.
Engolindo em seco, levei minha mão para o peito e o
massageei, na intenção de fazer meu coração parar de bater tão
rápido.
Ou talvez parar de bater.
Não sei quantas vezes em minha vida já tive pensamentos
suicidas, mas esta provavelmente foi a mais forte. Eu nunca senti
tanta vontade de desistir de tudo como estava tendo agora. Porque,
neste momento, na altura deste campeonato, eu não tinha mais
nada a perder.
Não restou nada para me segurar e me impedir de cair.
Absolutamente nada.
Ele não podia descobrir a verdade. Caldwell jamais poderia
saber.
Abri os olhos e olhei para o cômodo. As paredes eram em
um tom de cinza escuro, a cama estava posicionada no meio e, dos
dois lados, mesinhas de cabeceira. Encostado à parede, um skate e
um violão marrom.
Eu reconheci aquele violão.
Meu coração falhou.
Aquele era o quarto de Chase.
Eu me levantei devagar, sentindo um nó na garganta e a
saudade do meu melhor amigo esmagando meu peito. Caminhei
lentamente até o violão. Meus dedos tocaram o instrumento, e senti
uma eletricidade correr por meu corpo inteiro, por dentro e por fora.
As lágrimas já escorriam por minhas bochechas.
Olhei para a mesa de cabeceira. O porta retrato estampava a
foto de um garoto de doze anos. Os olhos verdes brilhavam, os
cabelos negros estavam bagunçados e um sorriso grande
estampava seu rosto, de orelha a orelha. Ele segurava seu skate
com uma das mãos e fazia um sinal de joia com a outra.
As lágrimas já não escorriam.
Elas trasbordavam.
Poderiam facilmente encher um copo.
Segurei o objeto entre meus dedos, e toquei a superfície da
foto.
Chase costumava ser a pessoa que me impedia de cair.
A culpa era minha.
Meu melhor amigo estava morto por minha causa. Se eu não
tivesse falado para ele me ajudar a fugir, nada daquilo teria
acontecido. Ele estaria aqui. Estaria vivo.
Me senti fraca.
Soltei soluços assim como o retrato, que caiu no chão e
quebrou. O vidro se partiu em algumas partes.
Partes afiadas o suficiente.
Me agachei rapidamente e segurei um dos cacos com uma
mão. Me levantei.
E por um momento, parei de chorar. Parei de soluçar. Parei
de tremer. Parei de temer.
A morte, que sempre me rodeou, agora estava ao meu lado,
esperando que eu fizesse o que precisava fazer. Ela sussurrava
palavras em meu ouvido:
Chega de dor.
Chega de sofrimento.
Chega de saudade.
Chega de culpa.
Chega de solidão.
Faça.
Levei o caco até o pescoço.
Estava prestes empurrar o pedaço de vidro contra minha
jugular, quando meus olhos enxergaram outro retrato na mesa de
cabeceira. Soltei o ar, enquanto estreitava os olhos para ver se o
que tinha visto era real.
Não pode ser.
Não pode ser.
Minha mão soltou o caco e seguiu a direção do objeto.
Não pode ser.
Na foto, Lea Anderson que não era mais Anderson, já que se
divorciou de Blake, tinha os cabelos castanhos presos no coque
sempre elegante, a postura rígida, mas um sorriso nos lábios. Ao
lado dela, uma rapaz alto de provavelmente dezoito anos. Ele vestia
a beca de formatura vermelha e o chapéu pontudo na cabeça.
E tudo literalmente parou quando olhei para seus olhos.
Eles eram verdes.
Eu conhecia aqueles olhos.
— Que merda é essa...?— sussurrei.
— Sadie?
Meu coração deu um salto.
Lentamente, eu me virei na direção em que ouvi a voz.
O garoto da foto estava bem a minha frente, um pouco mais
velho, provavelmente deve ter saído do banheiro. Ele vestia uma
camisa preta e uma calça jeans clara, enquanto segurava uma
toalha em suas mãos. Seus cabelos negros estavam molhados, e
seus olhos verdes brilhavam intensamente em minha direção.
Eu me senti tonta.
— Chase... — soprei.
Aos poucos e deixando uma lágrima solitária escapar dos
seus olhos, Chase abriu um sorriso largo e sussurrou:
— Pequena.
— Como anda a investigação?— o prefeito perguntou,
quebrando o silêncio.
— Com as pernas — Blaine respondeu, dando uma
risadinha. Percebendo que todos permaneceram em silêncio e que
mais ninguém riu, limpou a garganta.— Desculpe. Não podia perder
essa.
Thomas revirou os olhos, decepcionado como um pai se
decepciona com um filho, e começou a relatar todas as nossas
evoluções em relação ao caso.
Sua voz estava longe.
O tilintar dos talheres nos pratos não era suficiente para me
distrair dos meus pensamentos.
Minha mente estava completamente ligada, como a Times
Square em noite de virada do ano.
A comida no prato parecia realmente boa, acho que era algo
refinado — que eu não me lembrava muito bem o nome —, mas eu
não tinha a mínima vontade de colocá-la para dentro. O garfo preso
entre meus dedos cutucava de lá, cutucava de cá, mas nunca
seguia a direção da minha boca.
E eu encarava aquele prato como se fosse a coisa mais
interessante do mundo.
Eu não poderia levantar a cabeça agora.
Porque, se eu levantasse, encontraria ele.
Encontraria os olhos dele.
Eu passei anos me culpando pela morte de Chase. Passei
anos chorando pela morte de Chase. Passei anos tendo pesadelos
com corpo de Chase jogado no chão, com seu sangue se
misturando na água da chuva. E agora ele estava bem ali, no
mesmo lugar que eu, respirando o mesmo ar que eu e com o
coração batendo provavelmente tão forte quanto o meu.
— Sadie...— escutei a voz de Robin ao meu lado.
Ela ecoou uma, duas, três e quatro vezes, antes de me virar
para ela.
A garota tinha os cabelos escuros levemente ondulados, mas
não usava os óculos. Também sabia que estava sem lentes de
contato, porque ela precisava espremer os olhos para conseguir me
enxergar.
E nós estávamos lado a lado.
— Você passou o dia todo no necrotério, não está com
fome?
Eu neguei com a cabeça.
— Não...
Meus olhos olharam de relance para frente. Chase estava do
outro lado da mesa, me encarando atentamente e sem nem ao
menos disfarçar. Ele também não parecia ligar muito para a comida.
Na verdade, ele nem tocou nela. Desde que saí correndo de seu
quarto e fui para o primeiro lugar que havia mais gente, só para não
ter que ficar sozinha com ele, Chase não parou de me encarar. Não
perdeu nenhum movimento, nenhuma respirada, nenhuma piscada
de olho.
— Escuta, médicos também ficam doentes, sabia? — Robin
disse. — O que vai ser dessa equipe com você doente, Sadie? Não
somos nada sem você.
A garota sorriu e piscou.
Acabei soltando uma risada curta.
— Tudo bem. Talvez eu vá até a cozinha comer uma fruta,
ok?
Robin maneou a cabeça para os lados.
— Bem, não é o ideal, mas eu aceito.
Robin falando comigo sobre saúde era como uma criança
brincando de ser médica com sua mãe.
Ou irmã mais velha.
Será que Robin me considerava como uma irmã mais velha?
Tirei esses pensamentos da minha cabeça, e voltei para a
mesma posição desde que sentei nesta cadeira. Os olhos no prato,
o garfo na mão e as costas doendo pelo desconforto. A mesa da
sala de jantar estava cheia, mas assim que Thomas parou de falar
sobre o caso, ninguém ousou abrir a boca. Eu não sabia se era
porque todos estavam cansados, se era porque simplesmente não
tinham assunto, ou se conseguiam sentir a tensão entre mim e o
homem que um dia já foi meu melhor amigo.
— Então, filho, conte para os detetives sobre o trabalho... —
Blake pediu, quebrando mais uma vez o silêncio.
O olhar de todos se focaram em Chase, mas o dele estava
apenas em mim. Quando percebeu que as pessoas esperavam sua
resposta, ele limpou a garganta e comentou:
— Eu sou astrofísico, trabalho com pesquisas. Me mudei
para Connecticut por causa da faculdade e acabei ficando quando
arrumei um emprego na área. Só estou aqui por causa das férias.
Seus olhos verdes voltaram para os meus mais uma vez, e
ele deu um sorriso fraco.
Astrofísico.
Meu melhor amigo de infância havia se tornado o que mais
queria.
Chase sempre teve uma inteligência absurda. Ele era bom
em todas as matérias que envolviam números, e lembro de como
ele passava horas e horas falando sobre o espaço e o quanto ele
lhe fascinava. Algumas vezes ele me fazia deitar na grama do
orfanato, e me dizia o nome das constelações.
Cada uma delas.
Ele afirmava que um dia estaria lá em cima e que, quando
voltasse, traria uma estrela para mim. Eu acreditava em suas
palavras e ficava tão empolgada quanto ele.
Isso, antes de ele morrer bem diante dos meus olhos,
ressuscitar e não se preocupar em me avisar.
Engoli em seco e desviei meus olhos dos dele.
— Com licença, eu... estou cansada. Vou subir. O jantar
estava ótimo.
Aquela última frase foi a maior mentira do ano.
Toda a comida ainda estava no prato.
Soltei os talheres e me levantei da cadeira, sem me importar
em dar mais explicações. Caminhei pelo casarão até alcançar as
escadas e começar a subi-las.
Acelerei os passos quando escutei outros atrás de mim.
— Sadie, por favor... — escutei a voz, agora grossa, de
Chase.
— Vai se foder.
Alcancei o corredor.
Só mais um pouco para estar longe.
Só mais um pouco.
— Nós precisamos conversar.
— Não. Não precisamos.
Quantos passos para chegar até a porta do meu quarto?
Dez?
Doze?
Antes que eu pudesse responder a estas perguntas, braços
fortes agarraram minha cintura e me empurraram para outra porta.
Uma porta que não era a minha.
Chase colocou a mão em minha boca para abafar meu grito
assustado, e me carregou para dentro do banheiro. Assim que me
soltou, acendeu a luz, fechou a porta e trancou. Observei quando
ele se virou em minha direção e guardou a chave no bolso da frente
de sua calça.
Meu sangue começou a correr rápido.
— Abre essa porta, Chase — disse com os dentes
semicerrados.
Chase cruzou seus braços fortes e apoiou o ombro na
parede ao lado. Ele não se parecia nada com o garoto que conheci.
Estava mais alto, mais forte. E seus olhos eram outros, também. Ele
não era mais o menino inocente que faria de tudo para me fazer
sorrir.
Porque agora, tudo o que queria era chorar.
— Abre essa porra, Anderson... — ordenei, repetindo o tom
rude.
Ele permaneceu parado, sério, me encarando como se não
tivesse escutado o que eu disse.
Eu não queria ficar perto dele.
Não queria ficar sozinha com ele.
— Eu passei noites chorando, Chase... — murmurei —
passei noites sonhando com você. Noites me culpando. E você está
aí. Vivo!
Chase não fez nada além de continuar me encarando com a
expressão séria. E eu quis bater nele, mas não consegui, porque
tudo o que fiz naquele momento foi chorar. Acho que nunca despejei
tantos sentimentos em um choro como naquele momento. Era raiva,
desespero, tristeza, rancor...alívio.
Apesar de tudo eu estava assustadoramente aliviada.
Uma hora, Chase andou até mim, segurou meus braços e
me abraçou. Tentei me desvencilhar dele, mas eu nunca seria capaz
de sair de seu aperto. Então eu simplesmente desisti. Desisti de
lutar contra e agarrei sua camisa em minhas mãos, enterrando meu
rosto em seu peito.
Ele ainda tinha o mesmo abraço.
O abraço que me fazia sentir confortável.
Segura.
E ao lembrar daquilo, tudo veio.
A dor.
A culpa.
Meu choro se tornou mil vezes mais frenético, meus soluços
eram altos e ecoavam por todo o banheiro. Quando me senti fraca
demais, deixei meu corpo ser levado pela gravidade. Eu desci,
desci, e desci, até que me sentei no chão. Chase acompanhou meu
percurso sem me tirar de seus braços, e sem parar de afagar meus
cabelos.
Depois de ter chorado por mais alguns minutos, aos poucos,
eu me acalmei. Eu ainda estava agarrada a Chase quando ele
sussurrou em meu ouvido:
— Eu perdi a memória.
Eu me afastei o suficiente para olhar em seus olhos verdes.
Ele virou seu rosto aos poucos e eu notei uma cicatriz em sua
cabeça, onde os fios negros de seus cabelos já não cresciam mais.
Levei meus dedos trêmulos até lá e toquei levemente a cicatriz.
Quando Chase voltou seus olhos para mim, avaliou cada
canto do meu rosto. E ao descer sua atenção para meu pescoço,
arregalou os olhos.
Rapidamente, Chase se afastou de mim e seus braços já
não me aqueciam mais. Eu permaneci atônita onde estava, sem
saber o que dizer ou como agir diante de sua revelação. Ele voltou
alguns instantes depois, segurando uma bola de algodão e um
Band-Aid. Se agachou à minha frente, colocou sua mão em um lado
do meu rosto e levou a bola de algodão até meu pescoço. Até o
lugar que apontei o caco de vidro.
Recuei com a dor.
— Sshhh. Tá tudo bem. Já tô terminando — ele murmurou,
concentrado em limpar o sangue que saiu do arranhão.
Depois de ter limpado, Chase grudou o Band-Aid em minha
pele e suspirou, voltando seus olhos para os meus.
— Me explica — pedi.
— Por que ia fazer isso?— ele perguntou, apontando para
meu pescoço com a cabeça e ignorando minha última fala.
— Me explica, Chase — repeti.
Ele respirou fundo e deixou a cabeça pender para baixo, mas
quando as palavras começaram a sair de sua boca, seus olhos não
encaravam nada além dos meus:
— Eu bati a cabeça no acidente e perdi a memória. Eu
simplesmente esqueci, pequena... tudo...— revelou — Eu só lembrei
de você quando eu tinha dezenove anos e você dezessete. Você
tinha fugido do orfanato e apareceu no jornal. Assim que eu vi a sua
foto estampada naquela merda, eu me lembrei. Lembrei de tudo...
Seus dedos percorreram meu rosto e secaram minhas
lágrimas.
— Me lembrei do seu olhar desesperando quando Charlotte
te puxou. Lembrei do medo que eu senti de perder você. Lembrei da
chuva molhando seus cabelos... — tocou meus cabelos com as
pontas dos dedos — Lembrei das noites que deitávamos na grama
e eu prometia que traria uma estrela para você. E eu fui atrás de
você, pequena. Porra! Só Deus sabe o quanto eu te procurei.
Os olhos verdes de Chase se encheram de lágrimas. E ver
aquele olhar só me deu mais vontade de chorar.
Chase juntou nossas testas, algumas lágrimas escapando de
seus olhos, e em seguida me abraçou. Eu retribuí com todas as
forças que eu tinha.
— Eu estava na casa da minha mãe quando meu pai me
ligou e disse que você estava aqui. Vim correndo, pequena. O mais
rápido que eu pude. Por favor, diga que não está brava comigo. Por
favor...
Neguei freneticamente com a cabeça e me afastei para lhe
encarar. Levei minha mão até seu rosto e contornei seus traços.
Sorri.
— Eu quase morri de saudade... — sussurrei.
Chase juntou mais uma vez nossas testas.
— Eu também — murmurou, deslizando seus polegares por
minhas bochechas.
Eu fechei os olhos enquanto aproveitava o momento e
deixava que mais lágrimas, desta vez silenciosas, rolassem por meu
rosto.
— Fiz isso porque não aguentava mais... — murmurei,
cansada.
Exausta.
Chase se afastou alguns centímetros, encarando meus
olhos.
— Eu já perdi você uma vez. Não posso perder de novo... —
disse.— Eu estou aqui agora. E se você não aguentar mais, vamos
dividir a carga. Juntos.
Eu sorri em meio as lágrimas.
— Ok... — sussurrei — Até as estrelas?
Chase deixou que seu sorriso crescesse.
— Até as estrelas.
Eu escutava vozes saindo de todos os lugares. À minha
direita, à minha esquerda, atrás de mim e na frente. Todos não
paravam de conversar, nem por um segundo. Eles brincavam,
brigavam, riam.
Só que ninguém reparava em mim.
O vapor quente que saia do prato de sopa subia lentamente
e atingia meu rosto. Eu precisava comer, disso eu sabia, mas para
fazer isso, eu precisava de um ingrediente muito mais importante do
que sal: vontade.
Suspirei.
Olhei para frente, onde Lauren, Lily e Louise conversavam e
sorriam. Elas dormiam no mesmo quarto que eu, e já perdi as
contas de quantas vezes tentei iniciar uma conversa com elas.
Entretanto, assim como todos, as garotas simplesmente me
ignoravam, sem nem ao menos disfarçar o desgosto. Parei de
tentar.
Além do mais, elas tinham nomes com L, e garotas com
nome sem L não eram bem-vindas.
Palavras delas.
Desviei minha atenção do trio novamente, e acabei
encontrando o garoto novo, sentado quase na ponta da mesa e
rodeado de todos os outros meninos. Ele recebeu a atenção de
todas as crianças daqui. Sempre que alguém novo chega, todos
ficam em volta desse alguém, rodeando como urubus rodeiam
carniça. E eu entendia, era novidade. O problema é que essa
atenção toda dura, no máximo, três dias.
O garoto novo estava aqui há uma semana.
Não sei o que pensar sobre ele. Na verdade, tenho a
impressão de que será como todos. Tatum vai fazer sua cabeça
contra mim e ele vai começar a me tratar mal. Ou pior; me ignorar.
— Ei. Sardinha! — escutei.
Olhei para Tatum, que estava sentado ao lado do garoto
novo. Seus olhos castanhos me fitavam com arrogância, enquanto
levava uma de suas mãos até seus cabelos claros e coçava sua
cabeça. Tatum e eu somos os únicos que chegaram aqui ainda
bebês. Mas, diferente dele, a minha família morreu.
Tatum foi abandonado.
E ele não gostou que eu soubesse disso.
— Está vendo aquela vassoura ali?— ele perguntou, e
escutei as risadas dos outros.— Seu cabelo é igual a ela.
Mais risadas.
Encarei o canto da sala de jantar e observei a vassoura
apoiada nele, de cerdas feitas de algo como palha.
Eu soltei o ar e baixei a cabeça, começando a sentir lágrimas
embaçarem minha visão.
— Me deixa, Tatum. Só hoje, por favor...— eu murmurei.
Eu sinto que já deveria ter me acostumado, já que Tatum
sempre fez isso comigo. Sempre me humilhou e sempre fez questão
de todos escutarem, mas não consigo deixar de sentir a mesma
coisa toda vez. Tristeza, raiva. Vontade de vomitar.
— Ei, pessoal! Vocês querem que eu deixe a sardinha em
paz?— Tatum perguntou, se levantando.
Todos disseram não.
Eles sempre dizem não.
— Viu só, sardinha?— ele disse.— A voz do povo é a voz de
Deus.
Engoli em seco, enquanto sentia o olhar de todos em mim.
— Aí, Tatum, por que não deixa a garota em paz? Ela está
quieta... — escutei outra voz.
Levantei o olhar na direção em que escutei a frase, e fiquei
surpresa por alguns segundos ao perceber que aquelas palavras
haviam saído da boca do garoto novo.
Ele tinha os olhos verdes em minha direção.
— Vai ficar do lado dessa idiota?— Tatum falou.— Ela é só
uma coitada que perdeu a família inteira.
— Eu perdi minha família inteira — o garoto rebateu.
O silêncio reinou na mesa. Um silêncio pesado, que eu
quase conseguia sentir em minhas costas.
O que não durou muito tempo.
— É diferente...— ele murmurou e apontou para mim.— Ela
matou a própria mãe.
Eu senti o baque de suas palavras como se eu tivesse
levado um tapa no rosto.
Nunca, nada do que Tatum disse me machucou tanto quanto
aquela frase. As lágrimas que eu tentava segurar, agora, rolavam
soltas por meu rosto.
Soltei a colher que minha mão prendia, e o barulho dela
caindo no prato ecoou agudamente. Me levantei da cadeira e corri
para fora da sala de jantar, até estar em frente às grandes portas
pesadas e abri-las rapidamente. O vento frio atingiu meu corpo,
enquanto eu alcançava a árvore e me sentava abaixo dela,
abraçando minhas pernas e escondendo meu rosto.
As lágrimas molharam minha pele por um tempo que não
consegui medir. Meus soluços desesperados continuaram mesmo
depois de meus olhos terem secado.
E o pior de tudo, é que Tatum está coberto de razão.
Eu matei minha mãe.
Se eu tivesse morrido ou apenas não nascido, ela estaria
viva até hoje.
Eu só levantei meu rosto quando uma brisa suave tocou meu
corpo. E mesmo sendo noite, eu consegui ver quando uma joaninha
bateu suas asas pequenas nas cores preta e vermelha em minha
direção, e quando pousou em meu joelho.
Dizem que joaninhas dão sorte.
E mesmo não sabendo se esta história era verdade ou não,
eu cruzei os dedos e repeti em minha mente que precisava de
muita, muita sorte.
— O céu está bonito hoje.
Levei um susto com a voz e acabei fazendo a joaninha voar.
Olhei para trás e encontrei o garoto novo, com os olhos na lua e as
mãos nos bolsos. Ele se sentou na grama e, ainda sem tirar os
olhos de lá de cima, se deitou sobre ela.
Será que ele é maluco?
Talvez seja.
Ele me defendeu.
Ninguém ousaria enfrentar Tatum para me defender.
Então ele certamente era maluco.
— Você vem ou não?— perguntou.
Levei alguns segundos para entender suas palavras, mas
logo me levantei de onde estava e caminhei receosa até ele. Me
sentei ao seu lado, esticando a saia do meu uniforme para baixo e
deitei.
Silêncio.
O céu estava realmente bonito. Estava lotado de estrelas e a
lua estava brilhante, e me arrependi de nunca ter parado para
apreciar.
— Está vendo aquela constelação ali?— ele apontou para o
céu, onde um conjunto de estrelas iluminava.
— Aquela que parece um cachorro sentado?
— Sim...— ele falou, sorrindo.— É a constelação de leão. É
meu signo.
Franzi as sobrancelhas.
— Você acredita em signos?— perguntei.
— Por que não?— questionou, enquanto sentia seu olhar se
virando para mim.— Eu gosto de acreditar.
— Acredita em fada do dente também?— perguntei, virando
meu rosto em sua direção.
O garoto sorriu mais uma vez e voltou a olhar para o céu.
— Ainda estou resolvendo isso.
Eu ri.
Mais alguns segundos de silêncio, que logo foram
quebrados:
— Eu prefiro você rindo do que chorando — ele disse.
Eu suspirei.
— Eu não faço muito isso...
— Bom, então vou ter que fazer você sorrir mais.
Senti seus dedos tocarem minha mão e a sua se prendendo
a ela.
Virei-me para ele novamente.
— Por que me defendeu? — questionei — Quer dizer, você é
o novato e qualquer novato prefere ficar do lado do Tatum. Sabe...
eu não sou tão legal quanto os outros e...
— Primeiro, — ele me interrompeu, virando seu rosto em
minha direção.— eu não sou mais novato. Meu nome é Chase,
prazer — falou e eu tentei não sorrir muito.— E segundo, eu tenho
certeza de que você é muito melhor do que eles. Eles são chatos.
Eu não ando com chatos, só com os legais. E você é a única legal
aqui.
— Então, você quer ser meu amigo?— perguntei.
Chase estreitou seus olhos em minha direção.
— Eu só quero fazer você sorrir. Ser seu amigo é um bônus,
pequena — ele disse.
Acho que aquela joaninha atendeu aos meus pedidos. A
sorte finalmente me atingiu.
Eu voltei a encarar o céu, tentando conter o sorriso pelo
apelido mais carinhoso que recebi, já que os outros foram criados
por Tatum para me deixar triste.
— Então, me diga qual é seu signo.
Eu respirei fundo.
— Acho que também é leão.
— Uh. Leão...— murmurou.— Espera, leão? Seu aniversário
está chegando?
Eu assenti.
— É amanhã.
— Nossa! Temos que fazer algo!
Eu neguei com a cabeça.
— Não, eu não quero. Não gosto.
Soltei minha mão da sua e me sentei na grama, me sentindo
desconfortável. Falar sobre meu aniversário era sempre muito ruim,
ainda mais depois do que Tatum falou.
Eu matei minha mãe.
Chase também se sentou. Percebi quando ele tocou meus
cabelos, e retirou algumas folhas da grama que ficaram presas
neles.
— Quando você gostar, me avise — ele disse e eu lhe
encarei.— Vou te dar um presente show. Qualquer coisa que você
quiser.
Eu sorri levemente.
— Qualquer coisa que eu quiser?
Ele afirmou com a cabeça.
— Qualquer coisa que você quiser.
— Até as estrelas?
Chase sorriu e olhou para o céu mais uma vez.
— Até as estrelas.
Minha visão estava embaçada quando eu abri os olhos. As
paredes cinzas do quarto de Chase me fizeram lembrar da noite
anterior. De quanto tempo eu ainda chorei em seus braços, e de
quando ele me levou até sua cama e se deitou no chão. De quando
nós ficamos nos encarando, e de quando deixei o sono me vencer.
Chase estava vivo.
Chase estava vivo!
Meu primeiro e único amigo estava comigo novamente.
Aquela foi a primeira vez que acordei sorrindo.
— Bom dia, pequena.
Olhei na direção da voz e encontrei Chase sentado na
poltrona, num canto do quarto. Ele tinha um sorriso bonito, os olhos
verdes brilhando e o violão nos braços. Seus cabelos pretos
estavam bagunçados e ele estava sem camisa.
Droga.
Chase realmente cresceu.
Seus braços eram fortes e ele ficou alto. Bem alto. Seu peito
era definido e eu sabia que por trás daquele violão, haviam alguns
gominhos.
— Bom dia... — eu disse, tentando manter meus olhos nos
seus.
Chase riu e olhou para baixo.
Tímido.
Eu ainda conhecia Chase.
Ele ainda era aquele garoto.
— Eu... preciso ir trabalhar — disse, tirando os cobertores de
cima de mim.
— Ok, doutora — falou sorrindo.
Levantei da cama e caminhei até a porta, tocando a
maçaneta. Antes de abrir, o encarei novamente, percebendo que
seus olhos ainda estavam em mim.
— Chase?— chamei.
— Pode falar, pequena.
Eu suspirei.
— Tente não... morrer de novo, por favor.
Aquela foi uma frase levemente sem noção, mas Chase
sabia o quanto eu estava apavorada com o fato de perdê-lo mais
uma vez.
Então, ele apenas assentiu.
— Não vou deixar você de novo.
Eu sorri fraco, antes de lhe lançar um último olhar e sair do
quarto.
Caminhei pelo corredor me sentindo bem como há muito
tempo não sentia, em direção ao banheiro, mas fui interrompida no
meio do percurso.
— Sadie!— escutei.
Robin vinha em minha direção, vestida com o colete do
D.I.M. e armada até os dentes com um olhar preocupado e
expressão receosa.
— Por que está vestindo esse colete, Robin?
Ela parou a alguns passos de mim, recuperando o fôlego.
Puxou o ar duas vezes, antes de arrumar a postura e murmurar:
— Aconteceu de novo.
A praça central foi o lugar escolhido pelo assassino para
deixar a vítima.
As pessoas estavam em volta de todo o local, chocadas. A
fita amarela de cena do crime rodeava todo o perímetro da praça,
enquanto eu e Robin nos aproximávamos. Eu ajeitava meu colete
com as siglas do departamento no peito, enquanto Robin esfregava
uma mão à outra, desconfortável. Eu conseguia enxergar Devan,
igualmente vestido com o colete do D.I.M. e a mão segurando o
coldre. Thomas conversava com o xerife e Blaine analisava toda a
área, à procura de pistas. Vi os cabelos loiros de Katherine no meio
daquilo tudo, mas ela logo se virou, correu para fora da área de
isolamento e botou todo o jantar para fora.
Franzi as sobrancelhas.
— As coisas são diferentes, desta vez — Robin disse, ao
meu lado.— Eu não consigo ficar lá, Sadie. Por favor, me deixe te
auxiliar só no necrotério.
— Tudo bem, Robin. Cuide de Katherine. Consiga um
antiemético para ela e a faça se hidratar.
Robin assentiu e caminhou até Katherine, que parecia pálida
e tonta.
Suspirei, antes de voltar a andar em direção à fita e passar
por debaixo dela, tirando as luvas do bolso. Os olhos de Thomas
logo encontraram os meus. Pela primeira vez em muito tempo, vi
preocupação neles.
A coisa estava feia.
Continuei andando até Devan, que tampava minha visão do
corpo. E quando ele se virou para me encarar, eu também percebi
preocupação em seus olhos.
Preocupação esta que se tornou minha quando vi o cadáver.
Aquela mulher com certeza saiu completamente do padrão
do assassino.
Ela tinha a cabeça raspada, como todas as vítimas, mas,
diferente das outras, essa estava nua e a palavra "DEATH" não foi
feita no braço com algo afiado.
Foi feita no peito dela.
De ponta a ponta.
Com ferro em brasa.
E a joaninha, que antes era feita no pulso, agora era gigante
e ocupava todo o abdômen da pobre mulher.
Com faca.
Não era tão profundo, mas foi o suficiente para eu conseguir
enxergar algumas partes do seu intestino que, por algum milagre,
não foi atingido. O sangue seco estava espalhado por toda a sua
pele pálida. Infelizmente eu sabia, de cara, que aquilo não foi a
causa da morte. Bom, era mais que o suficiente, já que ela sangraria
até a morte, mas o assassino provavelmente estava com pressa,
pois havia um orifício em seu peito, bem onde o coração fica.
Parei ao lado de Devan.
— É... — eu disse — Temos um belo show aqui.
Agachei-me e com as mãos cobertas pela luva, comecei a
analisar cada pedacinho do corpo da mulher.
— Foi um tiro de curta distância, percebe? — indaguei. —
Está vendo essa zona escura em volta do orifício? Se chama Anel
de Fish. A bala entra quente, queima a pele em volta e cauteriza por
dentro. Por isso não há sangue na parte da frente de seu tórax. —
expliquei.— O problema é que ela esfria conforme atravessa os
tecidos e, no orifício de saída, se houver um, não cauteriza... —
segurei o corpo e fiz um pouco de força para virá-lo, até Devan
conseguir enxergar as costas dela.— Ela tem um orifício nas
costas?
Devan passou seus olhos avelã pelas costas da mulher,
enquanto se agachava como eu.
— Tem. E sangrou.
Comprimi os lábios e voltei a mulher para a primeira posição,
de barriga para cima.
— Se a bala estivesse aqui dentro ainda, nós
conseguiríamos identificar o calibre e o tipo de arma. Ficaria mais
fácil achá-lo...— murmurei.— Você conhece mais armas do que eu.
Acha que consegue saber qual é? Talvez uma Glock?
Devan negou com a cabeça.
— Não acho que seja uma Glock. É um revólver. Talvez
calibre 38... — ele disse, observando o buraco no peito do corpo
imóvel e sem vida.— Bom, sabemos que foi um tiro de curta
distância e que foi com um revólver. São ótimas pistas. Eu vou pedir
a lista de moradores que possuem porte de armas da cidade,
enquanto você examina melhor o corpo. Possibilidade de estupro?
Eu engoli em seco.
— As outras vítimas não foram, mas vou fazer o exame
quando a levarem para o necrotério.
Devan assentiu e passou os olhos pela multidão enfurecida.
Fiz o mesmo. Algumas pessoas choravam olhando para a cena,
outras estavam em choque e com a mão na boca, como se
estivessem espantados.
— Eles parecem surpresos... — eu disse, tirando as luvas
usadas e colocando outras.
— É... parecem — Devan concordou — Xerife!
O homem rapidamente desviou os olhos de Thomas e voltou
sua atenção para nós. Nos levantamos, enquanto ele caminhava em
nossa direção, ajeitando seu chapéu na cabeça.
— Por que todos parecem tão surpresos? — Devan
perguntou.
O xerife soltou o ar com pesar e nos olhou como se tivesse
culpa no cartório.

— Como você pôde?!— Devan gritou e bateu na mesa,


enfurecido.
O prefeito pulou da cadeira com o susto, o olhar apavorado
se dirigindo à mim. Eu suspirei, descruzei os braços e me
desencostei da parede, caminhando pelo escritório amplo de Blake
até Caldwell.
— Deixa que eu faço isso, Devan — eu disse, tocando seu
ombro e com a voz serena.
O rosto dele se virou em minha direção e seus olhos avelã
tempestuosos me avaliaram por alguns segundos. Devan estava
assustador. Completamente furioso, como um animal enjaulado,
mas quando seus olhos encontraram os meus, sua expressão
pareceu ter se suavizado.
Sem dizer nada, Devan assentiu e se afastou da mesa.
Encarei o prefeito e me sentei na cadeira à sua frente.
— Por que não me conta tudo o que aconteceu, hm? Sem
mentiras, de preferência.
Blake Anderson suspirou se ajeitou em sua cadeira.
— Eu não queria que eles ficassem assustados... —
comentou — Então eu subornei as pessoas que encontraram os
corpos e os mantive em segredo. — seus olhos correram de mim
para baixo — Eu não entendo qual é o problema!
Escutei a risada irônica de Devan atrás de mim.
— Vou fazer você entender, então...— murmurou,
caminhando lentamente até a mesa, parando ao meu lado e
apoiando suas mãos nela.— As pessoas não sabiam, o que significa
que aquela mulher com a barriga rasgada não teve chance de se
prevenir, entende agora? Não teve chance de se defender —
proferiu com o maxilar trincado — Suborno é crime de conduta,
então comece a me dar um bom motivo para não prender você
agora mesmo.
— Eu sou o único que pode acalmá-los... — Blake retrucou
— Eu sou político. Sei dizer palavras bonitas, mesmo que elas não
sejam verdadeiras.
Fato.
Virei para Caldwell. Ele ainda tinha os braços fortes apoiados
na mesa quando virou seu rosto para mim. E eu entendi
perfeitamente o que ele dizia com seus olhos.
Assenti e me virei para o prefeito novamente.
— Faça esse pronunciamento logo.
Ele assentiu freneticamente.
— Pode deixar.
Levantei da cadeira e nós saímos do escritório, em silêncio.
Caldwell ainda parecia irritado. Suas mãos estavam fechadas em
punho, e mesmo estando atrás dele, sabia que sua respiração
estava acelerada.
Parei subitamente quando ele fez o mesmo.
Fiquei confusa por alguns instantes, mas o pavor me atingiu
quando ele se virou para trás e caminhou duramente até mim, seu
rosto vermelho e os olhos tão assustadores quanto há minutos
atrás. Recuei vários passos, até trombar as costas em uma parede.
Caldwell me encurralou, deixando um braço de cada lado do
meu corpo.
— Diga que não tem nada a ver com isso, Foster —
murmurou entre os dentes, retirando um dos braços da parede e
apontando o indicador para mim — Se você estiver envolvida com
isso, Foster, eu juro que faço você passar o resto da sua vida
medíocre atrás das grades.
As palavras grudaram em minha garganta. E pela primeira
vez em muito tempo, eu tive medo.
Devan me encarava com ódio.
E eu estava apavorada.
Sem conseguir controlar, as lágrimas encheram meus olhos
enquanto Devan permanecia à minha frente, ainda me pressionando
contra a parede, próximo o suficiente para me fazer tremer. Eu
queria gritar para que ele me deixasse em paz. Implorar para que
ele me deixasse em paz. Minha boca se abriu, pronta para dizer
algo ou simplesmente xingá-lo, mas não expelia nenhum som.
Porém, antes que eu pudesse juntar forças para empurrá-lo,
Devan foi lançado para trás e um corpo alto se colocou à minha
frente.
Apesar de estar de costas, eu reconheci os cabelos negros
de Chase.
— Se chegar perto dela de novo, seu filho da puta, eu
quebro a sua cara — ele praguejou.
Devan se recuperou do empurrão e lançou um olhar
ameaçador a Chase, que nem ao menos estremeceu, mas quando
seus olhos cruzaram com os meus novamente, ele juntou as
sobrancelhas e engoliu em seco. Eu estava abalada e com as
lágrimas preenchendo meus olhos.
— Sadie, eu... me desculpe. Eu não queria...
— Cala a boca, porra! — Chase o interrompeu.— Não acha
que já fez o bastante?
Caldwell recuou, piscando algumas vezes, antes de passar
as mãos nervosamente por seus cabelos dourados e sair em
disparada para longe.
Assim que meus olhos pararam de enxergar o corpo dele, as
lágrimas que lutei para ficarem presas rolaram livremente por meu
rosto, enquanto Chase se virava para mim e, como sempre, me
acolhia em seus braços.
— O que não estamos vendo?— Thomas perguntou.
A madrugada reinava do lado de fora da casa e o relógio em
meu pulso marcava três da manhã. Nas histórias de terror contam
que este é o horário em que os fantasmas e os demônios passam
pelas portas do inferno, e aterrorizam os vivos. Nunca acreditei
nestas coisas. Filmes como O Exorcista, Annabelle, O Chamado e
O Bebê de Rosemary não provocavam nem leves tremores em mim.
Afinal, eu trabalhava diretamente com os mortos. Esperava que eles
tivessem o mínimo de gratidão pelo fato de eu ajudar a encontrar
seus assassinos, e não me escolhessem como a próxima pobre-
alma-viva para atormentar às três da madrugada.
A lua estava cheia e o céu estava estrelado. Era a típica
noite de uma típica cidade do interior.
Pacata. Escura. Sombria.
As pessoas ficaram assustadas demais com o último corpo
encontrado, e não tiro a razão delas. Foi uma imagem realmente
atormentadora, e se eu não estivesse acostumada, provavelmente
ficaria abalada também, assim como Katherine e Robin.
Principalmente pela joaninha.
A foto da barriga da mulher coberta por sangue seco estava
pregada ao quadro branco, na ponta da sala de reunião do casarão.
A linha vermelha de lã ligava todas as fotos dos corpos. Cinco ao
total. Algumas hipóteses nossas também seguiam o caminho, que
terminava em um ponto grande de interrogação.
E mais nada.
Sem indícios.
Sem pistas.
Nada que nos ajudasse a realmente descobrir quem é o
culpado.
— Donovan, diga mais uma vez — Caldwell pediu.
Ele estava de pé ao lado da mesa, tinha as mãos apoiadas
nela e a cabeça baixa. E sempre que seus olhos encontravam os
meus, ele desviava. Talvez estivesse com vergonha do showzinho
que deu, ou eu era muito iludida para pensar nisso. Por via das
dúvidas, eu não arriscaria ficar sozinha com ele novamente.
Blaine suspirou, tentando manter os olhos azuis abertos. O
garoto já havia tomado pelo menos três xícaras grandes de café, e
ainda não parecia conseguir manter suas pálpebras longe da linha
d'água de seus olhos.
— Cinco mulheres. Idades entre vinte e trinta anos. Quatro
delas foram mortas por afogamento e uma por ferimento por arma
de fogo. Tiro a curta distância. Revolver 38. O assassino assinou e
desenhou uma joaninha em cada uma delas... — Blaine murmurou,
com a mão no rosto e os olhos cedendo ao cansaço, permitindo-se
fecharem por alguns instantes.
Meu pulso queimou. Levei meus olhos para a tatuagem,
sentindo um pouco de falta de ar. Puxei a manga de minha blusa
para cobrir melhor.
— Segundo a médica legista, não houve abuso sexual em
nenhuma das vítimas, mas apresentavam sinais claros de tortura,
tanto físicas quanto, provavelmente, psicológicas. A maioria delas
aparentemente ficou presa durante algum tempo com ele.
Blaine soltou um suspiro cansado quando acabou, e encarou
suplicante Thomas.
— Chefe, eu já repeti isso umas cinco vezes desde que
entramos nessa sala. Se eu não dormir agora eu vou morrer, e
vocês não terão mais o meu cérebro genial pra achar esse
desgraçado — os olhos de Caldwell o miraram com um leve desdém
— Por favor, eu preciso urgentemente hibernar.
Thomas, que tinha a gravata afrouxada e a expressão
exausta, assentiu.
— Dispensado.
— Aleluia.
Blaine se levantou e ajeitou sua calça moletom cinza na
cintura, a blusa branca com uma mancha de gigante de café, fruto
de uma de suas cochiladas. Ele caminhou até a porta da sala de
reunião e tocou a maçaneta.
Parou.
Seu rosto se virou para o sofá no canto da sala. Robin
estava encolhida nele, um cobertor fino sobre suas costas, os olhos
fechados e alguns fios de seus cabelos caindo por seu rosto.
Robin não deveria estar aqui. Thomas convidou apenas os
dois investigadores e eu para o plantão da madrugada. Ele
percebeu como a garota havia ficado depois de ver o último corpo e,
gentil como sempre, a liberou de ouvir horas e mais horas sobre
aquilo.
Só que ela não queria ficar sozinha.
Robin sempre juntava as sobrancelhas e seus olhos ficavam
maiores quando sentia medo, e assim que disse que estava indo
para a sala de reunião passar a noite lá, esta expressão
rapidamente dominou seu rosto. Ela fechou o livro que segurava e
caminhou até mim, quase insistindo de joelhos para passar a noite
lá também.
Robin estava apavorada.
— Você vai agora para o seu quarto?— Blaine perguntou
para mim.
Eu neguei com a cabeça.
— Vou ficar mais um pouco.
Blaine assentiu e se virou para a porta mais uma vez.
O ciclo se repetiu.
Tocou a maçaneta, mas não a abriu. Soltou o ar e caminhou
até Robin, se agachando ao lado do sofá.
— Ei, linda.
Seus dedos tocaram os cabelos de Robin e ela abriu os
olhos de uma vez, assustada.
— Calma, calma! Sou eu, Blaine.
Os olhos escuros da garota se focaram nele e se
suavizaram.
— Ah, oi... você me assustou — ela disse, com a voz
sonolenta.
— Desculpe, eu...— comentou.— Escuta, Sadie não vai para
o quarto agora e você parece bem desconfortável aí. Quer ir dormir
comigo? — ele sugeriu. Robin franziu as sobrancelhas e levantou
seus olhos para nós três, mas sendo sincera, nem Thomas, nem eu
e muito menos Caldwell ligávamos para os dois naquele momento.
— Quer dizer, não... você sabe. Não o que fizemos antes de vir para
cá. Dormir mesmo.
Eu segurei o riso.
Blaine tinha uma capacidade incrível de estragar as coisas.
O rosto de Robin corou por alguns segundos, antes de ela
soltar um sorriso fraco e assentir. Quando os dois saíram da sala, o
silêncio reinou novamente. Eu olhei para frente e acabei
encontrando os olhos de Caldwell, que me observaram por mais
alguns instantes, antes de ele se desapoiar da mesa, cruzar os
braços e caminhar lentamente até o quadro.
— Não é possível que nós não temos nada, ainda — ele
disse, negando com a cabeça.— Nós passamos em cada uma das
casas dessa cidade. Ninguém tem um revolver 38. A maioria é
espingarda. Interrogamos cada uma das pessoas que trabalham
com piscinas. Todos têm um álibi. Não temos absolutamente nada.
— Temos sim. Temos um pouco de vantagem — eu disse.
Os olhos dos dois se voltaram para mim.
Levantei da cadeira e caminhei até o quadro branco, meus
sapatos chocando-se contra o chão de madeira e cobrindo o silêncio
entre nós. Parei em frente às fotos e encarei a joaninha desenhada
na barriga da mulher. Analisei.
— Está vendo como esse crime foi brutal? — eu perguntei,
mas logo respondi.— A joaninha não foi desenhada com tanto
cuidado, como as outras. Foi feita profundamente e de um jeito
desleixado, quase como se ele estivesse com pressa.
— Onde quer chegar com isso, Sadie? — Thomas
perguntou.
Me virei para os dois.
— Ele está com medo — murmurei.— Ou pelo menos
intimidado.
— Por quê?— Caldwell perguntou.
Voltei meus olhos para ele.
— Porque estamos aqui — respondi.— Não é mais o idiota
do xerife Bloom que está no caso. Somos nós. E ele está com
medo. Essa é a nossa vantagem.
Voltei a olhar para as fotos das vítimas e soltei o ar.
— Porque, se ele está com medo... — começou Thomas.
— Uma hora vai errar — Caldwell completou.
Eu assenti lentamente e voltei a lhe encarar.
E ele sorriu.
Desconfortável. Profundamente e genuinamente
desconfortável.
Muitas pessoas de Coolley estavam em frente ao casarão do
prefeito, aguardando seu pronunciamento à respeito dos
assassinatos. Olhando de longe, um pouco mais afastada da casa,
eu não reconhecia nenhuma delas.
Mas pensar que algum deles, em algum momento, poderia
lembrar-se dos meus traços, me deixava em pânico.
Então eu estava singelamente e ridiculamente
desconfortável.
Pelo que Chase disse, quando eu fugi, meu rosto ficou
estampado em todos os lugares desta cidade. As pessoas formaram
mutirões para me encontrar e algumas até mesmo acionaram a
polícia da cidade vizinha. Então é claro que todos se lembravam do
caso. Se lembravam da garota marcada pela morte que pulou para
fora dos grandes portões do orfanato Coolley.
Que driblou a segurança totalitária de Charlotte Collins.
Que driblou a fome.
A sede.
A própria morte.
Tudo para fugir.
Será que nunca ninguém se questionou sobre o motivo pelo
qual eu nunca desisti de fugir, mesmo depois do acidente de
Chase?
Ou então, todos nesta maldita cidade não se preocupavam
em desprender os cones para cachorro de seus pescoços, e se
permitirem olhar para outras direções além do caminho reto. Além
do caminho que lhes mostravam. Que os coagiram a olhar.
— Por que está tão longe?
Olhei na direção da voz. O corpo de Chase estava ao meu
lado, de braços cruzados e os olhos verdes mais claros pelo sol.
— Não gosto da ideia de... — suspirei — Não ser invisível.
Chase me encarou com as sobrancelhas franzidas e soltou
uma risada gostosa.
— Nossa! Anos se passaram e você continua sendo a nerd
esquisita.
Eu ri e soquei seu ombro.
— E você continua sendo um idiota.
Chase me mostrou seu sorriso bonito com a convinha
aparecendo. Aquela convinha estava lá desde que conheci Chase,
quando eu estava prestes a completar meus dez anos de idade. E,
por um tempo, admirar aquela covinha era meu passatempo
predileto.
Chase foi o primeiro garoto que me imaginei casando como
uma princesa, e como a garota idiota que eu era.
Talvez o único.
Eu era uma criança e ele era o único que me tratava bem. Eu
gostava do jeito como ele me fazia sorrir, rir, de como cuidava de
mim e me protegia. Eu estaria mentindo se dissesse que nunca
pensei nele desta forma, mesmo que inocentemente.
— Então, o que a Sadie de agora gosta?— questionou ele.—
Não. Espera. Deixa eu ver se ainda te conheço bem... — estreitou
os olhos para mim e eu ri — Bom, quando você não está por aí
abrindo pessoas, aposto que está lendo algum livro de mistério e
suspense. Essas coisas que legistas leem — afirmou, descruzando
os braços e enfiando suas mãos nos bolsos da frente de sua calça
— E aposto que você toma vinho. Você dizia que as pessoas da
televisão eram chiques porque tomavam vinho, e você queria ser
chique um dia — fez uma pausa — Você é chique agora, pequena?
Soltei uma risada.
— Eu sou muito chique agora.
Enrolei meu braço no seu e encostei minha cabeça em seu
braço, já que eu não alcançava seu ombro. O prefeito surgiu no
palanque improvisado em frente à sua casa, enquanto atrás, a
equipe do D.I.M. escutava suas palavras atentamente. Thomas e
Katherine estavam lado a lado, e vi quando os dedos dele tocaram
os dela. Agora, olhando de longe, eles realmente pareciam formar
um casal bonito. Tudo bem, Katherine não prestava, isso era fato.
Thomas era um homem bom e merecia alguém melhor, mas os dois
se gostavam — Pelo menos eu achava que se gostavam.
Devan estava do outro lado. Assim como todos, ele vestia o
colete do D.I.M., o distintivo pendurado em seu pescoço e, como
sempre, a arma presa na cintura. Como se soubesse que eu o
observava e exatamente onde eu estava, Devan levantou o olhar
em minha direção. Eu estava longe, não sabia direito o que ele me
transmitia. Mas sabia que estava olhando de mim para Chase, e de
Chase para mim. Era nítido.
Também foi nítido o quanto sua expressão mudou para
sombria drasticamente.
Eu realmente não entendia aquele cara.
Parei de me preocupar com Caldwell e encarei os outros dois
membros da equipe. Blaine estava ao lado de Robin. Ele dizia
algumas coisas sussurradas em seu ouvido, enquanto ela só
conseguia revirar os olhos e ignorar.
— Qual o lance daqueles dois? — Chase perguntou.
Eu dei de ombros.
— Eu não faço ideia — murmurei.— Mas ela é gentil e ele é
cretino. Funciona bem.
Eu tinha absoluta certeza de que aqueles dois, algum dia, se
casariam.
Em Las Vegas.
Do nada.
E seria bonito.
Não, seria lindo.
— E qual é o nosso lance?
Aquela frase saiu pela boca de Chase.
E quando eu desencostei a cabeça de seu braço e encarei
seus olhos, percebi que não era uma brincadeira.
Chase estava sério.
E eu sabia perfeitamente que aquilo não era uma piada.
Chase não aguenta muito tempo em uma piada, ele sempre
ri e acaba com tudo.
Por isso eu tinha certeza de que aquelas palavras eram tão
sérias quanto as que o prefeito discursava.
— Do que está falando? — indaguei.
Chase soltou um suspiro, baixando sua cabeça como o
mesmo ato de timidez que eu conhecia bem. Mas quando seus
olhos voltaram para os meus, não havia mais a timidez ou
insegurança. Havia sinceridade.
— Eu nem acredito que finalmente te achei... — ele disse,
sorrindo e com os olhos brilhando. Ele levantou o braço e seus
dedos tocaram meu rosto. — Deus... acho que nunca amei alguém
na vida como amo você, Sadie.
— Eu também amo você, Chase.
— Não. Você não está me entendendo — ele disse, se
colocando à minha frente e segurando minhas mãos com as suas —
Eu sou apaixonado por você desde que te vi, pequena.
Eu não estava preparada para o baque e o efeito que
aquelas palavras fizeram em mim.
Eu senti a necessidade de firmar melhor meus pés no chão.
A Sadie de anos atrás estaria dando pulos de alegria, com o
coração na mão e borboletas, joaninhas, mariposas, libélulas, tudo o
que tinha direito dentro da barriga.
A Sadie de agora estava chocada.
Surpresa.
Confusa.
E ela não fazia ideia do que pensar.
— Éramos crianças, Chase.
— Éramos, mas e daí? Tudo bem, eu poderia ser infantil
demais naquela época e não tinha maturidade o suficiente para
saber, mas eu sabia, Sadie. — Chase soltou as minhas mãos e
segurou meu rosto com as suas — Depois houve o acidente e eu
ainda não sei como pude esquecer você, porque assim que vi sua
foto no jornal, tudo voltou com uma força que quase me deixou sem
respirar. Me esmagou. Me dilacerou. Eu entrei em desespero e
queria imediatamente encontrar você. Queria você do meu lado,
para nunca mais sair. Queria recuperar o tempo perdido. Eu entrei
em pânico, pequena... — disparou as palavras.
"Me esmagou."
"Me dilacerou."
Aquela descrição batia perfeitamente com o que eu senti na
noite do acidente.
E nas noites seguintes.
E nas noites seguintes das noites seguintes.
Tudo ao nosso redor não existia mais. Não existia a multidão
enfurecida com o prefeito, não existia o prefeito, não existia a equipe
e nem assassinos. Não existia morte, não existia ruína. Éramos
apenas eu e ele.
— Olha, eu sei que é muita coisa, mas eu não sou o mesmo
Chase de antes. O Chase que ficava apavorado com a hipótese de
você não gostar dele como ele gostava de você. Somos adultos
agora, e temos a chance de fazer as coisas darem certo. Por favor,
só diz que não vai se afastar de mim por causa desse meu
desabafo. Já perdemos anos demais, Sadie.
Eu neguei com a cabeça.
— Eu nunca seria capaz de me afastar de você de novo,
Chase.
Ele abriu um sorriso mais largo ainda, seus olhos verdes
brilhando.
— Isso quer dizer um sim?
— Sim para quê?
— Sim para você quer casar comigo?
Eu soltei uma risada e neguei com a cabeça.
— Não tão rápido, cara... — eu disse.— É um sim para
vamos com calma.
O seu sorriso era brilhante.
— Sim para vamos com calma foi a melhor coisa que já me
disseram em toda minha vida — ele afirmou, juntando nossas
testas.
Eu fechei os olhos.
Eu não sabia se acreditava naquele lance de amores de
infância, se eles sobrevivem à anos de dores e de afastamento, mas
se Chase estava disposto a me provar que aquilo era real, eu me
entregaria de braços abertos. Era fato que, mesmo depois de tanto
tempo, eu e Chase tínhamos a mesma sincronia de quando éramos
crianças. Eu não sabia como me sentia com aquilo, mas estava na
hora de esquecer o passado e dar um passo adiante.
Eu precisava disso.
E não acho que exista outra pessoa no mundo que eu queria
seguir em frente junto, que não fosse Chase.
— Eu tenho algo para você... — ele disse, afastando suas
mãos do meu rosto e desgrudando sua testa da minha.
Chase enfiou sua mão em um dos seus bolsos e tirou algo
brilhante dela. Só quanto ele colocou o objeto sobre sua palma que
pude reconhecer o que era.
Uma pulseira de prata. Ela era delicada, e haviam vários
pingentes de estrelas penduradas a ela.
— Feliz aniversário, pequena... — ele sussurrou.
Eu soltei o ar.
— Chase, eu... — sussurrei — Você ainda se lembra...
— É claro que eu me lembro. Você é minha leonina
preferida.
Levantei meu olhar para ele, que piscou para mim. Chase
segurou minha mão direita e prendeu a pulseira em meu pulso. Em
seguida, levou-a até seus lábios e plantou um beijo nas costas dela.
Eu me arrepiei.
— Eu sei que prometi muitas estrelas do universo para você,
mas sabemos agora que é impossível... — relatou e riu.— Coloquei
uma para cada ano que passamos longe um do outro.
Eu levei meus olhos para a pulseira, novamente, e contei
todos os pingentes nela.
Dezoito.
Nossa...
Como consegui sobreviver a todos esses anos?
Nosso momento foi brutalmente interrompido por um grito
estridente.
Chase rapidamente soltou minha mão e se virou para o local
que ouvimos, colocando-se à minha frente. Meus olhos alcançaram
o palco, e vi a multidão em frente à ele em uma confusão difícil de
ser explicada.
— Pai... — Chase murmurou.
Eu voltei meus olhos para o prefeito, que tinha a expressão
dolorosa e uma mancha de sangue em um vermelho vivo
manchando sua camisa social branca, na altura do tórax. Um garoto
corria para longe dali, segurando uma faca nas mãos. Devan e
Blaine o perseguiram rapidamente até o encurralarem, Devan
apontando sua arma e o fazendo soltar a faca no chão,
imobilizando-o em seguida.
O prefeito caiu.
Robin correu até ele, se agachando no chão e avaliando o
que houve. Seus olhos logo me procuraram e me encontraram,
suplicando por ajuda.
Tudo parecia passar em câmera lenta aos meus olhos.
Chase saiu correndo até o pai, desesperado. Eu corri logo
atrás. As pessoas atrapalharam o percurso, umas empurravam as
outras e murmuravam preocupados coisas como "o prefeito
morreu?", ou ainda, com veneno na ponta da língua, vinham frases
como: "carma realmente existe".
Quando finalmente alcancei o palanque, Chase estava
ajoelhado, as mãos ensanguentadas e lágrimas escorrendo de seus
olhos.
Encarei Thomas.
— Tira ele daqui — pedi.
Thomas guardou a arma que segurava na cintura e correu
até Chase, tentando fazê-lo sair de cima de Blake.
Nada adiantava.
Força bruta nunca tiraria Chase dali.
Eu me ajoelhei ao seu lado.— Chase... — eu chamei,
nenhuma resposta — Chase, olha pra mim!
O rosto dele se virou em minha direção, o olhar
completamente quebrado e apavorado.
— Eu preciso que você me dê espaço, Chase. Saia daqui.
Me deixa ajudar seu pai.
As palavras saíram duras.
Chase, ainda ofegante, se levantou e tirou o celular do bolso,
provavelmente discando o número da ambulância.
Tirei minhas luvas dos bolsos e entreguei um par para Robin.
O prefeito estava grunhindo de dor, enquanto sua respiração estava
acelerada e pouco profunda.
Levei minhas mãos até sua camisa e rasguei, enquanto
Robin retirava a gravata. A facada pegou em um dos espaços entre
as costelas.
Atingiu o pulmão.
E uma hemorragia no pulmão não era nada legal.
— Pneumotórax — disse para Robin.— Precisamos fazer um
curativo de três pontas até a ambulância chegar.
A garota prontamente assentiu e se levantou. Pouco tempo
depois, voltou com um esparadrapo e um pedaço quadrangular de
saco plástico. Rapidamente, coloquei o pedaço sobre o ferimento e
fixei três pontas dele com o esparadrapo, deixando a restante livre.
Levantei os olhos para Robin.
— Você vai fazer a cirurgia.
— O quê?!— ela exclamou.
Escutei o som da sirene.
— Eu vou estar do seu lado, Robin. Confie em você mesma
— disse, olhando para seus olhos.
Os socorristas colocaram Blake na prancha, enquanto eu
tirava as luvas e observava Robin assentir.
Robin tinha um sorriso largo nos lábios, e me encarava com
os olhos brilhando enquanto percorríamos o corredor do hospital,
em direção à sala de espera. Ela parecia uma criança animada que
acabara de fazer algo incrível.
E ela fez.
O prefeito foi esfaqueado na altura do pulmão. A arma
passou por entre as costelas e perfurou a camada externa do órgão.
Encheu de sangue. Com esta camada cheia de sangue, não há
como o pulmão expandir — coisa que ele faz normalmente em um
movimento respiratório. E se não há como expandir, não há entrada
e saída de oxigênio.
Parada cardiorrespiratória.
O pobre prefeito seria apenas mais um corpo preenchendo
mais uma gaveta gelada do necrotério.
— Você é a melhor chefe do mundo — Robin disse.
— Não exagere, Allen.
Eu dei a Robin o que todos os estagiários querem.
Oportunidade.
O curativo de três pontas era simples de se fazer. O pedaço
da sacola plástica que Robin me deu servia como uma tampa, já
que foi preso por esparadrapo apenas em três das quatro pontas. A
camada do pulmão já estava sendo sobrecarregada de sangue, e se
o fermento continuasse aberto, além do sangue, o ar que entrava
por ali também esmagaria o pulmão. O prefeito morreria muito mais
rápido.
Mas isso foi o básico que eu poderia fazer, porque o difícil
mesmo, Robin que fez.
É terminantemente proibido que estagiários realizem
procedimentos como o que Robin fez, aquilo poderia custar a vida
de Blake Anderson.
Mas a alma dele não era lá tão significante para eu impedir
Robin de fazer o que fez.
Todos tinham raiva dele mesmo.
E, repetindo sua frase no escritório, eu não entendia qual era
o problema.
O único que ficaria abalado, era Chase. Nem Maddie ligaria,
porque eu tinha absoluta certeza de que aquele casamento era um
jogo de interesses.
Ela deveria estar rezando para que Jesus, Deus e todos os
santos puxassem Blake para cima.
Ou que o capeta o empurrasse pelo o escorregador, com
passagem só de ida para o inferno.
O tratamento para o Pneumotórax de Blake consistia em
apenas uma cirurgia para controlar a hemorragia, e a colocação de
um dreno, com a finalidade de retirar todo o sangue acumulado na
camada do pulmão. Eu deixei que Robin fizesse isso e, agora, ela
não conseguia parar de sorrir.
Me arrependi de ter dito aquilo a ela, há algumas semanas
atrás. Sobre procurar outra profissão. Robin nasceu para fazer
aquilo. Nasceu para salvar vidas. Robin era simplesmente genial.
— Obrigada pela oportunidade, Sadie. Eu nunca vou
esquecer a professora brilhante que tive.
Eu sorri sem mostrar os dentes, parando de caminhar aos
poucos quando chegamos ao final do corredor.
— Você foi bem, Robin — eu disse, cruzando os braços —
Vai lá — indiquei a sala de espera com a cabeça.
Ela sorriu mais ainda e empurrou seu óculos para cima,
passando pelas portas do centro cirúrgico. Pela pequena janela
redonda, pude ver as pessoas que aguardavam aflitas na sala.
Chase estava andando de um lado para outro. Seus cabelos
estavam desgrenhados, provavelmente passou as duas horas que
ficamos na cirurgia bagunçando-os com seus dedos.
Eu odiava vê-lo daquele jeito.
Chase não gostava de deixar sua agonia transparecer, eu
sabia disso. Ele não gostava que todos ficassem repetindo que tudo
ficaria bem, não gostava que as pessoas ficassem consolando-o ou
tentando acalmá-lo.
Eu queria estar ali com ele.
Eu não diria nada.
Apenas ficaria.
Lea Anderson também estava sentada em um dos sofás
amarronzados. Vê-la depois de tanto tempo me deu um pouco de
mal-estar. Lea era uma mulher amarga, e pelo que eu soube, ficou
assim depois que descobriu que era estéril. Infértil. E quando ela foi
visitar o orfanato para procurar uma criança, não foi nada amigável
comigo. Quando Charlotte apontou para mim, já que eu era a mais
nova daquele lugar e a pessoas geralmente procuravam crianças
novas, ela riu, sem disfarçar, e disse com as exatas palavras: "eu
não quero essa garota".
Devan foi o único da equipe que acompanhou os Anderson
até aqui. O resto ficou na mansão, controlando a multidão
enfurecida e curiosa, clamando por notícias boas ou ruins do
prefeito. E o pior de tudo era que eu sabia que, mais cedo ou mais
tarde, depois desse ataque quase terrorista, Blake ainda sairia como
um herói. Quase consigo imaginar as manchetes com letras grandes
e grossas, anunciando que o prefeito sobreviveu à morte e, logo
abaixo, uma frase decorada que ele provavelmente demorara uma
hora para pensar. Algo como "eu voltei para pegar o assassino e
deixar a cidade segura", ou "tentaram me eliminar, mas tudo o que
irão conseguir é a minha fúria por mexerem com o meu povo".
Como se ele tivesse tirado a bunda de sua cadeira
almofadada de couro para nos ajudar a encontrar o desgraçado.
Eu não podia ouvir, mas sabia que Robin dizia o quanto a
cirurgia foi um sucesso e que Blake estava estável, já que o peso do
mundo pareceu ser tirado das costas de Chase. Lea suspirou,
agradeceu Robin e abraçou o filho.
Devan se desencostou da parede e seguiu em minha
direção. Suspirei com pesar e saí da frente da porta, cruzando os
braços e apoiando minhas costas na parede. Não demorou muito
para que ele alcançasse o corredor do centro cirúrgico e entrasse
em meu campo de visão, com toda a sua altura e imponência.
Soltando a porta, que se fechou sozinha, Devan se apoiou na
parede oposta à minha.
Silêncio.
Eu não sabia o que ele queria aqui, Devan era complicado
demais. Então, apenas o observei. Seus olhos estavam no chão,
enquanto seu peito subia e descia lentamente com a respiração.
Seus cabelos dourados na bagunça de sempre, as mãos enfiadas
nos bolsos da calça.
— Ele está bem mesmo?— perguntou.
Eu assenti, mesmo sabendo que ele não veria. Depois de
alguns segundos, confirmei verbalmente:
— Está.
— Ótimo...— murmurou, levantando finalmente seu olhar
para mim — Hoje é seu aniversário, não é?
Eu afirmei com a cabeça, sem estar surpresa pelo fato de ele
saber disso. Era óbvio que ele sabia. Foi graças a informações
como estas, que estavam em meu crachá naquela tarde no D.I.M.,
que ele soube de onde vim e por onde estive.
— E o garoto?— questionei.
— Nós o prendemos. O interrogatório será hoje à tarde,
talvez ele esteja envolvido com o assassino.
Eu assenti, porque concordava com aquela teoria.
O silêncio se instalou novamente por alguns instantes, mas
logo foi quebrado por ele:
— Sei que hoje também é o aniversário de morte da sua
mãe.
Eu soltei uma risada curta, sem humor.
— É claro que sabe.
Devan respirou fundo.
— Vou te levar lá depois que acabarmos com o garoto.
Eu franzi as sobrancelhas e levei meus olhos em sua
direção.
— Como assim?
Ele cruzou os braços fortes, dando de ombros.
— No cemitério.
— Nem fodendo.
— Não seja ingrata, Foster.
A sombra de um sorriso ladino passou rapidamente por seus
lábios.
— Eu não vou a lugar algum com você, Caldwell. Muito
menos ao túmulo da minha família inteira — afirmei.
Devan revirou os olhos.
— Sim, você vai.
— Não. Não vou.
— Vai sim.
— Não vou.
— Vai.
— Não!— gritei.
Minha voz ecoou pelo corredor inteiro.
Devan não pareceu ligar para isso. Ele apenas arqueou uma
de suas sobrancelhas douradas, enquanto seus olhos avelã
rapidamente desceram até meu pulso, onde a pulseira que Chase
havia me dado estava presa.
— Bela pulseira...— murmurou.— Foi o mauricinho quem te
deu?
— Não o chame assim, Caldwell.
As palavras saíram afiadas.
Devan voltou seus olhos para os meus, e permaneceram
neles por alguns segundos, antes de sua cabeça pender para baixo
e ele se desencostar da parede.
Seus pés o levaram em minha direção, e eu tencionei o
corpo instantaneamente. O incidente no escritório do prefeito ainda
me causava arrepios.
— Eu não tenho um presente como esse. Eu achei até
bonitinho, mas não chega aos pés do que vou fazer por você,
Sadie... — Devan disse, parando em minha frente.
"Por você."
"Do que vou fazer por você, Sadie."
Engoli em seco quando seu rosto ficou a centímetros do
meu.
— Eu vou fazer você se lembrar da mulher forte que é... —
continuou.— Vou fazer você deixar de lado o medo e enfrentar a
merda dessa cidade inteira, porque eu sei que você consegue. Não
acho que exista algo no planeta que a doutora Sadie Foster não
consiga lidar — enfiou suas mãos nos bolsos — E esse será meu
presente, Sadie. Vou fazer você se lembrar de quem é.
Eu pisquei algumas vezes, sem palavras.
Devan se afastou até estar novamente na porta dupla. Ele
tocou a mão nela, pronto para empurrar, quando se virou mais uma
vez para mim.
— Eu levo as flores.
— Ele me dá medo... — Robin murmurou.
A expressão de Caldwell poderia facilmente ser comparada à
expressão do próprio demônio. Ou pior: de Deus enfurecido. O
pobre garoto sentado na cadeira de algemas nos pulsos parecia
completamente aterrorizado.
O interrogatório havia começado há uma hora, e até agora,
ninguém conseguiu uma única informação boa o suficiente para
achar quem está por trás de tudo isso. Quem tentou primeiro foi
Thomas, com aquele jeito negociador de: "me diz quem mandou
você fazer aquilo, que eu reduzo sua pena em até cinquenta por
cento, com garantia de sela privilegiada".
Nenhuma palavra.
Blaine veio logo depois. Ele ficou com a parte inteligente,
sobre estatísticas de jovens em presídios e quanto tempo eles
duram perto dos grandes, dos barra pesada.
Nenhuma palavra.
Devan assumiu o controle logo depois. Ele parecia motivado
e inspirado, já que fez tantas ameaças que até o mais durão dos
homens mijaria nas calças. Sua voz era sempre baixa. Seus olhos
sempre duros. Suas palavras sempre afiadas.
E eu entendia aquele garoto, porque já estive em seu lugar.
Eu era veterana no quesito aguentar-a-bipolaridade-de-Caldwell-e-
suas-constantes-ameaças.
— E bem gostoso — Katherine comentou.
Eu juntei as sobrancelhas e me virei para ela.
Nós, as garotas da equipe, estávamos na sala isolada à sala
do interrogatório. O vidro escuro nos permitia enxergar tudo o que
acontecia lá dentro, mas eles não podiam nos ver. Os autofalantes
nos cantos da sala capturavam todo e qualquer som de lá de dentro,
nos ajudando a escutar todas as palavras que eram ditas. Eu achei
que seria bom eu e Robin escutarmos o depoimento do garoto e,
para não deixar Katherine excluída, convidei.
Se arrependimento matasse, eu com certeza já estaria sendo
levada por minha velha amiga morte.
— Você é quase casada com Thomas — Robin apontou.
Katherine deu de ombros e encarou as unhas pintadas de
vinho.
— E daí?— perguntou.— Eu tenho olhos, garota. Gosto do
que vejo. Devan e aquele filho do prefeito são as pessoas que mais
gosto de apreciar, se é que me entendem.
Ela sorriu maliciosa.
— Chase não vai cair na sua, Green — murmurei, voltando a
prestar atenção no interrogatório da outra sala.
Acho que a loira demorou alguns segundos para entender o
que estava acontecendo, pois ficou esse tempo todo em silêncio.
Mas logo que sua mente processou minhas palavras, soltou uma
risada.
— Espera aí...— ela disse, e sabia que estava sorrindo.—
Você e o filho de Blake Anderson? Sério?
Revirei os olhos.
Ela soltou uma risada.
— Acha mesmo que aquele gostoso do Chase quer você?
— E por que não iria querer?— Robin perguntou.
Respirei fundo, exausta.
— Sadie é uma mulher incrível. Inteligente. Bonita — Robin
defendeu.
Katherine soltou uma risada maldosa.
— Acha que é isso que os homens querem?— perguntou,
antes de caminhar a passos decididos até mim e parar ao meu lado.
E eu continuei ali, parada, de braços cruzados e com os
olhos na sala do interrogatório, sem ter coragem de olhar nos olhos
dela.
— Os homens querem corpo. Os homens querem uma boa
foda. Eu posso proporcionar isso a eles, e você, apenas coisas
inteligentes que eles não são capazes de pensar sozinhos. É só
para isso que você serve, Sadie. Como uma máquina ambulante...
— afirmou.— Acha que Chase te deseja? Acha mesmo que ele
aguenta ficar perto de você, sentindo esse fedor de morte? Me faça
um favor, Foster, continue com o jaleco. Porque o mais perto de
tocar em um homem que você poderá chegar, é em um necrotério.
Por um momento, pensei estar de volta ao ensino médio,
quando Tatum e o trio das garotas com L se lembravam que eu
existia e começavam a disparar suas palavras maldosas para mim.
Engoli a enorme vontade de chorar.
— Você é uma vadia!
— Robin — chamei.
Olhei para a garota, que tinha o rosto vermelho e quase
espumava de raiva. Ela levou seus olhos para mim.
— Tá tudo bem — eu disse.— Te vejo na mansão.
Sem esperar qualquer resposta, saí da sala isolada e segui
rapidamente para fora da delegacia. Assim que passei pelas portas,
uma brisa fria tocou minha pele — manchada —, e meus cabelos —
de vassoura —. A noite reinava do lado de fora e, já que agora
todos sabiam dos assassinatos, não havia sequer uma alma viva
nas ruas. Estava mais quieto que o de costume. As pessoas
estavam aterrorizadas, chocadas com a cena do último corpo
encontrado. Acho que não sairiam de casa tão cedo.
Suspirei, apoiando-me em um dos carros da polícia. As luzes
da sirene estavam ligadas, o que eu tinha certeza ter sido culpa da
pressa que os policiais tinham de entrar na delegacia, sentar em
suas cadeiras e não fazer absolutamente nada. As cores azul e
vermelho rodavam, rodavam, rodavam, iluminando uma parte da rua
e me permitindo enxergar algumas árvores e o asfalto.
O que Katherine disse ficou completamente pregado em
minha mente. Minha respiração se tornou ofegante, enquanto minha
cabeça pesava. Eu não sabia se estava tonta pelo baque que as
palavras da loira fizeram ou pelas luzes que piscavam em meus
olhos.
Seria legal se eu não me sentisse um lixo toda vez que
Katherine resolvia encher meu saco, mas eu não conseguia. Eu era
insegura demais, não tinha um pingo de autoestima.
As portas principais foram abertas e, por elas, Devan
passou. Seus olhos avelã rapidamente me encontraram, e ele deu
passos lentos em direção à mim. Alguns botões de sua camisa
social preta estavam abertos, o que me fez levar os olhos
diretamente àquela região. Eu conseguia enxergar uma pequena
parcela da pele de seu peito.
Meus dedos coçaram.
Eles queriam desesperadamente voar para baixo da camisa
de Devan.
Foco, Sadie.
— O que faz aqui sozinha?— ele perguntou.— Não é segu...
— Eu sei me defender — interrompi.
Devan soltou uma risada curta. Desde que nos conhecemos,
aquela havia sido a única vez que ele rira verdadeiramente, sem a
ironia transbordando, escorrendo por seus poros. Eu fiquei tão
hipnotizada pelo seu sorriso, que o som de sua risada pareceu ter
ecoado como um grito ecoa no Grand Canyon.
Antes que eu pudesse perceber, sua mão agarrou a minha e
ele me puxou para seu peito com uma facilidade assustadora,
enquanto sua arma encostava-se em minha têmpora. Soltei um
gritinho com o susto, mas logo meu corpo ficou tenso ao perceber a
posição que estávamos. Sua mão agarrava fortemente minha
cintura. Uma parcela minúscula de seu dedo tocava minha pele, em
uma parte onde a blusa havia subido levemente. Seu rosto estava
perigosamente perto do meu.
E mesmo assim, eu me arrepiei.
Eu estava presa a ele.
— É sério que você fez isso...? — sussurrei, engolindo em
seco.
— Muito sério, doutora...— ele murmurou, sua voz baixa e
rouca passando por meu ouvido e repetindo-se em minha mente.
Me forcei a responder:
— Será que dá pra tirar a porra dessa arma da minha
cabeça? — perguntei irritada.
Ele soltou um suspiro e, lentamente, abaixou sua arma. Eu
engoli em seco. Era confuso, porque a sensação de estar com meu
corpo totalmente colado ao seu era estranha, me deixava tensa.
Mas ao mesmo tempo eu não queria sair dali.
Eu fechei os olhos e arfei quando aquela pequena parcela de
seu dedo deslizou lentamente por minha pele, fazendo com que
todos os pelos do meu corpo se arqueassem. Meu coração batia
rápido e minha respiração estava presa. Eu não conseguia me
mexer. Havia algo que nos envolvia ali. Um globo circulando nós
dois, e eu conseguia sentir a volúpia contornando cada traço meu.
Volúpia?
Eu estava atraída por Devan?
Não.
Não pode ser.
Devan é um idiota.
Voltando à realidade, tirei seu braço que estava ao meu
redor e me afastei rapidamente. Devan tinha um meio sorriso
vitorioso no rosto, enquanto voltava a guardar sua arma no coldre.
— Nós vamos ou não?— perguntei, desconfortável.
— Claro — ele disse, com uma das sobrancelhas douradas
arqueadas.
Eu revirei os olhos e dei as costas para ele, caminhando a
passos largos e duros até o carro que o prefeito havia nos
emprestado. Abri a porta, me sentei no banco e a fechei
bruscamente. Eu não sabia direito o motivo pelo qual estava irritada.
Se era pelo fato de Devan estampar um sorriso arrogante no rosto
depois de provar que eu estava errada, se era por eu realmente
estar errada, ou se era porque eu senti algo dentro de mim quando
fiquei tão perto dele.
Caldwell entrou logo em seguida, dando partida e fazendo o
silêncio reinar, enquanto passeávamos pelas ruas escuras de
Coolley. Sem conseguir olhar para ele e mantendo uma distância
segura, me espremi no canto do banco e deixei minha cabeça
apoiada na janela.
— As flores estão no banco de trás — sua voz soou.
Juntei as sobrancelhas, porque não achava que ele
realmente levaria flores. Caldwell não fazia o tipo de cara que
comprava flores.
Olhei para o banco de trás, onde um buquê de lírios brancos
esbanjava sua beleza encantadora e seu cheiro marcante.
— São lindos — eu disse, me esticando e agarrando o
buquê. Voltei minha atenção para ele.— Obrigada.
Devan me olhou de relance e acenou com a cabeça.
Mas não disse mais nada.
O resto da viagem até o cemitério foi feito em silêncio,
enquanto eu tocava delicadamente meus dedos nas flores brancas
que, mais tarde, enfeitariam o túmulo da minha família.
Meu coração disparou quando Caldwell estacionou em frente
ao cemitério mórbido.
— Te espero aqui — ele disse.
Me virei para ele, tentando esconder o pavor.
— Será que você pode vir comigo, eu...— soltei o ar.— Por
favor...
Eu não tinha um bom argumento. Não tinha palavras
convincentes o bastante para fazer com que ele decida ir comigo,
sem perguntar nada, sem rebater, sem falar. Então, eu fiz algo que
há muito tempo não fazia:
Implorei.
Meus olhos não estavam nele, porque ele com certeza veria
o medo estampado em minhas íris. Não era medo de ficar sozinha,
e por acaso ser atacada pelo assassino. Não era medo das almas
perdidas que perambulavam pelo cemitério, ou medo do escuro. Era
medo de olhar para os nomes da minha família inteira, gravados em
alguma pedra em um dos túmulos.
Eu não conseguia.
Não podia fazer isso sozinha.
— Ok... — ele finalmente disse — Eu vou com você.
Lancei a ele um olhar agradecido e saímos do carro. Parecia
mais frio do que o resto da cidade, e mais escuro também. O portão
de grades altas estava aberto. Era em um estilo gótico, só que muito
mais sombrio do que o de costume.
Nós caminhamos lado a lado. Eu segurava os lírios com uma
força levemente desnecessária, completamente desconfortável com
o ambiente. Os túmulos eram grandes, alguns com estátuas
estranhas de anjos e demônios.
Eu observava todos, procurando o da minha família.
Nossos passos ecoavam.
Eu estava em modo alerta, minha mente tão ligada que levei
um susto quando ouvi o canto de uma coruja, parando no meio do
percurso.
— Eu não consigo fazer isso... — eu disse, minha respiração
ofegante e o coração batendo rápido.
Ataque de ansiedade.
Não.
Não.
Agora não.
— Ei...— a voz de Caldwell soou longe e abafada, e só
conseguir focar nele quando suas mãos seguraram meu rosto.—
Você consegue, Sadie. Vamos, respire comigo.
Respiramos fundo.
Soltamos o ar.
Respiramos fundo.
Soltamos o ar.
Respiramos fundo.
Soltamos o ar e eu derrubei algumas lágrimas.
Devan secou todas elas com seu polegar.
Sua mão desceu pelo meu braço até tocar a minha. Seus
dedos se entrelaçaram nos meus, e seus olhos me incentivaram a
continuar.
Ele não disse nada.
Pelo menos não com a boca.
Porque seus olhos se encarregaram de falar tudo.
Assenti e respirei fundo, antes de dar o primeiro passo em
direção à outros túmulos. Não sei por quanto tempo caminhamos,
mas eu sabia que tínhamos percorrido quase que o cemitério todo.
E de mãos dadas.
Eu só parei quando vi um túmulo de mármore branco,
grande, com uma estátua. Ela era alta, magra, vestia uma capa e o
capuz cobria seu rosto. Em sua mão, uma foice.
A morte.
— É ali... — sussurrei.
Soltei a mão de Devan e caminhei lentamente até o túmulo,
passo por passo. A imagem da morte foi ficando mais nítida, até eu
parar em frente à ela.
Desci meus olhos até as letras gravadas no túmulo.
"Aqui jazem:
Daniel Foster.
Juliet Foster.
Elisabeth Foster.
Peter Foster.
Amber Foster.
Que Deus abençoe a família marcada pela morte."
— Família marcada pela morte? — Devan murmurou ao meu
lado.— As pessoas dessa cidade têm criatividade.
— É... — soprei.— Eles têm.
Quando me inclinei sobre o túmulo para depositar as flores,
percebi um buquê de rosas vermelhas. Secas. Suas pétalas
estavam murchas e algumas já haviam caído.
Franzi as sobrancelhas.
— Você nunca veio aqui, Sadie?— Devan perguntou.
Eu neguei com a cabeça, sentindo o ar faltar.
— Nunca...— sussurrei.
Minhas mãos começaram a tremer.
— Alguém visitou o túmulo da sua família — ele concluiu.
Eu assenti.
Seria normal se eu não soubesse que este túmulo era
isolado justamente porque as pessoas preferem passar longe dele.
E o primeiro pensamento foi: quem ousou vir até aqui? O
segundo foi: quem trouxe essas flores?
Não.
Eu não posso acreditar.
Não posso acreditar que acabou.
— Droga, por que eu li esse livro tão rápido?— murmurei,
enquanto voltava meus olhos diversas vezes pela última frase.—
Droga, por que você me emprestou esse livro, Allen?
Robin sorriu, enquanto penteava seus cabelos negros e
molhados em frente ao espelho.
— Vou te lembrar, doutora Foster... — disse, sorrindo irônica
e me olhando através do reflexo do espelho.— Você disse que não
tínhamos gostos parecidos, e que eu era princesinha demais para
ler o que você lia. Eu te emprestei esse livro, e agora você quebrou
a cara — se virou para mim, esticou o braço e abriu a mão,
deixando que o pente caísse e atingisse o tapete.— Você quebrou a
cara!— cantarolou.
Revirei os olhos tão alto quanto pude.
— Infantil.
Fechei o livro e o depositei sobre os cobertores que na
cama, encostando-me na cabeceira. A noite reinava do lado de fora
e eu conseguia escutar as cigarras e corujas cantando, o que me
lembrava da noite anterior. A imagem das rosas mortas só saía da
minha cabeça quando eu lia o livro que Robin me emprestou.
E agora que terminei, voltei a lembrar do cemitério e das
rosas. Não conseguia pensar em nenhuma outra pessoa que possa
ter deixado aquelas flores lá. Todas as que surgiam em minha
mente, estavam mortas e enterradas ali mesmo.
Na verdade, eu só conseguia pensar em uma possibilidade
real. Só que ela era assustadora demais para mim. A ideia do
assassino visitando o túmulo da minha família quase me fazia
arrumar as malas, e me mudar para muito longe.
— Você vai... me emprestar outro livro?— perguntei de forma
quase despretensiosa.
Robin estreitou seus olhos para mim.
— Você disse que eu era...
— Eu sei o que eu disse, Robin — interrompi.— Vai me
emprestar ou não?
A garota, ao invés de abaixar a cabeça como sempre fazia,
sorriu vitoriosa.
Eu estou a acostumando muito mal.
Robin caminhou até o armário do quarto e abriu suas portas.
De lá, tirou um exemplar. Eu não pude ver qual era, porque ela
rapidamente caminhou até sua cama e, de costas para mim, usou
uma caneta para escrever algo. Quando se virou e me estendeu o
livro, Robin tinha um sorriso grande no rosto.
Peguei o livro.
— Poemas? — perguntei incrédula — Eu não quero essa
merda, Robin. Quero sangue. Mortes. Cabeças rolando.
— Cabeças rolando? Quer ler Alice no País das Maravilhas?
— perguntou irônica, dando uma risadinha.
Soltei o ar.
— Pra quê eu vou querer ler poemas e poesias, Robin? Isso
não agrega em nada no meu trabalho.
— Aí é que tá, Sadie... — ela disse, caminhando até minha
cama e se sentando à minha frente — Até quando você está na
hora do lazer você pensa no trabalho. Precisa de um tempo pra
você. Lê esse livro, ok? Vai te fazer bem. Bem pra sua vida.
Esquece um pouco o jaleco.
Ela sorriu.
Quando Robin foi contratada por Thomas, ela me mostrou
um lado seu. Era tímido, deixava de lado suas opiniões e fazia o que
eu mandava sem contestar. Não puxava muito assunto, a não ser
que ele fosse em relação ao trabalho, mas agora não. Agora Robin
cresceu. Ela me mostrou o outro lado. O lado que expressa
opiniões, que não sente medo de mostrar sua voz.
E preciso admitir que gostei desse lado.
— Tá bom... — eu disse e ela sorriu mais ainda.
— Vou dormir no quarto do Blaine hoje — avisou, se
levantando.
— Não fique grávida — adverti.
Robin soltou uma risada, enquanto caminhava até a porta.
— Se acontecer, você será a madrinha.
Robin passou pela porta me desejando boa noite. E eu voltei
minha atenção para o livro, a capa com desenhos delicados e em
cores claras. Quando abri, observei a letra bem desenhada de
Robin — o que é difícil para médicos —, com uma caneta preta.
"Agora este livro é seu, já que você é tão profunda quanto as
palavras escritas nele.
Obrigada por ser quem você é.
Com amor, Robin."
Deixei que um sorriso escapasse, enquanto escutava dois
toques na porta.
— Pode entrar — disse.
A porta se abriu e, por ela, Chase passou. Ele tinha olheiras
profundas, a expressão cansada e os ombros caídos. Vestia apenas
uma calça moletom preta, sabia que ele havia acabado de chegar
do hospital. Eu sentia quando uma pessoa estava tensa, e dadas às
atuais circunstâncias, Chase estava inegavelmente tenso.
Ele fechou a porta e me encarou. E apesar de estar
definitivamente acabado, sorriu.
— Oi... — ele disse.
— Oi.
Fechei o livro e o depositei na mesa de cabeceira. Coloquei
um travesseiro sobre minhas pernas e chamei Chase.
Ele veio até mim como se aquilo fosse a única coisa que
quisesse fazer no momento. Se deitou na cama e colocou a cabeça
no travesseiro, fechando os olhos. Levei meus dedos até seus
cabelos escuros e os passei delicadamente em seu coro cabeludo,
fazendo o carinho que sabia que ele precisava.
Observei seus traços marcados. Chase tinha a aparência
bruta, agora. Quem não o conhece, certamente imagina que ele seja
um homem agressivo, rude, mas eu sabia muito bem que, por trás
daquela casca toda, bem dentro de sua alma, havia apenas o garoto
que conheci há anos atrás. Gentil, atencioso, doce. Eu conhecia
Chase. O verdadeiro. Acho que ninguém nunca chegou tão perto
dele como eu cheguei.
Gosto de saber disso.
— Ele só está no hospital porque precisa ficar em
observação. Seu pai vai ficar bem — comentei na expectativa de
dar-lhe paz e esperança.
Chase abriu seus olhos, sua íris verde se focando em mim.
Senti meu coração bater forte quando vi sua pupila dilatar em minha
direção. Seus olhos eram tão claros que nem dava para disfarçar.
Senti vontade de sorrir, mas o assunto era sério demais para
fazer isso.
— Obrigado por ter salvo ele, Sadie... — murmurou.
Eu sorri fraco.
— Agradeça a Robin.
Chase comprimiu os lábios, como se tivesse feito algo de
errado.
— Acho que ela está prestes a me bater, porque eu não faço
outra coisa além de persegui-la e agradecer.
Eu ri.
Nós nos encaramos mais alguns instantes, em silêncio.
Chase segurou minha mão, que estava em seu rosto, e levou até
seus lábios. Beijou a palma dela.
E ficou pálido quando encarou meu pulso.
Seus olhos se arregalaram. Seu corpo ficou tenso.
— Sadie... — ele murmurou — Essa joaninha é...
Puxei minha mão da dele.
Ele não deveria ter visto isso.
Chase se levantou rapidamente, sentando-se na cama e
segurando minha mão direita mais uma vez. Empurrou a pulseira de
estrelas para cima e encarou minha tatuagem.
Depois de analisá-la, se levantou e caminhou a passos duros
até o armário. De lá, tirou minha mala.
— O que está fazendo?— perguntei.
Ele caminhou para a cama e depositou a mala sobre ela.
— Você vai embora — afirmou.
Chase voltou para o armário e pegou algumas roupas.
Jogou-as na mala.
— Chase, para... — me levantei da cama.
Ele não pareceu ter escutado, ou apenas me ignorou, já que
pegou mais roupas e as colocou na mala.
— Chase...
— Você não vai passar mais nenhum segundo nessa cidade,
Sadie. Eu não quero saber. Só quero ver você longe da mira desse
filho da puta — falou, sem me olhar, apenas arrumando as roupas
dentro da mala.
— Foi só uma coincidência... — eu disse.
— Coincidência?! — ele praguejou — A porra da joaninha na
barriga daquela mulher é idêntica à sua tatuagem, Sadie! Como isso
pode ser só uma coincidência?!
Chase continuou amontoando as roupas na mala como se
estivesse completamente desesperado. Ele estava afobado, quase
agoniado.
E eu estava aflita por vê-lo naquele estado.
A passos largos, caminhei até ele, que estava pronto para
fechar a mala. Segurei seu rosto com as duas mãos e, sem pensar
muito, me coloquei na ponta dos pés, alcançando seus lábios com
os meus.
Chase parou drasticamente quando notou o que eu estava
fazendo.
Eu estava beijando meu melhor amigo.
E aquilo não me pareceu estranho.
Me pareceu certo.
Certo para caralho.
O selinho casto acabou depois de alguns instantes, e eu me
afastei de Chase. Os olhos dele me mostravam muita coisa, muita
coisa mesmo. Choque, surpresa, confusão... mas o que mais me
chamou atenção foi o brilho intenso deles.
Ele dizia que me daria estrelas, quando na verdade elas
estavam bem ali, dentro dos seus olhos.
Chase tinha os lábios entreabertos e os olhos em minha
boca. Ele pareceu ter voltado à realidade quando soltou a mala no
chão e abraçou minha cintura com seus braços, me trazendo para
tão perto que nossos corpos quase poderiam se fundir. Foi quando
seus lábios voltaram para os meus que eu percebi a força dos
sentimentos de Chase, porque aquele beijo era disparado o beijo
mais intenso que já me deram.
Chase abraçava minha cintura com firmeza, enquanto eu
levava as mãos para seu rosto e sua nuca. Sua língua explorava
cada canto da minha boca, lentamente, como uma dança sensual.
Eu desci uma de minhas mãos de sua nuca, deslizando até seu
peito e sentindo sua pele.
Esqueci de tudo.
Toda a preocupação e o medo sumiram.
Naquele momento, eu me concentrava em apenas beijar
Chase, e não queria fazer qualquer outra coisa.
Chase parou o beijo com alguns selinhos e colou nossas
testas. Estávamos ofegantes e sem nenhuma palavra para ser dita.
Tudo aquilo já havia se tornado exposto a partir do momento que
nossos lábios se tocaram pela primeira vez.
— Vamos sair daqui... — ele murmurou com a voz rouca —
Vamos para algum lugar bonito. Eu posso cuidar de você. Posso
proteger você. Por favor...
Eu abri minhas pálpebras e descolei minha testa da sua,
encarando seus olhos verdes.
— Não vai acontecer nada comigo, Chase. Eu juro... —
sussurrei.— Sei me cuidar. Preciso terminar meu trabalho aqui,
entende?
Chase suspirou e assentiu.
— Eu não vou conseguir tirar isso da sua cabeça, não é? —
ele perguntou.
— É...
Chase soltou uma de suas mãos da minha cintura e a levou
até meu rosto. Seu dedão tocou meu lábio delicadamente.
— Dorme comigo hoje?— perguntou.
— Só dormir?
Eu não queria estragar as coisas entre nós, por isso,
precisávamos caminhar a passos de tartaruga.
— Eu faço o que você quiser fazer — respondeu.
Eu assenti.
— Tudo bem.
Pela primeira vez desde que entrou neste quarto, Chase
abriu um sorriso largo.
— Eu vou pegar minhas coisas. Já volto.
Chase juntou mais duas vezes nossos lábios, antes de sair
apressado do quarto.
Eu permaneci no mesmo lugar por mais alguns segundos,
antes de levar meus dedos aos lábios e sorrir como uma
adolescente boba.
Escutei meu celular apitando.
Ainda com as pernas bambas, caminhei até a escrivaninha e
o peguei em minhas mãos.
Mensagem de número desconhecido.
Eu juntei as sobrancelhas, confusa, e abri a caixa de
mensagens.
Era uma foto.
Tudo pareceu rodar quando reconheci aquela imagem.
Soltei o ar com força e andei rapidamente até a varanda.
Observei o lado de fora, meu coração batendo forte e minhas mãos
tremendo, suando. A rua estava escura, e eu não via nada além do
breu ali.
Até uma silhueta sair da escuridão.
Eu estava longe, mas podia ver que era alta. O capuz cobria
seu rosto, mas eu sabia que ele estava olhando diretamente para
cá.
A morte.
Ou melhor: O Morte.
O assassino estava bem ali, em pé, do outro lado da rua, me
encarando. Eu já senti pavor muitas vezes em minha vida, e aquela
encheria ainda mais a minha lista.
Ele enfiou a mão no bolso de sua calça e tirou um celular de
lá. Digitou algo, e voltou a cabeça mais uma vez em minha direção.
Eu queria sair dali e chamar Devan, Thomas, Blaine, a equipe toda.
Mas meus pés se pregaram no chão e eu não conseguia fazer mais
nada além de tremer, e tentar enxergar a face da morte.
Inútil.
Meu celular apitou mais uma vez.
Tremendo mais do que o normal e com lágrimas assustadas
já embaçando meus olhos, eu encarei a tela do aparelho em minhas
mãos.
"Até breve, Sadie."
Fechei as cortinas com brutalidade e corri até o banheiro, me
trancando dentro dele. Com o coração na mão e um nó na garganta,
caminhei até a janela.
A silhueta já não estava mais lá.
Senti falta de ar, e levei um susto quando escutei uma voz.
— Sadie? Está no banheiro?
— Estou... é... Eu já saio, Chase.
— Ok!
Escutei seus passos se afastando e o barulho da cama,
provavelmente recebendo o peso dele.
Eu abri mais uma vez a foto, que provavelmente me
perturbaria por muito mais tempo.
Nela, eu e Chase estávamos nos beijando.
E a morte estava nos observando.
Cento e dez batimentos por minuto.
Três quilômetros percorridos.
O relógio moderno em meu pulso indicava que eu poderia
morrer a qualquer momento.
— Espera. Espera...— eu disse, ofegante.
Apoiei minhas mãos nos joelhos para recuperar o fôlego.
Nunca pensei que fosse virar uma sedentária de merda.
Chase parou de correr e voltou até mim. O filho da puta nem
estava suado.
— Precisa de água, doutora? — perguntou irônico, sorrindo.
— Idiota... — murmurei com os dentes semicerrados.— Eu
não tenho mais idade para fazer isso.
— Essa foi a pior desculpa que já ouvi na minha vida. Eu sou
dois anos mais velho que você e olha só pra mim?
Levantei o olhar para ele. Chase sorriu de lado.
— Aprecie meu físico digno de um modelo de sungas —
piscou.
Eu revirei os olhos e o empurrei, voltando a correr. Chase
logo me alcançou, rindo.
O dia estava ensolarado em Coolley. Os pássaros cantavam,
o céu estava mil vezes mais azul que o normal e o sol brilhava,
enquanto eu e Chase percorríamos a cidade, nos exercitando.
Quando o dia amanheceu, acordei com beijos no rosto e um carinho
em minha barriga. Chase e eu havíamos dormido a noite inteira
agarrados. Acordar com aquele tipo de cuidado quase me fez
levantar assustada, na defensiva, mas quando reconheci seus olhos
verdes, o agarrei com tudo o que eu tinha.
Eu não queria soltá-lo, porque não tinha certeza se aquela
mensagem que recebi fora só um simples trote, coisa de
adolescente, ou se veio diretamente do celular do assassino.
A hipótese de Chase correndo perigo me deixava apavorada.
Por isso, quando ele disse que faria sua corrida matinal e me
perguntou se queria ir junto, eu aceitei imediatamente. Não queria
ver o corpo másculo dele longe de minhas vistas.
Entretanto, naquele momento, já estava me arrependendo.
Não porque eu estava quase morrendo pelo cansaço.
Mas porque eu estava sentindo muitos olhares em mim.
Ou melhor: eu estava sentindo todos os olhares em mim.
Já estava aqui há alguns dias e consegui não chamar muita
atenção até agora. Evitei sair da mansão, não andei de carro com a
janela aberta, fiquei isolada no discurso do prefeito e, apesar de ter
corrido diretamente para onde os curiosos mantinham seus olhos
naquele dia, a adrenalina foi tanta que não reparei se prestaram
atenção.
Só que agora eu estava reparando. Não tinha como não
reparar. Algumas pessoas quase quebravam o pescoço,
acompanhando meu percurso.
Chase diminuiu a velocidade das suas passadas, e pensei
em abraçá-lo pela forte onda de gratidão que me atingiu. Murmurei
um "graças a Deus", e pedi mentalmente para que um carro com ar
condicionado e água gelada viesse nos buscar.
— O que aconteceu?— perguntei, a respiração desregulada
e o ar gelado entrando pela minha boca, rasgando minha garganta e
deixando-a seca.— Você disse que queria correr quatro quilômetros.
— Eu queria correr três quilômetros. O último eu quero fazer
andando...— esclareceu.
Droga.
— Ok... — disse, tentando esconder minha infelicidade por
esta tortura ainda não ter acabado.
— Eu não terminei, pequena...— informou.— Eu quero
realizar um sonho de infância agora.
Juntei as sobrancelhas.
— Sonho de infância?— perguntei.
Ele baixou a cabeça, coçou a nuca e sorriu tímido.
— Quero caminhar de mãos dadas com você — revelou.
Primeiro eu achei lindo.
Depois eu achei estranho.
Depois eu fiquei com medo.
— Acho melhor não, Chase... — disse — As pessoas vão...
ficar comentando. Todos souberam do seu acidente e do porquê ele
aconteceu. E também... claramente já descobriram quem eu sou...
— murmurei, olhando para os lados e percebendo alguns olhares
ainda em nós — Não vai pegar bem.
Chase soltou o ar e revirou os olhos, caminhando até mim.
Tão rápido quanto pude perceber, ele segurou meu rosto com as
duas mãos e seus lábios se juntaram aos meus por breves
segundos, antes de se separar minimamente para me encarar.
— Pronto. Agora todos sabem que o filho do prefeito está
com a garota mais linda que já existiu.
Arfei, meu coração batendo rápido não só pela corrida, mas
também por suas palavras.
— Eu já disse que amo você. Sei que ainda não sente o
mesmo, mas não vou desistir de nós — afirmou — E, droga, eu
quero que todas essas pessoas vão para o inferno. Eu não me
importo com elas. Me importo com você. Isso entre nós, de andar de
mãos dadas, beijar em público, só não irá rolar se você não quiser.
Você quer?
Sabia pelos olhos de Chase que ele esperava um sim. Que
ele clamava por um sim.
E, fodam-se essas pessoas.
Ao invés de responder, eu subi minha mão até a sua, que
estava em meu rosto, e a segurei, entrelaçando nossos dedos.
Chase abriu um sorriso amplo e saiu de minha frente, segurando
minha mão e começando a caminhar.
Percebi que, se eu fosse fazer isso — sair em público para
todos me verem —, teria que ser com Chase. Só ele conseguia me
passar segurança. Eu estava no lugar errado, mas com a pessoa
certa.
Chase tinha os olhos verdes brilhando e um ar de sorriso,
dando passadas curtas, prolongando ainda mais nosso passeio. Eu
já não me importava mais se as pessoas me olhavam estranho. Já
não me importava com as consequências daquele passeio, só
queria aproveitar mais daquilo, daquela sensação boa que só Chase
conseguia me proporcionar.
Mas a sensação sumiu aos poucos quando avistei algo no
final da rua.
Senti um nó na garganta.
A boca seca.
Um embrulho no estômago.
O casarão estava velho, abandonado. As folhas secas da
árvore de frente, cobriam grande parte dele. Haviam alguns vidros
quebrados, janelas cobertas com placas de madeira, pregadas com
parafusos já enferrujados. As paredes estavam recheadas de
manchas marrons de chuva e verdes de mofo. Os grandes portões
de ferro, com lanças pontudas apontando para o céu, estavam
trancados com correntes e um cadeado tão grande que, se atirado
contra a cabeça de alguém, certamente mataria. Mas a porta de
entrada da casa estava caída para o lado, sendo presa apenas por
alguns pregos. Faltava bem pouco para ela se desprender deles e
cair no chão. A placa de madeira escura pendurada ao lado do
portão, que balançava como flores frágeis quando o vento batia,
revelava letras bem grafadas, e gravadas com tinta branca que,
depois de tanto tempo, se desgastou e sumiu. Mas ainda havia a
sombra do nome do local:
Orfanato Coolley.
O orfanato.
O lugar que passei boa parte da minha vida estava caindo
aos pedaços.
— Charlotte ficou bem irritada depois que você fugiu... —
Chase comentou, percebendo que parei meus passos.— Quando
minha memória voltou, eu vim até o orfanato e a coloquei contra a
parede. Ela explodiu e me disse tudo.
Eu franzi as sobrancelhas e lhe encarei.
— Mas você já sabia de tudo, Chase...— falei.
Ele negou com a cabeça.
— Eu sabia, mas não é daquilo que estou falando...—
suspirou — Ela me disse porque te odiava tanto.
Ansiedade atingiu meu corpo.
— Me diz, Chase... — pedi, o encarando — me diz o porquê.
Ele suspirou e se colocou à minha frente, ainda sem soltar
minha mão.
— Peter Foster e Charlotte foram namorados, Sadie... —
revelou — Eles estavam bem até sua mãe chegar na cidade. Peter
se apaixonou por ela e deixou Charlotte. Desde então, Charlotte
alimentou ódio e rancor dentro dela. Quando você chegou no
orfanato e ela percebeu o quanto você era parecida com Elizabeth,
transferiu toda a raiva dos seus pais para você. Ela virou uma
mulher rancorosa, pequena, e queria descontar em você.
Agora tudo estava explicado.
Os gritos.
Os castigos.
As palmatórias nas mãos.
As cicatrizes em meus joelhos de tanto ajoelhar no milho.
— E o que aconteceu com ela?— perguntei, contendo a voz
trêmula.
— Ela ficou meio... — fez uma expressão pensativa — Como
posso dizer isso...?
— Fala logo, Chase.
Ele engoliu em seco.
— Ela pirou — revelou.
Juntei as sobrancelhas.
— Pirou?
— Completamente! — afirmou — Ela... ficava perambulando
por aí, procurando por você. Abandonou o orfanato e as crianças.
Depois de um tempo ela dizia que estava procurando por Elizabeth
Foster, não por você — fez uma pausa antes de respirar fundo,
quase com pesar — A família dela a internou em uma clínica na
outra cidade. Depois disso eu nunca mais tive notícias dela.
Eu engoli em seco, tentando eliminar a sensação de prazer
ao escutar aquilo. Eu queria ser como Robin. Queria ser evoluída
como ela e esquecer todo o mal que Charlotte me fez. Queria ficar
comovida. Queria ficar mal pelo destino trágico que a vida levou a
Charlotte.
Mas eu não conseguia.
Collins me fez muito mal e eu estaria mentindo se dissesse
que não gostei, pelo menos um pouco, do que aconteceu com ela.
Chase suspirou.
— Eu conheço você, Sadie, e sei o que está pensando... —
ele começou, a voz branda.— E tá tudo bem, ok? Você pode falar
comigo. Eu não vou te julgar, jamais.
Eu assenti.
— Eu sou uma péssima pessoa, Chase? Gostar do que
aconteceu com Charlotte é errado demais? Acha que vou para o
inferno?
Chase inclinou levemente sua cabeça para trás e soltou uma
risada.
— Não. Você não é uma péssima pessoa, pequena... —
respondeu, aproximando-se um pouco mais e segurando meu rosto
com as duas mãos — Ninguém é perfeito. Charlotte fez muito mal a
você, e eu estranharia se você tivesse outra reação que não essa...
— ele maneou a cabeça para um lado — E eu não acho que vá para
o inferno. Você já viveu nele em grande parte da sua vida.
Eu respirei fundo, com pesar.
— É...
Um arrepio passeou por minha espinha com as lembranças,
e eu me encolhi. Chase me abraçou e acolheu meu rosto em seu
peito. O abracei de volta.
— Eu odeio o fato de não ter feito nada... — murmurou.
— Como você poderia ter feito, Chase? Você nem ao menos
se lembrava... — disse, me afastando dele e encarando seus olhos
— O que realmente importa é que a gente se encontrou de novo,
certo?
Chase assentiu e sorriu.
— Certo... e eu não preciso de mais nada. Só de você —
disse, colocando uma mecha que havia escapado do meu rabo de
cavalo atrás da minha orelha.— Acha que algum dia vai me amar
como eu te amo?
Eu suspirei.
Eu não fazia ideia. Chase era meu melhor amigo, e aquilo
ainda parecia meio embaraçoso.
— Eu não sei... — murmurei.— a única coisa que eu sei é
que eu não quero me afastar de você de novo, Chase.
Ele negou com a cabeça.
— E não vai... — afirmou — E mesmo que no final de tudo
você não queira ficar comigo, você sabe... — deu de ombros, mas
seus olhos eram temerosos — Ainda seremos amigos, certo? Os
melhores.
Eu sorri fraco e assenti.
Chase me abraçou mais uma vez, e eu fechei meus olhos
para sentir mais a sensação. E, quando os abri, a imagem do
orfanato destruído me fez arrepiar.
Mas meus olhos foram desviados para outro lugar.
Ao lado do casarão, havia um beco sem saída. E daquele
beco sem saída, latidos desesperados de um cachorro começaram
a ecoar.
Eu estreitei os olhos na tentativa de enxergar melhor, me
afastando de Chase.
— O que foi?— ele perguntou.
— Sshhh.
Caminhei lentamente até o beco, passo por passo. Senti a
presença de Chase atrás de mim.
— Sadie, o que está acontecendo?
— Sshh. Cala a boca — sussurrei alto.
Os latidos do cachorro se tornaram mais altos quando entrei
no beco escuro e úmido. O cheiro de lixo era forte. O cachorro de
pelos marrons correu até nós, completamente agitado. Ele deu a
volta em meu corpo e retornou desesperado até a caçamba de lixo,
sem parar seus latidos.
— Tem alguma coisa errada...— murmurei.
— Eu não tô gostando disso, Sadie.
— Eu também não.
Caminhei um pouco mais rápido até alcançar a caçamba de
cor verde musgo. Coloquei minhas mãos na tampa e, com a ajuda
de Chase, levantei.
Os latidos do cachorro aumentaram.
— Aí meu Deus...— Chase murmurou, encarando o interior
da caçamba.
O corpo da garota estava jogado entre os sacos de lixo. A
cabeça raspada, as pálpebras fechadas. A assinatura do assassino
no braço esquerdo e a joaninha no pulso direito.
— Chase, ligue para Thomas.
Ele permaneceu parado ao meu lado, chocado com a cena
de mais um corpo, descartado como se descarta um saco de lixo.
Lhe encarei.
— Chase!— chamei mais uma vez. Ele tirou os olhos verdes
do corpo e me encarou.— Ligue para Thomas.
Sua pele estava pálida e ele parecia querer desmaiar a
qualquer momento, mas engoliu em seco e se afastou, tirando o
celular do bolso.
Voltei minha atenção à garota, tirando o par de luvas que
sempre deixo em meus bolsos para possíveis emergências.
Enquanto as calçava, escutando a voz de Chase longe e os latidos
do cachorro, que não cessaram em nenhum instante, observei o
corpo da mulher. Sua pele estava branca, com alguns hematomas
espalhados por seu corpo.
Mas algo me chamou atenção.
E o que vi me fez estremecer.
Para conseguir enxergar melhor, arrastei uma caixa que
estava ali e subi em cima dela, para ficar da altura da caçamba.
Apoiei minhas mãos na borda e me aproximei mais, até estar perto
o suficiente do tórax da garota para perceber.
Era discreto.
Bem discreto.
Mas eu notei.
Notei expansão torácica.
A garota estava respirando.
E tão rápido quanto pude notar, ela abriu os olhos de uma
vez, se sentou e seu grito agudo ecoou por toda a cidade.
Blaine passou pela porta do quarto, seguido de um vaso de
flores. Por pouco, bem pouco, o objeto não atingiu sua cabeça.
A porta se fechou com um baque.
— Nossa! — ele exclamou — De todas as garotas que já
atiraram coisas em mim, essa com certeza é a que estava com mais
raiva.
Revirei os olhos.
A garota que eu e Chase encontramos se chamava Nancy
Fox. Ela tinha vinte e seis anos e trabalhava na escola da cidade,
como professora do jardim de infância.
Trabalhava não.
Ela trabalha.
A garota está viva.
Se antes já não tínhamos ideia do que fazer ou de qual seja
o jogo do assassino, agora menos ainda. Era difícil entender a
mente de alguém tão imprevisível. Ele seguiu uma linha até
chegarmos aqui. E quando percebeu que éramos nós que
assumiríamos o caso, se descontrolou e cometeu um crime mil
vezes mais violento do que os anteriores. E agora, para a surpresa
de todos, a próxima vítima estava respirando.
Seus sinais vitais estavam ok.
Mas sua mente não.
Ela estava completamente surtada.
A imagem daquela garota gritando tão alto quanto sua
garganta aguentava, levando suas mãos para a cabeça e batendo
nela como se algo estivesse corroendo sua mente, simplesmente
não saía de minha cabeça. Eu poderia ver tudo. Sangue, pedaços
de corpos que quase viraram carne moída, sinais grotescos de
tortura. Queimaduras que transformam tecidos em pó, chegando ao
osso, cabeças decepadas e órgãos para fora, como se a pobre alma
tivesse tido o azar de cruzar com um zumbi bem faminto, daqueles
que aparecem em séries e filmes.
Mas ver uma garota sofrendo era demais para mim. Era meu
limite.
Meu calcanhar de Aquiles.
O que o assassino fez para foder com seu emocional
daquela forma?
Administrei um sedativo nela e a trouxemos para o hospital.
Fiz alguns exames, chequei todos os seus sinais. Não houve
tentativa de afogamento. O assassino só a sequestrou, raspou seu
cabelo, rasgou sua pele para fazer a assinatura e a joaninha, e
esmagou seu psicológico como se esmaga uma barata.
A troco de quê?
Até onde eu sei, a maioria dos Seriais Killers só matam
porque gostam.
Esse tem claramente um objetivo.
E só espero que esse objetivo não seja eu.
Eu e Robin passamos o resto do dia no hospital, cuidando da
garota, enquanto os outros se preocupavam em analisar o local
onde Nancy foi encontrada. E agora, quase nove da noite, ela
acordou. Os investigadores entraram em ação. A garota ainda
estava meio longe pelos sedativos, então provavelmente
responderia às perguntas que Devan, Thomas e Blaine estavam
loucos para fazer.
Ledo engano.
O primeiro a entrar foi Caldwell.
Ele não ficou lá dentro nem por um minuto.
Ela gritou, chorou, quase pegou o suporte de soro e enfiou
na bela bunda de Devan.
Blaine se ofereceu parar entrar logo depois que Devan saiu
de lá, horrorizado. Segundo ele, a garota colaboraria porque ele era
um "encanto", e que ela poderia ser uma parente distante da Megan
Fox, sendo assim, não perderia essa chance nem que lhe
matassem.
A garota quase lhe matou.
— Bom... acho que agora é minha vez — Thomas comentou,
se desencostando da parede. Me encarou. — Esse é o olhar de
alguém que é gentil?— apontou para seus olhos.
— Esse é o olhar de alguém que está apavorado —
argumentei.— Quanto tempo, Robin? Um minuto?
A garota deu de ombros.
— Eu chuto um e meio. Dez dólares?
Eu sorri voltando a encarar Walker, que tinha os olhos
arregalados.
— Dez dólares — concordei.
Thomas engoliu em seco.
— Eu deveria me sentir honrado. Foi o maior tempo que
vocês apostaram até agora.
Robin riu.
Thomas se preparou, antes de dar dois toques na porta e
entrar de fininho no quarto.
— Por que você apostou trinta segundos comigo, Robin?—
Blaine perguntou, chegando perto da garota.— Você sabe que eu
duro muito mais que isso — sorriu de lado, arrastando as palavras
maliciosamente.
— Não sei do que você tá falando — ela murmurou, se
fazendo de indiferente e empurrando seu óculos para cima, mas o
vermelho em suas bochechas entregava o quanto ficou sem jeito.
— Eu vi um consultório vazio. Quer relembrar?
— Ah, pelo amor de Deus!— eu disse, fazendo careta.— Se
vão fazer isso, voltem para a mansão. Tá dispensada, Robin.
Ela tentou conter o sorriso.
— Doutora Foster, você é um anjo — Blaine disse,
apontando para mim com os dois indicadores — E agora mora no
meu coração. Não tire o jaleco, Robin. Quero você com ele.
Robin ficou ainda mais vermelha.
Os dois saíram sem nem ao menos se despedir.
Soltei uma risada, enquanto acompanhava o percurso
apressado do casal até o fim do corredor, como se fossem
adolescentes cheios de hormônios. Quando voltei meu olhar para
frente, encontrei Devan apoiado no balcão, com os olhos avelã em
mim.
Nós não conversamos depois da noite do cemitério, e nem
nos cruzamos tanto. Mas toda vez que acontecia, Devan fazia
questão de me acompanhar com os olhos, sem desviar sua
atenção, até eu sumir de suas vistas.
E o pior de tudo é que eu gostei.
— Você deveria rir mais — ele disse — Sua risada é bonita.
Eu demorei alguns segundos para entender o peso daquelas
palavras e o que elas significavam.
E mais ainda para acreditar que elas saíram pela boca de
Devan.
Ele estava agindo estranho desde seu ataque de fúria
descontado em mim, quando descobrimos que o prefeito escondeu
todo o caso da população. Quer dizer, ele não estava agindo
estranho, só estava agindo assustadoramente normal. Me
cumprimentava como uma pessoa decente, não me tratava mal.
E eu queria que continuasse assim.
Eu sentia que as coisas entre nós tinham que se acertar para
que a investigação fluísse bem. Nós éramos pilares importantes da
equipe, e se não estivéssemos em harmonia, o resto do pessoal
também não estaria.
O contato visual foi quebrado quando escutei meu nome ser
chamado:
— Sadie?
Me virei para trás e observei Chase andando até mim. Ele
vestia um moletom e uma calça jeans. Seus cabelos estavam na
bagunça de sempre, e seu sorriso se tornou torto quando seus olhos
encontraram os meus.
— Chase... — sorri.— O que faz aqui?
— Bom, você... ficou aqui o dia todo, desde que
encontramos a garota. Sei que não comeu — falou, parando em
minha frente — Eu trouxe bolo.
Ele apontou a cabeça em direção à sacola presa em sua
mão.
Meu sorriso aumentou.
— Meu Deus, Chase! Não precisava.
— É claro que precisava. E adivinha só? É de chocolate com
morango — sussurrou como um segredo.
Piscou para mim.
Meu peito transbordou.
— Você ainda se lembra... — murmurei.
Ele assentiu.
Ouvimos alguém limpar a garganta.
Me virei para trás. Devan tinha a pose rígida, agora. Os
braços fortes estavam cruzados e os olhos medindo cada traço de
Chase. Eu sabia disso porque, aquele mesmo olhar, costumava ser
dirigido à mim.
— Você não deveria estar aqui — ele murmurou baixo —
Estamos investigando o caso. Se for para atrapalhar, a porra do bolo
pode esperar.
Eu engoli em seco.
Mas Chase não pareceu nem um pouco intimidado.
— O que vai atrapalhar, detetive Caldwell, é vocês fazerem
Sadie trabalhar como uma condenada e não darem nem um tempo
para pausa...— falou irritado — E se quer mesmo me intimidar com
essa pose de agente, é melhor desistir. Porque quando se trata
dela, eu não tenho medo de enfrentar alguém. Mesmo que esse
alguém carregue uma arma.
Chase apontou o coldre de Devan com a cabeça.
— Chase, para com isso... — eu disse, tocando seu peito
com minha mão.— Tá tudo bem, ok? Obrigada pelo bolo.
Levei minha mão até a sua e segurei a sacola. Chase
finalmente tirou seu olhar de Devan e levou até meu rosto.
Tentei sorrir para tranquilizá-lo.
Chase beijou minha testa.
— Pode ir. Eu vou ficar bem.
Ele assentiu e lançou um último olhar para Devan, antes de
nos dar as costas.
E Caldwell não hesitou em abrir a boca novamente:
— Se prepara, Anderson... — praguejou.— Você está na
minha lista.
Fechei os olhos, com pesar. Chase parou no meio do
corredor e se virou novamente para nós. Suas mãos estavam
fechadas em punho. Nunca vi os olhos de Chase tão tempestuosos
como naquele momento.
— Você também está na minha — sua voz ecoou pelo
corredor — Só que a diferença é que você é a única pessoa nela.
Então eu tenho mais tempo para pensar em mil formas de como
acabar com você.
Puta merda.
Puta merda, Chase.
Eu me virei para Devan a tempo de vê-lo cerrar os punhos e
avançar um passo em direção à Chase, mas o barulho da porta se
abrindo e um Thomas assustado o fez parar.
— Droga. Ela está muito pior do que eu imaginei... —
Thomas disse, passando suas mãos pelos cabelos quando notou
Chase — Ah, olá. Algum problema?
— Não — respondi rapidamente.— Chase só veio... Me
trazer algo para comer. Já estava de saída, não é?
Voltei a encará-lo.
Lancei um olhar que tinha certeza de que entenderia, e ele
entendeu.
Ele sempre entende.
— É... — disse, voltando seus olhos para Devan — Já estou
de saída.
Chase deu as costas e voltou a dar passos raivosos e duros
para fora do hospital. Eu ainda fiquei alguns segundos de costas
para os dois, sem ter coragem de voltar meus olhos para Devan,
mas uma hora tive que voltar.
Eu me virei para eles, limpando a garganta.
— Hmm, bom... — encarei Thomas.— Vocês claramente não
sabem lidar com uma pessoa surtada. Eu sei, então... acho que eu
tenho que entrar lá agora. Caldwell você... — fiz uma pausa,
enquanto voltava meus olhos para ele — Trouxe seu material para
fazer o retrato falado?
Eu não sabia o que Devan estava pensando, mas sua
expressão já não era mais tão leve quanto há minutos atrás.
— Trouxe — murmurou secamente.
Eu assenti.
— Ok, então... você pode entrar comigo.
Caminhei até o balcão e depositei a sacola com o bolo sobre
ele.
— Bom, já que vocês vão assumir, vou para a mansão. Eu e
Katherine completamos um ano hoje e não quero deixá-la sozinha.
Tenho certeza que vocês conseguirão — Thomas afirmou, jogando
seu paletó sobre o ombro. — E só para você saber, Sadie, foram
dois minutos.
Thomas sorriu e começou a caminhar para fora da
enfermaria.
Eu sorri junto, apesar do clima pesado entre mim e Devan.
— Então... — ele comentou com a voz baixa, enquanto eu
tirava meu jaleco.— Você está abrindo as pernas para o riquinho de
merda, huh?
Aquele comentário me fez querer vomitar.
Mas eu mantive minha expressão neutra, enquanto voltava
meus olhos para Devan.
— Estou — menti.— Na verdade não só as pernas, Devan.
Eu estou abrindo a boca. A bunda... — murmurei com palavras
quase sussurradas — E sabe de uma coisa? Pouco importa o que
você acha ou deixa de achar sobre mim, Caldwell. A partir do
momento que faltou com respeito, você se tornou um bolo de lixo
que não faz absolutamente nenhuma diferença para mim — eu
cheguei um pouco mais perto dele, encarando seus olhos avelã
finalmente frente a frente, cara a cara, de igual para igual — Eu e
Chase temos uma história, Devan, e tenho certeza de que ele
jamais falaria assim comigo. Porque nós temos um ao outro. E você,
o que tem?
Nada.
Eu sabia que Devan não tinha nada, porque eu também
costumava não ter.
Queria que ele soubesse que eu não era tão inocente assim.
Queria que ele soubesse que eu mostraria minhas garras quando
precisasse.
Ele conseguia me machucar com palavras. Mas nunca
nenhuma delas me destruiu tanto quanto o que eu havia acabado de
fazer com ele.
A delegacia de Coolley era literalmente um desastre. Tudo
era muito bagunçado. Os policiais eram desorganizados, e a maioria
ficava a tarde inteira com as pernas sobre a mesa, comendo
rosquinhas, entupindo suas artérias de gordura e de açúcar.
Metade deles morreria de diabetes, disso eu tinha certeza
absoluta. A outra metade do coração, já que eles teriam mais
colesterol em sua corrente sanguínea do que sangue propriamente
dito.
Enquanto observava Caldwell apoiar suas mãos sobre mesa
e encarar os olhos do pobre garoto, murmurando palavras tão
assustadoras que eu quase sentia medo pelo menino algemado,
minha mente trabalhava em achar respostas para todas as minhas
perguntas. E, droga, eu sentia falta da época em que a única
resposta que eu queria, era se eu devolveria o livro para a biblioteca
da faculdade ou furtaria mesmo, como uma golpista de respeito.
Encarei a folha de papel em minhas mãos. Os traços bem
feitos com o grafite preto revelavam a exata imagem do assassino.
O problema, era que mais da metade do seu rosto estava
coberto por um capuz.
Ou seja: aquilo e nada eram a mesma coisa.
Ontem, quando entrei lentamente no quarto de Nancy Fox, a
garota levou seus olhos dourados para mim rapidamente, em alerta.
Perguntou quem eu era, as palavras se embaralhando pela pressa
em saber se eu era confiável ou não. Eu não disse que era sua
médica, muito menos me apresentei como doutora Foster. Naquele
momento eu era apenas a Sadie, uma garota legal que queria
ajudar outra garota legal.
Nós estudamos um pouco de psicologia na faculdade de
medicina. Aprendemos como lidar com as pessoas, o que era
realmente precário entre os detetives do D.I.M.. Eles só sabiam
ameaçar, intimidar, e aquilo não funcionaria com Nancy. Então, eu
entrei primeiro e fechei a porta, deixando Devan aguardando do lado
de fora. Fiquei a uma distância considerável dela, enquanto tentava
fazer com que ela se sentisse segura comigo. Perguntei como ela
estava, se a dor em seu braço ainda a incomodava, e se mais
alguma coisa física em seu corpo lhe deixava desconfortável.
Ela disse que estava péssima.
Eu também disse que estava péssima.
Disse que havia acabado de brigar com meu namorado e
que nós daríamos um tempo. Não era totalmente mentira, porque eu
tinha acabado de brigar com Devan. A única mentira ali era que
Devan, graças a Deus, não era meu namorado.
E, quando disse algo pessoal para ela, dei um passo em sua
direção.
Nancy não recuou.
Pessoas em surto precisam sentir que nós, pessoas que
tentam acalmá-las — sem a ajuda de sedativos —, confiamos nelas.
É uma troca de reciprocidade. Enquanto eu segurasse a linha
firmemente, ela se sentiria bem o suficiente para segurar a outra
ponta.
Em seguida, afirmei que ela parecia fisicamente bem e que
estava bonita, mas que poderia contar comigo para o que
precisasse, se seu interior não estivesse tão bem quanto seu
exterior.
Mais um passo, e ela mais uma vez não recuou.
Contei sobre como minhas férias estavam próximas, e sobre
minha ansiedade extrema para viajar. Ela, pela primeira vez, riu.
Outro passo.
A poltrona ao lado da maca já não estava tão longe.
Ela disse que as crianças da escola onde trabalhava não
viam a hora das férias chegarem, mas quando finalmente
chegavam, a maioria ficava com saudade e queria voltar.
Contei que também me sentia assim quando era pequena,
tirando o fato de que as crianças do orfanato estudavam lá mesmo,
e que eu não poderia tirar férias de lá e voltar para casa, porque eu
não tinha uma casa.
Quando me sentei na poltrona já passava das dez da noite.
Comecei a entrar no assunto. Ela pareceu desconfortável e
passou a me dar respostas um pouco mais curtas. Fiz com que ela
se sentisse segura mais uma vez, falando sobre coisas aleatórias e
sem importância. Quando ela parecia bem novamente, consegui
convencê-la a deixar Devan entrar. Ele fez isso de mansinho e ficou
no canto do quarto, longe o suficiente para ela não ter medo.
Segurei a mão da garota, enquanto ela começava a
descrever a face do assassino. Mas ele não foi tão burro. Usou um
capuz durante todo o tempo, grande o suficiente para cobrir seu
rosto enquanto a torturava.
Devan terminou o retrato em silêncio e se retirou. Eu
permaneci mais alguns minutos com a garota, a observando quase
entrar em surto mais uma vez, dizendo palavras desconexas e
batendo em sua cabeça. Eu disse que ela iria se sentir melhor se eu
aplicasse um relaxante nela.
Ela não hesitou em aceitar.
Preparei um sedativo um pouco menos potente para ela,
mas bom o suficiente para fazer seu corpo relaxar e suas sinapses
correrem mais devagar. Ela dormiu. E, enquanto a observava fechar
as pálpebras mesmo que algumas lágrimas ainda escorressem por
suas bochechas, imaginei como seria a vida daquela garota dali
para frente. O cabelo, que foi raspado, cresceria, mas as cicatrizes
em seu braço e em seu pulso continuariam ali, lembrando-a das
horas de visita ao diabo proporcionadas pelo assassino.
E ali, fiz uma promessa.
Eu não sairia de Coolley até encontra-lo.
Por Nancy.
Por Violet.
Por Ashley.
Por Megan.
Por Melanie.
Por Sydney.
Por todas elas, e por todas as outras garotas que moram em
Coolley e que, em algum momento, podem se tornar mais um corpo
com pele gelada e etiqueta no pé.
Depois de não ter dormido quase nada, acompanhei Devan
até a delegacia, que não disse absolutamente nada. Ele já não
dirigia mais a palavra a mim. Eu não saiba se era porque ele estava
irritado, ou se era porque estava com vergonha do seu showzinho e
não aguentava nem encarar meus olhos.
Torcia para que fosse a última opção.
— O garoto não vai falar — escutei.
Olhei para trás e encontrei o xerife Bloom. Ele estava sem o
chapéu, então seu ponto de calvície no topo da cabeça estava
exposto. Ele estava apoiado no batente da porta, também
encarando a sala de interrogatório pelo vidro.
— Como sabe disso?— perguntei.
Ele levou seus olhos castanhos para mim.
— Qual a única coisa que impede que as pessoas falem,
doutora?
Voltei meu olhar para o garoto de cabeça baixa e expressão
neutra.
— Medo — respondi.
— O garoto está se cagando de medo — retrucou ele.—
Está sendo ameaçado.
Eu assenti.
Estava tudo ligado.
Sentia que a mesma pessoa que ameaçava o garoto, foi a
mesma que me mandou a mensagem e a mesma que Devan
desenhou.
— Eu conheci seus pais.
Eu prendi o ar.
Todos os pensamentos em minha cabeça sumiram assim
que escutei as palavras.
Me virei lentamente para o xerife. Ele tinha um olhar
nostálgico.
— Peter era meu melhor amigo... — continuou.— Eu vivia na
casa dele e ele na minha. Fizemos colegial juntos. Quando
Elizabeth chegou na cidade nós formamos um trio. Eles por mim e
eu por eles — fez uma pausa.— Eu era padrinho de Amber.
Engoli o nó na garganta.
— Por que você não foi até mim...?— perguntei, meus olhos
se tornando molhados.
Bloom baixou a cabeça, com a expressão emotiva.
— Eu não conseguia olhar para você... — respondeu ele.—
Você é idêntica à ela.
— Foda-se. Eu não quero mais escutar.
Dei as costas à ele, voltando meus olhos para a outra sala.
Comecei a sentir uma agonia no peito. Raiva. Rancor.
Aquela flor no cemitério, no túmulo da minha família, só pode
ter sido deixada por ele.
Pelo menos uma resposta eu tenho.
— O jeito, a aparência, a personalidade... tudo — Bloom
continuou.— E ela era genial como você é.
— Eu não quero saber de mais nada, Bloom — murmurei.
Escutei ele soltar a respiração.
— Eu sei que você deve estar com raiva de mim... — voltou
a falar.— E eu não tiro sua razão. Mas você não acha muita
coincidência ter voltado para cá depois de tantos anos? É uma
segunda chance, Sadie.
— Não — praguejei.— Eu já passei minha vida inteira
sozinha, Bloom. Não será agora que vou precisar de você.
O silêncio nos encobriu.
O xerife soltou um suspiro pesado, e escutei o barulho da
porta sendo aberta.
— Só mais uma coisa... — disse ele.— Eu tenho certeza que
a única pessoa capaz de fazer aquele moleque falar é você, Sadie.
Bloom passou pela porta e a fechou.
Soltei o ar que nem sabia que segurava.
Como teria sido minha vida se Bloom tivesse me adotado?
Com certeza seria bem melhor do que foi.
Voltei meus olhos para as pessoas na outra sala. Eu era
terminantemente proibida de entrar ali. Eu deveria fazer o que
legistas fazem, abrir cadáveres e contribuir com meu conhecimento
para a investigação. Não ter contado direto com suspeitos, afinal,
este é o trabalho de Devan, mas a essa altura do campeonato, eu já
não me importava com o que aconteceria e com futuras
consequências.
Caminhei até a porta que dava acesso à sala de
interrogatório e a abri. Os olhos dos dois rapidamente se voltaram
para mim.
— Que merda você tá fazendo aqui?— Devan perguntou.
— Cala a boca, Devan — rebati, enquanto fechava a porta.
Ele não ousou me contestar.
Caminhei até a cadeira em frente ao garoto e me sentei nela,
apenas a mesa nos separando. Encostei as costas e cruzei as
pernas.
Deixei meus olhos nele.
O garoto tinha cabelos avermelhados e sardas por todos os
lados de seu rosto. Ele era magrelo, mas eu sabia que aquilo era
falta de alimentação, e não apenas o seu biotipo. Seus olhos
dourados me encararam com receio.
— Você também é detetive?— ele perguntou, com a voz
baixa.
— Não.
Silêncio mais uma vez.
O garoto franziu as sobrancelhas.
— Então... quem é você?
Ele não perguntava de uma maneira rude, e sim, confusa.
— Sadie Foster. Sou médica.
Os olhos dele brilharam.
— Médica? — repetiu — Eu sempre quis ser médico.
Eu inclinei levemente minha cabeça para o lado e
desencostei minhas costas da cadeira, apoiando minhas mãos na
mesa.
— Então por que não está na faculdade?
O garoto soltou um suspiro pesado.
— É complicado.
Eu assenti.
Me virei para Caldwell, que estava de braços cruzados no
canto da sala enquanto tentava disfarçar a dúvida nos olhos, já que
provavelmente não entendia nada do que estava acontecendo ali.
Estiquei minha mão para ele.
— A chave — murmurei.
Ele franziu as sobrancelhas douradas.
— Nem fodendo.
— Não foi um pedido, Caldwell.
Ele bufou e, a contragosto, me entregou as chaves.
Me virei mais uma vez para o garoto e levei uma das chaves
até as algemas presas em seus pulsos.
Tirei.
— Melhor?— perguntei, jogando a chave novamente para
Devan.
O garoto sorriu pela primeira vez.
— Aham — murmurou.
— Então, quem é você?— repeti sua pergunta.
— Você já sabe quem eu sou.
— Sei. Mas eu quero que me diga.
Ele suspirou.
— Sou Owen Lancaster. Tenho dezenove anos e vim da
cidade vizinha para cá.
— E por que você veio da cidade vizinha para cá, Owen?—
questionei.
Ele abaixou a cabeça, enquanto massageava seus pulsos
roxos pela algema.
— Eu fugi de lá com minha irmã.
Escondi meu sorriso vitorioso. Eu queria encarar Devan e
jogar na cara dele que, em menos de cinco minutos, consegui fazer
o garoto falar mais do que em dois dias de interrogatório.
— Bom, então somos parecidos...— declarei.— Eu também
fugi daqui.
Ele juntou as sobrancelhas.
— Por quê?
— Eu conto se você contar.
Ele respirou fundo e encarou Devan, incerto.
— Não se preocupe. A boca dele é um túmulo.
Owen afirmou com a cabeça, como se estivesse convencido
do que eu disse.
— O meu padrasto, ele... — respirou fundo, tomando
coragem.— Ele ficou descontrolado. Eu já sabia que ele não era
gente boa, mas aí ele bebeu e... bateu muito em mim. Eu consegui
levantar e chegar na minha irmã antes que ele chegasse. Ela só tem
dez anos.
Engoli a sensação ruim em meu peito.
Eu também tinha só dez anos.
— E onde vocês estão agora?
Ele arrumou a postura, ficando tenso.
— Na fazenda Jackson.
Meu coração parou. Senti todo o sangue de meu rosto
evaporar, e minha visão ficar dupla.
Não desmaie de novo, Sadie.
De novo não.
— Tá tudo bem?— Owen perguntou.
Eu não consegui responder.
Minhas mãos começaram a tremer.
E, antes que eu explodisse em mais um ataque de
ansiedade, senti uma mão grande e áspera tocar a minha sobre a
mesa.
Olhei para Devan, que me observava atentamente, antes de
focar seus olhos no garoto.
— Jackson é vice-prefeito, não é?— perguntou.
O garoto assentiu.
— Foi ele que te mandou esfaquear Blake Anderson?—
questionou mais uma vez.
Owen começou a tremer tanto quanto eu.
— Ele disse que nos colocaria na rua se eu não fizesse
isso... — revelou, deixando lágrimas escaparem de seus olhos — E
eu não posso deixar Natalie sem comer e sem mim. Por favor, não
me deixa ficar preso por mais tempo, doutora. Ela precisa de mim.
Por favor...
Aquilo foi o suficiente para me fazer sair do transe e voltar
meus olhos novamente para ele.
— Obrigada por ter confiado em mim... — murmurei — Vou
fazer o possível para você e sua irmã ficarem bem, ok?
Ele fungou o nariz e passou as costas das mãos nos olhos,
os secando.
— Obrigado...— olhou para mim — muito obrigado.
Eu sorri fraco e assenti.
Um policial entrou na sala e levou Owen para fora.
Devan se apoiou na mesa, ainda segurando minha mão e
encarando meus olhos com cuidado.
— Está tudo bem?— ele perguntou.
Assenti.
Os dedos de Devan brincaram com os meus.
— Ok. Vou conseguir o mandato. Você não precisa ir, se não
quiser.
Primeiro eu fiquei confusa com as palavras e com o tom que
elas foram ditas. Devan ainda segurava minha mão e seus olhos
estavam me deixando completamente perdida. Por outro lado, eu
gostei, porque, no mínimo, eu esperava perguntas sobre o que o
nome Jackson me remeteu, naquele momento.
E foi totalmente diferente do que eu esperava.
Talvez ele estivesse agradecido por alguém finalmente ter
conseguido falar com o garoto, e me deu essa colher de chá, sem
questionar muito.
— Não. Eu vou. Tudo bem.
Engoli em seco e afastei minha mão da sua, limpando a
garganta e me levantando. Mas quando eu passei pela porta da sala
do interrogatório, eu ainda sentia seu olhar.
Fogo. Quando eu era pequena e escutava as garotas
falarem sobre as cores do arco-íris, e sobre o quanto elas eram
bonitas, ou, talvez, sobre as cores das flores no jardim e dos
vestidos elegantes de Charlotte, eu discordava. Não em voz alta, é
claro. Se eu ousasse deixar que minha voz saísse, elas me olhariam
de canto de olho e me ignorariam. Então eu guardava meus
pensamentos para mim, e afirmava mentalmente o quanto aquelas
garotas estavam erradas. O fogo era muito melhor que o arco-íris,
que as flores, que os vestidos. Ele dançava suavemente para lá e
para cá, como se não estivesse devastando tudo. Ou melhor: como
se amasse estar devastando tudo.
Então, se algum dia tivessem curiosidade o suficiente para
me perguntar qual era minha cor favorita, eu diria laranja. Mas não o
laranja do arco-íris. O laranja do fogo.
— Faça um pedido, querida — Abigail sussurrou.
Eu voltei meus olhos para a senhora doce. Seus cabelos
brancos como neve recebiam destaque, já que eram brilhantes e
estavam soltos. A pele enrugada fazia a mulher parecer cansada,
mas seu sorriso largo deixava claro que ela só se deitaria quando eu
assoprasse a vela no topo do cupcake.
Eu suspirei e, tomando fôlego, soprei a vela. O fogo se
apagou e o breu voltou a dominar.
Abigail era uma senhora de oitenta e poucos anos, mas que
ganhava de dez a zero de pessoas da minha idade. Ela foi
contratada por Charlotte para ocupar a vaga de cozinheira do
orfanato, quando a outra resolveu que seria melhor mudar de
cidade. Abigail estava aqui há três anos, e desde que entrou, me
acolheu como uma neta. Ela provavelmente percebeu que todos os
outros órfãos eram ligados, e eu era a única totalmente ignorada.
Desde então, a boa senhora praticamente me obriga a
comemorar meu aniversário.
Todos os anos.
— O primeiro pedaço é seu, vó — eu disse.
Observei a silhueta dela se aproximar de mim e se sentar na
cama, à minha frente, enquanto eu apoiava minhas costas na
parede, sentada sobre o tapete felpudo cor de sorvete de creme.
— O primeiro pedaço é seu, filha...— ela rebateu.— Tenho
diabetes.
Sorri.
Tirei a vela do topo do cupcake e mordi o primeiro pedaço,
apreciando o sabor do chocolate e do morango que, juntos,
formavam minha combinação favorita.
A madrugada foi a única solução que Abigail encontrou para
comemorar meu aniversário. Ficar escondida no quarto dela até que
todos dormissem foi a solução que eu encontrei. Lauren, Lily e
Louise não reparavam em mim, então não perceberam que saí do
quarto de fininho. Pelo menos não notaram nos três anos que fiz
isso. Ou então, apenas não ligaram.
— Ano que vem você fará dezoito anos... — Abigail afirmou.
— Não quero pensar nisso agora, vó — disse, com a boca
cheia de doce.
— Você não pode parar para pensar nas coisas quando elas
acontecem, Sadie...— repreendeu, e em seguida sussurrou.—
Charlotte não vai hesitar em te colocar para fora do orfanato.
Eu sabia muito bem disso. A partir do momento que eu
completasse a maior idade, ela me expulsaria a vassouradas como
se expulsa ratos do porão.
— Sei disso, vó. E não tem problema. Sei me virar.
— Não, Sadie. Você não sabe. Você não tem ideia de como
é o mundo lá fora...— relatou — Escute, eu não posso sair daqui e ir
morar com você. Eu não posso perder esse emprego.
— E eu nem quero que você faça isso, Abigail...
— Me deixe terminar — interrompeu — Quando acontecer,
eu quero que você vá até a floresta, perto da cachoeira. Você vai
encontrar algumas pedras amontoadas. Tire todas elas e cave a
terra. Tem uma bolsa de dinheiro lá.
— O quê?! Não! Nem pensar! Esse dinheiro é seu, vó.
— Esse dinheiro nunca foi meu, querida. Eu juntei para
você... — sua mão tocou meu rosto carinhosamente — Lá tem o
suficiente para você comprar passagens para Detroit. É uma boa
cidade. Tem uma kitnet que era da minha filha, mas ela se casou e
se mudou. Está lá, parado. Procure por ela. O nome dela é Margot,
e ela é uma ótima pessoa. Vai alugar para você. Arrume um
emprego e faça faculdade. Sinto que seu futuro será brilhante,
querida.
Eu sorri, apesar de ter um incômodo no peito.
— Não quero deixar a senhora...
— Você não vai me deixar, querida. Irei te ligar todos os dias
para saber se você está comendo direito.
Eu ri.
Depois de comer todo o cupcake, eu dei boa noite para
Abigail e saí de seu quarto, caminhando sorrateiramente pelo
casarão. Com sorte, Lily, Lauren e Louise já estariam dormindo e
não me veriam entrar no quarto.
Passei pela cozinha. Passei pela sala de jantar. Passei pela
sala. Alcancei o corredor que dava acesso às escadas.
Parei ao ver a luz do escritório de Charlotte acesa.
— Tem certeza que quer isso?— Charlotte perguntou.
Eu me escondi para ouvir a conversa, porque minha
curiosidade era tão grande quanto a maldade dela.
— Tenho.
Eu senti meu corpo travar, porque reconheci essa voz.
Nojo.
Tudo o que eu sentia com aquela voz era nojo.
Era baixa, forte.
Me fazia ficar em choque. Sem conseguir me mexer. Sem
conseguir respirar.
Aquela voz era de Connor Jackson.
— Você já tem um herdeiro. Por quê quer adotar Sadie
também?
O quê?
Não.
Não.
— Eu não quero fazer dela minha herdeira, Charlotte... —
falou ele, causando um arrepio em minha espinha.— Quero deixá-la
presa em minha cama. Você sabe, não é? Já fiz isso com você, e
você adorou.
Senti vontade de morrer.
— Ok... se insiste tanto. Vou dar entrada na papelada antes
que ela complete dezoito.
— Ótimo.
Eu saí dali e corri para o banheiro, jogando todo o cupcake
que havia acabado de comer para fora.
Abri os olhos e enxerguei o teto branco.
Eu já não sentia mais nada.
Todo o enjoo que senti naquele pesadelo passou. Eu só
estava em choque. A respiração era apenas um reflexo. Os olhos
piscando também.
Mas quando escutei um barulho no andar de baixo, meu
corpo automaticamente se sentou na cama e entrou em estado de
alerta. Olhei para Robin, que dormia tranquilamente em um sono
pesado.
Outro barulho.
Algo se quebrou.
Rapidamente, levei minha mão até a mesinha de cabeceira e
abri a gaveta devagar. De lá, retirei uma Glock 21. Eu não gostava
de segurar armas, mas dadas as circunstâncias, eu não me daria ao
luxo de apenas esperar que não seja o assassino e me esconder
debaixo dos cobertores.
Eu precisava agir.
Segurando a arma com as duas mãos, caminhei pelo quarto
escuro até a porta, passando por ela e fechando-a em seguida.
Andei pelo corredor estreito, até chegar nas escadas e descer
degrau por degrau, devagar, quase como uma cobra se preparando
para atacar. Eu não conseguia enxergar direito as coisas na sala,
mas sabia que os barulhos vinham da cozinha.
Com o coração na mão junto à arma apontada para frente,
eu caminhei até a cozinha sem fazer nenhum barulho, além, é claro,
da minha respiração desregulada. E, quando alcancei meu destino e
acendi a luz, tudo o que fiz foi ficar surpresa.
— Devan?
Ele tirou os olhos da garrafa de uísque e me encarou.
Caldwell estava sentado em um dos bancos do balcão, os
dedos fechados em volta do gargalo. Apesar de estar longe, eu
sabia que suas pupilas estavam dilatadas.
Bêbado.
Completamente bêbado.
Seus lábios finos rapidamente se ergueram para cima.
— Uau... — murmurou ele — Você fica sexy com uma arma,
doutora... imagina com meu distintivo?
As palavras saíram arrastadas, enquanto ele abria um
sorriso bêbado.
— Por quê está bêbado?
— Porque eu bebi — deu de ombros.— Não façççça
perguntas idiotas, Sssadie.
Eu respirei fundo, enfiando a arma dentro do elástico da
calça, na cintura, e caminhando em direção à ele. Havia um copo
quebrado no chão e alguns pingos de sangue.
— Você se cortou — eu disse, notando o corte em sua mão.
— Esse copo é um idiota, doutora... — ele murmurou, e
depois riu.— Copo idiota.
Devan tentou levar a garrafa mais uma vez até a boca, mas
eu o impedi.
— Já chega, Caldwell. Você precisa de um banho gelado.
Segurei seu braço e o coloquei sobre meus ombros,
fazendo-o se levantar do banco.
Quase caí com seu peso.
— Desde que você entre comigo... — murmurou.
Deus.
Devan bêbado é infinitamente mais irritante do que Devan
sóbrio.
Fizemos o caminho até seu quarto cambaleando, ele,
dizendo palavras desconexas que eu nunca entendia. Ao pararmos
em frente à sua porta, Devan enfiou sua mão no bolso e, de lá, tirou
uma chave. Eu queria perguntar por qual motivo ele deixava seu
quarto trancado, mas Devan estava tão alterado que provavelmente
não saberia me dizer.
E quando liguei a luz, percebi o caos que habitava aquele
lugar. Papéis espalhados, roupas espalhadas, duas armas jogadas
no chão e cadernos. Caminhei com ele até a segunda porta,
entrando no banheiro.
— Consegue ficar de pé?— perguntei.
Devan se apoiou na pia e sorriu torto.
— Consigo, porque quero olhar para você — proferiu
maliciosamente, e voltou a rir.— Ah, nossa! Eu tô muito bêbado.
Deixei uma risada curta escapar.
— É. Você está.
Alcancei o chuveiro e liguei no gelado. Quando voltei a
encarar Devan, ele tinha os olhos presos descaradamente em
minha bunda.
Naquele instante me arrependi das aulas de yoga que fiz há
anos atrás. Foi perda de tempo. Minha paciência continuava curta.
Caminhei novamente até ele e levei minhas mãos até sua
camisa social, começando a desabotoar seus botões. O peito de
Devan começou a ficar exposto, até chegar em seu último botão e a
camisa ficar totalmente aberta.
Não olhe, Sadie.
Não faça isso, sua pervertida.
Se afaste.
Corra pela porta, e nunca mais volte.
Devan pareceu ter escutado meus pensamentos, já que fez
tudo o que precisava fazer para me impedir. Ele segurou minha mão
e, lentamente, a levou até seu peito. Meus dedos tocaram sua pele,
enquanto Caldwell os deslizava até seu abdômen trincado.
O que eu estava fazendo?
Antes que eu pudesse, mais uma vez, implorar para que
meus calcanhares me levassem para longe, estagnei meus dedos.
Uma superfície áspera estava sob eles, com um pouco de
relevo.
Eu não precisava olhar para saber o que aquilo era. Mas
mesmo assim, desci os olhos até lá.
Uma cicatriz gigantesca enfeitava a pele de Devan. Ela
atingia o final de seu peito direito, chegando até sua costela
flutuante.
Algo realmente grande entrou ali.
— Deus... o que aconteceu, Devan? — perguntei.
Eu não sei se foi a bebida ou algo que ele lembrou, mas os
olhos avelã de Devan se encheram de lágrimas e ele me abraçou.
Do nada.
Foi tão súbito que eu mal pude perceber quando seus braços
fortes rodearam meu corpo, e sua cabeça se enterrou em meu
pescoço.
Eu arregalei os olhos.
— Eu sou um merda... — murmurou, com a voz embargada.
— Eu sou um alcoólatra, Sadie. Eu tive uma recaída e elas
morreram...
Juntei as sobrancelhas e me afastei dele. Devan tirou seus
braços de mim e levou suas mãos para sua cabeça, batendo nela.
— Ei. Para com isso, Devan... — segurei seu rosto e fiz seus
olhos se voltarem para mim — Do que você está falando?
— Elas... elas...— negou com a cabeça — Olha.
Devan enfiou a mão no bolso e tirou uma carteira. Abriu, e
pescou algo dentro dela.
Era uma foto.
Uma mulher loira e uma garotinha de, talvez, cinco anos.
— Essa aqui... — apontou para a mulher — o nome dela era
Lori. E essa garotinha aqui... — ele sorriu em meio às lágrimas —
era a Paige. Eu matei as duas, Sadie. Eu matei minha irmã e minha
sobrinha... eu...
— Ssshhh, ei...— continuei segurando seu rosto.— Você
está bêbado, Devan.
— Mas é verdade. Eu bebi demais e bati o carro... — voltou
a dizer.— Você viu. Você sentiu — pegou novamente minha mão e a
levou até sua cicatriz — Essa merda ficou marcada em mim, só para
me lembrar todos os dias que eu matei minha família.
— Foi um acidente, Devan.
— Se eu não tivesse bebido tanto... elas...
— Ei, Devan. Olha para mim — pedi, fazendo seu rosto se
virar em minha direção. Seus olhos focaram nos meus — Você está
doente. Eu vou ajudar você, ok? Você não vai mais beber.
Ele assentiu várias vezes.
— Eu não vou mais beber — afirmou.
Depois de fazê-lo tomar um banho e cobrir o corte em sua
mão com um curativo, ele deitou em sua cama resmungando algo
como: "obrigado, Sadie". E quando tudo estava calmo, eu encontrei
a foto de Lori e Paige no chão. A alcancei com os dedos e depositei
no criado mudo, apoiando em frente ao um abajur, perto o suficiente
de Devan.
— Sadie?— ele chamou, quando estava quase na porta.
Caldwell ainda tinha os olhos fechados, mas esperava minha
resposta.
— Sim?— falei.
Ele suspirou.
— Qual é sua cor favorita?— perguntou baixo.
Eu também suspirei.
— Laranja.
Ainda de olhos fechados, Devan perguntou mais uma vez:
— Laranja arco-íris ou laranja fogo?
Sorri.
— Laranja fogo.
Eu nunca gostei de dias nublados. Eles sempre me
deixavam triste, como se a garoa fina fosse um choro que o céu
segurou por tempo demais e que, agora, finalmente havia soltado.
Nestes dias eu quase conseguia enxergar as nuvens recheadas de
água formando uma carinha triste.
O dia amanheceu daquele jeito em Coolley.
Pela primeira vez desde que chegamos, Coolley estava
nublada e melancólica. As árvores verdes já não pareciam tão
verdes assim. As pessoas já não pareciam tão contentes assim,
mas, diferente do resto da cidade, a mansão estava em festa.
Eu dei alta para o prefeito.
Maddie Anderson preparou um grande café da manhã para
recebê-lo, enquanto Chase ia buscá-lo no hospital. A equipe toda
estava presente. Katherine, como sempre, ao lado de Thomas e
com um sorriso falso no rosto. Ele, por outro lado, estava
genuinamente feliz. Blaine e Robin também estavam lado a lado, e
algumas vezes murmuravam coisas um no ouvido do outro. Era
quase como se eles fossem cúmplices.
Lea — que não era mais Anderson — também estava ali.
Fiquei surpresa com o fato de Maddie tê-la convidado, já que ela era
ex-esposa do seu marido. Ela usava um vestido social preto, liso e
sem graça, que descia elegantemente até seus joelhos. Seus
cabelos bem tingidos estavam presos em um coque rígido, e seus
olhos me fuzilavam desde o momento que ela chegara.
Lea ainda me odiava. Uma metade pelo que aconteceu com
Chase e, a outra metade, só porque não foi com minha cara.
Haviam outras pessoas que eu não conhecia. Talvez
membros importantes da cidade, aliados políticos de Blake. Eles
conversavam baixo entre si, como homens de negócios.
E eu estava sentada em frente à Devan.
A sua ressaca poderia ser percebida claramente, acho que
até mesmo se estivesse a metros de distância eu a notaria. Suas
roupas estavam amassadas, seus lábios em uma linha reta. Seus
olhos apagados e com olheiras profundas demonstravam que ele foi
dormir tarde, e suas sobrancelhas franzidas afirmavam piamente
que ele sentia muita, muita dor de cabeça.
Era de se esperar.
Seu fígado está literalmente roubando toda a água de seu
encéfalo para conseguir eliminar todo o álcool de seu organismo. E,
dadas as quantidades que o vi ingerir ontem, será um processo
lento.
Eu também tinha olheiras em meus olhos, porque não
consegui dormir depois do que houve. Devan me contou todos os
seus demônios, sem pestanejar. Tudo bem, ele estava bem
alterado, mas acho que ele não contaria para uma pessoa que não
confia.
Devan confia em mim?
Não sei o que pensar.
Estou tentando fazer contato visual até agora, desde que ele
entrou na sala de jantar, mas em nenhum minuto ele dirigiu seu
olhar a mim.
Não sei o que pensar.
Antes que eu pudesse, mais uma vez, tentar enxergar os
olhos dele, Blake Anderson entrou em nosso campo de visão. Ele
estava mais magro e andava com dificuldade, com a ajuda de
Chase. E quando todos se levantaram e bateram palmas, Blake
sorriu.
— Obrigado... obrigado...— Anderson disse — obrigado por
virem. Eu nasci de novo, não é verdade?
Todos soltaram risos.
Chase o ajudou a caminhar até a ponta da mesa e o fez se
sentar. Depois, caminhou até mim, abriu um sorriso fraco e sentou-
se ao meu lado.
— Eu disse que ele ficaria bem... — sussurrei para ele.
Ele assentiu.
— Obrigado.
Foi tudo o que ele disse.
Aquele agradecimento não foi tão simples quanto pareceu.
Em apenas uma palavra, Chase colocou para fora todo o sentimento
de alívio que seus pulmões carregavam. E com aquela palavra,
solta com tanta facilidade, Chase eliminou todo o peso que
carregava em seus ombros, como aqueles barquinhos de papel que
montamos somente para as águas de um rio o levarem embora,
junto com a correnteza.
O café da manhã foi servido. Haviam bolos de todos os tipos,
sucos, chás, cafés e croissant's. As pessoas, civilizadas como
sempre, conversavam baixo entre si sobre política e os gastos
desnecessários que a cidade enfrentava.
Coisas chatas e patéticas.
Senti a mão de Chase tocando a minha por baixo da mesa, e
seus dedos se entrelaçando com os meus. Virei meu rosto em sua
direção. Os olhos verdes dele capturaram os meus.
— Quer sair comigo? Hoje?
Inclinei levemente a cabeça.
— Pra onde?
Ele comprimiu os lábios, olhando para baixo.
— Eu não pensei nisso ainda.
Soltei um riso sincero.
— Você tem tempo o bastante para pensar nisso até a lua
chegar.
Ele assentiu e aproximou seu rosto do meu, beijando minha
bochecha.
Voltei minha atenção para o bolo que comia, mas ela
rapidamente seguiu outra direção. Devan encarava Chase como se
ele fosse um alvo. E, se ele estivesse apontando uma arma,
certamente não hesitaria em puxar o gatilho.
Raiva.
Meu sangue correu rápido por culpa da raiva.
Puxei meu celular do bolso e procurei pelo número de
Caldwell.
Sadie: para com isso!
Caldwell parou de fuzilar Chase por alguns segundos e
abaixou a cabeça, provavelmente encarando a tela do seu celular.
Percebi quando o canto de seus lábios subiram lentamente.
Caldwell: me faça parar, Foster.
Eu li e reli aquela mensagem por, pelo menos, três vezes.
Eu não sabia se ficava indignada ou atraída. Merda.
Sadie: Chase nunca fez nada para você. Pare de tentar
intimidá-lo. Você não vai conseguir.
Enviei.
Aquela conversa havia acabado para mim.
Por isso, quando meu celular vibrou mais uma vez sobre
minhas coxas, decidi que ignoraria.
Inútil.
É claro que minha mente, curiosa como sempre, daria um
jeito de ordenar que minha mão e meus olhos seguissem mais uma
vez a direção do aparelho.
Caldwell: ele fez muita coisa, Foster. Só você não vê.
Juntei as sobrancelhas, confusa, enquanto pela primeira vez
desde o início da conversa levava meus olhos à ele.
Os olhos avelã dele estavam pregados em mim. Ele não
tinha expressão. Era completamente neutra, sem emoção alguma.
E, bom, se existia qualquer coisa ali, Devan conseguia esconder
muito bem.
Minha atenção foi desviada quando o prefeito bateu sua
colher contra o copo de suco de laranja e, com a ajuda de Maddie,
se levantou.
— Eu quero fazer um anúncio...— disse ele.— Em
comemoração à minha boa recuperação, eu e Maddie
organizaremos uma festa à gala neste domingo. Todos estão
convidados.
As pessoas bateram palmas baixo, quase como se
estivessem cansados demais para fazer força e completar o ato.
Depois que todos voltaram a comer, observei Devan se levantar da
cadeira e, discretamente, sair da sala de jantar. Inventei qualquer
desculpa para Chase e também me levantei, caminhando na direção
por onde ele passou. Passei meus olhos pela sala, mas não o
encontrei. Segui em direção às escadas e subi degrau por degrau,
eliminando a ansiedade de ficar cara a cara com Devan. Eu queria
esclarecer as coisas entre nós. Queria olhar em seu rosto e dizer
que todos têm chance e, no que dependesse de mim, ele teria todas
elas.
Ao alcançar o topo da escada, meus olhos logo foram
puxados em direção à figura alta de Devan, que estava com as
mãos apoiadas na parede e a cabeça para baixo. Tirei a cartela de
aspirinas do bolso de minha jaqueta e caminhei até ele.
Ele não me encarou.
Não se mexeu.
Mas eu sabia que ele sentia minha presença ali.
— Toma... é aspirina. Vai ajudar na dor de cabeça —
murmurei.
Lentamente, o rosto de Caldwell se virou para mim e seus
olhos amendoados me mediram de cima a baixo.
Senti vontade de recuar.
— Eu não preciso da sua ajuda, Foster.
As palavras que saíram de sua boca me fizeram fraquejar e
juntar as sobrancelhas.
— Você está com dor de cabeça, Devan. Precisa tomar essa
aspirina e muita água.
— Eu já disse. que não preciso. de você — falou
pausadamente, com a voz baixa.
Eu bufei.
— Não consigo te entender, Caldwell...— murmurei,
guardando a aspirina novamente.— Ontem você...
— Esqueça ontem, Foster — interrompeu.— Se você contar
para alguém tudo o que eu te disse, eu...
— Você o quê, Caldwell?— enfrentei, cansada dele.
Estupidamente cansada dele.— Vai me ameaçar mais uma vez?—
questionei, minha voz alcançando um tom gélido.— Você só enche
sua lista de ameaças contra mim, Devan, mas nunca cumpre.
O loiro se desapoiou da parede e virou-se totalmente em
minha direção.
— Você não sabe do que eu sou capaz, Foster.
Ao invés de recuar ou apenas ignorar, eu caminhei a passos
curtos em sua direção e parei a centímetros do seu rosto.
— Tem razão, eu não sei. Mas pago para ver e espero
sentada — cruzei os braços.— Como vai ser, Caldwell? Vai latir para
sempre e não morder?
O silêncio pairou entre nós. Nossos olhos estavam
conectados, grudados, e eu não tinha força o suficiente para
desviar. Não queria desviar.
E, de repente, não era raiva que me queimava.
Era atração.
Devan não disse absolutamente nada, e aquilo durou
segundos intermináveis. Logo depois, o canto de seus lábios
subiram.
Ele estava sorrindo.
Percebi quando seu braço se levantou e sua mão alcançou
minha cintura. Engoli em seco, aguardando o toque. Mas ele não
veio. Devan não encostou em mim. Tudo o que ele fez foi enfiar os
dedos indicador e médio no bolso de minha jaqueta, e puxar a
aspirina de dentro com a ponta deles.
— Obrigado pela aspirina, Sadie...— murmurou baixo.
Dei as costas e me afastei dele o mais rápido que consegui.
As mãos de Chase seguravam as minhas delicadamente,
enquanto ele me guiava para algum lugar que eu não fazia ideia de
qual era. Meus olhos estavam cobertos por uma venda, e eu dava
passos cautelosos e receosos.
— Confie em mim, pequena. Não vou deixar você cair — ele
afirmou.
Sorri.
— Você está muito misterioso... — murmurei — Quando eu
disse para você pensar em algo, não imaginei que seria criativo ao
ponto de me vendar.
— Que absurdo!— Chase exclamou, fingindo-se de ofendido
— Eu sou o cúmulo da criatividade, Sadie. Retire o que disse.
Eu ri mais ainda.
Depois de mais alguns passos, Chase parou no lugar. Senti
suas mãos soltarem as minhas e percorrerem lentamente meus
braços.
Eu me arrepiei.
Quando seus dedos chegaram em meu rosto, Chase
contornou meus traços até estarem na venda. E, quando isso
aconteceu, meus olhos finalmente foram libertos.
O jardim da mansão.
Havia uma toalha de piquenique no chão, mesmo sendo
noite. Tinha vinho e uma cesta com provavelmente algumas
comidas.
— Bom, Coolley não tem muitas opções de lugares legais
para encontros, e eu também sei que você ainda não está muito à
vontade com a cidade. Achei que fosse melhor ficarmos por aqui
mesmo e...
Eu o calei juntando meus lábios aos dele.
— Está perfeito, Chase — sussurrei enquanto me afastava.
Ele sorriu.
Tomamos vinho e comemos salgadinhos. Eu ri quando
Chase abriu a cesta, porque ele sabia exatamente do que eu
gostava. Depois, nos deitamos sobre a toalha e observamos as
estrelas.
— O que faremos quando tudo isso acabar? — ele
questionou depois de um período em silêncio.
Suspirei.
— Eu não sei... — murmurei de volta.
— Você é de Detroit e eu de Connecticut... — informou ele —
São dez horas de distância, Sadie.
Sabia que seu rosto estava virado para o meu.
Tirei meus olhos das estrelas e me voltei para ele, deixando
meu corpo de lado. Os olhos verdes de Chase estavam mais
escuros por causa da noite, e sua expressão em uma mistura de
preocupação e medo.
Eu conhecia aquela preocupação, porque provavelmente
tinha ela em meu rosto agora.
— Dez horas longe de você — falou mais uma vez.
— Às vezes relacionamentos à distância dão certo.
Chase fitou meus olhos por mais alguns segundos, antes de
sorrir.
— Está dizendo que temos um relacionamento? —
questionou, semicerrando os olhos — Está me pedindo em namoro,
pequena?
Eu senti minhas bochechas queimarem.
Não me lembrava a última vez que fiquei corada.
— Ok. É uma proposta tentadora. Vou analisar... — disse,
fazendo graça e voltando seus olhos para as estrelas. Eu ri.— Se a
gente namorar, você vai abastecer minha fome por chocolate?
— Sim — respondi, sorrindo.
— Eu também... — retrucou — Se a gente namorar, vai fazer
massagem em minhas costas?
— Sim.
— Eu também. Se a gente namorar... — fez uma expressão
pensativa, e depois me encarou — Promete que vai ser minha para
sempre?
Não respondi de primeira, como das outras vezes.
Eu queria deixar meu lado feminista assumir o controle.
Queria dizer que não era um objeto, e que eu era somente minha,
mas acho que meu lado sentimental resolveu não só falar mais alto,
mas gritar, para que todos possam ouvir.
Acho que fiquei tanto tempo sozinha — apenas eu por mim e
ponto final —, que ouvir Chase falar aquilo fortaleceu meu lado
carente.
Percebendo que eu não diria nada sobre aquilo, Chase se
virou para mim e, lentamente, pairou seu corpo sobre o meu. Com
seu rosto a centímetros de distância, beijou meus lábios por alguns
segundos, antes de se afastar novamente e olhar em meus olhos.
— Eu sou seu há muito tempo, Sadie... — juntou nossas
testas — Seja minha também.
As palavras saíram sussurradas.
E eu não era capaz de ignorar aquilo.
— Para sempre sua.
O céu em Coolley era escuro. A maior parte dele era preto,
consequência das nuvens lotadas de pingos d'água, aguardando
ansiosamente por sua deixa para caírem até o chão. A outra metade
era em um azul marinho bem escuro, completamente sombrio, tão
sombrio quanto o preto. As estrelas, que há alguns minutos
brilhavam intensamente, se esconderam atrás das nuvens pesadas.
Elas estavam tímidas ou, talvez, temerosas. Uma garoa fina
começou a molhar a cidade. A lua, que era cheia, iluminava apenas
uma porção de toda aquela escuridão, como o círculo de luz que
uma lanterna produz quando é acesa. Dava a impressão de que ela
era controlada por alguém, o qual apontava seu brilho para onde
quisesse, para onde bem entendesse.
Naquele momento, a lua-lanterna não era apontada para ele.
Escondido atrás de uma árvore e com a penumbra à seu
favor, o homem observava como um tigre antes do ataque, se
preparando para lançar-se contra sua próxima refeição.
Ser um observador nato era a maior de suas qualidades, e
ele se gabava internamente dela. Sua mão áspera tocava o tronco
da árvore, apoiando o peso do seu corpo. A outra foi fechada
fortemente em punho, enquanto seus olhos acompanhavam o
movimento na fachada da casa. O capuz cobria todo o seu rosto,
apenas seus lábios finos eram aparentes. No entanto, ele enxergava
tudo o que estava ocupando espaço a metros de distância.
Ele enxergava Sadie Foster e Chase Anderson.
Eles riam e conversavam o tempo inteiro. Tomavam vinho e
se olhavam de uma forma diferente.
E ele sentia raiva.
Muita raiva.
Ele não deveria estar feliz.
Ela não deveria estar feliz.
Os dois não deveriam estar juntos.
As coisas não deveriam ter tomado esse caminho.
Mesmo assim tudo estava sob controle. Sempre esteve. O
homem era esperto o suficiente para pensar em uma saída para
aquilo. E ele pensou. E, quando isso aconteceu, seus lábios subiram
sutilmente em um sorriso macabro.
Continuando a observar, viu quando o casal no jardim se
deitou sobre a toalha de piquenique, e passou a observar as poucas
estrelas que restaram para enfeitar o céu escuro.
"Patéticos", pensou ele.
A garoa não era mais fina. Os pingos de chuva começaram a
engrossar e caíam com mais frequência e força. Chase ficou sobre
Sadie, quase como um escudo para os pingos gelados que
poderiam cair e machucar a sua pele.
— Patéticos.
Desta vez ele murmurou, e não apenas pensou. A voz em
um tom baixo e sem nenhuma emoção escondida entre as letras
pronunciadas.
Eles se beijaram mais algumas vezes, antes de se
levantarem, tirarem as coisas do chão e correrem de mãos dadas
até a porta, desviando da chuva. Alguns minutos se passaram
quando uma das luzes da casa foi acesa, no segundo andar. Aquele
era o quarto em que Sadie estava hospedada, e ele sabia daquilo
porque havia decorado cada canto daquele lugar. Ele diria de olhos
fechados onde cada um dos corredores levaria, daria a metragem
exata de todos os cantos, citaria todos os quadros pendurados nas
paredes com cores elegantes e o nome de seus artistas.
Ele seria como um guia turístico da mansão de Blake
Anderson.
A varanda estava aberta, então, o casal aparecera mais uma
vez no campo de visão dele. Eles ficaram espantados por alguns
segundos, e depois riram. Mais duas pessoas apareceram, ambas
sem roupas e escondendo os corpos com lençóis. E, como decorara
tudo que rodeava a médica, sabia que eram Blaine Donovan e
Robin Allen.
Eles disseram algo e, logo em seguida, Robin atirou uma
almofada em Chase e Sadie. Eles riram e saíram pela porta. Mais
alguns segundos e a luz do quarto de Chase Anderson é acesa, os
dois adentraram o ambiente. Começaram a se beijar
apaixonadamente, como se fossem um casal de amantes que há
muito tempo não se viam, e que estavam com peito cheio de
saudades. Ele percebeu quando as mãos de Chase passearam por
todo o corpo de Sadie, antes de levar seus dedos até a blusa dela e
puxar lentamente para cima.
Ela sorriu.
Sua atenção foi voltada para uma garota loira de vestido
brilhante, que atravessava a rua rapidamente para, provavelmente,
fugir da chuva. Lançando um último olhar para o quarto de Chase,
começou a dar passos na direção dela.
E o homem, que ainda permanecia com o sorriso sombrio
nos lábios e retirava o capuz de seu rosto para seguir a mulher,
desejou do fundo de seu peito que eles fossem profundamente
felizes, que se enfiassem em uma redoma de paz, amor e alegria.
Porque ele faria questão de arrancá-los bruscamente de lá.
Meu sorriso era leve, enquanto encarava a pulseira presa em
meu pulso e tocava os pingentes de estrela.
Tocar as estrelas.
Chase me fez tocar estrelas.
Tanto durante a madrugada, quanto agora, enquanto eu
brincava com os pingentes distraidamente.
Eu ainda podia sentir seus toques em minha pele. Ainda
podia sentir seus lábios se arrastando por meu corpo e chegando
em minha intimidade. Ainda podia sentir seus movimentos lentos e
sensuais que me levavam para cima e para baixo, como ondas do
mar. Ainda podia escutar seus lábios em minha orelha, sussurrando
que me amava, e pedindo para que eu repetisse a frase do
piquenique:
"Diga que será para sempre minha", pediu.
"Para sempre sua", sussurrei de volta.
E cada segundo, minuto, cada beijo e cada olhar ficariam
guardados em minha memória para sempre.
Voltei meus olhos para a janela do carro, encarando a
paisagem que começava a surgir. A estrada cortava a floresta que
rodeava Coolley. Era fechada, densa. As árvores tinham troncos
grossos e longos, as copas eram recheadas de folhas verdes. O
topo delas era padronizado, quase como se alguém cuidasse de
cada uma delas e cortasse os galhos rebeldes, todos os dias da
semana. Poucos raios de sol adentravam a mata, tornando-a escura
e sombria. Eu não era capaz de escutar sons de pássaros ou de
outros animais.
Era sem vida.
A morte aguardava lá dentro, à espreita, esperando o
momento exato para puxar alguma alma distraída.
E pensar que já estive ali me causava calafrios.
O desespero é um sentimento muito maior que o medo.
Pessoas desesperadas fazem coisas que pessoas com medo
jamais fariam.
E, naquela noite, eu estava completamente e inegavelmente
desesperada.
— Vocês acham que Jackson é o culpado?— Blaine
perguntou.
A menção deste nome não me fez ter nojo, como todas as
outras vezes. Não me fez ter raiva, não me fez ter receio, não me
fez ter medo.
Me fez ter alívio.
Alívio pelo que fiz.
— Acho que ele é só mais uma peça — Robin falou.
— Que tipo de peça?— Caldwell perguntou, enquanto dirigia.
Virei meu rosto para Robin, enquanto ela formava uma
expressão pensativa.
— Com certeza de um xadrez — respondeu ela.— Ele não
quer que as coisas simplesmente se encaixem. Ele quer ter
controle. Quer mover as peças para onde quiser. Quer fazer sua
tática para dar o xeque mate. Jackson é apenas um peão perto dele.
Eu sorri com a teoria de Robin.
— Olha só...— Blaine murmurou, olhando para ela através
do espelho.— Nossa garotinha está crescendo.
Ele piscou e ela sorriu.
Depois de um tempo a floresta acabou, dando lugar à uma
paisagem rural. Portões de ferro escuro com letras desenhadas
revelavam o nome importante dos Jackson. A fazenda era
provavelmente a parte mais rica de Coolley, até mesmo mais rica do
que a mansão do prefeito. Era a maior fonte de renda da cidade.
Produzia leite, derivados do leite, plantações de todos os tipos.
Thomas estacionou seu carro em frente ao portão, e
Caldwell parou o nosso logo atrás.
Senti frio na barriga.
E, por culpa dele, comecei a fazer de tudo para esquecer
quem estava lá dentro. Passei meus olhos por toda a fazenda,
decorando cada centímetro dela. Depois eu chequei os
compartimentos da porta e tirei a poeira da tela de DVD, na parte de
trás do banco da frente. Arrumei minha pulseira diversas vezes e
engoli em seco em todas elas.
Quando virei meu rosto para o outro lado, pronta para repetir
o ciclo, dei de cara com os olhos escuros de Robin, me fitando com
curiosidade. Ela parecia intrigada com meu jeito. E é claro que
estava, não houve um dia sequer o qual Robin não tentasse
desvendar o que eu estava sentindo, falhando miseravelmente em
todas elas.
Infelizmente, agora teve sucesso, porque eu não me
preocupei em usar minhas táticas de guerra para disfarçar o
nervosismo.
Robin abriu a boca para falar, mas nada disse.
Caldwell acelerou quando os portões se abriram, seguindo
Thomas para dentro da fazenda. Algumas pessoas estavam
espalhadas por toda a amplitude da fazenda. Alguns cuidavam das
plantações, outros levavam cavalos para celeiros e davam alimento
para os porcos. Assim que perceberam que dois carros estranhos
adentravam, seus rostos se viraram para nós, deixando de lado
seus afazeres e seguindo nosso percurso até pararmos em frente
ao casarão.
Foi um pouco bizarro.
Precisei de alguns segundos para tomar coragem, abrir a
porta e sair do carro.
As paredes da casa eram cobertas por um tom de amarelo
escuro, forte, que poderia ser visto a metros de distância. Os
telhados eram marrons, e o andar de cima era coberto por
varandas. Haviam vários quartos.
Sei disso porque já estive aqui.
Um calafrio percorreu minha pele.
Cruzei os braços como se estivesse com frio, enquanto
caminhava atrás de todos em direção às portas do casarão. Uma
mulher de cinquenta e poucos anos surgiu. Ela vestia um avental e
tinha as mãos juntas em frente ao corpo. Seus olhos eram claros, e
o sorriso em seu rosto era estupidamente falso. Nem uma criança
acreditaria. Os cabelos castanhos estavam trançados, presos de
lado, e as rugas nas laterais de seus olhos e na testa eram
aparentes.
— Bom dia, detetives. Em que posso ajudar?
Thomas retirou um papel do bolso, desdobrou, e elevou até
os olhos da mulher.
— Temos um mandato de busca e apreensão. Jackson está
aí?— perguntou.
A mulher comprimiu os lábios.
— Ele está um pouco longe, cuidando dos cavalos. Posso
chamá-lo, se os senhores preferirem.
Thomas apenas assentiu.
Merda.
Eu não deveria ter vindo.
Será que a equipe vai perceber se eu caminhar lentamente
para dentro do carro, e deitar em posição fetal no banco?
Talvez.
— Aqui tem muito verde e muito sol... — Robin comentou,
cruzando os braços — mas eu não gostei.
— Tudo me parece normal por aqui — Thomas retrucou—
Não podemos prender Jackson. Não temos provas.
— O quê?— disse, incrédula.— O garoto confessou.
— Quem garante que ele não está mentindo? — Thomas
questionou — Olha, Sadie, por mim eu prenderia Jackson agora
mesmo. Sei que ele está envolvido até o pescoço no ataque contra
o prefeito, mas é a lei. Eu não posso prendê-lo só porque o garoto
disse que ele é o culpado. Preciso de provas. Por isso vamos revirar
essa fazenda inteira.
Eu bufei.
— A lei é uma vadia.
— Com certeza — Blaine rebateu.— Me diz, qual é o
problema de passar no sinal vermelho se não tem ninguém na faixa
para pedestres ou no outro farol? A lei é uma vadia.
As últimas palavras foram cuspidas.
E por um momento, eu ri.
Não foi bem uma risada, como a de Katherine ou a de Robin,
mas eu ri.
E Devan viu.
Quando coloquei meus olhos nele, sua expressão era
indecifrável enquanto observava meu sorriso, que morreu aos
poucos. Seus olhos avelã se direcionaram aos meus, e
permaneceram por ali até uma voz soar:
— Detetives!
Todos se viraram na direção das portas do casarão.
E lá estava ele.
Tatum Jackson estava bem ali.
Foi um choque quando soubemos que Tatum havia sido
adotado por Connor Jackson, mesmo tendo 16 anos. Connor não
tinha família, filhos, não tinha nada além do seu império e do
orfanato, o qual ele também era o dono. Ou seja, quando ele
morresse, todo o seu dinheiro escorreria pelo ralo. Teria feito tudo
em vão.
Por isso, adotou Tatum.
E agora, o garoto que sempre infernizou minha vida estava
em minha frente. Os cabelos loiros estavam raspados, cortados em
um corte militar, rente à cabeça. Os lábios finos estavam curvados
para cima, em um sorriso tão falso quanto o da mulher que esteve
aqui há minutos atrás. A pele de seu peito estava exposta. Ele
estava sem camisa.
— Em que posso ser útil?— perguntou, descendo os três
degraus e colocando uma camisa.
Percebi quando Katherine murchou drasticamente quando
ele fez isso.
— Temos um mandato de busca e apreensão — Thomas
disse.
— Beleza... — ele disse, passando os olhos por nós.— Mi
casa es tu casa.
Seus olhos pararam nos meus. Um arrepio correu por minha
espinha quando ele percorreu meu corpo milimetricamente, sem
disfarçar.
Ele sabia quem eu era.
Ele me reconheceu.
Minha visão foi tampada quando um corpo alto se colocou à
minha frente.
— Vamos — Devan murmurou.
Engolindo em seco, segui a equipe.
Vasculhamos a casa inteira, à procura de qualquer pista que
incriminasse Tatum. Não achamos nada. Procuramos nos quartos,
nos banheiros, na cozinha, na sala, até mesmo no celeiro e na
casinha onde as galinhas ficavam.
Nada.
Tatum tinha um sorriso vitorioso quando voltamos ao
casarão. Uma garota loira com vestido brilhante praticamente se
pendurava em seu pescoço.
— Acharam algo, detetives?— perguntou.
Thomas suspirou.
— Obrigado por colaborar conosco, Jackson. Tenha uma boa
tarde.
— Espera — eu disse.
Todos se viraram para mim. E pela primeira vez em muito
tempo, eu encarava Tatum de igual para igual.
Caminhei até estar à sua frente.
— Cadê a garota?
Tatum inclinou levemente a cabeça para o lado e sorriu.
— Que garota, sardinha?— perguntou.
O asco aumentou.
— Sardinha? — Thomas proferiu — Vocês se conhecem?
— Natalie, Tatum — falei, ignorando Thomas — A irmã de
Owen. Ela vem com a gente.
Tatum me encarou por mais alguns minutos, antes de
chamar o nome de um de seus empregados. Logo depois, ele
apareceu com uma garotinha de cabelos ruivos e olhos tristes.
Robin prontamente andou até ela, se ajoelhando à sua frente.
— Oi, querida. Meu nome é Robin, e o seu?
— Natalie — murmurou.
— Que lindo nome, Natalie... — disse gentil.— Escuta, seu
irmão me pediu para cuidar de você enquanto...
— Enquanto está preso? — interrompeu.
O silêncio pesou.
Robin me olhou por alguns segundos, provavelmente se
perguntando o que fazer, mas não demorou a voltar sua atenção
novamente para a garota.
— Gosta de livros? — Robin perguntou.
Pela primeira vez, a garota sorriu e assentiu.
— Então... quanto tempo, Sadie — Tatum disse alto atrás de
mim.
Me virei para ele.
— Cala a boca, Tatum — falei com a voz baixa.
Ele sorriu mais ainda, se divertindo.
— De onde vocês se conhecem?— Katherine perguntou.
— Daqui mesmo — ele respondeu.
— Daqui?— Blaine questionou.
Droga.
— É. Vocês não sabem?— Tatum se fingiu de desentendido.
— Eu e a sardinha aqui somos velhos amigos. Moramos no orfanato
Coolley por muito tempo.
Sua revelação passeou no ar.
Nós não encontramos nada, mas não sairíamos de mãos
abanando.
Todos saberiam a verdade.
Com exceção de Devan, que já sabia, a equipe inteira ficou
surpresa. Eu não esperei que ninguém comentasse nada, e
caminhei a passos duros até a saída do casarão.
Não demorou para que eles me alcançassem.
— Sadie, espera!— Thomas chamou.
Me virei para eles.
Até mesmo a Robin parecia me julgar.
— É por isso que você não queria vir, não é? — Thomas
perguntou — Você deveria ter me dito, Sadie.
— E o que isso mudaria? — indaguei exasperada.
— Eu saberia que você se sentiria mal, e não insistiria para
vir.
Eu soltei uma risada sem humor.
— Conta outra, Thomas! — exclamei.— Você não
conseguiria metade das coisas que já descobrimos sem mim, e você
sabe que é verdade! — apontei — Você está cagando para o que eu
sinto ou deixo de sentir. Nunca se preocupou comigo, e nem nunca
vai se preocupar! Você só quer pegar logo esse desgraçado e
receber seu dinheiro. É para isso que você precisa de mim. Não aja
como se eu significasse algo além de cifrões para você. É patético!
Eu estava ofegante quando parei de falar. Blaine tinha os
lábios entreabertos, sem palavras. Katherine os olhos arregalados.
Eu via uma interrogação nos olhos de Robin e de Thomas. Devan
tinha uma expressão orgulhosa enquanto me encarava.
E Tatum sorria.
Sádico.
Eu não hesitei em levantar meus dois dedos médios em sua
direção.
Robin rapidamente cobriu os olhos de Natalie.
Dei as costas para eles e me pus a caminhar para os portões
da fazenda.
— Onde você vai, Sadie?— Robin disse alto.
— Não interessa!
Eu também não sabia para onde iria. Só queria caminhar.
Depois de alguns metros percorridos, já relativamente longe
da fazenda, observei os dois carros com a equipe passarem por
mim e se distanciarem.
Agradeci por respeitarem minha decisão.
Eu precisava ficar sozinha.
Mas assim que a ventania produzida por eles passou e as
folhas no asfalto pararam de rodopiar com ele, escutei passos atrás
de mim.
Não reclamo se for o assassino.
Olhei para trás e observei Devan caminhando em uma
velocidade um pouco menor que a minha.
Bufei e virei para frente.
— Perdeu sua carona!— disse alto.
— Eu sei!
— Não deveria estar aqui!— rebati.
Ele deixou que minha voz parasse de ecoar para responder:
— Sei que quer ficar sozinha, e eu respeito. Por isso estou
atrás. Se alguém te atacar, estou aqui. Se você quiser me atacar
também, estou aqui.
Comprimi os lábios para impedir o sorriso.
— Te dou o espaço que precisa e não te deixo na mira do
assassino. Foi a solução perfeita.
Não sorria, Foster!
Tarde demais.
Depois de meia hora andando, eu diminui minha velocidade
e deixei que Devan me alcançasse.
Nós caminhamos em silêncio e lado a lado durante o resto
do percurso.
Eu detestava verde. O uniforme do orfanato era em um tom
de verde escuro, e depois que eu saí de lá, me recusei a comprar
qualquer peça de roupa que tivesse um mínimo detalhe em verde.
Robin não se atentou a isso.
A imagem no espelho me deixou chocada e surpresa por
alguns instantes, e eu quase não conseguia me reconhecer. Meus
cabelos escuros estavam presos em um coque frouxo, e alguns fios
ondulados caíam para fora, contornando meu rosto. Minhas sardas
não foram apagadas pela maquiagem que Robin fez, mas pela
primeira vez em minha vida, gostei delas. As olheiras sumiram. Uma
linha preta, fina, contornava minha pálpebra e corria delicadamente
até poucos milímetros depois de meus olhos, em um delineado.
E então, o verde.
Meu vestido era verde. Não um verde estranho, daqueles
verdes folha de alface ou verde militar. Era um verde claro, bebê, a
etiqueta dizia verde gold. A parte de cima parecia realmente ter sido
trabalhosa. Ela era resumida a duas faixas grossas que cobriam
meus seios e subiam, prendendo-se em meus ombros e deixando
as costas parcialmente nuas. O resto descia solto até meus pés,
modelando-se em minha cintura e caindo como uma cascata ao
chão.
— Qual foi sua real intenção quando escolheu esse vestido
para mim, Allen?— perguntei.
Me virei para a garota, que terminava de colocar suas lentes
de contato. Ela sorriu de lado.
— Nenhuma, Sadie — disse, fazendo-se de ingênua.
Revirei os olhos.
— Você deveria ter me perguntado se esse vestido estava
bom, Robin — eu disse, voltando a me encarar pelo espelho.— E
não é melhor soltar o cabelo?
— Para com isso, Sadie!— ela exclamou, saindo do banheiro
e caminhando até mim.— Você está incrível. Você é linda. Para de
se sentir insegura, ok?
Eu assenti, soltando o ar.
— Ok.
Parei para observá-la. Diferente de mim, Robin tinha os
cabelos escuros soltos, e sua maquiagem estava um pouco mais
carregada que a minha, mas estava linda. Seu vestido era em um
tom de nude escuro, de alças finas.
— Você também está linda — Eu disse.
Ela sorriu.
— Obrigada. Natalie que me ajudou a escolher — falou —
Mas... Sadie? Depois podemos conversar sobre essa tarde?
Minhas pernas ainda doíam pela longa caminhada que eu e
Devan percorremos. Me senti mal por ele. Ele estava praticamente
comprando minha briga, e tudo o que recebeu em troca foram
quilômetros e mais quilômetros de caminhada, e talvez, câimbras
até o fim de sua vida. E quando chegamos em frente à mansão do
prefeito e eu disse que sentia muito, tudo o que ele respondeu foi:
"eu daria a volta ao mundo, caminhando, desde que você estivesse
ao meu lado."
Eu tentei tirar aquela frase da minha cabeça durante o resto
da tarde. Tentei me concentrar no que Robin fazia em meu rosto e
em meu cabelo. Tentei prestar atenção no que ela falava. Mas nada
me fazia tirar sua voz de minha cabeça.
— Tudo bem — eu disse.
Robin sorriu.
Escutamos dois toques na porta. Ela foi aberta e Blaine
enfiou a cabeça para dentro do quarto, de olhos fechados.
— Sadie, você está pelada?— ele perguntou.
Franzi as sobrancelhas com sua indagação.
— Por que não perguntou se eu estou pelada também?—
Robin questionou.
Ainda de olhos fechados, Baline respondeu:
— Não é óbvio?
Eu ri.
— Pode entrar, Blaine — disse.
Ele abriu os olhos azuis e observou o quarto por alguns
instantes, antes de seus olhos pararem em nós.
— Uau!— ele disse, abrindo mais a porta e adentrando o
quarto.— Sinto muito, garotas, mas Robin Allen tem minhas bolas
em suas mãos.
Jesus.
Blaine alcançou Robin e selou seus lábios com os dela
rapidamente.
— Você não estava com raiva de mim?— ela perguntou,
ajeitando a gravata dele.
— É verdade. Esqueci — ele me encarou e apontou para
Robin.— Ela só me distrai do meu drama.
Estreitei os olhos.
— Com raiva do quê?
— Nós assistimos um filme de mistério. Ele adorou, mas eu
achei uma falha no desfecho — Robin deu de ombros.— Você é o
detetive, Blaine. Eu não tenho culpa que não tenha reparado.
— Não vamos discutir isso agora, Allen. Vou ignorar o fato de
você ter estragado o melhor filme de todos os tempos, para a gente
pensar em casar algum dia.
Robin rolou os olhos.
— Estamos descendo. Vem com a gente?— Robin
perguntou.
Eu neguei.
— Eu já desço.
Ela assentiu e os dois passaram pela porta, ainda discutindo
sobre o filme.
Voltei a me encarar pelo espelho.
Eu precisava tomar coragem.
Admitir que estou bonita seria a coisa mais ousada que já
teria feito em toda a minha vida, sem dúvidas.
Eu estava insegura e com medo de estar estranha demais.
Sempre visto calças jeans, jaquetas de couro e regata, quando não
estou com o jaleco, é claro. Colocar este vestido foi um grande
passo. Prender meus cabelos volumosos que sempre cobriam meu
rosto, foi um passo em tanto. Assumir minhas sardas assim, tão
abertamente, foi um passo maior ainda.
Minhas mãos suavam.
Eu alisava o vestido de dois em dois minutos.
Era quase um ataque de ansiedade.
E, como em todos eles, eu precisava me acalmar. Sozinha.
Eu estive sozinha durante toda a minha vida. Eu era
responsável por me desesperar, por me acalmar, por me abraçar e
me acolher.
E apesar de ter Robin, Chase e até mesmo Devan, eu
sempre continuaria sozinha.
Tomando a coragem que precisava para, pelo menos, sair do
quarto, eu olhei mais uma vez para o meu reflexo no espelho,
respirei fundo e caminhei até a porta.
Imaginei que o corredor estivesse vazio, mas não estava.
Congelei. Petrifiquei.
Eu não esperava encontrá-lo agora.
Devan estava parado em frente ao seu quarto, com as
costas presas à porta e a cabeça pendendo para baixo. As mãos
estavam nos bolsos de sua calça social. O terno abraçava seus
músculos, assim como a camisa branca. A gravata estava
afrouxada, talvez propositalmente, e os cabelos dourados em um
caos perfeito.
Ele estava lindo.
Estava relaxado.
Mas de uma forma linda.
Tive a impressão de que ele estava esperando algo, ou
alguém. E, quando sua cabeça se levantou e seus olhos
encontraram os meus, as borboletas atingiram minha barriga em
cheio.
Devan estava esperando por mim.
Ele se desencostou da porta e virou seu corpo totalmente em
minha direção. Sua boca estava entreaberta, seus olhos
percorrendo todos os centímetros do meu corpo. Ele começou pela
barra do meu vestido, e demorou um pouco mais na fenda dele.
Arrastou seus olhos por minha cintura, certificando-se de lentificar o
processo em meu decote. Subiu por meus ombros e, finalmente,
chegou em meu rosto.
E, mesmo que ele estivesse a pelo menos três metros de
mim, eu senti seus dedos tocando minha pele. Primeiro eles se
arrastariam por minha coxa. Depois, subiriam lentamente por minha
cintura e, ousadamente, arrastaria o indicador pelo vão entre meus
seios. Alcançaria meu pescoço e levaria a mão até minha nuca,
enquanto a outra contornaria cada traço do meu rosto. Meus lábios,
minhas bochechas, as maçãs do meu rosto e minha têmporas.
Depois afastaria um dos fios rebeldes que estavam soltos do coque.
Mesmo estando a metros de distância, eu senti.
Devan deu o primeiro passo em minha direção. Depois o
segundo e o terceiro. Se aproximou sem deixar meus olhos em
nenhum instante.
Parou. Talvez a dez ou quinze centímetros.
Eu conseguia sentir seu perfume inebriante. Conseguia
sentir sua respiração em meu rosto. Conseguia enxergar seu peito
forte subindo e descendo. Conseguia escutar as batidas frenéticas
do meu coração.
Mas temia que ele também ouvisse.
Observei seus olhos me fitarem milimetricamente mais uma
vez. E então, seu braço se ergueu lentamente e seus dedos
passearam por meu rosto, tão sutil que eu quase não sentia.
Mas o arrepio em minha espinha provava que era real.
— Você está deslumbrante... — sussurrou ele —
Incomparavelmente deslumbrante.
Sua voz saiu baixa e rouca.
Aquela fase me atingiu como um tiro.
E foi dolorosamente bom.
Eu geralmente recebia elogios sobre minha inteligência.
Poucas pessoas me descreviam como bonita, e apesar de saber
que era bom notarem o que há dentro de mim e não só o exterior,
eu sentia falta disso.
"A doutora Foster é brilhante", ou "Sadie Foster é genial",
mas Devan não.
Devan disse que eu era incomparavelmente deslumbrante.
Eu não sabia se era merecedora de tudo aquilo, não sabia se ele
estava sendo sincero e não sabia o que estava acontecendo ali.
Só sabia que nenhum outro elogio seria o mesmo depois
desse.
Abaixei a cabeça tentando esconder minhas bochechas
coradas, enquanto Devan permanecia parado em minha frente,
contornando meus traços. Ele levou os dedos para meu queixo e,
delicadamente, fez com que eu voltasse a lhe encarar.
— Você também está bonito — disse baixo, quase
sussurrado.
Devan abriu um sorriso tão largo que acabei fazendo o
mesmo.
— Aceita que eu seja seu sapo esta noite?
Corei mais uma vez.
Devan estava diferente, ele tinha um brilho nos olhos avelã.
Seus dentes estavam à mostra, em um sorriso bonito que parecia
ser difícil tirar.
Mas alguém tirou.
— Sadie?— a voz de Chase soou.
Eu me virei para trás e o encarei.
Diferente de Devan, Chase tinha o traje alinhado e
devidamente abotoado. A gravata estava no lugar certo e os cabelos
negros penteados para trás. Mas sua expressão não estava bonita.
Os lábios finos estavam em uma linha reta, e seus olhos verdes,
naquele momento, estavam mais escuros. Ele parou ao meu lado e
segurou meu pulso, me puxando para perto e encarando Devan em
desafio.
— Chase, para... — eu disse, tentando me livrar de seu
aperto.
— Solta ela, Anderson — Devan murmurou, ameaçador.
Chase abaixou a cabeça para sua mão, que segurava meu
pulso, e soltou rapidamente como se percebesse o que estava
fazendo. Contudo, não demorou a rodear o braço em minha cintura.
— Ela está comigo, Caldwell.
Devan sorriu de lado, como um desafio.
Um desafio? Era isso o que eu era?
— Parem. Vocês dois. Isso não é a porra de uma competição
— murmurei, irritada.— Chase, vamos logo. Seu pai deve estar
esperando por você.
Eu encarei Devan, que ainda tinha o sorriso provocador nos
lábios. Ele cruzou os braços e olhou para mim.
— Boa festa, pombinhos — murmurou, dando passagem
para que nós pudéssemos caminhar até a escada.
Chase não demorou para começar a me puxar nesta direção.
Eu fiz uma regra quando fugi de Coolley. Era a única regra
pela qual minha vida era guiada. A única regra que eu não
quebrava, nem que me pagassem.
Não olhar para trás.
No entanto, quando Chase dava passos rápidos para me ver
longe de Devan, eu não me contive. Quebrei a única regra que eu
me obrigava a seguir.
Olhei para trás.
Olhei para Devan.
O baile aconteceria na própria mansão. Entre a sala de estar
e a sala de jantar, havia um salão amplo com sofás confortáveis e
um piano branco de calda. Foi preciso alguns homens para tirar os
móveis de lá, deixando o espaço completamente disponível para o
baile.
O salão tinha uma decoração branca, dourada e bege.
Haviam flores espalhadas por todos os lados e música clássica ao
fundo.
— Quando a tequila vai chegar? — Blaine perguntou.
Virei meu rosto para ele.
— Desculpe, mas acho que o máximo aqui é uísque.
Blaine estalou a língua no céu da boca.
— Eu só vim porque queria ficar bêbado. Que tipo de festa é
essa?
— Festa de gente rica — eu disse, dando de ombros — Eu
também queria ficar bêbada.
Blaine girou o rosto em minha direção como a própria Regan
McNeil, a garotinha com o capeta do filme O Exorcista.
— Você?!— exclamou.
Juntei as sobrancelhas.
— Por quê não?
— Eu tinha certeza que você era tão certinha quanto Robin.
— Ninguém é tão certinho quanto Robin, Blaine.
Seus olhos azuis me fitaram por mais alguns instantes.
— Touché.
Sorri.
Estávamos no fundo do salão. Haviam muitas pessoas nele,
e eu, Blaine, Robin e Natalie conseguimos — com muito esforço e
bravura — nos acoplar em um canto vazio. Robin foi a responsável
por encher sua bolsinha com comida e trazer até nós, junto à
Natalie, enquanto eu e Blaine defendíamos nosso lugar com unhas
e dentes.
A família Anderson estava na outra extremidade do salão.
Blake Anderson se concentrava nas palavras decoradas que diria, e
sua esposa, Maddie, que trajava um vestido extravagante, arrumava
sua gravata. Chase tinha as mãos nos bolsos e a cabeça baixa,
olhando para o nada.
Sabia que ele estava odiando tudo aquilo.
Pessoas importantes estavam aqui. O xerife Bloom me
cumprimentou com um aceno de cabeça, mas não disse nada. Não
conversamos depois de sua revelação, e eu nem queira conversar.
Ainda sentia raiva.
Algumas pessoas da população também ocupavam o
espaço. Acho que Blake só os convidou para passar a imagem de
que todos eram bem-vindos, não importava a classe social. Pura
mentira. Ele não se importava com os pobres. Só queria pintar a
imagem de um bom prefeito para contribuir com a outra imagem de
coitado, vítima de um ataque.
Passei meus olhos mais uma vez pelo salão. O homem no
canto dele quase passou batido.
Tatum Jackson.
O fato de ele estar aqui não me surpreende, afinal, ele é
vice-prefeito. O problema estava em sua insistência em manter os
olhos em mim, enquanto segurava um copo de uísque e uma loira
beijava seu pescoço.
Me mexi, desconfortável.
Voltei a observar as pessoas, procurando por ele.
Procurando por Devan.
Não o encontrei.
— Ok — Robin disse, chegando até nós.— Só tinham coisas
esquisitas com nomes esquisitos. Então eu fui até a cozinha e
procurei por algo melhor. Natalie subiu em meus ombros e
conseguiu alcançar o armário que escondia isso.
Ela se aproximou mais e abriu a bolsa, revelando dois sacos
de salgadinhos.
Natalie, que tinha os cabelos ruivos soltos e ondulados, riu.
— Deus. Você vai para o céu, linda — Blaine disse.— E
você, garotinha, ganhou o respeito do tio Blaine. Toca aqui.
Blaine estendeu a palma de sua mão para Natalie, que riu
mais uma vez e bateu.
Em seguida, todos enfiaram a mão na bolsinha de Robin,
que mais parecia a bolsa da Hermione, de Harry Potter.
Não demorei a fazer o mesmo.
Os profissionais da saúde são os que mais cagam para a
saúde.
Nossa atenção foi voltada para o prefeito, quando ele
chamou a atenção para si, em cima do palco improvisado e com a
boca quase encostada no microfone. Ao lado direito, Chase, que
continuava com a cabeça baixa, e do esquerdo, Maddie, que
ostentava um sorriso grande.
— Boa noite! Obrigado por virem ao baile, é muito importante
para mim... — ele começou o discurso — Bom, como todos sabem,
no meu último pronunciamento eu fui atacado. Fiquei entre a vida e
a morte.
Blaine soltou uma risada curta.
— Coitadinho... — murmurou, ironicamente.
Eu e Robin o encaramos.
Percebendo que não entendemos seu comentário, ele se
virou para nós e sussurrou:
— Tenho trabalhado em uma teoria nos últimos dias.
— Qual? — Robin perguntou, curiosa.
Blaine chegou mais perto.
— Pensem comigo... — disse ele — O prefeito seria odiado
para sempre depois daquele pronunciamento, mas a opinião pública
mudou drasticamente quando ele foi esfaqueado.
— Onde quer chegar? — eu disse.
Blaine suspirou.
— Eu tenho quase certeza que o prefeito pagou o moleque
para fazer aquilo. Foi um jogo de marketing, como aqueles famosos
que fingem namorar apenas para ganharem mais seguidores, ou os
que fingem brigas para causar ibope — revelou — Ele sabia que
não ficaria bem assumir para o povo o que fez. Aquele lance de
suborno e tal... — deu de ombros — Ele pagou o garoto para atacá-
lo, mas sabia que viveria porque vocês duas estavam por perto.
Vocês fizeram exatamente o que ele queria que fizessem. Salvaram
a vida dele. E então... — fez uma pausa, voltando a encarar o palco.
— Ele voltaria como um herói — completei.
Blaine assentiu.
— Mas seria um tiro no escuro, não seria? — Robin
comentou — Quer dizer, e se Owen tivesse atingido o coração ou o
intestino? É morte na certa. Na melhor das hipóteses seria o
coração. Na pior delas, o intestino seria rompido e infectaria o
organismo inteiro! Seria uma septicemia! Ele certamente morreria...
— soltou o ar — E outra, o prefeito é idiota demais para pensar em
algo assim.
— Talvez a ideia não tenha saído da cabeça dele — rebati.
Os dois viraram seus rostos para mim, enquanto eu
observava Natalie comer os salgadinhos com gosto, como se não a
alimentassem há muito tempo.
— Me diga, Robin, o que eu ensinei a você sobre
psicopatas?— questionei baixo.
Ela fez uma expressão pensativa, como se estivesse
procurando na memória.
Seu rosto empalideceu quando achou.
— Nem todos são assassinos, mas são frios. Não sentem.
Atuam tão bem que nem o melhor dos detetives descobriria sua
verdadeira face sem que ele a revele por vontade própria... — fez
uma pausa, engolindo em seco — São inteligentes.
— São muito inteligentes... — afirmei — Manipuladores.
Essa ideia pode ter saído da cabeça de um psicopata.
— Acha que o prefeito está envolvido com o assassino? —
Blaine perguntou.
Eu respirei fundo.
— Eu não sei, não acho nada concreto, é um terreno incerto
o qual estamos, Blaine... — eu disse.
— Isso só me faz pensar em mais perguntas do que
respostas — Robin disse — Se o prefeito está envolvido, ele pode
estar matando estas garotas a mando de outra pessoa. Aumenta
ainda mais as opções, porque quem está o manipulando como uma
marionete pode ser uma mulher.
Eu assenti.
— Aumenta muito o número de suspeitos — Blaine informou
— Tínhamos um padrão. Homem, forte, destro. Blake é tudo isso,
mas ele está sendo controlado. Quem está no comando? Outro
homem? Uma mulher psicopata? Uma mulher furiosa?
Muitas perguntas para poucas respostas.
— Quero fazer um agradecimento especial à equipe do
D.I.M, que se prontificou a nos ajudar na busca pelo assassino —
Blake continuou — E mais ainda às garotas que salvaram minha
vida. Robin Allen e Sadie Foster. Sinto orgulho de receber mulheres
que hoje têm a chance de fazer tanto quanto homens. Obrigado por
se tornarem mulheres brilhantes, garotas.
Mais discursos comoventes sem um pingo de sinceridade.
Falso profeta. Blake era um maldito falso profeta.
Algumas pessoas se viraram para nós, cochichando.
É isso mesmo, otários.
Sadie Foster voltou.
— Queria fazer um parêntese para falar sobre uma destas
garotas... — Blake continuou, e seus olhos se voltaram para os
meus.— Sadie, eu conheci você quando era apenas uma garotinha.
Você estava sempre assustada e encolhida, como se o peso do
mundo estivesse sobre seus ombros. E eu acho que realmente
estava... — fez uma pausa — Eu peço perdão em nome de todos
que estão aqui presentes, e que te julgaram ou apenas fecharam os
olhos para você. Peço perdão pelo modo que as coisas
aconteceram e, principalmente, pelo modo que agi com você. Sei
que é muito mais evoluída do que provavelmente todos nós, porque
você me ajudou sem pestanejar. E sinto orgulho da mulher que você
se tornou.
As palavras de Blake ecoaram em minha mente por mais
alguns segundos. Eu sabia que os olhos preocupados de Robin
estavam em mim, e que Blaine dirigia um sorriso irônico para Blake,
sem acreditar em nenhuma vírgula de seu discurso.
— E depois de tanto tempo, você e meu filho se
reencontraram. Se esse não é o amor dos bons, eu não sei qual é
— ele disse e todos soltaram risos elegantes, nem tão curtos, nem
tão longos, nem tão altos.
Chase rapidamente levantou a cabeça e me encarou.
Ele estava incerto.
Receoso.
— Um brinde à Sadie! — o prefeito disse, levantando a taça
de champanhe em minha direção.
E como se todos tivessem ensaiado, viraram-se para trás,
em minha direção, e ergueram as taças. Senti como se estivesse
em um filme de terror onde eu estava presa em uma seita, e
aquelas pessoas estivessem prestes a me matar por qualquer
motivo fútil.
— Um brinde à Sadie! — eles disseram.
Após beberem um gole, voltaram mais uma vez a conversar
entre si.
Isso foi apavorante.
— Parece que agora você é rainha desta cidade, Sadie —
Blaine disse ironicamente.
E eu nunca quis tanto estar morta.
Observei Chase descer do palco e caminhar até mim,
desviando de todos que se colocavam à sua frente. Robin e Blaine
logo partiram, levando Natalie consigo e percebendo que o clima
entre nós não estava tão leve.
Chase parou a dois passos de distância. Avaliou meu rosto,
depois desceu para o pulso.
— Deus... — ele disse, seus olhos se tornando marejados e
as mãos voando para a cabeça — Sadie...
Eu olhei para o lugar.
Meu pulso estava roxo.
Eu suspirei.
— Eu machuquei você...?! — ele voltou a dizer, encarando
meu pulso mais uma vez — Eu machuquei você.
Suas últimas palavras foram ditas com raiva.
Ele tinha raiva de si mesmo.
— Chase... — soprei, mas ele logo me interrompeu.
— Você precisa ficar longe de mim.
Sem me dar chance de resposta, Chase caminhou para
longe de mim, para fora do salão. Eu odiei sua atitude, odiei que
tenha me puxado daquele jeito e odiei que me machucou, mas ele
ainda era meu melhor amigo.
Eu não podia deixá-lo ir embora assim.
Por isso, me desencostei da parede e fui atrás dele. Passei
pela sala de estar, subi as escadas e caminhei pelo corredor do
segundo andar. Chase provavelmente estaria em seu quarto, então
eu dava passos rápidos em direção ele.
Entretanto, um som me fez parar no meio do caminho.
Era uma voz feminina.
Eu juntei as sobrancelhas e, esquecendo completamente o
motivo de estar aqui, caminhei em direção ao som.
A voz se elevou.
— É sério isso?!— ela esbravejou.
Parei em frente à porta, toquei a maçaneta e a empurrei. Era
uma espécie de biblioteca. Era pequena, apenas três estantes
recheadas de livros.
Meu estômago embrulhou quando encarei o canto.
Maddie tinha o vestido baixado até a cintura, seus seios
fartos completamente à mostra. Devan estava a vários passos de
distância, e parecia irritado.
— Eu chamei você aqui para conversar, Maddie. Não pra
transar.
Doeu mais que um soco.
Devan não estava me esperando naquela hora, no corredor.
Devan estava esperando por ela.
Por Maddie.
— Não faz sentido!— ela rebateu, voltando o vestido para o
devido lugar.— Você só me chama para isso.
— Hoje não, caralho! — praguejou — Isso vai parar.
— Parar? — ela murmurou, amarga.
Devan soltou um ar pesado, e então, se virou para mim.
Seus olhos avelã ficaram surpresos.
— Sadie... — sussurrou.
Eu não sabia se ia embora, ou se falava algo.
Maddie ajeitou os cabelos tingidos e caminhou em minha
direção, seus saltos batendo contra o chão de madeira.
Parou em minha frente e me olhou de cima a baixo, antes de
passar pela porta e ir embora.
Voltei a encarar Devan, meus olhos embaçados.
Eu não sabia porque estava tão incomodada. Eu queria
gritar, chorar e vomitar.
— Ela é casada, Devan.
Caldwell engoliu em seco, mas nada falou.
— Há quanto tempo? — indaguei — Desde quando isso
acontece?
Ele soltou o ar com força, desviando o olhar. Ele não
conseguia me encarar.
— Desde que chegamos.
Ele deu um passo em minha direção. Eu recuei outro.
Ele analisou a minha expressão.
— Sente nojo de mim?— perguntou.
Pensei por alguns segundos, e acabei negando com a
cabeça.
— Só estou decepcionada — respondi — Muito
decepcionada.
Ele assentiu, engolindo em seco mais uma vez.
— Eu só quero que você saiba... — comentou ele — que eu
não sinto absolutamente nada por ela.
— Isso não importa, Devan.
— Sim. Importa... — afirmou.
Ele mais uma vez, deu passos em minha direção. E dessa
vez eu não recuei.
Devan chegou perto de mim e manteve seus olhos nos
meus.
— Importa porque eu não quero nada com Maddie e nem
com nenhuma outra mulher, por você... — revelou — Só por você.
"Só por você".
"Só por você".
O que aquele merda quis dizer com isso?
Quando Thomas sente dificuldade em solucionar algum
caso, o telefone da minha sala no D.I.M não demora a tocar. E não
era tão difícil chegar a uma resposta depois que isso acontecia. Já
desvendei muitos mistérios quando Caldwell não podia ajudar, por
estar envolvido com outros um pouco piores. Sabia que era
inteligente, que era competente no que fazia, mas eu não era
esperta o suficiente para saber o que Devan quis dizer com aquelas
palavras.
Enquanto a banda tocava violinos e violoncelos, dando vida
a uma valsa, eu observava os casais no meio do salão,
acompanhando o ritmo coreografado com maestria. Natalie estava
ali, dançando com um garoto que provavelmente era filho de um dos
caras ricos, considerando seus trajes finos. Maddie estampava um
sorriso enquanto Blake a conduzia. Tatum com a garota loira e o
xerife Bloom com sua esposa. Parecia que eu estava em um filme
de terror envolvendo o dia dos namorados.
Um. Dois. Três.
Um. Dois. Três.
Um. Dois. Três.
Chase estava de braços cruzados, encarando o chão. Ele
parecia devastado.
Desviando dos casais, caminhei até ele. E, quando me
notou, Chase suspirou.
— Você não pode ficar aqui — ele disse.
Parei em sua frente.
— Por quê?
— Porque eu machuquei você. Qual vai ser a próxima vez,
hun? — indagou — Você vai usar roupas curtas e eu não vou
gostar. Desta vez será um empurrão... — relatou ele. Sua voz era de
nojo. Nojo de si mesmo.— Depois você vai querer sair com seus
amigos e eu não vou deixar. Você vai me enfrentar e eu vou dar um
tapa no seu rosto.
— Para com isso, Chase.
— Você vai querer terminar e eu não. A coisa fica mais séria,
agora. Eu te soco. Eu te chuto. Eu te algemo em minha cama e não
deixo mais você sair. Quanto tempo levará até eu forçar alguma
coisa entre nós? Sei que não vai demorar muito... — negou com a
cabeça — Isso vai durar até as pessoas começarem a sentir sua
falta. Provavelmente Robin. Ela vai chamar a polícia e eu, tomado
pelo desespero, vou circular minhas mãos por seu pescoço e
espremê-lo até seu coração parar de bater. Eu saberei que não iria
conseguir viver em um mundo sem você, então eu pegaria qualquer
coisa afiada e cortaria meus pulsos. Fim.
— Isso não vai acontecer.
— Como você tem tanta certeza?
— Porque eu conheço você, Chase! — falei, me
aproximando mais e segurando seu rosto — Você não vai me
machucar. Você não vai virar esse monstro. Você não é esse
monstro! — disse firme — Sei que não vai acontecer de novo. Você
é a melhor pessoa que já conheci. Isso? — ergui meu pulso — Você
não queria isso. E não foi nada de mais...
— Nada de mais? — ele questionou exasperado — Você
está roxa, Sadie. Eu passei tanto tempo com ódio das pessoas que
machucaram você, que agora eu me tornei uma delas.
— Não, Chase! — disse um pouco mais alto — Você não vai
me machucar mais. Eu sei disso. Eu sinto isso. Você sempre disse
que minha intuição nunca falhava, e não irá falhar agora, ok?!
Chase fechou os olhos com força e negou com a cabeça,
levando as mãos para seus cabelos. Eu o abracei forte, e ele
segurou minha cintura, me puxando para perto e enterrando seu
rosto em meu pescoço. Não demorou para que eu sentisse suas
lágrimas molharem minha pele.
— Me perdoa, Sadie... eu...
— Sshhh. Tá tudo bem...
Passamos alguns minutos naquela posição, abraçados, até
ele se afastar e seus olhos verdes me encararem.
— Já disse que você está linda?— ele perguntou.
Neguei com a cabeça, sorrindo fraco.
— Não.
Ele juntou nossas testas.
— Você está linda.
Linda.
Nem incomparável.
Nem deslumbrante.
Apenas linda.
Não vá por esse caminho, Foster.
— Quer dançar comigo?— ele perguntou.
Assenti.
Chase nos conduziu até o meio do salão, e segurou
levemente minha cintura. Eu encostei minha cabeça em seu peito e
as mãos espalmadas nele. Com movimentos leves, dançamos. Não
era nada comparado à dança dos outros casais, já que eles
rodopiavam pelo salão, preocupados em serem melhores que os
outros.
Eu e Chase estávamos apenas dançando.
Fechei os olhos.
Queria não ter confundido tanto a cabeça de Chase. Queria
ter pensado que isso entre nós não daria certo. Queria ter evitado
tudo isso. Queria que voltássemos a ser aqueles garotos que
olhavam para as estrelas e prometiam-se que, apesar de tudo,
sempre seriam amigos.
Quando eu abri os olhos, enxerguei Devan perto da longa
mesa recheada de comidas chiques. Ele descruzou os braços e
abordou um garçom. Levou sua mão até uma das taças de
champanhe e agradeceu.
Droga.
— Chase, eu... preciso resolver uma coisa. Já volto.
— Ok — ele sorriu levemente.
Caminhei apressada até Devan, e quando ele estava prestes
a levar a taça até seus lábios, puxei-a e joguei todo o champanhe
em uma planta.
Devan juntou as sobrancelhas douradas quando voltei meus
olhos para ele.
— O que foi isso? — perguntou ele.
— Você disse que ia parar.
Ele bufou e revirou os olhos.
— Não esquenta, Sadie. Tá tudo sobre controle... — afirmou
e sorriu de lado — Agora você me deve uma bebida. Deixo você me
levar para algum lugar legal, não precisa pedir.
Piscou.
— Isso não é brincadeira, Devan — murmurei, séria — Eu
sou médica. Conheço as consequências de uma abstinência. Sei o
quanto é horrível, mas você consegue. Você...
— Ah, não enche, Foster — ele praguejou, pegando a taça
da minha mão e alcançando uma garrafa de vinho na mesa — Eu já
sou bem grandinho para você se intrometer em minha vida.
O vinho caiu na taça, tingindo-a do tom escarlate.
Puxei novamente e despejei na planta.
— Qual é...?— bufou, rolando os olhos.
— Tudo o que você fez desde o momento que nos
encontramos, Caldwell, foi se intrometer em minha vida. Só estou
retribuindo o favor... — sorri irônica, depositando a taça na mesa —
Você disse que pararia, e você vai parar. Podemos fazer um
combinado.
Devan inclinou a cabeça para o lado, como se eu fosse uma
criança.
— Um combinado?
Assenti.
— Eu não bebo. Você não bebe. Vamos fazer isso juntos.
Ele encarou meus olhos por mais alguns segundos, e a
sombra de um sorriso iluminou seu rosto.
— Juntos?
Pisquei algumas vezes, soltando o ar.
— É. Sabe... — desviei o olhar — Um incentiva o outro a não
beber. Parece mais fácil assim...
Ele assentiu, e em seguida sorriu.
— Droga, Sadie. Quando vai admitir que é completamente
apaixonada por mim?
Estreitei os olhos em sua direção.
Idiota.
— Não sonhe tanto, Caldwell.
— Finja que acredita nisso o quanto quiser, Sadie, mas eu
sei que você me quer.
Eu ri, rolando os olhos.
— Ok. Vou voltar para a festa.
Estava pronta para dar as costas quando ele segurou meu
pulso e murmurou um "espera". Estremeci com a dor e recuei um
pouco.
Devan juntou as sobrancelhas e olhou na direção do meu
pulso. E por segundos, ele não disse nada. Apenas passou os
dedos delicadamente pelo hematoma, mantendo seus olhos nele.
Sua expressão mudou rapidamente.
Seus olhos tornaram-se assustadores.
— Eu acabei dormindo com um prendedor de cabelo
apertado. Não é nada.
— Você quer mentir mesmo sobre isso, Sadie? — perguntou
entre dentes — Ele vai morrer — declarou.
Devan soltou meu braço e caminhou duramente pelo salão,
empurrando para longe todas as pessoas que se atreviam ficar em
seu caminho.
Em direção a Chase.
Merda. Merda. Merda.
Eu não cheguei a tempo de impedir o punho de Devan
acertar o rosto de Chase, que foi pego desprevenido, cambaleando
e caindo no chão.
Todos soltaram sons surpresos.
Devan subiu em cima de Chase e desferiu mais socos.
— Você viu o que fez?!— ele esbravejou.
Soco. Soco. Soco.
Chase não fez nada além de ficar parado e não reagir.
Ele queria. Queria que alguém fizesse isso. Queria apanhar.
— Devan, para!— gritei.
Ele não parou.
Era um soco atrás do outro, e as pessoas não faziam
absolutamente nada.
O sangue tingia o chão. Desespero tingia o meu corpo.
— Blaine!— chamei.
Passaram-se alguns segundos até Blaine aparecer na porta
do salão, junto com uma Robin de batom borrado e cabelos
bagunçados. Quando seus olhos entenderam o que acontecia, ele
correu rapidamente até Devan e o puxou, tirando-o de cima de
Chase.
Corri até ele, observando o estrago.
— Droga, Devan! Se acalma!
— Me solta, porra! — Devan esbravejou, empurrando Blaine
e arrastando a mão pelo nariz, fervendo em fúria — Se você
machucá-la de novo, eu juro que dá próxima eu não vou parar, tá
me entendendo?!— praguejou.
Chase não disse nada.
Ele estava quase inconsciente.
Sem olhar para mais ninguém, mas recebendo a atenção de
todos, Devan caminhou para fora do salão.
Uma noite nunca foi tão longa.
Abigail me dizia que todas as pessoas tinham aquele dia ou
noite inferno, sejam elas ricas ou pobres. Todos, em algum
momento da vida, têm aquele pensamento: "nossa, por favor, me
deixem fechar os olhos e só esquecer que esse dia existiu".
Eu estou nesse momento.
Não vejo a hora de deitar em minha cama, apagar as luzes,
dormir e sonhar com arco íris e trevos de quatro folhas, rezando
para que eles me dessem sorte no dia seguinte.
Estou exausta e nem fiz nada. Minha cabeça dói e eu nem
bebi. Meus cabelos já estavam soltos e eu não fazia ideia de onde
tinha largado meus saltos. O lindo vestido que Robin escolheu para
mim estava amassado e com algumas manchas de sangue.
Sangue de Chase.
— Ai... — Chase murmurou e se afastou.
Respirei fundo.
— Eu preciso limpar isso, Chase. Me deixa te ajudar.
Ele demorou alguns segundos para se aproximar
novamente, e deixar que eu limpasse todo o sangue espalhado pelo
seu rosto. Devan havia batido com vontade. O olho esquerdo de
Chase estava inchado e roxo. Haviam cortes por todos os lados e
eu tenho quase certeza de que seu nariz foi quebrado.
Suspirei.
Sentia uma sensação no peito que me deixava com medo.
Aquela sensação de quando as pessoas chegam animadas com
novidades, implorando para contar. E então, te dão duas opções:
A notícia ruim ou a notícia boa? Qual escolher?
Eu, particularmente, sempre escolhi a ruim primeiro porque,
depois de ficar triste ou irritada, a notícia boa me acalmaria.
Entretanto, parecia que eu estava em uma fase em que notícias
ruins eram o melhor que eu poderia receber. Só esperava que não
viessem notícias péssimas ou horríveis, caso contrário, ficaria
permanentemente na tristeza.
Molhei a gaze com soro e voltei a arrastá-la pelo rosto de
Chase.
— Amanhã vamos ao hospital. Tenho certeza que seu nariz
não é torto desse jeito.
Eu sorri.
Ele não.
— Precisamos conversar — disse.
— Não. Você está começando a ficar chapado pelos
analgésicos que te dei e tudo o que precisa é dormir. Me deixa só...
— Precisamos conversar — repetiu.
Soltei o ar e me afastei levemente, sentando-me na cama à
sua frente. Chase deixou sua cabeça pender para baixo e soltou o
ar, com pesar.
— Eu não consigo... — murmurou — Não consigo fazer isso.
— Do que está falando? — perguntei.
Chase se ajeitou na cama e segurou minhas mãos.
— Acho que eu fiquei maluco — deu de ombros — Quando
eu recuperei minha memória, eu fiquei desesperado atrás de você.
— Eu sei, Chase. Você me disse, e olha, tá tudo bem...
— Não. Não tá tudo bem! — interrompeu — Eu não fiquei
desesperado de um jeito bonito. Eu fiquei obcecado, Sadie. Eu reuni
todas as informações que tinha de você. Pensava em você todos os
malditos segundos, corri atrás de você. Eu queria você. Na minha
cabeça você era minha. Sempre foi e sempre seria. Eu não
suportava a ideia de outra pessoa tocando você. Não suportava a
ideia de você já ter, talvez, se casado, ter formado uma família. Uma
família sem mim.
Chase negou com a cabeça e soltou minhas mãos,
levantando-se da cama.
Ali eu vi o verdadeiro Chase.
Um cara que era gentil e doce, mas que tinha tantos defeitos
quanto eu.
— Quando eu vi você tão perto de Caldwell, eu surtei —
esfregou os dedos nos cabelos — Ele gosta de você. Eu senti raiva,
porque vi que poderia te perder. E acabei te machucando.
— Chase...
— Me deixa terminar, Sadie — murmurou, voltando a me
encarar.— Eu preciso que você se afaste de mim, até eu conseguir
marcar uma consulta com um psiquiatra ou um psicólogo. Tanto faz.
Eu não respondi nada.
Não respondi porque não entendi o motivo daquele
sentimento tomar conta do meu peito, mas eu sabia muito bem qual
era.
Era alívio.
— Confia em mim?— perguntou.
Assenti.
— Confio.
Ele sorriu e aproximou seu rosto do meu. E, pela última vez,
seus lábios tocaram os meus castamente.
Sempre odiei as pessoas que me colocavam para baixo, que
me desvalorizavam, quando na verdade eu era uma delas.
Minha vida estava tomando outro rumo, agora. Um rumo cujo
eu me preocuparia apenas comigo.
Depois de deixá-lo em seu quarto eu caminhei até o meu. E,
quando abri a porta, a imagem de Devan Caldwell sentado sobre
minha cama, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça
pendendo para baixo dominou meus olhos. Ele já estava sem o
terno e a gravata, e alguns dos botões da camisa social estavam
abertos.
— Oi... — eu disse, anunciando a minha entrada.
Ele levantou a cabeça e me encarou, se levantando.
— Oi — disse.
Adentrei mais o quarto, enquanto observava suas mãos
esfoladas de tanto bater em Chase.
— Eu vou dar um jeito nisso.
— Não — ele disse.
Devan caminhou até mim e tocou meus ombros. Tentei não
me arrepiar. Delicadamente, me levou até a cama e me fez sentar
nela.
— Você sempre cuida de todo mundo... — disse, abrindo
uma caixa branca.— Tá na hora de alguém ajudar você.
Devan tirou da caixa uma pomada e um rolo de faixa, se
ajoelhando à minha frente.
— Desde quando você sabe como se faz um curativo? —
perguntei, bem humorada.
Caldwell sorriu, pegando meu pulso.
— O meu cérebro é fenomenal, Sadie.
Eu ri.
Devan espremeu a pomada e o creme tocou minha pele.
Com o indicador, Devan passou a espalhá-la sobre a marca roxa,
com tanta delicadeza que parecia estar manipulando uma pena.
Seus olhos avelã estavam concentrados em meu pulso, enquanto
se preocupava em não deixar pior do que já estava. Quando
terminou, pegou a faixa e enrolou em meu pulso.
Soltou o ar.
— Você não pode continuar com ele depois disso, Sadie.
— Eu não vou.
Os olhos de Devan brilharam.
— Isso quer dizer que você... e eu...
— Não.
Devan juntou as sobrancelhas. Suspirei.
— Acho que eu tenho que ficar sozinha agora, Devan.
Sabe... preciso tirar um tempo só pra mim.
Ele sorriu fraco e assentiu.
— Eu espero... — disse — Eu sempre esperei.
A última frase foi dita em um tom mais baixo, como se ele
não quisesse que eu escutasse. Mas eu escutei.
Em silêncio e tomando cuidado para não fazer doer, Devan
terminou de enrolar a faixa em meu pulso e em minha mão.
Guardou as coisas na caixa e se levantou, me encarando.
— Boa noite, Sadie.
Eu soltei um sorriso fraco.
— Boa noite, Devan.
Observei ele se afastar aos poucos, ainda com os olhos em
mim, e depois de alguns segundos, deu as costas e saiu pela porta.
Caí de costas na cama, cansada da noite gigantesca que
tive. Parecia que eu havia acabado de chegar de uma festa e, a
partir do momento que o silêncio finalmente me encobriu e,
ironicamente, produziu um zumbido em meus ouvidos, eu estava
pronta para hibernar.
Mas não durou muito.
— Sadie, Sadie...
Sentei-me na cama e observei a elegância de Katherine
Green, enquanto adentrava meu quarto. Seu vestido era preto, o
que destacava ainda maus seus cabelos loiros.
Soltei um suspiro pesado, observando ela esticar os lábios
vermelhos em um sorriso.
— O que você quer, Green?
— Ah, eu não quero nada... — murmurou ironicamente —
Mas você parece querer tudo, não é?
Franzi as sobrancelhas e me levantei.
— Do que você tá falando?
Katherine riu.
— Fala sério, Foster — praguejou — Você acha que eu não
notei os olhares que você lança para meu namorado? — insinuou —
Depois veio o Chase, e agora Devan? Você não consegue mesmo
ficar sozinha, não é?
Inclinei minha cabeça para o lado.
— Você está se ouvindo, Katherine? Consegue entender o
quão patética você é?
Ela abriu a boca, indignada.
— Como é?!
— Eu tô cansada de você, Katherine... — praguejei, me
aproximando — Você me tratou como um lixo desde o momento que
pisei no D.I.M.. Você me humilhou. Me fez sentir a pior mulher do
mundo! Mas sabe de uma coisa, Katherine? — indaguei — Eu não
sou mais uma garotinha ingênua que acredita nas maldades que
diziam a ela — abri os braços — Sim, você é linda, mas eu também
sou. Eu sou uma mulher legal, até. Eu gosto de mim. Agora mais
ainda.
Dei de ombros.
Katherine continuou petrificada no lugar. Acho que ela
procurava palavras para dizer, mas nada encontrou. Era a primeira
vez que eu a enfrentava daquela forma, e ela parecia quase
confusa. Abaixou a cabeça, e começou a andar para fora do quarto.
Mas eu não havia terminado.
— Por quê, Katherine?
A loira parou no meio do caminho, de costas para mim.
— Por que sempre me tratou mal? — continuei — Por que
não gosta de mim? Eu nunca fiz nada, e...
Parei de falar quando ela se virou para mim e, a passos
largos, andou em minha direção, seus saltos se chocando contra o
chão duramente.
Eu pensei que ela iria me bater.
Estava enganada.
E então, Katherine segurou meu rosto e me beijou.
Quando seus lábios encostaram nos meus, eu arregalei os
olhos e fiquei em choque. Fiquei completamente surpresa, sem
nenhum tipo de reação.
Ela se separou aos poucos, e olhou no fundo dos meus
olhos.
E não disse nada.
Tirou suas mãos do meu rosto e me deu as costas, andando
rapidamente para fora do meu quarto.
E eu permaneci ali, parada.
Quando acordei na manhã seguinte, me sentia diferente. Foi
como se tudo finalmente ficasse minimamente bem. Eu me sentia
leve.
Na época da faculdade, poucos eram os dias em que eu
tinha tempo para fazer absolutamente nada. A maioria das vezes
eram aos sábados, quando não haviam provas e eu não precisava
me acabar de tanto estudar. Eu acordava e suspirava, enquanto me
esparramava na cama e fazia planos para o dia, ou pelo menos uma
parte dele. Eles geralmente envolviam comer besteiras, ficar de
pijama o dia inteiro e de cabelo oleoso, ler algum livro, assistir filmes
de terror e fechar com chave de ouro segurando uma taça de vinho
e tomando alguns goles.
Eu me sentia genuinamente bem nestes dias.
Como hoje.
Ao me sentar na cama e me espreguiçar, notei que Robin
ainda não havia voltado do quarto de Blaine, então, aproveitei a
oportunidade para fuçar em suas coisas e tentar achar algo.
Caminhei até o armário e abri as portas, encarando o lado onde
seus pertences estavam. Haviam roupas, calcinhas, sutiãs. Achei
um nécessaire com maquiagens e um pote de máscara para
hidratação dos cabelos.
Sorri.
Encontrei uma calça jeans azul clara. Eu havia ganhado de
presente de uma colega da faculdade, mas nunca a usei porque
sentia vergonha. Ela ficava justa em minhas pernas, e eu sempre
usei roupas largas. Descia até os tornozelos e servia para usar com
saltos. Saltos finos. Não me sentia confortável para desfilar por aí
com ela, mas agora eu queria tentar. Queria arriscar.
Depois de jogá-la na cama e tentar combiná-la com algum
cinto, já que eu não estava me alimentando bem nos últimos dias e
emagreci muito, tentei achar alguma blusa. Sem gostar de nenhuma
das que escolhi, passei para o lado de Robin e pequei uma regata
preta, de um tecido parecido com seda, com renda no decote e
alças finas.
Tudo o que não ousei durante toda a minha vida, eu ousaria
agora.
Não fui muitas vezes ao salão de beleza em minha vida. No
orfanato, Charlotte chamava uma cabeleireira algumas vezes por
ano para não deixar os cabelos das crianças crescerem muito,
mantendo o das meninas sempre no ombro e dos meninos sempre
na orelha. Quando saí dele, só fui ao salão mais duas vezes. Depois
eu ficava com preguiça e os cortava sozinha. E, mais tarde, aprendi
a gostar deles. Da cor deles. Das ondas deles. E eu não os deixaria
mais no ombro.
Tomei um bom banho e fiz a hidratação que furtei de Robin.
Passei creme no corpo e fiz uma maquiagem leve no rosto. Quando
olhei para o espelho, suspirei e sorri.
Era uma nova fase.
Talvez, parte dessa coragem toda em me arrumar, tenha
saído das palavras que disse à Katherine ontem. Eu era boa. E
agora eu sabia que era boa.
E ela me beijou.
Katherine Green me beijou.
Nem imagino o tamanho dos nós que surgiram em minha
cabeça. Muito menos na dela. Eu não queria pensar em como seria
daqui para frente, se ela iria querer conversar sobre isso ou não.
Bom, se ela quisesse, eu estaria mais do que disposta. Apesar do
enorme ponto de interrogação acima da minha cabeça e, mesmo
não entendendo muito do assunto, eu a ajudaria — ainda que ela
tenha infernizado minha vida.
Depois de pronta, caminhei até a porta. Eu não estava com
frio na barriga, porque não me importava com o que as outras
pessoas poderiam dizer.
Eu me importava comigo. E eu me sentia bem. Isso bastava.
Ao sair do quarto para o corredor, dei de cara com Devan
Caldwell, que também passava por sua porta.
E toda minha autoconfiança de segundos atrás foi para o
ralo. Escorreu sem deixar rastros.
Fiquei parada no lugar, com a esperança de que ele não me
escutasse e não se virasse para trás, em minha direção. Prendi a
respiração.
Não foi o suficiente.
Seu rosto logo se virou para o meu, casualmente, como se
fosse apenas um reflexo. E, assim que seus olhos encontraram os
meus, brilharam na mesma hora.
E então, como na noite anterior, Devan desceu os olhos pelo
meu corpo, inspecionando cada centímetro dele. E, quando voltou
aos meus olhos, suspirou.
— Você está diferente... — falou.
Eu juntei minhas mãos em frente ao corpo e sorri tímida.
— É, eu... me arrumei um pouco mais hoje, e...
— Não. Não é disso que estou falando — me interrompeu,
enquanto dava passos em minha direção. Parou a alguns
centímetros de distância — Eu notei que seus cabelos parecem
estar mais macios, que seus lábios parecem mais corados e que
sua pele está mais suave. Mais do que já é. E, nossa, você está
gostosa pra caralho! — exclamou e eu sorri, sentindo meu rosto
esquentar — Mas eu não estou falando disso, estou falando do
brilho em seus olhos. Gosto dele.
Não sei se fiquei mais surpresa pelo fato de Devan ter
reparado em tudo, ou em suas palavras. Talvez os dois.
Com certeza os dois.
— Gente — alguém chamou.
Inclinei meu corpo para o lado, e percebi Blaine Donovan
caminhado até nós, atrás de Devan. Ele geralmente nos
cumprimentava com um sorriso torto e piadinhas que só ele achava
graça, mas naquele momento, ele estava sério e com preocupação
gritando em seus olhos.
Blaine não trazia boas notícias.
Nem notícias ruins.
Blaine trazia notícias terríveis.
— O que houve?— Devan perguntou, as sobrancelhas
douradas franzidas.
— Vocês têm que vir comigo.
Nós não demoramos a descer as escadas junto a Blaine, e
alcançar a porta. Ele andava rápido e a passos largos. Estava
ansioso. Quando Donovan abriu a porta, a primeira coisa que vi foi
uma multidão de pessoas em volta da mansão. Depois, Thomas e
Katherine. Os olhos dela se voltaram rapidamente para os meus, e
percebi quando ela se encolheu e desviou o contato visual.
Ela estava com vergonha.
Queria ir agora mesmo até ela, puxá-la para um abraço e
dizer que tudo ficaria bem. Que ela poderia assumir quem é, e que
eu daria todo o apoio que precisava. No entanto, a imagem de
Robin ao lado de Blake Anderson, que estava totalmente petrificado,
roubou minha atenção.
E, logo depois, eu vi.
Havia um corpo preso a uma cadeira. Os olhos estavam
esbugalhados e haviam hematomas e feridas por toda a pele pálida.
Estava sem roupas. O corpo nu estampava marcas que ficariam
pregadas em minha mente por dias, talvez meses. Fincada à grama
verde, ao lado dos pés, havia uma placa de madeira com letras
recortadas de revistas. A palavra "vadia" estava em negrito.
Maddie Anderson.
Aquele era o corpo de Maddie Anderson.
E pela primeira vez durante toda a minha carreira, eu
estagnei no lugar e senti meu estômago embrulhar. Recuei alguns
passos e me senti tonta.
Maddie foi assassinada.
Brutalmente assassinada.
Eu me senti mal, ao ponto de meus olhos se molharem. Um
zumbido agudo se infiltrou por meus ouvidos, enquanto meus olhos
insistiam em analisar o corpo, acostumados demais com o trabalho
para deixar aquilo de lado.
Senti a desorientação aumentar quando cheguei a uma
conclusão.
Aqueles ferimentos espalhados pelo corpo de Maddie, foram
feitos com pedras.
Maddie Anderson foi apedrejada.
"Que atire a primeira pedra quem nunca pecou", Jesus disse.
Observei Devan levar as mãos à cabeça e se virar para mim.
Acho que eu teria caído se ele não tivesse rodeado seus braços por
minha cintura. Sua voz era abafada, longe, enquanto eu ainda
encarava o corpo de Maddie. Eu só consegui focar em outra coisa
quando suas mãos seguraram meu rosto e sua voz me chamou pela
sexta ou sétima vez.
Encarei os olhos avelã.
— Devan... — disse, soltando uma lágrima — Ela... ela não
merecia, Devan... isso é horrível.
— Eu sei, é horrível, mas você precisa ser forte, ok?! Não sei
o que Thomas vai fazer depois disso, mas agora eu estou com
raiva, Sadie. E você sabe a força da minha raiva — praguejou —
Nós vamos pegar esse filho da puta.
Concordei.
Olhei novamente para o corpo.
— Ela foi apedrejada, Devan... — eu disse — Os ferimentos
no corpo dela. Ela foi apedrejada como as prostitutas e as adulteras
eram antigamente.
Um calafrio percorreu minha espinha.
Devan engoliu em seco e também se virou para o cadáver de
Maddie.
— Eu e Blaine vamos isolar a área e tentar espantar esses
idiotas da imprensa. Você não precisa ficar aqui. Entre com Robin e
Katherine. Elas vão precisar de você agora.
Assenti.
Eu não ficaria ali nem se quisesse.
Já na sala, enquanto observava Katherine tremer e Robin
beber um copo de água com açúcar, senti meu celular vibrar em
meu bolso. O puxei de lá e abri as mensagens.
Tremi.
Temi.
Li e reli a frase, sem conseguir acreditar nas palavras dentro
da caixa de texto.
"Você não poderia atirar a primeira pedra, já que sempre
pecou."
Encolhida no canto da minha cama, abraçando fortemente
meus próprios joelhos, eu encarava o nada como se fosse tudo.
Ainda escutava vozes no andar de baixo, mas eu simplesmente não
conseguia sair de onde estava, descer as escadas e enfrentar
aquilo.
Eu não conseguia me despedir.
Despedidas são o inferno na terra.
Pesquisei um pouco sobre diabetes, então eu sabia que
Abigail não poderia exagerar no açúcar. Deveria evitar as
sobremesas que ela mesma fazia, não comer muita massa e nem
frutas exageradamente doces, como manga e aquelas uvas
extremamente glicosadas — se é que esta palavra existe. Só não
imaginei que essa merda poderia matá-la.
Nesta manhã, estava lendo um livro da Agatha Christie
quando escutei um barulho de sirene do lado de fora. Eu estava
imersa na narrativa e nos acontecimentos do livro, então só notei o
barulho estrondoso da ambulância quando ela já estava parada em
frente ao orfanato. Marquei a página, deixei o livro na cama e me
levantei, andando até a janela. Charlotte já havia saído para falar
com os socorristas. Pela leitura labial, percebi o nome de Abigail sair
por sua boca.
Não demorei a correr na direção dela, na cozinha. Quando
cheguei, vi o seu corpo caído no chão, as pálpebras fechadas e o
peito sem se mover.
Ela não estava respirando.
Eu gritei seu nome e tentei ir até ela, mas alguém me
segurou por trás, me impedindo. Os socorristas chegaram e
tentaram reanimá-la.
Foi inútil.
Não importava quantas vezes pressionassem seu peito. Não
importava quantas vezes infundiam adrenalina em sua veia. Não
importava quantas vezes apertassem o AMBU (Artificial Manual
Breathing Unit/ Unidade Manual de Respiração Artificial) e
tentassem levar oxigênio para seu pulmão.
Abigail não voltava.
Abigail não queria voltar.
Até o momento em que o velório começou, eu não derramei
uma gota de lágrima sequer. Fiquei atrás, observando Margot, a
filha de Abigail, cair aos prantos enquanto se jogava sobre o corpo
da doce e morta velhinha. Apenas quando alguns homens
seguraram a tampa do caixão e o levaram em direção a Abigail, que
a ficha pareceu ter caído. Fecharam o caixão. O desespero bateu.
Bateu forte. Tão forte que minhas pernas fraquejaram e eu quase
caí, enquanto soltava soluços estrangulados e lágrimas geladas
que, ironicamente, queimavam meu rosto.
Acho que se Charlotte não tivesse gritado comigo e
ordenado que eu subisse para meu quarto, do seu jeito rude, meu
choro não daria trégua e eu não conseguiria respirar.
Mais uma morte para a conta.
Nunca estive tão perdida como estou agora. Não sei o que
fazer. Não sei o que pensar. Não sei para onde vou ou se devo ficar.
Eu não tenho mais motivos para ficar.
Eu precisava sair daqui.
Connor ainda quer me adotar, e isso não pode acontecer de
jeito nenhum.
Eu precisava fugir. Ficar e lutar como uma heroína já não era
mais uma opção. Eu precisava fugir como a boa covarde que me
tornei.
Estava prestes a me levantar para arrumar as malas e
aproveitar que todos estavam distraídos, quando a porta do quarto
se abriu. Voltei à posição inicial, abraçando meus joelhos
novamente, torcendo para que fosse Lily, Lauren ou Louise.
Mas não era.
A figura alta e bem vestida de Connor Jackson passou pela
porta. O terno estava sempre muito bem alinhado, os cabelos
grisalhos sempre encharcados de gel e puxados para trás.
Estremeci.
Connor puxou um sorriso doente e fechou a porta,
trancando-a em seguida.
As lágrimas começaram a cair freneticamente.
Levantei-me da cama e fiquei no canto, enquanto ele dava
passos lentos até mim, como uma cobra que rasteja delicadamente,
pronta para dar seu golpe brutal e fatal. Entretanto, o veneno de
Connor era diferente. Não era imediato. Não fazia estragos logo
depois da picada. O veneno de Connor me matava aos poucos.
Arrancava caquinho por caquinho, guardado todos eles para si.
Sempre que ele adentrava meu quarto, eu via a face do diabo
estampada no corpo de uma serpente. E, de pouco em pouco, como
uma flor no outono, minhas pétalas se secam em caem.
Quanto tampo até eu perder todas elas?
O que vai acontecer quando eu perder todas elas?
Connor era dono do orfanato, então ele tinha livre acesso
para entrar e sair. Eu ainda me lembro da primeira vez, jamais
esqueceria. Eu tinha oito anos quando Connor sorriu para mim e
veio brincar de boneca comigo. Naquela época, pensei que ele
queria ser meu pai. Que ele iria me adotar e que eu ficaria longe de
Charlotte, Tatum e as garotas com L. Eu teria uma família.
Não foi isso que aconteceu.
Eu tinha oito anos quando Connor Jackson tocou seus dedos
nojentos em mim pela primeira vez.
E depois disso, ele não parou.
E Charlotte sabe disso. Ela sabe de absolutamente tudo.
— Por quê está chorando, querida? — ele perguntou
enquanto parava de andar, a cama entre nós.
Com a voz trêmula, eu respondi:
— Connor, por favor, me deixe em paz... só hoje...—
sussurrei.
Jackson inclinou a cabeça para o lado.
— Por que eu deixaria? — perguntou, voltando a caminhar
até mim, dando a volta na cama — O que você me daria em troca,
hum?
Me espremi mais no canto do quarto.
Eu não tinha uma resposta para aquela pergunta.
Connor riu.
— Nada. Você não tem nada... — levantou o braço e tocou
meu rosto com a ponta dos dedos.
Meu estômago se embrulhou instantaneamente. Eu me
sentia assim quando Connor se aproximava, e quando tocava seus
dedos asquerosos em minha pele.
O homem de terno e gravata desceu a mão lentamente,
enquanto eu tremia e me esforçava para aguentar. Eu tinha que
aguentar, porque não adiantava gritar. Não adiantava fugir. Eu não
tinha saída. Ninguém me escutava.
Não.
Todos escutam.
E fingem não ouvir.
Depois do barulho de seu cinto sendo desfivelado, tudo o
que veio foi dor.
Eu estava sendo chacoalhada e escutava meu nome ao
longe. Quando abri os olhos, ainda sentia lágrimas escorrerem por
meu rosto, uma atrás da outra.
— Sadie...
Olhei para o lado. Devan segurava meu rosto e seus olhos
avelã estavam queimando em preocupação.
Parei alguns segundos para me situar.
Subi as escadas até a sala de reuniões para trabalhar no
caso e achar quem matou Maddie Anderson, enquanto os outros
permaneciam em completo choque na sala.
Acabei dormindo.
— Sadie, você estava gritando... — Devan murmurou,
tirando os fios de meus cabelos que grudaram em minha testa pelo
suor — Você...
— Eu tenho que ir.
Me levantei da cadeira rapidamente, e quase a fiz cair.
Caminhei a passos duros até a porta.
— Eu estou aqui — ele disse.
Parei de andar, ainda de costas para ele. Devan continuou:
— Meu abraço também.
O ar escapou por meus lábios.
Lentamente, me virei mais uma vez para ele. Devan não
tinha pena nos olhos, e foi isso que me fez caminhar até ele agarrá-
lo com toda a força que tinha.
E ele não perguntou.
Ele não me fez falar.
Só abriu os braços.
Aquilo era tudo o que eu precisava naquele momento.
Seus braços fortes envolveram meu corpo, e Devan me
abraçou com mais intensidade do que eu. Sua mão subiu para meus
cabelos, os afagando, enquanto eu enfiava meu rosto em seu peito
e voltava a chorar compulsivamente.
Minutos se passaram. Quando parei de chorar, soltando
soluços involuntários, me afastei delicadamente, enquanto ele ainda
mantinha os braços em volta de mim.
— Obrigada... — soprei, fraca — Agora eu realmente preciso
ir.
Ele demorou alguns segundos para me soltar, acho que
estava ponderando se seria seguro me deixar sozinha ou não. No
final, seus braços amoleceram o aperto e me soltaram.
Ofereci a ele um sorriso fraco e voltei a caminhar para fora
da sala, deixando-o para trás.
Quando cheguei em meu quarto, caminhei diretamente para
o banheiro e tranquei a porta. Liguei o chuveiro na água fria e tirei
apenas os sapatos. Entrei de roupa. Deixei que a água gelada
molhasse meu coro cabeludo, minha pele, meus dedos. Quando
percebi que não era somente a água que molhava meu rosto, que
as lágrimas continuavam a cair, retirei as roupas e as joguei em um
canto qualquer. Alcancei a esponja, enchi com sabonete e passei a
esfregar minha pele.
Esfreguei.
Esfreguei.
Esfreguei.
Eu soltava murmúrios sussurrados de dor, enquanto minha
pele arranhada ficava ainda mais vermelha. Chegou a sair sangue,
mas eu não parei.
Eu era suja.
Participar de velórios era uma coisa estranha. As pessoas
derramavam lágrimas e falavam baixinho, como se o corpo no
caixão estivesse apenas dormindo e ninguém tinha a intenção de
acordá-lo.
Liberei o corpo de Maddie ao anoitecer. Não havia nada de
muito diferente na necropsia. Ela havia entrado em óbito há três
horas, e o motivo foram as pedras. Elas eram duras e afiadas.
Perdeu bastante sangue e houve um trauma profundo no crânio, na
região temporal esquerda. Se ela tivesse sobrevivido, aquele trauma
acarretaria disfunções na fala, ou a perda total dela.
Fora o psicológico.
Nestes casos, aprendi que a morte é o melhor que estes
pacientes podem receber.
O cemitério estava cheio. Todos vieram prestar homenagens
à Maddie. Parece que ela era bem querida por todos. Soube que
fazia doações à instituições de caridade, como de crianças pobres,
de crianças com câncer e de crianças pobres com câncer. Tudo
fachada. Uma máscara. A verdadeira Maddie casou-se com Blake
por status e o traía frequentemente. Seu último amante: Devan
Caldwell.
Não pense nisso, Sadie.
A mulher morreu.
— Por que sua pele está assim?— Robin perguntou.
Virei meu rosto para ela. Robin tinha os olhos um pouco
inchados e vermelhos. Ela chorou. Chorou de medo. DEATH está
chegando perto demais de nós.
Robin encarava meus braços. Eu vesti uma jaqueta preta
para cobrir o estrago que a esponja fez em minha pele, mas o clima
abafado me fez, inconscientemente, dobrar um pouco as mangas e
parte do meu braço ficou exposto. Haviam vários arranhões e a pele
estava vermelha.
Tratei logo de cobrir e cruzei os braços.
— É alergia.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Por que você não me disse? Tenho muitos anti-histamícos
na mala. Crises alérgicas me atacam frequentemente.
— Não gosto de tomar remédios.
Sabia que Robin detestava respostas curtas. Nossa relação
evoluiu um pouco desde que chegamos aqui, e percebi que ela
gostava muito, muito de falar. Eu não prestava atenção nas coisas
que saíam por seus lábios, então apenas concordava e deixava que
sua voz preenchesse o silêncio, enquanto fingia escutar. Não era
tão difícil.
Só que hoje eu definitivamente não quero conversar, e nem
fingir conversar.
Queria ficar quieta.
A equipe ficou afastada do resto das pessoas, o túmulo onde
Maddie seria enterrada estava a alguns metros de distância. Blake
segurava um guarda-chuva preto e uma flor vermelha. Ele não
chorou em nenhum momento. Não fez nada além de encarar o
caixão e, assim como eu, fingir prestar atenção no que os outros
diziam.
Apesar do clima esquisito, eu não deixei de pensar no caso.
E, observando Blake, tive a impressão de que ele realmente não
estava envolvido com o assassino. Não pelo fato de sua esposa ter,
talvez, sido assassinada por ele, este nunca foi impedimento para
assassinos. Cansei de trombar com casos de feminicídio,
infelizmente. O fato era; ele não fingiu. Em situações como estas,
psicopatas costumam atuar, fingem sentir algo. Às vezes até
exageram. Ajoelham-se no chão, gritam de dor. E esse era seu erro.
Chorar demais nunca foi tão suspeito quanto agora.
— Você está estranha — Robin disse ao meu lado.
Respirei fundo.
— Uma mulher morreu, Robin. Seria estranho não estar
estranha.
— Não. Mais do que estar estranha no nível normal... — ela
rebateu.
Juntei as sobrancelhas.
— Céus, o que você tá falando, Robin? — questionei,
confusa.
Ela cruzou os braços e me lançou um olhar acusador.
— Sei que isso não é alergia. Não minta sobre algo da saúde
à uma estudante da saúde, Sadie. Primeira regra da medicina —
disse firme.
Rolei os olhos.
— Não deveria estar surpresa, Allen. Não é a primeira vez
que minto para você.
Robin me encarou por mais alguns segundos, antes de soltar
um suspiro frustrado.
— Minha mãe queria que eu fizesse moda. Meu pai queria
que eu me casasse com um dos seus malditos sócios. Eu não tenho
irmãos e nem primos. Não tenho amizades porque não sei como se
começa uma. Eu só tenho você e Blaine, Sadie, então não fique
irritada por eu me preocupar com você, quando tudo que eu peço
em troca é sua confiança.
As palavras de Robin saíram atropelando umas às outras,
desesperadas para serem libertas.
E elas me pegaram de surpresa.
Imaginava que Robin fosse uma garota humilde que viera do
Brooklyn, com o sonho de salvar vidas e tendo total apoio de sua
família.
Ledo engano.
Robin apanhou da vida. Apanhou quase como eu.
Dizem que, pior do que não ter pais, é ter pais que não se
importam.
Soltei um suspiro e desviei o contato visual, sem conseguir
encarar o olhar machucado de Robin. Ela não merecia viver coisas
do tipo.
— Eu esfreguei minha pele com uma esponja... — confessei.
Alguns instantes de silêncio se passaram, antes de ela se
pronunciar mais uma vez.
— Eu posso perguntar o porquê ou esse é o limite?—
questionou ela.
Subi meu olhar para ela mais uma vez. Ela tinha uma
expressão serena, agora. Robin queria passar segurança, mas eu
não conseguia.
— Esse é o limite.
Ela assentiu, suspirando.
— Você vê seus pais frequentemente? — perguntei.
Ela negou com a cabeça, como se sentisse tristeza e alívio
ao mesmo tempo.
— Posso saber o porquê ou esse é o limite? — repeti sua
frase.
Robin deu de ombros.
— É falta de educação aparecer em lugares nos quais você
não é bem-vinda.
Pisquei algumas vezes. De repente, eu só queria abrir os
braços e abraçar Robin. Nunca fiz isso com alguém além de Chase
e, é claro, Devan, quando me viu gritar por causa de um pesadelo.
Em todas as situações, eu era a consolada.
Desta vez é diferente.
Desta vez, Robin precisava de mim tanto quanto eu
precisava dela.
Sem pensar muito, eu rodeei seu corpo com meus braços e
a acolhi como se fossemos amigas de infância.
Como se fossemos irmãs.
Ela não demorou para retribuir o abraço com rigor. Afaguei
seus cabelos, escutando alguns soluços discretos vindos dela.
— Eu quero que tudo isso acabe... — murmurou.
Fechei meus olhos.
— Você pode voltar, Robin.
Ela se afastou um pouco, secando as lágrimas dos seus
olhos e encarando os meus.
— Volte para Detroit, ok? Sei que não se sente bem aqui,
ainda mais depois de tudo aconteceu. Estude e consiga um estágio
em um hospital. Sei que você consegue. Posso escrever uma carta
de recomendação e...
— Não. Não precisa... — ela negou com a cabeça — Eu vou
ficar! Vou ajudar a encerrar esse caso. Eu só estou emotiva demais.
Talvez seja TPM.
Ela sorriu fraco.
Eu suspirei.
— Ok... — disse, segurando sua mão — Acha que é TPM ou
os hormônios de uma provável gravidez?
Seu sorriso fraco se alargou.
— Esse é o limite.
Eu sorri de volta.
Robin voltou a se posicionar ao meu lado e entrelaçou seu
braço com o meu. Em outros tempos, eu acharia aquilo o cúmulo da
ousadia.
Mas hoje, naquele cemitério, naquele velório e sob aquela
garoa, eu apenas sorri.

Ao entrar na sala de reuniões da mansão, a procura de


arquivos para ler antes de dormir, a primeira coisa que vi foram os
cabelos loiros caindo como cascatas sobre as costas de Katherine.
Ela falava freneticamente ao telefone, em outra língua. Em
espanhol. Eu não entendia nada do que ela dizia, mas sabia que ela
estava claramente irritada. Suas mãos gesticulavam para todos os
lados, seu rosto estava vermelho e ela respirava rapidamente.
Katherine tem me evitado depois do que houve. Evita olhar
para mim, evita dirigir a palavra à mim, evita respirar o mesmo ar
que eu. Ela estava com vergonha, era nítido.
E eu não sairia desta sala até ela entender que não tinha
nada para se envergonhar.
Depois de um ou dois minutos, Katherine desligou a
chamada, bufando.
— Problemas?
A loira se virou para trás e me encarou. Seus olhos ficaram
surpresos por alguns instantes, mas logo se recompuseram.
— Alguns.
Katherine desviou o olhar e começou a ajeitar pastas sobre a
mesa.
— Podemos conversar? — perguntei.
Katherine negou com a cabeça.
— Preciso arrumar muitas coisas. Eu e Thomas vamos
embora amanhã.
Juntei as sobrancelhas e dei um passo em sua direção.
— Amanhã? Como assim? Por quê?
Katherine suspirou e, ainda sem me encarar, focando em
qualquer coisa que não fosse eu, respondeu:
— Ele não pode ficar muito tempo fora do D.I.M.. Quando
pisou naquele avião não imaginou que as coisas chegariam a esse
ponto, e que demoraríamos tanto... — deu de ombros — Caldwell
vai ficar na liderança aqui e vocês continuarão investigando. Se
nada se resolver, passamos para o FBI.
Assenti lentamente.
— Pode olhar para mim agora, Katherine? — questionei.
Ela soltou a pasta e, finalmente, subiu o olhar até mim. Eles
pareciam temerosos e incertos.
— Você não precisa dizer nada, Sadie... — ela comentou, a
voz cansada — Sei que você não gosta do que eu gosto. Só
esqueça.
— Eu jamais esquecerei, Katherine... — murmurei.
Eu não sei se foi algo que eu disse, ou meu olhar dirigido a
ela, mas Katherine soltou o ar com tanta força que parecia estar
segurando há muito tempo. E então, sentou-se em uma das
cadeiras e se pôs a chorar. Eu fechei a porta e, rapidamente, andei
até ela. Me sentei na cadeira ao seu lado e a acolhi em meus
braços, enquanto ela soltava soluços que foram sufocados por muito
tempo.
Nunca imaginei ver Katherine Green nesta situação. Ela
parecia ser muito bem resolvida, inabalável e impenetrável. Mas
não. Katherine sofre. Katherine usa uma fantasia para se esconder.
E eu queria ajudá-la.
Era engraçado pensar no quanto as coisas mudam
drasticamente. Há alguns dias atrás, Katherine me odiava e eu
retribuía. E agora eu estava aqui, envolvendo-a em meus braços e
afagando seus cabelos, oferecendo meu ombro para ela chorar.
Depois de alguns minutos, a loira parou de chorar e se
afastou, fungando o nariz. Estiquei as mangas de minha blusa para
baixo, prendendo-as em meus polegares, e limpei sua maquiagem
borrada abaixo dos olhos.
— Desculpe por molhar sua blusa — disse baixo.
Eu sorri fraco.
— Não tem problema.
Katherine engoliu em seco. Percebi que suas mãos estavam
prontas para apoiarem-se na mesa e ajudarem a levantar seu corpo.
Para impedir que ela fuja novamente da conversa, indaguei:
— Por que está com ele? Com Thomas?
Seus olhos verdes me fitaram por alguns segundos. Eles
percorreram meu rosto e voltaram para meus olhos, provavelmente
ponderando se me faria de psicóloga ou não.
— Meus pais são religiosos fanáticos... — começou, com a
voz sussurrada — Eles preferem que eu dê para todos os caras
possíveis do que me ver com uma garota. Eu já tentei falar... — as
lágrimas começaram a descer novamente, desta vez, silenciosas —
mas nunca consegui.
Meneei a cabeça em afirmação.
— Bom, quando se sentir pronta para falar, me chame. Eu
vou junto.
Ela juntou as sobrancelhas.
— Por que faria isso?
Dei de ombros.
— Porque você merece ser feliz com uma pessoa que
realmente ame. Não por fachada... — afirmei — Agora, sobre
aquela noite, eu...
— Tá tudo bem, Sadie... — ela me interrompeu — Sei que
você gosta do Devan.
— Eu não gosto do Devan — disse de imediato.
Ela soltou uma risada curta e segurou minha mão.
— Me desculpe por tudo o que fiz.
Assenti.
— Já está desculpada há muito tempo... — disse, convicta —
Não vá embora, Katherine. Fique aqui. Precisamos de você.
Green olhou para baixo e soltou o ar.
— Eu fico.
Seus olhos voltaram para os meus e ela sorriu.
Sorriu aliviada.
Haviam coisas que Katherine Green precisava entender.
Coisas importantes demais, e que não poderiam ser deixadas de
lado.
A primeira delas, e uma das mais importantes, é que ser
religioso não era desculpa para ser homofóbico. A homofobia vem
do caráter. Os pais de Kate não eram pessoas boas, eles só
achavam que poderiam colocar uma máscara de seguidor fiel a
Deus e a Jesus Cristo, a troco de não serem reconhecidos como
preconceituosos de merda. É verdade, às vezes algumas religiões
são intolerantes, mas não é, e nunca será, cem por cento culpada.
Existem religiosos que apoiam toda e qualquer forma de
amor. Existem religiosos que não.
A índole da pessoa é quem manda.
A segunda delas, é que Katherine não precisava se esconder
atrás de um relacionamento ao qual ela não seria feliz. O namoro
com Walker já tinha uma data de validade no momento em que
começou.
Aeroportos me deixavam ansiosa. Sempre haviam várias
vozes, umas atravessando as outras, além da voz feminina
computadorizada que escapava pelas caixas de som espalhadas,
anunciando os voos. Os aviões não saíam um atrás do outro, como
em Detroit, mas saíam. As pessoas sempre andavam apressadas —
o que não é muito diferente da cidade grande —, e de expressões
fechadas. Pareciam almas perdidas.
Thomas Walker era uma destas almas.
Ele e Katherine estavam em um canto, conversando. Ele
tinha a expressão triste, e ela falava o que precisava falar.
— O que está acontecendo entre eles dois? — Devan
perguntou, sentando-se ao meu lado e me entregando uma garrafa
de água.
Agradeci com um sorriso discreto.
— Ela está terminando com ele — esclareci.
— Terminando antes de passar três horas presa em um
avião com ele? — questionou.
Eu sorri.
— Ela não vai.
Encarei Devan, que juntava as sobrancelhas douradas
enquanto passava os dedos pela barba rala.
— Katherine vai ficar conosco? — indagou, e confirmei —
Achei que ela tinha odiado tudo isso.
Dei de ombros e voltei a encarar o casal. Ou ex-casal.
— Alguém precisa fazer o trabalho burocrático.
Abri a garrafa de água e a levei até os lábios, sentindo a
bebida me refrescar. A sensação de beber água gelada acalmava
meus nervos em meio à toda essa bagunça. Quando parei e a
fechei novamente, senti um olhar queimar minha pele.
Virei o rosto para Devan e encontrei seus olhos. Eles ficaram
em mim por alguns segundos, e depois, como um adolescente, se
desviaram para outro ponto.
Estrangulei um sorriso.
O som típico de aeroporto soa, quase como uma campainha,
e a voz feminina anuncia o vôo para Detroit. Katherine e Thomas se
dão um último abraço, antes de ele segurar sua pequena mala de
mão e se dirigir aos portões de embarque. Katherine permaneceu ali
até que o corpo elegante de Thomas não pudesse mais ser visto.
— Uau. Isso foi comovente — Blaine comentou.
— Não seja insensível, Blaine — Robin repreendeu.
A loira se virou e caminhou até nós, juntando as mãos em
frente ao corpo. Ela estava cabisbaixa, os ombros caídos. Estava
triste, mas claramente aliviada.
— Podemos ir? — ela perguntou.
— Vocês podem ir na frente. Eu vou esperar a advogada que
chamei para Owen. Pegamos um taxi depois.
— Não. Eu fico com você — Devan logo se pronunciou.
Eu me virei para ele.
— Não precisa. Sério. Você parece cansado.
— Eu sempre estou cansado, Sadie... — ele disse, sorrindo
torto — Não vou deixar você sozinha.
A frase saiu convicta.
Suspirei e assenti. A verdade é que eu não queria abrir mão
de uma companhia. O fato de não ficar sozinha era novo para mim.
E eu estava tragicamente viciada.
Blaine, Robin e Katherine se foram, nos deixando sozinhos.
O silêncio se instalou. O avião da advogada só pousaria
mais tarde, o que significa que passaríamos um tempo sozinhos.
Era estranho estar bem com Devan, ainda mais estranho estar bem
e sozinha com Devan.
— O que fazemos agora? — perguntei.
Devan tomou uma expressão pensativa.
— Podemos jogar eu nunca enquanto esperamos — propôs.
Eu soltei uma risada curta.
— Não somos mais adolescentes, Devan. Essa fase já
passou faz algum tempo.
— A fase do eu nunca jamais passará, Sadie... — ele
retrucou, abrindo um sorriso de lado — Ainda mais se for com
bebida.
Semicerrei meus olhos para ele.
— Você não vai beber, Devan.
Ele soltou um suspiro.
— Tudo bem. Sem bebida. — ergueu os braços em rendição
— Podemos fazer com, sei lá, água? É saudável.
Eu sorri levemente.
— Certo. Pode ser.
Devan abriu um sorriso enquanto eu me ajeitava, virando-me
para ele e cruzando as pernas em uma posição em que as duas
ficassem na cadeira. Davan permaneceu largado sobre a sua.
— Eu começo... — falei — Eu nunca transei com uma mulher
casada.
A expressão de Devan se fechou bruscamente.
— Você nunca vai parar de jogar na minha cara, não é?
Neguei com a cabeça.
Estendi a garrafa para ele, que pegou e, a contragosto,
tomou um gole.
— Ok. Minha vez! Eu nunca... usei absorvente.
— Isso não vale, seu infantil — retruquei.
Devan sorriu torto.
— Está escrito em algum lugar que não vale, Sadie? —
questionou.
Devan não me chamava somente pelo sobrenome há algum
tempo. E, toda vez que sua voz pronunciava meu primeiro nome, eu
tremia.
Abaixei a cabeça, tentando fazer com que minhas bochechas
parassem de esquentar. Segurei a garrafa de água e bebi um
grande gole, porque não foi só meu rosto que aqueceu.
— Eu nunca... — pensei — Fiz uma garota ficar sem jeito.
Devan sorriu. Tocou minha mão suavemente, por segundos
que me fizeram arrepiar, e segurou a garrafa, levando-a até os
lábios e bebendo um gole. Ao terminar, me encarou.
— Eu nunca fiz um cara não conseguir tirar os olhos de mim.
As palavras saíram tão baixas que eram quase sussurradas.
Devan grudou seus olhos em meu rosto e ergueu sua mão
em direção a ele, tocando minha pele com delicadeza. As pontas de
seus dedos deslizavam lentamente, contornando meus traços e
tentando decorar todos os caminhos.
E então, aproximou seu rosto do meu. De repente, não
estávamos mais no aeroporto. Não estávamos rodeados de barulho
e de pessoas. Éramos só eu e ele, envolvidos em uma bolha difícil
de se estourar.
Devan parou seu rosto a poucos centímetros do meu,
enquanto sua mão escorregava para minha nuca e seu polegar fazia
um carinho em minha bochecha.
— Beba, Sadie... — murmurou ele, com a voz rouca — Você
é totalmente culpada por isso.
Eu não poderia fazer isso, porque não conseguia me mexer.
Os olhos de Devan passearam por meu rosto, até chegarem em
meus lábios. Eles ficaram ali por algum tempo, antes de se
desviarem para meus olhos. Depois ele repetiu o ciclo, sem querer
perder detalhe algum.
Senti que ele se aproximaria mais. Senti que seus lábios
encostariam nos meus.
Senti que eu estava ansiosa por isso.
— Sadie?
Rapidamente, me afastei de Devan e olhei na direção da
voz. Fomos tirados daquilo tão subitamente que quase me senti
tonta, mas passou assim que enxerguei a mulher à minha frente.
Dianna Evans era uma advogada criminal muito renomada, e
que ganhou tantos casos que eu mal posso contar.
Contudo, para mim, ela era apenas Dianna. Minha amiga de
faculdade, que dividiu a kitnet comigo por um tempo e me fez rir
como nunca na vida. Diferente das outras pessoas que convivia, ela
era realmente próxima. Ficávamos até altas horas da madrugada
assistindo a filmes de terror e comendo tanta gordura, que não faço
ideia de como nenhuma das duas teve um ataque do coração até
hoje.
Abri um sorriso grande e me levantei da cadeira onde estava,
dando passos até ela. Parei a poucos centímetros. Dianna era uma
mulher preta, alta e de cabelos cacheados incríveis. Seu sorriso
perfeito era cativante, suas roupas elegantes e sua áurea difícil de
ser comparada. Ninguém que permanecia no mesmo ambiente que
Dianna Evans deixava de ser cativado por sua simpatia e,
dificilmente, ela arranjava inimigos.
Mas para tudo tem uma primeira vez, já que Deavan fechou
a cara quando interrompeu o momento.
O nosso momento.
— Você continua gostosa. Tem certeza que não é lésbica?—
Dianna perguntou.
Eu sorri.
— Desde que você me beijou.
Ela sorriu mais ainda e abriu os braços. Eu não demorei a
me enfiar neles e abraçá-la com rigor. Era bom revê-la depois de
todo esse tempo.
Ao me separar, encarei seus olhos dourados.
— Vamos até o garoto. Não vou deixá-lo preso nem mais um
segundo.
— Você está cansada da viagem, D. Precisa dormir. Sei que
veio de uma conferência.
— Não! — ela negou com a cabeça.— Se existe algo que eu
detesto mais do que promotores, é ver jovens presos injustamente.
Vamos até a delegacia. Consegui um habeas corpus e ele volta para
a irmã hoje mesmo. Se você diz que ele é inocente, então ele é
inocente.
Devan caminhou à frente, levando as malas de Dianna até o
carro estacionado. Eu e ela fomos atrás. Enquanto eu tagarelava
sem parar, D, por algum milagre, permanecia calada.
Até finalmente se pronunciar:
— Ele é suspeito — disse.
Eu juntei as sobrancelhas.
— Ele quem?— perguntei.
Ela apontou para Devan com a cabeça.
— Caldwell.
Eu neguei com a cabeça.
— Não, D.. Devan é confiável.
— Tem certeza, S?— ela perguntou baixo, enquanto
observávamos Devan colocando a mala no porta-malas.— Da última
vez que você me falou de Devan, disse que ele era amante de
Maddie Anderson e que deixava o quarto trancado.
Dianna continuou andando, enquanto eu diminuía os passos
e escutava sua voz ecoando em minha cabeça, dirigindo meus
olhos a Devan. Ele cruzou os braços e esperou que Dianna
adentrasse o carro. E, quando isso aconteceu, me olhou. Primeiro
ele juntou as sobrancelhas, provavelmente estranhando o fato de eu
ter parado no meio do caminho.
Depois, ele sorriu. Foi um sorriso simples e discreto, sem
mostrar os dentes.
Não tinha como ser mais perfeito que aquilo.
Devan era suspeito?
Loucura nunca fez parte do meu vocabulário. Eu nunca quis
fazer nada arriscado demais, para não chamar uma atenção
desnecessária para mim. Gostar de ser invisível era um fato
irrefutável em minha vida.
A última loucura que fiz foi há anos atrás, quando tomei
coragem para arrombar o cadeado do orfanato Coolley e ir embora,
sem olhar para trás.
E agora eu estava aqui.
Em frente à porta do quarto de Devan.
Prestes a invadi-lo com a ajuda de grampos de cabelo.
Não é tão difícil fazer isso. Quando tinha dezessete anos,
arranjei grampos de cabelo e, quando todos estavam ocupados
demais para me notarem, eu trancava a porta do quarto que dividia
com as garotas de L e treinava. As primeiras vezes eu não
consegui. Quebrei quase que a caixinha inteira de grampos da
megera Charlotte, até finalmente destrancar a porta.
Depois treinei com fechaduras um pouco mais difíceis. O
casarão que abrigava os órfãos era antigo, então as portas também
eram. As fechaduras eram mais trabalhadas e sofisticadas, nada tão
simples quanto um cadeado. Então, se eu conseguisse abrir uma
das portas do orfanato, facilmente abriria um cadeado.
Ter chegado onde cheguei foi a prova de que deu certo.
O fato é que, pela manhã, quando Dianna plantou uma pulga
atrás de minha orelha, soltou a bomba e simplesmente se foi, eu
não conseguia tirar o que ela disse da cabeça. Eu já estive no
quarto de Devan, mas naquela noite ele estava para lá de bêbado e
pareceu nem ter notado que o ajudei. Entrei, mas não mexi em nada
além da foto de sua irmã e sua sobrinha. A ideia nem passou pela
minha cabeça, talvez por eu ter ficado chocada demais com suas
revelações, e porque eu confiava nele.
Confiava não, confio.
Eu confio cegamente em Devan.
Apesar de ele ser um escroto na maior parte do tempo, sei
que posso lhe oferecer minha vida que ele a guardaria e a
protegeria com unhas e dentes.
O problema é que, quando plantam uma semente da
discórdia em minha cabeça, minhas paranoias se encarregam de
ser o adubo.
E cresce.
E cresce.
E cresce.
Até eu dizer chega e agir.
Certifiquei-me de que Devan estaria longe durante toda a
tarde. Disse a Robin que precisava fazer algo, e que ela desse um
jeito de manter Devan longe. Ela obrigou Blaine a fazer isso, sem
revelar o motivo, é claro, e agora o garoto estava na sala de
reunião, formulando teorias idiotas e que não fazem sentido algum,
sem entender bem o motivo de estar fazendo aquilo.
Esta era minha deixa.
Olhando mais uma vez para todo o corredor, enfiei a mão em
meu decote e tirei os grampos do sutiã. Me abaixei até os olhos
estarem na altura da fechadura, e comecei a tentar.
Depois de alguns segundos, talvez um minuto, o barulho da
porta sendo destrancada soou e eu sorri. Antes de adentrar o
quarto, eu respirei fundo e ponderei se faria aquilo ou não. Se
fizesse, correria o risco de Devan, se descobrisse, nunca mais
confiar em mim, e eu não queria perder isso. Demorei muito tempo
para conseguir. Por outro lado, se eu não checasse nada com meus
próprios olhos, nunca mais conseguiria dormir já que minha cabeça
martelaria para sempre com pensamentos tóxicos.
Eu precisava fazer isso.
Levei minha mão até a maçaneta e abri, minha barriga
borbulhando em ansiedade.
Tudo estava do mesmo jeito.
A bagunça de Devan ainda era a bagunça de Devan.
A foto de sua família ainda estava apoiada no abajur.
O seu cheiro ainda estava impregnado no local, mas desta
vez, eu olharia todos os cantos de seu caos.
Comecei pelos papéis espalhados. Eram só arquivos e
relatórios sobre os casos. Depois, nos armários que abrigavam suas
roupas. Nada além do esperado. Procurei por baixo do tapete e por
baixo da cama. Atrás dos quadros e no colchão.
Nenhuma pista.
Nada, literalmente nada suspeito.
A culpa recaiu sobre mim e me sentei na cama, cansada. Eu
não deveria ter duvidado de Devan. Não deveria ter entrado em seu
quarto e invadido sua privacidade.
Ele me entregou sua confiança, eu a amassei e joguei no
lixo.
Ao virar o rosto para o lado, a fim de ver se o travesseiro era
convidativo, eu estreitei meus olhos ao notar algo. A fronha do
travesseiro era escura, mas apesar disso, eu consegui perceber
algo diferente ali. Travesseiros normais apresentam relevo,
consequência de serem amassados tantas vezes. Mas aquele não.
Aquele estava reto.
Havia algo ali dentro.
Eu juntei as sobrancelhas e, sem pensar muito, levei minha
mão até lá. A infiltrei por dentro e agarrei o caderno de capa dura,
puxando-o para fora em seguida.
Ele era de um cinza fosco, daqueles que deslizamos os
dedos por cima e sentimos a suavidade de uma pena.
E, quando eu abri, senti meu coração palpitar.
As folhas eram sem linhas, e foram preenchidas com traços
precisos, formando desenhos.
E, naquela primeira folha, a minha imagem foi estampada.
As linhas eram delicadas e suaves. Eu estava na sala de reunião do
D.I.M.. Sei que foi meu primeiro caso, porque reconheci a roupa que
Devan desenhou tão bem. Eu estava sentada, um dos braços
deitado sobre a mesa e uma mão apoiando o rosto. Aquele desenho
era fiel a todos os meus traços. As sardas, os cabelos, os lábios, os
olhos. Tudo.
Com o coração martelando, virei a página. Era outro
desenho meu, desta vez, no refeitório do D.I.M.. A cabeça estava
baixa, enquanto eu provavelmente encarava o almoço. Os fios
negros dos meus cabelos caíam sobre meu rosto.
Virei outra página. Agora, eu tinha os olhos fechados e a
expressão serena. Aquele desenho foi feito no dia em que eu
desmaiei, e estava deitada sobre o sofá de sua sala.
Senti que iria explodir.
— Investigando o quarto de um investigador, doutora?
Estava tão surpresa que não me importei em ter sido pega
no flagra. Virei meu rosto na direção da voz, e encontrei Devan
apoiado no batente da porta, de braços cruzados e feição séria.
Levantei da cama.
— O que é isso, Caldwell?— perguntei em um sopro,
levantando o caderno em sua direção — Por quê no início você me
tratou como um lixo e agora eu encontro esses desenhos?—
murmurei — Por quê você me trata como se já me conhecesse?
A confusão em minha mente sobre o caso foi completamente
substituída pela confusão sobre Devan.
E eu não entendi absolutamente nada.
Devan suspirou e descruzou os braços, adentrando mais o
quarto e fechando a porta. Não tive medo. Continuei firme.
Precisava de respostas.
Ele deu alguns passos em minha direção, mas parou em
uma distância segura.
— Eu te conheço desde o dia que pisou no D.I.M., Sadie... —
revelou ele, com a voz suave — Você foi fazer a entrevista com
Thomas. Eu estava sentado nos sofás da sala de espera do andar
dele, precisava entregar os relatórios de um caso finalizado e pegar
outro. Você saiu pelo elevador e falou com Katherine. Estava tão
nervosa que preferiu ficar de pé, olhando a vista pelas paredes de
vidro e cutucando as unhas — sorriu fraco — Naquela época eu te
desejei. Desejei muito. Queria uma noite com você, mas por algum
motivo, não consegui levantar e andar até você.
Ele fez uma pausa, olhando para baixo, antes de voltar a
dizer:
— Quando você foi contratada eu soube dos casos que você
ajudou a solucionar. E então, não era só desejo que eu sentia por
você, Sadie. Era admiração... — Seus olhos brilharam — você é
incrível.
Eu tive que desviar meus olhos dos seus, porque não
aguentei toda a intensidade que eles transmitiam.
Devan deu mais um passo em minha direção. Eu não recuei.
— Eu geralmente não sinto isso, Sadie... — continuou — Eu
não tinha só vontade de transar com você. Eu queria conversar com
você. Queria chegar perto e ver você sorrir. Queria te levar para
jantar, talvez, e dizer o quanto você era encantadora, mas eu não
consegui. Não consegui ir até você. Eu fiz muitas coisas erradas na
vida, e matei as pessoas que amava. Não conseguia pensar na
ideia de te machucar também... — deu de ombros e olhou para o
caderno em minhas mãos — Então eu procurei me contentar com
os desenhos.
Pisquei algumas vezes, sem palavras. Devan levou suas
mãos até os fios dourados e os bagunçou levemente. Ele estava
nervoso.
— Eu te tratei mal porque não consegui controlar... — disse
ele, voltando a me encarar — Naquele dia, na minha sala, quando
descobri que você era daqui, eu surtei porque pensei que você
estava envolvida. E depois veio a tatuagem. Eu não conseguia
conciliar o meu lado que gostava de você, com meu lado que
desconfiava de você. Isso durou até eu perceber que só havia um
lado, Sadie, e ele era completamente seu.
Suas palavras fizeram meu corpo tremer e as borboletas no
estômago surgirem. Devan deu outro passo em minha direção,
agora, perto o suficiente para eu inclinar minha cabeça para trás, em
busca dos seus olhos avelã.
— Como posso ter certeza de que você não é o culpado
disso tudo, Devan? — indaguei, com palavras sussurradas.
Ele comprimiu os lábios e abriu os braços.
— Eu não tenho nada... — falou — Não tenho nenhuma
prova. Nenhum álibi. Apenas minha palavra, então escute... — Ele
aproximou-se ainda mais, e sua mão alcançou a minha. Seus
dedos tocaram os meus e senti um choque percorrer meu corpo
inteiro.— Olhe nos meus olhos, Sadie. Sinta isso. Eu não sou o
assassino. Nunca machucaria essas garotas. Nunca machucaria
você.
Devan entrelaçou sua mão na minha.
Devan não era o assassino.
Eu não sabia o que pensar depois de tudo o que ele disse,
mas sabia que ele me fazia sentir coisas que nunca senti, em toda a
minha vida. Devan não dizia só palavras bonitas. Ele as sentia, e
com todo o seu coração.
Percebendo que eu não sabia o que dizer, e ainda
segurando minha mão, Devan rodeou seu braço por minha cintura e
seu corpo colou no meu. Agradeci mentalmente seu braço firme em
mim, porque minhas pernas ficaram moles e pensei que cairia. Eu
sentia sua respiração em meu rosto e seu peito no meu, os dois
corações batendo tão forte, juntos, que eram completamente
compassados.
— Você fez muita merda, Devan... — sussurrei.
Ele assentiu.
— Eu sei... — Seu nariz raspou no meu — Mas eu não quero
desistir disso agora, a não ser que você me peça — murmurou. Sua
mão soltou a minha e seu outro braço circulou minha cintura mais
uma vez, me deixando ainda mais próxima.— Me peça, Sadie. Me
peça para soltar você. Me peça para sair daqui. Porque eu só vou
me afastar se você pedir.
Coloquei minhas mãos sobre seu peito, pronta para empurrá-
lo para longe, mas eu não consegui.
Eu não queria que ele se afastasse.
Não queria que ele me soltasse.
Não queria pedir para ele sair.
Eu o queria.
Devan arrastou seu nariz por meu rosto e encostou seus
lábios em minha mandíbula. Eu arfei quando ele desceu beijos
delicados por meu pescoço, e levei minhas mãos para sua nuca.
— Me peça, Sadie... — sussurrou em meu ouvido.
— Eu preciso de um tempo para pensar... — consegui dizer.
Devan concordou com a cabeça, e se afastou alguns poucos
centímetros para olhar em meus olhos.
— Eu te dou o tempo que quiser.
E então, meus olhos seguiram na direção de seus lábios.
Eles estavam convidativos demais, e eu não consegui me segurar.
Cheguei mais perto, mais perto e mais perto, até nossas respirações
se cruzarem.
Devan me beijou.
Sua boca colou na minha, em um primeiro momento, um
toque sutil e casto. Logo sua língua pediu passagem, e eu concedi.
Sonhar com um primeiro beijo bonito fez parte da minha vida por um
bom tempo. Mas não foi bonito. Agora, com Devan me beijando,
queria tê-lo conhecido antes e que tudo tivesse acontecido antes.
Sua mão subiu lentamente por minhas costas e seus dedos
se infiltraram por entre meus cabelos. A força daquilo tudo foi tão
grande, que nós nos movemos alguns centímetros e eu estava
quase contra a parede. Acho que nunca, jamais me esqueceria
desta sensação. A sensação de sua boca se encaixando na minha,
de sua língua se enrolando à minha e de seu aperto em minha
cintura. De seus dedos enfiados entre meus cabelos e da
intensidade a qual ele me beijava.
Nenhum outro beijo poderia chegar aos pés daquele.
Quando nos separamos, Devan mordeu levemente meu lábio
inferior, o que me causou um arrepio brutal. Porém, ainda deixou
nossas testas presas uma à outra.
Eu soltei o ar, ofegante.
Ele também.
Aos poucos e quase como se não quisesse, Devan encostou
seu lábio no meu mais uma vez, antes de deslizar as mãos pela
minha cintura e se afastar lentamente.
Me senti desestabilizada.
Completamente desestabilizada.
Caldwell deu três passos para trás e murmurou:
— Isso que está sentindo é forte, Sadie. Devastador. Você
tem todo o tempo que quiser, e eu vou respeitar, mas nunca vai
conseguir deixar pra lá e esquecer. Não depois disso. É tarde
demais.
Mais um passo para trás.
— Me diga quando estiver pronta.
Devan me deu as costas e saiu do quarto.
Corujas enxergam no escuro. Sei disso porque, certa vez,
assisti um documentário qualquer sobre animais noturnos que
estampava a tela da televisão, enquanto os outros órfãos faziam
qualquer outra coisa que não fosse prestar atenção no canal que
eles mesmos colocaram. Aquelas aves foram os animais que mais
se adaptaram à escuridão, enxergando tudo até na noite mais
escura, mesmo sem a face da lua, que iluminava parcialmente o
mundo. Esta habilidade se tornou muito útil para caçarem e se
alimentarem, quando o sol se punha e as nuvens cobriam as
estrelas no céu.
A madrugada foi o único momento de paz que consegui em
minha vida. Todos sempre estariam dormindo, então, não encheriam
meu saco. Eu aproveitava este momento para andar
sorrateiramente pelo casarão, escolher um livro na biblioteca e ler.
E, já que fiz isso tantas vezes, no escuro, acabei me acostumando
com a noite e meus olhos enxergavam tudo ao meu redor, como
uma coruja. Gosto de pensar que desenvolvi esta habilidade. Não
para caçar, mas para sobreviver.
Não havia um momento mais perfeito do que este para fugir.
Enfiando todas as roupas — que eram resumidas a
uniformes quadriculados — na mochila, eu estava em uma pilha de
nervos. Eu não teria outra chance. A adoção que Connor tanto
queria sairia depois de amanhã, e eu não conseguiria fugir depois
de hoje. Todas as tentativas de fuga foram frustradas. A diferença
desta, é que agora eu tinha um motivo ainda maior para não vacilar.
Fechei o zíper da mochila e a coloquei sobre os ombros.
Quando levantei a cabeça, percebi os olhos grandes e atentos de
Louise em mim.
Merda.
Puta merda.
Ela vai me dedurar.
Sem saber o que viria a seguir, permaneci parada, onde
estava. Louise me observou milimetricamente por alguns segundos,
mas não disse nada. Ela se levantou de sua cama, e eu fiquei em
alerta com a hipótese de ela sair correndo até o quarto de Charlotte
para, certamente, contar meus planos. Estava pronta para amarrá-la
na cama, se fosse preciso.
No entanto, ela não foi em direção à porta.
Louise caminhou silenciosamente até seu armário, tomando
o cuidado necessário para não acordar Lily e Lauren. E, de lá, tirou
roupas. Não os uniformes. Roupas de verdade.
Estendeu para mim.
Sem entender o que acabara de acontecer ali, só peguei as
roupas e soltei um sorriso fraco em agradecimento. Louise voltou
para sua cama e se deitou sobre ela, voltando a dormir.
Depois de trocar de roupa e guardar as que Louise me deu,
saí depressa e silenciosa pela porta, sem me preocupar em olhar
uma última vez para o quarto onde estive durante toda a minha vida.
Quando consegui destrancar o cadeado, senti o gosto da
liberdade chegando.
E ela era doce.
Deliciosa.
Corri pela rua sem olhar para trás, tão rápido que meus pés
batiam em minha bunda. A floresta não era tão longe do orfanato,
então eu chegaria lá rapidamente. E, em algum momento, cheguei.
Não prestei atenção no caminho, nem nas ruas que via pela
primeira vez. Só corri.
E não sentia medo.
Não senti medo quando adentrei a sombria floresta, nem
quando escutei o canto das amigas tão noturnas quanto eu, as
corujas. Não temi quando observei uma névoa densa subir. Eu tinha
um objetivo, e esse objetivo me deixava preocupada demais para
dar espaço para outros sentimentos.
Depois de alguns minutos correndo, escutei o barulho da
cachoeira e logo a encontrei. A pilha de pedras estava ali,
exatamente do jeito que Abigail indicou. Com um pouco de
dificuldade, retirei todas elas e cavei com a mão, a terra se
infiltrando por debaixo das minhas unhas e minhocas tentando
escapar dos meus movimentos furiosos, desesperados para
encontrar a bolsa.
Encontrei.
E sorri.
Sorri enquanto uma lágrima solitária escorria por meu rosto.
Abigail fazia falta.
Depois de lavar as mãos nas águas da cachoeira, em vez de
seguir para fora da cidade, eu ainda precisava passar em um lugar.
O caminho até ele foi longo e difícil, cheguei cansada e suada, mas
eu precisava fazer.
As porteiras da fazenda Jackson não eram tão altas, sendo
assim, pulá-las foi uma missão fácil. Eu caminhei encolhida por todo
o local, até chegar na grande e majestosa casa de portas pesadas
de madeira.
O grampo entrou em ação mais uma vez.
Quando entrei, pensei que meu coração sairia pela boca.
A casa estava sem nenhuma luz acesa, mas aquilo estava
longe de ser um problema para mim. Eu caminhei diretamente até
as escadas e subi degrau por degrau, devagar, com medo de o piso
ranger. Quando cheguei no segundo andar, escutei gemidos. E,
conforme eu caminhava pelo corredor, eles ficavam ainda mais
próximos.
Parei em frente à uma porta.
Tatum estava transando com uma garota. Ignorei e voltei a
caminhar.
Eu não tremia.
Não sentia medo.
Não sentia ansiedade.
Tinha a certeza de que iria até o final.
Eu encontrei o quarto de Connor Jackson pouco tempo
depois. Ao lado de sua cama, observando-o dormir, percebi que
Connor não parecia ter peso algum na consciência.
Ele abusava de mim todas as malditas semanas, e deitava a
cabeça no travesseiro sem problema algum.
Seu peito subia e descia tranquilamente. Sua expressão era
serena, tranquila.
Eu queria vomitar em cima dele.
Em vez disso, peguei o segundo travesseiro da cama e o
segurei entre minhas mãos, firmemente. Não hesitei em empurrá-lo
contra sua face, sem nenhuma brecha para o ar entrar.
Connor acordou. Ficou agitado e tentou sair. Ele era muito
mais forte que eu, mas minha vontade de tirar sua vida era tanta
que nada me faria sair dali. Nada me faria parar. Além do mais, eu
tinha a ajuda de uma velha amiga. A morte estava ali, ao meu lado,
juntando sua força com a minha, pronta para levar sua alma nojenta
para o inferno.
Connor parou de se mexer aos poucos, até estar
completamente estagnado. Suas mãos, que tentavam tirar as
minhas, caíram. Eu ainda permaneci ali por alguns segundos,
empurrando o travesseiro contra ele, embora soubesse
perfeitamente que ele já estava morto.
Sabia que não investigariam a morte de Connor Jackson. Os
policias de Coolley eram preguiçosos demais, provavelmente diriam
que foi uma morte natural. Por isso, sem um pingo de
arrependimento, eu saí do quarto em direção à liberdade.
A primeira coisa que vi quando abri os olhos foi Robin. Ela
estava dormindo em sua cama.
Minha boca e garganta estavam secas, consequência do
pesadelo. Eu precisava de um pouco de água e de, talvez, um
banho, já que estava suada e quente demais para voltar a dormir
agora. A sensação era como se eu tivesse corrido uma maratona. E
eu realmente corri no sonho.
Sentei-me, pronta para ir em direção à cozinha e pegar um
copo de água, mas assim que coloquei o polegar no chão, congelei.
A noite escura não me impedia de ver a silhueta sentada na
poltrona do quarto.
Senti que vomitaria meu coração. O pavor foi tão grande que
minhas mãos começaram a tremer instantaneamente. O homem
velava meu sono como uma mãe vela a noite de um filho. Como um
amante vela a noite de sua amada. Infelizmente, aquele não era de
um jeito bonito. Era de um jeito doentio.
Levei uma das mãos até a gaveta e procurei por minha arma.
Não encontrei.
Uma risada soou.
— Procurando por isto?— sua voz saiu abafada pela toca de
esqui cobrindo seu rosto.
Ele levantou a mão e balançou a arma como se estivesse
segurando um ursinho de pelúcia. Eu abri a boca para chamar por
Robin, mas ele me interrompeu.
— Ssshhhh... — sussurrou, levando o indicador até os lábios
e apontando a arma engatilhada para a segunda cama.
Para Robin.
Eu me calei. Senti a necessidade de agarrar os lençóis,
como se eles fossem me fazer sentir mais segura.
Ele não disse nada.
Não disse absolutamente nada.
Só ficou ali, parado, olhando para mim e apontando a arma
para Robin. E aquilo foi pior do que se ele fizesse mil ameaças.
Meia hora se passou.
Uma hora se passou.
Eu não me mexi.
Ele não se mexeu.
Depois de minutos intermináveis, ele se levantou.
Recuei na cama. O carpete no chão abafava seus passos
lentos e pesados, enquanto ele caminhava em minha direção. Minha
respiração tremia.
Na ponta da cama, ele parou. Seus olhos pairaram sobre
mim por mais alguns minutos antes de, mais uma vez, levar o
indicador até os lábios.
— Sssshhh.
Levando minha arma consigo, o DEATH deu-me as costas e
saiu pela varanda.
Será que alguém nesta sala já matou uma pessoa?
Será que eles também se perguntam se eu já matei alguém?
Porque eu matei.
Todos estavam reunidos, mas poucas pessoas conversavam
entre si. Ocupei um canto pequeno no sofá e sentei-me encolhida.
Estava em um estado automático e completamente em alerta. Tão
alerta que levei um susto quando o prefeito sussurrou algo para um
de seus empregados, provavelmente ordenando e desordenando
coisas. Não dormi durante o resto da noite, não comi, nem ao
menos bebi água. E, para tentar esquecer a visita inesperada e
indesejada durante a madrugada, passei a observar todos eles de
uma forma discreta.
Se eles já mataram, como fizeram?
Robin estava sentada ao lado de Blaine, lendo um livro,
enquanto ele teclava sem parar no notebook. Ela tinha uma
expressão concentrada, as sobrancelhas franzidas e os olhos
correndo para lá e para cá, indo de uma ponta a outra do livro em
poucos segundos. E, vez ou outra, como o de costume, empurrava
o óculos para cima. O livro que ela lia tinha uma capa bem
elaborada e título sombrio. Era um livro de suspense. Robin lia
muitos livros desse gênero e, se algum dia matou alguém,
provavelmente foi de um jeito inteligente. Ler livros como aqueles
geram ideias mirabolantes na cabeça. Se Robin fosse uma
psicopata, certamente não deixaria rastros. Ela conhecia
medicamentos fortes. Drogas que, se administradas de forma
errada, são capazes de acarretar consequências irreversíveis. E
depois, deixaria propositalmente uma trilha de pistas lógicas que
culpariam algum enfermeiro.
Droga.
A verdade é que eu sabia que, se a garota algum dia matara
alguém, provavelmente foi em um acidente de trânsito e que nem
seria sua culpa.
Blaine conhece caras. Sei que já esteve envolvido com
hackers da pesada, e que fez coisas absurdas com a internet antes
de se tornar detetive do D.I.M.. Coisas como invadir lugares que
jamais poderiam ser invadidos, vasculhar informações secretas do
governo, atingir camadas difíceis e profundas da deep web e
assustar pessoas que não sabem o mínimo sobre tecnologia,
ligando suas webcams do nada e desligando seus computadores
com uma facilidade que, certamente, pensariam ser algum fantasma
assombrando sua casa. Blaine já teve um passado sombrio. E, se
algum dia matou alguém, grande parte do seu trabalho foi feito com
a ajuda de sua amada e destruidora vida digital.
Milagres do século XXI.
Owen Lancaster seria desleixado. O garoto não tem
experiência, e como todos os jovens, seria apressado. Faria de
qualquer jeito, talvez empurrando de uma escada ou em um
atropelamento. Não arrumaria a bagunça e, se saísse impune, os
créditos com certeza seriam dedicados a uma gigantesca onda de
sorte, quase um tsunami.
Natalie pegaria um travesseiro e sufocaria. Somos parecidas.
Blake Anderson pagaria alguém. Ele não sujaria suas mãos
de sangue, afinal, ele as usava para assinar projetos beneficentes à
população.
Katherine e Dianna fariam juntas. Elas são espertas, e se
tornariam ainda mais com um conjunto de ideias vindas de suas
mentes e que, juntas, formariam o crime perfeito. Um crime que nem
o melhor dos melhores detetives descobriria.
Embora todas essas suposições vagarem livremente por
minha cabeça, não consigo me distrair.
Não importa o quanto eu tente pensar em outra coisa.
Não importa o quanto eu tente focar em outra coisa.
Nada me faz esquecer a imagem dele, sentado na poltrona,
me observando por uma maldita hora.
Eu nunca me senti tão impotente como naquele momento.
Nunca senti tanto medo, tanto pavor como naquele momento. Eu
estava na mira do DEATH.
Cedo ou tarde, ele puxaria o gatilho.
Meus olhos foram atraídos para a escada, onde Chase
descia degrau por degrau discretamente. Seus hematomas
melhoraram muito, seu nariz já havia voltado para seu lugar de
origem. Os olhos verdes me encontraram ali, enquanto eu o fitava, e
ele sorriu fraco antes de desviar e sair pela porta.
Levantei-me e corri para alcança-lo.
Chase caminhava para fora do casarão quando o chamei.
Ele se virou para mim e enfiou as mãos nos bolsos de sua calça.
Seus olhos desceram instantaneamente para meu pulso. Os ombros
caíram quando percebeu que o hematoma não havia se curado
totalmente.
— Oi — eu disse.
— Oi... — respondeu — Como você está?
Dei mais alguns passos em sua direção.
— Estou bem. Não falei com você depois que Maddie...
Eu não completei a frase.
Eu não conseguia completar.
Limpei a garganta.
— Você está bem? — perguntei por fim.
Ele assentiu.
— Estou. Eu não era muito próximo dela, de qualquer forma.
Deu de ombros.
Soltei um suspiro.
— Escuta, eu não queria que as coisas ficassem assim. Você
ainda é meu melhor amigo, Chase.
— Tá tudo bem, pequena — ele rebateu — eu vou ficar na
casa da minha mãe agora. Já marquei com uma psicóloga da
cidade e acho que vou melhorar — abriu os braços lentamente —
Posso te...
Eu não esperei Chase terminar de falar para caminhar
rapidamente até ele e me enfiar entre seus braços.
Nunca tive medo de morrer. Era engraçado pensar que,
antes, eu brincava com a morte como se ela fosse uma bola de
basquete, e agora, eu só queria correr para longe. Eu sabia que ela
estava cada vez mais perto de me alcançar. Por isso, queria que
todos ao meu redor ficassem bem. Robin tinha Blaine e vice-versa.
Katherine, agora, tinha Dianna. Natalie e seu irmão estavam juntos
novamente. Chase tinha os pais e as memórias que construímos
juntos.
Ele afagou meus cabelos e disse que tudo ficaria bem. Eu
acreditei em suas palavras. Depois de alguns instantes, se afastou e
se foi.
Assim que meus olhos já não podiam mais vê-lo, meu celular
apitou.
Caldwell: preciso falar com você.
Passei meus olhos pelo local e vi Devan sentado em um dos
bancos da praça. Meu estômago borbulhou por antecipação.
Tentando conter meu coração, atravessei a rua e caminhei
até ele. Devan acompanhou todo meu percurso, passo por passo,
até estar sentada ao seu lado.
Como agir depois de tudo o que ele me disse?
Beijá-lo mais uma vez? Mais outras vezes?
Céus, eu queria beijá-lo muitas outras vezes.
— Eu sei que você e o mauricinho têm uma história... sei que
são muito próximos...— comentou ele, com a voz em um tom mais
baixo.— Mas ele está envolvido, Sadie.
Eu juntei as sobrancelhas e me virei para ele.
— Envolvido no quê?
— Nos assassinatos.
— Não — neguei com a cabeça.
Devan respirou fundo.
— Vamos, Sadie, você não é ingênua assim... — afirmou —
Esse cara conhece você e claramente quer chamar sua atenção.
Chase se encaixa em tudo. Ele estava aqui quando as mortes
começaram.
— Não pode ser ele, Devan.
— Por quê?
— Porque... — parei de falar, ponderando se contaria ou
não.
Devan se levantou do banco e caminhou até estar em minha
frente, ajoelhando-se logo em seguida. Seus olhos avelã fitaram os
meus.
— Você sabe de algo que eu não sei, Sadie?
Fechei os olhos respirei fundo.
Em vez de falar, desbloqueei meu celular e entreguei as
mensagens para ele.
Devan leu e releu todas elas.
— Chase estava comigo quando recebi.
Em um primeiro momento, Caldwell ficou petrificado no lugar.
Depois se levantou, ainda encarando a tela do celular, andando de
um lado para outro.
— Por que não me disse?— ele indagou, voltando seus
olhos para mim.
Ele estava irritado e conseguia ver claramente seu estado
pelo seu tom de voz.
— Como eu poderia se de todas as palavras que você disse
a mim, metade delas eram ameaças?
Minha voz saiu um pouco mais alta que o normal.
Devan soltou o ar com força e olhou para o celular mais uma
vez.
— Droga, Sadie... — ele murmurou — Aconteceu mais
alguma coisa?
Eu balancei a cabeça lentamente, anuindo. Sem que eu
conseguisse impedir e sentindo o pavor da noite anterior voltar com
tudo, meus olhos se tornaram marejados.
— Ele esteve no meu quarto ontem... — soprei, as mãos
começando a tremer — Ele pegou minha arma e ficou me olhando.
Eu estou com medo, Devan...
Olhei para baixo e me encolhi. Agora eu entendia o que
Nancy Fox, a garota que sobreviveu ao DEATH, sentiu. O pavor e o
desespero subindo, furando lentamente a pele e rasgando-a em
pedaços.
Devan praguejou um palavrão e voltou a se ajoelhar em
minha frente, segurando minhas mãos entre as suas.
— Não há maneira alguma que me faça deixar algo
acontecer com você, Sadie... — disse firme, com seus olhos me
passando a segurança que precisava — Confia em mim?
Assenti.
— Confio.
Devan me abraçou.
Eu queria que as pessoas ficassem bem depois de minha
morte. Que elas tivessem umas às outras para consolarem-se e
apoiarem-se. Todos tinham alguém com quem contar.
Devan não.
Devan não tinha absolutamente ninguém.
De braços cruzados, eu observava Blaine Donovan teclar
rapidamente e freneticamente em seu notebook. Devan estava ao
seu lado, de pé, esperando que o gênio resolvesse o que precisava
ser resolvido.
O quarto de Blaine poderia ser comparado ao quarto de um
adolescente de dezesseis anos. O armário, locado em uma das
paredes, só servia como enfeite, já que absolutamente todas as
suas roupas estavam espalhadas pelo chão, pela cama, pela
poltrona e até mesmo na maçaneta da porta. As cortinas estilo
blackout estavam fechadas, impedindo todo e qualquer feixe de luz
que tentasse adentrar e iluminar o ambiente, como se ele fosse um
maldito vampiro. E eu esperava, de todo o meu coração, que Blaine
arrumasse toda essa bagunça antes de irmos embora, e não
deixasse essa bomba nuclear explodir nas mãos dos funcionários
de Blake Anderson.
— Não consegue ser mais rápido? — Devan questionou.
Blaine respirou fundo.
— Se você perguntar isso de novo, eu juro que invado seu
computador lá no D.I.M. e coloco pornografia pra rodar. Bem alto.
Devan bufou, mas continuou ao seu lado.
— Imbecil — praguejou, dando um tapa em sua cabeça
antes de cruzar os braços mais uma vez.
Devan disse que Blaine poderia ajudar. Se ele conseguisse
rastrear o número de celular que me mandou as mensagens,
certamente acharíamos o culpado, ou pelo menos alguma pista.
Depois de ter levado uma bronca de Robin sobre esconder as
mensagens, Blaine se pôs a trabalhar arduamente para localizar o
assassino.
— Posso perguntar o porquê destas mensagens, ou esse é o
limite?— Robin perguntou, sussurrando ao meu lado.
Eu suspirei e me virei para encará-la.
— As pessoas não gostavam de mim quando eu morava
aqui, Robin... — esclareci — talvez o assassino também não goste.
Certamente não gosta.
Não queria deixar Robin preocupada com isso. Ela já estava
uma pilha de nervos por causa de toda essa merda que nos rodeava
e nos envolvia como fumaça, nos matando aos poucos, enquanto o
incêndio se alastrava tão rápido quanto um piscar de olhos. Não
queria encher sua cabeça de mais paranoias e mais medo. Para
isso, a minha mente já bastava.
E eu não estava preocupada com o fato de o assassino estar
atrás de mim, até perceber que tinha muito o que perder.
Eu ainda precisava dar o empurrão necessário para que
Robin voasse.
Ainda precisava ensinar muita coisa à Natalie e Owen.
Ainda precisava ver Katherine e Dianna se casarem e talvez,
terem filhos.
Precisava fazer Blaine tomar jeito e arrumar seu quarto.
Precisava fazer Chase entender que nós ainda temos muito
tempo para compensar os anos.
E precisava de Devan.
Olhando-o de longe, com a expressão tensa e pronto para
fazer de tudo para encontrar o assassino, percebo que não podia
perde-lo também.
— Eu estou com medo — Robin sussurrou.
Virei para ela novamente. Seus fios estavam mais lisos, seus
olhos mais expressivos, os traços mais temerosos. Robin
apresentava um conjunto de feições que declaravam piamente o
quanto estava se sentindo mal. Mal por mim. Ela temia por mim.
— Não se preocupe, Robin. Tudo vai se acertar, ok?
Ela assentiu e encarou o chão.
— Achei — Blaine afirmou.
Por um momento, perdi o ar.
E me recompus rapidamente quando os olhos de Devan
encontraram os meus e me passaram segurança.
Blaine soltou uma risada.
— Deus... quanto mais fuçamos, melhor fica — murmurou
ele.
— Como assim?— Robin perguntou.
Blaine girou a cadeira para trás e me encarou.
— O celular está em uma das propriedades de Tatum
Jackson... — revelou — No orfanato Coolley.
Puta merda.
Eu não entrei.
Todos foram atrás do celular.
Eu fiquei no carro.
Era muito para mim.
Eu prometi que nunca mais ousaria pisar naquele maldito
lugar, e cumpriria essa promessa até o fim da minha vida.
Depois de um tempo, Devan e a equipe voltaram. Eles
tinham achado o celular embaixo das tábuas de madeira que
cobriam o piso, junto com uma revista de letras recortadas e minha
arma.
E sangue.
Devan tem conhecimento amplo sobre química, e usou isso
ao seu favor. O luminol é um composto químico capaz de revelar
manchas de sangue mesmo que ele tenha sido limpo. Ele reage
com o ferro, e o resultado é um neon puro. É muito utilizado em
investigações como esta, para identificar locais de crime. Então,
para ter certeza, Devan jogou um pouco de sua substância mágica
aqui e ali.
O chão do orfanato acendeu como uma placa de Las Vegas.
Logo depois que encontramos as provas, Devan prendeu
Tatum. E, quase que imediatamente, Blaine precisou assumir o
controle do interrogatório já que, quando Tatum passou por mim
com um sorriso cínico nos lábios, Devan o socou com uma força
capaz de partir aço.
— Eu deveria estar lá — ele murmurou ao meu lado.
Tirei meus olhos do espelho e me virei em sua direção.
Devan tinha os braços cruzados e os olhos selvagens focados em
Tatum Jackson, que não respondia a nenhuma das perguntas de
Blaine.
— É o que você ganha por ser cabeça quente — disse.
Devan virou seu rosto em minha direção e estreitou os olhos.
Inclinou a cabeça, puxando seus lábios para cima em um sorriso
torto.
— Está se divertindo às minhas custas, doutora?
Segurei o sorriso.
— Você faz uma cara engraçada quando está frustrado.
De pouco em pouco, o sorriso de Devan sumiu e seu rosto
se tornou sério. Eu estranhei sua reação, mas quando ele deu
passos até estar em minha frente e abraçou minha cintura, senti
meu coração errar uma passada.
E logo havia um pequeno estrago em minha calcinha.
— Eu daria tudo para ver sua cara quando estivermos em
uma cama... Ou quem sabe no meu escritório do D.I.M.? — Arfei
quando seus lábios se arrastaram por meu pescoço — Ou então na
sala do Thomas quando ele não estiver, perto da parede de vidro.
Detroit inteira veria.
Caldwell mordeu levemente o lóbulo da minha orelha.
— Devan... — sussurrei, a voz em um fio difícil demais de
segurar, subindo minhas mãos por seus braços — Aqui não...
Devan soltou uma risada curta e rouca em meu ouvido. Eu
me arrepiei.
— Eles não podem nos ver... — sussurrou, antes de me
olhar nos olhos — Mas não vamos fazer nada agora, Sadie.
Senti frio quando seus braços me livraram de seu aperto, e
quando ele se afastou.
— Quero fazer isso quando você tiver certeza — falou.
Engoli em seco, observando-o enfiar as mãos em seus
bolsos e deixar seus olhos colados em mim.
A porta se abriu e o rosto de Blaine surgiu.
— Ele quer falar com você — disse, me encarando.
— O quê? Por quê?— perguntei.
Blaine deu de ombros.
— Ele disse que só fala com você.
— Não.
Encarei Devan que, diferente de minutos atrás, tinha a
expressão dura e implacável. Ele olhou para mim.
— Você não vai entrar lá. Não sozinha.
— Vai ficar tudo bem, Devan.
— Não — repetiu.— Esse cara mandou mensagens
assustadoras a você, Sadie.
— Ele está de algemas... — falei, caminhando até ele e
segurando seu rosto com as duas mãos — Vai dar certo. Confia em
mim.
— Sadie...
— Confia em mim — repeti.
Devan soltou o ar.
— Fica perto da porta.
Eu assenti.
Quando adentrei a sala de interrogatório, levemente
intimidada, Blaine fechou a porta atrás de mim. Tatum levantou a
cabeça e seus olhos me encontraram.
— Olá, sardinha — sorriu de lado.
Suas mãos estavam presas uma à outra, seus dedos
entrelaçados. As algemas presas em seus pulsos e ao arco colado à
mesa o impediam de andar até mim, e de alguma forma, me
machucar. Mesmo assim, caminhei diretamente para o lugar o qual
me sentiria segura. Para perto de Devan. Eu sabia que ele estava
do outro lado do espelho, pronto para entrar na sala e me tirar de lá
se algo acontecesse, então, mesmo que eu não pudesse vê-lo, me
encostei ali e nada me tiraria.
Ele estava logo atrás de mim.
Eu sentia.
— Por que não se senta comigo, sardinha? — ele perguntou,
apontando para a cadeira à sua frente com a cabeça.
Enfiei minhas mãos nos bolsos de minha jaqueta.
— Estou bem aqui — murmurei.
Estampando um sorriso arrogante no rosto, Tatum se
recostou na cadeira e me fitou por alguns segundos.
— Você não é mais a mesma, sardinha... — comentou — Até
que ficou gostosa.
— Cala a boca, seu nojento — praguejei — Você me
mandou aquelas mensagens?
Tatum sorriu.
— Mandei.
Soltei o ar, irritada.
— A troco de quê? — perguntei, a voz alcançando um tom
frio.
— Quando estávamos no orfanato, a melhor parte do meu
dia era perseguir você — revelou — Quando você voltou, resolvi
relembrar os velhos hábitos.
— Você é um doente... — murmurei — Como pode matar
todas aquelas garotas?
Tatum não respondeu à minha pergunta, mas me fitou por
intermináveis instantes, até finalmente se pronunciar:
— Eu estive te observando durante essas semanas, Sadie.
Vi você e o idiota do Chase juntos. Vocês fizeram até a porra de um
piquenique noturno juntos. Patético pra caralho. Depois ele levou
você para o quarto... — sorriu malicioso — Você gemeu, Sadie?
Gritou alto como uma cadela?
Fiquei enjoada instantaneamente.
— Você é sujo, Tatum. Podre. Tudo o que sempre fez comigo
foi me humilhar. Me ridicularizar. Mentir.
Tatum batucou os dedos na mesa duas ou três vezes.
— Veja se estou mentindo agora, sardinha... — murmurou —
Abigail deixou uma carta para você.
Suas palavras me atingiram e me fizeram estremecer.
Pisquei algumas vezes, surpresa.
— O quê...?
— Abigail escreveu uma carta para você, pra entregar
quando você saísse do orfanato. Quando ela morreu, Charlotte a
encontrou e guardou em seu escritório. Quando assumi todas as
propriedades Jackson, acabei ficando com a carta.
Minhas mãos começaram a tremer. E, sem conseguir me
segurar, caminhei alguns passos, até estar no meio da sala, a
alguns centímetros da mesa.
— Você está blefando.
Tatum riu.
— Eu sabia que você era inocente, Sadie... Mas burra? —
Negou com a cabeça — Não... você não é burra.
Segurei o ar.
— Você leu?
Ele sorriu e, se levantando da cadeira, afirmou:
— É claro que eu li — Apoiou as mãos na mesa — Está na
minha fazenda. Mas está escondido. Se quiser que eu diga onde
procurar, vai ter que chegar mais perto.
Nojento.
Prepotente.
Lixo de merda.
A porta se abriu. Em uma velocidade quase assustadora,
Devan chegou onde estávamos e empurrou Tatum em direção à
cadeira, que quase se partiu ao meio com o peso brutal de seu
corpo.
— Eu vou me certificar de fazer você passar o resto da vida
na cadeia, seu desgraçado... — murmurou entre dentes — Sabe o
que acontece com riquinhos mimados na prisão? Sabe o que os
caras barra pesada fazem com tipos como você?
— Devan, já chega. Vamos embora — pedi.
Foi inútil.
— Eles transformam sua vida em um maldito inferno... —
continuou e, chegando mais perto com uma expressão assustadora,
Devan praguejou: — Mas até lá, eu me encarrego de fazer você
comer o pão que eu mesmo amassei.
Palavras cuspidas e embebidas em ódio.
E pela primeira vez desde que foi preso, o sorriso irônico já
não estampava mais o rosto de Tatum.
Se concentra. Não erre de novo. Não perca de novo.
Você consegue, Sadie.
Ergui meu braço, deslizando-o pelo ar e levando-o para trás
do meu corpo. Contei cinco segundos mentalmente, preparando-me
para o que viria em seguida. E, depois de respirar fundo, em um
impulso, cortei o ar ferozmente e lancei a faca, em direção ao alvo.
Ou, pelo menos, tentando lança-la em direção ao alvo.
Estávamos na floresta há aproximadamente uma hora.
Nenhuma das minhas tentativas foram certeiras.
Muito menos essa.
A força foi ok.
A velocidade também.
A mira foi um lixo.
O alvo estava no centro do tronco de uma das árvores. A
faca atingiu a árvore ao lado.
— Que droga!— praguejei, irritada — Esqueça, Devan. Eu
sou péssima.
O loiro sorriu, o ombro apoiado no tronco de uma árvore e os
braços cruzados.
— Não é tão fácil quanto parece, Sadie. Exige treino. Nós
ficamos pouco tempo aqui, é normal você errar.
Bufei.
Eu estava sem minha arma, já que ela foi apreendida por ser
uma prova. Precisava me sentir segura novamente. Sabia que
havíamos prendido Tatum e que ele provavelmente era o assassino,
já que encontramos as revistas recortadas no orfanato, mas eu
sentia que aquilo ainda não havia acabado. Por isso, caminhei até o
quarto de Devan e dei dois toques. Ele abriu, sorriu e me pediu para
entrar. Quando contei que precisava de uma de suas armas
emprestada, Caldwell notou que eu estava com medo. Notou que
estava insegura e que precisava de algo para me apoiar. Ele me
emprestou a arma, mas com a condição de que iríamos na manhã
seguinte até a floresta, e que o deixasse me ensinar algumas
poucas coisas sobre defesa.
Eu aceitei.
Nós ainda ficaríamos um tempo em Coolley, já que tudo em
Detroit precisava ser organizado para a brilhante e ilustre chegada
de Tatum Jackson. Blaine viajou noite passada para lá. Ele foi
premiado com a missão nobre e chata de arrumar papeladas,
marcar o julgamento, organizar os arquivos e finalizar o relatório.
Depois disso, eu e o resto da equipe — Katherine, Robin e Devan —
voltaríamos para Detroit com o assassino em mãos. Ele seria
julgado e condenado, além de ser avaliado por um psiquiatra e um
psicólogo para, talvez, ser internado em um hospital psiquiátrico,
onde muitos outros criminosos perturbados perambulavam com
seus macacões cinzas e enfermeiras cheias de drogas presas à tira
colo.
— Eu não entendo porque você quer tanto que eu acerte a
merda daquele alvo! — murmurei frustrada — O caso já acabou e
você já me deu uma arma. Pra quê eu vou usar uma faca?
Devan soltou um suspiro, enquanto se desencostava do
tronco e caminhava até a pobre árvore, que nem foi escolhida para
ser o alvo, mas que recebia todas as minhas espetadas cruéis.
— A arma é a primeira coisa que um assassino nos tira,
Sadie, quando somos reféns... — disse ele, puxando a faca da
casca do tronco — E não importa que este caso tenha acabado.
Você escolheu essa profissão, e você é a grande responsável por
acharmos os assassinos. Então todo cuidado é pouco. E essa
gracinha aqui fica escondida. Ninguém vê. Quando acharem que
você está desprotegida, na verdade estará muito bem
acompanhada.
Devan caminhou até mim lentamente, a passos de tartaruga,
enquanto brincava com a faca na ponta de seu dedo.
— O que você precisa fazer, é focar no seu alvo...
Ele andou até estar atrás de mim, e senti seu corpo se
aproximando do meu. Não demorou muito para que eu notasse sua
respiração em meu pescoço.
— Deixe seus olhos no alvo, Sadie... — instruiu em meu
ouvido, seus dedos subindo por meu braço, provocando arrepios em
todas as partes do meu corpo — foque nele, e não desvie enquanto
a faca não estiver pregada em um dos círculos.
Com a outra mão, Devan tocou a minha e me entregou a
faca. Eu não conseguia pensar direito, não com ele tão próximo.
Com Devan por perto, minha parte com juízo sumia, evaporava. A
parte sem qualquer raciocínio lógico dominava completamente,
tomava todo o meu corpo.
Segurando delicadamente meu pulso, Devan ergueu meu
braço em direção ao alvo.
— Está conseguindo enxergar?— perguntou ele.
Eu afirmei com a cabeça.
— Ótimo... — disse, a voz rouca — Agora respire fundo e
prenda o ar nos pulmões. Depois é só lançar.
Devan se afastou.
Fiz o mesmo que todas as outras vezes. Levei meu braço
para trás, contei cinco segundos. Puxei o ar com força e o tranquei
em meus pulmões. Escutei o barulho da lâmina afiada rasgando o ar
quando a lancei.
A faca fincou-se no segundo círculo, de fora para dentro.
Eu precisei de alguns segundos para processar aquela
imagem. E, quando percebi o que fiz, eu sorri e me virei para ele.
— Consegui.
Devan retribuiu, seu sorriso iluminando seu rosto de pouco
em pouco.
— É... você conseguiu.
Eu o fitei por alguns segundos. Alguns muitos segundos.
Seus olhos avelã transmitiam a mesma intensidade que os meus,
provavelmente, também mandavam para ele. Porém, depois disso,
não consegui impedir minhas íris, que desceram mais alguns
centímetros por seu rosto e pararam em seus lábios.
E eu estava cansada de resistir.
Caminhei até ele a passos decididos e duros. Segurei o rosto
de Devan com as duas mãos e o beijei.
Caldwell não demorou nem um milésimo de segundo para
abraçar minha cintura com firmeza e retribuir o beijo. Ele queria meu
corpo colado ao seu, e não se contentava em apenas leva-lo para o
perto de si. Meu peito parecia estar colado ao seu com cola quente.
E que esquentou, e esquentou, e esquentou.
Já estávamos em chamas.
O beijo de Devan jamais sairia de minha memória. Seus
lábios se encaixavam nos meus perfeitamente, sua língua não
deixava de dançar em sincronia com a minha, seu aperto não cedia.
Suas mãos passeavam por minha cintura, por minhas costas, por
minha nuca.
Eu queria mais daquilo.
Muito mais.
O empurrei contra a primeira árvore que vi, e passei a
desabotoar sua camisa social amarrotada. Enquanto isso, seus
lábios desceram para meu pescoço e suas mãos continuavam
firmes em minha cintura. Ali, ele mordiscava, beijava e chupava,
como se fossemos adolescentes fugindo das regras.
Eu não tive uma adolescência típica.
E agora, Devan estava me fazendo tê-la.
Sentia que tudo estava vindo com a força brutal que os
hormônios de dezesseis anos deveriam trazer. A excitação, o
desejo, a vontade. A paixão.
Depois de abrir sua camisa, me afastei o tanto que ele
permitiu para encarar seu peitoral e arrastar meus dedos por ele.
Devan parou seu trabalho em meu pescoço e deixou seus olhos em
mim, enquanto eu explorava os caminhos de seu corpo.
Quando cheguei na cicatriz, me abaixei e, lentamente,
deslizei minha língua sobre ela.
Aquilo foi tudo o que Devan precisou para perder o fio de
controle que segurava.
Não pude deixar de sorrir com o efeito que causo nele.
— Agora nós vamos foder, Sadie... — murmurou com a voz
rouca, enquanto trocava nossas posições e me prendia contra o
tronco da árvore — quero ouvir você gemendo meu nome... —
Olhando nos meus olhos, Devan desceu uma de suas mãos por
meu corpo até chegar em minha calça — eu vou gemer o seu... —
Abriu o zíper e, com minha ajuda, desceu minha calça — Você vai
ver cores que jamais verá com outra pessoa — afastou minha
calcinha.
Eu tremia em expectativa enquanto ele elevava meu corpo
suavemente, o que me fez ficar alguns centímetros mais alta e
enrolar minhas pernas em sua cintura. Percebendo que a árvore
raspava minhas costas, ele me agarrou ainda mais e caminhou
comigo até o carro — que não estava tão longe dali —, me deitando
sobre capô e pairando por cima de mim.
Arfei quando seus dedos entram em contato com minha
intimidade. Devan trabalhava em mim como um expert. Como se
soubesse exatamente onde tocar, como tocar e o que fazer.
Eu já não conseguia segurar os sons de prazer que
escapavam por meus lábios.
Devan voltou seus lábios para meu rosto, para meu pescoço
e meu decote. Sua outra mão, a que segurava minha cintura,
arrastou as alças de minha regata e, clamando por um pouco mais
de sua atenção, ajudei a empurrá-la para baixo. Os lábios de Devan
se dirigiram rapidamente aos meus seios.
— Devan... — gemi, sentindo a sensação crescer.
— Mais alto, Sadie — ordenou ele.
Meus gemidos aumentaram, como se aquela frase tivesse
trazido a libertação que eles precisavam.
Antes de o orgasmo chegar, Devan tirou seus dedos de mim
e, apressadamente, levou as mãos até sua calça. Eu me sentei e
também fiz isso. Foi uma cena engraçada, porque os dois estavam
desesperados por aquilo tanto quanto respirar.
O loiro agarrou minha cintura com seus braços fortes e
arrastou suas mãos por minhas coxas, voltando a ficar por cima de
mim. Eu abracei sua cintura com minhas pernas, enrolando-as
firmemente. Foi então que eu, finalmente, senti a penetração. Seu
membro escorregou para dentro de mim e eu soltei um longo e
preguiçoso gemido, assim como ele. Eu pensei que havia acabado.
Mas, depois de alguns segundos, Devan estocou forte, chegando
muito mais fundo do que eu achei que chegaria.
Desta vez não foi um gemido preguiçoso. Foi um gemido
gutural, alto, que ecoou por toda a floresta.
Suas estocadas começaram. Elas eram fortes e profundas,
me fazendo delirar.
E, depois de um tempo, se tornaram rápidas também.
Devan me beijou mais uma vez, abafando nossos gemidos.
Dos meus lábios, ele passou novamente para meu pescoço e meus
seios, antes de pregar os olhos em meu rosto. Eu mordi o lábio,
fechei os olhos e encostei minha cabeça na lataria do carro,
estremecendo.
— Caralho, Sadie... — xingou ele em um gemido rouco,
antes de depositar um beijo molhado em meu maxilar — Essa é a
porra da imagem mais bonita que já vi.
Desencostei minha cabeça do capô e abri os olhos,
enxergando os seus. As pupilas estavam dilatadas e brilhantes,
entorpecidas pelo prazer. Juntei nossas testas, suas estocadas se
tornavam cada vez mais fortes. Cada uma delas, como ele
prometera, me fez ver cores que jamais vi com outra pessoa, e que
certamente jamais veria. Apenas com ele.
Ofegantes e suados, chegamos ao ápice.
Ele soltou meu nome com uma intensidade palpável.
Eu também soltei o seu.
Devan continuou me segurando firmemente, seu rosto
enterrado em meu pescoço. Mas, depois de alguns instantes, senti
seus lábios distribuindo beijos por ele, e fechei os olhos, meus
dedos passeando lentamente por seus cabelos dourados. Ele
chegou em meu rosto, e o caminho que ele trilhava com sua boca
não queria ter limite. Porém, em algum momento, teve.
Foi só aí que abri os meus olhos e fitei os seus.
Palavras não saíram por nossos lábios, mas nossos olhos já
diziam tudo.
Tatum não mentiu. A carta que Abigail havia deixado para
mim estava entre minhas mãos trêmulas. O envelope em que ela
estava foi coberto por manchas do tempo, amarronzadas, e a folha
que antes era branca, tornou-se amarelada. As letras bem
desenhadas de Abigail me deixaram com um frio na barriga e um
medo absurdo de lê-las, e não apenas encará-las. Porque eu passei
minutos à fio apenas fitando as frases bem construídas, me
obrigando a não processá-las em minha mente. Não enquanto eu
não me sentisse totalmente pronta para fazer aquilo.
"Querida Sadie" foram as únicas palavras que tive coragem
de ler daquela maldita carta.
Depois que Jackson foi preso, a equipe do D.I.M. recebeu
ordens para vasculhar sua fazenda e encontrar provas, ou talvez,
indícios de um cúmplice. Não encontramos nada em relação ao
caso. Entretanto, eu aproveitei a chance para, discretamente,
vasculhar suas coisas e tentar achá-la. Não foi tão difícil, ela estava
dentro de um dos livros. A parte realmente difícil viria agora.
Com uma linha fina de suor escorrendo por minha testa, eu
vasculhei o quarto para ter certeza de que estava sozinha. E então,
eu li:
"Querida Sadie,
Estou escrevendo esta carta para colocá-la junto à bolsa na
floresta — se der tempo. Tenho sentindo coisas estranhas,
ultimamente. Dores suspeitas no peito, cansaço repentino, tontura.
Fui ao médico, e ele disse que minha saúde não está tão boa. Na
verdade, ela está longe de ser boa. Talvez, por eu comer coisas que
não deveria comer e esquecer de tomar meus remédios algumas
vezes. Não fique brava comigo, ou triste, minha querida. E já vivi
muita coisa. Já sorri muito, já ri muito, já chorei e já amei. Já ganhei
muitos presentes. O último deles foi você, anjinho.
Minha filha, Margot, teve problemas quando engravidou.
Perdeu o bebê e precisou tirar o útero, que ficou comprometido. Ela
não poderia mais ter filhos, mas ela e seu marido, meu genro,
conversaram e resolveram adotar uma criança. Meu netinho chegou
e eu fiquei encantada com ele. Ele era incrível. Saudável. Um bom
garoto. E, depois de um tempinho, ganhei outra netinha. Ela não
chorava de fome ou precisava que trocassem sua fralda. Ela não
exigia tanto cuidado, porque já sabia se cuidar sozinha. Tudo que a
minha netinha precisava, era de um pouco de amor. Você precisava
de um pouco de amor, querida. Espero ter conseguido dá-lo a você.
Espero ter conseguido fazer você sentir que eu poderia ser seu
porto seguro, no meio de tantas coisas ruins pelas quais você
passou.
Você se lembra de quando estávamos no seu aniversário de
dezessete anos, e eu te disse sobre a bolsa escondida na floresta?
Quando te disse que aquele dinheiro não era meu? É porque ele
realmente não era, minha filha. Eu não conseguiria juntar uma
fortuna como aquela nem com um ano de trabalho. Por isso, preciso
que saiba a verdade. Há algumas semanas, dona Charlotte me
procurou. Foi ela quem pediu para que eu dissesse aquilo a você.
Pediu para que eu insistisse na sua aceitação quanto àquele
dinheiro. Foi ela que escondeu aquela bolsa lá. O dinheiro era dela,
querida.
Sei que Charlotte fez muitas coisas erradas com você, mas
se hoje você está aí, lendo esta carta, foi graças a ela. Não estou
pedindo que converse com ela e que virem melhores amigas. Estou
pedindo para que a perdoe. Não por ela, mas por você.
Eu amo você, querida.
Continue sendo esta garota incrível. Estarei olhando por
você.
Com carinho, Vovó."
Ao terminar de ler a carta, permaneci imóvel no lugar. Tudo
parecia imóvel. A brisa, meu coração, os flocos de poeira
estagnados no ar. Eu não sabia se chorava pelas palavras bonitas
de Abigail, ou se ficava surpresa pela revelação na carta.
Que merda está acontecendo?
Eu sentia que, de uns tempos para cá, eu tentava
freneticamente e desesperadamente encaixar peças de LEGO
circulares em espaços quadrados.
Charlotte me ajudou?
Charlotte Collins realmente me ajudou?
Passei grande parte da minha vida pensando que, se não
fosse pelo dinheiro que Abigail me dera, eu jamais teria me tornado
o que sou hoje. Eu estava enganada. Eu consegui fugir de Coolley
por causa do dinheiro de Charlotte. Eu consegui chegar em Detroit
por causa do dinheiro de Charlotte. Consegui pagar o aluguel da
kitnet por causa do dinheiro de Charlotte. Consegui cobrir os
primeiros meses de faculdade de medicina por causa do dinheiro de
Charlotte.
Ela sabia que eu fugiria antes da adoção que Connor tanto
queria. Sabia que eu daria um jeito, e deu o impulso que eu
precisava para ter coragem para isso.
Charlotte sempre soube. Charlotte me protegeu de Connor.
Soltei o ar, tudo girava.
Então, por que ela enlouqueceu depois que fugi, se sempre
soube onde eu estava?
Aquilo era muito para mim. Era muito para eu pensar
naquele momento.
Por isso, levantei da cama e caminhei na direção da única
pessoa que me faria esquecer de tudo, por hora, porque sentia que
talvez, minha cabeça pudesse explodir depois de tantas
informações.
A porta de Devan estava entreaberta, e eu a empurrei
delicadamente, enquanto vasculhava seu quarto.
O que vi me fez perder um pedaço do coração.
Devan estava espremido no canto do quarto. Ele segurava
seus fios dourados entre os dedos com força, as pálpebras
fechadas e soltava murmúrios baixos.
"Para...", proferia.
"Por favor, para..."
À sua frente, uma garrafa fechada de uísque.
Fechei a porta e, rapidamente, andei até ele.
— Devan... — Ajoelhei-me ao seu lado e tentei segurar seu
rosto — Olhe para mim, por favor.
Aos poucos, o loiro levantou seu olhar em minha direção.
— Sadie, você precisa sair daqui... — murmurou ele, quase
desesperado — Eles vão machucar você. Saia daqui, amor, por
favor. Eles...
O resto da frase foi tomado por palavras desconexas e que
eu não consegui entender.
Senti meus olhos ficarem molhados.
Estudei crises de abstinência. O paciente apresenta
alucinações, ansiedade, dor, frio, tremores, processos eméticos e
muitos outros sintomas. É angustiante. Agonizante. Torturante.
Alguns pacientes, se não forem tratados, bebem desodorante,
gasolina, perfume, qualquer coisa que tenha álcool. Depois, bebem
a própria urina porque sabem que, ali, encontrariam algum resto de
álcool.
E Devan estava tendo a pior de suas crises.
Eu soltei o ar e o abracei. Devan retribuiu com fervor.
— Eles não vão tocar em mim e nem em você... —
murmurei, enquanto sentia seu corpo tremer e deslizava meus
dedos carinhosamente por seus cabelos — O que acha de sair
daqui, hum? Podemos dar um passeio.
— Eles vão nos seguir.
— Não vão. Eu não vou deixar, ok? Vamos entrar no carro e
eu vou dirigir como a garota de Velozes e Furiosos.
Devan não riu de minha piada. Ele estava apavorado demais
para fazer isso. Então, apenas assentiu.
Apoiando seu braço em volta do meu pescoço, ajudei Devan
a se levantar, que fraquejou e quase caiu. Com alguma dificuldade,
o conduzi até a garagem da mansão e o coloquei no banco do
carona. Assumi o do motorista.

Apesar de o hospital Coolley ser estranho, encontrei lá tudo


o que precisava para acalmar Devan e fazê-lo parar de ter
alucinações.
Preparei um sedativo leve que o faria descansar por um
tempo. Eu não poderia aplicar sedativo nele em todas as suas crises
de abstinência. Aquilo também era uma droga, e também viciava.
Seria como curar uma ferida jogando doses curtas de ácido. Por
isso, procurei no hospital alguma campanha sobre grupos de apoio.
Encontrei. E, além disso, uma bolsa de 500ml de soro fisiológico
para hidratar seu cérebro e fazê-lo pensar direito.
O quarto estava parcialmente escuro, já que era noite.
Apenas uma pequena luz alaranjada distribuía alguns poucos feixes
pelo ambiente, embutida à parede. Devan estava deitado na maca,
enquanto gotas de soro fisiológico corriam pelo equipo e
adentravam sua corrente sanguínea. Suas pálpebras estavam
fechadas, a expressão serena e o peito subindo e descendo
devagar, em uma respiração tranquila.
Ajeitei-me na poltrona, desconfortável ao lembrar do jeito
como o encontrei. Nunca tive alucinações, pelo menos não que eu
me lembre, mas eu tenho conhecimento teórico sobre elas e sobre
como provavelmente surgem.
E Devan aguentou tudo.
Ele sabia que, se abrisse aquela garrafa de uísque e
bebesse, as alucinações parariam.
Mas não fez.
Ele cumpriu com a promessa e aguentou firme.
E eu o admiro ainda mais por isso.
Devan estava dormindo há algumas horas, então quando
seu corpo se remexeu sobre a maca, minha barriga esfriou em
ansiedade para enxergar seus olhos e ver se estava bem ou não.
Mais alguns segundos se mexendo, e seus olhos finalmente
se abriram. Devan encarou o teto, o lado direito, o soro conectado
ao seu braço e, depois, a poltrona onde eu estava. Seus olhos avelã
me fitaram por alguns segundos e eu o avaliei.
Levantei-me, caminhando até ele. Tirei a caneta do bolso de
trás da calça e acendi a luz dela, apontando para os olhos de
Devan.
Ele recuou e resmungou.
— Deixa de ser fresco, Devan — murmurei, segurando seu
rosto e apontando novamente a luz para seus olhos.
Dilatação boa.
Eu suspirei de alívio e guardei a caneta.
Caldwell estava bem.
O desespero que senti quando o encontrei me assustou. O
aperto no peito ao vê-lo tão perturbado e tão quebrado me assustou.
Depois de tanto tempo, senti realmente medo de perder alguém.
Desviei o contato visual e olhei para baixo. Sem que eu
percebesse, minha mão já segurava a sua, constatando que Devan
estava ali. Que Devan ainda estava ali. Comigo.
Engoli o nó que se formou em minha garganta.
— Me desculpe... — ele murmurou, a voz baixa e fraca —
Não queria que tivesse me visto daquele jeito.
Quando voltei a encará-lo, enxerguei vergonha em seus
olhos. Eu não sabia o que se passava em sua cabeça naquele
momento, mas certamente a pergunta que todos costumam se
fazer:
"Como me deixei chegar a este ponto?"
— Bom, até que foi bom porque... eu chamei Owen. Foi ele
quem puncionou você... — apontei para seu acesso — E algumas
outras coisas...
Devan estreitou os olhos.
— Algumas outras coisas? — indagou —Você deixou aquele
moleque fazer experiências médicas comigo, doutora Foster?
Eu segurei um sorriso e dei de ombros.
— Se sentir vontade de vomitar, não se preocupe. É normal.
Pela primeira vez desde que tudo aconteceu, nós dois rimos.
Eu me sentei na maca, colocando sua mão entre as minhas, sobre
minhas pernas. Depois de brincar com seus dedos por alguns
segundos, eu suspirei.
— Você precisa se tratar, Devan... — eu disse — Você
sempre será alcoólatra. O vício nunca mais irá embora. Ele só
diminui. Se você não se tratar, as crises irão voltar com mais força, e
mais força, e mais força. O tratamento te ajuda a aguentá-las até
que cessem.
Devan assentiu e baixou a cabeça.
— Pensei que conseguiria sozinho.
Eu soltei o ar e entrelacei minha mão na sua. Eu não soltaria
agora.
— Lembra do que eu te disse na festa? Que faríamos isso
juntos? — perguntei — Então nós faremos juntos. Você não está
sozinho.
Devan tinha a expressão séria e pose de durão. Ninguém
que o visse na rua, acharia que ele poderia ser tão quebrado. Eu vi
os dois lados. Todos têm defeitos. Todos são humanos. A diferença
é que alguns lutam mais que outros. E, naquele momento, quando
Devan segurou o cartão do grupo de apoio que eu lhe entreguei, se
tornou tão vencedor quanto os lutadores. Só que ao invés do
cinturão, Devan ganhou muito mais força e muito mais vontade para
continuar lutando.
E eu sempre estaria na arquibancada, torcendo e gritando
por ele.
Nossas gargalhadas ecoavam pelo quarto, pela mansão,
pela cidade.
Fazia tempo que não ria assim.
Depois de uma discussão calorosa com Devan sobre minha
decisão de não lhe dar alta naquela noite, com a finalidade de
hidratá-lo melhor, — já que o pobre coitado vomitou tudo o que tinha
e tudo o que não tinha durante a crise — eu dei-lhe um abraço
apertado e deixei a promessa de que voltaria na manhã seguinte.
Ele suspirou e tentou esconder o sorriso, deixando claro o quanto
aproveitaria seu atual estado para me manter sempre por perto.
Depois disso, passei no mercado. Comprei pipoca, sorvete,
cervejas. Acho que eu e as outras meninas da equipe estávamos
precisando disso. De um tempo para parar de pensar em sangue,
mortes e assassino. De um tempo sem todas as intrigas. E, além
disso, eu não queria ficar sozinha, e me sentia mais segura com
elas do que provavelmente me sentiria com um exército de militares
armados até os dentes.
— Sua vez, garota... — Dianna falou, encarando Robin —
Qual foi a coisa mais maluca que já fez?
Todas nós a encaramos, na expectativa.
As luzes do meu quarto estavam apagadas, exceto a do
abajur, que dava conta do recado e deixava o ambiente muito mais
aconchegante. Eu, Robin, Katherine e Dianna nos sentamos no
chão e começamos a noite com pipoca, contando histórias bizarras
que já vivemos. Depois, passamos para as coisas malucas que já
vivemos. Descobri que Dianna foi uma adolescente rebelde e que
Katherine já foi internada por coma alcoólico.
Natalie também estava conosco, mas, diferente de nós, ela
tinha os ouvidos cobertos por um fone de ouvido enquanto assistia a
uma série no celular de Robin.
— Eu não sei o que dizer... — ela sorriu tímida e empurrou o
óculos para cima.
— Ah, vamos lá... — Katherine respondeu — Você já deve
ter feito algo assim.
Robin olhou para baixo, suas bochechas tomando um tom
rosado.
— Bom... — começou ela, com a voz baixa — Eu matei aula
uma vez para fumar maconha.
Segundos de silêncio.
Todas nós encarávamos Robin em choque.
— Robin Allen fumando maconha? — perguntei, exasperada
— Não. Isso é aceitável. Mas Robin Allen matando aula?!
A garota riu e me empurrou de leve.
— Eu posso ser muito ousada quando quero, Sadie.
Rimos juntas e, em seguida, levei a garrafa de coca-cola até
os lábios.
— Por que não está bebendo cerveja? — Dianna perguntou.
Dei de ombros.
— Uma promessa.
Uma promessa que envolvia Devan. Não fazia diferença para
mim, no final das contas. Beber álcool não era uma necessidade
para mim como era para ele, então não seria difícil deixar de beber.
Além do mais, eu sabia o quanto o vício em algo dilacera o
organismo. Seja ele vício em álcool, em drogas, em jogo, qualquer
um. E, se eu pudesse fazer algo para incentivar Devan, eu faria.
— Vocês já pensaram em quantas coisas incríveis já
fizeram? — Katherine disse, os olhos verdes longe — E mesmo
assim as pessoas acham que não é o suficiente? É frustrante.
Eu assenti, olhando para baixo. Todas nós concordamos.
— Quando eu fiz residência, era como a Robin... — disse,
encarando a garrafa de refrigerante — Queria colocar em prática
tudo o que aprendi. Botar a mão na massa. Mas o médico que me
supervisionava não me dava nada além de prescrições para avaliar
e papelada para organizar...
As garotas me encaravam atentamente, aguardando o
desfecho da história.
— Uma vez, uma senhora de oitenta anos deu entrada no
pronto socorro com a ambulância. Ela sofreu queimaduras e os
edemas obstruíram as vias aéreas. Eu fiz uma traqueostomia, e deu
tudo certo. Nunca tinha feito uma, e o fato de ter sido bem sucedida
logo de primeira me encheu de orgulho... — Sorri nostálgica — Eu
tinha certeza que meu supervisor me escolheria para participar das
cirurgias e esqueceria todos os papéis burocráticos chatos quando
soube do procedimento que fiz, afinal, ele sorriu e me deu parabéns.
Quando finalmente um paciente que precisava ser operado chegou,
ele convidou um residente homem.
Soltei o ar com pesar e comprimi os lábios.
Aquela não foi a primeira e nem seria a última que o
machismo me impediria de trabalhar, ainda mais com a
especialização que escolhi — já que grande parte dos médicos
legistas são homens. Porém, tudo o que fiz para combatê-los foi
estudar, e estudar, e estudar, até eles não terem outra escolha a não
ser me reverenciarem.
— Certa vez... — Katherine começou — O detetive Carson,
do D.I.M., veio até mim no refeitório. Ele se sentou à minha frente e
colocou 30 dólares sobre a mesa. Eu estranhei e perguntei o que
aquilo significava. Ele sorriu e disse para eu encontrá-lo na garagem
do departamento, e que ele dobraria o preço se eu levasse alguma
amiga... — sua expressão mudou para irritada — Eu dei um chute
no seu saco e ele denunciou para o diretor da época... Naquele
mês, meu salário não chegou.
— Tá de brincadeira? — Dianna questionou, indignada.
Katherine, como resposta, levou a garrafa de cerveja aos
lábios e tomou um grande gole, antes de soltar o ar com força.
— Eu percebi que ele sabia que eu não gostava apenas de
homens. Acho que ele achou que eu toparia qualquer coisa, pelo
fato de ser bissexual — deu de ombros — Por esse e por outros
motivos eu nunca me assumi. Eu pensava que era errado. Acho que
o preconceito sempre esteve tão enraizado dentro da minha casa,
que acabou me impregnando por anos. Olha — ela puxou a manga
de sua blusa e nos mostrou cicatrizes nos pulsos — Eu cheguei a
tentar contra minha vida.
Dianna assentiu. Ela compreendia aquilo mais do que todas
nós. Por isso, levou sua mão até a de Katherine e seus dedos às
cicatrizes em seu pulso. A loira estava tensa, mas assim que viu e
sentiu o ato de Dianna, seus ombros caíram e uma lágrima
escorreu.
— Eu também pensei assim durante muito tempo — Dianna
revelou — É mais comum do que parece. Acho que algumas
pessoas nos repugnam tanto, que acabamos acreditando que é
errado. Eu acreditei, você acreditou... Mas nós não estamos
sozinhos. Temos uns aos outros, e outras pessoas maravilhosas
como a Sadie e a Robin. Sei que as coisas ainda parecem difíceis.
Sei que ainda há o preconceito e que, talvez, ele nunca acabe, mas
o importante é que temos pessoas com quem contar, ok?
Katherine secou os olhos com o dorso da mão e assentiu,
sorrindo.
— Me desculpe por chamar você de vadia, aquele dia... —
Robin comentou, encarando Katherine — Garotas não devem xingar
garotas.
— Tá tudo bem, Robin... — a loira respondeu — Todas nós
erramos.
Dianna tomou um gole longo de cerveja, antes do suspirar.
— Durante a faculdade, eu trabalhei em um escritório de
advocacia. Você deve se lembrar, Sadie.
Eu confirmei com a cabeça.
— Você chegava cansada todos os dias, mas a gota d'água
foi quando chegou chorando... — eu murmurei — Eu disse para
você pedir demissão, porque aquele lugar claramente não estava te
fazendo bem. Mas você nunca me contou o motivo por ter chorado
tanto.
Dianna sempre foi do tipo de mulher que esconde a sua
ruína de todos, para passar a imagem de durona. Ele segurava as
lágrimas com bravura e colocava um sorriso no rosto. Fiquei
assustada quando a vi daquele jeito.
— O meu chefe me assediou — revelou — E quando eu
neguei transar com ele, o desgraçado disse: "Por que está
negando? Está no seu sangue! Suas ancestrais negrinhas não
negavam."
— Filho da puta... — praguejei.
— Eu já sabia muitas coisas úteis sobre a lei. Apesar de um
escroto, ele era um bom advogado e me ensinou muitas coisas... —
Dianna sorriu — Usei todos os conhecimentos que me forneceu
contra ele mesmo. Denunciei por assédio e racismo, além de jogar
um maldito processo em suas costas... — fez uma pausa — E é
isso, otárias. Eu ganhei.
Dianna ergueu sua garrafa e nós fizemos o mesmo, rindo e
saudando. Após um gole, Robin murmurou:
— Eles querem nos fazer acreditar que ser mulher é um
fardo. O que eles não sabem, é que ser mulher é a porra da maior
honra que alguém poderia receber.
Eu a observei por mais alguns segundos, e sorri orgulhosa.
Estiquei minha mão e a deixei no meio das garotas.
— Meu nome é Sadie Foster, e eu tenho orgulho de ser
mulher.
Dianna sorriu e colocou sua mão sobre a minha.
— Meu nome é Dianna Evans, e eu tenho orgulho de ser
mulher.
Katherine fez o mesmo.
— Meu nome é Katherine Green, e eu tenho orgulho de ser
mulher.
Robin sorriu para todas nós e colocou sua mão no topo.
— Meu nome é Robin Allen, e eu tenho orgulho de ser
mulher.
Todas olhamos para trás. Natalie havia esquecido totalmente
os fones e a série, e tinha os olhos atentos em nós. Eu a chamei
com um gesto de cabeça. A garota ruiva saiu rapidamente da cama
e correu até nós, colocando sua mão sobre as nossas.
— Meu nome é Natalie Lancaster, e eu tenho orgulho de ser
mulher.

O quarto estava vazio quando acordei. Os colchões que as


garotas trouxeram estavam desocupados, assim como a cama de
Robin. Apenas Natalie ainda dormia como uma pedra, estirada em
minha cama.
Desbloqueei meu celular para checar a hora.
07:00am
Desligamos as luzes muito tarde, na madrugada, e eu dormi
apenas doces e curtas duas horas. Minha cabeça martelava,
procurando coisas para fazer daqui para frente. Blaine chegaria de
Detroit ao anoitecer, e nos explicaria pessoalmente como seria o
destino de Tatum quando voltássemos. Eu quase não conseguia
acreditar que havia acabado. Sempre soube que Tatum era doente,
mas nuca imaginei que ele poderia chegar tão longe. E eu tinha
absoluta certeza de que apenas a cela da delegacia de Coolley não
serviria para Tatum. Ele precisava de tratamento.
Depois de me espreguiçar eu saí do quarto, em direção às
meninas. O quarto delas estava vazio e a única pessoa que também
encontrei dormindo, foi Owen. Ele deve ter passado todas as noites
na cadeia em claro, por isso, fechei a porta suavemente para não
acordá-lo e deixá-lo descansar.
Comecei a descer as escadas lentamente, mas parei no
meio dela quando vi um amontoado de pessoas na sala de estar.
Funcionários da mansão, o xerife Bloom, o prefeito.
Não.
De novo não.
Descendo o resto das escadas lentamente e me enfiando
entre as pessoas, encontrei Dianna. Seus olhos dourados estavam
direcionados para mim, sem brilho algum.
Ela baixou a cabeça e eu segui seu olhar. Katherine estava
ajoelhada no chão.
Acompanhei o caminho das lágrimas da loira. Elas desceram
por suas bochechas, escorreram por seu queixo e caíram em
câmera lenta, atingindo a pele do corpo pálido estirado no chão.
O óculos de grau estava posicionado de forma torta, e uma
rachadura cortava uma das lentes ao meio. Os olhos negros
parados e os fios lisos raspados. Além da joaninha desenhada no
pulso direito e da assinatura no braço esquerdo, sobre sua barriga,
letras de revistas coladas à sua pele formavam uma frase:
"Enganei vocês."
Parei de respirar por alguns segundos. Cinco ou seis. E, logo
depois, a respiração veio desesperada e descompassada. Meu peito
doía.
Caindo lentamente até o chão, soltando soluços mesmo que
as lágrimas não saíssem, eu engatinhei em direção ao corpo de
Robin Allen.
— Robin... — sussurrei — Fala comigo...
Nenhuma resposta.
Chacoalhei seu corpo.
Nenhuma resposta.
Levei minhas duas mãos ao centro de seu peito e comecei
as compressões cardíacas.
Um.
Dois.
Três.
Quatro.
— Sadie, para... — Katherine murmurou.
Cinco.
Seis.
Sete.
Oito.
— Sadie, é inútil... — ela chamou mais uma vez, em um
sopro.
Nove.
Dez.
Onze.
Doze.
— Sadie! — Dianna chamou, firme.
Treze.
Quatorze.
Quinze.
Dezesseis.
Um corpo se lançou contra o meu, me afastando de Robin.
— NÃO! Me solta, Dianna! Eu não posso interromper as
compressões! Me solta!
— Sadie, olha para mim... — Dianna segurou meu rosto.
Eu não olhei. Eu continuei lutando contra o aperto de Dianna,
e uma hora, eu consegui.
Me rastejei até Robin e voltei a empurrar minhas mãos
contra seu peito.
Um.
Dois.
Três...
Braços fortes rodearam meu corpo e me puxaram de lá.
— Sadie, se acalma... — era a voz do xerife Bloom. Ele me
levou para longe de Robin.
— ME SOLTA, SEU FILHO DA PUTA! — esbravejei,
tentando me livrar de seu aperto.
— ELA ESTÁ MORTA, SADIE! — Dianna gritou.
E então, parei mais uma vez de respirar. Foram cinco ou seis
segundos novamente. Quando voltei a puxar o ar, era como se
ainda estivesse o prendendo. Era como se eu não conseguisse
senti-lo em meus pulmões. Era como se eles estivessem se
contraindo, se espremendo, em busca de algum resto de oxigênio
dentro deles.
— Não há nada que você possa fazer, S. — murmurou ela —
Robin morreu.
Eu estava me afogando mesmo sem água.
A agonia e a dor no peito eram as exatas sensações de estar
se afogando.
O problema, era que a única pessoa que perdeu o sopro de
vida naquela sala era Robin Allen. Desvencilhei-me do aperto de
Bloom e, lançando um último olhar a ela, subi as escadas correndo.
Água escorrendo pelo ralo. O barulho dos pingos nervosos
chocando-se conta o chão. A temperatura morna tentando relaxar
meus músculos tensionados. Este seria o momento perfeito.
Sozinha, com água, os pensamentos em silêncio.
Seria o momento perfeito, desde que Robin Allen não
estivesse morta.
Mas ela estava.
Então, aquele momento não poderia ser chamado de perfeito
e sim, o momento em que nada seria tão dilacerante quanto ele.
Sentada no chão do banheiro, sentindo os pingos espessos
que saíam do chuveiro espancarem meus ombros e minhas costas,
eu parecia estar desligada. Completamente desligada. A respiração
era apenas um reflexo involuntário. Meus olhos estavam centrados
nos azulejos de mármore branco, enquanto eu abraçava meus
joelhos fortemente e observava a água escorrer pelo ralo.
Eu sempre deixei para chorar no chuveiro, não porquê não
queria que as outras pessoas me vissem daquele jeito, mas sim,
porque tinha a esperança de que a dor se misturaria com as
lágrimas. E que, mais tarde, se misturaria com a água, que
deslizaria pelo meu rosto, que percorreria graciosamente meu corpo
e atingiria o chão. E então, escorreria pelos pequenos e simétricos
buracos do ralo, para nunca mais voltar.
Eu nunca estive tão errada.
A dor nunca foi embora. Ela não se misturou com as
lágrimas, que se misturou com a água, que deslizou por meu rosto,
que percorreu graciosamente meu corpo e escorreu pelo ralo. Ela
sempre esteve ali. O que mudou foi que aprendi a lidar com ela. Só
que, desta vez, eu não conseguia nem ao menos fingir acreditar
nisso, porque não despejei uma lágrima sequer que, mais tarde,
tentaria inutilmente se misturar com a dor. Eu não chorei desde que
encontrei Robin morta.
Eu sempre detestei chorar. Não gostava da sensação
sufocante na garganta, do desespero no peito, das lágrimas
pregando um caminho corrosivo em meu rosto e da dor de cabeça
de tanto franzir as sobrancelhas, em tentativas falhas de me
controlar. E agora, estava descobrindo que a sensação de não
conseguir era ainda pior. Eu estava seca. Tinha o desejo rasgando
minha pele e meus olhos, mas nada saía. Era torturante. Não
conseguia respirar direito e, propositalmente, voltava à imagem de
Robin morta, da joaninha em seu pulso e do seu óculos rachado,
tentando expulsar as lágrimas à força.
Aquilo só me machucava ainda mais.
Eu estava me autodestruindo.
E, sinceramente, eu não me importava. Eu quase me
culpava.
Relembrava das palavras dos moradores de Coolley, há anos
atrás, apontando o quanto eu e minha família éramos amaldiçoados.
Talvez eu realmente seja. Uma névoa sombria me encobria, e Robin
teve o azar de respirar perto demais de mim.
Segurei a raiz dos meus cabelos com força.
Estava tão alheia a tudo, que mal notei quando a porta de
vidro do box foi aberta e um corpo alto e nu se juntou ao meu.
Levantei meu olhar.
— Você deveria estar no hospital... — murmurei para Devan.
Ele sentou-se à minha frente e rodeou seus braços em volta
do meu corpo.
— Eu escutei uma das enfermeiras dizendo que uma garota
da equipe morreu. Vim para cá correndo... — explicou, tocando sua
mão em meu rosto.
— Eu percebi... — comentei, olhando para seu braço,
apontando para o acesso venoso ainda conectado à ele e tentando
soltar, pelo menos, um ar de riso.
Nada saiu.
Eu passei grande parte da minha convivência com Robin
fingindo que não me importava. Agora, eu já não conseguia mais
atuar.
— Você está pálida, Sadie. Parece sufocada... — comentou
ele — Você chorou?
Observando a água molhar seus cabelos dourados e
fazendo-os escorrer por sua testa, eu apenas neguei com a cabeça.
Devan juntou sua testa na minha.
— Chore, Sadie... — sussurrou — Grite. Soluce. Eu estou
aqui com você, e não vou sair.
Eu não precisaria mais chorar sozinha.
E, depois de ele me acolher em seus braços e me guardar ali
dentro, as lágrimas finalmente deslizaram por meu rosto,
percorreram graciosamente meu corpo e escorreram pelo ralo.
Mas a dor continuou.
Robin não trouxe muitas coisas para Coolley. Apenas uma
quantidade necessária — roupas, calcinhas, sutiãs, produtos de
higiene e livros. Organizar tudo em uma mala não foi difícil, e era o
mínimo que eu poderia fazer.
Não me deixaram fazer a necropsia dela, por motivos
aparentemente óbvios. Então, o corpo será levado para Detroit, e lá,
Thomas designaria a missão para algum outro médico legista do
D.I.M.
Tatum foi solto. A queixa de que ele era o assassino foi
retirada, já que ele estava atrás das grades no momento em que
Robin morreu. Ao menos a de terror digital não. Mas, como a pior
denúncia foi retirada, seu advogado conseguiu arrancar um habeas
corpus do juiz, e ele foi solto. Aguardaria o julgamento em liberdade.
E, pelo o que Dianna me explicou, se não conseguíssemos provar
que ele foi o mandante do esfaqueamento do prefeito, o desgraçado
poderia pegar, no máximo, apenas três anos de pena.
Depois de dobrar todas as roupas de Robin e colocá-las
dentro da mala, juntei todos os livros que a garota trouxe para, de
algum jeito, enfiá-los ali dentro. Eram livros de medicina — que já
não eram tão pequenos —, e livros normais, que ela geralmente lia
em dois ou três dias. E, entre estes livros, encontrei um com capa
clara e desenhos delicados.
Abri, e passei meus olhos por suas letras:
"Agora este livro é seu, já que você é tão profunda quanto as
palavras escritas nele.
Obrigada por ser quem você é.
Com amor, Robin."
Soltei o ar e abracei o livro. Depois que consegui chorar no
banheiro, junto à Devan, eu não conseguia mais parar. E não foi
diferente desta vez. As lágrimas começaram a escorrer, sem trégua.
A porta foi aberta e um corpo adentrou o quarto.
Blaine.
Ele sorriu para mim e abriu os braços.
— Voltei. Sentiu minha falta, cunhadinha? — perguntou ele.
Eu não respondi.
Seu sorriso murchou.
— O que houve? Mais uma morte?
Eu baixei minha cabeça em direção ao livro, sem conseguir
lhe encarar.
— Essas coisas são da Robin... — ele apontou, e escutei
seus passos até mim.— Sadie, eu passei as últimas três horas em
um avião e não estou para brincadeira. Então para com esse teatro,
ok? Robin deve ter armado tudo isso para me pegar de surpresa,
mas não tem graça.
Eu não sabia o que falar e não conseguia nem encarar os
olhos azuis de Blaine Donovan. Voltei a abraçar o livro.
— Sadie, pelo amor de Deus, fala alguma coisa — ele
insistiu, antes de caminhar pelo quarto — Linda? Eu sei que você
está aí. Aparece!
Ele abriu a porta do banheiro. Não encontrou nada. Seus
passos apressados soaram mais uma vez, até pararem na cama.
Blaine se abaixou e procurou por debaixo dela. Não encontrou nada.
— Deus... — soprou baixo, antes de ir até a varanda —
Robin, por favor... isso não tem mais graça.
Soltei mais soluços.
— Ela está morta... — sussurrei.
Por um momento um silêncio total nos encobriu. Passaram-
se alguns instantes, tempo o suficiente para ambos processarem as
palavras ditas. Logo a mudez foi cortada pelos passos de Blaine,
eles seguiram na direção da porta. Depois de passar por ela e
fechá-la bruscamente, escutei tudo do lado de fora se partindo.
Vasos com plantas, jarros, quadros. Tudo.
Blaine estava quebrando tudo.
Ainda abraçando o livro, caminhei até a porta e apoiei
minhas costas nela. Escorreguei, até estar sentada no chão e
encolhida em volta do livro. Pelo resto da noite, meu choro ecoava
junto ao som da fúria de Blaine.
Ele poderia quebrar tudo o que quisesse.
Nada estaria mais despedaçado do que nós dois.
A realidade é dura. Bruta. Cruel. Tão devastadora quanto
catástrofes naturais. Ela não tem dó, nem piedade. Ela te tira coisas
importantes e insubstituíveis.
A realidade já me tirou muitas coisas. Porém, nunca me senti
tão vazia quanto agora.
Não estamos em um filme, ou em uma série. Essa é a vida
real, e está provando ser a vadia que sempre foi.
Em um filme, dificilmente matam um protagonista. O
personagem principal é a alma do enredo. É quem liga todos os
núcleos. É quem nos faz amá-lo tanto quanto a nós mesmos. E, em
meio a toda essa bagunça, eu tenho apenas uma certeza: eu não
era a protagonista. Nem Chase, nem Devan, nem Katherine, nem
Blaine, nem Dianna. A protagonista tinha um tique de empurrar o
óculos para cima e mente genial. Tinha um bom coração e mania de
ajudar os outros.
A protagonista merecia que todos a aplaudissem de pé e
gritassem seu nome.
No entanto, a protagonista morreu e a cidade se calou.
Não haviam carros nas ruas. Não haviam vozes, não haviam
pessoas. Todas elas estavam concentradas em um único lugar. A
praça central. Lá, estamparam a foto de Robin Allen em um quadro
grande e acenderam velas. Haviam flores por todos os lados e
cochichos baixos, em respeito à alma da garota que morrera jovem
demais. A garota que salvara o prefeito e contribuíra com a equipe
para ajudar pessoas que jamais vira.
Blaine foi embora. Alguém precisava acompanhar o corpo de
Robin até Detroit e ele queria ficar sozinho com ela, pelo menos por
algumas horas. Ele esteve longe quando ela morreu. O tempo que
poderia ter passado com ela jamais voltaria.
Não obstantes, fizemos um combinado.
Só entre nós dois.
Se precisássemos fazer algo fora da lei para pegar o
desgraçado, nós faríamos.
Se ele precisasse hackear, ele faria. Se eu precisasse furtar
prontuários médicos, eu faria. Não hesitaríamos. Mataram uma de
nós. Agora, a coisa toda ficou pessoal demais.
— Você precisa se alimentar... — Katherine murmurou ao
meu lado.
Os que sobraram da equipe, eu, Katherine, Devan e, a
agregada recentemente, Dianna, estávamos na sala de reunião.
Devan estava sentado à minha frente e Dianna logo ao seu lado. Os
dois tentavam com bravura convencer Thomas a não passar o caso
para o FBI, e nos deixar aqui por mais um tempo. Ele teria que
mover suas peças e levar os outros chefões do D.I.M. na lábia, já
que teria que mover algum dinheiro para recursos.
— Eu estou bem, Kate... — sussurrei.
— Você tem certeza que não quer ir no velório dela lá em
Detroit?
— Não — respondi convicta — Blaine já foi nos
representando. Eu não vou sair dessa cidade até encontrar o filho
da puta que fez isso com Robin.
Ela suspirou e assentiu.
Devan conversou por mais alguns segundos e, enfim,
desligou a chamada.
— Thomas nos deu mais uma semana... — informou.
— Certo... — Dianna falou — Eu tenho certeza que um dos
empregados de Tatum Jackson sabe que ele está envolvido no
atentado contra o prefeito. Vou conseguir convencê-lo a prestar
depoimento. Com o testemunho de uma pessoa, Owen vai ser
inocentado e pegar apenas serviços à comunidade. Tatum ficará
preso por assassinato, ameaça, cárcere de menor e terror digital.
Garanto que pegará muitos anos.
Eu assenti, concordando. Pelo menos uma notícia boa.
Katherine e Dianna se levantaram depois de alguns
segundos em silêncio. Saíram juntas e quietas pelas portas da sala.
Eu e Devan nos encaramos por alguns instantes. Ele esticou
seus braços sobre a mesa, em um convite claro para que eu
segurasse suas mãos. E eu segurei.
— Está perto de acabar... — sussurrei.
Ele assentiu lentamente.
— Está — concordou, fazendo carinho em minhas mãos com
os polegares.
— O que faremos depois disso?— perguntei.
— Eu não sei... — murmurou de volta, negando com a
cabeça — Eu não faço ideia... Mas daremos um jeito de superar.
Eu soltei um sorriso fraco e entrelacei nossos dedos.
A porta foi aberta.
Chase adentrou a sala e seus olhos verdes rapidamente se
voltaram para nós, e depois, para nossas mãos juntas. Seus ombros
caíram.
Afastei-me rapidamente de Devan.
— Chase... — soprei.
Ele levou a mão para a cabeça e coçou a nuca.
— Desculpe, eu... não quis interromper.
— Mas já interrompeu — Devan retrucou de mal humor.
Eu rolei os olhos e me levantei da cadeira, caminhando em
sua direção.
— Eu vim me despedir de você.
Juntei as sobrancelhas, confusa.
— O quê? Como assim? — questionei exasperada, parando
à sua frente
— Eu vou voltar para Connectcut.
Por um momento, senti os cacos do meu coração se partirem
em mais cacos.
— Já vai tarde — Devan respondeu.
— Devan, para!— exclamei e lhe lancei um olhar feroz.
Devan se encolheu.
— Você vai me deixar de novo? — perguntei, em um fio de
voz.
Todos estavam me deixando.
Robin, e agora, Chase.
— Não! Claro que não!
Chase caminhou até mim e me abraçou. Eu sentia falta dele.
Sentia saudade do meu melhor amigo. Chase esteve comigo
durante tempos difíceis da minha vida, e eu jamais o esqueceria.
Quando ele se afastou, segurou meu rosto com as duas
mãos.
— Nós ainda vamos nos ver, pequena. Eu preciso desse
tempo longe, tudo bem? Mas podemos nos falar por telefone. Não é
como se eu fosse morrer outra vez.
Eu assenti e o abracei novamente.
— Eu vou te levar no aeroporto.
— O quê?!
Afastei-me de Chase para encontrar os olhos avelã de
Devan, surpresos e selvagens ao mesmo tempo.
— O que foi desta vez, Devan? — perguntei, em um tom
cansado.
— Você não vai levá-lo — declarou.
Ou melhor, ordenou.
— Sim. Eu vou... — contestei — Não preciso da sua
permissão. Eu vou levar Chase no aeroporto, e ponto final.
Dei as costas para ele e puxei Chase, com destino à
garagem do prefeito.
Depois de alguns minutos dirigindo em silêncio, escutei um
suspiro vindo do banco do carona e a voz de Chase soando:
— O seu pulso... está melhor?
Eu deixei a visão da rua à minha frente e lhe encarei por
alguns segundos.
— Está muito melhor. Estou bem, Chase. Não se preocupe.
Voltei a atenção para frente.
Mais alguns minutos de silêncio.
— Lembra quando a gente ficou na biblioteca, naquela
madrugada?
Eu sorri por um momento.
Eu tinha o hábito de sair de madrugada para explorar o que o
casarão tinha a me oferecer. Naquela madrugada, por uma falha
minha, deixei um livro cair. Chase, que tinha o sono leve, acabou
acordando e foi checar se havia algum ladrão dentro da casa, em
uma atitude heroica típica de garotos de doze anos. Quando me
encontrou na biblioteca, sorriu e murmurou: "achei uma ladrazinha".
Eu soltei uma risada.
Depois, ficamos na biblioteca explorando os livros. Mas
aquilo estava muito leve para ele. Ele queria fazer alguma coisa
radical. E eu, entorpecida pela adrenalina, o segui. Fomos parar no
escritório de Charlotte e ligamos o rádio — bem baixo, é claro.
Passamos o resto da noite dançando.
— Foi uma das melhores noites de minha vida... —
murmurei.
— Da minha também... — ele disse, antes de suspirar —
Olha, Sadie, desculpe por confundir você com minhas merdas. Eu...
— Para com isso, Chase — interrompi — Não importa o
quão confuso isso fique. Não importa quanto tempo fiquemos longe.
Não importa o fato você estar voltando para Connectcut. Eu sempre
vou amar você, ok? — Parei em um farol e lhe encarei — Você
sempre será meu herói.
Chase abriu um sorriso.
— Você deveria me ensinar a arrombar cadeados.
Eu soltei uma risada, lembrando da noite em que só não
fugimos por sua completa incompetência com cadeados.
— Tudo bem. Eu ensino. Tenho minhas técnicas — Pisquei e
ele sorriu.
Em frente ao portão de embarque, as caixas de som
anunciando o voo para Connectcut, Chase colocou sua mochila
sobre os ombros e parou à minha frente.
Não importava o quanto eu havia chorado nos últimos dias.
Chase sempre seria meu ponto fraco. Então, quando a mulher
repetiu a chamada para o voo e ele me encarou com seus olhos
verdes, lembrei de todas as nossas despedidas. Lembrei do dia em
que ele foi adotado pelo casal Anderson. Lembrei da noite em que
sofreu o acidente. Lembrei da noite que terminamos. Lembrei do dia
em que ele foi para a casa de sua mãe, Lea.
Eu não aguentava mais me despedir de Chase.
Então, meus olhos se encheram como um rio em enchente, e
tentei segurar as lágrimas com punhos firmes. Chase enrolou seus
braços por minha cintura e me prendeu entre eles. Enquanto eu
circulava os braços por seu pescoço, ele me erguia e me tirava do
chão.
Enfiei meu rosto em seu pescoço e molhei sua pele com
minhas lágrimas.
— Ei, não fica assim, pequena... — ele disse em meu ouvido,
levando sua mão para minha cabeça e afagando meus cabelos —
Isso não é para sempre.
Eu afirmei com a cabeça, mas não disse nada.
— A gente pode se ver por vídeo chamada, o que acha? —
sugeriu.
Assenti, ainda sem dizer nada.
— Eu te ligo quando estiver melhor. A psicóloga de Coolley
me encaminhou para um amigo dela em Connectcut. Vai dar certo,
ok? A gente não vai se afastar de novo. Isso não é um adeus,
pequena.
Eu concordei com a cabeça mais uma vez e tirei meu rosto
de seu pescoço, para encarar seus olhos.
— Eu amo você... — disse com a voz embargada.
Chase fraquejou.
— Eu amo você — respondeu — Até as estrelas?
Eu sorri.
— Até as estrelas.
Chase beijou minha testa por alguns instantes e me
depositou delicadamente de volta ao chão.
"Última chamada para o voo 174, destino Connectcut.", a voz
soou.
Chase levou as mãos para meu rosto e secou minhas
lágrimas com os dedos.
— Tchau... — ele disse.
— Tchau... — respondi, em um sussurro.
Chase se afastou aos poucos de mim e deu as costas,
caminhando até o portão de embarque. O homem de terno azul
escuro checou suas passagens.
Meu melhor amigo olhou para trás mais uma vez, me
lançando um último olhar antes de correr para a área de embarque.
Enquanto caminhava pelo estacionamento em direção ao
carro, escutei o barulho do avião alçando voo e o mesmo passando
por cima de minha cabeça. Acompanhei todo o seu percurso, até ele
estar alto demais para conseguir enxergá-lo.
Chase se foi.
Mais uma vez.
Ao chegar na mansão do prefeito, subi as escadas
lentamente e segurando o peso da gravidade em meus ombros.
Durante todo o percurso entre o aeroporto da cidade vizinha e
Coolley, fiz um discurso. Ele estava pronto em minha cabeça, e eu
repassei duas, três vezes até conseguir gravá-lo. Porém, quando eu
abri a porta do quarto de Devan e a fechei bruscamente, e ainda,
quando encontrei seu corpo na cama, todas as palavras sumiram.
Absolutamente todas elas.
Devan estava sentado, as costas apoiadas na cabeceira.
Alguns botões de sua camisa social preta abertos, e seus olhos
avelã estavam concentrados no caderno, pincelando suavemente o
grafite sobre a folha branca.
Ele me encarou.
— Devan, eu... — murmurei, tentando me lembrar das
palavras — Eu não gosto disso. Você tentou me proibir de algo que
eu queria fazer. Isso não está certo.
Aquelas estavam longe de serem as palavras que decorei.
Era algo como "você não tem o direito de me impedir de fazer o que
eu quero", ou, "se eu quiser abraçar, conversar, levar meu melhor
amigo ao aeroporto, eu vou fazer". Mas, como sempre, as palavras
sumiram da minha cabeça no momento em que coloquei meus
olhos em Devan. Sempre que isso acontece, a única coisa que eu
quero fazer é abraçá-lo e beijá-lo. Dizer que já não tenho mais a
capacidade de viver sem ele.
Era quase doentio.
Caldwell suspirou, fechou o caderno e se levantou.
— Olha, Sadie...
— Não, eu preciso falar — interrompi.
Devan soltou o ar e colocou as mãos na cintura, baixando a
cabeça.
— Você sabe como funciona um relacionamento, Devan? —
questionei, a voz nem um pouco firme — Ele é construído a base de
confiança.
— Eu confio em você, Sadie — afirmou ele — Não confio
nele.
— Nele?— retruquei — Com quem você está, Devan? Com
Chase ou comigo?
— Com você.
Eu assenti, suspirei e olhei para baixo.
— Nós começamos errado, Devan. Tudo isso. Você
percebeu como eu explodi com você hoje? A coisa não funciona
assim. Eu não posso esbravejar com você. Não posso gritar com
você. E você não pode começar a me impedir de fazer algo só
porque você não quer. Nada disso é saudável.
— Eu sei, mas a gente pode fazer direito daqui para frente —
contestou, caminhando até mim — Eu só quero esquecer todas as
merdas na minha cabeça e viver, Sadie. Viver com você.
Devan parou a alguns centímetros. Ele não sabia se poderia
chegar mais perto.
Eu odiava vê-lo daquele jeito. Devan era completamente
quebrado.
Quebrado como eu.
Diminui a distância entre nós. Agora, meu corpo estava
colado ao seu. Segurei seu rosto com as duas mãos e encostei
minha testa na sua, fechando os olhos. Devan subiu suas mãos até
minha cintura e a enrolou com seus braços fortes. Não havia um
mínimo espaço entre nós. Nem o ar conseguiria passar.
Precisei me erguer, ficar na ponta dos pés para alcançar
seus lábios, mas o beijo não veio. Devan queria sentir aquela
proximidade entre nós. Então, em um primeiro momento, seu nariz
se esfregou ao meu lentamente. Nossos lábios rasparam-se e,
tirando uma casquinha, Devan deixou uma mordida leve no meu
lábio inferior. Eu abri os olhos e encontrei os seus. Eles brilhavam
intensamente.
Desta vez, eu meu aproximei e colei minha boca na sua. E
então, todas as sensações de beijá-lo voltaram com tudo. Atingiram
em cheio. Deixaram minhas pernas moles e o coração batendo
forte, como sempre.
O beijo se aprofundou cada vez mais. A intensidade ali se
espalhou pelo quarto e nos rodeou completamente. Eu a sentia
infiltrar-se e nos aquecer.
Devan me guiou para perto da cama. Ele encerrou o beijo
com dois ou três selinhos, e se afastou, levando as mãos para a
barra da minha blusa e puxando-a para cima. Assim que meu sutiã
branco se tornou exposto, Devan jogou minha blusa em qualquer
canto e levou os lábios para meu pescoço.
Arfei, me preocupando em abrir sua camisa e tirá-la.
— Devan... — sussurrei, arrastando meus dedos por seu
peito.
— Diga o que sente, amor... — pediu, a voz rouca, enquanto
abria meu sutiã e o tirava de mim.
Devan desceu as mãos para minha bunda e me ergueu. Eu
enrolei minhas pernas em sua cintura, e seus lábios desceram do
meu pescoço para meus seios.
— Diga, Sadie... — pediu mais uma vez, ofegante.
— Fogo... Sinto queimar... — sussurrei, de olhos fechados.
Devan voltou para meu pescoço.
— O quê mais...? — perguntou, chegando ao meu rosto e
distribuindo beijos molhados.
— Desejo — murmurei.
Devan me deitou sobre a cama e pairou sobre mim.
Desabotoei sua calça e o ajudei a tirá-la. Minha vez chegou logo em
seguida. Ele distribuiu beijos por minha barriga, enquanto arrastava
minha calça por meu corpo. Quando já estava sem ela, Devan
passeou seus lábios por minha perna, deixando um caminho de
beijos delicados.
— Continue, amor — pediu.
Eu mordi o lábio inferior quando ele chegou na parte interna
de minha coxa, e passeou seus lábios até minha virilha
— Excitação... — soprei.
Devan chegou perto de minha calcinha, e senti sua
respiração em minha intimidade. Quando ele tirou a única peça de
roupa que faltava em meu corpo e sua boca entrou em contato
comigo, e soltei um longo gemido baixo.
— Mais, Sadie. O que mais você sente?— a rouquidão de
sua voz soou novamente, e eu não pude deixar de senti-la em mim.
Segurei os lençóis sob mim. Eu queria olhar para aquela
cena, mas meus olhos se fecharam instantaneamente, entorpecida.
— Devan... — gemi seu nome.
— Me fale, Sadie... — rebateu ele, enquanto seu trabalho me
fazia suar e estremecer — Eu quero ouvir o que está sentindo
agora.
Levei uma de minhas mãos para seus cabelos, gemendo um
pouco mais alto.
— Prazer...
Depois de alguns minutos, eu senti a sensação crescendo
dentro de mim, e logo, eu já não me preocupava mais com o fato de
todos ouvirem meus chamados por Devan. O orgasmo veio forte,
com tudo o que tinha, me fazendo contorcer.
Quando ele tirou sua cueca e voltou a se colocar sobre mim,
tocou meu rosto com seus dedos.
— Abra os olhos, amor.
Eu soltei o ar e, ainda estremecendo pelo efeito que Devan
causou em mim, abri os olhos e encontrei os seus. Eles estavam
mais escuros, mas abrigavam um brilho maior do que chamas e
mais chamas de fogo.
— Ainda sente algo, Sadie?
Eu subi minhas mãos por seus braços fortes e assenti.
— O quê? — insistiu, sem desviar os olhos dos meus.
Assim como as outras palavras que sussurrei durante a
noite, eu não hesitei em soltar aquela também:
— Amor.
Devan estampou um sorriso leve e encantado, encostando
seu rosto no meu.
— Eu também sinto amor. Muito.
Devan me penetrou lentamente, naquele momento. Senti seu
membro deslizar para dentro de mim com a calmaria que exigíamos.
Caldwell investia devagar, com movimentos sensuais e profundos.
Era uma tortura deliciosa. Eu queria mais rápido, mas ao mesmo
tempo não. Aquilo, o que estávamos fazendo, deveria durar mais do
que o normal. Todo o carinho, todo o amor, todos os sentimentos
que rolavam deveriam se estender até que explodíssemos juntos.
Devan me beijou e abafou nossos gemidos, que ecoavam
juntos. Eu enrolei minhas pernas em sua cintura, e ele atingia cada
vez mais fundo. Arranhei suas costas, chamei por seu nome. Nada
seria tão bom quanto o que estávamos fazendo.
Ele enterrou seu rosto em meu pescoço e, depois de alguns
muitos minutos, chegamos ao limite juntos, ofegantes e suados.
Repetimos a dose outras vezes durante a noite. E, na
madrugada, quando nos acolhemos um nos braços do outro,
tivemos a certeza de que nada jamais nos faria esquecer tudo.
Eu vi o amanhecer muitas vezes em minha vida. Passei
muitas noites sem dormir, então, consequentemente, observei o sol
nascer em todas elas. O orfanato dava uma boa vista a nós, e sem
me preocupar se as garotas de L reclamariam ou não, eu puxava as
cortinas, abria janela, sentia a brisa fria tocar meus cabelos e fitava
o céu escuro que, antes abrigava a lua, e que mais tarde, guardaria
o sol.
Os feixes de luz começaram a surgir e tingir o céu de
Coolley, em tons mais claros de laranja e amarelo. O sol estava
nascendo, e com ele, a esperança dos habitantes da cidade, que
sentiam que os dias seriam melhores daqui para frente. Eles tinham
esperança em nós. Confiavam em nós.
Levei a maconha até os lábios e dei uma longa tragada,
sentindo a droga acalmar meus nervos.
Olhei para frente e o encarei. Devan desenhava traços
delicados em seu caderno, que estava pousado em suas pernas
cobertas pela calça jeans surrada. Seu peito estava exposto, já que
a camisa social que jogamos em algum canto na noite anterior
estava em meu corpo. Seus cabelos dourados estavam bagunçados
e eu conseguia ver a marca roxa de um chupão em seu pescoço.
Eu não sabia que sabia fazer aquilo até fazer.
Devan levou a mão até o cinzeiro no chão e segurou a
maconha entre os dedos indicador e polegar, sem tirar os olhos do
desenho. Depois de uma longa tragada, voltou a guardar a droga e
me olhou por alguns segundos. Sorriu, voltando a rabiscar meus
traços na folha.
Nós não dormimos muito. Eu acordei primeiro, e fiquei
contornando os traços dele por alguns minutos, antes de ele abrir os
olhos. Eu vesti sua camisa, e ele sua calça. Nos sentamos no chão
da varanda, um de frente para o outro. E ficamos ali por alguns
minutos. Eu, observando as estrelas começarem a se esconder,
preparando-se para dar lugar à luz do sol, e ele, me observando.
Depois de um tempo eu encontrei um saquinho com maconha no
bolso de sua camisa.
Ele sorriu quando acendi um para mim.
Passaram-se alguns instantes, e Devan parou de rabiscar o
caderno. Olhou para ele de perto, e depois de longe.
Sorriu.
— Me deixe ver — pedi.
Caldwell levou seus olhos para mim e, por alguns segundos,
ponderou se mostraria ou não. Por fim, virou o desenho em minha
direção. O grafite marcou os caminhos do meu rosto, dos meus
cabelos, das minhas pernas nuas, da camisa que me cobria e da
maconha entre meus dedos.
— Eu pareço muito mais bonita do que realmente sou —
disse.
Devan negou com a cabeça.
— Um desenho jamais seria tão lindo quanto você é.
Piscou para mim.
Minhas bochechas esquentaram, e eu precisei desviar meus
olhos dos seus para aguentar a timidez. Devan sorriu, fechando o
caderno e voltando a pegar a maconha no cinzeiro.
Tragamos juntos. Soltamos a fumaça juntos.
O silêncio voltou a reinar entre nós.
Eu gostava de sentir os olhos de Devan em mim, enquanto
ele pensava que eu estava distraída encarando o nascer do sol, ou
um livro, ou qualquer outra coisa sem importância. Contudo, eu
sempre sabia. Eu sentia que ele me observava toda vez que tinha a
oportunidade. Sabia que ele fazia isso quando as pessoas estavam
ocupadas demais para notarem que ele me notava.
Eu sempre soube.
Suspirei.
— Devan?— chamei.
— Sim?
Eu tirei os olhos do céu e lhe encarei, engolindo em seco.
— Lembra quando você disse que eu era uma criminosa?
Devan soltou o ar com pesar.
— Sadie, eu fui um idiota e...
— Você estava certo.
Devan deixou as palavras se perderem no ar.
Alguns segundos se passaram, sem que nenhum de nós
proferisse uma palavra sequer.
Eu desviei o contato visual depois de um tempo.
— O que você fez? — perguntou ele.
Eu me surpreendi com seu tom. Não era um tom acusatório.
Não era um tom de asco. Era um tom suave, que me fez sentir
segura o suficiente para levantar o olhar em sua direção novamente.
Seus olhos avelã me fizeram ter coragem para confessar:
— Eu matei um homem.
Devan assentiu lentamente, não em concordância, mas em
entendimento.
— Esse homem, ele... machucou você, Sadie? — indagou.
Afirmei com a cabeça.
— Muito.
Eu franzi as sobrancelhas, segurando a repentina e ligeira
vontade de chorar.
— Então você não é uma criminosa, meu amor. Você é
humana.
Ele voltou a jogar a droga no cinzeiro e se aproximou de
mim. Eu também joguei a minha quando Devan segurou meu rosto
com as duas mãos.
— O que ele fez com você, Sadie?
Neguei com a cabeça, soltando um suspiro.
— Não importa... — murmurei — mas você é inteligente. Já
deve imaginar.
O loiro soltou o ar com força, como um touro raivoso.
— Para, Devan. Já faz muito tempo. Ele já está morto... —
falei, dando de ombros — Esqueça isso.
— Como eu posso esquecer, Sadie? — questionou ele —
Muita gente fez muito mal a você. Eu queria poder tirar toda a dor de
você e colocá-la em mim. Me diga como faço isso, Sadie. Por favor.
Eu o beijei.
Foi um beijo casto, que durou poucos segundos. E, apesar
de ter sido um toque curto, eu arfei quando me separei dele, vendo
o brilho intenso de seus olhos.
— Nós precisamos de férias — ele comentou.
— Precisamos — concordei.
Devan soltou meu rosto e se posicionou melhor, sentando-se
perto de mim, os braços atravessando minhas pernas e apoiando
seu corpo.
— Como gostaria de passar suas férias? — perguntou.
Eu comprimi os lábios e dei de ombros.
— Bom... — comentei — Eu já vi o sol nascer muitas vezes,
mas nunca se pôr... então... — suspirei — eu queria, algum dia, ir à
praia no fim da tarde. As águas do mar estariam calmas, sem
ondas. Eu entraria nele, molharia minha pele e meus cabelos, e
ficaria ali até o sol se pôr no horizonte.
Ao final das minhas palavras, Devan assentiu lentamente,
antes de soltar um sorriso leve.
— Posso ir com você?
Meu coração se partiu.
— Pode. É claro que pode... — afirmei, tocando seu rosto
com uma mão — Eu não quero perder você, Devan.
— E você não vai — ele disse, juntando nossas testas — Eu
quero ter uma vida com você, Sadie. Quero me casar com você.
Quero ter filhos com você. Quero envelhecer ao seu lado, como a
porra de um clichê patético. Eu quero.
Uma lágrima escorreu por meu rosto. E depois outra. E
depois outra. Quando Devan percebeu, em um ato de carinho,
segurou meu rosto com uma mão e beijou todas elas
delicadamente.
— O que foi, Sadie? Por que está chorando? — perguntou.
— Você não entende, Devan... — sussurrei — A noite
anterior foi uma despedida.
O silêncio nos cobriu.
Devan ainda tinha a mão em meu rosto e os lábios na maçã
dele quando eu revelei. E, quando ele se afastou, com o olhar
confuso, surpreso e temeroso, eu precisei fechar os olhos e respirar
fundo para fazer aquilo. Eu tinha que fazer aquilo.
— O que quer dizer com isso, Sadie? — ele indagou, a voz
baixa e fraca.
Eu respirei fundo. Levei minhas mãos para seu peito e
deslizei meus dedos por sua pele, até chegar em sua cicatriz.
— Nós não podemos ficar juntos, Devan.
— O quê? Por que? Eu...
— Nós estamos doentes, Devan — esclareci, olhando para
seus olhos — A minha cabeça está perturbada. A sua cabeça está
perturbada. Vamos fazer mal um ao outro se continuarmos juntos.
Pelo menos por agora.
— Não, Sadie, por favor... — implorou, segurando meu rosto
com as duas mãos novamente e fitando meus olhos profundamente
— Eu te amo.
O efeito daquelas três palavras em mim foi brutal.
— Eu também te amo, Devan... — afirmei — Eu amo você.
— Então por que está dizendo isso?
— Porque nós precisamos, Devan — expliquei — Nós não
podemos ficar juntos agora, entende? Eu estou doente. Você está
doente. Somos duas pessoas quebradas. Precisamos estar inteiros
um para o outro... — fiz uma pausa, respirando fundo e tomando
coragem para continuar — não existe essa coisa de um concertar o
outro. Um colar os cacos do outro. Só nós podemos fazer isso por
nós mesmos. E só poderemos continuar com um relacionamento
quando buscarmos ajuda. Quando estivermos melhor. Eu não quero
estragar o sentimento que temos um pelo outro com isso, Devan.
Nosso começo foi perturbador. Nós queríamos nos machucar toda
hora, e já não adianta mais tentar colar um curativo se a ferida
continua profunda.
Eu falei tudo de uma vez, sem pausa para respirar. Eu
pensei naquilo durante todo o caminho do aeroporto para cá. Acho
que essa é a decisão mais sensata a se tomar. Eu preciso de ajuda
há muito tempo, desde que Connor me tocou pela primeira vez.
Devan, desde que se tornou alcoólatra.
Ele se afastou e olhou para baixo. Percebi seus olhos
marejados. Eu queria beijá-los, como ele fez comigo, mas, se eu
fizesse isso, provavelmente desistiria de tudo e me enfiaria em seus
braços.
Eu precisava ser forte e aguentar aquilo.
Precisávamos.
Depois de alguns instantes, Devan voltou o olhar para mim e
segurou meu rosto com suas mãos. Ele me beijou. Foi um beijo
profundo e lento. Um beijo carregado de todo o sentimento que
enchia nossos corpos e abastecia nossas veias.
Quando se afastou, murmurou:
— Não importa quanto tempo fiquemos longe um do outro,
Sadie. Isso que temos jamais se apagará. Eu te amo. Muito. E vou
procurar ajuda.
Sua última frase foi a maior declaração de amor que alguém
poderia ter feito a mim.
— Eu vou procurar ajuda — repeti.
Nós nos beijamos mais algumas vezes. Devan não queria
me soltar, e eu não queria soltá-lo, mas foi preciso.
Eu me levantei do chão e caminhei até a porta. Lançando um
último olhar a ele, saí do quarto. Eu tinha um destino, agora. Eu
tinha a porra de um objetivo e, depois de acertar as coisas com
Devan, precisava focar nele.
Depois de um banho, dirigi um carro rumo ao necrotério do
hospital de Coolley. Eu provavelmente passaria o dia lá,
examinando todos os atestados de óbito dos últimos anos.
Precisava ter a certeza de que a alma que tentei mandar
para o inferno não escorregou por entre os dedos do diabo, e fugiu
por entre as grades dos portões vigiados pela morte.
Precisava ter a certeza de que Connor Jackson realmente
morreu.
Alguns poucos momentos em minha vida deixaram-me
completamente sem palavras. A primeira, foi quando Tatum
começou a me humilhar. Eu jamais esqueceria. A segunda foi
quando, dentre todos os órfãos, Connor escolheu conversar comigo.
Eu fiquei animada para um possível lar e, consequentemente, sem
jeito. A terceira vez, quando acordei na sala de Devan depois de um
desmaio. Fiquei confusa por estar ali.
A quarta vez não veio durante um tempo.
No entanto, chegou com tudo.
As palavras ficaram entaladas. Elas queriam sair e os lábios
permitiam, já que eu estava de boca aberta, dando livre passagem
para elas se libertarem. Entretanto, minhas cordas vocais
sussurravam que elas ficariam presas, amarradas em minha
garganta. Elas não deixavam som algum escapar.
Meu Deus.
Não pode ser.
Comecei a caminhar de um lado para outro, apavorada.
Estava escuro, a lua coberta pelas nuvens, e uma garoa fina descia
pelo céu. O som dos meus pés chocando-se contra o chão do
banheiro me incomodava, mas eu não conseguia parar. Acho que
eu poderia furar o chão, mas não pararia.
Respire fundo.
Conte até cinco.
Um.
Dois.
Três.
Quatro.
Cinco.
Não entre em pânico agora.
Estava no necrotério, no segundo monte de atestados de
óbito, os analisando minuciosamente. Eu estava bem e à vontade.
Sempre estive à vontade em um necrotério. Era confortável, até. O
problema foi que, pela primeira vez desde que entrei em um,
comecei a sentir um mal-estar. Um pouco de calor, um pouco de
tontura. O diagnóstico era óbvio para mim. Minha pressão caiu do
topo ao chão, como uma maldita montanha-russa. Eu não havia
tomado café da manhã quando saíra da mansão, então, aquela
reação do meu organismo era aceitável.
Levantei e andei até minha bolsa, pronta para comer uma
barra de cereal que sempre deixo guardada para momentos como
esses, já que minha pressão sempre dava um jeito de me
envergonhar. Uma mulher prevenida nunca quer guerra com
ninguém. Porém, quando abri o pacote e o cheiro de morango subiu,
eu precisei correr até a pia para vomitar tudo o que tinha e tudo o
que não tinha dentro do estômago.
Dois pensamentos tomaram minha cabeça.
"Que porra é essa?" foi primeiro.
O segundo me fez estremecer:
"Minha menstruação já deveria ter dado o ar de sua graça."
Voltei para a mansão tão rápido quanto eu pude e, no
caminho, passei em uma farmácia.
Encarei o objeto em minhas mãos como se ele fosse algum
tipo de arma altamente mortal. Na pequena tela estreita, letras
digitais me assustavam mais do que o pior dos piores filmes de
terror:
"Grávida
2-3 semanas"
Onde eu estava há três semanas atrás?
Pensei por alguns instantes.
Eu estava na floresta.
Trepando com Devan.
— Puta merda... — soprei, levando minhas mãos para a
testa — Puta merda. Puta merda. Puta merda...
Eu queria que este teste estivesse errado, mas não teria
como todos os outros cinco errarem também.
Eu não posso ser mãe.
Como eu poderia se nunca tive uma?
Eu não faço ideia de como se faz isso.
Não faço ideia do que fazer a partir de agora.
Precisava falar para Devan. Ele teve uma sobrinha. Deve
saber como se troca fraudas, certo? Como se amamenta também,
apesar de ele não ter peitos.
Eu vou enlouquecer.
Saí do banheiro como um jato. Tateando as paredes,
caminhei pelo corredor até seu quarto.
Dei dois toques.
Nenhuma resposta.
Dei três toques.
Quatro.
Cinco.
Seis.
Esmurrei a porta, mas o som da voz de Devan não soou.
Levei a mão à maçaneta e abri. Sua cama estava vazia.
— Devan? — chamei.
Ele não estava no quarto. Estava prestes a dar a volta e
procurá-lo no restante da casa, quando percebi um pedaço de papel
sobre o lençol escuro. Juntei as sobrancelhas, caminhando até lá.
As letras recortadas de uma revista me fizeram soltar o teste, que
pareceu ter caído em câmera lenta e atingido o chão, permitindo
que o som abafado ecoasse por minha cabeça.
"Me encontre onde tudo começou."
Logo abaixo, o endereço. Eu senti ânsia de vômito não só
pela gravidez, mas pelo medo.
Devan não está aqui, e há um bilhete sobre sua cama.
Não pode ser ele, não é? O pai do meu bebê não pode ser
um assassino. Eu não posso ter me enganado a esse ponto.
Com o coração e o bilhete na mão, eu caminhei para fora de
seu quarto, rumo ao meu. Abri a gaveta do armário e encontrei a
arma sob as roupas.
Estava cega.
Vi vermelho.
A raiva subiu e agitou meus nervos. Foi quando ouvi um grito
vindo do andar de baixo. Foi um grito por socorro. Prendi a arma em
minha cintura e corri pelo corredor até alcançar as escadas. E, no
topo dela, eu literalmente vi vermelho.
O tapete branco e felpudo foi manchado com sangue. No
canto dele, o prefeito que vestia pijama de flanela amarela tinha a
garganta cortada e os olhos apavorados nos meus. Ele clamava por
ajuda, enquanto seu braço se erguia em minha direção.
Mas em poucos segundos, ele caiu.
O prefeito estava morto.
— Sadie!
Desviei minha atenção em direção à voz. Katherine estava
ajoelhada no chão, os olhos verdes apavorados e lágrimas
escorrendo por suas bochechas. E Dianna estava caída. Ela
respirava com dificuldade e pressionava o abdômen, que expelia
sangue como um chafariz.
Eu corri até elas e me joguei no chão.
— O que houve?!— perguntei.
Katherine soluçou algumas vezes.
— Eu não sei. Ela disse que viria pegar água e não voltou
mais. Eu desci para ver o porquê da demora, mas quando cheguei
ela já estava assim. Ajuda ela, Sadie. Por favor.
Eu tirei a jaqueta de meu corpo, enquanto tentava ser forte e
segurar o pavor de perdê-la também.
— Dianna, olhe para mim... — pedi.
A mulher tossiu algumas vezes, e seus olhos dourados se
voltaram para os meus.
— Não feche os olhos, está me ouvindo? Não feche! —
ordenei, colocando a jaqueta sobre sua barriga e comprimido a
ferida — Você precisa segurar aqui até a ambulância chegar, Kate.
— Ok... — ela disse e, prontamente, levou suas mãos ao
local.— Mas onde você vai? Não vá atrás dele, Sadie.
— Eu vou — retruquei, me levantando.
— Espera. A ambulância vai chegar e eu posso ir com você.
Por favor.
— Não, Kate. É perigoso demais. Você precisa ficar aqui.
Ligue para o xerife Bloom. Eu vou ficar bem.
Eu não sabia se ficaria bem.
Dei as costas para ela, pegando meu celular e ligando para a
emergência. Enquanto caminhava em direção ao carro, dava as
instruções ao serviço de emergência.
Quando entrei e segurei o volante com as mãos
ensanguentadas, a ficha caiu.
Eu estava prestes a conhecer o DEATH. O Serial Killer que
matou todas aquelas garotas.
O Serial Killer que matou Robin.
Coloquei o endereço no GPS e dei partida, sentindo uma
onda de coragem e ódio atingir-me em cheio. No caminho, disquei
para a única pessoa tão interessada quanto eu.
— Oi, Sadie. O que houve? — Blaine perguntou do outro
lado da linha.
— Blaine, ele vai se revelar. Você e Thomas precisam vir
para cá. Vou te mandar o endereço.
Alguns segundos de silêncio, apenas minha respiração
ofegante pela adrenalina soando.
— Chego aí em duas horas. Talvez uma e meia. Tente
enrolá-lo. Finalmente vou poder usar o jatinho do Thomas.
E encerrou a chamada.
Eu dirigi pelas ruas de Coolley completamente atordoada.
Porém, quando a voz eletrônica do GPS soou novamente, a
realidade me bateu como um soco.
"Você chegou ao seu destino."
O casarão do orfanato Coolley estava bem à minha frente.
Só pode ser brincadeira...
Levei minha cabeça até o volante e fechei os olhos com
força. Eu prometi que nunca mais voltaria a pisar no orfanato.
Entretanto, agora eu precisava.
Saindo do carro, eu respirei fundo e caminhei em direção aos
portões de ferro. As memórias voltavam com tudo. Um zumbido
afiado dominou meus ouvidos, como um grito agudo de uma
criança.
Aquele grito era meu.
O grito de quando eu clamava por ajuda e ninguém me
socorria. O grito que eu soltava com todas as forças, enquanto
Connor tentava abafa-lo com sua mão.
O cadeado estava aberto.
Eu tirei as correntes, que caíram no chão. Puxei as fitas
amarelas de cena do crime, e empurrei o portão de ferro. Adentrei o
orfanato.
Por um momento, um calafrio percorreu minha espinha e
precisei cruzar os braços, que eram molhados pela garoa fina que
despencava do céu. Encarei a árvore que me escondi da chuva, na
noite do acidente de Chase. Encarei a grama que costumava me
deitar com ele. Encarei a porta de madeira, que tantas vezes abri e
fechei.
Subi as escadinhas.
Parei.
Somente aquela porta entre mim e o assassino.
E eu não hesitei em empurrá-la.
O interior não estava totalmente escuro, já que a lareira
estava acesa. A brasa queimava. Passei meus olhos pela sala de
estar, que eu já não reconhecia mais. Todos os móveis foram
tirados. Estava vazio.
Exceto pelos dois corpos no meio dela.
Chase e Devan estavam de pé, ambos completamente
machucados. Estavam presos por uma corrente que descia do teto
e enrolava-se em seus pulsos, erguidos para cima.
Lágrimas silenciosas escorreram por meu rosto.
— Devan... — sussurrei.— Chase...
Os dois não reagiram.
Atordoada e com as pernas tremendo, caminhei lentamente
até eles. Os dois foram espancados. Havia sangue seco espalhado
por seus rostos e hematomas em todos os cantos.
— Devan... — toquei seu rosto com as duas mãos — Fala
comigo... Por favor.
Levei os dedos indicador e médio até sua carótida, no
pescoço.
Havia pulso.
Caminhei para Chase e fiz o mesmo.
Havia pulso.
Soltando um suspiro aliviado, tirei o grampo de meu sutiã e
levei até o cadeado que o prendia. Não precisei de muito tempo
para conseguir arrombar.
Chase despencou sobre mim e resmungou.
— Desculpe. Desculpe. Vai ficar tudo bem... — sussurrei.
Com dificuldade, levei seu corpo pesado até o canto da sala
e o sentei no chão, apoiado na parede. Corri até Devan, pronta para
tirar o cadeado também. Diferente de Chase, ele acordou quando
quase caiu por cima de mim.
— Sadie... — disse, a voz fraca — Saia daqui, Sadie. Ele
vai...
— Ssshhh... tá tudo bem... — murmurei, levando-o para
perto de Chase e sentando-o ao lado dele — Eu vou tirar vocês dois
daqui.
— Não, Sadie... — sussurrou, enquanto eu me agachava à
sua frente.— Você precisa sair daqui.
— Eu não vou deixar voc...
Eu não terminei de pronunciar aquela frase, já que escutei
passos pesados ecoarem pelo casarão.
Eles eram firmes.
Lentos.
Assustadores.
Olhei na direção. Os passos vinham do corredor estreito e
escuro que, antigamente, levava ao escritório de Charlotte Collins.
— Vá embora, Sadie. Saia daqui — Devan sussurrou fraco,
mais uma vez.
Mas eu não conseguia me mover.
Apenas encarar o corredor.
Percebendo que eu não sairia dali, Devan fez o que pode
para me manter longe. Arrastou-se com dificuldade, soltando alguns
gemidos de dor, até estar à minha frente, me fazendo recuar e bater
as costas na parede. Segurei seu braço, ainda encarando o
corredor.
E, depois de alguns segundos, um corpo alto e forte surgiu.
Tatum Jackson.
Ele surgiu em meio à penumbra, nos encarando. Eu não
fiquei surpresa, em um primeiro instante. No entanto, o choque veio
logo depois quando percebi algo:
Não havia o seu costumeiro sorriso cínico ali.
Havia medo.
Pavor.
Um braço surgiu atrás dele e uma faca rasgou sua garganta.
Eu soltei um grunhido, assustada.
Tatum levou as mãos para a garganta, o sangue jorrando e
manchando sua camisa. Soltando alguns sons agonizantes, ele
caiu. Eu segui o caminho de seu corpo até ele bater no chão e seus
olhos se tornarem parados.
Apertei o braço de Devan, horrorizada, mas nada me
preparou para o que vi quando subi o olhar.
Ele puxou um sorriso doentio.
Deslizou o indicador pelo sangue na faca.
Seus olhos azuis capturaram os meus.
Não pode ser...
— Surpresa, cunhadinha? — ele perguntou.
Me senti tonta. E aquela, foi a quinta vez em minha vida que
fiquei sem palavras. Apenas uma escapou por meus lábios:
— Blaine... — sussurrei.
Ele estava mexendo na lareira há algum tempo. Sua mão
segurava uma barra de ferro que cutucava de lá, e cutucava de cá.
Enquanto isso, assobiava uma melodia assustadoramente alegre.
Vez ou outra, lançava um olhar que me fazia sentir a necessidade
de encolher-me, e Devan de se colocar ainda mais à minha frente.
Eu entendia muita coisa sobre pacientes psiquiátricos e,
durante uma época da minha vida, cogitei a ideia de me tornar
psiquiatra. Sempre procurei estudos sobre psicopatia, sobre
transtorno de bipolaridade, esquizofrenia, entre outros distúrbios da
mente. Eu achava fascinante. Assistia filmes sobre a reforma
psiquiátrica, e pesquisava sobre outros tipos de tratamento — além
das medicações, é claro. Sobre casos completamente assustadores
e sobre criminosos completamente malucos. Então, quando Blaine
tirou sua máscara e me mostrou sua verdadeira face, não foi difícil
enxergar o que havia ali, enxergar os caminhos e os labirintos de
sua mente.
Blaine era um psicopata. Porém, havia algo além daquilo.
Muito além.
A marca registrada de um psicopata vem do fato de não ter
sentimentos. Eles eram completamente desligados. No entanto,
Blaine tinha um, que habitava seu corpo e o preenchia mais do que
o sangue em suas veias.
Blaine sentia raiva.
Muita raiva.
Raiva de mim.
Chase e Devan, agora, estavam completamente despertos,
mas eu causaria mais estragos em Blaine do que eles dois. Devan
estava com uma costela danificada e, por ele não apresentar
sintomas de uma possível perfuração do pulmão, concluí que —
ainda bem — estava apenas trincada. Seu olho esquerdo estava
roxo e, na esclera, vermelho sangue.
Chase tinha contusões espalhadas pelo corpo inteiro. Ele
estava em cárcere há muito tempo. Emagreceu, estava pálido. Eu
não entendi porra nenhuma já que, na última vez que o vi, ele
partiria para Connectcut. Entretanto, quando cheguei perto e lhe
perguntei o que havia acontecido, Chase não disse absolutamente.
Ele me encarou, os olhos arregalados e a boca semiaberta.
Lágrimas começaram a escorrer e seu corpo a tremer. Depois, levou
as mãos até a cabeça e a apertou forte.
Devan sofreu fisicamente.
Chase psicologicamente.
Eu segurei a mão dele e sussurrei que tudo ficaria bem,
embora eu não acreditasse em minhas próprias palavras.
Ainda estávamos encolhidos no canto da sala. Blaine
levantou-se, caminhou lentamente até as portas de madeira e as
trancou. Depois, se inclinou até o chão e segurou duas tábuas de
madeira. Ele as pregaria na porta. O barulho do martelo chocando-
se contra o parafuso se misturou com o som da chuva abafada e do
assovio de Blaine, que não cessou em momento algum. Estávamos
em um filme de terror e não podíamos fazer nada. Chase não
parava de soltar murmúrios perturbados. Devan não conseguia nem
respirar sem sentir que, a qualquer momento, sua costela se partiria
em dois.
E eu estava grávida.
Me levantar e enfrentar Blaine estava fora de cogitação, já
que ele fez o favor de recolher minha arma.
Estávamos presos, mesmo sem as correntes.
Blaine enlouqueceu Chase, jogando coisas em sua mente
que nem posso imaginar. Reduziu os movimentos de Devan,
batendo forte, mas não o suficiente para quebrá-lo, deixando-o no
limite. Fez com que eu sentisse medo como nunca senti em toda a
minha vida.
Tudo de propósito.
Nunca nos sentimos tão impotentes quanto naquele
momento.
Quando ele terminou, jogou o martelo no chão e se virou
para nós, sorrindo.
— Por onde eu começo, hun?— indagou com a voz branda.
Nenhum de nós respondeu.
— Ah, o que aconteceu? O gato comeu a língua?— riu.
Silêncio mais uma vez.
Blaine rolou os olhos e suspirou.
— Ok. Eu tenho algo que vai fazer vocês falarem.
Blaine se desencostou da porta e caminhou em direção ao
corredor.
Sumiu na escuridão.
Com dificuldade, Devan se levantou, soltando alguns
murmúrios de dor. Mancando, caminhou até as portas de entrada.
— Devan, você não pode se mexer muito... — sussurrei — O
que está fazendo?
— Estou tirando você daqui — falou, antes de chutar a porta.
Devan soltou um chiado de dor.
A porta não se abriu.
— Pelo amor de Deus, Devan — falei, me levantando e
caminhando até ele. Segurei seu braço — Você não consegue nem
se segurar em pé.
— Pelo amor de Deus, Sadie — murmurou de volta, se
soltando do meu aperto e virando-se para a porta — Esse cara é
maluco. Completamente pirado. Você precisa sair daqui.
Quando chutou a porta mais uma vez, instantaneamente
levou a mão às costelas.
— Porra...
— Olha aí, Devan. Para com isso... — Caminhei até ele e
segurei seu braço novamente — Você precisa ficar parado.
Eu o puxei, mas não consegui movê-lo do lugar.
— Eu já disse.Que vou tirar.Você daqui — informou
pausadamente.
Bufei irritada.
Se ele quer ser mais um paciente teimoso na minha lista,
então vou tratá-lo como tal.
— Se você não sentar a porra da sua bunda agora, eu juro
que termino de quebrar sua costela. Isso não um concurso de
heroísmo, Caldwell. Isso é vida real, e você não vai durar nem meia
hora se continuar a teimar comigo — praguejei.
— Parem de brigar... — alguém sussurrou.
Eu olhei na direção de Chase. Ele abraçou as próprias
pernas e nos encarou. Seus olhos verdes estavam perdidos.
— Tem uma saída pela cozinha... — murmurou ele, a voz
fraca.— Você lembra onda fica, Sadie? Diz que lembra...
Eu assenti várias vezes.
Os passos de Blaine voltaram a soar.
Eu agarrei a mão de Devan e o levei para o lugar onde
estávamos. Blaine logo surgiu. Ele segurava uma caixa de papelão,
e sorria.
— Vamos começar... — disse ele, enfiando a mão na caixa
— Violet Adams.
Blaine tirou um saco plástico da caixa e jogou no chão.
Dentro dele, fios castanhos claro.
Um arrepio percorreu minha espinha.
— Megan Hale — outro saco.— Sidney Marshall. Ashley
Miller. Melanie Winkle. Nancy Fox. Maddie Anderson.
A cada nome proferido por seus lábios, Blaine segurava um
saco plástico transparente e jogava ao chão, como se não fossem
nada além de lixo. O último, abrigava fios vermelhos tingidos.
— Ah, e agora, a cereja do bolo... — enfiou a mão na caixa
e, com os olhos brilhando, tirou o último saco — Robin Allen.
Os cabelos escuros e lisos de Robin estavam dentro do
saco. Eu acompanhei a queda deles em câmera lenta, até atingirem
o chão.
Fúria subiu à cabeça em uma velocidade máxima. Tentei me
levantar para avançar em Blaine, mas Devan me deteve.
— ELA AMAVA VOCÊ, SEU FILHO DA PUTA! — esbravejei.
Blaine deixou a caixa no chão e deu de ombros.
— Bom, se te consola, eu gostava do boquete dela.
Estreitei os olhos em sua direção, tentando acreditar que era
um pesadelo.
Mas não era.
— Você é maluco... — murmurei.
Blaine estalou a língua no céu da boca cinco vezes, negando
lentamente com a cabeça.
— Todos somos malucos... — ele retrucou, cruzando os
braços — a diferença é que eu tive razões para ser.
— Então me diz, Blaine... — pedi, não, eu implorei — Me diz
o porquê, me diz a razão.
Agora, Blaine sorriu, claramente animado.
— Ah, agora sim... — comemorou ele — Vou contar uma
historinha.
Ele deu alguns passos e começou:
— Era uma vez, há muitos e muitos anos atrás, um casal que
se amava muito. Eles tinham planos. Planos de se casarem, de
construírem uma família. Ambos conseguiriam empregos estáveis e
comprariam uma casa aconchegante no centro da cidade em que
viviam... — ele sentou-se no chão, juntou as mãos e suspirou —
Mas então, ela apareceu. A Rainha Má. A Malévola. A Rainha de
Copas, tanto faz. A vilã que vocês preferirem... — deu de ombros —
Ela enfeitiçou o homem, que abandonou sua noiva para ficar com
ela. Horrível, eu sei...
Eu senti vontade de vomitar, tentando não comparar aquela
historinha com uma já conhecida.
— A noiva ficou amargurada. Infeliz. Depressiva. Ela
observava os dois pela cidade, felizes, sorridentes, como se não
tivessem arruinado sua vida. Algum tempo se passou, e eles
estavam vivendo a vida que ela havia planejado. Casaram-se.
Tiveram uma filha e esperavam outra. Compraram uma casa no
centro da cidade. Viviam felizes. Mas a noiva sabia que ainda tinha
algum poder sobre o homem, então, o seduziu... — Blaine abriu os
braços e olhou para mim — E cá estou eu.
Sua revelação me fez ficar tonta. Tão tonta que precisei me
apoiar no ombro de Devan, mesmo que já estivesse sentada.
— Blaine, você... está querendo dizer que...
— Que sou seu irmão! — exclamou ele — Isso não é
demais?
— Isso é mentira... — sussurrei — Meu pai nunca trairia
minha mãe.
— Acorda, Sadie! — rebateu — Isso aqui não é um conto de
fadas. Isso aqui é vida real! — ele riu — Nosso querido papai chifrou
sua mãe com a minha. Charlotte Collins é minha mãe!
Soltei o ar com força.
Tudo estava nítido, agora.
Blaine tem os olhos de Charlotte. Os cabelos de Charlotte.
Os meus lábios.
Eu e Blaine somos irmãos.
Apoiei as costas na parede e esfreguei o rosto com as duas
mãos.
— E por que você a perseguiu? — Devan perguntou, a voz
baixa e transbordando em ódio — Por que fez essa cena toda?
— Porque a culpa é dela... — praguejou Blaine — A culpa
sempre foi dela.
Quando eu abri os olhos, Blaine segurava uma faca. A
mesma faca que tirou a vida de Tatum e, provavelmente, a do
prefeito. A mesma faca que feriu Dianna.
— Robin já foi... — murmurou ele — Agora só falta esses
dois. Seus brinquedinhos. Você vai vê-los morrer, Sadie. Saiba que
tudo o que acontecer aqui é sua culpa.
Ele deu um passo à frente.
— Não! — exclamei e empurrei Devan para trás de mim,
ficando na frente dos dois — Você ainda não explicou sobre a minha
culpa.
Isso, Sadie.
Enrole.
Chase e Devan tentaram me fazer sair da frente deles, mas
nada e nem ninguém me tiraria dali.
Blaine brincou com a faca.
— Minha mãe passava a semana toda no orfanato. Ela não
voltava por sua causa... — revelou — Charlotte sentia algum tipo de
amor doentio por você. Uma vez ela te chamou de filha. E, quando o
final de semana chegava e eu finalmente poderia vê-la, ela
descontava toda a raiva que sentia em mim. Tenho cicatrizes até
hoje... — explicou, a voz firme e fria — Ela não pirou quando você
fugiu. Ela já era maluca antes. Eu só dei um jeito de fazê-la ficar
ainda mais depois que você se foi. Sabe, como uma espécie de
vingança. Pergunte a Chase. Ele sabe meus métodos. Tem se
acostumado com eles desde que decidiu não voar para Connecticut
e voltar à Coolley, para ficar com você. Pena que eu o peguei antes
disso.
Olhei para trás e encarei meu melhor amigo. Ele estava
apavorado. Seu corpo tremia, enquanto ele encarava o nada.
Perturbado.
Voltei a olhar para Blaine.
— Você enlouqueceu sua própria mãe... — afirmei.
Blaine assentiu.
— Depois que eu a internei no hospício, dei um jeito de
achar você. Você sabe como, não é? Eu sei mexer na internet —
deu de ombros — Troquei meu sobrenome, arranjei uma identidade
falsa e tchanram! Blaine Donovan nasceu. A partir daí foi fácil.
Estudei na mesma faculdade que você. Mandei currículo para os
mesmos lugares que você. Fui contratado por Thomas Walker como
você. Eu queria te ver sofrer, Sadie. Como eu sofri minha vida
inteira.
Eu fechei os olhos e respirei fundo.
Pense direito, Sadie.
Você tem um bebê, agora.
Não avance.
Há uma brecha nessa história toda. Sempre há.
Procure-a.
Encontre-a.
Uma luz pareceu ter surgido em minha mente, como se
alguém tivesse soprado em meu ouvido.
— Mas não faz sentido... — murmurei, abrindo os olhos —
Você não estava em Coolley quando as mortes começaram, nem
quando Robin morreu.
O canto dos lábios de Blaine subiram lentamente.
— Acha mesmo que fiz tudo isso sozinho, irmãzinha?
Eu juntei as sobrancelhas, confusa.
Porém, o entendimento logo me cobriu quando uma risada
soou.
Uma risada baixa.
Sombria.
Rouca.
Ela ecoou pela casa e por minha cabeça.
E eu reconheci aquela risada.
Eu reconheci, porque a ouvi naquela noite, no meu quarto,
quando o assassino pegou minha arma e me observou por uma
hora. Eu não assemelhei as vozes já que, naquele momento, ele
estava de toca de esqui, impedindo que eu lembrasse de sua voz
abafada.
Mas a risada eu reconheci.
Reconheci porque ela ficou gravada em minha mente por
dias.
Um arrepio percorreu minha espinha. A risada soou atrás de
mim.
Meu coração parou.
Me virei aos poucos, tremendo.
Ele sorriu e murmurou:
— Fuja, pequena.
Com uma taça de vinho na mão e em silêncio absoluto, eu
gostava de pensar no que eu senti durante o dia. Ele geralmente era
corrido. Abria um corpo ali, outro aqui, analisava amostras de
tecidos e sangue, dava os últimos toques em relatórios e, por fim,
voltava para minha amada e confortável kitnet no centro de Detroit,
a alguns poucos quilômetros do D.I.M. Os sentimentos geralmente
envolviam cansaço, contentamento com casos solucionados e, uma
vez ou outra, alegria pelos goles já tomados.
Mas, desta vez, eu não conseguia pensar em um maldito
sentimento sequer.
Absolutamente nenhum.
Eu estava em choque. Petrificada. Em negação.
Quando Chase se levantou e caminhou sem nenhuma
dificuldade até Blaine, eu congelei.
Não.
Por favor, não.
Chase deu dois chutes leves no corpo de Tatum, testando se
ele ainda estava vivo. Quando constatou que a morte já havia o
levado, bufou:
— Eu queria matar esse imbecil. Você tirou minha chance.
— Supere, Chase — Blaine retrucou, cruzando os braços.
Chase rolou os olhos e, finalmente, se voltou para nós.
Devan estava tão surpreso quanto eu. Ele desconfiou de Chase,
mas nunca imaginou que o que vivemos naquela sala do orfanato
era um teatro.
Era um show.
Chego a pensar que ele tenha ensaiado.
— Pode sair de perto dela, por gentileza? — Chase pediu
com uma voz assustadoramente branda.
Devan não fez o que ele queria.
— Tudo bem, você tem cinco segundos para desgrudar da
Sadie... — ameaçou, cruzando os braços — Um...
Chase deu um passo grande em nossa direção.
— Dois... — Outro passo. Eu me encolhi — Três.
— Se afasta, Devan. Ele vai machucar você... — sussurrei
em seu ouvido.
Devan não saiu.
— Quatro... — A um passo de distância, ele inclinou a
cabeça para o lado e sorriu de um modo doentio — Cinco.
Chase chutou Devan. Pelo grito gutural e potente que
deslizou por seus lábios, deduzi que o golpe havia atingido suas
costelas. As mesmas que já estavam danificadas.
Anderson estava pronto para dar outro chute, quando eu me
lancei sobre o corpo de Devan.
— PARA! — gritei.
Chase estagnou, a poucos centímetros de atingir novamente
o corpo de Caldwell.
Tremendo, eu me levantei lentamente e me afastei de
Devan. Chase sorriu.
— Boa garota... — comentou ele.
Sentei no chão, enquanto Devan tossia sangue. Blaine o fez
levantar-se bruscamente e o empurrou mais uma vez até as
correntes, prendendo-o.
Chase cruzou os braços, me observando. Eu já havia visto
aquele olhar. Aquele olhar foi o mesmo que me lançara naquela
noite, em meu quarto, enquanto eu me sentia encurralada e
apavorada.
Chase era doente.
Completamente doente.
— Você algum dia perdeu a memória? — questionei, a voz
fraca e trêmula.
Ele soltou uma risada nasalada.
— É claro que não... — respondeu ele — Eu sabia que se eu
voltasse ao casarão, você continuaria me pedindo para ajudá-la.
Você não conseguiria fazer sozinha, não é? Era só uma criança... —
revelou — Por outro lado, quando você completasse a maior idade e
percebesse que nunca fui te buscar, você não ficaria comigo. A
solução mais fácil foi fazer você pensar que estava morto e, quando
saísse, fingiria ter perdido a memória. Eu preferia você trancada e
sofrendo no orfanato do que você longe de mim.
Eu estreitei os olhos, sem acreditar que uma pessoa com
aquela maldade existia.
— Como eu não percebi? — murmurei, incrédula e chocada.
Chase pintou o personagem bonitinho, atencioso e amoroso.
Nem ele parecia saber o tamanho da ruína dentro de si.
A pessoa que eu jurava conhecer se revelou um quebra-
cabeça, cujo a última peça viera sem o encaixe, tornando-se
impossível de juntar-se às outras. Impossível de se completar.
Ele sorriu e, lentamente, levou seus dedos ao meu rosto.
— Tira a mão dela! — Devan esbravejou, mas Chase não o
obedeceu.
— Eu não sou doente, pequena. Não me olhe assim... —
comentou ele, deslizando seus dedos por meu rosto — Eu só te
amo muito.
Esquivei-me do seu toque, repugnada.
Chase se levantou, rindo, e encarou Blaine, cúmplice.
— Era uma vez, há muitos e muitos anos atrás... —
começou, da mesma forma que Blaine, e meu meio irmão gargalhou
sádico — Um garotinho mal compreendido. Ele sempre se
questionou qual era o problema de jogar pedras no gato do vizinho,
ou de enterrar vivo o hamster de sua irmã mais nova. Seus pais não
ficaram do seu lado. Sua psicóloga não ficou do seu lado... —
Caminhando lentamente pela sala, Chase fez uma pausa para
suspirar. — Até que, em uma noite, sua casa pegou fogo.
Eu juntei as sobrancelhas e abri a boca para falar.
Nada saiu.
— Ah, sim! Eu sei o que você deve estar pensando. O
incêndio foi uma fatalidade. Não fui eu, mas não posso dizer que
não gostei... — explicou, sorrindo — O garotinho foi mandado para
um orfanato, e lá, ele a conheceu. Uma pequena garota, assustada
e acuada, com medo até da própria sombra. Ele percebeu que ela
sofria. Sofria muito. E foi como um encontro de almas, pequena. Ele
se apaixonou instantaneamente.
Psicopatas não vêm com uma etiqueta de aviso colada na
testa. Nós nunca sabemos, até fazer uma ressonância na cabeça. E
Chase, definitivamente, se tornou o maior ator de todos eles.
— O tempo passou e os dois cresceram. O garotinho a
observava de longe, sem se aproximar. Ela criou corpo, ficou mais
linda do que já era. E ele, ansioso, contava os segundos para o dia
em que ela completaria dezoito anos e sairia do orfanato. Ele
poderia parar de fingir e os dois ficariam juntos. Para sempre. Seria
a melhor história de amor de todos os tempos — continuou — Você
se lembra da noite da festa, Sadie? Quando eu falei todas aquelas
coisas para você?
Eu continuei calada.
O sorriso de Chase se desfez.
— RESPONDE, CARALHO!
— SIM! — gritei, pulando com o susto — Eu me lembro...
Os olhos dele se suavizaram em uma rapidez assustadora.
— Aquilo, pequena, era nada mais nada menos do que tudo
o que eu queria fazer com você... — revelou, sorrindo — Queria
marcar sua pele. Queria deixá-la roxa como seu pulso, enquanto
provavelmente entraria e sairia de você. O que eu posso fazer? É
meu fetiche.
Ele deu de ombros como se aquilo não fosse nada, e eu
senti nojo.
— Mas você fugiu. Passou por entre meus dedos e eu te
odiei. Você precisava pagar por ter me abandonado.
— Eu pensei que você tinha morrido, Chase... — murmurei,
a voz trêmula — Como você pôde? Como você pôde me deixar
trancada naquele orfanato sabendo de tudo o que acontecia?
Chase não respondeu às minhas perguntas. Em vez disso,
caminhou mais uma vez até mim e se ajoelhou à minha frente.
Devan se agitou.
Quando eu olhei para ele, percebi seus lábios se mexendo.
"Cozinha."
A saída da cozinha.
Chase segurou meu rosto com brutalidade e apertou minhas
bochechas.
— Olha para mim, porra... — praguejou, baixinho — Ou você
olha para mim, ou eu acabo com ele.
Assenti freneticamente, enquanto minhas lágrimas caíam.
Chase se afastou e se sentou no chão, assim como eu.
— Eu procurei por você. Não foi difícil, no final das contas,
mas Blaine já estava de olho, então, consequentemente, me
descobriu. E em vez de me matar ou de me espantar para longe,
nós nos unimos. Foi divertido brincar com a sua mente... — Levou o
indicador à minha cabeça e deu dois toques nela.— Agora vem o
seu castigo por ter me deixado.
O canto de seus lábios subiram.
Eu comecei a tremer e, instantaneamente, levei minha mão
ao meu ventre.
— Você vai me matar? — perguntei.
Blaine respondeu por ele:
— Ainda tem dúvidas?
— Não... — Devan praguejou e começou a tentar puxar as
mãos das correntes. — Chase, ajude-a. Vocês sempre foram
ligados. Não deixe Blaine fazer isso com ela.
Chase não fez nada. Blaine caminhou até a lareira, e agarrou
a barra de ferro que brincava no início de tudo.
Eu arregalei os olhos quando li a palavra na ponta dela. A
palavra que me atormentou por tanto tempo:
DEATH.
Aquele foi o ferro que queimou um dos corpos.
Chase se levantou e se afastou. Blaine caminhou até mim
com um sorriso contente.
— NÃO! PARA! — Devan gritou, e como um animal raivoso,
conseguiu soltar uma das mãos — BLAINE!
Desviei quando o ferro veio em minha direção e me levantei,
correndo para a outra ponta da sala.
Blaine riu.
— Vamos brincar de gato e rato, irmãzinha? — perguntou
ele, vindo em minha direção mais uma vez.
— FAÇA COMIGO! — Devan gritou — FAÇA O QUE
QUISER COMIGO! DEIXE ELA EM PAZ!
— Pedido negado — Blaine retrucou — Guardei essa merda
especialmente para ela.
Eu não tinha saída.
Não tinha como fugir.
Via a determinação nos olhos do meu meio irmão, e eu
precisava apelar. Então, quando ele caminhou mais uma vez em
minha direção com a barra de ferro em mãos, abri a boca para gritar
que estou grávida, esperando que ele ficasse chocado ou, por
algum milagre, emocionado com a ideia de ser titio.
Porém, o barulho alto do tiro me fez petrificar.
O líquido viscoso respingando em meu rosto me fez fechar
os olhos.
E assim fiquei. Contei alguns segundos na escuridão.
Quando abri os olhos, tudo o que vi foi o sangue saindo de sua
costela e sua boca.
Blaine soltou a barra de ferro, que caiu e rachou a madeira
velha e desgastada do piso.
Desabou no chão.
Sua respiração era acelerada e grunhidos de dor saíam de
por seus lábios. Chase caminhou até ele com o revólver calibre 38,
o mesmo que matou uma das garotas e que tanto procuramos.
Sempre esteve bem debaixo dos nossos narizes.
— Você já estava me irritando — ele disse, guardando o
revólver na cintura.
Blaine negou freneticamente com a cabeça quando Chase
se abaixou e rasgou sua camiseta.
— Chase, o que você vai fazer?— indaguei em um sussurro.
Ele não me respondeu. Em vez disso, se abaixou até a barra
de ferro.
Os grunhidos de Blaine aumentaram.
Segurando firmemente a barra entre suas mãos, Chase
empurrou o ferro ardente em direção ao peito exposto de Blaine. O
grito alto ecoou pela casa inteira.
Minha visão embaçou. A cena que se desenrolava em minha
frente não parecia real, de tão horrorosa que era.
Enquanto Chase carimbava sua assinatura em Blaine, eu
encarei Devan. Seus lábios se mexeram mais uma vez:
"Cozinha. Agora."
Eu neguei com a cabeça e mexi os meus lábios, sem emitir
som algum:
"Não. Sem você não."
Ele me lançou um olhar duro.
"Corra. Chame Bloom. Agora."
Neguei com a cabeça mais uma vez, irredutível.
Irredutível, até lembrar-me de minha atual situação.
Estava grávida. Eu precisava que essa criança e que ele
permanecessem vivos. Devan não ficaria mais sozinho se eu
morresse. Por isso, rapidamente tracei um caminho alternativo para
aquela situação toda. Eu correria até a saída e chamaria um
exército — se precisasse — para tirar Devan daqui. Mas, se Chase
conseguisse me alcançar ou se não aceitasse soltar Devan, eu daria
um jeito de convencê-lo a fugir comigo e deixar a gravidez continuar.
Quando o bebê nascesse, faria um acordo: Chase o levaria para
Devan, e eu nunca mais tentaria fugir dele.
Eu nunca mais veria meu filho e nem Devan.
Engoli o nó na garganta, enquanto uma lágrima escorria pelo
meu olho.
"Eu te amo", sussurrei.
Devan sorriu fraco.
"Eu te amo", ele disse de volta.
Chase ainda estava distraído, queimando o corpo de Blaine,
que já estava quase inconsciente.
E então, eu corri.
Corri o mais rápido que pude.
Corri tão rápido quanto o dia que fugi de Coolley.
Passei pelo corredor. Passei pela sala de jantar. Cheguei na
cozinha. E lá estava a porta. A porta de madeira que me levaria para
fora daquela casa e, mais tarde, até a delegacia de Bloom para
salvar Devan.
Eu precisava salvar Devan.
Quando finalmente alcancei a porta e meus dedos
encostaram na maçaneta, esperança atingiu meu peito.
Abri.
Mas a brisa noturna não me atingiu.
A água da chuva também não.
Tudo o que eu senti quando abri a porta, foi o impacto do
meu rosto contra um muro. Eu demorei alguns segundos para me
situar, e fazer meus olhos focarem-se à minha frente. Tudo o que vi
foram tijolos e cimento.
Chase tapou a porta.
Sua risada sombria soou atrás de mim.
— Não... — murmurei levando as mãos à parede, minhas
unhas tentando inutilmente cavar um buraco para poder sair — Não.
Não. Não. Não...
— Achou que eu daria a dica por onde fugir, Sadie? Sério
mesmo? Tão fácil assim?
Bati a mão na parede.
— SOCORRO! — gritei — Alguém me ajuda!
A risada soou mais uma vez.
— Ninguém vai escutar você, pequena.
Escutei seus passos vindo em minha direção.
Me virei e recuei.
— Não chega perto de mim...
Ele chegou.
Seus braços agarraram meu corpo e, quando fui gritar, sua
mão tampou minha boca, abafando meus pedidos por socorro.
— Ssshhh.... se acalma, pequena... — sussurrou, seus
lábios se aproximando do meu rosto e distribuindo beijos — Falta
pouco. Nós vamos ficar juntos, querida. Eu prometo.
Apesar de estar escuro, seus olhos transmitiam alguma luz.
Eles brilhavam em loucura.
Os olhos azuis de Blaine estavam em minha direção,
parados, estagnados. Sem brilho, sem vida alguma. A última pessoa
com meu sangue além de mim, estava morta.
— Está te incomodando, pequena?— Chase perguntou —
Eu posso tirá-los e jogá-los nessa lareira, se você quiser. Eu faço
tudo o que você quiser.
Abraçando minhas pernas e me espremendo no canto da
sala, eu lhe encarei.
— Eu quero que você solte Devan, me dê esse revólver e
nos deixe prendê-lo.
Chase sorriu, encostado na parede.
— Tudo menos isso, pequena.
Olhei para Devan. Seu pulso estava coberto por hematomas
e uma linha fina de sangue escorria, consequência de tantas
investidas para se soltar. Sua cabeça estava baixa, e ele só não
caiu até agora porque suas mãos estavam suspensas e presas nas
correntes. Devan estava completamente debilitado. Ele sabia lutar e
era forte, em uma briga com certeza ganharia. Mas agora não.
Agora ele não conseguiria lutar nem contra uma pena.
— Chase, por favor... — murmurei, voltando a encará-lo —
Deixe Devan ir. Seu problema é comigo, não é?
— Para com isso, Sadie... — Devan soprou, a voz fraca.
— Ele vai morrer se você não deixá-lo ir, Chase. Por favor.
— Vê-lo morrer é tudo o que eu quero, bobinha... — Chase
rebateu.
Respirei fundo, contendo o medo de perder Devan.
— Tatum estava com vocês?
Chase parou de encarar o corpo de Blaine como se ele fosse
uma obra prima, e seus olhos verdes se voltaram para mim.
— Não... — respondeu ele — mas nós sabíamos que ele
estava rondando você. Eu percebi na noite em que fiz aquele
piquenique idiota. Ele estava escondido atrás de uma árvore, se
achando o pior cara de todos os tempos. Coitado... — soltou uma
risada, negando com a cabeça — Foi sorte, porque conseguimos
culpá-lo por um tempo e confundir vocês.
Encarei o corpo de Tatum. Ele sempre me odiou e fazia
questão de deixar explícito. Então, eu não sentia nem um pouco de
pena por seu destino. Foda-se a compaixão e a porra do perdão. A
morte foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida.
— Acho que precisamos conversar agora, Sadie... — ele
murmurou — Sobre uma coisa que me chateou muito. Muito
mesmo.
Eu não respondi nada, e nem lhe encarei.
— Vamos conversar sobre como você foi uma vagabunda.
— Lava a porra dessa boca pra falar dela, seu filho da puta
— Devan praguejou, fraco.
Chase o ignorou completamente.
— Estávamos indo bem, Sadie. Estávamos juntos! E você
preferiu ele, não é?
— Preferi — murmurei — E eu não me arrependo.
As palavras saíram por minha boca sem pensar.
Escorregaram para fora sem terem a noção de que poderiam ser
meu fim.
Chase fez silêncio durante alguns instantes, mas seu rosto
logo se tornou vermelho e raivoso. Caminhou a passos largos até
mim e segurou meus cabelos, rente à minha nuca. Puxando-me
brutalmente, me levou até os pés de Devan e me empurrou.
— FILHO DA PUTA! — o loiro gritou.
— Vamos ver se ele ainda irá te querer, vadia... — Chase
disse, tentando arrancar minha blusa — O que acha de fazer amor
aqui, hun? Na frente dele?
— NÃO ENCOSTA NELA! — Devan gritou mais uma vez e,
em um impulso, conseguiu chutar Chase, que caiu para longe de
mim.
Infelizmente, não demorou muito para seus braços
asquerosos voltarem a me agarrar e me puxarem para fora do
alcance de Devan.
Eu gritei, mas ninguém além de Devan escutou.
Eu parecia estar em um dos meus pesadelos, e que Connor
estava prestes a fazer aquilo novamente. Era tudo igual. Os gritos.
As tentativas frustradas de fugir. As lágrimas dolorosas escorrendo e
molhando meu rosto.
— FUI EU! — Devan gritou, antes que ele conseguisse
rasgar minha blusa.
E sua voz ecoou repetidas vezes.
Chase parou por alguns instantes e sua atenção voltou-se
para Devan.
— Eu a ameacei. Disse que se ela não me escolhesse, eu te
mataria — murmurou ele — A culpa é minha. Ela te deixou por
minha culpa. Se tem alguém que você precisa descontar sua raiva,
esse alguém sou eu.
Que merda ele está fazendo?
Chase pareceu ter respirado fundo e contado até dez. E,
depois de assumir uma expressão fria e vazia, se levantou.
— Foi bom você ter tocado nesse assunto, Caldwell... —
comentou, indo até a lareira e pegando algo escondido atrás da
planta — Trouxe um brinquedinho. Acho que você vai gostar.
Quando Chase se virou para nós, eu congelei.
— Chase... — soprei — Larga isso, por favor.
Aos poucos, eu me levantei do chão e me coloquei na frente
de Devan, observando a imagem de um lunático enfiando um soco
inglês entre os dedos.
— Sai da frente, pequena — ele pediu.
Eu neguei com a cabeça diversas vezes.
— Vamos embora. Vamos... — me aproximei dele aos
poucos e segurei sua mão.— Você disse que me ama, não é?
Esqueça ele. Vamos embora daqui.
Os seus olhos verdes encontraram os meus. Eles me
analisaram por alguns segundos. Eu pensei que ele cederia. Porém,
em um piscar de olhos, Chase me empurrou com uma
agressividade absurda.
Eu caí no chão e acabei batendo com a cabeça.
Senti a tontura. Estava longe. Perdida. A dor em minha
têmpora me levou para o inferno e me trouxe de volta. Enquanto
escutava um zumbido no ouvido, mesmo que zonza, consegui ver
Chase caminhar até Devan. E depois, o barulho do soco desferido
contra seu rosto.
Volta, Sadie.
Você precisa voltar.
Soco.
Levei minha mão até o meio de minhas pernas. Estava seco.
Sem sangue.
— Para... — sussurrei.
O soco inglês atingia sem dó o rosto de Devan.
Minha visão começou a voltar.
— Eu estou grávida... — murmurei, baixo.
Ninguém me ouviu.
Soco. Soco. Soco.
— EU ESTOU GRÁVIDA! — gritei.
Os socos pararam.
Os grunhidos de Devan também.
Eu precisei tomar coragem para levantar o olhar e ver seu
rosto. Ele estava coberto por sangue e desfigurado. Mas ainda era
Devan. Apesar de seus olhos estarem inchados, eu sabia que ele
me encarava. Talvez surpreso, ou chocado.
“Eu faço tudo o que você quiser”, Chase disse.
Ele faz tudo o que eu quiser.
— Essa criança não pode crescer sem Devan... — disse,
encarando Chase — E o Devan não pode ficar sem essa criança.
Alguns segundos de silêncio se passaram. Acho que os dois
estavam tentando processar as minhas palavras.
Chase bufou e rolou os olhos. Tirou o soco inglês de seus
dedos, que pingavam sangue, e o jogou em um canto qualquer.
Puxou uma chave de seu bolso e, a contragosto, desprendeu os
pulsos de Devan.
Ele caiu de joelhos. Eu, rapidamente, me arrastei até ele.
Apesar de fraco, Devan levou as mãos até meu ventre.
Queria secar seu rosto. Queria cuidar de seus ferimentos e
beijar sua testa. Mas, se eu o fizesse, Devan sentiria dor. Não queria
causar aquilo nele, pelo menos não naquele momento. Então, eu
apenas o abracei.
— Vai ficar tudo bem... — sussurrei em seu ouvido.
Devan retribuiu meu abraço com fervor. Neste momento,
ouvimos o som de uma sirene.
Katherine chamou Bloom.
— Que porra é essa?! — Chase praguejou, irritado — Era só
o que me faltava.
Chase agarrou meus cabelos e puxou meu corpo para si.
Devan automaticamente se levantou e, como um touro raivoso,
avançou até nós.
Porém, petrificou quando Chase apontou uma arma para
minha cabeça.
— Eu perderia a Sadie, Caldwell... — comentou ele — Mas
você perderia a Sadie e o vermezinho na barriga dela. Quer colocar
em uma balança?
Devan recuou.
— Ótimo. É o seguinte... — apontou.— Eu e Sadie vamos
embora, você fica aqui.
— Nem fodendo — Devan respondeu.
Chase riu.
Ele não parecia nem um pouco acuado, ou com medo de
que Bloom invadisse o orfanato e o prendesse.
Não...
Chase tem mais planos. E, quando constatei isso, fechei os
olhos. Ainda não acabou.
— Querida? — ele chamou, alto — Venha, por favor!
Depois de alguns segundos, escutei passos vindos do
mesmo corredor em que Blaine veio. Uma mulher de cabelos claros
surgiu. Ela tremia, estava machucada, e chorava silenciosa.
E, quando seus olhos encontraram os meus, estremeci.
Louise.
Aquela era Louise, uma das garotas de L.
— Sadie... — ela murmurou, a voz trêmula — Estão todos
aqui. Todos os órfãos. Lauren, Lily, Tatum. Todos eles...
Seus olhos castanhos e amedrontados percorreram a sala, e
encontraram o corpo de Tatum, jogado em um canto qualquer.
Chase me apertou em seus braços.
— Ei! Mostrem que estão aqui! — gritou.
E então, vozes.
Elas vinham do andar de cima do orfanato. Eram muitas. De
homens, de mulheres, pedidos desesperados por socorro e que
finalmente tiveram a permissão para se libertarem.
— Escute, pequena... — Chase ordenou, e senti seus lábios
desceram até meu ouvido — Não é lindo, Sadie? O que fiz por
você? Todos os que te ignoraram e que te humilharam estão aqui,
agora, presos nos quartos, prontos para explodirem junto com a
bomba.
Soltei o ar.
— Junto com a bomba? — perguntei em um sussurro.
Chase olhou para Devan.
— Tem uma bomba escondida nessa casa, Caldwell... —
Chase informou — Só você nessa cidade tem capacidade para
desarmá-la, e impedir que todos eles morram. Você vai ficar, e nós
vamos embora.
Apesar de estar completamente machucado, Devan riu.
— Você acha mesmo que vou trocar minha mulher e meu
filho para salvar esse monte de gente que eu nem conheço? —
perguntou, com a voz fria e sombria — Eu não sou um cara tão bom
assim, Anderson.
— Ah, não. Eu não espero que você concorde... — Chase
respondeu — Eu espero que ela concorde.
Devan seguiu o olhar de Chase até mim.
Soltei uma lágrima.
— Devan, você precisa...
— Não — interrompeu-me — Isso não está em discussão.
— Você é o único que pode... — eu rebati — Faça isso,
Devan.
— Eu já disse que não vou deixar esse merda levar você —
murmurou, convicto — Nem fodendo.
— Por favor... — Louise implorou, soltando alguns soluços.—
Lauren e Lily, elas estão presas. Você precisa nos ajudar, por favor...
— Eu sinto muito, mas não vou trocar Sadie por vocês.
Jamais.
Chase bufou, e senti alguns fios de meus cabelos voarem
com o ato. Ele estava muito perto de mim.
— Ótimo, o que acha disso? — indagou ele — Todos ficamos
aqui. A bomba explode, nós morremos. Inclusive seu bebê. Faça a
sua escolha.
Não.
Meu bebê não.
— Devan, por favor — supliquei, levando minha mão ao
ventre — Ele não pode morrer...
Devan fraquejou. Olhou para minha barriga por muitos
segundos, intermináveis, eu diria. Depois, nervoso, levou as mãos à
cabeça e bagunçou seus cabelos. Porém, quando levantou a
cabeça, eu vi o mesmo olhar de quando ele me prometeu que
destruiria a minha vida, naquela sala de reunião.
Desta vez, ele era dirigido à Chase.
— Sabe rezar, Anderson? — ele questionou, frio — Eu
espero que sim, porque eu vou procurar. Vou procurar até no
inferno, se for preciso, mas eu vou te achar e vou pegar minha
família de volta. E, quando isso acontecer, tudo o que você vai
poder fazer é se ajoelhar e rezar.
Chase afrouxou um pouco seu aperto em volta do corpo. Eu
não conseguia ver seu rosto, mas ao notar a expressão de Devan,
percebi que aquelas palavras o afetaram.
— Foda-se — Chase praguejou — Vamos logo com isso.
Ele começou a me puxar em direção à porta, e a chutou uma
vez.
Eu permaneci com os olhos em Devan, que me lançou um
olhar seguro e que me fez acreditar em suas próximas palavras:
— Eu vou buscar vocês.
Eu assenti.
Ele ia.
No terceiro chute, as tábuas se partiram e a porta desabou.
A luz das sirenes fizeram meus olhos doerem.
— Chase Anderson... — escutei a voz de Bloom, que saiu
pelo megafone em sua mão — Solte a arma. Solte a garota. Você
está cercado.
Chase se posicionou meio que de lado, dando a chance de
ver possíveis ataques de Devan, dentro da casa, e dos policiais, do
lado de fora, mas ninguém o atingiria sem antes me ferir também. A
arma estava colada à minha cabeça, e eu suava frio.
— Eu estou sem paciência para essa enrolação... — Chase
disse, alto — Eu quero o carro de um civil, e que vocês me deixem ir
embora em paz. Caso contrário, ela morre.
— Pode pegar uma das viaturas!
— Você é surdo, porra?! — pressionou ainda mais a arma
em minha cabeça, e eu fechei os olhos — Eu disse que quero o
carro de um civil, não essa merda com rastreador. Vocês acham que
eu sou burro?!
— Ok. Tudo bem. Não a machuque... — Bloom negociou —
É um carro que você quer? Eu arranjo. Mas você não vai muito
longe, Chase.
Ele não respondeu.
Depois de alguns instantes, eu fui jogada no banco do
carona e Chase já estava dirigindo um Ford Taurus pela estrada que
levava para fora de Coolley.
Encolhida no banco, eu torcia para que Bloom o seguisse,
não tão perto para Chase se irritar, nem tão longe para nos perder
de vista.
Eu estava quase cruzando os dedos.
— Está feliz, pequena?— Chase perguntou, levando uma de
suas mãos para minha coxa.— Não se preocupe. Se você quer essa
criança viva, eu deixo a gestação fluir e, quando nascer, eu mando
pelo correio para Caldwell. E depois, seremos só nós dois e nossos
filhos. Para onde quer ir na nossa lua de mel? Eu te levo para onde
você quiser.
Eu não respondi nada.
Meus olhos estavam concentrados na floresta escura que
passava em um vulto.
— Eu estou falando com você, porra. Para de ser teimosa...
— disse entre dentes e sua mão alcançou minhas bochechas,
virando meu rosto bruscamente em sua direção — Quando eu falo
com você, você fala comigo, ouviu?
— Presta atenção na estrada, Chase — eu disse, tentando
me esquivar.
— Diga que ouviu!
— OUVI!
Tudo aconteceu rápido demais.
Quando eu gritei, com uma força descomunal e vinda do
fundo da minha alma, algo aconteceu. Chase perdeu o controle da
direção. Ele tentou frear, mas não adiantou.
Eu não sei qual foi o rumo que o carro tomou, mas acho que
capotou algumas vezes. Eu não senti absolutamente nada. Nenhum
baque. Nenhuma batida em meu corpo. Entretanto, quando o carro
finalmente parou, me senti tonta. Mas apesar de minha visão estar
embaçada e, ainda, de ponta cabeça, eu vi algo do lado de fora do
carro, por trás da janela trincada.
Eram pés.
Havia alguém do lado de fora.
A pessoa ajoelhou-se e entrou em meu campo de visão.
A última coisa que vi antes de apagar foi um sorriso gentil, e
um indicador empurrando os óculos de grau para cima.
Qual eu escolho?
Suspense?
Mistério?
Romance?
Estou cansada de romance.
Com este pensamento em mente, caminho lentamente pela
biblioteca, passo por passo, em direção as prateleiras de terror.
A lanterna presa entre minhas mãos iluminava uma parte do
ambiente. A iluminação branca se focava em tudo o que eu tinha
curiosidade de olhar. Eu poderia acender a lâmpada, porém, não
seria tão divertido assim. Além do mais, tenho medo que Charlotte
acorde e veja a luz acesa. Se isso acontecer, adeus às saídas na
calada da noite.
Andei silenciosamente sobre o carpete marrom, e cheguei
até a estante. Com o indicador, procurei algum livro que me
interessasse.
Parei em um:
— Sherlock Holmes? — murmurei — Esse livro não deveria
estar junto aos de terror.
Alisei a capa e passei os olhos pela sinopse.
Instantaneamente, me interessei.
Investigação. Crimes confusos. Teorias embaraçosas.
Como seria se eu estivesse em um dos casos de Sherlock
Holmes? Será que eu seria inteligente o suficiente para ajudar no
desenrolar dele? Será que eu conseguiria seguir uma linha de
raciocínio e encontrar o culpado?
Quando abri o livro para começar a lê-lo, ele acabou
escapando por minhas mãos e despencou no chão.
O barulho dele ecoou pela biblioteca.
Eu fechei os olhos fortemente.
Droga.
Depois de alguns segundos prendendo a respiração, eu
suspirei e me abaixei, alcançando o livro. E, depois de caminhar até
o canto da biblioteca, eu me sentei no chão e apontei a lanterna
para a primeira página. Enfiei-me em um mundo onde linhas
aleatórias davam voltas e mais voltas em minha cabeça, mas eu
tinha absoluta certeza de que, alguma hora, elas se cruzariam.
Encantada.
Eu fiquei encantada com a investigação que o maior detetive
do mundo desenrolava e resolvia. Estava completamente envolta
nele, mas minha leitura foi interrompida quando eu ouvi um barulho.
A porta se abrindo.
Rapidamente, desliguei a lanterna e me encolhi, abraçando o
livro. Na pior das hipóteses, eu seria pega e Charlotte me colocaria
de castigo. Talvez, me deixaria trancada o dia inteiro no armário
apertado, sem luz, sem comida, sem água. Na melhor das
hipóteses, seria um ladrão.
A luz se acendeu, e eu precisei estreitar os olhos para me
acostumar com a claridade repentina.
— Quem tá aí? Apareça! Eu estou armado!
Eu soltei uma risadinha, reconhecendo a voz de Chase.
Me levantei do meu esconderijo e, aos poucos, saí de trás da
estante. Chase tinha os olhos verdes atentos, e suas mãos
seguravam fortemente uma panela. Quando me notou, primeiro,
ficou confuso. Depois, um sorriso se esgueirou em seus lábios.
— Achei uma ladrazinha... — Apontou, estreitando os olhos.
Eu sorri.
— O que faz aqui? — perguntei.
Chase saiu da posição de ataque e deu de ombros.
— Escutei um barulho e resolvi descer para ver o que era.
Sabe, para espantar possíveis ladrões.
— Espantar possíveis ladrões? Você tem doze anos, Chase.
Não daria conta.
Chase abriu a boca, indignado.
— Eu dou conta até do Hulk, Sadie. Como acha que
consegui isso?
Ele dobrou o braço e fez força para, talvez, expor alguma
massa em seu bíceps. Nada apareceu.
Eu ri.
— Você sonha alto demais.
Eu lhe dei as costas e voltei para o meu lugar. Sentei no
chão, abri o livro e voltei para minha leitura. Chase passeou e
explorou o ambiente.
— Eu nunca estive aqui... — ele comentou, seus passos
soando enquanto percorriam o assoalho.
— Eu sempre venho aqui — murmurei de volta.
Apesar de estar concentrada nas palavras do livro, eu sabia
que Chase estava me olhando.
— Quando? — ele perguntou — Você passa o dia inteiro
comigo!
Dei de ombros.
— Eu venho durante a madrugada. Sempre nessa hora.
Sherlock Holmes entrou em uma série de explicações sobre
coisas interessantes e que ninguém nunca se importava em saber.
Ninguém além de mim, é claro.
Chase caminhou até mim e se sentou à minha frente.
— O que acha de irmos até o escritório da Charlotte?
Eu juntei as sobrancelhas e levantei o olhar para ele.
— Você tá maluco?
— Vamos, Sadie. Todos estão dormindo.
Neguei com a cabeça.
— Não posso arriscar, Chase.
— Se ela acordar e nos pegar, eu juro que não a deixo te
castigar. Alguma vez já deixei? — perguntou. Eu neguei com a
cabeça. — Então vamos, Sadie. Tem um rádio lá.
A voz de Chase estava segura e firme.
— Rádio?
— É... eu lembro que você me disse que queria ouvir música.
Vamos. Estão todos dormindo.
Ele estendeu a mão para mim.
Quando estávamos sentados sob a árvore da fachada do
orfanato, há alguns dias atrás, um carro passou e as caixas de som
estavam altas. Era um carro com pessoas de dezesseis ou
dezessete anos, que cantavam animadas e acompanhavam a
melodia.
Instantaneamente, disse a Chase que, algum dia, queria
ouvir música.
Talvez eu devesse arriscar.
Por isso, marquei a página do livro e segurei a mão de
Chase. Ele sorriu. Foi um sorriso aberto e bonito, mostrando suas
covinhas, me fazendo ter vontade de sorrir também.
Depois de passarmos na cozinha para Chase devolver sua
arma secreta, caminhamos sorrateiramente até o escritório de
Charlotte. Chase ia na frente, segurando minha mão e me puxando
para nosso destino.
Abriu a porta.
O escritório da diretora Collins não me lembrava momentos
bonitos. Todos eles me causavam arrepios. Aqui, ela gritava comigo.
Batia réguas em minhas mãos e me fazia escrever mil vezes uma
frase específica no caderno:
"Eu sou amaldiçoada."
"Eu sou amaldiçoada."
"Eu sou amaldiçoada."
Chacoalhei a cabeça para expulsar os pensamentos e levei
minhas mãos para trás do meu corpo, escondendo os calos.
Chase acendeu a luz e caminhou até a mesa de Charlotte.
Sentou-se na cadeira de couro e pousou as mãos sobre os livros na
mesa. Ergueu o nariz.
— Eu sou Charlotte Collins, diretora do orfanato Coolley... —
murmurou, com voz fina e esnobe — Sadie, você está de castigo!
Não ouse sair, pestinha. Estou de olho em você.
Eu soltei uma risada com sua imitação exagerada.
— Diretora Collins, você é uma megera!— exclamei.
Chasei abriu a boca.
— Retire agora mesmo o que disse, sua insolente!
Eu ri mais ainda, levando as mãos até a boca para abafar.
Chase se levantou da cadeira e me deu as costas, levando a
mão em direção ao rádio depositado em uma das prateleiras. Ligou,
e abaixou um pouco o volume.
Um rock antigo começou.
Talvez Elvis Presley.
Chase se virou para mim e sorriu. Começou a dançar. Seus
passos eram desleixados e pouco compassados. Era engraçado.
Ao chegar em mim, Chase girou, passou as mãos pelos
cabelos e as estendeu para mim, em um convite. Eu neguei com a
cabeça. Novamente, Chase girou, passou os dedos pelos cabelos e
os estendeu para mim.
Ele não desistiria.
Tímida, segurei suas mãos com as minhas. Lentamente,
Chase me puxou para o meio da sala enquanto me incentivava a
dançar. Eu comecei com passos contidos e nervosos, mas logo,
passei a me soltar.
Prendendo uma de minhas mãos, Chase me fez girar. E
girar. E girar. E eu ri.
Nós dançamos pelo resto da noite.
— Sadie... — escutei uma voz longe — Sadie!
Abri os olhos.
— Sadie, saia do carro — a voz murmurou novamente.
Olhei para o lado, enxergando uma silhueta do lado de fora.
Seus olhos negros me mostravam preocupação.
— Robin...? — sussurrei, surpresa — Você está viva?
A garota sorriu.
— Bom, estou viva dentro de você. Isso deve significar algo,
não é?
Eu não sabia o que dizer.
Eu sempre duvidei da existência de Deus. Nunca rezei,
nunca conversei com ele. Nunca pedi para ele tornar minha vida um
pouco mais suportável. Na verdade, religião nunca fez diferença
para mim.
Entretanto, agora as coisas eram diferentes.
Eu sabia que a imagem de Robin em minha frente não
passava de uma alucinação. Uma alucinação muito boa, mas,
quando passei a analisar meu corpo e ver que eu não tinha um
mínimo arranhão, mesmo depois do puta acidente que sofri,
comecei a me questionar novamente.
Deus existe?
Levei minha mão, mais uma vez, até o meio de minhas
pernas.
Absolutamente seco.
Sem sangue.
Eu deixei um suspiro escapar, junto a uma lágrima.
— Você ainda está aí, anjinho? — sussurrei, passando
minha mão pelo meu ventre.
Ele ainda estava.
Seria realmente Deus, ou a morte, que sempre esteve ao
meu lado, me protegeu?
A morte me protegeu da morte?
Acho que bati a cabeça.
— Você precisa sair daí, Sadie... — Robin murmurou ao meu
lado — Uma hora, Chase vai acordar. Fuja dele, Sadie. Você precisa
fugir.
— Robin, você tem que me dizer o que está acontecendo.
Por que você está aqui?
— Esse é o limite, Sadie... — sussurrou de volta — Tudo o
que você deve saber é que precisa sair daí. Agora.
Eu me virei para o banco do motorista. Também de ponta
cabeça, Chase estava desacordado. Sua testa estava sangrando,
provavelmente bateu no volante.
Infelizmente, ele ainda estava respirando.
Preciso sair daqui.
Levei minha mão até o cinto de segurança e apertei o botão.
A queda até o chão foi adormecida por meus braços. Alguns cacos
de vidro se infiltraram por minha pele, mas eu não liguei. Antes
meus braços do que meu bebê.
E eu não deixaria nada atingi-lo.
Chutei a porta. Nada aconteceu. Chutei mais uma, duas, três
vezes.
Na quarta, a porta cedeu e se soltou das ferragens.
Eu respirei fundo, aliviada por sair de dentro do carro. Olhei
para os lados, não enxergando nada além do carro amassado e a
estrada vazia e escura.
— Robin?— chamei.
Ela já não estava mais aqui. Em nenhum lugar.
— Sadie...? — escutei a voz de Chase, vinda do carro.
Eu me virei para ele.
— Eu estou preso, pequena. Me ajude, por favor... — pediu,
a voz branda.
Por um momento, esqueci do monstro que Chase era dando
um passo em sua direção.
E parei no mesmo instante.
— Sadie, eu preciso da sua ajuda, pequena. Por favor. Está
doendo muito. Eu deixo você em paz, depois. Eu só preciso sair
daqui... — sua voz soou mais uma vez.
Eu recuei um passo, negando com a cabeça.
Mesmo não conseguindo vê-lo, eu sabia que Chase estava
fazendo tudo o que podia para sair de lá de dentro.
— Sadie, por favor. — Sua voz engrossou um pouco mais,
rude — Me ajude a sair daqui.
Olhei para os lados, procurando uma saída. Eu não teria
chance contra ele na estrada, Chase rapidamente me alcançaria.
Então, eu dei as costas para o carro e corri para dentro da floresta.
Mas seu grito ainda me alcançou.
— SADIE!
A chuva gelada fazia os cortes em meus braços arderem.
Os passos rápidos e frenéticos fizeram minhas pernas
fraquejarem várias vezes, mas nunca cedi ao cansaço.
A respiração ofegante fazia meu peito doer, mas a escuridão
me permitia ver.
Haviam corujas na floresta. Talvez, mais do que o normal.
Estariam elas apreciando o show? Apreciando o medo em mim?
Apreciando o horror que provavelmente viria a seguir?
Eu não sabia. E, o pior de tudo, é que eu não poderia correr
pela floresta até que Bloom finalmente chegasse. Ao mesmo tempo,
a hipótese de parar e me esconder me assustava.
Eu sabia que Chase havia conseguido sair do carro e que
estava correndo atrás de mim, me procurando. Ele não desistiria.
Eles nunca desistem.
Eu não poderia ser pega por ele, porque minha lábia já não
contava como antes. Eu não conseguiria convencê-lo a me deixar
viva e, consequentemente, deixar meu filho vivo. Eu o abandonei
preso no carro. Nada apagaria o ódio que sabia que Chase estava
sentindo por mim, naquele momento. Ele estava cego.
Se ele me pegasse, certamente me mataria.
Eu diminuí a velocidade da corrida e olhei para trás. Não
enxergava nada além da selva e não ouvia nada além de corujas e
cigarras.
Olhei em volta.
Rápido, Sadie.
Ache um bom esconderijo.
Encontrei uma árvore com um tronco grosso o suficiente
para me esconder. Eu tinha uma vantagem. Não sabia onde Chase
estava, porém, sabia de que direção ele viria.
Tentei acalmar minha respiração, mas não foi o suficiente.
Por isso, levei minha mão até a boca e abafei os suspiros ofegantes.
Silêncio absoluto.
A lua estava cheia, mas poucos feixes de luz conseguiam
ultrapassar as copas das árvores. Contudo, eu não precisava de
mais que aquilo para conseguir olhar as coisas ao meu redor.
Galhos secos, folhas, terra, uma cobra abocanhando um
camundongo.
— Sadie... — escutei a voz de Chase, ao longe,
cantarolando meu nome — Não faça isso, minha pequena. Apareça
para mim.
Minhas mãos começaram a ficar trêmulas e eu soltava
murmúrios apavorados. Para reforçar, também levei a outra mão à
boca.
— Lembra quando éramos crianças? Você gostava de
brincar de esconde-esconde. Estamos fazendo isso agora? —
perguntou ele.
Percorri meus olhos por todo o perímetro. Não o encontrei.
— Certo, então eu conto... — informou — Um...
Eu me abaixei, ficando agachada atrás de uma moita.
— Dois... três... quatro...
"Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove", sussurrei mentalmente, junto
a ele.
Chase não contou o último número.
E, mais uma vez, o silêncio reinou na floresta.
Por um momento, pensei que ele havia desistido, mas eu me
assustei quando escutei passos. Eles eram rápidos e frenéticos.
Chase estava correndo.
Eu me levantei, pronta para voltar à minha maratona. No
entanto, quando fiz isso, consegui ter a visão de um corpo parando
de correr a alguns passos de mim. A árvore me cobria, então ele
não conseguia me ver, mas eu o enxerguei.
Devan olhou para os lados. Seus olhos eram desesperados
e preocupados. Ele levou as mãos à cabeça, e percebi que uma
delas segurava uma arma. Devan estava me procurando. Ele
desarmou a bomba e partiu. Veio nos buscar, como prometera.
Abri os lábios para chamá-lo, mas o som de minha voz foi
interrompido por uma mão que se grudou em minha boca, e um
revólver que se encostou em meu ventre.
— Dez... — Chase sussurrou em meu ouvido — Se você
fizer algum barulho, eu juro que atiro na porra do seu útero.
Eu assenti freneticamente, deixando lágrimas molharem meu
rosto.
Ele me fez observar Devan olhar para todos os lados
possíveis, e soltar um palavrão preocupado. E, depois, correr na
direção oposta à nossa.
Chase tirou a mão de minha boca aos poucos, enquanto eu
chorava baixinho.
Esse era o fim.
A morte finalmente veio buscar sua última marcada. Sua
herdeira.
— Você sabe que vou matar você, não sabe? — ele
perguntou.
Eu assenti, ainda de costas para ele.
— Na verdade, acho que não.
Eu juntei as sobrancelhas e me virei para ele. Chase ainda
segurava o revólver em sua mão.
— Eu vou bater em você... — revelou — Vou chutar essa sua
barriga até esse verme sair de você. E então, vamos embora juntos.
Você terá que conviver com a dor de ser a culpada pela morte do
seu filho. O que acha disso? É a solução perfeita para todos.
Chase agarrou meu braço e puxou meu corpo.
Agora, eu já não sentia medo, ou mágoa.
Eu sentia raiva.
— Você não vai machucar o meu bebê... — praguejei.
Ele sorriu.
— Você fica tão sexy quando está com raiva... — seus
braços me puxaram ainda mais para ele e me abraçaram, enquanto
Chase enfiava o rosto em meu pescoço — Vamos aproveitar alguns
minutos antes de eu matar essa criança, hun? Não vai se
arrepender.
Eu tentei me esquivar de seu aperto, mas não consegui.
— Use o joelho, Sadie.
Meus olhos correram na direção da voz, e encontrei Robin
encostada em uma árvore, de braços cruzados e os olhos firmes em
mim.
— Sabe o porquê eu matava aquelas garotas afogadas e
raspava suas cabeças? — perguntou ele, passeando os dedos por
meus cabelos molhados pela chuva — Naquela noite em que sofri o
acidente, eu te vi com os cabelos molhados. Foi a última vez que te
vi tão perto de mim — sussurrou em meu ouvido — Eu matava as
garotas e depois raspava os seus cabelos molhados. Não acha isso
romântico?
— Use o joelho — Robin repetiu — Você consegue, Sadie!
Use o joelho!
Com impulso e rapidez, ergui meu joelho brutalmente e
acertei o meio das pernas de Chase. Ele gritou de dor e se afastou,
levando a mão que não segurava a arma para sua virilha.
Aproveitando o momento, soquei seu rosto.
A dor nas falanges me fez praguejar.
Rapidamente eu a esqueci e corri na direção em que Devan
foi.
Corri o mais rápido que pude.
Chase, se recuperando, gritou meu nome e passou a correr
atrás de mim, seus passos apressados e pesados chocando-se
contra a terra molhada.
— Se abaixe, Sadie! — Robin exclamou ao meu lado.
Fiz o que ela pediu, sem parar de correr.
Ele deu um tiro.
Não me acertou.
Continuei correndo o mais rápido que pude.
— Um pouco mais para a esquerda! — Robin instruiu.
Inclinei meu corpo para a esquerda.
Outro tiro.
Não me acertou.
Quando levantei a cabeça para desviar dos obstáculos que
se enfiavam em meu caminho, foquei meus olhos na árvore em
minha frente e enxerguei um alvo no meio dela.
O alvo que Devan me fez treinar.
Parei subitamente.
"Essa gracinha aqui fica escondida. Ninguém vê. Quando
acharem que você está desprotegida, na verdade estará muito bem
acompanhada", Devan explicou.
A faca.
Como não me lembrei da faca?
Os passos de Chase se tornaram mais próximos. E então,
em um movimento rápido, puxei a faca de minha cintura, me virei
para trás e a lancei.
Câmera lenta.
Tudo parecia em câmera lenta.
A lâmina cortou o ar, girando uma, duas, três vezes.
Fincou-se no ombro de Chase.
Ele gritou de dor, soltou o revólver e cambaleou algumas
vezes.
Ofegante, eu voltei para a minha posição, sem saber o que
ele faria ou se era o fim.
Mas não era.
Chase levou uma das mãos ao ombro, sujando a mão com
seu próprio sangue. Eu arregalei os olhos quando ele segurou a
faca, e a puxou.
Sangue jorrou.
Então, voltando seu olhar furioso até mim, correu em minha
direção. Ele estava pouco se importando com o ferimento. Se ele
morresse, eu teria que morrer também.
Não tive tempo de correr para longe, pois seus dedos logo
alcançaram os fios de meus cabelos e o puxaram.
Eu caí no chão.
— Chase, por favor!
— Cala a porra da boca — praguejou, subindo em cima de
mim — Se você não for minha, então não será de ninguém.
Seus dedos enrolaram-se em meu pescoço, como aquela
cobra enrolou o camundongo, há minutos atrás.
O ar começou a faltar.
Bati as mãos nas suas e ergui meu braço, alcançando o
ferimento em seu ombro.
Chase gemeu de dor, mas não me soltou. Seu sangue
escorria e pingava em meu rosto.
— Chase... — eu murmurei, sufocada.
Ele não parou.
Seus olhos verdes estavam escuros, pela sombra de
maldade que tomou conta do seu corpo. Não acredito que a última
coisa que verei em minha vida é a face do diabo.
O diabo que já fora meu melhor amigo.
Meu corpo começou a ficar mole, e meus braços já não
conseguiam mais lutar contra os seus. A dor era gigantesca, e meus
olhos queria se fechar. A visão embaçou, mas eu consegui enxergar
Robin se ajoelhado ao meu lado e segurando minha mão.
— Eu estou com você... — ela sussurrou.
Eu assenti lentamente.
Desisti de tentar puxar o ar, e olhei para as estrelas. Minhas
pálpebras começaram a se fechar.
Mas, de repente, o aperto de Chase parou.
Puxei o ar com força e senti o oxigênio se infiltrar pelos meus
pulmões, correndo por minha corrente sanguínea. Arregalei os olhos
e tossi algumas vezes.
Chase saiu de cima de mim e caiu no chão, tonto, levando a
mão até a cabeça. Alguém o acertou. Olhei na direção, mas não
consegui enxergar o rosto. Meus olhos ainda estavam embaçados,
mas consegui ver uma silhueta. E cabelos loiros.
Aquela silhueta não era forte e alta, como a de Devan.
Aqueles cabelos loiros não eram curtos, como os de Devan.
— Kate... — soprei, finalmente conseguindo enxergá-la.
Katherine Green segurava um taco de basebol e estava
ofegante. Seus cabelos estavam bagunçados e seus olhos
preocupados. Ela estendeu sua mão e segurou a minha, me
ajudando a levantar.
— Depois que Dianna estava fora de perigo eu fui para o
orfanato. Segui vocês de longe, para ele não perceber. Você está
bem?
Eu assenti, respirando fundo várias vezes e massageando
meu pescoço.
Encarei Chase. Ele ainda estava tonto, mas seus olhos se
focaram em mim enquanto tentava se levantar.
O impedi com um chute na barriga.
Chase gemeu de dor.
Dei outro chute. Um soco. Um chute. Um chute.
Ofegante e ardendo em ódio, eu me afastei e chacoalhei
minha mão, tentando me livrar da dor de ter desferido um soco em
seu rosto. Chase tossiu algumas vezes, levando a mão ao
abdômen.
— Sadie... — Katherine me chamou.
Eu a encarei. Em sua outra mão, observei o revólver 38 que
Chase deixou no chão. Katherine não disse nada, além de me
estendê-la. Eu respirei fundo, antes de segurá-la e observá-la por
alguns instantes.
Chase riu.
Quando eu voltei a encará-lo, ele estava de joelhos em
minha frente. Seu ombro ainda sangrava, sua cabeça pelo baque da
batida de carro também. Seu lábio inferior estava cortado e o olho
direito roxo.
— Você não vai me matar, pequena... — ele comentou,
levando sua mão até o lábio e secando o sangue que saía dali —
Você me ama.
Soltei o ar, a mão que segurava a arma estava tremendo.
Eu algemaria seus pulsos, em outra situação. O levaria para
a delegacia e ligaria para algum colega psiquiatra, para dar
assistência à mente do meu melhor amigo.
Para o azar dele, as coisas são diferentes.
São diferentes porque ele a matou.
Respirando fundo, ergui o braço e segurei a arma com as
duas mãos, apontando-a em direção à sua cabeça.
Deixando uma lágrima escorrer, eu sussurrei:
— Amo... — Engatilhei o revolver lentamente. — Mas eu
também amava a Robin.
Eu o fiz prometer que não morreria novamente, e agora eu
estava apontando uma arma para sua cabeça.
Chase me olhou por poucos segundos e, ao notar a
determinação em meus olhos, sorriu.
— Até as estrelas?— ele perguntou, um brilho intenso em
seus olhos.
Eu engoli em seco e soltei algumas lágrimas.
— Até as estrelas.
O tiro ecoou pela floresta inteira, e as corujas voaram para
suas tocas.
O show havia acabado.
A janela do carro estava aberta. Eu poderia enxergar o outro
lado da rua mesmo com ela fechada, porém, acho que eu
necessitava que a brisa suave batesse em meu rosto e tentasse
esfriar meus pensamentos.
A fachada da clínica era bonita. Os portões de ferro tinham
um tamanho relativamente grande, talvez, duas de mim. Eram
pintados de branco e carregavam traçados bonitos e delicados. Do
outro lado do muro, um jardim verde e brilhante, com um gramado
bem cuidado e flores coloridas pregadas na terra. Poucos pacientes
estavam ali. Alguns pintavam em quadros, outros regavam as flores,
outros estavam sozinhos, apenas em silêncio. Enfermeiras
passeavam com um sorriso acolhedor e tranquilo por entre eles,
perguntando se estavam bem e se precisavam de algo.
— Você quer que a gente vá junto? — Dianna perguntou, no
banco do carona.
Eu me virei para frente. Katherine soltou o volante e se
inclinou em minha direção, me encarando com seus olhos verdes.
Dianna, com certa dificuldade ainda pela facada que levou, tentava
ficar virada para o banco dos passageiros, me lançando um olhar
encorajador.
— Não precisa. Acho que tenho que fazer isso sozinha —
comentei.
Katherine sorriu e estendeu a mão para mim.
— Escuta, eu e Dianna tomamos uma decisão... — informou
e, em seguida, encarou sua namorada — Nós vamos começar a
morar juntas e, talvez, dar entrada a um processo de adoção.
Eu abri um sorriso largo.
— Não brinca... — disse, alegre.
Dianna sorriu.
— Bom, eu consegui provar que Owen foi ameaçado. Aquela
testemunha deu seu depoimento, lembra? Ganhei o processo.
Apesar de Tatum estar morto, o garoto foi inocentado. Ganhei um
bom dinheiro. Conversei com Kate e ela me revelou sua vontade de
ser mãe. Eu sei que parece rápido demais, mas...
— Ei, vocês se amam... — eu interrompi, e segurei a mão
das duas — Vocês têm todo o meu apoio. Se querem avançar um
passo, avancem. Depois de tudo o que passaram, merecem ser
felizes.
Katherine sorriu.
Quando foi que me imaginei sendo amiga de Katherine
Green?
Se eu pudesse apagar tudo o que aconteceu e ter me
tornado próxima dela desde o começo, eu não hesitaria em fazer.
Eu, literalmente, devia minha vida àquela mulher. Na verdade, eu
devia tudo em dobro, já que ela não salvou apenas a minha vida
naquela noite.
Katherine Green foi a porra da heroína.
— Você também merece ser feliz, Sadie... — Dianna
comentou, e pousou sua mão em minha barriga de vinte e duas
semanas — Você e esse bebê, que já provou ter sua genética.
Mesmo depois de tudo ele está aí dentro, saudável. Sua força corre
nas veias dele, S.
Eu sorri e olhei para baixo, levando uma das mãos à minha
barriga.
Nunca me imaginei sendo mãe. Na faculdade, os alunos de
medicina costumavam chamar os bebês de pequenos parasitas. E,
na realidade, eles eram realmente como um parasita. Se infiltravam
no organismo da mulher, furtavam descaradamente seus nutrientes
e sua energia e cresciam, cresciam, e cresciam. Acabou que eu
peguei um pouco de receio, além do fato de que eu nunca tive um
exemplo materno. Então, para mim, ser mãe era como começar a
dirigir antes das aulas. Entretanto, quando minha barriga começou a
crescer, a sensação de que eu daria um jeito dominou meu peito. Eu
tinha um bebê, agora, isso era fato. Meu pequeno parasita crescia
dentro de mim. Então, tudo o que me restou foi aceitá-lo.
E, droga, eu já o amava para cacete.
— Eu preciso ir antes que perca a coragem — comentei.
— Eu e Dianna vimos uma loja de bebês. Queremos dar uma
olhada — Katherine disse, sorrindo cúmplice para Dianna.
— Parem. Nem comecem. Vocês já deram praticamente o
enxoval inteiro! Se controlem!
— Mas eu vi uma roupinha tão bonitinha... — Dianna
comentou e eu ri, rolando os olhos — Juro que é o último.
Katherine não me deu chance de contestar. Ela tirou a chave
da ignição e jogou para mim.
— Não ouvimos mais seus argumentos. Tchau.
Elas saíram do carro e praticamente correram pela calçada,
como duas crianças que fingem não escutar suas mães, correndo
diretamente para a ousadia e a desobediência.
Eu ri mais uma vez e respirei fundo.
— Suas tias são malucas, anjinho — sussurrei.
Depois de alguns segundos, meu celular tocou. Enfiei a mão
dentro da bolsa e pesquei o aparelho. Atendi.
— Alô?
— Sadie? Sou eu, Devan!
Meu coração bateu mais rápido.
Depois de tudo o que houve, minha gravidez passou a ser de
risco. Era de se esperar, considerando o acidente e o fato de ter
passado muito tempo sem respirar. Precisei ficar em repouso
absoluto nos primeiros três meses, para eliminar o risco de um
provável aborto espontâneo. Devan esteve comigo durante todo
esse tempo. Ajudava no que eu precisava e se mostrou ser um
cozinheiro de primeira. Algumas vezes, eu sentia medo de passar a
noite sozinha. Os pesadelos ainda me atormentavam. Ele se deitava
comigo e me abraçava, com todo o respeito que prometemos ter um
ao outro. Depois que eu dormia, ele se levantava da minha cama e
dormia no sofá.
Assim que tudo se ajeitou e que minha gravidez se
estabilizou, ele se internou em uma clínica de apoio a dependentes
químicos. Eu não o via há exatas três semanas. Apenas escuto sua
voz quando os telefonemas são liberados — o que faz parte do
processo de reabilitação.
— Oi... — eu cumprimentei — Você está bem?
— Estou bem. E nosso bebê? Continua bagunceiro? —
perguntou e eu sorri.
— Às vezes ele não me deixa dormir de tão agitado que fica.
Escutei um riso do outro lado da linha.
— Cante uma música... — ele aconselhou — Eu li em um
artigo que bebês escutam as vozes de suas mães. E, bom, a sua é
a porra do som mais lindo que já ouvi.
Eu sorri tímida, mesmo que ele não pudesse me ver.
— Na próxima vez eu canto... — afirmei, sorrindo.
Devan e eu ficamos em silêncio por alguns segundos,
apenas um escutando a respiração do outro. Passei grande parte da
minha vida ao lado de pessoas que não respiravam e, de repente,
se tornou a coisa que mais desejava ouvir.
Principalmente a de Devan.
A ideia de ele parar de respirar me apavorava.
— Você já sabe o sexo? — ele perguntou, depois de alguns
instantes.
— Não... — respondi — Eu quero descobrir com você.
Quando tiver alta, a gente marca um ultrassom. Preciso de você ao
meu lado para isso.
Devan soltou um suspiro longo, e eu fechei os olhos.
— Eu sinto tanto saudade... — ele sussurrou, as palavras
embebidas de sentimentos — Como você está?
Eu respirei fundo, tentando conter a vontade de correr até ele
e desrespeitar as ordens da psicóloga.
— Bom, os enjoos pararam e os desejos também...
— Não. Não isso, meu amor. Eu quero saber sobre você.
Fiquei alguns segundos em silêncio. Eu não era acostumada
a ter pessoas perguntando sobre como eu estava, então, como a
boa médica que era, relatava sintomas físicos. Em contrapartida,
Devan me respondia sempre a mesma coisa:
"Não, meu amor. Você. Só sobre você."
— Eu... — murmurei, soltando o ar — Eu acho que estou
perdida. Ainda tenho pesadelos, e nas últimas noites tenho dormido
no apartamento de Katherine. Não gosto de ficar sozinha, porque
toda hora eu me lembro dos olhos dele me encarando, enquanto eu
apertava o gatilho... — lágrimas começaram a rolar — O que eu
faço para isso parar, Devan?
— Ssshhh... ei... — Devan consolou — Eu não vou mentir,
Sadie. Eu já fiz isso, e ainda tenho a imagem na memória. Ela
nunca vai embora... — afirmou, a voz firme — mas com o tempo ela
será empurrada para o fundo, e para o fundo, e para o fundo. No
final, é só mais uma lembrança guardada que te dará pesadelos
uma ou duas vezes ao ano. Eu garanto.
Eu sequei os olhos e assenti.
— Obrigada... — disse, e olhei para a clínica — Eu estou em
frente à clínica que Charlotte Collins está internada. A minha
psicóloga disse que seria bom colocar os pingos nos i's. E também,
alguém precisa contar que Blaine morreu.
— Certo, então escute... — ele começou — Eu conversei
com a terapeuta daqui e ela liberou visita. Se você quiser passar
aqui, eu juro que vou abraçar você a tarde inteira e tentar te fazer
sentir bem, ok? Quero ver você.
Eu sorri.
— Eu vou.
Novamente, ficamos em silêncio. Estávamos fazendo o que
combinamos. Dando um tempo para nossas cabeças se acertarem
e, então, viver algo saudável e leve. Precisávamos disso.
— Eu tenho que ir agora — eu disse — Nos vemos daqui a
pouco?
— Nos vemos daqui a pouco — ele respondeu — Tchau,
Sadie. Diga tchau ao bebê por mim.
— Tchau, Devan.
Nós encerramos a chamada, e eu senti no peito a coragem
que a ligação me trouxe para sair do carro e ir em direção à clínica.
Depois de atravessar o jardim, cumprimentando com um sorriso leve
todos os pacientes, eu cheguei até a recepção. A funcionária me
cumprimentou com uma expressão amigável.
— Oi. Em que posso ajudá-la? — perguntou.
Eu suspirei.
— Eu... quero visitar uma paciente. Charlotte Collins.
A garota assentiu, mas, quando processou o nome, juntou as
sobrancelhas.
— A senhorita é alguma parente dela? — questionou
confusa — Charlotte nunca recebeu visitas.
Eu inclinei a cabeça, em uma expressão duvidosa.
— Nunca?
Ela negou com a cabeça.
Embaraçoso. Muito embaraçoso.
— Bom, eu sou... irmã do filho dela.
Ela assentiu, aceitando minha resposta.
Depois de alguns instantes, a garota me guiou até o jardim
dos fundos da clínica. Lá, estava vazio. Só encontrei uma
enfermeira rondando a área e um banco de madeira. E, sentada
nele, uma das pacientes.
Eu quase não a reconheci.
Seus cabelos castanhos já não eram da mesma cor. Eles
estavam brancos, desbotados, apenas algumas mechas do antigo
tom chocolate. Sua pele era enrugada e parecia frágil. Olheiras
grotescas enfeitavam seus olhos. Charlotte tinha a aparência de
uma idosa de noventa anos, apesar de não ter. Ela estava acabada.
Em suas mãos, uma agulha e linha de crochê.
— Hoje ela está calma, mas se precisar de ajuda, a
enfermeira está aqui — a garota murmurou ao meu lado.
Eu sorri fraco e assenti.
Ela deu-me as costas e se foi.
Vamos, Sadie.
Faça isso.
Respirando fundo, eu dei o primeiro passo em sua direção. E
depois outro, e outro, e outro.
Me sentei ao seu lado. Charlotte não pareceu ter me notado.
Eu não sabia o que dizer.
"Megera", em homenagem aos velhos tempos?
"Diretora Collins, sou eu, a garota que você infernizou e
depois salvou das garras do pior homem que já existiu", talvez.
"Charlotte".
Apenas pelo primeiro nome.
— Charlotte?— chamei.
Ela se virou aos poucos para mim. Seus olhos estavam
neutros quando me encararam, porém, se arregalaram logo em
seguida.
— Elisabeth...? — ele murmurou.
Meus ombros caíram e eu juntei as sobrancelhas.
— O que você está fazendo aqui, sua vadia?! Vá embora! Eu
não quero te ver. Vá embora! — gritou.
Eu me levantei assustada.
— Charlotte, sou eu, Sadie!
— É MENTIRA! — gritou de volta — Socorro! Ela vai me
bater! Tirem ela daqui!
Um grupo de enfermeiros chegou e, em meio aos gritos de
Charlotte, conseguiram aplicar um calmante.
Eu estava completamente assustada. Charlotte estava muito
pior do que eu havia imaginado.
O médico dela veio conversar comigo depois de alguns
minutos, enquanto ela era levada para a enfermaria. Ele disse que o
quadro dela era muito delicado. Charlotte deu entrada na clínica
com crises consecutivas de alucinação e, depois de alguns anos,
acabou desenvolvendo depressão. De uns tempos para cá, passou
a apresentar sintomas de Alzheimer.
Eu ouvi tudo quieta.
Calada.
Não sabia o que pensar.
Quando o médico pediu desculpas pelo transtorno e se foi,
eu ainda fiquei parada no mesmo lugar. Aquela sensação que senti
quando soube que Charlotte havia sido internada — a sensação de
que a justiça havia sido feita — desapareceu. No lugar dela, pena.
Eu estava com pena de Charlotte Collins.
Dei o primeiro passo em direção à saída, prometendo que
nunca mais colocaria os pés ali. Porém, uma mão segurou a minha,
me impedindo de correr para fora daquele lugar.
— Desculpe, mas ela quer te ver... — a enfermeira disse.
Eu assenti no automático.
A mulher me conduziu por um corredor arejado com várias
portas de madeira, até chegarmos em uma maior, dupla, com uma
placa bonita indicando a enfermaria.
Eu soltei um sorriso fraco em agradecimento, e passei pelas
portas.
Charlotte estava deitada em uma maca. Ela agarrava
fortemente o tricô e sussurrava algumas palavras sozinha. Quando
me notou, rapidamente se sentou.
— Sadie... — murmurou ela.
Eu parei a alguns passos dela e cruzei os braços,
desconfortável.
— Oi... — eu disse, sem conseguir lhe encarar.
O silêncio reinou, até que ela falasse mais uma vez:
— Sadie. Sadie. Sadie. Faz tanto tempo que não digo seu
nome em voz alta, Sadie.
Eu comprimi os lábios e assenti em concordância, minha
mente procurando as palavras que decorei para acabar logo com
aquilo. Ela analisou meu rosto, todos os meus traços. Depois,
desceu até a minha barriga.
— Eu não acredito... você está grávida! — exclamou,
sorridente.
— Parece que sim... — murmurei.
— Tive um sonho ontem com uma garota de cabelos pretos
e óculos de grau. Ela disse que eu receberia um presente. Eu senti
que seria um bebê, Sadie. Olhe, eu fiz para ele!
Ela me estendeu o crochê, que se revelou um par de meias
pequeninas amareladas.
Eu soltei um riso nasalado e olhei para cima.
Sério mesmo, Robin?
Se ela estivesse aqui, agora, sorriria e diria que as meias
eram fofas e adoráveis.
— Obrigada, não... precisava — disse sem jeito, pegando as
meias — Escuta, Charlotte, eu soube que foi você quem deu aquele
dinheiro para fugir de Coolley. Eu...
— Não diga nada — ela me interrompeu — Não me
agradeça. Eu fiz o que deveria ter feito desde o começo. Proteger
você dele.
Eu sorri fraco e olhei para baixo, soltando um suspiro.
— Eu vim aqui, porque... queria te dizer algo — murmurei e
voltei a encarar seus olhos azuis, tomando coragem — Blaine
morreu.
Charlotte juntou as sobrancelhas, confusa.
— Que Blaine?
— Seu filho, Charlotte.
Ela soltou uma risada curta.
— Ah, eu não tenho filhos, querida. Só você.
Eu soltei um suspiro com pesar.
Charlotte já não se lembrava do seu filho.
— Escute, vou fazer outras roupinhas para seu bebê. Vem
me visitar quando?
Eu tinha a intenção de nunca mais pôr os pés ali, mas,
olhando para o rosto desta Charlotte Collins, eu apenas respondi:
— Posso vir uma vez ao mês.
Ela sorriu alegre.
Charlotte desceu da maca e me levou até seu quarto,
empolgada para me mostrar tudo. Porém, quando ela se virou para
mim novamente e seus olhos enxergaram os meus, seu rosto se
tornou raivoso e ela me chamou de Elisabeth.
Os raios tímidos de sol começaram a se afastar. A água
fresca do mar estava calma, com poucas ondas suaves que hora
apareciam, hora se escondiam. O céu foi tomado por um tom
alaranjado fascinante, como se alguém em algum lugar estivesse
despejando sua tinta em uma tela.
Nunca pensei que o pôr do sol seria assim. Na verdade,
achei que fosse algo parecido com o amanhecer, afinal, de qualquer
modo, o sol estaria no horizonte. Ledo engano. O amanhecer era
bonito, porém, o pôr do sol me agradava ainda mais. Eu não sabia
se era pelo fato de que o pôr do sol representava o encerramento de
um dia que, finalmente, acabou, ou porque nesta fase de minha vida
eu já não esperava mais ansiosamente um dia acabar. Eu apenas
vivia.
Arrumei como pude o biquíni, e sentei-me com um pouco de
dificuldade. A barriga já me atrapalhava em algumas coisas. Eu
sentia dor nos pés e nas costas. E, além disso, o pequeno parasita
não parava de se mexer um segundo sequer. Chutava dali, chutava
daqui, dava piruetas e tirava minha paz.
"Você acha que a barriga da mamãe é playground?",
perguntei certa vez.
Em resposta, ele chutou.
Ele obviamente pensava que estava em um playground.
Porém, assim que a água do mar tocou minha barriga, ele se
acalmou. Foi instantâneo.
Levei os dedos indicador e polegar ao meu nariz, e me
inclinei para trás. Mergulhei. A sensação da água fresca resfriando
minha pele era indescritível. Eu me sentia quase que renovada.
Quando voltei para a superfície, sequei meus olhos e suspirei.
Olhando para trás, observei Owen Lancaster construir um
castelo de areia junto à sua irmã, Natalie. Ele se mudou para Detroit
conosco e já começou a faculdade de medicina. Disse a ele que,
quando pudesse pegar estágios, que falasse comigo. Eu deixaria o
lugar de Robin guardado para ele.
Dianna e Katherine caminhavam de mãos dadas pela orla da
praia vazia. Elas provavelmente discutiam sobre a criança linda que
encontraram em um orfanato, e sobre a possibilidade de adotá-la.
Sei disso porque Katherine sorriu emocionada e beijou Dianna nos
lábios.
Quando me virei novamente para o horizonte, passei meus
dedos por minha barriga enquanto observava o sol se pôr.
— Você ainda verá muitos desses, anjinho. Eu prometo... —
sussurrei para ele — Se em alguma noite você tiver um pesadelo,
eu ficarei acordada com você até o sol nascer. E, se algum dia, tiver
vontade de observar o pôr do sol, eu te trago até a praia e ficamos
no mar até ele se esconder e dar lugar à lua... — Fiz uma pausa,
respirando fundo — À lua, e às estrelas também.
Corri meus olhos até meu pulso, onde a pulseira com dezoito
estrelas estava presa. A sensação de saudade esmagava meu
peito, algumas vezes eu não conseguia controlar e chorava. O
problema, era que eu sentia falta da máscara que Chase usara por
tanto tempo. Meu melhor amigo estava longe de ser aquele que
conheci.
Pela visão periférica, consegui enxergar alguém se
aproximar e se sentar ao meu lado. A água se agitou um pouco,
recebendo o peso de seu corpo.
Eu me virei lentamente para ele.
— Devan... — sussurrei.
Seus cabelos dourados estavam bagunçados e molhados.
Seu corpo robusto estava exposto, apenas um shorts preso à sua
cintura. Sua cicatriz na costela não era a única a enfeitar sua pele.
Eu conseguia ver outras duas em seu rosto, uma na têmpora, perto
da sobrancelha, e outra em seu queixo, que quase não dava para
notar já que a barba por fazer cobria, consequências daquela noite.
Mas ele ainda continuava lindo.
Seus olhos avelã me encararam, brilhantes, e ele sorriu.
— Você teve alta... — afirmei.
Ele assentiu.
— Hoje mesmo. As crises de abstinência pararam e a
doutora me deu alta, contanto que eu volte em seu consultório, pelo
menos, duas vezes por semana... — ele sorriu, orgulhoso de si
mesmo — Liguei para Katherine e ela disse que vocês viriam para
cá. Queria fazer surpresa.
Eu segurei um sorriso, e voltei a olhar para o horizonte. A
sensação de ter os olhos de Devan em mim era sempre a mesma, e
não importava quanto tempo passasse. E, de repente, eu tinha mais
certeza ainda de que não queria que o dia acabasse. Não queria
que aquele momento acabasse.
Senti vontade de chorar.
Droga de gravidez. Eu não fazia outra coisa além de chorar.
— Deus, você está linda... — murmurou ele, tocando minha
barriga.— Ei, anjinho! Lembra da minha voz? Sou eu, o papai.
O bebê chutou.
Eu ri, engolindo as lágrimas.
— Acho que ele se lembra... — eu disse.
Devan sorriu e, como eu, olhou para o horizonte.
Estávamos livres de tudo.
Recomeçar nunca foi tão certo quanto agora.
— Sabe, Sadie... — ele comentou — Eu não tinha muito o
que fazer lá na clínica, a não ser desenhar e pensar.
Eu apenas assenti, esperando que ele continuasse.
— Em uma das tardes que parei de desenhar pela décima
vez as mesmas flores e as mesmas pessoas, eu comecei a pensar
em um sonho que tive... — continuou — Eu estava na minha sala do
D.I.M., enfiado em algum relatório de algum caso. Estava cansado,
minha mente à mil. Isso, até olhar para um porta retrato sobre a
minha mesa. Era uma foto sua com uma criança. Eu não me lembro
do rosto dela, mas sei que segurava um estetoscópio de brinquedo
e usava uma tiara na cabeça.
Ele deu de ombros.
Juntei as sobrancelhas e me virei para ele, conseguindo
enxergar seu rosto.
Devan sorriu e depositou a mão em minha barriga.
— Nosso bebê é uma garotinha — afirmou, convicto.
— Como tem tanta certeza? — perguntei.
— Eu não sei. Só tenho... — comentou, voltando a encarar
meus olhos — E eu pensei em mais uma coisa.
Inclinei levemente a cabeça para o lado.
— O quê?
— Se eu estiver certo e nosso bebê realmente for uma
menina... — comentou ele — Ela pode se chamar Robin. O que
acha?
Senti meu coração parar por alguns instantes.
Eu sorri e assenti, deixando uma lágrima escorrer por meu
rosto.
— É perfeito.
Devan beijou minha testa, e eu apoiei minha cabeça em seu
ombro. Nós observamos o sol tocar o mar juntos, como
prometemos.
— Devan? — chamei.
— Sim?
Suspirei.
— Minha cor favorita não é mais laranja fogo.
Devan abaixou o rosto para me encarar.
— E qual é? — perguntou.
Sorri.
— É laranja pôr do sol.
Um fio de cabelo pode significar muita coisa na área forense.
Uma das primeiras coisas que nós, investigadores, enviamos aos
biomédicos para uma análise mais profunda, é um fio de cabelo da
vítima e — se tivermos sorte — um fio do assassino que, por um
descuido dele, ficara perdido na cena do crime. Os resultados
podem ser tão promissores, que muitos são solucionados só pelos
testes.
Precisa-se de apenas cerca de 1cm do fio capilar para
conseguir extrair o DNA. Além disso, cabelos têm ligação direta com
a corrente sanguínea, sendo assim, conseguimos identificar o uso
de algum veneno ou outras substâncias que possam ter causado a
morte da vítima. É fenomenal. Acabou que gerou uma piada entre
os detetives. Quando vamos apostar algo, o prêmio não é dinheiro,
e sim, "um fio de cabelo da sua vítima". Era como ganhar na loteria.
Há alguns anos atrás, recebi um caso de assassinatos em
série. Thomas sempre me encaminhava para esses, porque tinha
plena consciência de que eu era bom em brincar de esconde-
esconde. Não importava o quanto o desgraçado tentasse se
esconder ou cobrir seus rastros, eu sempre o encontrava. E foi o
que aconteceu. Recolhi um fio de cabelo de cada uma das vítimas e
mandei para análise. Todos eles estavam lotados de veneno
Hemolítico, um tipo de veneno de serpente que destrói as hemácias
e causa a morte súbita dos órgãos, um por um. Analisei o histórico
de todas as vítimas e percebi o que elas tinham de comum:
estiveram no Zoológico de Detroit. Avaliei os funcionários, e
encontrei o biólogo que era responsável pelas cobras — tanto as
peçonhentas quanto as não peçonhentas.
Era ele.
Só que ele sumiu. Notou que eu estava em sua cola e
desapareceu do mapa. Procurei em todos os lugares, menos o mais
próximo a mim. Minha sombra. Eu só notei que ele estava mais
perto do que eu imaginava quando recebi uma foto da minha irmã e
minha sobrinha, brincando no parque. Entrei em pânico. Ele
conseguiu me deixar em pânico.
O desfecho daquilo tudo foi o gatilho para me fazer começar
a beber além da conta. Nós ficamos cara a cara, eu e o assassino.
Ele apontava uma arma em direção à minha irmã. Lori chorava e
tentava me passar confiança com os olhos, mas não estava
conseguindo. Eu também apontava uma arma para ele. Se eu
atirasse, ele atiraria. Então, tentei parar de tremer e usar minha
prática. Mirei em sua mão e apertei o gatilho. Ele largou a arma e
Lori correu para longe, enquanto eu andava em direção a ele,
fervendo em ódio. Soquei seu rosto duas ou três vezes, a raiva me
corroendo de dentro para fora. Subi em cima de seu corpo e segurei
sua cabeça com força.
Até batê-la no chão.
Uma.
Duas.
Cinco.
Sete vezes.
Meus ouvidos ainda escutam o som de seu crânio se
partindo em vários pedaços. Ainda sinto o sangue escorrer por
minhas mãos. A imagem de seus olhos arregalados e sem vida
ainda estava pregada em minha mente. Anos se passaram, e eu
ainda me lembrava de tudo daquela noite, sem nenhum maldito
corte.
E depois de tudo isso, bebi até não aguentar mais. Lori
tentou me fazer parar. Ela me olhava com seus olhos avelã
recheados de carinho, raiva — como a boa irmã mais velha que era
—, e, principalmente, medo. Eu estava tentando acabar com minha
vida, e ela tinha medo que eu obtivesse sucesso. Eu era tão
egoísta, estava tão obcecado por esquecer aquela noite que não
pensei nela e nem em Paige. Bebia quando acordava, bebia quando
ia dormir. Bebia quando ia dirigir. Eu não me lembro muito bem de
como o acidente aconteceu, mas sei que aconteceu e eu as perdi.
Perguntava a mim mesmo, a todo momento, se esse era o meu
destino. Se estava escrito em algum lugar que eu as salvaria do
assassino, apenas para mata-las em seguida com minhas próprias
mãos.
Esfreguei meu rosto e bufei, largando a caneta de lado. Eu
não conseguiria trabalhar hoje, já havia aceitado. Nada era capaz de
me fazer concentrar no relatório que precisava ser entregue
amanhã, ou tirava esses pensamentos da minha cabeça. Hoje, seria
o aniversário de Paige. Ela costumava me fazer de montanha,
nesses dias. Escalava meu corpo inteiro e subia em meus ombros,
gargalhando.
Robin também faz isso.
Eu sorri, olhando para o porta-retrato sobre a mesa.
Instantaneamente, minha cabeça parou de latejar e consegui
respirar melhor.
Sadie estampava um sorriso largo na foto. Seus fios longos
voavam com a brisa, e seus olhos estavam brilhantes. Em seus
braços, uma garotinha banguela que, provavelmente, soltava uma
risada alta e potente. Segurando entre seus dedinhos pequenos, um
estetoscópio enfeitado com adesivos de flores e uma coroa de
princesa na cabeça.
Foda-se.
Guardei minhas coisas e saí da minha sala, ignorando todos
que me lançavam olhares estranhos, provavelmente se perguntando
o motivo de estar indo embora no meio do expediente. Eu não me
importava. Estava decidido e nada me faria mudar de ideia.
Alcancei o elevador e apertei o botão do subsolo. Eu contava
os segundos enquanto os números vermelhos no painel caíam.
Logo cheguei. Caminhei pelo corredor largo, meus pés produzindo
um som que ecoou várias vezes. Empurrei as duas portas do
necrotério. E como sempre, meus olhos correram rapidamente para
a mulher de jaleco e cabelos presos em um rabo de cavalo. Ela
estava concentrada, as mãos cobertas por uma luva de látex azul,
os olhos encostados no microscópio, provavelmente analisando algo
importante.
Owen Lancaster estava sentado na cadeira, digitando algo
no laptop, e logo me viu. Fiz um gesto com a cabeça para que ele
saísse e, como todas as vezes, ele rolou os olhos, se levantou e
caminhou em minha direção.
— Nunca consigo terminar o relatório... — murmurou ele,
enquanto passava por mim, raivoso.
Eu ri.
Sadie ainda não havia me notado. Então, caminhei em sua
direção e apoiei meus braços no balcão, em frente a ela. Vez ou
outra, seus dedos moviam macrométrico lentamente, aproximando a
lente e afastando em seguida. Um sorriso se esgueirou em meus
lábios.
Sadie finalmente afastou os olhos dos oculares, e segurou
uma caneta para fazer anotações no caderno ao seu lado. Só aí ela
me notou. Seus olhos escuros se voltaram para os meus. Ela não
levou um susto, ou me olhou assustada, mas suas bochechas
coraram e ela sorriu tímida.
— Oi, esposa — eu disse.
Ela soltou uma risada curta.
— Oi, marido — respondeu ela, voltando os olhos para seu
caderno e anotando algo — O que faz aqui? De novo?
— Nós vamos sair agora. Arrume suas coisas.
— O quê? Você enlouqueceu, Devan? Estamos no meio do
expediente.
— Não tem problema. Não é como se Thomas se importasse
— Dei de ombros e olhei em seus olhos. — Vamos?
Sadie me encarou por alguns segundos, os olhos estreitos,
ponderando se eu falava sério ou não. Em seguida, sorriu.
Depois de alguns minutos estávamos no carro, em direção à
creche de Robin. Não era longe do D.I.M., então não demoramos
muito para chegar. A garotinha correu até nós e pulou em nosso
colo quando nos viu, repetindo várias vezes que ia embora mais
cedo para todos os amigos. Estava se achando. Aos quatro anos,
Robin tinha uma inteligência que não sabia como cabia naquele
corpo minúsculo. Acho que puxou à Sadie. Na verdade, achava
Robin uma cópia fiel de Sadie. A esperteza, a inteligência, a força.
Ao nascer, Robin soltou um choro gutural, do fundo da garganta,
todos do hospital ouviram.
Assim como a mãe, Robin veio ao mundo para fazer todos
escutarem sua voz.
— Onde a gente vai, papai? — perguntou ela.
Caminhávamos pela calçada, em direção ao carro. Sadie
segurava sua mãozinha direita e eu, a esquerda, enquanto ela
tentava se equilibrar com o peso da mochila em suas costas. Não
adiantava tentar tirar para aliviar a força que ela fazia, já que ela
chorava, querendo-a de volta, talvez para se sentir adulta ou porque
era possessiva demais com suas coisas.
— Vamos à praia, filha, ver o pôr do sol.
Sadie não sabia dos meus planos, então, quando os revelei,
seu rosto se virou para mim rapidamente e seus olhos brilharam.
Robin pulou animada, tagarelando com a mãe sobre fazer castelos
de areia.
Chegamos no final da tarde. Entramos no mar de roupa, não
nos importávamos. Robin estava agitada, feliz, gargalhando e
brincando com a água. Porém, quando o sol começou a se pôr, ela
sentou em nosso colo e observou os tons de laranja cobrirem o céu.
A doutora Swan tinha um sorriso leve nos lábios quando eu
terminei de contar o sonho, e eu suspirei.
— Então, você acha que seu bebê é uma menina?—
perguntou.
Eu assenti.
— Tenho certeza. Não me lembro do rosto, mas sei que é.
Seu sorriso se alargou.
— Seus sonhos estão melhores, certo? Escute, é impossível
não pensar no que você fez no passado, ok? Foi um acontecimento
traumático, mas estamos trabalhando para que isso não tome todo o
tempo de sua vida. Se sente um pouco melhor?
Eu assenti.
— Muito. Eu já não sonho tanto com aquela noite, mas Lori e
Paige ainda ocupam minha cabeça.
— Isso é normal, Devan. E é por isso que estou aqui. Para
ouvir você falar tudo o que precisa falar, e juntos, tomaremos
decisões sobre o tratamento, ok?— assenti mais uma vez — Você
disse à Sadie sobre eu ter liberado visitas?
Eu sorri.
— A primeira coisa que fiz foi avisá-la. Aliás, ela já deve
estar chegando.
— Certo. Então, está liberado. Vá ver sua garota, Devan.
Agradeci rapidamente e, como um desesperado, quase corri
para a área externa. Alguns pacientes já estavam ao lado de seus
parentes, e meu estômago rodava em pensar que eu era o próximo.
Sentei em um dos bancos de madeira e apoiei os cotovelos nos
joelhos, meus pés batendo no chão. Estava ansioso. Precisava vê-
la.
De cinco em cinco segundos, olhava para os portões de
entrada da clínica. Sabia que ela demoraria para chegar, já que
estava na clínica de Charlotte. Mas depois de minutos intermináveis,
finalmente as portas se abriram e ela entrou, fazendo meu coração
bater forte ao ver sua barriga maior do que já estava, os fios longos
escuros e o sorriso que me fazia derreter todas as malditas vezes
que via.
Seus olhos correm pelo ambiente.
Cruzaram com os meus.
E sorriram.
Este livro me proporcionou muito. Comecei a escrevê-lo sem
nenhuma pretensão, e não tinha certeza se algum dia publicaria,
mas ele trouxe à tona tantos sentimentos dentro de mim que, no
final, tomei coragem e decidi que gostaria de fazer outras pessoas
sentirem também.
Os leitores do Wattpad foram um dos principais motivos para
eu estar aqui hoje, publicando meu primeiro livro nessa plataforma.
Eles me fizeram acreditar que eu conseguiria. Então, meu primeiro
agradecimento é dedicado a todos eles. Sem o incentivo e o carinho
que sempre me mandaram, eu provavelmente não teria chegado tão
longe.
Às minhas parceiras, Ana (revisão e diagramação) e Dani
(capa), que me ajudaram a tornar tudo isso possível. Vocês abriram
portas enormes para mim. Obrigada!
Aos outros autores do Wattpad que, em um momento no qual
me senti completamente perdida, me acolheram e me ampararam.
Obrigada!
À minha melhor amiga que, nos momentos de insegurança,
sabia exatamente o que dizer. Obrigada!
E, por fim, à minha mãe e minha irmã, que nunca deixaram
de segurar minha mão e nunca deixaram que eu caísse. Me
guiaram nos momentos mais desastrosos e foram meu apoio
quando precisei. Que agarraram essa ideia comigo e jamais
deixaram que eu desistisse. Obrigada!
Quando eu era pequena, perguntavam-me o que eu gostaria
de ser quando crescesse. Minha mãe disse que eu levantava todos
os dedos das duas mãos e listava todos os meus desejos.
Professora, astronauta, médica, advogada, cientista, enfermeira,
veterinária e muito mais. Escrever não estava em nenhum dos meus
dedos, mas foi a única coisa que me proporcionou tudo isso.
Não tenho a presunção de me chamar de escritora. Sou
apenas uma garota que cursa enfermagem, se cansa nos estágios,
se estressa com algumas coisas bobas e encontra um pouco de
refúgio nos livros. E isso é tudo.
REDES SOCIAIS DA AUTORA:
INSTAGRAM: @_loreenf
WATTPAD: @loreenf
PLAYLIST DA HISTÓRIA: DEATH by Loren

Você também pode gostar