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Copyright © 2023 Rubanne Damas

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DAMAS, RUBANNE
Sr. Hunter – Trilogia Devassos, livro 2 / Rubanne Damas – 1. ed. – Paraná, 2023
306 p.
ASIN:

1. Ficção brasileira 2. LGBT.


D161

Rubanne Damas – Autora


@rubannedamas_autora
Sumário
Capítulo 1 - Kraisee
Capítulo 2 - Hunter
Capítulo 3 - Kraisee
Capítulo 4 – Hunter
Capítulo 5 - Kraisee
Capítulo 6 - Hunter
Capítulo 7 - Kraisee
Capítulo 8 - Hunter
Capítulo 9 - Kraisee
Capítulo 10 - Kraisee
Capítulo 11 - Hunter
Capítulo 12 - Hunter
Capítulo 13 - Kraisee
Capítulo 14 - Hunter
Capítulo 15 - Hunter
Capítulo 16 - Kraisee
Capítulo 17 - Hunter
Capítulo 18 - Kraisee
Capítulo 19 - Kraisee
Capítulo 20 - Hunter
Capítulo 21 - Kraisee
Capítulo 22 - Hunter
Capítulo 23 - Kraisee
Capítulo 24 - Hunter
Epílogo
Faixas:
1 – It’ll Be Alright, Cody Francis
2 – Devilish, The Phantoms
3 – Trouble, Samuel Jack
4 – Born for this, The Score
5 – Smoke, Hidden Citizens
6 – Call Me Devil, Friends in Tokyo
7 – The Devil You Know, X Ambassadors
8 – Can’t Get Enough, Jaxson Gamble
9 – Fight For My Survival, The Phantoms
10 – SHC, Foster the People
11 – Bad, Royal Deluxe
12 – Dance With the Devil, Striking Vipers
13 – I don’t Believe in Satan, Aaron Wright
14 – The Wolf In Your Darkest Room, Matthew Mayfield
15 – Devil in Your Eyes, Congratulationz feat. Valerie Broussard
16 – Poison, Rita Ora
17 – Even if it Hurts, Sam Tinnesz
18 – Curse’, Normal The Kid
19 – You Can’t Control who you fall for, Victor Lundberg
20 – Cravin’, Stileto
21 – I Was Made For Lovin’ You, Kiss
22 – Dangerous, Royal Deluxe
23 – Lions Inside, Valley of Wolves
24 – White Flag, Bishop Briggs
25 – Natural, Imagine Dragons
Para meus leitores que gostam de histórias com uma leve dose de perversão.
Se você quer flores, não vai encontrar aqui.
O Diabo gosta de sangue e uma dose de uísque.
“But don't give up
Just hold on tight
It'll be alright”.
(It’ll Be Alright, Cody Francis)
06:00 a.m.
Tenho acordado, exatamente a essa hora, todos os dias desde que me entendo por gente.
Sequer preciso do despertador. Meus olhos apenas se abrem e meu corpo desperta. Não adianta
rolar para os lados, já que não vou conseguir dormir outra vez.
Assim, me levanto. Faço minha rotina matinal. Tomo meu café e leio um pouco do jornal,
analiso alguns documentos do trabalho do dia. Desço para correr e aproveito o caminho de
quinze minutos até a academia onde tenho aulas de Krav Maga. Volto, tomo meu banho, me
visto e saio para realizar as tarefas do dia que estão na agenda.
Sem diversão para mim.
Sempre fui organizado com meu tempo e minhas coisas. Sou dedicado ao meu trabalho e
nas coisas que gosto de fazer. Mesmo que, ultimamente, sinta que falte algo, uma peça não
encaixada. O que me torna inquieto. E agora, passando das três da tarde, quero apenas que o dia
acabe para que possa voltar para casa, me deitar no sofá e ler um bom livro.
― Você não pode fazer isso!
Ergo os olhos do celular, observando o idiota furioso dar de dedo na minha cara. Ele tem
espuma branca nos cantos dos lábios e me parece um cão raivoso. Mesmo que esteja usando um
Armani.
― Senhor Ballard, esta é a segunda tentativa que faço e sua dívida aumentou em dez por
cento desde o primeiro aviso.
― Dez por cento?! Isso é roubo!
Seguro o suspiro, guardando o telefone no bolso interno do meu sobretudo quente
enquanto o velho continua a gritar e cuspir, batendo o punho sobre sua mesa.
― Isso são os juros de quatro meses de atraso, senhor Ballard ― falo monotonamente e
passo a calçar minhas luvas. ― Como advogado da RW, peço que, dentro dos próximos dez dias,
seja pago o valor devido ou seremos obrigados a tomar outras medidas.
― Seu filho da puta sanguessuga!
― Aguardamos o pagamento. Tenha um bom dia, senhor Ballard.
Aceno sobre o ombro e o deixo falando sozinho em seu pequeno escritório, jogando
palavrões a torto e a direito. Como trabalho com a parte de cobranças, é constante os
xingamentos e ser taxado como sanguessuga. “Vampiro” também costuma ser bastante usado.
Não me importo com os apelidos. Sou eficiente, preciso que tudo seja feito perfeitamente. Assim,
sendo um filho da puta quando se trata do meu trabalho.
Desço os degraus da escada velha e saio do prédio um pouco decadente, me perguntando
onde esse velho pode ter gastado todo o dinheiro que emprestou. Talvez seja no terno que usava
ou no carro chique que está estacionado na rua.
O vento gelado de janeiro serpenteia entre minhas pernas, fazendo as pontas do sobretudo
baterem em minhas canelas, chicoteando de um lado para o outro. Minha lapela se ergue,
batendo na minha bochecha. O vento tenta se infiltrar pelas brechas da roupa, entre o cachecol e
a nuca, lançando meu cabelo para os lados.
Deveria usar gel e domar as mechas castanho escuras, mas me recuso a parecer lambido
por uma vaca. Assim, pareço apenas ter acordado atrasado e saído para meu compromisso. O que
é uma grande mentira, já que ser pontual é uma das minhas características mais marcantes. E
extremamente chata, segundo meu irmão estúpido.
Desde criança, meu sonho era ser agente do FBI. Com o tempo, meu interesse migrou
para a BAU[1] e ser um analista comportamental. Poder estudar a mente humana e suas partes
mais sombrias. Entender o assassino e o motivo de seus crimes e o que o motiva a cometê-los.
Como eles pensam, planejam, se sentem quando encontram sua vítima. Como em Criminal
Minds[2].
Porém, esse fascínio se tornou uma estranha obsessão e um pouco de curiosidade
perversa. Me pegando pensando em como era o sentimento do assassino ao ver sua vítima gritar
com terror enquanto ele conduzia os fios da vida dela com seus dedos, decidindo quando cortar e
findar a dor. Assim, empurrei para baixo e tranquei com sete chaves. Essa pequena parte sombria
dentro de mim me assusta.
Com medo de mim mesmo, aceitei a proposta de Ray Warden, meu pai, em me tornar um
advogado jurídico. Ele precisava de alguém de confiança para lidar com as questões de contratos,
posses e bens familiares. A parte chata da coisa, mas segura. Minha família possui uma grande
empresa de exportação de produtos têxteis e eletrônicos. Essa parte quem cuida é Grayson, o
advogado da família há eras. Mais velho que o tempo jurássico.
Há alguns anos Ray abriu uma financiadora. Emprestando dinheiro para quem precisa,
colocando juros baixos em parcelas e juros mais altos em atrasos. Quase como um banco, mas
sem toda a burocracia de um. Alguns chamam isso de agiotagem. Eu ainda prefiro ver como
financiadora legal.
Passo a mão pelos cabelos, olhando a rua de um lado para o outro antes de atravessar. Faz
apenas um ano que me mudei para Toronto e odeio cada segundo vivendo nessa cidade fria e
tão... Argh. Fui obrigado a vir, sem escolha ou uma palavra de opinião.
Aprendi muito rápido que você não questiona Ray Warden. Tendo um pulso firme e sua
palavra é sempre a última, ele tem seus motivos e ninguém deve perguntar sobre suas decisões.
Vi o que acontece com quem tenta debater ou se impor. Meu irmão é um perfeito exemplo disso.
Assim, mantenho meus lábios selados e tento manter minha observação e sinceridade apenas
para mim.
Quando meu pai decidiu que eu deveria me especializar no Canadá, não o questionei.
Aceitei suas ordens, embalei minhas coisas e me mudei em questão de dias. Enquanto minha
família continuava morando em Chicago, Illinois, foi fácil manter essa ilusão de que estava
caminhando por minhas próprias pernas.
O que não durou muito.
Ray veio para Toronto com minha mãe e irmão há quatro meses, dez dias, cinco horas e,
olho para o relógio soltando um suspiro pesado, vinte e sete minutos e contando. Não é que não
goste da minha família. É apenas um pouco sufocante a forma como os Warden agem sobre
mim. E quando estou ao redor deles, sinto que preciso me provar a cada segundo, como se fosse
merecedor de pertencer à família. Talvez seja o complexo de órfão agindo sobre mim.
Ou, talvez, seja athelfobia; o medo de não ser bom o suficiente.
Já que fui adotado, preciso agradecer diariamente por eles terem me escolhido. O que não
passa de uma grande besteira da minha cabeça. Ray e Caitlin me exigem obediência da mesma
forma que fazem com Maxwell, meu irmão mais velho.
Meu telefone toca no bolso, me fazendo gemer. Esse toque é específico do meu pai.
Falando no diabo...
— Oi, pai — digo assim que atendo.
— Onde você está?
Olho ao redor da rua, franzindo o cenho.
— Ah... cobrei o senhor Ballard minutos atrás. Estou há três quadras do escritório dele.
Meu pai grunhe do outro lado, seu sinal afirmativo.
— Você perdeu o almoço e sua mãe está chateada.
— Eu disse que não poderia ir. — Enfio a mão dentro do bolso, me encolhendo contra o
vento. — Havia muito o que fazer no escritório e vários clientes para cobrar. Isso me deixou
muito ocupado.
Não era uma mentira.
— Vi sua agenda. Ballard era o último da lista e são quase quatro horas da tarde agora.
Mordo meu lábio inferior, sorrindo de lado. Ray pode parecer rude, mas sei reconhecer
orgulho em sua voz quando ouço.
— Venha para casa, Kraisee. Sua mãe o quer aqui para jantar. Não se atrase porque nós
temos algo a discutir.
— Sim, senhor — murmuro antes de desligar.
Deixo minha cabeça pender para trás e observo o céu de nuvens cinzentas. Logo estará
escurecendo e prefiro me atirar de cima de uma ponte na direção do rio gelado ao invés de ir
jantar com minha família.
Sabendo que a primeira opção é impossível, porque os Warden resgatariam meu corpo
congelado e me sentariam à mesa mesmo morto, me resigno ao fato de que devo ir para casa.
Imagino qual o assunto que meu pai quer discutir comigo, me fazendo apressar o passo. E já
começo a sofrer com antecedência quando viro a esquina correndo e meu celular vibra com uma
mensagem.
Sabendo que meu pai nunca me enviaria textos, só poderia ser Dominic.
Ei, Keener[3]!
Livre para uma bebida hoje?
Solto um suspiro, meus passos diminuindo, mas não parando de andar enquanto respondo.
Compromisso com a Família Warden.
Porra, boa sorte.
Não queria ser você.
Caralho, muito obrigado.
Sua amizade é muito revigorante.
Eu sei!
Você nunca vai achar um amigo como eu, Keener.
Vá se foder, Dom.
Imerso em xingar meu amigo idiota, não percebo que estou caminhando direto para uma
muralha. Minha testa se choca contra um queixo barbudo e tropeço para trás. Mãos seguraram
meus braços que mantiveram meu corpo firme no lugar quando meus pés escorregaram em uma
poça congelada.
Levanto os olhos para pedir desculpa pela minha falta de atenção e encontro o olhar mais
intenso que já vi. Como gelo, olhos azuis quase transparentes, afiados e atentos que parecem
tentar perfurar minha alma, cercados por cílios loiros escuros.
— Eu... Desculpe — sussurro.
— Você parece com pressa — Sua voz é grossa e baixa, parecendo banhada em uísque e
cigarro. — Se machucou?
— Não. Estou bem. — Pigarreio, me desvencilhando de suas mãos. — Eu machuquei
você?
Sua boca se curva em um meio sorriso.
— Pareço alguém que se machuca fácil?
Urgh, arrogante.
Coloco meu rosto de advogado, aquele em que meus lábios se curvam em um sorriso
apaziguador. Meus olhos enrugam, encobrindo minha vontade de socar o filho de uma cadela
parado na minha frente.
— Entendo. Sinto muito por isso de qualquer forma.
— Deveria usar botas de borracha ao invés de sapatos. — Sua cabeça se inclina, seus
olhos presos aos meus e enviando um calafrio estranho por minha espinha. — O mês de janeiro
neva muito. Você não quer cair e torcer o pescoço, certo?
— Agradeço o conselho, mas estou perfeitamente bem. — Espano a frente do meu
sobretudo, como se descartasse suas palavras, e sorrio. — Com licença.
Passo por seu corpo largo, vestido todo de preto, e corro pela calçada com mais cuidado
dessa vez. Talvez ainda consiga pegar o trem e não precise de um carro. Caminho pela calçada,
sentindo os pelos em minha nuca arrepiados e uma constante vontade de olhar sobre o ombro.
Porém, me mantenho firme em olhar para frente.
Estranhamente, mesmo depois de subir no vagão, ainda posso sentir que estou sendo
observado.
*
A grande mansão dos Warden fica no final da rua de um grande condomínio fechado.
Meu pai não sabe ser discreto ou viver de uma forma mais “simples”.
Aceno para o segurança no portão, que libera minha passagem. Está escuro e mais frio
quando subo pelo caminho de tijolos cinzas, a grande casa se erguendo no fundo, logo atrás do
chafariz ridículo de anjo.
Max e eu concordamos que essa coisa horrorosa deveria ser retirada, mas a mamãe
insistiu em deixá-la ali. Foi a única coisa em que acordamos em anos. Posso dizer que meu
irmão mais velho e eu somos completamente díspares. Enquanto tenho toda a inteligência, Max
possui força bruta. Sempre evitei discutir com ele, porque acabava com o lábio partido ou um
olho roxo. Descobri que ignorá-lo é a melhor forma de vencê-lo.
Empurro a porta da frente com a palma da mão, encolhendo o queixo no meu cachecol e
suspirando ao sentir o ar quente envolvendo minhas pernas. Não quero nem pensar no quanto
meu pai gasta para manter essa casa enorme sempre quente. Meu apartamento minúsculo é um
absurdo de caro.
Sacudindo a neve do sobretudo, coloco-o no gancho junto com meu cachecol e bato os
pés no tapete antes de entrar. O hall é uma sala oval com uma mesa de cristal e um pendente
ridículo em tom dourado. Minha mãe tem um péssimo gosto, realmente.
Da sala da esquerda, onde fica o escritório do papai, vejo Max passando pela porta. Ele
mede, fácil, um metro e noventa de altura. Seu cabelo castanho claro é cortado curto nas laterais
e o topo é longo, caindo sobre sua testa. Há um corte em seu supercílio, o que deixa seus olhos
castanhos parecendo soturnos. Seu lábio também tem um corte e parece sangrar, sua bochecha
ficando roxa de uma contusão.
— Dizem que a gente tem que desviar dos socos, Max. Seu treinador não te passou o
memorando, ou você é burro demais para lembrar? — pergunto, tirando minhas luvas e as
colocando no bolso do terno.
— Você se acha espertinho, mas não dura dois segundos no meu treino. — Ele cospe
sangue no piso limpo de mármore branco.
Meu irmão treina luta livre em uma tentativa ridícula de diminuir sua hiperatividade e
agressividade. Penso que isso apenas o deixa ainda mais irritado.
— Pelo visto, Silas bateu para bem longe o pouco de educação que você tinha, Maxwell
— falo secamente.
Ele me olha com fúria.
— Continue falando. Ainda tenho energia para terminar de rasgar esses seus olhos
puxados, filho da puta.
— Espero não ter ouvido você insultando seu irmão e sua mãe simultaneamente, Max.
A voz de Ray ecoa de dentro do escritório, fazendo com que nós dois nos encolhemos.
Max limpa o queixo com o dorso da mão, me lançando um olhar antes de falar sobre o ombro.
— Estava apenas dizendo ao Kraisee qual é o devido lugar dele.
— Que é dentro desta casa, morando com sua família. Não é mesmo, Maxwell?
Nosso pai aparece na porta, seus olhos passando de Max para mim e então de volta. Enfio
as mãos nos bolsos da minha calça e tento não esboçar reação nenhuma. Max e Ray se olham por
longos segundos antes do meu irmão assentir brevemente e desviar os olhos para o chão.
— Não quis dizer o contrário, pai. Kraisee é... — Seus olhos erguem para mim, apáticos.
— Meu irmão.
Se eu não soubesse que o saco de sarcasmo de Max não fosse tão fundo quanto um poço
de petróleo, poderia dizer que ele usou tudo apenas nessas duas pequenas palavras. Mas não.
Ainda há muito mais guardado dentro dessa imensa cabeça oca cheia de vento e palavrão.
Os cantos da minha boca se erguem em um sorriso, que mal chega aos olhos. Faço isso
apenas porque sei que o irrita.
— Vá lamber suas feridas, Max. — Ray grunhe da porta. — Você está sujando o piso
branco da sua mãe. Quer que ela veja isso e termine de estragar a sua cara?
E Caitlin certamente o faria, sem que nenhum fio de seu cabelo saísse do lugar. Passando
levemente a ponta do tênis sobre a mancha, Max xinga ao perceber que apenas sujou mais. Ele
tira sua camisa e ajoelha, passando o tecido sobre o sangue.
— Kraisee, meu escritório.
Dou a volta pelo corpo de Max, sentindo uma enorme vontade de pisar sobre seus dedos,
apenas por diversão. Entretanto, reprimo minha criança interior e vou direto para o escritório,
fechando a porta atrás de mim. Inspiro, virando para encontrar o ambiente que meu pai tornou
como apenas dele.
De toda a casa, seu escritório destoa absurdamente. Com móveis escuros e pesados,
cadeiras de veludo vermelho e cortinas grossas nas janelas altas. A lareira está acesa, fotografias
dispostas sobre a beirada acima. O casamento de Ray com Caitlin, o nascimento de Max e seu
primeiro aniversário.
Em uma moldura preta simples há os três de mãos dadas e, no centro, estou eu. Max
parece emburrado, um costume de um adolescente de quinze anos. A mão de Ray está sobre meu
ombro e meu sorriso é enorme. A foto foi tirada no dia que fui adotado.
Eu tinha apenas dez anos, mas já havia passado por muita coisa.
— Sente-se, Kraisee.
Deixo a foto em seu lugar e caminho até a mesa, optando por me sentar em uma das
cadeiras de mogno dispostas à esquerda. Ajeito meu terno e olho para meu pai, folheando um
arquivo cheio de números que não entendo. Contabilidade não é meu forte. Vejo um contrato
aberto abaixo do livro, a logo de uma linha aérea bem desenhada. Lombton. Meu pai está
pegando uma companhia de aviação como garantia?
Ele coça o topo da cabeça careca, os fios grisalhos apenas nas laterais, e depois a
sobrancelha espessa e escura.
— Como foi o trabalho hoje?
Cruzo os dedos sobre o colo.
— Como sempre.
Meu pai ergue os olhos da pasta, fechando-a.
— Seja específico, Kraisee.
— Consegui receber dois atrasados, mas alguns ainda continuam protelando. — Tiro o
celular do bolso e abro a caderneta de anotações. Franzo as sobrancelhas ao olhar os dados do
dia. — Ballard é um dos que se mantém atrasado.
— O que você pensa?
Lambo meu lábio inferior, sabendo muito bem o que Ray quer que eu diga. Estou ciente
de como funciona o sistema do meu pai.
— Ballard não vai pagar. — Meneio a cabeça. — Ele achou a taxa de juros um absurdo.
E, se ele não tinha dinheiro para quitar a dívida antes, muito menos agora que o valor aumentou.
Estava olhando suas posses que poderíamos pegar como garantia...
— Sem bens materiais. — Meu pai ergue a mão, me silenciando. — Não quero
quinquilharia. Quero meu dinheiro. Qual o prazo?
— Dez dias, como sempre estipulado.
— Ótimo. Risque Ballard das suas tarefas até segunda ordem.
— Mas...
Meu pai me olha com a cabeça levemente inclinada para baixo. Ele não precisa dizer, vejo
em seus olhos o que aconteceria comigo se eu insistisse. Cerro os punhos sobre minhas coxas e
assinto rigidamente.
— Agora, o assunto que realmente quero tratar com você. — Ele empurra as pastas para o
lado e cruza as mãos sobre a mesa. — A festa de arrecadação de fundos de amanhã.
O meu gemido sai antes que possa segurá-lo.
— Estava me esquecendo disso.
— Estou aqui para lembrá-lo. — Ele sorri, batendo o indicador em sua têmpora. — Sua
mãe quer saber se há acompanhante.
— Nem sequer me lembrava da festa. Como teria um acompanhante?
— Leve Dominic, já que não te larga, de qualquer maneira. Vindo de Chicago até aqui
atrás de você. — Meu pai estala a língua. — Você não pode faltar a festa, Kraisee. Não me faça
ficar repetindo, garoto. Já basta você não usar nosso sobrenome por aí, como se negasse nossa
família...
— Não é isso — respondo baixinho. — Não quero que pensem que só tenho esse trabalho
por ser seu filho. Sou bom no que faço. Quero que vejam isso por mim, não pelo sobrenome
Warden.
— E é apenas por esse motivo que ainda permito que ande por aí com esses cartões
ridículos contendo seu sobrenome antigo, assim como seus diplomas pendurados em sua sala. —
Seus olhos me escrutinam antes de expirar. — Há um grupo novo de negociantes e eles estarão
presentes. Quero seu cérebro funcionando para trazê-los até mim e que possamos fechar um
acordo.
— O senhor tem algo para que possa estudá-los?
Ele me estende um envelope pardo. Abro a parte de cima, espionando as fichas e algumas
fotos clipadas nas folhas. Ótimo, minha noite após o jantar não será lendo um romance fofo da
minha autora brasileira favorita, Rose Moraes.
Papai se levanta, afrouxando sua gravata.
— Vá encontrar sua mãe. Ela está falando no meu ouvido que seu pequeno bebê não a
ama mais.
— Deuses, eu a vi faz dois dias! — falo, me levantando da cadeira.
— É isso que você ganha quando continua se recusando a morar conosco e escolhendo
viver naquele pulgueiro que chama de apartamento.
— Já tenho vinte e quatro anos. Preciso viver minha própria vida.
— Você é um Warden, garoto. — Papai aperta meu ombro e sorri. — Não existe vida
própria quando se faz parte dessa família.
E isso nunca soou tão verdadeiro.
“Revenge, my favourite dish
Your sins falling from your lips
Lights out, time to make a wish
Oh, oh, oh, so devilish”.
(Devilish, The Phantoms)
Dor e prazer, são indivisíveis[4]. Há um lento pingar ecoando pela sala, nesse prédio
abandonado que fiz de meu esconderijo. Os passos da minha bota soam com uma leve sucção de
borracha em líquido pegajoso. Vou ter a porra de um trabalho imenso quando acabar, mas estou
curtindo demais o momento para me importar com a bagunça.
Os gritos se tornaram pequenos gemidos lamuriosos. “Piedade... piedade...”. Eu não sei o
que essa palavra significa. Não fui criado para entender certos sentimentos, além da raiva, a
sensação de vazio e o prazer que vem da dor.
Alguns me chamam de sociopata. Eu prefiro criativo.
Passo meus dedos enluvados sobre os instrumentos, pensando em qual usar agora. O
alicate parece interessante, mas o martelo está muito limpo sobre a mesa. O único que ainda não
manuseei. Giro o cabo de metal emborrachado, o que me dá uma ótima pegada e ao mesmo
tempo é fácil de limpar.
— Por favor... por favor, não...
Ergo os olhos para encontrar o filho da puta que tem me feito companhia desde a
madrugada. Eu não gosto de trabalhar quando o sol está alto, mas hoje amanheceu com nuvens
pesadas, prometendo neve. Frio de encolher as bolas. Não ficaria surpreso se olhasse dentro da
calça e não encontrasse meu pau.
Com o martelo em mãos, dou a volta na mesa e paro na frente do policial Edward
Mallory. Há mijo misturado ao sangue no chão abaixo de sua cadeira. Segurando o martelo no
cabo, coloco-o abaixo do queixo de Edward e ergo sua cabeça para mim. Seus dois olhos estão
roxos e inchados, não há mais dentes em sua boca. Arranquei todas as suas unhas e depois tirei
cada dedo, articulação por articulação.
Ele gritou muito.
Foi um som tão bonito...
— Eddy, Eddy... — murmuro, levantando seu rosto para mim. — Ashley grita assim
também ou ela fica quietinha como o papai manda?
Ele choraminga, seu corpo tremendo sobre a cadeira.
Agarro seus cabelos no topo e puxo sua cabeça para trás, arqueando seu pescoço. Bato
suavemente com o martelo contra sua bochecha.
— Acorde, Eddy. Ainda não terminamos de brincar.
Ele engasga, seus olhos tremulando e tentando se abrir, mas impossível de fazer de tão
inchados. Sorrio, deslizando o martelo por seu maxilar.
— Quando foi a última vez que tocou em sua filha, Eddy?
— Não... Eu não...
— Sim, você fez. Pensei que já havíamos passado por isso. Eu sei de tudo, você não
mente pra mim, eu facilito a punição... Mas você continua trapaceando. — Solto seu cabelo, sua
cabeça caindo e o queixo mergulhando no peito.
Seus pés se remexem, tentando escapar das cordas e dos nós bem atados. Ele não vai
conseguir. Suas mãos com cotocos queimados para não sangrarem estão em seu colo, bem ao
lado do seu pequeno pau que cortei mais cedo. Rompi o tendão de seus músculos nos cotovelos,
tornando o antebraço inútil. Há mais sangue fora de seu corpo do que em suas veias.
Realmente, uma bagunça. Porém, é excitante pra caralho.
Sorrindo, giro o martelo na minha mão, a luva preta enroscando um pouco na borracha do
cabo. Não há muito mais tempo para Edward Mallory. E tudo o que eu precisava, já havia
conseguido: informações sobre um traidor e torturar um estuprador de crianças.
Dois coelhos. Um cajado.
Ou, melhor: um martelo.
Rindo, giro meu braço e acerto a lateral da cabeça de Edward com força, como se fosse
uma bola de baseball. Sua cabeça chicoteia, sangue espirrando em mim e no chão já imundo.
Ergo o braço acima da cabeça e desço, batendo o martelo em sua cabeça como se fosse uma
marreta. O crânio afunda, osso e cérebro se misturando na confusão e prendendo o martelo. Um
último suspiro é dado, misturado a um pequeno gemido engasgado. Seu corpo destruído amolece
contra a cadeira, a cabeça pendurada com o martelo enfiado até o cabo entre seus cabelos. Toda a
adrenalina se esvai do meu corpo, drenada. Giro os ombros e tiro a máscara de proteção. Meu
rosto está limpo, mas minhas roupas não.
É hora do descarte.
E, para um bom trabalho, talvez devesse usar a serra para separar cada pedaço. Ou o
cutelo. Então, a limpeza deveria ser feita para que nenhum vestígio seja deixado para trás. E sou
excelente no que faço. Não é à toa que sou o Executor dos D’Angeles. Um caçador que sempre
pega sua presa. E mesmo que o conselheiro de confiança da Pops mantenha minha corrente curta
como um cão, para que eu não ataque, acabo mordendo quando encontro folga na coleira.
E hoje foi uma dessas folgas.
Pego o alvo, com sede de sangue, e me divirto desmontando pedaço por pedaço, com
paciência e calma. Não há nada, nem ninguém, que possa me parar depois que eu começo com o
banho de sangue.
— Mãos à obra — murmuro.
*
Olho ao redor ao sair do carro, me sentindo enclausurado. Ajeito a gola da jaqueta e jogo
a bituca de cigarro no chão, amassando-a com o bico da minha bota na lama. O pátio está
silencioso quando o atravesso em direção ao galpão e empurro a porta de metal com a palma.
Parece mais frio agora do que mais cedo.
Sinto falta do calor.
Sinto falta da minha moto.
Sinto falta de transar sem sentir que estou congelando minha bunda.
O galpão está cheio de caixas, e a polícia poderia bater aqui e nunca encontrariam nada
além de peças de reparo e coisas antigas. Esse lugar no porto é perfeito. E a Lust ficar apenas há
alguns metros de distância é ainda melhor. Aquele desgraçado do White sabe esconder nossas
merdas e enganar a polícia.
Atravesso o galpão com alguns funcionários fingindo trabalhar e fingindo não me ver.
Eles sempre fazem isso. Desviam os olhos quando passo, o fedor de medo em seus corpos. Ando
para os fundos, onde há uma escada de metal que leva para o escritório falso no andar de cima.
Passo por baixo dos degraus com algumas caixas de papelão e empurro o fundo falso que há ali.
Sempre atravesso o corredor estreito com passos apressados. Desço até o subsolo, essa
parte do lugar em completo movimento, fervendo. As salas de preparação, análise e embalo são
como um formigueiro, mas com sua própria ordem em meio ao caos. É um zumbido agradável.
Essa coisa de manter tudo em ordem e bem alinhado é coisa do TOC estranho do Mikhail.
Se algo está fora do lugar, há um longo sermão sobre ser cuidadoso para ter um trabalho bem-
feito e um cliente satisfeito.
Estamos traficando drogas e armas, caralho. Chegando embalado e seguro, o comprador
já fica feliz.
E por este pensamento que Mikhail não me deixa chegar perto do sistema perfeito dele.
Nem ele e nem a Rainha do Submundo gostariam das minhas mãos desorganizando suas caixas.
Eu fico com a bagunça e não reclamo disso. Adoro cada parte do meu trabalho sujo.
Entro no salão de descanso, o cheiro de bebida, fumaça e suor me atinge, tão familiar
quanto segurar uma arma. O barulho de bolas de bilhar ecoa pelo espaço, misturado ao som
baixo de uma música de merda pop ligada. Um grupo de cinco caras estão curvados sobre a mesa
no canto extremo, jogando cartas. Eles percebem minha entrada, afundando ainda mais suas
cabeças no jogo e parando de falar.
Ninguém conversa comigo aqui. O último que tentou, perdeu a língua. Eu não tenho
paciência para conversas casuais. É pura besteira. Deixo a parte social para Mikhail, ou mesmo
Kiam. Aquele bastardo do White tem o dom para sorrir e se fingir de interessado, jogando toda
aquela merda de charme que ele tem.
Tiro a faca canivete do bolso e passo a abri-la e fechá-la, um pequeno tique ansioso.
Hórus, o barman, empurra um shot para mim, pois sabe do que eu gosto. Apoio a faca sobre o
balcão e tomo um lento gole da bebida, meus olhos sobre o homem limpando um copo. Ele
também não me olha. Sua pele morena brilha na luz clara do bar e posso ver o suor brotando
acima do seu lábio. Sua mente deve estar com pensamentos furiosos entre “por que ele está me
olhando?” e “será que vou morrer?”. Costumo causar isso nas pessoas quando as encaro.
Menos naquele pequeno asiático que tropeçou em mim mais cedo.
Coisinha interessante. Ele nem mesmo tremeu ao me olhar nos olhos. Ainda foi uma
pequena lisichka[5] ao se esgueirar ao meu redor e me dar as costas. Ninguém me dá as costas. As
pessoas pressentem quando um predador as olha. E aquele homem nem mesmo olhou por sobre o
ombro, me ignorando totalmente. Ainda não sei se me sinto insultado ou excitado.
Rio baixinho, balançando a cabeça. Estalo o pescoço, sentindo a noite sem dormir me
cobrando. Misturado ao zumbido da música, há o som do telejornal da tarde. Jones está sentado
em uma cadeira, olhando atento para a televisão. Na mesa de sinuca está Boris e Mikhail jogando
uma partida. O quadro atrás diz que Mik está ganhando. De novo.
A vodca desce como água pela garganta, mas não mata minha sede. Bato o copo sobre o
balcão e gesticulo para Hórus me dar mais outra. Ele engole, seus olhos presos na minha faca
aberta e apontada para ele sobre a madeira.
— O quê? Minha faca não vai sair voando e se alojar na sua garganta, Hórus. — Inclino a
cabeça, buscando seus olhos que teimam em desviar de mim. — Fale de uma vez.
— Ah... — Seus olhos vão para a mesa de bilhar antes de voltar para mim e desviar
rapidamente. — Orlov disse para te dar apenas dois.
Arqueio as sobrancelhas, girando a faca sobre o balcão.
— Ele disse?
Hórus assente rapidamente, enchendo outro shot para mim antes de se afastar sem mais
palavras ou explicações.
— Ya trakhuyu[6] — resmungo, pegando o shot e o virando de uma vez.
Orlov. É assim que Mikhail é conhecido aqui. Para mim, sempre vai ser Mik. Meu irmão.
Crescemos juntos, unidos pelo quadril, enfrentando os problemas e tendo as costas um do outro.
Ele é o único nesse lugar que eu daria minha vida sem pensar duas vezes. E sei que ele faria o
mesmo por mim, mesmo não compartilhando o mesmo sangue que o meu.
O noticiário muda, falando algo sobre uma explosão de carro em um restaurante chique
no centro da cidade. Um que nunca coloquei meus pés e nem mesmo colocaria em um futuro
próximo.
Cheio de gente arrogante do caralho.
— Alguém explodiu um atleta olímpico. — Jones ri, sua cabeça pendendo para trás. —
Um tal de Valentin Mendoza.
Jones gira na cadeira, gesticulando na direção da mesa de sinuca. Não preciso ser um
vidente para saber que as próximas palavras do idiota vão dar em merda.
— Ei, Orlov! Seu lado psicopata andou explodindo coisas por aí de novo?
Droga, Jones nunca foi o mais inteligente da turma.
Mik gira o giz na ponta do taco com paciência controlada, sua atenção focada em Jones.
Seu rosto é uma máscara sem expressão, seus olhos tão escuros como breu. A cicatriz grossa,
que corta da sua têmpora direita até o meio da bochecha, parece pálida contra a luz, deixando-o
ainda mais assustador.
Ele apoia o taco sobre a mesa, sem tirar os olhos do idiota corajoso. A ponta com giz bate
contra a bola branca, empurrando uma vermelha para a caçapa, tudo isso sem Mikhail olhar para
a jogada. Apenas o som da música e da TV é ouvido na sala. Todos estão quietos, a apreensão e
medo fedendo em minhas narinas enquanto Mik continua olhando para um Jones pálido.
Posso ver o homem se mijando nas calças em breve se meu irmão não falar nada.
— Isso foi uma tentativa de piada? Porque você é péssimo nisso, Darius Jones — Mikhail
fala de forma monótona.
Porra, ele usou o nome inteiro.
Como um pai chamando a atenção do filho.
Meus lábios se torcem nos cantos em um sorriso sardônico enquanto Jones balança a
cabeça, parecendo um pouco verde agora.
— Pode respirar, cara! Orlov não vai te matar hoje — um dos caras na mesa de cartas
cacareja, fazendo todos rirem alto.
Mikhail coloca com calma o taco pendurado em seu devido lugar antes de virar na minha
direção. Seus olhos escuros se conectam com os meus do outro lado enquanto abre os punhos de
sua camisa e dobra as mangas nos cotovelos. Sua cabeça inclina, indicando para que o siga.
Pego a faca do balcão e a guardo no bolso antes de me levantar e sair do salão. No
corredor, Mikhail me observa com as costas apoiadas na parede e as mãos enfiadas nos bolsos da
calça escura.
— Que porra é essa de regra nas bebidas para mim? — questiono, acendendo um cigarro.
— Você fede a alvejante — Mik fala, não respondendo minha pergunta.
— E você está mudando de assunto. — Sopro a fumaça na sua cara, apenas em
provocação.
Mik nem mesmo pisca. O bico da sua bota bate contra o chão três vezes e, então, se afasta
da parede com passos calmos e me dá as costas.
Está aí outra pessoa que não se importa em ter minha faca entre as omoplatas.
— Tenho um trabalho pra você — fala sobre o ombro.
— E quando não tem?
Não que eu esteja reclamando.
Sigo Mikhail pelo corredor. Passamos pelo labirinto do subterrâneo até avistar a Sala
Preta que meu irmão e a Pops gostam de usar para reuniões. Suas paredes foram erguidas para
que nenhum som entre ou saia, tornando tudo confidencial. Se o que é falado lá dentro foi
espalhado aqui fora, é um sinal de que há um rato na casa.
E não podemos permitir roedores. Eles são uma maldita praga.
Mik empurra a porta, revelando as paredes escuras e móveis de mogno. Pastas
importantes estão sobre a mesa, alguns arquivos para queima dentro de uma caixa de papelão.
— Pops me chamou para uma reunião nesta tarde — comenta suavemente, fechando a
porta atrás de nós.
— A Pops? — Coço o piercing preto na lateral do meu nariz, franzindo o cenho. — Ela
não estava presa?
— Foi solta dois dias depois. — Mikhail me joga um olhar rápido. — Já faz duas
semanas.
— Estive ocupado com o trabalho e não presto atenção nas fofocas. — Aponto.
— Você deveria, quando é nossa patroa que está encarcerada — resmunga.
— Sim, que seja. Então... O que a staraya suka[7] queria com você?
O lábio de Mikhail contrai levemente, um pequeno sinal de humor. Dou um longo trago
no cigarro quando meu irmão puxa uma gaveta na mesa e tira de lá um arquivo preto.
Merda.
Arquivos pretos só significam uma coisa.
— Quem foi? — pergunto, apagando o cigarro contra minha palma e jogando a bituca no
lixo.
— Carl Greene.
Pego o arquivo da mão de Mikhail e o abro. A cara magra de Carl me cumprimenta em
uma foto pequena. Ele se parece com um rato. Como não percebi isso antes?
— Vi seu focinho feio duas noites atrás — murmuro, batendo o dedo sobre a foto. — Ele
estava supervisionando os meninos com o carregamento do barco para Nova Iorque.
— E foi, exatamente, esse carregamento que sumiu. — Mik cruza os braços, seus olhos
sérios. — Ninguém sabe que o cliente reclamou. Ele ligou diretamente para a Pops em uma linha
privada. Ela me pediu para averiguar e tudo o que foi encontrado está na sua mão.
— E por que não escolheram o Sanders? É ele quem sempre lida com esse tipo de escória.
— Pops não quer que Carl leve apenas uma surra, Kill, porque não foi um simples roubo.
Assinto, abrindo um sorriso sinistro ao entender o que ele quer dizer.
— Carl deve servir como exemplo.
— E quem melhor do que você para fazer isso? — Mikhail arqueia as sobrancelhas. —
Amanhã acontecerá uma festa de gala em um dos salões do Grand Empire e ele vai estar
trabalhando na cozinha. Pops quer que você o pegue e o interrogue primeiro. Carl está
trabalhando para alguém e a Pops quer saber quem está fodendo conosco. Depois você pode
fazer o que quiser com ele. Use sua... criatividade.
— Considere feito. — Aceno, enrolando a pasta e a guardando no bolso traseiro da minha
calça e giro para sair.
— E, Kill... — Mik me chama assim que toco na porta. — Não se meta em encrencas até
amanhã.
Eu sorrio com indolência.
— Eu nunca me meto em encrencas. São elas que se metem comigo.
Meu irmão bufa.
— Claro que é.
Acenando o dedo do meio para ele sobre o ombro, saio da sala e sigo para o galpão no
térreo. Passo pelos trabalhadores, eles saem do meu caminho como se eu carregasse a praga.
E, talvez, eu carregue mesmo.
Entro de volta no meu carro, chacoalhando dos ombros a sensação de estar sendo
espremido. Pego a pasta apertada no meu bolso traseiro e a olho, batendo suavemente no volante.
Suspiro, sabendo muito bem o que estarei fazendo nas próximas horas, e não tem nada a ver com
sexo. Lástima. Entretanto, analisar uma possível vítima e ficar na espreita em uma caçada,
também é excitante.
Assim, jogo a pasta no banco do passageiro e ligo o carro, colocando o veículo em
movimento. As próximas horas serão longas, lentas e inquietas, mas o prêmio final vai ser
inestimável.
Use sua criatividade.
Inferno, isso vai ser perfeito.
“Oh Trouble won't you let me be?
I just wanna little taste of Peace
Gimme something good than I can breathe”.
(Trouble, Samuel Jack)
Hoje não é o meu dia. Devo ter acordado com o pé esquerdo essa manhã. Na aula de Krav
Maga, torci o pulso ao cair de mau jeito. Taylor, meu professor, ficou extremamente preocupado,
me enviando mensagens pelo resto do dia perguntando se estou bem. Eu disse a ele que era
desnecessário ficar perturbado por um pulso lesado.
Perdi a porra da minha carteira em algum trem e fiquei sem dinheiro para o almoço. Há
pouco, me arrastando para casa, escorreguei em uma calçada congelada e bati minha bunda no
chão, trincando a tela do meu celular. Agora estou mancando, e nem é por uma dor que eu
realmente gostaria de estar sentindo. Não tenho tido muita ação nos lençóis ultimamente e não
sei se ainda me lembro como é mancar depois de ser muito bem usado sexualmente.
— Então? Como foi ontem?
Lembro que estou no telefone com Dominic, e suspiro.
— Você se recorda de me perguntar isso agora? Depois do dia todo e — olho para o visor
do telefone — vinte minutos de conversa?
— Ao contrário de você, eu tenho que correr atrás dos meus clientes, Keener. Não posso
parar para escutar fofoca sobre sua família rica e problemática.
— Se você tivesse ficado em Chicago, todos os clientes do seu pai estariam com você,
Dom.
— Mas não teria meu melhor amigo comigo. Então, foda-se.
Enfio a mão no bolso, minha bolsa batendo contra meu quadril, e sorrio.
— Com tudo o que aconteceu, esqueci de te falar que temos uma festa essa noite.
— O quê? Festa? — A voz de Dominic aumenta do outro lado. — Comida de graça?
Sorrio, balançando a cabeça.
— É no Grand Empire, às oito. Uma festa beneficente que minha mãe está organizando
com as outras senhoras.
— Puta que pariu, Keener. Grand Empire? Você tem ideia de quanto custa o aluguel da
porra de um salão lá?
— Hm... sem ideia. — Encolho os ombros.
— Bem, nem eu sei. Mas, com absoluta certeza, só o aluguel já ajudaria muita gente. Nem
precisaria de uma festa cheia de pessoas esnobes dando grana pra pessoas pobres.
— Isso significa que não vai ser meu acompanhante?
— Eu não disse isso! — Dominic exclama, me fazendo rir. — É óbvio que vou. Nunca
recuso comida chique de graça. Tenho que ir de terno? Ou posso ser casual?
— Terno, três peças.
Viro a esquina, com Dominic resmungando na minha orelha sobre seus ternos estarem
horríveis e velhos e não conseguir alugar em cima da hora. Franzo as sobrancelhas ao ver uma
caixa de papelão com fundo úmido se mexer suavemente. Será o vento?
— Porra. Eu me viro. Inferno, Keener, já são cinco horas! Te vejo daqui a pouco. Não se
atreva a ir sem mim!
Dominic desliga sem esperar uma resposta. A caixa se move outra vez, me fazendo crer
que não é o vento. Um som estrangulado vem de dentro e me vejo implorando para não ser um
bebê. Eu não sei o que faria com um bebê.
Me aproximo devagar e agacho, puxando uma das abas para cima. Lá dentro, molhado e
tremendo, um pequeno gato de olhos azuis me olha. O som estrangulado é seu miado, pequeno
demais para soar como um gato normal. As pontas de seus pelos longos e rajados de cinza estão
eriçadas, seus olhos com remelas e o nariz pingando. Ao lado, mais três estão enrolados em uma
manta puída, congelados. Ofego, cobrindo minha boca com a mão e observando o pequeno
felino andando trêmulo na caixa, tentando escalar a borda para fugir.
Quem teria coragem de fazer isso? Essa... monstruosidade?
São gatinhos!
— Tudo bem, peguei você.
Agarro o pequeno animal que cabe na palma da minha mão, espantado com a magreza
escondida por seus pelos. Ele mia, cavando em meu peito por um abrigo. Ou, quem sabe,
comida. Cubro seu corpinho com meu sobretudo, e olho ao redor, não sabendo o que devo fazer.
Como se cuida de um filhote de gato?
Meu pai nunca me deixou ter um animal de estimação. E, com o passar dos anos, desisti
de obter um. Pego o celular, enviando uma mensagem para Dominic, dizendo que encontrei um
pequeno filhote e perguntando se ele sabe como cuidar de um, mas duvido que me responda
agora. O gato mia dentro do meu sobretudo e percebo que estou espremendo-o contra meu peito.
— Droga.
Com passos rápidos, caminho para o elevador escondendo do síndico meu pequeno
achado. Não é permitido animais no prédio.
— Você vai ser meu pequeno segredo — sussurro enquanto subimos até o quinto andar.
Quando chego em casa, o lugar está frio e escuro ao fechar a porta atrás de mim. Tiro as
botas e penduro a bolsa no armário da entrada, tirando o sobretudo em seguida e colocando o
pequeno gato no chão. Acendo a luz da cozinha pequena e olho para meu peito, enrugando o
nariz para a mancha no tecido cor de vinho do corset. Espero que seja apenas água e não mijo.
O gato mia estridente no chão, me fazendo pegá-lo outra vez. Acaricio sua cabeça,
caminhando para dentro de casa, acendendo as luzes no caminho e o aquecedor. Vou para o
quarto, pegando uma toalha de rosto e entrando no banheiro, ligando a água quente do chuveiro.
— É isso aí, amiguinho. Vamos tomar um banho.
Enfio a mão debaixo da água para sentir se está muito quente, e mergulho o pobre filhote.
Suas pequenas garras se prendem no meu pulso, me fazendo chiar. Eu o esfrego, tirando a lama e
o gelo de seu pêlo, tomando cuidado para que não entre sabão e água em seus ouvidos,
enrolando-o em seguida na toalha. Ele parece mais magro com esse pelo lambido e seus enormes
olhos azuis arregalados.
Azul como gelo.
Não sei por qual motivo, mas o rosto sombrio daquele homem de ontem continua
voltando para mim. Suas mãos cercando minha cintura, seu corpo grande envolvendo o meu.
Como um fantasma, perigo escrito por toda sua testa. Balanço os ombros, espantando aquela
sensação e esfrego minha nuca. Levo o gato comigo até a sala, o aquecedor já funcionando e
enviando calor pelo pequeno apartamento. Coloco almofadas no chão e deixo o espaço
confortável.
Coloco o gato ali e vou para a cozinha, pegando uma tigela e enchendo de leite. Gatos
tomam leite, certo? Dou de ombros, voltando para a sala e colocando a tigela no chão. Ele toma,
desesperado, quase virando o leite com suas patas. Alimentado, de banho tomado e aquecido, o
gato dorme enrolado sobre a almofada.
Sentado sobre meu tapete felpudo e com as costas apoiadas no sofá, cruzo os pés nos
tornozelos e abro o navegador do meu celular. Ainda tenho tempo para me arrumar e posso fazer
uma rápida pesquisa.
“Como cuidar de um filhote de gato”.
Não que eu vá ficar com ele, mas... enquanto estiver comigo precisa de cuidados.
Certo?
Assim, descubro em dez minutos tudo o que eu preciso saber sobre felinos. E, sim, os
gatos gostam de leite, mas não é a melhor opção para se tomar. Coloco na minha agenda que
preciso comprar ração específica, assim como fazer uma visita ao veterinário mais próximo. Por
enquanto, encontro no freezer uma carne congelada e a coloco no micro-ondas enquanto vou me
arrumar.
Tomo banho de modo rápido e me seco, colocando o conjunto de três peças que sempre
uso em ocasiões como essa. Festas promovidas pela minha família requerem um traje neutro e
alinhado. Minha calça justa sobre a calça térmica, camisa e colete corset preto parecem ideais.
Com costume prático, puxo os cordões até que a peça esteja perfeitamente ajustada em minha
cintura e peito, modelando meu torso e me dando postura.
Respiro? Muito pouco, mas não consigo parar de usá-los. Eu gosto como as hastes
internas, chamadas de barbatanas, proporcionam uma pressão regular e, ao mesmo tempo, são
confortáveis.
Passo os dedos sobre a frente do tecido preto fosco e nos pequenos botões prateados.
Aliso minha gravata preta no lugar e ajeito o colarinho antes de colocar o terno. Calço os sapatos
de couro e passo a mão pelo cabelo, ajeitando os fios castanhos grossos com um pouco de gel.
Corro para cozinha ao ouvir o gato miando alto e pico a carne em pequenas porções, deixando
entro de um pratinho para ele comer.
Quando meu interfone toca, já estou pegando meu celular, chaves, um maço de cigarro –
porque eu sei que vou precisar – e praguejo por ter perdido minha carteira.
Vou ter de refazer todos meus documentos e cartões.
Não posso esquecer de anotar na minha agenda.
Deixando uma última olhada no gatinho devorando a carne, pego o sobretudo e fecho a
porta atrás de mim em silêncio indo para o elevador. Quando chego ao térreo, Dominic me
espera apoiado em seu carro estacionado na frente do portão. Seu cabelo loiro areia está penteado
em um topete bonito, seu terno azul marinho deixando seus olhos castanhos parecendo mais
claros.
Dom tem o rostinho de um riquinho esnobe, mas sua carteira constantemente vazia
contradiz seu aspecto.
Ele ergue os olhos do telefone com uma carranca.
— Diga-me que não ficou com o filhote.
— Eu não poderia deixar a pobre criatura na neve.
Dominic geme, se afastando do carro e guardando o celular no bolso.
— Você e sua terrível mania de ser altruísta, recolhendo animais e pessoas como se fosse
dono de uma ONG ou casa de apoio!
— Eu não faço esse tipo de coisa! — exclamo, me sentindo caluniado.
— Não? — Sua sobrancelha se arqueia. — Você pode não dar dinheiro para as pessoas,
mas vive se relacionando com tipinhos de caráter duvidoso com passados sombrios, pensando
que pode mudá-los e melhorar suas vidas. Estou errado?
— Eu fiz isso apenas duas vezes e prometi a mim mesmo nunca mais me envolver com
pessoas assim — respondo, não me sentindo mais tão caluniado.
— Claro. Então, você vai lá e recolhe um gato vira-lata...
Coloco a mão sobre sua boca, olhando sobre o ombro na direção do prédio e esperando
que o síndico não esteja observando como um abutre por sua janela.
— Cale a maldita boca, inferno — resmungo. — Primeiro, não poderia deixar o pobre
animal na rua. Os irmãos já haviam morrido de frio e ele teria o mesmo destino. Segundo, não
posso ter animais no apartamento. É proibido. Assim, vou levá-lo ao veterinário e ver se consigo
alguém para ficar com ele.
— Jesus — Dominic sopra, empurrando minha mão de sua boca. — Dedos frios do
caralho.
— Esqueci minhas luvas — murmuro.
— Você pode dizer o que for, Keener, sei muito bem que esse gato não vai sair do seu
apartamento sem que alguém o tire de lá. Alguém que não seja você. — Seu dedo afunda no meu
peito. — Você salva a todos, Kraisee, mas... quem te salva?
Engulo, não sabendo o que responder. Dominic balança a cabeça com pesar.
— Entre no carro. Está frio e eu estou com fome. O jantar vai demorar a ser servido?
Encolho os ombros, dando a volta até o lado do passageiro.
— É uma festa. O jantar não é tão importante quanto o leilão. Se você tiver sorte, a
comida já deve estar sendo servida agora.
*
Dominic não teve sorte.
São nove horas e vinte e dois minutos, o jantar ainda não foi servido e eu quero enfiar
cacos de vidros em meus olhos. Esfregando minhas pálpebras, engulo o gemido de cansaço
quando outro conhecido do meu pai se afasta.
Faz apenas um ano que o homem está na cidade. Como ele pode conhecer tanta gente
assim?
Dominic joga sua cabeça para trás ao rir de uma piada, sua mão tocando levemente a
cintura da mulher que se inclina para falar em seu ouvido. Ele é pior que uma prostituta. Viro,
colocando meu copo vazio sobre o balcão de bebidas, sendo servido de outro cheio segundos
depois. Com uma piscadela, Dominic se afasta da mulher e caminha na minha direção, seu
sorriso morrendo e o rosto se tornando uma carranca.
— O que há de errado? — pergunto, entregando minha bebida em sua mão.
Ele a vira de uma só vez, grunhindo.
— Estou com fome. Esqueci como essas festas são um porre. Socializar com pessoas ricas
drena toda minha felicidade.
— Mas aqui é um lugar perfeito para você conseguir clientes. — Aponto. — Eles são
ricos. Mais dinheiro no seu bolso.
Suas sobrancelhas arqueiam.
— Não tinha pensado por esse lado.
Sorrio, vendo-o se afastar com passos apressados e enfiando a mão no bolso,
provavelmente para pegar seus cartões. Apoio o cotovelo na mesa, pensando seriamente em
escapar daqui e voltar para minha casa. Será que o gatinho está bem? E se ele miar? O síndico
pode ouvir e...
— Você está fazendo cara de diarreia, docinho.
Viro o rosto, encontrando minha mãe sorrindo para mim. Seus cabelos castanhos claros
estão presos em um penteado elaborado e com cachos soltos. Sua maquiagem é suave e elegante,
seu vestido de cetim na cor creme caindo suavemente sobre seu corpo. Não há adornos, apenas o
suficiente para chamar a atenção e prendê-la.
Linda.
Elegante.
Tão letal com as palavras quanto uma faca.
— Estava lembrando de algo. Nada importante, mãe.
— Se não é importante, não deveria estar em seus pensamentos em primeiro lugar. — Ela
espana uma sujeira do meu ombro e segura meu queixo, dando um leve apertão. — Você está tão
bonito, docinho. Por que não colocou a abotoadura que te dei de Natal?
Passo a mão no pulso, sorrindo.
— Saí atrasado e acabei esquecendo. Desculpe.
Seus olhos me observam por alguns segundos antes de soltar meu queixo e bater em
minha bochecha suavemente.
— Um homem sem abotoaduras não é ninguém, docinho. E aquelas possuem a inicial de
nosso sobrenome. — Seus olhos pegam os meus de forma determinada. — E sem o sobrenome
Warden, você não é ninguém aqui. Entendidos?
O que ela realmente quis dizer é: não distribua seus cartões aqui.
— Sim, senhora.
— Que bom. — Ela abre um largo sorriso e aperta meu braço. — Procure seu irmão para
mim, por favor. Ele bebeu mais do que devia e não o encontro no salão.
— Não devia ser suposto ele ser o irmão mais velho e o ajuizado? — resmungo a
pergunta.
Minha mãe ri baixinho.
— Docinho, todos sabemos que Maxwell é encrenca. Encontre-o antes que ele acabe em
problemas.
Assinto, mesmo que minha vontade seja de dizer não. Vejo-a se afastar e enfio a mão
dentro do bolso, segurando meu maço de cigarros com força. Saio do salão, olhando pelos
corredores em busca do idiota do Max, não o encontrando em lugar algum. A probabilidade de
ele ter se enfiado em algum quarto e estar transando agora é muito grande.
E enquanto ele fode, estou procurando-o como um burro.
Desistindo, saio pelos fundos e passo pela cozinha. As panelas estão borbulhando, os
fogões em pleno funcionamento. Gosto de ver o caos de uma cozinha e como tudo funciona
mesmo que nada esteja organizado. Aqui é o único momento em que não sinto vontade de
colocar tudo alinhado e manter limpo.
Um grupo de garçons entra pela porta traseira e sorrio em cumprimento para alguns.
Aproveito a desatenção do chef e roubo um pedaço de pão com molho verde, enfiando tudo na
boca e mastigando. Limpo o canto da boca com o polegar, saindo da cozinha para o
estacionamento de entregas de mercadorias. Está frio pra caralho, mas não vou voltar buscar meu
sobretudo. Essa é a minha chance de dar uma escapada de toda aquela loucura lá dentro.
Passo pelas caixas de papelão jogadas e olho para os lados, não encontrando ninguém.
Com um suspiro e ombros caídos, puxo um cigarro do maço e o acendo. Meus dedos tremem um
pouco, tanto de frio quanto por ansiedade. Dou uma longa tragada, enchendo os pulmões e então
soltando devagar. A nicotina não é a melhor solução, mas ajuda de vez em quando.
Esfrego a têmpora com dois dedos, percebendo uma dor de cabeça chegando, quando um
grito engasgado chama minha atenção. Ofegos são seguidos de grunhidos e palavrões baixos.
Com cenho franzido, vou na direção de onde ouço os sons, minha consciência dizendo que essa
não é a melhor decisão, mas aquela pequena parte escura e curiosa impulsiona os meus passos.
Paro perto das latas de lixo e olho para o pátio cheio de carros e neve se acumulando ao
redor. Meu corpo congela no lugar, o cigarro caindo no chão, quando vejo três pessoas no beco
escuro. Duas formas largas pairam sobre um homem pequeno e magro que balança sobre os
joelhos afundados no chão de pedriscos. Um deles bate contra a bochecha do homem, jogando-o
no chão com um resmungo de dor.
— Não... Por favor... Não me matem...
O cara fica de cócoras sobre o homem, seus cabelos loiros caindo para o lado como uma
cortina ondulada quando inclina a cabeça.
— Você deveria ter pensado nisso antes de nos roubar, Carl.
Vejo uma faca brilhar na pouca luz pouco antes dela pousar na boca do homem caído. A
mão que segura o cabo com destreza é totalmente tatuada, com anéis largos de prata em dois de
seus dedos. Como um grande mafioso cruel. Os olhos do homem no chão estão arregalados, e
tenho certeza de que os meus são semelhantes aos dele.
Meu medo não me deixa dar um passo, ou mesmo respirar. Porém, aquela pequena parte
sombria parece cativada. Admirada.
— Não o rasgue agora. Vai manchar meu porta-malas. — O homem ainda de pé diz,
enfiando as mãos nos bolsos.
— Será apenas um filete de sangue. Não é como se já tivesse tirado as tripas dele — o
outro agachado resmunga.
Vejo-o segurar os cabelos do homem com a outra mão quando aquela faca desliza,
rasgando a bochecha de dentro para fora. Meu corpo oscila e tropeço para trás, tanto por choque
quanto por algo que ainda não sei como nomear. Sangue jorra no chão ao mesmo tempo em que
bato o cotovelo na lata de lixo. O mundo parece parar de girar quando os dois gângsteres olham
para mim. E um deles tem impressionantes olhos de gelo brilhando na pouca luz amarela.
Refletindo como os de um tigre.
Conheço esses olhos...
O arrepio que desce pela minha espinha não tem nada a ver com o frio agora. É como se
estivesse sendo observado por um predador e eu sendo sua caça. Não ajuda que ele tenha uma
máscara preta cobrindo sua boca e nariz, com um desenho branco de um sorriso de caveira nela.
Engolindo com dificuldade, viro e faço o que me parece mais sensato no momento: eu fujo.
“Feeling the rhythm inside of my chest, all I need is just a pen
I know I was born for this.”
(Born for this, The Score)
Uma hora atrás.
O som do meu coração é alto, batendo em meu peito e em meus ouvidos em ritmo
acelerado. Estou já há algum tempo dentro da sala que transformei em minha pequena academia.
O círculo preto e branco do outro lado está cheio de buracos das facas que joguei, treinando
minha mira e velocidade. Giro o corpo, lançando a adaga com força, e a observo girar antes de
atingir o alvo perto do centro.
Ainda não é o meio.
Estou apenas me aquecendo para a noite. Tenho um plano, e ele começa com um rato
asqueroso e, depois, muito sangue. Talvez alguns copos de vodca depois e uma boa transa. A
porta da sala se abre, meu instinto me fazendo atirar antes de perguntar. Lanço a adaga que tenho
em mãos na direção da porta, errando por poucos centímetros a cabeça de Mikhail. A ponta
afiada cravada na guarnição, o cabo tremendo com impacto.
— Você errou — fala, fechando a porta atrás de si.
— Não sabe bater na porta, caralho? — resmungo, voltando a atirar as adagas no alvo.
Mikhail se aproxima com passos lentos, as mãos enfiadas nos bolsos de sua calça.
— Você quer me dizer onde estava na noite retrasada?
— Dormindo como um bebê na minha cama — respondo, o arrepio de aviso descendo
pela minha espinha.
É muito cedo para ele saber de qualquer coisa.
O corpo de Mallory não foi encontrado – e nunca vai ser já que eu o piquei em pedaços
miúdos – e ainda deveria estar de folga, segundo o que li de seus plantões. Planejei tudo
minuciosamente, como sempre. Passariam dois dias, e então, só depois iriam descobrir que ele
não está por aqui. Sua mulher deve estar bastante aliviada daquele porco escroto não estar em
casa, para perceber sua falta. Assim como a pequena Ashley.
As pessoas não sentem falta de tipos como Edward Mallory.
Elas agradecem por ele não estar presente.
Atiro a última adaga, soprando uma mecha do meu cabelo que soltou do rabo de cavalo.
Sete adagas, apenas uma atingindo o centro do alvo.
Merda.
A mão de Mikhail segura minha nuca com força, me pegando de surpresa. Sequer o ouvi
se esgueirar até estar perto demais. Filho da puta. Me mantenho parado, olhando meu irmão com
o canto do olho. De perto, percebo pequenos sinais que perdi desde a sua entrada: os botões de
sua camisa estão abertos, revelando a grossa cicatriz em sua garganta e as marcas de queimadura
em seu peito. E a forma como suas sobrancelhas estão franzidas e isso faz seu nariz adunco
enrugar na parte superior. O canto do lábio curvado para baixo e a veia pulsando em sua
têmpora, bem abaixo da cicatriz.
Ele está muito puto.
Tento respirar baixo e estável. Quando Mikhail se irrita, qualquer movimento de agressão
contra ele pode desencadear a troca de personalidade e War surgir. E eu não quero aquele
psicopata tentando me explodir, já que nós dois não temos a melhor relação.
— O que eu te disse ontem, Hunter? — sua voz é plana, não demonstrando emoção.
Seca como o maldito Saara.
— Você fala sobre muitas coisas, Orlov. Não consigo lembrar de tudo. Talvez devesse
começar a anotar em pequenos post-its...
Seus dedos pressionam minha nuca com mais força. Passo a língua nos dentes,
observando o rosto de Mikhail e a forma como seus olhos possuem pupilas dilatadas e tremem
ligeiramente. Suor brota acima de seu lábio e eu sei que Mik está lutando nesse exato momento.
— Eu disse para deixar o caso do Mallory de lado por enquanto. — Sua voz soa baixa. —
Mas não foi isso o que você fez, não é?
Mikhail está me perguntando, mas ele sabe muito bem a resposta. Parece que nada passa
despercebido por ele. Sempre está dois passos adiante e, quando algo vaza por entre seus dedos,
fica frustrado pra caralho. Mikhail tem uma mente brilhante. Mesmo que seja dividida com um
maluco explosivo.
— Eu fiz a droga do meu trabalho.
— Seu trabalho — ele sibila — é fazer o que eu mando. Você é meu irmão, mas aqui
dentro você é como qualquer outra pessoa, Hunter. E você passou por cima das minhas ordens,
pizdúí[8].
— O policial Mallory não vai ser mais um problema. Nem para nós, nem para a própria
filha de seis anos que ele abusava.
Mik inclina na minha direção, seu rosto pairando sobre o meu. Mesmo com meus um
metro e oitenta e sete centímetros de altura, ele consegue me passar em sete centímetros a mais.
Os olhos de Mikhail nunca pareceram tão sombrios quanto agora. Vejo uma pequena faísca da
loucura de War brilhar em seus olhos. Seu controle está por um fio.
— Sukin syn[9], diga que ouvi errado, Hunter — rosna perto da minha orelha.
— Eu sei que ouviu muito bem. Você está velho, Orlov, mas não surdo. Uff!
Seu punho se conecta com meu estômago pouco antes de seus dedos se enroscarem no
meu rabo de cavalo, torcendo os fios em seu punho e virando meu rosto para ele.
— Seu anarquista. O que nós combinamos, Hunter?
— Mallory era um corrupto filho da puta que abusava da filha de seis anos — rosno. —
Para o inferno com nosso combinado, Orlov.
Seu aperto em meu cabelo piora, sua mão torcendo meu braço para trás contra minhas
costas. Se fosse em outras circunstâncias, e com outra pessoa – obviamente – eu estaria adorando
estar sendo maltratado. É difícil encontrar parceiros com uma mão pesada e dominador.
Geralmente sou eu quem acaba por cima, impaciente demais para esperar a atitude do outro.
Paro de pensar em atos sexuais quando sua mão puxa minha cabeça para trás, arqueando
meu pescoço.
— Você tem ideia do quanto sua cabeça está na reta? Essa é a terceira vez que passa por
cima das minhas ordens, e vai ser a última, Hunter. — Seus dedos puxam os fios do meu cabelo
com mais força, fazendo meus olhos lacrimejarem. — Se acontecer de novo, nem mesmo eu
posso salvá-lo da Pops. Consegue me entender?
Poderia congelar apenas com o tom frio da sua voz.
— Sim — falo entre dentes.
— Ótimo. — Com um grunhido, Mikhail me solta e se afasta. — Sua arrogância é uma
merda, Kill. Você é a porra de um idiota instável.
— Foda-se — rosno, soltando meus cabelos e massageando o couro cabeludo dolorido. —
Falou o velho com problemas de personalidade dupla. — Aceno na direção de sua cabeça,
recebendo um olhar morno dele. — Como está War, aliás?
— Perfeito. Quer que o chame para que possam fofocar? — pergunta, de forma suave,
como se eu não tivesse atingido um nervo.
Meneio a mão em sua direção, dispensando-o.
— Não, obrigado. — Giro meus ombros, minha cabeça latejando. — Porra. Talvez você
devesse liberar seu rabo para deixar de ser tão rígido, Mik.
Com um grunhido, Mikhail passa a mão pelo cabelo preto de topo alto e laterais raspadas,
um estilo undercut. Não há um único fio fora do lugar, o que é esperado vindo de um louco por
controle como Mik. Nem seu cabelo se atreve a sair da linha.
Mesmo que meu irmão esteja irritado, ele sabe que fiz a escolha certa. Todo trabalho que
Mikhail me passa para ser o Executor dos D’Angeles, estudo meu alvo com cuidado. Observo-o
por algumas horas, ou até mesmo dias. Desta vez, não precisei de muito. A ficha do oficial
Mallory era extensa. Cheia de casos não resolvidos e enfiados debaixo do tapete por ele ser um
“oficial da lei”.
Grande merda.
Como um maldito anjo vingador, eu quebrei-o em milhares de pedaços antes de,
finalmente, deixar a morte levá-lo. Não consegui o nome do policial infiltrado em nosso meio,
mas confirmei outros dois que já estavam na lista negra da Pops. A polícia pode ser uma dor de
cabeça quando quer.
Estou fazendo isso, matando pessoas, desde que me entendo por gente. Desde que minhas
mãos conseguiram segurar uma faca sem tremer, que minha mente não se perturba com uma vida
tirada ou com um corpo retalhado aos meus pés. Minha vida se ergueu a partir dos corpos alheios
empilhados e não sinto remorso algum.
Olho para minhas mãos cobertas de tatuagem e anéis. Nem sempre é apenas a tinta escura
que cobre minha pele e esconde as cicatrizes. Geralmente também é pintada pelo líquido
carmesim em meus dedos, sobre as luvas que uso. Eu lavo com sabão, tirando o sangue e
deixando escorrer pelo ralo.
Se tornou um ritual esfregar o sangue alheio da minha pele.
Assim como os gritos de misericórdia se tornaram um zumbido constante. Eu os ouço a
cada minuto do dia. Eles são minha companhia. Preenchem um pouco do vazio que sinto. Um
vazio que cresce mais a cada dia, me deixando ainda mais inquieto e irritado. Quase perdendo o
controle. Me enfiando em problemas, pedindo por uma briga ou uma boa foda. Talvez eu tenha
bebido mais do que devia, ou me drogado mais que um corpo pode suportar.
Chapado, ficando alto como uma pipa.
Nada parece preencher esse vazio, uma dor que nunca acaba. A vida parece chata. Opaca.
Eu vivo no cinza, entre o preto e o branco. Cambaleando sobre uma linha tênue. E Mikhail tem
me seguido como uma sombra, não me deixando cair do lado errado. Ao mesmo tempo que me
sinto grato pela preocupação, também fico puto por me sentir como uma criança sendo vigiada.
Mikhail caminha até a porta, puxando a adaga da guarnição e a atirando direto no centro
do alvo. Exibido. Abre a porta e acena para que eu o acompanhe. Os botões de sua camisa estão
no lugar outra vez, a gola escondendo seu pescoço e lhe dando aquele ar de equilíbrio que ele
nunca chegou perto de possuir.
— Pronto para essa noite?
— Eu sempre estou pronto — respondo puxando meu cabelo em um coque na nuca. — É
você quem precisa de um tempo para as articulações funcionarem sem ranger.
— Você fez trinta e sete na semana passada. Não está ficando mais novo também.
— Ainda mais novo que você, velhote.
— Juro, Kill, que às vezes não queria te amar como um irmão, só para conseguir matá-lo
sem remorso.
— Idem aqui.
Seus olhos cerram antes dele bufar, um raro meio sorriso surgindo em seu rosto sisudo.
Essa é nossa forma de dizer “me importo com você e estou aqui”. É distorcido, mas é verdadeiro.
Causo problemas para ele, mas também sou uma boa pessoa na maior parte do tempo. Ou de vez
em quando.
Eu tento o meu melhor.
Recolho minha jaqueta e luvas sobre uma cadeira, assim como minha máscara, e saímos
do subterrâneo subindo para o galpão e entramos em seu carro preto. Meu corpo fica rígido ao
me sentar sobre o couro escuro e minha cabeça bater no teto baixo.
— Por que você ainda não trocou essa merda de carro?
— Ele é econômico — responde simplesmente, ligando o motor. — E ninguém dá uma
segunda olhada para ele. Se mistura com os outros carros, o que o torna um perfeito disfarce. Já
o seu...
— Não comece a falar do meu carro — retruco, acendendo um cigarro. — Se eu vou ter
que andar dentro de uma lata de sardinha, que ela pelo menos tenha um ótimo motor para rugir.
Ligo o som, deixando The Score soar nos alto-falantes. Mikhail batuca os dedos sobre o
volante a cada parada no semáforo, seus olhos indo para o relógio antes de pegar o cigarro da
minha mão e dar uma tragada.
Ainda há tempo.
Estalo o pescoço, confiante no estudo que fiz da planta do edifício. Também pesquisei a
empresa que estará trabalhando com garçons e auxiliares na cozinha. Fiz meu dever de casa.
Pego minha faca e passo a abri-la e fechá-la quando indico para Mikhail a entrada do
estacionamento de funcionários e ele devolve o cigarro pela metade. Enfiando o carro em uma
vaga escura e longe dos olhos, observo o pátio silencioso e cheio de veículos. Não há uma única
alma para verificar se somos permitidos a estar aqui.
Grande salão com uma merda de segurança.
— A empresa tem uma política de descanso de dez minutos a cada meia hora. Carl, sendo
o merda preguiçoso que é, com certeza vai ser o primeiro a sair e o último a voltar.
Mik grunhe em concordância.
— Sério, quão burro ele pode ser? — Pergunto, enfiando o cigarro entre os dentes. — Ele
achou, de verdade, que ninguém ia perceber?
— Os burros sempre se acham espertos.
Isso é uma verdade absoluta.
Saio do carro, olhando na direção das latas de lixo e um caminhão velho com a porta
aberta. Sopro a fumaça ao ver três garçons conversando perto da porta, mas nenhum deles é Carl.
Jogo o cigarro em uma poça de lama e neve, encolhendo meus ombros contra os ouvidos para me
proteger um pouco do frio intenso.
Ainda há muita neve pela frente.
Se o pequeno rato não sair da toca, vou ser obrigado a entrar lá. O que seria um enorme
estorvo e haveria testemunhas. Estalo o pescoço mais uma vez, lembrando que sempre tenho um
plano B, mas não sei se estou a fim de usá-lo.
O grupo se dispersa quando, finalmente, Carl mostra sua cara feia. Ele tem um cigarro nos
lábios e sorri para uma mulher, que o ignora completamente. Sorrio, girando minha faca no dedo
e indicando com o queixo para irmos e Mikhail assente. Puxo minha máscara sobre a boca e
nariz, ocultando parte da minha face pelo desenho de um sorriso de caveira.
A meia face da morte.
Nós dois saímos em direções diferentes. É tão instintivo que não precisamos dizer nada
um para o outro. Nossa tática quando estamos caçando juntos – algo que se tornou raro nos
últimos anos –, Mikhail e eu nos dividimos para conquistar. Encurralamos, não deixando nossa
presa escapar.
O reino animal faz isso.
Dou a volta pela pilastra, surgindo quase na frente de Carl. Ele assusta, como se estivesse
vendo um fantasma.
— Olá, Carl.
Ele deixa seu cigarro cair e seus olhos ficam arregalados como um cervo pego nos faróis.
— O Executor... — sussurra.
Ele deu dois passos para trás quando balanço a cabeça.
— Não faria isso se fosse você. Eu não vim sozinho.
Carl gira, encontrando Mik saindo das sombras com seu rosto sisudo e parecendo mal pra
caralho.
— Eu não fiz nada!
— Quando a gente nega algo sem nem ter sido perguntado, é um grande indicativo de
mentira, Carl — falo, me aproximando. — O que foi que você não fez? O que acha que nos
trouxe até aqui? Ou... — Minhas sobrancelhas arquearam quando um pensamento cruza minha
mente. — Você esperava o Sanders, não é?
— Você... e ele... — sussurra.
— Não se preocupe com o Orlov. — Sorrio mesmo que ele não possa ver, abrindo e
fechando a faca. — Sou eu o Bicho Papão aqui. O que acha de termos uma boa conversa, Carl?
— Nem fodendo... — sussurra.
Olho-o de cima a baixo e estalo a língua com desgosto.
— Não, você não faz o meu tipo. — Aponto minha faca para ele. — Nosso encontro hoje
é para outra coisa.
— Eu não tenho medo de você — cospe.
Com um ímpeto de coragem, Carl se lança na minha direção e atinge meu rosto com um
soco. Minha máscara segura um pouco do impacto, mas ainda faz um corte no meu lábio. O
sorriso que se abre em meu rosto poderia parecer um pouco maníaco. Carl geme, segurando sua
mão, e olha para mim quando inclino minha cabeça na direção dele.
Sinto o filete de sangue escorrer até o queixo e empurro minha máscara para baixo e
limpo com o polegar. Olho o líquido carmesim antes de lamber o dedo com gosto acobreado sem
tirar meus olhos de Carl.
— Tenho um ditado que carrego comigo, Carl, e ele é o seguinte: “Se você não me mata
na primeira oportunidade, então é melhor correr”. — Atiro minha mão na sua direção, agarrando-
o pelos cabelos. — Porra, eu espero que você não quebre tão rápido.
Ergo os olhos para Mikhail, acenando para irmos. Coloco minha máscara de volta no
lugar e arrasto Carl comigo, seus resmungos sendo misturados aos sons de seus pés arrastando no
cascalho e neve. Ele é magro, mas parece ter alguma força quando se contorce no meu agarre.
Suas unhas cravam na minha manga da jaqueta, tentando beliscar a pele, mas não conseguindo.
Eu o solto quando nos aproximamos do carro no beco escuro. Fecho o punho, socando-o
uma, duas, três vezes. Atinjo seu estômago, arrancando seu ar, e ele cai de joelhos no chão
segurando sua barriga. Com um sorriso, bato as costas da minha mão em seu rosto, sentindo
meus anéis arranhando sua bochecha. Ele cai com um resmungo abafado.
— Não... Por favor... Não me matem...
Meu cabelo solta do laço e empurro os fios para trás ao me agachar de cócoras. Tiro
minha faca do bolso e a balanço na frente do rosto de Carl. O cheiro de lixo e urina impregna
meu olfato, me fazendo enrugar o nariz com desgosto.
— Você deveria ter pensado nisso antes de nos roubar, Carl.
Ele abre sua boca para falar e aproveito a oportunidade ao enfiar minha faca dentro dela,
calando-o. Seus olhos arregalam quando aperto a lâmina contra a carne na parte de dentro de sua
bochecha e sua respiração sai em ofegos rápidos.
— Não o rasgue agora. Vai manchar meu porta-malas. — Mikhail diz, enfiando as mãos
nos bolsos.
— Será apenas um filete de sangue. Não é como se já tivesse tirado as tripas dele fora. —
Sorrio, me sentindo bem pra caralho.
Seguro seus cabelos oleosos para manter sua cabeça no lugar e, com um gesto do pulso, a
lâmina rasga o tecido e a carne, abrindo o canto de sua boca em uns bons centímetros. Seu grito
sai afogado, suas calças molhando com mijo. Seus olhos rolam, mas chacoalho sua cabeça para
mantê-lo acordado.
O barulho de lata soa alto em meus ouvidos e me faz erguer os olhos na direção do
barulho. Ali, parado a poucos metros, há um homem nos olhando. E não um homem qualquer,
mas uma lisichka. Seus olhos estreitos estão arregalados, talvez pelo que viu ou por ter sido pego
observando? Meus ombros endireitam conforme me levanto devagar e isso faz com que ele vire
e saia correndo.
Me dando a porra das costas mais uma vez.
Mikhail dá um passo para o lado, sua voz baixa como um trovão ressoando.
— Pegue ele.
É como o estalo de uma corrente sendo solta e eu, como um cão, corro atrás da pequena
raposa astuta. Adrenalina enche minhas veias quando dou a volta pelo lixo, a sola das minhas
botas batendo contra o chão com a força de uma cavalaria. Vejo-o entrar pela porta da cozinha e
sorrio. Ele vai me fazer caçá-lo?
Foda-se, isso só me deixa ainda mais excitado em pegá-lo.
Corra, menino bonito. O demônio está indo até você.
“Your heart becomes a beating drum
There's darkness in the air that surrounds
Get ready 'cause you know what's comin'”.
(Smoke, Hidden Citizens)
Então é dessa forma que um antílope se sente sendo perseguido pelo leão? Ofego, quase
batendo em um garçom ao atravessar pela cozinha barulhenta. Saio no corredor que dá para o
salão, não sabendo se devo entrar lá de volta. Aquele viking maluco de máscara viria atrás de
mim? Como a porra de um berserker. O som de uma panela caindo e um grito assustado me diz
que ele está muito perto agora.
Merda, merda, merda...
Por que sempre me coloco nesse tipo de situação? Eu sabia que hoje não era um bom dia.
Passo pelas portas do salão e ajeito minha gravata, meus passos apertados na direção da mesa de
petiscos nos fundos. Olho ao redor, procurando uma forma de fugir, ou mesmo para meu pai para
me ajudar. Talvez, se eu estivesse conversando com alguém, aquele maluco não me pegaria.
Não agora, mas... e depois?
Engulo com dificuldade, passando a mão pelo colete e tentando respirar como uma pessoa
normal. As pessoas no salão continuam conversando e rindo, perdidas em seu próprio mundinho
cintilante de alegria e champanhe, enquanto eu estou prestes a hiperventilar. Procuro por
Dominic, encontrando-o entregando seu cartão para um grupo de homens e bajulando-os com
risadas e batidinhas em seus ombros.
Dou um passo em sua direção, apenas para ser pego pelo braço esquerdo e um corpo forte
ser pressionado contra minhas costas.
— Peguei você.
Paraliso com o som gutural de sua voz. Seus dedos apertam meu bíceps, me mantendo
perto dele. Há algo pontiagudo cutucando na base da minha espinha e lembro da faca banhada
em sangue. Sua respiração sopra contra minha bochecha, cheiro de cigarro, suor e couro
entrando em meus pulmões. Há um toque de algo a mais, mas estou muito apavorado para tentar
discernir o que é.
— Se não me soltar, eu vou gritar — sussurro.
É um blefe, mas como ele poderia saber? Devagar, recolho uma das facas dispostas na
mesa e a pressiono contra a coxa. Olho ao redor, ninguém parecendo perceber o estranho me
agarrando perto da mesa. Dominic migrou para as mulheres no bar e parece ocupado demais com
o decote delas para perceber ao seu redor.
A risada baixa do homem atrás de mim arrepia minha espinha de uma maneira bastante
estranha.
— Grite. Não me importo de ter uma plateia enquanto rasgo sua garganta.
Como advogado, reconheço quando alguém está mentindo. E esse homem, com certeza,
não está. A segurança em sua fala e a pouca inflexão de sua voz deixa muito claro que não se
importa em me cortar e deixar meu corpo caído para trás.
Com uma leve pressão, me empurra mais para perto da parede no fundo e em direção à
porta novamente.
— Faço aulas de Krav Maga — falo, lambendo o lábio inferior e tentando olhá-lo sobre o
ombro. — Posso derrubar você em menos de três segundos e...
— Hm... — Seus olhos gélidos pegam os meus, brilhando com riso cínico. Sua máscara
parece estar enrolada ao redor de sua garganta tatuada. — Você me colocaria no chão e ficaria
por cima? Isso seria interessante de ver você tentar.
— O quê? — Olho para o salão outra vez, franzindo as sobrancelhas. — Está supondo
que eu não conseguiria, só por causa do meu tamanho?
Sinto seu sorriso perto da minha orelha.
— Tamanho não é documento. — Sua mão serpenteia pela minha barriga, me puxando
pressionado contra seu corpo. — Eu gostaria de ver alguns dos seus movimentos, ainda mais
vestindo essa roupa sexy.
Por que essa conversa, de repente, me parece ter outro sentido?
E por que eu estou gostando?
Me empurro para longe dele, apenas para me encontrar preso em um aperto de ferro. Meu
temperamento aflora, me fazendo virar o rosto para olhá-lo com raiva.
— E quem disse que faria sexo com um idiota como você? — rosno as palavras. — Um
psicopata assassino?
Seus olhos cintilam algo que não sei dizer o que é. Seu aperto piora, me fazendo gemer
com a dor.
— E quando eu falei sobre transar?
Saímos para o corredor, o barulho do salão ficando abafado conforme nos afastamos indo
na direção da porta da cozinha. Com dedos firmes, aperto a faca que carrego contra sua barriga.
— Dê mais um passo e eu te furo.
— Uma faca? Você está tentando flertar comigo? — ele ri.
Pressiono a ponta da lâmina contra sua barriga, cortando sua risada ao meio. Seu corpo
fica imóvel, o braço tenso ao redor da minha cintura. Ele toca com a parte plana de sua faca
contra minha cintura, pressionando contra meu colete e camisa. Tenho certeza de que está
manchando minha roupa com o sangue daquele homem.
Respiro alto e rápido, minha mente correndo por todos os ensinamentos que meu
professor de Krav Maga me deu, tudo se tornando uma enorme tela em branco. A faca
pressionada contra mim é muito mais real que a de madeira usada nos treinos. Se eu estivesse
trabalhando na BAU, com certeza teria pensado melhor em como fugir de um possível assassino.
— Solte seu brinquedo antes que acabe tendo um acidente. Não queremos ter que recolher
seus órgãos do chão, não é?
Sua voz baixa combinada com a pressão da lâmina na minha barriga é como gelo em
minhas veias, revivendo aquela parte sombria e a fazendo remexer no fundo da minha mente.
Aos poucos, sinto meus dedos se abrindo, um por um, até que o som da faca caindo no chão ecoa
no espaço silencioso.
— Bom menino.
Essas duas palavras reverberam dentro de mim. As sombras serpenteiam, tirando suas
garras para fora e tentando me engolir. Respiro alto e rápido, repetindo para mim mesmo uma e
outra vez: “eu controlo as sombras, elas não me controlam”.
Sua mão segura meu pulso, torcendo o braço para trás das minhas costas. Faço uma careta
com a dor quando sou empurrado contra a parede e seu corpo maciço me pressiona por trás.
Aquela pequena ponta afiada está entre minhas omoplatas agora.
— Você está me machucando! — exclamo.
— Não estou nem perto de realmente te machucar, lisichka.
Do que ele acabou de me chamar?
— Isso tudo é um mal-entendido — rosno.
— Sério? Então, por que correr como um coelho assustado?
Pelo motivo de você me dar um olhar assassino quando tinha acabado de rasgar a boca
de um homem?
Bufo, virando o rosto e pressionando a bochecha contra a parede.
— O que eu deveria ter feito? Ajoelhado e beijado suas botas?
Seus olhos parecem tentar perfurar meu crânio em busca de respostas. Para as quais eu
não possuo.
— Vamos — rosna, me puxando com ele.
— Para onde? — Tropeço, tentando olhá-lo.
Seus olhos passam por mim rapidamente antes de empurrar a porta da cozinha e me forçar
para dentro. Ele se mantém em silêncio conforme atravessamos o caos de panelas e pratos. Sua
mão me puxa para baixo quando um auxiliar passa correndo com uma panela quente.
Saímos para o lado de fora, o ar frio beijando minha pele e me fazendo estremecer. Sua
mão se encaixa em minha nuca, me impelindo a continuar andando.
— Você não vai me responder para onde está me levando?
— Sou eu quem faz as perguntas, e você quem as responde — grunhe. — Por exemplo:
quem é você e o que estava fazendo aqui fora no momento em que pegamos um rato?
— Eu estava fumando!
Seus olhos pegam os meus, cerrando brevemente.
— A área de fumantes convidados fica do outro lado do prédio. — Seus olhos deslizam
pelo meu corpo. — E você me parece um convidado.
— Não posso querer fumar em outro lugar? Tipo, longe de todas as pessoas?
— Não — responde de forma direta e seca. — A não ser que você tenha algo a ver com o
idiota do Carl. O que te coloca como um suspeito de ser mandante em foder conosco.
— Mandante? Foder com vocês? — O som na minha garganta fica sufocado, tentando me
livrar do seu aperto e falhando. — Sou um advogado de cobranças! Decente! Eu nem sei quem
são vocês! Ou esse tal de Carl!
Meus pés derrapam sobre o gelo e me mantenho de pé apenas pela mão do viking ainda
me segurando na nuca. Contornamos a lixeira, entrando de volta naquele pequeno beco escuro do
estacionamento. Um carro preto suspeito parece camuflado até seus faróis serem ligados e olhos
escuros me observam pela janela.
Meus pés travam, a respiração saindo como fumaça por entre meus lábios. Não sei se
estou tremendo pelo frio ou pelo medo. Ambos?
— Entre no carro, advogado — rosna, puxando a porta traseira e me empurrando para
dentro.
Com um gemido, entro no banco de trás, apenas para ser empurrado para o lado pelo
corpo grande e maciço do homem loiro.
— Greene? — pergunta para o da frente, que indica com o polegar atrás de nós.
— Porta-malas.
— Isso é sequestro! — exclamo. — Quem, diabos, vocês são? Punks em uma maldita luta
de território?
O viking me olha, seu braço passa pelo encosto do banco e me pressiona contra a janela.
Sua mão segura a alça da porta e me prende em uma gaiola de músculos, couro e uma juba loira
formando uma cortina ao redor do meu rosto. Sinto como se uma descarga elétrica descesse pela
minha espinha, acelerando minha respiração outra vez.
— Olhe bem para minha cara e veja se me pareço com a porra de um punk.
Pisco, seus olhos próximos dos meus, iluminados pelas luzes da cidade conforme o carro
avança pelas ruas. Tatuagens escuras espreitam por seu pescoço, desaparecendo na gola da
camisa.
— Não, não parece — respondo, franzindo os olhos. — É bastante intimidador, porém.
Máfia, então.
Ele bufa, se afastando de mim.
— Você o chamou de advogado? — o da frente murmura, seus olhos escuros no
retrovisor.
— Sim, eu sou. — Empurro o viking para o lado. — Meu pai, ele... Porra, ele vai ficar
furioso quando não me ver na festa.
— Cale a boca dele.
O cara da frente joga um pano preto para trás, o viking pegando do seu colo. Abro a boca
para perguntar, apenas para ter algo empurrado entre meus lábios e minha cabeça ser coberta por
um saco preto. Coloco as mãos na borda, apenas para tê-las agarradas e puxadas para baixo.
Algo fino é envolvido em meus pulsos, me fazendo torcer o rosto com a dor no pulso contido.
Fecho os dedos em um punho, virando com força para o lado. Uma mão enorme me
agarra antes que eu possa atingir qualquer parte de seu corpo e ter a satisfação de agredi-lo.
— Agressivo, hein? Vamos ver por quanto tempo essa bravura permanece.
Resmungo, querendo mandar ele ir à merda, mas o tecido em minha boca não deixa. O
caminho é feito em silêncio dentro do carro, salvo por alguns gemidos vindo do porta-malas
quando passamos rápido pelo quebra-molas. Remexo meus dedos, inquieto. Se eles cobriram
meu rosto, isso significa que eles não querem que eu veja para onde estão me levando. Quer
dizer que pretendem me soltar depois?
Tamborilo os dedos sobre minha coxa, tentando ouvir qualquer coisa que me indique
onde estamos. Porém, não há nada. O tráfego silenciou e só há o som dos pneus sobre o asfalto.
Estão me tirando da cidade?
O carro freia com o som de cascalho derrapando. Uma porta se abre, seguida por outra, e
estou sendo conduzido para fora. Tropeço, arquejando com o ar ainda mais frio girando ao meu
redor. Estremeço, meus pés escorregando pelo gelo na calçada. Uma mão grande agarra meu
braço e me puxa junto a um corpo quente.
— Cuidado para não quebrar o pescoço, pequena lisichka. Ainda temos perguntas a fazer
para você.
Resmungo ao redor do tecido, sentindo os lábios ardendo. A sensação de seu corpo maior
sobre mim é estranha e, ao mesmo tempo, confortável. Eu culpo aquele meu lado escuro por isso.
Ouço um gemido seguido de sons de pés sendo arrastados.
— Meu porta-malas está arruinado. Fique sabendo que a limpeza é por sua conta.
A voz grossa parece autoritária. Talvez ele seja o chefe por aqui.
— Ya trakhuyu, você é tão dramático. São apenas algumas manchas.
Ou não.
— Então você não se importaria em pagar, já que são tão pequenas assim.
— Nahuy[10].
Esse idioma... Seria russo? Talvez eles sejam da máfia russa. Como se chamam mesmo?
Bratva? Tento puxar na minha memória os mafiosos dessa cidade que participam dessa
organização, mas não consigo me lembrar de ninguém.
A mão do viking me segura na nuca com firmeza, me fazendo caminhar. Meus pés batem
sobre cascalhos e então concreto. O bico do meu sapato colide contra uma elevação e meu corpo
oscila para frente.
— Cuidado com o degrau — ele murmura, me ajudando a subir.
Sinto os joelhos trêmulos, o suor frio escorrendo pela minha espinha conforme subimos
vários lances de escadas. O saco preto sobre minha cabeça está me dando vertigens, roubando o
pouco ar dos meus pulmões e minha boca coberta não está ajudando.
Meu pai vai ficar tão bravo se eu morrer. Quem vai cobrar os clientes? Max tem a
inteligência de uma porta e a sutileza de uma anta, ele não poderia fazer o meu trabalho nem por
meia hora sem foder com tudo. Fora que Max sempre estaria atrasado e bagunçando todas as
pastas com os arquivos porque ele tem zero organização. Começo a hiperventilar ao imaginar
aquelas mãos enormes de ogro do meu irmão espalhando os papéis na minha mesa e sujando
tudo com comida.
Ofego ao ser empurrado sentado. Por um breve momento me esqueci que estou prestes a
ser torturado e morto. Meus pulsos são soltos, mas não há tempo para sentir alívio. Meus braços
são puxados para trás e amarrados outra vez. Uma corda é enrolada em meus pés e outra em meu
torso, me mantendo preso à cadeira.
A posição é desconfortável pra caralho.
O saco preto é puxado da minha cabeça e pisco várias vezes para a luz repentina. O tecido
da minha boca é retirado e sinto os lábios ardendo pela falta de umidade. Olho ao redor, tentando
entender onde estou, e encontrando apenas paredes de concreto e janelas fechadas com madeira.
O homem do beco está caído no canto, ainda desacordado.
Me remexo na cadeira, irritado com toda a situação. O viking puxa uma cadeira,
sentando-se com o encosto para a frente e cruzando os braços sobre ele. Seu sorriso é divertido e
predatório. Há tatuagens em seu pescoço, entrando pela gola da blusa. Suas mãos são tatuadas
também, até os dedos. Anéis de caveira prata parecem manchados com sangue.
Desvio os olhos para a sombra alta rondando nos limites da luz. Seus sapatos caros
surgem, seguido por pernas vestidas em calças escuras de alfaiataria. Sua camisa preta está
abotoada até o pescoço e nos pulsos. Não há muita pele revelada além das mãos e do rosto.
E que rosto!
Sem expressão, cheio de cicatrizes que o deixam parecendo ainda mais sombrio. Seus
olhos escuros combinam com o cabelo preto cortado no estilo militar. O viking, de repente, me
parece o menos perigoso agora.
— Já disse que não sei de nada! Eu não vi nada! — falo apressado.
— O que você estava fazendo naquele beco? — O homem sombrio se aproxima de braços
cruzados no peito. — Você estava procurando por Carl?
— Eu nem sei quem é esse Carl! Escuta... — inclino o corpo o máximo que consigo e
rosno as palavras. — Estava naquela festa chata, querendo furar meus próprios olhos com o
garfo, quando decidi sair para fumar. Foi a droga de uma coincidência infeliz!
— Eu já disse que não acho isso.
Desvio para o viking, tentado a mostrar a ele meu dedo do meio.
— Sou um advogado jurídico comum! Cuido de questões financeiras, cobro dívidas dos
clientes do meu pai! — Solto um gemido, tombando a cabeça para trás e fecho os olhos. —
Maldita hora que saí pra fumar.
— Você cobra dívidas? — O cara sombrio se aproxima e abro os olhos para vê-lo me
olhando de cima. Caralho, ele é alto. — Seu pai é agiota?
Engasgo, sacudindo a cabeça.
— Não! Ele é um homem comum. Trabalhamos com finanças e exportação de produtos.
— Exportação... — o viking inclina a cabeça para o lado, seu indicador coçando o
piercing de argola em seu nariz. — Então seu pai é o chefe dos Profanos?
Fecho os olhos enquanto nego com a cabeça. Quero gritar. Ou atirar meu sapato na cabeça
desse viking idiota. Talvez eu faça as duas coisas. Bater nele enquanto grito.
— O que você acha, Orlov? — O loiro viking pergunta, mas continua me olhando, seus
frios olhos cinzentos me analisando.
— Eu não tenho nada a ver com os problemas de vocês. Me soltem, porra! — Me balanço
sobre a cadeira, quase a fazendo tombar.
Orlov me segura antes que eu caia de costas no chão. Bom saber que há um nome para o
rosto me encarando. Ele dá a volta na minha cadeira, seu rosto cheio de cicatrizes me fazendo
tremer. Olhos escuros como o breu, escondendo todo tipo de maldade e astúcia. Orlov se inclina
na minha direção, braços cruzados, o bico do seu sapato caro batendo contra o chão.
— É realmente muito estranho Carl sair para fumar e você aparecer em seguida. É quase
como um encontro para verificar que ele fez o trabalho e fodeu com nossa encomenda.
— Encontro... — bufo, incrédulo. — Sou um advogado, pelos deuses! Vocês, por acaso,
são surdos? — Remexo os braços, incomodado com a corda amarrada em meus pulsos nas
costas. — Eu saí para fumar. Estava só fumando! Que culpa eu tenho se vocês resolveram... —
Solto um gemido engasgado ao olhar o homem caído com a bochecha rasgada. — Tomar
providências criminosas no mesmo beco?
O loiro viking abre um sorriso que envia calafrios pela minha espinha.
— Me deixe arrancar as unhas dele, Orlov. Vai fazê-lo cantar como um passarinho.
Engulo em seco, desviando os olhos do maníaco e indo para o sombrio alto. Ainda não sei
qual deles é pior.
— Pode tirar todas as minhas unhas, me cortar em pedaços e jogar para os cães. Vocês
estarão fatiando o cara errado! — exclamo, fingindo uma coragem que não tenho.
Os olhos de Orlov observam meu rosto com calma analítica. Acho que devo ter mais
medo dele. Pessoas calmas mesmo em situações de estresse são aquelas com maior tendência à
psicopatia. Eu li isso em um livro de psicanálise da faculdade, quando aquela minha parte
obsessiva estava tomando conta.
Orlov descruza os braços e exala pesadamente.
— Alguém fodeu com a nossa família e Carl não trabalhou sozinho. Você me parece
alguém inteligente. Se não faz parte dos Profanos, deve ser daquela nova organização. Como é o
nome mesmo? — Orlov estala os dedos na direção do viking.
— Não pergunte a mim. Eu não guardo os nomes dos nossos homens, que dirá dessas
organizações pequenas. — O viking olha para o outro como se estivesse ofendido.
— Escutem aqui. — Chamo a atenção de ambos novamente. — Estou pouco me fodendo
para vocês e sua máfia. Eu estava na droga de uma confraternização de trabalho e saí para fumar
porque aquilo estava um porre! Lugar errado, hora errada.
— Ele parece estar falando a verdade. — Orlov torna a bater o bico do sapato contra o
chão.
Isso parece ser uma mania.
— Eu voto em deixarmos ele trancado. — O viking me olha, sua cabeça inclinando
suavemente. — Amarrado, de preferência.
— Deixe suas torsões sexuais de lado por um momento e foque no problema, Hunter! —
Orlov aperta a ponte torta do nariz adunco entre os dedos.
— Mas estou focado! Tenho culpa dessa pequena lisichka ser atraente? As tentações
derrubaram demônios por menos.
Hunter.
Viro lentamente minha cabeça na direção do homem que chamei de viking até agora.
Morando em Toronto e lidando com todo tipo de pessoas, o nome Hunter era como a praga na
boca da maioria das pessoas. Principalmente da polícia. Ninguém sabia como ele se parecia, já
que nem uma pessoa sobrevivia a um encontro com o homem para contar história.
Hunter, também conhecido como o Executor dos D’Angeles. Frio, sociopata sanguinário
e procurado por diversos assassinatos, nenhum deles comprovados de que foram obra de suas
mãos. Porém, olhando-o tão de perto, é mais do que certo de que foi ele quem cometeu todos
esses crimes pela família mafiosa.
E, muito provavelmente, eu seja o próximo a banhar suas mãos com meu sangue.
Caralho, hoje realmente não é o meu dia.
“I'll steal your soul
I'll eat you whole
Ain't no other way”.
(Call Me Devil, Friends in Tokyo)
O medo nunca é diferente nos olhos do ser humano. Vejo o exato momento em que a
compreensão cai sobre o homem sentado e amarrado à cadeira. O reconhecimento, então o
estremecimento e a perspectiva de que irá morrer. Entretanto, a última parte é falsa. Não tenho
intenção alguma de matá-lo. Estar no lugar errado, na hora errada, não te faz exatamente uma
pessoa perigosa. Às vezes.
Eu mato estupradores, traidores e a polícia quando entram no meu caminho. Pessoas que
sabem demais e falam demais. Caras como esse sentado na minha frente? Não. Eu não faço isso.
Entretanto, é realmente divertido vê-los suar. E esse advogado com olhos aterrorizados sendo
encobertos por uma falsa coragem, é praticamente delicioso de ver. E há algo brilhando no fundo
quando me olha. Algo cruel sendo segurado.
Inclino a cabeça, analisando como ele ergue o queixo, fingindo que sua respiração não
gaguejou ou que engoliu em seco. Seus olhos desviam de mim, me evitando. Isso me excita e me
dá raiva ao mesmo tempo. Quero esses olhos raivosos sobre mim, assim como mantenho os
meus sobre ele.
Flexiono os dedos, tentado a descascar cada pedaço de suas defesas, desembrulhar seu
corpo e alma como um presente de Natal que nunca tive. Estou me sentindo obsessivo por esse
homem desde o momento em que o vi pela primeira vez. Observo Mikhail rondar o homem
como se fosse sua próxima presa, e isso me faz grunhir. Piora quando se inclina e toca os bolsos
de fora do terno do prisioneiro em busca de uma carteira ou telefone.
Meu irmão tira um molho de chaves e as joga no chão, então encontra um celular. A tela
está apagada, além de estar rachada, e aparentemente o aparelho está morto. Assim, Mik o
descarta ao lado, junto com as chaves. Ele encontra um maço de cigarros e um isqueiro, ambos
de marcas caras, e os guarda em seu próprio bolso.
Cretino.
Puxo um cigarro e levo aos lábios, acendendo antes de me levantar e aproximar de
Mikhail, agora vasculhando os bolsos da calça do cara. Estalo o pescoço, mantendo o rosto
impassível.
— Se você queria passar a mão na minha bunda, era só ter falado. — O advogado funga,
seus olhos indo para mim e tornando a desviar. Porra. — Perdi minha carteira mais cedo.
— Quão conveniente — resmungo.
Vejo-o estremecer outra vez, os olhos fechando antes de abrir rapidamente e aquela
máscara de coragem e obstinação cair sobre seu rosto outra vez.
É isso.
Vou manter comigo esse brinquedo bonito que encontrei e vê-lo quebrar devagar. Ver sua
pose corajosa se tornar uma pequena massa trêmula corrompida e despedaçada.
Mikhail empurra a corda um pouco para baixo e enfia a mão dentro do terno. Me
pergunto: qual é a sensação de sentir os dedos roçando contra aquele colete cheio de botões
prateados? Nunca tinha visto um homem usando esse tipo de coisa. Tão... apertado. Moldando as
curvas do corpo esguio, deixando sua respiração comprimida.
Cerro os olhos, soprando a fumaça do cigarro com força quando Mikhail puxa vários
cartões vermelhos com letras douradas. Me aproximo dele, inclinando o corpo para conseguir ler.
Mikhail os vira na mão, um nome e telefone aparecendo igual em todos eles.
— Mas que porra... — murmuro. — Como que se pronuncia isso? É um palavrão?
O advogado arqueja, sua boca aberta e os olhos furiosos.
Gosto desta expressão nele.
— Kraisee! Meu nome é Kraisee, com um prolongado "e" no final. — Seu queixo se
projeta para frente com orgulho. — Sou de origem tailandesa, meu nome é quase musical e
significa “valente como um leão”.
— Hm. É um caralho de nome impronunciável — falo.
Seus olhos cerram para mim e posso ver o quanto ele luta para retrucar. Gostava mais
quando ele não sabia quem eu era. Preciso daquela língua ferina de volta. Sorrio com indulgência
apenas para irritá-lo, o que funciona. Seu maxilar trabalha, seu corpo inclinando contra suas
restrições e vermelho manchando suas bochechas.
Isso, assim mesmo.
— Valente como um leão? — Me aproximo dele, soprando a fumaça do cigarro em seu
belo rosto. — Está mais para um pequeno gatinho assustado, Advogado.
Seu olho esquerdo treme. Ele parece prestes a ter um aneurisma.
— Kraisee Wongsa — Mikhail diz, cortando minha felicidade. Por um breve momento,
esqueci que ele ainda estava na sala. — Você trabalha para a RW Golden Group?
Seu rosto está torcido antes de suspirar e seus ombros caírem.
— É o que venho dizendo há horas! Mas vocês não me ouvem. Muito som de tiro
prejudica a audição?
O olhar morto de Mikhail é direcionado a Kraisee. Vejo-o engolir em seco e se remexer
na cadeira, desviando os olhos para o chão. Cruzo os braços, o cigarro pendendo na minha boca
quando olho para Mik.
— E então? O que fazemos com ele?
Mikhail bate o cartão contra o queixo, analisando.
— Ele viu o que fizemos com Carl...
— Eu não vi nada! Não sei de nada! — Seu corpo pula frenético sobre a cadeira, quase
tombando para frente. — Juro! Sou advogado, sei manter minha boca calada sobre um cliente!
Por favor, não me matem.
O som engasgado naquele pedido, quase sussurrado, envia pequenos arrepios pela minha
pele. Ao contrário de todas as súplicas que já recebi nos últimos anos, as quais não me importei
com nenhuma, a forma como Kraisee roga pela sua vida tem um som diferente em meus ouvidos.
Eles caem como gotas de mel e quero ouvir mais e mais cada súplica que pode sair por entre seus
lábios.
— Hunter, as regras sobre não manter testemunhas...
— Não podemos matá-lo — respondo.
Não agora.
Sequer tive tempo de brincar com ele. Me balanço sobre os pés, olhos presos na forma
como Kraisee olha entre mim e meu irmão, esperando. Esperança brilhando nos olhos escuros.
— Ele não pode andar solto por aí — meu irmão retruca.
— Como testemunha, não. A não ser que se torne um cúmplice — falo, olhando para
Mikhail.
Meu irmão me observa como se tivesse crescido outra cabeça em mim. Suas sobrancelhas
arqueiam conforme seu corpo vira lentamente na minha direção.
— Cúmplice? Você vai fazê-lo furar o crânio de Carl ou algo assim?
— O quê? — Kraisee ofega, seu rosto ficando pálido.
Bato as cinzas do cigarro e aponto para o advogado bocudo.
— Não vou deixar alguém inexperiente colocar a mão no meu trabalho. Só, talvez, deixá-
lo assistir?
— Tenho certeza de que ele não suportaria, Hunter — Mikhail murmura, balançando a
cabeça.
— O que faremos então? — Meneio a mão, batendo as cinzas do cigarro e aponto para o
advogado bocudo muito quieto agora. — Ele me viu rasgando um sorriso na cara feia de Carl
com minha faca. Nós o sequestramos. Ele sabe quem nós somos agora.
— Sim, ele é uma testemunha. E existe um caralho de regra para isso que é: eliminar
testemunhas, Hunter — Mikhail diz com um suspiro.
Sopro a fumaça devagar e jogo a bituca no chão, apagando com o bico da bota.
— Não seria melhor manter ele por perto até descobrirmos mais? E, se for confiável,
podemos colocá-lo para trabalhar. Forest tem as mãos cheias e seu pessoal é escasso já que o
demônio velho não confia em muita gente.
Olho pra Kraisee, pensando. Ele pisca, sua boca abrindo e fechando para gritar em
seguida:
— Não vou trabalhar para vocês!
Me inclino sobre ele, minha mão no encosto da cadeira quando coloco meu rosto pairando
sobre o seu. Seus olhos arregalam, lábios entreabertos.
— Ou você trabalha para nós, ou está morto. Apenas duas opções para escolher,
Advogado.
Ele fecha os olhos, oscilando suavemente. Quando os abre, sua língua passa pelo lábio
inferior, me tentando a mordê-lo.
— Tudo bem — sussurra.
Com um sorriso de lado me endireito novamente e assinto devagar.
— Perfeito. Assim, temos um novo parceiro de negócios.
Kraisee geme.
— Por favor, não me chame assim.
— Não? — Arqueio uma sobrancelha. — Que tal comparsa de crime? Ou cúmplice
complacente?
Os ombros de Kraisee retesam, seu rosto sério.
— Quem diria que o Executor teria tantas palavras difíceis em seu vocabulário.
— Você ficaria surpreso com o que minha boca pode dizer e fazer. — Passo a língua nos
dentes.
— Chega — Mikhail murmura, enfiando o cartão vermelho em seu bolso. — Como
podemos garantir que ele vai ser leal a nós?
— É a minha vida em jogo aqui, amigão. Acha que arriscaria meu pescoço? — Kraisee
questiona, sobrancelhas arqueadas.
Oh, sim. Essa bravata encobrindo o medo.
Posso até sentir o cheiro saindo pelos poros de sua pele.
Meu irmão observa o advogado com atenção, seu rosto não deixa transparecer nada de
seus pensamentos.
— Vou descobrir cada pedaço da sua vida, senhor Wongsa. Pessoas que ama, com quem
se importa. Cada um deles vai ter uma mira na testa a partir de hoje. Conte a alguém qualquer
coisa que descobrir sobre nós e vamos ficar sabendo. — Mikhail ajusta as mangas da camisa,
seus olhos escuros presos em Kraisee. — E você não quer que isso aconteça, certo?
Kraisee balança a cabeça com força, negando. Mikhail se vira para mim.
— Hunter, sua ideia, seu problema. Você será responsável por ele, entendeu? Se o senhor
Wongsa pisar fora da linha e foder com a gente de alguma forma, a culpa será sua. E você está
falando com a Pops sobre isso.
— Ad[11] — resmungo, cruzando os braços.
Mik me olha, parecendo saber exatamente o motivo pelo qual estou mantendo Kraisee
conosco. Meu irmão exala baixinho, derrotado, o bico do seu sapato batendo contra o chão três
vezes antes de olhar para Carl gemendo no chão.
— E nosso amigo?
— Vou te dar as honras e começar sem mim. — Pego minha faca do bolso e paro atrás de
Kraisee, cortando as amarras. — Estou levando nosso parceiro para casa.
— Não me chame assim! — Kraisee exclama ao ter os pulsos soltos e os esfrega.
Agarro sua nuca, nivelando nossos olhos. Meu polegar aperta sobre o pulso acelerado em
sua garganta macia e sorrio com frieza.
— Posso te chamar como quiser a partir de agora, Advogado. Acostume-se.
— Odeio você — resmunga.
Solto uma risada nasalada e caio sobre um joelho, cortando as cordas dos tornozelos dele.
— Posso conviver com isso. Você quer fazer de mim um vilão, então, é o que serei. Até
que mude de ideia.
— Não vai acontecer — fala ao levantar-se, recolher suas chaves e celular do chão.
Observo a forma de sua bunda redonda nessa calça social justa, abraçando suas coxas
esguias e firmes. A vontade de morder cada lado me tenta. Kraisee se ergue alinhando os ombros
e sai andando, me dando as costas.
De novo.
Esse homem atrevido deve receber uma lição por isso. Mikhail me observa por alguns
segundos, exalando pesadamente.
— Espero que saiba o que está fazendo — diz, jogando as chaves do carro para mim e
puxando suas luvas de couro vermelho.
— Eu sempre sei o que estou fazendo. Não me trate feito idiota.
— Então, não aja como um. — Meu irmão rola os ombros e abre a bolsa de lona preta,
tirando seus instrumentos. — Não se atrase. Não quero ter de limpar essa bagunça sozinho.
Aceno sobre o ombro com um grunhido e desço os degraus até o térreo. Kraisee está do
lado de fora, braços cruzados e ombros erguidos em suas orelhas, olhando ao redor como um
filhote perdido. O frio cortante me faz trincar os dentes, mesmo vestindo uma jaqueta grossa.
Pairo atrás dele e vejo seus ombros retesarem.
Bom. Ele sabe quando estou à espreita.
Seguro seus ombros, inclinando até minha boca roçar sua orelha.
— Nunca, em hipótese alguma, me dê as costas, Advogado. Eu levo isso como uma
grande ofensa. Entendidos? — Passo meu nariz pela curva de sua orelha, meus dedos apertando
seus ombros quando ele assente em compreensão. — Eu não o ouvi.
— Sim, senhor.
Sorrio.
— Bom menino. Entre no maldito carro antes que congele sua bunda.
Aperto minha palma no centro de suas costas, empurrando-o na direção do veículo. Sua
respiração gagueja um pouco quando desligo o alarme e puxo a porta do passageiro para ele
entrar. Kraisee me dá um olhar estranho quando senta e bato a porta quando ele abre a boca. Dou
a volta no carro e me jogo no assento atrás do volante, batendo a neve dos ombros.
A sensação estranha logo me envolve. Inspiro pelo nariz, envolvendo o volante com meus
dedos e apertando o couro. O carro de Mikhail consegue ser ainda mais apertado que o meu, me
fazendo sentir comprimido, necessitando tirar minha própria pele com as unhas.
— Está tudo bem?
A voz de Kraisee penetra a nuvem claustrofóbica e viro para olhá-lo. O que ele vê em
meu rosto faz com que seus dedos torçam ao redor do cinto de segurança, colando as costas na
janela. Rolando os ombros, volto a olhar para frente e solto o aperto do volante, expirando.
Ligo o aquecedor, deixando o interior do carro esquentar. Mesmo que essa sensação de
frio que eu sinto não tenha nada a ver com a neve lá fora.
— Me dê a direção da sua casa. E mantenha a cabeça entre os joelhos até chegarmos lá.
— Não posso ir para casa — diz, sacudindo a cabeça. — Preciso voltar para o Grand
Empire. A essa hora, já devem ter servido o jantar e...
— Sua casa, Advogado. Agora. — Olho para ele, não deixando espaço para mais
murmúrios.
Com um resmungo, ele me passa o endereço. Porra, esse bairro não é um dos melhores. O
que um advogado, com roupas caras como ele, faz morando em um lugar como esse? Ele deveria
se mudar urgentemente. Aperto minha mão em sua cabeça, empurrando-a entre seus joelhos
quando saio do pátio de edifícios abandonados e entro na estrada.
— Esse não é um jeito seguro de andar de carro. Se sofrermos um acidente, eu posso...
— Você vai morrer com a minha faca na sua garganta se erguer essa cabeça. Mais fácil
isso acontecer do que um acidente, acredite em mim.
— Como eu posso saber disso, idiota louco? — murmura irritado, parecendo um pouco
ofegante. — Inferno, Dominic vai ficar furioso comigo.
— Quem é esse? — pergunto, olhando-o antes de entrar na via rápida da cidade.
— Ninguém importante.
Isso me irrita. Se o nome desse homem rolou por sua língua, ele deve ser importante.
Namorado? Amigo? E por que isso está me deixando tão furioso? Estalo o pescoço, engatando a
marcha com mais força que o necessário.
— Orlov vai revirar toda sua vida do avesso, Advogado. Se você não me disser agora,
meu irmão vai descobrir dentro das próximas horas.
— Aquele homem é seu irmão? — Kraisee ergue a cabeça, me fazendo empurrá-la para
baixo novamente. — Filho da puta, quase me fez morder a língua!
— Se você não falasse tanto, não correria esse risco. — Pego um cigarro, acendendo-o
quando paro no semáforo.
— Já estamos na cidade, não há necessidade disso. — Ele senta reto, mesmo depois que
empurrei sua cabeça para baixo. Teimoso. Kraisee puxa seu terno e ajeita a gravata ao virar e me
olhar. — Tem ideia de como é difícil ficar curvado usando isso?
Sua mão gesticula para o colete apertado pouco antes de simplesmente roubar meu cigarro
e dar uma tragada. Arqueio uma sobrancelha, pegando meu cigarro de volta.
— Se te aperta, você sempre pode tirá-lo. Não me importo de um pequeno show. —
Sopro a fumaça, nublando sua expressão por um breve momento.
— Bem que você gostaria. — Seus olhos caem sobre mim com frieza. — Já disse e repito:
não durmo com assassinos. Estou trabalhando com sua organização agora, por livre e espontânea
pressão. É apenas isso que vai conseguir de mim.
— Veremos — murmuro.
Olho-o de lado, soprando a fumaça e abrindo a janela apenas o suficiente para ela sair.
Bato as cinzas, engatando o carro e seguindo em frente. Kraisee solta um grunhido baixo e
irritado, e aperta entre os olhos com o indicador e o polegar.
— E outra coisa, se eu dissesse à polícia o que vi essa noite e o caminho para chegar
naquele prédio abandonado, vocês saberiam imediatamente que sou eu o delator. Quão estúpido
pensa que sou?
— Devo mesmo responder a essa pergunta? Você correu de mim, como se fosse um
maratonista, só porque me viu cortar um cara.
Sua risada sai cáustica.
— Bom, pessoas normais, como eu, acham que “cortar um cara” é algo bastante absurdo.
— Você não é um gato valente, ou o que quer que seja a merda que signifique seu nome?
— zombo.
— Vá para o inferno.
— Oh, querido, de onde acha que eu venho? — questiono, estacionando o carro na frente
do conjunto de prédios. — O inferno é minha casa, Advogado. Estou aqui na Terra apenas a
passeio. — Apago meu cigarro no porta-copos e sopro o resto da fumaça. — Chegamos.
— Graças aos deuses, porra — resmunga, tirando o cinto.
Sua mão engancha na maçaneta interna da porta, mas ela não abre. Kraisee vira para mim
e eu o olho, ficando de frente para ele e apoiando o braço no volante.
— Destrave a porta.
— Estou esperando um convite para o jantar.
— Não costumo convidar animais para dentro do meu apartamento. Quer dizer, nem
sempre — sussurra as últimas palavras, suas sobrancelhas franzidas e seus lábios comprimidos
por alguns segundos antes de chacoalhar os ombros. — E o síndico não permite tipos como você
andando pelos corredores.
— Tipos como eu? — Me inclino na direção dele. — Você quer dizer dono de uma beleza
assassina?
Kraisee lambe o lábio inferior, seus olhos migrando para minha boca antes de voltar para
meus olhos.
— Do tipo louco. Agora, abra a maldita porta.
— Nós ainda não conversamos sobre os termos — falo, meu indicador brincando com
uma mecha castanha do seu cabelo.
Kraisee bate minha mão para longe.
— Quais termos?
— Ninguém deve saber que você está trabalhando para os D’Angeles a partir de agora.
— Se eu contar, o que acontece? Vocês cortam minha língua?
Eu apenas continuo olhando e Kraisee engole, assentindo.
— Entendi. Não se preocupe com isso.
— Pops preza pela discrição e o pagamento em troca é realmente bom se você for
obediente. Faça seu trabalho, mantenha a cabeça baixa, obedeça às regras. Acha que consegue
fazer tudo isso, Advogado?
— Sei muito bem como me comportar, sr. Hunter. Sou ótimo em receber ordens e
executá-las sem ter um cão de caça fungando no meu cangote. — Ele expira pelo nariz com
exasperação. — Posso ir agora?
Observo-o calmamente quando assinto. Clico no botão de trava das portas, abrindo-as.
Kraisee empurra a dele, botando seu pé para fora quando minha voz soa baixa e ameaçadora.
— Mais uma coisa. — Olho para Kraisee quando seus olhos pegam os meus sobre seu
ombro. — Não fuja de mim outra vez. A não ser que você queira acabar acorrentado no pé da
minha cama.
Seu maxilar trabalha quando ele assente uma vez, rigidamente.
— Não vai acontecer.
— Ótimo. Você está jogando o meu jogo agora, Advogado. Não tente trapacear, pois não
sou muito paciente com trapaceiros.
Observo Kraisee sair do carro e bater a porta com mais força que o necessário. Sigo-o
com os olhos quando passa pela entrada e desaparece. Fico ali, esperando, até que, no quinto
andar, uma luz se acende na lateral do prédio. Então mais outra. Segundos depois, a cortina de
uma das janelas é puxada e o rosto de Kraisee surge, carrancudo.
Só saio da vaga quando a cortina é fechada com força. Na esquina, um grupo de homens
está sentado em roda, fumando e jogando conversa fora. Uma arma brilha na cintura de um
deles. Seus olhos seguem meu carro e vejo pelo retrovisor eles trocarem pequenos saquinhos
brancos de uma mão para outra.
Sim, Kraisee precisa se mudar daqui.
Rápido.
'Cause better to know the devil you know
The devil you don't”.
(The Devil You Know, X Ambassadors)
A vida não deveria ser tão difícil assim. Já faz três dias que fui sequestrado e, para salvar
minha pele, passei a trabalhar para a máfia. E não qualquer máfia, mas para a Família
D’Angeles. Uma das mais perigosas da cidade. Uma que nem mesmo a polícia consegue
desmembrar e prender seus integrantes. Até mesmo pensar sobre isso parece loucura.
E não me atrevo a dizer em voz alta.
Ainda mais depois de ver o jornal na manhã seguinte. A pouca paz que eu tinha se tornou
zero. Aquele só poderia ser Carl e o trabalho de Hunter. A foto granulada do corpo no cais,
dizendo que sua cabeça estava em um espeto e o corpo jazia espalhado pelo chão em diversos
pedaços. Cada parte tinha a palavra “traidor” esculpida na pele, obra da ponta de uma faca. E eu
sabia muito bem a quem pertencia essa faca.
Horrendo e assustador, mas tão singular.
A sensação de estar sendo observado é enervante e duvido que seja coisa da minha
cabeça. Desde o momento que saio de casa, tenho olhado sobre meu ombro a cada passo que
dou, pensando encontrar aqueles olhos frios me espionando. Ainda posso sentir o toque dos
dedos de Hunter em minha nuca, seu hálito quente na minha orelha, a pressão de sua faca entre
minhas omoplatas.
Meu corpo se arrepia de excitação, para meu completo terror. As sombras, que pensei ter
enterrado profundamente, estão muito perto da superfície agora. Se enrolando em meus membros
e me provocando. Eu e meu grande problema de ser atraído por pessoas problemáticas, onde me
sinto tentado a consertá-las.
Hunter não possui conserto.
Se eu me envolver com ele, a tendência será ele me arruinar.
Aqueles olhos frios e sorriso cruel foram como um chamariz, completando com a rápida
imagem frágil dentro do carro. Como seus dedos torceram ao redor do volante e ele sufocou,
como se estivesse se sentindo preso. Como se precisasse... de ajuda.
Talvez o Executor dos D’Angeles não seja realmente tão cruel assim...
— Está ouvindo o que estou falando, Kraisee?
Pisco, percebendo como esse pensamento foi ridículo, e foco no rosto irritado do meu pai.
Seu pescoço está vermelho, suas narinas largas ao respirar com força. Tudo porque Maxwell foi
detido. Ray só não está tão furioso comigo saindo da festa antes do planejado visto que eu
consegui os potenciais clientes que ele tanto queria. Mamãe é outra história. Caitlin acha um
absurdo que eu tenha fugido antes do quinto item ter sido leiloado.
Como se eu tivesse saído por conta própria.
Não que eles saibam disso, de qualquer maneira. Ela está me dando o tratamento de
silêncio, e agora mais isso: ter de resgatar Max da cadeia. De novo.
— Eu... Desculpe, pai. O senhor dizia?
Seus olhos me observam por longos segundos silenciosos antes dele estalar a língua e
apoiar as mãos na cintura. Engulo em seco, sabendo muito bem o que essa posição significa: Ray
está furioso. Vi ele fazer muito disso quando falava com Max antes de puxar meu irmão pela
orelha e trancá-lo em um quarto para ter uma boa surra. Em quatorze anos, meu pai nunca ergueu
a mão para mim, no entanto. Fiz de tudo para isso não acontecer.
Um bom garoto, sempre.
— Seu irmão está sendo fichado e você continua parado como uma estátua estúpida. Faça
algo pelo seu irmão, Kraisee, ou nossa conversa vai ser diferente.
Mas o erro não foi meu.
Mordo a língua antes que deixe escapar. Max, com seu temperamento baixo, discutiu com
o garçom sobre a porcaria de um talher. Meu pai continua dizendo que o errado é o garçom por
não fornecer outro. E eu, com a minha opinião bem escondida, acho que Max só estava querendo
uma briga rápida.
Sorrio, tentando apaziguar seu mau humor.
— Pai, Max já está sendo solto. Foi esclarecido o mal-entendido e...
— Eu quero a ficha dele limpa, Kraisee. Consegue me entender? Ou sua audição precisa
ser melhorada? — pergunta, arqueando as sobrancelhas.
— Entendi. Vou conversar com o policial encarregado, pai. Não se preocupe com isso. —
Balanço a cabeça, segurando o suspiro de alívio quando ele assente.
— Finalmente você está na terra, garoto. Além de fugir da festa da sua mãe na sexta, sua
mente está flutuando. — Sua mão meneia e, então, meu pai exala pesadamente. — Tanto a se
fazer e Max me inventa esse problema.
— Eu sei o caminho, caralho. Me solta!
Viro para encontrar Maxwell caminhando pelo corredor, olhando feio para o policial
encarregado de escoltá-lo. Max ajeita sua jaqueta e passa a mão pelos cabelos quando caminha
na nossa direção. Seus olhos passam por mim rapidamente antes de voltar para nosso pai.
— Vamos embora. Esse lugar fede.
Ray olha para Max com uma máscara estóica. O homem pode ser mais baixo que nós
dois, mas a presença dele não pode ser ignorada. A forma como nos olha, faz com que
abaixemos a cabeça e desviamos o olhar para o chão. E é o que Max faz após nosso pai continuar
sem dizer nada, apenas olhando.
Ray vira para mim, e minha espinha estica.
— Termine de limpar a bagunça aqui. Max e eu iremos para casa para uma... conversa. —
Ray pega Max pela nuca, abaixando-o até seus rostos estarem no mesmo nível, e sorri. — Uma
boa conversa. Não é?
Vejo Max estremecer suavemente antes de assentir. Entretanto, não consigo sentir pena
dele. Maxwell fez sua própria cama, agora deve dormir nela. Enfio a mão no bolso da calça,
observando os dois saírem da delegacia lado a lado enquanto eu fico para trás.
Alinho os ombros, indo terminar o trabalho o mais rápido possível para poder voltar para
casa e dar esse dia por acabado. Dwayne, o Oficial-Chefe da delegacia me olha, sabendo muito
bem o que estou fazendo aqui. Nossa conversa durou alguns minutos, o suficiente para me deixar
sentindo sujo. Quando saio de sua sala, sinto que preciso de um banho de alvejante para tirar da
pele a sensação pegajosa.
Aquela parte sombria em mim continua sussurrando sobre o problema não ser o fato de
ter de subornar alguém, mas o motivo disso. Max provocou todo esse problema e tenho que
limpar a bagunça dele. O idiota não merece que eu limpe sua sujeira.
Sacudindo o corpo, saio da delegacia e respiro o ar gelado do início da noite. Pego um
cigarro, resmungando rancoroso sobre Orlov ter me roubado da última vez. Acendo a ponta,
inalando profundamente antes de soltar devagar, sentindo meus nervos um pouco mais relaxados
com a nicotina. O sol se pôs há algum tempo e as luzes da cidade brilham. Quando o verão
chegar, vamos ter um pouco mais de tempo de luz natural, mesmo que eu goste das sombras a
noite.
Meu celular vibra no bolso e bato as cinzas do cigarro ao mesmo tempo em que sinto
aquele arrepio na nuca. Meus dedos seguram o cigarro com força conforme giro lentamente.
Meus olhos pegam cada parte da rua e os becos escuros, parando no homem alto apoiado na
parede perto da esquina. A luz do poste lança sombras sobre seu rosto, suas feições brilhando por
um momento quando a chama do isqueiro acendo o cigarro.
Olhos claros me observam antes da fumaça nublar seu rosto. Engulo em seco quando o
vejo olhar sobre o ombro, na direção da delegacia, e então de volta para mim. A ameaça em seu
rosto duela com perguntas aguardando uma resposta. O vento bagunça seu cabelo loiro solto, se
enroscando no pescoço tatuado e em sua barba clara.
As sombras dentro de mim se remexem com expectativa e eu as empurro para baixo outra
vez. Dou um passo para trás e Hunter se afasta do muro. Dou mais outro passo e ele balança a
cabeça de um lado para o outro devagar. É claro o que ele quer dizer. “Não corra”. Hunter já
disse que eu não deveria dar as costas para ele outra vez.
Porém, o medo fala mais alto.
Assim, giro nos calcanhares e corro. Atiro o cigarro no meio fio e aceno freneticamente
para um táxi, gritando para parar e entrando antes mesmo que tivesse freado.
— Vamos! Rápido!
— Para onde... — O homem tenta perguntar, mas eu o corto.
— Acelere! Agora!
Os pneus do táxi cantam e sou jogado para trás no banco. Meu coração bate forte no peito,
subindo para a garganta quando me atrevo a olhar para trás. Ainda na calçada, parado no mesmo
lugar, Hunter continua me observando. Está escuro, mas posso dizer que, em seu rosto, há aquele
sorriso predatório.
Com dedos trêmulos, recosto no banco e cubro meus olhos com a mão. O que foi que eu
fiz? Fugir de novo do Hunter não foi minha melhor escolha, mas o homem me assusta pra
caralho! Da última vez, fui pego e amarrado. O pior de tudo é que o filho da puta sádico sabe
onde moro.
Solto um gemido quando o motorista pergunta:
— Para onde, senhor?
Abro a boca para dizer a ele para me levar até a mansão do meu pai. Melhor o diabo que
eu conheço do que aquele que não conheço. Porém, meu celular vibra outra vez e, com um
gemido, pego o aparelho do bolso. Olho para a tela ainda trincada do meu celular, vendo a
mensagem de Dominic.
Você não pode escapar de mim como fez o final
de semana inteiro, Keener!
Estou na frente do seu apartamento.
Se atreva a não aparecer, covarde!
Oh, mas que merda!
Esfrego o rosto, entregando ao taxista meu endereço e vendo-o torcer o rosto com
desgosto. Um dos motivos de evitar pegar táxis é que a maioria odeia ter que entrar nessa parte
da cidade onde moro. Não é um bairro muito seguro.
Poderia muito bem deixar Dominic plantado na frente do meu apartamento, mas corro o
risco de encontrar seu corpo ensanguentado na minha porta ou, pior, ele ter seus bolsos
esvaziados por ladrões e eu teria de ouvi-lo pelo resto do mês sobre como meu bairro é terrível e
eu deveria me mudar.
Assim que o táxi para, apalpo os bolsos e lembro que ainda não comprei uma carteira
nova. Pedi uma nova emissão dos documentos, mas ainda vão demorar a ficar prontos. Com o
aplicativo do banco, pago o dobro do valor da corrida ao taxista. Não reclamo, afinal, o cara
ainda me deixou na entrada. A porta do carro mal se fecha e ele está partindo tão rápido quanto
escapei do Hunter minutos atrás.
Estremecendo com a lembrança, enfio as mãos nos bolsos e corro na direção do meu
prédio com cuidado. Há neve pelo caminho e meus sapatos estão mais lisos que sabão. Meus
dedos dos pés podem estar um pouco congelados agora. Dou um único aceno firme para três
homens perto do portão e eles me observam passar.
— Vamos cobrar a mais. Está recebendo muita visita, doutor.
Empurro o portão de acesso, assentindo rapidamente, e passo para o lado de dentro. O
som da tranca não me acalma e apresso os passos para o elevador, batendo o dedo no número do
meu andar. A falta que faz um porteiro nessas horas... O som das engrenagens é alto e sacode um
pouco, mas a subida é rápida. Quando as portas se abrem, Dominic está parado na minha frente
de braços cruzados.
— Seu lugar é uma droga.
— E eu deveria me mudar. — Empurro-o para fora do meu caminho e pego as chaves. —
Entretanto, não estou fazendo isso. Pare de me aporrinhar.
— Certo. Se não posso te encher pelo péssimo bairro, posso exigir respostas de onde você
se enfiou na sexta-feira? — Dominic paira atrás de mim quando abro a porta e me segue para
dentro do apartamento. — Sério, você me convidou para ir junto e desapareceu minutos depois,
me deixando sozinho.
— Engraçado, você me parecia muito bem acompanhado — resmungo.
Penduro o casaco grosso no gancho dentro do armário, deixando meus sapatos com neve
ali e minha bolsa e celular sobre a pequena bancada na cozinha. Acendo as luzes, o espaço
pequeno e apertado.
— Tive mais peitos empurrados na minha cara do que pude contar, concordo, mas não
compensa o fato de que o jantar foi extremamente chato sem você. — Dominic me segue para o
quarto, olhando feio para o gato atravessando o corredor, também atrás de mim. — E você não
deu um fim nesse bicho?
— Não fale assim da Princesa. Ela é pequena e pode se ofender — digo ao tirar o terno e
o pendurar.
Tiro o pulôver preto e o dobro, colocando sobre a beirada da cama, e me sento acariciando
a cabeça de uma Princesa carente no chão.
— É um gato que mais parece um caroço chupado e cuspido. — Dominic faz uma careta
de nojo.
— Pare de falar desse jeito. É só um filhote que quase morreu.
— E que você não poderia ter nesse lugar. — Dominic aperta o polegar entre os olhos. —
O síndico é um cuzão. Não permite animais, mas não liga para a segurança do prédio contra
ladrões.
— Prioridades. — Dou de ombros.
Tiro as meias congeladas e flexiono os dedos para saber se ainda os possuo enquanto
afrouxo a gravata. No sábado, levei o pequeno gato até o veterinário mais próximo e descobri
que é uma fêmea. Um pouco magra, mas sem doenças. Com alimentação correta e carinho,
cresceria forte e saudável. A veterinária perguntou se eu queria deixar a gatinha com eles, presa
dentro de uma gaiola e completamente sozinha até ser adotada.
Eu neguei. Princesa ficaria comigo até encontrar um lugar para ela.
— Keener! — Dominic estala o dedo na frente do meu rosto. — Sexta. Vamos, me conte
o que aconteceu.
Olho-o por longos segundos, minha boca firmemente fechada. Em hipótese alguma
poderia contar ao meu amigo que fui sequestrado por um viking gostoso. Não. Sociopata. Um
sociopata assassino. É isso que Hunter é. Mesmo que ele pareça muito gostoso com aquelas
tatuagens.
— Não houve nada. Eu só queria ir embora. — Dou de ombros, me levantando e indo
para o banheiro.
Bato a porta no nariz de Dominic e a tranco, ouvindo seu resmungo do outro lado. Tiro o
resto das minhas roupas, jogando-as no cesto para lavar e tomo um banho quente e rápido.
Quando saio do chuveiro secando meu cabelo e com uma toalha enrolada na cintura, Dominic
está sentado sobre minha cama com os braços cruzados e Princesa o observa da porta.
— Seu caroço cuspido está me olhando estranho.
Dou de ombros, vasculhando o guarda-roupa em busca de algo confortável, pegando uma
calça e blusa de moletom. Deixo a toalha menor sobre meus cabelos e me viro para encontrar
Dominic me olhando cético.
— Vamos, Kraisee. Aquela festa de sexta era importante. Não acredito que você
simplesmente quis ir embora.
— E pouco me importo se acredita ou não. — Gesticulo para a toalha no meu quadril. —
Agora, você pode me dar licença? Preciso colocar as calças.
— Nós dividimos um apartamento na faculdade. Já vi seu saco murcho diversas vezes.
Esqueceu aquele dia que cheguei mais cedo e você estava com...
Avanço sobre ele no meio da frase e cubro sua boca com ambas as mãos.
— Sim, lembro. Foi constrangedor. Esqueça isso, pelos deuses — rosno.
Solto-o, pegando a calça de moletom caída no chão e enfiando as pernas rapidamente.
Pego ambas as toalhas e as coloco penduradas no banheiro. Coloco uma camisa velha do time de
hóquei e visto o casaco de moletom por cima.
— Se fosse isso de verdade, que você queria tanto ir embora, teria me dito. Mandado uma
mensagem.
— Meu celular morreu. Não tinha como te avisar — murmuro.
Muito menos pedir socorro.
Calço meias grossas e saio do quarto com a Princesa me seguindo, miando, implorando
por um pouco de atenção. Eu a pego no colo, acariciando entre suas orelhas e ligando aquele
barulhinho fofo de ronronar vibrando por seu corpinho peludo. Volto para a sala e meu celular
toca sobre a bancada com uma mensagem, me fazendo olhá-lo receoso.
Hunter sabe onde moro, mas não tem meu número de telefone.
Mordisco o canto do lábio quando o rosto de Dominic surge na frente do meu.
— Você conheceu alguém! — Seu dedo aponta na minha direção de modo acusatório.
— Não, eu não conheci. — Nego, segurando Princesa na frente do meu peito como um
escudo.
Ela abre sua pequena boquinha, chiando com seus dentinhos.
— Sim, você conheceu! E se você está recusando me dizer só pode ser por um motivo. —
Dominic junta as mãos na frente do rosto. — Por favor, me diga que o cara não é um filho da
puta com passado duvidoso.
Cerro os olhos, lembrando da expressão no rosto do Hunter quando nos vimos no beco.
Seus olhos sérios, intensos, magnéticos. A forma como prometiam todo tipo de dor e até
assassinato. Então, como ele pareceu desamparado dentro do carro, perdido.
Não deveria ter me sentido tão atraído assim...
— Filho da puta! — Dominic vocifera, chamando minha atenção. — Kraisee, você tem a
porra de um dedo podre para homens.
— O quê? Sequer conheço o cara direito! Como posso falar que o passado dele seja
duvidoso?
Claro, porque o Executor teria vindo de um berço brilhante de ouro cheirando a rosas e
muito arco-íris. Seu modo sociopata e as milhares de vidas tiradas em seu caminho é apenas um
pequeno defeito que pode ser ignorado.
Pii, errado!
— Sério, eu não posso deixar você sozinho nem por dois minutos.
— Foram, na verdade, mais de quarenta minutos que você passou babando ovo pelo salão.
Dominic faz uma careta.
— Pelo menos eu consegui três clientes lá. Posso começar a engordar minha
aposentadoria. — Ele pisca, sacudindo a cabeça. — Não mude de assunto!
Um toque na porta faz com que nós dois viramos na direção dela. Princesa salta do meu
colo na direção do sofá, caindo entre as almofadas e desaparecendo. Outro toque, dessa vez mais
pesado.
— Você esperava mais alguém?
— Uh... não?
— Isso foi uma pergunta? — Dominic me olha quando o toque se torna mais urgente.
Exalo, caminhando até a porta e olhando pelo olho mágico. O corredor aparece distorcido
e há apenas uma sombra no canto esquerdo. Uma mão se ergue, percebendo que estou do outro
lado, balançando um aceno lento com os dedos.
Dedos tatuados com anéis de caveira prata.
Inferno! Ele chegou rápido aqui.
Engolindo em seco, apoio a testa na madeira e fecho os olhos.
— Toc, toc. Eu sei que está aí, Advogado.
Sua voz soa grossa e baixa, vibrando pela madeira e em meus dedos.
— Quem é, Kraisee? — Dominic questiona, pairando atrás de mim.
— Ninguém — rosno.
— O “ninguém” aqui pode ouvi-los. Abra a porta ou irei derrubá-la, Advogado.
Com um grunhido, destranco a porta, mas não tiro o pega ladrão, e olho pelo vão para
olhos azuis intensos.
— Vá embora. Eu tenho companhia.
Seus olhos cerram, uma mecha loira caindo sobre seu nariz e encobrindo sua feição com
uma sombra.
— Você tem cinco malditos segundos para abrir essa porra de porta — fala com dentes
cerrados.
— Hunter...
— Cinco, quatro, três...
— Tudo bem, tudo bem! — exclamo, me empurrando para longe e chocando a nuca no
queixo de Dominic.
Resmungo, fechando a porta e abrindo o pega-ladrão. Puxo o trinco, batendo a mão no
batente para bloquear sua passagem e o olhando completamente iluminado pela luz do meu
apartamento. Seu corpo parece relaxado contra o batente do lado de fora, seu pé cruzado sobre o
outro. Não me parece com alguém prestes a derrubar uma porta.
Seus cabelos loiros parecem bagunçados pelo vento e ele ainda cheira a cigarro e couro. A
mão que ele acenou segundos atrás, agora brinca com sua faca canivete, girando-a no indicador,
abrindo e fechando. Seu sorriso é sarcástico para mim, se tornando cruel ao ver Dominic parado
logo atrás e pairando como um abutre.
— Atrapalho?
— Sim. Vá embora — falo, ainda bloqueando seu caminho.
Seus olhos voltam para os meus, deslizando por meus ombros, peito, barriga e pernas, até
chegar em meus pés e subir novamente. É quase como uma carícia lenta, e me seguro para não
retorcer no lugar. Entretanto, os dedos dos meus pés me traem e acabam se enrolando dentro das
meias.
— Mande seu amigo para casa, Advogado. Você me deve uma conversa desde sexta.
— Merda, então é ele? — Dominic retruca. — Realmente, Kraisee, você se superou dessa
vez.
Comprimo os lábios, meus olhos presos no rosto de Hunter e a forma como ele olha para
Dominic. Seu corpo se endireita, ombros alinhados e nada mais parece desleixado. Hunter parece
maior do que me lembrava, ocupando quase toda a minha porta com suas roupas pretas e
adereços de prata.
Ele avança um passo e minhas mãos se estendem, batendo contra seu peito. Meu
mindinho pressiona algo abaixo de sua blusa e arregalo os olhos ao perceber que pode ser um
possível piercing. Hunter me observa, pupilas dilatadas.
— Não aperte. São sensíveis.
Mas que... porra?
— Hunter, agora não. — Empurro-o suavemente, ignorando seu comentário. — Por favor.
Sua cabeça se abaixa, seus olhos mirando Dominic enquanto sussurra para mim.
— Adoro ouvi-lo implorar, Advogado, mas não posso atender o seu pedido. Temos um
assunto a tratar, então livre-se do seu amigo ou eu mesmo o farei.
Estremeço com o seu tom. Sei muito bem a forma como Hunter lidaria com Dominic.
Meu amigo é insuportável em alguns momentos, mas também é uma boa pessoa.
Com um suspiro, viro para olhar Dominic com ombros caídos.
— Dominic, acho melhor você ir.
— Nem fodendo vou deixar você sozinho com esse cara! — Dominic cerra os olhos e
cruza os braços. — Ele fede a perigo, Kraisee!
Esfrego as têmporas e agarro a manga da sua blusa, empurrando-o para fora. Passamos
um pouco apertados por Hunter na saída, parado como uma estátua com uma carranca enviando
vibrações assustadoras e, ao mesmo tempo, atraentes.
— Juro que explico depois. Só...
— Não, ele não vai explicar nada. — Hunter me empurra para trás dele e acena para um
Dominic boquiaberto. — Vaza, mudak[12].
Dizendo isso, Hunter bate a porta e passa a tranca. E eu estou preso dentro da minha
própria casa com o diabo que não conheço.
Perfeito.
Nada poderia piorar a partir daqui.
“You should keep running
I'm not one to forget
I get my hands bloody”.
(Can’t Get Enough, Jaxson Gamble)
Existe algo muito ruim nas sombras que residem dentro de mim. Tenho a péssima mania
de me tornar obsessivo-compulsivo por coisas e pessoas. Principalmente se elas são difíceis de
entender. Mikhail deve ter percebido isso naquele dia, mas preferiu ignorar. Meu irmão não
costuma se intrometer quando percebe que estou de olho em um brinquedo novo. Ele sabe que
costumo quebrá-los e jogá-los fora depois.
Assim, Kraisee vai seguir o mesmo caminho de Carl dentro de alguns dias. Enfiado em
um saco preto com seus membros separados para depois serem derretidos. Por enquanto, quero
manter a lisichka por mais tempo. Descobrir mais sobre o que aqueles olhos escuros escondem.
Abri-lo ao meio e encontrar seus tesouros mais profundos.
Soube, desde o momento em que deixei Kraisee sair de dentro do meu carro, que não ia
demorar muito tempo até correr para uma delegacia e nos delatar. Ele disse que não era burro,
mas não costumo acreditar nas pessoas até ver por mim mesmo.
Bastante desconfiado, sim. A vida me ensinou pior que isso.
E este é um dos motivos de não mantermos testemunhas. Passei o final de semana
andando atrás do advogado Wongsa, observando seus passos e montando guarda fora desse lixo
de apartamento. Fiquei o dia de ontem congelando minha bunda no carro, analisando os
documentos que Mikhail havia desenterrado para mim.
Coisas interessantes sobre meu novo brinquedo que eu adoraria perguntar e testar sua
sinceridade.
— O que você está fazendo aqui? — Kraisee sibila, chamando minha atenção.
Inferno, ele aparenta estar tão irritado... Se assemelha àqueles cachorrinhos de bolso que
são metade raiva e a outra metade tremedeira. Como chamam mesmo? Pinschers?
— Surpreso? — Sorrio, apenas para irritá-lo mais. — Eu poderia ter ligado avisando, mas
você não me deu seu número de telefone, Advogado.
Kraisee bufa uma indignação e cruza os braços.
— Hunter, estou falando sério.
— Eu também. — Cerro os olhos na direção dele, vendo-o engolir em seco. — Você
fugiu de mim, Advogado. De novo.
— E-eu não fugi. — Kraisee empina o queixo com arrogância e coragem. — Estava com
pressa. Não vi que era você no escuro e...
Balanço meu dedo no ar lentamente, calando-o.
— Eu disse a você que não deveria fugir de mim de novo. Você praticamente pediu para
persegui-lo. Não banque o difícil agora.
Kraisee abre a boca e a fecha, suas bochechas corando suavemente e ele não me
contradiz. Sorrindo de modo arrogante, olho ao redor do apartamento, inspirando pesadamente
ao perceber como é minúsculo. Olhando o prédio de fora, é visível como o maldito lugar está
caindo aos pedaços. Só de subir naquele elevador posso ter pegado tétano.
Estremeço ao lembrar do espaço pequeno e do ruído que fazia a cada andar ultrapassado.
Tinha certeza de que poderia cair a qualquer segundo. As costas da minha camisa estão molhadas
com suor frio. Tudo para chegar aqui e encontrar Kraisee com outro cara. Um idiota com peito
de pombo estufado falando sobre proteger o advogado de mim.
Rá. O cara deve ser um piadista ruim de stand-up.
— Então, aquele era o tal Dominic? — questiono.
— Que diferença faz?
— Realmente? Não muita. Orlov já descobriu algumas coisas sobre você, mas não o
suficiente — murmuro. — É como a porra de um fantasma, Advogado.
Os olhos de Kraisee desviam para o chão, seus dentes mastigando o lábio inferior.
— Eu... não sou daqui. Vim de...
— Chicago. — Assinto, me aproximando dele e o olhando de cima. — Orlov descobriu
isso. Faculdade de Direito, formado com honras. Só que, antes disso, você não existe. Na porra
de lugar nenhum. E eu já vi isso acontecer uma vez, Advogado. O cara era infiltrado da polícia.
Um filho da puta cretino que explodiu nosso cais e parte da nossa carga antes do Natal no
ano passado, desaparecendo no processo. Encontramos um corpo com parte do rosto devorada
pelos peixes, mas eu sei que não era ele. Depois disso, fotos da Pops apareceram, conversas e
áudios que a comprometiam com o tráfico de armas e drogas.
Forest é mesmo um demônio com trato com o Diabo se ele conseguiu tirar a Rainha de
dentro da cadeia em dois dias. Aquele material era rico em informações. Gostaria de ver a cara
do policial ao saber que arriscou seu pescoço por nada.
Kraisee franze as sobrancelhas, apoiando as mãos na cintura.
— Não sou policial. Eu... estive em um orfanato por muito tempo. — Ele ergue um ombro
e suspira. — Vim de uma família de refugiados. Meus pais foram deportados e eu fiquei jogado
no sistema até que fui adotado.
— Se você foi adotado, por que não encontramos o nome dos seus pais adotivos? E por
que não há nada sobre você em um orfanato?
— Não quero que me relacionem com meu pai — resmungo. — Sou bom no meu
trabalho, dedicado e eficiente, não preciso que idiotas pensem que só estou onde estou por causa
do meu sobrenome.
Observo-o, seus olhos se ligando aos meus e sem piscar ou desviar. Esse advogado é duro
na queda. Se agarrando ao falso sobrenome com unhas e dentes. Estalo o pescoço, dando a volta
por seu corpo e aspirando um pouco do cheiro pós-banho.
— Ainda me parece suspeito.
Em dois passos atravesso a cozinha e chego na sala. Se eu der mais três passos estou
dentro do quarto. Se esticar meu braço, empurro a porta do banheiro.
— Que droga de lugar — digo com o nariz entortado de nojo.
— Qual o problema das pessoas vindo até a minha casa e falando quão ruim ela é? —
Kraisee resmunga, batendo o pé sobre o chão. — Não pedi a opinião de ninguém.
— Óbvio que não pediu. Se tivesse feito, você não estaria morando aqui. — Arqueio as
sobrancelhas ao ver um bicho cinza e pequeno de rabo arrepiado sair do sofá e disparar pelo
corredor emitindo um som fino ridículo. — E há ratos no seu apartamento. Eles são como a
praga. Eu chamaria um dedetizador.
— Não é um rato! — Kraisee aponta para a porta por onde a coisa desapareceu. — É uma
gatinha e o nome dela é Princesa.
Pisco, olhando o rosto sério de Kraisee. Ele não parece estar brincando.
— Meu irmão sempre me disse que não devemos dar nomes aos animais que vamos
matar. É cruel.
— Eu não vou matar a gata! — Kraisee exclama com horror.
— Rato. Isso é um rato. Quanto antes você aceitar a ideia, mais rápido será se desfazer
dele. — Aponto na direção da coisa.
— Não vou discutir isso com você. É inútil — murmura. Sua mão gesticula agitada na
minha direção. — Fale logo o que você quer, para que vá embora de uma vez.
Caminho até a janela e observo o lado de fora, pegando o cigarro e acendendo. Vejo
Kraisee se remexer no lugar e escondo meu sorriso ao soprar a fumaça pela janela.
Gosto de vê-lo se retorcer.
— O que estava fazendo na delegacia, Advogado?
Uma sobrancelha sua se arqueia.
— Você está aqui por causa disso?
— Cuidar de você é meu trabalho. Seguir cada passo seu e garantir que sua boca esteja
fechada, é a porra da minha responsabilidade.
— Não preciso de babá.
Me aproximo de Kraisee com passos lentos e ele tenta se afastar, batendo as costas na
bancada da cozinha. Seus olhos têm uma curva bonita no final, deixando com um olhar astuto,
mas que agora só parece assustado. Ou seria excitado? Suas pupilas estão expandidas, engolindo
o castanho.
Apoio as mãos sobre a pedra, cercando seu corpo e o prendendo contra mim. Bato as
cinzas do cigarro sobre a pedra, deixando a fumaça sair pelo nariz devagar.
— Não precisa? Mesmo eu te seguindo, vi você saindo de uma delegacia, Advogado. E
quando me avistou, saiu correndo como se seu rabo estivesse em chamas. Me parece muito como
alguém culpado.
— Espera. Você realmente bateu na minha porta e quase a arrombou porque achou que eu
estava te denunciando?
— E por qual outro motivo eu viria até aqui? — pergunto, arqueando as sobrancelhas.
Talvez, se eu o instigar, a verdade role por sua língua mais rápido. Como: o nome de seus
pais e irmão. E o motivo de estar tentando escondê-los. Não me parece apenas proteção. Ou, pelo
menos, é o que minha desconfiança continua gritando.
Kraisee cobre a boca, mas a gargalhada escapa por entre os dedos. Sua cabeça inclina para
trás quando ele ri mais alto, sua garganta exposta. Observo a linha de pele com pequenos pontos
de barba crescendo e me imagino curvando sobre ele e lambendo o oco de sua garganta, para em
seguida cravar meus dentes no ponto onde sua veia pulsa.
Ele iria gemer? Qual som Kraisee faria ao sentir sua pele sendo ferida?
— Você só pode estar brincando comigo! — exclama.
Foco o olhar em seu rosto sorridente.
— Não estou.
Kraisee estala a língua antes de escapar por baixo do meu braço e caminhar na direção da
janela da sala.
— Não estava naquela delegacia contando a eles o que vi. Ou que aquele corpo pendurado
é obra das suas mãos. E, se estivesse, eu diria o que? Que um viking gigante com uma máscara
de esqueleto me levou sequestrado? Nem posso dizer que foi o Hunter, já que esse nem deve ser
seu nome verdadeiro — Ele levanta as mãos com as palmas levantadas na minha direção.
Aperto o cigarro dentro do seu cinzeiro e cruzo os braços.
— Hunter é meu sobrenome, então sim, é verdadeiro. Se você não estava lá para dedurar,
o que estava fazendo?
O rosto de Kraisee azeda, os lábios virando para baixo em depreciação.
— Precisei livrar um cliente estúpido de ser fichado.
Me aproximo dele outra vez com os olhos cerrados.
— Você entrou sozinho e saiu de lá sozinho.
— Ele me ligou de dentro da delegacia e saiu antes de mim. Eu tive de... resolver algumas
questões. — Suas sobrancelhas franzem, sua mão coçando o antebraço esquerdo antes de sacudir
a cabeça. — Pare de ser tão desconfiado!
Observo seu rosto por longos segundos, me demorando nas linhas de suas sobrancelhas e
olhos, nos cílios castanhos curtos e na curva sardônica de seus lábios.
Exalo, me afastando um passo dele e olhando para o corredor.
— Tanto faz. Você está vindo comigo. Pegue suas coisas. — Gesticulo para o que só pode
ser seu quarto.
Nesse apartamento minúsculo, não há como haver mais cômodos.
— Não estou indo com você! Não mesmo! — Sua cabeça balança em negação.
— Eu não lembro de ter pedido, Advogado. — Sorrio de forma ameaçadora. — Junte
suas coisas antes que eu faça. Agora.
Aquela bravata toda desaparece rápido, seus olhos ficando assustados. Seus lábios
comprimem pouco antes de abaixar a cabeça e caminhar para o quarto com passos pesados,
como um bom menino faria. O sigo, apenas por curiosidade, e o vejo tirar duas malas de cima do
guarda-roupa.
Há apenas uma cama de casal com colcha azul marinho e perfeitamente arrumada. As
paredes são de cores claras, um cinza mais escuro atrás da cabeceira com triângulos escuros.
Assim como no resto do apartamento, não há muita coisa e o pouco que tem é extremamente
sofisticado.
— Para alguém morando em um lugar como esse, você tem bastante coisa valiosa aqui.
— Só porque pago barato no aluguel, não significa que preciso ter móveis de lixo —
retruca.
— Pois deveria, se você quer manter tudo do lado de dentro e não sendo trocado por
droga na rua.
Passo o indicador pela lombada de um livro nas prateleiras flutuantes. Rupi Kaur[13]. O
som de cabides sendo empurrados me tira a atenção dos livros e viro para encontrar Kraisee
empurrando suas roupas, parecendo escolhê-las com calma. Impaciente, o acotovelo para sair do
meu caminho.
— Ei!
— Não fique escolhendo. Apenas pegue.
Junto um punhado de camisas e as forço contra seu peito. Ele pega antes que caiam no
chão e me olha como se eu tivesse ofendido sua mãe.
— Com licença? Você faz ideia de quanto essas camisas custam para você amassá-las
desse jeito?
— Estou pouco me fodendo com isso. Aqui. — Empurro em seus braços já cheios outro
punhado e Kraisee faz um som na garganta igual aqueles brinquedos de apertar para cachorros.
— Pare de jogar minhas roupas! Quantos dias vou ter que ficar com você? Não posso
levar tudo! Hunter! — Kraisee vocifera quando pego suas calças muito bem dobradas e formo
uma bola com elas, jogando sobre a cama.
Ele coloca as camisas ao lado da mala e das calças, me pegando desprevenido ao chutar
minha canela em seguida.
— Ai, porra!
— Pare de amassar minhas roupas! Sabe o trabalho que dá para engomar tudo?
— São apenas roupas, caralho — resmungo, voltando para o guarda-roupa.
— São peças exclusivas feitas sob medida e passadas a seco!
Gesticulo com a minha mão na direção dele, abrindo e fechando os dedos simbolizando o
quanto ele fala muito. Blá blá blá. Porra, odeio quando falam demais na minha orelha. Um dos
motivos de sempre evitar todo tipo de conversa. Talvez, se eu amordaçar Kraisee, ele pare de
resmungar como um velho ranzinza.
Abro as últimas duas portas e congelo. Pendurados por cores e em dégradé, essas peças
são as coisas mais bonitas que já vi. Passo as pontas dos dedos por um espartilho branco com
linhas douradas e botões na frente, com cordões grossos com um nó bem-feito na parte de trás.
Outro, no tom verde esmeralda com flores pretas, parece desenhado a mão.
— Tire suas patas sujas dos meus coletes de corsets! — Kraisee bate na minha mão e abre
os braços com as costas viradas para o cabideiro, bloqueando minha visão. — São peças
delicadas. Me recuso a deixar você tocá-las de qualquer maneira!
Corsets.
Essas obras de arte com cordões se chamam corsets. Como coletes, mas muito mais
atraentes. Olho para um inteiro de couro preto com bordas vermelhas escuras, como sangue seco.
Olho para Kraisee e seu rosto furioso, minha mente distorcendo tudo e colocando prazer em suas
feições.
Vestido com nada além do corset escuro, o couro contra sua pele lisa. Seus pulsos
amarrados, completamente impotente e ofegante. Implorando, tão pronto para ser usado como eu
quiser. Por quanto tempo eu quiser.
Inclino a cabeça, avançando contra Kraisee e o prendendo contra o cabideiro. Ele ofega,
suas mãos segurando as laterais de madeira com força conforme o empurro contra os corsets
pendurados. Minhas mãos caem para sua cintura estreita e meus dedos apertam sobre o moletom,
fazendo Kraisee soltar um pequeno gritinho surpreso.
Pressiono com mais força, sabendo que deixaria contusões, e isso faz Kraisee gemer. Seus
olhos fecham, seus dedos arranhando a madeira do guarda-roupa. Sua boca entreabre, a língua
varrendo o lábio inferior carnudo e o deixando levemente úmido. Parece macio. Respiro,
abaixando a cabeça na direção dele, completamente hipnotizado.
Minha mão solta sua cintura e seguro em seu pescoço, inclinando seu rosto para trás. Seus
olhos se abrem, turvos, e tremulam quando meu polegar raspa seu maxilar e puxa o lábio inferior
para baixo. Seu hálito é quente e tem cheiro de menta. O sabor seria o mesmo? Roço minha boca
sobre a dele, sentindo cada pelo do corpo arrepiar.
Minhas narinas se alargam quando ele se ergue, me buscando. Entretanto, não é assim que
eu quero. Kraisee precisa implorar primeiro. Ele vai se arrastar de joelhos e me pedir para fodê-
lo até não lembrar o próprio nome. Assim, me afasto dele bruscamente e dou um passo largo
para trás.
— Pegue suas coisas. Rápido. — Minha voz é grossa e rouca.
Meu pau dói na minha calça e caminho para fora do quarto, antes que eu quebre primeiro
e dobre o corpo de Kraisee sobre o colchão e entre no seu buraco apertado.
Khui[14].
Enfio os dedos pelos cabelos, puxando os fios e tentando fazer meu pau baixar. Essa...
coisa que venho sentindo desde que encontrei Kraisee está me perturbando, tirando a porra do
meu sono e me deixando com tesão. E, se o advogado soubesse tudo o que estou sentindo, ele
estaria correndo para as montanhas.
Só preciso esconder muito bem até que os jogos realmente comecem.
“I will overcome
And I refuse to run
I'm gonna fight for my survival”.
(Fight For My Survival, The Phantoms)
Acho que meus joelhos se tornaram gelatinas. Não só eles. Meu corpo inteiro está
tremendo, como se houvesse sido eletrocutado e ainda sentindo as descargas de energia vibrando
pelos nervos. Passo a mão pelo cabelo e me apoio no guarda-roupa, meu pau pulsando dentro da
calça de moletom. Meus lábios formigam, sentindo o toque fantasma da boca de Hunter.
O que acabou de acontecer aqui?
A fome nos olhos gelados daquele homem poderia me devorar em minutos. E, deuses me
amaldiçoem, eu adoraria cada segundo disso. Cubro meus olhos, estremecendo apenas com a
ideia das mãos ensanguentadas do Hunter me segurando. Não que elas tenham sangue de
verdade, mas... no sentido figurado da coisa, merda.
— Terminou, Advogado? Não estou ficando mais novo te esperando!
Com um grunhido, recolho minhas coisas bagunçadas e, com dor no coração, as enfio na
mala sem dobrá-las. Pego os corsets e os coloco com as camisas, então jogo algumas cuecas e
meias na bagunça. Ensaco meu sapato predileto e minhas botas, jogando os chinelos por último.
Com um braço, puxo meus produtos do banheiro e os atiro dentro da bolsa pequena de
viagem, torcendo para nada se quebrar pelo caminho.
Dedos cruzados não salvariam meu creme Sulwhasoo da Innisfree[15].
— Você tem mais dez segundos, Advogado!
— Ah, pelo amor dos deuses, Hunter! — exclamo, fechando as malas.
Empurrando-as pelo corredor com certa dificuldade, encontro Hunter fumando na minha
cozinha com um olhar entediado. Sequer parece que ele quase me fez gozar com apenas um
toque da sua boca minutos atrás. Empurrando o pensamento e as sensações inoportunas para o
fundo da mente, endireito os ombros e empino o queixo. Ele sorri de lado, percebendo minha
afronta silenciosa.
— Pronto?
Jogo um olhar para Princesa sentada entre o sofá e a parede, me observando com
curiosidade felina.
— Quase. Não peguei as coisas da Princesa ainda.
Sorrindo, eu a pego no colo e acaricio entre suas orelhas.
Hunter apaga o cigarro no meu cinzeiro da bancada e olha da gata em minhas mãos para
meu rosto.
— Seu rato não está indo conosco.
— O quê? — Arqueio as sobrancelhas, segurando Princesa mais apertado no peito. — É
claro que vou levá-la junto! Não vai sobreviver sozinha aqui.
— É um rato. Eles comem sobras e outras porcarias. — Hunter meneia a mão com
descaso e pega minhas malas. — E eu não quero roedores na minha casa. Eles podem ser como
pestes, disseminando leptospirose, tifo, raiva, sarna...
— Princesa possui todas as vacinas em dia. — Ergo o queixo com prepotência e passo a
recolher as tigelas rosas que comprei e a caminha, assim como o arranhador novo. — Ela, com
certeza, é a menos propensa a passar qualquer tipo de doença. Já você, eu não garanto muito.
Olho-o parado na porta aberta, meu lábio torcido para baixo em desgosto. Hunter continua
me olhando sem expressão quando vira e sai para o corredor.
— O rato não vai. Ponto final.
— Não saio desse apartamento sem a Princesa. É minha última palavra, Hunter — rosno,
parado na cozinha segurando tudo de forma desajeitada.
— Sua palavra não vale muita coisa, já que quem está mandando agora sou eu — Hunter
diz, afundando o polegar no peito largo e colocando a mão na maçaneta em seguida. — Deixe
essas porcarias e saia logo. Você está atrasando meu jantar e não está sendo um bom menino,
Kraisee.
Essa última frase me atinge de uma forma estranha, fazendo meu estômago torcer. Aquela
parte escura dentro de mim se encolhe, me fazendo sentir esbofeteado. Tentando não demonstrar
o quão atingido fui por suas palavras, dou um passo para trás com o rosto sério.
Não costumo ser uma pessoa petulante, sempre considerando o que os outros querem e
sendo solícito. Porém, Hunter está sendo um grande cuzão agora. Negando estadia a uma pobre e
indefesa gatinha.
— Você está me levando e me mantendo prisioneiro? Tudo bem. Mas a Princesa está no
pacote, Honey Beard.
As sobrancelhas do Hunter se erguem devagar.
— O que você disse?
— Você me ouviu.
— Não. — Hunter balança a cabeça. — Do que você me chamou?
Pisco, lembrando do apelido que simplesmente rolou pela minha língua. Engulo em seco,
engasgando-me um pouco, e ajeito o arranhador caindo do meu braço e tentando não deixar a
Princesa me escalar até o ombro.
— Ah... Hunter? Te chamei pelo nome.
— Não. Eu ouvi claramente você me chamando de “barba de mel”, Advogado.
— Você, claramente, está com os ouvidos sujos. — Pigarreio, fazendo uma careta quando
as garras afiadas da Princesa fincam no meu pescoço. — É isso. Esse é meu termo.
Dizendo isso, caminho de volta para a sala e me sento no sofá. Com o canto do olho, vejo
Hunter parado na porta com um semblante irritado enquanto gira em sua mão direita a faca
canivete. Ele estala o pescoço, grunhindo palavrões que só posso dizer serem em russo.
Vamos ver quem cede primeiro, Honey Beard.
*
Ele cedeu.
O que não pareceu nem um pouco fácil se for levar em conta a forma como seus dedos
seguram o volante com raiva e olha com ódio para a gata deitada em minhas coxas, dormindo
pacificamente. Perdi a conta de quantos palavrões Hunter já cuspiu em russo. Deve estar
amaldiçoando a mim e toda minha geração. Estou pouco me fodendo para isso.
Acaricio as costas de Princesa e sorrio, me sentindo vitorioso demais para me importar
com Hunter e seu humor ranzinza.
— Não se sinta tão animado. Esse filhote de cruz-credo pode acabar sumindo sozinho
misteriosamente.
— Se a Princesa sumir, o seu corpo vai surgir na manhã seguinte misteriosamente
eletrocutado na banheira. — Mostro a ele meu sorriso largo e raivoso. — Temos um acordo.
Homens honrados devem cumprir com sua palavra.
— Aí que está seu erro, Advogado. Não sou um homem honrado. — Agora é a vez dele
me mostrar seu sorriso predador. — Sou a personificação da corrupção. Depravado, possessivo e
vingativo. Ser honrado não está na minha lista de afazeres.
— Você nunca cumpre sua palavra? — pergunto com uma sobrancelha arqueada.
— Depende. Se for algo que me beneficie, sim. — Hunter dá de ombros.
— Sabe, se você não queria minha gata e eu na sua casa, poderia ter nos deixado
exatamente onde estávamos.
— Não confio em você sozinho — resmunga, virando o volante com a palma da mão.
Não deveria parecer tão sexy assim, mas foi.
— Quantas vezes preciso repetir que vou me manter calado? Ao contrário de você, sei
manter minha palavra. — Bufo, coçando as costas de Princesa e a sentindo ronronar. — Que
diferença faz para você se continuo minha vida ou não?
— Você tem sorte de ainda ter uma “vida para viver”, Advogado. Aqueles que veem algo
que não deveriam, morrem. A melhor forma de manter as pessoas em silêncio é acabando com
elas. Entende? Sou o Executor, esse é o meu trabalho.
— Trabalho... Você é a porra de um assassino e chama isso de trabalho — resmungo.
O silêncio cai dentro do carro. O som da música tocando é baixo, um ruído de fundo
misturado ao som do motor. Observo o Hunter de canto, vendo-o comprimir os lábios quando
paramos no sinal. Seus ombros parecem tensos debaixo da sua jaqueta preta. Seus dedos
tamborilam no volante enquanto os outros passam por seu lábio inferior.
Ele parece pensativo. Será que está lembrando do quase beijo no meu apartamento?
Franzo as sobrancelhas, virando para a janela e inspirando. Ele não deve estar pensando nisso.
Nem mesmo eu deveria estar lembrando.
Entretanto, posso sentir aquela coisa escura dentro de mim se estender outra vez,
agarrando meus ombros e sussurrando no meu ouvido as tentações. Flashes de imagens da minha
mente criativa, invocando um Hunter de torso nu sobre mim, com suas mãos segurando minha
garganta e me mantendo no lugar enquanto minhas pernas enlaçam sua cintura.
Estremeço, fechando os olhos apertados e empurrando tudo para dentro do baú outra vez.
Não sei em qual momento a caixa foi aberta e a chave foi perdida, mas agora está difícil de
fechá-la. Tão difícil... ou seria apenas minha vontade resistindo a trancafiar esse meu lado outra
vez? Droga, preciso de um cigarro.
— Está no meu sangue.
Sua voz é baixa, quebrando o silêncio ao nosso redor. Viro no banco, sobrancelhas
franzidas quando o olho com atenção.
— O quê?
Hunter inspira, saindo da cidade e entrando na rodovia.
— Eu disse... Está no meu sangue. Quando nascemos com veneno no sangue, o inferno é
o nosso destino, Advogado. Sempre foi isso que disseram para mim. Ser um demônio é a única
coisa que conheci. — Seus olhos gelados pegam os meus brevemente antes de voltar a olhar para
frente. — É a única coisa que eu sei fazer.
— Nós sempre temos uma escolha.
— Nós temos? — Hunter estaciona, desligando o carro e virando para me olhar com
atenção. — Não quando você nasce na máfia. Sua linha é traçada antes mesmo que você tenha
consciência. Apenas abracei o que me foi dado.
Mordisco meu lábio inferior, entendendo muito bem o que ele quer dizer. Não que eu
tenha nascido na máfia, mas meu pai com seu punho de ferro é quase como um Poderoso
Chefão. Não tive escolha sobre com o que iria advogar, meu destino traçado desde o momento
em que coloquei os pés na casa Warden.
Com essa minha frase eu fui mais do que hipócrita.
— “Nossas costas contam histórias que nenhum livro tem a coluna para carregar[16]” —
sussurro.
— Exatamente. Agora saia. Nós chegamos.
Olho pela janela, encontrando a frente de uma casa de paredes amarelas e telhado escuro,
janelas de madeira largas e altas, cadeiras de jardim na varanda da frente e um estreito caminho
de tijolos cinzas ao lado da entrada da garagem de portão amplo. A minha porta se abre, Hunter
me olhando de cima com impaciência. Saio, segurando a Princesa contra meu peito enquanto
observava a casa parcialmente iluminada.
O porta-malas é aberto e giro, para encontrar a estreita rua silenciosa atrás de Hunter que
está pegando minhas malas. Inspiro, sentindo o cheiro de água, paz e natureza.
— Onde nós estamos? — pergunto, olhando-o.
— Minha casa. O quê? Você esperava que fosse descer no inferno? — ele fala com um
sorriso de lado.
Bufo, dando as costas para ele e voltando a observar a casa. Calma, completamente ao
contrário do que eu esperava. Não vou mentir. Pensar em Hunter e sua “profissão” me fez achar
que sua casa seria toda preta com decorações de sangue e pichações de anarquismo.
Quanto mais vou rotular o homem?
Fazendo uma careta, alcanço uma das minhas malas, apenas para ter minha mão enxotada
e recebo uma carranca do Hunter. Ele fez isso no apartamento também, não me deixando
carregar nada. Só as coisas da Princesa. Ele disse que não encostaria em um possível objeto que
causaria doenças.
Fiquei tentado em bater na cabeça grande e burra dele com o arranhador.
Dando de ombros, pego a cama da Princesa do porta-malas e sigo Hunter até a porta. Seus
dedos ágeis batem no teclado, desarmando o alarme com um suave clique. Ele a abre, estendendo
a mão para mim.
— Convidados primeiro.
Seu sorriso é largo e as intenções por trás desse gesto podem ser diversas. Desde a um
café inocente na sala a uma tortura sinistra no porão com correntes e chicotes.
Engulo com dificuldade ao perceber que a tortura que apareceu na minha mente não tinha
nada a ver com morte e sangue.
— Que... educado. — Pigarreio, entrando na minha nova prisão.
— O Diabo é, e sempre será, um cavalheiro — sussurra no meu ouvido.
Dou um passo para o lado, segurando Princesa no meu peito como um escudo. Ao
contrário de mais cedo, quando ela estendeu as garras e mostrou os dentes para Dominic, agora
ela parece muito pacífica. Olhando para Hunter com enormes olhos de pupilas dilatadas, como se
houvesse encontrado algo muito interessante.
Traidora peluda.
— Vou mostrar o seu quarto.
— Quarto? Interessante — digo, seguindo-o pela escada de madeira de carvalho escura. A
sala principal tem um pé direito alto e aberto, com largas janelas de madeira e vidro. — Pensei
que ia me manter em, sei lá, uma masmorra.
— Você é o quê? Uma maldita princesa? — grunhe, levando as duas malas como se não
pesasse nada. No andar de cima, Hunter me olha sobre o ombro. — Não mantenho prisioneiros,
Advogado. Todos que se encontram comigo estão muito bem enterrados em uma cova funda.
— Eu deveria me sentir lisonjeado?
— Sim — retruca.
Observo ao passar por cada porta, contando quatro no total. Devem ser três quartos e um
banheiro social. Ou, talvez, um escritório? Hunter empurra a porta no final do corredor revelando
um quarto espaçoso, com uma janela alta de madeira e vidros escuros. Cortinas cinzas e finas
caem até o chão, puxadas para o lado. No centro há uma enorme cama coberta com lençóis da
mesma cor e um edredom preto macio e fofo, combinando com os travesseiros na cabeceira.
— Você gosta mesmo de preto — digo, lançando um olhar de lado para Hunter colocando
minhas malas ao pé da cama.
Ele empurra seu cabelo para trás e longe dos olhos, aquelas mechas loiras onduladas
caindo sobre seu ombro, parecendo macias. Desvio meus olhos para os seus, aquele azul frio me
analisando.
— É uma cor neutra e esconde o sangue.
— Imagino — respondo secamente.
Princesa se remexe no meu aperto, miando estridente ao se soltar. Seu corpinho voa pelo
ar e cai no chão com um som baixo e logo está correndo para debaixo da cama.
— Cuide do seu rato. Não quero minhas coisas mordidas ou arranhadas. E também não o
quero solto por aí. Posso pisar nele com a minha bota. — Hunter acena na direção de sua bota
preta brilhante.
— Sabe, eu poderia falar por horas sobre a família dos Felídeos e em qual subfamília os
gatos se encaixam, mas pode acabar causando muito eco dentro dessa sua pequena cabeça
assassina — falo, batendo o indicador na minha têmpora. Seguro a porta e aceno para o corredor.
— Agora saia. Preciso de um banho e privacidade dentro da minha nova prisão.
— Você gostaria de jantar?
— Não, obrigado. — Fungo, ignorando meu estômago dolorido e gesticulando para o
corredor. — Saia.
— Amanhã cedo nós teremos uma conversa sobre como isso vai funcionar. — Com as
mãos enfiadas nos bolsos, Hunter caminha calmamente até mim e inclina seu enorme corpo
sobre o meu. Ele tem um sorriso de lado quando diz: — Tenha uma boa noite de sono,
Advogado. Não deixe que pequenos diabretes te mordam.
Ele bate os dentes em uma mordida perto da minha orelha, rindo baixinho antes de sair.
Meus dedos estão trêmulos quando empurro a porta e passo a chave, sabendo muito bem
que isso não deteria esse homem perverso de entrar se ele quisesse. A visão de Hunter destruindo
a porta de madeira e surgindo como um demônio furioso só fez meu pau ficar semiereto dentro
da calça.
Com um gemido, caio com as costas na porta e olho para o quarto outra vez. A Princesa já
tem suas unhas amaciando o edredom fofo e circulando ao redor do próprio corpo antes de cair
em uma pequena bola tigrada de cinza. Um quarto grande e rico, em uma casa grande e rica em,
provavelmente, um bairro grande e rico.
Uma gaiola de ouro ainda é uma gaiola.
Quem diria que Hunter, o Executor dos D’Angeles, moraria em um bairro assim?
Me empurro para longe da porta e vou até a janela, espiando o lado de fora escuro e
silencioso. Coloco a mão no vidro frio e olho para a lua crescente no céu, parecendo um lindo
sorriso sinistro. Fecho os dedos em punho e prometo a mim mesmo que não estou desistindo.
Vou lutar pela minha vida, nem que seja com unhas e dentes para sair dessa enrascada.
“Well, I've been counting all the minutes
And the days have been counting me
I want to live my life again
But you won't”.
(SHC, Foster the People)
Uma manhã nublada para combinar com meu humor sombrio. Olho para a janela com
cortinas abertas, que esqueci de fechar antes de dormir, e vejo galhos de árvores secas
balançando com o vento. Franzo as sobrancelhas, jogando o edredom de lado e ganhando um
miado irritado da sua majestade peluda.
Coloco as pernas para fora do colchão e calço meus chinelos, indo até a janela e
observando o lado de fora. A neve cobriu toda a extensão do que só pode ser o quintal da casa do
Hunter. Árvores de galhos nus que dariam um ótimo filme de terror, ou peças temáticas de
Halloween. No final, há um pequeno deck de madeira e uma faixa de água. Cerro os olhos para
tentar olhar melhor e percebo que se parece com um lago. Não, não é isso.
É a porra do rio Humber.
Hunter mora na margem do rio Humber!
Custa um olho da cara morar nesse condomínio às margens do rio. Imagino quem foi que
o Hunter teve que matar para ter uma casa aqui. Sem trocadilhos. A maior parte dos jornais nos
últimos anos são cobertos de manchetes sobre corpos encontrados no Humber. Muitos deles
irreconhecíveis.
Meu celular vibra sobre a mesa de cabeceira e o tiro da tomada que está carregando.
Preciso trocar essa tela trincada logo, está me irritando. Uma mensagem de Dominic de ontem é
seguida por outra de agora pela manhã.
Me diga se você está bem com um emoji.
Kraisee, por favor, você ainda está vivo?
Aquele punk estranho fez algo contra você?
KRAISEE!
Devagar, Dom.
Acabei de acordar.
Seu filho da puta!
Estou aqui, preocupado com sua VIDA enquanto
você tira seu maldito sono da beleza?
Desculpe, ok?
A noite de ontem foi um pouco... agitada.
Não vi meu celular até agora cedo.
Não era minha intenção deixar você com rugas
de preocupação.
Agitada?
Não me diga que transou com o punk, Keener!
Faço uma careta com sua mensagem.
É claro que não!
Eu não deveria transar com o Hunter, mesmo que meu corpo implorasse por isso. Aquele
quase beijo no meu apartamento me deixou duro parte da noite, me fazendo revirar na cama e
imaginar o que teria acontecido se ele não tivesse se afastado.
Patife provocador e impertinente.
Não? Onde você está agora?
Por que não atende a porra da porta?
Ergo os olhos para a porta do quarto, lembrando que não estou no meu apartamento, mas
na casa do Hunter.
O que eu disse sobre você ficar indo até minha casa?
Aí não é o melhor lugar para ficar passeando, Dom!
E vai bater até sua mão cair.
Não estou em casa.
Eu disse!
Você dormiu com o punk!
Com um grunhido irritado, jogo o celular sobre a cama sem me importar que ele quique e
caia. A tela já está fodida, de qualquer forma. Vou para o banheiro e, graças aos deuses, esse
quarto tem um próprio. Não sei como me sentiria tomando banho em um lugar desconhecido
com a porta para o corredor, muito fácil de alguém entrar. Não que aqui seja difícil, mas... acho
que ouviria a porta do quarto sendo aberta primeiro, não é?
Apenas a ideia de Hunter surgir na soleira com aquele sorriso cretino e olhos gelados,
arrepia minha espinha. Ligo o chuveiro, mordendo o lábio inferior quando a água fria bate em
mim, tirando todo tipo de pensamento libidinoso. Minha estadia nesta casa é temporária e nada
pode acontecer entre mim e o dono desse lugar. Por diversos motivos óbvios que mal cabem nos
dedos de uma mão.
O principal deles é que o homem é o Executor da máfia, pelo amor dos deuses. Não
preciso de outro motivo além desse.
Mesmo que ele seja um gostoso vestido em couro e coberto de tatuagens.
Desligo o chuveiro e saio com uma toalha enrolada na cintura, esfregando meus cabelos
com força, como se pudesse tirar pela raiz esses pensamentos que me atormentam. Aquela coisa
obscura que deveria estar trancada, parece mais viva do que nunca. Me incitando a pular do
penhasco e direto na faca do Hunter.
Ou seu pau.
— Pare com isso, Kraisee! — exclamo, atirando a toalha na cama.
Princesa ergue a cabeça do ninho de cobertas e estica as patas ao espreguiçar.
— E você, comporte-se. Não quero voltar para cá no final do dia e te encontrar em um
espeto no forno.
Fazendo jus ao seu nome, minha pequena gata me ignora, dando as costas para mim e
passando a lamber suas partes íntimas. Isso deve significar um “vá se foder” bem explícito na
língua felina.
Uma batida na porta me faz saltar no lugar e viro ao mesmo tempo em que a porta se abre
e Hunter surge vestindo uma camiseta preta, calça e pés descalços. Seus olhos sobem dos meus
pés até meu rosto e um sorriso lento aparece em seus lábios cercados pela barba loira.
— Ora, se isso não é um ótimo bom dia, Advogado.
Princesa mia alto de onde está, como a gata traidora que ela é. Pego o travesseiro e atiro
contra Hunter, que desvia com facilidade, e acabo atingindo a porta.
— Pare de invadir minha privacidade!
— A casa é minha. — Sua fala é séria, parecendo insensível e pouco se fodendo. Eu
quero rasgar seu rostinho bonito com minhas unhas... — Não existe privacidade para você aqui.
Cruzo os braços, me sentindo ridiculamente exposto só com a toalha na cintura.
— O que você quer? — resmungo.
— Vou fazer o café da manhã. — Seus olhos voltam a correr pelo meu corpo, me fazendo
retorcer no lugar. — Desça em dez minutos. Não se atrase.
— E se eu não for?
Hunter cerra os olhos, seu sorriso se tornando predatório. Aquela parte obscura em mim
se retorcendo, gostando da ideia de ser caçado.
— Dez minutos, Advogado.
Engulo em seco, desviando meus olhos para a parede e amaldiçoando meu pau traidor.
— Pare de me chamar assim. Eu tenho um nome e é Kraisee — rosno.
— Impronunciável, lisichka.
Ergo meu dedo do meio, mas Hunter já se foi e estou falando com a porta agora. Se eu me
organizar direitinho, acho que consigo matar esse tirano durante seu sono. Afinal, apenas
planejar a morte de alguém não me faz um assassino.
Ter sangue pingando de suas mãos não parece tão terrível assim...
Arregalo os olhos com essa ponderação intrusa e aperto minhas bochechas com as palmas
da mão.
— O que você está pensando, Kraisee...
Tudo isso é culpa do Hunter. Rasgando bochechas em becos escuros e me olhando com
fome sombria. Sacudo a cabeça e tiro a toalha, olhando por sobre o ombro para ter certeza de que
a porta está fechada, e suspiro com a leve decepção que me assola. Coloco as malas sobre a cama
e olho para minha roupa destruída, o que me faz gemer de tristeza. Tantos vincos no tecido
delicado...
Olho para a tela do celular, lembrando que Hunter me deu apenas dez minutos antes de vir
até aqui me buscar. Olho para baixo, meu pau muito nu contra a luz nublada da janela. Pego uma
camisa creme e olho para os vincos, exalando pesadamente ao perceber que não há como passá-
la adequadamente.
Com uma carranca, visto minhas roupas com gestos bruscos, amaldiçoando Hunter e toda
sua maldita geração de vikings Honey Beards. Ajeitando a gravata dourada dentro do colete
corset creme, de listras também douradas. Visto meu terno verde escuro, combinando com minha
calça social, e calço meus sapatos. Quando saio do quarto, estou completamente vestido e
arrumado, meu relógio de couro preto no pulso. Passo os dedos pelo cabelo ao descer a escada e
o cheiro de café me puxa para o que só pode ser a cozinha.
Não fico surpreso ao encontrar tons escuros em meio ao inox. O que me surpreende, é o
homem parado na beira do fogão, mexendo uma frigideira e a camiseta preta que ele usava,
aparentemente está desaparecida. Observo os músculos em suas costas cobertos por uma
tatuagem preta e vermelha. Dois cães infernais têm seus dentes arreganhados em um rosnado
ameaçador, seus olhos brilhando com fogo.
Tão realistas que parecem querer saltar sobre mim a qualquer minuto e mastigar minha
jugular. Qual seria a sensação de deslizar os dedos pelo desenho, sentir a textura da tinta sobre a
pele?
Hunter coloca a frigideira de lado e olha sobre o ombro, o cigarro pendendo em seu lábio.
— Está gostando do que vê?
Cerro os olhos, saindo da porta e entrando de vez na cozinha. Os olhos sérios de Hunter
me seguem, rastreando meus passos, até que paro a alguns passos de onde ele está. A fumaça sai
de suas narinas enquanto me observa e tenho mais um tempo para analisar a metade do seu corpo
à mostra.
Como a parte das costas, sua frente também está fechada com tatuagens, assim como os
braços até as mãos e seus dedos com os anéis de prata em formato de caveiras. Não há espaço de
pele que não tenha tinta. Desenhos tribais em sua garganta se misturam com espinhos trançados
em suas clavículas. Uma pantera mostrando seus dentes sobre o peito direito e um dragão em
meio à fumaça no esquerdo. E, porra, há piercings em barra atravessados em ambos os mamilos,
brilhando como uma pequena tentação de metal. O enorme rosto de uma caveira pega todo seu
abdômen até o cós de sua calça.
Levanto meus olhos para os dele, percebendo suas pupilas engolindo o azul gelado e
deixando quase preto.
— O que está cozinhando? — pergunto, pigarreando.
Hunter pega seu cigarro quase acabado e o apaga dentro do cinzeiro em formato de
crânio, sorrindo de lado para mim. Cada vez mais esse sorriso, que deve ser cínico, me parece
sedutor e tão devasso. Podendo levar até o homem mais santo para o lado corrupto e libertino.
Como se apenas o arquear de sua boca pudesse prometer todo tipo de crueldade, tanto
sanguinária quanto depravada.
— Gosto de uma boa salsicha pela manhã, acompanhada de um leite cremoso. E você?
Solto um suspiro com sua fala dúbia, dando a volta na ilha e me sentando no banco alto de
frente para o fogão e da bancada onde ele cozinha. O cheiro de bacon e ovos é maravilhoso e faz
meu estômago roncar.
— Achei que sua única habilidade com a faca fosse cortar gargantas, sr. Hunter. Cozinhar
também está na lista de aptidões?
— Gostaria de saber o que mais eu posso fazer com minhas mãos, Advogado? — Hunter
sorri de lado, fazendo meu ventre contrair e meu pau pulsar. — Minhas palmas amaciam muito
bem as carnes.
Malditos deuses da danação...
Pigarreio, limpando a poeira inexistente da bancada e desvio meus olhos para o prato.
— Você disse ontem que queria conversar agora pela manhã. Qual seria o assunto?
Hunter arqueia uma sobrancelha, sabendo muito bem que ignorei sua pergunta anterior e
mudei de assunto. Ele termina de picar a salsicha e a joga junto com o bacon fritando na panela.
— Se não tiver coragem de morder, então não rosne. Isso serve para ameaças e flertes,
Advogado.
— Eu não estou flertando com você! — exclamo exasperado.
— Não? — questiona, sua língua passando pela parte plana da faca e lambendo
pornograficamente até a ponta.
Meus dedos estão brancos segurando a bancada e minha respiração trancada na garganta.
— Não — respondo, minha voz aguda e estrangulada. — Não mesmo.
— Seja o que for que você diga para acalmar sua mente. — Ele ri baixinho antes de pegar
um copo grosso de vidro com um líquido âmbar e toma um gole, seu rosto ficando com uma
expressão séria em seguida. — Agora, nossa conversa pendente.
— Não aguento mais ter conversas pendentes com você — resmungo, me sentindo
aliviado dele ter tirado o pé do flerte. — Sempre acaba ruim para o meu lado.
— Pequena lisichka, você ainda não viu o quão ruim eu posso ser. — Hunter coloca o
copo sobre a bancada novamente e me empurra uma xícara com café. — Açúcar? Creme? Você
tem cara de alguém que ama algo cremoso descendo pela garganta.
Pego a xícara, olhando-o com seriedade.
— Amargo. Prefiro meu café combinando com meu humor ácido pela manhã. — Tomo
um gole, provando do líquido escuro e segurando o gemido ao sentir a cafeína entrando no meu
sistema. — Apenas diga logo o que você quer. Tenho um dia cheio pela frente e já perdi minha
aula de Krav Maga hoje cedo.
Seus olhos cerram, o azul claro se parecendo com geleiras.
— Risque suas aulas a partir de agora. Se quiser lutar, pode fazer isso comigo.
Cerro o cenho, segurando minha xícara com força.
— Não posso parar de fazer minhas aulas! Estou no meio do treinamento e evoluindo.
Não posso simplesmente...
— Você vai — rosna. — Outra coisa. Forest não te aceitou no meio do corpo de
advogados dele. Ele foi completamente assertivo sobre o que ele pensa de pessoas não confiáveis
metendo o bedelho onde não foram chamadas.
Arqueio as sobrancelhas, irritado.
— E então? Se não estou com Forest, vou fazer o que?
— Está comigo.
— E isso significa...? — Meneio a mão para que ele desenrole de uma vez.
— Aonde eu for, você vai junto. Estamos unidos pelo quadril agora, vinte e quatro horas
por dia, sete dias por semana. Como bons cúmplices devem estar.
Afogo com o café, deixando a bebida escorrer pelo meu queixo quando coloco a xícara
para baixo e pego um guardanapo que ele me estende.
Que solícito.
— O quê? Não! E o que eu disse sobre me chamar de “cúmplice”? — Rosno a última
palavra.
— Que se sente honrado? — Hunter arqueia as sobrancelhas, esparramando ovos
mexidos, bacon e a salsicha picada sobre o prato.
Atiro em sua cabeça o guardanapo amassado, acertando desta vez e o atingindo na testa.
— Caralho... — pressiono meus dedos na têmpora, massageando a dor que está
começando lá. — Isso não pode estar acontecendo. Devo estar ouvindo muito errado.
— Preciso soletrar para que possa entender, Advogado?
— Não preciso das suas mímicas neandertais, obrigado — resmungo, olhando para ele
outra vez. — Entendi muito bem, mas não significa que aceitei. E outra, não posso simplesmente
deixar meu trabalho atual.
— Claro que pode. É só não aparecer e voilà! Vai ser demitido por justa causa.
Deuses, eu realmente quero enfiar meus polegares em seus olhos...
— Eu trabalho com meu pai, Hunter! Acha que é tão simples assim não aparecer na
empresa? Ou ser demitido? — Zombo. — Se desse para fazer isso, eu teria realizado há muito
tempo! Tipo, quando fiz dezoito, seis anos atrás.
Hunter me observa por alguns segundos, sua cabeça inclinando para a direita suavemente.
— Você não parece gostar de trabalhar para ele, o que é um ponto positivo para começar a
trabalhar comigo.
— “Não gostar” é um eufemismo — resmungo, me remexendo na cadeira. — E seria
trocar um inferno por outro. Pelo menos o diabo atual eu já conheço. Agora você...
— Sou um diabo perverso, nada mais que isso. E seu pai, Advogado? Quem ele é? — sua
voz soa praticamente morta, o que faz minha espinha arrepiar de um modo ruim.
— Isso... não é relevante — falo, tomando o resto do meu café.
Hunter empurra o prato cheio na minha direção e pega seu copo mais uma vez, tomando
quase tudo em um só gole.
— É mais do que relevante. — Hunter coloca o copo de lado e apoia os cotovelos sobre a
mesa, cruzando os dedos na frente do rosto enquanto me observa. Ele parece fazer muito isso.
Observar. — Quero que você entenda uma coisa: preciso confiar em você para que não precise te
matar. E, para isso acontecer, preciso que seja sincero comigo.
Franzo o nariz com o cheiro de uísque vindo dele. Então era isso que ele estava bebendo?
— O que é isso? Conversa de travesseiro?
Hunter pisca devagar.
— Se fosse, sua bunda estaria doendo agora depois do meu pau te perfurar a noite toda.
— Hunter franze as sobrancelhas. — Pare de mudar de assunto, porra. Qual seu verdadeiro
sobrenome, lisichka? Porque eu sei que não é Kraisee Wongsa.
Pisco, não conseguindo segurar o sorriso.
— Ora, não foi você que disse que meu nome é impronunciável?
Ele apoia as mãos sobre a bancada e tento não perceber como os músculos dos seus
braços e peitoral ficam ridiculamente ainda mais gostosos quando tencionados assim.
— Eu tenho uma lista de nomes de todas as pessoas que me irritaram e acabaram mortas
no final. Saiba que o seu está no topo e sublinhado em vermelho, Advogado.
Apoio o cotovelo ao lado da xícara, meu queixo na palma e meu sorriso largo e sarcástico
no rosto.
— E meu nome está nesta lista como Advogado ou Kraisee “Impronunciável” Wongsa?
Hunter rosna, sua mão avançando e me segurando na garganta. Ofego, não muito surpreso
com sua atitude. Eu o provoquei e agora ele está tomando as providências. Meus olhos arregalam
quando seus dedos apertam meu pescoço e a passagem de ar fica mais estreita. Isso, com certeza,
deixaria marcas mais tarde.
Seu rosto paira sobre o meu, seus olhos gelados cerrados.
— Minha paciência é curta e você a está gastando muito rápido, Advogado.
— Foda-se, Honey Beard — sussurro, tentando puxar o ar com força, e sendo inútil.
Seu aperto piora, minha boca se abrindo e lágrimas enchendo meus olhos. Aquela
pequena parte sombria em mim se regozija, querendo implorar por um pouco mais. Querendo ser
maltratado. Jogado sobre a bancada e pedir para ir mais profundo. Principalmente quando ele se
inclina mais perto, suas pupilas estouradas e narinas abertas, como se estivesse inspirando o
cheiro do meu pavor e excitação.
Minha língua se mexe, querendo implorar para que ele me beije e me foda, a expectativa
me corroendo por dentro. Até que minha parte racional e sensata se ergue no meio da luxúria e
grita para que eu fuja. Meus dedos passam pela bancada, resgatando o garfo, e o enfio com força
em sua lateral. Hunter grunhe, seu aperto afrouxando e deixando que meus pulmões se encham
outra vez. Engasgo, tossindo, enquanto Hunter pragueja em russo.
— Seu filho da puta psicopata! — exclamo, passando os dedos pela pele sensível, e
estremeço. — Você quase me sufocou até a morte!
— Não mato ninguém sufocado. Eu quebro o pescoço ou rasgo a garganta com uma faca.
— Hunter pega seu copo, enchendo novamente. — O que fiz com você foi apenas um aperto de
mão muito bem dosado.
— Você é completamente insano.
— Prefiro criativo. — Hunter engole o líquido de uma vez, grunhindo ao colocar o copo
dentro da máquina de lavar louças. Ele pensa que está tomando água? — Na cama, meus
parceiros costumam gostar muito quando aperto suas gargantas. Por um momento, você pareceu
gostar também.
— Vá se ferrar — estalo, pegando uma tira de bacon e enfiando na minha boca.
Hunter sorri de lado, como se pudesse ler em minha mente a mentira que contei. Sim, e
daí que eu gostei? Não quer dizer que eu vá querer fazer de novo.
Por enquanto...
Empurro aquela voz sombria da tentação para baixo em minha mente e me concentro no
café da manhã. Entretanto, meu celular começa a tocar com a música do meu pai. Tiro-o do
bolso com uma careta e Hunter estica o pescoço, parecendo bastante interessado.
— Quem é?
— Ninguém importante — resmungo.
O telefone morre, apenas para começar a tocar outra vez. Merda, Ray vai ficar muito
irritado por não ter atendido no primeiro toque. Deixá-lo esperando é o cúmulo do desrespeito.
Meu pai não aceita que não seja atendido no minuto em que liga. Porém, não posso falar com ele
agora. Não com o Executor pairando sobre mim assim.
— O “ninguém” parece bastante empenhado que você atenda.
Exalo pesadamente, colocando o telefone virado com a tela para baixo e encolho os
ombros.
— É apenas trabalho.
Hunter dá a volta na bancada e aponta para o telefone.
— Atenda.
— Hunter...
Ele pega meu telefone, virando-o com a tela trincada para cima. O nome do meu pai
brilha quando começa a tocar pela terceira vez. Sua sobrancelha clara se arqueia.
— Ray Warden, dono da empresa RW Golden Group — fala lentamente. — Seu... patrão?
A maneira como Hunter fala e me olha, não é de uma pessoa que está perguntando sem
saber a resposta. É como alguém que sabe de tudo, mas espera que o outro seja sincero.
Pressionado e encurralado, meu rosto de advogado escorrega sobre minhas feições e toda
expressão é suprimida.
Cruzo os braços, olhando-o.
— Me reservo o direito de me manter calado.
Hunter bufa.
— Você não está na porra de um tribunal. — A cabeça dele se abaixa até seus olhos
estarem no nível dos meus. — Mesmo que eu seja seu carrasco e seu silêncio seja sua sentença
de morte.
Dizendo isso, seu dedo desliza pelo botão verde e coloca o aparelho no ouvido.
“I'm bad, take a look and see
So bad that it's hard to believe
I don't care what they say about me”.
(Bad, Royal Deluxe)
A linha entre a mentira e a verdade é muito tênue. Kraisee tem andado nessa corda bamba
nos últimos dias e eu o deixei pensar que estava conseguindo se manter estável. Doce ilusão.
Mikhail, com ajuda de Baumer – nosso gênio da computação e um grande hacker – conseguiu
encontrar alguns fatos sobre a vida de Kraisee Wongsa e suas pequenas mentiras. Ou seriam
omissões? Para mim dá na mesma.
O fato é que: trazê-lo para minha casa com o pretexto de estar desconfiado de sua ida até a
delegacia foi uma boa desculpa. Desde que meu irmão me entregou diversas perguntas sem
respostas sobre meu advogado teimoso, estou pensando em sequestro e cárcere privado. Kraisee
fugir de mim só me ajudou.
Assim como esse telefonema de Ray Warden nesta nublada manhã de final de inverno.
— Garoto, faz ideia de quanto tempo estou te ligando?
A voz soa grossa e monótona do outro lado.
— Já faz alguns anos que não sou um garoto — digo lentamente.
A linha fica muda, mas posso ouvir a suave inspiração do outro lado.
— Onde está meu filho?
Ah, aí está, a confirmação que eu precisava.
Meu sorriso cruel cresce e olho para o rosto do meu Advogado mentiroso. Ele tem seu
queixo empinado em teimosia e afronta, seu maxilar trabalhando enquanto range os dentes. E,
porra, o dourado de sua gravata só deixa seus olhos ainda mais castanhos.
— Seu filho está ocupado agora. A boca dele está muito cheia para falar.
A dita boca se abre com aversão, uma exclamação engasgada saindo de sua garganta.
Exatamente o som que eu precisava. Do outro lado, o homem exala pesadamente.
— Dê o telefone para o garoto. Nós temos um dia cheio e ele está atrasado.
Tiro um cigarro do bolso e o acendo, puxando a nicotina e soprando devagar.
— Sinto informar, mas o advogado está trabalhando comigo agora. Somos parceiros de
negócios.
— Filho da puta! Me dê a porra do meu telefone — rosna, atirando a mão na minha
direção.
Escapo dele ao dar a volta na bancada e colocá-la entre nós. Como ele pode se mover tão
rápido usando essa deliciosa peça tão apertada? Estendo o braço e bato as cinzas dentro da pia,
não dando a mínima para seu rosto furioso.
A linha fica silenciosa, mas eu sei que Ray Warden ainda está do outro lado. Sua
respiração é audível, assim como o suave tamborilar de seus dedos.
— E você seria quem? — Ray finalmente pergunta, sem nenhuma inflexão em sua voz
que denuncie seu humor.
— Meu nome não é importante agora. Mas o seu esclareceu muitas perguntas sem
respostas que eu tinha, já que o advogado Wongsa não quis me dizer.
Provocação deveria ser meu nome do meio.
Desde o começo, acender o pavio curto de Kraisee se tornou minha diversão sombria
predileta. Ver essas bochechas afiadas ficarem escuras, seus olhos estreitos e a boca franzida nos
cantos com irritação. Sua expressão muda de enfurecido para desejo carnal, então vice-versa.
Como suas pupilas engolem o castanho. Os olhos de Kraisee são marrons como o
chocolate Hummingbird[17]. Não apenas a cor, mas também com expressão tão amarga quanto
seu humor. Derretendo em seguida com o calor da sua excitação.
E, porra, eu tenho um fraco enorme por doces amargos.
— Se meu filho está prestando serviços para outra pessoa, preciso saber o nome — Ray
diz calmamente. — E o contrato dele é completamente explícito sobre trabalhar para terceiros.
Observo Kraisee agarrar a faca que estava usando para cortar o bacon e me olhar com
determinação. Seu peito se expande com força contra o colete creme, me fazendo pensar
naquelas cordas o amarrando na parte de trás.
Foda-se, estou ficando duro só de olhar para essa expressão de raiva no rosto dele.
— É mesmo? Tenho certeza de que a minha chefe não se importa com isso.
— Entendo. E quem seria sua chefe? — Ray questiona, fingindo pouco interesse.
Kraisee solta um grunhido, se lançando sobre a bancada como um animal feroz. Arqueio
as sobrancelhas, surpreso que seu corset vest apertado e sua baixa estatura o tenham deixado
conseguir saltar tão alto e rápido assim. Seu corpo pequeno e esguio bate no meu e aquela faca é
enfiada pouco abaixo do meu ombro até a metade da lâmina, arrancando sangue desta vez. Meu
cigarro foi perdido em algum lugar pelo caminho.
As pernas de Kraisee se enroscam na minha cintura e minhas costas batem contra a
geladeira, apenas para ter meu corpo torcido em seguida, e estou deitado no chão com a bunda
do advogado pousada no meu estômago. Ele puxa a faca do meu ombro e aperta a lâmina no meu
pescoço, sangue quente vertendo do ferimento e fazendo a dor pulsar.
E nunca estive tão duro quanto agora.
— Certo, porra, você venceu! Vou fazer o que você quiser e contar tudo, mas mantenha
minha família longe disso — rosna sob a respiração curta, pressionando a faca na minha
garganta.
— O que está acontecendo?
A voz de Ray tira um pouco do meu tesão. Respiro o máximo que consigo no aperto de
Kraisee e sorrio.
— Não se preocupe com seu filho, Warden. Kraisee logo estará aí, são e salvo. Do
svidaniya[18].
Desligo o telefone e o deixo cair no chão. Minha mão envolve o pulso de Kraisee
segurando a faca enquanto o agarro na nuca com a outra mão. Meus dedos deslizam pelas
mechas grossas e agarro os fios curtos, fazendo sua mão na minha garganta vacilar um pouco.
Trago sua cabeça para baixo, satisfeito por ele vir sem nenhuma resistência.
Sua boca entreabre, seus olhos cerrando. Ergo o quadril e nos giro, colocando-o abaixo de
mim e de costas no chão. Ele ofega com o impacto, seus olhos arregalados quando empurro suas
mãos acima de sua cabeça e as prendo pelo pulso com apenas uma de minhas mãos. A faca cai
ao lado com um ruído baixo, misturado ao grunhido que solto ao sentir as coxas apertando minha
cintura.
A dor em meu ombro é um mero lembrete que ainda continuo sangrando e devo precisar
de pontos.
— Você é como uma pequena lisichka selvagem.
— Poderia concordar com você se soubesse o que essa porra de nome significa —
resmunga.
Seus braços remexem, tentando se soltar em vão do meu aperto.
— Mais um pouco para baixo e você teria se tornado um assassino, Advogado — digo,
inclinando a cabeça para o lado e vendo meu sangue escorrer. — Você teria essa coragem?
Alguns centímetros e você entrava para esse lado sombrio a qual resido.
Os olhos de Kraisee arregalam, percebendo o que ele quase fez.
— Eu... Eu...
— Se tornou um leão feroz quando pisei na sua cauda, sim. — Sorrio, vendo uma gota
pingar sobre sua bochecha, manchando sua pele bonita em carmesim. — Bem-vindo ao meu
mundo, Kraisee Warden.
Ele estremece, fechando os olhos, e o som do meu celular ecoa pela cozinha. Irritado pela
interrupção, pego o aparelho do bolso, ignorando completamente o novo trincado na tela, e
atendi sem olhar o nome na chamada.
— Chto ty khochesh', ad[19]?
— Temos uma reunião com a Pops. — A voz de Mikhail é séria.
— Pizdúí — rosno, flexionando meus dedos nos pulsos de Kraisee.
Ele pisca, sua cabeça inclinando e parecendo prestar atenção na minha ligação. Exalo
pesadamente, soltando-o e sento nos calcanhares enquanto Kraisee se senta com as mãos
apoiadas no chão. Apalpo meu pau morrendo e franzo as sobrancelhas conforme Mikhail
continua:
— Venha para o lugar de sempre. Não se atrase, Hunter.
— Entendido. — Assinto, a ligação sendo finalizada.
— Aconteceu algo?
Olho para o rosto de Kraisee, suas bochechas mais escuras e lábios macios úmidos, a gota
de sangue escorrendo até o maxilar. Passo meu polegar pela mancha vermelha e esfrego em seu
lábio inferior antes de segurar sua garganta com pressão, mas não cortando seu ar.
— Vou precisar sair agora, mas, mais tarde, você vai me dizer tudo, Advogado. Cada
pequeno detalhe. — Aperto os dedos, apenas para enfatizar minhas palavras, e sorrio ao ver suas
pupilas dilatadas e a língua rosada colhendo meu sangue em seu lábio. — Por enquanto, vou
deixar você ir para o seu papai e você vai se comportar como um bom menino até eu voltar.
Aí está novamente, sua expressão mudando da água para o vinho.
Suas sobrancelhas se franzem, assim como os cantos da sua boca. Sua mão dá um tapa na
minha, apenas para me empurrar no peito antes de se levantar. Observo-o alisando a frente de seu
terno verde escuro e ajusta sua gravata dourada no lugar novamente.
Ele parece não perceber que há gotas de sangue manchando a manga do seu terno.
— Não sou um cão para sentar e esperar sua volta, abanando o rabo quando o dono chega.
Me ergo devagar, mais pelos joelhos doloridos do que qualquer outra coisa. Talvez eu
esteja mesmo ficando velho.
— Mas gosta de ser tratado como um. — Aponto.
Kraisee me dá um olhar morto, pegando um pedaço de papel e limpando o resto de sangue
de sua bochecha antes de me dar as costas e pegar o celular do chão.
— Quem precisa de uma coleira aqui é você — resmunga, seus olhos indo para minha
garganta.
E eu posso dizer que ele está imaginando agora mesmo como eu ficaria usando uma linda
coleira de couro preta com grossas correntes. Sorrio, porque eu também gosto muito dessa ideia.
Soltando um suspiro e balançando a cabeça suavemente, Kraisee volta para o banco e
puxa seu prato frio de café da manhã outra vez. Como se não tivéssemos tentado nos enforcar
minutos atrás e eu tivesse um rasgo sangrando no ombro. O sangue respingado no chão é mais do
que uma evidência.
Pego um guardanapo e limpo grosseiramente meu antebraço e bíceps, percebendo que
Kraisee me observa em silêncio e parecendo levemente arrependido. Jogo o papel sujo no lixo e
roubo um bacon do seu prato, ganhando um olhar de advertência. Deslizo meu celular
desbloqueado para ele e aceno para a tela.
— Coloque seu número.
— Quem diria que um sociopata assassino como você teria um telefone atual. Pensei que
os berserkers se comunicassem por meio de uivos.
— Posso uivar para você se me pedir com jeitinho.
Kraisee faz um som de indiferença com a garganta, me dispensando. Ele digita
rapidamente e me devolve o telefone. Seu nome anotado está como “Advogado Wongsa”. Abro
para editar e tiro seu sobrenome falso, deixando apenas o apelido. Envio a ele uma mensagem
com o código da porta da frente, seu celular apitando em seguida.
Suas sobrancelhas se franzem quando ele olha para a tela.
— O que é isso?
— A chave da entrada. — Pego de cima do armário um pequeno chaveiro com duas
chaves. — Aqui tem uma cópia da porta da frente e outra de trás. Fique com elas e se certifique
de não as perder.
Coloco o chaveiro na mão de Kraisee, que me olha com um pedaço de bacon pendurado
entre os dentes. Ele o rasga no meio, mastigando e engolindo em seco.
— Você está me dando as chaves da sua casa?
— Da minha moto que não é. — Pego a camiseta, que joguei mais cedo sobre a cadeira, e
a visto, torcendo o rosto um pouco com a dor da ferida aberta. — Não deixe nada bagunçado
antes de sair. E tenha certeza de que seu rato está bem preso no quarto.
— Mas... Hunter...
Paro ao lado dele, segurando seu queixo e deixando um suave aperto.
— Não tente nenhuma gracinha enquanto estou fora. E por ser um pequeno mentiroso,
não ganha beijo de despedida.
Solto seu queixo e saio da cozinha, deixando as brincadeiras e tentações para trás. Tenho
trabalho a ser feito.
*
— Você fez o quê?
Giro minha faca canivete no indicador, olhando para o rosto sisudo do meu irmão. O
tempo não está sendo bom com ele. As rugas de expressão parecem mais profundas, sua cicatriz
parece mais marcada e acho que há uma pequena entrada começando em suas têmporas.
Se eu tivesse toda a preocupação que Mikhail tem, e dividisse minha cabeça com um
psicopata, também teria cabelos brancos a essa altura. Guardo a faca no bolso, soprando a
fumaça do cigarro quando entramos pela porta do galpão. Os pontos em meu ombro ardem um
pouco e coçam, me lembrando que ter feito isso sozinho dentro do carro no estacionamento não
foi uma boa ideia.
Nunca é.
— O levei para morar comigo — respondo, ignorando a coceira.
— Isso eu entendi — grunhe, me olhando sobre o ombro. — Não entendi foi a porra do
motivo.
— Mantenha os amigos perto, e os inimigos mais perto ainda. — Aponto. — Morando
comigo posso descobrir todas as fraquezas dele.
Mikhail enfia as mãos dentro dos bolsos da calça, seus olhos escuros analisando o
corredor antes de caminhar para os fundos.
— Mentira. Você só quer seu mais novo brinquedo por perto para usá-lo até quebrá-lo.
— Isso também. — Dou de ombros.
Faço coisas muito ruins, e as faço muito bem. Sou brutal quando encontro o ponto fraco.
Estou procurando a fraqueza de Kraisee desde que o deixei em seu lixo de apartamento dias
atrás. Cavando sua história e desenterrando seu passado inexistente. Eu sei como ser uma
sombra, mas Kraisee parece ser melhor nisso.
A não ser que Kraisee seja a porra de um ótimo ator. O que eu duvido. Apesar que o
homem é um advogado, e o único que conheci no mesmo ramo se trata do Forest, aquela doninha
sorrateira criada por chocadeira. Os advogados são muito bons com manipulação. Porém, quando
atendi o telefone, Kraisee pareceu ficar apavorado. Ele não quer sua família envolvida.
Seria por medo do que eu diria ao seu pai? Que o ameaçaria? Realmente, uma incógnita.
Entretanto, o ponto que descobri é que a fraqueza de Kraisee está localizada em sua família.
Nenhuma novidade aqui.
Transforme a dor em poder, Killian.
Mason Schulz, o maldito filho da puta que me ensinou tudo o que sei e era o antigo
Executor dos D’Angeles. Trabalhando para o escroto pai da Pops e fazendo serviços mais sujos
que o meu. Mason não selecionava suas vítimas, como eu faço. Ele matava qualquer um que
passasse na sua frente e o olhasse de uma forma que ele não gostava.
Mason era perigoso e dono de uma mente insana, dez vezes pior que a minha. E sua
maneira de ensinar era mais do que literal. Perdi minhas emoções quando me demonstrou
pessoalmente suas torturas. Tomei ciência de que um Executor não possui nada além de ódio e
raiva, uma ganância por sangue e destruição. Um dos prazeres da vida.
Você é uma arma, e armas não choram.
Use a dor do seu inimigo contra ele, e o machuque até que não sobre nada. Encontre a
fraqueza, as feridas que ainda sangram e enfie o dedo dentro delas. É assim que sigo com minhas
torturas, fazendo o traidor definhar aos poucos, tirando tudo com o que se importa. Ameaçando-
os.
Estalo o pescoço, apagando o resto do cigarro na palma da mão quando Mikhail abre a
porta da Sala Preta. Atiro a bituca dentro do lixo e aceno sutilmente para a Pops sentada na
cadeira atrás da mesa.
— Nós temos um problema — Pops fala como recepção, cruzando as mãos sobre a mesa.
— O que está acontecendo? Os Profanos outra vez?
Cruzo os braços, parando no canto da sala. Pops tem suas unhas pintadas de roxo, as
pontas como garras pontiagudas, e pressiona os dedos na têmpora em uma massagem lenta
enquanto Mikhail para ao seu lado.
— Quem me dera fossem aqueles idiotas. — Ela empurra um envelope na direção de
Mikhail. — Temos um novo rival.
Solto um gemido, batendo minha nuca na parede.
— Pizdúí, mais um?
— Eles surgem como baratas — Pops diz. — O problema é que este novo grupo já
roubou dois negociantes e está tomando território. Não posso me dar ao luxo de enfraquecer
agora que consegui uma nova carga.
Mikhail folheia os arquivos que tirou de dentro do envelope, seus olhos sérios.
— Eles não possuem um nome ainda?
— Não se intitulam, mas há boatos pelas ruas que são da Máfia Siciliana.
Mikhail estende uma folha para mim e me empurro para longe da parede, indo até ele.
— O que você quer que a gente faça, chefe? — pergunto, olhando pra folha com uma
ficha e um nome.
— Houve uma festa no Grand Empire na sexta-feira, onde alguns homens importantes
vieram prestigiar. É a droga de uma festa chique para encobrir negócios sujos. — Pops recosta na
cadeira, seu indicador passando abaixo do queixo. — Alguns foram embora, mas outros ficaram
para trás.
— Não penso que estão aproveitando a cidade — Mikhail murmura, olhando para a Pops.
O bico de sua bota batendo três vezes no chão, um pequeno tique de quando está pensando. —
Carl estava de garçom nesta festa.
E Kraisee também estava lá com o pai, Ray Warden. Estalo o pescoço, algo me dizendo
que tudo isso não é coincidência e meu advogado mentiroso não é tão inocente como aparenta.
— Carl era um espião. Um rato. — Pops tamborila os dedos sobre a mesa. — E ele não
entregou nada de interessante antes de morrer.
Solto um palavrão sob a respiração.
— Carl quebrou muito fácil. Sequer cheguei perto de mutilar alguma parte dele e o
homem já estava morto — digo com indignação e frustração. — Nem mesmo deu tempo de
sentir o cheiro de sangue.
— Talvez neste próximo trabalho você consiga um pouco mais. Espero. — Pops arqueia
uma sobrancelha para mim. — Três homens, dos sete que vieram de Detroit, estão hospedados
no Hotel Imporium.
— E você quer um em específico — falo, olhando para a ficha em minha mão.
O homem calvo me encara da foto três por quatro. Quarenta e sete anos, casado. Pops
cruza os braços, seu rosto sério.
— Nathaniel Stefano. Ele é o braço direito do capo Giano Rinaldi, dos Sicilianos.
— Nós temos um desacordo com Detroit desde que seu pai comandava essa organização,
Pops — Mikhail comenta apoiando a mão no encosto da cadeira.
— Giano continua interferindo na nossa mercadoria quando passa por lá. Piorou desde
que assumi o comando. — Pops cruza os braços, seu pé batendo suavemente. — Quero que
tragam Nathaniel para mim. Eu quero que Hunter tire toda informação que conseguir daquele
vermezinho. Desmonte-o se for preciso. Devolvemos para Giano apenas os pedaços quando
terminarmos, como um recado.
— Você pode começar uma guerra, Pops — Mikhail diz, guardando os documentos
dentro do envelope novamente e a colocando debaixo do braço. — Ainda mais se não for Giano
que está tomando nossas ruas.
— Giano não tem culhões para uma guerra. — Pops esnoba. — Estou aqui há mais de seis
anos e toda vez aquele velhote dá para trás quando ameaço atirar no meio de sua testa.
Qualquer um faria.
Exalo, dobrando a ficha e a guardando no bolso de trás da calça.
— Considere feito, chefe.
— Mikhail, fique. Preciso conversar sobre outro assunto com você. Hunter, dispensado.
Assinto, saindo da sala e fechando a porta atrás de mim. Se Giano é quem está por trás
dos últimos acontecimentos, talvez Kraisee realmente não tenha nada a ver com o assunto.
Entretanto, a festa no Grand Empire foi para reunir grandes organizações imorais e hediondas e
fechar contratos de carregamentos de armas ilegais e drogas. E Kraisee estava lá. Assim como
Ray Warden e a organizadora da festa, Caitlin. Seus pais adotivos.
Saio do galpão com olhos estreitos, a neve caindo em flocos grossos e cobrindo o chão
como um manto branco. Algo nisso não me cheira bem. E, como um bom cão caçador, eu
deveria cavar mais fundo até descobrir de onde vem o cheiro podre.
“Baby your heart is a wrecking ball
You could take me down if I letcha
Feeling your heat from across the room
Finger pointing like I’mma getcha”
(Dance With the Devil, Striking Vipers)
O cheiro de sangue nunca se torna enjoativo. Líquido pegajoso e quente, escorrendo pela
ponta dos meus dedos enluvados, grudando em minha pele sobre as tatuagens. É como lar para
mim, mesmo que eu não saiba exatamente o que significa essa palavra.
Estalo o pescoço, jogando o alicate sobre a mesa e tiro as luvas. Nathaniel respira com
dificuldade, mas ele foi forte durante todo o processo. O que me frustrou pra caralho. Gosto
quando eles gritam e imploram por piedade. Só quando eu mexi com sua masculinidade que
Nathaniel deu com a língua nos dentes, cantando como um passarinho.
Nada do que ele me disse é realmente interessante.
— Vamos limpar você e enviá-lo de volta para seu chefe. — Passo um pano pelo meu
braço, tirando os respingos de sangue. A dor no meu ombro é uma mera lembrança depois desse
dia arrastado. — Lembre-se de que isso foi apenas uma brincadeira de criança para mim. Se
Giano tentar foder com nossos negócios outra vez, vou fazer pior com ele.
— Isso... é uma... ameaça? — Nathaniel cuspiu, erguendo os olhos machucados para
mim. — Vocês estão... querendo uma... guerra?
Olho-o com atenção, jogando o pano dentro do balde para descarte e ser queimado em
seguida.
— Vocês começaram com isso, só estamos retaliando. E se Giano quiser comprovar,
ficarei feliz em aparecer na porta da casa dele com minha faca e rasgá-lo na garganta.
Dou as costas para ele, sabendo que não há como saltar da cadeira e me atacar, sendo que
está muito bem amarrado. Tiro o telefone do bolso e chamo a limpeza. Geralmente, sou eu quem
faço esse trabalho. Descartar, esterilizar e não deixar sequer um rastro para trás. Não confio no
trabalho dos outros, então eu mesmo faço.
Porém, está tarde e estou cansado. Levei mais tempo nisso do que previ e Nathaniel está
vivo, no final de tudo. Esfrego a nuca, erguendo os olhos ao ouvir um suave barulho vindo da
porta aberta do prédio. Mikhail surge como se houvesse saído das sombras, mãos nos bolsos do
casaco grosso, olhos soturnos iluminados pela lâmpada amarela do lado de fora.
— Você me assustou, porra — rosno, passando por ele na porta.
A neve parou de cair, mas deixou uma camada alta para trás sobre a calçada. Salto no
lugar, ciente que minha jaqueta forrada e calça não me previnem do ar gelado se agarrando em
meu corpo. Vejo a Pops parada perto de seu carro de luxo, o casaco de pele envolvendo seu
corpo magro e alto. Ela sequer esperou um relatório. Isso só demonstra como tudo o que está
acontecendo é mais fodido do que deixa aparentar.
Com passos largos, Pops se aproxima com suas botas elegantes esmagando a neve sem
nem mesmo tropeçar ou escorregar.
— O que ele disse? — pergunta baixinho, olhando para o prédio escuro atrás de mim.
— Giano conseguiu roubar um negociante do México, mas era um dos nossos menores.
Ele tentou falar com Mazzari, mas o italiano foi categórico sobre não nos deixar. — Tiro um
cigarro, acendendo-o. Inspiro fundo, soltando a fumaça devagar em seguida. — Eles vieram para
o Grand Empire em busca de novos contatos, mas Giano saiu sem nada e furioso. Carl não está
trabalhando com eles. Nathaniel sequer havia ouvido o nome antes que eu falasse.
— Você acredita nele?
— Eu estava com meu alicate segurando a ponta de seu pau. O que você acha, Orlov? —
zombo. — Pare de me insultar no que sei fazer de melhor. Não fico te questionando sobre seu
trabalho, porra.
Mik arqueia uma sobrancelha.
— Seu brinquedo está te deixando na mão?
Sopro a fumaça e o olho.
— O que isso é da sua conta?
— Parem vocês dois — Pops rosna, batendo em nosso peito com as mãos. — Há coisas
mais importantes a serem resolvidas do que a falta de uso do pau do Hunter.
— Concordo — Mikhail diz, assentindo.
Meu irmão ergue sutilmente o lábio, mas rapidamente se vai quando mostro a ele meu
dedo do meio.
— Hunter. — Pops chama minha atenção. — Você o deixou vivo?
— Um pouco maltratado, mas respirando. Pode devolver para Giano como um produto
estragado.
— Perfeito. — Pops assente. — Baumer me disse que encontrou um download não
autorizado de alguns arquivos quando estava verificando o sistema. Você achou algo nos bolsos
de Carl quando o revistou?
Estou balançando a cabeça antes mesmo que ela termine a pergunta.
— Não, senhora. Quando o revistamos já não havia nada.
— Talvez ele tenha jogado fora antes que pudéssemos ver?
— Quando o arrastamos pelo beco — digo. — Ele pode ter atirado sem que tenhamos
visto.
— Hunter, o advogado que você está mantendo, acha que ele pode ter pegado em algum
momento?
Mastigo a ponta do cigarro na minha boca, pensando. Encolho um ombro e atiro a bituca
no chão, apagando a ponta com o pé.
— Duvido. Ele estava mais preocupado em correr do que qualquer outra coisa.
Pops esfrega o queixo com o indicador, olhando para Mikhail.
— Vamos para a Luxury comigo. Preciso conversar com o Kiam e você deve estar
presente para esse assunto. Hunter, sinta-se livre para ir embora ou seguir conosco.
Não quero ir para a Luxury.
Quero ir para casa e atormentar meu advogado.
Com o cigarro pendendo no lábio, tiro minha faca do bolso e passo a girá-la no dedo. Se
eu for para a boate, sei muito bem que posso ter algum alívio rápido, mas nada vai conseguir
superar minha vontade em ter Kraisee de joelhos e implorando por mim.
E aquele teimoso não vai fazer isso tão cedo, o que vai me deixar ainda mais frustrado.
— Tanto faz — resmungo.
Com um balanço da cabeça em assentimento, meu irmão caminha junto com a Pops para
o carro luxuoso e eu vou direto para o meu. Sento-me atrás do volante e imediatamente ligo o
aquecedor, sentindo minhas costas e ombros rígidos no pequeno espaço apertado. Isso porque
escolhi um carro grande e com bancos largos. Jogo minha faca sobre o console e pego minha
bolsa do banco de trás em seguida. Tiro as roupas respingadas de sangue, trocando por limpas.
Nesse meio tempo, o carro da limpeza estaciona. Três homens saltam da van escura e
acenam para mim quando saio pelo portão. Por todo o caminho até a Luxury, debato sobre enviar
minha localização para Kraisee. Tenho certeza de que ele ignoraria minha mensagem, assim
como ignora minhas palavras.
Parando atrás do carro da Pops no estacionamento privativo, pego minha faca de volta e
saio do carro. Só então percebo que pensar no advogado me fez esquecer da sensação de estar
sendo comprimido em um espaço apertado. Assim como tenho um sorriso estúpido no rosto.
O que Kraisee Warden está fazendo comigo?
Íebot mne mozgi[20], é isso que ele está fazendo.
Puxo o laço do cabelo, deixando-o solto, e amarro o elástico no pulso para não perder.
Meu corpo parece um pouco moído, minhas juntas rangendo com o movimento. Noites sem
dormir, um trabalho após o outro, carregando corpos e os desmembrando... Não imaginei que o
tempo cobraria de mim tão rápido assim. O idoso de cabelos brancos aqui é Mikhail, não eu.
Estalo o pescoço, meu celular vibrando dentro do meu bolso. O que é estranho, já que
Mikhail é o único a me ligar e ele está bem na minha frente agora. Pego o aparelho, arqueando as
sobrancelhas ao ver que é uma mensagem do Advogado.
Aqui é o Dominic.
Kraisee está muito bêbado e disse para
ligar para você.
Ele se recusa a voltar para o apartamento.
Solto um grunhido, batendo o dedo no número e discando automaticamente. O pombo
idiota atende no segundo toque.
— Onde vocês estão?
— No Purgatório.
— Não saiam daí. Chego em dez minutos — rosno, desligando o telefone.
— O que aconteceu? — meu irmão pergunta ainda parado na porta.
— Estou de saída — grunho, virando as costas para ele e voltando para o carro.
Purgatório é uma das boates que rivalizam com a Lust desde muito tempo. O dono de lá,
Argo, é um filho da puta arrogante que usa sua boate como fachada para encobrir sequestro e
tráfico humano. Um péssimo lugar pra Kraisee estar.
E bêbado.
Avanço pela cidade, ignorando sinais vermelhos e buzinas. Estaciono atravessado na
portaria da boate, recebendo olhares enviesados dos manobristas. Caminho pela entrada,
lançando um olhar gelado para o segurança quando bloqueia minha passagem.
— Saia.
— O senhor não pode entrar sem pagar.
— E você tem três segundos para sair ou vou cortar sua garganta. — Inclino sobre ele,
sorrindo. — Três, dois...
Ele engole em seco, dando um passo para o lado. Inteligente. Empurro a porta com um
grunhido irritado e a música é alta e agitada, uma mistura de batida com remix, sangrando meus
ouvidos. A pista está lotada para uma terça-feira. Meninas em cima dos tablados, mexendo o
quadril em atos obscenos. Uma delas escorrega pelo poste, balançando sua bunda no ar, sua
tanga mal tapando seu buraco.
Ando pela pista, meus olhos vão para todos os lados em busca de Kraisee. Se aquele
pombo idiota saiu daqui com ele, vou despedaçá-lo. Sigo para o andar de cima, para a ala VIP.
Mais da metade dos sofás estão ocupados, assim como as salas privativas. Meus ouvidos pulsam
com a música alta, meu coração martelando quando me inclino sobre o beiral de aço preto e
observo a multidão dançando, fixando em um homem perto do tablado central. Seus cabelos
escuros estão bagunçados e espetados, como se tivesse passado os dedos pelos fios várias vezes.
Sua camisa creme está aberta nos três primeiros botões e suas mangas estão puxadas para
cima. Ele gesticula de modo brusco, parecendo estar bravo enquanto o loiro tenta segurá-lo. Suas
mãos estão sobre o meu Advogado. Meu rosnado irritado sai antes que eu possa segurá-lo. Desço
os degraus da escada até o andar de baixo, meus olhos presos na forma como aquele amigo inútil
tenta fazer Kraisee sair da multidão. Dou a volta na pista, observando-o de longe com olhos
estreitos.
Sua gravata dourada desapareceu, assim como o corset. Rondo em silêncio ao redor,
desviando das pessoas dançando e nunca perdendo o advogado de vista. Em dado momento, vejo
seus ombros retesados e os levantar sutilmente em direção aos ouvidos, seu corpo congelado no
lugar.
Avanço pela multidão, acotovelando as pessoas, quando Kraisee vira o rosto de um lado
para o outro, parecendo procurar por algo. Ou alguém. Seus olhos castanhos brilham amarelos e
vermelhos pelas luzes da boate e arregalam sutilmente quando ele, finalmente, me vê há poucos
metros. Parece que há algo em sua sobrancelha esquerda, mas não consigo distinguir o que é.
Kraisee dá um passo para trás e eu balanço a cabeça para que ele não faça o que está
pensando. É instintivo. Eu sou um caçador e ele é minha presa. Uma raposa pequena e astuta,
assustada com o predador maior rondando. Meu sorriso se torna maior quando Kraisee se afasta
de Dominic e sacode a cabeça, virando nos calcanhares e correndo.
Solto um grunhido, avançando pela multidão e empurrando as pessoas pelo caminho. Meu
ombro machucado bate, mas não registro a dor no momento. Kraisee olhando sobre o ombro, sua
boca se abrindo em um pequeno grito quando me vê mais perto do que esperava. Ele se esquiva,
virando para a esquerda e correndo direto para os banheiros.
Você vai ser meu.
Você me pertence.
Empurro um casal para o lado e entro no corredor parcialmente escuro, alcançando
Kraisee antes que ele feche a porta. Agarro-o pela cintura e o jogo sobre meu ombro bom. Ele
esperneia, batendo os punhos nas minhas costas e xingando.
— Me solte, seu viking berserker idiota!
Caminho para fora, não me importando com os olhares lançados sobre nós. Dominic
surge, seus olhos preocupados em Kraisee e sérios para mim.
— O que vai fazer com ele?
— Levá-lo para casa.
— Você não vai... abusar dele, certo?
Olho para Dominic, segurando as pernas inquietas de Kraisee.
— Eu não abuso de bêbados. Gosto de foder meus parceiros completamente sãos.
Saio sem esperar sua resposta enquanto Kraisee resmunga sobre o dia dele ter sido uma
grande merda e eu estou estragando tudo. Nenhuma novidade para mim. Eu sempre fui aquele
que ferra com tudo e todos. Eu nem sempre fui violento. Ou malicioso. Sou apenas a porra de um
resultado.
Do lado de fora, o segurança torce as mãos enquanto fala com um homem vestindo um
terno branco caro e mocassins escuros. Seus olhos de tubarão me encontram e ergue a mão para
o segurança ficar quieto. Ele é, ninguém menos, que Argo, o dono do Purgatório.
— Você está assustando meus funcionários para entrar de graça na minha boate, Hunter?
Desligo o alarme do carro, ignorando Argo, e enfio Kraisee no banco do carona. Seus
olhos estreitos têm as pupilas estouradas e suas bochechas coradas. Ele parece mais que bêbado
para mim.
— Você não tem o direito de encostar suas mãos em mim — Kraisee balbucia.
— Pare de falar, Advogado. — Bato a porta e me viro, encontrando Argo logo atrás.
— Sua atitude mal-educada nunca muda mesmo.
— É uma das minhas melhores qualidades. — Sorrio cinicamente. — Agora, saia do meu
caminho ou atropelo você.
— Novo brinquedo?
Entro no carro e bato a porta, acelerando pela rua e deixando o idiota arrogante comendo
poeira. Eu queria mesmo era fazê-lo engolir a lâmina da minha faca, rasgando sua garganta de
dentro para fora e ver a ponta saindo pelo buraco do seu nariz.
— Não quero você nessa boate nunca mais. Me ouviu, Kraisee? — rosno a pergunta,
agarrando suas bochechas e apertando.
Ele sacode a cabeça para fugir do meu agarre e ergue o dedo do meio entre seus olhos.
— Você é um filho da puta — resmunga.
— Na verdade, eu sou um assassino. E estou irritado pra caralho agora.
— Foda-se você. — Kraisee balança a cabeça, gemendo baixinho, e me olha com
sobrancelhas franzidas. — Por que você está me perseguindo?
— Não estou te perseguindo — falo, girando o volante e olhando-o rapidamente antes de
voltar para a rua.
Está parcialmente escuro e só consigo ver que ele tem um biquinho e bate no meu peito
com as costas da mão.
— Por que você está aqui?
— No carro? — pergunto, me fingindo estar alheio.
— Não — sua fala sai arrastada, meneando a mão na frente dele. — Na boate. Eu estava
me divertindo. Bebidas coloridas, música alta, balançando minha bunda...
— Tenho certeza de que você estava — murmuro.
Kraisee late uma risada.
— Dominic me levou para arejar a cabeça porque você está bagunçando-a toda. Sexy
viking estúpido. — Kraisee geme baixinho, apertando as mãos na cabeça e exalando em seguida.
— Dom é um bom amigo.
Meus dedos apertam o volante com força, odiando a forma como Kraisee fala sobre o
pombo idiota.
— Dominic — grunho, meu maxilar rangendo ao falar o nome. — Eu não gosto dele.
— Você não precisa gostar. O amigo é meu, não seu — Kraisee resmunga.
— Ele estava te agarrando na pista. Eu. Não. Gosto. Dele.
Ninguém toca no que é meu.
Meu brinquedo bonito e de língua afiada.
Kraisee solta uma risada afogada.
— Dominic é completamente hétero, mesmo que isso não seja da sua conta.
Faço um som de desgosto com a garganta. Segundos se passam em silêncio e viro para
encontrar Kraisee dormindo e roncando baixinho. Quieto assim, ele parece inofensivo. Como se
sua língua não fosse uma farpa e ou sua coragem uma grande mentira.
Sua armadura é grossa, tenho que reconhecer.
Entro com o carro na minha garagem e desligo o motor ao ouvir a porta do passageiro
abrir e Kraisee saltar para fora. Ele não estava dormindo, porra? Saio do carro correndo e Kraisee
grita, seus pés se enroscando ao tentar subir os degraus da frente. Eu o pego antes que sua
carinha bonita atinja o chão e ele ri como um estúpido. Digito a senha e a porta destranca, a luz
da frente acendendo automaticamente. Kraisee solta um gemido doloroso e baixo, sua mão
cobrindo os olhos quando o arrasto para dentro.
Quando sua mão cai, percebo sua sobrancelha com um corte inchado em seu supercílio
direito. Pequenos pontos unem a pele inchada e arroxeada, seu olho estreito parecendo um pouco
mais fechado por isso. Eu o empurro e o prendo contra a parede da sala, minha mão em sua
garganta. Parece que foi feita para se encaixar ali, como uma coleira ajustada. Kraisee engasga,
suas mãos segurando meu pulso.
— Que porra aconteceu com seu olho?
Ele parece confuso por um momento até a compreensão o atingir e seus olhos mirarem
um ponto na minha jaqueta.
— Não foi nada.
— Não me parece com “nada”, ad. — Aperto sua garganta com mais força, o fazendo
olhar para mim outra vez. — Quem bateu em você?
— Não...
— Me diga agora quem foi o filho da puta que tocou em você, pizdúí.
Para que eu possa tirar cada dedo devagar, então fazê-lo engolir um por um até se
engasgar.
— Não é a primeira vez que isso acontece e nem será a última — resmunga.
— Kraisee — rosno, meus dedos se enrolando em sua garganta com mais força.
— Tudo bem! Foi meu irmão, mas a culpa foi toda minha. Eu o irritei primeiro. —
Kraisee exala, engolindo com dificuldade. — Max já estava estressado e eu cutuquei a ferida.
Não me esquivei rápido o suficiente.
— Seu irmão? Maxwell?
Kraisee arregala os olhos.
— Você sabe sobre ele — diz, mais como uma afirmativa que não espera confirmação.
Sorrio de lado, meu polegar pressionando sua jugular e a veia pulsando loucamente lá.
— Sim, eu sei, e vou lidar com ele em outra hora.
— Hunter, não...
— Shh... — Olho para seu rosto, apreciando a forma e os ângulos puxados. Um rosto tão
bonito... — Você continua fugindo de mim. Quando vai entender que isso só me deixa excitado
ao invés de irritado?
Suas pupilas, já dilatadas, se fixam nos meus. Sua mão segura meu pulso com firmeza,
sua boca ficando entreaberta.
— Eu... Eu não consigo...
— Não consegue, o quê? — pergunto, inclinando a cabeça para o lado.
— Parar de fugir de você — sussurra. Seus dedos apertam meu pulso, sua respiração
falhando. — Eu quero correr, para que você possa me pegar.
Sukin syn.
Meus dedos apertam sua garganta com mais força, seu corpo desencostando da parede e
se curvando na minha direção. Enfio minha perna entre suas coxas, sua mão indo para meu
abdômen e subindo até o peito, apenas para suas unhas curtas se cravarem no tecido e atingirem
a pele em uma picada dolorida.
Abaixo a cabeça, minha boca roçando a sua. Minha língua rouba um gosto, sentindo o
doce da bebida e seu próprio sabor. Disse que o queria implorando por mim, mas sou eu quem
estou prestes a cair de joelhos quando olho em seus olhos encapuzados.
Eu vejo paixão em suas íris de chocolate.
Paixão suja, escura e bonita.
Com um gemido, mergulho e pego sua boca, beijando-o como se precisasse disso para
sobreviver. Como se estivesse perdido muito tempo no deserto e Kraisee fosse a porra da água
que eu tanto preciso. O golpe de sua língua contra a minha me consome e me incendeia
instantaneamente.
Eu o devoro, arrancando gemidos e pequenos gritos de sua garganta, seu quadril
balançando contra minha perna em busca de atrito, me montando como a porra de um cavaleiro
experiente. Sua mão agarra meus cabelos, os dedos torcendo nas mechas e puxando, arrancando
um rosnado selvagem do fundo do meu peito. Solto seu pescoço e seguro sua cintura, meus
dedos cavando em sua pele abaixo da camisa e o ajudando a se balançar mais rápido.
Mais duro.
Mais forte.
Seu grito afogado cai contra minha língua e bebo dele, sedento. Meu corpo o prende
contra a parede, tentando se fundir em sua pele. Meus dentes beliscam seu lábio inferior,
mordendo com força em seguida. Kraisee solta um longo gemido, estremecendo contra mim e
me deixando ainda mais duro com sua resposta tão subserviente.
O que eu poderia fazer com ele?
As coisas sujas que Kraisee faria por mim... Comigo.
Me afasto pequenos centímetros de Kraisee, nossas respirações curtas e pesadas. Inspiro
profundamente, o cheiro de bebida entrando em meus pulmões junto com o cheiro do perfume de
Kraisee. E nesse pequeno momento que levo para respirar, a lucidez parece se infiltrar no cérebro
dele como um raio.
Seus olhos estão arregalados e toda aquela paixão escura que vi minutos antes está
desaparecida. Ele cobre sua boca com a mão, seu corpo oscilando para o lado. Estendo a mão
para segurá-lo e ele me bate.
— O que você pensa que está fazendo? Não encoste em mim outra vez. Nunca. — Ele me
dá uma última olhada furiosa antes de virar e sair.
Ranjo os dentes, vendo Kraisee tropeçar para o andar de cima e a porta do seu quarto
bater com força em seguida.
Lisichka atrevida.
Se Kraisee quer fugir para que eu corra atrás dele, será exatamente isso que irei fazer.
Como passos de dança, valsando com o próprio diabo ao som de sua ruína e desejos perigosos.
Agora que tive minha prova, eu quero muito mais. Eu quero tudo. Vou mostrar ao meu advogado
o meu inferno pessoal e fazê-lo adorar cada segundo.
“I've heard him whisper in my ears
With his hands around my throat
Felt the barbs of his pitchfork pressin' up against my soul
No, I won't pledge allegiance, to a serpent hanging on a tree”.
(I don’t Believe in Satan, Aaron Wright)
Fugir da tentação não é sinal de fraqueza, mas de sabedoria[21]. É mais ou menos isso que
pensei quando Hunter me prendeu contra a parede na noite passada e me beijou. Me devorou, na
verdade. E sequer posso culpar meu “eu bêbado” por isso. Dizem que o álcool apenas traz à
superfície nossos desejos mais sinceros. Beijar Hunter é algo que venho querendo há algum
tempo, mas não me permito pensar sobre isso.
Porque eu não quero apenas beijá-lo.
Quero ver aquele corpo poderoso amarrado e contido enquanto o provoco. Quero montá-
lo como um guerreiro, cavalgando sobre ele até minhas coxas tremerem. Quero tirar dele todo o
controle que ele pensa possuir e dominar todos os seus sentidos, fazendo com que ele veja
apenas a mim.
Sempre tive certeza do que eu queria na minha vida desde que me entendo por gente.
Entretanto, agora quero odiar Hunter tanto quanto quero beijá-lo. Quero que fique o mais longe
possível de mim. Assim como o quero amarrado na minha cama. Essa é a primeira vez que me
sinto confuso sobre o que realmente devo querer.
Comprimo os lábios, sentando sobre o colchão e abraçando meus joelhos. Dominic
sempre me diz que eu quero as pessoas problemáticas para tentar corrigi-las, mas não é bem
assim. Escolho pessoas quebradas porque sou igual a elas. E, enquanto me concentro em ajudá-
las, esqueço meus próprios problemas. Esfrego meu peito, sentindo aquela sombra se esticar, se
agarrando em minha mente, tentando dominar.
Estou apavorado com essa coisa escura que dorme em mim.
O que ela se tornará se um dia escapar?
Não sei se quero testemunhar isso. E ficando perto de Hunter, parece apenas piorar. Cada
vez mais sinto a tentação me cercando, com ele sussurrando em meu ouvido promessas
pecaminosas.
A noite foi um borrão e inquieta, um sono picado que resultou em uma manhã cansada e
dolorida. Com um gemido e sentindo minha cabeça latejando, caio de costas sobre os
travesseiros, cobrindo minha cabeça com o edredom. O som de passos pesados pelo corredor me
faz erguer a cabeça e olho atentamente para a porta. Os passos diminuem e tornam a avançar,
soando nos degraus até o andar de baixo.
Exalo, abaixando a cabeça no travesseiro novamente e olho para o teto. Eu, realmente,
pareço um cão esperando seu dono. Princesa sobe em meu peito, arranhando minha camiseta
enquanto ronrona. Ela boceja, girando seu corpinho quente sobre mim e se deitando. Coço entre
suas orelhas, ouvindo os ruídos da casa.
Quando morei no apartamento, tudo estava muito quieto. Era como se as pessoas tivessem
medo de falar alto, de serem ouvidas. Aqui não é barulhento, mas percebi que ouvir a rotina
matutina de Hunter é calmante. Muito mais do que quando dormia na casa dos meus pais. Max
era barulhento, ouvindo músicas altas em seu quarto até tarde da noite quando sabia que eu tinha
uma prova importante no outro dia.
Meu estúpido irmão.
Toco meu supercílio inchado e lembro que tenho que limpar os pontos. Talvez esteja
doendo mais porque bebi muito e cortei o efeito dos remédios. Coloco Princesa sobre o
travesseiro e me levanto, indo para o banheiro e me olho no espelho. O corte está menos inchado,
mas lateja um pouco nos pontos. Isso é o que ganho por apertar o dedo sobre uma ferida aberta.
Max odeia quando zombo de seus treinos, mas ontem ele estava mais irritado que o
normal. Não percebi, muito ocupado pensando na minha manhã que quase furei o coração do
Hunter com uma faca. Explicar ao meu pai que era apenas um novo amigo fazendo uma
brincadeira sem graça me rendeu um olhar desaprovador e decepcionado.
Estava furioso, comigo e com Hunter, e descontei em Max. E Max descontou em mim.
Ergo a blusa, vendo os hematomas arroxeados dos socos e chutes que ele me deu antes que meu
pai intervisse. É quase como... que ele tivesse deixado. Como uma lição.
Balanço a cabeça, exalando.
Faço minha rotina de skincare, tentando fazer com que a organização e o hábito tragam
um pouco mais de “normalidade” na minha vida nada normal. Saio do quarto ajeitando minha
gravata cinza chumbo e passo os braços pelo terno preto ao descer os degraus e entro na cozinha.
Meu prato está sobre a bancada, me esperando, assim como o café. Porém, não há sinal do
Hunter no cômodo.
Dou a volta, subindo a escada novamente, e sigo pelo corredor até a última porta. Hesito
por um breve segundo antes de bater os nós dos dedos na madeira lisa. Segundos se passam até
que ouço os passos no quarto e a porta é aberta. Hunter surge vestindo nada mais que uma toalha
preta ao redor de sua cintura estreita. Suas coxas estão cobertas, mas posso ver as espirais pretas
de tatuagens descendo por suas panturrilhas até os pés. Seus cabelos estão presos no alto e uma
toalha está ao redor de seu pescoço.
Gotas quentes de água escorrem por seu peito, deslizando pelas tatuagens e reentrâncias
de seu abdômen. Hunter tem braços e coxas poderosas, uma constituição pesada e de quem faz
exercícios, mas sua barriga não é trincada. É magra, mas não com aqueles gominhos de modelo
de revista. Observo uma gota errante deslizar pelo nariz da caveira tatuada e mergulhar em seu
umbigo.
Um dedo longo e tatuado surge, apontando para cima.
— Se você quer perguntar algo, faça olhando nos meus olhos que estão aqui em cima,
Advogado.
Pisco, olhando em seus olhos azuis gelados.
— Sem corset hoje?
— Eu... — pigarreio e endireito os ombros. — Preciso te fazer um pedido.
Hunter cruza os braços, apoiando-se no batente da porta.
— Acho que eu sei o que é. Você quer que eu te beije de novo?
— O quê? Não! — Balanço a cabeça, sentindo minhas bochechas esquentarem. — Esse
beijo nunca aconteceu. Estou aqui para falar sobre meu irmão. Você disse que ia lidar com ele e
não preciso que faça isso. Max e eu sempre brigamos, somos irmãos, coisas estúpidas assim
acontecem. E não é da sua conta se Max me bate ou não.
— Isso é uma desculpa esfarrapada, Advogado. — Hunter nega com a cabeça. — Mikhail
e eu sempre brigamos. Nunca deixamos marcas um no outro. Física ou mental.
Esfrego minha têmpora sem o machucado e exalo.
— Ele nunca me aceitou como irmão e não ligo para isso. Foda-se o que aquele estúpido
brutamontes pensa. — Balanço a mão no ar com descaso. — O que vim até aqui dizer é que não
há motivos para fazer alarde sobre um corte a mais que Max faz em mim, Hunter.
Ele me observa, coçando sua barba loira no maxilar. Parece que a aparou essa manhã,
estando mais curta que ontem.
— Essa marca na sua barriga... foi obra do seu irmão?
Minha mão cobre minha parte inferior do abdômen e dou um passo para trás.
— Não. Foi um acidente.
— Certeza? — Sua sobrancelha se arqueia.
Comprimo os lábios em uma linha fina, franzindo as sobrancelhas e fechando as mãos em
punhos.
— Sim, absoluta. Pare de ameaçar minha família. Max é um idiota, mas meus pais são
pessoas boas. Já estou preso aqui, com você, e na sua máfia. Estou trabalhando com sua
supervisão, tendo um segurança me seguindo para onde vou. Ou você acha que não percebi isso?
Hunter sorri de lado.
— Que olhar perspicaz, Advogado.
Bufo, cruzando os braços.
— Muito. Me prometa que vai ficar fora disso, Hunter. Com meu irmão, lido eu.
— Kraisee, ninguém toca no que é meu e sai impune.
— Eu não sou seu! — exclamo, furioso. — Você não é meu dono!
— Continue pensando assim. — Ele sorri, desencostando do batente e segurando a toalha
em seu quadril. — Ainda trabalha com seu pai porque eu quero. E apenas por isso.
Bufo irritado, pensando seriamente em afundar meus dedos em seus olhos e fazê-lo gritar
como uma menininha.
— Falando em trabalho, estou saindo. Tenho muitas coisas para resolver hoje. E não
quero aquele seu brutamontes andando atrás de mim como uma sombra. Não gosto de ser
seguido. E também não preciso que você me leve, posso ir sozinho. Sei andar de metrô e...
A mão de Hunter cobre minha boca, interrompendo o fluxo de palavras.
— Ad, você fala demais. Você não está saindo daqui sem mim, Advogado. Eu te levo pela
manhã, e te busco à tarde. Sem contestações da sua parte. Entendidos? — Seus dedos apertam
minhas bochechas, me fazendo assentir forçadamente. — Ótimo. Tome seu café da manhã
enquanto eu me troco.
Empurro sua mão da minha boca, olhando-o com uma carranca.
— Hunter...
— E já que estamos morando juntos, você pode me chamar de Killian. Por ser um bom
menino, você ganha essa recompensa.
Fecho os olhos, sentindo suas palavras me acariciando até o âmago. Estremeço e abro os
olhos para encontrá-lo sorrindo de lado com arrogância cruel. Suas mãos estão sobre a toalha em
sua cintura quando ele se inclina levemente na minha direção.
— Mais alguma coisa?
Balanço a cabeça em negativa. Sem cerimônias, Hunter puxa a toalha e cubro meus olhos,
dando as costas para ele. Seu riso baixo soa maldoso, arrepiando minha espinha.
Eu não disse? Tentação.
Com um gemido, saio pelo corredor sem olhar para trás, e desço a escada para o andar de
baixo. Puxo minha gravata, me sentindo um pouco sufocado, e olho para o prato pronto
esperando por mim. O café ainda parece quente e fecho os olhos ao sentir o sabor. Amargo.
Como eu havia dito que gostava. Quando estou raspando o último pedaço de bacon do prato,
Hunter aparece na cozinha vestindo sua roupa habitual. Calças, moletom de touca e jaqueta
pretas, assim como suas botas limpas. Levanto, colocando o prato na lava-louças e limpo minha
boca com um guardanapo.
— É muito inovador seu guarda-roupa. Preto sobre couro.
Seus olhos brilham com malícia para mim quando ele puxa uma touca de lã sobre seus
cabelos.
— Às quartas nós usamos preto.
— E nas quintas, sextas, aos sábados — murmuro, subindo para pegar minhas coisas.
Ao sair da casa, espero Hunter trancar a porta atrás de mim quando percebo um Corolla
chumbo parado logo atrás da picape Silverado. A mão do Hunter segura minha nuca e aperta
suavemente quando seu corpo se inclina sobre o meu, e aponta para o carro.
— Seu segurança é sua carona hoje. Se comporte com o Conrad.
— O que? Onde você está indo? — pergunto assim que ele me solta.
— Mikhail ligou. Surgiu um trabalho.
Faço uma careta, segurando minha bolsa mais firme. Um trabalho. Isso significa que ele
está indo matar alguém, certo?
— Não faça essa cara, Advogado.
— É difícil não fazer, já que o seu trabalho é basicamente acabar com a vida de alguém.
Me pergunto se você, algum dia, já sonhou com alguma profissão digna.
Seus olhos me observam com cuidado, pegando seus óculos de sol do bolso e cobrindo
aquelas piscinas geladas de mim antes de olhar na direção do carro. Posso ver seu maxilar
trabalhando antes de me responder.
— Um vilão é apenas uma vítima cuja história não foi contada, Advogado. Quando você
decidir parar de me julgar e realmente me conhecer, nós voltamos para essa conversa. — Sua
mão espalma na base das minhas costas e me empurra suavemente para frente. — Conrad te
levará direto para o prédio da RW.
Abro a boca, apenas para fechá-la outra vez. Queria retrucar que não tenho intenção
alguma de conhecer Killian Hunter, mas aquelas sombras que residem em mim me fazem ficar
quieto. Vejo-o entrar no carro e ligar o motor, acelerando para fora de sua garagem e seguindo
pela rua calma do residencial. Um pigarro chama minha atenção para o Corolla e meu segurança
está parado ao lado da porta aberta, me esperando.
Sem muita escolha, entro no carro e passo o cinto, cruzando os braços no peito. Morar
com esse homem vai ser muito, muito difícil.
*
Enfio os dedos pelos meus cabelos e puxo os fios enquanto mantenho os olhos no
computador. Minha manhã se passou e não fui tão produtivo quanto queria. Me peguei
divagando diversas vezes, voltando para as gotas errantes deslizando pelo corpo do Hunter. E
para suas palavras ditas tão sem emoção pouco antes de entrar no carro.
Ele realmente teria algo a ser contado?
Bufo, inclinando o corpo para trás na cadeira e girando suavemente para olhar pela janela.
Acendo um cigarro, mesmo sabendo que meu pai não gosta que eu fume dentro do escritório.
“Existe uma ala para fumantes específica para isso, garoto”. Foda-se. Sopro a fumaça devagar e
olho para o céu que está azul hoje, sem nenhuma neve à vista e o sol brilha um pouco mais
quente. Talvez a primavera esteja finalmente chegando.
O que me faz pensar em Hunter outra vez. Com aquele jeito tão frio e olhos congelantes.
Sua aparência nada sensível ou que se importa com algo além de sua própria opinião. Como um
eterno inverno na terra com sangue manchando a neve.
— Kraisee?
Desvio os olhos da janela e encontro Dominic parado perto da minha mesa, mãos enfiadas
nos bolsos de sua calça social bege. Trago meu cigarro, soprando a fumaça devagar quando
aponto com o indicador para suas pernas.
— Quantas vezes eu já te disse que usar essa cor não te favorece?
Ele faz uma careta, puxando a cadeira e sentando-se nela.
— Talvez o mesmo tanto de vezes que tenho estado te chamando nos últimos minutos.
Onde estava sua cabeça?
Em um assassino cheio de tatuagens e piercings nos mamilos.
Balanço a cabeça, apagando o cigarro pela metade no meu pequeno cinzeiro escondido na
gaveta.
— Muito trabalho. O que trouxe você até aqui?
— Minhas pernas. — Dominic sorri, mas então seu rosto fica sério. — Você estava muito
bêbado ontem, Keener. Resmungando sobre ser sequestrado, assassinatos e máfia...
— Shh! — Bato meu indicador na boca e olho para a porta fechada antes de voltar para
Dominic. — Eu não disse nada ontem. Você está delirando.
— Você disse que estava sendo ameaçado! E quando mencionei de levá-lo para o
apartamento, você apenas surtou. “Ligue para o Hunter! Eu tenho que ir com o Hunter!”. E
aquele cara estranho, que estava no seu apartamento naquele dia, apareceu na boate como se
fosse a própria morte. Ele até te carregou sobre o ombro como se fosse um saco de batatas!
Com um gemido, cubro meu rosto. Maldito “eu bêbado” que dá com a língua nos dentes.
Levanto, dando a volta na mesa e sento na quina, olhando para Dominic seriamente.
— Me ouça, nada do que disse ontem deve ser levado a sério. Prometa para mim que vai
esquecer qualquer bobagem que eu tenha dito.
— Kraisee, Hunter não é o nome daquele Executor...
— Por favor. — Agarro sua mão, segurando-a entre as minhas com força. — Como meu
único e importante amigo, me prometa, Dom.
— Está bem! Eu prometo. — Dom ergue a outra mão, fazendo um traço cruzado no peito.
— Mas, Kraisee, se você estiver correndo perigo, você me contaria, não é?
— Se fosse apenas eu, sim. — Assinto, olhando-o. — Mas não é tão simples quanto
parece. Eu me meti em uma bagunça, Dom, e não vai ser fácil sair dela.
— Há algo que posso fazer para te ajudar?
— Se mantenha longe e não me pergunte nada. Isso é o suficiente. — Sorrio tristemente.
Dominic suspira, apertando minha mão antes de se levantar.
— Você já almoçou?
Nego com a cabeça.
— Vamos até aquele restaurante chinês no final da quadra. Eu passei na frente e o cheiro
me deu água na boca.
— Me parece uma ótima ideia.
Pego meu celular de cima da mesa e saio do meu escritório depois de Dominic, fechando
a porta ao passar. No meio do corredor, encontramos Max saindo do elevador e me lançando um
olhar de desgosto. Seus olhos passam pelo meu supercílio cortado e seu sorriso me irrita.
É um sorriso cruel, mas não é igual ao do Hunter. Quando Max sorri, meu corpo inteiro
tensiona em preparo para o que está por vir. Geralmente são socos e pontapés. Em dias de sorte,
são apenas palavrões. Como estamos no meio do corredor da empresa, sei que Maxwell vai
tentar manter as aparências.
Mesmo assim meu corpo continua enrolado, como uma mola prestes a saltar.
— Vejam se não é a dupla imbatível. O idi e o ota.
— Você conseguiu separar uma palavra de modo correto, Max. Parabéns. Talvez levar
alguns socos nessa grande cabeça oca esteja te enfiando um pouco de inteligência — falo
secamente.
Seus olhos cerram na minha direção, Dominic segurando meu braço e entrando
parcialmente na minha frente.
— Estamos de saída. Continue seu caminho e nós continuaremos o nosso.
— Não adianta se esconder atrás do seu amigo, Kraisee. Você vai estar sozinho em algum
momento. Como esteve ontem.
O frio se instala na minha barriga, mas ergo o queixo com coragem. Dominic me puxa na
direção do elevador, batendo a palma no botão com pressa. Olho por sobre o ombro, vendo meu
irmão sorrir para mim daquela forma detestável que apenas ele consegue fazer. Me irritando até
o âmago e me fazendo querer socá-lo até seu rosto virar apenas uma polpa sangrenta abaixo dos
meus dedos.
Quando as portas do elevador se fecham, encosto minhas costas no espelho e olho para o
teto, inspirando e expirando devagar. Dominic cruza os braços, balançando a cabeça.
— Por que você o deixa irritado? Apenas abaixe a cabeça e passe por ele. Ignore-o.
— Quanto mais você ignora Maxwell, mais ele vai te agarrar para espremer alguma
reação. — Esfrego minha têmpora, engolindo o gemido ao apertar os pontos. — Pelo jeito, ele
ainda está irritado por ontem.
Dominic bate o pé no chão, suas sobrancelhas franzidas.
— E se a gente pedisse ao seu amigo para dar um susto no seu irmão?
Um arrepio ruim desce pela minha espinha. Me empurro para longe dos espelhos e saio
pela porta do elevador se abrindo ao chegarmos no térreo.
— Definitivamente, não. O único susto que aquele viking sabe dar, acaba com a pessoa
morta sete palmos abaixo da terra — murmuro.
Vejo Dominic estremecer ao meu lado.
— Cara, isso é cruel.
— Você não faz ideia.
Olho pela calçada, imediatamente encontrando Conrad há poucos metros de distância. Ele
assente brevemente, me deixando ciente que ele me viu. Realmente, Dominic não faz ideia de
como Hunter age. E espero que meu amigo nunca testemunhe de fato.
“You thought you found my limit
But you don't seem to know
No, you don't seem to know
How far I'd go”.
(The Wolf In Your Darkest Room, Matthew Mayfield)
Estou com tesão e sono acumulados. Jogo de lado o arquivo que estou lendo desde as três
da manhã e esfrego meus olhos. Levanto da cadeira no escritório e vou para o banheiro no meu
quarto, lidando com meu maldito pau duro. A punheta não parece estar resolvendo mais e
minhas bolas continuam doendo. Resmungo, lavando as mãos e escovando meus dentes. Preciso
da porra de um copo de uísque. Estalo pescoço, saindo para o corredor e passo pela porta aberta
do quarto do Kraisee. A cama já está feita, tudo organizado perfeitamente.
Muito cedo, o ouvi se movimentando pela casa. Estranhamente, no começo eu acordava
com seus passos leves pela casa. Agora, mal o ouço se mover. Se ele fugir no meio da noite, só
vou saber no dia seguinte. Bufo, balançando a cabeça.
Aquela lisichka não seria idiota de fugir. Eu o caçaria até nas portas do inferno pela sua
alma corrompida.
Passo pela sala, parando por um momento ao perceber a gata deitada sobre o encosto do
sofá. Ela se estica, soltando um miado fraco quando seus olhos me encontram. Solto um suspiro,
coçando sua cabeça e deslizando meus dedos por suas costas pequenas. Ela faz um som
profundo, como o barulho de um pequeno motor em seu peito.
Definitivamente, esse caroço chupado cinzento com listras pretas deve ter algum tipo de
doença. Coço atrás das suas orelhas mais uma vez, fazendo o ronrono aumentar. Dou um
peteleco em sua orelha, sorrindo de lado quando ela mia e me olha insultada.
Tão parecida com seu dono.
Vou para a cozinha e pego um copo “On the Rocks” e encho dois dedos do meu uísque
predileto. Pego um cigarro e o acendo, soltando a fumaça devagar antes de virar o líquido pela
garganta. É aí, então, que ouço o barulho vindo da minha academia particular. Pés batendo forte
sobre a esteira.
Apago meu cigarro, deixado a fumaça sair pelo nariz conforme caminho para o corredor
que leva até a academia no subsolo. Meus pés descalços são silenciosos ao passar pela porta. A
esteira fica virada de frente para as grandes janelas de vidro, o rio correndo não muito longe.
Kraisee parece ter fones de ouvido com alguma música folk alta tocando. Ando ao redor,
evitando a parede de espelhos, e paro atrás de uma das pilastras. Uso as sombras para me
camuflar e fico observando-o correr.
Seus cabelos escuros úmidos caindo sobre seus olhos estreitos. Suor escorre por seu peito
magro, molhando a regata branca e colando o tecido em sua pele. O short é curto e mostra boa
parte de suas pernas magras e tonificadas.
Eu quero cravar meus dentes em suas coxas e deixar marcas.
Apalpo meu pau, imaginando como seria despi-lo daquelas roupas e ter as marcas das
minhas mordidas por todo seu corpo delgado. Kraisee foi difícil desde o começo. Mostrando os
dentes e rosnando como uma raposa selvagem, com aqueles olhos cheios de fúria contida,
julgamento e desejo.
“Eu quero correr, para que você possa me pegar”.
Sorrio de modo predador, meu corpo se preparando para atacar quando vejo Kraisee
diminuir a corrida. Seus ombros estão tensos e levemente altos perto de suas orelhas. É como se
ele soubesse que estou nas sombras, olhando-o. Meus olhos seguem seus movimentos quando ele
salta da esteira. Seus olhos procuram pela academia e arregalam quando finalmente me
encontram.
Ele expira, seus ombros caindo e tirando os fones do ouvido.
— Você não pode se anunciar como uma pessoa normal?
— Eu sou o demônio espreitando nas sombras, Advogado. Pensei que soubesse disso.
Cruzo os braços, deixando que ele venha até mim. Não perco a forma como seus olhos
deslizam pelo meu torso nu, me devorando. Usando apenas calças de pijama largas, não esconde
meu pau muito animado apontando na sua direção.
Kraisee enxuga seu rosto com a toalha em seu ombro e toma um longo gole d’água. Esse
homem se tornou meu tormento pessoal, chegando muito perto do meu limite. Estou ficando sem
paciência para essa brincadeira de gato e rato que estamos fazendo.
— Vi a luz no escritório acesa. Sem sono?
— Trabalho — respondo, descruzando os braços e me aproximando dele.
Kraisee não se move, apenas continua me olhando, seu corpo inclinando suavemente para
trás, mas não se afastando.
— O quê? Sem julgamentos? — pergunto, olhando em seus olhos.
Ele leva a garrafa até a boca e inclina a cabeça, tomando longo goles de água, porém, seus
olhos continuam em mim. Enxuga a boca com o punho e coloca a garrafa no chão, atirando a
toalha ao lado antes de colocar as mãos na cintura e me olhar com determinação.
— Você me disse que eu não poderia mais fazer minhas aulas de Krav Maga.
— Eu disse. — Assinto lentamente, esperando.
Kraisee olha ao redor e exala pesadamente.
— Sabe como lutar? Preciso continuar treinando.
— Você não vai querer lutar comigo, Advogado.
— Se você não me ajudar, estou voltando para meu professor particular, Honey Beard.
Esse maldito apelido.
Ele simplesmente perdeu o medo. Ou, talvez, ele gosta muito do perigo, de se sentir
ameaçado. A adrenalina em correr do lobo mau.
— Depois não diga que não avisei — falo, apontando para a parte com tatame no chão.
Ele bufa, tirando seus tênis e me dando uma olhada sobre o ombro.
— Não me subestime.
— Sequer pensei nisso. — Puxo meus cabelos para um coque baixo na nuca, amarrando
com o elástico que tinha no pulso. — Eu não vou de acordo com as regras, Advogado. Jogo
muito sujo.
— Não esperava outra coisa vindo de você. — Ele aponta minha calça. — Você quer se
trocar?
— Não mesmo.
Kraisee salta sobre a ponta dos seus pés e ergue os punhos em uma posição defensiva.
Balanço os ombros e chacoalho os braços, andando ao redor do tatame devagar. Kraisee me
acompanha com os olhos, nunca me perdendo de vista.
Esperando pegá-lo de surpresa, avanço quando estou quase em suas costas. Porém,
Kraisee antecipa meus passos e salta para longe do meu agarre. Nós giramos, observando um ao
outro, analisando. Avanço outra vez, meus punhos batendo no ar enquanto ele desvia com
facilidade.
Sorrio de lado quando vejo seu pé se erguendo, e desvio o rosto do chute por pouco.
Agarro sua canela e bato meu pé em sua outra perna, o derrubando no chão. Kraisee se torce,
fugindo de mim e fica de pé outra vez. Avanço sobre ele em uma sequência de socos, acertando
sua bochecha de raspão. Com um grunhido, ele me olha com o queixo inclinado para baixo, sua
franja caindo entre os olhos de chocolate amargo.
Um brilho sombrio atinge seus olhos pouco antes dele pular sobre mim. Bloqueio seu
punho de atingir meu rosto, mas não prevejo que seu pé se levanta tão rápido assim. Ele se choca
contra minhas costelas, pegando minha guarda aberta. Abaixo o braço, tentando enlaçar sua
canela, pegando apenas o vazio.
— Muito rápido para você? — ele sorri com prepotência, e isso faz com que algo estranho
vibre na minha barriga.
— Estamos apenas começando — murmuro, andando ao redor.
Pulo sobre ele, meu punho acertando a lateral de sua cabeça. Kraisee geme baixinho,
agachando e girando o corpo. A sola do seu pé se conecta com a parte baixa da minha barriga e
seguro seu tornozelo, jogando seu corpo para trás. Ele rola sobre as costas, ficando de pé mais
uma vez. Ele balança a cabeça suavemente, seus punhos erguidos de novo.
— Sua casa é gigante. Por que morar sozinho em um lugar tão grande assim?
— Aqui não é grande, é espaçoso.
Bato sobre ele outra vez, atingindo seu tórax e o jogando no chão. Kraisee rola, erguendo-
se outra vez.
— Qual a diferença? — ofega.
— Casas grandes possuem muitos quartos, muitos banheiros, muitos cômodos
desnecessários. — Levanto a perna com um chute, batendo na guarda fechada de Kraisee e seus
pés tropeçam para o lado. — Minha casa tem poucos cômodos e espaços amplos. Teto alto. Não
é grande, é espaçosa.
Nós damos a volta, olhando um para o outro, procurando alguma brecha para atacar.
— Por que você precisa de uma casa espaçosa?
— Qual o propósito dessa conversa, Advogado? — retorno sua pergunta com outra
pergunta.
— Decidi parar de julgar e te conhecer. — Kraisee dá de ombros. — Quero ouvir a
história do vilão, apesar que eu pense em você como um anti-herói.
Com um grunhido, curvo o corpo e bato o ombro contra a barriga de Kraisee, pegando-o
de guarda baixa. Jogo seu corpo no chão e o prendo ali, segurando suas mãos ao lado de sua
cabeça. Sua boca se abre, seus olhos cerrando brevemente quando me encaixo perfeitamente
nele.
Solto um gemido, sentindo meu pau pulsar com a sensação de ser abraçado pelas
bochechas quentes de sua bunda, meu quadril balançando para cima por puro instinto primitivo.
— Então — falo, minha voz rouca. — Esses são os golpes que você tinha guardado na
manga aquele dia na festa?
Vejo as bochechas de Kraisee escurecerem levemente, sua respiração saindo trêmula.
— Alguns deles — resmunga. Sua cabeça cai contra o tatame, inspirando profundamente
antes de soltar. — Então? Ainda estou esperando sua resposta.
— Resposta? De quê?
Fica difícil pensar quando continuo indo e voltando contra sua bunda, meu pau dentro da
calça prestes a estourar apenas ao sentir seu vinco através do short fino.
— Ah... — Kraisee estremece, sua língua saindo e lambendo o lábio inferior. — Casa
espaçosa. Por quê?
— Odeio lugares fechados, de me sentir confinado. Me lembra muito do passado, de
quando eu era apenas uma criança. — Inclino meu corpo perto do dele, rosnando ao ver seu pau
levantando a frente do seu short. — Suficiente?
Kraisee engole e abre um sorriso, pouco antes de suas pernas se enrolarem na minha
cintura e seu corpo me jogar para cima e para o lado, me pegando de surpresa. Magro assim, ele
não deveria conseguir levantar meu corpo com tanta facilidade. Não deveria me sentir surpreso,
não quando ele saltou pela bancada aquele dia e enfiou a faca em mim.
Bato o ombro no tatame, ainda dolorido dos pontos, e Kraisee está montado sobre mim
desta vez. Nem mesmo a dor da ferida me faz perder o tesão que é ter esse homem sobre mim.
Sua bunda se encaixa outra vez sobre meu pau, me fazendo soltar um gemido vindo do fundo do
peito.
Suas mãos caem ao lado da minha cabeça, seu rosto pairando sobre o meu.
— É por isso que você costuma ficar tão tenso dentro do carro? Você se sente... preso?
Cerro os olhos, incomodado por ele ter percebido isso, mas logo ficando desconcentrado
quando seu quadril balança suavemente sobre o meu.
Ya trakhuyu, pizdúí!
Minhas mãos caem sobre seus quadris, apertando sua pele por baixo da camiseta fina
enquanto meu maxilar range.
— Chukash se s mozŭka mi, lisíchka[22]. — Balanço a cabeça e inspiro rudemente por
entre os dentes cerrados. — Você está vendo coisas, Advogado.
Kraisee me olha atentamente, sua cabeça inclinando suavemente para a direita. Há algo
brilhando em seus olhos, se arrastando por seu rosto. Muito parecido com pena? Ou seria apenas
compreensão?
— Deve ter sido algo muito ruim. Consigo ver as cicatrizes por baixo das tatuagens. Isso
também faz parte do passado?
Ergo o quadril, pegando Kraisee de guarda baixa, e o derrubo de costas no tatame.
Envolvo minhas mãos em seus antebraços, apertando duramente ao dizer de modo brusco:
— Existe uma linha que estou traçando agora, Advogado, e ela limita certos tipos de
assunto. Meu passado é um deles. Eu sou um assassino, torturo e desmembro pessoas com
prazer. Alguns dias até o diabo senta e admira meu trabalho. — Sorrio cruelmente, meus dedos
apertando ainda mais seus braços até o ponto em que seu rosto torce com a dor e seu quadril
balança contra o meu. — Fui criado para ser uma máquina de matar, e essa é a única coisa que
você precisa saber sobre mim.
— E você está aqui vivendo apesar de tudo[23]. — Os olhos de Kraisee se tornam suaves,
com um ar de riso, suas sobrancelhas levemente arqueadas. — Máquina de matar, hein? Era isso
que você estava fazendo ontem quando te vi acariciando a Princesa na porta do meu quarto?
Eu bufo, franzindo as sobrancelhas.
— Você continua vendo coisas.
Isso faz Kraisee abrir um largo sorriso, o que enruga ainda mais seus olhos, quase os
fechando completamente.
— Não se preocupe, não vou contar para ninguém. Assassino sociopata.
— Lisichka traiçoeira — resmungo, abaixando minha cabeça na direção dele.
Pego sua boca na minha, devorando seu sorriso e engolindo seu gemido. Meus dedos se
enrolam em seu short, puxando para baixo e revelando o topo de sua bunda. Meus dedos apertam
a carne macia, suas pernas se enrolando em minha cintura e suspirando contra minha boca
quando deslizo meu dedo pelo seu vinco.
— Atrapalho?
A voz vinda da porta faz com que um rosnado furioso suba pela minha garganta. Viro o
rosto, os fios do meu cabelo caindo na minha bochecha quando olho na direção da porta e vejo
Mikhail de pé lá. Suas mãos estão nos bolsos de sua calça, a blusa de lã preta com gola alta
cobrindo seu pescoço. Seus olhos vão de Kraisee para mim, sua pergunta ainda pairando no ar.
Fecho os olhos, tentando me recompor, enquanto Kraisee desenrola suas pernas de mim e
puxa seu short de volta no lugar. Solto um grunhido, levantando e ajeitando rudemente meu pau
dentro da minha calça.
— Kakvo mislish, pizdúí[24]?
— Eu liguei, antes que comece a resmungar sobre invadir sua casa e... privacidade. —
Mikhail olha pra Kraisee colocando seus sapatos. — Você não atendeu. Nós temos um acordo
quando isso acontece, e você não está no trabalho, Hunter.
Olho-o com a cara fechada, sabendo muito bem do que ele está falando.
— Isso foi há quatro anos, Orlov — falo seriamente.
— Para mim são como semanas. Não me quer batendo na sua porta? Atenda a porra do
telefone antes da segunda ligação acabar.
Jogo a cabeça para trás, implorando por paciência. É meu irmão, e ele se importa, mas já
faz anos e nunca mais tentei tirar minha própria vida. Não intencionalmente. Exalo pesadamente
ao olhar para Mikhail novamente e coloco as mãos na cintura.
— Veio aqui apenas por isso?
— Não. — Mikhail fala, olhando na direção de Kraisee. Meu advogado finge estar
interessado em sua água, mas está claramente ouvindo tudo. — Pops nos quer em uma reunião.
— Eu não participo das reuniões. Isso é com você.
— É com um novo cliente, vindo do Argo. — Mik olha para mim, irritado. — Você
invadiu a boate dele.
E isso não é uma pergunta.
— Apenas peguei algo que era meu e que estava perdido por lá.
— Existem regras, Hunter...
— Fodam-se as regras. Kraisee estava bêbado, ok? — Aponto para o dito cujo nos
olhando agora. — E nós sabemos o que acontece dentro daquela boate. Era um risco que eu não
queria correr.
— Espere. O que acontece no Purgatório? — Kraisee pergunta ao se aproximar. — Não é
só uma boate?
— A boate serve como uma fachada. Argo trabalha com tráfico humano — Mik responde,
cruzando os braços. — Um dos nossos homens estava dizendo que o boato agora é que Argo
começou com o tráfico de órgãos também.
— Etot sukin syn — resmungo. — Snaruzhi[25]?
— Da.
— Vocês... trabalham com tráfico humano? — Kraisee pergunta em um sussurro, seus
olhos largos.
— Não somos sujos nesse nível. — Enrugo o nariz com asco. — Pops acabou com a
carga humana anos atrás, desde que começou no lugar do pai. Nós ficamos apenas com armas e
drogas.
— Meus deuses — ele sussurra, esfregando os dedos na têmpora. — Você... vende essas
armas? Existem compradores? Inferno, isso é tão errado.
— Esse é o nosso mundo, Advogado. — Dou de ombros. — E quem lida com isso é
Orlov. Eu fico com o trabalho de acabar com devedores, traidores, estupradores e filhos das
putas que têm a coragem de apontar uma arma para mim.
— Claro. — Kraisee assente seriamente. — Dado que, fazer justiça com as próprias mãos
é completamente aceitável. Mais do que traficar humanos ou vender drogas.
Aponto meu indicador na frente de seu nariz.
— Continue sendo sarcástico e, talvez, eu o faça matar alguém só por diversão. Assim,
vai ser meu parceiro no crime, se tornando completamente ligado a mim.
Horror torce suas feições.
— O-o quê? Já estou morando aqui! Não posso ficar ainda mais ligado a você!
Inclino a cabeça ao mesmo tempo que Mikhail bufa ao lado.
— Por que parece que estar vinculado a mim te parece pior do que acabar com a vida de
alguém?
Kraisee pisca, franzindo as sobrancelhas.
— Não foi isso que eu quis dizer. — Sacode a cabeça. — As duas coisas são ruins! O
assassino aqui é você. Eu sou apenas um advogado. Mexo com papéis. Com jurídico. Leis.
Muitas das quais você quebra diariamente e, devo acrescentar, que se envolver com um cliente é
totalmente antiético!
Cubro sua boca, calando-o.
— Khui, você fala pra caralho. — Olho para meu irmão e seu rosto entediado. — Que
horas é a reunião?
Mikhail olha no relógio em seu pulso.
— Em meia hora.
— Posso ir com meu carro?
— Não — responde simplesmente.
— Ad — rosno. — O advogado?
Ele olha na direção de Kraisee, avaliando. O canto da sua boca se ergue minimamente,
quase um espasmo, antes de voltar a me olhar.
— Leve-o junto. Pode ser interessante.
Franzo o cenho quando Mikhail me dá as costas, meus dedos coçando para atirar uma faca
em sua nuca. Às vezes, penso que muitas de suas respostas são dadas por War. Principalmente
quando há aquele leve espasmo de sorriso. Meu irmão nunca sorri. Já War... aquele maníaco ri
de qualquer porcaria. Principalmente se for desgraça alheia.
Estalo o pescoço, acenando para Kraisee.
— Você tem cinco minutos para estar na sala, pronto para sairmos.
— Eu tenho que trabalhar em algumas horas! Hoje é sexta-feira! Tem ideia de quanto
trabalho acumulado eu tenho por sua causa?
— Olhe para minha cara e veja se me importo — retruco, olhando-o por sobre o ombro.
— Ligue e avise seu papai que hoje você não vai.
— Você não pode me proibir de ir!
— Eu posso. — Assinto, subindo a escada para o segundo andar e ele tropeça atrás de
mim. — Você só trabalha fora porque eu deixo. Você só respira porque eu permito. Então pare
de me irritar e vá se trocar, porra. — Aponto sua porta.
— Merda, meu pai vai me matar — murmura. — E cinco minutos é pouco tempo. Sequer
dá para tomar um banho.
Flexiono meus dedos, irritado, com tesão e louco para envolver sua garganta e apertar até
sufocá-lo. Dou a ele um olhar, que o faz franzir os lábios e ficar quieto. O caroço chupado com
cara de gato sobe os degraus correndo, passando pelas pernas de Kraisee como um borrão de
pelos espetados antes de desaparecer pela porta aberta do quarto.
— E, para onde vamos, ninguém vai se importar se você tomou banho ou não. Coloque
qualquer coisa. Apenas não chame atenção — resmungo, pensando naqueles corsets abraçando
seu torso. — Cinco minutos, Advogado.
Se Kraisee colocasse algo assim, eu não conseguiria prestar atenção em uma única palavra
trocada entre Argo e Pops. E essa conversa não seria nada amigável. Muito provavelmente
poderia acabar em tiros. Um dos motivos de Mikhail querer Kraisee por lá.
Como eu disse, meu irmão nunca faz nada sem pensar.
“There's a devil in your eyes.
I see it every time you turn and look at me.
There's a devil in your eyes”.
(Devil in Your Eyes, Valerie Broussard)
Meus ombros estão tensos quando me sento no banco do carona ao lado de Mikhail. Essa
droga de carro minúsculo, que parece sugar todo o ar dos meus pulmões e fazer as paredes de
lata se fecharem ao meu redor. Inspiro pelo nariz, meus olhos focados na rua e no semáforo
fechando.
Estalo pescoço e rolo os ombros, girando a faca entre os dedos para passar a abri-la e
fechá-la. O som do clique faz meus nervos ficarem um pouco mais calmos.
— O que Baumer te entregou?
Franzo as sobrancelhas com sua pergunta feita toda em russo, olhando para Mikhail.
— A ficha do irmão do advogado.
— E?
— É algo... interessante — respondo, minha voz mais grossa com o russo em minha
língua.
O que me foi entregue naquele arquivo aumenta um pouco mais as minhas questões sobre
quem é Kraisee Warden e qual sua posição neste jogo. Ele é um peão, pronto para ser eliminado,
ou a torre e seus movimentos bem calculados? Ele sabe sobre os negócios clandestinos do irmão
ou é cego sobre isso?
Maxwell Warden, vinte e nove anos e uma ficha criminal extensa, apagada pelo gordo
dinheiro que Ray deposita nas contas dos policiais. Quer dizer, não tão apagada assim, ou
Baumer não teria descoberto.
— Torna o advogado confiável ou ele é uma ameaça à organização?
— Ainda não sei. Entretanto, o irmão é um rato. Filho legítimo, mas um tremendo bosta.
Não faz nada e ainda é dono de mais de trinta por cento das ações da empresa do pai, cerca de
U$2 bilhões.
Mikhail assobia baixinho.
— Um grande herdeiro.
Um filho da puta, isso sim. Enquanto o cretino agressor nada em dinheiro, Kraisee sequer
tem seu nome ligado à empresa. Ele continua sendo como uma sombra, completamente apagado
do sistema.
O dito cujo surge por entre os bancos, seu rosto virado para mim com interesse. Arqueio
as sobrancelhas e espero, porque eu sei que dentro daquela cabecinha há um enorme zunido de
perguntas. Kraisee sempre tem algo a dizer sobre qualquer coisa, sua boca jorrando palavras
como uma metralhadora.
— Os dois estão falando em russo um assunto que eu não posso saber? Já que vocês vão
fazer algo muito ilegal agora, não é?
Apoio o cotovelo na janela e aperto as pontas dos meus dedos na têmpora enquanto o
observo. Seus olhos estão passando por todo meu rosto, indo para os ombros e minha mão
fechada sobre a coxa.
Ele está me analisando?
— Nós vamos. — Assinto.
— Posso ficar no carro?
— Não — Mikhail responde secamente.
— E eu imagino o motivo dessa negação, Orlov — falo, olhando para meu irmão
dirigindo tranquilo.
— Vou me tornar ainda mais cúmplice da máfia depois dessa noite. Fica cada vez mais
difícil sair dessa lama. — Kraisee franze as sobrancelhas, pensativo.
— Muitos nos chamam de máfia, mas somos uma organização.
— Como se fosse muito diferente. — Ele bufa, sarcástico. — Vocês são mesmo irmãos?
Pisco, tentando entender a mudança abrupta de assunto.
— Claro que sim. Nós somos idênticos.
Kraisee me olha com ceticismo e então vira para Mikhail. Não gosto da atenção que ele
está dando ao meu irmão. Sua cabeça está inclinada, fazendo com que sua franja escura fique
pendurada. Cerro os olhos, ficando ainda mais irritado com o passar dos segundos.
— O que está olhando? — Mikhail rosna a pergunta.
— Uh... nada. — Kraisee nega suavemente e volta a olhar para mim. — Não, vocês não
são idênticos, mas isso não quer dizer nada. Estou perguntando por causa do sobrenome.
— Não precisamos ter sobrenomes iguais para sermos irmãos. Muito menos compartilhar
o sangue. — Encolho os ombros, olhando seriamente nos olhos de Kraisee. — Quando digo que
Mikhail e eu somos idênticos é porque nosso passado é uma grande merda. Nossos pais foram
mortos e não sabemos por quem, mas também não nos importamos. Crescemos juntos, temos as
costas um do outro e sempre estaremos lá quando o outro precisar. Não importa o quê. E isso nos
faz irmãos, o que é a única coisa que importa. Lealdade, Advogado, é o que nos une. É mais forte
que sangue.
Meu irmão assente uma vez, concordando com minhas palavras. Kraisee coloca o queixo
sobre o antebraço apoiado no meu banco e seus olhos vão para a estrada, pensativos. Ele deita a
bochecha de lado e me olha de perto, quase como se estivesse entrando dentro da minha alma,
tentando rastejar sob minha pele.
E ele olha para mim, como se houvesse algo que vale a pena olhar. Como se apenas ele
visse algo que nunca ninguém viu. Nem mesmo Mikhail. Kraisee franze os lábios, mantendo
toda minha atenção em sua expressão.
— Você é mesmo uma pessoa má?
Isso me faz abrir um sorriso de lado.
— Depende de quem perguntou — respondo.
Meu irmão resmunga em russo, algo sobre nós dois sermos idiotas. O carro para atrás do
luxuoso veículo da Pops e, só então, percebo que chegamos. Kraisee solta um suspiro, falando
baixinho:
— As coisas só se tornam grandes se você der importância demais a elas. Isso vale para
sua tensão em lugares fechados, Honey Beard.
Ele abre a porta do carro e sai, antes que eu possa dizer qualquer coisa. E, mais uma vez,
estar dentro de um carro não foi uma tortura. Não quando Kraisee está rondando meus
pensamentos e tomando toda minha atenção.
Saio do carro e bato a porta com mais força que o necessário, ganhando um olhar de aviso
de Mikhail. Ergo o dedo do meio para ele, sequer considerando o lixo do seu carro e me sentindo
puto por perceber as coisas que o advogado faz com minha cabeça. Olho ao redor, para o lugar
vazio e ermo. Uma placa no final da rua indica o caminho para o tratamento de água de
Mississauga. Do outro lado há um terreno com um galpão antigo, caminhões desligados no
estacionamento.
Pelo visto, Argo escolheu seu próprio lugar para uma reunião. O que nos deixa um pouco
na defensiva. Ele pode ter sua boate dentro de Toronto, no limite do nosso território, mas seu
porto fica dentro da cidade ao lado. Nós não misturamos nossas coisas. Argo comprou uma
pequena parte próximo demais da linha e isso gerou diversas regras.
Limites que eu vivo ultrapassando.
E também pouco me importo com isso. Argo não quer meus pés na sua boate? Então a
fizesse em sua própria cidade, porra.
Está frio aqui e minha jaqueta não bloqueia todo o vento gelado vindo do lago. A área é
aberta, deixando o ar frio serpentear com liberdade. Observo Kraisee puxar um gorro cinza
chumbo sobre seus cabelos e afundar o queixo dentro de seu cachecol escuro e felpudo,
estalando os dedos enluvados em seguida. Ele parece... fofo.
As duas armas em minha cintura me incomodam, mas podem acabar sendo necessárias.
Assim como as diversas facas que tenho amarradas em meus antebraços e canela. De dez
reuniões, nove acabam com sangue e pólvora. Essa é a única razão de Mikhail me chamar. Como
um reforço caso aconteça alguma merda.
Estalo o pescoço, observando Mikhail ir até onde a Pops está com seu segurança e cruzo
os braços, apontando a traseira do carro com o queixo para Kraisee.
— Sente-se.
— Pare de me tratar como um cão — resmunga, mas faz o que eu mando.
Sorrio de lado, aquela coisa estranha vibrando em minha barriga por ele me obedecer.
— Se vocês não trabalham com tráfico humano, por que estão aqui falando com esse tal
de Argo?
Apoio o quadril na lataria, tirando um cigarro e o acendendo com um pouco de
dificuldade pelo vento. Puxo um pouco da nicotina antes de apoiar o cotovelo no porta-malas.
Sopro a fumaça, olhando feio para Kraisee quando ele rouba meu cigarro. Sequer o vi tirar as
luvas.
— Nós temos um acordo com ele. Mesmo que a Pops tenha terminado com carga
humana, nós ainda temos armas e drogas. Nosso produto é top de linha, muito procurado. Argo
costuma trazer um ou outro cliente para nós e, em troca, nós não nos importamos com sua boate
muito perto da linha do nosso território.
Kraisee estende o cigarro, mas, ao invés de entregá-lo para mim, ele apenas o segura para
que eu coloque minha boca e dê um trago. Observo-o levar a ponteira em seus próprios lábios e
olhar na direção do lago parcialmente escondido pela sede de tratamento de água. Alguns
pássaros cantando ao voar.
— Tudo bem fazer isso em plena luz do dia?
— Essa região pertence ao Argo. Nada do que acontece aqui chega até a polícia. E o sol
ainda está nascendo, não está tão claro assim.
O relógio marcava sete e cinquenta e três quando paramos aqui, o nascer do sol mais tarde
com o final de inverno.
— Isso funciona para vocês em Toronto também?
Ele estende o cigarro pela metade outra vez, não me deixando pegá-lo. Envolvo os lábios
ao redor da ponteira, meus olhos presos no dele enquanto puxo uma tragada lenta. Kraisee
pigarreia quando solto o cigarro e ele torna a colocar em sua boca. Me inclino, meus lábios
roçando a curva de sua orelha.
— Suas provocações vão me levar ao limite. E você não sabe até onde sou capaz de ir.
Ele sopra a fumaça, o vento fazendo tudo voltar até meu rosto, misturando nicotina com o
cheiro de suor e roupa limpa de Kraisee. Seu rosto vira, seu nariz batendo no meu quando ele me
encara de frente. Olhos sérios, pupilas dilatadas.
— Vamos ver quem quebra primeiro, sr. Hunter.
Eu rosno, meus dedos flexionando e implorando para envolver seu pescoço mais uma vez.
Os hematomas que eu deixei da última vez já desapareceram e isso me incomoda. Ele deve ter
um colar de marcas ao redor do seu pescoço, indicando-o como meu.
Um carro preto surge pelo caminho oposto, me lembrando que estamos aqui para um
possível banho de sangue, e não para flertar. Com um grunhido irritado, fico de pé e coloco
Kraisee parcialmente atrás de mim quando tiro uma das armas do cinto e entrego para ele.
— Sabe atirar?
Ele olha para a arma com sobrancelhas arqueadas. Salta da traseira do carro, joga a bituca
no chão e apaga com a ponta de sua bota de sola tratorada.
— Aprendi aos quatorze. Meu pai me colocou no clube de tiro. Por quê? Você acha que...
vai ser necessário? — Ele sussurra a pergunta, pegando a arma da minha mão.
Olho na direção de Argo descendo do carro, seu sorriso parecendo perverso e traiçoeiro.
— Tenho absoluta certeza — murmuro.
Um veículo branco para logo atrás do carro de Argo em seguida. Um homem careca,
vestido em um sobretudo cinza grosso, sai pela porta de trás depois que seu segurança abre.
Lanço um olhar na direção de Mikhail, meu irmão olhando para mim e sinalizando suavemente
para que eu fique ao redor.
Posso ver com o canto dos olhos nossos homens espalhados pelo lugar, alguns escondidos
pelos arbustos e outros completamente à vista. Mantenho meu corpo cobrindo Kraisee de vista,
principalmente quando o Argo olha diretamente para mim, lançando seu sorriso idiota e
arrogante. Muitas vezes eu o acho tão prepotente quanto Kiam, mas White consegue ser um
idiota superior.
Pego minha faca no bolso e passo a girá-la no dedo, encarando-o de volta.
— Vocês estão medindo pelo olhar quem tem o pau maior?
— Não preciso medir nada. O meu ganha, com certeza — murmuro.
Ouço Kraisee bufar baixinho. Posso até imaginá-lo rolando os olhos com minhas
palavras. Sua cabeça surge pelo meu lado, seu peito contra minhas costas em um toque quente.
— Então, este é o tal de Argo? Que trafica pessoas? —sussurra.
Assinto brevemente, meus ombros tensos enquanto vejo a Pops e ele trocarem apertos de
mão. Mikhail se mantém próximo, seus olhos presos no homem à sua frente. Porém, sei que meu
irmão também está atento com todos os outros.
— O que aconteceu com seu irmão?
Fecho e abro a faca canivete, olhando para Mikhail e sua carranca.
— Agora, você diz?
— Não. — Kraisee nega com a cabeça, seu indicador passando pela bochecha. — Isso.
Ele quer dizer a cicatriz de Mikhail. Analiso meu irmão mais uma vez, observando-o
quieto como uma cobra prestes a dar o bote. Seus olhos vão de um lado para o outro, seu maxilar
rangendo de leve. Mikhail sempre está em alerta, mesmo que seu corpo aparente estar
descansando e relaxado.
— Meu irmão teve uma infância tão ruim quanto a minha, como disse no carro — falo
lentamente, voltando a olhar para Kraisee. — As cicatrizes de fora são as de menos. A que ele
possui na mente é a pior de todas.
E muito psicopata.
— Isso... é terrível. O que fizeram com ele?
— A história de Mikhail é apenas dele, e só ele pode contá-la. Se está tão curioso,
pergunte a ele. — Indico com o queixo na direção do meu irmão, enquanto Kraisee estremece.
— Não, obrigado.
Sorrio de lado, voltando a prestar atenção na conversa principal. O careca está balançando
a cabeça para algo que a Pops diz, Mikhail franzindo as sobrancelhas e seu lábio virado para
baixo em desgosto. Argo, aquele filho da puta, continua olhando para mim e Kraisee.
— O que Orlov quis dizer com “temos um acordo” quando você não o atendeu mais
cedo?
O clique da faca quando a fecho parece alto em meus ouvidos, meus dentes rangendo com
esse assunto.
— Esse seu interesse por mim é bastante estranho, sr. Warden. Perguntas sobre minha
casa, meu irmão, meu passado... — Franzo as sobrancelhas. — Pode ser meu cúmplice agora,
mas não te dá o direito de cavoucar sobre minha história com todas essas malditas perguntas.
— Droga, você é mesmo como a porra de uma geleira, hein? Não. — Kraisee ergue o
dedo e balança. — Está mais para um inverno: hostil, congelante e cruel.
Grunho, sabendo muito bem que sou pior do que isso. Mikhail vai até o carro da Pops e
retira um baú pequeno do porta-malas enquanto o velho careca entrega uma maleta para minha
chefe. Passo a língua sobre meus dentes superiores antes de voltar a olhar para Kraisee.
— Se não ficar quieto vou te colocar uma focinheira, Advogado.
— Gostaria de vê-lo tentar. — Ele abre um sorriso largo, mostrando os dentes para mim.
— Vou arrancar com uma mordida todos seus dedos tatuados.
— Você, como sempre, sendo uma pequena lisichka selvagem.
— O que essa palavra quer dizer? É russa, não é? — Seu dedo aponta para mim, seus
olhos cerrados. — E se disser que não é da minha conta, juro que coloco veneno no seu copo de
uísque.
Isso quase me faz rir, o que é algo completamente insano. Jogo o cigarro no chão e o
apago com a bota, soprando a fumaça no nariz de Kraisee.
— Raposa, é isso que significa. — Sorrio de lado. — Uma pequena raposa selvagem e
astuta.
— Essa é a primeira vez que se referem a mim dessa maneira. — Seu cenho franze e ele
me surpreende quando encosta a bochecha no meu braço ainda com olhos pensativos antes de
erguer o rosto para mim. — Você é russo?
Pisco, minha boca abrindo e então fechando. Puxo minha máscara de caveira sobre nariz e
boca, encobrindo um pouco da minha expressão.
— Eu... não sei. — Balanço a cabeça lentamente, meus olhos presos na bochecha de
Kraisee ainda pressionada contra mim. — Não lembro de muita coisa da infância. Mikhail, sim,
é russo. Ele me ensinou o que sabe, como se fosse um código entre nós que mais ninguém
entende.
— É por isso que você não gosta de falar do passado? Por que você não lembra?
Aperto os dedos ao redor da minha faca, meu polegar passando pelas reentrâncias da
lateral. Flashes da escuridão, de paredes pequenas e apertadas me sufocando, dos gritos de
súplica ecoando, do medo se agarrando em meus membros, a dor da fome, cada pequeno
fragmento de memória perdida se juntando em algo confuso.
Se transformando em ódio.
Criando raízes negras e viciosas.
— A raiva, o vazio e a dor foram as únicas coisas que aprendi em trinta e sete anos de
vida, Advogado. Eu era uma criança e fui transformado em uma arma. — Olho pra Kraisee, seus
olhos estreitos e da cor de chocolate me observando com atenção. — Não falo sobre meu
passado porque ele não muda meu presente. O que fizeram comigo, me criou. Esse é um dos
princípios básicos do universo, que toda ação cria uma reação igual e oposta.
— Isso não significa que não pode aprender algo diferente agora. — Kraisee abre um
sorriso pequeno, encorajador até. — Só porque você fez coisas erradas, não significa que não
possa ser amado, Honey Beard.
— O amor é uma mentira — grunho, abrindo minha faca outra vez.
Kraisee ri baixinho, balançando a cabeça em mim como um pequeno filhote se esfregando
por atenção.
— Você é incorrigível, sr. Hunter.
Exalo e olho para o céu claro. Sem sinal de nuvens hoje. Talvez seja o fim da neve, afinal.
— Então, é por causa desse rabo magro que você quebrou as regras, Hunter?
Meus ombros, antes relaxados, retesam quando ergo minha faca de forma instintiva na
direção da voz. Sequer o ouvi se aproximar. Argo está parado a poucos passos de onde estamos.
A mão de Kraisee envolve meu pulso quando levo a mão para a arma em meu cinto, me detendo.
— Hunter estava me protegendo, já que sua boate é famosa por traficar pessoas. —
Kraisee empina o queixo com petulância. — E você pode me chamar por sr. Wongsa. “Rabo
magro” é apenas para quem está me comendo, e não é você.
Arqueio as sobrancelhas com surpresa pela coragem em suas palavras.
— Atrevido esse seu novo brinquedo, Hunter. — Argo ri malicioso, apertando as mãos na
cintura. O movimento joga as pontas de seu sobretudo para trás, revelando o conjunto cinza de
seu terno e calça. — Você deveria ensinar bons modos a ele.
— E você não deveria estar a par das trocas desta reunião, Argo? Ou os chefões te
jogaram para escanteio outra vez?
Abro um sorriso satisfeito por trás da minha máscara quando vejo seu maxilar ranger. Sua
mão pousa sobre sua arma, e meus dedos seguram a faca com mais firmeza. Uma bala é sempre
mais rápida que uma faca, mas ele não pode atirar se eu tiver arrancado sua mão antes, certo?
— Não foi para isso que viemos até aqui — Kraisee alega, sua mão pousando sobre a
minha com a faca e a forçando para baixo. — Vamos acalmar os ânimos.
Argo ri, inclinando o corpo para frente.
— Isso é interessante. Não sabia que a sua guia tinha um novo dono no comando, Hunter.
Achei que Mikhail ia mantê-lo para sempre e nunca entregar as rédeas.
— O único aqui que precisa ter alguém segurando as rédeas, é você. — Kraisee franze o
nariz com asco, olhando Argo dos pés à cabeça. — Certos tipos de animais não deveriam correr
soltos pelas ruas. Podem disseminar doenças.
— Ora, seu...
Argo pega sua arma, apontando diretamente para Kraisee. Não vejo, mas sinto todo o ar
do lugar ficar tenso. As conversas murmuradas cessam, apenas o som do vento chicoteando pelo
pátio é ouvido. Assim como a sugada de ar de Kraisee ao ver o cano de uma arma apontada para
ele. Dou um passo para o lado, meus olhos presos no idiota.
— Abaixe a porra da sua arma — rosno a advertência.
— Seu novo brinquedo me insultou, Hunter — Argo diz,
— Você o provocou primeiro — argumento. — Continue apontando a porra da sua arma
na direção dele e vou garantir de arrancar cada dedo da sua mão com uma faca cega.
Mantenho Kraisee atrás de mim, oculto da visão e mira de Argo.
— Você está me ameaçando, Hunter?
Sorrio com frieza, minhas veias pulsando o sangue com velocidade e adrenalina com a
pretensão de assassinato.
— Se fosse uma ameaça, você estaria recebendo uma caixa preta na sua casa com um
lindo laço vermelho e um bilhete. Agora estou te avisando, Argo. — Passo o braço por Kraisee,
apertando-o contra minhas costas. — Não toque, não pense, nem mesmo olhe para Kraisee outra
vez, ou farei questão de ter seu corpo desmembrado e espalhado pela cidade de Toronto em
pedaços tão pequenos que ninguém poderia juntá-lo de novo para um maldito funeral.
Vejo-o engolir, guardando sua arma no cinto e erguendo as mãos em derrota antes de dar
um passo para trás. Seu rosto parece levemente pálido, olhos no chão.
Kraisee é meu e ninguém pode ameaçá-lo a não ser eu.
Os dedos de Kraisee agarram minha jaqueta, sua testa caindo no meio das minhas costas.
Do outro lado, o careca está apertando a mão da Pops após a mala e o baú serem trocados. De
repente, o som de pneu derrapando corta o ar. Dois SUVs pretos surgem na pequena trilha, suas
janelas escuras abaixando apenas o suficiente para canos de metralhadora aparecerem.
— Pro chão! — gritei, empurrando Kraisee.
Os tiros cortaram o pátio, explodindo contra o chão e levantando poeira. Nossos homens
revidaram, gritos de dor se misturando aos urros de comandos. Kraisee escorregou para a parte
de trás do carro, suas costas batendo na lataria perto do pneu, seus olhos arregalados e a arma
pressionada contra o peito arfante. Sua touca se perdeu pelo caminho, seus cabelos eriçados.
Agacho, observando por cima do capô os carros parados do outro lado, quatro homens vestidos
de preto dos pés à cabeça e máscaras de esqui, saindo pelas portas traseiras.
Pego minha arma no cinto e puxo o gatilho, atirando quando encontro uma brecha.
Mikhail está agachado atrás do carro de luxo, Pops segurando duas armas e atirando, como uma
profissional. Meus olhos se conectam com os do meu irmão e minha espinha gela. Não é meu
irmão quem me olha de volta. O brilho insano deixa seus olhos ainda mais pretos, o sorriso largo
enrugando a pele de sua cicatriz.
Meu irmão não está mais aqui. Por enquanto.
O instinto de sobrevivência empurrou Mikhail para baixo e War surgiu, com toda sua
loucura insana. É um milagre toda vez que ele aparece e consegue tirar meu irmão vivo e sem
maiores danos de qualquer encrenca que tenha se metido.
— Olá, Rapunzel! — War exclama, soltando uma risada antes de se erguer atirar contra
os homens dos SUVs.
Agora preciso me preocupar de modo dobrado. Posso ser atingido tanto pelos idiotas que
surgiram do nada quanto pelo meu próprio irmão.
— Kraisee, preciso que entre no carro. Você consegue?
Ele assente, parecendo aterrorizado. Pizdúí. Rangendo os dentes, estico o corpo para abrir
a maçaneta quando mais tiros soam e as janelas do carro explodem, chovendo cacos sobre nós.
Kraisee grita, cobrindo sua cabeça.
— Ad! Vy chertovy meshki s der'mom[26]! — Agarro o ombro de Kraisee, erguendo-o para
olhar para mim. — Vou te dar cobertura para que procure um abrigo seguro.
— O quê? Não! Não vou sair sozinho! — Sua mão voa, agarrando minha jaqueta em um
aperto firme.
— Você precisa ficar seguro! — exclamo, puxando minha máscara para baixo, irritado
pra caralho.
— Estou seguro com você! — ele retorque.
Um estrondo vibra pelo pátio seguido pela risada de War. Ele grita com empolgação e o
vejo erguendo os braços sobre a cabeça em vibração enquanto o primeiro SUV parece queimar.
Foda-se, War começou a explodir suas malditas bombas.
Vejo o cano da metralhadora sobre o capô do outro carro e tiros passam por entre a
fumaça que se erguia para o céu. Ergo minha arma, atirando no ombro do filho da puta e
praguejo minha mira ruim. Sou melhor com minhas facas.
— Precisamos sair daqui antes que a polícia chegue — murmuro. Agarro o braço de
Kraisee, chamando sua atenção. — Quando eu disser “corra”, você corre para o carro atrás dos
arbustos.
— E você?
— Kraisee...
— Eu não vou deixar você!
War uiva, sua arma atirando em qualquer direção. Quem acertasse, seria lucro. Aproveito
a distração e empurro Kraisee com força.
— Corra!
Eu levanto, atirando na direção do carro. Antes que eu dê dois passos para o lado, Kraisee
está caindo sobre mim e me levando para baixo com ele. Uma bala rasga através do seu braço
direito, me fazendo perceber que poderia ter me atingido no meio das costas.
Ele... me salvou?
Kraisee exclama com a dor, porém, sua mão continua me apertando contra o chão ao
empunhar a arma com a outra e atirando, me protegendo. Apertando o gatilho de modo
experiente e eficiente, atingindo dois homens no centro do peito. Homens que não pareciam
pertencer ao grupo do SUV.
Apoiando sobre um joelho, Kraisee mantém seus olhos sérios e concentrados. Há uma
sombra sobre eles, algo tão escuro quanto os demônios que me rodeiam. A mesma escuridão que
já vi nele outras vezes.
Na minha cozinha.
Durante a luta dessa manhã.
É como se pudesse ver os demônios dentro dos seus olhos, refletindo os meus. Sua mão
mantém a arma com firmeza, seu corpo virando suavemente para atingir todos que encontra. Há
ódio em suas sobrancelhas vincadas, determinação em seu maxilar retesado, indiferença na
postura do seu corpo.
Tão frio e disciplinado, não parecendo se importar com as vidas que está tirando com cada
balada perfurada. É como se a tranca do seu baú de demônios fosse quebrada, liberando as trevas
de sua alma em um furacão sombrio.
E, porra, isso me excita pra caralho.
Tiro três facas presas em minha canela e giro, atingindo dois homens do outro lado.
Kraisee grunhe em agradecimento, recarregando a arma com as balas que jogo para ele. Vejo
com o canto do olho a Pops entrar em seu carro e seu segurança dá a partida. O careca que veio
nos encontrar está caído em sua própria poça de sangue, seus miolos escorrendo pelo buraco em
sua cabeça.
— Do svidaniya, pridurki[27]! — War exclama.
Olho no momento em que o vejo puxar o pino da efka[28] e jogá-la sobre o outro SUV.
Enlaço a cintura de Kraisee e o puxo comigo para o chão, a granada explodindo e enviando fogo
e detritos para o céu. Meus ouvidos zunem, minha testa caindo contra o pescoço de Kraisee
enquanto respiro forte.
Ao longe pode ser ouvido o som das sirenes, a polícia se aproximando. Me ergo, puxando
Kraisee comigo, e nos movemos até o carro parado atrás das grades e arbustos da sede de
tratamento. O motorista se mantém agachado, protegido, e pronto para partir quando nos vê.
O carro da Pops passa por nós, levantando poeira em seus pneus, War debruçado na janela
e acenando como um lunático.
— Devo perguntar o que seu irmão está fazendo?
— Não — grunho.
Empurro Kraisee pela porta de trás e sorrio de lado para seu rosto cheio de fuligem,
cabelos bagunçados e sangue escorrendo por seu braço. Seu cachecol está desenrolado, as pontas
manchadas e sujas.
Perfeito.
— Vamos para casa.
Bato sua porta e dou a volta, sentando no banco do passageiro ao mesmo tempo em que a
polícia aponta na trilha. Saímos derrapando, desaparecendo no meio da fumaça e fogo. Olho pelo
retrovisor, sabendo que a polícia vai dizer que isso foi apenas uma briga de gangues.
No canto do espelho, vejo Kraisee apoiar a cabeça no encosto do banco, seu rosto um
pouco pálido pela dor subindo e a adrenalina caindo. Sua mão segura seu braço com firmeza,
mas ainda posso ver as sombras em seus olhos. Tão parecido comigo que me espanta.
Sujei minhas mãos com sangue, fui e voltei do inferno mais vezes do que posso contar
nos dedos das mãos. E eu gostei disso. E sei, que no fundo, ele também gosta. Porque, mesmo
que tente esconder, Kraisee é tão quebrado quanto eu. E hoje ele demonstrou isso com maestria.
Uma alma corrupta para um monstro sem alma.
Uma junção perfeita, na minha visão.
“I pick my poison and it's you
Nothing can kill me like you do”.
(Poison, Rita Ora)
O que acabou de acontecer? Acordei nessa manhã com o pensamento de que teria uma
sexta-feira apertada e consumida com muito trabalho. Ao invés disso, tive uma luta com Hunter
pela manhã, seguido por uma reunião muito suspeita em Mississauga, acabando com um tiroteio
e meu braço atingido por uma bala.
E essa porra dói!
Seguro meu braço próximo do peito, meus dentes cerrados e engolindo o gemido de dor a
cada solavanco do carro. Nosso motorista não é muito bom na direção. Olho para o banco do
passageiro, Hunter ainda em ligação e vociferando palavras baixas em russo. Ele parece mais do
que furioso.
Deito minha cabeça no encosto do banco outra vez, olhando para o teto. A luz do sol está
forte, mas ainda não consigo ver claramente o que foi que aconteceu. Eu recebi uma bala no
lugar do Hunter? Eu, realmente, salvei a vida dele? Do meu carrasco? Do Executor dos
D’Angeles?
Não sei exatamente o que aconteceu comigo. Quando os tiros começaram, eu senti uma
pequena parte desligar. E quando apontaram a arma para as costas do Hunter, de uma forma
muito covarde, eu apenas agi. A bala rasgou meu casaco e minha pele, mas eu não me importei
com isso naquele momento. Aquelas sombras, que sempre estiveram muito bem controladas, se
expandiram e me engoliram.
Meu dedo apertou o gatilho uma e outra vez, deixando um rastro de morte naquele campo
abandonado. Tirei uma vida atrás da outra, sequer me afetando. E o que me assusta é que não me
importo com o que fiz. Minha mente continua inventando desculpas, dizendo que tudo foi apenas
legítima defesa. Entretanto, aquele lado escuro em mim ri, zombando. Porque eu gostei de cada
segundo e isso me assombra!
Sinto o celular vibrar no bolso e o puxo, apenas para franzir as sobrancelhas para mais um
trincado na tela se juntando ao anterior. Ótimo. No meio da teia de aranha que é meu visor, vejo
o nome de Ray brilhar em uma chamada. Silencio o aparelho, guardando o telefone de volta no
bolso.
Dessa vez, não seguro o gemido e sai um som de puro desânimo. O que parece chamar a
atenção do Hunter, que desliga o telefone e olha para mim no banco de trás. O sorriso de lado
que me dedica, faz os dedos dos meus pés enrolarem.
— Você foi extraordinário lá atrás, Advogado. E ainda me salvou.
O tom na sua voz pode muito bem ser confundido com orgulho. Faço um som de asco na
garganta, olhando-o de esguelha.
— Não crie expectativas demais, Honey Beard. Foi apenas um reflexo de bom
samaritano.
Seus olhos cerram quando o chamo pelo apelido, fazendo meus lábios curvarem
levemente nos cantos. Hunter se ajeita no banco, empurrando seus cabelos para trás e os
amarrando.
— Hoje você demonstrou muita coragem. Foi um bom menino, Advogado. Estou
pensando em te dar uma recompensa por isso.
Comprimo os lábios, me concentrando na dor em meu braço e não na forma como minha
barriga vibra com suas palavras, ou no arrepio em minha espinha. Meu coração acelera, uma
fagulha de satisfação surgindo e eu a cubro com bom-senso. Olho pela janela, percebendo que
estamos indo em direção ao porto de Toronto. Franzo o cenho, torcendo o rosto em seguida ao
sentir meus dedos pegajosos do meu próprio sangue.
— Para onde estamos indo? Preciso de um hospital.
— Para o galpão — Hunter grunhe e me olha. — Não entramos em hospitais, ainda mais
depois de um tiroteio. Seu braço eu mesmo vou costurar.
Bufo.
— Não, obrigado.
— Não lembro de ter oferecido, Advogado.
— Ainda prefiro um hospital — argumento.
— Então você vai ficar sangrando até a morte.
O motorista olha nervosamente entre mim e Hunter, estacionando entre caminhões em um
estacionamento silencioso. Ele mal puxa o freio de mão e está saindo do carro correndo.
Empurro a maçaneta com a mão boa, tropeçando para fora. Trinco os dentes ao sentir meu corpo
vacilar, cerrando os olhos para o brilho do sol.
Mãos firmes me seguram de pé e logo um braço está envolvendo minha cintura e me
carregando para longe do carro.
— Eu posso andar, droga — murmuro.
Hunter olha para meu rosto, suas sobrancelhas franzidas.
— Você está pálido.
— Talvez seja porque todo meu sangue está saindo do meu corpo?
Ele não me responde, mas vejo em seu rosto o ceticismo. Talvez Hunter pense que sou
uma rainha do drama. Seguimos para dentro do galpão cheio de caixas, mas as esteiras estão
desligadas e não há uma única viva alma. Está silencioso demais e parecendo quase abandonado.
Meu braço lateja, me fazendo encolher. Posso sentir o sangue pingando na ponta dos
meus dedos e caindo no chão, deixando uma trilha para trás. Hunter me guia por baixo de uma
escada de metal e empurra um fundo falso, me fazendo abrir a boca com surpresa. A porta
esconde um corredor estreito, e ela fecha assim que passamos por ela. Posso sentir o corpo do
Hunter tenso ao meu lado, sua mão agarrando minha cintura com tanta força que deixaria marcas
sobre a pele.
— Sabe, você aterroriza as pessoas com seu rosto fechado desse jeito. Faz isso de
propósito?
Seus olhos voltam para mim, seus ombros relaxando suavemente.
— Eu não gosto de pessoas, Advogado. Elas falam demais, muita conversa fiada —
retruca.
— Jura? É por isso que você me detesta?
— Eu não detesto você — murmura. Seus olhos de gelo pegam os meus, intensos e
magnéticos. — Eu te suporto. É diferente.
Isso me faz bufar.
— Como pode ser diferente?
— Simples. Pessoas que eu detesto, quero rasgar suas gargantas e vê-las morrerem
devagar. Já você, quem eu suporto, quero foder de diversas formas diferentes, vê-lo implorar por
misericórdia enquanto encho sua bunda com meu pau. — Sua mão aperta um pouco mais. — É
isso que torna tudo diferente.
Engulo em seco, atingido até o âmago por suas palavras. Descemos por uma escada
alguns degraus e logo sou surpreendido pela colmeia em pleno funcionamento. A movimentação
dos trabalhadores é frenética, um zumbido preenchendo o local. É estranho que nada disso ressoe
no lado de cima.
— Paredes à prova de som — Hunter diz, me puxando com ele na direção de uma porta
de metal pesado. — É por isso que não se ouve do lado de fora.
— Eu fiz a pergunta em voz alta?
— Não, mas seu rosto gritou seu pensamento. — Ele sorri de lado.
Seguro o revirar de olhos. Um homem surge pela porta, parecendo desgrenhado e sujo
com sangue que não é dele, e olha para nós com olhos arregalados.
— Sai do caminho, porra — Hunter late.
O homem nos dá espaço, nos permitindo passar pela porta que dá para um longo corredor.
— Ele está ferido? — O homem me olha antes de voltar para Hunter. — O Dr. Mitchell
está...
— Dr. Mitchell? — Hunter para, olhando com olhos cerrados para o homem, que se
encolhe com as costas na parede e olhos no chão. — Quando esse filho da puta voltou? Desde
quando esse verme parasita está andando pelo galpão?
— Ah... Tivemos feridos, senhor. Quatro. Três foram mortos. A chefe pediu para ele vir.
E... Orlov está na sala de contenção para se... acalmar.
Hunter vocifera diversas palavras em russo, que só podem ser palavrões.
— Há alguma sala de limpeza disponível?
— O doutor...
— Foi isso o que eu te perguntei, pizdúí?
O homem sacode a cabeça para os lados, engolindo em seco.
— Não. Desculpe. Ah... A sala três não tem ninguém, senhor.
Com um grunhido, Hunter nos vira e caminha rapidamente. Meus pés tropeçam com ele,
minha cabeça girando. Posso sentir meu celular vibrando no bolso, mas me recuso a atendê-lo.
Não há possibilidade de ter uma conversa com Ray agora.
O corredor possui diversas portas fechadas, e não me atrevo a perguntar o que escondem
atrás delas. Sem pressionar a ferida em meu braço, ela parece sangrar mais. Agora tenho três
dedos sujos com sangue escorrendo e meu corpo começa a tremer. Talvez a adrenalina tenha
caído de vez e o choque esteja tomando conta.
— Ad, precisamos limpar sua ferida logo — ele rosna, me puxando com mais pressa.
— Vocês têm um doutor. E você não gosta dele. O que ele fez?
Hunter me puxa mais perto, seu rosto sendo uma máscara sombria e irritada.
— Ele e meu irmão possuem um passado. Mik deixou aquele idiota entrar em sua vida,
apenas para ser jogado como lixo depois. — Ele empurra uma porta cinza, revelando um quarto
pequeno e claro, com uma cama alta no canto e instrumentos cirúrgicos limpos ao lado. —
Preciso conversar com a Pops sobre isso. Permitir esse idiota por aqui é um insulto.
A porta se fecha atrás de nós, o som de uma tranca ecoando pelo espaço pequeno. Ele me
ajuda a subir na cama e empurra meu casaco para baixo. O sangue empapou o tecido. Com um
gesto da mão, Hunter rasga minha blusa de lã grossa no ombro, tirando a manga pelo meu punho.
— Você pode odiá-lo, mas ele ainda é um médico. Ele pode me costurar...
— Não — responde curto e grosso.
— Mas...
Jogando o pacote de gaze de lado, Hunter apoia as mãos de cada lado do meu quadril no
colchão fino e me olha friamente, de uma forma que colocaria qualquer pessoa para correr ou se
mijar em suas calças. A mim apenas faz minha barriga vibrar e meus dedos dos pés enrolarem.
— Ninguém toca em você a não ser eu, Kraisee. Entendidos?
Assinto, sem conseguir encontrar palavras. Ele termina de rasgar o pacote de gaze e banha
uma delas em antisséptico, limpando minha pele ao redor da ferida. Olho para o rasgo em meu
braço, pouco acima do cotovelo. Foi mais profundo do que imaginei. Como consegui continuar
atirando sem cair no chão e chorar feito um bebê?
— Você foi valente como um leão lá fora — Hunter fala baixo, seus olhos concentrados
em colocar a linha na agulha. Quando ele toca meu braço, a ponta afiada contra a borda da ferida,
seus olhos encontraram os meus. — Mas preciso que continue sendo um pouco mais, lisichka.
Tudo bem?
Pisco, engolindo em seco.
— Não há anestesia?
Ele balança a cabeça, seus dedos apertando meu braço com força.
— Prometo acabar rápido. O corte é fundo, mas não é longo. Respire fundo e pense
naquela gata horrorosa que você tem no seu quarto para se distrair.
Comprimo os lábios e fecho os olhos, assentindo uma vez. Quando a ponta da agulha
entra em mim, posso jurar que desmaiei. O grito fica entalado na minha garganta, suor frio
escorrendo pela minha espinha. Meus dedos se enrolaram no lençol, lágrimas de dor caindo por
minhas bochechas.
Um pequeno gemido me escapa. Afundo meus dentes no lábio inferior, mordendo até tirar
sangue e escorrer pelo meu queixo. Essa dor sequer se compara ao ser costurado. Os segundos
parecem se arrastar, até que me sinto amortecido. Hunter murmura algumas palavras, mas meus
ouvidos parecem surdos. Sinto uma gaze passando pela minha pele e pisco devagar. Um curativo
é colocado e Hunter passa a limpar metodicamente meu braço, tirando todo o sangue.
Observo em silêncio, tentando normalizar minha respiração enquanto a dor pulsa através
de mim. Tão viva que sequer registro meu lábio partido até o polegar do Hunter estar passando
ali. A picada da dor me faz erguer os olhos para ele, suas pupilas dilatadas.
— Acabou, minha pequena lisichka. Você foi um bom menino, Kraisee.
Sua mão está segurando minha nuca, o polegar fazendo pequenos círculos calmantes
sobre minha pele enquanto a outra passa a limpar o sangue em meu queixo. Ergo a mão,
segurando a ponta de sua jaqueta sem tirar meus olhos do seu rosto.
Poucas horas podem mudar tanto a vida de uma pessoa? Ou seriam as últimas semanas
que deixaram meu mundo tão organizado de pés para o ar? Pensei que poderia controlar a minha
vida. Pensei que poderia fingir ser amado na família que me adotou, que as lições de Ray eram
apenas seu punho firme na educação dos filhos. Pensei que poderia ignorar a parte sombria que
habita em mim. Entretanto, tudo o que você guarda dentro de um pote pequeno, um dia a tampa
estoura. A última gota transborda no copo.
As sombras se agarram a mim como pequenas gavinhas.
Se enrolam ao redor da minha alma, me corrompendo, tornando meus sentimentos
deturpados. Nublando minha visão do que é certo e o que é errado. O que é a justiça? Leis
criadas pelos homens, as mesmas leis que são quebradas dia após dia se você tem muito dinheiro
para subornar.
O que seria pior? Viver como um monstro ou morrer como um homem bom?[29]
Um homem que viveu ilhado em uma terrível verdade que insiste em não acreditar?
Criando uma justiça falsa em sua mente sonhadora? Os monstros não se iludem. Os monstros
sabem o que fazem, têm plena ciência de seus atos. Sem dor na consciência. Sem ter com o que
se importar além da sua própria regra.
Hunter é um monstro.
O que me faz diferente dele depois de hoje? Também fui criado desde pequeno a ser um
bom garoto, um filhote sempre com sede de aprovação. Sempre esperando a próxima migalha de
atenção e reconhecimento. Nós dois somos cães domados.
Com um suspiro, me inclino um pouco mais perto dele, puxando-o suavemente para baixo
ao murmurar:
— Me beije.
Se já estou batendo na porta do inferno, por que não entrar de uma vez?
Seus olhos escurecem um pouco mais, seu aperto em minha nuca se tornando doloroso.
Sorrio, enrolando minha mão em sua blusa grossa, deixando meus dedos limpos se infiltrarem
por baixo e tocar sua pele tatuada. Hunter puxa uma respiração pelo nariz, seu peito inchando.
— Kraisee...
— Você gostaria que eu implorasse, não é? — Sorrio. Talvez eu esteja um pouco bêbado
pela dor. — Beije-me, Killian. Por favor.
— Ya trakhuyu, pizdúí!
Sua boca desce sobre a minha, sem piedade. É como na outra noite, como no início desta
manhã, onde Hunter me devora. Como se estivesse me punindo por pedir tal coisa. Por implorar.
Abro minha boca, sentindo o gosto do sangue do meu lábio partido. Sua língua se enrosca na
minha, me fazendo gemer.
Não é gentil e, inferno, gosto muito disso.
Sua mão envolve minha garganta em um aperto, cortando meu ar, enquanto a outra segura
minha cintura. É como se ele quisesse manter suas marcas sobre mim, mostrando a quem eu
pertenço. Meus olhos viram para trás quando o ar se torna mais que necessário e então sua mão
libera o aperto apenas o suficiente para que meus pulmões se encham.
Solto um gemido, seguido por um estremecimento quando sua língua lambe as novas
lágrimas caindo por minha bochecha. Ele volta a me beijar, o gosto metálico do sangue se
misturando ao salgado das lágrimas. Deixo minha mão deslizar por sua barriga, sentindo os
músculos retesarem com meu toque. A ponta do meu indicador pressiona sobre sua calça jeans,
bem onde consigo sentir a cabeça do seu pau inchado.
O gemido rouco e baixo dele ressoa por mim, vibrando pela minha pele. Mordo seu lábio
com força quando o seguro sobre a calça, apertando. Isso faz com que ele solte palavrões em
russo contra minha boca, parecendo ainda mais sujo. Sorrio, puxando o botão da sua calça e
deslizando o zíper para baixo.
— O quê...
Sua voz desgastada silencia quando empurro sua calça um pouco para baixo, puxo seu
pau para fora e me afasto para olhar. Pesado contra minha mão, veludo sobre aço quente. Deslizo
meus dedos, bebendo da visão que é seu belo pau. Há um piercing preto atravessado na ponta,
um Reverse Prince Albert se não me engano. E na parte inferior em sua base, bem na junção do
pênis com o escroto, há mais um piercing preto em formato circular, com uma pequena bolinha
na ponta.
Esse homem...
Seus olhos se prendem aos meus e eu sorrio ao apertar meus dedos ao seu redor. Seus
joelhos fraquejam suavemente, seus olhos duros sobre mim.
— Kraisee...
— Desabotoe minha calça, Killian.
Puxo seu pau, dando uma punheta lenta e que o faz grunhir. Suas mãos caem para meu
quadril, minhas pernas se abrindo para recebê-lo mais de perto. Posso ver em seus olhos o quanto
ele quer isso. Killian Hunter é grosso e de paciência curta, mas sempre precisa de alguém
segurando sua coleira. Dizendo a ele quando sentar, rolar, dar a patinha. Esperando alguém que o
comande.
Aquele lado sombrio em mim, solto e selvagem dentro da minha alma, corrompendo cada
célula do meu ser, grita a plenos pulmões para ser eu a segurar a coleira do Hunter. Para torná-lo
apenas meu. Um cão assassino com dentes e garras nervosas, mas obediente quando é bem
treinado. Mesmo que o espírito seja selvagem.
Assim como eu.
— Desabotoe minha calça, Killian. Agora. — Torço a ponta do seu pau sobre o piercing,
fazendo com que ele ofegue e empurre contra minha mão por mais. — E me faça gozar.
Seus olhos parecem pegar fogo com meus comandos. O desejo tornando suas pupilas
enormes, engolindo quase todo o azul. Sem tirar seus olhos dos meus, seus dedos puxam meu
botão e abrem o zíper. Quando me toca, deixo um longo gemido escapar de mim, meu quadril
erguendo quando sua mão me envolve. Seus olhos descem, sua língua saindo e lambendo seu
lábio inferior.
— Tak vkusno[30].
— Você me prometeu uma recompensa por ser um bom menino. — Lambo meu lábio,
sentindo a picada de dor. Unida à sua mão ao meu redor só me faz querer que doa outra vez. —
Me dê, Killian. Por favor.
Sua mão volta para minha garganta, seus dedos apertando sobre a pele já dolorida. Seu
quadril se aproxima do meu, nossos paus se unindo de uma ponta à outra. Engasgo com o
gemido quando sua grande mão nos segura, empurrando para baixo e depois para cima.
Lento.
Torturante.
Sua boca me toma de volta, minhas panturrilhas apertando a parte de trás de suas coxas.
Minhas mãos agarram seus ombros de forma desajeitada, tentando me impulsionar contra seus
dedos em busca do orgasmo. A ponta do piercing se enrola na minha pele, causando arrepios em
todo meu corpo.
— Você é uma pequena lisichka mandona, atrevida e sem vergonha.
Seu polegar passa por entre meus lábios e o chupo, o que faz sua mão aumentar o ritmo
em nossos paus. Seu dedo pressiona contra meus lábios e sorrio, mordendo a ponta em seguida.
— Você precisa de alguém segurando sua coleira, Honey Beard. Quem melhor do que eu
para fazer isso?
Hunter grunhe, pressionando o polegar sobre minha fenda enquanto a ponta do seu
piercing esfrega meu prepúcio. Os anéis de prata em seus dedos tornam a fricção ainda mais
gostosa. Enrolo meus dedos em seus cabelos na nuca, puxando com força para doer e ele grunhe
no aperto.
— Me chame pelo meu nome, Kraisee. Quando você gozar, eu quero ouvir meu nome em
sua língua.
Minha cabeça cai para trás quando sua mão volta a nos esfregar mais rápido. Meus dedos
puxam seus fios dourados e minha boca se abre quando sinto seus dentes em minha garganta, me
mordendo com força para romper a pele.
— Killian... eu vou...
— Quem é o meu bom menino? — sussurra contra meu pescoço, lambendo a mordida.
— Eu — ofego. — Eu sou. Killian...
Meu orgasmo faz meus olhos virarem, meu gozo espirrando entre mim e Hunter, sujando
sua mão e minha barriga. Seu nome rola pela minha língua uma e outra vez, ecoando nas paredes
nuas do quarto e isso parece desencadear seu orgasmo, sua boca entreaberta e respiração
ofegante, um grunhido rouco retumbando por seu peito. Sua mão nos puxa até tirar a última gota,
me fazendo estremecer com os resquícios das sensações de gozar.
A parte superior das minhas costas bate contra a parede, meu peito subindo e descendo
com a respiração ofegante. Observo Hunter e seu cabelo desgrenhado pelos meus puxões, seu
rosto um pouco mais relaxado do que antes. Uma pequena risada me escapa quando lembro de
nossa interação mais cedo.
— Quem quebrou primeiro? — pergunto, olhando para ele nos limpando.
Killian ergue seus olhos para mim, me brindando com um sorriso pequeno e satisfeito.
Tão estranho ver que parece mais assustador que suas carrancas.
— Acho que empatamos, Advogado.
Exalo, sentindo tudo bater sobre mim de uma única vez. Com esgotamento, caio em um
sono profundo.
“I've got
No regret
'Cause if I could I'd do it over again (again)”.
(Even if it Hurts, Sam Tinnesz)
Observo Kraisee deitado, dormindo tranquilamente. Ele parece terrivelmente esgotado. As
marcas dos meus dedos ao redor de sua garganta já começam a aparecer, formando um lindo
colar sobre sua pele. O curativo em seu braço está limpo, mas suas roupas estão sujas e
empoeiradas.
Foi admirável como ele resistiu a cada ponto. Suas lágrimas escorrendo enquanto seus
dentes afundavam em seu lábio, tirando sangue. Havia anestesia? Sim, mas eu menti. O pai da
mentira é o diabo, e o mentiroso é filho dele[31]. Eu queria ver Kraisee se contorcer com a dor, ver
até que ponto ele suportaria. E meu brinquedo bonito foi tão, tão forte. Ficando bêbado entre a
dor e o prazer e, em seguida, gozando com meu nome em sua boca.
Porra, foi quase angelical.
Mais perfeito que uma obra de arte.
Desencosto da maca estreita de metal e vou até seus pés, tirando seus sapatos e ajeitando
suas pernas sobre o colchão fino. Não é o melhor lugar para tirar uma soneca, mas vai servir por
enquanto. Até eu terminar tudo o que tenho que fazer nessa porra de lugar e nos levar para casa,
onde Kraisee poderá tomar um banho e realmente descansar.
Quando foi que passei a me importar com o bem-estar do meu brinquedo bonito?
Talvez seja quando vi os mesmos demônios que me assombram refletidos nos olhos de
Kraisee. Esses mesmos demônios me faziam chorar quando era pequeno. Me aterrorizando,
sussurrando no meu ouvido sobre eu não ser digno de caridade ou piedade. Que estar no limbo
era o que eu merecia. Cansado, decidi que deixaria meus demônios liderarem o caminho.
E quando eles pensaram que estavam no comando, fiz cada um deles sangrar. Me libertei,
mas suas vozes continuam me perseguindo. Bebi, fumei, fodi todas as noites, porque esse é o
meu vício, é o que faz essas vozes silenciarem. Na verdade, era. Até Kraisee chegar e se tornar
minha mais nova obsessão. Calando todos os meus demônios, erguendo meus instintos de caçar
minha presa, mas sem matá-la no final. Ainda quero quebrá-lo, mas apenas porque eu sei que ele
vai gostar de cada segundo disso.
Ainda mais depois de hoje. Os sons que saíram da sua boca quando gozou ainda ecoam
nos meus ouvidos, arrepiando os pelos no meu corpo. Suas palavras e a forma mandona. Tão
controlador. Como se estivesse enrolando os dedos em uma corda invisível amarrada em meu
pescoço e me puxando para ele, me fazendo cair de joelhos e uivar de dor, à espera de um pouco
de prazer.
Vê-lo mandar em mim me deixou duro. Seu sorriso convencido, como se soubesse
exatamente o que estava fazendo comigo. Nunca alguém tinha mandado em mim durante o sexo.
Sempre fui eu quem estava no controle, dobrando meus parceiros e tirando deles o que eu queria,
me satisfazendo e indo embora. Ter Kraisee me dizendo o que fazer com tanta confiança ligou
um interruptor no meu cérebro.
E eu quero mais.
Quero saber o que ele pode fazer. O que aquela mente sombria pode ter guardado.
Com um grunhido, percebo que estou segurando a barra de metal da maca com força,
meus dedos brancos. Solto, dando um passo para trás e deixando uma última olhada em Kraisee.
Saio do quarto pequeno e fecho a porta atrás de mim com cuidado e em silêncio. Olho pelo
corredor, encontrando um idiota desavisado passando por ali carregando uma caixa com ele.
— Ei, você! — Seus olhos viram para mim e o chamo com o dedo.
— S-sim?
— O homem que está aqui dentro não pode sair deste quarto. Se ele não estiver aqui
quando eu voltar, vou fazer questão de rasgar a sua garganta e jogá-lo no rio Humber para os
peixes comerem, entendeu?
Ele assente rapidamente, colocando a caixa de lado e ficando de pé na frente da porta.
Saio a passos largos, com a sala de contenção em mente. Preciso ver meu irmão, ter certeza de
que está bem e War não o afogou na água da privada. Psicopata como é, pode muito bem ter
feito algo parecido.
Ainda não consigo acreditar que a Pops deixou aquele filho da puta voltar para cá. Depois
de tudo o que Mikhail passou, como ele ficou despedaçado durante meses, completamente
fechado dentro de si e tão volátil...
Meus dedos apertam com fúria, me fazendo querer encontrar aquele médico de ralo de
esgoto e enfiar minha faca em sua garganta e vê-lo gorgolejar, afogando em seu próprio sangue.
Estalo o pescoço, passando pela sala de conferência de carga e desço para o segundo andar
abaixo do subsolo. É uma área mais fria e com cheiro de umidade. Sempre que venho até aqui,
tenho tendência a hiperventilar. Meus dedos ficam frios, meu coração acelera.
É pior que os ataques que tenho no carro, porque aqui, dentro do calabouço – como
alguns chamam –, me lembra muito o lugar que fiquei boa parte da minha infância. O cheiro, o
teto baixo, a luz opaca... Apoio a mão na parede lisa e inspiro, olhos fechados.
“As coisas só se tornam grandes se você der importância demais a elas”.
Exalo, sorrindo de lado quando a voz de Kraisee ecoa em minha mente. Chacoalho os
ombros e caminho mais fundo naquele lugar, lembrando dos olhos castanhos Hummingbird.
Quando chego ao fim o corredor, vejo a única porta preta de ferro reforçado. Colocamos
esta depois que War conseguiu derrubar a anterior. Um guarda permanece na porta, seus olhos
me seguindo e seu queixo mergulhando levemente em assentimento. Tira um chaveiro do bolso e
destranca as três fechaduras da porta, puxando a trava de metal do meio e girando a trava central.
É quase como a tranca de um cofre. Enquanto, do lado de dentro, há apenas uma maçaneta
comum que não funciona se tudo do lado de fora estiver fechado.
O guarda dá um passo para o lado, liberando minha passagem em silêncio. Ninguém seria
louco o suficiente para me proibir de entrar nessa sala. Nem mesmo a Pops faria. Abro a porta
devagar, minhas costas pressionadas contra a parede. Conheço muito bem a cobra que War é,
rastejando em silêncio e pegando as pessoas de surpresa.
Meus olhos seguem pelo quarto de paredes lisas e sem nenhum móvel por perto. O
colchão está rasgado, estraçalhado no canto oposto. Há sangue, mas não consigo prestar muita
atenção a isso. Não quando a porta bate, ecoando pelo espaço, e Mikhail está sobre mim.
Não Mikhail, mas War.
Seu punho se choca contra minha boca, suas mãos agarrando meus braços e me girando,
batendo meu peito contra a parede com força. Meus punhos estão firmemente trancados em
minhas costas pelos dedos firmes do War. Viro o rosto, minha bochecha apertada contra a parede
gelada e com cheiro de mofo, e olho de esguelha para seu rosto.
A risada baixa é característica do psicopata War.
— Ora, vejam só quem resolveu aparecer. Como estão as coisas, Rapunzel?
— Estariam melhores se você não fosse um cuzão — grunho, tentando liberar meu braço
de seu agarre, lutando contra seu corpo.
— Hm, continue mexendo. Isso pode se tornar interessante.
Paraliso no lugar, regulando minha respiração. Cuspo sangue e saliva antes de falar baixo:

— Vá se foder, War.
— Bem que eu queria, mas... você nunca me aguentaria, Rapunzel. — Seu quadril balança
contra o meu, fazendo horror rastejar sobre minha pele.
— Seu filho da puta sádico. Vaza daqui e deixe meu irmão voltar. Tenho um assunto sério
para falar com ele.
— Jura? E o que seria? Sobre seus cabelos trançados à noite? Ou seria sobre o fracasso da
reunião de hoje?
Sem respondê-lo, levanto o pé e desço com força sobre o seu. Ele grunhe, seu aperto no
meu braço diminuindo. Acerto minha cabeça em seu nariz, fazendo seu aperto finalmente cair.
Viro, encontrando-o dando passos para trás e rindo.
Suas sobrancelhas estão arqueadas, seus olhos mais arregalados e aquele enorme sorriso
grotesco demonstram exatamente o oposto de Mikhail. É estranho como sendo a mesma casca
por fora, quando a personalidade muda, toda a expressão também se transforma. Na minha frente
está War, com sua risada insana e gestos agitados.
— Rapunzel, pensei que estávamos tendo uma conversa tão boa! Nos aproximando e tudo
mais.
— Traga Mikhail de volta, War.
War balança a cabeça devagar, erguendo minha faca em uma mão e sorrindo ainda mais.
Quando ele...?
— Surpreso? — War estala a língua, abrindo e fechando minha faca. — Você já foi mais
esperto, Rapunzel. A velhice está chegando mais cedo para você?
Desvio de sua mão empunhando minha faca. Giro, a lâmina zunindo pelo quarto enquanto
War continua tentando enfiá-la em qualquer parte do meu corpo e tirar sangue. Tentar enfrentar
War é uma péssima decisão, já que ele se alimenta de violência. Entretanto, se eu não fizer algo,
vou acabar com minha própria faca enfiada na minha jugular.
— Me diga, quem era aquele garoto com você? — War avança, a lâmina tirando sangue
da ponta da minha orelha e me fazendo grunhir. — Novo brinquedo?
— Não é da sua conta, porra.
— Você sempre gostou de homens mais novos. Brinquedos brilhantes. O que Mason nos
ensinou, Rapunzel? Nós devemos aprender a dividir.
— Não fale o nome desse filho da puta na minha frente, War. Você sabe muito bem o que
passamos na mão dele.
Inclino o corpo para trás, a faca passando muito perto do meu rosto mais uma vez. Meu
irmão é pouca coisa mais alto que eu, mas desde que éramos pequenos, Mikhail sempre ganhava
de mim nas lutas. Seu corpo maciço é ágil e War usa isso para seus jogos sujos. Todos os truques
de War são conhecidos, já que muitos deles eu emprestei para jogar sujo no dia a dia.
— Ora, ainda é uma ferida aberta? — War balança as sobrancelhas. — Você e Mikhail
são dois frouxos que sabem como mentir para desavisados, mas não para mim. Não é à toa que
fui criado, certo? Seu irmão não conseguiu lidar com toda a porcaria de Mason e me trouxe no
lugar para levar o ferro.
— Toda a porcaria? Você diz os constantes abusos? Ser enforcado com uma linha de
pesca uma vez por semana e jogado no rio para aprender a se salvar de um afogamento que
nunca aconteceu?
Impaciente, avanço sobre ele, deixando socos sobre seu corpo. Foda-se que ele se parece
com Mikhail. War nunca seria meu irmão. Nada além de seu rosto.
Bato em seu punho com minha palma aberta, fazendo minha faca cair de seu agarre.
Seguro-o pela camisa, batendo minha testa contra a sua. Fico zonzo por alguns segundos,
esquecendo quão cabeça dura meu irmão é. War cai de bunda, rindo como o louco que é.
— Tão sensível. Vocês dois não mudam nunca e é sempre tão divertido...
Ele levanta, passando as duas mãos pelo cabelo preto e empurrando os fios para trás
enquanto me olha de cima. Sua língua passa pelo lábio inferior, analisando. Mantenho minha
guarda baixa, punhos fechados.
— Sabe, não entendo essa ligação estranha de vocês dois. Sequer há sangue que os
relacione além do homem que os torturou por anos.
— War, você não nos entenderia nem em mil anos. Psicopatas não compreendem
sentimentos sobre família. — Mostro meus dentes, a gengiva ensanguentada do seu primeiro
golpe. — Ou estou errado?
— Sempre inteligente, Rapunzel.
Ele avança rápido e seu punho me acerta no estômago, sua mão agarrando meu cabelo e
torcendo minha cabeça para o lado. Olho para seu rosto com fúria, desejando que ele não fosse
meu irmão para que pudesse socá-lo sem culpa.
— Mitchell está de volta — digo, lágrimas juntando nos cantos dos olhos com a dor no
couro cabeludo.
War me solta com brusquidão. Aquela faísca de loucura parecendo mais viva em seus
olhos arregalados e voláteis.
— O que você disse?
— Mitchell. Ele voltou. Eu sei o quanto você despreza Mikhail, mas também sei como
odeia aquele médico mequetrefe. — Cruzo os braços, olhando-o sério. — Seja sensato apenas
uma vez e vaza, mudak.
War sorri, olhos arregalados.
— E o que você vai fazer? Contar a Mikhail sobre Mitchell? Nós dois sabemos o que esse
frouxo vai fazer. Correr de volta como uma putinha para o médico, como se nada tivesse
acontecido.
— Isso não é da sua conta para resolver. Devolva Mikhail. Nós temos uma porrada de
coisas para resolver desse maldito dia longo.
War grunhe, sua cabeça balançando de um lado para o outro. Vejo a raiva em seus olhos,
meu irmão e sua personalidade psicopata duelando pelo controle. Os segundos passam quando os
olhos de Mikhail tremulam, sua respiração sugando com força antes de tropeçar para trás e olhar
ao redor, perdido. Essa expressão em seu rosto era sempre como um chute nas costelas.
Esfrego o lugar que War agarrou na minha cabeça, sentindo arder, e olho para Mikhail.
— Bem-vindo de volta, irmão. Como foi o passeio?
Ele aperta os dedos em seus olhos fechados e me dá as costas. Caminha dois passos,
inspira profundamente e solta devagar. Pego minha faca do chão e a guardo no bolso enquanto
passo a língua pelos dentes. Ainda há gosto de sangue, mas nenhum dente parece bambo.
Empurro o cabelo do rosto e estremeço ao sentir as dores dos golpes, unidas às dores dos meus
próprios músculos tensos.
— Ad, ya trakhuyu, kiska[32]...
— Faço das suas, minhas palavras — resmungo. — War tem a porra de um punho duro
como pedra.
— O punho dele, é o meu punho, zasranets.
— Você me entendeu — rosno.
Mikhail passa a mão pelo rosto, suas sobrancelhas profundamente franzidas.
— O que aconteceu?
— Do que você se lembra? — questiono, caminhando até a parede e apoiando o ombro
nela.
— Pouco. Carros pretos, máscaras de esqui, metralhadoras. — Mik aperta os dedos na
fronte, olhos cerrados. — Kiska, que dor de cabeça...
— Alguém delatou nossa reunião de hoje. Fomos alvejados. Alguns dos nossos morreram,
mas saímos com uma contagem de corpos menor do que eles. Na minha visão, saímos ganhando.
Mikhail me olha, seus ombros endireitando e sua feição dura e impenetrável de volta no
lugar.
— Não me parece ganho quando estamos fodidos, Kill.
— Alguém nos delatou, Mik. — Aponto, cruzando os braços. — War explodiu seus
carros, atirou como um lunático. Quase fui alvejado.
Sua sobrancelha negra se arqueia.
— O advogado...?
Estalo o pescoço, olhando-o de forma fria.
— Vivo. Ele me salvou de ter uma bala nas costas, aliás. E, veja que surpresa deliciosa:
Kraisee sabe atirar muito bem. Para seu azar, sukin syn.
Ele estala suavemente a língua, ajeitando a gola de sua camisa e fechando até cobrir seu
pescoço.
— Precisava tentar, já que você não está disposto a fazer algo.
— Ninguém vai matar meu advogado, Orlov. Ninguém toca nele.
Mik ergue a mão em sinal de entendimento.
— Sem mais tentativas. Minha palavra.
Grunho, me empurrando para longe da parede e aperto as mãos no quadril.
— Olha, não sei como te dar essa notícia, mas... Vou arrancar o band-aid da ferida de
uma vez.
— Do que você está falando?
— Mitchell está de volta. Pops o colocou para trabalhar no galpão.
Meu irmão me olha por longos segundos, sua mão ajeitando a manga de sua camisa
apenas por mania. Seu pé direito se ergue para trás e a ponta é batida no chão. Uma, duas, três
vezes. Cerro os olhos na direção do seu rosto, ficando irritado quando Mikhail continua em
silêncio.
— Mik...
— Você não contou isso a War, certo?
— Você sabia, Orlov? — pergunto baixo, me aproximando dele devagar.
— Eu tinha essa informação, sim. — Seu queixo mergulha, seus olhos se desviam dos
meus.
— Desde quando? — Paro na sua frente, procurando por seus olhos escuros errantes. —
Desde quando, Orlov?
Ele exala, me olhando de lado.
— Pops está com alguns planos. Mitchell foi mencionado há alguns dias.
— Dias? — Arqueio as sobrancelhas, dando as costas para ele e jogando as mãos para
cima com frustração. — Na chertovy, pizdúí!
— São coisas que vão além do meu controle, Kill. Você sabe disso. — Sua voz soa
irritada, muito longe da calma que ele sempre tenta aparentar. — Nossa organização está
passando por problemas. A antidrogas está farejando muito perto, policiais infiltrados, traidores.
A Pops precisa de ajuda ou vamos todos cair.
— É essa desculpa esfarrapada que você conta a si mesmo na hora de dormir? —
murmuro, olhando-o de frente.
Vejo o maxilar de Mikhail contrair.
— É uma verdade. A família Mitchell tem uma grande influência no nosso meio. E,
enquanto você quebra a porra das regras uma e outra vez, sou eu quem preciso ficar e limpar
toda a merda de bagunça que você faz! — A cada palavra, sua voz aumenta. Sua irritação é
palpável.
— Nunca pedi para você limpar nada para mim!
— Não pediu, mas eu sou a droga do seu irmão, Killian! E família serve para isso! —
Mikhail se aproxima, seu dedo atingindo sobre meu peito com força. — A família se ajuda!
Goste você ou não!
Bato sua mão para longe de mim e o empurro nos ombros.
— Família não esconde as coisas! Ainda mais sobre o Mitchell! Esse filho da puta que
deixou você... que te quebrou ainda mais! — Bato em seus ombros uma e outra vez, parando
quando vejo seus olhos voláteis.
Inspiro, dando passos para trás e me controlando. Não posso trazer War de volta só
porque me sinto traído pelo meu próprio irmão. Puxo meus cabelos, soltando um grito de raiva
que ecoa pelas paredes nuas.
— Não posso perdoar o cara que machucou meu irmão. Quando lembro a forma covarde
como ele te deixou... — Balanço a cabeça, meus dedos abrindo e fechando ao lado do corpo.
— Kill, você precisa manter a calma. Mitchell vai estar aqui com frequência e isso vai
servir como uma aliança. — Suas mãos seguram meus ombros, seus olhos sérios buscando pelos
meus. — Me prometa que vai segurar seu temperamento.
Empurro suas mãos de mim, olhando-o com o lábio enrugado em irritação.
— Não posso prometer nada.
— Kill...
— Não posso! — vocifero. — Eu sou a porra do Executor dessa organização! Fui
ensinado a matar traidores, e o médico dentro desse galpão é o pior tipo de traidor que já
encontrei.
— Hunter, isso é muito importante para a organização. — Sua voz soa dura, deixando
meus ombros tensos. — Se você fizer algo contra Mitchell, não posso garantir que fique vivo
depois. Pops vai garantir em desaparecer com você.
— Você precisa escolher, Orlov: a organização ou eu, seu irmão.
— Essa organização é a nossa família! Você faz parte dela tanto quanto eu faço. Se a Pops
cair, nós dois iremos juntos, Killian. — Sua cabeça se inclina, seus olhos escuros presos nos
meus. — Não haverá escapatória. E se a nossa chefe nos diz para sentar e dar a patinha, nós
faremos sem hesitar porque isso garante nossa sobrevivência. Essa guerra é nossa, então lute do
lado certo, irmão.
Estalo o pescoço, irritado. Odeio que suas palavras sejam reais. Odeio a situação que nos
encontramos e odeio ainda mais quando ele diz a palavra irmão com tanta ênfase, me lembrando
de quem somos. Da nossa lealdade acima de tudo.
Esfrego a bochecha, olhando-o de esguelha.
— Você não vai mais me esconder as coisas, Mik. O que a Pops diz lá, você reparte
comigo.
— Alguns assuntos não devem sair das paredes do escritório, Kill. Ainda mais quando
você colocou um advogado não confiável morando com você.
— Foda-se, isso é só uma desculpa sua. Assuntos como Mitchell deveriam ser
compartilhados comigo! — Afundo o polegar no peito, rosnando. — Quem te consertou depois
que aquele filho da puta covarde se foi? Eu! Então, que a Pops vá para o inferno se ela pensa que
vai me manter de fora quando o assunto for aquele cretino.
Mikhail exala, parecendo terrivelmente cansado.
— Tudo bem. O que você quer saber?
— Tudo? — digo o óbvio.
Meu irmão assente, indo até a porta e a abrindo, olhando o corredor vazio e fechando a
porta novamente. Ele encosta o ombro no metal, cruzando os braços.
— A reunião de hoje foi uma isca. Arriscada, mas necessária. Pops tem desconfiado das
ações de Argo há algum tempo e hoje aparenta ter se concretizado um fato. — Mik coça sua
sobrancelha esquerda com o indicador. — Temos recebido pequenas ameaças do grupo rival.
Baumer conseguiu um nome concreto, mas não mais do que isso. Estamos lidando com um tal de
Conquistador.
— Que tipo de nome é isso?
— Um muito eficiente, já que ele possui boa parte de Toronto sem que percebêssemos.
Pops não foi clara sobre nosso real problema.
— Ela escondeu coisas de você? — zombo, o que faz Mikhail me olhar sombrio.
— Pops achou que poderia se virar sozinha. Perdemos mais da metade do território e
nosso nome está caindo na lama. Isso não me parece um momento para brincar, Hunter.
Ouch, corte seco.
— Essa pessoa vem roubando de nós há alguns anos, em silêncio, mas agora está ainda
mais ganancioso e não se preocupa em esconder seus atos. Não temos um rosto ou um nome
concreto. — Mikhail passa a mão pelo cabelo, seu pé batendo no chão outra vez. — Pops pensou
em pedir para você começar a procurar. Baumer é ótimo em rastros digitais, mas você é melhor
em rastros reais. Íamos ter essa conversa hoje, depois da reunião.
— E por causa desse filho da puta do “Conquistador”, Mitchell está andando pelo galpão
como se fosse dono dele?
Mikhail aperta os dedos na ponta do nariz, como se pedisse paciência.
— Eu já disse, a família do Mitchell possui um grande território. Parte de Buffalo, nos
EUA, toda a cidade de London e Hamilton. A irmã mais nova se casou com o líder dos Hellish
Demons em Montreal. — Sua mão varre ao redor, simbolizando o extenso território da família
do médico. — Isso nos dá poder. Alianças, Hunter.
— Se nós derrotarmos esse idiota que está nos roubando, essa aliança com Mitchell pode
ser desfeita, certo?
A boca de Mikhail torce com aversão, balançando a cabeça devagar.
— Creio que não. A Pops... ela vai se casar com irmão mais velho. Darius Mitchell.
— Você só pode estar zoando com a porra da minha cara, Mikhail!
— O contrato de casamento já foi assinado. — Seu maxilar retesa, seus dentes rangendo.
— A celebração acontece amanhã e temos que ir até a Lust esta noite.
Ya trakhuyu.
Aperto as mãos na cintura, andando de um lado para o outro.
— Eu não posso mesmo matar o médico?
— Hunter...
Ergo a mão.
— Tudo bem. Pelo bem da família, eu vou me controlar. Mas, se por um acaso, Mitchell
tropeçar e cair com a garganta sobre a minha faca, a culpa não será minha.
Sua sobrancelha se arqueia.
— Jura?
— Acasos fatais acontecem. — Dou de ombros e o empurro para longe da porta para
poder passar. — Droga, preciso de ar. Essa conversa sugou todo o bom humor que eu tinha.
— Não foi muito, então — Mikhail comenta logo atrás de mim. Sua mão toca meu
ombro, me virando para ele. — Estamos bem, brat[33]?
Olho para sua mão e depois para seu rosto. Fecho meus dedos em um punho e acerto a
boca do seu estômago, sorrindo de lado.
— Agora estamos bem, brat.
Mikhail resmunga, esfregando sua barriga. Os cantos da sua boca, porém, possuem uma
pequena curva de sorriso. Saímos do calabouço e chacoalho os ombros, tirando toda a tensão que
o lugar e a discussão colocaram sobre mim. Esfrego a nuca e olho na direção da ala de
conferência de drogas, percebendo o idiota carregando duas caixas pequenas até a mesa mais
próxima. Ele tira um pano do bolso e enxuga a testa, caminhando na direção do corredor.
O zasranets que deixei de guarda na porta de Kraisee.
Com um grunhido, atravesso a ala com passos pesados e todos saem do meu caminho.
Vejo vermelho no canto dos meus olhos, meu foco no filho da puta que deveria estar sentado na
frente da porta do meu advogado.
— Você! — exclamo.
Ele olha sobre o ombro, seus olhos arregalando com terror.
— S-senhor...
— Por que você não está na porra do lugar que te deixei?
Seus dedos brincam com o pano, sua língua lambendo o lábio inferior. Ele olha além de
mim, provavelmente na direção de Mikhail.
— O médico disse que eu poderia sair já que ele...
Avanço sobre ele, segurando sua camisa em um punho apertado e batendo suas costas
contra a parede com força. Ele ofega, aterrorizado.
— O que foi que você disse? — rosno.
— E-eu... o doutor Mitchell entrou na sala e... o senhor disse que o homem na sala não
poderia sair, mas não falou nada sobre alguém entrar!
Estou cercado de idiotas!
Com um grunhido, o solto e aponto para sua cara.
— Me lembre de mais tarde rasgar sua garganta.
Ele solta um som afogado e me viro, pegando minha faca do bolso e caminho na direção
onde deixei Kraisee, com fúria e morte estampada no rosto. Porque agora estou prestes a
mergulhar meus dedos no sangue daquele cretino que se acha médico.
Fodam-se as consequências.
“Can you blame me for loving your sweet words?
I did not know I signed a curse”.
(Curse, Normal The Kid)
Tudo dói, porra.
Essa é a primeira coisa que eu penso quando abro meus olhos. Solto um gemido, virando
na estreita maca de metal, sentindo dores por todo meu corpo. Meu braço lateja, me fazendo
sentir cada ponto, a pele sensível ao redor da linha. Estremeço, abrindo os olhos e exalo
pesadamente. Há o som de metais caindo sobre a bandeja de inox, causando arrepios na minha
pele.
— Pare com todo o barulho, droga...
— Desculpe.
Paraliso, girando minha cabeça na direção da voz de barítono. Um homem de pele
marrom clara está analisando um frasco antes de enfiar uma agulha dentro e puxar o líquido
transparente para a seringa. Ele veste um pulôver cinza e calças escuras, suas mangas
arregaçadas nos antebraços fortes. Vejo algumas manchas vermelhas sobre a lã.
Tento me sentar, sentindo a cabeça zonza, e ele me olha com sobrancelhas franzidas.
— Você deveria descansar. Tirei o curativo do seu braço e vi os pontos malfeitos, mas
fizeram o trabalho de manter a ferida fechada. — Ele bate os dedos na seringa e vira para mim.
— Tomou algum remédio para dor?
Sacudo a cabeça, apertando minhas costas contra a parede fria. Ou seria minha pele
quente causando suor frio e pegajoso? Passo a língua pelo lábio seco, sentindo o corte que eu
mesmo causei ao morder com força. Então o que aconteceu depois. Olho para baixo,
encontrando minha blusa de lã suja com os resquícios de porra. Tanto minha, quanto de Killian.
Killian.
É estranho chamá-lo pelo primeiro nome depois de tanto tempo. Parece.. íntimo. Quase
solto uma risada com esse pensamento. Achar que chamar o homem pelo primeiro nome é
íntimo, mas não pensar que transamos a seco seja relativamente pessoal.
A agulha brilha na luz, chamando minha atenção para a seringa muito perto de mim.
— Ei, ei! O que você pensa que vai fazer?
O homem me olha como se eu fosse estúpido. E talvez eu seja. Mas isso não vem ao caso
agora.
— É uma injeção para dor.
— E como posso confirmar que seja realmente isso? E se você for um vilão que está
matando as pessoas com um veneno injetável?
Sua boca se abre, apenas para fechar em seguida. Seus lábios grossos se partem em um
largo sorriso e seus olhos enrugam nos cantos, formando rugas de expressão. Ele deve sorrir com
frequência.
— Como eu posso garantir que não sou nenhum maluco com veneno injetável?
— Se apresentar é um bom começo. — Bufo.
Ele expira longamente, passando a mão livre pelo cabelo escuro e muito curto, cortado em
estilo militar.
— Sim, claro. Você tem razão. Deveria ter me apresentado direito antes de apontar a
seringa para você. — Ele ergue a dita pontiaguda antes de colocar de lado e erguer as mãos livres
na altura dos ombros. — Veja, inofensivo. — Sua mão estende para mim, seu sorriso suave. —
Sou Nevan, mas alguns me chamam de doutor Mitchell por aqui.
Pego sua mão, um pouco hesitante.
— Kraisee, mas alguns me chamam de advogado Wongsa. — Inclino a cabeça,
observando seu rosto. — Mitchell? Você é o homem que Hunter odeia?
Nevan sorri meio sem jeito.
— Os boatos realmente correm rápido — murmura.
— Um pouco. — Assinto. — O que aconteceu entre vocês?
— Direto na jugular, hein? — questiona, arqueando uma sobrancelha.
Comprimo os lábios, balançando a mão em negativa.
— Não! Desculpe, é que fiquei muito curioso. É um assunto pessoal demais?
Seu rosto torce em uma careta antes de sacudir a cabeça em negativa.
— É complicado.
Nevan pega a seringa outra vez e limpa meu braço para aplicá-la.
— Sempre se esconde uma história trágica por trás desse tipo de resposta.
Seu sorriso está de volta após aplicar a injeção em meu braço. Estremeço suavemente com
a picada, mas nada se compara à dor de ser costurado ou levar um tiro.
— Não digo que é trágica. Ninguém morreu, além de sentimentos e confiança. — Nevan
encolhe os ombros, indicando meu braço. — Posso dar uma outra olhada? Quero passar um
medicamento para prevenir a inflamação.
Assinto, esticando meu braço na sua direção.
— Você e Hunter...?
Seus olhos se erguem para mim, horror em todo seu rosto.
— O quê? Não! Jesus Cristo, não. Quem, em sã consciência, se envolveria com aquele
tipo?
Eu. Porém, não digo isso em voz alta.
— Então, com quem?
Seus olhos baixam para suas mãos, resmungando:
— Mikhail.
Tão pior quanto, minha consciência sussurra. Cerro os olhos, pensando se todas aquelas
cicatrizes foram feitas pelas mãos do médico. Seria por isso que Killian o odeia tanto assim?
Nevan abre uma pomada e passa a ponta do indicador no creme, espalhando-o sobre os
pontos na minha pele em seguida.
— Hunter é superprotetor com o irmão. Eu era jovem e inocente na época. — Ele parece
melancólico, soltando um suspiro ao fechar a pomada. — É apenas passado. Nada de bom
acontece quando trazemos o passado para o presente.
— Não tem como deixar as coisas no pretérito quando você está convivendo com a pessoa
no momento atual. Acho que tentar resolver o problema é mais benéfico. Ai!
Franzo os lábios quando ele passa a ponta do dedo sobre o último ponto. Por um
momento, acho que ele fez de propósito para que eu deixasse o assunto de lado.
— Você quer morfina? Esses pontos parecem estar doendo muito.
— Não doem tanto quanto foram feitos. — Expiro, pegando a gaze para fazer um novo
curativo.
— Mesmo? — Suas sobrancelhas franzem. — A anestesia costuma amenizar muito, isso
quando não te deixa sentir nada. A dose foi pouca?
Ergo os olhos do meu braço e observo os olhos do médico.
— Pouca? Eu diria que foi nula, doutor. — Balanço a cabeça e volto a olhar para meu
braço e termino o curativo enquanto falo: — Killian disse que não havia anestesia. Foram os
pontos mais longos da minha vida.
— Vocês se tratam pelo primeiro nome?
— Ah... sim?
Nevan franze as sobrancelhas com estranheza.
— Bem... Há doses de anestesia em todos os quartos com medicamentos. — Nevan
caminha até o pequeno armário e tira de lá dois frascos transparentes. — Aqui. Completamente
novas e seladas.
Minha boca se abre, perplexo. Agarro um dos vidros de sua mão e envolvi meus dedos
nele, olhando para Nevan com uma carranca.
— Há alguma possibilidade de que Hunter não saiba disso?
— Hm... — Ele me olha com receio. — Acho um pouco difícil. Apesar que ele sempre se
costura sozinho já que ele gosta da dor...
Cerro meus olhos, ficando muito irritado agora. Aquele filho da puta sádico me costurou e
mentiu para mim? Me causando dor de forma deliberada?
A porta se abre, Hunter parecendo ser invocado pelo próprio demônio. Ele tem sua faca
na mão e um rosto furioso, mas ele não está mais puto do que eu agora.
— Mitchell!
— Seu porco mentiroso! — esbravejo, atirando o vidro que segurava diretamente nele.
Hunter desvia por pouco, o vidro atinge a parede ao lado da cabeça de Mikhail, que se
esquiva, cobrindo o rosto com o braço e me olha com sobrancelhas arqueadas. Desço da maca
quando Hunter me olha com confusão.
— O que foi isso?
— Aquilo? — Indico o vidro partido em mil pedaços e no líquido escorrido no chão. — É
apenas a porra da anestesia!
O rosto dele se torna sem expressão, uma máscara fria e olhos mortos. Hunter vira
lentamente na direção de Nevan, segurando sua faca com firmeza. O médico não parecia muito
amedrontado pela feição desprovida de sentimentos do Executor.
— Parece que o médico mequetrefe já enfiou caraminholas na sua cabeça.
Com um grunhido, pego meu sapato e atiro contra sua cabeça, acertando-o. Hunter
grunhe, girando novamente para mim com fúria estampada em seus olhos.
Nada como trazer o melhor nas pessoas, certo?
— Você me acertou com seu sapato?
— E você me costurou com um anzol e linha de pesca, sem anestesia! Qual é pior? Meu
sapato nessa sua grande cabeça oca ou você me forçar a passar dor?
Hunter fecha sua faca e estala o pescoço.
— Saiam daqui. Meu advogado precisa de uma conversa a sós comigo.
— Hunter... — Nevan tenta, apenas para o Executor rosnar como um cão raivoso.
Mikhail segura Nevan pelo pulso.
— Espero que você o mate, Hunter, já que o trouxe direto para dentro da porra do nosso
galpão — Mikhail rosna.
— Vá se foder, Orlov. — Hunter mostra a ele o dedo do meio.
Mikhail nos olha longamente antes de balançar a cabeça e puxar Nevan para fora do
quarto, fechando a porta ao passar. Levam apenas dois segundos para Hunter estar em cima de
mim, sua mão envolvendo minha garganta e batendo meu corpo contra a parede. Solto um
gemido, minha cabeça ficando zonza por um momento.
— Quem você pensa que é para me enfrentar?
— Vá se foder, seu cretino de merda — rosno.
Hunter me olha, seu sorriso cruel se abrindo e fazendo minha espinha arrepiar.
— Cada vez mais corajoso, minha pequena lisichka. Te faço gozar e você pensa que tem
as rédeas. Não esqueça quem realmente manda por aqui, não esqueça quem eu sou.
Agarro seu pulso, minhas unhas cravando em sua pele.
— Pode ter certeza de que nem mesmo por um segundo eu esqueço quem é você de
verdade, sr. Hunter. — Ergo o queixo o máximo que consigo, minha respiração curta por conta
do seu agarre. — Um completo idiota.
Sua outra mão segura meu rosto, seus dedos cavando em minhas bochechas até lágrimas
se formarem nos meus olhos. Seu sorriso é cruel, como um cão feliz por ter sua presa entre as
garras.
— Você continua gritando e rosnando como um animal selvagem como se não tivesse
ficado tão duro quando terminei de te costurar, adorando cada segundo. — Seus dedos apertam
um pouco mais minha garganta, me empurrando contra a parede e o seu corpo cobrindo a minha
frente. Tão unidos que nem mesmo um sopro passaria entre nós. — Você implorou para gozar.
Então não tente bancar o insultado.
— Só porque eu gosto de ser maltratado, não quer dizer que você pode fazer quando bem
entender.
Sua cabeça se aproxima da minha, seus olhos frios sobre os meus, seu hálito soprando
sobre minha boca.
— Advogado, tem que entender que me pertence. E eu faço o que quiser com você.
Viro meu rosto para o lado, escapando da sua mão, e o olhando com irritação e um pouco
de mágoa misturado com frustração.
— O problema aqui, sr. Hunter, é que você pode fazer tudo o que quiser comigo, mas com
consentimento. Me ver chorar te dá prazer? Tudo bem, aceito isso. Quer que eu sinta dor? Ok,
mas não minta para mim. Me dê opções. Ser costurado não foi uma delas, e não aceito ser
enganado. — Deslizo minha mão do seu pulso até o cotovelo, deixando meu corpo solto contra o
seu em sinal de rendimento. — Confiança é uma via de mão dupla. Como espera receber se
sequer consegue dar em troca, Killian?
Ele me observa em silêncio, sua mão me soltando devagar até que seu polegar está
fazendo leves carícias abaixo do meu maxilar. Engulo com dificuldade, minha garganta
arranhando. Apoio minhas mãos sobre seu peito, sentindo seu coração batendo forte abaixo da
minha palma.
Com um suspiro pesado, Hunter me pega pela cintura e me ergue, me colocando sentado
sobre a maca outra vez. Seu corpo empurra entre minhas pernas, suas mãos apoiadas sobre o
colchão fino.
— Tem certeza de que não gostou da agulha?
Bufo, olhando-o com ceticismo.
— Absoluta. Nunca mais faça isso comigo. Eu segurei ao máximo para não desmaiar na
maca ou me mijar. — Gesticulo a esmo, cobrindo meus olhos em seguida. — Deuses, foi a pior
dor que eu já tive. Um pedido de desculpas seria legal.
— Eu nunca peço desculpas.
— Existe uma primeira vez para tudo. — Aponto.
— Você fala demais, Advogado.
Sua mão se ergue, abrindo e fechando na frente do meu rosto, sinalizando que eu continuo
falando demais. Rolo os olhos, sabendo que não vou ganhar uma palavra de arrependimento
vindo dele. Abro a boca para retrucar quando meu celular toca no bolso. Solto um gemido ao
ouvir o toque designado apenas para Ray Warden.
— Seu pai é insistente.
— O quê? Por quê? — questiono, tirando o aparelho do bolso e vendo que esta é a décima
ligação do dia.
Porra, já é quase hora do almoço? Eu dormi tanto assim?
— Atenda. E deixe no viva-voz — Killian fala ao cruzar os braços.
Com ombros caídos, deslizo meu dedo pelo botão verde e seguro o gemido ao falar:
— Sim?
— KRAISEE, SEU MOLEQUE!
Me encolho com seu grito, meus dedos segurando o celular com força enquanto
comprimo os lábios.
— Pai...
— Você me manda a porra de uma mensagem pela manhã dizendo que não estará vindo
trabalhar. E quando eu te ligo, como um homem de verdade faria, você não me atende! — Ouço
seu murro do outro lado, me fazendo saltar sobre a maca.
As mãos de Killian pousam sobre minhas coxas, massageando suavemente. Nem parece
que estava me sufocando com raiva minutos atrás.
— Não pude atender. Eu... tive um pequeno acidente...
— E que porra eu tenho a ver com isso? Você está no hospital?
Olho ao redor do quarto e balanço a cabeça.
— Não, mas...
— Então não é grave o suficiente para te impedir de vir trabalhar! Quero você aqui em
trinta minutos, me ouviu bem, garoto? Ou vou ter que começar a ter com você as mesmas
conversas que tenho com Maxwell?
— N-não, pai. Eu...
— Você já foi um ótimo garoto, Kraisee. Responsável, educado e bem-disposto. — Sua
voz abaixa, se tornando grave e acusatória. — Quando eu te adotei, você prometeu que seria
sempre um bom garoto. Agora você está se tornando a porra de um fardo. Não é isso o que você
quer, certo?
— Não! — Ergo os olhos para Killian, desespero nas bordas da minha negação.
Meu peito se aperta, a sensação de estar sendo inútil e prestes a ser jogão de lado me
esmagando. Começo a hiperventilar, meus olhos ardendo de repente. Seu maxilar parece
retesado, seus olhos azuis parecendo mais frios enquanto olha para a tela do celular em ligação.
Suas mãos me apertam, me ancorando no aqui e agora. Inspiro profundamente, soltando devagar,
controlando a crise de pânico.
— Ótimo. Estou te dando vinte minutos agora. Esteja aqui e apresentável. E esta noite
teremos um jantar importante em casa com alguns possíveis negociantes. Entendidos?
— Não — Killian rosna, tomando o telefone da minha mão e desligando o viva-voz ao
colocar em sua orelha. — Seu porco escroto do caralho. Kraisee não está indo trabalhar hoje.
Nem amanhã, nem nunca mais.
— Killian, o que você está fazendo?
— Kon’ v palto[34] — responde para meu pai, me ignorando. — Essa é a única coisa que
precisa saber. E não espere Kraisee para jantar. Nós temos a porra de uma despedida de solteiro
para ir hoje à noite.
Dizendo isso, ele desliga e atira meu telefone do outro lado do quarto como se fosse uma
maldita bola de baseball. O som do aparelho se partindo se mistura com meu ofego de descrença.
— O que você acabou de fazer? — sussurro, horrorizado.
— Acabei de libertar você da maldita prisão do seu pai. Agora, eu sou seu único
carcereiro.
— Killian, isso...
— Não precisa me agradecer. — Killian estala o pescoço, caminhando até onde está meu
sapato perdido e voltando. — Vamos. Precisamos ir para casa e você precisa comer. Ainda temos
que estar apresentáveis até de noite para ir à Lust.
— Isso... — Esfrego minha têmpora, me sentindo completamente perdido. — Você
apenas... quebrou meu celular!
— Dou outro para você — resmunga, calçando os sapatos nos meus pés e me ajudando a
descer da maca como se eu fosse uma criança. — Escolha o modelo. Foda-se o preço. Contanto
que seu pai não tenha a porra do seu número novo.
— Killian Hunter! — esbravejo, socando seu peito. — Você xingou meu pai!
— O quê? Você queria ter feito isso antes? — Sua sobrancelha se arqueia, sorrindo de
lado. — Tarde demais. Achei que soubesse que a minha paciência é bem baixa para tolerar certas
coisas, Advogado.
Sua mão segura no meu cotovelo do braço não machucado e me puxa com ele para fora
do quarto.
— Sério. Você tem ideia de como Ray vai ficar furioso com isso?
— Não, e nem mesmo me importo. — Dá de ombros.
Aperto os dedos na têmpora, sentindo uma dor de cabeça chegando.
— Você sofre de bipolaridade?
— O que é isso?
— Deixa pra lá. — Balanço a cabeça, seguindo-o para fora do subsolo do galpão.
Acho que conviver com o Executor é basicamente isso: uma montanha russa de emoções
e todo tipo de consequência como resultado.
“But I don’t wanna run (run, run, run)
Run away from you
‘Cause baby I am done (done, done, done)
Hiding my love for you”.
(You Can’t Control who you fall for, Victor Lundberg)

O perigo e o prazer andam de mãos dadas[35]. É isso que penso quando lembro de Killian
Hunter. Em seus olhos azuis gelados que podem queimar com prazer em questão de segundos.
Em suas mechas loiras onduladas caindo sobre seus ombros fortes e tatuados. No sorriso cruel
quando ele parece estar pensando em algo criminoso. E o risco de estar transformando meu ódio
e medo inicial em outros sentimentos, é muito grande.
Depois que ele praticamente me arrastou para fora do galpão, nos trouxe para casa dentro
de um carro que poderia estar indo direto para o lixão. Pensei que poderia pegar tétano só de
encostar na lataria. Assim que estacionamos na calçada, Conrad surgiu de outro carro logo atrás
do nosso, e levou a lata velha com ele.
E, claro, Killian me deu um telefone novo. Junto com um número expressamente proibido
de ser divulgado para meus pais. Se eu era um prisioneiro com liberdade condicional, agora
estou em prisão fechada e limitada às pessoas que apenas Hunter acha importante. Ou seja,
apenas ele.
Killian esteve trancado no escritório desde então. O silêncio lá dentro não me deixa saber
se o homem apenas dormiu de forma desconfortável na cadeira ou se as paredes possuem
antirruído.
Olho para o espelho, segurando minha camisa branca na mão. Há apenas uma cicatriz leve
no meu supercílio, mas ainda tenho algumas contusões no peito e barriga ficando levemente
esverdeadas. As surras do Max sempre deixam suas marcas. Emocionais e físicas. Toco com a
ponta dos dedos sobre a reentrância perto do quadril, uma das marcas que Max deixou e nunca
mais desapareceu.
Fecho a mão em um punho, cerrando os dentes. Memórias são apenas isso: recordações
do passado. Nem sempre são boas para se lembrarem. Solto um suspiro, vestindo minha camisa e
enrugando o nariz levemente quando o tecido enrosca no curativo. Viro para pegar o colete
corset sobre a cama e vejo Princesa sobre o beiral da janela, me observando.
Deuses, ela faz com os olhos da mesma forma que Killian quando está me olhando de
forma intensa.
— O quê? Você acha que ele não vai gostar da minha roupa? — Passo os dedos pelo cós
da calça e termino de abotoar a camisa.
Princesa mia, saltando da janela em direção à cama. Ela passeia ao redor do colete,
fungando levemente.
— Você não gosta da cor? — pergunto, erguendo o corset e o vestindo. — Acho que
vermelho combina com o tom da minha pele. E eu preciso parar de falar com uma gata que,
visivelmente, não se importa comigo.
Princesa me olha com desinteresse antes de pular para o chão e correr pela porta do quarto
entreaberta. Encaixo os botões de bronze nas casas e enrosco meus dedos nos cordões das costas,
inspirando e puxando até que o corset abrace meu torso. Com experiência, dou o nó e escondo os
fios. Passo os dedos pelo meu cabelo e pego o telefone, enviando uma mensagem para Dominic.
Para o inferno Killian Hunter odiando meu melhor amigo.
Hey, Dom.
Número novo.
Perdi meu celular de manhã.
Você perdeu?
Você?
Kraisee Warden?
Organizado, ridiculamente responsável, controlador
e, eu já disse organizado?
Vá se foder, Dominic.
Coisas estranhas acontecem até com o mais ordeiro.
O telefone toca na minha mão e aperto no verde para atender.
— Escuta, Keener, desde que você se mudou para a casa do homem que não pode ser
mencionado, coisas estranhas têm acontecido com você diariamente.
— Ele não é tão ruim assim — murmuro, sentando na cama.
— Porra, está tendo Estocolmo, Keener? Preciso chamar o psiquiatra?
— Eu não estou com nenhum tipo de transtorno, Dom. — Eu acho. Bufo, contrariado. —
Nem sempre as coisas são como você vê. Hunter é... um cara legal apesar de tudo. Atencioso.
Rude de uma forma preocupada.
— Merda, isso me soa como Estocolmo. Ou como se ele estivesse supervisionando nossa
conversa. — Ele soa sufocado do outro lado, sugando a respiração com força. — Se você sentir
que precisa de ajuda, me manda um emoji de bandeira vermelha. Ou uma luz de sirene se
precisar de intervenção policial.
— Você é tão idiota. Se eu te mandar um emoji de dedo do meio seguido de um sorriso,
significa que é pra você ir se foder.
— Max te bateu muito forte da última vez. Chacoalhou seu cérebro e o tirou do lugar.
Perdeu alguns parafusos — fala incrédulo. — Keener, você prometeu que não ia mais se
envolver com tipos sombrios!
— Hunter é...
— Não diga “diferente”. Por tudo que é sagrado e que você ama nessa vida, não diga que
o maluco da máfia é “diferente”!
Fungo, fazendo círculos na minha calça com a ponta do dedo.
— Eu não ia falar isso. Apenas que Hunter é peculiar.
— Uma palavra sinônimo para a mesma coisa, Kraisee!
— Estou pensando seriamente que te dar meu número novo foi um erro.
— Você só está pensando isso porque a verdade dói. Estou batendo na sua cara com
palavras. — Dominic zomba do outro lado, me fazendo revirar os olhos.
— Você deveria estar sendo meu amigo agora, Dom.
— É exatamente isso que estou sendo. Melhores amigos não passam a mão na cabeça,
eles enfiam a verdade goela abaixo e ainda gritam no final “eu avisei!”. Grave que será
exatamente isso que eu vou dizer quando você estiver chorando no meu colo. De novo.
— Sua positividade é tóxica. — Levanto, olhando no espelho e arrumando minha gola. —
Mudando de assunto. Por acaso, alguém da minha família entrou em contato com você?
Perguntando sobre... mim?
A linha fica em silêncio por longos segundos até que ouço Dominic suspirar.
— Não, Kraisee, seu pai não me ligou.
Comprimo os lábios, olhando para meus sapatos pretos limpos.
— Entendo.
— Por que a pergunta?
— Só... — Balanço a cabeça, olhando na direção da janela escura. — Eu não fui trabalhar
hoje. Não atendi meu pai e, então... perdi meu telefone. Pensei que... Talvez ele entrasse em
contato com você. Me procurando.
E quando eu falo meus pensamentos em voz alta, soam ainda mais patéticos do que na
minha cabeça. Fecho os olhos, engolindo a súbita dor no peito. Aquela minha parte sombria
sussurra em meu ouvido que quem perde são eles.
Se eles não vão lutar por você, eles não te dão a mínima.
Minha família, aqueles que me levaram para sua casa e disseram que era filho e irmão.
Um novo membro estimado. Alguém que eles esperavam e que ocuparia um lugar importante na
casa Warden. Um garoto de dez anos carente, com esperanças pisoteadas aos vinte e seis.
— Desculpe, Keener.
— Tudo bem. — Sorrio, erguendo o queixo com arrogância.
— Kraisee...
— Eu disse tudo bem, Dom. De verdade. Preciso desligar agora. Tenho que ir até a Lust
hoje. Algum evento importante. — Meneio a mão, exalando. — Te ligo mais tarde, pode ser?
— Não suma, ok?
— Você não vai se livrar de mim tão fácil. Fizemos aquele pacto na escola, lembra?
— Como eu poderia esquecer? Você deixou a porra de uma cicatriz no meu dedo, Keener.
Rio, olhando para a lateral do meu indicador e encontrando a linha fina do corte. Nós
pegamos a lâmina de barbear do pai de Dominic e cortamos nossos dedos, deixando o sangue se
unir quando colamos nossos dedos e amarramos uma estúpida fita azul ao redor. Era uma
promessa. Cuidaremos um do outro, seja o que for que aconteça.
— Até logo, Dom.
Desligo após sua despedida sendo um muxoxo. Guardo o telefone no bolso e pego minha
jaqueta branca forrada antes de sair do quarto, alinhando os ombros e ajeitando as mangas nos
punhos. Desço os degraus para o andar de baixo, Killian vindo da cozinha e olhando seu celular.
Vestido de preto dos pés à cabeça, mas diferente nesta noite. Não há uma jaqueta, mas um
sobretudo quente sobre uma camisa com os três primeiros botões abertos e sua máscara de
caveira amarrada na garganta. Calça jeans apertada e botas sociais com uma linha de costura no
bico de ponteira de ferro. Seus cabelos loiros ondulados estão soltos e rebeldes, sua barba de mel
com cerdas grossas.
Killian ergue os olhos do celular brevemente, apenas para sua cabeça se levantar
completamente na minha direção e quase derrapar em sua parada abrupta. Ele me mede da
cabeça aos pés, seus dedos coçando o lábio inferior quando, finalmente, seus olhos se conectam
com os meus.
— O que? — pergunto, espanando a frente do meu colete corset vermelho com detalhes
em cetim branco.
Suas narinas se abrem, inspirando ruidosamente.
— Você está... usando couro?
Arqueio uma sobrancelha ao girar um pouco o quadril para o lado, acentuando um pouco
a curva da bunda, e passo a mão pelo cós da calça vermelha.
— Aparentemente, sim.
— Porra — sussurra, seus olhos voltam para baixo. — Duas vezes porra.
— Isso é um elogio?
— Pode acreditar que sim.
Sorrio, não conseguindo esconder minha satisfação. No fundo, eu sabia que estava me
vestindo exclusivamente para ele.
— Estamos saindo?
— Com você vestido desse jeito? Não.
Minha boca se abre, desacreditado.
— O quê? Por quê?
— Inferno... Porque eu quero tirar cada peça do seu corpo com meus dentes, ao mesmo
tempo que quero sentar e ficar te observando enquanto me masturbo — Killian rosna, se
aproximando de mim devagar.
Deuses perversos! Por favor, sim, faça isso comigo!
Dou passos para trás, me afastando dele até minhas costas baterem na parede. Suas mãos
se apoiam em cada lado do meu corpo, me enclausurando com seus braços. Recosto na parede e
observo seu rosto torcido com dor e desejo.
— Nós temos que ir a uma despedida de solteiro, Killian.
Suas narinas se abrem, inspirando. Suas pupilas estão dilatadas, tão largas que o azul é
quase engolido por elas.
— Dane-se esse caralho. Você está vestindo couro.
— Orlov vai ficar... — engasgo ao sentir a ponta dos seus dedos deslizando sobre minha
coxa. — Seu irmão vai ficar furioso se você não for.
Parecendo me ouvir, o telefone de Killian começa a tocar e ele rosna ao atendê-lo.
— O que foi? — Seus olhos pegam os meus, deslizando para minha boca e então
garganta. Quase posso sentir como uma carícia física. — Eu já estou indo, inferno. Por acaso eu
sou a porra da noiva? Vá se foder, Mikhail.
Killian desliga, lançando um olhar para mim por inteiro antes de grunhir e se afastar. Ele
ajeita seu pau dentro da calça, fazendo o meu pulsar em resposta.
— Sempre um empata-foda... — resmunga, pegando a chave e indo na direção da porta.
— Vamos, Advogado.
Ajeito minha jaqueta, inspirando ao pressionar minha palma contra a frente da minha
calça. Nunca tive bolas azuis como estou tendo agora. E olha que eu gozei essa manhã com a
mão deste homem em mim. Pensar sobre isso não está ajudando meu pau baixar.
Killian me espera na porta e me deixa passar primeiro, fechando e trancando-a ao sair.
Sem o sol, o ar parece mais frio. Sopro minha respiração, vendo-a condensar à frente da minha
boca. O som da garagem sendo aberta chama minha atenção e encontro Killian empurrando uma
moto para fora, no modelo XDiavel S.
Cruzo os braços, olhando para os pneus largos e toda a pintura preta, “Ducati” escrito em
prata é a única cor que se sobressai em todo o fundo escuro. Não me sinto surpreso com isso.
Estalo a língua quando ele puxa o pezinho para mantê-la de pé.
— Não existe nenhuma cor na sua paleta além do preto e prata, não é?
Killian me olha, seu sorriso de lado, curvando sua boca pecaminosa antes de me dar as
costas e fechar a porta da garagem. Ele caminha até mim, me estendendo um capacete preto
fosco com viseira escura.
— Andar inteiro de preto ajuda a me camuflar no escuro, afinal, eu trabalho à noite a
maior parte do tempo. — Seus dedos passam pela borda da minha jaqueta até a ponta,
enganchando no passador da minha calça e me puxando de encontro ao seu corpo. Killian se
inclina, seu nariz passando pela curva do meu maxilar até a orelha, sussurrando: — Eu deixo
toda a luz e cores para você, lisichka. Vermelho, definitivamente, é a cor da sua pelagem.
Seus dentes mordiscam minha orelha, me fazendo estremecer. Ele pega o capacete e o
coloca sobre minha cabeça, clicando a trava abaixo do meu queixo. Sua perna passa sobre a moto
de modo confiante e senta sobre o banco de couro, parecendo confortável e tão gostoso. Killian
calça luvas de couro e liga a moto, um ronronado potente vibrando pelos meus ossos quando
Killian bate suavemente atrás dele.
— Monte, Advogado. — Seu sorriso de lado é cruel e pecaminoso. — Ou você tem
medo?
— Eu não tenho medo disso — resmungo, subindo com sua ajuda e me encaixando em
suas costas.
Eu tenho medo de você.
Tenho medo das coisas sombrias que faz surgir em mim quando estou ao seu lado, e de
gostar de cada uma delas.
Tenho medo do que estou começando a sentir sempre que você me olha. Sempre que me
toca.
— Você não precisa de um capacete, sr. Hunter? — pergunto, apenas para silenciar minha
mente.
— Minha cabeça é dura o suficiente — fala, batendo o indicador contra a têmpora. —
Não quebra fácil.
Engulo em seco, meus braços envolvendo sua cintura quando Killian acelera para a rua.
Minhas coxas pressionam contra ele para me firmar e não me deixar cair. Sua risada baixa se
mistura com o som do vento e do ronrono da moto, um zumbido baixo e rouco. Minhas mãos se
espalham contra sua barriga tensa, procurando por um pouco de calor que o vento frio tenta tirar.
Seu cabelo batendo selvagem.
Ao contrário de quando Killian está dentro de um carro, tenso e irritado, sobre a moto seu
corpo parece relaxado. Suave até. Seus ombros não estão retesados e ele não parece angustiado.
Possivelmente seja pela sensação de liberdade, do vento no rosto, tudo que difere da sensação de
estar enclausurado dentro de um carro.
“Me lembra o passado...”
O quanto Killian realmente sofreu quando era mais novo? Quais são as marcas
emocionais que estão gravadas em sua mente, que o perturbam tarde da noite e que o faz vagar
pela casa? Pressiono meus dedos contra sua barriga, sua mão envolvendo meu pulso e me
mantendo lá.
Posso sentir o cheiro do lago quando passamos pela via perto do porto, seguindo reto até
as luzes da Lust surgirem. A boate cheia de vida e uma enorme fila de espera. Killian nos leva até
o estacionamento privado, um segurança liberando nossa passagem sem precisar de uma palavra.
Desço da moto quando Killian puxa o pezinho, e tento tirar o capacete. Porém, meus
dedos não conseguem encontrar o lugar certo para destravar.
— Acho que isso não foi posto certo — murmuro.
Killian afasta minha mão, tirando a trava com facilidade e puxando o capacete pela minha
cabeça e o pendurando no guidão da moto. Ele não está mais usando luvas.
— Não foi tão difícil.
Passo os dedos pelo meu cabelo, ajeitando minha jaqueta em seguida.
— Diz isso porque estava vendo a trava.
— Não. São meus dedos habilidosos. — Killian balança seus dedos na frente do meu
rosto, puxando meu nariz logo depois. — Vamos, ou Orlov vai cagar um ovo de estresse por nos
esperar.
Seu braço passa por meu ombro, puxando-me com ele para a entrada. As pessoas na fila
nos olham passar com carrancas irritadas, mas Killian mal parece notá-las. Ele acena para o
segurança na porta, a cordinha sendo tirada e liberando nossa passagem para o barulhento
interior da boate mais procurada da cidade de Toronto.
Lust só perde para a Luxury, mas ambas são do mesmo dono.
— Podemos apenas passar assim?
— Somos VIPs. Do que adiantaria ser parceiro do idiota arrogante do White e não ter
alguns benefícios? — Killian inclina, sua boca roçando meu ouvido. — Não saia de perto de
mim, Advogado.
Assinto, sua mão pressionando na base das minhas costas. Deixamos nossos casacos com
a recepcionista, realmente um tratamento VIP, e Killian me leva mais para dentro da pista lotada.
A música é uma batida que me atinge como socos no peito. Olho ao redor, para o palco central
com seus dançarinos seminus, gaiolas penduradas no teto com dançarinas em micro-saias e
arquinhos de diabretes.
Bebidas passam de mão em mão. Pequenas mesinhas espalhadas ao longo das paredes,
um piso superior também lotado. Há áreas com cortinas, isolando seus usuários do lado de
dentro, mas ainda lançando sombras eróticas para quem olha do lado de fora. Killian me guia
pela escada de luzes pálidas nos degraus e surgimos no segundo andar.
Em uma área separada, posso ver sofás confortáveis dispostos ao redor de uma mesa
redonda larga com copos vazios e outros cheios de bebida colorida. No centro, uma linda mulher
negra está sentada com as pernas cruzadas, botas de couro com saltos grossos sobre a quina da
mesa. Ela tem um sorriso curvando seus lábios grossos pintados de vermelho, tranças escuras em
um coque no alto de sua cabeça.
Ela fala algo para um homem sentado à sua direita, vestindo terno escuro e uma camisa de
seda por baixo. Seus cabelos lisos e escuros caem sobre seus olhos enquanto ele continua
ouvindo o que ela tem a dizer. Ao meu lado, Killian grunhe ao envolver minha nuca com sua
mão.
— Ótimo. O cretino do White está na festa.
— White? O dono?
— Sim, o próprio. — Killian me puxa com ele até a grade que dá para a pista do andar
inferior e aponta com o queixo para o sofá. — O arrogante sentado ao lado da Pops.
Olho de volta para ambos sentados no sofá, Pops com seus olhos sobre mim e então em
Killian, acenando brevemente antes de voltar para White.
— Ele parece diferente das fotos de Paparrazzi.
— White nem é tudo isso que dizem por aí. — Killian esnoba.
— Isso me soou como inveja? — Cutuco.
Seus olhos azuis brilham coloridos pelas luzes quando ele me olha. Seus braços me
cercam contra a grade, seu cabelo formando uma cortina ao redor do nosso rosto quando se
inclina contra mim. O aroma do seu shampoo se mistura ao cheiro de cigarro.
— As pessoas só sentem inveja da outra quando desejam o que elas possuem. Eu não
desejo nada que Kiam White tem. — Sua mão segura meu queixo, erguendo meu rosto até que
sua boca está pairando sobre a minha. — O que eu quero está bem na minha frente. Me
implorando para rasgar do seu corpo esse maldito corset e essa calça de couro apertando sua
bunda. Balançando na minha frente como uma maldita bandeira vermelha.
Engulo em seco, lambendo meu lábio inferior.
— Killian...
Ele rosna, seu polegar pressionando meu lábio para baixo antes de me soltar e se afastar
um pouco.
— Não sei o que é pior. Me chamar pelo nome desse jeito ou dizer “senhor” quando está
irritado.
Ele me solta e passo a mão pelo colete e olho ao redor, implorando por uma bebida. Para
passar por essa noite vou precisar ficar bêbado. Pigarreando, mudo de assunto.
— Ah... Pops parece ser uma boa chefe.
Killian me olha, sabendo o que estou fazendo.
— Staraya suka. É melhor que o anterior, pai dela. O homem era um porco sem
escrúpulos. — Ele pega um copo de uísque do garçom passando e toma metade do copo em um
gole. — Desde que a Pops entrou no comando, as coisas ficaram um pouco bagunçadas, mas
nossa organização cresceu muito.
— Bagunçadas, você diz, por ela ser uma mulher?
— Não é comum no nosso meio que uma organização tão grande seja comandada por
uma mulher. — Killian me olha, girando o líquido dentro do copo lentamente. — Mas isso é só a
porra do preconceito dos velhos idiotas.
— Sempre há preconceito, em todos os lugares — resmungo, lembrando como foi difícil
para mim, descendente tailandês, sofrer com xenofobia e, depois, homofobia.
— Foi difícil no começo. — Killian continua, tomando o resto do uísque. — Uma grande
dor de cabeça, mas ela conseguiu. Pops tem um punho de aço e uma visão de negócios perfeita.
Isso é o que Orlov diz. Meu trabalho é lidar com a ralé, não com as reuniões enfadonhas ou
observar o que ela faz.
Apoio meus cotovelos na grade e observo o segundo andar, olhando discretamente para a
Pops e vendo Orlov parado logo atrás dela. Seus olhos caem sobre mim, suas sobrancelhas
franzidas. Esse homem, com seu jeito silencioso e pensativo, me aterroriza.
Uma comoção na escada chama nossa atenção e uma comitiva surge no segundo andar.
Dois homens lideram a entrada, um deles sendo Nevan Mitchell. Sinto Killian retesar ao meu
lado e deslizo minha mão pela sua, enrolando meus dedos em seu pulso, sentindo seu batimento
acelerado. Pops levanta do sofá, recebendo os homens com abraços e beijos enquanto os outros
se espalham pelo piso.
Orlov se afasta, indo para a ponta do sofá e sentando, seu rosto virado para o outro lado e
ignorando-os completamente. Nevan nos encontra com o olhar, afundando o queixo em
reconhecimento. Killian simplesmente lhe dá as costas, fingindo que não o viu. Exalo, inclinando
contra a grade e olhando para o rosto sisudo do meu companheiro rabugento.
— Escuta, quando vai me contar o que aconteceu entre vocês para existir todo esse ódio?
— Nunca.
— Ah, qual é! Me conte! Sou bom com segredos. Advogado e tal.
Olho para ele com sobrancelhas arqueadas, não soltando o osso. Ele revira os olhos,
cruzando os braços.
— Tudo bem. Acontece que o Nevan é um trus predatel’.
— Em inglês, sr. Hunter.
Ele cerra os olhos ao me olhar.
— Covarde traidor.
— Oh. — Franzo as sobrancelhas. — O que ele fez? Entregou vocês? Ficou com outra
pessoa enquanto estava com Mikhail?
Killian arqueia uma sobrancelha para mim.
— Como sabe sobre ele e meu irmão?
— Nevan me disse. — Encolho um ombro. — Sobre você ser muito superprotetor
também.
Ele estala a língua, pegando outro copo de uísque, mas virando tudo de uma só vez.
— Nevan — fala com distinto nojo na pronúncia. — Isso soa quase como se fossem
grandes amigos. E isso não vai acontecer.
— O que não vai acontecer? — provoco.
— Você e aquele médico de quinta se tornarem amigos. Não permito isso — rosna, seu
corpo inclinando sobre o meu e seus olhos gelados me prendendo.
— Killian, você não pode controlar quem se torna meu amigo ou não. Primeiro Dominic,
e agora Nevan. — Cruzo os braços e ergo meu queixo com arrogância. — E está mudando de
assunto de propósito!
Seu sorriso de lado surge, seu dedo deslizando pela frente do meu colete e enganchando
no decote para me puxar mais perto.
— A única coisa que precisa saber sobre os Mitchells é que a família deles é sanguinária e
oportunista. Muitas organizações derrubam outras pela sede de poder, como tubarões nadando
em mar aberto e atacando quando sentem cheiro de sangue. — Seus olhos ficam sérios, maxilar
rangendo. — Eu não tenho vergonha em dizer que me relaciono com qualquer tipo de pessoa,
seja homem ou mulher. Santo ou diabólico. Porém, meu irmão não é assim. Ele escolhe a dedo.
E Nevan foi escolhido, mas não era homem suficiente para Mikhail. Nunca vai ser.
Assinto, passando meu braço ao redor de sua cintura e apoiando meu queixo em seu peito.
— E eu? Sou santo ou diabólico, sr. Hunter?
Sua mão passa pela minha bochecha, escorregando até minha nuca e me segurando perto.
— Você é um anjo caído, Advogado. Me fazendo adorar de joelhos como um santo e
pecar como um demônio.
Inspiro, apertando meu braço ao redor dele com mais força. Killian Hunter, um assassino
cruel criado apenas para trabalhar pela máfia, que defende aqueles que ama com unhas e dentes.
Um cão fiel.
E eu, definitivamente, devo ter perdido algum parafuso como Dominic falou. Porque eu
cansei de correr do que realmente sinto. Se você nunca colocou a mão numa chama porque
alguém lhe disse que o fogo queima, ficará eternamente com vontade de colocar a mão numa
fogueira[36]. E eu quero me queimar no calor profano que esse homem exala.
“I'm that desire in your blood you can't refuse
Ya picked your poison boy ain't nothing left to choose
Now you can't get enough”.
(Cravin’, Stileto)
O som da música vibra em meu corpo, pulsando sobre minha pele. Observo Kraisee se
afastar e ir até o bar mais uma vez, para pegar mais um copo da sua bebida colorida adocicada. Já
é o segundo que ele toma, mas não parece estar longe do caminho da embriaguez. Se eu não o
segurar, posso acabar com ele mal se lembrando do próprio nome no fim dessa noite. Pops não
está mais à vista, desaparecida pela boate junto com seu futuro noivo. Um Mitchell.
Esse sobrenome me cheira a fracasso.
O que me lembra a ligação de Baumer nesta tarde. Não há, em orfanato algum, o nome de
Kraisee Wongsa, ou mesmo adoção feita por Ray Warden e sua esposa, Caitlin. Baumer revirou
todos os sistemas de casas de adoção e não encontrou nada. Como se Kraisee tivesse surgido do
meio de um buraco na terra e Ray o puxou de lá.
Baumer também encontrou diversas transações bancárias com relação à Ray. Seria desvio
de verba? Há até uma conta na Suíça com o nome de um laranja, recebendo uma quantia alta de
dinheiro. Não muito para não ser notado, mas também não é pouca coisa. Depósitos de trezentos
mil não podem ser considerados mixaria.
O que Ray está tramando?
Suor escorre por minha nuca e costas quando vejo uma mulher bonita se aproximando,
usando apenas um vestido púrpura que mal cobre seus seios. Hanney sorri largamente quando
me vê e apoio as costas e os braços na grade, meus olhos ainda sobre Kraisee agradecendo sua
bebida e tomando um gole do canudo. Mikhail a cumprimenta com um breve aceno de cabeça,
seus braços esticados no encosto do sofá.
— Hunter, há quanto tempo. Pensei que tinha desistido da Lust.
Esfrego meus dedos, implorando por um cigarro. White permite sexo nos corredores, mas
há uma maldita política sobre fumar dentro da boate. Prioridades. Melhor porra espirrada na
parede do que fogo em seu teto.
Ao invés disso, pego minha faca canivete no bolso, abrindo e fechando.
— Muito trabalho, pouco tempo para as coisas boas — falo desinteressado.
— Uma pena. Meus meninos sentiram sua falta.
Arqueio uma sobrancelha, fechando a faca com um estalo que mal é ouvido no som alto
da boate.
— Eles amam o gosto do perigo.
— Perigo é o nome do meio de muita gente — Hanney fala alto, sua unha púrpura
deslizando pela frente da minha camiseta.
Não me importo com a porra do sobrenome de ninguém, porém, cairia bem sendo o nome
do meio de Kraisee. Parecendo invocado pelos meus pensamentos, meu advogado entra na frente
de Hanney, batendo a mão dela longe de mim.
— Mantenha as mãos para si mesma, senhora. Essa coleira já tem um dono puxando a
guia.
Minha barriga vibra com sua afirmação gritada sobre a música, me fazendo sorrir com
crueldade ao envolver sua cintura com minhas mãos. Sua bunda coberta por couro se encaixa na
minha frente, me fazendo grunhir.
— Oh, agora eu entendo. — Hanney ri, assentindo. — Hunter não está mais no mercado.
Do sofá, Mikhail nos observa com tédio. Me pergunto se ele transa ou seu pau murchou
tanto que virou do avesso e entrou dentro do seu próprio corpo.
Acho que a última opção.
— Pensei ter dito que eu não queria a escória da Família por aqui.
Viro o rosto para encontrar Kiam parado logo atrás de Hanney. Mãos nos bolsos de sua
calça escura, sua camisa preta de seda aberta até o meio do peito e as mangas dobradas em seus
antebraços. O terno de antes desapareceu. Sua pose de cara rico e esnobe é apenas uma fachada.
White é grande e largo como eu, e bom de briga também.
Ele pode ter tentado enterrar sua história como Midas para o público e seus assíduos
clientes, mas nós sabemos quem ele é e do que pode ser capaz. Seus dedos só não possuem mais
sangue do que os meus pelo fato de que parou há vários anos. Se casou com um fotógrafo bonito,
formou uma família e tem uma vida feliz.
Aquela parte oca dentro de mim vibra, me fazendo fechar os dedos na cintura de Kraisee
com mais força, puxando-o contra mim e enrolando meus braços ao seu redor. Engancho meu
polegar no passador de sua calça, minhas coxas pressionando contra as suas.
— Você usa do bom nome da Família e suas facilidades, mas não se mistura? Que tipo de
hipócrita arrogante é você, White?
Kiam me mostra os dentes em um sorriso forçado.
— Do tipo que não se importa em furar sua cabeça com uma faca de serrinha, só para
doer mais. — Seus braços cruzam, a camisa esticando. — Você estando na minha boate significa
problemas, Hunter. Não quero o cão da família farejando por aqui e causando confusão.
— Estou aqui porque fui intimado para essa festa ridícula. — Dou de ombros. — E não
sou eu quem arranja problemas, White. São os problemas que me procuram em primeiro lugar.
Kraisee balança a cabeça suavemente, sua boca ao redor do canudo e sugando sua bebida
doce. Eu queria que sua boca estivesse ao redor do meu pau, me sugando.
— Essa sua desculpa é esfarrapada! — White exclama.
— Para de encher a porra do meu saco! Cadê seu marido para ocupar seu tempo? Vocês
não têm a porra de uma família feliz em casa? Volte para lá!
— Se não o conhecesse bem, Hunter, diria que o veneno pingando da sua língua é inveja.
Cerro os olhos, apertando a faca entre os dedos, pensando em atirar e ver minha lâmina se
enterrar fundo entre seus olhos. Kraisee envolve meu pulso, abaixando minha mão até sua lateral
e descansa a lâmina contra sua coxa. Mikhail se levanta, puxando a gola da sua camisa mais para
cima e entrando na minha frente, tirando meu foco do rosto prepotente do White.
— Preciso falar com você. Tem um minuto?
Kiam assente devagar, lançando um olhar para mim sobre o ombro de Mikhail.
— Aprenda a ser educado como Orlov, Hunter. — Kiam aponta para o lado, dando um
passo para trás. — Meu escritório é por aqui.
Meu irmão me olha em silêncio, mas é quase como um grito me dizendo para não criar
mais problemas. Apoio o queixo no ombro de Kraisee e mostro meus dentes em um sorriso
ordinário para Mikhail, que balança suavemente a cabeça.
Sim, sou um caso perdido.
— Você é mesmo incorrigível, sr. Hunter! — Kraisee sorri, seu quadril balançando no
ritmo da música.
— Essa é a segunda vez que diz isso. Estou começando a achar que é um elogio! —
Mordo sua orelha, lambendo a curva em seguida.
Guardo minha faca de volta no bolso e pego o copo de Kraisee, colocando-o de lado. Giro
seu corpo para mim e agarro suas bochechas com meus dedos, apertando até que sua boca forme
um leve bico. Suas mãos puxam minha camisa, seus dedos entrando por baixo do tecido e suas
unhas arranhando minha barriga.
Beijo sua boca, segurando sua nuca para mantê-lo no lugar. Porém, Kraisee está tão
derretido contra mim que eu duvido muito que queira escapar. Seu corpo contra o meu, minha
coxa entre as suas, e agarro sua bunda naquele couro apertado. A música é uma batida forte ao
nosso redor, mas não é mais rápida que meu coração batendo no peito.
Eu o beijo por minutos, talvez horas. Mudo de sua boca para seu pescoço, lambendo e
chupando sua pele, desejando menos roupas. Mordo seu queixo, migrando para seu ouvido
apenas para rosnar:
— Vamos sair daqui, porra.
Kraisee apenas assente, sua mão se encaixando na minha ao me seguir para a escada.
Empurro as pessoas pelo caminho com urgência, querendo sair logo dali e ir para casa, para ter
Kraisee nu sobre meu colchão. Quase na saída, Kraisee tropeça atrás de mim e olho sobre o
ombro para vê-lo batendo de lado contra um cara maior. Ele ergue a mão em desculpa, apenas
para arregalar os olhos ao perceber quem é.
Maxwell Warden.
Seus olhos cerram, olhando para Kraisee com fúria.
— O que você está fazendo aqui, idiota? — grita acima da música.
— Eu que deveria perguntar isso! De todas as boates em Toronto, você tinha de vir justo a
essa?
Estalo o pescoço ao ver Maxwell avançar sobre Kraisee e me coloco entre eles, minha
mão espalmando o peito de Max e o empurrando para trás. Vejo com o canto do olho o
segurança da boate puxar seu fone, provavelmente dizendo a Kiam que estou prestes a arranjar
problemas.
— Veja o jeito que você fala com ele — advirto.
Max solta uma risada zombeteira, ajeitando sua camisa ridícula.
— Você é o segurança dele agora?
— Sou. — Inclino a cabeça um pouco para o lado ao analisar sua postura e mostro os
dentes em um sorriso frio. — Algum problema com isso?
O idiota bufa, avançando até estar pairando com seu nariz contra o meu. Perto da saída o
som parece mais baixo, mas ainda pulsando ao nosso redor.
— Sai da minha frente. Esse assunto é entre mim e os olhos rasgados ali. Não é da sua
conta, palhaço.
— Killian... — Kraisee começa, mas o silencio com um movimento da mão, colocando-o
atrás de mim outra vez.
— Acho melhor você sair enquanto consegue andar sozinho. Ou vai se arrepender.
O sorriso de Maxwell está de volta, arrogante.
— Ah, é? E o que você vai fazer?
— Você não quer descobrir. — Nego com a cabeça.
— Não tenho medo de você — fala, cuspindo no chão aos meus pés.
— Mas deveria — falo calmamente.
Kraisee torna a dar volta pelo meu corpo, erguendo as mãos em uma tentativa de fazer o
irmão se acalmar.
— Max, acho melhor ouvir o que Hunter diz.
Seu irmão me olha de cima a baixo, sorrindo.
— Hunter, hein? Você está dando sua bunda para o famoso Executor da máfia de
Toronto? — Maxwell cutuca Kraisee no ombro, me irritando por ter suas patas sujas sobre ele.
— É por isso que você está nessa boate decadente? Você dispensa o papai pelo telefone, como
um idiota ingrato, tudo por causa do pau de um assassino?
— Não foi assim que aconteceu — Kraisee adverte, negando com a cabeça.
— Sabe, papai deveria ter deixado sua carcaça no lugar que ele encontrou — Maxwell
comenta, estalando a língua e gotejando veneno. — Melhor do que deixar o cão morder a mão do
dono que o alimentou por tantos anos.
— Eu não mordi a mão de ninguém — Kraisee rosna, seus ombros tensos.
— Não é assim que o papai vê. Melhor assim. — Ele dá de ombros casualmente. — Você
nunca fez parte dos Warden mesmo, era só a porra de um fantoche! E é por isso que você não
sabe nada de verdade sobre nós! Você nem mesmo tem direito a porra nenhuma dos negócios!
Maxwell ri com zombaria.
— Que tipo de merda é essa que você está dizendo?
Kraisee parece terrivelmente chocado.
— Não é merda! É a porra da verdade! Nossa família não é convencional e você não nos
conhece! Nunca vai conhecer porque o meu pai não confia em ninguém que não tem seu sangue!
E você, made in china, é só uma pedra no maldito caminho!
Com um rugido doloroso, Kraisee empurra o irmão no peito e Maxwell acerta as costas da
mão na bochecha de Kraisee, fazendo meu advogado tropeçar para o lado. Cada músculo do meu
corpo retesa, a fúria lambendo minha espinha. Meu punho levanta, acertando o nariz de Maxwell
e fazendo sangue jorrar.
Não dou tempo para ele pensar. Meu punho acerta seu rosto uma e outra vez, os anéis em
meus dedos afundando na carne, arrancando sangue e pele. Há o som de gritos assustados ao
redor e passos apressados. Tudo ficando abafado em meus ouvidos conforme bato no idiota que
ousou encostar a mão em Kraisee.
— Killian, por favor! Pare! Você vai matá-lo!
Essa é a intenção.
Esse cretino merece morrer. Porém, ele deve sofrer antes. Pego minha faca do bolso e
aperto contra sua garganta, vendo a lâmina cortar sua pele. Maxwell engasga com seu próprio
sangue, seus olhos começando a inchar.
— Isso é um aviso, Maxwell Warden: nunca mais encoste em Kraisee se quer permanecer
vivo. Se for inteligente, vai se manter afastado.
Pares de mãos me erguem para longe do corpo de Maxwell e rosno para afastá-las quando
o rosto de Kraisee surge na minha linha de visão. Suas mãos estão segurando minhas bochechas,
seus olhos arregalados.
— Killian! Pelos deuses, você está bem? Sua mão...
Há um leve bufar atrás de mim.
— Alguém verifique se o rapaz ainda está vivo — Mikhail murmura. Suas mãos apertam
meus ombros antes de sussurrar em meu ouvido: — Você nunca consegue se manter longe de
confusão, Kill?
Chacoalho meus ombros do seu aperto. Pares de olhos sobre nós enquanto os seguranças
carregam Maxwell para fora, três homens seguindo atrás. Provavelmente estavam com o
perdedor.
Grandes amigos.
— Vá se foder. O imbecil filho de uma cadela bateu em Kraisee. — Seguro o queixo do
meu advogado com cuidado, girando sua cabeça para olhar sua bochecha vermelha e levemente
inchada. — Porra, eu devia ter matado ele por ter deixado essa marca em você.
A mão de Kraisee envolve meu pulso, seu rosto sério ao me observar com cuidado. Ele
pega minha mão, passando as pontas dos dedos suavemente pelas minhas juntas machucadas,
sugando sua respiração com força ao olhar em meus olhos.
— Vamos para casa, Killian.
Com um grunhido, envolvo sua cintura com meu braço e caminhou em direção à entrada
da boate para pegar nossos casacos de volta, falando para Mikhail sobre meu ombro.
— Dê meus pêsames para a Pops pelo casamento, Orlov!
— E, como sempre, vou ter de limpar sua bagunça?
Dou a ele meu dedo do meio.
— É para isso que servem os irmãos!
Ajudo Kraisee a colocar sua jaqueta branca e passo os braços pelo meu sobretudo. Minha
mão dói, mas a dor não é maior que minha satisfação de ter esmagado o rosto de Maxwell.
Chegando próximo da minha moto, as mãos de Kraisee agarram minhas lapelas e sua boca está
sobre a minha. Com o impacto surpreso, sinto nossos dentes batendo e cortando meu lábio. Solto
um gemido resmungado, segurando sua cintura e deixando que minha pequena lisichka me
devore.
Sua língua lambe o sangue da ferida que ele mesmo fez, fazendo um arrepio de excitação
descer pela minha espinha e se alojar em minhas bolas.
— Me leve para casa, Killian. Me leve para seu quarto e me foda, por favor.
Meus dedos cavam em sua cintura, arrancando um baixo gemido sôfrego dele. Pego o
capacete e coloco sobre sua cabeça, montando em minha moto e saindo acelerado quando seus
braços estão enrolados ao meu redor. Os pneus derrapam nas curvas, suas coxas me apertando e
me desconcentrando.
Paro a moto na frente de casa, desligando o motor e descendo. Kraisee já tem o capacete
fora de sua cabeça, já que desta vez ele não se deu o trabalho de prender a trava. Agarro a frente
de sua jaqueta, lambendo meu lábio machucado e pensando em todas as coisas perversas que vou
fazer com esse homem na minha cama.
Seus olhos seguem minha língua, suas mãos se enroscando em meus cabelos e me
puxando de encontro a ele. Nós nos beijamos, tropeçando pelo caminho até a porta, nossas mãos
explorando e empurrando nossas roupas. Bato a senha da porta meio cegamente, o clique de
liberação nos deixando adentrar na casa escura, com apenas uma lâmpada acesa no hall de
entrada.
Bato a porta com o calcanhar, empurrando a jaqueta de Kraisee por seus ombros enquanto
ele se ocupa em desabotoar minha camisa. Empurro-o contra a parede, segurando a frente de seu
corset e me afasto para olhar mais uma vez para a forma de seu corpo bonito. Rosno quando a
palma dele se esfrega contra meu pau ainda dentro da calça.
— Vamos jogar um jogo, sr. Hunter.
Arqueio uma sobrancelha, meu quadril balançando contra sua palma em busca de mais
atrito.
— Que tipo de jogo, Advogado?
Kraisee abre o primeiro botão de sua camisa branca. Em sua manga, vejo um leve rastro
de sangue que deve ter saído de seu curativo.
— Um em que eu sou a caça. E você só pode ter minha bunda se me pegar.
Apoio as mãos na parede, enclausurando Kraisee entre meus braços. Suas pupilas estão
estouradas, seus lábios inchados pelo beijo, seu cabelo bagunçado e bochechas escuras de desejo.
— Então é melhor você correr, lisichka.
Ele solta um pequeno grito sufocado antes de escapar de mim e correr para dentro da casa
escura. Atiro meu sobretudo de lado e avanço atrás de Kraisee com passos largos, subindo os
degraus de dois em dois e vendo sua bunda empinada naquela calça de couro prestes a entrar no
seu quarto.
Princesa surge pela porta, correndo como se seu rabo estivesse pegando fogo e desaparece
para o andar de baixo. Enrolo meu braço ao redor da cintura de Kraisee pouco antes dele
ultrapassar pela soleira da porta de seu antigo quarto e seu grito surpreso faz com que aquela
parte caçadora em mim se agite com alegria perversa.
Isso mesmo, antigo. Porque, a partir dessa noite, estou amarrando meu Advogado na
minha cama e o alimentando apenas com meu pau.
Jogo seu corpo sobre meu ombro, meu rosto torcendo levemente com a fisgada de dor
com o machucado quase cicatrizado. Dou um tapa em sua bunda para que pare de se mexer, e
vou para o meu quarto carregando meu prêmio envolto em couro e cordões. Sem cerimônias,
jogo Kraisee sobre minha cama e me desfaço dos últimos botões da minha camisa e a tiro pelos
meus ombros.
— Você precisa ser mais rápido da próxima vez, se quer escapar de mim, Advogado. —
Caio sobre seu corpo, lambendo seu maxilar.
— Minha intenção nunca foi fugir, mas ser pego. — Kraisee enrola suas pernas na minha
cintura e nos vira sobre o colchão. Suas mãos puxam meu cinto, enrolando-o em meus pulsos em
seguida. — Agora, mantenha-se quieto, sr. Hunter, e aproveite o passeio.
Ele me empurra até que eu estou com os braços levantados e amarrados na minha
cabeceira. Puxo-os, me sentindo preso, logo esquecendo quando Kraisee senta sua bunda sobre
meu quadril.
— Kraisee...
Seu sorriso é largo quando ele desabotoa sua calça e então passa para os botões em seu
corset. Me remexo abaixo dele, meus dentes cerrados ao vê-lo tirar aquela peça sem minha
ajuda. Observo sua camisa branca deslizar por seus ombros e seu torso ficar nu para meus olhos.
Seus mamilos pequenos e escuros, sua barriga lisa e aquela pequena cicatriz sobre seu quadril
direito. O curativo em seu braço está avermelhado, levemente soltando na borda de cima. Ele não
parece se importar muito.
Forço meus pulsos contra a restrição, amaldiçoando em russo por Kraisee saber amarrar
muito bem. O que ele poderia fazer com cordas? Inspiro quando seus dedos deslizam pela minha
barriga puxando minha calça e cueca para baixo. Ele tira as peças do meu corpo junto com meus
sapatos e meias.
Estou nu e amarrado.
Meu pau em riste e sacudindo com o olhar de Kraisee sobre ele. Seus olhos de chocolate
sobem para os meus, sua voz rouca e baixa:
— Lubrificante e camisinhas, Killian.
Ergo o quadril levemente, fechando os olhos e apertando minha cabeça contra a cabeceira.
— Primeira gaveta do banheiro — rosno.
Ouço o barulho de seus pés contra o chão, então a gaveta se abrindo e coisas sendo
reviradas. Seus pés batem de volta e o colchão afunda. Quando abro meus olhos outra vez,
Kraisee está completamente nu e sentado sobre minhas pernas. Inspiro com força, olhando para
seu pau tão duro quanto o meu.
— Kraisee...
— Shh. Fique quieto. Me deixe olhá-lo.
Moo meus dentes ao ranger meu maxilar com força. Kraisee me observa, suas mãos
deslizando por minhas coxas e subindo até a virilha, apenas para voltar para baixo mais uma vez.
— Quase não há espaço de pele sem tinta — murmura, seu gemido saindo baixo e longo.
Seu indicador segue pela borda de uma tatuagem de serpente em minha coxa direita, então
pelas asas da águia subindo perto do meu quadril do lado esquerdo. Suas mãos se abrem,
espalmando sobre os ossos da bacia, seu rosto se inclinando e seu nariz passando ao longo do
meu pau inchado.
— Kraisee — rosno.
— Sabe, quando te vi socando meu irmão, fiquei aterrorizado no começo. — Sua língua
sai, lambendo superficialmente perto do meu piercing lorum. — Então lembrei que você estava
fazendo aquilo para me defender. Você mataria meu próprio irmão apenas para me manter a
salvo.
Minha respiração para por poucos segundos, apenas para retornar em ofegos rápidos ao
senti-lo mover seu quadril e enterrar seu pau entre minhas pernas, me usando como fricção.
Meus braços forçam minhas restrições novamente, me fazendo grunhir ao perceber que não
consigo me soltar.
— Nunca alguém me defendeu assim. E, foda-se, eu achei quente pra caralho, Killian.
Abro minha boca, soltando um grito mudo quando a boca dele se fecha ao redor do meu
pau. Quente, calor úmido deslizando até a base e voltando. Seus lábios esticados ao meu redor,
me engolindo até o fundo como um maldito profissional.
Isso me irrita, ao mesmo tempo que me excita.
Porque, para Kraisee conseguir bater meu pau no fundo da sua garganta sem engasgar, ele
deve ter treinado bastante. Com o pau de outras pessoas.
Ergo meu quadril, fodendo sua boca com raiva. Seu gemido vibra ao meu redor, suas
mãos segurando minhas coxas enquanto seu quadril balança entre minhas pernas. Meu Reverse
Prince Albert arranha o fundo da sua garganta cada vez que me engole, lágrimas escorrendo por
suas bochechas quando pressiono meu quadril para cima e ele me mantém lá dentro até quase
engasgar. Estou prestes a esvaziar em sua boca quando ele me solta e se afasta.
— Volte já aqui!
Kraisee sorri, limpando o fio de baba do seu queixo e pega o lubrificante de cima da
cama.
— Já que você parece ter as mãos muito ocupadas, eu vou ter que me preparar sozinho.
— Kraisee, não ouse — falo, meus olhos seguindo suas mãos abrindo o frasco e deixando
uma boa quantia do líquido pegajoso escorrer para sua palma.
— Observe, sr. Hunter.
Com um joelho de cada lado da minha barriga, vejo sua mão banhada em lubrificante
desaparecer por trás. Sua boca se abre, seus olhos se fechando e sua cabeça tombando para trás.
Sua outra mão segura seu pau, masturbando-se devagar enquanto penetra seus dedos em seu
buraco guloso.
— Kraisee, seja um bom menino e me solte — falo entredentes cerrados.
— Três... três dedos são suficientes?
Meu rosnado ecoa pelas paredes do quarto, se tornando um gemido quando Kraisee
desenrola a camisinha em mim. Observo, impotente, sua bunda se abaixar no meu pau e me
engolir de forma lenta e torturante. Levanto meu quadril, impaciente, atingindo o fundo de uma
só vez e sorrindo para o prazer e dor misturados em seu rosto corado.
Não dou a ele tempo para se acostumar. Levanto meu quadril, batendo contra sua bunda
repetidas vezes. Seu corpo oscila, suas mãos caindo sobre meu peito e apertando os piercings nos
meus mamilos.
— Sim! Por favor, sim!
— Me desamarre, porra!
Com um gemido curto, Kraisee estica suas mãos e desata o cinto dos meus pulsos, sua
boca batendo sobre a minha com urgência. Sento, minha mão envolvendo seu pescoço em um
aperto enquanto guio seu quadril com a outra mão, fazendo ele me cavalgar.
Chupo sua língua, lambendo sua boca e mordendo seu lábio inferior até machucar. Seu
grito me instiga a fazer pior. Eu quero maltratá-lo até que ele implore para parar. Quero dobrar
seu corpo e bater contra ele, fundir nosso corpo em um só. Quero que ele ande na manhã
seguinte e lembre onde meu pau esteve.
Giro sobre a cama e o mantenho abaixo de mim. Suas pernas se enrolam na minha cintura,
me usando de alavanca para se foder no meu pau. A boca de Kraisee se abre, seu pescoço
arqueado. Me curvo sobre ele e estico minha língua e passo pelo contorno do seu peito magro até
a curva perto da axila. Sinto seu corpo estremecer abaixo do meu, sua respiração ofegante se
mesclando ao som de tapas de pele. Mordo seu peito, arrancando um grito surpreso de sua
garganta, que se torna um gemido baixo quando chupo o lugar machucado.
— Killian... Por favor...
Seus dedos se enroscam no meu cabelo, puxando forte e pinicando meu couro cabeludo e
lágrimas de dor se encherem em meus olhos. Seus olhos se fecham, me fazendo grunhir com
irritação.
— Olhe para mim! — exclamo, segurando seus pulsos acima de sua cabeça. Seus olhos se
abrem, focando nos meus. — Não ouse tirar os olhos de mim enquanto te fodo, Advogado. Você
vai gozar no meu pau e eu quero ver esses doces olhos de chocolate derreterem.
— Sim, por favor, faça isso — choraminga.
Empurro suas pernas para cima, dobrando-o, e passo a bater com força meu pau dentro do
seu rabo. Seu buraco me engolindo com vontade, me sugando e apertando. Inclino seu quadril
para cima, arrancando um grito de Kraisee. Sorrio de forma perversa, sabendo que achei seu
ponto. Passo a bater ali, uma e outra vez, arrancando todo tipo de som da sua garganta.
Não demora muito. Os olhos de Kraisee estão arregalados quando seu pau atira sua porra
contra seu peito e queixo, seu buraco me estrangulando com seu orgasmo. Saio de dentro da sua
bunda quente, apenas para colocá-lo de bruços e me enterrar dentro dele outra vez. Agarro seus
cabelos e o puxo para cima apenas o suficiente para conseguir segurar sua garganta. Dobro seu
braço sem o machucado para trás e empurro sua cintura para baixo, forçando-o a empinar para
mim.
— K-Killian... Oh, deuses...
— Os deuses estão ocupados. Eu posso te ajudar no lugar deles? — pergunto, mordendo
sua orelha.
Bato contra ele, sufocando-o e fazendo mais lágrimas escorrerem por suas bochechas. Um
som estrangulado sai de sua garganta e o solto, sua respiração vinda em longos ofegos quando o
sinto estremecer e seu pau espasmar ao tentar voltar à vida, soltando um pouco mais de porra.
Deito seu corpo de lado e empurro sua coxa para cima ao tirar a camisinha, me
masturbando contra sua coxa e gozando sobre sua pele. As ondas do meu orgasmo batem contra
minha pele, deixando meus ouvidos zunindo e meu coração acelerado. Apoio minha bochecha
contra o joelho dele, olhando para seu rosto contendo um sorriso satisfeito, as marcas vermelhas
dos meus dedos em sua garganta, minhas mordidas em seu peito pintado com sua própria porra.
Mais bonito que muito quadro de galeria.
Olhe para ele. Eu morreria por ele. Mataria por ele. E ambos seriam um prazer[37].
— Venha cá. — Kraisee estende os braços, me convidando.
Rastejo sobre seu corpo, deixando beijos por sua pele até chegar em sua boca e beijá-lo de
modo lento, adorando cada segundo. Meu belo brinquedo vai ser quebrado quantas vezes eu
quiser, e vai me implorar para fazer de novo.
Porque é assim que nós somos.
Como dois discos quebrados que, quando tocados juntos, se complementam. Cheios de
desejo venenoso no sangue, almas sombrias dançando sobre o caos. Eu vi os demônios de
Kraisee antes mesmo que ele os visse. Ou, talvez, os aceitasse. E, agora, essa pequena raposa de
alma corrupta é totalmente minha. Preenchendo o vazio que tanto ansiava por ocupar.
“I was made for loving you, baby
You were made for loving me
And I can't get enough of you, baby
Can you get enough of me?”.
(I Was Made For Lovin’ You, Kiss)
A manhã parece calma depois da turbulência que foi a noite. Viro devagar na cama,
sentindo meu corpo dolorido em todos os lugares, principalmente minha bunda. Sorrio, olhando
para o homem responsável pelo meu corpo maltratado.
Killian dorme pacificamente e sequer parece perceber que Princesa está enrolada
confortavelmente sobre o travesseiro, pouco acima de sua cabeça. O homem sequer parece um
assassino quando tem seus olhos fechados e rosto relaxado. Passos a ponta dos dedos sobre suas
sobrancelhas e então seu nariz, franzindo os lábios para não rir ao vê-lo mexer a ponta e
resmungar.
A luz do sol entra pela janela aberta, deixando um brilho dourado suave sobre os tons
escuros que decoram o quarto de Killian. E esquenta um pouco, já que, aparentemente,
esquecemos de ligar o aquecedor antes de desmaiarmos. Pelo menos nos lembramos de limpar
nossas feridas, lambendo os machucados como dois cães vadios. Killian me ajudou com meu
curativo sangrando e eu lidei com suas juntas machucadas depois que ele amassou o rosto de
Max na boate.
Aquelas sombras que eu tinha tanto medo são apenas uma fumaça agora. Se misturando à
minha alma. Parei de lutar contra meus demônios interiores. Estamos do mesmo lado agora.
Eu tentei não me envolver. Os deuses sabem o quanto tentei. Killian Hunter tem tatuado
em sua testa a palavra “problema” e eu sabia, assim que coloquei meus olhos nele, como tudo
mudaria se ele me tocasse. Inteligente como o diabo e duas vezes mais bonito, de palavras e
lábios sedutores, me puxando de volta sempre que tento sair.
É um ciclo vicioso e percebo que, mesmo não conseguindo respirar, eu não quero
realmente me libertar.
— Pare de me olhar dormindo — Killian resmunga, abrindo um olho sonolento para mim.
— É estranho.
Seu corpo grande vira por baixo da coberta grossa, fazendo Princesa resmungar do seu
lugar. As pernas grossas de Killian me puxam para mais perto e seus braços se enrolam ao meu
redor. Como uma gaiola de músculos quentes e tatuados.
Sua mão desliza sobre meu quadril, seu polegar se afundando na pequena cicatriz que
tenho ali.
— Quando vai me contar onde fez isso?
Suspiro, deitando minha bochecha no travesseiro.
— Eu tinha doze anos. Não fazia muito tempo que estava na casa Warden e Max já havia
demonstrado como me odiava por estar ali. Toda a atenção que Caitlin e Ray me davam,
deixando-o de lado. — Fecho os olhos quando o mesmo sentimento retorna para mim:
desamparo. Então, raiva. — Era inverno. Eu estava encarregado de montar a árvore para o Natal
e colocar os enfeites na lareira, já que no ano anterior eu havia feito e Caitlin tinha adorado.
— Você não a chama de mãe?
Pisco para sua pergunta simples, me dando conta de que foram raras as vezes que me
referi a ela dessa forma. Nego suavemente, voltando para a história.
— Eu estava sozinho em casa, colocando as bolas coloridas na árvore alta que Ray havia
comprado. O cheiro de pinho impregnava a enorme sala. Coloquei a estrela no topo quando vi
Max parado perto da caixa com as meias coloridas e com nossos nomes gravados nelas. A minha
era verde com uma rena fofa. — Franzo as sobrancelhas, lembrando como Max me olhava
naquela época. Como tudo indicava o que ele estava prestes a fazer, de forma calculada, e eu não
consegui ver. — Eu desci da escada, empolgado. Max segurava minha meia e me olhou de modo
vazio segundos antes de atirar dentro da lareira.
O polegar de Killian continua acariciando minha cicatriz, me fazendo segurar a vontade
de chorar. Sua atenção total sobre mim, me ouvindo pacientemente. Fungo, de qualquer forma, e
inspiro profundamente antes de continuar:
— Eu gritei e tentei pegá-la de volta, mas ele me empurrou para longe. Max sempre foi
maior. — Encolho os ombros, impotente. — Eu vi quando ele pegou o atiçado e enfiou a meia
mais fundo entre as madeiras, queimando-a por completo. Levantei chorando e corri naquela
direção, talvez com a esperança de salvar alguma parte. Foi quando Max virou e... o atiçador
entrou em mim.
Os olhos de Killian se tornam gelados e sérios, sua mão apertando meu quadril com força.
— É por isso que você disse que foi um “acidente”?
— Foi o que Max contou quando nossos pais chegaram no hospital. A empregada ouviu
meu grito e veio correndo, encontrando Max jogando o atiçador de lado e apontando para mim
no chão. Ele disse que eu caí sobre ele quando tentava salvar a meia do fogo. Eu... tropecei no
tapete. — Engulo com dificuldade. — Acreditei nisso por muitos anos.
— Eu deveria ter matado ele quando tive a chance — resmunga.
— Não tire essa oportunidade de mim. Vou fazer isso em algum momento, mas não
agora. — Sorrio, tentando aliviar a tensão.
Afundo meu nariz no oco da sua garganta, precisando sentir seu cheiro e seu calor para
me lembrar de que Max não pode me fazer mal algum agora. Pisco para afastar minhas lágrimas
e olho diretamente para a flor tribal desenhada no pescoço de Killian.
— Qual foi a primeira tatuagem que você fez?
Inclino a cabeça para trás para conseguir olhar em seus olhos. Eles parecem ainda mais
azuis nesta manhã. Claros como a geleira fria derretendo na primavera.
— Acho... que foi o rouxinol. — Seu dedo bate suavemente sobre uma tatuagem de traços
mais grossos e quase apagada sobre seu bíceps.
— Por quê?
— Eu queria ser livre — murmura.
Seus dedos passeiam pelo meu braço em uma lenta carícia. Brinco com o piercing de
metal em seu mamilo, olhando diretamente para os olhos furiosos do dragão. Passo o polegar
pela crista escura, descendo pelo contorno do pescoço até perto da clavícula.
— Por que tantas? E por que não há coloridas?
Killian esfrega o olho esquerdo com o polegar.
— Você está tentando ter uma conversa de travesseiro comigo?
Bufo, puxando o piercing em seu peito e o fazendo grunhir.
— Pelo que me lembro, você me disse um dia que para ser uma “conversa de travesseiro”
minha bunda deveria estar doendo. E ela está. Assim sendo, responda minha pergunta, Honey
Beard.
Killian me observa por longos segundos e penso que ele não vai me responder, quando
exala pesadamente e vira de costas na cama.
— Houve um tempo na minha vida que nada parecia amenizar a dor que eu sentia.
Comecei me tatuando e percebi que o zumbido da máquina mantinha meus pensamentos quietos.
— Ele olha para o teto, seu rosto liso de qualquer sentimento. — Passei a fazer tatuagens
grandes. Quanto mais tempo com a agulha no corpo, menos eu me preocupava com o resto. Só
que cheguei em um ponto que não era mais suficiente também.
— Algumas das suas cicatrizes são... de corte?
— A maior parte delas. — Killian sorri de lado, me olhando. — Mas não do que você
imagina. A única vez que tentei me matar foi ingerindo altas doses de cocaína com bebida
alcóolica. Não deu certo, como pode ver. — Ele acena para seu corpo, indicando estar vivo.
Soco seu peito, irritado.
— Não brinque com isso, Killian.
Ele segura meu punho, pousando-o sobre seu peito. Abro a mão, minha palma
descansando sobre seu coração batendo controlado.
— Mikhail me salvou, como sempre, e me fez prometer que nunca mais faria algo
parecido. E nós não quebramos nossas promessas. — Killian expira, esfregando a bochecha. —
Mantenho meu telefone ligado quando não estou no trabalho e Mikhail me verifica. Se eu não o
atendo, ele tem a chave da minha casa e pode entrar a qualquer momento.
— Então, é esse acordo que ele disse aquele dia?
Killian assente brevemente.
— Mik costuma dizer que se Mason não nos matou quando menores, não seria agora que
a morte me levaria. Muito cabeça dura para morrer tão fácil assim.
— Quem é Mason?
E essa parece ser a pergunta errada a se fazer. Killian se desenrosca de mim, erguendo seu
corpo e encostando na cabeceira. Princesa resmunga, saltando sobre minha cabeça e indo para os
pés da cama. Me ergo sobre o braço, apoiando o cotovelo na cama.
Parecendo perdido em sua própria mente, Killian se assusta quando apoio minha mão
sobre sua coxa. Seus olhos frios se conectam com os meus, parecendo apreensivo. Eu dou tempo
a ele. Uma das minhas qualidades é ser paciente.
Esfrego o polegar contra sua pele, vendo seus ombros relaxarem devagar. Ele passa a mão
pelo cabelo, empurrando as mechas loiras para longe do seu rosto, segurando a nuca ao expirar
pesadamente.
— Mason Schulz. Um filho da puta sanguinário, sem nenhum tipo de sentimento. Ele era
o Executor dos D’Angeles antes de mim.
Arqueio as sobrancelhas.
— Sério?
— Tão sério quanto um ataque cardíaco. — Killian franze as sobrancelhas. — Ele é o
responsável por mais da metade das minhas cicatrizes. E das cicatrizes que Mikhail esconde
também.
— Ele.. torturava vocês? — sussurro a pergunta.
Killian solta uma risada nasalada e sem humor algum.
— Tortura é uma palavra que não chega perto do significado do que Mason realmente
fazia comigo e com Mikhail, Kraisee.
Deslizo meu polegar em uma cicatriz dentada na lateral de sua coxa, escondida pela
tatuagem escura. Então meu indicador encontra um pequeno furo de bala mais perto do joelho. O
homem é como um mapa de feridas cicatrizadas a olho nu, mas abertas e sangrando em seu
interior.
Agarro seu joelho e aperto, fazendo seus olhos caírem sobre os meus.
— Diga-me que ele sofreu ao morrer. Diga-me que foi você quem o matou.
Seu sorriso de lado surge, sua mão acariciando minha bochecha.
— Deixei essa honra para meu irmão. Mikhail sofreu duas vezes mais do que eu, sempre
se colocando no meu lugar para receber as surras de “aprendizado”. — Seus olhos se tornam
mortos, mergulhando dentro de suas lembranças hostis e confusas. Aperto seu joelho novamente,
trazendo-o de volta para mim. Ele suspira, recostando a cabeça na cabeceira e me olhando de
cima. — Mason tinha o costume de enforcar Mikhail com uma linha de pesca, apenas por
diversão.
— Deuses malditos — sopro, horror deslizando pela minha pele.
— Enquanto ele fazia isso, me mantinha preso dentro de uma caixa de madeira. Eu ficava
por horas lá dentro, curvado sobre meus joelhos já que a caixa era muito pequena para meu
tamanho. — Seus olhos caem para minha mão acariciando sua coxa novamente. — Não havia
abertura além das fissuras da própria madeira ligada uma na outra. Não havia ar suficiente. Era
como um caixão quadrado jogado no canto da casa velha que Mason usava para nos “treinar”.
Ele — Killian engasga, sua voz sumindo por um momento antes de pigarrear. — Ele sequer me
soltava para fazer minhas necessidades.
— Killian...
Sua cabeça sacode com brusquidão, seu maxilar rangendo e os punhos fechados sobre
suas coxas.
— Não estou contando isso para você para que sinta pena de mim.
— Eu não...
Seus olhos se conectam com os meus, me calando. Sua mão segura minhas bochechas,
apertando e inclinando meu rosto para cima. É como se Hunter estivesse tomando o controle
novamente, quando Killian se tornou tão vulnerável e aberto aos meus olhos.
— Entenda, Advogado, o que você pensa sobre mim não vai mudar quem eu sou, mas
pode mudar o meu conceito sobre você[38]. E sentir pena da minha história me faz pensar em você
como um idiota medíocre.
Seguro seu punho, fazendo seu aperto em minhas bochechas diminuir.
— Não sinto pena de você, Killian. Sinto raiva pela criança que sofreu e empático pela
dor e solidão que passou. — Beijo sua palma sem tirar meus olhos dos seus. — Seu passado
moldou o homem que é hoje. E, se não fosse assim, eu não estaria aqui, implorando para receber
migalhas de conhecimento sobre quem é o verdadeiro homem por trás da fachada de Executor.
Sobre cada cicatriz em seu corpo e sua história. Ao contrário de você, que pesquisa com outras
fontes as informações sobre minha vida, eu pergunto diretamente quando quero saber algo.
Suas sobrancelhas se franzem, sua mão descendo para meu pescoço e acariciando as
marcas deixadas ontem à noite.
— Culpado pela acusação — murmura. — Você possui alguns argumentos válidos,
Advogado.
— O que posso fazer? É a minha profissão. — Encolho um ombro.
Seu polegar acaricia meu maxilar, subindo para meu lábio e puxando para baixo.
— Não sou bom em compartilhar coisas sobre mim, Kraisee. Tudo o que eu sou, tudo o
que já fiz em todos esses anos... Não é nem um pouco bonito.
— E eu sei disso. Nunca fantasiei sobre você ser algo que não é. — Levanto, sentando
sobre seu colo e enrolando meus dedos em seus cabelos. — Nunca esperei que fosse diferente e
nem quero que seja. Não espero sua redenção.
— Posso ter tido uma infância ruim, posso ter passado por coisas que me quebraram, mas
nada disso muda o fato de que eu gosto de cada segundo da vida que tenho hoje. — Killian
desliza suas mãos calejadas por minhas costas, segurando minha bunda. — De sentir prazer com
dor alheia. Eu sou um bastardo sádico que nem mesmo o diabo quis no inferno. Ele pensou que
ter a mim lá seria muita competição.
Isso me faz soltar uma risada sincera. Aproximo meu rosto do seu, puxando seu cabelo
com mais força e o fazendo grunhir.
— Você é um idiota arrogante, Killian Hunter. — Lambo sua boca, mordendo seu lábio
até fazê-lo rosnar. — Então conte-me todas as coisas terríveis que você já fez e deixe-me amar
você de qualquer maneira.
Suas narinas abrem ao inspirar profundamente.
— Acho que é muito cedo para a palavra com “a”, Advogado — sua voz sai rouca.
— Você acha? — Balanço meu quadril contra o dele, nossos paus roçando e me fazendo
gemer baixinho. — Eu não preciso que me ame de volta. Só quero alguém que incendeie o
mundo por mim, sr. Hunter. Você pode fazer isso?
Suas mãos seguram minha cintura, nos deitando sobre a cama, seu corpo grande sobre o
meu e a coberta enrolada em nossas pernas.
— Porra, me dê o fósforo e a gasolina, Advogado. Depois deite na cama para que eu
possa te dar prazer enquanto o mundo se torna apenas cinzas.
— Posso me contentar com isso. É suficiente para mim.
— É tudo o que eu posso te dar. — Killian rosna, seu quadril indo e vindo contra o meu,
esfregando seu piercing no meu pau da base até a ponta. — Minha lealdade, minha obsessão,
minha completa devoção ao seu corpo e meu espírito vingativo. Eu vou morrer por você se me
pedir, Kraisee. Posso te dar tudo isso, mas não posso prometer amor.
Enrolo minhas pernas ao seu redor, segurando seu rosto entre minhas mãos.
— Droga, isso é ainda melhor.
Eu o beijo, sabendo que eu faria tudo isso por ele também. Quando um monstro não é um
monstro? Ah, quando você ama.
*
Ajeito a lapela do meu terno ao sair do carro, estremecendo com o vento gelado passando
pelo meu corset telado. Optei por não colocar uma camisa por baixo e o tecido marrom
transparente deixa todo meu torso à vista, coberto parcialmente pelo terno preto.
Minha calça, também marrom, é de couro. Killian demonstrou um grande interesse por
esse material na noite de ontem e antes de sairmos de casa esse final de tarde. Falando no diabo,
meu acompanhante dá a volta na Silverado, puxando a gola de sua camisa de botões preta por
baixo do terno ajustado. Sua calça social abraça suas coxas e os sapatos brilham no pôr-do-sol.
Killian parece muito perigoso e quente com essa roupa.
Seus olhos voltam para meu torso e então abaixam devagar antes de voltar para cima e,
então, meu rosto. Suas pupilas estão enormes quando sua mão envolve minha nuca e me puxa até
minha frente estar colada contra a sua, dos joelhos até o peito.
— Você é uma provocação deliciosa, Advogado.
— Você faz os elogios mais bonitos, sr. Hunter.
Ele grunhe.
— Não fique agindo assim ou vou ser obrigado a te jogar dentro do carro e voltar para
casa. Só para rasgar essa sua roupa e te foder até você me implorar para parar.
— Deuses, que coisa horrível de se prometer! — Sorrio, brincando com o botão da sua
camisa. — Por favor, continue.
Seus olhos azuis queimam com desejo malicioso, porém, sua mão desce até a base da
minha espinha e me empurra suavemente para dentro da pequena capela.
— Espere essa porra de casamento acabar e você verá, lisichka — retruca baixinho.
Olho ao redor, franzindo as sobrancelhas ao ver os poucos bancos ocupados
aleatoriamente. Reconheço Kiam no banco da frente com um homem ao seu lado, suas cabeças
baixas como se conversassem baixinho. Perto do altar, vejo Mikhail e sua carranca habitual,
Nevan está do outro lado jogando olhares casuais na direção do homem sombrio. Um homem
mais velho de cabelos grisalhos e pele negra retinta está logo atrás dele, com o queixo erguido ao
ajeitar a gravata borboleta.
— Quando você disse sobre uma capela, achei que estava zoando com a minha cara. Pops
vai se casar em uma igreja? Realmente? — pergunto, sentando no terceiro banco e Killian me
seguindo.
Seu braço passa pelos meus ombros, apoiado no encosto do banco quando sua boca
murmura no meu ouvido:
— Somos uma organização que gosta de manter os bons costumes.
Arqueio as sobrancelhas, olhando-o ceticamente.
— Claro que são.
A risada de Killian é rouca e baixa, dedilhando sobre meus nervos.
— Pops deve estar pouco se fodendo para esse casamento. Certeza que é o pai imbecil do
Mitchell exigindo essa patifaria.
— Homem religioso?
Killian lança um olhar na direção de Nevan e do homem mais velho, depois para seu
irmão com as mãos cruzadas nas costas.
— Fanático — resmunga.
Ele não precisa me dizer nada além disso para que eu entenda. O pai de Nevan é um
grande homofóbico. As portas da frente se abrem e um homem negro de terno cinza chumbo
entra acompanhado de uma mulher mais velha. Ambos estão sérios, caminhando pelo corredor
curto com passos firmes. Ela beija sua testa ao chegar no altar, ficando ao lado do homem mais
velho logo atrás de Nevan.
— Antenor Mitchell carrega o nome da família há muito tempo e ter nossa organização
em uma aliança é muito benéfico — Killian sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo que a
marcha nupcial começa.
As portas se abrem, mais uma vez, e Pops está de costas, falando baixo com uma mulher
de rosto sério, lábios franzidos. Seus olhos vasculham o interior da capela enquanto Pops balança
suavemente a cabeça. Ouço Killian ao meu lado sugar a respiração, enquanto Kiam xinga no
banco da frente.
Todos, de repente, parecem muito tensos.
— O que está acontecendo? — pergunto, sem tirar meus olhos da Pops ajeitando o
vestido.
— Reese Knight. É isso que está acontecendo — Killian murmura.
Ele levanta, indo para o altar e falando baixinho com Mikhail. Os sussurros dentro da
capela cessam quando a Pops vira e entra no corredor, carregando um pequeno buquê de flores
brancas. Ela realmente não parece dar a mínima pelo casamento, já que seu vestido é um
escândalo vermelho com uma fenda na perna que quase encontra com seu decote.
Acompanho com o olhar até Pops chegar no altar, dando a mão para seu futuro marido. A
cerimônia começa e Hunter está sentado ao meu lado de novo, seus ombros tensos e olhos sérios
indo a todo momento para as portas fechadas.
— Killian, o que está havendo? — sussurro.
— Aquela mulher é a Superintendente da TPS[39].
— O quê? — minha exclamação sai engasgada.
Olho para o rosto sério de Killian, sua língua passando pelos dentes superiores pouco
antes de pegar sua faca e passar a abri-la e fechá-la. Seu pé salta no chão de forma rítmica, e
acabo colocando a palma sobre seu joelho para tentar acalmá-lo.
Eu não sei o que está acontecendo aqui, mas a presença daquela mulher parece ter
desestruturado cada um presente no lugar. O ar brincalhão de Killian se foi deixando Hunter no
lugar e toda sua concentração predatória.
As alianças são trocadas e logo estão assinando o livro. O padre diz o famoso “são marido
e mulher, agora pode beijar a noiva” ao mesmo tempo em que o som de tiros soa do lado de fora.
Uma janela estoura, alguém grita. A mão de Killian se enrola ao redor do meu pulso, suas
palavras concretizando o que acontece ao redor:
— Estamos sendo atacados!
“I'm the baddest mother up in here
And I'm about to make it clear
It's going down like I told ya
I'm the baddest mother up in here”.
(Dangerous, Royal Deluxe)
Em todo caos precisa existir cálculo.
Os tiros soam do lado de fora, minha mão segurando o pulso de Kraisee de forma
instintiva. Eu o puxo comigo para o chão, a capela sendo ridiculamente minúscula e sem lugares
para se esconder além dos bancos vazados e duas salas nos fundos. Quando Mikhail me deu a
localização do lugar, tentei estudar sobre possíveis rotas de fuga.
Não encontrei muitas.
— Onde está a arma que te dei essa manhã?
Kraisee leva sua mão até as costas, trazendo com ele a pistola 9mm. Ele a segura com
eficiência, verificando se as balas estão no pente e então a carrega, seu dedo pairando no gatilho
ao manter a atenção. Toda essa ação conseguiu me deixar duro pra caralho. Kraisee manuseando
uma arma só não é mais quente do que com uma faca.
Estalo o pescoço ao pegar a pistola e fazendo a verificação, quando Mikhail cai sobre um
joelho ao meu lado. A porta da frente se abre com força quando um dos nossos homens é jogado
por ela. Os tiros ficam mais altos, as pessoas dentro da capela se esgueirando pelo chão para
escapar das balas errantes.
A risada baixa ao meu lado arrepia minha espinha e ranjo os dentes ao sentir o cano da
arma ser empurrado na minha cabeça.
— Não tenho tempo pra essa merda, War — rosno.
— Saudades, Rapunzel? — War se ergue, acertando dois tiros em um dos homens que
entra pela porta quebrada. Ele agacha outra vez, olhando na direção de Kraisee e assobiando. —
Seu belo gato de olho puxado sabe mesmo empunhar uma arma.
Empurro-o para sair do caminho e agarro a parte de trás do terno de Kraisee e o puxo
comigo para a lateral do banco. Levanto, chutando o banco deitado para o assento formar uma
barreira mais segura. Kraisee resmunga, erguendo o braço e atirando algumas vezes quando mais
homens surgem pela porta.
Enfio a mão no bolso para verificar se minha faca está ali, sentindo as outras amarradas
em minhas pernas. Há gritos de comando do lado de fora, assim como aqui entro. Nevan se
arrasta pelo corredor como se fosse um militar em campo de guerra.
E talvez estejamos em um realmente.
— Seu irmão está estranho — Kraisee resmunga, batendo suas costas no banco e olhando
para mim. — Explicação?
— Mikhail tem TDI. Existe uma segunda personalidade desenvolvida e ele não é o
mesmo agora. — Olho a tempo de ver War enfiando a mão no bolso do terno e tirando uma
granada de lá. Sério isso? — Pizdúí! Não acredito que meu irmão carrega essas merdas com ele!
— Orlov é um homem prevenido. — War pisca, puxando o pino da granada com os
dentes e atirando a peça pequena pela porta.
— Caralho! — Ouço Kiam exclamar pouco antes da granada explodir do lado de fora.
Um carro tem o alarme acionado, o som de fogo crepitando chegando até nós enquanto
War ri como um lunático. Ele beija as pontas dos dedos e os ergue no ar.
— Magnifique.
Grunho, pegando Kraisee pelo braço e indicando os fundos com o queixo.
— Preciso que você saia por trás e fique seguro.
— Pensei que já havíamos tido essa conversa sobre eu não deixar você sozinho? —
Kraisee diz com ênfase.
— Lembro. E você tem a merda de um curativo no seu braço pela teimosia. — Aponto.
— Tão fofo os dois pombinhos brigando. — War pega um dos arranjos do corredor e atira
contra o homem na porta. — É por isso que não me apaixono. Não posso ter essas fraquezas.
Bufo, pegando uma das facas na canela e atirando no homem esgueirando na janela
lateral.
— Você não se apaixona porque não tem coração, seu psicopata do caralho.
— Você está me elogiando, Rapunzel? — War ri, se escondendo atrás de outro banco.
— Estamos cercados, porra, e vocês estão discutindo sobre relacionamentos? — Nevan
retruca do seu lugar mais à frente, atirando.
— Somos uma família peculiar — falo, dando de ombros. Viro pra Kraisee, vendo suor
escorrendo por sua têmpora. — Eu tenho suas costas, Advogado. Você tem as minhas?
Ele assente prontamente.
— Vamos acabar com essa merda, então. E a chefe? — pergunto a War.
— Segura!
Os filhos da puta continuam surgindo pela porta como malditas pragas. Onde estão nossos
homens e os do Mitchell? Todos foram mortos do lado de fora? Nós seguimos atirando,
recarregando nossos pentes a cada rodada e migrando para os fundos da capela.
— Há uma rota de fuga nos fundos?
— Uma porta que dá para o jardim! — Nevan atinge um homem no nariz e atira em outro.
Empurro Kraisee na direção do altar e para a porta. Um tiro rasga minha coxa e outro
atinge a parede atrás da minha cabeça. Vejo o exato momento em que uma bomba de fumaça cai
no corredor, nublando minha visão rapidamente. Pego War pela gola e aponto para Kraisee.
— Mantenha ele seguro. Eu vou atrasá-los.
— Quer bancar o herói, Rapunzel? — War sorri, pegando Kraisee pela cintura e o
jogando sobre o ombro.
— O quê? Não! Killian, não! — Kraisee exclama enquanto War o carrega para os fundos.
A voz de Kraisee soa mais distante e continuo atirando cegamente até que não me resta
mais balas. Parto para usar os punhos e minha faca. Eu a pego do bolso, girando pelo caminho e
atingindo quem encontro pela frente. Sangue respinga no meu rosto e roupa, meu corpo pulsando
adrenalina e me fazendo caminhar pelo corredor estreito. Nevan surge entre os bancos e a névoa,
sangue escorrendo da sua têmpora.
Deixo um rastro de corpos atrás de mim, meu peito ofegante enquanto ouço Kraisee
continuar me chamando, mais distante agora. Limpo sangue da bochecha com as costas da mão,
pronto para correr para os fundos e sumir daqui, apenas para sentir algo duro chocando contra
minha nuca.
Meus olhos reviram e eu apago.
*
O pulsar latejante em minha nuca é a primeira coisa que sinto quando desperto. A dor
rasteja pelo meu pescoço, ecoando dentro da minha cabeça como se fosse um tambor. Com os
olhos fechados, analiso minha situação.
Pulsos e pés amarrados, meu corpo preso a esta cadeira desconfortável. Não há venda nos
meus olhos, mas há uma mordaça. Minha barriga dói, o que me diz que fui chutado enquanto
estava desacordado. Minha coxa arde pelo tiro mais cedo e me sinto levemente zonzo. Talvez
pela pancada na nuca ou pela perda de sangue. Ou ambos.
Meus ouvidos captam o som de passos pesados e uma discussão. Mantenho meus olhos
fechados e inertes, minha respiração estabilizada. A voz de Mason – mesmo que eu não queira –
acaba soando em minha mente, me dizendo para acalmar o coração e respirar. Relaxar os
membros.
Ou você finge direito, ou sua morte será real.
Assim, mantenho minha cabeça mole, tombada com o queixo no peito. Os passos se
aproximam, ecoando pelo ambiente. Estou dentro de um galpão? Ou seria uma garagem?
— Então? Conseguiram matar aquela vadia?
A voz envia um alerta vermelho pro meu cérebro, porém, mantenho-me quieto. Mesmo
sem abrir os olhos, reconheço a voz de Ray Warden.
— A Pops escapou, Conquistador, mas pegamos alguns capangas dela e do Mitchell. — A
voz de Argo me faz querer trincar os dentes com raiva.
— Esse aqui?
— O infame Executor dos D’Angeles — Argo diz com certo asco nas palavras. — Eles o
chamam de Hunter.
— Então, esse patife é o tal do Hunter? — Sinto seu corpo se aproximar e se inclinar
sobre mim. — Não parece grande coisa. Tem certeza de que é ele? Afinal, meu filho parecia bem
estragado quando o encontrei no hospital.
— Certeza absoluta. — Sinto Argo dar a volta na minha cadeira e segurar o encosto. —
Esse vagabundo arrogante sempre está presente nas trocas de mercadoria. Fiquei sabendo que ele
estava dormindo com seu filho mais novo.
— Kraisee não é meu filho — cospe. — Aquele moleque inútil. Eu sabia que ele seria
fraco como o pai dele. Devia ter matado a criança junto e evitar essa dor de cabeça e tudo o que
já gastei com a educação dele.
As peças começam a se encaixar e eu quase rio da ironia do destino. Por isso Baumer
nunca encontrou o nome de Kraisee em nenhuma casa de adoção. Porque ele nunca esteve em
uma. E o Conquistador, o homem que tem estado estragando a porra do nosso negócio há meses,
é ninguém menos que o pai de Kraisee. E com a ajuda do traidor do Argo.
Que divertido.
O porco escroto que trata meu precioso Advogado como um pedaço de bosta na sola do
seu sapato é o homem que tem deixado a Pops tão irritada. Acho que terei um prazer maior em
matar esse filho da puta.
— Esse homem não tem utilidade para mim. Mate-o e certifique-se de que ninguém
encontre o corpo. Queime-o se for possível. E, depois, eu quero a cabeça daquela vadia em uma
bandeja de ouro e todo o território dela.
— Combinamos que trinta por cento seria meu.
Ray fica em silêncio, aquele metódico silêncio para causar desconforto no outro. Um
método que não funciona para mim. Ouço seus passos e seu corpo paira sobre o meu,
provavelmente falando muito próximo de Argo.
— Não sou um homem de quebrar acordos. Não esqueci o que combinamos. Sua parte
será entregue. Agora despeje o lixo.
Seus passos se afastam enquanto Argo reclama baixinho sobre ficar com o trabalho todo.
Sinto as mãos sobre mim, tirando a corda do meu tronco e me movendo para o chão. Meus
pulsos e pernas estão soltos, um enorme erro de principiante.
Convenhamos, Argo nunca foi inteligente.
— Pega a serra. Eu quero picar esse idiota como o pedaço de porco que ele é.
Tento contar pelos passos quantos homens devem estar ao meu redor. Talvez cinco, seis?
Ou mais? Mantenho os olhos fechados quando a mordaça é tirada e alguém chuta minhas pernas.
É fácil bater no cão quando ele está desacordado, não é? Não consigo evitar o sorriso e abro os
olhos, encontrando Argo muito ocupado olhando para seu telefone.
Realmente, um principiante.
O homem ao lado ofega ao perceber que estou acordado, mas é tarde. Apesar dos
machucados, levanto com agilidade e bato no homem mais próximo, tirando dele sua arma. Argo
ergue os olhos para mim, surpresa estampada em sua cara feia.
— Surpreso?
Uso o corpo do homem como escudo quando os tiros começam e me desfaço de três deles
com a arma emprestada. É uma grande porcaria, mas dá para o gasto.
— Inferno, Hunter! Você não pode apenas morrer?!
— E te dar esse gostinho? Nem pensar!
Descarto o corpo do homem e atiro nos outros antes de entrar atrás de uma pilastra.
Definitivamente estamos em um galpão. Talvez na cidade industrial ao norte? Apalpo meu
corpo, procurando minhas facas, e grunhindo ao não encontrar nenhuma. Ergo a perna,
resgatando uma de dentro do sapato que ninguém se atreveu a olhar.
Não é confortável, mas com o tempo você aprende a ignorar.
Me inclino, atirando as últimas balas da arma e atingindo mais dois homens. Argo se
mantém protegido, saindo apenas para atirar. E que péssima mira ele tem.
— Não tem como você sair daqui de dentro, Hunter! Há homens do lado de fora! Muitos
para apenas um homem como você!
Corro até outra pilastra, pegando duas armas pelo caminho e verifico seus pentes. Estalo o
pescoço, erguendo as armas em ambos os punhos e sorrio.
— Eu vim para esse mundo gritando, chutando e coberto de sangue. Não vejo problema
algum em sair daqui da mesma forma.
Assim, saio de trás da pilastra e atiro em todas as direções, eliminando cada homem
dentro daquele galpão. Argo solta um grito esganiçado quando atinjo sua coxa e ele cai no chão,
segurando a ferida e me olhando com fúria.
Pego a arma que ele deixou cair e engatilho, acertando sua outra perna. Ele grita, um som
tão delicioso aos meus ouvidos. Engatilho mais uma vez, acertando seu ombro. Argo respira
fundo e rápido, suor encharcando sua testa. Agacho de cócoras ao seu lado, sua própria arma
contra sua têmpora.
— Você vai morrer, desgraçado — vocifera, cuspindo na minha bochecha.
Limpo com meu punho, meu rosto pairando acima do dele.
— Todo mundo morre. É só uma questão de como e quando[40]. Você, no caso, será hoje e
com uma bala na cabeça da sua própria arma. Não parece poético?
— Desgraçado, filho da pu...
Aperto o gatilho, explodindo sua cabeça. Sangue espirra no meu rosto e frente da camisa.
Olho para o tecido preto e sorrio, lembrando de quando expliquei para Kraisee o motivo de
sempre estar de preto.
Levanto, espanando a sujeira da calça e exalo. A porta se abre, revelando mais homens
empunhando suas armas. Estalo o pescoço, puto por estar aqui e não saber se Kraisee está a
salvo.
Foda-se.
Vou matar cada um nessa porra de lugar, escalar sobre seus corpos se for preciso. Estalo o
pescoço, começando a atirar. Espero que meu Advogado não se intimide ao me ver pingando
sangue quando finalmente conseguir sair daqui.
“These chains will not hold me down
They’ll break and fall to the ground
Can't tame these lions inside”;
(Lions Inside, Valleu of Wolves)
— Não podemos deixar o Killian lá!
Luto contra as mãos de Mikhail, apenas para ele me bater contra a lataria do carro e me
olhar de modo furioso.
— Não é apenas Rapunzel que está ficando para trás, pirralho, mas também muitos dos
nossos homens. Isso é uma fodida guerra e alguns irão morrer. — Mikhail abre a porta do carro e
me joga sobre o banco traseiro. — Não consegue conviver com isso? Problema seu.
Ele bate a porta, me deixando boquiaberto. Luto contra a maçaneta, apenas para perceber
que ela está trancada e Mikhail senta atrás do volante, acelerando para longe da capela. Vejo pelo
vidro traseiro que ainda há homens atirando, correndo para seus carros e levando alguns corpos
para dentro de SUVs.
Avanço entre os bancos, caindo sentado no banco do carona e vociferando:
— Como pode fazer isso com seu próprio irmão? Killian confiava em você!
Mikhail bufa, me olhando com uma certa pitada de loucura em seu sorriso e olhos
brilhantes.
— Aquele frouxo é irmão do Mikhail, não meu. Eu quero mais é que ele se foda.
Isso é... estranho.
Então, me lembro de Killian dizendo que Mikhail possui TDI. Uma dupla personalidade?
Olho para o homem ao meu lado, dirigindo como um maldito louco pelo trânsito, seu sorriso
permanente no rosto.
Killian o chamou de War?
Não consigo decidir o que é mais assustador: a carranca sombria e pensativa de Mikhail;
ou o sorriso insano que essa personalidade tem agora.
— Você não é o Mikhail, certo?
Ele me olha, girando o volante ao mesmo tempo e entrando em uma bifurcação. Buzinas
soam atrás de nós, mas esse homem não parece nem um pouco preocupado que acabemos em um
acidente.
— Você aprende rápido, não é? Como é seu nome mesmo, Toy?
Enrugo o rosto com o apelido e cruzo os braços, olhando sobre o ombro, mesmo sabendo
que não tem mais como ver a capela.
— Kraisee.
Olho para War, vendo-o assentir.
— Veja bem, Toy, a vida na máfia é uma grande merda. Se você não é fodido quando
criança, você se fode quando adulto. — Ele encolhe os ombros, soltando uma risada baixa meio
descontrolada. — A gente acaba fodido de qualquer forma, e nem é legal.
— Que tipo de pessoa insana é você? — questiono mais para mim, como uma pergunta
reflexiva.
O carro derrapa no estacionamento de pedriscos do galpão no porto e War desliga o carro,
me olhando ao apoiar o braço sobre o volante. Suas sobrancelhas estão levantadas e seus lábios
estão curvados em um sorriso sem dentes, enrugando a cicatriz em sua bochecha.
— Eu sou o lado divertido do Mikhail. Você gostaria de me conhecer melhor?
— Nem sob tortura — murmuro.
Seus olhos cerram levemente, seu sorriso se tornando tirano. A ponta de sua língua
aparece, pressionando contra a ponta do seu canino enquanto me analisa minuciosamente.
— Não me tente, pirralho. A minha tortura seria partir você ao meio e me banhar no seu
sangue e entranhas enquanto gozo. — Seu corpo inclina na minha direção, inspirando
profundamente. — E gostar de cada maldito segundo.
Comprimo os lábios, sentindo meu corpo tremer com puro terror. Definitivamente, eu
tenho muito mais medo desse lado do Mikhail. Saio do carro sentindo meus joelhos trêmulos e
inspiro, endireitando os ombros para não deixar que War veja que me atingiu.
Cruzo os braços, seguindo-o para dentro. Um carro de luxo estaciona não muito longe,
Pops saindo pela porta traseira e pisando duro sobre os pedriscos. Não sei como ela não torceu o
pé com esse salto. O vento da noite chicoteia meu cabelo quando ela me olha e então passa o
olhar sobre meu ombro, provavelmente sobre Mikhail.
O marido da Pops sai pela outra porta e Antenor Mitchell sai do banco do passageiro
ajeitando seus cabelos e o terno. Sequer parece que acabaram de sair de um tiroteio.
— Preciso colocar você na sala de contenção, War?
Olho para Mikhail parado com o ombro encostado na parede, seu sorriso cínico para a
Pops.
— Você gostaria, não é?
Pops grunhe, olhando de volta para mim.
— Hunter?
Engulo em seco, balançando a cabeça.
— Ele me jogou para War e ficou para trás.
Pops lambe o lábio inferior, mordendo em seguida. Seus olhos parecem sérios e suas
narinas se abrem com a respiração forte. Ela nem mesmo está com um casaco nesse frio.
— E você o deixou lá com muito bom grado, estou certa, War? — sua voz reverbera pelo
lugar.
War dá de ombros, não parecendo muito interessado.
— Sempre podemos encontrar outro Executor. Eu, por exemplo, me candidato à vaga.
Pops bufa.
— A sua sorte de não ter sido enforcado ainda é porque Mikhail é muito valioso para
mim, War. Porque você sempre faz a porra de uma bagunça quando aparece!
— A senhora não parece ter muito controle sobre seus homens — O homem fala ao se
aproximar, abotoando seu terno.
— Cale a porra da sua boca, Antenor. Eu casei com seu filho e temos uma aliança, mas
isso não quer dizer que você manda em mim. — Pops afunda o polegar em seu peito. — Por aqui
as coisas não funcionam dessa maneira.
Antenor ergue as mãos na altura dos ombros, mas seu rosto não parece convencido.
Esfrego minha nuca, olhando para Pops.
— Hunter vai voltar, certo?
Seus olhos caem sobre mim.
— Eu não sei. Ainda estou tentando entender como conseguiram nos encontrar lá. Ou
temos um traidor entre nós ou estamos sendo seguidos.
— Eu voto no traidor. — War aponta para mim com o queixo.
Bufo com descrença.
— Não sou um traidor! Hunter nunca me deu a localização do lugar!
— E Nevan? Alguém o viu? — O marido da Pops, que eu preciso descobrir o nome,
questiona com urgência na voz.
— Se tivermos sorte, ele está morto — War sentencia do seu lugar.
Deuses amaldiçoados, quando Mikhail irá voltar para esse pé no saco apenas ir embora?
Mais carros se aproximam, seus faróis nos iluminando. Olho, esperançoso, que Killian
salte de algum. Espero, olhando um por um até que a última porta seja aberta, porém, não há
nenhum sinal de Killian. Esfrego minha têmpora, olhando para Nevan sendo carregado, sangue
descendo pela lateral do seu rosto de uma possível pancada na cabeça.
Sigo todos para o lado de dentro e passo a andar de um lado para o outro, roendo o canto
da unha do meu polegar. Em algum momento, War se foi, deixando um atordoado Mikhail no
lugar. Já é tarde da noite quando me canso de ficar andando em círculos.
— Chega! Estou indo procurar pelo Killian! Ele deve estar em algum lugar!
Mikhail passa a mão por seus cabelos, parecendo extremamente cansado.
— E vai procurar onde? Vai voltar para a capela e farejar como um cão?
— Bem, pelo menos vou estar fazendo algo ao invés de continuar aqui sentado!
Ele me olha, cruzando os braços.
— Você sequer se sentou nas últimas horas. Não pode reclamar que ficou parado.
— Achei!
Viro para encontrar um homem baixo correndo entre as mesas e caixas com um tablet
preto na mão. Ele derrapa ao parar perto de Mikhail e aponta para a tela.
— Aqui. Se ele ainda estiver com o celular, deve estar bem aqui.
— Do que vocês estão falando? — Me curvo sobre o ombro de Mikhail, olhando para a
tela com um mapa preto cheio de linhas verdes, vermelhas e azuis.
Um pequeno ponto branco brilha na parte oeste da cidade, perto das pistas particulares de
avião.
— Certeza, Baumer? — Mikhail, pergunta, se levantando.
— Absoluta. Se tiraram o telefone do Hunter ou não, ele está localizado ali.
— Qual o endereço?
— Perto da Kingsway. Vai ter um galpão escrito Airlines Lombton.
Tudo ao meu redor se torna mais lento. Minha mente me leva semanas atrás na minha
memória, e logo surgindo clara diante meus olhos. O mesmo nome. Lombton. Tropeço para trás,
me sentindo enjoado. A mão de Mikhail envolve meu cotovelo, me amparando de pé.
— Tudo bem?
Assinto, negando em seguida.
— Eu... Acho...
— Você deveria descansar. Se Hunter estiver nesse galpão, nós o traremos de volta. Seja
vivo ou...
Olho para o rosto sisudo de Mikhail, ele não gostando disso tanto quanto eu.
— Fique dentro do galpão até nós voltarmos, ok? Não saia daqui. — Mikhail me faz
sentar em um banco e pega seu terno da cadeira antes de sair caminhando, chamando alguns
homens com ele no caminho.
Passo a mão pelo cabelo, me sentindo perdido. Por que Hunter estaria em um galpão com
o mesmo nome do contrato do meu pai? Isso poderia ser uma grande coincidência, não é?
“É por isso que você não sabe nada de verdade sobre nós!”
“Nossa família não é convencional e você não nos conhece!”
A voz de Max ecoa na minha cabeça, martelando meu cérebro e misturando com a
informação que recebi minutos atrás. Eu não conheço a família que me adotou. Eles sempre me
mantiveram perto, mas não tão perto assim. Sempre em uma guia de distância confortável. Me
enviando para trabalhos designados e nunca me dizendo ao certo o que acontecia com quem não
pagava.
O que nós realmente exportamos?
O que Maxwell faz da vida além de treinar?
Quem é Ray Warden?
As perguntas giram na minha cabeça, me dando náuseas. Levanto, trôpego, e caminho
para fora do galpão. Olho pelo estacionamento, encontrando uma moto com a chave na ignição.
Eu não sei como se dirige uma moto, mas deve ser como um carro, correto?
Sento sobre o banco de couro e giro a chave, apertando a ignição e o motor rugindo.
Alguém grita, o som se misturando ao barulho do cascalho girando. Saio com o pneu derrapando,
meu estômago caindo e meu coração batendo na boca. Acelero, entrando na rodovia
movimentada e sigo a toda velocidade para a Mansão dos Warden.
Quando subo o caminho da entrada e contorno o chafariz, eu mal desligo a moto e baixo o
pezinho, descendo com joelhos trêmulos e dedos nervosos. Engulo com dificuldade, subindo os
degraus da escada da frente e entro pela porta, gritando:
— Ray! Ray Warden! Onde você está?! Ray Warden!
Corro pelos cômodos, a casa vazia e silenciosa. Quando chego ao segundo andar, Caitlin
sai de dentro da pequena sala de pintura com sobrancelhas arqueadas.
— Mas que escândalo todo é esse, Kraisee?
— Onde ele está? Onde aquele mentiroso está? — pergunto, ainda correndo pela casa,
procurando pelo homem que mentiu para mim a vida toda.
Desço as escadas para o primeiro andar outra vez e vejo Ray passando pela porta, seguido
por Maxwell. A cara dele parece muito estragada. Seu nariz foi colocado no lugar e está inchado
e ambos os olhos estão roxos. Seu lábio tem um corte e há escoriações pelas bochechas.
Marcas dos anéis de Hunter.
— Por que você está gritando como um louco, garoto?
— Airlines Lombton — digo sem fôlego. — O senhor comprou essa empresa?
Sua sobrancelha arqueia, cruzando os braços.
— Me foi dada como garantia. O dono não me pagou. Agora, ela é minha. — Seus olhos
duros me fitam. — Por que quer saber?
— Você... Vocês... — Aponto para ele e então para Caitlin no degrau da escada. — O que
mais vocês escondem de mim?
— Tanta coisa — Max murmura.
Ray olha para Max.
— Você disse algo a ele?
— Apenas algumas verdades. — Max dá de ombros. — O idiota nem sabe que eu
participo de lutas clandestinas! Você o manteve cego por muito tempo, pai.
— Um bom cão é aquele que obedece sem fazer perguntas, Maxwell. — Ray balança a
cabeça com desapontamento e me olha. — Garoto, nada do que você souber agora, vai mudar
seu passado.
“Se você foi adotado, por que não encontramos o nome dos seus pais adotivos? E por que
não há nada sobre você em um orfanato?”
A voz de Hunter ecoa na minha cabeça, fazendo meu estômago apertar ainda mais.
— Vocês realmente me adotaram? — me vejo perguntando.
Ray me olha, e há um leve pesar em suas íris. Um pouco de pena também.
— Infelizmente, seu pai morreu com um tiro na cabeça. Assim como sua mãe. Acho que
sua mente, traumatizada, deve ter bloqueado a lembrança. Você tinha apenas cinco anos.
Flashes perdidos embaralham minha cabeça.
Uma mulher implorando, tiros.
Meus olhos observando por entre meus cabelos.
Uma mão ensanguentada caída perto dos meus pés.
Nítido, o rosto de Ray Warden surge nas minhas lembranças. Um chapéu sobre sua
cabeça, uma arma em sua mão. Respingos de sangue em sua jaqueta.
Meu estômago revira e vomito no chão. Suor frio cobre minha testa e espinha quando
limpo minha boca com o dorso da mão, olhando para Ray e seus olhos frios e apáticos. Max tem
seu rosto torcido com nojo.
— Eu lembro... de um quarto. Uma mulher cuidando de mim. Então havia mais crianças.
Lembro do orfanato, eu...
— Eu instruí que os empregados fingissem ser um orfanato. Aqueles pirralhos piolhentos
eram filhos dos meus empregados. — Ray exala pesadamente. — Sempre um grande trabalho.
Eu deveria ter atirado em você também ao invés de ter sentido pena.
A cada palavra dita por sua boca, uma estranha calma se apodera sobre meus membros. A
arma que Killian me deu mais cedo pesa no meu cinto na parte de trás, queimando.
— Você atirou no meu pai por dívida? — pergunto amedrontado.
— Ele precisava de dinheiro, como muitos infelizes precisam quando migram para os
Estados Unidos. Seu pai mal conseguia pagar as contas trabalhando ilegalmente lavando pratos
em um restaurante de quinta. — Ray sorri. — Eu poderia ter comido sua mãe na frente dele se
isso perdoasse a dívida, e ele teria aceitado.
Fecho a mão em punho, vendo o verdadeiro Ray na minha frente. Manipulador, frio e um
monstro. Um verdadeiro monstro. Movido pela ganância e não se importando com os outros.
Olho por sobre o ombro, para a mulher que me fazia chamá-la de mãe, com seu semblante rígido.
— Caitlin sabia de tudo?
— A ideia inicial era te jogar em um buraco qualquer para alguém cuidar, mas ela insistiu
para ficarmos com você. Acho que ela sentia falta de um bicho de estimação exótico para cuidar.
— Mandar Maxwell me punir constantemente era como uma vingança por ter ficado
comigo?
— Digamos que no começo eu não me importava se Max batia em você ou não. Era como
um treino, na verdade. — Ray coça o queixo, pensando. — Ele te batia e você corria para mim,
como um adorável filhote. Você criou confiança em mim e eu decidi que isso era um ótimo
treinamento. Você estava prosperando muito bem, até encontrar aquele Executor.
Ray balança a cabeça, soando decepcionado. Bom, que ele vá para o inferno com sua
decepção e enfie no rabo. Tiro a arma do cinto e aponto para ele, pegando-o de surpresa. Acho
que Ray não esperava que seu filhote obediente apontasse uma arma para ele, correto?
— Vamos, Kraisee. Você não faria isso comigo, o homem que te criou. — Ray ergue as
mãos na altura dos ombros, sorrindo de modo apaziguador.
A porta da frente se abre e vejo Killian surgindo na soleira. Ele está coberto de sangue e
espero que nenhuma gota seja dele. Volto a olhar para Ray e sorrio.
— Eu não mataria você com um tiro, Ray. Seria muito fácil.
Engatilho a arma e viro sutilmente para o lado, meu sorriso caindo. Puxo o dedo no
gatilho, acertando Maxwell bem entre os olhos, sua cabeça indo para trás e sangue explodindo na
parede e chão quando ele cai.
E nunca me senti tão bem como agora.
“Oh, won't wave my white flag, no
This time I won't let go
I'd rather die
Than give up the fight, give up the fight”.
(White Flag, Bishop Briggs)
Uma hora antes.
Ergo o pé, chutando o filho de uma cadela. Seu corpo voa, caindo do outro lado. Outro
idiota avança sobre mim com uma faca e eu me desvencilho de seu ataque girando seu braço
para baixo e então para trás. Ele grita quando desloco seu ombro e quebro seu pulso.
A faca cai no chão e eu a pego, me sentindo mais leve ao ter uma lâmina em mãos. Meus
músculos estão doloridos e há sangue respingado por cada parte minha. Meus dedos estão
pegajosos depois de afundar os polegares nos olhos de um deles.
Balanço meu braço, meu ombro dolorido e minha coxa latejando. Cuspo saliva com
sangue depois de ter levado um soco no corredor lá atrás. Arregaço minhas mangas e estalo o
pescoço quando vejo a última porta fechada. Deve haver mais quantos homens do lado de fora?
Estou lutando assim há quanto tempo?
Seguro a maçaneta e inspiro, pedindo forças para continuar por mais um pouco até
conseguir a porra de um carro. Puxo a porta, meu punho levantado para atacar, quando dou de
cara com Mikhail. Seus olhos arregalam, dando um passo para trás.
— Kill? — sussurra.
Solto um grunhido ao sair para o lado de fora e ver o pátio vazio.
— Porra. Vocês demoraram pra caralho — resmungo. Há mais alguns dos nossos homens
por perto e dois carros parados no limite da cerca. — Onde está Kraisee?
— Eu o deixei no galpão. — Mikhail me olha e então olha para a porta aberta. — O que
aconteceu lá dentro?
— Deixei alguns corpos para trás. — Passo as costas da mão na barba. — Argo foi um
deles.
Mikhail xinga em russo.
— O que você ouviu?
Uma sombra paira sobre meu rosto quando olho para meu irmão, preocupação e irritação
tomando conta de mim.
— Muita coisa. Preciso encontrar Kraisee. Agora.
Meneio a cabeça, caminhando com pressa até um dos carros e entrando no banco do
motorista. Surpreendentemente, a tensão que sinto é bem pequena em comparação aos outros
dias. Talvez eu esteja cansado demais ou estar confinado dentro de um lugar fechado não seja tão
problemático agora.
Ligo o motor, Mikhail caindo ao meu lado e fechando a porta quando derrapo com os
pneus para sair dali.
— O que você descobriu?
— Argo fez um acordo com o Conquistador. — Pego o pano que Mikhail me entrega,
tirado de dentro do porta-luvas, e limpo meu rosto. — Eles derrubariam a Pops e tomariam todo
o território para eles. O Conquistador com a maior parte, claro, e Argo com trinta por cento.
— Inferno — Mikhail resmunga, esfregando sua boca. — Como você escapou?
Sorrio com frieza.
— Argo foi idiota e pensou que eu estava desmaiado ainda. Ele me desamarrou. E eu
atirei nele assim que consegui colocar minhas mãos em uma arma.
— Que estúpido. — Mikhail balança a cabeça. — Conseguiu ver quem é o Conquistador?
Aperto os dedos ao redor do volante.
— É Ray Warden.
Mikhail fica em silêncio por boa parte do caminho a seguir. Deixe-o ruminar sobre o que
acabei de dizer, analisando toda a situação. Soltando a respiração em uma exalação pesada,
Mikhail me olha.
— Kraisee sabe?
Nego com a cabeça.
— Não. Ainda estou pensando como vou contar. — Passo a mão pelo cabelo, prendendo
os fios na nuca entre meus dedos. — Isso pode destruí-lo.
— Você tem certeza que...
— Não continue essa frase, porra. — Bato o punho no volante e o giro para entrar no
estacionamento do galpão. Quando freio e desligo o motor, viro para olhar meu irmão de frente.
— Kraisee é, de verdade, inocente nessa história. Nós nos cruzamos por acidente naquele dia. Eu
acredito nele, Mik, e você deveria também.
Ele assente, passando a mão pela minha nuca e me puxando até nossas testas encostarem.
Seu aperto dura três segundos antes que me solte e saia de dentro do carro.
Eu entendo.
Eu te vejo.
Confio em você.
Cada segundo coube uma frase, um entendimento. Expiro, saindo do carro e trincando os
dentes para o frio. Agora que a adrenalina baixou, sinto cada músculo dolorido.
— Argh, a gente tá velho — falo, segurando minhas costas e esticando.
— Diga isso por você. — Mik acende seu cigarro, soprando a fumaça na minha cara
quando me aproximo dele.
— Filho da puta — resmungo. — Acha que eu não sei que sua cabeça já tem cabelos
brancos? Você raspa as laterais por causa disso.
— Não sei do que está falando. Corto meu cabelo assim porque é mais fácil. E é estiloso.
— Aposto minha bola esquerda que isso é uma grande mentira. — Bato meu punho em
seu braço, caminhando para dentro do galpão. — Eu já vi os fios, velhote. Os quarenta chegaram
mais cedo para você.
— Continue me chamando assim, e você vai ter um encontro com o cano da minha arma,
Hunter.
Mostro a ele o meu dedo do meio e caminho por entre as caixas. Há pouca movimentação
aqui, mas muitos machucados. Vejo Nevan no canto com um curativo em sua cabeça, assentindo
para Darius em uma conversa que estão tendo. Pops está com Baumer do outro lado, olhando
para um tablet. Meus olhos correm por todo o galpão, não encontrando quem de fato procuro.
— Onde ele está? — murmuro.
Baumer ergue sua cabeça, me encontrando, e acena.
— Ei, Hunter! Algum desse sangue é seu?
Ignorando Baumer, caminho direto para Pops.
— Onde está Kraisee?
Ela pisca, abaixando o tablet.
— Um dos rapazes o viu saindo daqui algum tempo atrás, parecendo terrivelmente
abalado.
— E ninguém o parou? — rosno.
Bato a mão em meus bolsos, rosnando ao lembrar que fui despojado de tudo. Minhas
chaves, telefone e faca ficaram no galpão, perdidos.
— Ele montou em uma moto e saiu pela noite. — Pops arqueia as sobrancelhas. — Não
sabia que havia uma ordem de restrição para mantê-lo preso aqui.
— Pizdúí. — Puxo meus cabelos, apontando para Baumer. — Eu coloquei um rastreador
no telefone dele. Procure. Agora!
Baumer assente, pegando o tablet e digitando rapidamente. Números surgem na tela,
códigos e mais códigos no programa.
— Hunter, o que está acontecendo?
— Mikhail vai te explicar tudo — digo, me inclinando sobre Baumer batendo os dedos no
tablet. O ponto branco surge no bairro chique de Toronto. — Droga, o que ele está fazendo lá?
Saio correndo do galpão, entrando novamente no carro e saio em direção à Mansão
Warden. Por que Kraisee iria até lá? O que ele ouviu que o fez ir até a casa dos seus pais?
Corto pela cidade com pressa, avançando sinais vermelhos e passando por cruzamentos.
Entro no bairro chique, ignorando o guarda na entrada e passando voando pela cancela do
condomínio. O carro derrapa na curva, subindo a estradinha inclinada que leva até a frente da
Mansão. Paro o carro atravessado, vendo a moto que usamos no galpão estacionada perto dos
degraus.
Subo correndo até a porta e a abro, encontrando Maxwell e Ray de costas para mim, com
Kraisee de pé apontando a arma na direção deles. Seus olhos, mortos, me observam por poucos
segundos antes de sorrir friamente. Sua mão vira ligeiramente para o lado, o dedo puxando o
gatilho. O som do tiro reverbera pela casa, unido ao grito agudo da mulher na escada.
Caitlin cobre a boca com as mãos, olhos arregalados ao ver seu filho caído no chão, seu
sangue manchando as paredes limpas da sua casa. Limpo o pequeno pedaço do cérebro que
espirrou na minha bochecha quando Kraisee engatilha a arma mais uma vez e vira de costas para
mim.
Sem aviso, ele atira. Caitlin solta um som engasgado e cai nos últimos degraus, seu
corpo torto parecendo uma boneca de pano. Ray, como um patife covarde, solta um grito
engasgado antes de correr para os fundos da casa.
Kraisee deixa seu braço cair ao lado da coxa, sua voz morta ao comandar:
— Pegue e o traga para mim.
Olho para ele, percebendo que a chave em seu cérebro desligou, seus demônios
completamente no comando agora. Um sorriso parte meus lábios, meu sangue acendendo com o
simples comando de sua voz e a necessidade de caçar. Meus pés me impulsionam para gente, me
levando pela casa, seguindo o som dos passos pesados de Ray e sua respiração ofegante. A casa
é um labirinto, mas tudo se torna um grande eco por ser tão grande e vazia.
Um tiro soa na frente da casa, e imagino que o segurança noturno me seguiu até aqui e
Kraisee decidiu acabar com as testemunhas.
Porra, Kraisee assassino é minha mais nova obsessão.
Mesmo que eu goste dos seus olhos de chocolate Hummingbird derretendo com desejo,
vê-los mortos e tão frios mexeu com algo sombrio dentro de mim. Tiro meus pensamentos de
Kraisee quando vejo a sombra de Ray saindo pelos fundos, em direção ao jardim. Apresso meus
passos, correndo mais rápido e o alcançando perto da piscina.
Salto sobre ele, nós dois rolando pela grama úmida. Bato meu cotovelo em seu rosto,
atordoando-o, e o viro de bruços, afundando meu joelho em suas costas. Ray grunhe e se debate
quando torço seus braços para trás e o puxo de pé, empurrando-o de volta para dentro da casa.
— Isso não vai ficar assim. Eu vou acabar com a vida de vocês dois!
— Da forma como Kraisee está, Warden, duvido muito que você saia vivo dessa.
Volto com Ray para a frente da mansão, vendo que Kraisee puxou Maxwell e Caitlin para
ficarem lado a lado no hall. O segurança noturno está sentado desajeitado, o buraco em seu peito
sangrando. Ray tropeça com a visão de sua mulher e filho mortos na entrada da sua casa tão
impecável.
Há algo bonito nessa bagunça sangrenta. Tudo tão branco manchado de vermelho e partes
cinzentas de encéfalo. Kraisee acena para eu segui-lo até uma porta lateral, abrindo para um
escritório escuro e de móveis pesados. Kraisee puxa uma cadeira de mogno com estofado
vermelho e acena para que eu coloque Ray ali. Ele pega as abraçadeiras de nylon, o que me faz
arquear a sobrancelha.
— Onde você conseguiu isso?
— Ray sempre guarda isso na última gaveta da mesa. — Dá de ombros.
Ele amarra os pulsos de Ray nos braços da cadeira e então seus pés. A todo momento,
Kraisee não esboça muita coisa. Seu rosto está congelado, olhos castanhos frios e movimentos
calculados.
— Você pode, por favor, pegar alguns utensílios na cozinha?
Apoio as mãos na cintura, olhando-o.
— O que está pensando?
Kraisee cruza os braços, sorrindo de uma forma que nunca o vi fazer. A expressão poderia
chocar uma pessoa desconhecida, mas não a mim. Entendo muito bem o que ele pode estar
sentindo agora. A euforia de rasgar alguém em pedaços pequenos e se divertir com isso.
Quer dizer, pelo menos eu estou eufórico.
— Você gostaria de me ensinar a arte da tortura?
Inspiro profundamente, pegando o rosto dele na minha mão e o puxando para mim. Eu o
beijo, rosnando contra sua boca.
— Ad, você vai me deixar duro assim, Advogado.
— Me solte, Kraisee, seu moleque! Uf!
As costas da mão de Kraisee se chocam contra a bochecha de Ray, lançando seu rosto
para o lado com o tapa brusco. Ele vira para mim, apontando para fora do escritório.
— Primeira porta à direita. Pegue tudo o que acha que vai precisar.
Assinto, deixando um último beijo nele antes de sair dali e ir para a cozinha. Lá, abro uma
das gavetas e encontro o faqueiro. Ergo o cutelo no ar, analisando sua lâmina afiada.
Isso vai ser divertido pra caralho.
*
O grito de dor só não é mais alto porque Kraisee enfiou um pedaço de pano na boca de
Ray. Nós não queremos que os vizinhos interfiram ao chamarem a polícia. Já basta o som de
tiros. Normalmente, vizinhos e bairros chiques assim não costumam cuidar uns da vida dos
outros. Eles apenas... ignoram.
Olho para o pedaço de unha que tirei, franzindo as sobrancelhas. Kraisee está sentado
sobre a mesa, braços cruzados e olhos atentos sobre seu pai agonizando. Ele não desviou o olhar
por um único segundo. Nem mesmo quando enfiei pedaços de arame que encontrei, por baixo de
suas unhas. Ou quando usei o isqueiro para esquentar a ponta da chave de fenda e enfiei devagar
em sua palma.
Kraisee sequer esboçou uma careta quando tirei um olho de Ray com uma colher e uma
faca de corte de peixe. Foi bagunçado, Ray gritou muito e se retorceu, desmaiou na metade e
acordou depois que eu já tinha seu olho dentro do copo. Também deixei que Kraisee o
espancasse por longos minutos antes, deixando seu rosto inchado pelos socos e tapas, o lábio
partido e o outro olho inchado.
Agora que tirei a última unha, olho para o cutelo, pensando em começar a retirar um dedo
de cada vez. Falange por falange. Kraisee pula de cima da mesa, pegando a faca longa e a
olhando brilhando na luz do abajur. Seu rosto continua sem muita expressão, mas vejo o brilho
em seus olhos ao analisar a lâmina afiada enquanto pensa.
— Posso terminar de uma vez?
Pisco, abaixando a pinça.
— Jura? Sequer comecei a brincar de verdade.
Ele sorri, um pouco mais como o Kraisee que conheço, parando ao lado do pai
balbuciando contra o pano em sua boca. Kraisee segura a cabeça calva para trás, deixando a
garganta à vista.
— Ele está agonizando. Sua respiração está rápida demais e já se mijou. Ray tem
problema do coração. Não quero que ele morra antes que eu possa vê-lo afogar no próprio
sangue.
Aponto com a mão na direção do homem.
— Ele é todo seu, Advogado.
Kraisee aperta a lâmina contra o pescoço de Ray e se curva, sussurrando algo em seu
ouvido. Ele tenta se debater, apenas para ofegar quando a lâmina se afunda em sua carne e o
corta de uma ponta da orelha até a outra. O gorgolejo ecoa pelo escritório silencioso e Kraisee dá
um passo para trás, a faca caindo de sua mão e batendo contra o chão.
Há sangue em suas roupas e braços. E ele nunca me pareceu tão bonito quanto agora.
Caminho devagar até ele e o puxo para mim, seu corpo afundando contra o meu com um suspiro
cansado. Esfrego suas costas, esperando que ele quebre agora, já que todo o estresse passou.
Entretanto, Kraisee apenas fica ali, quieto.
— O que fazemos agora? — pergunta, sua bochecha contra meu peito.
— Podemos ligar para a limpeza. Eles virão e farão todo o trabalho, não deixando
nenhum rastro para trás.
— É prático. — Kraisee assente. — Eu pensei em colocar fogo.
Arqueio as sobrancelhas.
— Você quer mesmo que essa mansão se torne uma pira gigante para que toda a Toronto
veja? Seria como acender uma tocha para os Jogos Olímpicos.
Isso tira uma risada cansada dele. Seu rosto se afasta, seus olhos brilhando com satisfação
e cansaço.
— Vamos ligar para a limpeza então.
— Me dê seu telefone. Eu perdi o meu.
Ele pega o celular do seu bolso traseiro e me entrega. Faço a ligação para o pessoal da
limpeza, ajeitando tudo para que o trabalho seja feito rápido e de modo eficiente. Eu o ensino a
se limpar, esfregando o sangue de suas mãos e rosto. Quando eles chegam, nós já estamos
saindo.
Seguro a mão de Kraisee na minha, nossos dedos entrelaçados enquanto mudo a marcha
do carro. Ele expira, sua cabeça batendo contra o encosto do carro e me olhando.
— Nós formamos uma bela dupla, não é?
— Sim, nós formamos. — Beijo sua mão, sorrindo contra sua pele. — Por que você não
torturou Max também? Ele não te batia frequentemente?
Ele encolhe os ombros.
— Max era só mais um fantoche na mão de Ray. Não achei que era necessário. Na
verdade, não queria gastar mais energia lidando com aquele idiota.
Bufo, entendendo-o muito bem.
— O que você disse a ele que o deixou tão agitado no fim?
Seu sorriso é largo quando me olha.
— Para dizer olá ao diabo quando chegasse no inferno.
Minha risada sai baixa, acompanhada da dele. Minha pequena raposa traiçoeira.
As luzes da cidade brilham dentro do carro por poucos segundos, me fazendo ver o
momento exato em que Kraisee adormece. Paro no semáforo, tirando seu cabelo de sua testa,
deslizando meus dedos em sua bochecha. No final, todos nós teremos o que merecemos. Ray
teve sua morte, assim como Max e sua mãe.
E eu encontrei Kraisee. A peça essencial que faltava em mim.
Alguns meses depois.
O sol brilhava fora da janela, o calor do verão fazendo as pessoas correrem no parque ou
sair para chupar um sorvete. Mas não Kraisee e Killian. Eles usavam o dia de calor de uma forma
diferente, e lambendo coisas diferentes.
— Ah!
Kraisee jogou a cabeça para trás, os dedos dos seus pés curvando quando a cabeça de
Killian afundou, levando-o todo dentro de sua boca até a garganta. Kraisee adorava quando eles
não tinham trabalho para fazer durante o dia e podiam aproveitar juntos. Na cama ou fazendo
qualquer outra coisa doméstica e despreocupada.
Como se esquartejar pessoas durante a noite não fosse um trabalho bastante estranho. E
um que Kraisee nunca pensou que poderia fazer e passar a gostar. Aquelas sombras que sempre o
perseguiram, agora faziam parte dele e estava tudo bem assim.
Killian o soltou com um pop molhado, olhando-o com olhos cerrados.
— Preste atenção em mim quando estou chupando seu pau, Advogado.
Sorrindo, Kraisee enrolou os dedos no cabelo loiro ondulado, puxando até Killian soltar
um grunhido e balançar seu quadril contra o colchão.
— Então faça o seu trabalho bem feito, sr. Hunter. E me faça gozar na sua garganta.
O gemido dele foi cortado quando Kraisee voltou seu pau para o conforto quente da boca
molhada de seu parceiro. Eles não se intitulavam como namorados. Parecia algo muito mundano
para descrever o que eles eram.
Espíritos perdidos que se encontraram em meio à escuridão. Duas almas quebradas
marcadas com as feridas de seus demônios, jogando um perigoso jogo de confiança e amor.
Balançando o quadril para cima, Kraisee perseguiu aquela doce sensação de prazer, adorando ver
lágrimas enchendo os olhos do homem que poderia matar sem piscar.
Com um grito rouco, Kraisee gozou no fundo da garganta de Killian, estremecendo ao ser
sugado até a última gota. Engatinhando sobre seu corpo, Killian deixou beijos sobre sua pele até
alcançar sua boca e deixá-lo provar seu próprio gosto em sua língua.
Killian ofegou contra a boca de Kraisee, sua mão movimentando seu próprio pau até
gozar. Seu poderoso corpo caiu sobre Kraisee, esmagando-o parcialmente e sujando suas peles
nuas e suadas com porra. Era sempre assim, um sexo imundo, com ambos lutando pelo domínio
e ambos cedendo no final.
Soltando um suspiro, Kraisee se enrolou contra o corpo maior, afundando o nariz no
pescoço de Killian e respirando seu cheiro. Princesa, a gata gorda e peluda, os observava de sua
luxuosa cabana, comprada apenas para ela.
Sua majestade precisava de um castelo, não é?
Kraisee cochilou por um momento, sendo acordado pelo resmungo de Killian e o barulho
do seu telefone. Tateando ao redor, encontrou o aparelho sobre a mesinha e olhou o visor para
ver a mensagem.
Ainda estou esperando o momento
em que direi “eu te avisei”.
Bufando, respondeu:
Espere sentado.
Estou muito feliz onde estou.
Como estão as coisas em Chicago?
Dominic havia voltado para a cidade natal depois que os corpos de Ray, Maxwell e
Caitlin foram descobertos na casa antiga dos Warden, em um condomínio caro de Chicago. Pela
forma brutal que foram encontrados, a polícia dizia que poderia ser uma possível vingança. Os
negócios da família arruinaram, tanto os legais quanto os ilegais. Seu território simplesmente foi
tomado em questão de semanas, o nome Conquistador afundando como um navio furado.
Dominic viu que seu amigo estava mais do que feliz onde estava, mesmo que não
concordasse com o novo estilo de vida de Kraisee.
Muito bem.
Eu... posso ter encontrado uma garota
muito interessante.
Eu quero ter bebês com ela, Keener.
Sério.
Isso faz Kraisee soltar uma risada alta, acordando Killian.
— O que é engraçado?
— Acho que Dom está apaixonado.
Killian expirou, passando os braços ao redor de Kraisee.
— Sério? Péssimo para ele.
— Oh! Como se você não estivesse perdidamente apaixonado por mim, sr. Hunter!
— Eu? Apaixonado por você? — Killian abre um largo sorriso, genuíno. Um dos poucos
que ele dá a Kraisee quando estão sozinhos. — Sim. Pra caralho.
Kraisee balança a cabeça em negativa. Segurando o rosto de Killian entre as mãos, beijou-
o com calma e suavemente, murmurando contra sua boca:
— “Você pode não ter sido meu primeiro amor, mas foi o amor que tornou todos os
outros amores irrelevantes[41]”.
E Kraisee sabia agora o que realmente importava. E como era se sentir importante para
alguém. Não manipulado. Não influenciado. Compreendido. E ele encontrou tudo isso no
homem conhecido como Executor dos D’Angeles. Um homem cujas mãos estão marcadas por
assassinato, mas confia nelas completamente.
Vou morrer como o herói ou o vilão? No final das contas, Kraisee não se importava mais
com isso. Contanto que Killian estivesse com ele, Kraisee se contentaria sendo um anti-herói, já
que ele não esperava redenção, ou muito menos explicação para a justiça que praticava com suas
próprias mãos.
Como era mesmo aquele velho ditado?
“Quando a vida te dá limões; aperte-os nos olhos das pessoas.”
É, acho que era isso.
Quero agradecer a você, leitor, que acompanhou essa história até aqui. E para todos
aqueles que esperaram todo esse ano de 2023 para ler essa história.
Hunter foi muito difícil para mim. Foram três versões até chegar nessa que existe hoje. E
eu queria ele PERFEITO. Até que eu percebi que Hunter não tinha que ser perfeito. Ele é
quebrado e cheio de imperfeições que tornam ele único.
Quero agradecer toda a ajuda que a Valéria sempre me dá. Puxando minha orelha,
organizando meu texto e tornando-o melhor. Val, você é perfeita e eu amo você, amiga!
Quero agradecer também ao Talys, que me ajudou muito nesses meses. Não me deixou
desistir e surtou junto comigo a cada capítulo. Obrigada pelo carinho e por ter vindo nessa
jornada comigo.
Um grande abraço em cada um de vocês.
E nos vemos na próxima!

[1]
Behavorial Analysss Unit (Unidade de Análise Comportamental).
[2]
Mentes Criminosas. É uma série de televisão dramática e policial americana sobre a BAU (Behavioral Analysis Unit) ou UAC
(Unidade de Análise Comportamental), um esquadrão de elite do FBI, com sede em Quantico, Virgínia.
[3]
Apelido para uma pessoa muito inteligente, nerd.
[4]
Hellraiser 2.
[5]
“Raposa” em russo.
[6]
“Foda-se" em russo.
[7]
“Velha cadela” em russo.
[8]
“Porra” em russo.
[9]
“Filho da puta” em russo.
[10]
”Vai pro caralho” em russo.
[11]
” Inferno“ em russo.
[12]
”Perdedor” em russo.
[13]
Poetisa feminista contemporânea, escritora e artista da palavra falada indiano-canadense .
[14]
“Foda” em russo.
[15]
Desde 2000, oferece produtos para a pele que combinam harmoniosamente ingredientes puros e naturais com um exterior
ecológico.
[16]
Rupi Kaur.
[17]
Fabricantes artesanais de chocolate em Ontário, Canadá.
[18]
”Adeus”, em russo.
[19]
“O que você quer, inferno?”, em russo.
[20]
“Fodendo meu cérebro”, em russo.
[21]
Richard Y.
[22]
“ Você está fodendo com o meu cérebro, raposa”, em russo.
[23]
Rupi Kaur.
[24]
O que você acha, porra?, em russo.
[25]
Exterior, em russo.
[26]
Inferno! Seus malditos sacos e merda!, em russo.
[27]
Adeus, seus bucetas!, em russo.
[28]
A granada de mão soviética F-1, apelidada de Efka (em russo: Эфка) pela letra F. É semelhante a "granada de abacaxi"
americana Mk 2, que também foi modelada na F1 francesa.
[29]
A Ilha do Medo.
[30]
Tão gostoso, em russo.
[31]
Aline Ladvocat.
[32]
Boceta, em russo.
[33]
Irmão, em russo.
[34]
“Um cavalo de casaco” É uma forma pouco amigável de dizer a alguém que não tem nada a ver com um determinado assunto
ou de responder de forma pouco educada quando alguém pergunta “Quem és tu?”.
[35]
Provérbio escocês.
[36]
Carlos Maykel Gonçalves.
[37]
Família Adams.
[38]
Dr. House.
[39]
Toronto Police Service.
[40]
Stranger Things.
[41]
Rupi Kaur.

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