Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DAMAS, RUBANNE
Sr. Hunter – Trilogia Devassos, livro 2 / Rubanne Damas – 1. ed. – Paraná, 2023
306 p.
ASIN:
— Vá se foder, War.
— Bem que eu queria, mas... você nunca me aguentaria, Rapunzel. — Seu quadril balança
contra o meu, fazendo horror rastejar sobre minha pele.
— Seu filho da puta sádico. Vaza daqui e deixe meu irmão voltar. Tenho um assunto sério
para falar com ele.
— Jura? E o que seria? Sobre seus cabelos trançados à noite? Ou seria sobre o fracasso da
reunião de hoje?
Sem respondê-lo, levanto o pé e desço com força sobre o seu. Ele grunhe, seu aperto no
meu braço diminuindo. Acerto minha cabeça em seu nariz, fazendo seu aperto finalmente cair.
Viro, encontrando-o dando passos para trás e rindo.
Suas sobrancelhas estão arqueadas, seus olhos mais arregalados e aquele enorme sorriso
grotesco demonstram exatamente o oposto de Mikhail. É estranho como sendo a mesma casca
por fora, quando a personalidade muda, toda a expressão também se transforma. Na minha frente
está War, com sua risada insana e gestos agitados.
— Rapunzel, pensei que estávamos tendo uma conversa tão boa! Nos aproximando e tudo
mais.
— Traga Mikhail de volta, War.
War balança a cabeça devagar, erguendo minha faca em uma mão e sorrindo ainda mais.
Quando ele...?
— Surpreso? — War estala a língua, abrindo e fechando minha faca. — Você já foi mais
esperto, Rapunzel. A velhice está chegando mais cedo para você?
Desvio de sua mão empunhando minha faca. Giro, a lâmina zunindo pelo quarto enquanto
War continua tentando enfiá-la em qualquer parte do meu corpo e tirar sangue. Tentar enfrentar
War é uma péssima decisão, já que ele se alimenta de violência. Entretanto, se eu não fizer algo,
vou acabar com minha própria faca enfiada na minha jugular.
— Me diga, quem era aquele garoto com você? — War avança, a lâmina tirando sangue
da ponta da minha orelha e me fazendo grunhir. — Novo brinquedo?
— Não é da sua conta, porra.
— Você sempre gostou de homens mais novos. Brinquedos brilhantes. O que Mason nos
ensinou, Rapunzel? Nós devemos aprender a dividir.
— Não fale o nome desse filho da puta na minha frente, War. Você sabe muito bem o que
passamos na mão dele.
Inclino o corpo para trás, a faca passando muito perto do meu rosto mais uma vez. Meu
irmão é pouca coisa mais alto que eu, mas desde que éramos pequenos, Mikhail sempre ganhava
de mim nas lutas. Seu corpo maciço é ágil e War usa isso para seus jogos sujos. Todos os truques
de War são conhecidos, já que muitos deles eu emprestei para jogar sujo no dia a dia.
— Ora, ainda é uma ferida aberta? — War balança as sobrancelhas. — Você e Mikhail
são dois frouxos que sabem como mentir para desavisados, mas não para mim. Não é à toa que
fui criado, certo? Seu irmão não conseguiu lidar com toda a porcaria de Mason e me trouxe no
lugar para levar o ferro.
— Toda a porcaria? Você diz os constantes abusos? Ser enforcado com uma linha de
pesca uma vez por semana e jogado no rio para aprender a se salvar de um afogamento que
nunca aconteceu?
Impaciente, avanço sobre ele, deixando socos sobre seu corpo. Foda-se que ele se parece
com Mikhail. War nunca seria meu irmão. Nada além de seu rosto.
Bato em seu punho com minha palma aberta, fazendo minha faca cair de seu agarre.
Seguro-o pela camisa, batendo minha testa contra a sua. Fico zonzo por alguns segundos,
esquecendo quão cabeça dura meu irmão é. War cai de bunda, rindo como o louco que é.
— Tão sensível. Vocês dois não mudam nunca e é sempre tão divertido...
Ele levanta, passando as duas mãos pelo cabelo preto e empurrando os fios para trás
enquanto me olha de cima. Sua língua passa pelo lábio inferior, analisando. Mantenho minha
guarda baixa, punhos fechados.
— Sabe, não entendo essa ligação estranha de vocês dois. Sequer há sangue que os
relacione além do homem que os torturou por anos.
— War, você não nos entenderia nem em mil anos. Psicopatas não compreendem
sentimentos sobre família. — Mostro meus dentes, a gengiva ensanguentada do seu primeiro
golpe. — Ou estou errado?
— Sempre inteligente, Rapunzel.
Ele avança rápido e seu punho me acerta no estômago, sua mão agarrando meu cabelo e
torcendo minha cabeça para o lado. Olho para seu rosto com fúria, desejando que ele não fosse
meu irmão para que pudesse socá-lo sem culpa.
— Mitchell está de volta — digo, lágrimas juntando nos cantos dos olhos com a dor no
couro cabeludo.
War me solta com brusquidão. Aquela faísca de loucura parecendo mais viva em seus
olhos arregalados e voláteis.
— O que você disse?
— Mitchell. Ele voltou. Eu sei o quanto você despreza Mikhail, mas também sei como
odeia aquele médico mequetrefe. — Cruzo os braços, olhando-o sério. — Seja sensato apenas
uma vez e vaza, mudak.
War sorri, olhos arregalados.
— E o que você vai fazer? Contar a Mikhail sobre Mitchell? Nós dois sabemos o que esse
frouxo vai fazer. Correr de volta como uma putinha para o médico, como se nada tivesse
acontecido.
— Isso não é da sua conta para resolver. Devolva Mikhail. Nós temos uma porrada de
coisas para resolver desse maldito dia longo.
War grunhe, sua cabeça balançando de um lado para o outro. Vejo a raiva em seus olhos,
meu irmão e sua personalidade psicopata duelando pelo controle. Os segundos passam quando os
olhos de Mikhail tremulam, sua respiração sugando com força antes de tropeçar para trás e olhar
ao redor, perdido. Essa expressão em seu rosto era sempre como um chute nas costelas.
Esfrego o lugar que War agarrou na minha cabeça, sentindo arder, e olho para Mikhail.
— Bem-vindo de volta, irmão. Como foi o passeio?
Ele aperta os dedos em seus olhos fechados e me dá as costas. Caminha dois passos,
inspira profundamente e solta devagar. Pego minha faca do chão e a guardo no bolso enquanto
passo a língua pelos dentes. Ainda há gosto de sangue, mas nenhum dente parece bambo.
Empurro o cabelo do rosto e estremeço ao sentir as dores dos golpes, unidas às dores dos meus
próprios músculos tensos.
— Ad, ya trakhuyu, kiska[32]...
— Faço das suas, minhas palavras — resmungo. — War tem a porra de um punho duro
como pedra.
— O punho dele, é o meu punho, zasranets.
— Você me entendeu — rosno.
Mikhail passa a mão pelo rosto, suas sobrancelhas profundamente franzidas.
— O que aconteceu?
— Do que você se lembra? — questiono, caminhando até a parede e apoiando o ombro
nela.
— Pouco. Carros pretos, máscaras de esqui, metralhadoras. — Mik aperta os dedos na
fronte, olhos cerrados. — Kiska, que dor de cabeça...
— Alguém delatou nossa reunião de hoje. Fomos alvejados. Alguns dos nossos morreram,
mas saímos com uma contagem de corpos menor do que eles. Na minha visão, saímos ganhando.
Mikhail me olha, seus ombros endireitando e sua feição dura e impenetrável de volta no
lugar.
— Não me parece ganho quando estamos fodidos, Kill.
— Alguém nos delatou, Mik. — Aponto, cruzando os braços. — War explodiu seus
carros, atirou como um lunático. Quase fui alvejado.
Sua sobrancelha negra se arqueia.
— O advogado...?
Estalo o pescoço, olhando-o de forma fria.
— Vivo. Ele me salvou de ter uma bala nas costas, aliás. E, veja que surpresa deliciosa:
Kraisee sabe atirar muito bem. Para seu azar, sukin syn.
Ele estala suavemente a língua, ajeitando a gola de sua camisa e fechando até cobrir seu
pescoço.
— Precisava tentar, já que você não está disposto a fazer algo.
— Ninguém vai matar meu advogado, Orlov. Ninguém toca nele.
Mik ergue a mão em sinal de entendimento.
— Sem mais tentativas. Minha palavra.
Grunho, me empurrando para longe da parede e aperto as mãos no quadril.
— Olha, não sei como te dar essa notícia, mas... Vou arrancar o band-aid da ferida de
uma vez.
— Do que você está falando?
— Mitchell está de volta. Pops o colocou para trabalhar no galpão.
Meu irmão me olha por longos segundos, sua mão ajeitando a manga de sua camisa
apenas por mania. Seu pé direito se ergue para trás e a ponta é batida no chão. Uma, duas, três
vezes. Cerro os olhos na direção do seu rosto, ficando irritado quando Mikhail continua em
silêncio.
— Mik...
— Você não contou isso a War, certo?
— Você sabia, Orlov? — pergunto baixo, me aproximando dele devagar.
— Eu tinha essa informação, sim. — Seu queixo mergulha, seus olhos se desviam dos
meus.
— Desde quando? — Paro na sua frente, procurando por seus olhos escuros errantes. —
Desde quando, Orlov?
Ele exala, me olhando de lado.
— Pops está com alguns planos. Mitchell foi mencionado há alguns dias.
— Dias? — Arqueio as sobrancelhas, dando as costas para ele e jogando as mãos para
cima com frustração. — Na chertovy, pizdúí!
— São coisas que vão além do meu controle, Kill. Você sabe disso. — Sua voz soa
irritada, muito longe da calma que ele sempre tenta aparentar. — Nossa organização está
passando por problemas. A antidrogas está farejando muito perto, policiais infiltrados, traidores.
A Pops precisa de ajuda ou vamos todos cair.
— É essa desculpa esfarrapada que você conta a si mesmo na hora de dormir? —
murmuro, olhando-o de frente.
Vejo o maxilar de Mikhail contrair.
— É uma verdade. A família Mitchell tem uma grande influência no nosso meio. E,
enquanto você quebra a porra das regras uma e outra vez, sou eu quem preciso ficar e limpar
toda a merda de bagunça que você faz! — A cada palavra, sua voz aumenta. Sua irritação é
palpável.
— Nunca pedi para você limpar nada para mim!
— Não pediu, mas eu sou a droga do seu irmão, Killian! E família serve para isso! —
Mikhail se aproxima, seu dedo atingindo sobre meu peito com força. — A família se ajuda!
Goste você ou não!
Bato sua mão para longe de mim e o empurro nos ombros.
— Família não esconde as coisas! Ainda mais sobre o Mitchell! Esse filho da puta que
deixou você... que te quebrou ainda mais! — Bato em seus ombros uma e outra vez, parando
quando vejo seus olhos voláteis.
Inspiro, dando passos para trás e me controlando. Não posso trazer War de volta só
porque me sinto traído pelo meu próprio irmão. Puxo meus cabelos, soltando um grito de raiva
que ecoa pelas paredes nuas.
— Não posso perdoar o cara que machucou meu irmão. Quando lembro a forma covarde
como ele te deixou... — Balanço a cabeça, meus dedos abrindo e fechando ao lado do corpo.
— Kill, você precisa manter a calma. Mitchell vai estar aqui com frequência e isso vai
servir como uma aliança. — Suas mãos seguram meus ombros, seus olhos sérios buscando pelos
meus. — Me prometa que vai segurar seu temperamento.
Empurro suas mãos de mim, olhando-o com o lábio enrugado em irritação.
— Não posso prometer nada.
— Kill...
— Não posso! — vocifero. — Eu sou a porra do Executor dessa organização! Fui
ensinado a matar traidores, e o médico dentro desse galpão é o pior tipo de traidor que já
encontrei.
— Hunter, isso é muito importante para a organização. — Sua voz soa dura, deixando
meus ombros tensos. — Se você fizer algo contra Mitchell, não posso garantir que fique vivo
depois. Pops vai garantir em desaparecer com você.
— Você precisa escolher, Orlov: a organização ou eu, seu irmão.
— Essa organização é a nossa família! Você faz parte dela tanto quanto eu faço. Se a Pops
cair, nós dois iremos juntos, Killian. — Sua cabeça se inclina, seus olhos escuros presos nos
meus. — Não haverá escapatória. E se a nossa chefe nos diz para sentar e dar a patinha, nós
faremos sem hesitar porque isso garante nossa sobrevivência. Essa guerra é nossa, então lute do
lado certo, irmão.
Estalo o pescoço, irritado. Odeio que suas palavras sejam reais. Odeio a situação que nos
encontramos e odeio ainda mais quando ele diz a palavra irmão com tanta ênfase, me lembrando
de quem somos. Da nossa lealdade acima de tudo.
Esfrego a bochecha, olhando-o de esguelha.
— Você não vai mais me esconder as coisas, Mik. O que a Pops diz lá, você reparte
comigo.
— Alguns assuntos não devem sair das paredes do escritório, Kill. Ainda mais quando
você colocou um advogado não confiável morando com você.
— Foda-se, isso é só uma desculpa sua. Assuntos como Mitchell deveriam ser
compartilhados comigo! — Afundo o polegar no peito, rosnando. — Quem te consertou depois
que aquele filho da puta covarde se foi? Eu! Então, que a Pops vá para o inferno se ela pensa que
vai me manter de fora quando o assunto for aquele cretino.
Mikhail exala, parecendo terrivelmente cansado.
— Tudo bem. O que você quer saber?
— Tudo? — digo o óbvio.
Meu irmão assente, indo até a porta e a abrindo, olhando o corredor vazio e fechando a
porta novamente. Ele encosta o ombro no metal, cruzando os braços.
— A reunião de hoje foi uma isca. Arriscada, mas necessária. Pops tem desconfiado das
ações de Argo há algum tempo e hoje aparenta ter se concretizado um fato. — Mik coça sua
sobrancelha esquerda com o indicador. — Temos recebido pequenas ameaças do grupo rival.
Baumer conseguiu um nome concreto, mas não mais do que isso. Estamos lidando com um tal de
Conquistador.
— Que tipo de nome é isso?
— Um muito eficiente, já que ele possui boa parte de Toronto sem que percebêssemos.
Pops não foi clara sobre nosso real problema.
— Ela escondeu coisas de você? — zombo, o que faz Mikhail me olhar sombrio.
— Pops achou que poderia se virar sozinha. Perdemos mais da metade do território e
nosso nome está caindo na lama. Isso não me parece um momento para brincar, Hunter.
Ouch, corte seco.
— Essa pessoa vem roubando de nós há alguns anos, em silêncio, mas agora está ainda
mais ganancioso e não se preocupa em esconder seus atos. Não temos um rosto ou um nome
concreto. — Mikhail passa a mão pelo cabelo, seu pé batendo no chão outra vez. — Pops pensou
em pedir para você começar a procurar. Baumer é ótimo em rastros digitais, mas você é melhor
em rastros reais. Íamos ter essa conversa hoje, depois da reunião.
— E por causa desse filho da puta do “Conquistador”, Mitchell está andando pelo galpão
como se fosse dono dele?
Mikhail aperta os dedos na ponta do nariz, como se pedisse paciência.
— Eu já disse, a família do Mitchell possui um grande território. Parte de Buffalo, nos
EUA, toda a cidade de London e Hamilton. A irmã mais nova se casou com o líder dos Hellish
Demons em Montreal. — Sua mão varre ao redor, simbolizando o extenso território da família
do médico. — Isso nos dá poder. Alianças, Hunter.
— Se nós derrotarmos esse idiota que está nos roubando, essa aliança com Mitchell pode
ser desfeita, certo?
A boca de Mikhail torce com aversão, balançando a cabeça devagar.
— Creio que não. A Pops... ela vai se casar com irmão mais velho. Darius Mitchell.
— Você só pode estar zoando com a porra da minha cara, Mikhail!
— O contrato de casamento já foi assinado. — Seu maxilar retesa, seus dentes rangendo.
— A celebração acontece amanhã e temos que ir até a Lust esta noite.
Ya trakhuyu.
Aperto as mãos na cintura, andando de um lado para o outro.
— Eu não posso mesmo matar o médico?
— Hunter...
Ergo a mão.
— Tudo bem. Pelo bem da família, eu vou me controlar. Mas, se por um acaso, Mitchell
tropeçar e cair com a garganta sobre a minha faca, a culpa não será minha.
Sua sobrancelha se arqueia.
— Jura?
— Acasos fatais acontecem. — Dou de ombros e o empurro para longe da porta para
poder passar. — Droga, preciso de ar. Essa conversa sugou todo o bom humor que eu tinha.
— Não foi muito, então — Mikhail comenta logo atrás de mim. Sua mão toca meu
ombro, me virando para ele. — Estamos bem, brat[33]?
Olho para sua mão e depois para seu rosto. Fecho meus dedos em um punho e acerto a
boca do seu estômago, sorrindo de lado.
— Agora estamos bem, brat.
Mikhail resmunga, esfregando sua barriga. Os cantos da sua boca, porém, possuem uma
pequena curva de sorriso. Saímos do calabouço e chacoalho os ombros, tirando toda a tensão que
o lugar e a discussão colocaram sobre mim. Esfrego a nuca e olho na direção da ala de
conferência de drogas, percebendo o idiota carregando duas caixas pequenas até a mesa mais
próxima. Ele tira um pano do bolso e enxuga a testa, caminhando na direção do corredor.
O zasranets que deixei de guarda na porta de Kraisee.
Com um grunhido, atravesso a ala com passos pesados e todos saem do meu caminho.
Vejo vermelho no canto dos meus olhos, meu foco no filho da puta que deveria estar sentado na
frente da porta do meu advogado.
— Você! — exclamo.
Ele olha sobre o ombro, seus olhos arregalando com terror.
— S-senhor...
— Por que você não está na porra do lugar que te deixei?
Seus dedos brincam com o pano, sua língua lambendo o lábio inferior. Ele olha além de
mim, provavelmente na direção de Mikhail.
— O médico disse que eu poderia sair já que ele...
Avanço sobre ele, segurando sua camisa em um punho apertado e batendo suas costas
contra a parede com força. Ele ofega, aterrorizado.
— O que foi que você disse? — rosno.
— E-eu... o doutor Mitchell entrou na sala e... o senhor disse que o homem na sala não
poderia sair, mas não falou nada sobre alguém entrar!
Estou cercado de idiotas!
Com um grunhido, o solto e aponto para sua cara.
— Me lembre de mais tarde rasgar sua garganta.
Ele solta um som afogado e me viro, pegando minha faca do bolso e caminho na direção
onde deixei Kraisee, com fúria e morte estampada no rosto. Porque agora estou prestes a
mergulhar meus dedos no sangue daquele cretino que se acha médico.
Fodam-se as consequências.
“Can you blame me for loving your sweet words?
I did not know I signed a curse”.
(Curse, Normal The Kid)
Tudo dói, porra.
Essa é a primeira coisa que eu penso quando abro meus olhos. Solto um gemido, virando
na estreita maca de metal, sentindo dores por todo meu corpo. Meu braço lateja, me fazendo
sentir cada ponto, a pele sensível ao redor da linha. Estremeço, abrindo os olhos e exalo
pesadamente. Há o som de metais caindo sobre a bandeja de inox, causando arrepios na minha
pele.
— Pare com todo o barulho, droga...
— Desculpe.
Paraliso, girando minha cabeça na direção da voz de barítono. Um homem de pele
marrom clara está analisando um frasco antes de enfiar uma agulha dentro e puxar o líquido
transparente para a seringa. Ele veste um pulôver cinza e calças escuras, suas mangas
arregaçadas nos antebraços fortes. Vejo algumas manchas vermelhas sobre a lã.
Tento me sentar, sentindo a cabeça zonza, e ele me olha com sobrancelhas franzidas.
— Você deveria descansar. Tirei o curativo do seu braço e vi os pontos malfeitos, mas
fizeram o trabalho de manter a ferida fechada. — Ele bate os dedos na seringa e vira para mim.
— Tomou algum remédio para dor?
Sacudo a cabeça, apertando minhas costas contra a parede fria. Ou seria minha pele
quente causando suor frio e pegajoso? Passo a língua pelo lábio seco, sentindo o corte que eu
mesmo causei ao morder com força. Então o que aconteceu depois. Olho para baixo,
encontrando minha blusa de lã suja com os resquícios de porra. Tanto minha, quanto de Killian.
Killian.
É estranho chamá-lo pelo primeiro nome depois de tanto tempo. Parece.. íntimo. Quase
solto uma risada com esse pensamento. Achar que chamar o homem pelo primeiro nome é
íntimo, mas não pensar que transamos a seco seja relativamente pessoal.
A agulha brilha na luz, chamando minha atenção para a seringa muito perto de mim.
— Ei, ei! O que você pensa que vai fazer?
O homem me olha como se eu fosse estúpido. E talvez eu seja. Mas isso não vem ao caso
agora.
— É uma injeção para dor.
— E como posso confirmar que seja realmente isso? E se você for um vilão que está
matando as pessoas com um veneno injetável?
Sua boca se abre, apenas para fechar em seguida. Seus lábios grossos se partem em um
largo sorriso e seus olhos enrugam nos cantos, formando rugas de expressão. Ele deve sorrir com
frequência.
— Como eu posso garantir que não sou nenhum maluco com veneno injetável?
— Se apresentar é um bom começo. — Bufo.
Ele expira longamente, passando a mão livre pelo cabelo escuro e muito curto, cortado em
estilo militar.
— Sim, claro. Você tem razão. Deveria ter me apresentado direito antes de apontar a
seringa para você. — Ele ergue a dita pontiaguda antes de colocar de lado e erguer as mãos livres
na altura dos ombros. — Veja, inofensivo. — Sua mão estende para mim, seu sorriso suave. —
Sou Nevan, mas alguns me chamam de doutor Mitchell por aqui.
Pego sua mão, um pouco hesitante.
— Kraisee, mas alguns me chamam de advogado Wongsa. — Inclino a cabeça,
observando seu rosto. — Mitchell? Você é o homem que Hunter odeia?
Nevan sorri meio sem jeito.
— Os boatos realmente correm rápido — murmura.
— Um pouco. — Assinto. — O que aconteceu entre vocês?
— Direto na jugular, hein? — questiona, arqueando uma sobrancelha.
Comprimo os lábios, balançando a mão em negativa.
— Não! Desculpe, é que fiquei muito curioso. É um assunto pessoal demais?
Seu rosto torce em uma careta antes de sacudir a cabeça em negativa.
— É complicado.
Nevan pega a seringa outra vez e limpa meu braço para aplicá-la.
— Sempre se esconde uma história trágica por trás desse tipo de resposta.
Seu sorriso está de volta após aplicar a injeção em meu braço. Estremeço suavemente com
a picada, mas nada se compara à dor de ser costurado ou levar um tiro.
— Não digo que é trágica. Ninguém morreu, além de sentimentos e confiança. — Nevan
encolhe os ombros, indicando meu braço. — Posso dar uma outra olhada? Quero passar um
medicamento para prevenir a inflamação.
Assinto, esticando meu braço na sua direção.
— Você e Hunter...?
Seus olhos se erguem para mim, horror em todo seu rosto.
— O quê? Não! Jesus Cristo, não. Quem, em sã consciência, se envolveria com aquele
tipo?
Eu. Porém, não digo isso em voz alta.
— Então, com quem?
Seus olhos baixam para suas mãos, resmungando:
— Mikhail.
Tão pior quanto, minha consciência sussurra. Cerro os olhos, pensando se todas aquelas
cicatrizes foram feitas pelas mãos do médico. Seria por isso que Killian o odeia tanto assim?
Nevan abre uma pomada e passa a ponta do indicador no creme, espalhando-o sobre os
pontos na minha pele em seguida.
— Hunter é superprotetor com o irmão. Eu era jovem e inocente na época. — Ele parece
melancólico, soltando um suspiro ao fechar a pomada. — É apenas passado. Nada de bom
acontece quando trazemos o passado para o presente.
— Não tem como deixar as coisas no pretérito quando você está convivendo com a pessoa
no momento atual. Acho que tentar resolver o problema é mais benéfico. Ai!
Franzo os lábios quando ele passa a ponta do dedo sobre o último ponto. Por um
momento, acho que ele fez de propósito para que eu deixasse o assunto de lado.
— Você quer morfina? Esses pontos parecem estar doendo muito.
— Não doem tanto quanto foram feitos. — Expiro, pegando a gaze para fazer um novo
curativo.
— Mesmo? — Suas sobrancelhas franzem. — A anestesia costuma amenizar muito, isso
quando não te deixa sentir nada. A dose foi pouca?
Ergo os olhos do meu braço e observo os olhos do médico.
— Pouca? Eu diria que foi nula, doutor. — Balanço a cabeça e volto a olhar para meu
braço e termino o curativo enquanto falo: — Killian disse que não havia anestesia. Foram os
pontos mais longos da minha vida.
— Vocês se tratam pelo primeiro nome?
— Ah... sim?
Nevan franze as sobrancelhas com estranheza.
— Bem... Há doses de anestesia em todos os quartos com medicamentos. — Nevan
caminha até o pequeno armário e tira de lá dois frascos transparentes. — Aqui. Completamente
novas e seladas.
Minha boca se abre, perplexo. Agarro um dos vidros de sua mão e envolvi meus dedos
nele, olhando para Nevan com uma carranca.
— Há alguma possibilidade de que Hunter não saiba disso?
— Hm... — Ele me olha com receio. — Acho um pouco difícil. Apesar que ele sempre se
costura sozinho já que ele gosta da dor...
Cerro meus olhos, ficando muito irritado agora. Aquele filho da puta sádico me costurou e
mentiu para mim? Me causando dor de forma deliberada?
A porta se abre, Hunter parecendo ser invocado pelo próprio demônio. Ele tem sua faca
na mão e um rosto furioso, mas ele não está mais puto do que eu agora.
— Mitchell!
— Seu porco mentiroso! — esbravejo, atirando o vidro que segurava diretamente nele.
Hunter desvia por pouco, o vidro atinge a parede ao lado da cabeça de Mikhail, que se
esquiva, cobrindo o rosto com o braço e me olha com sobrancelhas arqueadas. Desço da maca
quando Hunter me olha com confusão.
— O que foi isso?
— Aquilo? — Indico o vidro partido em mil pedaços e no líquido escorrido no chão. — É
apenas a porra da anestesia!
O rosto dele se torna sem expressão, uma máscara fria e olhos mortos. Hunter vira
lentamente na direção de Nevan, segurando sua faca com firmeza. O médico não parecia muito
amedrontado pela feição desprovida de sentimentos do Executor.
— Parece que o médico mequetrefe já enfiou caraminholas na sua cabeça.
Com um grunhido, pego meu sapato e atiro contra sua cabeça, acertando-o. Hunter
grunhe, girando novamente para mim com fúria estampada em seus olhos.
Nada como trazer o melhor nas pessoas, certo?
— Você me acertou com seu sapato?
— E você me costurou com um anzol e linha de pesca, sem anestesia! Qual é pior? Meu
sapato nessa sua grande cabeça oca ou você me forçar a passar dor?
Hunter fecha sua faca e estala o pescoço.
— Saiam daqui. Meu advogado precisa de uma conversa a sós comigo.
— Hunter... — Nevan tenta, apenas para o Executor rosnar como um cão raivoso.
Mikhail segura Nevan pelo pulso.
— Espero que você o mate, Hunter, já que o trouxe direto para dentro da porra do nosso
galpão — Mikhail rosna.
— Vá se foder, Orlov. — Hunter mostra a ele o dedo do meio.
Mikhail nos olha longamente antes de balançar a cabeça e puxar Nevan para fora do
quarto, fechando a porta ao passar. Levam apenas dois segundos para Hunter estar em cima de
mim, sua mão envolvendo minha garganta e batendo meu corpo contra a parede. Solto um
gemido, minha cabeça ficando zonza por um momento.
— Quem você pensa que é para me enfrentar?
— Vá se foder, seu cretino de merda — rosno.
Hunter me olha, seu sorriso cruel se abrindo e fazendo minha espinha arrepiar.
— Cada vez mais corajoso, minha pequena lisichka. Te faço gozar e você pensa que tem
as rédeas. Não esqueça quem realmente manda por aqui, não esqueça quem eu sou.
Agarro seu pulso, minhas unhas cravando em sua pele.
— Pode ter certeza de que nem mesmo por um segundo eu esqueço quem é você de
verdade, sr. Hunter. — Ergo o queixo o máximo que consigo, minha respiração curta por conta
do seu agarre. — Um completo idiota.
Sua outra mão segura meu rosto, seus dedos cavando em minhas bochechas até lágrimas
se formarem nos meus olhos. Seu sorriso é cruel, como um cão feliz por ter sua presa entre as
garras.
— Você continua gritando e rosnando como um animal selvagem como se não tivesse
ficado tão duro quando terminei de te costurar, adorando cada segundo. — Seus dedos apertam
um pouco mais minha garganta, me empurrando contra a parede e o seu corpo cobrindo a minha
frente. Tão unidos que nem mesmo um sopro passaria entre nós. — Você implorou para gozar.
Então não tente bancar o insultado.
— Só porque eu gosto de ser maltratado, não quer dizer que você pode fazer quando bem
entender.
Sua cabeça se aproxima da minha, seus olhos frios sobre os meus, seu hálito soprando
sobre minha boca.
— Advogado, tem que entender que me pertence. E eu faço o que quiser com você.
Viro meu rosto para o lado, escapando da sua mão, e o olhando com irritação e um pouco
de mágoa misturado com frustração.
— O problema aqui, sr. Hunter, é que você pode fazer tudo o que quiser comigo, mas com
consentimento. Me ver chorar te dá prazer? Tudo bem, aceito isso. Quer que eu sinta dor? Ok,
mas não minta para mim. Me dê opções. Ser costurado não foi uma delas, e não aceito ser
enganado. — Deslizo minha mão do seu pulso até o cotovelo, deixando meu corpo solto contra o
seu em sinal de rendimento. — Confiança é uma via de mão dupla. Como espera receber se
sequer consegue dar em troca, Killian?
Ele me observa em silêncio, sua mão me soltando devagar até que seu polegar está
fazendo leves carícias abaixo do meu maxilar. Engulo com dificuldade, minha garganta
arranhando. Apoio minhas mãos sobre seu peito, sentindo seu coração batendo forte abaixo da
minha palma.
Com um suspiro pesado, Hunter me pega pela cintura e me ergue, me colocando sentado
sobre a maca outra vez. Seu corpo empurra entre minhas pernas, suas mãos apoiadas sobre o
colchão fino.
— Tem certeza de que não gostou da agulha?
Bufo, olhando-o com ceticismo.
— Absoluta. Nunca mais faça isso comigo. Eu segurei ao máximo para não desmaiar na
maca ou me mijar. — Gesticulo a esmo, cobrindo meus olhos em seguida. — Deuses, foi a pior
dor que eu já tive. Um pedido de desculpas seria legal.
— Eu nunca peço desculpas.
— Existe uma primeira vez para tudo. — Aponto.
— Você fala demais, Advogado.
Sua mão se ergue, abrindo e fechando na frente do meu rosto, sinalizando que eu continuo
falando demais. Rolo os olhos, sabendo que não vou ganhar uma palavra de arrependimento
vindo dele. Abro a boca para retrucar quando meu celular toca no bolso. Solto um gemido ao
ouvir o toque designado apenas para Ray Warden.
— Seu pai é insistente.
— O quê? Por quê? — questiono, tirando o aparelho do bolso e vendo que esta é a décima
ligação do dia.
Porra, já é quase hora do almoço? Eu dormi tanto assim?
— Atenda. E deixe no viva-voz — Killian fala ao cruzar os braços.
Com ombros caídos, deslizo meu dedo pelo botão verde e seguro o gemido ao falar:
— Sim?
— KRAISEE, SEU MOLEQUE!
Me encolho com seu grito, meus dedos segurando o celular com força enquanto
comprimo os lábios.
— Pai...
— Você me manda a porra de uma mensagem pela manhã dizendo que não estará vindo
trabalhar. E quando eu te ligo, como um homem de verdade faria, você não me atende! — Ouço
seu murro do outro lado, me fazendo saltar sobre a maca.
As mãos de Killian pousam sobre minhas coxas, massageando suavemente. Nem parece
que estava me sufocando com raiva minutos atrás.
— Não pude atender. Eu... tive um pequeno acidente...
— E que porra eu tenho a ver com isso? Você está no hospital?
Olho ao redor do quarto e balanço a cabeça.
— Não, mas...
— Então não é grave o suficiente para te impedir de vir trabalhar! Quero você aqui em
trinta minutos, me ouviu bem, garoto? Ou vou ter que começar a ter com você as mesmas
conversas que tenho com Maxwell?
— N-não, pai. Eu...
— Você já foi um ótimo garoto, Kraisee. Responsável, educado e bem-disposto. — Sua
voz abaixa, se tornando grave e acusatória. — Quando eu te adotei, você prometeu que seria
sempre um bom garoto. Agora você está se tornando a porra de um fardo. Não é isso o que você
quer, certo?
— Não! — Ergo os olhos para Killian, desespero nas bordas da minha negação.
Meu peito se aperta, a sensação de estar sendo inútil e prestes a ser jogão de lado me
esmagando. Começo a hiperventilar, meus olhos ardendo de repente. Seu maxilar parece
retesado, seus olhos azuis parecendo mais frios enquanto olha para a tela do celular em ligação.
Suas mãos me apertam, me ancorando no aqui e agora. Inspiro profundamente, soltando devagar,
controlando a crise de pânico.
— Ótimo. Estou te dando vinte minutos agora. Esteja aqui e apresentável. E esta noite
teremos um jantar importante em casa com alguns possíveis negociantes. Entendidos?
— Não — Killian rosna, tomando o telefone da minha mão e desligando o viva-voz ao
colocar em sua orelha. — Seu porco escroto do caralho. Kraisee não está indo trabalhar hoje.
Nem amanhã, nem nunca mais.
— Killian, o que você está fazendo?
— Kon’ v palto[34] — responde para meu pai, me ignorando. — Essa é a única coisa que
precisa saber. E não espere Kraisee para jantar. Nós temos a porra de uma despedida de solteiro
para ir hoje à noite.
Dizendo isso, ele desliga e atira meu telefone do outro lado do quarto como se fosse uma
maldita bola de baseball. O som do aparelho se partindo se mistura com meu ofego de descrença.
— O que você acabou de fazer? — sussurro, horrorizado.
— Acabei de libertar você da maldita prisão do seu pai. Agora, eu sou seu único
carcereiro.
— Killian, isso...
— Não precisa me agradecer. — Killian estala o pescoço, caminhando até onde está meu
sapato perdido e voltando. — Vamos. Precisamos ir para casa e você precisa comer. Ainda temos
que estar apresentáveis até de noite para ir à Lust.
— Isso... — Esfrego minha têmpora, me sentindo completamente perdido. — Você
apenas... quebrou meu celular!
— Dou outro para você — resmunga, calçando os sapatos nos meus pés e me ajudando a
descer da maca como se eu fosse uma criança. — Escolha o modelo. Foda-se o preço. Contanto
que seu pai não tenha a porra do seu número novo.
— Killian Hunter! — esbravejo, socando seu peito. — Você xingou meu pai!
— O quê? Você queria ter feito isso antes? — Sua sobrancelha se arqueia, sorrindo de
lado. — Tarde demais. Achei que soubesse que a minha paciência é bem baixa para tolerar certas
coisas, Advogado.
Sua mão segura no meu cotovelo do braço não machucado e me puxa com ele para fora
do quarto.
— Sério. Você tem ideia de como Ray vai ficar furioso com isso?
— Não, e nem mesmo me importo. — Dá de ombros.
Aperto os dedos na têmpora, sentindo uma dor de cabeça chegando.
— Você sofre de bipolaridade?
— O que é isso?
— Deixa pra lá. — Balanço a cabeça, seguindo-o para fora do subsolo do galpão.
Acho que conviver com o Executor é basicamente isso: uma montanha russa de emoções
e todo tipo de consequência como resultado.
“But I don’t wanna run (run, run, run)
Run away from you
‘Cause baby I am done (done, done, done)
Hiding my love for you”.
(You Can’t Control who you fall for, Victor Lundberg)
O perigo e o prazer andam de mãos dadas[35]. É isso que penso quando lembro de Killian
Hunter. Em seus olhos azuis gelados que podem queimar com prazer em questão de segundos.
Em suas mechas loiras onduladas caindo sobre seus ombros fortes e tatuados. No sorriso cruel
quando ele parece estar pensando em algo criminoso. E o risco de estar transformando meu ódio
e medo inicial em outros sentimentos, é muito grande.
Depois que ele praticamente me arrastou para fora do galpão, nos trouxe para casa dentro
de um carro que poderia estar indo direto para o lixão. Pensei que poderia pegar tétano só de
encostar na lataria. Assim que estacionamos na calçada, Conrad surgiu de outro carro logo atrás
do nosso, e levou a lata velha com ele.
E, claro, Killian me deu um telefone novo. Junto com um número expressamente proibido
de ser divulgado para meus pais. Se eu era um prisioneiro com liberdade condicional, agora
estou em prisão fechada e limitada às pessoas que apenas Hunter acha importante. Ou seja,
apenas ele.
Killian esteve trancado no escritório desde então. O silêncio lá dentro não me deixa saber
se o homem apenas dormiu de forma desconfortável na cadeira ou se as paredes possuem
antirruído.
Olho para o espelho, segurando minha camisa branca na mão. Há apenas uma cicatriz leve
no meu supercílio, mas ainda tenho algumas contusões no peito e barriga ficando levemente
esverdeadas. As surras do Max sempre deixam suas marcas. Emocionais e físicas. Toco com a
ponta dos dedos sobre a reentrância perto do quadril, uma das marcas que Max deixou e nunca
mais desapareceu.
Fecho a mão em um punho, cerrando os dentes. Memórias são apenas isso: recordações
do passado. Nem sempre são boas para se lembrarem. Solto um suspiro, vestindo minha camisa e
enrugando o nariz levemente quando o tecido enrosca no curativo. Viro para pegar o colete
corset sobre a cama e vejo Princesa sobre o beiral da janela, me observando.
Deuses, ela faz com os olhos da mesma forma que Killian quando está me olhando de
forma intensa.
— O quê? Você acha que ele não vai gostar da minha roupa? — Passo os dedos pelo cós
da calça e termino de abotoar a camisa.
Princesa mia, saltando da janela em direção à cama. Ela passeia ao redor do colete,
fungando levemente.
— Você não gosta da cor? — pergunto, erguendo o corset e o vestindo. — Acho que
vermelho combina com o tom da minha pele. E eu preciso parar de falar com uma gata que,
visivelmente, não se importa comigo.
Princesa me olha com desinteresse antes de pular para o chão e correr pela porta do quarto
entreaberta. Encaixo os botões de bronze nas casas e enrosco meus dedos nos cordões das costas,
inspirando e puxando até que o corset abrace meu torso. Com experiência, dou o nó e escondo os
fios. Passo os dedos pelo meu cabelo e pego o telefone, enviando uma mensagem para Dominic.
Para o inferno Killian Hunter odiando meu melhor amigo.
Hey, Dom.
Número novo.
Perdi meu celular de manhã.
Você perdeu?
Você?
Kraisee Warden?
Organizado, ridiculamente responsável, controlador
e, eu já disse organizado?
Vá se foder, Dominic.
Coisas estranhas acontecem até com o mais ordeiro.
O telefone toca na minha mão e aperto no verde para atender.
— Escuta, Keener, desde que você se mudou para a casa do homem que não pode ser
mencionado, coisas estranhas têm acontecido com você diariamente.
— Ele não é tão ruim assim — murmuro, sentando na cama.
— Porra, está tendo Estocolmo, Keener? Preciso chamar o psiquiatra?
— Eu não estou com nenhum tipo de transtorno, Dom. — Eu acho. Bufo, contrariado. —
Nem sempre as coisas são como você vê. Hunter é... um cara legal apesar de tudo. Atencioso.
Rude de uma forma preocupada.
— Merda, isso me soa como Estocolmo. Ou como se ele estivesse supervisionando nossa
conversa. — Ele soa sufocado do outro lado, sugando a respiração com força. — Se você sentir
que precisa de ajuda, me manda um emoji de bandeira vermelha. Ou uma luz de sirene se
precisar de intervenção policial.
— Você é tão idiota. Se eu te mandar um emoji de dedo do meio seguido de um sorriso,
significa que é pra você ir se foder.
— Max te bateu muito forte da última vez. Chacoalhou seu cérebro e o tirou do lugar.
Perdeu alguns parafusos — fala incrédulo. — Keener, você prometeu que não ia mais se
envolver com tipos sombrios!
— Hunter é...
— Não diga “diferente”. Por tudo que é sagrado e que você ama nessa vida, não diga que
o maluco da máfia é “diferente”!
Fungo, fazendo círculos na minha calça com a ponta do dedo.
— Eu não ia falar isso. Apenas que Hunter é peculiar.
— Uma palavra sinônimo para a mesma coisa, Kraisee!
— Estou pensando seriamente que te dar meu número novo foi um erro.
— Você só está pensando isso porque a verdade dói. Estou batendo na sua cara com
palavras. — Dominic zomba do outro lado, me fazendo revirar os olhos.
— Você deveria estar sendo meu amigo agora, Dom.
— É exatamente isso que estou sendo. Melhores amigos não passam a mão na cabeça,
eles enfiam a verdade goela abaixo e ainda gritam no final “eu avisei!”. Grave que será
exatamente isso que eu vou dizer quando você estiver chorando no meu colo. De novo.
— Sua positividade é tóxica. — Levanto, olhando no espelho e arrumando minha gola. —
Mudando de assunto. Por acaso, alguém da minha família entrou em contato com você?
Perguntando sobre... mim?
A linha fica em silêncio por longos segundos até que ouço Dominic suspirar.
— Não, Kraisee, seu pai não me ligou.
Comprimo os lábios, olhando para meus sapatos pretos limpos.
— Entendo.
— Por que a pergunta?
— Só... — Balanço a cabeça, olhando na direção da janela escura. — Eu não fui trabalhar
hoje. Não atendi meu pai e, então... perdi meu telefone. Pensei que... Talvez ele entrasse em
contato com você. Me procurando.
E quando eu falo meus pensamentos em voz alta, soam ainda mais patéticos do que na
minha cabeça. Fecho os olhos, engolindo a súbita dor no peito. Aquela minha parte sombria
sussurra em meu ouvido que quem perde são eles.
Se eles não vão lutar por você, eles não te dão a mínima.
Minha família, aqueles que me levaram para sua casa e disseram que era filho e irmão.
Um novo membro estimado. Alguém que eles esperavam e que ocuparia um lugar importante na
casa Warden. Um garoto de dez anos carente, com esperanças pisoteadas aos vinte e seis.
— Desculpe, Keener.
— Tudo bem. — Sorrio, erguendo o queixo com arrogância.
— Kraisee...
— Eu disse tudo bem, Dom. De verdade. Preciso desligar agora. Tenho que ir até a Lust
hoje. Algum evento importante. — Meneio a mão, exalando. — Te ligo mais tarde, pode ser?
— Não suma, ok?
— Você não vai se livrar de mim tão fácil. Fizemos aquele pacto na escola, lembra?
— Como eu poderia esquecer? Você deixou a porra de uma cicatriz no meu dedo, Keener.
Rio, olhando para a lateral do meu indicador e encontrando a linha fina do corte. Nós
pegamos a lâmina de barbear do pai de Dominic e cortamos nossos dedos, deixando o sangue se
unir quando colamos nossos dedos e amarramos uma estúpida fita azul ao redor. Era uma
promessa. Cuidaremos um do outro, seja o que for que aconteça.
— Até logo, Dom.
Desligo após sua despedida sendo um muxoxo. Guardo o telefone no bolso e pego minha
jaqueta branca forrada antes de sair do quarto, alinhando os ombros e ajeitando as mangas nos
punhos. Desço os degraus para o andar de baixo, Killian vindo da cozinha e olhando seu celular.
Vestido de preto dos pés à cabeça, mas diferente nesta noite. Não há uma jaqueta, mas um
sobretudo quente sobre uma camisa com os três primeiros botões abertos e sua máscara de
caveira amarrada na garganta. Calça jeans apertada e botas sociais com uma linha de costura no
bico de ponteira de ferro. Seus cabelos loiros ondulados estão soltos e rebeldes, sua barba de mel
com cerdas grossas.
Killian ergue os olhos do celular brevemente, apenas para sua cabeça se levantar
completamente na minha direção e quase derrapar em sua parada abrupta. Ele me mede da
cabeça aos pés, seus dedos coçando o lábio inferior quando, finalmente, seus olhos se conectam
com os meus.
— O que? — pergunto, espanando a frente do meu colete corset vermelho com detalhes
em cetim branco.
Suas narinas se abrem, inspirando ruidosamente.
— Você está... usando couro?
Arqueio uma sobrancelha ao girar um pouco o quadril para o lado, acentuando um pouco
a curva da bunda, e passo a mão pelo cós da calça vermelha.
— Aparentemente, sim.
— Porra — sussurra, seus olhos voltam para baixo. — Duas vezes porra.
— Isso é um elogio?
— Pode acreditar que sim.
Sorrio, não conseguindo esconder minha satisfação. No fundo, eu sabia que estava me
vestindo exclusivamente para ele.
— Estamos saindo?
— Com você vestido desse jeito? Não.
Minha boca se abre, desacreditado.
— O quê? Por quê?
— Inferno... Porque eu quero tirar cada peça do seu corpo com meus dentes, ao mesmo
tempo que quero sentar e ficar te observando enquanto me masturbo — Killian rosna, se
aproximando de mim devagar.
Deuses perversos! Por favor, sim, faça isso comigo!
Dou passos para trás, me afastando dele até minhas costas baterem na parede. Suas mãos
se apoiam em cada lado do meu corpo, me enclausurando com seus braços. Recosto na parede e
observo seu rosto torcido com dor e desejo.
— Nós temos que ir a uma despedida de solteiro, Killian.
Suas narinas se abrem, inspirando. Suas pupilas estão dilatadas, tão largas que o azul é
quase engolido por elas.
— Dane-se esse caralho. Você está vestindo couro.
— Orlov vai ficar... — engasgo ao sentir a ponta dos seus dedos deslizando sobre minha
coxa. — Seu irmão vai ficar furioso se você não for.
Parecendo me ouvir, o telefone de Killian começa a tocar e ele rosna ao atendê-lo.
— O que foi? — Seus olhos pegam os meus, deslizando para minha boca e então
garganta. Quase posso sentir como uma carícia física. — Eu já estou indo, inferno. Por acaso eu
sou a porra da noiva? Vá se foder, Mikhail.
Killian desliga, lançando um olhar para mim por inteiro antes de grunhir e se afastar. Ele
ajeita seu pau dentro da calça, fazendo o meu pulsar em resposta.
— Sempre um empata-foda... — resmunga, pegando a chave e indo na direção da porta.
— Vamos, Advogado.
Ajeito minha jaqueta, inspirando ao pressionar minha palma contra a frente da minha
calça. Nunca tive bolas azuis como estou tendo agora. E olha que eu gozei essa manhã com a
mão deste homem em mim. Pensar sobre isso não está ajudando meu pau baixar.
Killian me espera na porta e me deixa passar primeiro, fechando e trancando-a ao sair.
Sem o sol, o ar parece mais frio. Sopro minha respiração, vendo-a condensar à frente da minha
boca. O som da garagem sendo aberta chama minha atenção e encontro Killian empurrando uma
moto para fora, no modelo XDiavel S.
Cruzo os braços, olhando para os pneus largos e toda a pintura preta, “Ducati” escrito em
prata é a única cor que se sobressai em todo o fundo escuro. Não me sinto surpreso com isso.
Estalo a língua quando ele puxa o pezinho para mantê-la de pé.
— Não existe nenhuma cor na sua paleta além do preto e prata, não é?
Killian me olha, seu sorriso de lado, curvando sua boca pecaminosa antes de me dar as
costas e fechar a porta da garagem. Ele caminha até mim, me estendendo um capacete preto
fosco com viseira escura.
— Andar inteiro de preto ajuda a me camuflar no escuro, afinal, eu trabalho à noite a
maior parte do tempo. — Seus dedos passam pela borda da minha jaqueta até a ponta,
enganchando no passador da minha calça e me puxando de encontro ao seu corpo. Killian se
inclina, seu nariz passando pela curva do meu maxilar até a orelha, sussurrando: — Eu deixo
toda a luz e cores para você, lisichka. Vermelho, definitivamente, é a cor da sua pelagem.
Seus dentes mordiscam minha orelha, me fazendo estremecer. Ele pega o capacete e o
coloca sobre minha cabeça, clicando a trava abaixo do meu queixo. Sua perna passa sobre a moto
de modo confiante e senta sobre o banco de couro, parecendo confortável e tão gostoso. Killian
calça luvas de couro e liga a moto, um ronronado potente vibrando pelos meus ossos quando
Killian bate suavemente atrás dele.
— Monte, Advogado. — Seu sorriso de lado é cruel e pecaminoso. — Ou você tem
medo?
— Eu não tenho medo disso — resmungo, subindo com sua ajuda e me encaixando em
suas costas.
Eu tenho medo de você.
Tenho medo das coisas sombrias que faz surgir em mim quando estou ao seu lado, e de
gostar de cada uma delas.
Tenho medo do que estou começando a sentir sempre que você me olha. Sempre que me
toca.
— Você não precisa de um capacete, sr. Hunter? — pergunto, apenas para silenciar minha
mente.
— Minha cabeça é dura o suficiente — fala, batendo o indicador contra a têmpora. —
Não quebra fácil.
Engulo em seco, meus braços envolvendo sua cintura quando Killian acelera para a rua.
Minhas coxas pressionam contra ele para me firmar e não me deixar cair. Sua risada baixa se
mistura com o som do vento e do ronrono da moto, um zumbido baixo e rouco. Minhas mãos se
espalham contra sua barriga tensa, procurando por um pouco de calor que o vento frio tenta tirar.
Seu cabelo batendo selvagem.
Ao contrário de quando Killian está dentro de um carro, tenso e irritado, sobre a moto seu
corpo parece relaxado. Suave até. Seus ombros não estão retesados e ele não parece angustiado.
Possivelmente seja pela sensação de liberdade, do vento no rosto, tudo que difere da sensação de
estar enclausurado dentro de um carro.
“Me lembra o passado...”
O quanto Killian realmente sofreu quando era mais novo? Quais são as marcas
emocionais que estão gravadas em sua mente, que o perturbam tarde da noite e que o faz vagar
pela casa? Pressiono meus dedos contra sua barriga, sua mão envolvendo meu pulso e me
mantendo lá.
Posso sentir o cheiro do lago quando passamos pela via perto do porto, seguindo reto até
as luzes da Lust surgirem. A boate cheia de vida e uma enorme fila de espera. Killian nos leva até
o estacionamento privado, um segurança liberando nossa passagem sem precisar de uma palavra.
Desço da moto quando Killian puxa o pezinho, e tento tirar o capacete. Porém, meus
dedos não conseguem encontrar o lugar certo para destravar.
— Acho que isso não foi posto certo — murmuro.
Killian afasta minha mão, tirando a trava com facilidade e puxando o capacete pela minha
cabeça e o pendurando no guidão da moto. Ele não está mais usando luvas.
— Não foi tão difícil.
Passo os dedos pelo meu cabelo, ajeitando minha jaqueta em seguida.
— Diz isso porque estava vendo a trava.
— Não. São meus dedos habilidosos. — Killian balança seus dedos na frente do meu
rosto, puxando meu nariz logo depois. — Vamos, ou Orlov vai cagar um ovo de estresse por nos
esperar.
Seu braço passa por meu ombro, puxando-me com ele para a entrada. As pessoas na fila
nos olham passar com carrancas irritadas, mas Killian mal parece notá-las. Ele acena para o
segurança na porta, a cordinha sendo tirada e liberando nossa passagem para o barulhento
interior da boate mais procurada da cidade de Toronto.
Lust só perde para a Luxury, mas ambas são do mesmo dono.
— Podemos apenas passar assim?
— Somos VIPs. Do que adiantaria ser parceiro do idiota arrogante do White e não ter
alguns benefícios? — Killian inclina, sua boca roçando meu ouvido. — Não saia de perto de
mim, Advogado.
Assinto, sua mão pressionando na base das minhas costas. Deixamos nossos casacos com
a recepcionista, realmente um tratamento VIP, e Killian me leva mais para dentro da pista lotada.
A música é uma batida que me atinge como socos no peito. Olho ao redor, para o palco central
com seus dançarinos seminus, gaiolas penduradas no teto com dançarinas em micro-saias e
arquinhos de diabretes.
Bebidas passam de mão em mão. Pequenas mesinhas espalhadas ao longo das paredes,
um piso superior também lotado. Há áreas com cortinas, isolando seus usuários do lado de
dentro, mas ainda lançando sombras eróticas para quem olha do lado de fora. Killian me guia
pela escada de luzes pálidas nos degraus e surgimos no segundo andar.
Em uma área separada, posso ver sofás confortáveis dispostos ao redor de uma mesa
redonda larga com copos vazios e outros cheios de bebida colorida. No centro, uma linda mulher
negra está sentada com as pernas cruzadas, botas de couro com saltos grossos sobre a quina da
mesa. Ela tem um sorriso curvando seus lábios grossos pintados de vermelho, tranças escuras em
um coque no alto de sua cabeça.
Ela fala algo para um homem sentado à sua direita, vestindo terno escuro e uma camisa de
seda por baixo. Seus cabelos lisos e escuros caem sobre seus olhos enquanto ele continua
ouvindo o que ela tem a dizer. Ao meu lado, Killian grunhe ao envolver minha nuca com sua
mão.
— Ótimo. O cretino do White está na festa.
— White? O dono?
— Sim, o próprio. — Killian me puxa com ele até a grade que dá para a pista do andar
inferior e aponta com o queixo para o sofá. — O arrogante sentado ao lado da Pops.
Olho de volta para ambos sentados no sofá, Pops com seus olhos sobre mim e então em
Killian, acenando brevemente antes de voltar para White.
— Ele parece diferente das fotos de Paparrazzi.
— White nem é tudo isso que dizem por aí. — Killian esnoba.
— Isso me soou como inveja? — Cutuco.
Seus olhos azuis brilham coloridos pelas luzes quando ele me olha. Seus braços me
cercam contra a grade, seu cabelo formando uma cortina ao redor do nosso rosto quando se
inclina contra mim. O aroma do seu shampoo se mistura ao cheiro de cigarro.
— As pessoas só sentem inveja da outra quando desejam o que elas possuem. Eu não
desejo nada que Kiam White tem. — Sua mão segura meu queixo, erguendo meu rosto até que
sua boca está pairando sobre a minha. — O que eu quero está bem na minha frente. Me
implorando para rasgar do seu corpo esse maldito corset e essa calça de couro apertando sua
bunda. Balançando na minha frente como uma maldita bandeira vermelha.
Engulo em seco, lambendo meu lábio inferior.
— Killian...
Ele rosna, seu polegar pressionando meu lábio para baixo antes de me soltar e se afastar
um pouco.
— Não sei o que é pior. Me chamar pelo nome desse jeito ou dizer “senhor” quando está
irritado.
Ele me solta e passo a mão pelo colete e olho ao redor, implorando por uma bebida. Para
passar por essa noite vou precisar ficar bêbado. Pigarreando, mudo de assunto.
— Ah... Pops parece ser uma boa chefe.
Killian me olha, sabendo o que estou fazendo.
— Staraya suka. É melhor que o anterior, pai dela. O homem era um porco sem
escrúpulos. — Ele pega um copo de uísque do garçom passando e toma metade do copo em um
gole. — Desde que a Pops entrou no comando, as coisas ficaram um pouco bagunçadas, mas
nossa organização cresceu muito.
— Bagunçadas, você diz, por ela ser uma mulher?
— Não é comum no nosso meio que uma organização tão grande seja comandada por
uma mulher. — Killian me olha, girando o líquido dentro do copo lentamente. — Mas isso é só a
porra do preconceito dos velhos idiotas.
— Sempre há preconceito, em todos os lugares — resmungo, lembrando como foi difícil
para mim, descendente tailandês, sofrer com xenofobia e, depois, homofobia.
— Foi difícil no começo. — Killian continua, tomando o resto do uísque. — Uma grande
dor de cabeça, mas ela conseguiu. Pops tem um punho de aço e uma visão de negócios perfeita.
Isso é o que Orlov diz. Meu trabalho é lidar com a ralé, não com as reuniões enfadonhas ou
observar o que ela faz.
Apoio meus cotovelos na grade e observo o segundo andar, olhando discretamente para a
Pops e vendo Orlov parado logo atrás dela. Seus olhos caem sobre mim, suas sobrancelhas
franzidas. Esse homem, com seu jeito silencioso e pensativo, me aterroriza.
Uma comoção na escada chama nossa atenção e uma comitiva surge no segundo andar.
Dois homens lideram a entrada, um deles sendo Nevan Mitchell. Sinto Killian retesar ao meu
lado e deslizo minha mão pela sua, enrolando meus dedos em seu pulso, sentindo seu batimento
acelerado. Pops levanta do sofá, recebendo os homens com abraços e beijos enquanto os outros
se espalham pelo piso.
Orlov se afasta, indo para a ponta do sofá e sentando, seu rosto virado para o outro lado e
ignorando-os completamente. Nevan nos encontra com o olhar, afundando o queixo em
reconhecimento. Killian simplesmente lhe dá as costas, fingindo que não o viu. Exalo, inclinando
contra a grade e olhando para o rosto sisudo do meu companheiro rabugento.
— Escuta, quando vai me contar o que aconteceu entre vocês para existir todo esse ódio?
— Nunca.
— Ah, qual é! Me conte! Sou bom com segredos. Advogado e tal.
Olho para ele com sobrancelhas arqueadas, não soltando o osso. Ele revira os olhos,
cruzando os braços.
— Tudo bem. Acontece que o Nevan é um trus predatel’.
— Em inglês, sr. Hunter.
Ele cerra os olhos ao me olhar.
— Covarde traidor.
— Oh. — Franzo as sobrancelhas. — O que ele fez? Entregou vocês? Ficou com outra
pessoa enquanto estava com Mikhail?
Killian arqueia uma sobrancelha para mim.
— Como sabe sobre ele e meu irmão?
— Nevan me disse. — Encolho um ombro. — Sobre você ser muito superprotetor
também.
Ele estala a língua, pegando outro copo de uísque, mas virando tudo de uma só vez.
— Nevan — fala com distinto nojo na pronúncia. — Isso soa quase como se fossem
grandes amigos. E isso não vai acontecer.
— O que não vai acontecer? — provoco.
— Você e aquele médico de quinta se tornarem amigos. Não permito isso — rosna, seu
corpo inclinando sobre o meu e seus olhos gelados me prendendo.
— Killian, você não pode controlar quem se torna meu amigo ou não. Primeiro Dominic,
e agora Nevan. — Cruzo os braços e ergo meu queixo com arrogância. — E está mudando de
assunto de propósito!
Seu sorriso de lado surge, seu dedo deslizando pela frente do meu colete e enganchando
no decote para me puxar mais perto.
— A única coisa que precisa saber sobre os Mitchells é que a família deles é sanguinária e
oportunista. Muitas organizações derrubam outras pela sede de poder, como tubarões nadando
em mar aberto e atacando quando sentem cheiro de sangue. — Seus olhos ficam sérios, maxilar
rangendo. — Eu não tenho vergonha em dizer que me relaciono com qualquer tipo de pessoa,
seja homem ou mulher. Santo ou diabólico. Porém, meu irmão não é assim. Ele escolhe a dedo.
E Nevan foi escolhido, mas não era homem suficiente para Mikhail. Nunca vai ser.
Assinto, passando meu braço ao redor de sua cintura e apoiando meu queixo em seu peito.
— E eu? Sou santo ou diabólico, sr. Hunter?
Sua mão passa pela minha bochecha, escorregando até minha nuca e me segurando perto.
— Você é um anjo caído, Advogado. Me fazendo adorar de joelhos como um santo e
pecar como um demônio.
Inspiro, apertando meu braço ao redor dele com mais força. Killian Hunter, um assassino
cruel criado apenas para trabalhar pela máfia, que defende aqueles que ama com unhas e dentes.
Um cão fiel.
E eu, definitivamente, devo ter perdido algum parafuso como Dominic falou. Porque eu
cansei de correr do que realmente sinto. Se você nunca colocou a mão numa chama porque
alguém lhe disse que o fogo queima, ficará eternamente com vontade de colocar a mão numa
fogueira[36]. E eu quero me queimar no calor profano que esse homem exala.
“I'm that desire in your blood you can't refuse
Ya picked your poison boy ain't nothing left to choose
Now you can't get enough”.
(Cravin’, Stileto)
O som da música vibra em meu corpo, pulsando sobre minha pele. Observo Kraisee se
afastar e ir até o bar mais uma vez, para pegar mais um copo da sua bebida colorida adocicada. Já
é o segundo que ele toma, mas não parece estar longe do caminho da embriaguez. Se eu não o
segurar, posso acabar com ele mal se lembrando do próprio nome no fim dessa noite. Pops não
está mais à vista, desaparecida pela boate junto com seu futuro noivo. Um Mitchell.
Esse sobrenome me cheira a fracasso.
O que me lembra a ligação de Baumer nesta tarde. Não há, em orfanato algum, o nome de
Kraisee Wongsa, ou mesmo adoção feita por Ray Warden e sua esposa, Caitlin. Baumer revirou
todos os sistemas de casas de adoção e não encontrou nada. Como se Kraisee tivesse surgido do
meio de um buraco na terra e Ray o puxou de lá.
Baumer também encontrou diversas transações bancárias com relação à Ray. Seria desvio
de verba? Há até uma conta na Suíça com o nome de um laranja, recebendo uma quantia alta de
dinheiro. Não muito para não ser notado, mas também não é pouca coisa. Depósitos de trezentos
mil não podem ser considerados mixaria.
O que Ray está tramando?
Suor escorre por minha nuca e costas quando vejo uma mulher bonita se aproximando,
usando apenas um vestido púrpura que mal cobre seus seios. Hanney sorri largamente quando
me vê e apoio as costas e os braços na grade, meus olhos ainda sobre Kraisee agradecendo sua
bebida e tomando um gole do canudo. Mikhail a cumprimenta com um breve aceno de cabeça,
seus braços esticados no encosto do sofá.
— Hunter, há quanto tempo. Pensei que tinha desistido da Lust.
Esfrego meus dedos, implorando por um cigarro. White permite sexo nos corredores, mas
há uma maldita política sobre fumar dentro da boate. Prioridades. Melhor porra espirrada na
parede do que fogo em seu teto.
Ao invés disso, pego minha faca canivete no bolso, abrindo e fechando.
— Muito trabalho, pouco tempo para as coisas boas — falo desinteressado.
— Uma pena. Meus meninos sentiram sua falta.
Arqueio uma sobrancelha, fechando a faca com um estalo que mal é ouvido no som alto
da boate.
— Eles amam o gosto do perigo.
— Perigo é o nome do meio de muita gente — Hanney fala alto, sua unha púrpura
deslizando pela frente da minha camiseta.
Não me importo com a porra do sobrenome de ninguém, porém, cairia bem sendo o nome
do meio de Kraisee. Parecendo invocado pelos meus pensamentos, meu advogado entra na frente
de Hanney, batendo a mão dela longe de mim.
— Mantenha as mãos para si mesma, senhora. Essa coleira já tem um dono puxando a
guia.
Minha barriga vibra com sua afirmação gritada sobre a música, me fazendo sorrir com
crueldade ao envolver sua cintura com minhas mãos. Sua bunda coberta por couro se encaixa na
minha frente, me fazendo grunhir.
— Oh, agora eu entendo. — Hanney ri, assentindo. — Hunter não está mais no mercado.
Do sofá, Mikhail nos observa com tédio. Me pergunto se ele transa ou seu pau murchou
tanto que virou do avesso e entrou dentro do seu próprio corpo.
Acho que a última opção.
— Pensei ter dito que eu não queria a escória da Família por aqui.
Viro o rosto para encontrar Kiam parado logo atrás de Hanney. Mãos nos bolsos de sua
calça escura, sua camisa preta de seda aberta até o meio do peito e as mangas dobradas em seus
antebraços. O terno de antes desapareceu. Sua pose de cara rico e esnobe é apenas uma fachada.
White é grande e largo como eu, e bom de briga também.
Ele pode ter tentado enterrar sua história como Midas para o público e seus assíduos
clientes, mas nós sabemos quem ele é e do que pode ser capaz. Seus dedos só não possuem mais
sangue do que os meus pelo fato de que parou há vários anos. Se casou com um fotógrafo bonito,
formou uma família e tem uma vida feliz.
Aquela parte oca dentro de mim vibra, me fazendo fechar os dedos na cintura de Kraisee
com mais força, puxando-o contra mim e enrolando meus braços ao seu redor. Engancho meu
polegar no passador de sua calça, minhas coxas pressionando contra as suas.
— Você usa do bom nome da Família e suas facilidades, mas não se mistura? Que tipo de
hipócrita arrogante é você, White?
Kiam me mostra os dentes em um sorriso forçado.
— Do tipo que não se importa em furar sua cabeça com uma faca de serrinha, só para
doer mais. — Seus braços cruzam, a camisa esticando. — Você estando na minha boate significa
problemas, Hunter. Não quero o cão da família farejando por aqui e causando confusão.
— Estou aqui porque fui intimado para essa festa ridícula. — Dou de ombros. — E não
sou eu quem arranja problemas, White. São os problemas que me procuram em primeiro lugar.
Kraisee balança a cabeça suavemente, sua boca ao redor do canudo e sugando sua bebida
doce. Eu queria que sua boca estivesse ao redor do meu pau, me sugando.
— Essa sua desculpa é esfarrapada! — White exclama.
— Para de encher a porra do meu saco! Cadê seu marido para ocupar seu tempo? Vocês
não têm a porra de uma família feliz em casa? Volte para lá!
— Se não o conhecesse bem, Hunter, diria que o veneno pingando da sua língua é inveja.
Cerro os olhos, apertando a faca entre os dedos, pensando em atirar e ver minha lâmina se
enterrar fundo entre seus olhos. Kraisee envolve meu pulso, abaixando minha mão até sua lateral
e descansa a lâmina contra sua coxa. Mikhail se levanta, puxando a gola da sua camisa mais para
cima e entrando na minha frente, tirando meu foco do rosto prepotente do White.
— Preciso falar com você. Tem um minuto?
Kiam assente devagar, lançando um olhar para mim sobre o ombro de Mikhail.
— Aprenda a ser educado como Orlov, Hunter. — Kiam aponta para o lado, dando um
passo para trás. — Meu escritório é por aqui.
Meu irmão me olha em silêncio, mas é quase como um grito me dizendo para não criar
mais problemas. Apoio o queixo no ombro de Kraisee e mostro meus dentes em um sorriso
ordinário para Mikhail, que balança suavemente a cabeça.
Sim, sou um caso perdido.
— Você é mesmo incorrigível, sr. Hunter! — Kraisee sorri, seu quadril balançando no
ritmo da música.
— Essa é a segunda vez que diz isso. Estou começando a achar que é um elogio! —
Mordo sua orelha, lambendo a curva em seguida.
Guardo minha faca de volta no bolso e pego o copo de Kraisee, colocando-o de lado. Giro
seu corpo para mim e agarro suas bochechas com meus dedos, apertando até que sua boca forme
um leve bico. Suas mãos puxam minha camisa, seus dedos entrando por baixo do tecido e suas
unhas arranhando minha barriga.
Beijo sua boca, segurando sua nuca para mantê-lo no lugar. Porém, Kraisee está tão
derretido contra mim que eu duvido muito que queira escapar. Seu corpo contra o meu, minha
coxa entre as suas, e agarro sua bunda naquele couro apertado. A música é uma batida forte ao
nosso redor, mas não é mais rápida que meu coração batendo no peito.
Eu o beijo por minutos, talvez horas. Mudo de sua boca para seu pescoço, lambendo e
chupando sua pele, desejando menos roupas. Mordo seu queixo, migrando para seu ouvido
apenas para rosnar:
— Vamos sair daqui, porra.
Kraisee apenas assente, sua mão se encaixando na minha ao me seguir para a escada.
Empurro as pessoas pelo caminho com urgência, querendo sair logo dali e ir para casa, para ter
Kraisee nu sobre meu colchão. Quase na saída, Kraisee tropeça atrás de mim e olho sobre o
ombro para vê-lo batendo de lado contra um cara maior. Ele ergue a mão em desculpa, apenas
para arregalar os olhos ao perceber quem é.
Maxwell Warden.
Seus olhos cerram, olhando para Kraisee com fúria.
— O que você está fazendo aqui, idiota? — grita acima da música.
— Eu que deveria perguntar isso! De todas as boates em Toronto, você tinha de vir justo a
essa?
Estalo o pescoço ao ver Maxwell avançar sobre Kraisee e me coloco entre eles, minha
mão espalmando o peito de Max e o empurrando para trás. Vejo com o canto do olho o
segurança da boate puxar seu fone, provavelmente dizendo a Kiam que estou prestes a arranjar
problemas.
— Veja o jeito que você fala com ele — advirto.
Max solta uma risada zombeteira, ajeitando sua camisa ridícula.
— Você é o segurança dele agora?
— Sou. — Inclino a cabeça um pouco para o lado ao analisar sua postura e mostro os
dentes em um sorriso frio. — Algum problema com isso?
O idiota bufa, avançando até estar pairando com seu nariz contra o meu. Perto da saída o
som parece mais baixo, mas ainda pulsando ao nosso redor.
— Sai da minha frente. Esse assunto é entre mim e os olhos rasgados ali. Não é da sua
conta, palhaço.
— Killian... — Kraisee começa, mas o silencio com um movimento da mão, colocando-o
atrás de mim outra vez.
— Acho melhor você sair enquanto consegue andar sozinho. Ou vai se arrepender.
O sorriso de Maxwell está de volta, arrogante.
— Ah, é? E o que você vai fazer?
— Você não quer descobrir. — Nego com a cabeça.
— Não tenho medo de você — fala, cuspindo no chão aos meus pés.
— Mas deveria — falo calmamente.
Kraisee torna a dar volta pelo meu corpo, erguendo as mãos em uma tentativa de fazer o
irmão se acalmar.
— Max, acho melhor ouvir o que Hunter diz.
Seu irmão me olha de cima a baixo, sorrindo.
— Hunter, hein? Você está dando sua bunda para o famoso Executor da máfia de
Toronto? — Maxwell cutuca Kraisee no ombro, me irritando por ter suas patas sujas sobre ele.
— É por isso que você está nessa boate decadente? Você dispensa o papai pelo telefone, como
um idiota ingrato, tudo por causa do pau de um assassino?
— Não foi assim que aconteceu — Kraisee adverte, negando com a cabeça.
— Sabe, papai deveria ter deixado sua carcaça no lugar que ele encontrou — Maxwell
comenta, estalando a língua e gotejando veneno. — Melhor do que deixar o cão morder a mão do
dono que o alimentou por tantos anos.
— Eu não mordi a mão de ninguém — Kraisee rosna, seus ombros tensos.
— Não é assim que o papai vê. Melhor assim. — Ele dá de ombros casualmente. — Você
nunca fez parte dos Warden mesmo, era só a porra de um fantoche! E é por isso que você não
sabe nada de verdade sobre nós! Você nem mesmo tem direito a porra nenhuma dos negócios!
Maxwell ri com zombaria.
— Que tipo de merda é essa que você está dizendo?
Kraisee parece terrivelmente chocado.
— Não é merda! É a porra da verdade! Nossa família não é convencional e você não nos
conhece! Nunca vai conhecer porque o meu pai não confia em ninguém que não tem seu sangue!
E você, made in china, é só uma pedra no maldito caminho!
Com um rugido doloroso, Kraisee empurra o irmão no peito e Maxwell acerta as costas da
mão na bochecha de Kraisee, fazendo meu advogado tropeçar para o lado. Cada músculo do meu
corpo retesa, a fúria lambendo minha espinha. Meu punho levanta, acertando o nariz de Maxwell
e fazendo sangue jorrar.
Não dou tempo para ele pensar. Meu punho acerta seu rosto uma e outra vez, os anéis em
meus dedos afundando na carne, arrancando sangue e pele. Há o som de gritos assustados ao
redor e passos apressados. Tudo ficando abafado em meus ouvidos conforme bato no idiota que
ousou encostar a mão em Kraisee.
— Killian, por favor! Pare! Você vai matá-lo!
Essa é a intenção.
Esse cretino merece morrer. Porém, ele deve sofrer antes. Pego minha faca do bolso e
aperto contra sua garganta, vendo a lâmina cortar sua pele. Maxwell engasga com seu próprio
sangue, seus olhos começando a inchar.
— Isso é um aviso, Maxwell Warden: nunca mais encoste em Kraisee se quer permanecer
vivo. Se for inteligente, vai se manter afastado.
Pares de mãos me erguem para longe do corpo de Maxwell e rosno para afastá-las quando
o rosto de Kraisee surge na minha linha de visão. Suas mãos estão segurando minhas bochechas,
seus olhos arregalados.
— Killian! Pelos deuses, você está bem? Sua mão...
Há um leve bufar atrás de mim.
— Alguém verifique se o rapaz ainda está vivo — Mikhail murmura. Suas mãos apertam
meus ombros antes de sussurrar em meu ouvido: — Você nunca consegue se manter longe de
confusão, Kill?
Chacoalho meus ombros do seu aperto. Pares de olhos sobre nós enquanto os seguranças
carregam Maxwell para fora, três homens seguindo atrás. Provavelmente estavam com o
perdedor.
Grandes amigos.
— Vá se foder. O imbecil filho de uma cadela bateu em Kraisee. — Seguro o queixo do
meu advogado com cuidado, girando sua cabeça para olhar sua bochecha vermelha e levemente
inchada. — Porra, eu devia ter matado ele por ter deixado essa marca em você.
A mão de Kraisee envolve meu pulso, seu rosto sério ao me observar com cuidado. Ele
pega minha mão, passando as pontas dos dedos suavemente pelas minhas juntas machucadas,
sugando sua respiração com força ao olhar em meus olhos.
— Vamos para casa, Killian.
Com um grunhido, envolvo sua cintura com meu braço e caminhou em direção à entrada
da boate para pegar nossos casacos de volta, falando para Mikhail sobre meu ombro.
— Dê meus pêsames para a Pops pelo casamento, Orlov!
— E, como sempre, vou ter de limpar sua bagunça?
Dou a ele meu dedo do meio.
— É para isso que servem os irmãos!
Ajudo Kraisee a colocar sua jaqueta branca e passo os braços pelo meu sobretudo. Minha
mão dói, mas a dor não é maior que minha satisfação de ter esmagado o rosto de Maxwell.
Chegando próximo da minha moto, as mãos de Kraisee agarram minhas lapelas e sua boca está
sobre a minha. Com o impacto surpreso, sinto nossos dentes batendo e cortando meu lábio. Solto
um gemido resmungado, segurando sua cintura e deixando que minha pequena lisichka me
devore.
Sua língua lambe o sangue da ferida que ele mesmo fez, fazendo um arrepio de excitação
descer pela minha espinha e se alojar em minhas bolas.
— Me leve para casa, Killian. Me leve para seu quarto e me foda, por favor.
Meus dedos cavam em sua cintura, arrancando um baixo gemido sôfrego dele. Pego o
capacete e coloco sobre sua cabeça, montando em minha moto e saindo acelerado quando seus
braços estão enrolados ao meu redor. Os pneus derrapam nas curvas, suas coxas me apertando e
me desconcentrando.
Paro a moto na frente de casa, desligando o motor e descendo. Kraisee já tem o capacete
fora de sua cabeça, já que desta vez ele não se deu o trabalho de prender a trava. Agarro a frente
de sua jaqueta, lambendo meu lábio machucado e pensando em todas as coisas perversas que vou
fazer com esse homem na minha cama.
Seus olhos seguem minha língua, suas mãos se enroscando em meus cabelos e me
puxando de encontro a ele. Nós nos beijamos, tropeçando pelo caminho até a porta, nossas mãos
explorando e empurrando nossas roupas. Bato a senha da porta meio cegamente, o clique de
liberação nos deixando adentrar na casa escura, com apenas uma lâmpada acesa no hall de
entrada.
Bato a porta com o calcanhar, empurrando a jaqueta de Kraisee por seus ombros enquanto
ele se ocupa em desabotoar minha camisa. Empurro-o contra a parede, segurando a frente de seu
corset e me afasto para olhar mais uma vez para a forma de seu corpo bonito. Rosno quando a
palma dele se esfrega contra meu pau ainda dentro da calça.
— Vamos jogar um jogo, sr. Hunter.
Arqueio uma sobrancelha, meu quadril balançando contra sua palma em busca de mais
atrito.
— Que tipo de jogo, Advogado?
Kraisee abre o primeiro botão de sua camisa branca. Em sua manga, vejo um leve rastro
de sangue que deve ter saído de seu curativo.
— Um em que eu sou a caça. E você só pode ter minha bunda se me pegar.
Apoio as mãos na parede, enclausurando Kraisee entre meus braços. Suas pupilas estão
estouradas, seus lábios inchados pelo beijo, seu cabelo bagunçado e bochechas escuras de desejo.
— Então é melhor você correr, lisichka.
Ele solta um pequeno grito sufocado antes de escapar de mim e correr para dentro da casa
escura. Atiro meu sobretudo de lado e avanço atrás de Kraisee com passos largos, subindo os
degraus de dois em dois e vendo sua bunda empinada naquela calça de couro prestes a entrar no
seu quarto.
Princesa surge pela porta, correndo como se seu rabo estivesse pegando fogo e desaparece
para o andar de baixo. Enrolo meu braço ao redor da cintura de Kraisee pouco antes dele
ultrapassar pela soleira da porta de seu antigo quarto e seu grito surpreso faz com que aquela
parte caçadora em mim se agite com alegria perversa.
Isso mesmo, antigo. Porque, a partir dessa noite, estou amarrando meu Advogado na
minha cama e o alimentando apenas com meu pau.
Jogo seu corpo sobre meu ombro, meu rosto torcendo levemente com a fisgada de dor
com o machucado quase cicatrizado. Dou um tapa em sua bunda para que pare de se mexer, e
vou para o meu quarto carregando meu prêmio envolto em couro e cordões. Sem cerimônias,
jogo Kraisee sobre minha cama e me desfaço dos últimos botões da minha camisa e a tiro pelos
meus ombros.
— Você precisa ser mais rápido da próxima vez, se quer escapar de mim, Advogado. —
Caio sobre seu corpo, lambendo seu maxilar.
— Minha intenção nunca foi fugir, mas ser pego. — Kraisee enrola suas pernas na minha
cintura e nos vira sobre o colchão. Suas mãos puxam meu cinto, enrolando-o em meus pulsos em
seguida. — Agora, mantenha-se quieto, sr. Hunter, e aproveite o passeio.
Ele me empurra até que eu estou com os braços levantados e amarrados na minha
cabeceira. Puxo-os, me sentindo preso, logo esquecendo quando Kraisee senta sua bunda sobre
meu quadril.
— Kraisee...
Seu sorriso é largo quando ele desabotoa sua calça e então passa para os botões em seu
corset. Me remexo abaixo dele, meus dentes cerrados ao vê-lo tirar aquela peça sem minha
ajuda. Observo sua camisa branca deslizar por seus ombros e seu torso ficar nu para meus olhos.
Seus mamilos pequenos e escuros, sua barriga lisa e aquela pequena cicatriz sobre seu quadril
direito. O curativo em seu braço está avermelhado, levemente soltando na borda de cima. Ele não
parece se importar muito.
Forço meus pulsos contra a restrição, amaldiçoando em russo por Kraisee saber amarrar
muito bem. O que ele poderia fazer com cordas? Inspiro quando seus dedos deslizam pela minha
barriga puxando minha calça e cueca para baixo. Ele tira as peças do meu corpo junto com meus
sapatos e meias.
Estou nu e amarrado.
Meu pau em riste e sacudindo com o olhar de Kraisee sobre ele. Seus olhos de chocolate
sobem para os meus, sua voz rouca e baixa:
— Lubrificante e camisinhas, Killian.
Ergo o quadril levemente, fechando os olhos e apertando minha cabeça contra a cabeceira.
— Primeira gaveta do banheiro — rosno.
Ouço o barulho de seus pés contra o chão, então a gaveta se abrindo e coisas sendo
reviradas. Seus pés batem de volta e o colchão afunda. Quando abro meus olhos outra vez,
Kraisee está completamente nu e sentado sobre minhas pernas. Inspiro com força, olhando para
seu pau tão duro quanto o meu.
— Kraisee...
— Shh. Fique quieto. Me deixe olhá-lo.
Moo meus dentes ao ranger meu maxilar com força. Kraisee me observa, suas mãos
deslizando por minhas coxas e subindo até a virilha, apenas para voltar para baixo mais uma vez.
— Quase não há espaço de pele sem tinta — murmura, seu gemido saindo baixo e longo.
Seu indicador segue pela borda de uma tatuagem de serpente em minha coxa direita, então
pelas asas da águia subindo perto do meu quadril do lado esquerdo. Suas mãos se abrem,
espalmando sobre os ossos da bacia, seu rosto se inclinando e seu nariz passando ao longo do
meu pau inchado.
— Kraisee — rosno.
— Sabe, quando te vi socando meu irmão, fiquei aterrorizado no começo. — Sua língua
sai, lambendo superficialmente perto do meu piercing lorum. — Então lembrei que você estava
fazendo aquilo para me defender. Você mataria meu próprio irmão apenas para me manter a
salvo.
Minha respiração para por poucos segundos, apenas para retornar em ofegos rápidos ao
senti-lo mover seu quadril e enterrar seu pau entre minhas pernas, me usando como fricção.
Meus braços forçam minhas restrições novamente, me fazendo grunhir ao perceber que não
consigo me soltar.
— Nunca alguém me defendeu assim. E, foda-se, eu achei quente pra caralho, Killian.
Abro minha boca, soltando um grito mudo quando a boca dele se fecha ao redor do meu
pau. Quente, calor úmido deslizando até a base e voltando. Seus lábios esticados ao meu redor,
me engolindo até o fundo como um maldito profissional.
Isso me irrita, ao mesmo tempo que me excita.
Porque, para Kraisee conseguir bater meu pau no fundo da sua garganta sem engasgar, ele
deve ter treinado bastante. Com o pau de outras pessoas.
Ergo meu quadril, fodendo sua boca com raiva. Seu gemido vibra ao meu redor, suas
mãos segurando minhas coxas enquanto seu quadril balança entre minhas pernas. Meu Reverse
Prince Albert arranha o fundo da sua garganta cada vez que me engole, lágrimas escorrendo por
suas bochechas quando pressiono meu quadril para cima e ele me mantém lá dentro até quase
engasgar. Estou prestes a esvaziar em sua boca quando ele me solta e se afasta.
— Volte já aqui!
Kraisee sorri, limpando o fio de baba do seu queixo e pega o lubrificante de cima da
cama.
— Já que você parece ter as mãos muito ocupadas, eu vou ter que me preparar sozinho.
— Kraisee, não ouse — falo, meus olhos seguindo suas mãos abrindo o frasco e deixando
uma boa quantia do líquido pegajoso escorrer para sua palma.
— Observe, sr. Hunter.
Com um joelho de cada lado da minha barriga, vejo sua mão banhada em lubrificante
desaparecer por trás. Sua boca se abre, seus olhos se fechando e sua cabeça tombando para trás.
Sua outra mão segura seu pau, masturbando-se devagar enquanto penetra seus dedos em seu
buraco guloso.
— Kraisee, seja um bom menino e me solte — falo entredentes cerrados.
— Três... três dedos são suficientes?
Meu rosnado ecoa pelas paredes do quarto, se tornando um gemido quando Kraisee
desenrola a camisinha em mim. Observo, impotente, sua bunda se abaixar no meu pau e me
engolir de forma lenta e torturante. Levanto meu quadril, impaciente, atingindo o fundo de uma
só vez e sorrindo para o prazer e dor misturados em seu rosto corado.
Não dou a ele tempo para se acostumar. Levanto meu quadril, batendo contra sua bunda
repetidas vezes. Seu corpo oscila, suas mãos caindo sobre meu peito e apertando os piercings nos
meus mamilos.
— Sim! Por favor, sim!
— Me desamarre, porra!
Com um gemido curto, Kraisee estica suas mãos e desata o cinto dos meus pulsos, sua
boca batendo sobre a minha com urgência. Sento, minha mão envolvendo seu pescoço em um
aperto enquanto guio seu quadril com a outra mão, fazendo ele me cavalgar.
Chupo sua língua, lambendo sua boca e mordendo seu lábio inferior até machucar. Seu
grito me instiga a fazer pior. Eu quero maltratá-lo até que ele implore para parar. Quero dobrar
seu corpo e bater contra ele, fundir nosso corpo em um só. Quero que ele ande na manhã
seguinte e lembre onde meu pau esteve.
Giro sobre a cama e o mantenho abaixo de mim. Suas pernas se enrolam na minha cintura,
me usando de alavanca para se foder no meu pau. A boca de Kraisee se abre, seu pescoço
arqueado. Me curvo sobre ele e estico minha língua e passo pelo contorno do seu peito magro até
a curva perto da axila. Sinto seu corpo estremecer abaixo do meu, sua respiração ofegante se
mesclando ao som de tapas de pele. Mordo seu peito, arrancando um grito surpreso de sua
garganta, que se torna um gemido baixo quando chupo o lugar machucado.
— Killian... Por favor...
Seus dedos se enroscam no meu cabelo, puxando forte e pinicando meu couro cabeludo e
lágrimas de dor se encherem em meus olhos. Seus olhos se fecham, me fazendo grunhir com
irritação.
— Olhe para mim! — exclamo, segurando seus pulsos acima de sua cabeça. Seus olhos se
abrem, focando nos meus. — Não ouse tirar os olhos de mim enquanto te fodo, Advogado. Você
vai gozar no meu pau e eu quero ver esses doces olhos de chocolate derreterem.
— Sim, por favor, faça isso — choraminga.
Empurro suas pernas para cima, dobrando-o, e passo a bater com força meu pau dentro do
seu rabo. Seu buraco me engolindo com vontade, me sugando e apertando. Inclino seu quadril
para cima, arrancando um grito de Kraisee. Sorrio de forma perversa, sabendo que achei seu
ponto. Passo a bater ali, uma e outra vez, arrancando todo tipo de som da sua garganta.
Não demora muito. Os olhos de Kraisee estão arregalados quando seu pau atira sua porra
contra seu peito e queixo, seu buraco me estrangulando com seu orgasmo. Saio de dentro da sua
bunda quente, apenas para colocá-lo de bruços e me enterrar dentro dele outra vez. Agarro seus
cabelos e o puxo para cima apenas o suficiente para conseguir segurar sua garganta. Dobro seu
braço sem o machucado para trás e empurro sua cintura para baixo, forçando-o a empinar para
mim.
— K-Killian... Oh, deuses...
— Os deuses estão ocupados. Eu posso te ajudar no lugar deles? — pergunto, mordendo
sua orelha.
Bato contra ele, sufocando-o e fazendo mais lágrimas escorrerem por suas bochechas. Um
som estrangulado sai de sua garganta e o solto, sua respiração vinda em longos ofegos quando o
sinto estremecer e seu pau espasmar ao tentar voltar à vida, soltando um pouco mais de porra.
Deito seu corpo de lado e empurro sua coxa para cima ao tirar a camisinha, me
masturbando contra sua coxa e gozando sobre sua pele. As ondas do meu orgasmo batem contra
minha pele, deixando meus ouvidos zunindo e meu coração acelerado. Apoio minha bochecha
contra o joelho dele, olhando para seu rosto contendo um sorriso satisfeito, as marcas vermelhas
dos meus dedos em sua garganta, minhas mordidas em seu peito pintado com sua própria porra.
Mais bonito que muito quadro de galeria.
Olhe para ele. Eu morreria por ele. Mataria por ele. E ambos seriam um prazer[37].
— Venha cá. — Kraisee estende os braços, me convidando.
Rastejo sobre seu corpo, deixando beijos por sua pele até chegar em sua boca e beijá-lo de
modo lento, adorando cada segundo. Meu belo brinquedo vai ser quebrado quantas vezes eu
quiser, e vai me implorar para fazer de novo.
Porque é assim que nós somos.
Como dois discos quebrados que, quando tocados juntos, se complementam. Cheios de
desejo venenoso no sangue, almas sombrias dançando sobre o caos. Eu vi os demônios de
Kraisee antes mesmo que ele os visse. Ou, talvez, os aceitasse. E, agora, essa pequena raposa de
alma corrupta é totalmente minha. Preenchendo o vazio que tanto ansiava por ocupar.
“I was made for loving you, baby
You were made for loving me
And I can't get enough of you, baby
Can you get enough of me?”.
(I Was Made For Lovin’ You, Kiss)
A manhã parece calma depois da turbulência que foi a noite. Viro devagar na cama,
sentindo meu corpo dolorido em todos os lugares, principalmente minha bunda. Sorrio, olhando
para o homem responsável pelo meu corpo maltratado.
Killian dorme pacificamente e sequer parece perceber que Princesa está enrolada
confortavelmente sobre o travesseiro, pouco acima de sua cabeça. O homem sequer parece um
assassino quando tem seus olhos fechados e rosto relaxado. Passos a ponta dos dedos sobre suas
sobrancelhas e então seu nariz, franzindo os lábios para não rir ao vê-lo mexer a ponta e
resmungar.
A luz do sol entra pela janela aberta, deixando um brilho dourado suave sobre os tons
escuros que decoram o quarto de Killian. E esquenta um pouco, já que, aparentemente,
esquecemos de ligar o aquecedor antes de desmaiarmos. Pelo menos nos lembramos de limpar
nossas feridas, lambendo os machucados como dois cães vadios. Killian me ajudou com meu
curativo sangrando e eu lidei com suas juntas machucadas depois que ele amassou o rosto de
Max na boate.
Aquelas sombras que eu tinha tanto medo são apenas uma fumaça agora. Se misturando à
minha alma. Parei de lutar contra meus demônios interiores. Estamos do mesmo lado agora.
Eu tentei não me envolver. Os deuses sabem o quanto tentei. Killian Hunter tem tatuado
em sua testa a palavra “problema” e eu sabia, assim que coloquei meus olhos nele, como tudo
mudaria se ele me tocasse. Inteligente como o diabo e duas vezes mais bonito, de palavras e
lábios sedutores, me puxando de volta sempre que tento sair.
É um ciclo vicioso e percebo que, mesmo não conseguindo respirar, eu não quero
realmente me libertar.
— Pare de me olhar dormindo — Killian resmunga, abrindo um olho sonolento para mim.
— É estranho.
Seu corpo grande vira por baixo da coberta grossa, fazendo Princesa resmungar do seu
lugar. As pernas grossas de Killian me puxam para mais perto e seus braços se enrolam ao meu
redor. Como uma gaiola de músculos quentes e tatuados.
Sua mão desliza sobre meu quadril, seu polegar se afundando na pequena cicatriz que
tenho ali.
— Quando vai me contar onde fez isso?
Suspiro, deitando minha bochecha no travesseiro.
— Eu tinha doze anos. Não fazia muito tempo que estava na casa Warden e Max já havia
demonstrado como me odiava por estar ali. Toda a atenção que Caitlin e Ray me davam,
deixando-o de lado. — Fecho os olhos quando o mesmo sentimento retorna para mim:
desamparo. Então, raiva. — Era inverno. Eu estava encarregado de montar a árvore para o Natal
e colocar os enfeites na lareira, já que no ano anterior eu havia feito e Caitlin tinha adorado.
— Você não a chama de mãe?
Pisco para sua pergunta simples, me dando conta de que foram raras as vezes que me
referi a ela dessa forma. Nego suavemente, voltando para a história.
— Eu estava sozinho em casa, colocando as bolas coloridas na árvore alta que Ray havia
comprado. O cheiro de pinho impregnava a enorme sala. Coloquei a estrela no topo quando vi
Max parado perto da caixa com as meias coloridas e com nossos nomes gravados nelas. A minha
era verde com uma rena fofa. — Franzo as sobrancelhas, lembrando como Max me olhava
naquela época. Como tudo indicava o que ele estava prestes a fazer, de forma calculada, e eu não
consegui ver. — Eu desci da escada, empolgado. Max segurava minha meia e me olhou de modo
vazio segundos antes de atirar dentro da lareira.
O polegar de Killian continua acariciando minha cicatriz, me fazendo segurar a vontade
de chorar. Sua atenção total sobre mim, me ouvindo pacientemente. Fungo, de qualquer forma, e
inspiro profundamente antes de continuar:
— Eu gritei e tentei pegá-la de volta, mas ele me empurrou para longe. Max sempre foi
maior. — Encolho os ombros, impotente. — Eu vi quando ele pegou o atiçado e enfiou a meia
mais fundo entre as madeiras, queimando-a por completo. Levantei chorando e corri naquela
direção, talvez com a esperança de salvar alguma parte. Foi quando Max virou e... o atiçador
entrou em mim.
Os olhos de Killian se tornam gelados e sérios, sua mão apertando meu quadril com força.
— É por isso que você disse que foi um “acidente”?
— Foi o que Max contou quando nossos pais chegaram no hospital. A empregada ouviu
meu grito e veio correndo, encontrando Max jogando o atiçador de lado e apontando para mim
no chão. Ele disse que eu caí sobre ele quando tentava salvar a meia do fogo. Eu... tropecei no
tapete. — Engulo com dificuldade. — Acreditei nisso por muitos anos.
— Eu deveria ter matado ele quando tive a chance — resmunga.
— Não tire essa oportunidade de mim. Vou fazer isso em algum momento, mas não
agora. — Sorrio, tentando aliviar a tensão.
Afundo meu nariz no oco da sua garganta, precisando sentir seu cheiro e seu calor para
me lembrar de que Max não pode me fazer mal algum agora. Pisco para afastar minhas lágrimas
e olho diretamente para a flor tribal desenhada no pescoço de Killian.
— Qual foi a primeira tatuagem que você fez?
Inclino a cabeça para trás para conseguir olhar em seus olhos. Eles parecem ainda mais
azuis nesta manhã. Claros como a geleira fria derretendo na primavera.
— Acho... que foi o rouxinol. — Seu dedo bate suavemente sobre uma tatuagem de traços
mais grossos e quase apagada sobre seu bíceps.
— Por quê?
— Eu queria ser livre — murmura.
Seus dedos passeiam pelo meu braço em uma lenta carícia. Brinco com o piercing de
metal em seu mamilo, olhando diretamente para os olhos furiosos do dragão. Passo o polegar
pela crista escura, descendo pelo contorno do pescoço até perto da clavícula.
— Por que tantas? E por que não há coloridas?
Killian esfrega o olho esquerdo com o polegar.
— Você está tentando ter uma conversa de travesseiro comigo?
Bufo, puxando o piercing em seu peito e o fazendo grunhir.
— Pelo que me lembro, você me disse um dia que para ser uma “conversa de travesseiro”
minha bunda deveria estar doendo. E ela está. Assim sendo, responda minha pergunta, Honey
Beard.
Killian me observa por longos segundos e penso que ele não vai me responder, quando
exala pesadamente e vira de costas na cama.
— Houve um tempo na minha vida que nada parecia amenizar a dor que eu sentia.
Comecei me tatuando e percebi que o zumbido da máquina mantinha meus pensamentos quietos.
— Ele olha para o teto, seu rosto liso de qualquer sentimento. — Passei a fazer tatuagens
grandes. Quanto mais tempo com a agulha no corpo, menos eu me preocupava com o resto. Só
que cheguei em um ponto que não era mais suficiente também.
— Algumas das suas cicatrizes são... de corte?
— A maior parte delas. — Killian sorri de lado, me olhando. — Mas não do que você
imagina. A única vez que tentei me matar foi ingerindo altas doses de cocaína com bebida
alcóolica. Não deu certo, como pode ver. — Ele acena para seu corpo, indicando estar vivo.
Soco seu peito, irritado.
— Não brinque com isso, Killian.
Ele segura meu punho, pousando-o sobre seu peito. Abro a mão, minha palma
descansando sobre seu coração batendo controlado.
— Mikhail me salvou, como sempre, e me fez prometer que nunca mais faria algo
parecido. E nós não quebramos nossas promessas. — Killian expira, esfregando a bochecha. —
Mantenho meu telefone ligado quando não estou no trabalho e Mikhail me verifica. Se eu não o
atendo, ele tem a chave da minha casa e pode entrar a qualquer momento.
— Então, é esse acordo que ele disse aquele dia?
Killian assente brevemente.
— Mik costuma dizer que se Mason não nos matou quando menores, não seria agora que
a morte me levaria. Muito cabeça dura para morrer tão fácil assim.
— Quem é Mason?
E essa parece ser a pergunta errada a se fazer. Killian se desenrosca de mim, erguendo seu
corpo e encostando na cabeceira. Princesa resmunga, saltando sobre minha cabeça e indo para os
pés da cama. Me ergo sobre o braço, apoiando o cotovelo na cama.
Parecendo perdido em sua própria mente, Killian se assusta quando apoio minha mão
sobre sua coxa. Seus olhos frios se conectam com os meus, parecendo apreensivo. Eu dou tempo
a ele. Uma das minhas qualidades é ser paciente.
Esfrego o polegar contra sua pele, vendo seus ombros relaxarem devagar. Ele passa a mão
pelo cabelo, empurrando as mechas loiras para longe do seu rosto, segurando a nuca ao expirar
pesadamente.
— Mason Schulz. Um filho da puta sanguinário, sem nenhum tipo de sentimento. Ele era
o Executor dos D’Angeles antes de mim.
Arqueio as sobrancelhas.
— Sério?
— Tão sério quanto um ataque cardíaco. — Killian franze as sobrancelhas. — Ele é o
responsável por mais da metade das minhas cicatrizes. E das cicatrizes que Mikhail esconde
também.
— Ele.. torturava vocês? — sussurro a pergunta.
Killian solta uma risada nasalada e sem humor algum.
— Tortura é uma palavra que não chega perto do significado do que Mason realmente
fazia comigo e com Mikhail, Kraisee.
Deslizo meu polegar em uma cicatriz dentada na lateral de sua coxa, escondida pela
tatuagem escura. Então meu indicador encontra um pequeno furo de bala mais perto do joelho. O
homem é como um mapa de feridas cicatrizadas a olho nu, mas abertas e sangrando em seu
interior.
Agarro seu joelho e aperto, fazendo seus olhos caírem sobre os meus.
— Diga-me que ele sofreu ao morrer. Diga-me que foi você quem o matou.
Seu sorriso de lado surge, sua mão acariciando minha bochecha.
— Deixei essa honra para meu irmão. Mikhail sofreu duas vezes mais do que eu, sempre
se colocando no meu lugar para receber as surras de “aprendizado”. — Seus olhos se tornam
mortos, mergulhando dentro de suas lembranças hostis e confusas. Aperto seu joelho novamente,
trazendo-o de volta para mim. Ele suspira, recostando a cabeça na cabeceira e me olhando de
cima. — Mason tinha o costume de enforcar Mikhail com uma linha de pesca, apenas por
diversão.
— Deuses malditos — sopro, horror deslizando pela minha pele.
— Enquanto ele fazia isso, me mantinha preso dentro de uma caixa de madeira. Eu ficava
por horas lá dentro, curvado sobre meus joelhos já que a caixa era muito pequena para meu
tamanho. — Seus olhos caem para minha mão acariciando sua coxa novamente. — Não havia
abertura além das fissuras da própria madeira ligada uma na outra. Não havia ar suficiente. Era
como um caixão quadrado jogado no canto da casa velha que Mason usava para nos “treinar”.
Ele — Killian engasga, sua voz sumindo por um momento antes de pigarrear. — Ele sequer me
soltava para fazer minhas necessidades.
— Killian...
Sua cabeça sacode com brusquidão, seu maxilar rangendo e os punhos fechados sobre
suas coxas.
— Não estou contando isso para você para que sinta pena de mim.
— Eu não...
Seus olhos se conectam com os meus, me calando. Sua mão segura minhas bochechas,
apertando e inclinando meu rosto para cima. É como se Hunter estivesse tomando o controle
novamente, quando Killian se tornou tão vulnerável e aberto aos meus olhos.
— Entenda, Advogado, o que você pensa sobre mim não vai mudar quem eu sou, mas
pode mudar o meu conceito sobre você[38]. E sentir pena da minha história me faz pensar em você
como um idiota medíocre.
Seguro seu punho, fazendo seu aperto em minhas bochechas diminuir.
— Não sinto pena de você, Killian. Sinto raiva pela criança que sofreu e empático pela
dor e solidão que passou. — Beijo sua palma sem tirar meus olhos dos seus. — Seu passado
moldou o homem que é hoje. E, se não fosse assim, eu não estaria aqui, implorando para receber
migalhas de conhecimento sobre quem é o verdadeiro homem por trás da fachada de Executor.
Sobre cada cicatriz em seu corpo e sua história. Ao contrário de você, que pesquisa com outras
fontes as informações sobre minha vida, eu pergunto diretamente quando quero saber algo.
Suas sobrancelhas se franzem, sua mão descendo para meu pescoço e acariciando as
marcas deixadas ontem à noite.
— Culpado pela acusação — murmura. — Você possui alguns argumentos válidos,
Advogado.
— O que posso fazer? É a minha profissão. — Encolho um ombro.
Seu polegar acaricia meu maxilar, subindo para meu lábio e puxando para baixo.
— Não sou bom em compartilhar coisas sobre mim, Kraisee. Tudo o que eu sou, tudo o
que já fiz em todos esses anos... Não é nem um pouco bonito.
— E eu sei disso. Nunca fantasiei sobre você ser algo que não é. — Levanto, sentando
sobre seu colo e enrolando meus dedos em seus cabelos. — Nunca esperei que fosse diferente e
nem quero que seja. Não espero sua redenção.
— Posso ter tido uma infância ruim, posso ter passado por coisas que me quebraram, mas
nada disso muda o fato de que eu gosto de cada segundo da vida que tenho hoje. — Killian
desliza suas mãos calejadas por minhas costas, segurando minha bunda. — De sentir prazer com
dor alheia. Eu sou um bastardo sádico que nem mesmo o diabo quis no inferno. Ele pensou que
ter a mim lá seria muita competição.
Isso me faz soltar uma risada sincera. Aproximo meu rosto do seu, puxando seu cabelo
com mais força e o fazendo grunhir.
— Você é um idiota arrogante, Killian Hunter. — Lambo sua boca, mordendo seu lábio
até fazê-lo rosnar. — Então conte-me todas as coisas terríveis que você já fez e deixe-me amar
você de qualquer maneira.
Suas narinas abrem ao inspirar profundamente.
— Acho que é muito cedo para a palavra com “a”, Advogado — sua voz sai rouca.
— Você acha? — Balanço meu quadril contra o dele, nossos paus roçando e me fazendo
gemer baixinho. — Eu não preciso que me ame de volta. Só quero alguém que incendeie o
mundo por mim, sr. Hunter. Você pode fazer isso?
Suas mãos seguram minha cintura, nos deitando sobre a cama, seu corpo grande sobre o
meu e a coberta enrolada em nossas pernas.
— Porra, me dê o fósforo e a gasolina, Advogado. Depois deite na cama para que eu
possa te dar prazer enquanto o mundo se torna apenas cinzas.
— Posso me contentar com isso. É suficiente para mim.
— É tudo o que eu posso te dar. — Killian rosna, seu quadril indo e vindo contra o meu,
esfregando seu piercing no meu pau da base até a ponta. — Minha lealdade, minha obsessão,
minha completa devoção ao seu corpo e meu espírito vingativo. Eu vou morrer por você se me
pedir, Kraisee. Posso te dar tudo isso, mas não posso prometer amor.
Enrolo minhas pernas ao seu redor, segurando seu rosto entre minhas mãos.
— Droga, isso é ainda melhor.
Eu o beijo, sabendo que eu faria tudo isso por ele também. Quando um monstro não é um
monstro? Ah, quando você ama.
*
Ajeito a lapela do meu terno ao sair do carro, estremecendo com o vento gelado passando
pelo meu corset telado. Optei por não colocar uma camisa por baixo e o tecido marrom
transparente deixa todo meu torso à vista, coberto parcialmente pelo terno preto.
Minha calça, também marrom, é de couro. Killian demonstrou um grande interesse por
esse material na noite de ontem e antes de sairmos de casa esse final de tarde. Falando no diabo,
meu acompanhante dá a volta na Silverado, puxando a gola de sua camisa de botões preta por
baixo do terno ajustado. Sua calça social abraça suas coxas e os sapatos brilham no pôr-do-sol.
Killian parece muito perigoso e quente com essa roupa.
Seus olhos voltam para meu torso e então abaixam devagar antes de voltar para cima e,
então, meu rosto. Suas pupilas estão enormes quando sua mão envolve minha nuca e me puxa até
minha frente estar colada contra a sua, dos joelhos até o peito.
— Você é uma provocação deliciosa, Advogado.
— Você faz os elogios mais bonitos, sr. Hunter.
Ele grunhe.
— Não fique agindo assim ou vou ser obrigado a te jogar dentro do carro e voltar para
casa. Só para rasgar essa sua roupa e te foder até você me implorar para parar.
— Deuses, que coisa horrível de se prometer! — Sorrio, brincando com o botão da sua
camisa. — Por favor, continue.
Seus olhos azuis queimam com desejo malicioso, porém, sua mão desce até a base da
minha espinha e me empurra suavemente para dentro da pequena capela.
— Espere essa porra de casamento acabar e você verá, lisichka — retruca baixinho.
Olho ao redor, franzindo as sobrancelhas ao ver os poucos bancos ocupados
aleatoriamente. Reconheço Kiam no banco da frente com um homem ao seu lado, suas cabeças
baixas como se conversassem baixinho. Perto do altar, vejo Mikhail e sua carranca habitual,
Nevan está do outro lado jogando olhares casuais na direção do homem sombrio. Um homem
mais velho de cabelos grisalhos e pele negra retinta está logo atrás dele, com o queixo erguido ao
ajeitar a gravata borboleta.
— Quando você disse sobre uma capela, achei que estava zoando com a minha cara. Pops
vai se casar em uma igreja? Realmente? — pergunto, sentando no terceiro banco e Killian me
seguindo.
Seu braço passa pelos meus ombros, apoiado no encosto do banco quando sua boca
murmura no meu ouvido:
— Somos uma organização que gosta de manter os bons costumes.
Arqueio as sobrancelhas, olhando-o ceticamente.
— Claro que são.
A risada de Killian é rouca e baixa, dedilhando sobre meus nervos.
— Pops deve estar pouco se fodendo para esse casamento. Certeza que é o pai imbecil do
Mitchell exigindo essa patifaria.
— Homem religioso?
Killian lança um olhar na direção de Nevan e do homem mais velho, depois para seu
irmão com as mãos cruzadas nas costas.
— Fanático — resmunga.
Ele não precisa me dizer nada além disso para que eu entenda. O pai de Nevan é um
grande homofóbico. As portas da frente se abrem e um homem negro de terno cinza chumbo
entra acompanhado de uma mulher mais velha. Ambos estão sérios, caminhando pelo corredor
curto com passos firmes. Ela beija sua testa ao chegar no altar, ficando ao lado do homem mais
velho logo atrás de Nevan.
— Antenor Mitchell carrega o nome da família há muito tempo e ter nossa organização
em uma aliança é muito benéfico — Killian sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo que a
marcha nupcial começa.
As portas se abrem, mais uma vez, e Pops está de costas, falando baixo com uma mulher
de rosto sério, lábios franzidos. Seus olhos vasculham o interior da capela enquanto Pops balança
suavemente a cabeça. Ouço Killian ao meu lado sugar a respiração, enquanto Kiam xinga no
banco da frente.
Todos, de repente, parecem muito tensos.
— O que está acontecendo? — pergunto, sem tirar meus olhos da Pops ajeitando o
vestido.
— Reese Knight. É isso que está acontecendo — Killian murmura.
Ele levanta, indo para o altar e falando baixinho com Mikhail. Os sussurros dentro da
capela cessam quando a Pops vira e entra no corredor, carregando um pequeno buquê de flores
brancas. Ela realmente não parece dar a mínima pelo casamento, já que seu vestido é um
escândalo vermelho com uma fenda na perna que quase encontra com seu decote.
Acompanho com o olhar até Pops chegar no altar, dando a mão para seu futuro marido. A
cerimônia começa e Hunter está sentado ao meu lado de novo, seus ombros tensos e olhos sérios
indo a todo momento para as portas fechadas.
— Killian, o que está havendo? — sussurro.
— Aquela mulher é a Superintendente da TPS[39].
— O quê? — minha exclamação sai engasgada.
Olho para o rosto sério de Killian, sua língua passando pelos dentes superiores pouco
antes de pegar sua faca e passar a abri-la e fechá-la. Seu pé salta no chão de forma rítmica, e
acabo colocando a palma sobre seu joelho para tentar acalmá-lo.
Eu não sei o que está acontecendo aqui, mas a presença daquela mulher parece ter
desestruturado cada um presente no lugar. O ar brincalhão de Killian se foi deixando Hunter no
lugar e toda sua concentração predatória.
As alianças são trocadas e logo estão assinando o livro. O padre diz o famoso “são marido
e mulher, agora pode beijar a noiva” ao mesmo tempo em que o som de tiros soa do lado de fora.
Uma janela estoura, alguém grita. A mão de Killian se enrola ao redor do meu pulso, suas
palavras concretizando o que acontece ao redor:
— Estamos sendo atacados!
“I'm the baddest mother up in here
And I'm about to make it clear
It's going down like I told ya
I'm the baddest mother up in here”.
(Dangerous, Royal Deluxe)
Em todo caos precisa existir cálculo.
Os tiros soam do lado de fora, minha mão segurando o pulso de Kraisee de forma
instintiva. Eu o puxo comigo para o chão, a capela sendo ridiculamente minúscula e sem lugares
para se esconder além dos bancos vazados e duas salas nos fundos. Quando Mikhail me deu a
localização do lugar, tentei estudar sobre possíveis rotas de fuga.
Não encontrei muitas.
— Onde está a arma que te dei essa manhã?
Kraisee leva sua mão até as costas, trazendo com ele a pistola 9mm. Ele a segura com
eficiência, verificando se as balas estão no pente e então a carrega, seu dedo pairando no gatilho
ao manter a atenção. Toda essa ação conseguiu me deixar duro pra caralho. Kraisee manuseando
uma arma só não é mais quente do que com uma faca.
Estalo o pescoço ao pegar a pistola e fazendo a verificação, quando Mikhail cai sobre um
joelho ao meu lado. A porta da frente se abre com força quando um dos nossos homens é jogado
por ela. Os tiros ficam mais altos, as pessoas dentro da capela se esgueirando pelo chão para
escapar das balas errantes.
A risada baixa ao meu lado arrepia minha espinha e ranjo os dentes ao sentir o cano da
arma ser empurrado na minha cabeça.
— Não tenho tempo pra essa merda, War — rosno.
— Saudades, Rapunzel? — War se ergue, acertando dois tiros em um dos homens que
entra pela porta quebrada. Ele agacha outra vez, olhando na direção de Kraisee e assobiando. —
Seu belo gato de olho puxado sabe mesmo empunhar uma arma.
Empurro-o para sair do caminho e agarro a parte de trás do terno de Kraisee e o puxo
comigo para a lateral do banco. Levanto, chutando o banco deitado para o assento formar uma
barreira mais segura. Kraisee resmunga, erguendo o braço e atirando algumas vezes quando mais
homens surgem pela porta.
Enfio a mão no bolso para verificar se minha faca está ali, sentindo as outras amarradas
em minhas pernas. Há gritos de comando do lado de fora, assim como aqui entro. Nevan se
arrasta pelo corredor como se fosse um militar em campo de guerra.
E talvez estejamos em um realmente.
— Seu irmão está estranho — Kraisee resmunga, batendo suas costas no banco e olhando
para mim. — Explicação?
— Mikhail tem TDI. Existe uma segunda personalidade desenvolvida e ele não é o
mesmo agora. — Olho a tempo de ver War enfiando a mão no bolso do terno e tirando uma
granada de lá. Sério isso? — Pizdúí! Não acredito que meu irmão carrega essas merdas com ele!
— Orlov é um homem prevenido. — War pisca, puxando o pino da granada com os
dentes e atirando a peça pequena pela porta.
— Caralho! — Ouço Kiam exclamar pouco antes da granada explodir do lado de fora.
Um carro tem o alarme acionado, o som de fogo crepitando chegando até nós enquanto
War ri como um lunático. Ele beija as pontas dos dedos e os ergue no ar.
— Magnifique.
Grunho, pegando Kraisee pelo braço e indicando os fundos com o queixo.
— Preciso que você saia por trás e fique seguro.
— Pensei que já havíamos tido essa conversa sobre eu não deixar você sozinho? —
Kraisee diz com ênfase.
— Lembro. E você tem a merda de um curativo no seu braço pela teimosia. — Aponto.
— Tão fofo os dois pombinhos brigando. — War pega um dos arranjos do corredor e atira
contra o homem na porta. — É por isso que não me apaixono. Não posso ter essas fraquezas.
Bufo, pegando uma das facas na canela e atirando no homem esgueirando na janela
lateral.
— Você não se apaixona porque não tem coração, seu psicopata do caralho.
— Você está me elogiando, Rapunzel? — War ri, se escondendo atrás de outro banco.
— Estamos cercados, porra, e vocês estão discutindo sobre relacionamentos? — Nevan
retruca do seu lugar mais à frente, atirando.
— Somos uma família peculiar — falo, dando de ombros. Viro pra Kraisee, vendo suor
escorrendo por sua têmpora. — Eu tenho suas costas, Advogado. Você tem as minhas?
Ele assente prontamente.
— Vamos acabar com essa merda, então. E a chefe? — pergunto a War.
— Segura!
Os filhos da puta continuam surgindo pela porta como malditas pragas. Onde estão nossos
homens e os do Mitchell? Todos foram mortos do lado de fora? Nós seguimos atirando,
recarregando nossos pentes a cada rodada e migrando para os fundos da capela.
— Há uma rota de fuga nos fundos?
— Uma porta que dá para o jardim! — Nevan atinge um homem no nariz e atira em outro.
Empurro Kraisee na direção do altar e para a porta. Um tiro rasga minha coxa e outro
atinge a parede atrás da minha cabeça. Vejo o exato momento em que uma bomba de fumaça cai
no corredor, nublando minha visão rapidamente. Pego War pela gola e aponto para Kraisee.
— Mantenha ele seguro. Eu vou atrasá-los.
— Quer bancar o herói, Rapunzel? — War sorri, pegando Kraisee pela cintura e o
jogando sobre o ombro.
— O quê? Não! Killian, não! — Kraisee exclama enquanto War o carrega para os fundos.
A voz de Kraisee soa mais distante e continuo atirando cegamente até que não me resta
mais balas. Parto para usar os punhos e minha faca. Eu a pego do bolso, girando pelo caminho e
atingindo quem encontro pela frente. Sangue respinga no meu rosto e roupa, meu corpo pulsando
adrenalina e me fazendo caminhar pelo corredor estreito. Nevan surge entre os bancos e a névoa,
sangue escorrendo da sua têmpora.
Deixo um rastro de corpos atrás de mim, meu peito ofegante enquanto ouço Kraisee
continuar me chamando, mais distante agora. Limpo sangue da bochecha com as costas da mão,
pronto para correr para os fundos e sumir daqui, apenas para sentir algo duro chocando contra
minha nuca.
Meus olhos reviram e eu apago.
*
O pulsar latejante em minha nuca é a primeira coisa que sinto quando desperto. A dor
rasteja pelo meu pescoço, ecoando dentro da minha cabeça como se fosse um tambor. Com os
olhos fechados, analiso minha situação.
Pulsos e pés amarrados, meu corpo preso a esta cadeira desconfortável. Não há venda nos
meus olhos, mas há uma mordaça. Minha barriga dói, o que me diz que fui chutado enquanto
estava desacordado. Minha coxa arde pelo tiro mais cedo e me sinto levemente zonzo. Talvez
pela pancada na nuca ou pela perda de sangue. Ou ambos.
Meus ouvidos captam o som de passos pesados e uma discussão. Mantenho meus olhos
fechados e inertes, minha respiração estabilizada. A voz de Mason – mesmo que eu não queira –
acaba soando em minha mente, me dizendo para acalmar o coração e respirar. Relaxar os
membros.
Ou você finge direito, ou sua morte será real.
Assim, mantenho minha cabeça mole, tombada com o queixo no peito. Os passos se
aproximam, ecoando pelo ambiente. Estou dentro de um galpão? Ou seria uma garagem?
— Então? Conseguiram matar aquela vadia?
A voz envia um alerta vermelho pro meu cérebro, porém, mantenho-me quieto. Mesmo
sem abrir os olhos, reconheço a voz de Ray Warden.
— A Pops escapou, Conquistador, mas pegamos alguns capangas dela e do Mitchell. — A
voz de Argo me faz querer trincar os dentes com raiva.
— Esse aqui?
— O infame Executor dos D’Angeles — Argo diz com certo asco nas palavras. — Eles o
chamam de Hunter.
— Então, esse patife é o tal do Hunter? — Sinto seu corpo se aproximar e se inclinar
sobre mim. — Não parece grande coisa. Tem certeza de que é ele? Afinal, meu filho parecia bem
estragado quando o encontrei no hospital.
— Certeza absoluta. — Sinto Argo dar a volta na minha cadeira e segurar o encosto. —
Esse vagabundo arrogante sempre está presente nas trocas de mercadoria. Fiquei sabendo que ele
estava dormindo com seu filho mais novo.
— Kraisee não é meu filho — cospe. — Aquele moleque inútil. Eu sabia que ele seria
fraco como o pai dele. Devia ter matado a criança junto e evitar essa dor de cabeça e tudo o que
já gastei com a educação dele.
As peças começam a se encaixar e eu quase rio da ironia do destino. Por isso Baumer
nunca encontrou o nome de Kraisee em nenhuma casa de adoção. Porque ele nunca esteve em
uma. E o Conquistador, o homem que tem estado estragando a porra do nosso negócio há meses,
é ninguém menos que o pai de Kraisee. E com a ajuda do traidor do Argo.
Que divertido.
O porco escroto que trata meu precioso Advogado como um pedaço de bosta na sola do
seu sapato é o homem que tem deixado a Pops tão irritada. Acho que terei um prazer maior em
matar esse filho da puta.
— Esse homem não tem utilidade para mim. Mate-o e certifique-se de que ninguém
encontre o corpo. Queime-o se for possível. E, depois, eu quero a cabeça daquela vadia em uma
bandeja de ouro e todo o território dela.
— Combinamos que trinta por cento seria meu.
Ray fica em silêncio, aquele metódico silêncio para causar desconforto no outro. Um
método que não funciona para mim. Ouço seus passos e seu corpo paira sobre o meu,
provavelmente falando muito próximo de Argo.
— Não sou um homem de quebrar acordos. Não esqueci o que combinamos. Sua parte
será entregue. Agora despeje o lixo.
Seus passos se afastam enquanto Argo reclama baixinho sobre ficar com o trabalho todo.
Sinto as mãos sobre mim, tirando a corda do meu tronco e me movendo para o chão. Meus
pulsos e pernas estão soltos, um enorme erro de principiante.
Convenhamos, Argo nunca foi inteligente.
— Pega a serra. Eu quero picar esse idiota como o pedaço de porco que ele é.
Tento contar pelos passos quantos homens devem estar ao meu redor. Talvez cinco, seis?
Ou mais? Mantenho os olhos fechados quando a mordaça é tirada e alguém chuta minhas pernas.
É fácil bater no cão quando ele está desacordado, não é? Não consigo evitar o sorriso e abro os
olhos, encontrando Argo muito ocupado olhando para seu telefone.
Realmente, um principiante.
O homem ao lado ofega ao perceber que estou acordado, mas é tarde. Apesar dos
machucados, levanto com agilidade e bato no homem mais próximo, tirando dele sua arma. Argo
ergue os olhos para mim, surpresa estampada em sua cara feia.
— Surpreso?
Uso o corpo do homem como escudo quando os tiros começam e me desfaço de três deles
com a arma emprestada. É uma grande porcaria, mas dá para o gasto.
— Inferno, Hunter! Você não pode apenas morrer?!
— E te dar esse gostinho? Nem pensar!
Descarto o corpo do homem e atiro nos outros antes de entrar atrás de uma pilastra.
Definitivamente estamos em um galpão. Talvez na cidade industrial ao norte? Apalpo meu
corpo, procurando minhas facas, e grunhindo ao não encontrar nenhuma. Ergo a perna,
resgatando uma de dentro do sapato que ninguém se atreveu a olhar.
Não é confortável, mas com o tempo você aprende a ignorar.
Me inclino, atirando as últimas balas da arma e atingindo mais dois homens. Argo se
mantém protegido, saindo apenas para atirar. E que péssima mira ele tem.
— Não tem como você sair daqui de dentro, Hunter! Há homens do lado de fora! Muitos
para apenas um homem como você!
Corro até outra pilastra, pegando duas armas pelo caminho e verifico seus pentes. Estalo o
pescoço, erguendo as armas em ambos os punhos e sorrio.
— Eu vim para esse mundo gritando, chutando e coberto de sangue. Não vejo problema
algum em sair daqui da mesma forma.
Assim, saio de trás da pilastra e atiro em todas as direções, eliminando cada homem
dentro daquele galpão. Argo solta um grito esganiçado quando atinjo sua coxa e ele cai no chão,
segurando a ferida e me olhando com fúria.
Pego a arma que ele deixou cair e engatilho, acertando sua outra perna. Ele grita, um som
tão delicioso aos meus ouvidos. Engatilho mais uma vez, acertando seu ombro. Argo respira
fundo e rápido, suor encharcando sua testa. Agacho de cócoras ao seu lado, sua própria arma
contra sua têmpora.
— Você vai morrer, desgraçado — vocifera, cuspindo na minha bochecha.
Limpo com meu punho, meu rosto pairando acima do dele.
— Todo mundo morre. É só uma questão de como e quando[40]. Você, no caso, será hoje e
com uma bala na cabeça da sua própria arma. Não parece poético?
— Desgraçado, filho da pu...
Aperto o gatilho, explodindo sua cabeça. Sangue espirra no meu rosto e frente da camisa.
Olho para o tecido preto e sorrio, lembrando de quando expliquei para Kraisee o motivo de
sempre estar de preto.
Levanto, espanando a sujeira da calça e exalo. A porta se abre, revelando mais homens
empunhando suas armas. Estalo o pescoço, puto por estar aqui e não saber se Kraisee está a
salvo.
Foda-se.
Vou matar cada um nessa porra de lugar, escalar sobre seus corpos se for preciso. Estalo o
pescoço, começando a atirar. Espero que meu Advogado não se intimide ao me ver pingando
sangue quando finalmente conseguir sair daqui.
“These chains will not hold me down
They’ll break and fall to the ground
Can't tame these lions inside”;
(Lions Inside, Valleu of Wolves)
— Não podemos deixar o Killian lá!
Luto contra as mãos de Mikhail, apenas para ele me bater contra a lataria do carro e me
olhar de modo furioso.
— Não é apenas Rapunzel que está ficando para trás, pirralho, mas também muitos dos
nossos homens. Isso é uma fodida guerra e alguns irão morrer. — Mikhail abre a porta do carro e
me joga sobre o banco traseiro. — Não consegue conviver com isso? Problema seu.
Ele bate a porta, me deixando boquiaberto. Luto contra a maçaneta, apenas para perceber
que ela está trancada e Mikhail senta atrás do volante, acelerando para longe da capela. Vejo pelo
vidro traseiro que ainda há homens atirando, correndo para seus carros e levando alguns corpos
para dentro de SUVs.
Avanço entre os bancos, caindo sentado no banco do carona e vociferando:
— Como pode fazer isso com seu próprio irmão? Killian confiava em você!
Mikhail bufa, me olhando com uma certa pitada de loucura em seu sorriso e olhos
brilhantes.
— Aquele frouxo é irmão do Mikhail, não meu. Eu quero mais é que ele se foda.
Isso é... estranho.
Então, me lembro de Killian dizendo que Mikhail possui TDI. Uma dupla personalidade?
Olho para o homem ao meu lado, dirigindo como um maldito louco pelo trânsito, seu sorriso
permanente no rosto.
Killian o chamou de War?
Não consigo decidir o que é mais assustador: a carranca sombria e pensativa de Mikhail;
ou o sorriso insano que essa personalidade tem agora.
— Você não é o Mikhail, certo?
Ele me olha, girando o volante ao mesmo tempo e entrando em uma bifurcação. Buzinas
soam atrás de nós, mas esse homem não parece nem um pouco preocupado que acabemos em um
acidente.
— Você aprende rápido, não é? Como é seu nome mesmo, Toy?
Enrugo o rosto com o apelido e cruzo os braços, olhando sobre o ombro, mesmo sabendo
que não tem mais como ver a capela.
— Kraisee.
Olho para War, vendo-o assentir.
— Veja bem, Toy, a vida na máfia é uma grande merda. Se você não é fodido quando
criança, você se fode quando adulto. — Ele encolhe os ombros, soltando uma risada baixa meio
descontrolada. — A gente acaba fodido de qualquer forma, e nem é legal.
— Que tipo de pessoa insana é você? — questiono mais para mim, como uma pergunta
reflexiva.
O carro derrapa no estacionamento de pedriscos do galpão no porto e War desliga o carro,
me olhando ao apoiar o braço sobre o volante. Suas sobrancelhas estão levantadas e seus lábios
estão curvados em um sorriso sem dentes, enrugando a cicatriz em sua bochecha.
— Eu sou o lado divertido do Mikhail. Você gostaria de me conhecer melhor?
— Nem sob tortura — murmuro.
Seus olhos cerram levemente, seu sorriso se tornando tirano. A ponta de sua língua
aparece, pressionando contra a ponta do seu canino enquanto me analisa minuciosamente.
— Não me tente, pirralho. A minha tortura seria partir você ao meio e me banhar no seu
sangue e entranhas enquanto gozo. — Seu corpo inclina na minha direção, inspirando
profundamente. — E gostar de cada maldito segundo.
Comprimo os lábios, sentindo meu corpo tremer com puro terror. Definitivamente, eu
tenho muito mais medo desse lado do Mikhail. Saio do carro sentindo meus joelhos trêmulos e
inspiro, endireitando os ombros para não deixar que War veja que me atingiu.
Cruzo os braços, seguindo-o para dentro. Um carro de luxo estaciona não muito longe,
Pops saindo pela porta traseira e pisando duro sobre os pedriscos. Não sei como ela não torceu o
pé com esse salto. O vento da noite chicoteia meu cabelo quando ela me olha e então passa o
olhar sobre meu ombro, provavelmente sobre Mikhail.
O marido da Pops sai pela outra porta e Antenor Mitchell sai do banco do passageiro
ajeitando seus cabelos e o terno. Sequer parece que acabaram de sair de um tiroteio.
— Preciso colocar você na sala de contenção, War?
Olho para Mikhail parado com o ombro encostado na parede, seu sorriso cínico para a
Pops.
— Você gostaria, não é?
Pops grunhe, olhando de volta para mim.
— Hunter?
Engulo em seco, balançando a cabeça.
— Ele me jogou para War e ficou para trás.
Pops lambe o lábio inferior, mordendo em seguida. Seus olhos parecem sérios e suas
narinas se abrem com a respiração forte. Ela nem mesmo está com um casaco nesse frio.
— E você o deixou lá com muito bom grado, estou certa, War? — sua voz reverbera pelo
lugar.
War dá de ombros, não parecendo muito interessado.
— Sempre podemos encontrar outro Executor. Eu, por exemplo, me candidato à vaga.
Pops bufa.
— A sua sorte de não ter sido enforcado ainda é porque Mikhail é muito valioso para
mim, War. Porque você sempre faz a porra de uma bagunça quando aparece!
— A senhora não parece ter muito controle sobre seus homens — O homem fala ao se
aproximar, abotoando seu terno.
— Cale a porra da sua boca, Antenor. Eu casei com seu filho e temos uma aliança, mas
isso não quer dizer que você manda em mim. — Pops afunda o polegar em seu peito. — Por aqui
as coisas não funcionam dessa maneira.
Antenor ergue as mãos na altura dos ombros, mas seu rosto não parece convencido.
Esfrego minha nuca, olhando para Pops.
— Hunter vai voltar, certo?
Seus olhos caem sobre mim.
— Eu não sei. Ainda estou tentando entender como conseguiram nos encontrar lá. Ou
temos um traidor entre nós ou estamos sendo seguidos.
— Eu voto no traidor. — War aponta para mim com o queixo.
Bufo com descrença.
— Não sou um traidor! Hunter nunca me deu a localização do lugar!
— E Nevan? Alguém o viu? — O marido da Pops, que eu preciso descobrir o nome,
questiona com urgência na voz.
— Se tivermos sorte, ele está morto — War sentencia do seu lugar.
Deuses amaldiçoados, quando Mikhail irá voltar para esse pé no saco apenas ir embora?
Mais carros se aproximam, seus faróis nos iluminando. Olho, esperançoso, que Killian
salte de algum. Espero, olhando um por um até que a última porta seja aberta, porém, não há
nenhum sinal de Killian. Esfrego minha têmpora, olhando para Nevan sendo carregado, sangue
descendo pela lateral do seu rosto de uma possível pancada na cabeça.
Sigo todos para o lado de dentro e passo a andar de um lado para o outro, roendo o canto
da unha do meu polegar. Em algum momento, War se foi, deixando um atordoado Mikhail no
lugar. Já é tarde da noite quando me canso de ficar andando em círculos.
— Chega! Estou indo procurar pelo Killian! Ele deve estar em algum lugar!
Mikhail passa a mão por seus cabelos, parecendo extremamente cansado.
— E vai procurar onde? Vai voltar para a capela e farejar como um cão?
— Bem, pelo menos vou estar fazendo algo ao invés de continuar aqui sentado!
Ele me olha, cruzando os braços.
— Você sequer se sentou nas últimas horas. Não pode reclamar que ficou parado.
— Achei!
Viro para encontrar um homem baixo correndo entre as mesas e caixas com um tablet
preto na mão. Ele derrapa ao parar perto de Mikhail e aponta para a tela.
— Aqui. Se ele ainda estiver com o celular, deve estar bem aqui.
— Do que vocês estão falando? — Me curvo sobre o ombro de Mikhail, olhando para a
tela com um mapa preto cheio de linhas verdes, vermelhas e azuis.
Um pequeno ponto branco brilha na parte oeste da cidade, perto das pistas particulares de
avião.
— Certeza, Baumer? — Mikhail, pergunta, se levantando.
— Absoluta. Se tiraram o telefone do Hunter ou não, ele está localizado ali.
— Qual o endereço?
— Perto da Kingsway. Vai ter um galpão escrito Airlines Lombton.
Tudo ao meu redor se torna mais lento. Minha mente me leva semanas atrás na minha
memória, e logo surgindo clara diante meus olhos. O mesmo nome. Lombton. Tropeço para trás,
me sentindo enjoado. A mão de Mikhail envolve meu cotovelo, me amparando de pé.
— Tudo bem?
Assinto, negando em seguida.
— Eu... Acho...
— Você deveria descansar. Se Hunter estiver nesse galpão, nós o traremos de volta. Seja
vivo ou...
Olho para o rosto sisudo de Mikhail, ele não gostando disso tanto quanto eu.
— Fique dentro do galpão até nós voltarmos, ok? Não saia daqui. — Mikhail me faz
sentar em um banco e pega seu terno da cadeira antes de sair caminhando, chamando alguns
homens com ele no caminho.
Passo a mão pelo cabelo, me sentindo perdido. Por que Hunter estaria em um galpão com
o mesmo nome do contrato do meu pai? Isso poderia ser uma grande coincidência, não é?
“É por isso que você não sabe nada de verdade sobre nós!”
“Nossa família não é convencional e você não nos conhece!”
A voz de Max ecoa na minha cabeça, martelando meu cérebro e misturando com a
informação que recebi minutos atrás. Eu não conheço a família que me adotou. Eles sempre me
mantiveram perto, mas não tão perto assim. Sempre em uma guia de distância confortável. Me
enviando para trabalhos designados e nunca me dizendo ao certo o que acontecia com quem não
pagava.
O que nós realmente exportamos?
O que Maxwell faz da vida além de treinar?
Quem é Ray Warden?
As perguntas giram na minha cabeça, me dando náuseas. Levanto, trôpego, e caminho
para fora do galpão. Olho pelo estacionamento, encontrando uma moto com a chave na ignição.
Eu não sei como se dirige uma moto, mas deve ser como um carro, correto?
Sento sobre o banco de couro e giro a chave, apertando a ignição e o motor rugindo.
Alguém grita, o som se misturando ao barulho do cascalho girando. Saio com o pneu derrapando,
meu estômago caindo e meu coração batendo na boca. Acelero, entrando na rodovia
movimentada e sigo a toda velocidade para a Mansão dos Warden.
Quando subo o caminho da entrada e contorno o chafariz, eu mal desligo a moto e baixo o
pezinho, descendo com joelhos trêmulos e dedos nervosos. Engulo com dificuldade, subindo os
degraus da escada da frente e entro pela porta, gritando:
— Ray! Ray Warden! Onde você está?! Ray Warden!
Corro pelos cômodos, a casa vazia e silenciosa. Quando chego ao segundo andar, Caitlin
sai de dentro da pequena sala de pintura com sobrancelhas arqueadas.
— Mas que escândalo todo é esse, Kraisee?
— Onde ele está? Onde aquele mentiroso está? — pergunto, ainda correndo pela casa,
procurando pelo homem que mentiu para mim a vida toda.
Desço as escadas para o primeiro andar outra vez e vejo Ray passando pela porta, seguido
por Maxwell. A cara dele parece muito estragada. Seu nariz foi colocado no lugar e está inchado
e ambos os olhos estão roxos. Seu lábio tem um corte e há escoriações pelas bochechas.
Marcas dos anéis de Hunter.
— Por que você está gritando como um louco, garoto?
— Airlines Lombton — digo sem fôlego. — O senhor comprou essa empresa?
Sua sobrancelha arqueia, cruzando os braços.
— Me foi dada como garantia. O dono não me pagou. Agora, ela é minha. — Seus olhos
duros me fitam. — Por que quer saber?
— Você... Vocês... — Aponto para ele e então para Caitlin no degrau da escada. — O que
mais vocês escondem de mim?
— Tanta coisa — Max murmura.
Ray olha para Max.
— Você disse algo a ele?
— Apenas algumas verdades. — Max dá de ombros. — O idiota nem sabe que eu
participo de lutas clandestinas! Você o manteve cego por muito tempo, pai.
— Um bom cão é aquele que obedece sem fazer perguntas, Maxwell. — Ray balança a
cabeça com desapontamento e me olha. — Garoto, nada do que você souber agora, vai mudar
seu passado.
“Se você foi adotado, por que não encontramos o nome dos seus pais adotivos? E por que
não há nada sobre você em um orfanato?”
A voz de Hunter ecoa na minha cabeça, fazendo meu estômago apertar ainda mais.
— Vocês realmente me adotaram? — me vejo perguntando.
Ray me olha, e há um leve pesar em suas íris. Um pouco de pena também.
— Infelizmente, seu pai morreu com um tiro na cabeça. Assim como sua mãe. Acho que
sua mente, traumatizada, deve ter bloqueado a lembrança. Você tinha apenas cinco anos.
Flashes perdidos embaralham minha cabeça.
Uma mulher implorando, tiros.
Meus olhos observando por entre meus cabelos.
Uma mão ensanguentada caída perto dos meus pés.
Nítido, o rosto de Ray Warden surge nas minhas lembranças. Um chapéu sobre sua
cabeça, uma arma em sua mão. Respingos de sangue em sua jaqueta.
Meu estômago revira e vomito no chão. Suor frio cobre minha testa e espinha quando
limpo minha boca com o dorso da mão, olhando para Ray e seus olhos frios e apáticos. Max tem
seu rosto torcido com nojo.
— Eu lembro... de um quarto. Uma mulher cuidando de mim. Então havia mais crianças.
Lembro do orfanato, eu...
— Eu instruí que os empregados fingissem ser um orfanato. Aqueles pirralhos piolhentos
eram filhos dos meus empregados. — Ray exala pesadamente. — Sempre um grande trabalho.
Eu deveria ter atirado em você também ao invés de ter sentido pena.
A cada palavra dita por sua boca, uma estranha calma se apodera sobre meus membros. A
arma que Killian me deu mais cedo pesa no meu cinto na parte de trás, queimando.
— Você atirou no meu pai por dívida? — pergunto amedrontado.
— Ele precisava de dinheiro, como muitos infelizes precisam quando migram para os
Estados Unidos. Seu pai mal conseguia pagar as contas trabalhando ilegalmente lavando pratos
em um restaurante de quinta. — Ray sorri. — Eu poderia ter comido sua mãe na frente dele se
isso perdoasse a dívida, e ele teria aceitado.
Fecho a mão em punho, vendo o verdadeiro Ray na minha frente. Manipulador, frio e um
monstro. Um verdadeiro monstro. Movido pela ganância e não se importando com os outros.
Olho por sobre o ombro, para a mulher que me fazia chamá-la de mãe, com seu semblante rígido.
— Caitlin sabia de tudo?
— A ideia inicial era te jogar em um buraco qualquer para alguém cuidar, mas ela insistiu
para ficarmos com você. Acho que ela sentia falta de um bicho de estimação exótico para cuidar.
— Mandar Maxwell me punir constantemente era como uma vingança por ter ficado
comigo?
— Digamos que no começo eu não me importava se Max batia em você ou não. Era como
um treino, na verdade. — Ray coça o queixo, pensando. — Ele te batia e você corria para mim,
como um adorável filhote. Você criou confiança em mim e eu decidi que isso era um ótimo
treinamento. Você estava prosperando muito bem, até encontrar aquele Executor.
Ray balança a cabeça, soando decepcionado. Bom, que ele vá para o inferno com sua
decepção e enfie no rabo. Tiro a arma do cinto e aponto para ele, pegando-o de surpresa. Acho
que Ray não esperava que seu filhote obediente apontasse uma arma para ele, correto?
— Vamos, Kraisee. Você não faria isso comigo, o homem que te criou. — Ray ergue as
mãos na altura dos ombros, sorrindo de modo apaziguador.
A porta da frente se abre e vejo Killian surgindo na soleira. Ele está coberto de sangue e
espero que nenhuma gota seja dele. Volto a olhar para Ray e sorrio.
— Eu não mataria você com um tiro, Ray. Seria muito fácil.
Engatilho a arma e viro sutilmente para o lado, meu sorriso caindo. Puxo o dedo no
gatilho, acertando Maxwell bem entre os olhos, sua cabeça indo para trás e sangue explodindo na
parede e chão quando ele cai.
E nunca me senti tão bem como agora.
“Oh, won't wave my white flag, no
This time I won't let go
I'd rather die
Than give up the fight, give up the fight”.
(White Flag, Bishop Briggs)
Uma hora antes.
Ergo o pé, chutando o filho de uma cadela. Seu corpo voa, caindo do outro lado. Outro
idiota avança sobre mim com uma faca e eu me desvencilho de seu ataque girando seu braço
para baixo e então para trás. Ele grita quando desloco seu ombro e quebro seu pulso.
A faca cai no chão e eu a pego, me sentindo mais leve ao ter uma lâmina em mãos. Meus
músculos estão doloridos e há sangue respingado por cada parte minha. Meus dedos estão
pegajosos depois de afundar os polegares nos olhos de um deles.
Balanço meu braço, meu ombro dolorido e minha coxa latejando. Cuspo saliva com
sangue depois de ter levado um soco no corredor lá atrás. Arregaço minhas mangas e estalo o
pescoço quando vejo a última porta fechada. Deve haver mais quantos homens do lado de fora?
Estou lutando assim há quanto tempo?
Seguro a maçaneta e inspiro, pedindo forças para continuar por mais um pouco até
conseguir a porra de um carro. Puxo a porta, meu punho levantado para atacar, quando dou de
cara com Mikhail. Seus olhos arregalam, dando um passo para trás.
— Kill? — sussurra.
Solto um grunhido ao sair para o lado de fora e ver o pátio vazio.
— Porra. Vocês demoraram pra caralho — resmungo. Há mais alguns dos nossos homens
por perto e dois carros parados no limite da cerca. — Onde está Kraisee?
— Eu o deixei no galpão. — Mikhail me olha e então olha para a porta aberta. — O que
aconteceu lá dentro?
— Deixei alguns corpos para trás. — Passo as costas da mão na barba. — Argo foi um
deles.
Mikhail xinga em russo.
— O que você ouviu?
Uma sombra paira sobre meu rosto quando olho para meu irmão, preocupação e irritação
tomando conta de mim.
— Muita coisa. Preciso encontrar Kraisee. Agora.
Meneio a cabeça, caminhando com pressa até um dos carros e entrando no banco do
motorista. Surpreendentemente, a tensão que sinto é bem pequena em comparação aos outros
dias. Talvez eu esteja cansado demais ou estar confinado dentro de um lugar fechado não seja tão
problemático agora.
Ligo o motor, Mikhail caindo ao meu lado e fechando a porta quando derrapo com os
pneus para sair dali.
— O que você descobriu?
— Argo fez um acordo com o Conquistador. — Pego o pano que Mikhail me entrega,
tirado de dentro do porta-luvas, e limpo meu rosto. — Eles derrubariam a Pops e tomariam todo
o território para eles. O Conquistador com a maior parte, claro, e Argo com trinta por cento.
— Inferno — Mikhail resmunga, esfregando sua boca. — Como você escapou?
Sorrio com frieza.
— Argo foi idiota e pensou que eu estava desmaiado ainda. Ele me desamarrou. E eu
atirei nele assim que consegui colocar minhas mãos em uma arma.
— Que estúpido. — Mikhail balança a cabeça. — Conseguiu ver quem é o Conquistador?
Aperto os dedos ao redor do volante.
— É Ray Warden.
Mikhail fica em silêncio por boa parte do caminho a seguir. Deixe-o ruminar sobre o que
acabei de dizer, analisando toda a situação. Soltando a respiração em uma exalação pesada,
Mikhail me olha.
— Kraisee sabe?
Nego com a cabeça.
— Não. Ainda estou pensando como vou contar. — Passo a mão pelo cabelo, prendendo
os fios na nuca entre meus dedos. — Isso pode destruí-lo.
— Você tem certeza que...
— Não continue essa frase, porra. — Bato o punho no volante e o giro para entrar no
estacionamento do galpão. Quando freio e desligo o motor, viro para olhar meu irmão de frente.
— Kraisee é, de verdade, inocente nessa história. Nós nos cruzamos por acidente naquele dia. Eu
acredito nele, Mik, e você deveria também.
Ele assente, passando a mão pela minha nuca e me puxando até nossas testas encostarem.
Seu aperto dura três segundos antes que me solte e saia de dentro do carro.
Eu entendo.
Eu te vejo.
Confio em você.
Cada segundo coube uma frase, um entendimento. Expiro, saindo do carro e trincando os
dentes para o frio. Agora que a adrenalina baixou, sinto cada músculo dolorido.
— Argh, a gente tá velho — falo, segurando minhas costas e esticando.
— Diga isso por você. — Mik acende seu cigarro, soprando a fumaça na minha cara
quando me aproximo dele.
— Filho da puta — resmungo. — Acha que eu não sei que sua cabeça já tem cabelos
brancos? Você raspa as laterais por causa disso.
— Não sei do que está falando. Corto meu cabelo assim porque é mais fácil. E é estiloso.
— Aposto minha bola esquerda que isso é uma grande mentira. — Bato meu punho em
seu braço, caminhando para dentro do galpão. — Eu já vi os fios, velhote. Os quarenta chegaram
mais cedo para você.
— Continue me chamando assim, e você vai ter um encontro com o cano da minha arma,
Hunter.
Mostro a ele o meu dedo do meio e caminho por entre as caixas. Há pouca movimentação
aqui, mas muitos machucados. Vejo Nevan no canto com um curativo em sua cabeça, assentindo
para Darius em uma conversa que estão tendo. Pops está com Baumer do outro lado, olhando
para um tablet. Meus olhos correm por todo o galpão, não encontrando quem de fato procuro.
— Onde ele está? — murmuro.
Baumer ergue sua cabeça, me encontrando, e acena.
— Ei, Hunter! Algum desse sangue é seu?
Ignorando Baumer, caminho direto para Pops.
— Onde está Kraisee?
Ela pisca, abaixando o tablet.
— Um dos rapazes o viu saindo daqui algum tempo atrás, parecendo terrivelmente
abalado.
— E ninguém o parou? — rosno.
Bato a mão em meus bolsos, rosnando ao lembrar que fui despojado de tudo. Minhas
chaves, telefone e faca ficaram no galpão, perdidos.
— Ele montou em uma moto e saiu pela noite. — Pops arqueia as sobrancelhas. — Não
sabia que havia uma ordem de restrição para mantê-lo preso aqui.
— Pizdúí. — Puxo meus cabelos, apontando para Baumer. — Eu coloquei um rastreador
no telefone dele. Procure. Agora!
Baumer assente, pegando o tablet e digitando rapidamente. Números surgem na tela,
códigos e mais códigos no programa.
— Hunter, o que está acontecendo?
— Mikhail vai te explicar tudo — digo, me inclinando sobre Baumer batendo os dedos no
tablet. O ponto branco surge no bairro chique de Toronto. — Droga, o que ele está fazendo lá?
Saio correndo do galpão, entrando novamente no carro e saio em direção à Mansão
Warden. Por que Kraisee iria até lá? O que ele ouviu que o fez ir até a casa dos seus pais?
Corto pela cidade com pressa, avançando sinais vermelhos e passando por cruzamentos.
Entro no bairro chique, ignorando o guarda na entrada e passando voando pela cancela do
condomínio. O carro derrapa na curva, subindo a estradinha inclinada que leva até a frente da
Mansão. Paro o carro atravessado, vendo a moto que usamos no galpão estacionada perto dos
degraus.
Subo correndo até a porta e a abro, encontrando Maxwell e Ray de costas para mim, com
Kraisee de pé apontando a arma na direção deles. Seus olhos, mortos, me observam por poucos
segundos antes de sorrir friamente. Sua mão vira ligeiramente para o lado, o dedo puxando o
gatilho. O som do tiro reverbera pela casa, unido ao grito agudo da mulher na escada.
Caitlin cobre a boca com as mãos, olhos arregalados ao ver seu filho caído no chão, seu
sangue manchando as paredes limpas da sua casa. Limpo o pequeno pedaço do cérebro que
espirrou na minha bochecha quando Kraisee engatilha a arma mais uma vez e vira de costas para
mim.
Sem aviso, ele atira. Caitlin solta um som engasgado e cai nos últimos degraus, seu
corpo torto parecendo uma boneca de pano. Ray, como um patife covarde, solta um grito
engasgado antes de correr para os fundos da casa.
Kraisee deixa seu braço cair ao lado da coxa, sua voz morta ao comandar:
— Pegue e o traga para mim.
Olho para ele, percebendo que a chave em seu cérebro desligou, seus demônios
completamente no comando agora. Um sorriso parte meus lábios, meu sangue acendendo com o
simples comando de sua voz e a necessidade de caçar. Meus pés me impulsionam para gente, me
levando pela casa, seguindo o som dos passos pesados de Ray e sua respiração ofegante. A casa
é um labirinto, mas tudo se torna um grande eco por ser tão grande e vazia.
Um tiro soa na frente da casa, e imagino que o segurança noturno me seguiu até aqui e
Kraisee decidiu acabar com as testemunhas.
Porra, Kraisee assassino é minha mais nova obsessão.
Mesmo que eu goste dos seus olhos de chocolate Hummingbird derretendo com desejo,
vê-los mortos e tão frios mexeu com algo sombrio dentro de mim. Tiro meus pensamentos de
Kraisee quando vejo a sombra de Ray saindo pelos fundos, em direção ao jardim. Apresso meus
passos, correndo mais rápido e o alcançando perto da piscina.
Salto sobre ele, nós dois rolando pela grama úmida. Bato meu cotovelo em seu rosto,
atordoando-o, e o viro de bruços, afundando meu joelho em suas costas. Ray grunhe e se debate
quando torço seus braços para trás e o puxo de pé, empurrando-o de volta para dentro da casa.
— Isso não vai ficar assim. Eu vou acabar com a vida de vocês dois!
— Da forma como Kraisee está, Warden, duvido muito que você saia vivo dessa.
Volto com Ray para a frente da mansão, vendo que Kraisee puxou Maxwell e Caitlin para
ficarem lado a lado no hall. O segurança noturno está sentado desajeitado, o buraco em seu peito
sangrando. Ray tropeça com a visão de sua mulher e filho mortos na entrada da sua casa tão
impecável.
Há algo bonito nessa bagunça sangrenta. Tudo tão branco manchado de vermelho e partes
cinzentas de encéfalo. Kraisee acena para eu segui-lo até uma porta lateral, abrindo para um
escritório escuro e de móveis pesados. Kraisee puxa uma cadeira de mogno com estofado
vermelho e acena para que eu coloque Ray ali. Ele pega as abraçadeiras de nylon, o que me faz
arquear a sobrancelha.
— Onde você conseguiu isso?
— Ray sempre guarda isso na última gaveta da mesa. — Dá de ombros.
Ele amarra os pulsos de Ray nos braços da cadeira e então seus pés. A todo momento,
Kraisee não esboça muita coisa. Seu rosto está congelado, olhos castanhos frios e movimentos
calculados.
— Você pode, por favor, pegar alguns utensílios na cozinha?
Apoio as mãos na cintura, olhando-o.
— O que está pensando?
Kraisee cruza os braços, sorrindo de uma forma que nunca o vi fazer. A expressão poderia
chocar uma pessoa desconhecida, mas não a mim. Entendo muito bem o que ele pode estar
sentindo agora. A euforia de rasgar alguém em pedaços pequenos e se divertir com isso.
Quer dizer, pelo menos eu estou eufórico.
— Você gostaria de me ensinar a arte da tortura?
Inspiro profundamente, pegando o rosto dele na minha mão e o puxando para mim. Eu o
beijo, rosnando contra sua boca.
— Ad, você vai me deixar duro assim, Advogado.
— Me solte, Kraisee, seu moleque! Uf!
As costas da mão de Kraisee se chocam contra a bochecha de Ray, lançando seu rosto
para o lado com o tapa brusco. Ele vira para mim, apontando para fora do escritório.
— Primeira porta à direita. Pegue tudo o que acha que vai precisar.
Assinto, deixando um último beijo nele antes de sair dali e ir para a cozinha. Lá, abro uma
das gavetas e encontro o faqueiro. Ergo o cutelo no ar, analisando sua lâmina afiada.
Isso vai ser divertido pra caralho.
*
O grito de dor só não é mais alto porque Kraisee enfiou um pedaço de pano na boca de
Ray. Nós não queremos que os vizinhos interfiram ao chamarem a polícia. Já basta o som de
tiros. Normalmente, vizinhos e bairros chiques assim não costumam cuidar uns da vida dos
outros. Eles apenas... ignoram.
Olho para o pedaço de unha que tirei, franzindo as sobrancelhas. Kraisee está sentado
sobre a mesa, braços cruzados e olhos atentos sobre seu pai agonizando. Ele não desviou o olhar
por um único segundo. Nem mesmo quando enfiei pedaços de arame que encontrei, por baixo de
suas unhas. Ou quando usei o isqueiro para esquentar a ponta da chave de fenda e enfiei devagar
em sua palma.
Kraisee sequer esboçou uma careta quando tirei um olho de Ray com uma colher e uma
faca de corte de peixe. Foi bagunçado, Ray gritou muito e se retorceu, desmaiou na metade e
acordou depois que eu já tinha seu olho dentro do copo. Também deixei que Kraisee o
espancasse por longos minutos antes, deixando seu rosto inchado pelos socos e tapas, o lábio
partido e o outro olho inchado.
Agora que tirei a última unha, olho para o cutelo, pensando em começar a retirar um dedo
de cada vez. Falange por falange. Kraisee pula de cima da mesa, pegando a faca longa e a
olhando brilhando na luz do abajur. Seu rosto continua sem muita expressão, mas vejo o brilho
em seus olhos ao analisar a lâmina afiada enquanto pensa.
— Posso terminar de uma vez?
Pisco, abaixando a pinça.
— Jura? Sequer comecei a brincar de verdade.
Ele sorri, um pouco mais como o Kraisee que conheço, parando ao lado do pai
balbuciando contra o pano em sua boca. Kraisee segura a cabeça calva para trás, deixando a
garganta à vista.
— Ele está agonizando. Sua respiração está rápida demais e já se mijou. Ray tem
problema do coração. Não quero que ele morra antes que eu possa vê-lo afogar no próprio
sangue.
Aponto com a mão na direção do homem.
— Ele é todo seu, Advogado.
Kraisee aperta a lâmina contra o pescoço de Ray e se curva, sussurrando algo em seu
ouvido. Ele tenta se debater, apenas para ofegar quando a lâmina se afunda em sua carne e o
corta de uma ponta da orelha até a outra. O gorgolejo ecoa pelo escritório silencioso e Kraisee dá
um passo para trás, a faca caindo de sua mão e batendo contra o chão.
Há sangue em suas roupas e braços. E ele nunca me pareceu tão bonito quanto agora.
Caminho devagar até ele e o puxo para mim, seu corpo afundando contra o meu com um suspiro
cansado. Esfrego suas costas, esperando que ele quebre agora, já que todo o estresse passou.
Entretanto, Kraisee apenas fica ali, quieto.
— O que fazemos agora? — pergunta, sua bochecha contra meu peito.
— Podemos ligar para a limpeza. Eles virão e farão todo o trabalho, não deixando
nenhum rastro para trás.
— É prático. — Kraisee assente. — Eu pensei em colocar fogo.
Arqueio as sobrancelhas.
— Você quer mesmo que essa mansão se torne uma pira gigante para que toda a Toronto
veja? Seria como acender uma tocha para os Jogos Olímpicos.
Isso tira uma risada cansada dele. Seu rosto se afasta, seus olhos brilhando com satisfação
e cansaço.
— Vamos ligar para a limpeza então.
— Me dê seu telefone. Eu perdi o meu.
Ele pega o celular do seu bolso traseiro e me entrega. Faço a ligação para o pessoal da
limpeza, ajeitando tudo para que o trabalho seja feito rápido e de modo eficiente. Eu o ensino a
se limpar, esfregando o sangue de suas mãos e rosto. Quando eles chegam, nós já estamos
saindo.
Seguro a mão de Kraisee na minha, nossos dedos entrelaçados enquanto mudo a marcha
do carro. Ele expira, sua cabeça batendo contra o encosto do carro e me olhando.
— Nós formamos uma bela dupla, não é?
— Sim, nós formamos. — Beijo sua mão, sorrindo contra sua pele. — Por que você não
torturou Max também? Ele não te batia frequentemente?
Ele encolhe os ombros.
— Max era só mais um fantoche na mão de Ray. Não achei que era necessário. Na
verdade, não queria gastar mais energia lidando com aquele idiota.
Bufo, entendendo-o muito bem.
— O que você disse a ele que o deixou tão agitado no fim?
Seu sorriso é largo quando me olha.
— Para dizer olá ao diabo quando chegasse no inferno.
Minha risada sai baixa, acompanhada da dele. Minha pequena raposa traiçoeira.
As luzes da cidade brilham dentro do carro por poucos segundos, me fazendo ver o
momento exato em que Kraisee adormece. Paro no semáforo, tirando seu cabelo de sua testa,
deslizando meus dedos em sua bochecha. No final, todos nós teremos o que merecemos. Ray
teve sua morte, assim como Max e sua mãe.
E eu encontrei Kraisee. A peça essencial que faltava em mim.
Alguns meses depois.
O sol brilhava fora da janela, o calor do verão fazendo as pessoas correrem no parque ou
sair para chupar um sorvete. Mas não Kraisee e Killian. Eles usavam o dia de calor de uma forma
diferente, e lambendo coisas diferentes.
— Ah!
Kraisee jogou a cabeça para trás, os dedos dos seus pés curvando quando a cabeça de
Killian afundou, levando-o todo dentro de sua boca até a garganta. Kraisee adorava quando eles
não tinham trabalho para fazer durante o dia e podiam aproveitar juntos. Na cama ou fazendo
qualquer outra coisa doméstica e despreocupada.
Como se esquartejar pessoas durante a noite não fosse um trabalho bastante estranho. E
um que Kraisee nunca pensou que poderia fazer e passar a gostar. Aquelas sombras que sempre o
perseguiram, agora faziam parte dele e estava tudo bem assim.
Killian o soltou com um pop molhado, olhando-o com olhos cerrados.
— Preste atenção em mim quando estou chupando seu pau, Advogado.
Sorrindo, Kraisee enrolou os dedos no cabelo loiro ondulado, puxando até Killian soltar
um grunhido e balançar seu quadril contra o colchão.
— Então faça o seu trabalho bem feito, sr. Hunter. E me faça gozar na sua garganta.
O gemido dele foi cortado quando Kraisee voltou seu pau para o conforto quente da boca
molhada de seu parceiro. Eles não se intitulavam como namorados. Parecia algo muito mundano
para descrever o que eles eram.
Espíritos perdidos que se encontraram em meio à escuridão. Duas almas quebradas
marcadas com as feridas de seus demônios, jogando um perigoso jogo de confiança e amor.
Balançando o quadril para cima, Kraisee perseguiu aquela doce sensação de prazer, adorando ver
lágrimas enchendo os olhos do homem que poderia matar sem piscar.
Com um grito rouco, Kraisee gozou no fundo da garganta de Killian, estremecendo ao ser
sugado até a última gota. Engatinhando sobre seu corpo, Killian deixou beijos sobre sua pele até
alcançar sua boca e deixá-lo provar seu próprio gosto em sua língua.
Killian ofegou contra a boca de Kraisee, sua mão movimentando seu próprio pau até
gozar. Seu poderoso corpo caiu sobre Kraisee, esmagando-o parcialmente e sujando suas peles
nuas e suadas com porra. Era sempre assim, um sexo imundo, com ambos lutando pelo domínio
e ambos cedendo no final.
Soltando um suspiro, Kraisee se enrolou contra o corpo maior, afundando o nariz no
pescoço de Killian e respirando seu cheiro. Princesa, a gata gorda e peluda, os observava de sua
luxuosa cabana, comprada apenas para ela.
Sua majestade precisava de um castelo, não é?
Kraisee cochilou por um momento, sendo acordado pelo resmungo de Killian e o barulho
do seu telefone. Tateando ao redor, encontrou o aparelho sobre a mesinha e olhou o visor para
ver a mensagem.
Ainda estou esperando o momento
em que direi “eu te avisei”.
Bufando, respondeu:
Espere sentado.
Estou muito feliz onde estou.
Como estão as coisas em Chicago?
Dominic havia voltado para a cidade natal depois que os corpos de Ray, Maxwell e
Caitlin foram descobertos na casa antiga dos Warden, em um condomínio caro de Chicago. Pela
forma brutal que foram encontrados, a polícia dizia que poderia ser uma possível vingança. Os
negócios da família arruinaram, tanto os legais quanto os ilegais. Seu território simplesmente foi
tomado em questão de semanas, o nome Conquistador afundando como um navio furado.
Dominic viu que seu amigo estava mais do que feliz onde estava, mesmo que não
concordasse com o novo estilo de vida de Kraisee.
Muito bem.
Eu... posso ter encontrado uma garota
muito interessante.
Eu quero ter bebês com ela, Keener.
Sério.
Isso faz Kraisee soltar uma risada alta, acordando Killian.
— O que é engraçado?
— Acho que Dom está apaixonado.
Killian expirou, passando os braços ao redor de Kraisee.
— Sério? Péssimo para ele.
— Oh! Como se você não estivesse perdidamente apaixonado por mim, sr. Hunter!
— Eu? Apaixonado por você? — Killian abre um largo sorriso, genuíno. Um dos poucos
que ele dá a Kraisee quando estão sozinhos. — Sim. Pra caralho.
Kraisee balança a cabeça em negativa. Segurando o rosto de Killian entre as mãos, beijou-
o com calma e suavemente, murmurando contra sua boca:
— “Você pode não ter sido meu primeiro amor, mas foi o amor que tornou todos os
outros amores irrelevantes[41]”.
E Kraisee sabia agora o que realmente importava. E como era se sentir importante para
alguém. Não manipulado. Não influenciado. Compreendido. E ele encontrou tudo isso no
homem conhecido como Executor dos D’Angeles. Um homem cujas mãos estão marcadas por
assassinato, mas confia nelas completamente.
Vou morrer como o herói ou o vilão? No final das contas, Kraisee não se importava mais
com isso. Contanto que Killian estivesse com ele, Kraisee se contentaria sendo um anti-herói, já
que ele não esperava redenção, ou muito menos explicação para a justiça que praticava com suas
próprias mãos.
Como era mesmo aquele velho ditado?
“Quando a vida te dá limões; aperte-os nos olhos das pessoas.”
É, acho que era isso.
Quero agradecer a você, leitor, que acompanhou essa história até aqui. E para todos
aqueles que esperaram todo esse ano de 2023 para ler essa história.
Hunter foi muito difícil para mim. Foram três versões até chegar nessa que existe hoje. E
eu queria ele PERFEITO. Até que eu percebi que Hunter não tinha que ser perfeito. Ele é
quebrado e cheio de imperfeições que tornam ele único.
Quero agradecer toda a ajuda que a Valéria sempre me dá. Puxando minha orelha,
organizando meu texto e tornando-o melhor. Val, você é perfeita e eu amo você, amiga!
Quero agradecer também ao Talys, que me ajudou muito nesses meses. Não me deixou
desistir e surtou junto comigo a cada capítulo. Obrigada pelo carinho e por ter vindo nessa
jornada comigo.
Um grande abraço em cada um de vocês.
E nos vemos na próxima!
[1]
Behavorial Analysss Unit (Unidade de Análise Comportamental).
[2]
Mentes Criminosas. É uma série de televisão dramática e policial americana sobre a BAU (Behavioral Analysis Unit) ou UAC
(Unidade de Análise Comportamental), um esquadrão de elite do FBI, com sede em Quantico, Virgínia.
[3]
Apelido para uma pessoa muito inteligente, nerd.
[4]
Hellraiser 2.
[5]
“Raposa” em russo.
[6]
“Foda-se" em russo.
[7]
“Velha cadela” em russo.
[8]
“Porra” em russo.
[9]
“Filho da puta” em russo.
[10]
”Vai pro caralho” em russo.
[11]
” Inferno“ em russo.
[12]
”Perdedor” em russo.
[13]
Poetisa feminista contemporânea, escritora e artista da palavra falada indiano-canadense .
[14]
“Foda” em russo.
[15]
Desde 2000, oferece produtos para a pele que combinam harmoniosamente ingredientes puros e naturais com um exterior
ecológico.
[16]
Rupi Kaur.
[17]
Fabricantes artesanais de chocolate em Ontário, Canadá.
[18]
”Adeus”, em russo.
[19]
“O que você quer, inferno?”, em russo.
[20]
“Fodendo meu cérebro”, em russo.
[21]
Richard Y.
[22]
“ Você está fodendo com o meu cérebro, raposa”, em russo.
[23]
Rupi Kaur.
[24]
O que você acha, porra?, em russo.
[25]
Exterior, em russo.
[26]
Inferno! Seus malditos sacos e merda!, em russo.
[27]
Adeus, seus bucetas!, em russo.
[28]
A granada de mão soviética F-1, apelidada de Efka (em russo: Эфка) pela letra F. É semelhante a "granada de abacaxi"
americana Mk 2, que também foi modelada na F1 francesa.
[29]
A Ilha do Medo.
[30]
Tão gostoso, em russo.
[31]
Aline Ladvocat.
[32]
Boceta, em russo.
[33]
Irmão, em russo.
[34]
“Um cavalo de casaco” É uma forma pouco amigável de dizer a alguém que não tem nada a ver com um determinado assunto
ou de responder de forma pouco educada quando alguém pergunta “Quem és tu?”.
[35]
Provérbio escocês.
[36]
Carlos Maykel Gonçalves.
[37]
Família Adams.
[38]
Dr. House.
[39]
Toronto Police Service.
[40]
Stranger Things.
[41]
Rupi Kaur.