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BOX LEIS da ATRAÇÃO

O ADVOGADO
O ACUSADO

Lola Salgado
Copyright © 2016 LOLA SALGADO
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utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização da
autora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°
9.610/98, punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Equipe Editorial:
Revisão: Bel Góes
Capa: Lola Salgado
Diagramação Digital: Lola Salgado
Imagens da capa: ShutterStock
Sumário
O ADVOGADO
DEDICATÓRIA
PRÓLOGO
ENTREVISTA DE EMPREGO
UMA PROPOSTA
A VIAGEM
WHISKY DUPLO
BALDE DE ÁGUA FRIA
REUNIÃO DE NEGÓCIOS
CULINÁRIA FRANCESA
PISCINA
O IMBATÍVEL
A ENCOMENDA
MONTANHA-RUSSA
PEQUENO AVANÇO
ENXAQUECA
GREVE
REUNIÃO
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
INCERTEZAS
DESJEJUM
REVELAÇÕES – POR FELIPE
TRIBUNAL
NO EXPEDIENTE
UMA VISITA
CANTANDO PNEU
SONHO
A LIGAÇÃO
AGRADECIMENTOS
O ACUSADO
FELIPE — FANTASMAS
MADU — CULPA
FELIPE — BOA LEMBRANÇA
MADU — LÁGRIMAS
FELIPE — RECAÍDA
MADU — O PASSADO
MADU — HORA DE ACORDAR
MADU — INCORRIGÍVEL
MADU — COMPANHIA
MADU — AZARADA
MADU — SEXTO SENTIDO
FELIPE — ESPERANÇA
FELIPE — SALVAÇÃO
MADU — RETRATOS
MADU — FOGO
MADU — UMA LIGAÇÃO
MADU — PENNE AO PESTO
MADU — MENSAGEM
MADU — JARDIM BOTÂNICO
MADU — MACCHIATO DE CARAMELO
MADU — CRUEL
MADU — JANTAR
MADU — EMERGÊNCIA
FELIPE — SAPÉ
MADU — VULCÃO
MADU — BIANCA
MADU — PIQUENIQUE
MADU — TERRAÇO
MADU — QUEBRA DE CICLO
MADU — BRIGADEIRO
MADU — CHOQUE DE REALIDADE
MADU — JOGO BAIXO
MADU — VIAGEM
MADU — COZINHA
MADU — UMA VISITA
MADU — O IMINENTE
MADU — TERROR
FELIPE — CÓLERA
MADU — MODO AUTOMÁTICO
MADU — PONTO FINAL
MADU — CEMITÉRIO
MADU — RECOMEÇO
FELIPE — DECISÃO
MADU — ANIVERSÁRIO
MADU — FELICIDADE
MADU — PRESENTE
FELIPE — EPÍLOGO
NOTAS DA AUTORA
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
O ADVOGADO

NO JOGO DO AMOR,
ELE DOMINA AS LEIS

leis da atração | livro 1


Dedicatória
Pelas incontáveis horas que gastou conversando comigo sobre estes
personagens e pelo apoio infinito este é para você, Charles.
Prólogo
Fecho os olhos, permitindo que seus lábios mornos percorram a pele
delicada do meu pescoço, causando um arrepio gostoso, que desce pela
espinha e deixa os pelos eriçados. Suas mãos agarram a minha cintura com
força, como se eu pudesse fugir daqui a qualquer momento. Sinto uma de
suas mãos subir pelas minhas costas, na medida em que a outra me aperta a
carne com certa urgência, cheia de um desejo reprimido por muito tempo.
Com um estalido, ele consegue abrir o sutiã facilmente. Os seus beijos
descem de mansinho em direção aos meus seios. Ajudo-o a tirar a peça de
roupa do meu corpo, esperando ansiosa que seus lábios voltem a percorrer
minha pele. Os meus dedos estremecem assim que ele toca o mamilo com a
ponta de sua língua, em provocação. “Ah, Felipe... como esperei para ter a
sua boca passeando em mim”.
Logo, o simples toque se transforma em movimentos circulares
suaves e deliciosos, que fazem os dedos das mãos formigarem levemente.
Alguns gemidinhos tímidos escapam da minha garganta ao passo em que o
deixo sugar o meu peito com vontade. Quando abro os olhos novamente,
encontro suas íris azuis intensas me observando com travessura. Céus, como
ele consegue me enlouquecer com tão pouco?
Felipe se inclina para me beijar na boca, deixando os dedos brincarem
com os fios do meu cabelo. A sua respiração morna vem em lufadas contra o
meu rosto e ele me mordisca levemente no lábio inferior.
Percebo o quanto está excitado ao sentir a sua ereção roçar contra a
minha coxa, enquanto ele leva a mão direita entre as minhas pernas,
alcançando o clitóris. Estou com tanto tesão que a única coisa que anseio é tê-
lo dentro de mim, e rápido.
Tão logo sinto o seu indicador começar a brincar comigo, ouço um
som estridente irromper o quarto; um som que conheço e se parece com...
com... o despertador!
Ah, droga!
Esfrego os olhos, deixando um bocejo preguiçoso escapar dos lábios
no momento em que estico o corpo, livrando-me dos lençóis emaranhados.
Não é a primeira vez que tenho um sonho erótico com o meu chefe! E
somente pensar no assunto me deixa um pouco deprimida. Por que ele tem
que mexer tanto comigo? Levo a mão direita até o meio das pernas, só para
confirmar o quanto estou molhada. Solto um pesado suspiro, puxando o
travesseiro para um abraço.
Neste exato momento, tudo o que consigo pensar é no quão
constrangedor é o fato de acordar molhada várias vezes na semana por causa
desse gostoso para quem trabalho. Como poderia não sonhar com ele? Quero
dizer, nunca vi um homem tão bonito quanto Felipe! Só de me lembrar dos
braços fortes dele sob a camisa de corte italiano, ou do rastro de seu marcante
perfume, que fica por onde quer que passe, ou quando me olha com aquela
expressão manhosa que só ele sabe fazer...
Não sei como isso foi acontecer, honestamente acho que seria muito
mais fácil levar o trabalho adiante sem ficar mentalizando mil e uma
maneiras diferentes nas quais ele poderia me beijar dentro daquele escritório,
cada vez que cruza comigo — e não são poucas vezes.
Alcanço o celular no criado-mudo e confiro as horas: o despertador
está programado para daqui a meia hora. Dou uma última espreguiçada e me
levanto, ansiosa para encontrá-lo o quanto antes no trabalho.
Entrevista de
Emprego
Mudei para Curitiba há três anos para estudar Ciências Biológicas na
Universidade Federal do Paraná, a UFPR. Vim de uma cidade minúscula no
interior do Paraná, então foi um verdadeiro choque chegar a um lugar tão
grande depois de passar a vida toda em uma cidade que bem poderia ser um
bairro daqui.
Meus pais me ajudaram com todos os gastos no primeiro ano, até que
eu me estabelecesse. No entanto, depois de um tempo virou um incômodo ter
que depender completamente deles, até porque já haviam feito tanto por mim
em todos esses anos... eu não achava justo.
Comecei trabalhando em um shopping como vendedora e aguentei um
bom tempo assim. A rotina era corrida: trabalhava das dez da manhã às cinco
da tarde, voltava para casa para comer e tomar um banho o mais rápido que
conseguisse e então já tinha que correr para a aula, cujo horário era das sete
às onze.
Como o curso é puxado, o tempo que me sobrava para estudar era nas
madrugadas, já que os finais de semana eram os dias em que eu mais vendia
na loja. O que garantia um dinheiro extra no fim do mês.
Consegui levar por dois anos essa rotina, mas nesse ano o curso
estava exigindo muito de mim, além de que eu ainda não tinha feito o estágio
obrigatório e percebi que acabaria tendo que escolher entre o emprego ou a
faculdade. Como vim de longe para estudar, é óbvio que escolhi o curso;
então veio a parte mais difícil: achar um trabalho novo, que se adequasse à
minha rotina maluca.
Depois de alguns dias visitando várias agências de emprego e
distribuindo incontáveis currículos, comecei a achar que jamais conseguiria
encontrar um serviço bom o suficiente. Quer dizer, se fosse para sair da loja
onde estava há tanto tempo para entrar em outra, era melhor permanecer lá
mesmo. Afinal, não se pode trocar o sujo pelo mal lavado.
Foi então que, certa tarde, enquanto procurava emprego nos
classificados do site de um jornal, deparei-me com uma vaga que parecia
perfeita para mim. O anúncio dizia se tratar de uma vaga para secretária em
um escritório de advocacia muito conceituado em Curitiba. O trabalho era de
segunda à sexta, das sete da manhã às cinco e vinte da tarde. Não trabalhava
nos final de semana — o que era maravilhoso — e oferecia um bom salário
com muitos benefícios. A melhor parte, no entanto, era que não exigia
experiência na função e só Deus sabe o quanto isso facilitava as coisas.
Fiquei tão animada que acabei enviando o meu currículo com foto, o
mesmo que usava exclusivamente para vagas que exigiam isso. Já tinha
ouvido falar o quanto soava mal colocar uma foto no currículo quando não
pediam, por isso fiquei o resto da tarde deprimida, pensando em como tinha
desperdiçado uma oportunidade tão boa como aquela por um deslize.
Por isso, assim que o meu celular tocou no final daquela mesma tarde,
atendi sem nunca imaginar que, do outro lado da linha, era o meu futuro
chefe quem estava falando comigo! Ele se chamava Felipe e sua voz era
grossa e intensa. Fez algumas perguntas básicas pelo telefone mesmo, com
toda a educação do mundo. O meu coração acelerava com a expectativa de
existir uma chance mínima para mim.
Ele me perguntou se eu poderia fazer uma entrevista no dia seguinte,
no final da tarde, já que o restante de sua agenda estava muito cheio.
Marcamos para às seis horas e, embora eu soubesse que perderia a primeira
aula da faculdade por isso, senti em meu íntimo que valeria a pena. Uma
intuição que carregava comigo e que nunca falhava.
No dia seguinte foi um drama escolher a roupa que iria para a
entrevista. Sabia que era um emprego sério, mas não queria parecer séria
demais. No entanto, também não queria causar uma impressão errada.
Depois de sofrer por horas, acabei escolhendo um vestido estruturado
com a cintura marcada de cor azul-petróleo e um cardigã nude por cima —
até porque estamos falando de Curitiba e não existe cidade que seja mais
imprevisível. Calcei minhas sapatilhas depois de alcançar o guarda-chuva e
então fui decidida ao endereço que ele me indicara pelo telefone.
O escritório do Felipe ficava no Batel: bairro considerado o mais
nobre da cidade. Ele havia me explicado no dia anterior que o seu escritório
era montado dentro de sua casa.
Tão logo desci do ônibus na rua mais próxima da sua, fiquei perplexa
com as construções incríveis que existiam ali. Eram casarões cujas
arquiteturas ostentavam o dinheiro dos moradores. Não bastasse isso, as ruas
ajudavam também com o visual lindo do bairro, pois eram muito arborizadas.
O verde predominante das folhas nas árvores se misturava ao amarelo-
vibrante, rosa-pink e roxo-púrpura dos ipês ali presentes.
Encontrei o endereço com facilidade e me permiti admirar a sua
residência por alguns segundos. Felipe morava em uma enorme construção de
três andares, com fachada moderna, minimalista e geométrica. Uma
verdadeira mansão! As paredes da escadaria que levava aos demais andares
eram feitas de vidro, por onde dava para espiar um enorme lustre que pendia
do teto, no hall de entrada. O jardim da frente era meticulosamente bem-
cuidado e, em meio às flores multicoloridas, existia um caminho feito em
pedras brancas irregulares que levava até as enormes portas duplas de
carvalho da entrada de sua casa. O portão estava aberto.
Notei que não existia nenhum tipo de indicação de que ali fosse o
escritório de um advogado e talvez isso significasse que ele já era tão
reconhecido que nem ao menos precisava se preocupar com isso.
Antes de chegar a entrar no hall dois homens saíram pela porta. Os
dois deram um singelo aperto de mãos e então um deles passou por mim,
acenando levemente com a cabeça enquanto ia embora.
O homem que ficou era um verdadeiro deus. Se não tinha um metro e
noventa, devia passar muito perto. Possuía o corpo forte e seus braços
definidos transpareciam pela camisa justa. Usava uma gravata azul que
intensificava o azul dos seus olhos, ao passo em que os seus cabelos loiros
estavam de um jeito despojado, como se propositalmente desarrumados.
Mesmo que estivéssemos um pouco longe um do outro, o seu perfume
delicioso e forte invadiu minhas narinas, deixando-me anestesiada. Antes que
pudesse organizar os meus pensamentos, porém, ele se adiantou até onde eu
havia permanecido parada, estendendo a mão para me cumprimentar.
— Você deve ser a Maria Eduarda — afirmou, segurando a minha
mão. Seu aperto era forte e cheio de confiança. — Conseguiu achar fácil o
endereço?
— Achei, sim! — respondi com a mente flutuando. Caramba, como
ele podia ser tão bonito? — Você explicou direitinho, não teve erro!
— Que bom! — Felipe sorriu de lado, com uma expressão de criança
pedindo colo que eu viria a amar nas próximas semanas, ainda que não
soubesse disso naquele momento. — Vamos entrar? — perguntou, por fim.
Assenti com a cabeça, lembrando-me subitamente de que estava ali
para uma entrevista e que ele poderia ser o meu futuro chefe. Ajeitei os meus
cabelos e então o segui, indo em direção ao hall de entrada e torcendo
mentalmente para conseguir o emprego.

Logo que entramos em seu escritório Felipe me ofereceu um café.


Aceitei por educação e o observei se dirigir até um aparador, onde ficava uma
cafeteira expressa vermelha. Um pouco ao lado existia um frigobar também
vermelho, de estilo vintage, de onde retirou uma água para si, depois de me
entregar o meu café forte, como eu havia pedido.
Apesar de estar muito nervosa, a entrevista foi tranquila. Felipe era
tão educado que se tornava impossível não ficar à vontade perto dele.
Perguntou-me questões básicas, típicas de entrevistas mesmo. E, aos poucos,
contei para ele um pouco da minha vida, conforme conversávamos. Eu tinha
esse problema: falava mais do que a boca. Cada brechinha que me dava,
aproveitava para falar, falar e falar.
O bom é que ele não parecia achar ruim, tampouco. Continuava
guiando a conversa, vez ou outra me derretendo com aqueles sorrisos de
canto maravilhosos, que só ele sabia fazer.
Depois de saber de mim, Felipe me contou um pouco sobre ele
mesmo. Disse que tinha trinta e cinco anos, e desde pequeno sabia que
seguiria a profissão, uma vez que o seu pai havia sido o advogado paranaense
— se não o brasileiro — mais disputado por mais de quarenta anos. Mesmo
depois de aposentado, vez ou outra ainda pegava alguma ação criminalista,
que era a sua área.
Felipe passou na Federal logo depois de terminar o ensino médio e se
formou aos vinte e três anos. Antes mesmo de colar grau já havia passado na
OAB. Então começou a trabalhar com o pai onde, além de ganhar
experiência, conquistara clientes muito valiosos. Ele me contou que das cem
mais poderosas empresas brasileiras, Curitiba possuía trinta e oito, dentre
estas, a maioria eram clientes dele.
Fiquei completamente impressionada com o que me dizia,
principalmente porque ele era realmente novo para ser tão reconhecido assim.
Eu não entendia nada sobre o assunto, mas sempre que a mídia mostrava
algum caso importante que estava acontecendo, os advogados sempre
pareciam passar dos cinquenta anos.
De repente, Felipe olhou para o bonito relógio prateado em seu pulso
esquerdo.
— Preciso que você me traga seus documentos até sexta, tudo bem?
— comentou despreocupadamente, levantando-se da cadeira onde estava
sentado. — Quanto antes eu enviar para o RH, melhor.
Suas palavras invadiram meus tímpanos, deixando-me atordoada.
Como é? Ele tinha falado em documentos?
— Estou contratada? — perguntei, não conseguindo conter o sorriso.
— Tecnicamente não até que você me traga os documentos — sorriu,
passando a mão nos cabelos. — Mas sim, você é a profissional que eu estava
procurando.
— Caramba! — Soltei, explodindo de alegria. Mal podia acreditar
que teria os finais de semana livres. — Muito obrigada!
Levantei logo depois dele, alcançando o celular dentro da minha bolsa
para conferir as horas. Meu coração parou por alguns segundos quando
descobri que já era quase nove horas da noite! Felipe devia ter percebido a
minha expressão, porque logo em seguida falou.
— Acho que nos empolgamos... Está tarde para ir sozinha, eu te levo
até sua casa — disse, alcançando o telefone em sua mesa e discando um
número rapidamente. — Leonor, estou de saída, você pode trancar o
escritório, por favor?
Ouvir aquilo foi como um choque. Então ele era casado? Senti uma
pontada de inveja da mulher dele, mas então olhei em suas mãos e notei que
não possuía nenhuma aliança.
Não tive como saber naquela noite, de toda forma, pois assim que
desligou o telefone, fomos até a garagem, onde um Mercedes-Benz Classe C
de cor branca nos esperava.
Prendi a respiração, impressionada. Eu jamais tinha entrado em um
carro como aquele e, para falar a verdade, desde que me mudara para
Curitiba, nem ao menos andava de carro, era só ônibus mesmo.
Entrei me sentindo um pouco tímida, enquanto Felipe se sentava ao
meu lado. O interior do veículo era tão bonito quanto o exterior, com seus
bancos de couro sintético na cor creme. Meus olhos passeavam com
admiração pelo elegante painel curvilíneo, que se estendia até o apoio de
braços, com detalhes em madeira polida.
— Onde você mora, Maria? — perguntou, colocando o cinto.
Respirei fundo, decidindo como seria a melhor forma de falar para ele
o quanto eu odiava o meu primeiro nome.
— No Centro Cívico — disse, distraída. — Hm, Felipe... eu não gosto
muito que me chamem de Maria.
Ele piscou os olhos, confuso e então soltou uma risada baixa e
calorosa.
— Prefere Eduarda? — o jeito que perguntou foi tão afável que
minhas bochechas enrubesceram.
— Na verdade, gosto de Madu — respondi, sentindo-me como uma
criança birrenta que gosta das coisas apenas do seu jeito.
Ele assentiu com a cabeça, nos lábios tinha aquele sorriso lindo.
Ligou o carro e começou a dirigir sem falar mais nada. O seu perfume tinha
dominado o pouco de espaço entre nós. Eu inspirava profundamente,
deixando meus olhos revirarem cada vez que o seu cheiro invadia minhas
narinas.
Sempre tive um fraco para homens cheirosos, acho incrível o quanto
eles têm presença com um bom perfume. Para minha felicidade, Felipe era
cheiroso demais, eu nem ao menos estava conseguindo disfarçar o tanto que
estava gostando. Aliás, o quê nele não era demais?
O trajeto até o prédio onde eu morava foi rápido e silencioso. Não
gostava daquele silêncio constrangedor, mas também não sabia como quebrá-
lo. Até porque, não queria forçar a barra.
Ele parou o carro com suavidade, sua mão direita ainda apoiada no
volante.
— Eu te mando pelo WhatsApp a lista de documentos, pode ser? —
Felipe me mandando uma mensagem? Claro que podia!
— Pode sim, eu fico no aguardo — respondi, tirando o cinto de
segurança. — Queria agradecer mais uma vez pela oportunidade e obrigada
pela carona, também.
Abri a porta e antes que pudesse sair completamente do carro o
escutei dizer.
— Foi um prazer, Madu.
Ouvi-lo me chamar daquela forma fez meu coração acelerar e minhas
pernas bambearem. Fechei a porta e o observei arrancar com o carro,
deixando-me sem saber o que estava acontecendo comigo.
Uma Proposta
Sinto a água morna escorrer por minha pele de maneira relaxante.
Meus olhos fecham enquanto imagens do sonho voltam a me invadir a mente.
Quase chego a sentir as mãos firmes de Felipe me segurando pela cintura
com força, enterrando os dedos na minha carne. Suspiro, desligando o
chuveiro abruptamente.
Alcanço a toalha pensando no quanto fiquei caidinha por ele, em
pouco mais de um mês em que trabalhamos juntos. Caramba, tudo o que
precisava fazer era levar o emprego a sério e mantê-lo até o final da
faculdade. Sem dramas. Como isso é possível tendo que lidar com aquele
homem todos os dias?
Encaro o reflexo no espelho e vejo enormes olhos azuis-esverdeados
me fitando de volta. Gosto tanto deles, são o que tenho de mais bonito.
Fantasio como seriam os meus filhos com Felipe, já que nós dois temos olhos
claros. Imagino como faríamos esses filhos e sorrio com a imagem que me
vem à cabeça. Caramba, não consigo pensar em outra coisa. O quê tem de
errado comigo?
Um pouco abaixo dos olhos, encontro um nariz pequeno e arrebitado,
que me confere uma eterna cara de esnobe, ainda que isso não seja verdade.
Estou longe de ser assim. Emoldurando o meu rosto estão longas madeixas
castanhas, que caem em cascatas até a altura dos seios. Nada mal.
Ainda estudando a minha imagem refletida, decido que hoje vou me
arrumar um pouco mais. Quero que Felipe me veja com outros olhos, e não
somente como sua funcionária. Não sei exatamente onde pretendo chegar
com isso, entendo que me envolver com ele é incabível. Bom, não custa
sonhar, né? Até porque, isso eu já faço.
Alcanço minha maleta de maquiagens no quarto e aposto nos olhos,
com um delineado de gatinho bem caprichado. Assisto tantos tutoriais de
maquiagem na internet que de alguma coisa eles tinham que servir: acabei
ficando boa nisso!
Busco no guarda-roupa um vestido rodado com estampa florida e
coloco um blazer por cima. Estamos caminhando cada dia mais para o outono
e o vento da manhã já é bem fresco para aguentar sem nada. Espirro um
pouco mais de perfume do que faria normalmente, sentindo-me
envergonhada por ser tão boba. Como se ele fosse reparar em mim... Felipe
parece constantemente focado nos seus problemas. Fora isso, sempre são
tantos clientes para atender... Homens importantes e muito impacientes.
Passo um café bem forte e com pouco açúcar — do jeitinho que gosto
— e tomo acompanhado de um pãozinho com requeijão. Aproveito e tomo
uma pílula do meu anticoncepcional. Ainda que o mais próximo que eu esteja
de uma relação sexual seja nos sonhos, não consigo parar com os hormônios.
É muito bom poder unir os meses e ficar sem menstruar, além de que, o
remédio faz bem para a minha pele oleosa. Confiro as horas no celular e
alcanço o guarda-chuva antes de sair de casa.
O caminho até o trabalho é rápido e logo me vejo em frente à
imponente mansão onde ele mora. Meu coração acelera, ao passo em que
atravesso o portão já aberto por Leonor.
A propósito, acabei descobrindo que ela é a governanta de Felipe.
Uma mulher baixinha e atarracada, na casa dos cinquenta anos, que cuida
para que as coisas andem perfeitamente bem. Mora com ele, mas tem os
finais de semana livres. Gosta dele como se fosse um filho e até mesmo o
trata dessa forma. Pelo que vejo, o sentimento é recíproco.
Eu não entendo muito bem como funciona o trabalho de uma
empregada que mora no trabalho, mas também a vejo muito pouco. Nunca
passo do escritório e jamais conheci o restante da casa monumental de Felipe.
Passo pelo hall de entrada e vou direto à aconchegante recepção onde
trabalho. Sento-me atrás da escrivaninha, ligando o computador. Ao meu lado
esquerdo, uma prateleira moderna, feita com uma escada embutida, abriga
variados exemplares de livros de Direito.
Estou me ajeitando quando o telefone toca. Ainda falta meia hora para
o escritório abrir, esse é o tempo que tenho para organizar a agenda e
preparar as minhas coisas. Atendo e ouço a voz do Felipe ressoar rouca do
outro lado da linha.
— Bom dia, Madu — o jeito que pronuncia o meu nome me deixa
flutuando por alguns segundos. — Você pode subir aqui, por favor?
— Subir onde? — pergunto, distraída.
— Estou no closet. Suba o lance de escadas; é a primeira porta à
esquerda.
— Perdão? — pergunto, tentando decidir se ouvi certo ou estou
sonhando acordada. — Precisa de mim no seu... closet?
A risada gostosa de Felipe entra pelos meus tímpanos, tirando-me do
transe temporário.
— Prometo que não tem perigo aqui em cima — diz quase em um
sussurro, e instantaneamente sinto o sangue ferver. Como eu queria que
tivesse perigo! Sei que neste exato momento minhas bochechas devem estar
vermelhas.
— Estou indo — respondo.
Desligo o telefone e entro pelo escritório dele, que leva para o restante
da casa. Atravesso o cômodo, saindo pela porta da parede oposta e, pela
primeira vez, deparo-me com o seu lar.
A sala é espaçosa e clara. Em uma das extremidades vejo um sofá
anguloso, creme, de frente para duas poltronas de couro, igualmente
quadradas, porém escuras. Felipe é do tipo moderno, a decoração da sua casa
segue essa linha clean e geométrica que usualmente vejo em revistas de
decoração. Alguns quadros estão espalhados de maneira aleatória na parede,
compondo um conjunto bonito.
Não me demoro observando a sala, e logo me vejo subindo os degraus
de madeira com a respiração presa. Ao abrir a porta do seu closet, encontro-o
vestindo uma camisa cinza clara e, pelo reflexo do espelho, deixo os olhos
percorrerem seu abdômen nu.
Logo me vejo de novo dentro do sonho que tive, lembrando-me dele
em cima de mim, seus lábios, passeando pela pele do meu pescoço, tão
deliciosos. Nossos olhos se encontram subitamente e percebo que ele tem
consciência de para onde estou olhando.
Sinto o rosto queimar no mesmo instante.
— Desculpa, eu devia ter batido antes! — admito, baixando o olhar
para os meus sapatos. Droga, o que eu estava fazendo?
Sem dizer nada, ele caminha até uma gaveta comprida onde parece
guardar suas gravatas. Está terminando de abotoar a camisa quando quebra o
silêncio:
— Te chamei aqui porque vou viajar semana que vem. Tenho a
audiência de um cliente muito importante, então preciso que você resolva os
horários para mim... — observo-o alcançar uma gravata chumbo e colocá-la
em volta do pescoço, começando a dar o nó, com paciência. — Passe todos
para a semana seguinte.
— Tudo bem — respondo, sem conseguir tirar os olhos dele. — Faço
isso hoje mesmo.
— Mas não te chamei aqui por isso... preciso que você vá comigo
nessa viagem.
— O quê? — pergunto, chocada.
Suas palavras me pegam de surpresa e minha cabeça começa a rodar.
Uma viagem? Ele precisa que eu vá junto? Por quê?
— Felipe... Eu não posso, quero dizer... tenho a faculdade. Faltar uma
semana seguida vai me prejudicar muito! — As palavras escapam de minha
boca antes que possa pensar a respeito.
Ele para de frente para mim, segurando o frasco do seu perfume na
mão. Está com aquela expressão que tanto amo, de criança pedindo colo.
Felipe encolhe os ombros, antes de falar.
— Eu pago cinco salários por essa semana, realmente preciso de você
lá — sua voz é suave, enquanto seus olhos estão fixos nos meus.
— Cinco salários? — Essa é a única coisa que parece ter ficado na
minha mente. — Por uma semana? — Estou com a boca aberta em surpresa.
— É pouco para você? Podemos negociar!
Minha cabeça está girando cada vez mais rápido. Tento fazer os
cálculos mentalmente, embora exatas nunca tenham sido a minha praia. O
salário mínimo está uns oitocentos reais? E ele quer me dar cinco vezes essa
quantia? Minha mãe, só posso estar sonhando!
— Felipe! É óbvio que cinco salários mínimos não são poucos para
mim! Você está louco? — Encontro-me tão atordoada com o convite que
nem ao menos tento disfarçar.
Ele continua me fitando com aquela expressão que não ajuda em
nada. “Felipe, se você soubesse com o quê ando sonhando... tenho certeza
que ia pensar duas vezes antes de me convidar para uma viagem”.
— Olha, a faculdade exige muito de mim, não posso simplesmente
faltar por uma semana — gesticulo, lutando para não perder o controle. —
Você não me disse na entrevista que eu precisaria te acompanhar nas viagens!
Minha rotina não me permit...
— Calma, respira! — Ele sorri de canto, espirrando seu perfume pelo
pescoço e tronco, concluindo com uma breve borrifada no pulso. — Eu sei
que não estou sendo justo com você, mas essas viagens não serão recorrentes,
pode ficar tranquila. Só que realmente preciso de você em São Paulo comigo.
— Por quê?! — pergunto, inebriada com a sua fragrância maravilhosa
que me envolve no momento.
— Bem, o diretor executivo da PoliBev tem se mostrado interessado
nos meus serviços. Essa é uma das maiores corporações do país e, portanto,
ele é um cliente em potencial de muito valor.
— Eu sei o que é a PoliBev! — digo, com a minha mania de criança
birrenta que odeia ser contrariada. — Mas onde entro nisso tudo?
Felipe respira fundo, fechando os olhos por alguns segundos. Assisto-
o cruzar os braços fortes, apertando o tecido de sua camisa.
— Madu, alguém já te falou como você é teimosa? — pergunta com
um sorriso nos lábios. “Você não viu nada ainda”, penso comigo.
— É possível que sim! — respondo, cedendo à brincadeira dele.
Damos risadas juntos por alguns segundos. Felipe se aproxima um
pouco mais de mim e segura o meu ombro com suavidade, como o vejo fazer
sempre com os seus clientes. A diferença é que, claramente, eles não ficam
com as pernas bambas como estou agora.
— Quero a minha secretária lá comigo, para me auxiliar nas reuniões
e me acompanhar nos possíveis eventos que ocasionalmente terei de
comparecer. O mesmo que você faz aqui. Anotações, planejamento dos
horários... você sabe.
— Mas... — começo a falar, no entanto sou interrompida por ele.
— Pago dez salários mínimos, para compensar os dias que você vai
perder de aula.
Sinto uma tontura intensa me pegar de supetão. Droga, droga, droga!
Como posso falar que não? Ele está praticamente implorando para que eu vá.
E estamos falando de muito dinheiro em jogo. Eu até mesmo poderia dar
entrada em algum carrinho mais antigo. Seria uma mão na roda! Ao mesmo
tempo, parece errado concordar apenas por essas condições.
Respiro fundo, deixando o ar penetrar os pulmões tranquilamente.
— Isso é muito dinheiro, Felipe — assumo, desviando os olhos dos
seus.
— Nosso voo é segunda-feira — diz, ignorando minhas palavras. —
Passo no seu apartamento às seis da manhã, tá bom?
Arqueio as sobrancelhas ao ouvi-lo.
— As passagens já estão compradas? Como você sabia se eu ia
aceitar ou não?
— Eu sempre consigo o que quero, Madu — ele dá um sorriso
caloroso antes de sair do closet.
Saio logo depois dele, tentando recuperar o fôlego.

Chego em casa ainda com os pensamentos atordoados. Uma semana


longe da faculdade realmente é muito tempo, tendo em vista a quantidade de
trabalhos que temos para fazer. Por outro lado, não é como se eu não pudesse
recuperar posteriormente.
Também não quero que Felipe pense que pode me mandar fazer o que
quiser, só porque tem muito dinheiro. Apesar da quantia alta que me
ofereceu, o que foi decisivo para que eu aceitasse foi a expressão que fazia,
de cachorro sem dono. E eu bem poderia ser a sua dona.
Sento no sofá, esparramando-me. Na minha memória vem aquele
sorrisinho enigmático dele, dizendo-me conseguir tudo o que deseja. Será
mesmo? Bem, eu o desejo agora. Queria conseguir tudo o quero, também.
Fecho os olhos pensando em cada detalhe do seu rosto que já adoro
tanto: o nariz fino, os olhos claros, o maxilar bem delineado... Caramba, não
sei se, de fato, é uma boa ideia viajar com ele. Já é difícil suportar essa
pressão no trabalho, imagina durante uma semana inteira?
Alcanço o celular e disco o número de Vanessa, a minha melhor
amiga. Depois de duas chamas ela atende prontamente:
— Oi, Madu! — cumprimenta, com simpatia.
— Oi, Nessa. Preciso de um favor.
— Diga!
— Semana que vem vou ficar fora, preciso viajar a trabalho —
suspiro, pensando no assunto. — Você pode anotar a matéria e me passar
depois? Se tiver alguma atividade também... Vou faltar hoje à noite, para
começar a arrumar minhas coisas.
— Calma aí, você vai viajar... a trabalho? — pergunta desconfiada.
— Sim, Felipe diz que minha companhia é imprescindível — explico,
deitando ainda mais o corpo no sofá. — E ele ainda quer pagar um bônus.
A risada escandalosa de Vanessa ressoa pelo celular, machucando
meus tímpanos. Afasto um pouco o aparelho, até que ela se acalme.
— Nossa, Madu! Aquele gato está te chamando para viajar por uma
semana... Eu estaria no céu!
— Como se ele quisesse alguma coisa... — falo emburrada. — Não
consigo decifrar o que passa na cabeça dele, o Felipe é muito misterioso!
— Ai amiga, só você também para se apaixonar pelo seu chefe.
— Nessa, é impossível não se apaixonar, olha esse homem!
Damos risadas juntas. Olho para o relógio da cozinha e vejo as horas,
decidindo que preciso agilizar as coisas.
— Vou desligar, então. Você me passa tudo certinho depois?
— Passo sim. Boa viagem, Madu! E toma juízo!
Desligo o celular com um sorriso no rosto, levantando-me para tomar
banho. Ao que dou a última olhadela no visor, reparo em uma notificação no
WhatsApp.
Abro o aplicativo e me deparo com uma mensagem de Felipe:
“Espero que já esteja arrumando as malas!”. Meu coração dispara tão logo
caio na real. Caramba! Vou mesmo ficar uma semana em São Paulo com ele!
Isso é surreal! Com os dedos tremendo, respondo: “Será que devo levar um
biquíni para as horas vagas?”, e então deixo o celular na mesa, dirigindo-me
ao banho.
A Viagem
Os olhos de Felipe recaem ligeiramente sobre a minha enorme mala
verde-água e percebo suas sobrancelhas arquearem por um segundo,
deixando-me envergonhada. Ele segura a mala com facilidade e a leva em
direção ao seu carro.
Entro no banco de passageiros sentindo-me sonolenta. Não importa
quanto tempo passe, sempre vou odiar acordar cedo. Acho que não nasci para
isso, no fim das contas.
Inclino o banco para trás, ajeitando-me confortavelmente durante o
tempo em que Felipe usa para entrar no carro, dando partida em seguida. Um
apito intermitente vindo do bonito painel nos indica que estou sem o cinto de
segurança. Endireito o corpo contra a vontade, atendendo o comando.
Sei que demoraremos um pouco para chegar ao aeroporto, uma vez
que ele fica em São José dos Pinhais, uma cidade praticamente colada em
Curitiba, cujo percurso que nos leva até lá é bastante disputado neste horário.
— Eu nunca viajei de avião antes — digo para quebrar o silêncio.
Felipe me encara sério, juntando as sobrancelhas:
— Vinte e dois anos sem nunca ter andado nas nuvens? — ele
pergunta, coçando a barba por fazer. — Ainda bem que sempre existe uma
primeira vez!
Percebo as bochechas corarem ao que, inevitavelmente, pondero
sobre como seria a nossa primeira vez. Que droga! Por que é tão difícil
manter os pensamentos em ordem quando estou perto dele?
Aliás, essa é a primeira vez que o vejo fora de seu uniforme. Eu
imaginava que era impossível ficar mais bonito, mas estava bem enganada.
Felipe se supera sempre mais! Hoje está vestindo uma camiseta cinza mescla
colada nos braços musculosos. Na cabeça, um boné também cinza. Suas
pernas estão cobertas por um moletom azul marinho esportivo e nos pés um
tênis que bem poderia ter acabado de sair da caixa, tamanha brancura. Adorei
esse visual mais esportivo dele, embora seja inegável o quanto fica sedutor
dentro de seus ternos de corte italiano.
Solto um pesado suspiro, observando os carros janela afora.
— Você não está com medo? — Sua voz é calma e acolhedora.
— Acho que não — admito, dando nos ombros. — Sempre ouço que
é o meio de transporte mais seguro de todos... E se a gente cair, já morre de
uma vez!
Sua risada gostosa preenche todo o carro. Observo-o balançar a
cabeça brevemente, com um sorriso estampado no rosto. Vendo-o de perfil,
assim como faço agora, é possível contemplar os pelos loiros de sua barba e
sobrancelha brilharem contra o sol.
Meus olhos recaem sobre suas mãos segurando o volante e então
acabo me dando conta de que o veículo terá de ficar em algum lugar
enquanto estivermos fora.
— Felipe... — chamo-o. — Onde você vai deixar o seu carro?
— No aeroporto — ele responde categoricamente.
— Vai ficar um absurdo de caro! — replico, achando a ideia insana.
— Você podia ter um motorista para nos trazer, ou então a gente devia ter
vindo de táxi.
Ele me olha pelo canto dos olhos, umedecendo os lábios com a
língua.
— Não gosto de ninguém mexendo nas minhas coisas.
— Mas... e a Leonor? — pergunto, sem conseguir me conter.
— Ela é quase como uma segunda mãe, Madu. Não sou nada sem ela.
— E por que não viemos de táxi, então?
Felipe sorri, fisgando os lábios em seguida. Pela sua expressão, sei
exatamente o que ele está pensando. Ele vai me dizer que...
— Você é muito teimosa! — responde, lançando-me aquele olhar de
carência que tanto amo.

Felipe havia feito o check-in pela internet, assim tivemos apenas que
despachar nossas malas, e aguardar até que chegasse a hora do embarque.
Na sala VIP têm muitas opções de lanches e bebidas e como eu não
resisto a comer um pouquinho, acabo me servindo de alguns queijos e frutas;
ao passo que ele pede apenas uma água.
O tempo de viagem previsto é de meia-hora, o que é realmente rápido.
Mesmo assim, estou super ansiosa para embarcar. Talvez seja bobeira, no
entanto é algo que não consigo controlar.
Assim que embarcamos na aeronave, logo nos dirigimos aos nossos
lugares, então Felipe me pergunta se prefiro sentar a janela, eu assinto,
empolgada. No seu rosto está estampado um sorriso, ao me assistir examinar
cada detalhe do avião.
Uma das aeromoças nos instrui pelos alto-falantes, ao mesmo tempo
em que uma segunda demonstra os comandos ditos pela primeira. Observo a
bonita comissária de longos cabelos loiros presos em um rabo de cavalo nos
ensinar o que devemos fazer em caso de emergência. Em meu íntimo, desejo
que nunca precise seguir esses comandos.
— Não vejo a hora dos lanchinhos! — sussurro para ele, prendendo
meu cinto.
Noto que além de nós, deve ter no máximo mais dez pessoas no avião.
Fico feliz por não ter ninguém sentado ao lado dele, também. Assim terei
mais privacidade.
— Não tem lanche em uma viagem de meia hora! — Felipe responde,
sem desviar os olhos da revista que pegou para ler. — Você acabou de
comer! Ainda está com fome?
Minhas bochechas queimam com a sua pergunta.
— Fome não, só vontade de comer! — explico, fazendo-o rir de mim.
— Assim que chegarmos paramos em algum lugar, tudo bem?
— Promessa é dívida! — Sorrio, enquanto a aeronave começa a
decolar.
A sensação é um pouco desconfortável quando se está fazendo pela
primeira vez. Pela janela, vejo a cidade diminuir cada vez mais. Então um
calorão começa a me dominar, aos poucos.
Embora esteja lutando contra, o mal-estar vai crescendo cada vez
mais, ao passo em que a aeronave se estabiliza. Esse é um grande problema
comigo: passo mal em todas as viagens, sejam de carro ou ônibus — e agora
descobri que até de avião.
Meus dedos começam a tremer levemente assim que vejo pela janela
que estamos no meio das nuvens. Seria lindo se não estivesse me sentindo tão
mal.
Consigo notar que a asa está mudando, e antes que possa comentar a
respeito com Felipe, o avião se inclina fazendo uma curva. Meu lado abaixa
perigosamente, e por um segundo acho que vou desmaiar.
Alcanço a mão dele, segurando-a com força. Minha visão escurece e o
estômago começa a embrulhar.
— Você está bem? — questiona, largando a revista e se virando em
minha direção.
Quero dizer que sim, mas neste momento nem ao menos consigo
falar. Mantenho-me concentrada porque sei que estou prestes a vomitar. Ele
percebe e alcança no banco da frente uma pequena sacola que seria para jogar
o lixo, entregando-me em seguida.
Foi no tempo certo. Noto a boca salivar mais do que o normal e a levo
até o saquinho, vomitando tudo o que comi na sala VIP. Logo sinto aquele
cheiro horrível dominar o ambiente e quero morrer. Ai que merda! Por que eu
tinha que passar mal justo agora?
Amarro a sacola e o encaro, querendo chorar. Com algum esforço, eu
me seguro para não fazer isso, até porque, pior do que passar mal no avião é
começar a chorar como uma criança!
Felipe faz um sinal para a comissária, chamando-a até onde estamos.
Ela vem prontamente, com um sorriso no rosto.
— Você pode trazer uma água, por favor? Ela está passando mal —
pede, com toda a educação que já conheço. — Se puder levar isso, seria bom
— diz por fim, indicando o vômito empacotado.
Caramba, será que tem jeito de ficar pior do que já está? Encontro-me
suando frio ao que estendo a mão, oferecendo a sacola para ela pegar. A
aeromoça sai em passos ligeiros e me pergunto se essa situação é recorrente.
Fecho os olhos, odiando com todas as forças essa viagem. Minha mão
ainda está agarrada na de Felipe, no entanto não me permito sentir vergonha.
Fico muito dengosa sempre que estou doente, então vou aproveitar sua
companhia, mesmo. Até porque, é culpa dele que eu esteja passando por isso!
— O avião já está se preparando para o pouso — ouço a voz suave da
comissária tentando nos tranquilizar. — É a primeira vez que ela viaja de
avião?
— É sim — ele responde calmamente. — Obrigado pela água.
— Por nada! — A voz dela paira no ar, enquanto ouço sutilmente o
som de seus saltos-altos contra o chão se afastarem de onde estamos.
Felipe retira o cabelo que está no meu rosto com a ponta dos dedos,
fazendo-me estremecer. Meu coração acelera, tão logo abro os olhos e o
encontro olhando para mim com uma expressão preocupada.
— Tome um pouco de água. Vai ajudar!
Pego a garrafa de sua mão, levando-a até os lábios com cautela. A
sensação do líquido gelado descendo pela garganta é reconfortante. Mas no
momento, não quero nem imaginar como será a viagem de volta.
— Estou com tanta vergonha que quero morrer! — admito, sorrindo
em seguida.
— Acho que alcançamos um novo nível de intimidade — sua risada
me envolve. Felipe tem o dom de me deixar confortável nos momentos que
estou perto dele.

Logo que chegamos ao aeroporto de Guarulhos e pegamos nossas


malas, vamos de encontro ao carro que Felipe alugou. Já estava agendado
exatamente para o horário que a viagem havia sido prevista.
Quando paramos em frente à uma Mercedes preta, deixo escapar uma
risada nervosa. É exatamente o mesmo carro que ele tem, mudando só a cor.
Como é exigente!
Estou começando a me sentir melhor. O carro tem um ar-
condicionado potente, que congela até os ossos. No entanto, quanto mais
gelada fico, mais o mal-estar vai embora.
O hotel em que ficaremos chama-se Fasano e, de acordo com Felipe,
é um dos mais tradicionais da cidade. Assim que chegamos, fico estarrecida
com a construção: apesar da fachada sóbria, é um prédio cujos andares se
projetam céu acima. Fico me perguntando quantos andares devem ter, pois
realmente é muito alto.
Um manobrista fica encarregado do carro ao descermos em frente ao
hotel. Adentramos o hall bem decorado, de tons terrosos, dirigindo-nos ao
grande balcão de mogno, onde várias recepcionistas bem maquiadas
aguardam. Felipe faz o check-in, entregando nossas malas para que levem ao
quarto: a minha verde-água e escandalosa; a dele preta e elegante.
Por alguns segundos me encontro totalmente deslocada, observando
algumas mulheres irem e virem, muito arrumadas. Não é que eu também não
esteja, mas não há comparação.
Ele encosta sua mão nas minhas costas com suavidade, indicando-me
o caminho que devemos seguir. Logo entramos ao Lobby Bar do hotel, cujas
poltronas vintage de couro e luminárias no estilo art déco resgatam o
glamour dos anos quarenta.
Assim que nos sentamos em uma das confortáveis e bonitas mesas
disponíveis, um garçom se apressa para nos atender, educadamente. Felipe
pede dois cafés e noto que ele já sabe como gosto do meu: bem forte.
— Você quer alguma coisa pra comer? — pergunta atencioso.
Pondero brevemente sobre essa possibilidade, mas acabo decidindo
não arriscar. Meu estômago ainda está frágil.
Aceno negativamente com a cabeça, observando tudo ao meu redor.
Esse lugar é tão lindo que me sinto como se estivesse em um sonho.
— Estamos na mesma suíte — ele comenta casualmente e agradeço
aos céus pelo café ainda não ter chegado. Eu certamente o teria cuspido, ao
ouvir isso.
— O quê?! — questiono, surpresa.
— É mais como um apartamento. Tem dois quartos, uma sala para
reuniões, dois closets... Enfim, achei que seria melhor ficarmos próximos,
caso você precise de alguma coisa.
— Não vejo o que poderia precisar — provoco, aproveitando a deixa.
“Felipe, querido, você está brincando com fogo... Cuidado para não se
queimar!”
Somos interrompidos pelo garçom, que chega com os nossos cafés.
Passo as mãos no rosto, constatando que finalmente me livrei da tontura.
Pego a xícara, bebericando um pouco do líquido negro depois de
adoçá-lo. É incrível como tudo nesse lugar é excelente. Não só o
atendimento, ou a decoração, como também os serviços prestados. Ser rico
deve ser realmente muito fácil. Estou prevendo que vou sentir saudades
daqui.
Lembro que ainda não tomei o meu anticoncepcional e, por isso,
disfarçadamente, alcanço um comprimido na cartela dentro da minha bolsa e
jogo para dentro da boca, o mais rápido que consigo.
— Remédio para enjoo? — Felipe me pergunta inocentemente.
— Não... — sinto as bochechas queimarem. — É o meu
anticoncepcional.
— Ah sim — ele coça sua nuca de uma maneira desconfortável. —
Está melhor?
— Sim, a tontura já passou — murmuro com o rosto enterrado na
xícara de porcelana. — Temos planos para hoje?
— Na verdade temos. Vamos almoçar com o Pedro, para tratar sobre
a audiência de amanhã.
— Algo mais? — pergunto, buscando a agenda dentro da bolsa. É
bom que os detalhes estejam acertados, embora eu saiba que Felipe tem tudo
sob controle.
— Temos um coquetel com o diretor da PoliBev à noite.
— Nossa! Sério? — Deixo escapar, surpresa. — Não sei se estou
preparada para isso!
— Você se sairá bem — sorri de canto, derretendo-me por completo.
— Só precisa da roupa certa.
— Esse é o problema, Felipe! — respondo, preocupada com o nível
em que os convidados estarão arrumados. — Não tenho nada tão chique
assim!
Ele começa a rir, divertido com o meu desespero. Cruza os braços
sobre o peitoral forte, sem desviar os olhos azuis dos meus.
— Eu já cuidei disso, Madu — explica, por fim.
“É... Pressinto que essa será uma viagem e tanto”, penso comigo
mesma, terminando minha bebida.
Whisky Duplo
Encaro o espelho do closet por alguns segundos, sem conseguir
acreditar no que vejo. Pelo reflexo, admiro-me em um vestido tubinho Carina
Duek de cor nude, que me contorna as curvas de maneira sensual, terminando
um pouco abaixo dos joelhos. Nos pés, scarpins Valentino da mesma cor, que
alongam consideravelmente a silhueta, deixando-me esbelta. “Céus, essa
pessoa não pode ser eu”, penso comigo mesma, estarrecida. Acho que nem
se juntasse todas as minhas roupas elas somariam o valor exorbitante que
carrego em mim essa noite.
Respiro fundo, terminando de passar o batom vermelho matte, para
dar um pouco de cor no conjunto todo. O meu coração está acelerado, visto
que jamais estive em um evento parecido. Nem ao menos imagino como me
portar. De toda forma, não é como se eu não tivesse a menor noção de
etiqueta. Desde que fique quieta na minha, acho que não terei grandes
problemas.
Dou uma última examinada, aproveitando para tirar uma foto com o
celular. Mamãe provavelmente vai querer saber os mínimos detalhes dessa
noite. Não economizo no perfume, antes de abandonar o meu esconderijo
secreto.
Felipe está sentado no sofá de couro, com o rosto apoiado em uma das
mãos, mexendo no celular com a outra. Noto que está com uma expressão de
tédio, esperando-me por sabe-se lá quanto tempo. Eu nunca fui a mais rápida
para me arrumar, confesso. Como hoje é uma ocasião especial, não posso
menosprezar isso.
Tão logo entro no aposento, ele ergue o olhar. Sinto as bochechas
queimarem ao perceber seus olhos translúcidos me estudando, ao passo em
que permanece sério. Por que ele tem que ser tão indecifrável assim? Podia
dar o menor sinal de que estou apresentável, ao menos.
— Gostou? — pergunta ainda me encarando.
— Muito! — Não consigo conter o sorriso. — Caramba, Felipe... Eu
não sabia que um advogado ganhava tão bem assim!
As palavras pairam pela sala por alguns segundos ao que me dou
conta do quão grande minha boca pode ser, às vezes. Vejo-o erguer as
sobrancelhas ligeiramente, fisgando o lábio inferior, em seguida:
— Um advogado, de fato, não ganha tanto — dá ênfase na primeira
palavra. — Por outro lado, não estamos falando de um qualquer, estamos?
Aconselho abrir o jornal mais vezes, Madu — ele se levanta, indo em direção
à porta. — Podemos ir?
Apesar de ter falado com a educação de sempre, sinto uma grande
alfinetada. Ele nunca foi tão frio comigo como agora. Droga! Eu e essa mania
de falar tudo sem pensar! Não achei que fosse ficar ofendido com um simples
comentário... mas, pensando bem, deve ter batalhado muito para chegar onde
está para que, simplesmente, seja comparado com outro.
Eu o acompanho sem dizer palavra alguma, chateada com o clima
pesado que se formou entre nós dois. Em todo o trajeto até o hall de entrada
do hotel, percebo os olhos daqueles com quem cruzamos se demorando em
mim. Finalmente me sinto como se pertencesse àquele lugar e não como um
peixinho fora d’água.
Assim que o chofer chega com a Mercedes alugada, nós dois
entramos e só então percebo o quanto está bonito em seu terno cinza e sua
gravata slim azul-marinho. Bonito e silencioso, por outro lado.
Observo com desânimo o trajeto pela janela do carro, enquanto luzes
de um laranja-queimado teimam em permanecer no céu, apesar de o sol já ter
ido embora.
Continuamos em silêncio o caminho todo, o que me deixa cada vez
mais irritada. Caramba, tínhamos que estar assim logo hoje? Estou tão
ansiosa com o coquetel, não quero fazer nada de errado. No entanto, embora
esteja torcendo para que ele me deixe a vontade como sempre faz, Felipe nem
ao menos dirige sua atenção para mim.
De tanto nervosismo, começo a ficar com um pouco de raiva. Não me
lembro de ter ficado assim nenhuma outra vez nesse mês inteiro em que
trabalhamos juntos, mas hoje me parece um bom dia para isso. Para quê
tenho que ir nesse evento estúpido se ele vai ficar me ignorando?
Chegamos ao endereço, onde existem vários manobristas esperando
para guiar o carro. Felipe encosta a mão no vão das minhas costas como fez
hoje de manhã, logo que chegamos ao hotel. Seus dedos me tocam com
leveza e sei que sua intenção é apenas me guiar pelo caminho que
desconheço.
Alcançamos, por fim, o elevador inteiro cromado, onde um enorme
espelho revela duas pessoas que formariam um belo casal, embora estejam
muito longe disso. Encontro-me tão desconfortável que daria tudo para voltar
à Curitiba imediatamente. No entanto, não sou do tipo que dá para trás. Já
que estamos aqui, vou até o fim.
Felipe aperta o último botão e constato que vamos para a cobertura.
Quando o painel indica que estamos quase chegando, ele aproxima seu rosto
da minha orelha e, tão logo começa a sussurrar, posso sentir sua respiração
morna ricochetear contra a pele:
— Essa noite você vai conhecer muitos homens que gostam de ter o
ego inflado, Madu — diz, fazendo cada pelo do meu corpo eriçar. — E é por
isso que você está aqui: faça-os se sentir especiais.
— Como vou fazer isso? — pergunto, arregalando os olhos, ao que a
porta do elevador abre.
— Sendo você mesma. — Pisca para mim, adiantando-se em sair do
cubículo no qual estamos. — Com sorte, fecharemos muitos negócios essa
noite.
Deixo que as pernas me guiem pelo caminho traçado por ele, de
maneira confiante. Estou no cenário de uma novela, tenho certeza! Nunca
estive em uma cobertura antes, mas não preciso de muito para saber que essa
se sobressai às demais. Seu chão é inteiro coberto por um deck de madeira
rústico e o espaço é todo cercado por vidro temperado. Uma piscina revestida
de mármore está coberta por balões perolados muito redondos.
Não têm mais do que uma dúzia de convidados, no entanto sinto que
ainda chegarão mais. É surreal pensar que em plena segunda à noite, pessoas
se reúnam na cobertura luxuosa de um prédio qualquer em São Paulo,
trajando vestes que os preços poderiam assustar uma pessoa desavisada.
Felipe alcança um charmoso homem que aparenta ser alguns anos
mais velho que ele. Tem o cabelo preto e olhos castanhos, sua barba por fazer
lhe confere um ar extremamente sexy. Está com um cigarro preso nos lábios
ao cumprimentar Felipe calorosamente. Imagino que deva ser o famoso CEO
de que tanto tenho ouvido falar nos últimos dias.
Respiro fundo, sorrindo de maneira encantadora para os dois homens
que me dirigem a atenção no momento.
— Este é Renato Monteiro, diretor executivo da PoliBev — Felipe me
diz, com os braços cruzados sobre o peito.
Renato sorri com o cigarro ainda preso aos lábios, enquanto estende a
mão com confiança. Cumprimento-o cordialmente, notando seus olhos
escuros me examinarem de cima embaixo, quase em um segundo.
— Madu é a minha assistente pessoal — Felipe explica, parecendo ter
notado também.
— Vejo que tem um ótimo gosto para os seus funcionários, hein? —
Renato pergunta, rindo em seguida.
Instantaneamente sinto o sangue ferver e finalmente entendo algumas
coisas que não gostaria que estivessem acontecendo. Encaro Felipe nos olhos
para que ele saiba que, neste momento, estou extremamente furiosa! Ele me
trouxe aqui para isso? Para o seu cliente dar em cima de mim? Isso é um
absurdo! Ele acha que sou o quê?
— Vou beber alguma coisa — ele responde, sem desviar os olhos dos
meus. — Quer vir comigo escolher algo para você?
— Fiquem à vontade, já os alcanço de novo! — Renato profere, indo
até um grupo de homens na casa dos cinquenta que acabaram de chegar.
Começamos a andar em direção ao balcão de madeira perto da
churrasqueira, que está sendo usado como um bar improvisado. A quantidade
de bebidas é surpreendente, apesar de não ser a minha praia. Não sou muito
de beber, exceto por uma boa cervejinha. Até porque não sou de ferro,
também.
De toda forma, essa é última das minhas preocupações no momento.
Muito embora esteja com um sorriso deslumbrante estampado no rosto, fuzilo
Felipe pelo olhar com ardor. “Você me paga”, penso irritada cada vez que ele
me dirige aquela expressão de cachorro sem dono que hoje, em especial,
estou amando odiar.
— O que você vai querer? — pergunta, servindo-se de um Whisky
duplo sem gelo.
Arqueio as sobrancelhas, sentando-me em um dos bancos que
circundam a bancada. Cruzo as pernas lentamente, assegurando-me de que
ele tenha sua atenção fixa em mim.
— O mesmo que você — respondo provocativa. “Tudo bem, Felipe.
Se você quer brincar, quem sou eu para dizer não?”
Ele aparenta surpresa por alguns segundos, antes de me servir a
bebida. Arrasta uma banqueta de frente para mim, sentando-se nela em
seguida.
— Então você gosta de Whisky? — pergunta, tentando amenizar o
clima pesado.
— Nunca tomei, mas sempre há uma primeira vez, não é? — digo já
com o rosto enfiado no copo.
O gole que tomo desce rasgando, fora o gosto horrível de madeira que
fica na boca. Que droga, eu me meto em cada uma! Como alguém pode
gostar disso? Na segunda vez que bebo, tento fazer como quando tomo
remédio: prendendo a respiração. Não é tão ruim desta forma.
Logo assisto Renato vir em nossa direção e enterro o rosto no copo.
Ele puxa uma banqueta para perto de nós, fechando um triângulo. Suspiro
desanimada, ao passo em que os dois começam a conversar entre si. Apesar
de não falarem sobre negócios, o assunto deles é muito distante da minha
realidade, de forma que me mantenho alheia.
Permaneço sentada, sentindo-me como um objeto de decoração. Não
tenho a menor importância nesse coquetel idiota e nem ao menos entendo
qual é a do Felipe. Mesmo imersa em uma nuvem negra de amargura,
consigo captar os olhares cheios de cobiça que Renato me lança, vez ou
outra.
Cansada de não ter utilidade alguma depois do que me pareceu uma
eternidade, finalmente resolvo sair dali. Sirvo-me com um pouco mais de
Whisky, e então abandono os dois conversando. Meus olhos passam por cada
pessoa presente, todas em seus grupos fechados nos quais não me encaixo.
Quem estou enganando? Eu não pertenço a esse lugar!
Alcanço o vidro temperado que nos separa de uma queda que seria, no
mínimo, catastrófica. Contemplo a vista lá em baixo, sentindo um leve tremor
na ponta dos dedos. Os carros parecem miniaturas quando vistos daqui.
Perco-me nos pensamentos por tanto tempo e de tal maneira que, ao
sentir um leve toque no vão das costas, quase tenho um infarto. Viro o rosto
esperando encontrar os tão conhecidos traços de Felipe, no entanto sou
surpreendida ao me deparar com Renato.
Ele está fumando de novo e, embora eu odeie o cheiro de cigarro, sou
obrigada a admitir que quase não percebo nele. O seu perfume se sobressai
com excelência.
Pisco os olhos, confusa. Procuro por Felipe com uma olhada geral
pela cobertura, mas não o encontro. Renato percebe, uma vez que me explica:
— Ele foi ao toalete — sorri, apoiando-se pelos cotovelos ao meu
lado, no vidro. — Existe algo entre vocês dois?
Deixo a risada escapar dos lábios, sentindo a cabeça começando a
ficar mais leve pelo álcool.
— Ele é apenas o meu chefe — respondo, encarando-o.
— Ah, que sorte a minha! — Renato me exibe um sorriso de canto.
— Uma noite agradável como esta, na companhia da mulher mais bonita de
São Paulo inteira... isso é para poucos.
O sorriso no meu rosto se recusa a ir embora. Renato é um
galanteador nato! Não que seja difícil para ele, afinal de contas tem um
charme natural que poderia arrancar suspiros com facilidade. Preparo-me
para responder quando sou interrompida pela voz que já conheço tão bem:
— Grande Renato, que vista, hein? — Felipe diz, segurando seu
ombro com gentileza. — Muito obrigado por essa noite agradável.
— É cedo ainda, Felipe! — ele responde, apertando sua mão. — Nos
vemos na quarta, então?
— Te espero no hotel!
Afasto-me do vidro onde estive escorada, pretendendo me despedir
deste que é tão importante para Felipe. Ele recusa o aperto de mãos que
ofereço e me dá um demorado beijo na bochecha.
— Foi um prazer — digo, por educação.
— O prazer foi meu — replica, entregando-me seu cartão pessoal. —
Espero vê-la mais vezes! — completa, dirigindo-me uma piscadela discreta.
Despeço-me com um aceno na cabeça, acompanhando Felipe em
direção à saída. Percebo que está mais quieto que o normal, no entanto não
faço nada quanto a isso. Um pouco porque ainda estou chateada com ele e um
pouco por conta do álcool que ingeri.
O caminho de volta aparenta ser bem mais rápido, de modo que logo
me vejo descendo do carro novamente. Felipe não tira os olhos de mim até
que cheguemos à suíte, onde finalmente rompe o silêncio:
— O que ele te deu? — pergunta, recostando-se no batente da porta
com os braços cruzados sobre o peito.
— Ah, isso? — Entrego o cartão em sua mão. — Acho que alguém
gostou de mim!
Ele revira os olhos ao passar do meu lado, visivelmente irritado.
Começa a afrouxar a gravata, marchando para o seu quarto, mas então estaca
subitamente no caminho. Observo-o girar os calcanhares, parando de frente
para mim, ainda que um pouco longe:
— Ele não é homem para você! — Sua voz me penetra os tímpanos
com suavidade, ao que meu coração começa a batucar violentamente.
— Perdão? — indago para ter certeza de que ouvi certo, porque, no
momento, estou com muita raiva.
Balde de Água
Fria
— Eu disse que ele não é homem para você! — Sua voz é firme ao
repetir o que já havia dito.
— E por que não?
Sustentamos o silêncio por alguns segundos, com os olhos fixos um
no outro. O único som que se faz presente é o de nossas respirações tensas.
Felipe está com uma expressão emburrada, no entanto não mexe um único
músculo desde que a pergunta ficou parada no ar.
— Quem é o homem certo para mim, então? — Dou um passo à
frente, recusando-me em deixar esse momento passar.
— Qualquer um que não ele — murmura, fazendo-me perceber que
não vai ceder tão facilmente.
— Ah é?! Qual o problema com o Renato? — Aproximo-me dele um
pouco mais. Estou sentindo tanta raiva que preciso me segurar para não
chorar. — Ele é divertido, bonito, tem um emprego estável... Não vejo
qualquer impedimento.
Felipe respira fundo, fechando o punho em frente à boca.
— Madu, todos conhecem bem a fama dele — a forma cuidadosa
como fala faz parecer que está escolhendo as palavras certas para usar. — Ele
só quer se divertir.
— E se eu também só quiser isso? — pergunto em provocação.
— Tudo bem! — Sorri amargurado, assentindo com a cabeça. —
Você está certa, eu não tenho nada com a sua vida. Peço desculpas por me
preocupar — diz, virando-se para entrar no seu quarto.
Meus sentimentos estão bagunçados. Hoje foi um dia com muitos
acontecimentos e eu simplesmente não estou conseguindo raciocinar direito
por causa do Whisky. Além do mais, não posso simplesmente ignorar a
mágoa. Ainda que seja inacreditável o fato de ele claramente estar com
ciúmes, o motivo para esse sentimento foi culpa dele mesmo!
Por isso, em um ímpeto de coragem — e um pouco de ajuda do álcool
no meu organismo — ouço minha voz sair quase aos berros.
— Pera aí! — peço, ganhando sua atenção. — Não estou
conseguindo te entender, Felipe! Você praticamente me obrigou a vir nessa
viagem, disse que precisava muito de mim. Logo no primeiro dia me
comprou a droga de um vestido de cinco mil reais e quando chegamos no
coquetel ainda teve a coragem de me pedir para paquerar seus clientes? —
Neste ponto estou ofegante, mas não vou parar agora, tampouco. — Qual o
seu problema?
— Eu não te pedi para paquerar ninguém! — Suas sobrancelhas estão
unidas, ao se aproximar de mim em passos lentos. — Te pedi para ser
simpática com eles e não para marcar a merda de um encontro!
— E daí se eu marcar? — questiono, sentindo o sangue ferver. —
Você está com ciúmes de mim?
Felipe arqueia as sobrancelhas, em sinal de surpresa. Observo-o
sorrir, balançando a cabeça em negativa:
— Não me provoque, Madu! — sussurra.
— Por que não? — Minha voz falha na última palavra. Ele está
perigosamente perto de mim.
— Porque eu consigo tudo o que quero! — Sinto sua respiração
morna contra o rosto e minhas pernas perdem a força momentaneamente.
Fito-o nos olhos que, embora mais azuis que nunca, parecem arder em
ira. Ainda que minha vontade seja de levar essa discussão adiante, fico
inebriada pelo seu aroma tão próximo. Não digo o perfume, o qual já conheço
tão bem, mas sim o cheiro dele mesmo. Acho que nunca estivemos tão
próximos um do outro como agora.
— Só acredito vendo! — devolvo, encarando-o.
Felipe me apanha com força pelos braços e, antes que eu possa ter
alguma reação, sou levada de encontro à parede, provocando um baque.
Apesar de o impacto ter doído um pouco, sou incapaz de protestar, uma vez
que ele segura meu rosto entre suas mãos grandes, percorrendo a distância
entre a gente.
Sua boca vem de encontro à minha com certa urgência e logo sinto o
seu sabor delicioso, que tanto ansiei. Os dedos se enroscam pelo meu cabelo,
deixando-me inteira arrepiada, ao passo em que pressiona o corpo contra o
meu.
Envolvo-o com os braços desejando senti-lo por inteiro e mal consigo
respirar, tamanha é a necessidade com a qual me entrego a ele. Suas mãos
vão até às minhas coxas, segurando-as firmemente ao que me ergue do chão
com facilidade. Fico encaixada entre ele e a parede, aproveitando para
enroscar as pernas em torno dos seus quadris.
Suas mãos sobem pela parte de trás das coxas, eventualmente as
apertando. Assim que alcança o bumbum, enterra seus dedos com violência, e
ouço um gemido baixo vindo dele.
Estremeço ao perceber que Felipe está com tanto tesão quanto eu,
sentindo seu volume contra a virilha. Caramba, estou tão excitada que tenho
medo de acordar a qualquer momento de mais um sonho. Simplesmente não
posso estar sonhando, porque a forma como ele me toca jamais poderia ser
invenção da minha cabeça.
Deixo meus dedos alcançarem os botões da sua camisa e desabotôo
um por um o mais rápido que consigo, mantendo os olhos fechados,
deixando-o explorar minha boca com a língua. Tiro a camisa às cegas,
desejando sentir a sua pele o quanto antes.
Felipe prende os meus cabelos com força, obrigando-me a erguer o
pescoço. Sinto seus lábios úmidos roçarem a pele antes que ele dê uma
sucessão de mordidinhas com a ponta dos dentes. Toda vez que me toca o
pescoço, uma onda de energia percorre cada músculo do meu corpo,
roubando o meu fôlego. Começo a balançar o quadril sutilmente, desejando
sentir mais e mais de Felipe. Estou desesperada por ele.
De repente, ele sela nossos lábios uma última vez, soltando minhas
pernas, e deixando-me novamente em pé. Ao se afastar de mim, minha
respiração ainda está alterada, assim como a dele.
Encaro-o com dúvida, arrancando de Felipe um sorriso torto.
— Consegui te convencer? — Pisca, apoiando o cotovelo na parede,
do meu lado.
— Ainda não! — respondo, tornando a enlaçá-lo com os braços.
Busco sua boca, sedenta por seu sabor, ao mesmo tempo em que tento
tirar meus sapatos de salto, que me incomodam depois de tanto tempo os
usando.
Felipe corresponde ao beijo com ardor, deixando suas mãos
percorrerem minha cintura, mesmo quando penso ser impossível que
estejamos mais próximos um do outro do que no momento. Sinto seu peito
subir e descer contra mim, seguindo o ritmo agitado em que respira.
Quando acho que estamos mais próximos de saciar o desejo que
viemos reprimindo nesses últimos dias, ele interrompe o contato novamente,
dessa vez com uma expressão preocupada no rosto.
Sua mão direita me acaricia a nuca com suavidade e ele tem o olhar
obscurecido. Vejo-o enrugar a testa, parecendo pensativo. Meus olhos recaem
sobre o seu abdômen malhado e penso no desperdício que é estar tão perto e
tão longe do que tenho desejado.
— Qual o problema? — pergunto, mas no meu íntimo penso que o
único erro existente aqui é o fato de não estarmos agarrados um no outro
como em segundos atrás.
— Não posso, Madu — sua voz é pouco mais alta que um sussurro.
As palavras, no entanto, vêm como um balde de água fria. “Não, por favor,
Felipe...”, penso estarrecida.
— Por quê? — limito-me a perguntar. — Você parecia querer tanto
quanto eu!
— O problema é que também não sou o homem certo para você —
ele diz, encostando sua testa na minha. — Você não me conhece... poderia se
surpreender.
Sinto-me incapaz de encontrar palavras no momento. Encaro-o com
expectativa, tentando ordenar os pensamentos que me assolam. Por que
precisamos complicar uma questão que parece tão simples?
Desde que o conheci, venho sendo atraída como um imã. Mas agora a
perspectiva é outra, tendo em vista a forma como ele também não pôde se
conter hoje, em relação aos seus sentimentos. O modo como me beijou é o
suficiente para que eu saiba que também me deseja, talvez tanto quanto eu o
quero.
Então por que lutar contra isso?

Acordo sem saber onde estou e leva alguns segundos até que me
lembre do dia anterior. A última lembrança que tenho depois de Felipe ter se
dirigido até o seu quarto, foi de como fiquei horas a fio sem conseguir
dormir, uma vez que os meus pensamentos se atropelavam uns nos outros
incansavelmente. Eu rolava na cama cada vez que tentava entender o porquê
de não podermos simplesmente aproveitar aquele desejo ardente que
havíamos vivenciado... chegar tão longe para simplesmente parar daquela
forma me parecia injusto.
Esfrego os olhos, tentando afastar o sono. A primeira coisa que
percebo é que graças aos céus não estou com ressaca. Ponto para mim! Com
a mão esquerda, alcanço o celular no criado-mudo, conferindo as horas. Vejo
com espanto que são pouco mais de onze da manhã e me recordo de que a
audiência de Felipe estava marcada para as nove. Ele ainda deve estar lá.
Em passos letárgicos, caminho até o banheiro, onde faço a minha
higiene matinal. Prendo o cabelo em um coque no alto da cabeça e aproveito
que estou sozinha para sair de camisola mesmo.
Ao chegar à sala, porém, deparo-me com Felipe lendo o jornal do dia,
bastante concentrado. Está vestindo um terno azul-marinho slim fit com uma
camisa branca e gravata preta lisa. Tem uma perna dobrada sobre a outra, que
faz com que o tecido da calça aperte, destacando suas coxas grossas.
Percebo uma grande bandeja de vime na mesa de centro, com o que
parece ser o meu café da manhã. Vejo um prato com waffles acompanhados
de xarope de bordo, um croissant de um dourado convidativo, uma xícara de
café e uma jarra de suco de laranja. Um pratinho a parte possui uma fatia de
mamão, assim como um cacho de uvas frescas e alguns morangos
amontoados. Em meio a tudo isso, noto um pequenino arranjo de miúdas
flores alegres enfeitando o conjunto.
Solto um suspiro audível, ganhando sua atenção para mim. Um
sorriso envolvente rasga seus lábios, fazendo o meu coração acelerar.
— Estava quase indo te acordar — diz com suavidade e dobra o seu
jornal cuidadosamente.
— Bem, eu não teria objeções quanto a isso — respondo, sentando-
me no chão e encaixando as pernas ao redor da maciça mesinha.
Noto seus olhos recaírem sobre o meu decote e acompanharem a
camisola até chegar às coxas. Minhas bochechas queimam instantaneamente,
ainda que, em meu íntimo, esteja lisonjeada por saber que o afeto, mesmo
que um pouco.
Felipe se senta do meu lado, esticando as pernas e cruzando os pés.
Estende a mão e alcança o suco de laranja, servindo-se em seguida. Encontro-
me incapaz de desviar os olhos dele. Está tão lindo e aparenta um bom humor
tão inabalável, que preciso perguntar:
— Como foi a audiência?
— Conseguimos um acordo! — Sorri, exibindo dentes brancos
perfeitamente alinhados.
— Isso é ótimo! — respondo com a boca cheia de croissant.
Ele cruza os braços atrás da cabeça, respirando fundo. Nossos olhos
se encontram por alguns segundos, então ele começa a falar:
— Madu, sobre ontem... — sua voz morre, deixando-nos em um
silêncio constrangedor.
Quero perguntar para ele o que tem sobre ontem, mas me contenho,
no entanto. Lembro-me de suas mãos fortes me segurando pelas pernas
enquanto me erguia do chão, decidido. Um arrepio percorre a espinha e me
vejo desviando os olhos dele. É como se tivéssemos nos lembrado da mesma
coisa simultaneamente.
Ele pigarreia, desconcertado.
— O que aconteceu foi definitivamente um erro — suas palavras vêm
ao meu encontro como bofetadas. — Você é a minha funcionária. Isso não
está certo.
— Esse é o problema? — pergunto. — Porque se for isso, quero
demissão! — Minha voz paira no ar por alguns segundos.
Droga! Isso soou tão patético e infantil! Eu não posso simplesmente
falar o que vem na cabeça, mas o fato é que não tem como fingir que está
tudo bem. A tensão sexual entre nós dois é gritante, ele sabe disso. Felipe
sorri, balançando a cabeça com desânimo.
— Você ainda é nova... — ele me diz com aquele tom de quem
procura a melhor maneira para explicar alguma coisa. — É uma menina linda
e tem um futuro todo pela frente.
— Felipe — sussurro, chateada com o rumo de nossa conversa. — O
jeito que você me beijou ontem...
— Eu estava alcoolizado — responde categoricamente. — Entenderei
perfeitamente se quiser voltar para Curitiba, posso providenciar a primeira
passagem.
— O quê? — A pergunta sai em um engasgo. — Não! Você me pediu
para vir, vou embora com você.
— Quero me desculpar se em algum momento dei a falsa esperança
de existir a possibilidade de um relacionamento entre nós dois — Felipe solta
um pesado suspiro, levantando-se com um impulso. — Porque essa ideia é
incabível.
Observo-o alcançar o jornal que jazia no sofá e, antes de abandonar a
sala, dirige-se a mim, uma última vez:
— O Renato teve que adiantar a reunião de amanhã para hoje. Ele
estará aqui para o almoço. Preciso que esteja pronta por volta do meio dia e
meia, vou precisar de você.
Minha cabeça está girando no momento em que o assisto me dar às
costas. Termino de tomar o café da manhã o mais rápido que consigo,
engolindo a comida com pressa.
Apesar de estar me sentindo humilhada e triste, decido não entregar
os pontos assim tão fácil. Até porque, como ele mesmo diz: eu, de fato, sou
teimosa. Jamais desisto de algo sem antes tentar várias vezes.
Vou direto ao banheiro, tendo em vista o tempo escasso que terei para
me arrumar. Tomo um banho rápido e passo uma maquiagem leve no rosto,
soltando o meu cabelo em seguida.
Visto uma saia rodada preta com poás, fazendo conjunto com uma
blusinha de seda branca, completo colocando um cinto caramelo e sapatilhas.
Alcanço o meu notebook de trabalho, sabendo que vou precisar dele,
uma vez que uma das minhas funções é acompanhar Felipe em suas reuniões,
fazendo anotações gerais sobre o que foi conversado. Quase como se fosse
uma escrivã. E, sendo a PoliBev uma corporação que sempre está nos
noticiários, acredito que terei muito o que anotar.
Tão logo saio do meu quarto, deparo-me com Felipe organizando a
pequena sala de reuniões desta imensa e luxuosa suíte. Logo que entro no
ambiente sinto a fragrância deliciosa do aromatizador da Le Lis Blanc que ele
acabou de espirrar e reconheço o mesmo cheiro de seu escritório.
Inspiro profundamente, ajeitando o computador em uma poltrona de
couro, a que decidi que usarei na reunião. Vejo-o me acompanhar com o
olhar e assim que o encaro, noto que está sorrindo:
— Você não tem calças? — pergunta, em tom de brincadeira. — É
sério, nesse tempo que trabalha comigo, nunca vi suas pernas cobertas.
Dou de ombros, deixando a risada ressoar pelo cômodo.
— Gosto das minhas pernas — digo, ao que seguimos para encontrar
Renato em um dos restaurantes do hotel. — E acho que você deveria parar de
reparar nelas, pelo bem da nossa relação profissional — concluo com uma
piscadela e abandono a suíte, indo apertar o botão do elevador.
Assim que olho para trás, encontro-o fisgando os lábios enquanto
tranca a porta, com uma expressão que até então nunca o tinha visto fazer:
Felipe está com a maior cara de safado. Lembro-me dele me advertindo para
não o provocar ontem à noite, e permito-me um sorriso ao me lembrar de
qual foi a consequência. “Acho bom você estar preparado, Felipe...” penso,
assistindo-o entrar no elevador junto comigo.
Reunião de
Negócios
O trajeto no elevador é silencioso, embora tenso. Felipe está recostado
em uma das paredes metálicas com as mãos nos bolsos. Seus olhos, no
entanto, não desgrudam de mim. Sinto um calor intenso subir pelas pernas, ao
passo que as palmas das minhas mãos estão suando frio. Caramba, eu poderia
agarrá-lo aqui mesmo! Como ele consegue fazer isso comigo?
Tão logo a porta abre, pulo para fora do cubículo, antes que acabe
fazendo alguma besteira. Se antes era difícil conviver com ele, agora que já o
tive por um breve momento é pior ainda. A todo momento, meus olhos
recaem sobre suas mãos grandes e lembro delas em mim, percorrendo meu
corpo com desejo e experiência. Que droga! Por que teve que ser tão bom?
Seria mais fácil esquecer caso não houvesse sido. Duvido muito de que exista
algo em que Felipe não seja perfeito.
Estremeço assim que ele toca o vão das minhas costas com a ponta
dos dedos, indicando a direção que devemos seguir. Eu simplesmente adoro
quando ele faz isso. Caminhamos em passos decididos até entrar no Nonno
Ruggero, um dos restaurantes do hotel cuja especialidade é comida italiana.
A decoração é clássica e sofisticada. Tem os mesmos tons frios que
imperam os outros ambientes, embora uma luz amarelada traga um clima
confortável e aconchegante. Seguimos por um longo corredor ladeado por
mesas de quatro lugares e reconheço Renato sentado em uma quase ao fim do
restaurante, à esquerda, em um lugar que julgo ser bastante reservado.
Logo que chegamos, Felipe o cumprimenta, sentando-se de frente
para ele. Renato me dá um beijo na bochecha, novamente negando meu
aperto de mãos e, antes que eu possa me sentar ao lado de Felipe, ele afasta
uma cadeira para mim, forçando-me a sentar ao seu lado. Não que seja
realmente difícil. Renato é tão cavalheiro quanto Felipe. A diferença é que ele
não tem problemas em demonstrar que está interessado em mim, enquanto
que meu chefe, sim.
Um garçom prestativo vem com os cardápios e Renato não hesita em
pedir um vinho tinto Cabernet Sauvignon da vinícola Aurora que, segundo
ele, é considerado um dos mais excelentes vinhos brasileiros.
— Sabe como é — começa, com um sorriso no rosto. — Os melhores
negócios são feitos com um pouco de álcool.
— Não há como negar! — Felipe responde e percebo que está
olhando para mim.
Meu coração acelera subitamente e abaixo os olhos para o cardápio.
Não sei o que ele pretende, mas uma coisa é certa: vou acabar
enlouquecendo!
Meus olhos estudam as fotos apetitosas que vejo no livreto em minhas
mãos. Ainda que tenha acabado de tomar café da manhã, não posso negar que
minha gula está quase gritando. A maioria dos pratos eu jamais comi em toda
a minha vida.
— Aconselho o ravioli di mozzarella di bufala al pomodoro — Felipe
quebra o silêncio, com sua voz firme. — É fantástico!
— Bem, acho que vou na sua — Renato diz, fechando o seu cardápio.
— Já me provou que tem bom gosto...
Minhas bochechas coram ao que ouço suas palavras. Pigarreio,
fingindo estar distraída, e fecho cuidadosamente o menu.
— Eu também quero esse — digo, observando o garçom chegar com
o nosso vinho.
O almoço é uma mistura perigosa entre divertido e intenso. Não sei
até que ponto é coisa da minha cabeça, ou se de fato está acontecendo, mas
tenho a sensação de pegar algumas indiretas e alfinetadas no ar, vindas de
ambos. Por vezes soa como brincadeira, então nós três rimos de maneira
divertida, como se estivesse tudo nos conformes. Às vezes, no entanto,
percebo olhares aqui, suspiros ali... Talvez eu esteja viajando. É difícil dizer.
Embora eu me encontre apaixonada por Felipe, é complicado não me
abalar com a abordagem direta de Renato. Ele realmente parece ser
mulherengo, pela confiança que vejo nas suas cantadas sutis e também na
maneira como o pego olhando para o decote de uma garçonete que
eventualmente passa por aqui. Por outro lado, ele é tão bonito quanto
charmoso; e vejo que Felipe fica incomodado com a nossa aproximação.
Enquanto os observo conversarem por códigos, pondero sobre o quão
proveitoso pode ser o interesse de Renato nessa situação. Talvez o que Felipe
esteja precisando para ceder seja de um empurrãozinho... Afinal, que mal
pode haver nisso?

Sento-me confortavelmente com o notebook no colo, encarando


Renato fumar despreocupado, escorado na janela da sala de reuniões. Abro
um novo documento no Word, ouvindo a voz de Felipe ressoar abafada. Ele
se encontra no cômodo ao lado, falando no celular com Leonor.
Uma brisa vem da janela, trazendo o perfume de Renato até minhas
narinas. Inspiro profundamente, praguejando em pensamentos o carma que
estou vivendo. “Céus, Renato é tão cheiroso quanto Felipe”, penso comigo
mesma, atordoada.
Observo-o amassar a guimba no cinzeiro de cristal da mesa de centro,
então ele senta no sofá de couro posicionado de frente para mim. Está com
um sorriso superior no rosto que me incomoda um pouco.
— Quando vocês vão embora? — pergunta, cruzando as pernas.
— Domingo, eu acho.
Renato inclina sua cabeça para o lado, olhando-me intensamente nos
olhos. Algo na forma como me encara faz o sangue gelar.
— Conheço um restaurante incrível que gostaria muito de te levar —
seus lábios finos repuxam levemente para o lado, em um sorrisinho cínico. —
O que me diz?
Pisco os olhos, confusa. Ouvimos os passos de Felipe se aproximar e,
finalmente, entrar na sala onde estamos. Percebo que tirou o paletó, dobrando
as mangas da camisa até os cotovelos, o que particularmente gosto muito.
Sua expressão calma muda assim que nos observa, parecendo entender o que
nos deixar sozinhos poderia representar.
Vejo-o fechar a cara, jogando-se no sofá ao meu lado, ficando de
frente para Renato. Ele apoia o braço direito no encosto do móvel, ocupando-
o inteiro, enquanto dobra uma das pernas por cima da outra. Meus olhos
demoram-se nos seus músculos apertando o algodão egípcio com o qual sua
camisa é feita e engulo em seco. Não adianta... Por mais que Renato seja
charmoso, Felipe me tira do sério de um jeito que nunca ninguém conseguiu
fazer antes. Estou completamente mergulhada nesse sentimento.
Uma vez que os dois começam a conversar, no entanto, sou
completamente transportada para um mundo de podridão. Não sobra mais
espaço para pensar em nada que não seja aquilo que meus ouvidos captam e
tenho que digitar rapidamente.
Renato explica calmamente para Felipe a onda de processos que a
PoliBev está recendo por assédio sexual. São inúmeros casos que se repetem
em todo o país. De acordo com ele, um verdadeiro escândalo que pode
influenciar nas ações de maneira negativa.
Fico perplexa ao ouvi-lo explicar sobre o caso mais recente que
aconteceu no Rio de Janeiro, onde os supervisores de uma das fábricas
contrataram prostitutas e as levaram seminuas em ambiente de trabalho.
Ouço os absurdos ditos com naturalidade por Renato, tentando captar
as reações de Felipe. Ele é sempre muito profissional com seus clientes.
Encontra-se, no momento, com os braços cruzados e uma das mãos
repousando logo abaixo do queixo. O dedo indicador está sobre os lábios, ao
passo que seus olhos sérios não desviam do seu cliente. Vejo-o assentir vez
ou outra, muito atento ao que lhe é dito.
Pelo que consigo entender, Renato quer contratá-lo para defender a
empresa contra os processos, ainda que todos sejam cabíveis. Meu coração se
comprime ao me colocar no lugar desses funcionários: quão injusto deve ser
passar por uma situação assim e acabar perdendo a causa?

A reunião se estende até o começo da noite, de forma que, quando


Felipe desce para acompanhar Renato até o saguão do hotel, permito-me ficar
na suíte. Minhas mãos estão doloridas de tanto digitar e a cabeça está
latejando, como se alguém estivesse batendo com um martelo nas têmporas,
incansavelmente.
Fecho os olhos, logo depois de tirar o notebook do colo. As coxas
estão mornas depois de servirem por tantas horas como apoio. Caramba, acho
que nunca fizemos uma reunião tão demorada quanto a de hoje. Também
pudera, são tantos casos que, de fato, seria impossível sintetizá-los em
minutos.
Só de me lembrar dos absurdos que ouvi durante horas a fio, sinto o
sangue gelar. É inacreditável pensar que uma empresa tão grande quanto a
PoliBev seja palco para acontecimentos como estes pelos quais estão sendo
acusados. No entanto, o que mais me enoja é o fato de que possivelmente
sairão como inocentes. No fim das contas, é sempre assim que as coisas
funcionam: quem tem dinheiro tem o mundo.
Tão logo a porta é aberta com um estalido, ouço os passos suaves de
Felipe virem em direção a sala de reuniões. Ainda de olhos fechados, escuto
o barulho do estofado afundar sobre o peso de seu corpo, ao que ele solta um
suspiro de exaustão.
Ao levantar as pálpebras, encontro-o deitado com a cabeça próxima
de onde estou. Demoro-me observando seus cabelos loiros e brilhantes
quando sou surpreendida por ele: Felipe inclina sua cabeça para trás,
encontrando os meus olhos com os seus:
— Está cansada? — pergunta atencioso. — Essa reunião foi puxada.
— Foi mesmo — suspiro, esparramando-me na poltrona. — Estou é
varada de fome!
Sua risada é envolvente, fazendo-me rir com ele.
— Você não tem fundo, né? — indaga, afrouxando a gravata.
— Mas já faz horas que comemos! — digo de maneira dramática,
fazendo-o rir um pouco mais.
— Bem, temos que dar um jeito nisso — Felipe se senta no sofá em
um impulso. — Não quero ser acusado de deixar meus funcionários
desnutridos!
O sorriso que me mostra deixa minhas pernas moles. “Como você
pode ser tão incrivelmente lindo desse jeito? Chega a dar raiva”, penso por
um momento, no entanto, a brincadeira me lembra a pauta principal da
reunião, deixando-me com aquele aperto horrível no coração que senti
durante a tarde inteira, de maneira que tenho que perguntar:
— Felipe... — chamo, sem saber exatamente como dizer sem parecer
inapropriada. — Você vai pegar a causa?
— Hum? — ele murmura, distraído.
— Você vai defender a PoliBev?
— Bem, é quase certo que sim. Estamos falando de honorários
milionários! — Sua expressão é séria enquanto ele mantém os braços
cruzados sobre o peito.
— Mas... Não parece errado? — questiono timidamente, temendo que
ele interprete da maneira errada. — Quero dizer, são acusações graves!
Felipe dá nos ombros, levantando-se do sofá em seguida. Seus dedos
começam a desabotoar a camisa com agilidade, ao passo em que seus pés o
levam tranquilamente em direção à porta de saída.
— É trabalho, Madu — ele exibe um sorriso torto, embora seus olhos
estejam sombrios. — E logo você vai descobrir que um bom advogado é
aquele que conhece as leis bem o suficiente a ponto de conseguir contorná-
las.
Assisto-o caminhar em direção ao seu quarto, tirando a camisa assim
que deixa a sala de reuniões. Pego-me mordendo os lábios com desejo,
mesmo que a visão de suas costas largas e fortes tenha sido por poucos
segundos.
Vou até o meu quarto em passos preguiçosos, onde aproveito para
pegar uma cerveja no frigobar, afinal de contas, mereço demais depois de
maçantes horas trabalhando.
Sento-me confortavelmente na cama, esticando as pernas. A cerveja
desce pela garganta refrescante e saborosa, resgatando o meu bom humor.
Alcanço o celular esquecido na escrivaninha por muito tempo e noto uma
nova mensagem de Vanessa: “E aí, já pegou o gostosão?”.
Deixo-me rir gostosamente, dando-me conta do quanto a sua presença
brincalhona me faz falta, ainda que faça poucos dias que não nos vemos. Dou
mais um gole na bebida antes de digitar: “Só trabalho, trabalho e mais
trabalho por aqui... E por aí, muita matéria?”.
Antes que ela me responda, no entanto, ouço três leves batidas na
porta.
— Pode entrar! — digo distraída, com a long neck já na boca.
A primeira coisa que vejo é seu rosto com aquela expressão
maravilhosa que faria qualquer mulher se derreter inteira. Logo depois
percebo o seu peito nu, e só então meus olhos recaem para a toalha felpuda
branca que está enrolada na sua cintura. Mas que merda é essa?
— O que acha de sairmos para jantar? — Felipe pergunta, ignorando
a minha cara de chocada. — Conheço lugares ótimos, você iria adorar!
— O quê? — pergunto, com os olhos fixos no nó da sua toalha. No
momento, a única coisa que faço é concentrar minhas energias para que ela
caia. Céus, como eu quero isso!
— Madu? — Ele inclina a cabeça para o lado, com um sorriso no
rosto. — O que você acha? — “Felipe, querido... A única coisa que eu acho é
que você está muito ferrado por aparecer aqui desse jeito!”
— Parece ótimo! — respondo, lutando para manter o foco. — Mas
poderíamos ir a algum lugar em que eu não precisasse usar roupas que
custem mais do que um salário mínimo... Pode ser? — Dirijo-lhe um sorriso
amável, fazendo-o rir.
— Acho válido — pisca para mim, saindo do quarto em seguida.
Meu coração está acelerado quando me lembro de que estava
conversando no celular com a Nessa. Droga! Será que a Leonor também fica
assim, vendo-o dessa forma?
“Você não está perdendo nada, pra falar a verdade. Há boatos de que
a UFPR vai entrar em greve”, leio apressada. Termino a cerveja em um só
gole, deixando a garrafinha vazia em cima do criado.
Tiro as roupas apressada, dirigindo-me ao banheiro com o celular na
mão. Ligo o chuveiro, digitando uma última mensagem para Vanessa, antes
de entrar na água escaldante, do jeitinho que gosto: “Hoje ele não escapa”.
Enquanto a água percorre o meu corpo, deixando minha pele
relaxada, tudo o que consigo pensar é em minha mão arrancando a toalha de
Felipe, com um único movimento. Como o desejo... Que droga!
Termino o banho e saio decidida em direção ao closet, pensando
exatamente na roupa que vai me ajudar a tirá-lo do sério essa noite.
Culinária
Francesa
Assim que entro na sala, sinto os olhos cobiçosos de Felipe sobre
mim. Tento reprimir um sorriso, divertindo-me com a forma como não
consegue disfarçar o que está imaginando no momento. Eu sei exatamente o
que é, porque estou pensando na mesma coisa: suas mãos em mim,
arrancando, com agilidade, o tecido que me cobre o corpo...
O vestido que estou usando foi comprado em um momento de
impulso e assim que passei o cartão de crédito veio o arrependimento. Afinal
de contas, nunca fui tanto de sair, por isso jurava que ele ficaria encostado no
guarda-roupa. O fato é que hoje estou muito feliz por tê-lo trazido, ainda que
contra a vontade, porque, realmente, estou me sentindo linda.
As mangas compridas de renda compensam o imenso decote nas
costas, que termina perigosamente perto de onde o meu bumbum começa. Ele
é de um vermelho-vivo incrível, que contrasta com a minha pele pálida,
resultando em um conjunto sensual. Nos pés estou usando os scarpins que
ganhei de Felipe, já que não é sempre que se tem a chance de calçar um
Valentino.
Vejo-o abrir a boca uma ou duas vezes para falar, no entanto percebo,
deliciada, que está sem palavras. É isso aí, consegui deixá-lo de queixo caído!
— O que você achou? — Dirijo-lhe um olhar inocente, aproximando-
me em passos rápidos.
— Acho que você está jogando sujo! — Sorri de lado, tocando
minhas costas nuas com seus dedos, como sempre faz para indicar o
caminho.
Sinto uma corrente elétrica percorrer cada milímetro do corpo, ao
passo em que o deixo me guiar. Sua mão escorrega um pouco além de onde
costuma me tocar, de forma que quase alcança o final do decote do vestido.
Prendo a respiração, aproveitando que estou de costas para fisgar os
lábios sem que ele veja. Ok. Acho que estou excitada. Como ele consegue
fazer isso comigo?
Saímos juntos de nossa suíte e, ao trancar a porta, desvencilho-me de
seu toque protetor para chamar o elevador. Não demora para que ele me
alcance, ficando tão próximo que quase sinto sua respiração, o que me faz
estremecer de tensão. Mas que droga! Ele só pode estar brincando comigo!
Passamos pelo saguão do hotel sem trocar palavra alguma. Nesse
trajeto, noto um homem ou outro torcendo o pescoço para me olhar. Minhas
bochechas queimam instantaneamente, ainda que esteja me sentindo incrível.
É estranho como em um momento posso me sentir no topo do mundo e, no
seguinte, já não estar tão certa disso.
De toda forma, é somente ao entrar no carro que Felipe se manifesta.
Com um movimento rápido, ele se inclina em minha direção, fechando o seu
cinto de segurança com um estalido. Aproveitando a nossa proximidade, leva
seu rosto até a minha orelha, tocando meus cabelos com a ponta do nariz.
— Comida francesa ou portuguesa? — pergunta em um sussurro que
ricocheteia contra a pele, arrepiando-me inteira. Tudo bem, eu
definitivamente estou excitada! Dane-se a comida!
Suspiro, sentindo-me extasiada. Giro o rosto e o encontro me fitando
com um sorriso no rosto.
— Acho que nunca comi comida francesa e a única coisa que conheço
da portuguesa é bacalhoada... — digo, esforçando-me para ficar calma. —
Vou deixar essa decisão com você.
Felipe assente com a cabeça, arrancando com o carro em seguida.

É impossível prestar atenção em qualquer coisa nessa noite. Por mais


que eu tente arrumar mil motivos convincentes para não persistir em me
envolver, no fim basta que Felipe me encare por alguns segundos, com os
lábios finos retorcidos em um risinho e então já me pego derretida,
imaginando todas as formas que poderia agarrá-lo aqui mesmo.
Ele é tão sexy sem fazer o menor esforço para isso. Será que tem
noção do quanto pode ser irresistível? Bem, deve ter. Às vezes sinto que
estamos jogando um com o outro, o problema é que em um jogo sempre há
um vencedor e um perdedor. Quem sairá ganhando, no fim das contas?
Felipe me leva a um restaurante chamado Chef Rouge, cuja
especialidade é comida francesa. De paredes vermelhas como o meu vestido e
mesas redondas com charmosas cadeiras de vime, o ambiente por si só já me
deixa sem fôlego.
Como não conheço nenhum prato desta culinária, ele escolhe um
serviço famoso da casa, conhecido como degustação em quatro etapas. Assim
sendo, o chef prepara suas quatro especialidades, para que possamos saborear
um pouco de cada.
Enquanto aguardamos a entrada, Felipe pede um espumante brut Cave
Geisse, que chega logo em seguida. Minha cabeça está flutuando quando paro
para pensar que estou nesse lugar maravilhoso com ele. Muito embora
estejamos apenas como chefe e funcionária, a experiência em si já é
satisfatória.
Nessa noite, Felipe está apostando em um visual mais despojado,
ainda que incrivelmente elegante. Está usando uma camisa branca com um
colete azul-petróleo por cima. É a primeira vez que o vejo usar jeans, nos
pés, um sapato de camurça marrom.
Tão logo o garçom chega com o nosso espumante, Felipe sugere um
brinde.
— E a que devemos brindar? — questiono, sem desviar os olhos dos
seus.
— À essa noite agradável que está apenas começando! — diz
categoricamente, levando a taça até sua boca.
Imito o gesto, no entanto encontro-me tão distraída que derrubo um
pouco no busto. Alcanço o guardanapo ligeiramente e, com batidinhas, limpo
o rastro da bebida que escorreu decote adentro.
Felipe acompanha meus movimentos sem piscar, cruzando as mãos
sobre a mesa. Ouço-o respirar fundo, então aproveito a deixa para enrolar um
pouco além do necessário para limpar o lugar em que o mantenho focado.
De repente, uma ideia maliciosa me invade a mente, arrancando um
sorriso dos meus lábios. Levo a mão até a boca, pigarreando suavemente,
como se acabasse de me recordar de um fato esquecido.
— Hoje, enquanto você falava com a Leonor, no telefone, Renato e eu
conversamos um pouco... — digo com casualidade, arranhando o dedo contra
a toalha de mesa. Se o que Felipe precisa é de um empurrãozinho, estou
preparada para dar o impulso. — Ele é um galanteador, não é?
Noto um leve arquear em suas sobrancelhas, então ele leva a taça à
boca, dando um generoso gole.
— Se você está dizendo — murmura contra o vidro, seu tom de voz
sugere pouco caso.
— Ele me convidou para jantar! Disse que quer me levar em um
restaurante incrível... Confesso que estou curiosa!
Felipe gira os olhos, visivelmente irritado com o rumo de nossa
conversa. Cruza os braços sobre o peito, com o semblante sério.
— Ok, onde você quer chegar? — pergunta, olhando-me no fundo da
alma com seus olhos penetrantes.
Percebo o quanto está impaciente. Quase como se não suportasse
joguinhos. “Mas, ah... já é tarde para se arrepender, Felipe”.
— Bem, em nome da nossa relação puramente profissional, sinto que
tenho que te informar essa decisão... Até porque ele agora é o seu cliente, né?
Felipe abre a boca em surpresa, parecendo compreender algo que até
então não notara. Ele fecha o punho em frente da boca, com uma expressão
incrédula no rosto:
— Você está fazendo de novo!
— O quê? — indago com serenidade.
— Está me provocando — diz, com um sorriso que insiste em
permanecer nos seus lábios recém-umedecidos.
— E se eu estiver? — Minha voz paira no ar alguns segundos, ao que
inclino o corpo para frente, apoiando-me nos cotovelos.
A tensão que se faz presente é tão clara que temo ser possível de
perceber por alguém de fora. No momento em que ele está prestes a
responder, porém, somos interrompidos pelo garçom com a nossa entrada.

Felipe desabotoa o seu colete enquanto o elevador nos leva até o


andar de nossa suíte. Minha cabeça está girando levemente, fazendo-me
constatar que exagerei no espumante.
Observo-o mover os dedos ágeis pelos botões, sem se importar com a
minha presença. De um tempo para cá ele tem estado bem à vontade para
começar a se despir comigo por perto. Suspiro no momento em que o
elevador para com um solavanco e sigo os seus passos em direção ao nosso
aposento.
Dirijo-me à sala, onde, depois de me sentar, começo a abrir os fechos
triplos do scarpin. Felipe, agora sem o colete, recosta-se na parede,
colocando suas grandes mãos nos bolsos da calça justa.
Ergo o rosto para encontrá-lo com os olhos fixos em mim. O seu
semblante é sério e indecifrável, no entanto algo na forma como me olha, faz
com que as minhas bochechas fiquem enrubescidas.
— Adorei a nossa noite — digo, ansiando por quebrar esse silêncio
cheio de expectativa que paira sobre o ambiente.
— Eu também — ele sorri brevemente, ainda me encarando de uma
maneira desconcertante.
— Obrigada pelo jantar! — Profiro graciosamente, levantando-me
com os sapatos na mão.
Passo por ele, caminhando em direção ao quarto. Depois de uma noite
inteira de provocações deliciosas, é estranho que não tenhamos chegado a
lugar algum. Ainda que Felipe demonstre de várias maneiras parecer tão afim
de mim quanto estou dele, sua postura impassível está começando a me
deixar maluca.
Encosto a porta assim que entro no quarto, encaminhando-me no
escuro até o banheiro, onde removo a maquiagem, lavando o rosto com um
punhado de água fresca. Escovo os dentes e tiro o vestido, cuja renda
começou a me pinicar nos braços a ponto de me deixar irritada.
Saio do banheiro usando apenas a calcinha e abraçada ao vestido, de
maneira que ele cubra os meus seios.
Estico a mão direita, tateando a parede em busca do interruptor. Tão
logo o encontro, não hesito em acendê-lo, fazendo a luz que irradia do lustre
ofuscar a minha visão por alguns segundos. Giro os calcanhares em direção
ao closet quando me deparo com Felipe sentado na beirada da cama. Os
braços estão cruzados sobre o peito e uma das mãos repousa em cima do
queixo.
— PUTA QUE PARIU! — grito assustada, com o coração batucando
violentamente contra a caixa torácica. — Você está louco?
Felipe inclina a cabeça para o lado, deixando seus olhos contornarem
as minhas pernas desnudas. Vejo-o passar a língua pelo lábio inferior
suavemente, deixando-o úmido e convidativo.
Minha cabeça começa a rodar muito depressa enquanto tento
assimilar as informações. O que ele está fazendo aqui? Quero dizer... Por que
está me olhando com essa expressão arrebatadora? E por que tem de sustentar
esse silêncio odioso?
Meus lábios se separam, formando um “o” de surpresa. Dou um passo
para trás, abraçando-me com firmeza enquanto o observo se levantar e
percebo o seu volume acentuado pela calça jeans justa. Ok, isso deve ser um
sonho!
— É você que está me deixando louco! — Sua voz é pouco mais alta
que um sussurro. Ele me cerca com seus braços, apoiando-os na parede onde
estou recostada.
Aproxima seu rosto do meu pescoço em seguida, como fez outrora no
carro. Com a ponta do nariz, Felipe roça a parte de trás da minha orelha
suavemente, fazendo os pelos do corpo inteiro arrepiarem em uma velocidade
surpreendente.
O seu perfume forte e intenso penetra minhas narinas, envolvendo-
me. Minha respiração torna-se ofegante sem que eu nem ao menos perceba.
Caramba, estou pegando fogo!
Felipe tira uma de suas mãos da parede, levando-a até o vestido que
ainda serve como escudo entre nós dois. Solto um pesado suspiro no
momento exato em que ele o puxa de mim, colando o seu corpo no meu, em
seguida.
Felipe segura a minha mão, levando-a até o seu membro rijo. Ele
repousa os dedos sobre as costas dela, pressionando-a levemente contra o seu
próprio corpo. Emito um gemido de tesão, ouvindo-o sussurrar ao pé do
ouvido.
— É isso que você está fazendo comigo — seus lábios tocam a
cartilagem da minha orelha ao falar. — Com toda a sua teimosia... Sua
provocação... Eu te avisei, não foi?
Meu coração martela com tanta violência que estou prestes a enfartar.
Que merda ele está fazendo comigo? Porra, Felipe!
Ele me beija o pescoço, descendo até a clavícula, onde deposita uma
leve mordida. Estremeço com o contato, incapaz de esboçar uma reação.
Tenho medo que acabe, como na última vez. Está bom demais para ser
interrompido.
Quando seus lábios encontram os meus, não têm a urgência da
primeira vez, no entanto são cheios de desejo. Felipe explora a minha boca
com autoridade, ao passo que suas mãos deslizam para os seios, decididas.
Seus dedos os apertam com força e ritmadamente e o ouço arfar contra os
meus lábios.
Não posso conter um gemido assim que ele aperta o biquinho dos
meus peitos, esticando-os de uma maneira que beira a dor. Felipe afasta os
lábios de minha boca, então, levando-os direto aos seios.
Diferente do sonho que tive, no entanto, ele não vem com suavidade,
mas sim com ardor, usando a mão livre para desabotoar sua calça. Sinto-o
buscar a minha mão novamente e levá-la de encontro ao contato macio e
morno de sua ereção.
Sua mão se fecha ao redor da minha e tão logo começa a movimentá-
la pesadamente para cima e para baixo, percebo o quão encharcada estou.
Que tesão! Estou enlouquecendo junto com ele!
Felipe tira a camisa em movimentos ligeiros e precisos, exibindo o
peitoral forte e definido. Fisgo os lábios, aumentando levemente a pressão
com que o masturbo.
— Você foi uma menina má! — Seus lábios estão formando aquele
sorriso torto que tanto amo.
— E o que você vai fazer a respeito? — questiono, colando minha
boca na sua novamente.
Antes que consiga beijá-lo, no entanto, ele envolve meus cabelos com
a sua mão direita, enrolando-os em um nó. A forma como os puxa é dolorosa,
ainda que extremamente excitante.
Felipe me guia até a cama, onde me gira de costas para ele,
empurrando meu corpo para que eu fique de quatro. Meus joelhos dobram
sem resistência. Como anseio senti-lo em mim!
Seus dedos seguram o tecido da minha calcinha, puxando-a pelas
pernas, até conseguir arrancá-la por completo. Sinto seus lábios no meu
bumbum, distribuindo chupadas que sei que deixarão vários roxos de
recordação. Seu braço avança pelo meio de minhas pernas e a mão alcança o
meu sexo.
— Hmm... — murmuro, contorcendo-me com o seu toque delicioso.
Ouço-o uivar gostosamente, deixando-me ainda mais excitada.
— Que delícia! — Felipe segreda, enfiando um dedo em mim e
arrancando outro gemido contido. — Geme para mim, vai... — Seu dedo faz
movimentos circulares, que roubam a força dos joelhos.
Separo um pouco mais as pernas, ao que sou recebida com um puxão
firme nos meus cabelos presos, que me obriga a me endireitar novamente. Ele
me puxa em sua direção, o que faz com que eu tenha que envergar as costas,
empinando a bunda.
Seus lábios abandonam a minha pele, enquanto ele se levanta,
estimulando o meu clitóris com dedicação. Ah, eu vou acabar tendo um
colapso... Não aguento mais um segundo sequer. Preciso tê-lo em mim!
Felipe se encaixa entre as minhas pernas e sinto sua cabecinha macia
roçar nos lábios entre as minhas pernas, antes que ele me penetre com um
movimento brusco.
— Ai! — Solto um gritinho, sentindo-o meter até o fundo.
Passado o susto, rebolo no seu membro, em provocação. Ele puxa
meu cabelo um pouco mais, arrancando mais gemidos.
— Gostosa! — murmura, dando um pesado e ardido tapa na minha
bunda. Empino-a o máximo que consigo e Felipe retoma suas investidas
firmes e impetuosas.
Logo o quarto é preenchido pelos meus gritos, que vão aumentando a
frequência e o volume conforme ele me possui. É inacreditável o misto de
sensações que está me provocando. Nunca me senti assim com nenhum outro
homem.
O jeito como me toca com suas mãos experientes faz com que eu
anseie por mais e mais. Seus dedos brincam com o meu clitóris no mesmo
ritmo com que me penetra e logo me vejo gozando com ele dentro de mim.
Não demora para que ele saia de mim, gozando no meu bumbum.
Sinto sua porra escorrer morna contra a minha pele, mas, antes que possa
fazer alguma coisa a respeito, suas mãos me seguram, fazendo-me deitar de
barriga para cima.
Sua expressão é de safado quando vem em minha direção, uma
segunda vez.
Piscina
Acordo com um irritante feixe de luz que penetra uma brecha na
persiana, indo diretamente aos olhos. Pisco algumas vezes quando sinto o
pesado braço de Felipe me envolver de maneira protetora. Minha cabeça
demora até resgatar as lembranças da noite anterior, fazendo-me entender o
porquê estou no quarto dele e permito um sorriso escapar dos lábios.
Giro o corpo cuidadosamente em sua direção, soltando um gemido ao
perceber que os membros do meu corpo estão doloridos. Também pudera, as
imagens que se formam na minha mente são intensas e cheias de ardor.
Aninho o rosto no seu peito, inspirando o cheiro tenro de sua pele.
Não demora em senti-lo aumentar o aperto de seu abraço, indicando que está
despertando lentamente.
Ouço-o ronronar, afundando o rosto nos meus cabelos suavemente.
— Bom dia — suspiro, com o rosto escondido nele.
Felipe esfrega os olhos por alguns segundos, em silêncio e então
deposita um beijo no topo da minha cabeça, desvencilhando-se de mim em
seguida.
Vejo-o alcançar o celular para conferir as horas: são sete e meia.
Estou surpresa que tenha conseguido acordar sozinha tão cedo porque, no
geral, isso é algo completamente fora da minha realidade. São raras às vezes
em que acordo com facilidade para trabalhar. Minha filosofia de vida é que
não há como ter bom humor antes das dez da manhã.
— Acho que falhamos em manter um relacionamento profissional —
digo, tentando arrancar uma palavra dele. — A menos, é claro, que essa seja
uma prática que você considera natural entre colegas de trabalho.
Sua risada paira no ar por alguns segundos, embalando-me. Sinto seus
dedos afagarem as minhas costas com ternura.
— O que você está fazendo comigo? — pergunta com a voz rouca, de
quem acabou de acordar.
— No momento estou tentando descobrir se você vai me dizer em
algum momento que só fez o que fez porque estava alcoolizado.
— Em parte sim — ele sorri, afastando alguns fios de cabelo que
caíram sobre o meu rosto. — Não estava nos meus planos me envolver com
você.
Ergo os olhos, encontrando os seus. Estão um pouco mais claros que
usualmente, no entanto continuam de um azul intenso.
— Está arrependido? — pergunto hesitante, temendo qual será a
resposta.
— Eu não me arrependo de nada, Madu — seus olhos ficam
nebulosos momentaneamente, ao que parece ter se lembrado de algo
guardado profundamente na memória. — Não mais.
Suas palavras morrem, deixando-nos em silêncio por alguns
segundos, até que ele se eleva com um pesado suspiro, sentando-se na cama.
Demoro-me apreciando suas costas largas e ligeiramente bronzeadas.
Logo que se levanta, porém, minhas bochechas ruborizam ao encarar o seu
corpo desnudo. Ele caminha até o closet, voltando com uma bermuda preta
que termina acima dos joelhos. Para no meio do caminho, alcançando uma
garrafinha de água no frigobar e vem em direção à cama novamente.
Não consigo parar de devorá-lo com os olhos, uma vez que cada
detalhe do seu corpo me estimula aos pensamentos mais perversos. No
momento, fito os vincos profundos que as entradas para a sua virilha fazem,
que gosto de chamar de caminho da felicidade. E que felicidade...
Meus pensamentos são interrompidos, porém, ao notar Felipe pegar
três cartelas de remédio que jazem acima do criado-mudo, separando um
comprimido de cada. Ele os lança boca adentro, todos de uma vez, tomando
uma boa quantidade de água para ajudar no processo.
Uno as sobrancelhas, intrigada, e então pergunto:
— Você está se sentindo mal?
— Hum? — ele murmura, distraído.
— Está tomando esses remédios... — explico, começando a me
arrepender de ter comentado a respeito, pela expressão séria que ele faz.
— Não se preocupe com isso — o sorriso que me mostra é
ligeiramente tristonho. — Está com fome?
Como que em uma resposta involuntária, meu estômago protesta com
um longo e audível rugido. Uma risada escapa da minha boca sem que eu
consiga me conter e Felipe me dirige um olhar divertido.

Descemos até o Lobby Bar para tomar um reforçado e luxuoso café


da manhã. Minha fome é tamanha que sinto como se possuísse um buraco
enorme dentro de mim.
Como com certa urgência, arrancando olhares de desaprovação de
Felipe, que são seguidos por risadas involuntárias. Ele deve estar com
vergonha do meu desespero, mas não tenho tempo de me importar com isso.
Sou do tipo que leva comida muito a sério e simplesmente estou
enlouquecendo com a variedade de pratos maravilhosos desse hotel.
Durante a refeição, ele comenta que terá de se encontrar com um novo
cliente essa tarde, cuja reunião será bem menos extravagante que o coquetel
da PoliBev, que aconteceu na segunda-feira. Evito um sorriso ao ouvi-lo me
explicar que tenho o dia livre, uma vez que não terei muita utilidade enfiada
entre uma porção de homens pretensiosos.
Sei que no fundo Felipe apenas não quer admitir que está com medo
de me levar, justamente por saber que posso acabar chamando atenção de
alguém por lá. É contraditório o fato de que antes de ontem ele queria que eu
estivesse entre esses homens pretensiosos e, além de tudo, bajulando-os. É
quase como se quisesse se gabar de estar comigo, e isso me deixa irritada por
alguns segundos. Felipe pode ser complicado de entender às vezes.
Concordo em ficar, até porque ainda não tive a chance de
experimentar a piscina incrível do hotel e essa seria uma oportunidade e tanto
para isso. Ainda que na minha imaginação, a experiência seria bem melhor
com ele junto, posso fazer o sacrifício de ir sozinha.
Tão logo nos damos por satisfeitos — eu talvez não tanto quanto
poderia estar — subimos para a nossa suíte. Felipe vai direto para o banho,
enquanto me dirijo ao quarto, pronta para colocar o biquíni que venho
sonhando em usar desde que o comprei, há alguns meses. Entretanto,
morando em Curitiba e dividindo o escasso tempo entre a faculdade e o
emprego, ainda não tive a chance para isso.
Visto o cropped top de crochê, feito em cores alegres, assim como a
parte de baixo. Alcanço os óculos de sol, que tampam o rosto inteiro, assim
como o protetor fator cinquenta, indispensável para o bem da minha pele
branquela e sem graça. Adoraria um bronze sensual, mas o máximo que
consigo no sol é uma tonalidade rosada e patética. É melhor não economizar
na proteção, mesmo.
Vou ao encontro de Felipe em seu quarto e o acho terminando de dar
o nó da gravata cinza-prateada slim que escolheu para usar hoje. Seus olhos
percorrem o meu corpo assim que entro no cômodo, contudo sua expressão
permanece séria.
— Você me ajuda com o protetor? — pergunto, pestanejando de
maneira infantil.
— Então você pretende ficar na piscina enquanto eu estiver fora? —
indaga, enlaçando o seu braço em torno da minha cintura e me puxando para
junto de si.
— Algum problema com isso? — Fisgo o lábio inferior, sorrindo em
provocação.
Felipe segura meu queixo com firmeza, trazendo seus lábios até os
meus. Abro espaço deixando-o invadir a minha boca e se enroscando na
minha língua como em uma dança sensual.
Instantaneamente sinto as pernas perderem a força, no entanto ele
encerra o beijo, com um sorriso torto estampado na cara.
— Sabe o que faço com garotas más, não sabe?

A piscina do hotel Fasano é esplêndida, com o seu imenso formato


geométrico irregular e acabamento em mármore branco. A composição é
agradável aos olhos, que se perdem facilmente nos pequenos detalhes
captados aos poucos.
Caminho em passos lentos, deixando-me deleitar com o ambiente
incrível no qual me encontro. Diferente do que imaginei, porém, não estou
sozinha. Aliás, muito pelo contrário: para uma manhã de quarta-feira têm
pessoas até demais.
Vejo à direita uma fileira extensa de espreguiçadeiras robustas e
elegantes. A madeira com que são feitas é a mesma do deck que circunda
toda a área externa. De maneira sistemática, todas se encontram arrumadas
iguais: forradas com uma toalha listrada em tons de areia e outras quatro
toalhas enroladas como em um arranjo. Todos os espaços entre as cadeiras —
que parecem infinitas — são decorados com vasinhos de cortiça, que trazem
suculentas no interior.
Reparo um grupo de mulheres maduras, loiras e muito bronzeadas
conversarem animadamente na extremidade oposta, por isso escolho uma das
primeiras cadeiras, alimentando, assim, a maior distância possível entre
qualquer outro ser humano. Hoje o dia será somente meu.
O sol ainda está fraco, já que não é nove horas ainda. Portanto, esse é
o momento certo para um bom mergulho. Afinal de contas, quando o sol
estiver mais alto, eu muito provavelmente estarei abrigada em um dos
grandes guarda-sóis brancos que pairam do outro lado da piscina.
Tiro a saída de banho, deixando-a em cima da cadeira, junto do
celular e a chave da suíte. Prendo os cabelos no topo da cabeça em um coque
e então, sem pensar duas vezes, ponho-me a descer os degraus feitos também
em mármore.
A água está tão gelada que beira o insuportável, no entanto sinto
alguns olhares em mim que me impedem de desistir. Sigo em frente,
prendendo a respiração ao ser engolida pelo contato gélido que me cerca.
Minha respiração se torna ofegante até que eu me acostume com a
sensação térmica, o que leva um tempo considerável. Apoiando a cabeça em
uma das bordas, fecho os olhos, esticando o corpo em seguida. Meus
membros flutuam leves e relaxados e a sensação é tão boa que tenho que me
policiar para não acabar cochilando e morrendo afogada.
É nesse momento calmo e introspectivo que sou arrancada cruelmente
de minha paz, ao ouvir uma voz familiar próxima demais de mim:
— Você fica linda com essa expressão serena!
Ao abrir os olhos, encontro as íris escuras de Renato me fitando de
cima. Percebo que está sentado do meu lado, com as pernas afundadas na
água. Não está com o terno habitual, mas sim uma camisa de algodão cru e
uma calça de linho enrolada até os joelhos.
Fico um pouco perplexa por não ter me dado conta de que tinha
alguém ao meu lado, sabe-se lá há quanto tempo.
— O-oi Renato — gaguejo, assim que me beija delicadamente na
bochecha. — Que surpresa te ver aqui, Felipe não comentou que teriam uma
reunião... — as palavras morrem no ar, fazendo-me lembrar que a reunião
que teriam hoje foi adiantada para ontem. Renato tinha um compromisso,
pelo que Felipe me dissera.
— Ah, mas não estou aqui a negócios — sorri, parecendo divertido
com algo que somente ele sabe. — Não estes negócios — a forma como
pronuncia as últimas palavras me deixam um pouco desconfortável. De
repente, desejo estar em qualquer lugar que não aqui.
— Hum — murmuro, deixando o corpo afundar suavemente, até que
sinto os pés tocarem o chão da piscina.
— Você está me devendo um jantar... Confesso que fiquei intrigado
com o porquê de não me ligar!
Forço uma risada baixa, como se estivesse envergonhada com sua
maneira direta de abordagem. Aproveito a deixa para me afastar alguns
passos da beirada da piscina, ficando de frente para ele.
Renato tateia os bolsos a procura de sua carteira de cigarros, tirando
um com seus dedos compridos. Leva-o até os lábios finos com um
movimento sexy, ainda que não propositalmente. Observo-o acender o
cigarro, dando um demorado trago no mesmo.
A fumaça vem em minha direção, fazendo-me revirar os olhos. “É
uma pena que os óculos de sol não o permitam notar o meu
descontentamento”, penso irritada.
— Bem... — começo, o mais casualmente que consigo. — Você ainda
não me disse o motivo de estar aqui.
— A verdade é que não consigo tirar certos olhos azuis da cabeça,
desde que os vi a primeira vez... — seus lábios envergam em um sorriso de
canto. — Não sei o que aprontou comigo, mas sei que não vou sossegar até
ter a honra de sua companhia.
Minhas bochechas enrubescem no momento em que o ouço. Escutar
um elogio tão incisivo assim é, de certa forma, intimidante. Ainda mais se eu
levar em consideração a intensidade com a qual ele me encara, exatamente
agora. Céus, o que vou fazer? Isso estava completamente fora dos planos e é
a última coisa de que precisava. Justamente agora que Felipe parece estar
cedendo! Que droga!
— Ninguém pode negar sua determinação, Renato. — Sorrio com
educação, dando mais alguns passos para o meio da piscina.
Por um milésimo de segundo noto suas sobrancelhas arquearem e,
antes que eu possa raciocinar, assisto-o pular na piscina, decidido. Seu gesto
provoca alguns olhares curiosos em nossa direção.
Meus pensamentos param de funcionar momentaneamente, tão logo o
observo percorrer a distância entre nós, sem dificuldades. Minhas mãos estão
tremendo levemente de nervosismo. O que vou fazer? Ou melhor: o que ele
acha que vai fazer?
Assim que me alcança, vejo os seus braços me cercarem como os de
Felipe fizeram, nesta madrugada. A diferença é que os sentimentos que ele
está causando em mim estão bem longe de agradáveis. Ainda que Renato seja
um galanteador nato, muito educado e, por vezes, incrivelmente sexy; existe
algo na forma como sorri que não parece certo.
Noto alguns olhares sobre nós dois, como se esperassem que a
qualquer momento pudéssemos nos agarrar ali mesmo. Toco seus ombros
fortes com suavidade, tentando levá-lo para longe de mim, o mais
delicadamente quanto possível. Renato é ligeiro ao perceber a minha
intenção, pois logo em seguida sinto uma de suas mãos segurarem o ossinho
do meu quadril, o que me provoca um forte arrepio.
— Você vai perceber que posso ser muito persuasivo, Madu...
Meu coração se comprime ao ver seus olhos castanhos tão de perto.
Essa poderia ser uma daquelas horas que o Felipe interrompe um momento
de proximidade entre a gente, mesmo que sem intenção. Contudo, estou certa
de que terei de contornar a situação sozinha, afinal de contas, ele saiu faz
pouco tempo.
Ergo os óculos de sol, prendendo-o na cabeça. Aproveito o contato
visual para afastar sua mão de mim e esboço um sorriso inocente.
— E você vai perceber que posso ser bem teimosa, Renato — minha
voz sai pouco mais alta que um sussurro, arrancando uma expressão de
surpresa de seu semblante que, até o momento, parecia debochar da situação.
O Imbatível
O som estridente do celular de Renato irrompe o ambiente. Por um
segundo, permito-me um suspiro de alívio. Ele me parece o tipo de homem
que não aceita os limites impostos por outras pessoas. Está tão acostumado a
ter tudo o que quer, que passou a acreditar que todas as coisas lhe são
permitidas.
Usando os braços, ele eleva o seu corpo para fora da piscina. Só então
percebo que está ensopado: pulou de roupa e tudo. Reviro os olhos,
observando-o alcançar o celular no deck de madeira, cuja melodia toca de
maneira incessante.
Renato se afasta um pouco de mim, buscando mais privacidade para
atender a ligação. Aproveito o momento para cair fora dali o quanto antes,
afinal de contas, não quero problemas. Não com o cara que Felipe parece tão
satisfeito em ter como cliente.
Saio da piscina usando a mesma escada de mármore que usei para
entrar. Em movimentos ligeiros, alcanço uma das toalhas listradas que jazem
acima da espreguiçadeira, envolvendo meu corpo com ela. Pego os meus
pertences com uma pressa que beira o desespero e passo por Renato, que
parece irritadiço e autoritário com a pessoa do outro lado da linha.
Aceno brevemente com a cabeça, já a uma distância considerável,
sorrindo como quem se desculpa por não ter mais tempo. Apesar de parecer
imerso em sua conversa, percebo que seus olhos brilham intensamente ao me
dirigir um beijo.
Sinto um nó se formar na garganta, minha intuição me diz que ele
ainda vai dar trabalho. Tento afastar esse pensamento da cabeça, querendo
me convencer de que não passa da minha imaginação fértil. Todavia, não
adianta, meu sexto sentido nunca falha e ele está praticamente berrando que
mexer com Renato foi um erro. Tenho certeza de que esse homem verá as
minhas recusas como estímulos para seguir em frente. Afinal, é como dizem:
quanto mais difícil é de se conquistar alguma coisa, mais valioso o troféu se
torna por isso. Tenho certeza de que ele já me enxerga como um prêmio. Está
apenas concentrado no melhor momento para atacar.

Felipe chega no final da tarde, encontrando-me entretida com um


filme de comédia romântica, no quarto. Ele bate na porta algumas vezes e só
entra no aposento quando dou permissão. “Engraçado que ontem você já
estava aqui, não é?”, penso divertida, vendo-o com uma expressão que me
derrete instantaneamente. Por trás do semblante carrancudo, percebo aquele
olhar de carência típico dele. Droga, assim não tem como resistir! Cedo ou
tarde esse homem me tira do sério...
— Achei que ainda estaria na piscina — ele senta na beirada da cama,
deixando sua pasta de couro no chão. — Passei lá para te procurar!
Meu estômago revira ao recordar o que me fez sair de lá. Respiro
fundo, levando adiante a decisão que havia tomado de não contar para ele
sobre o ocorrido:
— A água acabou comigo, estou um caco! Acho que mais um pouco e
você me encontrava dormindo.
— Sério? — Seu sorriso é safado ao perguntar. — Eu ia te chamar
para nadar comigo um pouco... Que pena!
Rio gostosamente, desejando que ele simplesmente se deitasse aqui
comigo, para que pudesse usá-lo como travesseiro. Apesar das brincadeiras, o
clima romântico dessa manhã aparenta ter se dissipado depois de horas
separados. Felipe parece se afastar de mim ao passo que corro em sua
direção.
— Acho que posso fazer um esforço! — Jogo o corpo um pouco mais
para a extremidade, dando uma dica sutil do que eu gostaria que ele fizesse.
Felipe demonstra estar com a cabeça longe, no entanto. Apesar de
seus olhos fitarem em minha direção, é como se estivessem no mais profundo
do seu íntimo. Ele coça a barba por fazer, finalmente demonstra se lembrar de
quem é e onde se encontra. Observo-o endireitar sua postura, o que faz com
que o seu peito ganhe evidência e me tira do foco momentaneamente.
— Quero te mostrar uma coisa! — diz, alcançando o notebook dentro
da pasta jogada no pé da cama.
Movida pela curiosidade, pauso o filme e me ajeito o mais próximo
que consigo dele. Uso os travesseiros como encosto, apoiando as costas
confortavelmente.
Só então me dou conta de que Felipe parece orgulhoso com alguma
coisa que ainda desconheço. Talvez seja isso que esteja querendo me mostrar.
Frequentemente ele costuma ser discreto com as suas conquistas. Eu mesma
me lembro de apenas na entrevista tê-lo ouvido falar abertamente sobre si. Na
maioria das vezes segue a postura reservada e oculta que já aprendi a lidar.
São raras às vezes em que realmente se tem certeza sobre o que Felipe
está pensando. Porque, na maior parte das situações, ele apenas dá leves
sinais do que sente. É quase como se usasse um escudo de proteção contra as
demais pessoas.
Ele coloca o notebook no colo, com o site da revista CQ aberto. Meus
olhos recaem automaticamente no título da matéria, cujas letras garrafais em
vermelho anunciam “Os 15 advogados mais poderosos do Brasil”.
Arqueio as sobrancelhas, descendo a barra gentilmente até ser
surpreendida por uma foto de Felipe. Nela, ele se encontrava elegantemente
sentado em uma imponente poltrona Charles Eames, cuja base feita em
madeira multilaminada casava perfeitamente com o estofado em couro preto
como a noite. Instantaneamente reconheci o design clássico e elegante da
cadeira de seu escritório.
Felipe estava com os braços cruzados sobre o peito, dentro de seu
terno de corte impecável cinza-chumbo, cuja gravata azul combinava com os
olhos, destacando-os magistralmente. Sua expressão dizia claramente “eu sou
o rei do mundo”, mas sem parecer arrogante, no entanto. Era solene;
autoritária na medida certa.

Felipe Antunes — Direito Penal

Dentre os clientes deste jovem advogado, estão nada menos que as


cinco maiores construtoras do país. Seguindo os passos do pai, Antunes
consolidou sua carreira ao defender o médico Cassandro Bertioga,
condenado a 255 anos de prisão por ter abusado sexualmente de clientes de
sua clínica de fertilização. Constando com uma base invejável de ações
ganhas, o curitibano é considerado por muitos como imbatível. Suas defesas
são tidas como excêntricas e eficientes, rendendo-lhe a condição de um dos
advogados criminalistas brasileiros mais bem pagos do país. Especula-se
que só a defesa do bispo Eduardo Magalhães, líder da Igreja Imperial do
Reino de Deus tenha custado R$ 8 milhões em honorários.

Estou sem ar quando termino de ler. Eu imaginava que Felipe era um


advogado e tanto, mas oito milhões me parece coisa de outro mundo. Encaro-
o com uma expressão atônita, ao que pergunto, sem medir as palavras:
— Como pode um dos quinze maiores advogados do país trabalhar na
sua casa com uma única secretária? — Minha voz sai desafinada, tamanho é
o meu espanto no momento.
— Que bom você perguntar isso! — Ele sorri brincalhão, como se não
pudesse se conter.
Felipe me explica que possui quatro filiais espalhadas pelo país, que
atendem como Antunes Advogados Associados. Uma em São Paulo, uma no
Rio de Janeiro, outra em Brasília e, por fim, uma em Porto Alegre. Sua
equipe é composta por advogados com diferentes especializações,
englobando praticamente todas as áreas do Direito. As maiores e mais
importantes causas são quase sempre dele, no entanto.
— Tenho os meus motivos para preferir o isolamento — explica em
tom de brincadeira. — Temos que concordar que é bem melhor trabalhar no
conforto de casa.
— Não sei — digo sorrindo, sabendo que talvez nunca venha a
descobrir. — Ainda não alcancei esse nível.
Ele se levanta da cama, com uma postura autoritária e profissional
que usualmente assume na companhia de seus clientes.
— Aliás, foi bom tocar no assunto... Tenho que passar no escritório
amanhã, aproveitando que será nosso último dia aqui — seus olhos estão
fixos no celular e os dedos digitam com agilidade algo de que parece ter se
lembrado.
— Achei iríamos ficar até domingo — suspiro desanimada,
percebendo que terei de encarar a vida real novamente. O pensamento é
doloroso como um soco na boca do estômago. — Você não tem mais nenhum
compromisso importante? — Indago e ele apenas nega com um movimento
ligeiro da cabeça. — Qual é, você deve ter vários!
Noto que estou agindo como uma criança birrenta ao me dar conta de
que ele está lutando para conter o riso. Sentindo as bochechas queimarem,
cruzo os braços, subitamente emburrada.
— Se não me falha a memória, você nem queria estar aqui! — noto
sua sobrancelha arquear ligeiramente, como que me desafiando. — O que
aconteceu, Madu? — “Felipe, querido... Então você quer mesmo brincar?”,
penso em desafio.
— Bem, é que eu mal tive tempo de aproveitar a piscina... — suspiro
de maneira teatral, dando nos ombros em seguida. — Vou ter que me
conformar com o pouco que fiquei nessa tarde!
Seus olhos azuis brilham com a provocação e um sorriso rasga o seu
rosto. Felipe passa as mãos pelos cabelos dourados, fazendo-os refletir a luz
que irradia da lâmpada. Mal consigo disfarçar a cobiça enquanto o devoro
com o olhar.
— Acho que podemos dar um jeito nisso — diz, alcançando a pasta
no chão. — Você tem dez minutos para se trocar.
Então abandona o quarto, deixando-me para trás com o seu notebook
ainda no colo, esquentando as minhas coxas. Sem pensar duas vezes, pulo
para fora da cama, correndo até o banheiro, onde deixei o biquíni.

Diferente de hoje cedo, a área de lazer está deserta. Escolho uma das
espreguiçadeiras mais reservadas, que estava sendo usada outrora. Deixo
timidamente o celular e a saída de banho em cima dela, dirigindo-me até a
beira da piscina, onde estico o pé hesitante em sua direção e molho a ponta
dos dedos.
Um calafrio percorre o meu corpo ao me dar conta de quão gelada
está a temperatura da água, mas, antes que eu me dê conta, sou arremessada
piscina adentro por Felipe.
Meus pensamentos demoram para se ordenar, ao que nado de volta
para a superfície. Esfrego os olhos na tentativa de fazê-los parar de arder com
o cloro, sendo recebida pela risada dele, que irrompe o ambiente com prazer.
Estou com sangue nos olhos querendo vingança, mas sou desarmada
ao vê-lo fechando os olhos e rindo gostosamente. Nem dá para acreditar que
esse idiota seja um dos melhores advogados do país, que quase sempre está
se fechando a ponto de ser impossível decifrar os seus sentimentos.
— Vai ter vingança! — brado, acostumando-me com a sensação
térmica semelhante à de estar no Polo Norte.
Felipe pula para dentro da água, emergindo próximo de mim. Os seus
dentes bem alinhados ainda se encontram à mostra, enquanto nada em minha
direção.
— Estou esperando! — Logo que me alcança, suas mãos me seguram
pela cintura, com força.
— Então você é desses?
Minha voz estremece assim que sinto seus lábios tocarem o meu
queixo com suavidade, subindo o maxilar sem pressa. Céus, aqui não...
— Cadê a vingança? — ele provoca novamente, passeando sua mão
pela minha barriga e parando vez ou outra para cravar os dedos em mim, com
desejo. — Parece que estou te desarmando...?
— Filho da mãe! — Arfo, dando-me conta de que já estou entregue.
Como ele pode ter tanto controle sobre mim? Pareço uma adolescente,
ficando excitada com tão pouco.
— Opa! O que é isso? — Ele assume uma expressão séria,
repreendendo-me com o indicador. — Está apelando para as ofensas? —
indaga, umedecendo os lábios em seguida. Minhas pernas parecem estar se
dissolvendo na água, porque perco completamente a força nelas. — O que eu
faço com você, hein?
Sua mão avança para dentro da calcinha, tocando o meu sexo. Seus
dedos começam a brincar comigo, em movimentos circulares suaves e tão
deliciosos que tenho que me segurar para não fazer ruído algum.
— O q-que...? — Minha voz fica presa na garganta e ele aumenta a
pressão com a qual me acaricia, assim como a velocidade. Preciso conter um
gemido, o que arranca um sorriso de satisfação dele.
— Que tal se a gente brincar um pouco? — Felipe sela nossos lábios,
falando contra a minha boca. — A única regra do jogo é não fazer nenhum
barulho, tudo bem?
Antes que eu possa responder, vejo-o imergir água adentro,
desaparecendo de minha visão. O meu coração palpita com a expectativa,
principalmente por estarmos em um lugar público. No fundo me sinto um
pouco culpada, contudo é difícil concentrar nesse sentimento assim que os
seus dedos abaixam a minha tanga.
A minha cabeça flutua ao senti-lo me tocar e percebo que a
brincadeira será mais difícil do que previ. Agarro as bordas de mármore da
piscina com força, fisgando os lábios para evitar que algum som gutural
escape.
Sinto-o sugar o meu clitóris com suavidade, arrancando um suspiro
audível de mim. Contorço os quadris, ponderando se seria muito catastrófico
gemer aqui fora.
Quando acho que estou perto de perder o controle, Felipe volta para
superfície, sem fôlego. Ouço-o respirar ruidosamente, apesar de nutrir uma
expressão safada no rosto.
— Pronta para começar o jogo? — Sua voz invade os meus tímpanos,
deixando-me em transe. Oi? Começar?
Como que lendo os meus pensamentos, ele complementa.
— Esse foi só o aquecimento!
Ainda que eu esteja dentro da água, meu corpo parece em chamas
quando Felipe volta a mergulhar, alcançando o meu sexo. Minha respiração
falha ao senti-lo tão focado em me dar prazer. Sua língua trabalha com
dedicação, em movimentos sensuais que me tiram do sério.
A cada segundo que permanece em baixo d’água, torna-se mais e
mais difícil manter a concentração. Meus joelhos perdem a força e,
involuntariamente, remexo os quadris para frente e para trás, tentando
acompanhar o ritmo com o qual ele me chupa.
Embora tente segurar os sons, eles estão se tornando cada vez mais
audíveis. Vez ou outra um gemido escapa da garganta, fazendo o coração
disparar loucamente pela adrenalina que se faz presente.
Logo Felipe irrompe da água, desesperado por oxigênio. Sua
respiração é ofegante e as puxadas de ar são rápidas, fazendo o seu peito se
mover para cima e para baixo, repetidamente.
Sua boca alcança a minha e sinto um pouco do meu sabor no nosso
beijo. Seus dedos se enroscam pelos meus cabelos, enquanto que sua língua
passeia pela minha boca, guiando os movimentos.
Com o corpo quase colado no meu, sinto o movimento de vai e vem
de sua mão contra a minha perna e percebo extasiada que ele está se
masturbando. Mordo levemente o seu lábio inferior, cheia de desejo. É
incrível a capacidade que ele tem de me tirar do sério. Quero Felipe e quero
agora mesmo!
Enlaço os braços em seu pescoço, elevando-me para cima. Envolvo-o
com as minhas pernas compridas, dando-lhe uma pista do que quero que ele
faça ao que roço a virilha contra a sua ereção.
— Você ainda está me devendo essa posição — digo ainda com os
lábios nos seus.
Ouço-o gemer baixinho ao ouvir as palavras e instantaneamente sinto
uma corrente elétrica atravessar o meu corpo. Saber que causo isso nele é
insano. Esse gostoso está excitado desse jeito e é por minha causa... Caralho,
isso é realmente incrível! Mas não é como se não pudesse ficar um pouco
melhor...
Pegando-o de surpresa, desfiro um tapa contra o seu rosto, que
provoca um estalido ardido. Ele arregala os olhos por alguns segundos, em
surpresa.
— A única regra é não fazer barulho! — explico, vendo sua expressão
de surpresa se transformar em excitação. — O próximo vai ser pior!
— Ah é? — Sua voz é rouca e suave, ainda que seus olhos estejam
ardentes.
Imitando o gesto de alguns dias atrás, ele usa suas mãos para me
segurar nas coxas e me prende contra a parede de azulejos da piscina. A
densidade da água colabora com a posição em que nos encontramos, uma vez
que me sinto mais leve e sei que ele também. Aumento a força das pernas,
prendendo-me nele o melhor que consigo.
Felipe enfia dois dedos em mim, mexendo-os como se fizesse o sinal
de “vem cá”, em movimentos fortes e constantes. A sensação é tão deliciosa e
arrebatadora, que me ouço soltar um grunhido alto que mais se parece com
um soluço. A minha voz sai engasgada, quebrando o silêncio mortal no qual
nos encontrávamos.
Ele ri satisfeito, usando a sua mão livre para bater de leve no meu
rosto. Sua mão é pesada, no entanto e sinto a bochecha queimar por alguns
segundos. Em sequência, Felipe segura o meu rosto, apertando o queixo para
ganhar a minha atenção:
— Eu disse sem barulho! — noto sua língua umedecer o lábio
inferior, em um movimento ligeiro, embora incrivelmente sexy. É incrível o
como tudo nele pode ser tão excitante.
Assinto com a cabeça, imersa no momento. Ele inclina o seu rosto,
beijando o vão formado entre o meu ombro e pescoço, enquanto o sinto me
penetrar, lentamente.
Diferente do que sempre imaginei, fazer sexo na piscina é um pouco
desconfortável no começo. Ainda que esteja super molhada, a sensação é a
mesma de estar seca. Demora algumas investidas até que eu pare de sentir
incômodo. Felipe é cuidadoso e parece perceber, uma vez que seus
movimentos são lentos e, de certa forma, delicados.
Conforme minhas reações vão se mostrando favoráveis, ele reage,
mudando o ritmo com que investe. Não demora muito para que seja quase
impossível me manter calada. Escondo o rosto no seu pescoço, permitindo-
me pequenos gemidos e ele sempre responde metendo um pouco mais forte.
Não bastasse o prazer intenso, o clima de estar em lugar público,
consequentemente proibido, contribui muito com a libido. O meu coração
encontra-se tão agitado que, por vezes, parece que vou vomitá-lo para fora.
Quando alcanço o ponto máximo, deixo escapar um ruído desentoado,
sem conseguir pensar na loucura que estou fazendo. Sua mão grande vem de
encontro a minha boca, segurando-a com firmeza, sem que ele precise
interromper as investidas.
Minha cabeça começa a girar quase ao mesmo tempo em que as
extremidades do meu corpo esquentam de supetão, relaxando os membros.
Solto as pernas dele, mas Felipe não permite que eu saia da posição,
pressionando-me ainda mais contra a parede.
Ainda com a mão tampando os meus sons, ouço-o gemer repetidas
vezes, o que me deixa tão extasiada que gozo uma segunda vez, em uma
explosão intensa e deliciosamente extasiante.
Parecendo satisfeito consigo mesmo, ele sai de dentro de mim,
subindo a minha tanga para o lugar certo. A minha respiração encontra-se tão
alterada que é como se tivesse acabado de ficar submersa na água por
minutos a fio.
Fecho os olhos, tentando me recuperar desse furacão que parece ter
me assolado. Não sei como ele faz isso comigo, mas, aos poucos, percebo
que estou enlouquecendo. A sensação é maravilhosa.
Escuto o barulho dele saindo da água e, tão logo recupero a força das
pernas, imito os seus passos. Assim que saio da água gelada, a brisa fresca
roça a minha pele, eriçando os pelos. Antes que eu tenha alguma reação,
contudo, sinto o toque macio da toalha me envolver e me encontro protegida
nos braços de Felipe.
O tempo parece parar por alguns segundos e meu estômago revira
com o contato íntimo e acolhedor dele. Eu poderia ficar aqui para sempre,
porém não me importaria. Tudo o que importa é que ele esteja com seus
braços fortes ao meu redor, como faz agora.
— Conseguiu aproveitar a piscina o suficiente, agora? — Sua voz é
suave como veludo, percebo que está me provocando.
— A piscina sim... — entro no jogo, sorrindo inocentemente para ele.
— Mas ainda tem muitos lugares que eu poderia aproveitar melhor!
A Encomenda
A melodia ruidosa e insuportável do celular ecoa pelo ambiente,
dominando-o. Anoto mentalmente que já passou da hora de criar vergonha na
cara e escolher outro toque, de preferência um que não pertença ao aparelho.
Permito-me um sorriso assim que o telefone para de tocar e tenho
uma nesga de esperança, imaginando se a pessoa do outro lado da linha
finalmente desistiu de falar comigo. O pensamento é varrido da minha
cabeça, no entanto, quando, outra vez, a música vibra intensamente,
alastrando-se pelo quarto. Ah, droga... Estou tão exausta.
Com um suspiro, dou-me por vencida, abrindo os olhos e encontrando
a escuridão artificial do quarto. Justo nessa sexta-feira que ganhei o dia de
folga, alguém tira o meu prazer de dormir até tarde.
Estico a mão, tateando o móvel ao lado da cama em busca do meu
atual instrumento de tortura. Tão logo o alcanço, vejo piscar no visor
“mamãe” e estremeço, sabendo que neste momento estou mais que
encrencada. Faz um tempo desde que liguei a última vez.
— Alô — murmuro, com a voz rouca de quem acabou de acordar.
— Olha só, ela está viva! — Sua voz é manhosa ao proferir as
palavras. Reviro os olhos com o drama. Mães...
— Oi mamãe, sinto muito. Voltamos ontem à noite, e eu tive que
tomar um dramin para não vomitar... Ele me fez capotar!
— Eu já estava quase acionando uma equipe de resgate! — ela admite
e, de algum modo, sei que não está de todo brincando. A minha mãe é
referência em exagero.
Já conformada que não vou mais recuperar o sono, esfrego os olhos,
obrigando-me a me sentar. Alguns corajosos raios de sol penetram o
blackout, ousando clarear a minha toca obscura.
— Mas me conta, quero saber os detalhes! Como foi a viagem? — A
excitação da sua voz me traz uma onda de remorso ao me recordar do que
estive fazendo na maior parte do tempo.
“Qual será a hora certa para contar?”, pergunto-me mentalmente,
ponderando se “nunca” é uma opção cabível. O quão estarrecida ela ficaria ao
saber disso? Possivelmente muito.
— Ok, vamos lá... — digo, espreguiçando-me. — Viajar de avião foi
o pior pesadelo da minha vida... Passei mal e vomitei dentro do aviã... — não
posso concluir, pois minha voz é soterrada pela sua.
— Maria Eduarda! — mamãe bronqueia e quase posso ver sua
expressão de descontentamento. Deve estar com as sobrancelhas unidas e a
boca repuxada para o lado. Não duvido nada que tenha acabado de cruzar os
braços também... — Eu não acredito que você vomitou do lado do seu
chefe!!!
“Olha, eu fiz coisas bem piores com o meu chefe”, mentalizo,
enrubescendo ao me recordar da piscina. O simples pensamento acelera o
meu coração, deixando-me momentaneamente atordoada.
— É... Bom... Eu não tenho culpa! Estava praticamente desfalecendo!
— explico, avançando em passos lentos para fora do quarto, onde encontro
um mundo claro e alegre. — De toda forma, ficamos em um hotel incrível. A
suíte que dividimos era maior que o meu apartamento! Não que isso seja
muito difícil... Mas né, você entendeu.
— Calma! Pera aí! O quê? — Sua voz traz aquele tom que já conheço
bem e apelido de sei-que-tem-coisa-aí-e-você-vai-me-contar-exatamente-
agora. — Vocês dividiram a suíte?
— Mamãe, tinha dois quartos. Eu não dormi na mesma cama que ele!
— “Não o tempo todo, ao menos”.
Aproveito a chegada ao banheiro para colocar o celular no viva-voz.
Alcanço a escova de dente, assim como a pasta, esperando ela dizer alguma
coisa.
— E como foi a reunião com o diretor da... — sua voz morre aos
poucos, e noto que ela está se esforçando para recordar. — Que empresa era
mesmo?
— PoliBev, mamãe! — replico, com a boca cheia de espuma sabor
hortelã.
Antes que possa responder, no entanto, sou pega de surpresa pelo som
estridente do interfone. Minha nossa, mal cheguei de viagem e já estou sendo
super requisitada... O que está havendo?
Enxaguo a boca o mais rápido que posso, enquanto a minha mãe
protesta pela minha atenção, ou a falta dela.
— Mamãe, tem alguém tocando o interfone loucamente aqui.
Desconfio que seja a Nessa. Preciso mesmo desligar — digo de uma vez só,
ficando sem fôlego. — Assim que descobrir o que ela quer com tanta
urgência eu te ligo, pode ser?
— Tá bom, querida. Seu pai está aqui enchendo o saco para sairmos
logo... Não se esqueça de me ligar de volta, ok?
— Uhum! — murmuro e jogo um punhado de água gelada no rosto.
— Te amo, até mais tarde! Dá um beijo no velho!
Depois de, pelo menos, mais cinco minutos de despedidas, ela
desliga. Percebo que estou com saudade deles, é estranho passar tanto tempo
longe daqueles que mais amo. Talvez seja hora de visitá-los. Agora que terei
os finais de semana e feriados livres, tudo será mais fácil.
Corro até o interfone, agarrando-o com força.
— Oi?
— Bom dia — o porteiro saúda, com a voz suave. — Maria Eduarda?
— Isso... Eu mesma.
— Tem uma encomenda para você aqui em baixo. Você pode descer,
por favor?
— Ah, sim... Já estou indo. Obrigada!
Uma encomenda, que estranho! Não me recordo de estar esperando
nada. Dou de ombros, indo até o quarto em passos apressados. Se existe algo
que sou, com toda certeza é curiosa. Preciso saber o que me aguarda lá
embaixo o quanto antes.
Visto uma roupa qualquer e saio do apartamento, entrando no
elevador e apertando o botão do térreo várias vezes, como se isso fosse deixá-
lo mais rápido. Espio o visor do celular, finalmente descobrindo as horas: são
oito e cinco. “Caramba, minha mãe não podia esperar dar meio-dia?”,
penso, subitamente irritada.
Ao chegar à recepção, o sangue congela com a expectativa. Meus
olhos recaem para aquele arranjo maravilhoso e enorme de orquídeas que se
encontra acima do balcão e, no meu íntimo, desejo freneticamente que seja
aquela a minha encomenda, ainda que a ideia por si seja bastante pretensiosa.
— Bom dia — cumprimento o porteiro sem tirar os olhos do vaso
quadrado de madeira. Hm, impressionante.
— Olá novamente — ele devolve, com um sorriso no rosto. —
Preciso que assine aqui, tudo bem? — E então me indica a lista de
encomendas do prédio.
Assino o meu nome e o encaro com ansiedade, ao que ele responde
com uma risada tímida.
— São para você! — explica, entregando-me o vaso nas mãos.
Esqueço-me de respirar por alguns segundos, observando perplexa o
presente. Eu nunca ganhei flores antes! E essas são lindas, de um vermelho-
intenso que enche os olhos. Encontro-me completamente lisonjeada.
Tomo o arranjo nas mãos, agradecendo e me retirando. Um sorriso
rasga o meu rosto, ao imaginar Felipe acordando cedo e escolhendo um bom
jeito de me paparicar... Parece que no fundo daquela carcaça grossa existe um
coração, no fim das contas.
Assim que entro no elevador, procuro pelo cartão e o encontro
escondido entre as flores. É um cartão branco, simples e sem nenhum dizer
por fora. Abro-o com os dedos trêmulos, encontrando uma caligrafia elegante
e séria me esperando:
“São Paulo já não é a mesma sem você aqui.”
Engulo em seco, quase conseguindo ouvir ecoar em minha mente a
voz debochada de Renato. “Ele não está disposto a desistir”, concluo, em
uma onda de desânimo, quando, enfim, chego ao meu lar.
Então, sinto um arrepio percorrer a espinha ao me dar conta, ainda
que tenha demorado um pouco, de que ele sabe que já estou em Curitiba e, —
a parte mais assustadora — conhece o meu endereço.
Ca-ra-lho! Sinto que algo está terrivelmente errado nessa história.

Aproveito o dia livre para arrumar a casa, afinal de contas, ficou mais
do que abandonada nesses últimos dias. Porém, ainda que esteja com a
cabeça focada nos afazeres domésticos, meu pensamento acaba sempre
divagando para o vaso de flores, que repousa inocentemente sobre da mesa da
sala, com o seu perfume suave pairando ao seu redor.
Por que tudo tem que ser tão complicado? Quero dizer, talvez ficasse
mais fácil se Felipe fosse um pouco menos indecifrável. Por mais que esteja
certa de que quero persistir nesse sentimento intenso que vem me dominado,
temo que a minha teimosia não seja o suficiente para atravessar a armadura
de isolamento com a qual ele se reveste. Meu chefe demonstra
constantemente tentar se proteger de minhas investidas, no entanto, não
acredito que seja por não me desejar. Eu sei que ele sente algo, mesmo que
puramente sexual — mas ainda assim, parece temer levar adiante. Algo
complexo e interno o deixa relutante. E o que seria isso?
Como se não bastasse todas essas dúvidas que nutro em relação a ele,
ainda tem o Renato. No começo, pareceu apenas atraído por mim, de uma
maneira natural e até mesmo lisonjeadora. Contudo, apesar de seu interesse
ser genuíno e explícito, existe um quê de agressividade em sua motivação que
me assusta um pouco.
Renato me parece incisivo ao tomar certas atitudes que me impõem
sua presença, como se eu tivesse de aceitar que, cedo ou tarde, acabarei
cedendo. Não é como se existisse uma possibilidade, mas sim como se ele
estivesse me avisando com clareza: “você vai ser minha”. No entanto, por
que ele aparenta estar tão decidido quanto a isso? Veja bem, ele é um homem
bonito e tem plena consciência disso, além de usá-la a seu favor. Um
galanteador nato que sabe exatamente o que dizer e a hora certa para isso.
Aposto que não têm problemas em conseguir qualquer mulher que queira.
Porém, mais do que isso, parece fazer da minha conquista um desafio. A
conquista serve como motivação ao prêmio final. A recompensa é poder se
gabar de, mais uma vez, não ter falhado.
Talvez ele tenha visto em mim um potencial ainda maior, depois de
perceber meus sentimentos em relação a Felipe. Quem sabe tenha se tornado
uma disputa pessoal, no fim das contas. No meu íntimo, surge a suspeita de
que Renato queira apenas se vangloriar por ter conseguido uma mulher
interessada em outro homem. Um sorriso amargo escapa dos meus lábios e
me encontro triste por constatar que faz sentido.
De toda forma, não posso negar que, de alguma forma, não consigo
simplesmente sentir qualquer tipo de aversão a ele. Renato possui uma
persuasão incrivelmente eficaz. Ele seduz com facilidade. Mas, como afirmei
na piscina: não conhece o quanto posso ser cabeça dura. Sei que posso lidar
com isso sozinha. Além do mais, se Felipe já vem se mostrando tão hesitante
em relação a mim, mesmo sem complicações, imagina se soubesse que
Renato está mais que decidido a tirar uma lasquinha da situação... Minha
nossa, eu estou encrencada ao quadrado!
Sou chamada de meus devaneios tão logo ouço o celular apitar,
indicando uma nova mensagem no WhatsApp. Tiro o suor da testa com as
costas da mão, abandonando o rodo apoiado na parede da sala. Caramba,
como eu detesto limpar a casa. Já passou da hora de alguém inventar um jeito
delas se auto limparem...
Ao alcançar o telefone, vejo que a notificação vem do perfil de Felipe,
onde ele exibe um sorriso largo e alegre para a câmera; seus olhos sendo
obscurecidos pelo boné que traz na cabeça. Céus, por que tão lindo?
Abro a conversa com certa curiosidade, imaginando o que ele está
fazendo no seu dia livre de mim. “Está tudo muito quieto por aqui” diz a sua
primeira mensagem, no entanto percebo que está digitando uma nova. Com
um sorriso no rosto, aguardo o que ele tem para me dizer. “Acho que me
acostumei com você por perto...” leio, sentindo o estômago revirar de
nervosismo. O quê? Isso é sério? Felipe cedendo um pouquinho? Meu Deus!
Seguro o celular com as duas mãos, pronta para digitar uma resposta,
no entanto, sou surpreendida com uma terceira mensagem vinda dele, que faz
a minha cabeça flutuar momentaneamente. “O que faço com você, hein,
Madu? Não sai da minha cabeça”.
Com o sangue correndo rápido pelas minhas veias, percebo que as
palmas das mãos estão suando frio. Mas que merda! Ele vai acabar me
matando se continuar fazendo isso comigo. É isso que quer?
Meus dedos digitam ferozmente as palavras que envio sem pensar:
“Já com saudades, Dr. Antunes?”. Uma gargalhada escapa da minha boca,
quando me dou conta do quanto posso ser provocativa às vezes. Bem, ao
menos podemos jogar na mesma moeda. Se ele quer me enlouquecer, quero
que ele saiba que eu vou levá-lo para a loucura comigo!
Caminho até a sacada estreita do apartamento, apoiando os cotovelos
na grade cuja tinta está descascada em tantos pontos que já não se sabe se sua
cor original é preta ou vinho. Uma brisa fresca despenteia os meus cabelos,
enquanto aguardo pacientemente um posicionamento de Felipe. Vai aceitar o
meu incentivo ou vai recuar?
Vejo que começa a digitar e para em seguida. Faz isso pelo menos
umas três vezes. Os segundos passam e o sorriso em meu rosto cresce ao me
dar conta das mensagens que me mandou. Finalmente cai a ficha: ele me
disse que não saio de sua cabeça. Felipe está pensando em mim! Mais do que
isso, está pensando muito em mim! Pensando tanto que não se conteve em
me mandar uma mensagem. Isso não condiz com a sua personalidade fechada
e é exatamente por isso que é tão delicioso constatar o quanto está dividido,
assim como eu mesma estou.
Ainda que esteja tentando se afastar de mim, parece não apresentar
tanto êxito quanto gostaria. Minhas pernas perdem a força por alguns
segundos enquanto saboreio a sensação de conhecer uma nesga de seus
sentimentos. Droga, Felipe, se você não fosse tão enigmático assim...
Suspiro, com uma estranha felicidade me dominando. Sinto-me um pouco
boba por me afetar com tão pouco, mas a sensação é tão envolvente que não
sobra espaço para me preocupar com nada mais.
O celular apita uma última vez e, tão logo o desbloqueio, encontro sua
mensagem me esperando: “Estou indo aí te ver”.
Montanha-
Russa
Saio do banheiro em uma nuvem de perfume, sentindo-me satisfeita
por ter arrumado a casa, afinal a primeira impressão é a que fica. Não sei
dizer o porquê, mas ansiedade parece me corroer. Ainda que eu tenha viajado
por quase uma semana com Felipe e o visto há menos de vinte e quatro horas,
sinto-me como se fosse uma adolescente indo ao seu primeiro encontro.
Apesar do nervosismo, percebo que a sensação é gostosa no fim das contas.
As borboletas no estômago estão voando com bastante intensidade, ao passo
em que me controlo para não roer as unhas. Como é possível uma pessoa
mexer tanto assim com outra?
Mal tenho tempo de me vestir e ouço o interfone ressoar pelo
apartamento todo, fazendo o meu coração batucar com violência. Estremeço
brevemente, não podendo aguentar ficar mais um segundo sequer sem ele.
“Bem, vamos lá... Vai dar tudo certo”, mentalizo, na tentativa vã de me
tranquilizar. Preciso ficar calma!
Dou uma última espiada no reflexo do espelho, arrumando o cabelo
com as mãos e vou de encontro ao aparelho cujo som estridente contribui
para o nervosismo.
— Madu? — A voz do porteiro é amigável.
— Sim, eu mesma! — respondo, como de praxe, enquanto o dedo
indicador torce uma madeixa de cabelo próxima da orelha direita.
— Você tem visita... Posso deixar o Felipe entrar? — a forma como
me pergunta dá a impressão de que ele sabe exatamente que Felipe pode e
deve entrar. Parece estar se segurando para não soltar uma risadinha.
— Ah, sim. Por favor! — digo com suavidade e desligo o interfone
sem me despedir, tamanha é a minha distração.
Ando de um lado para o outro, aguardando que, a qualquer momento,
a campainha toque. A espera é inquietante e parece durar uma eternidade.
Aperto o celular com força entre os dedos das mãos, enquanto a minha
cabeça luta para não entrar em um lapso nervoso. Que merda esse homem
está fazendo comigo? Olhe só para mim! Essa não parece a Madu de
sempre... Não! Estou agindo como uma menininha apaixonada. A pior parte
disso é que não me importo nem um pouco. É tão delicioso estar na
companhia dele, que quero me afogar em todo o seu mistério.
A campainha soa, arrancando-me de meus pensamentos em um pulo.
O meu coração triplica a velocidade dos batimentos, se é que isso ainda é
possível. Respiro fundo, armando-me do meu melhor sorriso e
encaminhando-me à porta com passos confiantes. Ainda que esteja em uma
imensa confusão de sentimentos, jamais deixarei transparecer.
Abro a porta e me deparo com Felipe recostado na parede ao seu
lado. Os braços cruzados sobre o peito destacam os bíceps malhados,
consumindo toda a minha atenção para eles. A forma como a sua camiseta
parece justa neste ponto é incrivelmente desconcertante. Minha nossa! Acho
que estou passando mal!
Meus olhos recaem em seguida sobre os seus lábios recém-
umedecidos, os quais brilham de maneira deliciosa, tortos em um sorriso
malicioso. Como eu queria senti-los com os meus próprios... Está ficando
difícil me manter neutra. Muito difícil. Acho que não vou conseguir.
— Não vai me chamar pra entrar? — ele me pergunta, com
naturalidade. Suas íris azuis estão mirando o mais profundo da minha alma.
Subitamente, sinto-me exposta e abaixo os olhos, encarando os pés.
— Mi casa es su casa! — falo em uma tentativa horrenda de espanhol
que arranca uma risada gostosa do homem à minha frente.
Abro espaço para que ele entre e finalmente percebo a caixinha de
cerveja até então esquecida em seus pés. Felipe inclina o corpo para alcançá-
la e, ao se levantar, segura o meu queixo cuidadosamente, passando o polegar
nos meus lábios. Nossos olhos voltam a se encontrar, causando-me um
arrepio que desce a espinha, mais frio que gelo. Ok, eu definitivamente não
posso mais responder pelos meus atos. A qualquer momento poderei agarrar
esse homem e ninguém poderá me culpar.
Felipe avança pelo pequeno corredor, virando à direita, que dá na
cozinha. Não preciso pensar muito para saber que está indo colocar a cerveja
para gelar e me permito um sorriso ao me dar conta do quanto ele parece
confortável em minha casa, muito embora seja a primeira vez que esteja aqui.
— Se importa se eu guardar isso? — diz, balançando suavemente a
caixinha, que provoca um tilintar entre as garrafinhas.
— Esteja à vontade — sorrio, observando-o empenhado em sua
atividade.
Algo em vê-lo aqui está me deixando maluca. Não parece real, soa
mais como se fosse um sonho maravilhoso, que termina comigo acordando
molhada... Mas bem, aqui estamos nós. Eu não sei exatamente como agir e
isso é o mais estranho.
— Não tem mais ninguém em casa? — Felipe pergunta, apoiando as
costas contra a geladeira. Seus olhos estão fixos na long neck que ele se pôs a
abrir.
— Eu moro sozinha! — explico, incapaz de tirar os olhos dele. —
Meus pais acharam que seria melhor para mim se eu simplesmente não
precisasse lidar com uma pessoa desconhecida... Pais corujas, sabe como é —
sorrio com a lembrança deles e sou acompanhada por Felipe. — Eles que
pagam o aluguel. Não acho justo, mas não é como se adiantasse discutir.
— Você é filha única? — Sua voz sai abafada pela garrafinha presa
entre os lábios. Inconscientemente, fisgo os meus, desejando bebericar da
cerveja de sua boca. Porra! Qual o meu problema? Isso está ficando demais...
— Sou — respondo, lutando para me concentrar. — Imagine só se
não sou superprotegida... — A nossa risada ecoa pela cozinha por alguns
segundos. Resolvo aproveitar o momento para descobrir um pouco mais
sobre o enigmático advogado à minha frente. — E você, tem irmãos? —
pergunto, com inocência.
As palavras têm um efeito estranho sobre Felipe. Ele dá um sorriso
triste, com os olhos distantes. Arrisco dizer que sua mente está voltada para o
mais profundo de seu ser, pela forma como sua expressão enegreceu. Nem
parece a mesma pessoa de segundos atrás. É como se tivesse envelhecido
vários anos, aqui na minha frente.
Ainda chocada com a sua reação, aproximo-me dele em passos
hesitantes, alcançando a cerveja de sua mão. Apesar de não estar muito
animada em prosseguir no assunto, usufruo de sua atenção em mim para
voltar a perguntar.
— Não? — A minha voz paira tímida no espaço entre nós dois.
— Hum? — Felipe indaga, distraído. Seus olhos finalmente parecem
focar no presente e ele exibe um sorriso que me deixa com as pernas moles
feito gelatina. — Quero conhecer o resto da sua casa... — diz, com sua
expressão de quero-colo que tanto amo.
Dou uma golada na cerveja, entregando-o a garrafa para que ele mate
o que ainda resta. Resolvo não persistir no assunto, se isso significa que vou
tê-lo distante e estranho. Talvez outro momento seja mais oportuno. Não vou
forçá-lo a me mostrar mais do que se sente à vontade. No fim das contas, sei
que ele deve ter os seus motivos para ser tão resguardado.
Enquanto ele termina com a sua long neck, apanho outra na geladeira,
abrindo-a com a ajuda da camiseta que estou vestindo. Toco o seu braço com
delicadeza, indicando-lhe o caminho, como quando ele me guia tateando o
vão das minhas costas.
— Bem, você está acostumado com outros padrões, por isso não se
assuste com o quão ridiculamente pequeno é o apartamento! — brinco, ainda
com os dedos apoiados no seu bíceps.
— Outros padrões? — ele pergunta, fingindo estar ofendido, de
maneira teatral.
Antes que eu esboce uma reação, porém, sua mão direita me enlaça
pela cintura, buscando-me para perto de si. Felipe enterra o rosto no meu
pescoço, inspirando pesadamente na minha pele. No mesmo instante, sinto o
frio na barriga se espalhar pelo corpo todo, imobilizando-me. Que delícia...
— Quais são os meus padrões? —pergunta, com os lábios roçando
contra a minha derme.
Involuntariamente, deixo um gemidinho escapar da garganta, que
parece servir como gatilho para ele. Felipe segura os meus cabelos com força,
obrigando-me a inclinar a cabeça, de forma a alcançar a minha nuca. Assim
que seus lábios a tocam, sinto uma corrente elétrica intensa e a minha pele
começa a formigar.
— Eu te fiz uma pergunta! — ele insiste, aumentando a força com a
qual puxa o meu cabelo preso em seus dedos.
Arfo de tesão, ao passo em que a minha cabeça flutua para longe dali.
— Não sei... — respondo, sem conseguir pensar em nada melhor para
dizer. Não estou em condições de raciocinar direito. Felipe está me deixando
louca.
Seus lábios vêm de encontro aos meus, mas, ao invés de me beijar, ele
os desliza com suavidade contra a minha boca. O contato é morno e úmido e
me deixa completamente sedenta por um beijo.
Apesar de eu tentar dar continuidade, Felipe persiste com a
provocação, acrescentando agora leves mordidinhas, que fazem cócegas.
Com a língua, procuro espaço para prosseguir e ele nega, afastando o seu
rosto do meu. Nossos olhos se encontram e percebo o quanto suas íris azuis-
intensas estão ardentes de desejo. Santo Deus! Nunca em toda a minha vida
estive com as sensações tão à flor da pele como quando estou com ele.
Suas mãos se enroscam em meus cabeços, segurando a minha cabeça
dos dois lados, protetoramente. Assim que a sua língua vem de encontro a
minha, não posso deixar de ofegar de excitação. Estou pegando fogo e ele
conseguiu isso com tão pouco... Felipe me beija carinhosamente, com calma.
Sinto a sua respiração terna vir de encontro ao meu rosto, enquanto meus
batimentos cardíacos estão desenfreados.
Já estou pronta para arrancar sua camiseta quando ele afasta seu
corpo, com um sorriso divertido estampado no rosto de traços maravilhosos.
— O que você está fazendo comigo, hein? — Sua voz ressoa rouca e
sexy, penetrando os tímpanos com suavidade. Estremeço por alguns segundos
antes que ele prossiga. — Temo que não chegue a conhecer a casa toda se as
coisas continuarem nesse ritmo...
Uma risada calorosa escapa dos meus lábios, contagiando-o. Alcanço
a sua mão, guiando-o sala adentro. É somente ao me deparar com toda aquela
vermelhidão ardente em cima da mesa, que me dou conta de que me esqueci
completamente do vaso que ganhei de Renato. Mas que merda!
Os olhos de Felipe recaem para o arranjo bonito e imponente e então
percebo quando ele ergue as sobrancelhas, surpreso. Sinto os seus dedos
apertarem a minha mão com um pouco mais de pressão por alguns milésimos
de segundo.
“É. Parabéns para mim. Acabo de estragar tudo”, penso, com
desânimo, tentando prever a sua reação.
O silêncio que impera entre nós é desconcertante e tão cortante quanto
uma faca afiada. Pigarreio, em uma tentativa desesperada de tentar resgatar o
clima que sei ter se dissipado completamente. Encontro-me amargurada ao
constatar que poucos segundos atrás estava indo tudo bem... Que inferno!
Como pude me esquecer dessas malditas flores em cima da mesa? Qual a
droga do meu problema?
Pelo canto dos olhos, observo Felipe se afundar em uma expressão
séria e carrancuda. Sua reação não passa dessa, no entanto. Soltando-se de
mim, ele se dirige em direção ao sofá, onde se senta confortavelmente. Cruza
uma perna sobre a outra, esticando o braço livre pelo encosto macio do sofá
surrado.
Ainda estou plantada no mesmo lugar, sem saber realmente o que
posso fazer para reverter a situação. Nesses segundos em que nada aparenta
acontecer, Felipe leva a cerveja à boca, dando um demorado gole. O ar ficou
denso e a sala parece pequena demais para nós dois.
— Bonitas flores — limita-se a dizer, em um tom que sugere não dar
a mínima para a situação toda.
Reviro os olhos, sendo atingida por uma irritação que, apesar de
súbita, é intensa. Caramba... No momento em que damos um passo para
frente, as coisas conspiram para que tenhamos que regredir o dobro. Por que
tudo tem que ser sempre tão complicado ao se tratar de nós dois?
Felipe desce as pálpebras, inclinando a sua cabeça para trás e
recostando-a contra a parede. Ouço-o soltar um pesado suspiro e percebo que,
muito embora esteja tentando parecer neutro diante da situação, demonstra
estar irritado.
Entendo que ele esteja. Eu mesma também estou. No entanto isso está
longe de ser culpa minha. E, para ser bem honesta, se ele não fosse tão
confuso, talvez nada disso estivesse acontecendo. Mas, pelos sete infernos,
esse homem demonstra estar receoso em relação a todos os aspectos possíveis
que dizem respeito a mim. Pergunto-me se dei algum motivo para que ele
nutra tanto receio. Qual é, nunca cobrei nada de nós além do que temos
partilhado. Por que ele parece querer correr de mim a todo momento?
— Eu também achei — devolvo, por fim.
Meus ombros começam a pesar mais do que o normal e, dando-me
por vencida, caminho de encontro a ele, sentando-me ao seu lado.
Aproveito que está de olhos fechados para admirá-lo por alguns
segundos. Mesmo me deixando cheia de dúvidas continua incrivelmente
lindo. Como consegue? É sério, não dá para acreditar que seja solteiro.
Porque além de ser maravilhoso, também é educado, engraçado, protetor. E
tem uma pegada... Santo Deus, só de me lembrar fico arrepiada!
— Algum problema? — pergunto, enquanto prendo o cabelo em um
coque no alto da cabeça. — Você ficou quieto...
— Às vezes acho que você brinca comigo, sabia? — Suas palavras
são baixas como um sussurro. No entanto, vêm ao meu encontro como
bofetadas. — Eu não tenho mais idade para brincadeiras! — conclui, com o
tom frio e impessoal que já o vi usar com seus clientes diversas vezes.
Caralho! Não sei exatamente o que pensar. A minha cabeça está uma
confusão de pensamentos que se atropelam, sem fazer o menor sentido.
Como um dia aparentemente pacato — tal qual esse prometia ser — pôde
render tantos acontecimentos?
Justo hoje que Felipe confessou não me tirar da cabeça... Maldita hora
que o Renato resolveu me presentear! O meu estômago embrulha só de
pensar nisso. Talvez se fosse só o gesto de enviar as flores, tudo isso fosse
mais ameno. A questão é que ele tem algumas informações privilegiadas
sobre mim que me deixam bastante perplexa. E, se um dia imaginei existir a
possibilidade de, em um futuro remoto, contar para Felipe esses
acontecimentos, agora vejo que jamais devo tocar no assunto, ou teremos
sérios problemas.
Fecho os olhos e recosto a cabeça na parede, imitando-o. Encontro-
me exausta e chateada. Não entendo o que preciso fazer para que tudo
caminhe bem. Então, de repente, já nem tenho certeza de se é inteligente
tentar persistir. Ora, ele é o meu chefe! Como as coisas serão assim que nossa
rotina voltar ao normal?
— Por que você diz isso? — questiono, tentando ordenar os
pensamentos caóticos. — Acho que sempre fui bem clara quanto aos meus
sentimentos...
— Não para mim — sua voz morre no ar por um momento, como se
ele estivesse achando as palavras certas para usar. Dado o tempo que
seguimos em silêncio, concluo que não as encontrou.
— Bem, não sei que jeito melhor poderia ter demonstrado. Para mim
estava bem óbvio depois do que passamos.
Cuspo as palavras com um pouco mais de rispidez do que gostaria. A
criança birrenta que mora em mim está com os nervos à flor da pele. Ainda
bem que me encontro com os olhos fechados, porque sei que não preciso de
muito mais para começar a soluçar. É uma droga que eu seja uma chorona,
mas não é como se pudesse fazer algo a respeito. As situações em que mais
preciso parecer durona são as que sempre me consagro como uma manteiga
derretida.
Tão logo processa o que falei, Felipe se levanta do sofá. Imagino que
esteja indo embora. Isso se parece com algo que ele faria: esquivar-se sempre
mais em sua camada de “não vou me envolver”. Porra! Eu estou furiosa!
Permaneço de olhos fechados, recusando-me em dar-lhe o gostinho de
me ver chorando. Assim pelo menos pareço estar indiferente à situação. Ok,
talvez essa seja a deixa para que eu pare de confundir tudo. Quando
finalmente encontrei o emprego ideal para este momento da minha vida,
ferrei tudo com uma paixão platônica pelo meu chefe.
O seu perfume se faz mais intenso e, antes que eu decida abrir os
olhos, noto o estofado do encosto do sofá afundar ao meu lado direito. Arfo
em surpresa, percebendo sua respiração ricochetear contra o meu rosto. Ele
está perigosamente próximo. O que pretende?
— As coisas estão um pouco confusas pra mim — ele segreda tão
baixo que quase não o escuto. — Se não me falha a memória, recordo ter
ouvido algumas coisas interessantes sobre o Renato nessa semana que
estivemos em São Paulo.
— Oh! — Deixo escapar, sentindo as bochechas pegarem fogo.
Droga, droga, droga! Ele ainda está com isso na cabeça! Será que suspeita de
quem sejam as flores?
Sua mão grande e morna vem de encontro ao meu rosto, repousando-a
carinhosamente acima da orelha. As pontas de seus dedos longos alcançam a
minha nuca, deixando-me completamente desnorteada. Minha nossa!
Estamos no meio de uma DR, não posso ceder assim tão fácil.
Ainda de olhos fechados, percebo-o se aproximar um pouco mais de
mim, pela forma como a sua respiração está mais forte contra a minha pele.
Ao que começa a falar, os seus lábios raspam de leve contra os meus,
roubando todo o meu foco para aquele frágil contato.
— Quero deixar uma coisa clara, aqui, Madu — profere em um tom
sério, no entanto caloroso. Parece-me que está perdendo o controle. — Eu
não divido nada que é meu!
Puta merda! Como é? Ele disse... ele insinuou... que sou... dele?
No entanto, não posso processar a informação, porque ele leva a outra
mão à minha cabeça e une nossas bocas de uma maneira um pouco rude,
causando um pouquinho de dor com o atrito.
— Ouviu o que falei? — pergunta com os lábios nos meus.
As minhas mãos tremem levemente enquanto tento não ter um ataque
cardíaco. É sério, ele está me enlouquecendo! Felipe definitivamente está me
deixando doida! O mundo gira de maneira feroz ao meu redor, ainda que eu
esteja de olhos fechados.
Como não respondo sua pergunta, Felipe completa.
— Você é minha! — Os dedos de sua mão direita passeiam
gostosamente dentro dos meus cabelos presos, em um afago cuidadoso que
não condiz com o quanto ele parece desesperado por estar se entregando.
— Você me disse que não existia a possibilidade de um
relacionamento entre nós — solto, de supetão, odiando-me por isso ao
perceber o que fiz.
— Agora é tarde para voltar atrás — suas mãos descem até os meus
braços, segurando-os com firmeza. — Não passo um segundo sem tirar você
da cabeça... O que você fez comigo?
Percebo que estou há alguns segundos sem respirar tão logo
experimento o alívio de ter novamente o ar invadindo os pulmões. É como se
o resto do mundo não existisse. Nada além desse momento que parece durar
uma eternidade. Nada além de nós dois.
Essas sensações são devastadoras: seus dedos afundados na minha
carne. O ar morno que vem em lufadas contra mim, soprando alguns fios de
cabelo para fora do meu rosto. Ou então o som de sua respiração agitada. A
forma como ele parece perder o controle. Algo sobre o quanto parece travar
uma árdua luta interna. Ele me quer. Deseja-me com ardor. Essa angustia de
não compreender os seus pensamentos some momentaneamente. A minha
memória luta para registrar o maior número de detalhes possíveis, em uma
tentativa de eternizar essa ocasião.
— O mesmo que você está fazendo comigo, Felipe! — Segredo, com
a voz rouca.
As minhas sensações encontram-se tão aguçadas que é difícil entender
exatamente o que está acontecendo. O meu mundo parece desmoronar, mas é
bom perder o controle às vezes.
Felipe solta suas mãos de mim e, ao erguer as pálpebras, encontro-o
ocupado em arrancar a sua camiseta para fora do corpo, com os olhos em
brasa. Alcanço-o, enlaçando os braços ao redor de seus ombros nus, enquanto
o conduzo às cegas em direção ao quarto.
O tanto que desejo esse homem... jamais estive assim por alguém
antes. Quando enviei um currículo para a vaga de secretária que encontrei por
um acaso, jamais imaginei que a minha vida pudesse virar de ponta cabeça.
Contudo, é no looping da montanha-russa que temos as melhores sensações.
Às vezes o que mais precisamos é de uma chacoalhada para enxergar as
coisas através de uma nova perspectiva.
Se a recompensa é tê-lo para mim, estou mais do que disposta a
desvendar todos os seus mistérios. Desde que ele continue me beijando
intensamente, como faz agora. Eu poderia fazer qualquer coisa que me
pedisse.
Estou perdidamente apaixonada por ele.
Pequeno
Avanço
A brisa fresca da manhã ultrapassa a trama do cardigã, causando um
calafrio. O dia amanheceu com uma queda considerável na temperatura e o
céu já está fechado por nuvens. Sinto que não demorará em começar a
chover.
A cada dia que o inverno se aproxima, menos fico feliz com a ideia. O
clima da cidade de onde vim é infinitamente mais agradável do que o de
Curitiba, assim, mesmo depois de três anos morando aqui, ainda não
consegui me conformar com a chuva imprevisível e o frio de matar. Só de
pensar nas incontáveis camadas de roupas que terei de usar no inverno, fico
deprimida...
Ao descer do ônibus, sou recebida com algumas gotas grossas de
chuva, que me arrancam um suspiro irritado. Caramba, não podia ter
começado a chover depois que eu já estivesse no trabalho? Abro o guarda-
chuva, desanimada com a perspectiva dessa manhã que mal começou. Por um
momento, mentalizo o quanto deve estar quentinha a minha sala e o
pensamento me anima a caminhar mais depressa.
As minhas pernas envoltas pela meia-calça preta se fazem frenéticas
tão logo percebo que a chuva está engrossando em uma velocidade
surpreendente. Antes que me dê conta, começo a correr, ignorando a forma
como o vento ergue a saia rodada do meu vestido. A única coisa que preciso
é chegar, e logo. Correndo de maneira desajeitada, torço o pé e vou direto
contra o chão, caindo de quatro no meio da rua.
O guarda-chuva sai voando em círculos confusos e sinto as orelhas
esquentarem. Mas. Que. Droga! Graças aos céus que essa rua é deserta!
Levanto-me arfando e constato com amargura que rasguei a minha meia-
calça novinha. Noto o esfolado no meio do joelho e reviro os olhos,
completamente irritada. Se existe jeito de o dia piorar, torço para que não
aconteça!
Logo depois de recuperar a sombrinha e restaurar a ordem, retomo os
passos apressados — desta vez optando por não correr. Não demora para que
eu chegue úmida e chateada no trabalho, com uma cara que deve claramente
gritar “fique longe!”.
Vou direto ao banheiro do escritório, com o intuito de dar um jeito
nos meus cabelos antes que eles se rebelem contra mim. Meus dedos
passeiam ágeis pelas madeixas castanhas, fazendo uma trança embutida que
começa de um lado e termina do outro. Tiro a meia calça e guardo-a na bolsa,
estremecendo com o ar frio que percorre a pele nua das minhas pernas.
Assim que saio do banheiro, dou de cara com os olhos castanhos
amendoados de Leonor. Os cabelos espessos negros e brilhantes estão presos
em um coque apertado e ela tem que inclinar o rosto para cima, uma vez que
é bem mais baixa que eu.
Seus lábios grossos abrem espaço para um sorriso que, muito embora
seja sempre cheio de dentes, em uma simpatia inata, hoje parece um pouco
atormentado.
— Bom dia! — cumprimenta calorosamente, apesar da preocupação
visível.
— Bom dia, Leonor! — respondo tentando não demonstrar o quanto o
meu dia está sendo uma verdadeira droga. — Tudo bem? Como passou o
final de semana?
— Ahn? — pergunta distraída, finalmente demonstrando ter voltado
ao presente. — Ah, foi bom, Madu! Fiz um bolo enorme de chocolate com
doce de leite e levei lá na Isadora... Pensa numa menina que comeu até passar
mal! — Ela sorri amável, ao passo em que suas mãos estão entrelaçadas com
uma força cheia de tensão.
Tem alguma coisa estranha acontecendo... Ela não está normal! Quero
dizer, está tentando parecer natural, mas vejo nitidamente que algo a está
perturbando.
— Que bom! A minha avó também faz uns bolos deliciosos... — em
passos lentos, caminho em direção à mesa, deixando a bolsa na extremidade
junto à parede. — Você precisa de ajuda? — indago, sendo afetada pelo
desconforto dela.
— Então, é que o Felipe acordou muito indisposto — ela encolhe os
ombros, desviando os olhos dos meus. — Não vai conseguir trabalhar hoje,
não. Ele pediu pra desmarcar os clientes e explicar que aconteceu um
imprevisto... — Sua voz morre no ar.
As palavras me pegam desprevenida. Franzo o cenho, intrigada com a
situação. Felipe não me parece do tipo que desmarca compromissos apenas
por estar indisposto. Ele é sempre muito profissional e comprometido com os
clientes. Além do mais, por que ele não me avisou pessoalmente? Tinha que
ser através da Leonor?
Respiro fundo, percebendo que estou com o punho fechado com
tamanha força, que as minhas unhas afiadas estão começando a machucar a
palma da mão. Que dia de merda! Argh, queria não ter levantado da cama!
— Há algo que eu possa fazer, fora isso? — questiono suavemente,
tentando transparecer a preocupação, mas não a irritabilidade.
— Acho que não — ela me lança um sorriso amarelo como que se
desculpando e as suas pernas curtas a levam para longe dali.
Alcanço a agenda, ponderando se seria invasivo da minha parte entrar
na casa de Felipe. Não é preciso muito para que eu me repreenda por
pensamentos, sentindo-me ridícula e imatura. Aqui somos chefe e
subordinada. Nossa relação deve ser puramente profissional e se ele não quer
dar as caras e nem ao menos me explicar o motivo, resta-me ficar conformada
com a situação.

Depois de remarcar todos os horários de hoje, resolvo aproveitar o


tempo para organizar o escritório. Por horas a fio, entre um telefonema ou
outro que eventualmente ocorre, arrumo a prateleira de livros; ordeno os
incontáveis arquivos; assim como a minha própria mesa de trabalho, também.
Estava um caos, afinal de contas, não sou o que se possa chamar de pessoa
organizada. Preparo as pastas dos clientes de amanhã, deixando-os sobre a
mesa de Felipe, na ordem em que serão necessários.
Saio, então, para almoçar em uma padaria não muito longe daqui,
como sempre faço. Tanto tempo trabalhando no shopping me trouxe
péssimos hábitos alimentares dos quais não consigo me livrar. Somando isso
ao fato de eu odiar marmitas, o resultado será uma alimentação que deixaria
qualquer nutricionista horrorizada. Ainda bem que sou abençoada com um
metabolismo rápido, caso contrário...
Na volta, começo a sentir uma angústia terrível me assolar. Não sei
explicar como tenho essas coisas, mas a questão é que meu sexto sentido
nunca falha. Felipe vem em mente o tempo todo e constato aflita que, depois
de sexta-feira, quando esteve em minha casa, trocamos pouquíssimas
mensagens.
Como estive ocupada pegando o conteúdo da faculdade com Vanessa,
não tive tempo de estranhar o isolamento dele, mas agora que estou pensando
nisso, acho muito estranho que depois das coisas que me falou no nosso
último encontro, simplesmente tenha conseguido me tirar da cabeça tão
facilmente por dois dias seguidos.
As lembranças retornam a minha mente, deixando-me perplexa. Sinto
uma corrente elétrica atravessar as extremidades do corpo, provocando um
estranho arrepio que oscila entre gostoso e incômodo. Lembro-me de Felipe
me dizendo que sou dele e logo um sorriso rasga o meu rosto. Entretanto ao
tentar entender o porquê parece que as coisas ainda não estão bem, encontro-
me sem respostas.
Não é novidade que ele esconde algo de mim — e talvez do máximo
de pessoas de sua convivência —, nem o receio em lidar com os seus
sentimentos. Contudo, tem algo mais. Resgato alguns momentos na memória
em que os seus olhos perderam o brilho, sendo obscurecidos por uma tristeza
repentina. Constato que já o vi ter esses momentos várias vezes, em que
parece ir para longe, ainda que estejamos tão próximos.
Então sou inundada por uma enorme sensação de impotência. Ainda
que tenhamos prosseguido um pouco nessa confusão que nos tornamos,
reparo o quanto dele que ainda não conheço e entendo que, na verdade, o que
conheço e sei é muito pouco. Não sei nada sobre Felipe Antunes, o meu chefe
e aquele por quem estou apaixonada.
É movida pela frustração que deixo os meus pés me guiarem pelos
cômodos luxuosos de sua mansão. Caminho sem rumo, não o encontrando
dentro de lugar algum. Depois de vasculhar — e conhecer — sua casa por
completo, saio pelo quintal, permitindo-me ficar impressionada com a
vastidão que se estende à minha frente. Contorno a enorme piscina de
formato orgânico, atraída pelo que me parece ser a sua academia particular.
Em passos hesitantes, dirijo-me nesta direção e, na medida em que me
aproximo, percebo um som crescente. A princípio demoro a distinguir o
barulho, no entanto, assim que entro enfim no ambiente, sou tomada pelo
choque, perdendo instantaneamente a força das pernas.
Felipe está ao lado da esteira, sentado no chão com os cotovelos
apoiados sobre os joelhos, enquanto que as mãos tampam o rosto que já
conheço bem. O seu peito sobe e desce de maneira violenta, acompanhando o
ritmo com o qual soluça. Observo-o puxar o ar ruidosamente e me vejo
atônita. Seu choro é tão intenso e cheio de dor, que chega a ser
desconcertante vê-lo assim. Quero dizer, este é o homem impassível, sério e
controlado que conheço? O que está acontecendo?
Incapaz de ter uma reação, permaneço parada como uma estaca no
lugar. Não só é horrível ver Felipe neste estado, como também é péssimo não
saber o que fazer para ajudar. Pergunto-me o que pode tê-lo deixado assim e
estremeço com as possibilidades. Há quanto tempo ele está imerso neste
sofrimento? Por que não pediu ajuda para ninguém? Céus, não tenho a menor
ideia do que fazer a respeito. Sinto-me como uma absoluta intrusa.
Como que pressentindo a minha presença, suas mãos saem da frente
do rosto, passeando pelos cabelos dourados e sedosos. O gesto revela seus
olhos vermelhos e muito inchados, fazendo-me ponderar sobre a
possibilidade de estar chorando desde que acordou. Caramba, isso é
realmente muito tempo. “Deixe-me te ajudar, Felipe...”
Sustentamos o olhar pelo que parece uma eternidade. Percebo que,
mais do que nunca, encontra-se obscurecido por fantasmas que ainda
desconheço. Sua expressão é de poucos amigos ao indagar com a voz
embargada.
— O que está fazendo? — Tento ignorar a frieza com que se dirige a
mim. É cabível que queira ficar sozinho, mas estou pronta para vencer as
barreiras que ele porventura impuser sobre a gente.
— Tentando ajudar... — murmuro, com o coração na mão. “Droga,
Felipe! Ver você assim está acabando comigo!”
— Não deveria estar aqui — ele profere e noto um resquício de ira
nas suas palavras. — Pedi para você fazer o seu trabalho; não para se meter
nos meus problemas pessoais.
Nossa. Acho que nem mesmo um tapa teria doído tanto. Respiro
fundo, concentrando-me na ideia de que preciso ter paciência se pretendo
ampará-lo. Sei que jamais teria falado assim comigo em outras situações, por
isso estou disposta a não dar tanta importância.
— Não estou perguntando o que você me pediu — digo com
suavidade, muito embora sejam palavras duras e desafiadoras. — Deixa eu te
ajudar... — concluo em um sussurro quase inaudível.
— Você acha que pode me ajudar? — Felipe indaga com um sorriso
divertido no rosto. Seus olhos estão longe de acompanharem o sorriso, no
entanto. — Não pode! Ninguém pode! Não perca o seu tempo, Madu. É
besteira.
Uno as sobrancelhas, sentindo o coração ser esmagado cada vez com
mais intensidade. Pelos sete infernos, o que está acontecendo? Aproximo-me
de Felipe em passos hesitantes, assustada por vê-lo tão diferente. É estranho
dizer, mas não parece nada com ele. A forma como me olha e como profere
as palavras me fazem estremecer.
— Qual é o problema? — Ouço a minha voz flutuar no pequeno
espaço entre nós dois.
— Eu sou o problema! Porra! Olha pra mim! — Lágrimas voltam a
irromper de seus olhos com violência, enquanto seu rosto de traços tão
harmoniosos se contorce em uma careta lamentável. — Não tem jeito, eu sou
um fodido!
Dobro os joelhos, sentando-me de frente para ele. Meu Deus, é
horrível querer ajudar, mas não fazer ideia de como. De todas as coisas que já
imaginei passar com Felipe, vê-lo assim foi a última delas.
Cruzo os braços sobre os seus joelhos, repousando o queixo acima
deles. Nossos rostos estão bastante próximos um do outro. Observo-o fechar
o punho em frente à boca, ao passo em que lágrimas grossas rolam
continuamente pelas suas bochechas, agora rosadas.
— Você me disse que sou sua — explico calmamente. — Você
também é meu... E eu cuido das minhas coisas.
— Você tem que parar de ser tão teimosa — ele sorri com amargura,
passando delicadamente o polegar pelos meus lábios. — Não existe futuro
comigo, Madu. Eu destruo tudo o que toco.
— Bem, isso não pode ser verdade — dou de ombros, estremecendo
pelo afago de seu dedo sobre a minha boca. — Olhe só para as coisas que já
conquistou... Isso não me parece nada com algo que tenha dado errado.
Ele fecha os olhos, afastando sua mão de mim. Percebo que o choro
está diminuindo o ritmo e isso me conforta.
— Esse vazio nunca vai embora! Não importa quanto tempo passe e
nem o tanto de remédios que eu enfie goela abaixo! Essa angústia... toda essa
dor... Elas não me deixam, você entende isso?
Então, de repente, sou tomada por um momento de clareza. Os
remédios, o vazio... Caramba, isso é depressão, não é? Nunca conheci
ninguém que tivesse, mas acho que todos no mundo devem ter alguma noção
a respeito. Bem, isso não importa agora, o fato é que tenho que ouvir da boca
dele. Tomada por uma nesga de coragem que sei ser passageira, encaro suas
íris azuis profundamente antes de dizer:
— Você está doente — não soa como uma pergunta. Felipe absorve
as minhas palavras com uma expressão triste no rosto.
No entanto, ao responder, sua voz sai suave.
— Eu sou doente, Madu... Essa merda já está há tanto tempo comigo
que nem me lembro de como é ser normal! — Ele encolhe os ombros, fitando
suas próprias mãos. — Desde os quinze anos de idade... Vivi mais tempo no
fundo do poço do que você imagina.
Encaro-o sem saber o que dizer. Quero perguntar tantas coisas, mas
entendo que já seja um avanço ele ter parado de chorar. Droga, a expressão
com a qual ele me encara agora me dá vontade de abraça-lo bem forte e
prometer que jamais ficará assim de novo. Contudo como posso saber, no fim
das contas?
Felipe estica as pernas, obrigando-me a endireitar a postura.
Percebendo que não vou dizer nada, continua.
— Transtorno bipolar de personalidade — conclui, com um sorriso
carregado de ironia.
— Eu não sei nada sobre isso... — admito, intimamente feliz por ele
ter me contado. Tivemos um avanço. Mesmo que pequeno, é um avanço.
Fazê-lo falar sobre si mesmo é mais difícil do que pode parecer.
— Talvez seja melhor assim.
Ouço-o suspirar pesadamente e sua mão vem de encontro ao meu
rosto, traçando um caminho suave até o final do pescoço, onde a repousa. Seu
toque cuidadoso provoca um calor aconchegante, que percorre as
extremidades do meu corpo, acalmando-me. Minha nossa, estou tão tensa...
Meu mundo está uma confusão de sensações e sentimentos. No momento não
sei exatamente o que pensar, muito menos como agir, tampouco.
Aproximo-me um pouco mais dele, enroscando o seu pescoço em um
abraço cheio de cumplicidade. Quero dizer para ele que estou aqui, que
embora ainda não entenda de fato o que está acontecendo, estou disposta a
ajuda-lo. Quero dizer que a minha cabeça flutua em sua companhia, que
jamais me senti tão completa como quando estou com ele. Preciso dizer que o
ver assim me deixou sem chão, que quero ser o motivo do sorriso dele todos
os dias... Céus, quero dizer tantas coisas! Mas no momento, tudo o que
consigo fazer é aspirar o perfume suave que seus cabelos exalam, enquanto
sinto suas mãos grandes percorrerem o trajeto das minhas costas em um
movimento carinhoso de vai-e-vem.
“Vai ficar tudo bem”, mentalizo, sem saber dizer até que ponto
realmente consigo me convencer com o pensamento.
Felipe beija a minha cabeça, então percebo com alívio que a sua
respiração já está completamente normal.
— Preciso que marque um horário com o psiquiatra e outro com a
minha terapeuta. Os cartões deles estão na primeira gaveta da mesa do
escritório — sussurra próximo ao meu ouvido.
— Tá bom.
— Madu? — ele chama e tão logo ergo o rosto para fitá-lo nos olhos,
encontro-o com o sorriso torto de sempre, que me derrete em segundos. —
Obrigado!
— Pelo que? — indago, hipnotizada com o brilho que voltou a
estampar o seu olhar.
— Por estar aqui.
Respiro fundo, observando-o apoiar-se nos braços para levantar o
corpo. Está vestindo uma calça de moletom preta e uma regata branca que dá
ênfase no bonito desenho de seu peitoral forte. Vê-lo em roupas que não seus
usuais ternos de corte impecável o trazem para mais perto de mim. Sem todo
aquele escudo de seriedade com o qual se esconde.
Imito seus movimentos, levantando-me sem pressa. Meus músculos
estão dormentes, ainda não consegui ordenar os pensamentos. Essa confusão
em que me encontro agora... Céus, é tudo culpa dele! Estou completamente
desarmada, completamente vulnerável. Todavia a questão é que é um
sentimento intenso demais para ignorar. Talvez seja loucura estar
completamente imersa nas sensações que ele provoca em mim. Agora já é
tarde para pensar nas consequências.
Felipe leva as mãos à minha cabeça, segurando-me com firmeza.
Anoto mentalmente o quanto adoro quando faz isso, então fecho os olhos,
instintivamente. Seus lábios mornos vêm de encontro aos meus, mas não
demoram a ir embora. Encolho os ombros, decidindo que ele merece um
tempo para se recompor. Bem, eu gostaria disso, ao menos.
— Estou na minha sala, caso precise de algo mais — murmuro,
deixando os meus pés me arrastarem para longe dali.
Uma vez que consigo agendar as consultas que Felipe pediu, pego-me
pensando sobre as coisas que me falou. Desde os quinze anos doente... A
tristeza nunca vai embora... Destrói tudo o que toca... Caramba, é surreal
conhecer esse lado dele. Acho que nem ao menos caiu a ficha, ainda.
Sem perceber, vou até a página inicial do Google, onde os meus
dedos digitam furiosamente “Transtorno Bipolar de Personalidade”. Quero
entender um pouco mais sobre com o que terei de lidar. O primeiro link vem
de um site chamado “Associação de Apoio aos Bipolares”. Clico nele e sou
encaminhada a uma página cujo design sério e limpo de alguma forma é
chamativo aos olhos. Já na página inicial encontro um texto esclarecedor para
uma pessoa que, como eu, não conhece nada sobre a doença:

“O Transtorno Bipolar de Personalidade, originalmente conhecido


como Psicose Maníaco-Depressiva, é uma doença psiquiátrica caracterizada
pela oscilação entre episódios repetidos de depressão e euforia (também
denominada mania). É uma doença de grande impacto para o paciente,
assim como as pessoas de sua convivência, causando prejuízos
frequentemente irreparáveis em vários setores de suas vidas.
O suicídio é a causa mais frequente de morte. Estima-se que até 50%
dos portadores tentem se matar em algum momento de sua vida, dos quais
15% são bem-sucedidos. A associação com a dependência de álcool e drogas
não só é comum, como agrava o prognóstico, aumentando em duas vezes o
risco de suicídio.
Sintomas de Mania:
Irritabilidade extrema: a pessoa torna-se exigente e zanga-se quando
os outros não acatam os seus desejos e vontades;
Alterações emocionais súbitas e imprevisíveis: os pensamentos
aceleram-se, a fala é muito rápida, com mudanças frequentes de assunto;
Humor excessivamente elevado: torna-se eufórico sem um motivo
para isso;
Falta de concentração;
Aumento de interesse em diversas atividades simultâneas, despesas
excessivas, dívidas e ofertas exageradas;
Energia excessiva, possibilitando uma hiperatividade ininterrupta;
Diminuição da necessidade de dormir;
Incapacidade em reconhecer a doença, tendência a recusar o
tratamento e a culpar os outros pelo que corre mal;
Perda da noção da realidade, ideias estranhas (delírios);
Abuso de álcool e de substâncias;
Sintomas da Depressão:
Preocupação com fracassos ou incapacidades e perda da autoestima:
pode ficar obcecado com pensamentos negativos, sem conseguir afastá-los;
Sentimentos de inutilidade, desespero e culpa excessiva;
Perda de interesse pelo trabalho, pelos hobbies e pelas pessoas,
incluindo os familiares e amigos;
Perda de energia: cansaço constante, inação total;
Alterações do apetite e do peso;
Alterações do sono: dorme horas a fio, ou apresenta quadros de
insônia;
Choro fácil ou vontade de chorar sem fim;
Ideias de morte e de suicídio;
Sentimento de vazio constante, e tristeza intensa.”

No fim do dia é difícil lembrar que comecei essa manhã da pior


maneira possível. Os meus problemas ficaram de lado depois de pesquisar
por horas a fio sobre os sintomas da doença de Felipe. O mais incrível é que,
se não fosse o episódio de hoje, jamais imaginaria que ele tem algo assim.
Quero dizer, ainda que vez ou outra eu notasse um sinal de tristeza em sua
expressão, quem que nunca teve o seu momento de escuridão?
Imagino que os remédios o ajudem a levar a vida normalmente, mas
sinto um aperto horrível nas entranhas ao tentar refletir sobre isso. Talvez eu
não devesse dar tanta importância, contudo não é como se pudesse controlar.
Perguntas pululam a minha mente incansavelmente e me pego imaginando
sobre o seu passado, assim como a sua vida em si.
Ele passa uma imagem tão forte, controlada e impassível. É estranho
imaginar que em algum momento sua essência já esteve fragmentada e que
ainda carregue marcas profundas desses dias.
Assim que dá a hora de ir embora, Felipe não está mais presente, de
forma que me despeço rapidamente de Leonor e sigo em direção ao ponto de
ônibus. Ele saiu para a sua consulta com o psiquiatra e eu realmente espero
que hoje tenha sido apenas uma recaída.
Um chuvisco leve e irritante cai do céu, trazendo um ar melancólico
para o fim da tarde. Encontro-me com uma sensação estranha e é como se
tudo fosse cinza. Por dentro me sinto cinzenta. Minha alma está nublada.
Não sei dizer exatamente porque tudo isso mexeu tanto comigo,
porém lá no mais profundo do meu ser, pressinto que não será tão fácil como
tento me convencer. A verdade é que nem ao menos entendo o porquê de em
tão pouco tempo estar tão envolvida com esse homem que não sei muito além
do que me mostra.
Já me apaixonei outras vezes antes, é claro, tive um relacionamento
que durou alguns poucos anos e que terminou tão logo mudei-me para
Curitiba. Seria mentira dizer que não senti nada no tempo que dividi com o
meu ex-namorado, mas, de toda forma, seria ainda pior dizer que era
semelhante ao que sinto agora. Nunca fiquei tão à mercê do meu coração
dessa forma.
Pelo contrário, sempre soube me cuidar bem, jamais derramei uma
única lágrima por homem algum. Sempre me amei demais para permitir que
outra pessoa me fizesse sofrer, acho que até mesmo por isso, jamais me
deixei envolver completamente. No fundo acho que Felipe e eu somos
parecidos: protegemo-nos do amor com medo das consequências. Medo de
sermos feridos.
Entretanto, desde que o conheci, ser ferida é a última coisa que me
preocupa, para ser honesta. O anseio que me domina de estar com ele é
imenso. Passo as horas relembrando nossos momentos juntos: a forma como
me toca, a forma como se entrega aos poucos... Acho que estamos
embarcando em uma viagem sem volta. O que nos espera na chegada é o
grande mistério, mas só o fato de o ter comigo já compensa.
O ônibus chega, arrancando-me de meus devaneios. Amontoada entre
tantas outras pessoas cujo único desejo é chegar logo em suas casas, encontro
milagrosamente um lugar para sentar.
No banco ao lado do meu, uma menina ouve sua música sem os fones
de ouvido, obrigando os demais a partilharem de suas escolhas musicais.
Encontro-me tão atordoada que não ligo muito para a situação, que,
normalmente, teria me deixado um pouco brava.
O toque suave de piano serve de fundo para uma voz feminina
sensual, que começa a cantar aos sussurros versos de uma música que
conheço, muito embora não essa versão.

“Amor, você não percebe?


Estou chamando
Um cara como você deveria ter um aviso
É perigoso, estou me apaixonando
Não há escapatória, não posso esperar
Preciso de um pouquinho, amor, dê pra mim
Você é perigoso, adoro isso”

É Toxic, da Britney Spears, mas não é ela que está cantando. Sinto um
arrepio percorrer o corpo todo, como se a música fosse sobre mim. Pelo canto
dos olhos, tento espiar no visor do celular da menina o nome da artista cuja
voz aveludada está me embalando. Chama Yaël Naïm, eu anoto mentalmente
que preciso procurar ao chegar em casa, porque é perfeita para esse momento
da minha vida.

“Com o gosto dos seus lábios, eu viajo


Você é tóxico, estou perdendo os sentidos
Com o gosto do seu veneno, estou no paraíso
Estou viciada em você
Você não sabe que é tóxico?”

Pela janela, observo gotículas de chuva respingarem contra o vidro,


incessantemente. O céu escureceu em questões de segundos, adquirindo um
tom de azul-anil pálido que chatearia até a pessoa mais feliz do mundo.
Deito o corpo um pouco mais no banco, de forma a conseguir recostar
a cabeça. As janelas fechadas deixaram o ambiente abafado e claustrofóbico
e, ainda que o ônibus esteja apinhado de pessoas, sinto como se estivesse
completamente sozinha. De repente, tenho saudade de casa. Sinto saudade do
calor da minha cidade, sinto falta de quando não estava tão vulnerável.

“Intoxique-me agora
Com o seu amor
Acho que estou pronta agora.”

Levanto de supetão, puxando a cordinha. Deixo o guarda-chuva no


jeito e, assim que o ônibus encosta no meu ponto, pulo para fora o mais
rápido que consigo.
Aspiro o ar fresco com certo alívio, caminhando sem notar em direção
ao meu apartamento. Tento desviar de algumas pessoas que mais parecem
baratas tontas, com a cabeça nas nuvens.
Dobro na esquina da rua onde vivo e começo a caçar as chaves dentro
da bolsa, ansiando por um banho quentinho. Penso no pão de queijo pré-
assado que me espera no congelador e abafo um sorriso com a sensação
maravilhosa que me invade. A parte boa é que logo mais vou encontrar a
Vanessa na faculdade. A possibilidade de ela me animar é
surpreendentemente alta.
Não tenho chance de abrir a porta de vidro eu mesma, uma vez que o
porteiro parece estar aguardando prontamente para isso. É um japonês muito
alto e magro, que estou certa de nunca ter visto aqui antes.
— Boa tarde! — ele cumprimenta gentilmente, assim que alcanço o
seu balcão de mogno.
— Oi... Boa tarde! — respondo por educação.
— Qual é o seu apartamento?
— Novecentos e oito.
— Você é a Maria Eduarda Albuquerque? — ele pergunta,
concentrado em algo que foge do meu campo de visão.
— Isso! — digo, revirando os olhos de impaciência.
— Você pode assinar aqui para mim, por favor? — pede, indicando a
lista de encomendas do prédio.
Uno as sobrancelhas com a ideia de ter recebido algo pelo qual não
estava esperando. Antevejo de quem seja a caixinha pequena nas mãos do
porteiro, pela semelhança com a última entrega que recebi.
O estranho é que a caixinha aveludada retangular e estreita que o vejo
segurar, não tem um envelope endereçado nem nada parecido. Soa como se...
Oh, não! Não pode ser!
— Como sabia que era para mim? Não estou vendo nada detalhado!
— digo, com a voz rouca de surpresa.
— Foi um homem que deixou aqui e pediu para te entregar.
Puta. Que. Pariu.
Estendo a mão tremula para alcançar a embalagem que ele me
oferece, notando um cartão preso no meio dela. Puxo-o para fora,
reconhecendo a mesma caligrafia elegante do cartão que veio junto das
orquídeas:
“Você está me devendo um jantar, e nunca me esqueço de uma
dívida. Essa noite, quero vê-la usando este singelo presente. R.”
Enxaqueca
Sentada confortavelmente no sofá, permito-me admirar o presente que
recebi de Renato. É um bracelete de prata da Pandora, com meia dúzia de
charms sortidos, alguns em prata e outros com detalhes em rosé. Caramba,
isso não é tão barato quanto às flores, fora que essa situação já está ficando
um pouco estranha. Preciso colocar um ponto-final, antes que Renato acabe
entendendo o meu silêncio como uma forma de consentimento. Ele me
parece do tipo que faz isso.
Fecho a embalagem, martelando na cabeça as suas palavras: “essa
noite quero vê-la usando este singelo presente”. Como assim? Quem ele
pensa que é? Além de ter descoberto o meu endereço e estar me mandando
coisas sem o menor indício de eu estar gostando, ainda decide que vai me
levar para jantar? Qual é a dele?
A irritação que me domina é tão intensa que começo a escutar um
zumbido vindo lá de dentro da cabeça. Ok, estou encrencada. Estou muito
encrencada. Felipe teve uma recaída justamente hoje e não faz nem uma
semana que viu as flores aqui em casa... Céus, seria a minha ruína se passasse
pela cabeça dele o fato de que Renato está em Curitiba unicamente por minha
causa.
Pode parecer incrível, mas é sempre desse jeito: tudo que pode
acontecer de estranho e imprevisível na minha vida, certamente vai acontecer.
É assim que funciona comigo, sempre fui. Por que eu estranharia nessa altura
do campeonato? Preciso pensar, e rápido! O que vou fazer?
Olho para o relógio na parede, constatando que precisaria sair dentro
de meia hora para pegar o ônibus até a faculdade. Isto é, se eu fosse. Respiro
fundo, sentindo um gosto amargo na boca. Sei que tenho que fazer o que
mais queria evitar no momento, porque pressinto que, se não o fizer, acabarei
atraindo mais problemas — o que, definitivamente, não preciso.
Tiro os pães de queijo do forno, lamentando o fato de tê-los deixado
passar do ponto. Merda! Se não tivesse que me preocupar com tanta coisa...
Alcanço a garrafa de refrigerante na geladeira e rumo à sala novamente,
sentindo os ombros pesarem mais do que o normal.
Abro a caixinha novamente com uma culpa imensa. Meus olhos
recaem mais uma vez para a bonita pulseira que reluz com os feixes
fluorescentes da lâmpada da sala. Tão linda, no entanto sem nenhum
significado para mim. É incrível como Felipe não precisa comprar o meu
afeto, para que goste dele. Solto um pesado suspiro, levando um pãozinho até
a boca. Claramente preciso devolver essa joia. Ela não é para mim.
Concordar com esses presentes é o mesmo que dar a Renato uma nesga de
esperança, a qual ele se agarra e segue em frente.

Quando o som do interfone ressoa estridente pelo pequeno


apartamento, sinto toda a coragem se esvair em uma velocidade
surpreendente. “Vamos lá, você consegue, Madu!”, mentalizo, tentando me
encorajar a algo que sei ser iminente. Aviso o porteiro que estou indo, e
então, munida da caixinha aveludada, desço de encontro ao que acredito ser a
solução de um problema.
Renato está sentado confortavelmente em uma das poltronas
antiquadas da recepção do prédio. Está vestindo uma camisa xadrez por cima
da camiseta branca de gola v. Nas pernas, um jeans justo de lavagem
tradicional e sapatos de camurça nos pés. Encontra-se com as mãos cruzadas
atrás da cabeça, que se inclina ligeiramente ao constatar que não estou
arrumada para um encontro.
— Que surpresa te ver aqui! — digo, alcançando-o.
Sento-me na cadeira ao seu lado, cuja estampa odiosa já foi menos
desbotada um dia. Tento desviar do seu olhar fixo em mim, ao passo em que
me ajeito, ficando de frente para ele.
Assim que finalmente encontro seus intensos olhos castanhos,
percebo o quão confuso e desapontado Renato aparenta estar. Estendo a
caixinha em sua direção, ainda silenciosa e ele nega com um gesto
impaciente.
— Era pra você estar com o bracelete... Não para trazê-lo — sorri de
canto, jogando um pouco do seu charme.
— Não posso aceitar esse presente! — sussurro, sentindo as
bochechas queimarem.
Existe algo em Renato que é inexplicável. Estar na companhia dele é
sempre inquietante. Como ele faz isso?
— Algum problema? Achei que tinha a sua cara — ele dá nos
ombros, cruzando uma perna sobre a outra com tranquilidade.
— Não! Olha... Não é isso! — explico, com o coração acelerado. —
Estou lisonjeada! A pulseira é realmente linda. Mas... As coisas estão bem
confusas para mim.
— Confusas por quê?
Ai que inferno! A cada segundo que passa, fico mais e mais nervosa.
Não estou preparada para isso! Jamais quis nada assim! Um homem só já traz
tanto tumulto para os meus sentimentos, imagine dois...
— Para começar, como você sabe onde eu moro? — As palavras
saem de uma vez. — E por que está aqui?
Renato arqueia as sobrancelhas em surpresa. Suas mãos passeiam
pelos cabelos negros bem cuidados, e seu rosto se contorce em uma careta
pensativa.
— Quem me passou o endereço foi o Antunes... — seus lábios estão
com aquele sorriso superior que me repelem. — Achei que não teria
problema.
Suas palavras penetram os meus tímpanos, levando algum tempo até
serem interpretadas. Isso soa como uma grande mentira. Não entendo
exatamente o que me leva a acreditar nisso, mas no íntimo sei que Felipe
jamais faria isso. Talvez alguns dias atrás eu tivesse ficado com um pé atrás,
entretanto, depois das suas palavras na sexta-feira, ou a forma como parecia
desesperado por ter que admitir que eu não saia de sua cabeça... Por Deus,
não tem como fazer sentido acreditar no que Renato diz.
Os momentos com Felipe são intensos não só para mim, como
também para ele. Cada sensação é mútua, por isso sei que esse
comportamento não compactua com o mesmo homem que me dissera não ter
mais idade para brincadeiras. Claro que não.
— Renato... — minha voz fica presa na garganta ao notar seus olhos
brilharem ao me estudarem. — Isso não vai dar certo.
— Isso? — A maneira como pronuncia a palavra sugere um resquício
de ironia.
— Nós dois — devolvo, perdendo a paciência.
Sinto uma ou duas fisgadas intensas na cabeça e antecipo uma
enxaqueca tenebrosa chegando na área. Era só o que me faltava... Renato se
endireita em sua poltrona, inclinando o corpo em minha direção.
Perigosamente perto de mim.
— E como você pode saber, se nem ao menos deu uma chance para
nós?
— Ah — reviro os olhos. “Por que você é sempre tão insistente?
Podia ao menos facilitar para mim, não é?” — É sério... Não estou
interessad...
Não consigo terminar de falar já que seus lábios estão nos meus. Uma
de suas mãos está segurando a parte de trás da minha cabeça, com um pouco
mais de firmeza do que seria necessário.
Sinto o ar desaparecer dos pulmões de uma só vez, ao passo em que
todos os músculos do corpo perdem a força. Tão logo recupero o raciocínio,
empurro-o para longe de mim, com as mãos trêmulas. Minha nossa! O que
caralho acabou de acontecer aqui?
— Puta merda! — sussurro, percebendo o olhar do novo porteiro
sobre nós dois. — Por que você fez isso?
— Não consigo resistir a você! — Ele encolhe os ombros, fingindo
estar arrependido. Seus olhos não demonstram o mesmo, porém.
Sem pensar duas vezes, junto o que resta de força nas pernas e me
levanto, com a cabeça martelando furiosamente. Deixo o presente sobre a
poltrona e me afasto alguns passos. Ok, ele está mesmo apostando as fichas
em mim. Tudo bem ele estar interessado, mas não está tudo bem eu deixar
isso acontecendo.
— Renato, olha... Por favor... Não quero nada com você. Nada. Se um
dia pareceu o contrário, eu realmente sinto muito.
— É uma pena! — Seu sorriso não acompanha os olhos. Ele se
levanta e uma corrente de ar traz o seu perfume até as minhas narinas,
deixando-me atordoada.
— Se você continuar persistindo nisso... vou ter que tomar alguma
providência! — Vomito as palavras, sem nem ao menos pensar a respeito.
Droga! Isso não pode estar acontecendo!
Sua risada é puramente divertida. Ele balança a cabeça em negativa,
demonstrando estar despreocupado. Sua mão direita tira alguns fios de cabelo
do meu rosto, fazendo-me estremecer.
— Não terá necessidade — diz compassivamente. — Conheço a hora
certa de me retirar dos negócios.
“Negócios”, penso com amargura. Claro, como não seria?
Com um breve acenar na cabeça, Renato me abandona com o meu
mundo completamente bagunçado. Assim que giro os calcanhares, decidida a
subir até o meu apartamento e tentar esquecer esse episódio bizarro, vejo que
o porteiro está com uma expressão engraçada, como se tentasse indicar
alguma coisa e não soubesse a forma exata para isso.
Olho para traz por cima dos ombros e noto que a caixinha com o
bracelete repousa inocentemente acima da poltrona. Procuro as íris escuras de
Renato, pedindo uma explicação e o encontro parado na entrada, esperando
por este momento:
— É muito indelicado recusar um presente, você sabe.
Então rompe o nosso frágil contato visual, fechando a porta de vidro
com um clique e desaparecendo rua afora.

Estou encolhida de dor no conforto de minha cama quentinha,


esperando o segundo remédio para cefaleia fazer o efeito que o primeiro não
fez. Não é sempre que tenho crises de enxaqueca, mas quando elas vêm...
Parece que é para compensar os dias que não tive. Santo Deus, acho que nem
mesmo bater com um martelo no meu crânio doeria tanto.
Como a claridade está piorando o quadro, encontro-me neste
momento em uma escuridão, cuja única fonte de luz é o visor do celular.
Olho-o com os olhos semicerrados, tentando ler a mensagem que Vanessa me
mandou: “Desistiu da faculdade, amiga?”
Domino uma careta, imaginando exatamente a cara que está fazendo.
Estou com saudade de um tempo só nosso, para falar sobre nada em especial
e dar boas risadas... Digito com dificuldade: “Estou com uma enxaqueca
horrível, mal consigo levantar da cama” e mando uma foto minha em
seguida, comprovando o meu estado.
É realmente um saco quando isso acontece, porque me deixa
completamente debilitada. No entanto, como há males que vêm para o bem,
sou forçada a acreditar que ao menos assim não vou ficar maquinando o
encontro que tive outrora com Renato. No fundo, sinto que a culpa é um
pouco minha, por não ter pegado tão firme com ele. Talvez de fato seja, mas
deixarei para refletir em outro momento. Preferencialmente quando a minha
cabeça não estiver latejando como se fosse explodir a qualquer momento.
O celular vibra levemente, e logo vejo sua nova mensagem: “Bem,
você não perdeu nada. A UFPR está oficialmente em greve”. Ainda que eu já
houvesse sido avisada por ela, recebo a notícia com um baque. Nesses três
anos que estudo na universidade, nunca nem ao menos chegamos perto de
algo assim. É uma pena que isso vá acontecer, no entanto não é como se não
fosse cabível. O governo federal fez cortes significativos dos recursos
voltados às instituições de ensino. Só espero que tudo se resolva rápido. Caso
contrário os únicos prejudicados seremos nós.
“E agora, o que será da gente?”, pergunto com desânimo. Sinto mais
algumas fisgadas intensas que dão um pouco de náusea e torço para que esse
mal-estar me abandone o quanto antes.
A melodia do celular quebra o silêncio construído com afinco por
mim, quase me fazendo chorar. Alcanço-o, ansiando por encerrar esse
barulho que me fere os tímpanos com maestria, atendo-o apressada, sem nem
ao menos conferir o número. Não que eu precise, é óbvio que é a Vanessa,
querendo conversar. Ela simplesmente não consegue se contentar apenas com
mensagens.
— O que você quer? — pergunto em tom de brincadeira, percebendo
que estou ligeiramente rouca.
— Você! — a voz de Felipe vem ao meu encontro, anestesiando-me.
Céus, eu deveria ter olhado no celular antes de atender.
Sorrio para o nada, sentindo cada músculo do corpo relaxar. A forma
como ele mexe comigo... Não tem explicação. Mas é deliciosa a sensação.
— Achei que era a Vanessa, desculpa! — explico, erguendo-me em
um impulso.
— Não foi para a aula hoje? — seu tom é acusador.
— Não consegui... — falo com voz de manha, ajeitando o travesseiro
nas costas. — Estou morrendo de dor de cabeça. Já tomei dois remédios, mas
não surtiram efeito!
— Conheço um remédio ótimo — a forma como enuncia as palavras
sugere que está sorrindo.
Caramba! De olhos fechados, assim como estou agora, quase consigo
vê-lo torcer os lábios de canto, naquele sorriso safado que me deixa
louquinha. “O que você acha que está fazendo, Lipe?”
— Sério? E qual é?
Sua risada baixa é envolvente. Fisgo os lábios, deleitando-me com o
quanto ele parece estar bem novamente.
— Você tem dez minutos para ficar pronta. Estou indo aí te buscar!
Wow! Calma! Vindo aqui? Em dez minutos? Estou completamente de
acordo!
— Às suas ordens! — replico e ouço-o desligar o telefone do outro
lado da linha.
Ainda com a cabeça pulsando, ao menos tenho um bom motivo para
sair da cama. Corro até o banheiro, para secar o cabelo ainda molhado do
banho que tomei logo depois do encontro com o Renato.
A lembrança congela o meu estômago por alguns segundos, causando
refluxo. Renato me beijou. No hall de entrada do prédio. Aqui em Curitiba.
Depois de uma recaída complicada de Felipe. Minha mãe! Eu sou uma pessoa
horrível, mas ao menos consegui consertar as coisas — ou assim espero.
Uma onda de satisfação me domina desde que concluo a tarefa de
secar os cabelos, vendo-os brilharem sedosos e bonitos em cascatas
castanhas. Confiro as horas no celular e percebo com assombro que já se
passaram vinte minutos. Se tem algo que o meu advogado detesta são atrasos.
Sei disso melhor do que ninguém. Por isso, corro até o guarda-roupa,
alcançando um vestido de malha que mais se parece com um camisetão, jogo
um cardigã de crochê por cima, o qual termina próximo dos meus tornozelos.
Assim que finalmente consigo juntar os meus pertences e descer, noto
com amargura que já passou meia hora desde que ouvi sua voz intensa me
avisando que viria me buscar.
Encontro o olhar do porteiro com uma culpa latente, ao passar pela
recepção e saio pela porta de vidro, comprovando o que já sabia: a Mercedes
de Felipe encontra-se estacionada em frente ao edifício, muito provavelmente
desde a hora em que disse que estaria.
Ele está com os braços cruzados sobre o volante e a cabeça sobre eles,
com uma expressão impaciente no rosto perfeito. Tão logo entro no carro,
endireita sua posição, fitando-me com atenção.
— Você está atrasada!
— Precisei secar o cabelo... — encolho os ombros, sorrindo
inocentemente para ele.
Sua mão vem de encontro ao meu rosto, buscando-me para um beijo.
Fecho os olhos, deixando-o explorar a minha boca com autoridade, enquanto
o meu corpo todo parece soltar faíscas.
Com os lábios selados, ouço-o sussurrar deliciosamente.
— Eu odeio esperar — sorri contra a minha boca, ao que fisgo seu
lábio, já cheia de tesão. Sua mão vai ao topo da minha cabeça e desce até o
pescoço em um carinho pesado, mas cheio de eletricidade. — Você está
encrencada!
Arfo com desejo, assim que suas mãos prendem o cinto de segurança
ao meu redor, com agilidade. Felipe arranca com o carro, em uma velocidade
um pouco alarmante, que causa um frio enérgico na barriga.
Depois de nos embrenhar por caminhos que mal imagino para onde
levam, Felipe estaciona o carro em um beco deserto. Muito embora seja
repleto de casas, todas se encontram com as luzes apagadas. Concluo que isso
se deva pela hora, no fim das contas.
Uno as sobrancelhas ao vê-lo desligar o motor do carro e não consigo
evitar sorrir. Ora, ora... Parece que chegamos ao nosso destino. O que ele
pretende?
— Esse é um lugar bem peculiar... — digo, forçando para parecer
casual.
— Boas meninas não se atrasam, Madu... — ele sorri faceiro,
desafivelando o cinto de couro que está usando. — E, como eu disse, está
encrencada!
Felipe desabotoa a calça que está usando sem desviar as íris azuis de
mim. Sua ereção quase salta para fora, ele a envolve com a sua mão esquerda
e começa a se acariciar, em movimentos lentos.
A minha respiração está inconstante e meu coração batuca tão
violentamente que quase machuca. Já percebi que ele gosta de lugares não
convencionais... Isso está me enlouquecendo. Se esse é o castigo, acho que
posso ignorar a enxaqueca por quanto tempo for preciso!
Com a mão livre, entrelaça os dedos entre os meus cabelos, gerando
uma onda de adrenalina.
— Você é uma safada! — segreda com a voz rouca e sexy. Sinto a
cabeça flutuar momentaneamente. — Uma menina má!
— Eu sou uma menina má! — sussurro de volta, desejando com toda
a força ser punida por horas a fio. Céus, a minha calcinha já está ensopada ao
vê-lo se tocar deliciosamente, em provocação.
— Você sabe o que vai fazer agora? — pergunta, divertido com a
brincadeira. Seus dedos agarram os fios da minha cabeça com um pouco mais
de força, causando um calafrio que desce pela espinha como um raio. Junto
dele, um espasmo de dor me toma momentaneamente.
Nego com a cabeça, mordendo o lábio inferior e o encarando
atentamente. Nosso contato visual parece faiscar. É impressão minha ou esse
carro está pegando fogo? Caramba, mal consigo respirar aqui dentro...
Ele aproxima seu rosto da minha orelha, de forma que posso sentir
suas palavras ricochetearem suavemente contra mim.
— Você vai me chupar, aqui dentro... — sua voz é pouco mais alta
que um zumbido. — E depois que terminar eu vou te comer até você não
aguentar mais... Está entendendo?
Solto um gemido baixo, deliciada com a ideia. Como ele faz isso?
Pelos sete infernos, estou quase implorando para que ele o faça.
Sem que ele diga mais nada, assinto, umedecendo os lábios
lentamente. Felipe entende a deixa e afasta o banco, usando os botões de sua
porta para isso. Enfio-me no espaço do carro destinado às pernas, ficando em
uma posição confortável.
Seguro-o com uma das mãos, lançando um olhar travesso em sua
direção. Está com a cabecinha inchada de tesão e sinto que posso deixar um
pouco mais.
Sem interromper o contato visual, aproximo o rosto do seu membro,
como se fosse abocanhá-lo, mas então roço-o no rosto suavemente, na altura
da bochecha, arrancando um grunhido excitante de Felipe.
— É isso que você quer? — indago, passeando a ponta da língua pela
sua extremidade. O toque é macio e delicioso.
Droga, estou faminta por ele, mas ainda não posso entregar o pote de
ouro tão facilmente. Afinal de contas, não sou eu a menina travessa que
merece ser castigada? Bem, darei mais algumas boas razões para isso!
Felipe fisga o lábio, com os olhos queimando em malícia. Parece
compreender o nosso novo jogo uma vez que percebo a sombra de um sorriso
em seu rosto.
Abro a boca o suficiente para que consiga envolver a sua glande e
deixo os meus dentes tocarem a pele sensível com delicadeza. Sinto-o
estremecer sutilmente, em uma onda intensa de tesão. Finalmente me dou por
satisfeita. Sua ereção parece latejar de tão excitado, então decido que agora é
o momento certo.
Fecho os olhos e o envolvo com a boca, deixando-o percorrer todo o
caminho até quase chegar à garganta. Sua mão ainda presa nos meus cabelos
aumenta a força com a qual me segura, no entanto, sem interferir no meu
trabalho.
O contato é agradável, ainda que esteja completamente duro e instiga
a continuar o trabalho. Céus, sentir o seu sabor é realmente excitante. Mais
do que isso, é de enlouquecer!
A minha cabeça entra em um ritmo gostoso, enquanto me ocupo em
alternar a pressão com a qual o sugo. Desço a cabeça e o sinto na garganta,
tiro-o da boca novamente, chupando-o como se fosse um picolé suculento. A
cada nova investida, ouço-o gemer um pouco mais. Seu prazer me deixa cada
vez mais alucinada e tentada a aumentar a intensidade. Mas qual seria a graça
em acabar com isso tão rápido?
Seguro-o pela base de seu membro, concentro a atenção em percorrer
cada milímetro com a língua. Desço até suas bolas onde sua respiração fica
mais alta e ofegante. “Hmm, então você gosta quando eu faço isso?”
Medida pelas suas reações, vou testando até onde posso ir e o que o
deixa completamente fora de si. Seus quadris começam a se mover
lentamente, como que acompanhando a marcha com que o engulo.
Busco sua mão livre e a levo até sua ereção novamente, sentindo-o
pulsar dentro da minha boca. Mostro para ele que o quero se tocando
enquanto o chupo, e, tão logo começa a manear sua mão, solto um som
gutural de excitação que vibra a minha garganta toda.
Felipe geme junto e, simultaneamente, aumenta a força nas duas mãos
— tanto a que se masturba, quanto a que está me prendendo. Estou cega de
tesão, quero vê-lo ir até o fim.
— Madu... — sussurra, como que me avisando.
Abro os olhos para espiá-lo e o encontro com os seus fechados. A
expressão deliciosa de prazer que está fazendo é para foder com tudo. “Puta
que pariu, Felipe, seu gostoso!”
Subitamente, sinto os espasmos do seu comprimento ao mesmo tempo
em que sua porra preenche a minha boca, quente e salgada. Engulo sem
pestanejar, notando-o erguer as pálpebras. Está arfando e sua mão enfim
soltou os meus cabelos. “Opa... Ele acha que terminei por aqui... Ainda
não!”
Umedeço os lábios e os levo até a sua cabecinha novamente, onde os
esfrego em movimentos circulares contra ela. Felipe estremece brevemente, é
como se uma onda elétrica percorresse os músculos do seu corpo.
Agarrando novamente os meus cabelos, ele me puxa para cima,
obrigando-me a obedecê-lo. Arfo com o gesto, ansiando por beijá-lo agora
mesmo. Percorro a distância entre a gente, buscando a sua boca com
urgência.
Enrosco a língua na sua, em movimentos desordenados e repletos de
desejo. Espalho o seu próprio sabor na sua boca, sentindo-o erguer o vestido
para fora do meu corpo.
Ainda que esteja um pouco aflita por estarmos na rua, encontro-me
imersa nessa paixão latente que nos domina. Foda-se, não dou a mínima se
alguém notar o que estamos fazendo dentro desse carro. Quero dar para ele
agora mesmo e dessa vez vai ser do meu jeito.
Mordo o seu lábio com um pouco mais de força do que o usual,
fazendo-o estalar a língua.
— Quero você ali atrás — indico o banco com a ponta do nariz.
Felipe ergue as sobrancelhas em surpresa, com aquele sorriso tentador
de canto nos lábios.
— Por quê? — questiona em provocação. Sua mão vem de encontro
aos meus seios, apalpando-os com força e arrancando suspiros de mim.
— Porque quero te mostrar o que fazem as meninas más! — Arfo,
puxando a sua camiseta para fora do seu tronco.
Ele ergue os braços na medida do possível, permitindo que eu conclua
a ação. Meus olhos percorrem o peito desnudo e o abdômen cujos gominhos
quase imploram aos meus lábios que os percorram.
Puxando-me para mais um beijo e, sem entender exatamente como,
conseguirmos ir os dois ao mesmo tempo para o banco de trás, embolando-
nos inteiros. Não consigo conter a risada com a situação, arrancando dele um
olhar divertido.
Aguardo que se ajeite no banco, então passo uma perna de cada lado
seu. Meus seios ficam na altura do seu rosto, de forma que ele não se demora
em alcançá-los. Sinto os seus lábios os beijarem lentamente — quase me
torturando com o ritmo manso — as mãos ajudando na empreitada. Felipe
deixa os polegares sobre os mamilos, girando-os simultaneamente em
movimentos enlouquecedores. Minha nossa!
Seus lábios descem pela barriga, chegando a um ponto em que tem de
ficar inclinado para frente, para alcançar a minha pele. Ao chegar ao ossinho
do quadril, alterna beijos molhados e mordidinhas eletrizantes. Os pelos do
meu corpo todo ficam eriçados e o contato torna-se cada vez mais sensível e
intenso.
— Gostosa! — sussurra contra a minha pele. — De quem você é? —
indaga, apertando os biquinhos do meu peito contra os dedos.
A sensação beira o dolorido, no entanto é incrivelmente excitante.
Solto um gemido demorado, tentando arrumar forças para falar nestas
condições.
— Sua! — A minha voz é desafinada ao dizer. Santo Deus, eu poderia
ter um orgasmo só com isso que ele está fazendo. Estou tão molhada que
quase espumo. — Completamente sua! — complemento, sentindo-o apertar
os meus mamilos novamente.
Ele desfere um tapa ardido e pesado contra a minha bunda, deixando a
região queimar por alguns segundos. Logo em seguida, todo o calor
concentrado naquela região parece se espalhar e alguns membros começam a
formigar levemente.
Não consigo mais. Preciso tê-lo em mim! Estico as pernas,
alcançando o chão, giro o corpo, ficando de costas para ele. Alcanço o seu
membro rígido e inchado e sento-me em seu colo, encaixando-o em mim.
Sua mão vem de encontro ao meu clitóris, Felipe repousa o queixo
sobre o meu ombro. Rebolo o quadril de maneira sensual, ouvindo o seu
gemido muito próximo da orelha. A sua respiração é úmida e descompassada.
Cada vez que traço um círculo com a cintura, sinto-o em algum ponto
diferente em mim. Os gemidos saem da minha boca sem que eu possa fazer
nada a respeito.
— Hmmm.... — Ronrono, ofegante. — Que delícia!
Aos poucos, vou mudando as reboladas, transformando-as em
cavalgadas. Começo a pular no seu colo, sentindo-o penetrar profundamente
em mim. Essa posição tem um encaixe perfeito, é muito prazerosa.
— Isso! — geme contra os meus cabelos. Seu dedo continua
brincando com o meu clitóris, em movimentos suaves que não condizem com
a intensidade com a qual me movimento nele. — Goza pra mim, Madu!
Já estou perdendo as forças nas pernas quando ele aumenta
subitamente a velocidade em que me acaricia. Começo a sentir os músculos
do ventre contraírem um por um, ao passo em que meu coração aumenta
furiosamente a velocidade das suas batidas. Dobro-me para frente, agarrando
com força as coxas de Felipe. Um frio na barriga começa a crescer,
expandindo-se em todas as direções, enquanto derreto-me em mim mesma.
Por um segundo, o mundo para ao meu redor. Uma sensação intensa
domina cada pequeno centímetro do meu corpo. Os meus pés e mãos
formigam bastante e luto para retomar a respiração.
Caralho! O que foi isso? Acho que nunca tive um orgasmo tão
gostoso como esse. Percebo o quanto estou encharcada tão logo Felipe sai de
dentro de mim, e desliza com facilidade para fora.
Deixo o peso do meu corpo recair sobre ele. Sua pele está suada, o
peito sobe e desce, lutando assim como eu para respirar. Seu braço contorna a
minha barriga, envolvendo-me protetoramente.
Com o rosto ainda apoiado no meu ombro, sussurra rouco.
— Como está a cabeça?
Estreito os olhos ao perceber que a enxaqueca desapareceu. Encolho
os ombros, antes de responder.
— Passou a dor! — digo com doçura, envolta pelo clima gostoso
entre nós.
Felipe ri calorosamente, fazendo-me balançar junto de si.
— Eu falei que tinha um remédio ótimo para isso! — diz com a boca
colada na minha orelha, que faz o meu corpo todo estremecer.
Greve
Ao entrarmos na garagem da casa de Felipe, sou tomada por uma
sensação engraçada. É a primeira vez que venho para cá fora do horário de
trabalho. Quero dizer, tudo bem que na entrevista fiquei aqui até o anoitecer,
mas as situações são incomparáveis, é claro.
Tão logo ele desliga o motor do carro, abro a porta e estico as pernas
para fora, empurrando o corpo contra a vontade para o frio que me espera. A
temperatura tem caído cada dia mais, no entanto Curitiba sempre têm as
noites mais frias que o restante do dia. A sensação térmica é semelhante a
estar no Polo Norte.
Contorno a imponente Mercedes, alcançando-o em seguida. Felipe
segura a minha mão e entrelaça os dedos nos meus, arrancando-me um
pesado suspiro. Como é possível que eu tenha acabado de fazer loucuras no
carro com ele e esteja abalada com esse gesto inocente?
Seguimos juntos pela entrada de sua casa que não passa pelo
escritório. As luzes do jardim iluminam toda a construção como um farol,
tornando-a ainda mais impressionante.
Assim que entramos pela sala que já conheço, sou agraciada pela
aconchegante sensação de estar quentinha. Aqui dentro está quase um breu,
com exceção da escada, iluminada pelo majestoso lustre que pende em uma
cascata brilhante.
Subimos os degraus até o segundo andar, seguimos pelo corredor, no
fim do qual fica o quarto de Felipe. Ele abre a porta e dá espaço para que eu
invada o seu esconderijo secreto, que, diga-se de passagem, é enorme.
Seguindo o estilo clean, moderno e minimalista do restante da casa, com tons
de terracota misturados ao branco predominante.
O cômodo tem dois ambientes, no entanto seguimos até a enorme
cama, cuja base de madeira clara quebra um pouco do aspecto clínico. As
luzes vindas do bonito teto de gesso incidem sobre o papel de parede de estilo
vitoriano, criando um interessante jogo de luz.
Descalço as sapatilhas sentindo o toque aveludado do extenso tapete
creme posicionado embaixo da cama. Estar aqui é realmente interessante e
satisfatório. Sinto como se, aos poucos, estivesse rompendo as barreiras que
Felipe construiu ao seu redor, camada por camada, ao passo em que avanço
em direção ao seu coração.
Encaro-o com os olhos cheios de expectativa, enquanto imita o meu
gesto, ficando descalço também. Sem dizer uma palavra, enrosca os braços
ao meu redor e avança em direção à cama, caindo em cima de mim.
O impacto é macio, ainda que eu esteja esmagada pelo seu peso. Esse
lado carinhoso dele é algo que me deixa quase tão mexida quanto a faceta
que estou acostumada a ver: de um homem forte, bem-sucedido e fechado.
Deixo-me rir gostosamente, envolvendo seu pescoço com os braços.
Fecho os olhos ao sorver seu aroma delicioso, derretendo-me nesses
sentimentos que ele me causa.
Felipe gira o corpo para o lado, saindo de cima de mim. Ajeita-se de
forma que fique de frente para onde estou, o que me deixa um pouco sem
jeito. A maneira como me olha é desconcertante, de tão intensa. Minha nossa!
Jamais serei capaz de recuperar o fôlego. Esse homem deixa o meu mundo de
ponta cabeça, mas a parte mais engraçada é que adoro toda essa turbulência!
Ele enterra sua mão nos meus cabelos, avançando carinhosamente
com os dedos. O contato manso me deixa com um friozinho na barriga que
acho que veio cedo demais. Isso que estou sentindo aqui dentro parece tão
forte que é quase como se pudesse me inundar inteira. Santo Deus, o que ele
está fazendo comigo? Quero que esse momento dure para sempre, porque
nunca me senti assim antes. E é maravilhoso!
— Você dorme aqui comigo? — pergunta suavemente. Seus olhos
ardentes estão fixos em mim com tamanha atenção que é impossível não
corar. “Fê, você vai me matar assim...”
Encolho os ombros, pensando que seria perfeito, se fosse tão simples.
Mas a realidade é que amanhã tenho que trabalhar e não posso me dar ao luxo
de confundir as coisas.
— Não posso... — sussurro, permitindo-me escorregar a mão pelos
seus cabelos, assim como faz comigo.
O movimento faz com que reflitam o brilho da luz proveniente do
teto, mais dourados do que nunca. “Tão lindo... e meu!”, penso atônita. É
quase inacreditável estar aqui com ele, nessa intimidade maravilhosa que
estamos construindo. Há alguns meses atrás, eu mal poderia imaginar na sorte
que viria a ter.
— E por que não?
— Tenho que trabalhar amanhã — explico, arrancando um sorriso
torto dele.
— É ainda mais fácil, não acha? — diz, aproximando o seu rosto. Seu
nariz roça no meu ao me alcançar para um beijo.
Retribuo o gesto, sem conseguir pensar em mais nada. Caramba,
assim fica difícil me manter firme. Ele joga sujo comigo! Com uma sucessão
de beijinhos, ele afasta o rosto novamente e, dado o meu silêncio, continua.
— Vai poder dormir um pouco mais... — segreda, sorrindo
largamente. — Sem se preocupar com ônibus, nem nada. Já tem até a roupa
para usar amanhã... Qualquer outro motivo que me der, vou tomar como uma
desculpa lavada!
Deixo a risada escapar dos lábios, sem conseguir me conter. É
impossível contrariá-lo. Acho que nem ao menos quero, para ser honesta.
Contudo, no fundo sinto um pouco de remorso. Por algum motivo bem lógico
não me parece muito certo.
— Não acho uma boa ideia a gente misturar tudo...
— Receio que está um pouco tarde para nos preocuparmos com isso
— diz com o sorriso que insiste em permanecer nos lábios rosados. — Já está
tudo misturado!
— E o que você acha disso?
Sua mão desce pesada pelo meu pescoço, ombros e tronco; parando
finalmente sobre a cintura. Seus dedos me apertam com força, fazendo-me
involuntariamente movimentar os quadris.
— Madu — murmura, tentando encontrar as palavras certas para usar.
— Desde que você apareceu na minha vida, eu não tenho mais nada para
achar... Isso que você está fazendo comigo... Fazia tempo que não me sentia
tão vivo assim.
Ah. Meu. Deus.
Eu não sei se estou preparada para esse sentimento que está
começando a crescer em mim. Mas é tão violento, tão devastador. Caramba...
Felipe está definitivamente me alucinando de todas as maneiras possíveis.
— Eu estou apaixonada pelo meu chefe! — brinco, antes que acabe
tendo um infarto. — Acho que sou a pior funcionária do mundo inteiro!
— Você não parece se importar muito quando está com aquela
carinha deliciosa de tesão que vi agora pouco... — diz e sua mão desce até o
meu bumbum.
Sua risada calorosa me envolve, relaxando cada músculo do corpo. É
maravilhoso saber que o faço sentir-se vivo, porque é exatamente isso que faz
comigo. Como pessoas que vieram de lugares diferentes e têm vidas tão
destoantes uma da outra podem se envolver dessa forma?
Fico extasiada só de pensar que se não tivesse vindo para Curitiba
estudar e passado por tudo o que passei até então, jamais o teria conhecido. O
pensamento da faculdade me faz recordar outra coisa, no entanto.
— A UFPR entrou em greve hoje... — suspiro, com mais desânimo
do que gostaria. — Isso vai bagunçar todo o calendário acadêmico.
— Bem, tente ver isso pelo lado bom.
— Lado bom? — indago, confusa.
— Agora você tem as noites livres. Pode usar esse tempo para
descansar um pouco... Imagino que esse ritmo de trabalho e faculdade não
deve ser muito fácil.
— Não é mesmo! — admito, encarando-o. — Mas já foi pior...
Trabalhar no shopping era bem puxado. Ainda mais perto do Natal... Eu tinha
que dobrar o turno quase todos os dias.
— Eu gosto disso em você — ele parece distraído com um
pensamento súbito. — Já tive várias pessoas trabalhando aqui comigo e
honestamente, tive muito problema com a última que passou por aqui — suas
sobrancelhas se unem por um momento, como se lembrasse de algo ruim. —
Quando vi o seu currículo percebi que era esforçada, essa é uma característica
que aprecio muito.
— Hmmm... Conte-me mais sobre isso! — ronrono, aninhando-me
contra o seu corpo.
Ele sorri brevemente, no entanto percebo que seus olhos se
obscurecem por alguns segundos.
— Nada na vida vem fácil... E ainda temos o risco daquilo que
conquistamos ser arrancado das nossas mãos, assim: de uma hora pra outra.
— Felipe encolhe os ombros. — Sabia que se você estava lutando tanto para
seguir com a faculdade, certamente levaria o emprego a sério.
— Uau, eu estou impressionada que tenha tido essa oportunidade! —
digo, com um sorriso largo no rosto. — Além de tudo tive a sorte grande de o
meu novo chefe ser um gostoso...
— E eu saí no prejuízo! Contratei uma menina bem teimosa, que
ainda por cima fica me provocando... — diz teatralmente, arrancando
gargalhadas de mim. — O pior é que acabei louco por ela. E agora?
— Agora eu sou toda sua! — respondo, observando-o se levantar.
Felipe arranca a camiseta que está vestindo com agilidade e a joga na
cama, dirigindo-se ao banheiro da suíte. Levanto-me logo em seguida, tiro
vestido que estou usando, assim como o sutiã. O alívio é imediato. Por que
tem que ser assim tão desconfortável?
Sei que ele não deixou a camiseta na cama com esse propósito, mas
tomo a liberdade de vesti-la. Já que vou dormir aqui, ao menos quero estar
confortável. Tão logo o tecido envolve o meu corpo, o perfume marcante de
Felipe penetra minhas narinas e inspiro profundamente.
Por algum motivo, sentir um pouco dele assim tão próximo, deixa-me
excitada, logo percebo que estou molhada de novo. “Droga, esse homem está
mesmo mexendo comigo”.
Ao me virar em direção ao banheiro, encontro-o me observando,
divertido. Os braços estão cruzados sobre o peito nu. Que monumento!
— Fica bem em você! — Sua voz tem um tom de brincadeira.
Sorrio com as bochechas queimando, sentando-me na cama
novamente.
Felipe permanece escorado no batente da porta, com serenidade.
— Estava aqui pensando... Presumo que estará em casa na sexta à
noite, agora que sua faculdade está parada?
— É bem certo que sim!
— Bem, meus pais virão aqui para jantar... Acabaram de voltar da
Europa e provavelmente têm muita coisa para contar. Não sei se aguento
sozinho... Minha mãe é bem falante. Até demais para o meu gosto — o
sorriso que exibe poderia derreter o Ártico todo. — O que você acha?
Preciso de alguns segundos para colocar os pensamentos no lugar.
Puta merda! Ele está sugerindo isso que entendi mesmo? Pisco algumas
vezes, tentando decidir se o que ouvi foi de fato real.
— Perdão? — pergunto, atordoada. — Jantar? Aqui? Com os seus
pais?
As perguntas explodem para fora da minha boca.
Felipe ri, aproximando-se de mim em passos lentos, ainda que
decididos.
— Eles não mordem! — diz, sentando-se na cama. — Já eu... Bem,
não posso garantir nada!
Reunião
— Sei que te falei que poderia dormir mais, só que eu não estava
querendo dizer o dia inteiro — a voz suave de Felipe penetra os meus
tímpanos, fazendo-me acordar abruptamente.
Espreguiço o corpo, levando alguns segundos até começar a ordenar
os pensamentos. Dormi aqui a noite passada, mas ao contrário do que
gostaria, hoje ainda é quarta-feira e não sábado.
Ao abrir os olhos, encontro-o somente de boxer, olhando-me com
ternura. A imagem é tentadora, mas eu estaria abusando da sorte em tentar
agarrá-lo esta manhã, sendo que trabalharemos a tarde inteira juntos.
Suas grandes e pesadas mãos seguram o meu rosto e, em um
movimento rápido, ele vem ao meu encontro, deixando um beijinho afetuoso
nos meus lábios. O contato me faz estremecer. A minha única vontade era de
ficar nessa cama quanto tempo fosse possível, ainda mais com esse homem
só para mim.
Respiro fundo, erguendo-me com um impulso.
— Dormiu bem? — ele me pergunta, munido da minha expressão
preferida de todas: a de cachorro sem dono. Será que Felipe tem ideia do
quanto fica irresistível com esses olhos inocentes mirando em minha direção?
— Muito — respondo, com a voz rouca de sono.
— Quer tomar um banho para acordar? — sua voz é cuidadosa.
Observo atentamente uma de suas mãos vir em direção a minha perna,
afagando-a com os dedos. A cada segundo esse quarto é mais e mais tentador
e a perspectiva de trabalhar é menos bem-vinda.
— Você vai estar lá?
— Lá onde?
— No banho, comigo! — sussurro, sentindo as bochechas
queimarem. “Socorro, a minha língua é mesmo um perigo”.
A risada de Felipe me envolve por alguns segundos, sinto um calor
gostoso me aquecer completamente, enquanto me levanto dessa cama
apelativa demais. Tudo aqui é muito bom, porque tenho que voltar para a
realidade tão cedo?
Felipe olha ligeiramente para o visor do seu celular, conferindo as
horas. O sorriso bobo em seu rosto torna-se safado, antes mesmo que ele
possa responder.
— Eu já tomei banho, mas seria incapaz de negar um convite desses!
Fisgo os lábios involuntariamente, deixando-o arrancar sua camiseta
de mim e me deixando apenas de calcinha. Felipe se inclina para me beijar,
ao que categoricamente viro o rosto para o lado, repreendendo-o com um
olhar sério.
— Acabei de acordar, você está tentando mesmo me beijar?
— Não tenho culpa, você não me deixa pensar direito! — sua voz é
rouca e provocativa.
Seus lábios vão de encontro ao meu pescoço, descendo para o colo em
beijos molhados e excitantes. Minha nossa, Felipe vai me enlouquecer a
qualquer hora, isso é certo!
Uma de suas mãos percorre todo o caminho da minha coluna
suavemente, deixando para trás um arrepio de tirar o fôlego. Arfo de desejo,
sem conseguir relutar com a ideia de me entregar a ele antes do nosso
expediente. Isso é mesmo uma loucura, mas quem liga? Ele me deseja e eu
com certeza o desejo alucinadamente.
Observo-o agarrar a minha mão e me puxar para dentro do banheiro.
Meus olhos recaem instantaneamente para a banheira enorme implorando
para nos ter lá dentro, no entanto, estamos marchando em direção ao
chuveiro.
Felipe parece perceber para onde os meus olhos estão focados, uma
vez que tenta me consolar.
— Quando estivermos com mais tempo...
— Você sabe que não vou me esquecer, né?
— Não me importo que me cobre! — ele murmura contra a minha
orelha, deixando-me completamente trêmula.
Não sei exatamente o como ele consegue fazer esse tipo de coisa, o
fato é que não existe bom senso nos momentos em que estou em sua
companhia. Não me importa se daqui a pouco estaremos lidando
profissionalmente um com o outro, eu só quero tê-lo. O tempo todo,
intensamente. Santo Deus, é bom demais estar tão envolvida nesse furacão de
sensações. Quero sempre mais, porque é mais viciante do que qualquer droga
no mundo.

Talvez seja impressão minha, mas o dia passou ainda mais depressa
do que eventualmente passaria. Quem sabe a maneira como acordei e quem
estava do meu lado tenha contribuído com o meu bom humor, mas a grande
questão é que não consigo tirar esse enorme sorriso do rosto.
As horas caminham e, na minha lembrança, eu tenho as mãos
experientes de Felipe correndo pelo meu corpo, causando tantos sentimentos
intensos e deliciosos que me elevam ao paraíso.
Ainda que eu lute para afastar o pensamento, tentando me convencer
de que não é o momento para isso, é impossível não pensar em seu corpo
monumental só para mim, cada vez que o vejo passar pela minha mesa em
uma nuvem de perfume.
Por volta das quatro, recebo a ligação do cliente que estava marcado
para dali a meia hora, avisando que teve um imprevisto e terá que vir em
outra ocasião. Confiro a agenda e descubro que não temos mais nenhum
compromisso no restante do dia.
Sem pensar duas vezes, caminho até a sala de Felipe, para avisá-lo
sobre o horário cancelado. Encontro-o absorto em seu trabalho, focado de tal
forma no notebook sobre a sua imponente mesa, que mal percebe a minha
chegada.
Demoro-me observando-o ler o que quer que esteja lendo no visor do
computador, com uma das mãos cobrindo a boca. A visão é terrivelmente
sexy, vê-lo concentrado assim é de tirar o fôlego.
Então, subitamente, ele ergue os seus olhos e me flagra o encarando
há sabe-se lá quanto tempo.
— Precisa de alguma coisa? — sua voz é acolhedora e educada, como
sempre.
Aceno negativamente com a cabeça, aproximando-me alguns passos
de sua mesa.
— Não... Só vim te avisar que o Dr. Pereira não virá mais. Você não
tem mais nenhum cliente para hoje.
Observo-o abrir e fechar os lábios ligeiramente, como se fosse dizer
algo, mas tivesse mudado de ideia antes. Ao invés disso, ele me presenteia
com um sorriso torto, fechando o notebook com uma das mãos, sem quebrar
o nosso contato visual, no entanto.
— Então estou livre? — ele me pergunta com um tom brincalhão.
— Você é o chefe... É você que decide quando está livre.
Por mais que eu saiba que tenho que voltar para a minha mesa e
continuar o meu trabalho, sinto que o clima dessa sala mudou drasticamente.
Estou ficando louca ou ele está com cara de... safado?
Observo-o alcançar o telefone que jaz sobre a mesa, discando um
número com os dedos ágeis. Felipe se levanta de seu posto, com o aparelho
colado na orelha e se dirige à porta, permaneço como uma estátua na mesma
posição.
— Leonor, estou no meu escritório, em reunião. Você pode trancar lá
na frente, por favor? — suas palavras fazem o meu coração batucar
violentamente. “Reunião? O que eu fiz?” — Sim, estou encerrando mais
cedo hoje. Obrigado.
Ele desliga o telefone, enquanto uma de suas mãos vai de encontro à
maçaneta da porta, fechando-a com um estalido. Então, para a minha grande
surpresa, Felipe nos tranca aqui dentro. “Minha mãe, o que está
acontecendo?”.
Sua expressão está impagável no momento em que gira os
calcanhares em minha direção. Está afrouxando a gravata ao se aproximar de
mim.
— Estamos em reunião? — pergunto em um sussurro.
— Estamos — ele diz com tranquilidade.
Meus olhos o seguem levar o telefone até sua mesa, para, logo em
seguida, parar de frente para mim. Estou desconcertada e acabou de ficar
completamente sem ar dentro desse escritório. Meu coração, por sua vez, está
a ponto de entrar em colapso.
— E o que precisa conversar comigo?
— Quem disse que vamos conversar? — ele indaga, fisgando os
lábios em seguida. Santo Deus, acabei de perder as forças das pernas.
Felipe é intenso demais, mas eu não tenho objeções. A sensação de
ser engolida por todos esses sentimentos é muito boa, vejo que quanto mais
fico com ele, mais viciada me torno pela sua companhia. Felipe é
entorpecente e alucinante, mesmo em toda a sua intensidade, não é o
suficiente para acabar com o meu anseio por ele.
Suas mãos me seguram na cintura e com o seu corpo, ele me guia em
direção a mesa. Seus lábios famintos vêm de encontro aos meus, deixando
todos os meus pensamentos nublados. Nada mais passa em meus
pensamentos neste momento se não ele e esta situação deliciosamente insana.
Interrompendo o nosso beijo, Felipe afasta o rosto, usando as suas
mãos para me girar de costas para ele. Arfo em surpresa ao ser suavemente
empurrada sobre a mesa, obrigando-me a deitar o tronco sobre a superfície de
madeira.
Suas mãos sobem pelas minhas coxas, trazendo o tecido do meu
vestido para cima. Estremeço ligeiramente desde que tenho as pernas nuas,
no entanto, basta que ele comece a deslizar a calcinha para fora do meu corpo
para que uma onda de calor atravesse cada célula que existe em mim.
De olhos fechados e com o rosto contra a superfície rígida, solto um
pequeno grito tão logo sinto o seu rosto se enterrar entre as minhas pernas.
Empino o bumbum, oferecendo-lhe mais espaço para alcançar o seu ponto de
desejo.
Logo, sinto sua língua úmida contra o meu clitóris, ao passo em que
suas mãos seguram as minhas coxas com força. Caramba, isso é insano. Estar
nessa sala, sobretudo nestas condições... Uau. Felipe não para de me
surpreender.
— Fê... — gemo, no momento em que ele insere um dedo em mim.
— Adoro quando você me chama assim... — ele sussurra, com a voz
rouca. — Fala de novo!
Tão logo pede, sinto-o colocar mais um dedo. Deixo escapar um som
gutural descontrolado e me repreendo por pensamento ao me lembrar que
estamos em seu escritório. E se a Leonor estiver do lado de fora daquela
porta, neste exato momento? Oh, céus...
— Fê... — repito, sem ar, obedecendo ao seu comando.
Os lábios de Felipe voltam até o meu sexo, sua língua passeando no
mesmo ritmo com o qual insere seus dedos em mim. Aos poucos, a minha
visão vai escurecendo, eu contraio os músculos da perna, preparando-me para
o que está por vir.
Ele parece perceber que estou prestes a gozar, uma vez que para
abruptamente o oral e se levanta sobre mim. Seus dedos dão lugar ao seu
membro rijo, que me preenche deliciosamente.
Felipe apoia uma de suas mãos nas minhas costas, criando uma
pressão gostosa que me impede de levantar. Quando as investidas firmes
começam, tudo o que posso fazer é enterrar o meu rosto ainda mais contra a
mesa e morder os lábios, tentando me controlar o máximo que consigo.
Com a mão livre, ele me segura pela anca, enterrando os dedos na
carne. O contato é delicioso e desesperado, fazendo-me vibrar inteira. Entre
os movimentos rápidos e precisos, ouço os gemidos graves de Felipe. Que
tesão...
— Você me deixa louco! — Ele arfa e a força com a qual investe está
fazendo a mesa bater suavemente no chão.
Tenho certeza de que a Leonor está ciente do que estamos fazendo em
nossa “reunião”.
O pensamento dura milésimos de segundos, porém, uma vez que
começo a contrair novamente os músculos da perna, sabendo que estou
prestes a alcançar o ponto máximo, Felipe aumenta o ritmo das investidas e,
vez ou outra, desfere um tapa pesado contra a minha bunda. Exatamente no
momento em que começo a me desmanchar em prazer, sinto-o latejar dentro
de mim, derramando-se junto comigo.
Ele sai de dentro de mim e libera a mão que me prende contra a mesa.
Instantaneamente giro o corpo em sua direção, alcançando seus lábios com
desejo latente. Esse sentimento que venho nutrindo por ele tem se tornado
cada dia mais forte e cada momento que passamos juntos só contribui mais e
mais.
— O que foi isso? — pergunto, sem fôlego.
— Uma reunião urgente, visto que você estava me tirando do sério.
Deixo a risada escapar dos meus lábios, preenchendo todo o
ambiente. Logo sou acompanhada por Felipe, cuja risada envolvente me
deixa completamente a vontade.
— Quer ir pra casa comigo? — pergunto, em um ímpeto de coragem.
A verdade é que não quero ficar longe dele. É bom demais tê-lo por
perto.
— Só se eu puder ficar até amanhã — ele devolve, piscando um dos
olhos charmosamente.
Primeiras
Impressões
Fito no espelho o resultado das grossas camadas de rímel que acabei
de passar. Meus cílios, já grandes, ficam parecendo postiços quando capricho
na máscara. Satisfeita com o destaque que consegui para os olhos que hoje,
em especial, estão mais esverdeados do que nunca, busco na maleta de
maquiagem um batom cor de boca que considero adequado para a ocasião.
Encontro-me estranhamente trêmula, a ansiedade às vezes faz o meu
coração acelerar sem nenhum motivo aparente. Alcanço o babyliss no
armário do banheiro e o coloco para esquentar, decidindo que um ondulado
natural é uma boa pedida para hoje.
O dia amanheceu ainda mais frio do que o restante da semana, agora
que está anoitecendo, é quase como se fosse nevar a qualquer momento. Juro
que não estou exagerando.
Visto uma t-shirt de mangas compridas com uma jaqueta de couro por
cima. Completo o look com uma saia de suede, uma meia-fina preta e botas
de cano curto, que terminam da altura dos tornozelos.
Fito o visor do celular para conferir as horas e me apresso em
terminar de me arrumar o quanto antes. Felipe disse que estaria aqui às oito,
como sei que nunca se atrasa, o melhor é que já esteja pronta.
Separando o cabelo em partes, tento controlar os pensamentos que se
atropelam a todo o momento. Felipe me deixa confusa com as suas atitudes.
Se, na maioria do tempo, parece hesitar em relação a nós dois; por outro lado,
aparenta estar bem consigo mesmo para me apresentar à sua família. Minha
nossa, só de pensar que isso está para acontecer já me deixa de pernas
bambas.
Ele jamais falou sobre os pais comigo, eu mesma nunca tive
curiosidade de procurar sobre eles em suas redes sociais. Quero dizer, nem ao
menos tive tempo para isso. Os acontecimentos têm sido turbulentos demais,
além de imprevisíveis, é claro. De toda forma, esse maldito frio na barriga já
está me deixando impaciente.
Sei que é muito provável que ele deva os ter avisado sobre a minha
presença, mas o fato que martela incansavelmente na cabeça é: como eles
esperam que eu seja? Algo me diz que não uma secretária e não treze anos
mais nova. Droga, além de tudo eles podem tomar a conclusão
completamente errada sobre a situação toda! Acho que definitivamente não
estou pronta para isso.
Não demora até que o meu cabelo esteja deslumbrante em suas ondas
sedosas. Ao menos estou com a auto-estima lá em cima. O que um pouco de
maquiagem não faz com uma mulher, não é?
Alcanço a bolsa, mas, antes de seguir o meu caminho, sinto as
bochechas corarem ao ponderar se seria interessante levar uma camisola.
Bem, que mal pode ter nisso? Sorrio para mim mesma, alcançando-a em cima
da cama. Seria bom dormir lá de novo... Assim pelo menos estarei adequada
para a situação. Dou um pulinho no banheiro e pego a escova-de-dente
também, divertida com a situação.
Enquanto desço até o térreo, sou invadida por um mar de lembranças
sobre a noite em que dormi na casa de Felipe. Soa como se me recordasse de
um sonho o qual tive há muitos anos atrás. Ainda que tenha sido no começo
da semana, é delirante imaginar que tive momentos tão íntimos com ele. Sei
que soa um pouco bobo me sentir assim, mas a forma como ele é carinhoso, o
jeito que deixa as minhas pernas bambas quando estou na sua companhia... É
impossível não me derreter com a ideia de que dentro daquela carcaça dura,
exista um homem que está louco por mim, como me disse naquela noite.
Bem, é fácil acreditar nisso ao pensar que, céus, ele vai me apresentar
para os seus pais. Talvez realmente não seja nada demais, no entanto estou
com um punhado de borboletas voando loucamente dentro do estômago.
Espero no fim das contas conseguir me sair bem com eles. Certamente
querem alguém que ajude Felipe com os seus problemas, isso é tudo o que
quero, mesmo.
Aceno brevemente para o porteiro e saio pela porta de vidro, sendo
recepcionada por uma brisa que gela até os ossos. Caramba, como é possível
ser feliz com esse frio horroroso? Instantaneamente começo a bater o queixo,
abraçando o meu próprio corpo para me proteger do vento cortante que
insiste em despentear os cabelos.
Embora eu não precise esperar muito até que Felipe chegue, as
condições nas quais me encontro fazem parecer uma eternidade. Estou
amargamente arrependida por não ter escolhido uma roupa um pouco mais
quentinha, exatamente no momento em que o seu carro estaciona com
suavidade na minha frente.
Contorno o automóvel, entrando no banco de passageiro. Ele está me
encarando com sua expressão de cachorro sem dono que me convenceria a
qualquer coisa no mundo. “Inferno! Por que precisa ser assim tão lindo?”
Está vestindo uma camiseta de gola v cinza mescla com um blazer
preto por cima, que combinam com o jeans que cobre as pernas grossas. Solto
um pesado suspiro, sentindo-me subitamente desanimada.
Felipe parece perceber, uma vez que me presenteia com o seu sorriso
mais bonito antes de me perguntar:
— Você dormiu comigo? — sua mão direita vem de encontro à minha
nuca, em um carinho um tanto quanto desajeitado.
“Não. Mas bem que eu gostaria!”
— Eu te vi no trabalho não faz nem três horas — dou nos ombros,
parecendo uma criança birrenta. No entanto, inclino o corpo em sua direção,
dando um beijinho rápido nos seus lábios macios.
— Você está com uma cara estranha... Algum problema? — pergunta
afável, arrancando com o carro em seguida.
Fecho os olhos, tentando me concentrar. Que droga, não costumo ser
assim. Não tenho problema em conhecer pessoas novas, no geral não sou o
que se possa chamar de tímida. Estou irritada comigo mesma por parecer uma
adolescente atrapalhada, mas, no geral, é isso que Felipe faz comigo. Deixa-
me atordoada, sem saber exatamente o que fazer ou como agir.
— Não é nada... — murmuro contra a vontade — Só estou um pouco
ansiosa.
— Ansiosa? — indaga, com um ar divertido. — Por quê?
— Porque vou conhecer os seus pais! E se eles me odiarem? —
admito finalmente o que vem me preocupando no íntimo.
As palavras pairam pelo carro por alguns segundos, aumentando o
meu desconforto. Por que pareço tão infantil falando isso? A verdade é que,
de fato, estou morrendo de medo. Ainda que não seja muito da minha
personalidade, é algo que não posso lutar contra.
O sorriso estampado no rosto de Felipe se alarga, deixando-me ainda
mais irritada. Ele realmente está achando graça nisso? Filho da mãe...
— Tem como te odiar? — fita os meus olhos por segundos ao
indagar.
O contato visual é intenso, muito embora tenha durado pouco. Sinto
as mãos formigarem levemente e um calafrio percorre todos os músculos do
corpo. Socorro, será que ele tem ideia do quanto o seu olhar pode ser
devastador?
Demoro algum tempo até me dar conta de que estou sem respirar. De
repente, o carro parece ter subido a temperatura drasticamente. Dou uma
espiada ligeira no painel, para conferir se o ar quente está ligado. Encontro-o
inativo, no entanto, comprovando aquilo que já sabia.
Dado o meu silêncio, ele continua, com a voz suave.
— Você vai se sair bem.
Suas palavras me recordam o coquetel da PoliBev, quando me disse a
mesma coisa. Naquela época, eu mal poderia imaginar que, em um futuro
próximo, estaria indo até a sua casa para conhecer a sua família. Domino um
sorriso, feliz pelo que representa esse encontro. Felipe sabe mesmo como me
deixar fora de mim.
Tão logo chegamos, ele faz uma curva suave, entrando em seu
estacionamento. Procuro ansiosa por outro carro, mas constato com alívio
que ainda não apareceram.
O meu coração está batucando violentamente contra o peito assim que
desço da Mercedes, seguindo-o para dentro de sua mansão. Seus olhos me
estudam de cima embaixo, fazendo as minhas bochechas pegarem fogo.
Ao passar por ele, sua mão vem de encontro a minha coxa direita,
alisando-a até chegar ao bumbum, onde seus dedos o apertam com firmeza,
arrancando de mim um grunhido exasperado.
— Você não esconde essas pernas nem no inverno? — sussurra
próximo do meu ouvido, com a voz provocativa.
— Por quê? — devolvo, encarando-o com um olhar inocente. —
Você não gosta delas? — passo as mãos delicadamente pelas pernas,
prendendo a sua atenção.
Felipe me envolve com os braços pela cintura, dando um beijo
molhado na curva do meu pescoço, suficiente para me deixar com as pernas
tão moles quanto gelatina. Suas palavras roçam úmidas contra a minha
orelha, arrepiando os pelos da nuca.
— Eu não me responsabilizo pelo que posso fazer com elas... — diz,
prendendo a minha cabeça com as mãos. Se ele soubesse o quanto adoro
quando faz isso...
Ele morde o meu lábio inferior com delicadeza, antes de me puxar
para um beijo, que não hesito em corresponder. Arfo de excitação, no entanto
me afasto dele antes que não consiga mais me controlar. A última coisa que
preciso nesta noite é que seus pais nos peguem no flagra.
— Depois você pode fazer o que quiser! — digo, deixando a mão
descer até o volume de suas calças. — Mas acho que agora deveríamos estar
cuidando da janta, não?
A cara de safado que impera seus traços harmoniosos é impagável.
Deus sabe o quanto estou me controlando para não arrancar essas peças de
roupas que estão cobrindo o monumento que é o seu corpo malhado. “Por
favor, Felipe, coopere comigo!”
— Nós não vamos cozinhar! — profere, com as íris azuis-intensas
fixas em mim.
— A Leonor preparou algo pra gente?
— Não também... — diz, unindo as sobrancelhas por alguns
segundos. — Meu pai está decidido a fazer pizzas bem à moda italiana. Eu
duvido um pouco dos seus dotes culinários, mas não consegui convencê-lo a
mudar de ideia.
Aproveito seu momento de distração e me encaminho até o anguloso
sofá creme da sala bem decorada, sentando-me confortavelmente, ao passo
em que o observo vir em minha direção.
— Pizza italiana...? Tem alguma diferença? — questiono intrigada.
— Eu prefiro as nossas, para ser honesto — dá nos ombros, sorrindo.
— As tradicionais são mais... minimalistas.
— Ok, se é de comer, estou dentro!
— Eu não duvido disso! — Felipe se senta ao meu lado, girando o
corpo para que suas pernas fiquem em cima do meu colo. Eu adoraria
protestar a respeito disso, só para provoca-lo, mas sua proximidade é
deliciosa demais para que eu me importe com isso. — Ele está animado
porque trouxe a farinha de lá.
— De lá? — pergunto, sem conseguir entender.
— Da Itália! — explica, como se não fosse nada demais.
Minha risada nervosa preenche o ambiente. Santo Deus, vamos comer
pizzas com farinha que veio do outro lado do Oceano Atlântico. Se em algum
momento tentei me convencer que seria um jantar tranquilo na casa do
homem que estou apaixonada, bem, essa ideia foi por água abaixo. Eu
realmente espero conseguir me comportar bem. No entanto, levando em
conta o dom que tenho para que coisas estranhas aconteçam comigo, sei que
isso seria quase um milagre.
O som da campainha ressoa alto pelo cômodo e a sensação que tenho
é que o sangue do meu corpo todo se esvaiu. Felipe levanta em um pulo,
então logo me vejo forçada a repetir o seu gesto. Sua mão vem até o final das
minhas costas e, juntos, vamos de encontro ao que eu adoraria evitar com
todas as minhas forças.
A primeira coisa que penso é que, caramba, dá para entender de onde
veio toda a beleza de Felipe! É até injusto imaginar que uma família sozinha
consiga ser tão incrivelmente perfeita assim.
Eles devem ter por volta dos sessenta anos, pelos meus cálculos, mas
não hesito em dizer que aparentam bem menos. A mãe dele está usando uma
camisa branca sobre a qual um colar que parece não ter sido barato sobressai,
o pingente de safira combina com o azul profundo de seus olhos amendoados.
A saia-lápis de couro contorna o seu corpo esbelto enquanto ela caminha em
passos decididos em nossa direção. Seus cabelos são castanhos como os
meus, no entanto são um pouco mais volumosos e estão parcialmente presos,
de um jeito bem elegante.
Ao seu lado está um homem que arranca suspiros facilmente, ainda
que tenhamos uma diferença de idade considerável. Seus cabelos loiros
ganharam algumas mexas grisalhas que lhe conferem um ar charmoso, ao
passo em que seus olhos brilham tão translúcidos quanto os de Felipe. Para
ser honesta, os dois tem o mesmo jeito de andar, de olhar... é desconcertante
o quanto são semelhantes.
Felipe abraça a mãe carinhosamente para, logo em seguida,
cumprimentar o pai com um demorado aperto de mãos. Sua mãe me alcança,
dando um beijo estalado na minha bochecha. Seu perfume doce e marcante
me envolve e percebo que Felipe ser incrivelmente cheiroso é uma
característica de família.
— Mãe, pai... Essa é a Madu — ele diz, colocando suas mãos nos
bolsos do jeans. Está tão tranquilo que me pergunto qual o problema comigo.
— Madu, esse mulherão na sua frente é a minha mãe, Vitória.
A risada dela é alta e espalhafatosa, o que, de certa forma me deixa
um pouco mais tranquila.
— É um prazer, Vitória! — Saúdo, com um sorriso largo, sentindo o
rosto queimar intensamente.
— O prazer é todo nosso! Estávamos curiosíssimos para te conhecer,
desde que o Lipe comentou que estaria aqui conosco essa noite... — Seus
olhos me estudam muito calorosos e receptivos.
A voz de Felipe quebra o nosso contato visual, no entanto, uma vez
que está me apresentando ao seu pai:
— Esse cara me ensinou tudo o que sei sobre Direito...
— Só sobre Direito? — Seu pai o interrompe com um tom divertido,
fazendo-nos rir. — Isaque! — ele me diz, estendendo a mão para que eu
aperte e completa: — É um prazer, querida.
Seguimos para dentro da casa de Felipe, em direção à cozinha ampla e
moderna onde estive apenas uma vez, quando o procurei por todos os
cômodos, até encontrá-lo em sua academia particular.
Só então percebo que Isaque está carregando em uma das mãos, uma
cesta de vime recheada de ingredientes, que deposita cuidadosamente sobre a
ilha central do cômodo, na frente de onde quatro banquetas estão
posicionadas elegantemente. Do teto pendem meia dúzia de lustres que
acompanham a ilha, compondo um bonito conjunto.
Felipe caminha até a adega climatizada, de onde tira um Chardonnay
Cerro da Cruz e traz até nós, em passos calmos. Seu pai está tagarelando
animado sobre como aprendeu a forma exata de fazer uma pizza seguindo a
maneira tradicional, e de como os italianos não respeitam a pizza brasileira.
Vitória aproveita o momento dos dois para caminhar até um dos
armários, trazendo quatro taças presas nos dedos longos. Senta-se em uma
das banquetas, ficando de frente para mim. Tira a garrafa das mãos de Felipe
sem que ele perceba, e nos serve, com um sorriso no rosto.
— Essa noite merece um brinde! — diz e sua voz é alta e estridente, o
que, instantaneamente me faz gostar ainda mais dela. Se tem algo que me
irrita um pouco são pessoas polidas demais, perto das quais temos até medo
de respirar sem ser julgados. Bem, ponto a mais para a família dele.
— Mas antes, Madu, não se assuste... — Isaque diz, como que
justificando a jeito de Vitória falar. — Família de italiano já é barulhenta por
natureza, com um pouco de vinho então... são todos loucos!
— Ah, tudo bem! A minha família também gosta de uma farra... —
explico, feliz por meus sogros serem pessoas aparentemente tão queridas.
Aos poucos, sinto o nervosismo abandonar o corpo e consigo
aproveitar um pouco mais o momento.
— Um brinde a essa noite tão especial! — Isaque exprime, com um
sorriso largo tomando o seu rosto perfeito.
Levo a taça de encontro a deles e a suave colisão provoca um gostoso
tilintar. Observo os três tomarem o vinho com o mesmo movimento e abafo a
risada. São tão parecidos... A visão me traz saudade de casa e da minha
família.
Uma vez que finalmente decido tomar um gole da bebida, a voz aguda
de Vitória irrompe o ambiente, dirigindo-se a Felipe.
— Sua namorada é linda, Lipe! — a forma natural como comenta isso
me pega de surpresa e, antes que eu possa pensar a respeito, engasgo com o
vinho, cuspindo-o em um jato que, graças aos céus, não atinge nenhum dos
três.
Quanto mais tento acabar logo com essa cena, mais eu me engasgo,
no entanto. Logo sinto as lágrimas pipocarem dos meus olhos e rezo para não
morrer afogada na frente dos meus sogros, porque, por Deus, isso seria
realmente humilhante.
“Merda, estraguei tudo!”, penso chateada, e Felipe vem até mim, com
uma expressão que sugere que está se segurando para não gargalhar. Encaro-
o com sangue nos olhos, tossindo desesperadamente, incapaz de respirar. Sua
mão vem de encontro às minhas costas, com pesadas batidas, que logo me
ajudam a recuperar o fôlego.
Limpo as lágrimas com a ponta dos dedos, torcendo para não ter
manchado a maquiagem. Seus pais estão mudos e, para ajudar, com uma
expressão de preocupação no rosto. Minha nossa, se eu achei que vomitar na
frente do Felipe tinha sido ruim, isso foi antes dessa noite. Quero morrer aqui
e agora!
— Você está bem? — Felipe me pergunta, mordendo o lábio inferior
para controlar o impulso de rir.
“Maldito, você me paga”, mentalizo, fuzilando-o com o olhar. O ato
parece contribuir ainda mais com a sua vontade de rir, porque em seguida, ele
simplesmente não aguenta e arrebenta em uma gargalhada envolvente.
Tão logo Isaque e Vitória o acompanham, enterro o rosto nas mãos,
usando todas as forças para não chorar. Inferno, se eu chorar agora será o
mesmo que assinar um atestado de “perdi a dignidade”.
— É, agora vocês já conhecem a Madu! — Felipe diz com suavidade.
Acabo cedendo ao clima e rindo junto, ainda que continue escondida.
No fundo eu sabia que acabaria fazendo alguma coisa assim. Pelo menos
agora eles já sabem que sou uma negação por natureza!
— Sinto muito por isso... — encolho os ombros, arriscando dar uma
espiada na situação.
— Bem, como já nos certificamos de que ninguém vai morrer essa
noite, podemos começar? — ele pergunta, com um sorriso que insiste em
permanecer no rosto.

Enquanto seu pai começa os preparativos da superestimada pizza,


alegando que quer fazer sozinho para que não tenha erro, Felipe senta ao lado
de sua mãe, ficando de frente para mim. Leva a taça até os lábios várias vezes
seguidas, ao passo em que Vitória está entretida contando dos lugares
incríveis que estiveram e do quanto já tinha se esquecido da Europa no
intervalo de pouco mais de um ano desde a última vez em que estiveram lá.
Por mais que seja impressionante ouvi-la dissertar sobre lugares que
tenho loucura para conhecer, minha mente divaga sobre o que me fez
engasgar. Ela disse... que eu era... namorada dele. Puta merda! Ela falou isso
mesmo? Bem, Felipe pareceu ok quanto a isso. Será que ele me apresentou
assim para ela, quando disse que eu estaria aqui?
Tudo bem, eu sei: que besteira me ater a isso! Parece bobo... ao
mesmo tempo é extasiante a sensação. Esse homem me deixa completamente
perturbada e percebo que apesar de continuar se protegendo em sua habitual
camada de impassibilidade, no fundo ele está se entregando. Saber disso é
quase como alcançar o céu. Talvez seja melhor ainda.
Vez ou outra o pego me encarando pelo canto dos olhos, com uma
expressão de alguém que guarda um segredo bom demais para conseguir
manter só para si. Suas mãos estão cruzadas sobre a boca e um dos dedos
passeia de maneira convidativa pelos lábios.
— Madu, você pode buscar outro Chardonnay, por gentileza? —
pergunta assim que sua mãe dá uma brecha em uma das histórias que está
contando animadamente.
Assinto com a cabeça e me levanto, sentindo o olhar dele sobre mim
enquanto vou até a adega. Espio por cima da cabeça e o pego encarando as
minhas pernas, o que finalmente me traz o entendimento do porquê de estar
com cara de safado. Lembro-me bem de nossa conversa antes de seus pais
chegarem. Ele não se responsabiliza pelo que vai fazer a elas... Bem, eu não
me responsabilizo do que posso fazer com ele inteirinho! Espero que esteja
preparado, porque estou com todas essas sensações à flor da pele.
Antes que possa retornar à ilha central, no entanto, Isaque me chama
até a pia, onde está concentrado em preparar a massa. Noto impressionada
que os ingredientes já estão separados e que na verdade, a última coisa que
falta além da massa, é a montagem.
— Qual sabor você vai querer primeiro, Madu? — pergunta
gentilmente, abrindo a massa no ar e me deixando momentaneamente
impressionada.
— Que opções nós temos? — indago, aproximando-me um pouco
mais.
— Margherita, Marinara, Diavola e Capricciosa! — ele me responde,
cheio de si.
— Bem, vou de Margherita, como é a única que conheço! — sua
risada é acolhedora e ele me lança uma piscadela simpática.
— Seu desejo é uma ordem!
Por um momento, esqueço que estou ainda com o vinho nas mãos e o
observo fazer o seu trabalho concentrado. Dizem que quando queremos saber
como uma pessoa será ao envelhecer, basta olharmos para os seus pais. Pelo
visto, Felipe está muito bem, diga-se de passagem!
No tempo em que observo Isaque colocar seus dotes culinários em
prova, meus tímpanos captam a voz de Vitória falando quase em um sussurro
com Felipe.
— Ela é novinha... — diz com a voz preocupada. — Não digo que
não estou feliz com isso, até porque já faz muito tempo desde que...
— Mãe! — Ele sibila e giro o rosto rápido o suficiente para pegá-lo
lançando um olhar de reprimenda para ela. Logo em seguida balança a sua
cabeça negativamente, ao que ela acena, com uma expressão séria.
Engulo em seco e giro o rosto em direção a pia novamente, fingindo
que estou completamente absorta em Isaque preparando o nosso jantar. Tento
aguçar os ouvidos e ouço-a continuar:
— Ela sabe que você...?
— Sabe — ele responde contra a vontade. — Recentemente tive uma
recaída.
Vitória arfa em surpresa, sinto certa semelhança com a minha mãe.
Ainda que não a conheça bem, tenho quase certeza que posso presumir a cara
que está fazendo para ele.
— Você está tomando os seus remédios? — pergunta tão baixo que é
difícil distinguir suas palavras.
— Mãe, depois conversamos, tudo bem? — A voz dele é séria e o
escuto suspirar pesadamente.
Ouço o som de uma banqueta arrastando contra o piso de porcelanato,
seguido por passos suaves, que me indicam quem está vindo. Não demora
para que os braços fortes de Felipe me envolvam pela cintura,
protetoramente.
— Esqueci de levar isso! — digo, erguendo a garrafa no ar.
— Eu percebi! — devolve, recostando o seu queixo contra o meu
ombro por alguns segundos. — Obrigado!
Ele alcança a garrafa na minha mão, então, desvencilhando-se de mim
rapidamente. Dirige-se de novo para a companhia de sua mãe, deixando-me
para traz com um punhado de minhocas na cabeça.
Incertezas
Enquanto Felipe acompanha seus pais até o carro, aproveito para
alcançar a bolsa, decidida a ir embora. Queria dizer que tenho muitos motivos
para o meu bom humor ter se transformado nessa nuvem negra no qual se
encontra agora, mas a verdade é que não há.
Por mais que Vitória e Isaque tenham se esforçado para me deixar a
vontade, Felipe se tornou mais e mais recluso com o passar do tempo. Pouco
me lembro de sua voz durante as horas em que se estenderam o jantar. Ainda
que eu tente me convencer que não teve nada a ver comigo, dentro de mim
estou em frangalhos.
Por que é tão difícil decifrar a cabeça desse homem? Essa noite
representava um passo muito importante para a nossa relação, ou ao menos
representava para mim. Então justamente hoje, ele se fechou em seu universo
particular, deixando-me sem saber exatamente o que fazer ou para onde
correr.
Eu simplesmente não entendo por que as coisas são tão complexas
entre nós dois. No entanto, pela primeira vez, começo a ficar desanimada
com todo esse mistério que o ronda. Quero dizer, tudo bem guardar segredos
até certo ponto. Todos temos lados de nossas vidas que não queremos dividir
com ninguém. Contudo Felipe não me dá pistas de nada! Eu não sei dizer
com certeza se o que ele sente por mim ao menos chega perto do que nutro
por ele. Estou completamente perdida e começando a ficar irritada com a
situação. Sei tão pouco sobre ele e ainda por cima, é tão confuso... Tão
abstrato.
A porta abre e revela seu rosto, cujas bochechas estão avermelhadas
pelo frio lá de fora, consigo captar a surpresa em seu olhar. Ele não esperava
me ver pronta para partir.
— Você pode me levar para casa, por favor? — peço, tentando não
transparecer a irritação que me domina no momento.
A pior parte é que eu nem ao menos consigo colocar em palavras o
que está me irritando. Talvez seja tudo. Logo esse pensamento me deixa
ainda mais desanimada. Felipe me trouxe para conhecer os seus pais e eu
aqui estou, arrumando motivos para estragar essa noite.
Acontece que... lembro-me dele pedindo para sua mãe mudar de
assunto, com aquele olhar de desaprovação... Que droga! Estou quase
chorando, devo estar na tpm! Não é possível que uma coisa tão pequena
como essa esteja mexendo tanto comigo. Entretanto, de toda forma, não é
como se eu pudesse controlar os sentimentos. Vitória parecia preocupada
com algo do passado dele, e sua voz ainda ressoa na minha cabeça de
maneira insistente: “Já faz muito tempo desde que...”, desde o quê? Algo que
ele não quer que eu saiba! Mas por quê?! Qual o problema em me deixar
saber um pouco mais sobre a sua vida? Qual a dificuldade em se entregar
para mim do mesmo jeito que me entrego a ele?
Nosso contato visual se demora por mais segundos do que o
necessário e tento decifrar o que passa pela sua mente enigmática. Finalmente
o vejo unir as sobrancelhas, parecendo desapontado.
— Achei que fosse ficar aqui essa noite — diz com a voz firme. —
Aconteceu alguma coisa?
Quero dizer que sim, aconteceu. Quero dizer que estou chateada com
toda essa confusão que ele causa em mim. Que, neste exato momento, não
queria ter vindo. Esperei tanto dessa noite que acabei me decepcionando.
Todavia, contenho-me em dizer:
— Estou cansada.
Felipe respira fundo, então percebo o seu semblante se obscurecer.
Ele cruza os braços fortes sobre o peito, sem desviar a atenção de mim um
minuto sequer.
— Você é péssima nisso — murmura impaciente. Pisco os olhos,
tentando entender sobre o que está falando.
— Péssima em quê? — pergunto, por fim.
— Em mentir.
Observo-o fisgar os lábios, deixando-os úmidos e provocativos. É
incrível o quanto ele fica intimidante — e sexy — quando sério. Teria me
desarmado em outra situação, mas agora estou tão envolvida nas minhas
paranoias, que não me deixo abalar por isso.
— Achei que tivesse gostado da nossa noite... — ele encolhe os
ombros, finalmente quebrando o contato visual. Seus olhos vão para longe e
sua expressão é de pensativo. — Você parecia bem até agora pouco.
— Eu adorei! — Sorrio desanimada, odiando-me por estar agindo
assim. — Seus pais são queridíssimos, fizeram eu me sentir em casa. E as
pizzas... Uau! Isaque tinha razão, são deliciosas!
— Disso eu tenho que discordar — seu sorriso torto me deixa
derretida por alguns segundos. — Prefiro a nossa... agora, de toda forma, se
gostou deles porque está com essa carinha estranha?
— Por sua causa! — digo, sem pensar.
Felipe arregala os olhos em uma fração de segundos, mostrando-se
perplexo com a resposta. Inclina ligeiramente a cabeça para o lado, de
maneira quase imperceptível, mas que lhe confere um ar de inocência
maravilhoso. Eu poderia agarrá-lo agora mesmo! Domino um sorriso, no
entanto, observando-o com um nó na garganta.
— Eu não consigo entender o que passa na sua cabeça... — minha voz
falha por um momento, assim que percebo o brilho intenso no azul de suas
íris.
— Então é só perguntar! — seu tom é suave, apesar da expressão
séria que tomou seus traços harmoniosos.
— Você não me deu atenção a noite inteira... — lamento e, de
repente, meus sapatos parecem muito mais interessantes de encarar.
— Perdão? Eu não te dei... atenção?
— Bem, não! — digo, sentindo as bochechas pegarem fogo. Estou me
sentindo como uma criança mimada, mas sei que precisa ser dito. Não
costumo ignorar aquilo que o meu coração diz e hoje, em especial, ele está
berrando.
— Madu... — Felipe solta um pesado suspiro. — Esse jantar foi para
te apresentar aos meus pais. Não vejo como poderia te dar mais atenção do
que isso.
— Mas você quase não falou! Ficou a noite toda recluso nos seus
pensamentos... A noite inteira sem me deixar saber se estava amando, ou
odiando!
— Puta merda! — ele sussurra, acenando negativamente com a
cabeça. — Isso é sério?
— É! É sério, sim! Não sei se você gosta mesmo de mim, ou se está
só brincando comigo... Estou perdida e a culpa é toda sua!
Felipe abaixa a cabeça, olhando para o lado. Um sorriso irônico toma
os seus lábios e constato com amargura que consegui estragar tudo. “Isso aí,
Madu! Parabéns!”
— Eu já te disse que não tenho mais idade para brincadeiras — fala
pouco mais alto que um sussurro e noto que seus punhos estão fechados.
Minha nossa, eu definitivamente estraguei tudo. Ele está furioso! — Para
mim não tem nenhum mistério, Madu. Você me faz bem, a gente se gosta...
— suas palavras morrem no ar.
Com a cabeça girando, tento processar o que me disse. Por isso, em
um ímpeto de coragem — e tolice — coloco para fora aquilo que vem me
incomodando a noite inteira.
— Eu não tenho tanta certeza assim de que gosta de mim! — Tão
logo as palavras saem da boca, eu me arrependo.
Felipe esfrega o rosto com as mãos grandes, respirando fundo em
seguida. Em passos lentos, dirige-se até o sofá, sentando-se com os cotovelos
apoiados nos joelhos. Ainda em silêncio, estudo-o abaixar a cabeça entre as
pernas, com as mãos cruzadas firmemente uma na outra.
— Você é difícil, sabia? — murmura, no entanto é complicado
entender o que diz com clareza, já que sua voz está abafada por conta da
posição.
— Você é mais! — devolvo.
— Eu não passo nem uma hora do dia sem conseguir te tirar da
cabeça, Madu... Nem uma maldita hora! Você entende isso? Entende que está
me deixando fora de mim? — Felipe ergue o rosto, encontrando-me com seus
olhos intensos. — O que mais você quer que eu faça? O que preciso fazer
para você entender que sou louco por você?
Suas palavras penetram os meus tímpanos, arrancando o chão sobre
os meus pés. O mundo começa a girar intensamente, ao passo em que tento
controlar esse furacão de emoções que se formou dentro de mim. Puta merda,
por que eu não tenho mais desses momentos dele? A maior parte do tempo
tudo o que eu faço é patinar entre as sensações, porque isso é tudo o que
Felipe me oferece. Então ele vem e diz que está louco por mim? Eu preciso
ver com os meus olhos. Preciso acreditar! Precisa ser forte o bastante para eu
ignorar o fato de que não sei nada sobre sua vida e que, para mim, ele é um
completo estranho. Contudo, mesmo assim, consegue me deixar arrebatada.
— Você precisa me mostrar isso, Felipe! — sussurro, encarando-o.
— A última coisa que eu precisava agora era me envolver com
alguém... — ele diz mais para si do que para mim. — Mas que opção eu
tenho? Que opção eu tenho quando tudo o que você faz me tira do sério?
Ele se levanta, vindo decidido em minha direção. Suas mãos seguram
o meu rosto com firmeza, fazendo-me olhar para cima e encontrar os seus
olhos, cuja intensidade do olhar está me deixando desconcertada.
— Que opção eu tenho se quando fecho os olhos a primeira coisa que
vem na minha mente é você, Madu? — Seu corpo está colado no meu, de
forma que posso sentir seu peito subir e descer, respirando
descompassadamente. — Que inferno! Você não entende, né? Não entende o
monte de merda que carrego aqui dentro, que me atormentam todos os dias
da minha vida... Mas que, graças a você, estão indo embora... Você está
trazendo luz onde só existia escuridão e me diz que não tem certeza do que eu
sinto?
— Felipe... — engasgo, sentindo o coração bater alucinadamente
contra a caixa torácica.
Caramba, eu mal consigo acompanhar suas palavras. O ar parece mais
rarefeito que o normal, minhas mãos estão suando frio. Seus dedos
escorregam até o meu pescoço, no entanto não perdem a força com que me
prendem.
— Porra, Madu! — Sua voz é tão alta que beira o grito, deixando-me
alarmada. — Por que é tão difícil pra você entender que te amo? — Sua boca
vem de encontro a minha, não me dando tempo de pensar.
Sinto sua respiração ricochetar contra o rosto e abro espaço para que
sua língua sedenta alcance a minha. Seus movimentos são exigentes e
desesperados, consumindo-me por inteiro.
Minhas sensações estão tão aguçadas, que é quase como se uma
corrente elétrica percorresse cada músculo. Na minha cabeça, a única coisa
que permaneceu foi aquela palavra... Céus! Eu não quero acreditar... Isso
parece um sonho.
— Era isso que você queria ouvir? — ele pergunta, beijando-me entre
uma palavra e outra. — Eu te amo! Você acredita em mim, agora?
— Acredito! — respondo, sentindo-me inundar nessa profusão de
sentimentos. — Porque eu também te amo!
Os braços de Felipe me soltam gentilmente em cima da cama. Sou
recebida pelo contato macio do edredom, observando-o tirar o blazer que
ainda está vestindo, encarando-me de cima.
Com um movimento ágil, Felipe tira sua camiseta, inclinando-se
sobre mim. Sua boca vem em busca da minha e o contato morno de seus
lábios é acolhedor e carinhoso. Nosso beijo parece uma dança sensual, onde
muito se transmite e, sem a necessidade de palavras, cada movimento é
intenso e elétrico. Permito que minhas mãos o tateiem suavemente,
aproveitando cada milímetro de sua pele nua. Elas traçam o contorno dos
seus ombros fortes, descendo pela coluna e voltando para a frente de seu
corpo, para alcançar o abdômen malhado.
Deixo os dedos descerem um pouco mais, alcançando o cós da calça,
mas sou interrompida por ele. Com o seu braço direito, puxa-me para frente,
forçando-me a sentar. Suas mãos calmas tiram a jaqueta que visto, em
seguida a camiseta. Então sou envolta por seus braços fortes e protetores, que
me juntam ainda mais ao seu corpo, ao passo que seus dedos sobem
furtivamente até o fecho do sutiã, abrindo-o facilmente com uma das mãos.
Tão logo sinto um pequeno estalo, a lingerie fica frouxa, escorregando pelo
meu corpo.
Institivamente, inclino o pescoço, oferecendo-o em sua direção.
Felipe não hesita em levar os lábios a pele sensível do local, subindo os
beijos até alcançar a minha orelha, onde sussurra com a voz sexy.
— Te amo! — diz, fisgando suavemente o meu lóbulo, o resultado
disso é arrebatador. Os músculos do meu ventre se contraem e o corpo todo é
estimulado pelo calafrio forte que o atravessa.
Essas palavras ainda representam uma novidade gostosa, que
arrancam um sorriso satisfeito dos meus lábios. Precisarei de um tempo até
processar os últimos acontecimentos, porque exatamente agora estou
extasiada. Cada suspiro, cada movimento, cada toque... é como se
acontecesse com outra pessoa que não eu. Pareço ver de fora, no entanto,
experimentando cada uma dessas sensações maravilhosas.
Descobrir que isso que venho trazendo dentro de mim com tamanha
intensidade é correspondido... não somente é surreal, como também
anestesiante. Os pensamentos finalmente perderem o ritmo acelerado, assim
como o coração parou de batucar descoordenado. Por agora, a única certeza
que tenho é que ele não só me deseja. Não. É mais forte que isso, é mais
puro. Ele me disse que sou a luz da escuridão que é a sua vida. Caramba. Só
de recordar suas palavras, meus membros estremecem. Estou completamente
envolvida nessa abundância de sensações à flor da pele. Isso é incrível, muito
mais do que jamais imaginei vivenciar com alguém.
— Eu te amo! — segredo, saboreando as palavras. Poderia dizer isso
a noite inteira e mesmo assim seria pouco para o que carrego aqui dentro.
Felipe força o meu corpo para trás, fazendo-me deitar novamente.
Suas mãos apalpam os meus seios com desejo, estimulando-os. Seus
movimentos são contínuos e sedentos, arrancando de mim alguns grunhidos
de aprovação. Ele escorrega os dedos pela minha barriga, alcançando a saia.
Com um impulso, eleva-se acima de mim e, sem delongas, tira o tecido pelas
minhas pernas.
Ainda que aqui dentro esteja bem mais quentinho que lá fora, o meu
corpo está perdendo o calor desde que estou ficando cada vez menos vestida.
Antes que possa protestar, no entanto, observo-o tirar minha meia-fina, com
os olhos fixos nas minhas pernas. Capto a expressão prazerosa que está
fazendo com o simples gesto e isso me deixa completamente excitada. A
forma como ele me cobiça... Pelos sete infernos, não há como não ficar
exaltada desse jeito.
Uma onda de calor emana do centro do meu corpo em direção às
extremidades, varrendo o frio para longe. O volume das calças de Felipe é de
tirar o fôlego. Noto que minha respiração está ficando cada vez mais pesada e
isso é de enlouquecer.
Ao terminar de me despir, segura a minha perna esquerda e a encaixa
sobre o seu ombro. A ponta de seu nariz fino roça a pele carinhosamente, em
movimentos circulares e lentos. Seus olhos estão fechados, deixando os cílios
loiros em evidência. A expressão de tesão que está fazendo, no entanto,
deixa-me estarrecida. Com os dedos, Felipe aperta a minha coxa em pontos
diversos, deixando-a dormente. Seus lábios começam a passear de um lado
para o outro, deslizando pela pele de uma maneira completamente
estimulante.
Conforme se aproxima da virilha, começo a ondular a barriga, ao
passo em que movimento os quadris com leveza. Isso é bom demais, pai
amado. Eu nem ao menos sabia que tinha tanto tesão na parte de dentro da
coxa. Percebendo as minhas reações, Felipe se demora nos beijinhos que
deposita na pele da minha perna. É somente no momento em que os chupões
começam, que ele realmente me tira do sério.
Ah. Meu. Deus.
Solto um gemido baixo, agarrando os seus cabelos dourados e me
lembro dele dizendo que não se responsabilizaria pelo que faria com as
minhas pernas. Tenho certeza de que não vou poder usar uma saia novamente
assim tão cedo. Isso definitivamente vai deixar marcas. Contudo é tão
delicioso que a única coisa que consigo fazer é sentir o corpo inteiro vibrar,
acompanhando os estímulos.
No momento em que acho que vai alcançar o meu sexo ele se levanta,
focado em tirar o jeans que ainda está usando. Seu corpo é quase uma obra de
arte, não canso de bebê-lo com os olhos.
Felipe percebe o meu olhar e morde o lábio, com aquela cara de
safado que compõem o quadro de expressões dele que eu amo. Vem sobre
mim, apoiando-se com os cotovelos ao meu redor.
Percorro a distância entre os nossos rostos, procurando pelo seu beijo
que estou viciada. Contudo, cada vez que busco a sua língua, Felipe se afasta,
sorrindo. “Isso não é hora de brincar comigo, seu safado...”
Inclino o tronco, na tentativa de alcança-lo. Ele vira o rosto, fugindo
da minha boca desesperada pela sua. Tento isso mais três vezes, tendo o
mesmo resultado em todas as tentativas. Quando, por fim, dou-me por
vencida, ele finalmente sela nossos lábios, matando o meu desejo.
Uma de suas mãos se enrosca pelos meus cabelos, a outra alcança a
sua ereção, encaixando-a em mim. Logo o sinto me penetrar e a forma como
estou encharcada faz com que deslize com facilidade. Arfo assim que ele me
preenche, e as pontas dos meus dedos formigam levemente.
Prendo as pernas ao seu redor, unindo-nos ao máximo. Começo a
rebolar na medida do possível, visto que estou embaixo de seu corpo. Ele ri
com o meu desespero em me entregar.
— O que é isso?! — pergunta de maneira teatral, com a expressão
séria, como se estivesse me censurando. — Hoje eu vou fazer amor com
você!
— Hmmm — gemo, provocando-o. — Amor calminho? Sem me
castigar? Uau, estou impressionada!
Felipe investe forte ao ouvir as palavras, arrancando de mim um som
gutural. O movimento é tão gostoso que perco a força do corpo todo por um
momento. Oh, céus...
— Posso mudar de ideia... — sussurra, raspando os lábios nos meus
em movimentos de vai-e-vem. Move, então, os quadris em um ritmo lento e
alucinante, dando-me uma prova do que eu estaria perdendo. — Você quem
sabe...
— Continua! Por favor! — peço, mas apenas faz com que ele pare
com as investidas, em provocação. “Por Deus, Felipe, apenas continue!”
Ouço-o gemer, retomando a sua dança erótica que me atordoa. Ele
volta a me beijar, fazendo um rodízio entre o meu pescoço, orelha e boca. Os
movimentos lentos e ritmados de Felipe são incrivelmente excitantes,
deixando-me totalmente sem fôlego.
De olhos fechados, aproveito a explosão de sensações que me
envolvem. Cravo as unhas nas suas costas levemente bronzeadas,
arranhando-o na mesma medida de meu prazer. Ele reage aos estímulos que
emito, aumentando a velocidade até quase me ver gozar e, no momento em
que estou prestes a explodir, diminui o ritmo, torturando-me.
Permanecemos nesse jogo perigosamente trepidante até que cada
membro do meu corpo começa a se retrair.
— Fê... — engasgo, finalmente achando que não vou mais aguentar.
Ele parece estar se segurando há muito tempo, uma vez que basta
ouvir a minha voz para que suas investidas se tornem frenéticas. Retorço o
corpo inteiro, sentindo espasmos intensos vindos em uma enorme onda de
prazer. Logo em seguida ele sai abruptamente de dentro de mim e observo-o
gozar em jatos que lambuzam a minha barriga toda.
Passado o susto momentâneo, deixo-me rir gostosamente, vendo a
bagunça que ele fez em mim.
— Minha nossa, Felipe! — murmuro, tentando retomar a normalidade
da respiração. — Olha só isso! Vou precisar de um banho!
— Vamos resolver isso então! — diz, pegando-me no colo com
facilidade.

Assim que volto a deitar na cama, estou de fato exausta. Meus dedos
encontram-se enrugados depois de tanto tempo imersa na banheira com ele.
Domino um sorriso ao olhar para o visor do celular e ver que já está quase
amanhecendo. Caramba, essa noite rendeu! Ainda que os pais dele tenham
ido embora perto das duas, Felipe sabe mesmo como me consumir.
Sinto a cama afundar ao meu lado e vejo-o estender a mão até
alcançar o interruptor, desligando a luz. Seu braço direito vem protetoramente
ao meu redor, enquanto ele se encaixa atrás de mim, ficando de conchinha.
Sua respiração suave vem contra a minha nuca e fico embalada em
seu aconchego. Isso está tão bom... não quero que acabe nunca.
— Ainda bem que hoje é sexta, se não estaríamos ferrados! — ele diz
e sua voz sugere que está sorrindo.
— É um perigo ficar muito tempo com você... — respondo,
aninhando-me ainda mais nele. — Quando menos percebo, você vem e me
leva à loucura!
Felipe solta uma risada envolvente, apertando a força no braço que
me enlaça.
— Você me faz muito bem, sabia? — sua voz é suave. — Parei até de
tomar os remédios essa semana...
Uno as sobrancelhas, de repente ficando um pouco preocupada. Como
que é?
— Sério? Essa é uma boa ideia?
— Eu não lembro a última vez que me senti tão bem antes... — ele
beija a minha orelha, tentando me tranquilizar. — Acho que é o momento
certo para isso. Resolvi arriscar.
— Mas aquele dia você estava péssimo... — murmuro, com medo de
que ele fique irritado por eu não apoiar totalmente a ideia.
— Todos temos dias ruins — ele dá nos ombros, despreocupado. —
Confie em mim. Estou preparado para isso.
Solto um suspiro, decidindo que ninguém é melhor para afirmar do
que ele mesmo.
— Tudo bem. Eu confio.
Desjejum
Acordo emaranhada entre os braços protetores de Felipe e não levo
muito tempo para organizar a mente e retomar as lembranças de ontem a
noite. Tantas coisas aconteceram que é quase como se tivesse passado uma
eternidade. Domino um sorriso ao pensar que tudo mudou entre nós dois.
Minha nossa, ele me ama! Só de pensar nisso as borboletas dentro do
estômago ficam desordenadas.
Lembro-me da forma como ele parecia desesperado em colocar para
fora todos esses sentimentos e preciso de muito esforço para manter o
autocontrole. Minha vontade era de sair gritando para a vizinhança toda que
ele me ama. O homem que jamais coloca para fora o que está sentindo
admitiu coisas que eu jamais imaginaria. É inacreditável pensar que consegui
atravessar a barreira protetora de Felipe.
Demoro-me estudando os seus traços. Ele ainda está imerso em um
sono profundo e suas expressões estão leves. É quase como se fosse anos
mais jovem, sem todas as preocupações que o tomam diariamente. Imagino
que essa enorme carga de responsabilidade que carrega nos ombros deva,
eventualmente, sobrecarregá-lo. Por isso, vê-lo assim tão sereno e
despreocupado é bastante reconfortante.
Sem pensar muito no que estou fazendo, levo o indicador até os seus
lábios rosados, contornando o bonito desenho que fazem. Os cílios dourados
cintilam com a luz do sol a penetrar o quarto. Cada pequeno detalhe dele é o
suficiente para me deixar derretida.
Levo o dedo até o nariz fino, estudando-o enquanto traço o seu
contorno. Noto suas sobrancelhas se unirem e íris azuis profundas se
mostram para mim, deixando-me desconcertada. Uma nesga de vergonha me
toma, ao pensar que o acordei sem motivos.
Felipe pisca algumas vezes, despertando lentamente. A força com que
me envolve aumenta, ao passo que me presenteia com um sorrisinho torto.
— Você sempre acorda as pessoas assim? — sussurra com a voz
grossa de quem acabou de acordar, fazendo-me rir.
— É, eu não queria te contar, mas é quase um vício... — entro na
brincadeira. — Não posso ver alguém dormindo que preciso ir até lá e
esfregar os dedos na cara.
Sua risada ecoa alta entre nós dois, envolvendo-me de maneira
deliciosa e acolhedora.
Merda, eu realmente amo esse homem. É incrível o quanto consigo
ficar desconcertada com todos os aspectos que o envolvem. O fato é que
realmente não posso evitar. Felipe me atrai em sua direção tanto quanto um
imã. A única coisa que posso fazer a respeito é me deixar ser guiada por suas
mãos grandes e experientes.
— Está com fome? — ele pergunta, com um sorriso no rosto.
Eu não tinha parado para pensar nisso, mas, agora que ele comentou...
Caramba, é quase como se existisse um buraco dentro de mim! Não parece
que comi uma tonelada de pizza a noite passada.
Sinto as bochechas pegarem fogo, recusando-me a admitir que sou
assim tão previsível. Felipe explode em risadas de novo, o que uso de
pretexto para esconder meu rosto no seu peito nu.
— Droga, é assim tão óbvio? — murmuro, sentindo o seu tronco subir
e descer na medida em que ri.
— Eu te amo! — ele dá nos ombros, derretendo-me por completo. —
Desse jeito... embora realmente fique curioso para saber para onde vai tanta
comida.
Felipe diz, desvencilhando-se de mim. Gira o seu corpo para fora dos
pesados edredons, soltando um suspiro audível.
— Eu adorei a nossa noite... — admito, tentando prolongar esse
momento íntimo e agradável. — Digo, seus pais foram ótimos! Confesso que
todo o meu medo foi em vão...
Imitando os seus movimentos, saio do meu casulo quentinho e
encontro o frio me esperando do lado de fora das cobertas. Um calafrio
percorre os meus membros, deixando a minha pele parecida com a de um
frango.
Assim que alcanço as minhas roupas jogadas pelo quarto, um
pensamento invade a minha cabeça, fazendo o meu rosto inteiro esquentar
subitamente.
— Hm... Fê... Será que eles ficaram bravos por eu quase ter cuspido
neles? — pergunto, odiando-me em pensamentos por ser tão eu.
Droga, as coisas podiam não conspirar contra mim constantemente.
As mãos de Felipe vão até o seu rosto, escondendo-se uma vez que suas
risadas novamente nos envolvem. Não faz nem meia hora que estamos
acordados e ele já riu de mim mais vezes do que o meu orgulho gostaria.
“Quando foi que perdi o respeito, afinal de contas?”, penso comigo mesma,
divertida.
— Bem, o lado bom disso é que não pode mais surpreendê-los... já
mostrou do que é capaz logo na primeira noite! — Ele abre um sorriso
provocativo para mim e, em resposta, lanço um travesseiro na sua cara.
Em passos tranquilos Felipe se aproxima de mim e não posso desviar
os olhos de sua boxer preta, que contorna o seu corpo tão bem, destacando
todos os pontos positivos. Tento desviar esse pensamento, sentindo-me
envergonhada por já ter acordado no pique.
— Quero morrer! — murmuro, ainda que esteja rindo como ele.
— Isso tudo porque ela te disse que era a minha namorada? — Sua
voz paira intensa sobre nós dois, enquanto ele alcança o meu pulso, puxando-
me para ele.
Deixo-me ir sem relutar e caio em seus braços fortes, que me
envolvem amorosamente. Uma de suas mãos sobe pela minha nuca,
embrenhando-se nos meus cabelos. A outra me prende ao seu redor, unindo
nossos corpos um pouco mais — se é que era possível.
Seus lábios vão de encontro a pele sensível que fica atrás da orelha,
arrancando um arfar de mim. Wow, com certeza não fui a única a acordar em
chamas.
— Hein? — ele insiste, lembrando-me da pergunta que ficou no ar.
Tento me recompor para respondê-lo, muito embora a distração esteja
boa demais para tanto.
— É que foi inesperado... — sussurro, com todas as forças que
consigo juntar. As minhas pernas estão moles como gelatina ao que Felipe
enterra ainda mais seus dedos entre os meus cabelos, arrepiando o meu corpo
todo.
— Eu disse para ela que você era a minha namorada — suas palavras
estão tão baixas e roucas que soa como uma explosão sexy.
Deixo escapar um grunhido, notando que fiquei molhada. Como
infernos ele consegue fazer isso? “Caramba, assim fica difícil, Felipe!”
Achei que estávamos indo tomar o café da manhã e não que eu seria o
café da manhã!

Quando finalmente descemos até a cozinha, estou vestindo sua


camiseta de ontem, com a jaqueta por cima. Se o frio consegue invadir a
proteção das paredes, mal posso imaginar como está lá fora. Felipe colocou
uma calça de moletom por cima da cueca, mas continuou com o peito nu,
para a minha alegria.
Sento-me em uma das banquetas, estudando-o escolher uma cápsula e
colocar na cafeteira igual à do seu escritório. Os músculos de suas costas
largas se contraem no momento em que ele abaixa para buscar uma fôrma
dentro dos armários em baixo da pia.
— Gosta de pão de queijo? — indaga, atencioso.
— Adoro! — respondo com mais animação do que gostaria.
— Acho que a pergunta não é essa... — ele diz e vejo a sombra de um
sorriso nos seus lábios finos. — Existe alguma coisa de comer que você não
goste?
Rio gostosamente, ao passo em que ele caminha até a geladeira,
ocupado em preparar o nosso desjejum.
— Eu esqueci de te avisar, mas ontem depositei o dinheiro da viagem
na sua conta — diz despreocupadamente, arrancando-me de um transe
temporário.
— O quê? — pergunto distraída.
— O dinheiro por ter ido para São Paulo comigo!
Felipe olha por cima do ombro e seus olhos azuis encontram os meus.
De repente, uma conversa que parece ter sido há anos atrás invade a minha
mente, e me lembro dele oferecendo dez salários mínimos por alguns dias
viajando com ele. Oh meu Deus! Eu tinha me esquecido completamente
disso! Nem contava realmente com esse dinheiro. Além do mais, parece
errado aceitar essa quantia alta visto que passei metade da viagem em seus
braços.
— Não precisava fazer isso! — digo, de maneira infantil.
— Foi o que combinamos.
— Mas... — suspiro, sabendo que ele não vai ceder pela cara como
me olha. — As coisas saíram diferentes do que tínhamos planejado.
Ele sorri docemente e percebo que não dá a mínima para o quanto eu
possa ficar desconfortável com isso. Felipe às vezes pode ser tão teimoso
quanto eu.
— Eu não costumo dar para trás com as minhas promessas — ele dá
de ombros, voltando a sua atenção ao que faz.
Observo-o espalhar os pães de queijo pré-prontos pela forma, com
paciência, para logo em seguida levá-los até o forno elétrico. Tira o seu café e
sem me perguntar qual eu quero, coloca uma cápsula para mim. Sei que ele
possivelmente está passando o mais forte, afinal, já se acostumou com isso há
algum tempo.
Munido de sua xícara de porcelana fumegante, Felipe arrasta uma
banqueta, sentando-se de frente para mim. Inevitavelmente, meus olhos se
arrastam pelo seu abdômen definido e domino um suspiro. Ele se apoia com
os cotovelos no balcão, inclinando a cabeça levemente para o lado, ao passo
em que me observa.
— Quer ficar aqui comigo esse final de semana? — tão logo indaga,
sinto um calor intenso aquecer meus órgãos internos e sorrio para ele.
— Estou sem nada aqui...
— Podemos buscar e então você não terá desculpas para me deixar
aqui sozinho — ele me lança sua melhor expressão de cachorro sem dono,
fazendo as minhas mãos suarem frio.
— E você vai me deixar dormir essa noite? — provoco, sem quebrar
o nosso contato visual.
— É claro que não! — Seu sorriso largo invade suas feições,
deixando-me involuntariamente arrebatada. “Pelos sete infernos, pare de me
deixar com as pernas bambas, Felipe!”
Permito-me gargalhar, sendo acompanhada por ele. A cafeteira emite
um breve sinal, indicando que o meu café está pronto. Antes que eu possa me
levantar para buscar, no entanto, Felipe arrasta sua banqueta, indo até a pia.
— Segunda-feira vou precisar viajar para São Paulo de novo — sua
voz flutua ao nosso redor e ele me entrega a xícara de porcelana que trouxe
consigo. — Volto na segunda mesmo. Preciso que você dê uma boa
organizada nos arquivos enquanto eu estiver fora. Sei que deu uma olhada
geral semana passada, mas algumas pastas estão um verdadeiro caos...
— Tudo bem — falo, tentando conter o pensamento perturbador de
Felipe viajando sozinho.
— Vou me encontrar com Renato para conversar sobre as ações
contra a PoliBev.
— Oh! — limito-me a dizer, quando esse nome penetra os meus
tímpanos.
Uma onda de lembranças invade a minha mente e eu pondero sobre
falar com Felipe a respeito. Chacoalho a cabeça, tentando afastar o
pensamento. Isso seria a maior loucura que eu poderia fazer, além de que
muito possivelmente deixaria as coisas bem estranhas entre nós dois.
Não obstante, Renato parece finalmente ter concordado em cessar as
investidas. Não vejo motivo nenhum para trazer à tona questões que
poderiam apenas perturbar a cabeça de Felipe à toa. Não. Já me decidi quanto
a isso.
— Espero que não morra de saudades de mim — sorrio em sua
direção e ele retribui.
Revelações –
por Felipe
As horas se atropelam durante uma reunião que parece interminável.
Não vou me queixar, no entanto. Foi a profissão que escolhi e, ainda que
existam os dias aborrecidos, a maior parte deles são prazerosos, contudo.
É só que... Não sei. Renato é um cliente importante para a minha
carreira e é inútil tentar questionar isso. Mas as coisas seriam bem mais fáceis
se ele não tivesse que carregar esse maldito sorriso de escárnio no rosto.
Sinto como se ele estivesse guardando um segredo muito bom e mal pudesse
se aguentar. Sei, de toda forma, que ele é assim. Não há o que fazer a
respeito.
Não é a primeira vez que tenho que lidar com um homem cujo cargo
importante inflou o seu ego além da conta. Eu mesmo já tive o meu
momento, embora ache um tanto quanto patético nesta altura do campeonato.
Deus sabe como acho. No entanto, não é como se pudesse ter tudo na vida.
Quem sou eu para questionar alguma coisa desde que tenho a sorte de ganhar
a atenção de uma empresa como a PoliBev?
Por isso, faço o máximo dos esforços para ignorar o ar superior com
que ele se dirige para mim, enquanto colho o máximo de informações com as
quais irei trabalhar em sua defesa. Meu avião para Curitiba é apenas às onze
horas e sinto que até lá ainda olharei um bocado de vezes para o relógio em
meu pulso. Merda, ele podia colaborar.
Deixo as unhas rasparem contra a barba por fazer, ao passo em que o
observo contar mais uma de suas histórias. Não sei dizer exatamente o que
está me irritando, o fato é que eu poderia revirar os olhos aqui mesmo. Que
babaca. Ele age como se fosse o dono do mundo. Não sei quanto mais
aguento disso. Ele é mesmo um babaca. Um babaca que se gaba tanto que
começo a duvidar das coisas que me conta. Afinal, é como dizem... Cachorro
que ladra não morde. Acho que se aplica bem aqui.
Renato se levanta para pegar uma cerveja no frigobar e aproveito para
conferir as horas pela milésima vez no meu pulso. Vinte para as cinco. Puta
merda, que dia de cão interminável é este? Respiro fundo, tentando me
convencer de que está chegando ao fim. Estou exausto e tudo o que precisava
agora para ganhar o dia está em Curitiba, estou certo de que se preparando
para deixar o escritório. Tudo o que queria era ouvir aquela risada calorosa,
ou ver aquela cara de safada que me lança sempre que está prestes a me
provocar...
Merda, ainda não sei exatamente como isso foi acontecer, mas a
verdade é que já não posso tirar a Madu da cabeça. Aquele aspecto
atrapalhado, risonho e inocente dela me pegou de jeito e eu conto as horas
para vê-la desfilando com as pernas de fora, ou então me encarando por trás
daqueles enormes olhos esverdeados.
Estou ferrado, eu sei. Mas que escolha eu tenho? Quero dizer, eu sou
um homem em primeiro lugar. Ela, claramente, estava interessada em mim.
Deus sabe como sou contra me relacionar com os funcionários, resolvo tantos
pepinos envolvidos com isso que simplesmente nunca teria coragem de
arrumar para a minha cabeça. Eu não seria tolo, de toda forma.
Foi diferente com ela, no entanto. Ainda que eu tivesse tentado
ignorar com todas as forças, e juro que tentei, chegou um ponto que o meu
instinto falou mais alto. Até porque, que tipo de pessoa consegue se controlar
sendo que a outra está visivelmente interessada e é gostosa como o diabo?
E, ainda que a minha consciência estivesse berrando para mim que era
burrice deixar que os meus instintos me dominassem, chegou um ponto em
que eu estava pouco me fodendo. Ela era uma mistura deliciosa de inocente e
madura, de safada e ingênua, de menina e mulher.
Não tinha como ser diferente, eu soube disso no momento em que a
tive pela primeira vez. Tentei me afastar pelo bem de nós dois, porque me
conheço bem o suficiente para saber que ferro tudo o que toco a mão.
Contudo, aprendi que a Madu pode ser teimosa de uma maneira irritante.
Além do mais, o que eu podia fazer, no fim das contas? Eu já queria tanto
quanto ela parecia querer, simplesmente fui egoísta o bastante para não me
importar com as consequências. Realmente espero que não sejam ruins,
porque de alguma forma, já estou fodido nisso tudo. Contudo, sinceramente,
não me importo.
Como cansei de dizer para a minha menina, já passei da idade das
brincadeiras. Não tenho medo de lidar com os sentimentos quando não tenho
mais como lutar contra eles. Tentei evitar o quanto pude, mas, uma vez que
ela atingiu o meu coração, que merda posso fazer a respeito?
— Acho que essa cerveja serve como deixa para o fim da nossa
reunião! — Renato diz, despertando-me de meus devaneios.
Ergo os olhos e o encontro com uma long neck estendida em minha
direção. Eu bem mereço uma bebida depois desse dia maçante.
— Quem sou eu para negar? — brinco, agarrando a bebida para mim.
Não me demoro em abri-la e então a levo direto até os lábios,
deixando a bebida escorrer garganta adentro. A sensação é tão boa que eu não
me importaria de fazer pelo resto da noite. Como disse: eu mereço.
Estar neste hotel novamente — sobretudo nesta suíte — é
terrivelmente chato sem a presença de Madu por estes cômodos. Quase posso
sentir o seu perfume doce se me esforçar para isso e percebo que apesar de ter
passado todo o final de semana com ela, estou com saudade.
Domino um sorriso, pensando em todas as formas que quero tê-la
quando voltar, no entanto sou arrastado para realidade mais uma vez com a
voz pastosa de Renato.
— Como estão as coisas lá em Curitiba? — pergunta, sentando-se
novamente na poltrona de frente para mim.
— Como sempre... — dou nos ombros. — Frio e úmido.
— Não muito diferente daqui, então.
— Presumo que não — falo sem me dar ao trabalho de tirar a cerveja
da boca.
Renato cruza os braços atrás da cabeça e algo na forma como sorri
para mim me tira momentaneamente do sério. Sei que, em parte, as minhas
sensações estão um pouco confusas porque parei com os medicamentos, mas
não é como se não fosse ter tudo sob o controle em um futuro próximo. Só
preciso de algum tempo para mim, afinal já faz um bom tempo desde que
comecei com eles.
Estreito os olhos, conhecendo essa expressão estampada em sua face
de outras ocasiões... Só não consigo me lembrar. Foda-se, ele realmente é um
babaca convencido. Não preciso lhe dar mais atenção além do que se supõem
pelo fato de estar lhe prestando um serviço.
— Estive por lá há algum tempo... foi uma visita rápida, no entanto.
— Sério? — indago divertido, sem conseguir pensar em um bom
motivo para isso. — O que o levou até lá?
Temo que seja coisa da minha cabeça, mas quase posso apostar que o
vi torcer os lábios para o lado. Puta merda, qual é a desse idiota?
— Bem, espero que não se importe... — ele inclina a cabeça para o
lado, com uma expressão impagável no rosto. — Mas tem a ver com a sua
secretária gostosa.
— O quê? — pergunto antes mesmo de perceber que fiz isso.
— Você sabe, é inevitável... Não sei como nunca tentou nada com
ela... Eu não conseguiria! — Renato leva a cerveja até a boca, dando um
demorado gole antes de continuar. — Mas depois que ela me chamou para vir
aqui neste hotel passar a tarde na piscina com ela, simplesmente não tive
como ignorar.
Sinto o sangue esvair do corpo em uma velocidade surpreendente.
Calma, o quê? Que diabos ele acha que está dizendo?
— Oh, você não sabia? — Seu sorriso cresce com a surpresa que pega
em meu rosto. Encontro-me tão estarrecido com a informação que não tenho
reação alguma. — Bem, ela deve estar com receio de contar... É cabível, de
toda forma.
— Você... Eu... O quê? — indago, sentindo a visão escurecer de ira.
Mas que merda! Estou vendo tudo em borrões, tamanha é a minha
raiva. Contudo, não é como se eu fosse dar o gosto para esse babaca. Eu sei
qual é a dele, está querendo me provocar. Isso condiz muito com o que já
ouvi sobre ele. Respiro fundo e esfrego o rosto tentando afastar a minha
expressão atônita.
— Está saindo com a minha assistente pessoal? — pergunto com o
melhor tom descontraído que consigo para o momento.
Não quero realmente parar para pensar nisso porque sei que poderia
facilmente fazer uma besteira. Ele provavelmente só está tentando se gabar. É
um idiota e não é nenhuma surpresa que esteja agindo como tal.
— Como disse, espero que não seja um problema.
— Não vejo como poderia ser — uno as sobrancelhas. — Até onde
sei está solteira.
— Não me surpreendo... Ela não é o que se pode chamar de fácil,
hum? — Renato leva a cerveja até os lábios uma última vez, matando o seu
conteúdo. — Precisei bajular um pouco até conseguir alguma coisa.
— Por Deus, Monteiro, está mesmo me dizendo isso? — Sibilo, sem
conseguir disfarçar completamente a ira na minha voz.
Onde esse maldito quer chegar? Quero dizer, ainda que não existisse
nada comigo e a Madu, não é como se Renato e eu fossemos íntimos e
estivéssemos no happy hour para ele me falar dessas coisas. Quero que ele e
todas as mulheres que já fodeu vão para o inferno. Realmente não me
importo com isso.
Sua risada preenche o ambiente, ao que ele se levanta para alcançar
mais uma cerveja. Aproveito o momento para conferir o celular, dando-me
conta de que já tem um bom tempo desde que não mexo nele.
Como que se o destino estivesse tirando uma com a minha cara,
deparo-me uma mensagem de Madu: “Sei que você vai chegar tarde e
provavelmente cansado, mas o que acha de dar uma passadinha aqui?”.
Permito-me um sorriso, desconsiderando completamente qualquer
possibilidade de o que Renato está me dizendo ser verdade.
Quero dizer, estamos falando da Maria Eduarda, isso não combina
muito com ela. Não preciso de tanto para concluir que ela é inocente. No
entanto, esse sorriso irritante que toma as feições de Renato está me tirando
do sério. Lembro-me de nossos encontros os quais Madu nos acompanhou e
resgato suas expressões quando flertava com ela. É quase como se estivesse
divertido com a situação toda. Como se, no fundo, estivesse tentando provar
para si mesmo que consegue.
Suspiro pesadamente, terminando a bebida. Meu coração acelerado é
o indicativo de que uma crise de ansiedade está começando. “Ótimo,
obrigado por isso”, mentalizo. Seus olhos castanhos me fitam
atenciosamente.
— Estou dizendo no caso de você mudar de ideia em relação a ela...
Nunca me importei de dividir a merenda e também não é como se eu ligasse
para ela. — Ele dá nos ombros para a expressão de censura que lhe lanço.
Jesus, o quão longe iremos? — Achei que as orquídeas bastariam. Ao menos
elas funcionam com a maioria, mas não foi bem assim. Tive que apelar para
uma pulseira de prata. A Madu é cara!
Suas palavras vêm ao meu encontro como bofetadas. Porra, ele disse
orquídeas? Fecho os olhos brevemente e tudo o que vejo no escuro de minha
mente é o maldito arranjo na casa dela logo que chegamos de viagem. Mas
que droga? O que está acontecendo aqui?
— Merda, Renato! — A risada escapa de meus lábios, enquanto passo
a mão nos cabelos. — Poupe-me desses detalhes!

O avião está praticamente vazio, o que acho bom. Se eu começar a


surtar ao menos terei uma plateia menor. Quero dizer, não é como se eu fosse
mesmo surtar. Ao menos estou me esforçando para que isso não aconteça.
As circunstâncias não ajudam, porém. As palmas das minhas mãos
estão suando frio e luto contra o aperto esmagador no peito. Quanto mais eu
penso, mais neurótico fico. O maldito problema é que os pensamentos vêm
aos montes. Caralho, por que tenho que pensar tanto? Seria bem mais fácil se
a minha mente diminuísse a frequência pela metade. Sei que seria bem mais
saudável, contudo é tentador pensar nas coisas que Renato me disse.
Sua expressão ainda está vivida na memória, tão viva quanto a fúria
que incendeia no meu interior. Isso que carrego aqui dentro, comigo,
certamente preenche o constante vazio que sinto. Eu poderia fazer um bom
estrago com esse ódio que está me corroendo, Deus sabe como poderia. O
fato é que preciso me controlar, para não estragar tudo.
Faz uma semana que estou sem os remédios e imagino que o começo
seja a pior parte. Se conseguir me controlar agora, sei que nunca mais
precisarei voltar para eles. De toda forma, fica difícil me concentrar tendo em
vista que a minha mente não está ajudando em nada.
Estou irrequieto, imaginando aquele sorriso irritante em seu rosto,
enquanto passa as mãos nela... A pior parte é que me lembro dela jogando
comigo. Não uma, mas várias vezes. Tentou fazer ciúmes com esse babaca e
por mais que eu soubesse que era proposital, é simplesmente inevitável não
me abalar. Por que ela tem que foder com o meu autocontrole?
Meus dedos passam pelo visor do celular e subitamente me lembro de
sua mensagem. Fiquei tão estarrecido com as coisas que ouvi que me esqueci
completamente de lhe dar uma resposta. Mas é certo que vou até a sua casa.
Certo como dois mais dois são quatro e certo como o fato de que não serei
feito de idiota.
Não por ela. Não depois de tanto tempo até conseguir me abrir com
alguém novamente. Isso está longe de ser justo. Que merda, por que tenho
que ser tão fodido? Por que não existe uma trégua?
Tão logo o avião pousa, pergunto-me como é possível que uma
viagem de meia hora tenha parecido durar uma semana inteira. Meus
pensamentos estão absurdamente insanos e ligeiros, é até difícil acompanhar
a velocidade com que mudo o foco deles. Os dedos em minhas mãos
começaram a tremer e presumo que isso seja um mau sinal.
Bem, eu preciso me controlar em primeiro lugar. Como um advogado,
eu bem sei que Madu tem o seu direito de defesa. Contudo é bom que ela
saiba que eu sou não fácil de impressionar. Não. Longe disso.
Durante o interminável trajeto até a sua casa, meus dedos batucam
violentamente no volante do carro. Merda, não me fez bem passar todas essas
horas remoendo o assunto. Eu devia ter trocado o voo para mais cedo e ter
acabado logo com isso.
Como pode que a minha cabeça seja o meu pior inimigo, quando não
deveria ser? Quero dizer, estou longe de conseguir pensar com clareza. Não
quero tomar nenhuma atitude precipitada, mas sei que isso vai exigir um
controle sobre-humano, é isso que me preocupa.
Estaciono o carro em frente ao prédio de Madu e imagino Renato
fazendo o mesmo. Isso é sério? Não, não pode ser. Ela não seria idiota. Bem,
não sei, mas ao menos quero acreditar que não.
Saco o celular do bolso e disco impaciente o número dela. Chama
algumas vezes antes que eu ouça sua voz ansiosa do outro lado.
— Até que enfim! — consigo captar o alívio no seu tom de voz. — Já
estava começando a procurar a notícia de algum avião caído!
Deixo-me rir com ela. Essa é a Madu que conheço e me apaixonei.
Seria possível estar enganado? Suspiro cansado, saindo do carro.
— Estou aqui embaixo — digo, lutando para não transparecer em
minha voz que há algo errado.
— Ahn? — ela pergunta, levando um tempo até entender. — Oh, sim.
Vou avisar o porteiro para te deixar subir.
Empurro a porta de vidro, deparando-me com um japonês franzino
com uma expressão entediada no rosto. Ele acena com a cabeça em minha
direção e passo ao seu lado.
Sigo até o elevador e uma nova onda de nervoso me toma. Isso tudo é
uma droga. Odeio me sentir assim, é quase como se não pudesse dizer pelas
minhas emoções. Talvez eu realmente não possa, mas quem se importa?
Agora que Renato já conseguiu me tirar do sério, é tarde para tentar voltar
atrás.
A porta metálica é aberta e do outro lado têm um par de olhos azul-
esverdeados me esperando. Madu está com um sorriso largo no rosto que
seria suficiente para me desarmar, mas não hoje.
Ela se inclina em minha direção, ficando na ponta dos pés para me
beijar. Fecho os olhos ao sentir seus lábios tocarem os meus e é irônico que
ela consiga fazer com que eu me sinta no céu e no inferno ao mesmo tempo.
Isso tudo é por ela, no fim das contas.
— Como foi o seu dia? — ela me pergunta, parecendo constrangida
com o silêncio entre nós.
— Estressante — digo honestamente. Deus sabe que foi. — E o seu?
— Chato — seu sorriso vem ao mesmo tempo em que as bochechas
coram suavemente. Sei que ela está para dizer algo, é essa a expressão que
mais adoro. — Ninguém para engolir com os olhos...
— Hm, então é isso que você faz? — pergunto, apalpando a sua
bunda no momento em que ela passa em minha frente para dentro de seu
apartamento.
Como ela consegue me acalmar com tão pouco? Ela nem ao menos
está se esforçando e já estou melhor no que nas últimas horas.
Basta que meus olhos recaiam sobre o arranjo vermelho-vivo sobre a
mesa para que a raiva me acerte em cheio, no entanto. Por um segundo, vejo
tantas coisas de uma vez que meus dedos voltam a tremer. O sorriso
debochado no rosto de Renato. Madu conversando com ele na cobertura, os
dois tão próximos um do outro. O vaso de flores na sala assim que voltamos
de viagem. Ele a beijando no rosto quando isso estava longe de ser
conveniente.
Puta que pariu, por que inferno ela está cuidando dessas flores? Qual
o problema dela? A minha visão escureceu de novo, enquanto luto para
respirar. Foda-se, se isso é mesmo um jogo, vamos ver quem aguenta mais
tempo.
Tribunal
Observo um Felipe silencioso adentrar o meu lar e meus olhos
instintivamente vão até as flores com as quais ele parece absorto. Droga, se
ele tivesse me avisado antes que viria, eu poderia ao menos tê-las colocado
na sacada. Assim evitaria esse clima pesado que se formou entre nós,
exatamente como na primeira vez em que viu o arranjo.
Eu sei que Renato foi inconveniente com toda a sua insistência, mas
estou feliz por ele finalmente ter entendido o meu lado. Jogar esse presente
fora não me parece justo. São bonitas flores, além do mais, eu jamais tive
nada com ele.
Felipe está com uma expressão estranha ao se sentar no sofá. Ele
cruza as mãos e apoia os cotovelos sobre os joelhos, ficando curvado para
frente. É engraçado como, apesar de encontrar-se aqui em casa comigo,
aparenta estar estranhamente longe. Parece que voltamos algumas casas...
Cadê o Felipe carinhoso que me deixou aqui ontem à noite depois de um final
de semana inteiro juntos?
— Quer tomar um vinho? — pergunto, na tentativa de distraí-lo desta
nuvem negra na qual se encontra, por algum motivo que ainda desconheço,
mas espero honestamente descobrir. — É ótimo para esquentar nesse
friozinho.
— Conheço métodos melhores! — seu sorriso é tímido e quase a
contragosto, no entanto me sinto bem por isso. Ao menos é um pequeno
passo. Espero que ele ceda e me conte porque está tão sério.
Ouço a minha própria risada ressoar pelo apartamento. É
estranhamente prazeroso tê-lo aqui comigo. Gosto de sua casa, mas aqui me
sinto menos vulnerável. Sua mansão imponente é um pouco assustadora
quando não se está acostumado com tanto luxo e esse é definitivamente o
meu caso.
Meu riso parece ter trazido um brilho a mais em seus olhos azuis.
Noto que seus ombros relaxaram e ele se endireita no sofá, recostando a
coluna confortavelmente. Ainda assim, não está em seu estado natural.
— Aceito o vinho — diz por fim e sua entonação é séria.
— Bem, preciso dizer que não é um vinho caro, se é isso que está
pensando — dou nos ombros, sentindo as bochechas queimarem.
— Um vinho não precisa ser caro para que seja bom — ele sorri torto
e me derrete por dentro.
Não sei o que está se passando, mas estou feliz por ele, aos poucos,
caminhar para a luz.
— Eu não sei os critérios de um bom vinho — confesso, cruzando os
braços. — No caso, o meu único critério foi que esse era o mais barato do
mercado.
Finalmente consigo uma risada deste homem complicado. Minha
nossa, já estava começando a ficar tensa com toda essa rigidez dele. Acho
que, no fim das contas, deve ter tido um dia cheio. Viajou cedo e voltou no
último voo. Não sei se estaria muito diferente disso caso tivesse ido junto.
Provavelmente está apenas cansado.
Suas mãos grandes vão até o rosto, esfregando-o algumas vezes.
Ouço-o soltar um pesado suspiro, tudo o que quero é eliminar essa barreira
que ele criou entre nós dois. Sei que basta que eu esteja no seu colo para essa
carranca ir embora. Céus, estou virando uma pervertida! A culpa é toda dele!
No momento em que me viro em direção a cozinha, sou pega de
surpresa por sua voz, no entanto.
— Quem te deu essas flores? — Seu tom direto faz com que,
instantaneamente, um nó se forme em minha garganta.
— Perdão? — indago, girando os calcanhares para ficar de frente para
ele novamente.
Felipe está com o punho fechado em frente à boca e seus olhos estão
terrivelmente penetrantes, de forma a me deixarem desconcertada. Por que
isso agora?
— Ouviu a minha pergunta — sua voz paira cortante sobre nossas
cabeças, criando um silêncio terrível na sala minúscula.
“Oh, alguém está irritado!”
— A minha amiga Vanessa! — ouço-me dizer, antes que possa pensar
a respeito. Caramba, por que fui mentir justo agora?
Sinto que essa foi uma decisão burra. Ok, realmente burra. Contudo,
ele está diferente. Quero dizer, normalmente é sempre educado, carinhoso e
até mesmo brincalhão, no seu jeito sério. A única vez em que o vi diferente
foi o dia em que o peguei chorando na sua academia particular e mesmo esse
dia era mais agradável do que agora.
A intensidade com a qual me fita faz com que eu perca a força das
pernas. Por um momento, fico desconfortável com a sua presença. Foi uma
boa ideia tê-lo convidado para vir aqui essa noite?
Tão logo minhas palavras o alcançam, noto uma de suas sobrancelhas
arquearem brevemente. Intrigado. Ele parece intrigado com a resposta.
“Parabéns, Madu”, penso, sentindo que, de alguma forma, isso vai longe.
— Sua amiga te deu flores? — O tom é o mesmo que o vejo usar com
os seus clientes. Ótimo, estamos retrocedendo um pouco mais a cada
segundo.
— Eu fiquei uma semana fora — cruzo os braços, escorando-me
contra a parede. Um calor incômodo começou a subir pelas pernas. — Acho
que ela quis ser gentil.
— Certo — ele murmura e noto que aparenta estar decepcionado com
a resposta. Sua mão direita vai até a nuca, coçando-a. Seus olhos vagam para
muito longe do apartamento.
— Engraçada a escolha dela... — sua voz é pouco mais alta que um
sussurro. — Orquídeas são flores ligadas à sexualidade e fertilidade. As
vermelhas, sobretudo. Além do mais, costumam não ser tão baratas... Uma
acadêmica presenteando sua amiga com flores por uma semana fora... Ela
deve gostar mesmo de você!
“Merda, merda, merda!” Ele sabe que estou mentindo, sei que sabe.
A acusação está gritante na forma como disse essas palavras e também no
modo como me encara. O que vou fazer? Santo Deus, isso não pode estar
acontecendo.
Sinto as orelhas queimarem ao mesmo tempo em que o desespero me
toma. Estou com vontade de chorar, muita vontade. Acho que dessa vez não
vou conseguir segurar o choro por muito tempo.
Felipe cruza as mãos sobre os lábios, assentindo com a cabeça
enquanto estuda as minhas reações. Encontro-me completamente exposta e
envergonhada. Sei que tenho que contar a verdade para ele, mas é humilhante
admitir que estava mentindo na cara dura. Inferno, acho que vou chorar a
qualquer momento!
— Eu vou perguntar só mais uma vez e realmente espero que seja
honesta. — Sua voz é firme e diferente do usual. Caramba, é esse o tom que
ele usa no tribunal? — Quem te deu essas flores, Madu?
O tom frio com o qual pronuncia o apelido é o suficiente para me
derreter em lágrimas. Eu sabia que uma hora ou outra ele viria a descobrir
que sou uma chorona, contudo não deixa de ser péssimo que eu chore nos
momentos em que mais preciso me manter séria. Isso só piora tudo para mim.
Tenho certeza de que vai ser mais difícil explicar as coisas agora.
— Foi o Renato — confesso, sem conseguir encará-lo.
Ele acena com a cabeça mais uma vez, um sorriso incrédulo tomando
os bonitos lábios. Raiva toma suas feições que tanto adoro. “Muito bem,
Madu! Você estragou tudo!”
— Claro que foi — ele respira fundo, e percebo que está divertido
com a situação. — O que mais ganhou dele?
— Uma pulseira de prata — murmuro, contra a vontade.
A tensão entre nós poderia facilmente ser cortada com uma faca.
Meus olhos estão fixos nos meus pés descalços. Eles realmente parecem mais
interessantes do que enfrentar a fúria por trás daquela imensidão azul que são
as íris de Felipe.
Quero explicar o meu lado. Sei que não fiz certo em mentir. No
entanto, a única razão para não me importar em contar foi por achar que
podia lidar com isso. Parecia insignificante. Além do mais, tirando o fato de
eu ter mentido, estou com a consciência limpa.
— Vamos lá, não vai se defender? — Sua voz me busca da
profundeza dos meus pensamentos. — Tem algum motivo além de estar me
fazendo de idiota?
Nossa. Isso foi mais dolorido que um tapa! Esse é um lado dele que
eu não queria conhecer. Ainda mais nessas circunstâncias.
— Não estou fazendo ninguém de idiota! — suspiro, finalmente
criando coragem para encontrar o seu olhar. — Renato está atrás de mim
desde que fomos para São Paulo. Ele realmente não sabe levar um não. Não
quis comentar nada com você, porque achei que podia lidar com isso sozinha
— passo as mãos pelos cabelos, tirando-os do rosto, ao que as lágrimas
começam a cessar.
Sua expressão ao menos está mais suave do que segundos atrás. Ele
demonstra estar considerando o que estou lhe contando. Isso é alguma coisa.
Aproveito o momento e decido seguir em frente. Errei feio em omitir essas
informações, assim como em mentir sobre a sua pergunta. O que posso fazer
de melhor no momento é contar a verdade e torcer para que ele trabalhe com
isso da melhor forma que puder.
— O dia... Aquele dia em que fiquei na piscina ele apareceu no hotel
e começou suas investidas — digo, sentindo um peso além da conta nos
ombros. — Depois mandou esses presentes e até mesmo veio aqui. Eu fiquei
assustada no começo, principalmente por Renato saber o meu endereço, por
isso achei que era melhor conversar com ele de uma vez por todas e
esclarecer que não queria nada. Eu até mesmo tentei devolver a pulseira, mas
ele deixou aqui depois de me beij...
Ao perceber o que estou dizendo, tento encerrar a frase, mas já é
tarde. Os olhos de Felipe estão em chamas. “Minha mãe, eu preciso calar a
boca. Só estou piorando tudo”.
Ele levanta de uma vez e noto que suas bochechas estão vermelhas
como um pimentão. Mais uma vez, seu punho fechado vai em frente à boca e
suas sobrancelhas estão unidas.
— O quê?
— Ele me beijou, lá no hall de entrada, Felipe — digo por fim,
entregando os pontos. Já era. Eu consegui foder com tudo.
Felipe sustenta o olhar por mais tempo do que eu gostaria. Pai amado,
ele sabe ser intimidante mesmo sem dizer palavra alguma. É realmente
assustador. Jamais conseguiria imaginar esse lado dele. Quero dizer, é tão
sério e rígido que faz com que eu me sinta pior do que mereço.
Sei que não devia ter começado mentindo, em primeiro lugar.
Realmente sei disso e ainda não entendo porque fiz. É só que estava com
medo de estragar as coisas entre nós dois. O que temos vivido é além do que
idealizei um dia. Eu não imaginava ser possível que uma pessoa pudesse
mexer dessa forma comigo, em tantos aspectos. Ele consegue, no entanto. O
que Felipe provoca em mim é uma explosão de sentimentos e sensações
turbulentas demais, mas completamente viciantes.
O meu único medo era arruinar isso. Ele é muito mais do que esperei
que fosse. Quero dizer, vai além do rosto bonito e corpo escultural. É uma
pessoa incrível por quem estou perdidamente apaixonada. Na verdade, não só
apaixonada. Eu o amo. Amo de um jeito descompassado e a última coisa que
precisava neste momento era quebrar o ritmo entre nós dois.
Desde o começo das investidas de Renato, senti que ele traria dor de
cabeça. Porém, jamais imaginei que fosse tão baixo. Afinal de contas, que
tipo de pessoa faz isso? O que ele estava pensando ao contar essas coisas para
Felipe? De repente, um medo me toma de supetão. O que ele andou dizendo?
Sinto que não somente a verdade.
Quanto mais reflito, menos consigo entender. Renato é um homem
poderoso, bonito, maduro... Ao menos era o que eu esperava que fosse. Esse
comportamento não condiz com um homem de sua idade. Eu não posso
acreditar que ele fez isso puramente por vingança, ou seja lá o que quer que
passou em sua cabeça.
Meu estômago revira em náuseas ao refletir sobre suas aproximações.
Se no começo me pareceu galanteador, agora tudo o que me parece é um
perseguidor ridículo, incapaz de aceitar um não. Argh, se arrependimento
matasse! Eu jamais deveria ter dado alguma brecha sequer. Entretanto, como
eu poderia imaginar isso, de toda forma?
Sei que devia ter contado para o Felipe. Em compensação, sei disso
apenas agora que o estrago já foi feito. Tudo o que consegui pensar antes era
que não queria criar um clima estranho entre os dois, por minha causa. Não
desde que Renato significava tanto para ele. Eu bem sei que a PoliBev é um
conglomerado e tanto, também sei o que isso representa para a carreira de
Felipe, a qual ele vem construindo com tanto empenho e dedicação.
Então o que mais eu podia fazer? Não é culpa minha que Renato seja
incisivo e tente impor sua vontade a todo custo. Sei que isso que ele fez foi
uma forma de me punir e me mostrar que não vai sair perdendo. Espero que
ele esteja bem com isso, porque neste momento eu o odeio com todas as
forças.
Agora, a única coisa que me corrói de culpa é ter mentido. Ainda que
tenha contornado a situação, não é como se tivesse feito isso por conta
própria. Fui forçada a dizer a verdade ao me ver sem saída. Sinto que Felipe
sabe que eu teria sustentado a mentira caso ele não tivesse insistido. Isso me
machuca. Estou com raiva de mim mesma por ter me colocado sozinha nessa.
Caramba, logo agora, depois de termos o melhor final de semana que eu já
experimentei em anos. Por que as coisas têm de ser tão complicadas? Por que
eu tive que estragar tudo?
O silêncio no apartamento é desesperador. Acho que poderíamos
ouvir uma agulha caindo no chão facilmente. Isso me irrita de diversas
formas imagináveis. Essa noite estava longe de ser assim nos meus planos.
Poderíamos estar aquecidos do vinho, aninhados um no outro neste momento.
Não era para ser essa expressão desapontada nos seus traços perfeitos,
mas sim o sorriso safado que tanto adoro. Droga, não me conformo que isso
esteja mesmo acontecendo.
— Eu nunca quis isso... — sussurro, com desânimo. — Não mesmo.
— Não é o que me lembro. Você parecia animada com a perspectiva
de sair com ele, em São Paulo — observo-o encolher os ombros, colocando
as mãos nos bolsos em seguida.
Está tão bonito, mesmo agora com as bochechas vermelhas de raiva.
Adoro quando ele afrouxa a gravata e sobe as mangas da camisa. É uma
combinação perfeita de sério e despojado. E céus, como é sexy. Estou triste
por não poder tê-lo para mim da forma como gostaria que houvesse sido essa
noite.
— Eu sei! — grasno. — Sei que as evidências estão contra mim. Mas
não tenho motivos para mentir, Felipe! Eu só não queria que as coisas
ficassem confusas. Sei o quanto ele é um cliente importante para você.
— Beijou outro cara na merda do hall de entrada — ele parece estar
dizendo mais para si do que para mim, ainda que quase aos berros. — Eram
presentes que você queria? Eu poderia te dar muito mais, se esse era o
problema!
Suas palavras vêm como bofetadas contra mim. Uau. Isso foi
realmente cruel. Arfo em surpresa, encarando-o perplexa.
— Felipe... — murmuro, mas ele me interrompe.
— Você conseguiu me foder, Madu! Sabe o quanto estou envolvido
nessa merda toda? — Suas mãos grandes gesticulam, indicando nós dois. —
Não, você não sabe. Você é só uma menina mimada. Eu me sinto idiota por
ter achado que era diferente.
Felipe beira o descontrole, andando de um lado para o outro, em
passos curtos e impacientes. Sei que está se segurando, entretanto, para não
demonstrar como realmente está por dentro. Deve estar muito pior do que
aparenta. Conheço o seu orgulho no que diz respeito aos sentimentos.
— Isso é ridículo! — protesto, sentindo raiva incandescer pelo corpo
todo. Calma aí, eu até entendo que ele esteja chateado. Mas isso que está
acusando não tem nada a ver comigo. Eu não sou essa pessoa e sei que ele
sabe disso. — Eu não me importo com o seu dinheiro! Quando quero alguma
coisa eu trabalho para conseguir!
Uma de suas mãos vai até os cabelos, embrenhando-se neles
nervosamente. Felipe está possesso. Vejo isso nos seus olhos e na forma
como tranca o maxilar. Ouço-o soltar um suspiro pesado e a vontade de
chorar me pega de vez.
Que droga! Olha só para todo esse desastre... Como viemos parar aqui
gritando um com o outro?
— Seria bem mais fácil de acreditar se você não tivesse acabado de
mentir para mim — sua voz é carregada de ironia e isso machuca mais do que
um punhado de palavras grosseiras. — Se não tinha realmente nada para
esconder, por que não falou a verdade quando perguntei da primeira vez?
“Eu não sei”, penso tristemente. Talvez tenha ficado com medo, ou
talvez só tenha sido estúpida mesmo. Acho que a segunda opção é cabível.
Normalmente eu não sou assim, costumo ser sempre tão corajosa, sempre tão
destemida. Como pude cavar a minha própria cova?
Minha falta de resposta é terrivelmente sufocante. É quase como se
confirmasse todas as suas acusações. Vejo-o tatear os bolsos, em busca das
chaves do carro, enquanto caminha com passos decididos em direção à porta.
A visão corta o ar dos meus pulmões de uma só vez. Céus, ele está
indo embora! Assim, desse jeito? Não tem mais volta? Isso não está
acontecendo! Droga, desejei esse homem por tanto tempo e agora estou o
assistindo partir.
— O que você está fazendo? — pergunto, com mais desespero na voz
do que gostaria.
Felipe gira os calcanhares, sua expressão é devastadora. Neste
momento, a única coisa que tenho certeza é que ele me odeia. Tanto quanto
odeio Renato por ter causado isso.
— Eu já passei da idade de brincadeiras. Se você queria se divertir,
devia saber que estava com o homem errado.
— Não faz isso, por favor! — Em passos hesitantes, caminho em sua
direção. — Você tem que acreditar em mim, porque estou sendo sincera!
Estico os braços em direção ao seu rosto, segurando-o carinhosamente
entre as minhas mãos. Ao que avanço com os lábios, no entanto, ele vira o
rosto, e suas mãos vão de encontro aos meus pulsos, segurando-os com força
e os afastando.
— Não complique as coisas, Maria Eduarda.
Caralho! Ele me chamou pelo nome! Tirando o dia da entrevista, ele
jamais me chamou de nada além de Madu. Parece bobo, mas machucou
intensamente. Todo o avanço que tivemos foi por água abaixo. Felipe está de
novo no seu casulo e desta vez estou mais do que longe de conseguir penetrá-
lo.
— Agora, se você puder abrir a porta, por favor. Foi um dia longo,
preciso estar em casa.
— Oh meu Deus, Felipe! Preciso de uma chance para me redimir.
Você está sendo injusto!
Finalmente pareço ter batido no seu ponto fraco. Seus olhos faíscam
enquanto ele avança em minha direção, empurrando o seu corpo contra o meu
e levando-nos até a parede. Por um momento sinto uma nesga de esperança
assim que sua boca chega tão próxima da minha que quase a toca. O seu
perfume inebriante penetra as minhas narinas, provocando cambalhotas no
estômago.
Tão logo começa a falar, seus lábios roçam delicadamente nos meus e
seu hálito morno ricocheteia contra a minha pele sensível, arrepiando-me.
— Se você soubesse o que faz comigo... O quanto me tira do controle
e o tanto que adoro isso... — Felipe fisga os seus lábios, como que me
desafiando a tentar beijá-lo novamente. — Se você apenas sonhasse com um
terço do que carrego aqui dentro, não teria sido tão burra.
Ele solta os meus pulsos e se apoia na parede com um braço. Sua
proximidade ainda é terrivelmente convidativa. Antes que eu possa
responder, de toda forma, ele continua.
— Eu faria tudo por você, Madu. Agora não mais, no entanto.
Suas palavras são sérias e sem emoção alguma. Meu coração para
assim que o vejo se virar e caminhar novamente em direção à saída. Dessa
vez, ele não espera para que eu abra.
Com o mundo de cabeça para baixo, vejo-o sair, deixando para trás
apenas o clique da porta e o meu coração despedaçado.
No Expediente
A chuva cai torrencialmente lá fora ao mesmo tempo em que tremo
dentro do casaco de lã. Por sorte, vim trabalhar de calça hoje, tendo em vista
o fato de as minhas pernas estarem cobertas de hematomas. Pensar na noite
em que Felipe os fez deixa o meu coração apertado. Ele disse que me amava
e eu estava no céu com isso.
Agora, contudo, estou mais que frustrada. Desde que Felipe saiu de
casa na noite passada, tudo o que fiz foi chorar por horas a fio. Eu jamais
tinha chorado por um homem antes, mas obviamente ele não é como os
outros. Ainda que estejamos juntos a pouco tempo, tudo é muito intenso e
incomparável com qualquer outro sentimento que já experimentei. A
perspectiva de ter perdido a pessoa que mais me fez sentir viva é
desesperadora.
Por mais que me sinta culpada por ter mentido, acho que ele foi
severamente injusto comigo. Ele não me deu uma chance verdadeira e
preferiu acreditar no Renato. Essa é a parte que mais machuca. O pior disso
tudo é que vou ter que ficar a tarde inteira com ele, já até posso imaginar o
quão divertido será o dia. “Céus, espero que as coisas não sejam tão
difíceis!”
Entro no banheiro para conferir se a maquiagem ainda está ok.
Precisei dar uma atenção maior hoje, já que meus olhos praticamente
gritavam para o restante do mundo que andei chorando feito uma criança.
Quando estou me preparando para voltar para a minha mesa, ouço os passos
decididos de Felipe e vibro em antecipação.
É cedo para estar aqui. Quero dizer, ainda faltam alguns minutos para
o escritório abrir e ele raramente vem antes deste horário. O seu perfume
chega primeiro, fazendo-me estremecer. Droga, isso vai ser bem pior do que
previ. Seria mais fácil se Felipe fosse fácil de odiar, mas é bem o contrário,
ele é muito... impactante.
Tão logo vejo os seus olhos azuis do outro lado da sala, engulo em
seco. A forma indiferente como me olha, nunca o vi assim antes. Isso é
terrível. Não é esse homem que conheço. Longe disso, Felipe sempre foi
educado e cuidadoso, mesmo antes de nos envolvermos. O que está
acontecendo?
— Bom dia — ele diz de maneira áspera, enfiando as mãos no bolso
da calça em seguida.
Está surpreendentemente lindo hoje. Isso é realmente injusto. Estou
péssima e ele está de tirar o fôlego. É a primeira vez que o vejo vestir um
terno cáqui e, incrivelmente, cai muito bem. A gravata azul-petróleo destaca
suas íris que hoje estão enegrecidas.
— Não ouviu? — sua voz me arranca dos meus pensamentos. — Eu
disse bom dia.
Nossa. Se essa é uma prévia de como será o dia, pressinto que está
longe de ser bom. Com os olhos arregalados de surpresa, encaro-o antes de
responder:
— Bom dia, precisa de alguma coisa?
— Na verdade sim — sua voz sai quase como um sussurro. —
Lembro de ter pedido para arrumar os arquivos ontem.
— Mas eu arrumei! — digo mais alto do que gostaria, sentindo-me
indignada.
Ele estaria falando assim comigo caso não tivéssemos brigado ontem?
Sei que não. Isso é ridículo e infantil. Não combina muito com ele.
Respiro fundo, passando a mão pelos cabeços ao ver a expressão
desafiadora que me lança. Claro, ele está me testando. Aqui sou uma
profissional, e se ele diz que não arrumei os arquivos, eu me desculpo e faço
de novo.
— De toda forma, vou dar uma olhada assim que puder.
— É o que eu esperava — seus lábios se retorcem em um sorriso de
canto que teria me derretido em outra ocasião, mas hoje soa apenas cruel.
Estou sensível e nem um pouco disposta a tornar as coisas piores, por
isso só espero que ele colabore. Quero dizer, ainda que seja o chefe, não é
como se precisasse agir como um idiota. Por que, neste momento, é o que me
parece que vai fazer.
Observo-o virar as costas e entrar em sua sala, deixando-me com um
desânimo enorme. Isso é doloroso para mim. Tão doloroso que me deixa até
mesmo irritada.
Felipe está diferente e eu não consigo entender como pode ter mudado
tanto. Ainda que tenhamos brigado... era preciso tanto? Quero dizer, eu
esperava que estivesse triste, mas não bravo. Ele parece bravo, parece irritado
além da conta.
Sei que para deixar transparecer isso no trabalho, deve estar o
consumindo. Por que ele não me dá uma chance de endireitar as coisas? Sei
que cometi um erro, contudo não foi inteiramente culpa minha.
Tento afastar o pensamento da cabeça, decidindo que preciso manter
o nosso relacionamento no trabalho da melhor forma possível. Se ele está
perdendo o controle, eu não preciso necessariamente seguir a mesma linha.
Ainda posso apaziguar a situação ao menos aqui.
Alcanço na primeira gaveta as pastas dos clientes de hoje e dou uma
última conferida antes de me levantar em direção à sua sala. Diferente dos
demais dias, a porta está fechada.
Sem pensar direito, abro a porta de supetão e me deparo com a
imagem de um Felipe com o rosto escondido entre as grandes mãos. Está
apoiando os cotovelos sobre a mesa e parece tão absorto no que quer que
esteja fazendo que nem ao menos percebe a minha chegada.
Pigarreio desconfortavelmente, indicando-o que estou ali e caminho
em passos hesitantes em direção à mesa. Suas mãos descem pelo rosto,
parando em frente da boca. Sinto seus olhos em mim e instantaneamente as
minhas bochechas pegam fogo. Está olhando para as minhas pernas cobertas.
É a primeira vez que me vê de calça. Será que está recordando a noite em que
marcou a minha pele com os seus lábios?
— Você pode, por favor, bater à porta antes de entrar? — pergunta
com impaciência e constato com amargura que ele estava longe de pensar na
gente.
— Sinto muito, vim trazer as pastas... — minha voz sai tímida,
causando estranhamento em nós dois.
Eu não costumo ser assim. Desde ontem estou muito mais acuada do
que jamais fui à vida inteira. A verdade é que a minha cabeça está uma
confusão e a minha situação com o Felipe tem que ser cautelosa. Estou
pisando em ovos e bem sei disso.
— Eu não perguntei o que veio fazer, eu disse para bater à porta a
próxima vez que invadir a minha privacidade!
Recebo as suas palavras atordoada. Jesus, ele está mesmo agindo
dessa maneira? Não vou aguentar muito tempo desse jeito. Coloco as pastas
sobre a sua mesa e uso todas as forças para sair da sala sem falar nada. De
alguma maneira, sei que é o que ele quer. Está querendo me tirar do sério.
Isso me lembra um pouco do dia em que estava chorando. Em um
primeiro momento tentou me afastar sendo grosseiro. Contudo, fui tolerante o
quanto pude, porque sabia que estava sofrendo. Com isso, consegui alcançar
o Felipe que conhecia e a noite ele já estava bem.
“Será que ele está tendo uma crise agora?”, o pensamento vaga pela
cabeça no momento em que me viro para sair de sua sala. É cabível, ele parou
de tomar os remédios e acho que recordo de ter lido algo sobre irritabilidade
nos sintomas da doença, mas é difícil saber, de toda forma.
Antes que possa pensar a respeito, giro os calcanhares mais uma vez e
o encontro ainda olhando para mim. As mãos estão cruzadas sob o queixo.
Está intimidante em sua poltrona Charles Eames, tanto quanto na foto da
matéria que me mostrou enquanto estávamos viajando.
— Felipe... — murmuro, perdendo um pouco da coragem. — Está
sem tomar remédio ainda?
Noto sua sobrancelha arquear em uma fração de segundo e meu
estômago revira.
“Por favor, não seja grosso”.
“Por favor, não seja grosso”.
“Por favor, não se...”
— Minha vida pessoal não te diz respeito — ele se levanta,
caminhando até o frigobar. — Agora, pelo amor de Deus, pode trabalhar? É
para isso que está aqui, até onde sei.
— Você vai continuar me tratando assim? — disparo, sem conseguir
me conter.
Felipe se inclina para alcançar uma água, no entanto para no meio do
caminho. Suas sobrancelhas se unem ao que ele me encara.
— Como estou te tratando? — pergunta com o seu tom cuidadoso que
estou habituada e, por um momento, fico desnorteada.
Ignoro a sua pergunta, andando para mais perto de onde se encontra.
A minha cabeça está uma loucura, a minha vontade é de chorar como fiz a
madrugada inteira. Uso toda a força que me resta para me segurar. Não vou
fazer isso aqui, seria humilhante e não posso dar esse gostinho para ele. Está
me chateando de propósito.
— Você não é assim... — suspiro e de repente um cansaço enorme
toma conta de mim. — Está misturando as coisas, isso não está certo.
— Ah, você quer falar sobre o que não está certo? — Sua voz tem um
tom irônico doloroso. Ele não vai colaborar, posso sentir que não. Está
possesso. — A única coisa que não está certa aqui é o fato de você não estar
na maldita mesa que trabalha, parando de me encher o saco! — Ele cospe as
palavras para mim.
— Você está descontrolado! — suspiro, desejando que ele me dê
ouvidos.
O meu coração está dando nós por vê-lo dessa forma. Não entendo
exatamente o que está acontecendo, mas juro que esse não é ele. Não o
homem por quem me apaixonei.
— É sério, não está pensando com clareza — concluo, ao constatar
que ele não vai me dar uma resposta.
— Eu quero que saia — ele diz simplesmente, voltando até a sua
mesa com a água em uma das mãos.
Desapontamento me domina de uma vez só. Ainda que não queira
chorar, sinto as lágrimas começarem a escorrer mornas pelas bochechas.
Droga, sinto-me patética por isso. Esse é o menor dos problemas, porém.
— Agora — Felipe diz, com os olhos vidrados.
— Não — devolvo, perdendo o juízo. Sei que não estou em posição
para confrontá-lo, mas realmente não me importo. Tomei uma decisão e não
costumo voltar atrás nas coisas que decido. — Não até você conversar
comigo sem ser um idiota.
— Sempre teimosa — ele murmura, aparentando estar tão cansado
como eu. Acho que também não dormiu esta noite, agora que noto as olheiras
arroxeadas que contornam seus olhos.
— Você não está bem! Parou de tomar os remédios e agora está
surtando! Precisa me ouvir!
— Temos um cliente marcado para daqui vinte minutos e você está
mesmo insistindo nisso agora?
Meus pés me levam ainda mais perto da mesa grandiosa de Felipe. Se
ele soubesse o quanto estou irritada, iria pensar duas vezes antes de continuar
me destratando. Meu coração está acelerado e as mãos estão suando frio,
porém o resto do mundo parece ter parado de existir. Somos só nós dois nessa
sala que, de repente, ficou pequena demais.
— Estou preocupada com você! Diz para mim o que está
acontecendo?
Observo seus olhos fecharem ao passo em que suspira pesadamente.
Suas mãos se cruzam sobre a mesa enquanto ele volta a me encarar, com a
mesma postura impenetrável que usa com os clientes. Ótimo. Então vai ser
mesmo assim.
— O que está acontecendo é que além de mimada você é
inconveniente e está me tirando do sério. Não estou aqui por brincadeira, não
foi assim que conquistei o que tenho hoje e não terei problemas em te mandar
embora se continuar sendo incoerente com o ambiente de trabalho.
— Oh, não se preocupe com isso — grasno, sentindo as lágrimas
aumentarem a intensidade. — Eu saio por conta própria. Quero a minha
demissão!
Os olhos azuis de frente para mim se estreitam, ao passo que os meus
captam o movimento que ele faz com a boca ao fisgar os lábios e me controlo
para não continuar falando e falando desenfreadamente, como gostaria de
fazer. O clima que permeia na sala é pesado, tornando o ar rarefeito.
— Você quer sua demissão? — Felipe repete, com um tom que beira
o divertimento. “Ele não está acreditando em mim”, constato amargurada. É
incrível o como eu levo a fama de ser teimosa quando, na verdade, ele é
igualmente, se não mais.
— Foi isso que eu disse, não é? — devolvo, pagando na mesma
moeda.
Com as mangas da blusa de lã, limpo as lágrimas que insistem em
rolar pelas bochechas. Que droga de dia! Está chovendo, estamos brigados,
estou deliberadamente pedindo demissão... Não acho que tenha como piorar,
na verdade.
Capto uma nesga de dúvida em suas feições, fazendo-me ponderar se
essa informação o deixa, de alguma forma, amedrontado com a situação. Será
que ele vê, assim como eu, que uma vez que eu tenha saído daqui, nada mais
nos mantém unidos? Quero dizer, pertencemos a realidades bem diferentes.
Não é como se fôssemos nos esbarrar por aí o tempo todo.
Suspiro ao perceber que o deixei sem palavras. Aproveito o momento
para externar a decisão que acabei de tomar.
— Não vou cumprir o aviso, também. Hoje é o meu último dia!
Minhas palavras o acertam com violência. Sei disso pela surpresa que
vejo em seus traços perfeitos. “Oh, parece que finalmente consegui te
desarmar, não é?”
Felipe dá uma rápida espiada no relógio preso em seu pulso,
provavelmente conferindo quanto tempo ainda temos antes de o próximo
cliente estar aqui. Ao que volta a me encarar, noto que seus olhos estão
novamente obscurecidos.
Por um segundo, acreditei que a sua raiva tinha passado, mas agora
percebo que as palavras reacenderam toda a sua ira em relação a mim.
Ao contrário do que imagino, no entanto, ele não me lança palavras
grosseiras como veio fazendo desde que esta chuvosa manhã começou.
Limita-se a dar nos ombros, com uma expressão de quem não dá a mínima.
— Como quiser — seu tom é suave, apesar de tudo.
Neste exato momento, Felipe aparenta ser anos mais velho. Está
cansado e vejo isso. É engraçado pensar que passou a noite inteira acordado,
tal como eu. É estranho que esteja sofrendo quando eu também estou. No fim
das contas, seguimos sofrendo e piorando a situação.
Eu bem poderia pedir desculpas. Isso era antes de hoje. Ainda que eu
tenha errado e ele tenha motivos para estar bravo comigo, estou com o
orgulho ferido. Achei que pudéssemos resolver isso o quanto antes, mas vejo
que Felipe está levando a sério o seu desapontamento.
Para ser honesta, realmente entendo o seu lado. Fico me perguntando
se a situação fosse inversa. Eu gostaria que ele estivesse ganhando presentes
de outra mulher? Gostaria de saber que ele a beijou? Ficaria feliz se
descobrisse isso de fora e não por ele? Minha nossa, é claro que não! Eu
possivelmente nem teria dado chance para ele confirmar nada. Quanto mais
se tivesse mentido como eu fiz!
Assim que ouço passos do lado de fora de sua sala, percebo que a
nossa conversa chegou ao fim. Felipe balança a cabeça em negativa,
demonstrando estar perplexo com a situação como um todo. Levanta-se de
supetão e, ao passar por mim, sussurra perto da minha orelha:
— Não pode sair com esse rosto. Vá lá para cima e lave-o, depois
você pode voltar.
Assinto com a cabeça e uso a saída de sua sala que leva ao restante da
casa. Ele tem razão, não posso atender alguém chorando sem parar. Entro
pelos aposentos que agora me parecem tão familiares, sentindo uma pontada
no coração. Essa é mesmo a última vez que percorro esse caminho?
Torço para não encontrar Leonor pelos cômodos, ao menos nisso
tenho sorte. Sem pensar exatamente no que estou fazendo, decido que quero
usar o banheiro da suíte de Felipe, muito embora sua casa tenha pelo menos
meia dúzia deles.
Tão logo entro na imensidão que é o seu esconderijo secreto, a minha
vontade de chorar se torna ainda maior. As lembranças do final de semana
incrível que tivemos ainda continuavam vívidas na mente... Não estou
preparada para isso. Realmente não.
Deixo os dedos passarem pelo edredom macio de sua cama e antes
que perceba, estou chorando como uma louca. Odeio a forma como estou
sensível, mas odeio ainda mais ter que lidar com esse término. Logo agora
que as coisas estavam bem. Eu só queria voltar atrás e fazer diferente. Ele não
me dá a oportunidade que preciso e eu nem ao menos sei o que devo fazer.
Sento-me da beirada da cama, refletindo sobre os acontecimentos
recentes. Além de tudo, ficarei desempregada. Esse emprego representava
muito para mim. Tudo bem que estava longe de ser a minha área, contudo
oferecia conforto e condizia com a minha rotina, assim como o que eu
precisava.
O nó na garganta não vai embora nunca, enquanto reflito que estou
realmente ferrada. Irei encontrar outra oportunidade como essa? Talvez não
até me formar. A parte boa é que graças ao dinheiro da viagem, terei tempo
de procurar alguma coisa com calma.
Pensar no dinheiro da viagem embrulha o meu estômago. Ainda acho
que não é certo, mas conheço Felipe bem o suficiente para saber que não vai
voltar atrás em relação a isso. Por mais irritado que esteja comigo.
Tombo o corpo para o lado, deitando encolhida em sua cama
confortável. Abraço os joelhos e deixo as lágrimas escorrerem pelos meus
olhos sem culpa. A melhor forma de fazer a dor passar é colocando para fora.
Sei que tenho um tempo considerável até o cliente de Felipe ir embora. Até
lá, imagino que não vá sentir a minha falta. Hoje é mesmo o último dia, por
isso não é como se importasse eu estar lá em baixo ou em qualquer outro
lugar.
De alguma forma, essas cobertas estão infestadas com o perfume
intenso de Felipe. Inspiro profundamente, revirando os olhos ao sentir a
fragrância. Tento memorizá-la, com saudades precoces. Embalada no cheiro
que tanto gosto, acabo adormecendo depois de uma noite inteira em branco.
A primeira coisa que percebo ao abrir os olhos é que anoiteceu. Pisco
algumas vezes, tentando me situar e lembrar como vim parar aqui. Santo
Deus, quantas horas estive apagada?
Com um impulso, levanto-me da cama e me espreguiço, reparando
que a chuva finalmente cessou. Ainda era de manhã quando subi ao quarto de
Felipe. Por que ele não me acordou, no fim das contas?
Caminho até o banheiro e lavo o rosto, varrendo a sonolência para
longe. Encontro-me imersa em uma sensação estranha, um vazio enorme...
Meu último dia de trabalho passou e eu nem ao menos vi. Isso é injusto! Se
esse é mesmo o último dia que vou vê-lo, então eu nem aproveitei. Mesmo
que ele estivesse sendo um idiota.
Por algum motivo, imagino que Felipe deva estar em sua academia
particular e, por isso, decido que esse será o meu destino. Meu sexto-sentido
nunca costuma falhar e isso me poupa tempo procurando nesta casa gigante.
Assim como previ, ele está lá. Encontro-o deitado em um banco,
fazendo supino. O movimento que faz com a barra e a forma como os seus
músculos estão inchados é de tirar o fôlego. Nunca o tinha visto praticando
exercícios antes e a visão é de encher os olhos.
Entro em passos silenciosos, não permitindo que ele perceba a minha
chegada. Meus olhos demoram-se nos seus braços fortes, cuja manga da
camisa fica justa a ponto de quase romper.
Recosto a cabeça contra a parede, meu único desejo é poder resolver
as coisas. Já sinto a sua falta. Quero o seu toque protetor, quero seus lábios
nos meus... Quero-o comigo, desesperadamente.
Como que lendo os meus pensamentos, Felipe abre os olhos,
flagrando-me pelo imenso espelho em sua frente. Encaixa, então, a barra no
suporte e se senta, com a respiração agitada.
— Não sabia que estava aqui — ele murmura, sem jeito. Uma de suas
mãos vai até a nuca, coçando-a desajeitadamente.
— Acabei de chegar... — sussurro, tentando avaliar o estado de seu
humor. — Por que me deixou dormir todas essas horas?
— Parecia cansada — ele inclina ligeiramente a cabeça para o lado. A
expressão em seu rosto é de carência, que eu tanto amo. Como se pedisse
silenciosamente por colo. Droga, isso torna tudo mais difícil.
— Eu estava — admito, sentando em um dos equipamentos. — Mas
hoje era o meu último dia, eu podia ter organizado sua agenda, ou algo assim.
Felipe abaixa os olhos, mirando em direção aos sapatos. Ouço-o
respirar fundo, ao passo em que esfrega o rosto algumas vezes.
— Você tem certeza que quer isso? — pergunta e sua voz é triste.
Não tive muito tempo para pensar, desde que dormi a tarde inteira
quando deveria estar trabalhando. A verdade é que talvez seja realmente
melhor. Não é saudável misturar as coisas. Sei que mesmo que ele não volte a
me tratar com grosseria, cedo ou tarde vou acabar enlouquecendo tendo que
trabalhar com ele e sabendo que não teremos mais nada. Imagine só marcar
algum compromisso em sua agenda com outra mulher... Caramba, não! Não
consigo nem imaginar.
— Acho que é o melhor a se fazer...
— Tudo bem — sua voz é séria, ainda que o tom seja ameno. — Vou
passar para o escritório amanhã cedo.
— Ok — sussurro, o nó na garganta é tão grande que quase me
sufoca.
— Se não se importar em me esperar tomar banho, eu te levo até a sua
casa. Já está tarde para ir sozinha — Felipe diz, erguendo-se do banco.
Adoro vê-lo usando calças de moletom. Contrastam com a visão séria
que já tenho dele, e o deixam igualmente sexy.
— Não precisa se incomodar! — digo, distraída em meus
pensamentos.
— Não é incomodo — ele dá nos ombros, seguindo para dentro de
sua casa.
Sem pensar duas vezes, sigo os seus passos, mas, ao invés de
acompanha-lo até o quarto, contento-me em esperar na sala. Tenho que me
acostumar a não tê-lo mais por perto de toda forma.
Uma Visita
O frio é tão intenso que me sinto como se estivesse dentro de uma
geladeira gigante. Nada contribui com o meu péssimo humor, exceto a
mensagem que recebi de Vanessa a poucos minutos, dizendo que estava
vindo aqui me visitar. Segundo ela, hoje será o meu ultimato para seguir em
frente. Também pudera, já faz duas semanas desde que vi Felipe pela última
vez. O encontro só se deu pelo fato de eu estar me desligando da empresa.
Fui até a sua casa, assinei um punhado de papéis e então, com um sorriso
amarelo, rumei pelo caminho de volta, segurando as lágrimas até chegar no
meu apartamento.
A pior parte de tudo, é que dentro de mim sempre existiu uma nesga
de esperança em relação a nós dois. Quero dizer, mesmo que Felipe estivesse
furioso e provocativo, eu realmente acreditei que passado um momento de
fúria ele acabaria tentando se reaproximar de mim.
No entanto, quanto mais os dias passavam, menos fazia sentido para
mim do porquê eu acreditei nisso. Ele disse que me amava, mas que tipo de
amor podia ser esse, já que estava conseguindo me esquecer com tanta
facilidade?
No momento em que a ficha finalmente caiu e percebi que tudo tinha
de fato terminado, foi um baque. Desde então, tudo o que tenho feito é andar
de pijamas o dia todo, comendo brigadeiro e assistindo comédias românticas
com finais felizes. É mais fácil acreditar que pelo menos para algumas
pessoas as coisas dão certo.
Não vou dizer também que, vez ou outra, não derrame algumas
lágrimas ao me lembrar dos nossos momentos juntos. Às vezes me pego
revivendo alguma situação e, antes que perceba, estou encolhida no sofá,
tentando entender como que em tão pouco tempo Felipe conseguiu criar
raízes tão profundas em mim.
Tão logo a campainha toca, levanto-me do sofá em um pulo, com o
coração batucando violentamente contra o peito. Meus olhos estudam o
apartamento e sinto uma onda de culpa ao me dar conta da grossa camada de
pó que reveste os móveis. Tenho estado abandonada, isso é verdade. Talvez a
visita de Vanessa seja uma boa ideia, sendo ela tão espontânea e alegre como
é.
— Céus, Madu, você está horrível! — é a primeira coisa que me diz
assim que me afasto a porta.
Abro os braços, esperando que os seus me envolvam. O contato é
acolhedor e, diferente de mim, Vanessa está estonteante como sempre. Seu
perfume suave penetra as minhas narinas, lembrando-me de que preciso lavar
o cabelo. Deve estar com um aspecto apavorante... Droga, estou mesmo uma
bagunça. Isso é péssimo.
— Quem te vê nesse estado acha que você acabou de se divorciar
depois de, sei lá, cinquenta anos casada — sua voz ressoa alegremente
enquanto caminha para dentro do apartamento.
Não é como se eu tivesse em posição de negar, de toda forma. Não
mesmo. Sei que estou deplorável, sei também que para alguém de fora pode
parecer insano isso mexer tanto comigo. Entretanto, tudo o que Felipe me
provoca, ou a forma como consegue me deixar alucinada com tão pouco... sei
que nosso relacionamento foi intenso o bastante para justificar o meu
sofrimento. Mereço isso, ao menos. Já que estraguei tudo, nada é mais justo
que apreciar a dor até que ela não exista mais.
— É assim que me sinto — admito, jogando-me contra o sofá.
— Eu sei amiga, mas não adianta nada ficar na fossa o resto da vida.
Vamos lá, essa não é a Madu que eu conheço!
Observo-a abrir as janelas, deixando uma corrente de ar congelante
circular pelo meu lar. Estremeço por alguns momentos e contenho o impulso
de fechá-las novamente. Sei que é exatamente um empurrãozinho que estou
precisando. Ela tem razão, não posso chorar o leite derramado para sempre.
Além de que já está ficando patético. Preciso mesmo seguir em frente.
Respiro o ar puro, abraçando os joelhos. Tenho sorte por ter Vanessa,
no fim das contas. Sei que deve ter trocado sua folga só para estar aqui
comigo nessa tarde. Ela é demais.
— Bem, em minha defesa, eu estava pensando em viajar para a casa
dos meus pais por um tempo — digo, por fim. — Aproveitando que não
tenho mais um emprego e também que a UFPR está em greve... Seria bom
para refrescar os pensamentos.
Ela me lança o seu melhor sorriso, de dentes muito brilhantes. Vejo
em seus olhos castanhos que está honestamente feliz com as minhas palavras.
— É disso que estou falando! Bola para frente! — Sua companhia,
aos poucos, vai trazendo a lucidez de volta para mim.
— E aí, quais os planos para hoje? — pergunto, decidindo que
finalmente quero abandonar o meu esconderijo secreto e encarar o frio
intenso lá de fora. Ao menos não está chovendo. E, para Curitiba, isso é uma
coisa e tanto.
— Vamos para o Mueller, distrair um pouco a sua cabeça. Que tal um
cinema? — ela me pergunta e nego categoricamente.
— Não aguento mais assistir filmes — disparo, levantando-me de
supetão. — É sério, não aguento mesmo. Foi a cota para o ano inteiro.
— Podemos gastar um pouco de dinheiro, então... Sabe o que dizem
né, o melhor remédio para curar a tristeza é um par de sapatos novos.
Suas palavras finalmente têm algum efeito sobre mim. Ouço a minha
risada preencher o apartamento, como há muito não fazia. A sensação é
reconfortante e, aos poucos, liberta-me da nuvem negra que me acorrentou
nos últimos quinze dias. O bom é que Vanessa me conhece tanto depois
desses três anos de cumplicidade... Só ela saberia o quanto isso me faz bem.
Preciso mesmo comprar algumas calças. Não que eu realmente me sinta a
melhor pessoa quando tenho as pernas cobertas, mas o fato é que esse
inverno está vindo com tudo, e não posso simplesmente lutar contra isso.
— Bem, vou tentar dar um jeito em mim mesma — digo, indo em
direção ao quarto.
— Ai amiga, não tem como fazer milagre, né? — ouço-a dizer da sala
e solto uma gargalhada gostosa, grata por ela estar aqui comigo.

Depois de horas andando e de ter comprado mais roupas do que eu


gostaria, paramos para comer algo na praça de alimentação. Vanessa é do tipo
fitness, por isso escolhe um sanduíche natural e suco detox. Fico me
perguntando qual a graça em comer no shopping se for para ser isso.
Eu peço um combo de hambúrguer com batata e refrigerante, do
maior e mais gorduroso que consigo encontrar. É disso que preciso. Tento
ignorar o olhar de desaprovação que ela me lança quando apareço com a
minha bandeja na nossa mesa, mas não é culpa minha que comer porcaria é
infinitamente melhor do que comida saudável.
Vanessa está com os longos cabelos negros torcidos em um coque no
alto da cabeça enquanto se distraí com o seu sanduíche que não parece nem
um pouco apetitoso. Fico me perguntando quanto tempo devia estar para
vender, porque me recuso a acreditar que existam mais pessoas como a minha
amiga geração saúde.
Dou uma abocanhada no sanduíche cheio de cheddar e bacon, dando-
me conta de que consegui passar uma tarde inteira sem pensar em Felipe. Ok,
falhei miseravelmente agora, mas isso já é um avanço. Talvez o melhor seja
mesmo viajar e passar um tempo com a minha família e os meus amigos de
infância, assim, quando for a hora de voltar para Curitiba, isso que vem me
derrubando já terá ido embora. Ao menos quero ser otimista por pensar dessa
forma.
De repente, um pensamento invade a minha mente de supetão. Preciso
me reerguer e nada é melhor para isso do que um tapa no visual. Eu já vinha
mesmo pensando em fazer algo com o cabelo, de toda forma.
— Nessa — chamo com a boca cheia, ganhando a sua atenção. —
Você tem planos para essa noite?
— Não... O que quer fazer?
— Vamos passar no Lady&Lord e ver se eles têm um horário para
mim? — pergunto, alcançando um punhado de batatas e tentando colocá-las
todas de uma vez na boca.
— Madu, come isso direito! — Vanessa me repreende, apesar de estar
rindo com a visão. “Qual é, preciso estar à vontade”, penso irritada. — Você
quer fazer as unhas, ou algo assim?
— Não é uma ideia de todo ruim — admito, encarando minha mão
abandonada. — Mas não, quero mudar o cabelo... Estou pensando em ficar
loira.
— Uau, sério? — seus olhos escuros estão redondos de surpresa. —
Assim, do nada?
Dou nos ombros, limpando a boca com um guardanapo. Por um
momento, tenho a sensação de que Vanessa viu algo diferente atrás de mim,
uma vez que se arrumou desconfortavelmente na cadeira.
Tento olhar por cima do ombro, no entanto ela volta a falar comigo.
— Você ficaria linda loira... Bem, ficaria linda de qualquer jeito. Mas
por que assim tão de repente?
— Ah, olha pra mim! Estou um caco! — Gesticulo, tentando me
fazer entender. — Nunca fui assim e não é agora que preciso ser... Desleixo
não é muito a minha cara.
— Não mesmo — sua voz é distante e seus olhos continuam fixos no
mesmo ponto.
— A próxima vez que eu cruzar com Felipe, ele vai se arrepender de
não ter vindo atrás de mim. Vai ver o que está perdendo! — digo, em meio a
risadas debochadas. Estou brincando e ela sabe disso, mas eu bem gostaria
que fosse verdade.
Diferente do que esperava, contudo, Vanessa não me acompanha no
riso. Isso me incomoda um pouco porque, no geral, estamos sempre rindo
além do necessário.
— Podemos ir, então? Já terminou? — ela indaga com cautela. Isso
não soa bem... O que ela está vendo, afinal de contas?
Giro o corpo novamente, tentando buscar o que a está deixando
desconfortável dessa forma. Sigo a direção que seus olhos estavam mirando e
não demoro muito tempo, dessa vez, até encontrar o que a estava afligindo.
— Oh — limito-me a dizer, reconhecendo Felipe sentado em uma
mesa na outra extremidade da praça de alimentação.
Está realmente incrível com sua camisa de corte italiano e o colete por
cima. Lindo como sempre é e intimidante também. Meu coração aperta
violentamente, entretanto, assim que os meus olhos recaem para a mulher
elegante com a qual está conversando tão entretido.
“Filho da mãe!”
Instantaneamente sinto o rosto queimar e o coração acelera com uma
força preocupante. Maldito! Enquanto eu passo os meus dias lamentando o
nosso fim, ele está com outra? Já?
A cor de Vanessa é drenada para fora do seu rosto, sei que ela está
preocupada com qual será a minha reação. As minhas mãos encontram os
cabelos e muitos pensamentos começam a me bombardear. Eu poderia ir até
lá e gritar um punhado de palavras grosseiras sobre como me sinto agora. Ou
ao menos poderia só passar lá e cumprimentá-lo, para que a minha presença
fosse conhecida... Droga, isso machuca! Estou me sentindo enganada e a
sensação é terrível.
— Madu... — a voz da minha melhor amiga me puxa das sombras
para a realidade. — Deixa isso pra lá. Vamos lá no Lady&Lord... é o que
você precisa.
— Mas Nessa... — suplico, lutando para não chorar em público. É
humilhante para caramba descobrir que a pessoa que não sai dos meus
pensamentos foi rápida em me tirar dos dela. — Ele não pode fazer isso
comigo!
— Eu acho que não vai ajudar em nada você estar lá agora. Só vai
piorar tudo, vai por mim — sua voz é cuidadosa e entendo que ela está sendo
honesta com sua preocupação. — Sei que você está querendo gritar um
pouco, eu te conheço. Mas você precisa me ouvir.
Suas palavras me fazem rir, apesar de tudo. Ela tem razão, no fundo
eu só quero fazer um barraco para aliviar a raiva que estou sentindo. Sinto-me
uma idiota por ter acreditado que ele gostava verdadeiramente de mim. Seja
lá o que tivemos, estou certa de que acabou. A única coisa que preciso é
superar isso.
Assinto a contragosto, terminando o refrigerante em um só gole. Junto
as sacolas, assim como a bolsa e sigo em direção à escada rolante, sem me
importar em olhar para trás. É isso. Isso era o que eu precisava para seguir em
frente. Acho que no fundo ainda tinha uma pequena esperança de que Felipe
pudesse aparecer a qualquer momento no meu apartamento, com o seu
melhor sorriso no rosto que derreteria as minhas pernas.
Agora, no entanto, a única coisa que sinto é raiva. Raiva de mim,
raiva dele, raiva do que vivemos. Sei que não há maneiras de mudar o que já
foi e mesmo que houvesse, eu não faria. E isso é o que me deixa mais irada.
Eu devo ser algum tipo de masoquista.
Com Vanessa na minha cola, percorro o caminho todo em silêncio.
Por sorte, ao chegamos finalmente no salão, descubro que eles têm alguns
horários disponíveis. Estremeço momentaneamente, mas é ao me lembrar de
Felipe com aquela mulher que junto todas as forças para decidir fazer a
mudança. Preciso disso. Preciso mostrar para mim mesma que sempre existe
um recomeço. Afinal de contas, sou a nova solteira do pedaço. Se eu
continuar esse caco, vou continuar sendo solteira por muito tempo.
Num ímpeto de coragem, sinto que estou preparada. Tenho sorte por
Nessa esperar comigo, porque sei que vai levar horas até que esteja livre.
Aproveito a minha falta de cautela com o dinheiro hoje e decido que
preciso cuidar de mim. Eu mereço. Já que estou no inferno, por que não
abraçar o diabo? Faço as unhas, tiro a sobrancelha e, quando depois de quase
quatro horas o meu cabelo fica pronto, não me arrependo da fortuna que
estou gastando. Porque não vejo dessa forma. Estou investindo em mim!
Nada é mais justo que isso depois de uma quinzena de sofrimento.
— Uaaaau, Madu! — A voz de Vanessa ressoa, externando o meu
sentimento. Eu não sei se é porque eu estava realmente ruim antes da
transformação, mas o fato é que ficou incrível.
Percebo que estou sem respirar ao estudar pelo reflexo as madeixas
quase platinadas, que caem pelos ombros em ondas suaves. Meus dedos
instintivamente vão de encontro ao cabelo, movimentando-o enquanto tento
me acostumar com a minha nova imagem. Estou me sentindo a mulher mais
linda de Curitiba inteira. Isso é bom!
— Minha nossa, eu nunca mais quero ter outra cor de cabelo! —
sorrio e o cabelereiro parece relaxar. Dou-me conta de que o meu silêncio o
tinha deixado preocupado.
— Não é a primeira que diz isso! — ele sorri para mim, passando
silicone nos fios, para finalizar seu demorado e satisfatório trabalho.
— Você ficou linda!! — Vanessa diz, com um sorriso no rosto. Vejo
nos seus olhos que está exausta, contudo. Devo admitir que também estou, o
dia foi longo. — Fiquei com um pouco de inveja!
Tão logo suas palavras pariam pelo ar, nós rimos feito duas crianças
alegres. Meus pensamentos vagam para o caco que eu estava ainda hoje e
constato que foi realmente bom esse tempo que tivemos juntas. Ao menos já
estou com a autoestima recuperada.

A pior parte de comprar muitas coisas quando não temos um carro, é


que é um inferno carregar as sacolas em um ônibus apinhado de pessoas. Eu
podia, pelo menos, ter chamado um táxi, mas achei que já tinha gastado
muito. E, já que agora estou desempregada, tenho que fazer o dinheiro da
viagem render até que arrume um bom emprego.
Ao pular para fora do ônibus, no meu ponto, a rua está deserta. Odeio
estar na rua neste horário, por isso apresso o passo e quase corro em direção
ao meu apartamento.
Com os fones de ouvido presos na orelha desde que saí do shopping,
ouço o locutor fazer a chamada da próxima música: Fireside da banda Arctic
Monkeys. Resolvi deixar na rádio do celular, para evitar as músicas de fossa
que eventualmente acabaria escolhendo. Realmente não conheço nada dessa
banda, mas assim que começa a tocar, é quase como se fosse uma grande
piada com a minha cara.

“Eu não consigo explicar, mas eu quero tentar


Existe essa imagem de você e eu
E ela vai dançando pela manhã
E pelo período noturno

Existem todos esses segredos que não consigo guardar


Como em meu coração existe aquela suíte de hotel
E você viveu lá muito tempo
É meio estranho agora que você se foi”

A voz rouca e sexy do vocalista me embala junto dos arranjos de


baixo, guitarra e bateria. Sinto como se as batidas do meu coração
acompanhassem o ritmo da música e estou enlouquecendo com o fato de que
parece ser para mim.

“E eu pensei que era seu para sempre


Talvez eu estivesse enganado
Mas eu simplesmente não consigo passar o dia
Sem pensar em você, ultimamente”

Algumas gotas de chuva começam a irromper do céu, por isso aperto


o passo ainda mais, desejando chegar antes que a chuva engrosse. O dia foi
tão bom, não preciso que ele encerre sendo um desastre. Essa música é
incrivelmente desconcertante. Eu poderia ouvi-la em qualquer outra época da
vida e não teria me acertado tão em cheio como neste momento.
Ao virar a esquina que dá para a minha rua, sinto o coração parar por
alguns segundos. Na frente do prédio em que moro, está estacionada uma
Mercedes branca que já conheço bem demais. Isso definitivamente é uma
piada do universo!
“O que ele está fazendo aqui? Por que agora?”
Respiro fundo e automaticamente diminuo a velocidade, tentando me
preparar para isso. Arranco os fones de ouvido, guardando-os dentro da
bolsa. Então perco a força nas pernas em uma fração de segundo, e sinto
como se pudesse tombar a qualquer momento. Isso não estava nos planos,
não sei o que fazer!
Quanto mais me aproximo do carro de Felipe, menos coragem tenho.
Decido que vou fingir que não o vi. Tudo bem, a ideia parece estúpida, mas
não sei se consigo fingir que está tudo ok e que a vida está uma maravilha,
quando na verdade não está.
Sigo pela calçada e, quando finalmente alcanço o seu carro, noto que
a janela está aberta. Felipe está segurando o volante com as duas mãos e sua
testa repousa sobre ele.
Comovida pela visão, permito-me parar ao lado do veículo, deixando
que meus olhos captem o máximo de detalhes possíveis. Seus cabelos
dourados brilhando com a luz dos postes, suas mãos bem cuidadas apertando
com tanta força o volante. A forma como fica incrível vestindo coletes...
Então me lembro do quanto ele parecia absorto na conversa com a
mulher que o acompanhava hoje e isso me deixa destruída. “Ele acha que
sou o quê?”
Respiro fundo e começo a girar os calcanhares em direção à entrada.
No entanto, mais uma vez por ironia do destino, Felipe ergue o rosto, quase
como se tivesse sentido a minha presença.
Nossos olhos se encontram e sou capaz de afirmar que nosso contato
visual é tão intenso quanto uma corrente elétrica. De repente, os músculos de
todo o meu corpo começam a formigar e a minha cabeça flutua para longe.
Sua expressão é indecifrável e isso me irrita um pouco. Por que ele
tem que ser tão complicado? Sem perceber o que estou fazendo, arrisco um
passo para mais perto do carro. Consigo sentir o seu perfume aqui de fora e é
tão delicioso... Como sinto falta de estar envolta por seus braços protetores,
de sentir o seu beijo, ou do contato de suas mãos grandes contra a minha pele.
Santo Deus, não estou preparada para isso.
— O que está fazendo aqui? — indago, com a voz me traindo. Ela
entrega o quanto estou atordoada com a sua visita.
Felipe dá nos ombros, com aquela merda de expressão pedindo colo
que me deixa sem fôlego.
— Podemos conversar? — ele responde a pergunta com outra.
— Não temos nada para falar! — explodo, fazendo-o arregalar os
olhos em surpresa.
Não era exatamente essa a resposta que tinha imaginado nos meus
devaneios. Nas diversas vezes em que fantasiei o nosso reencontro, eu
sempre era mais gentil. A verdade, entretanto, é que estou com o orgulho
ferido. Vê-lo com outra mulher depois de quinze dias sem me procurar foi
doloroso o suficiente. Não vou facilitar para ele, ainda que isso signifique que
vou sofrer igualmente.
Felipe rola os olhos em suas órbitas e noto que seus dedos estão
batucando de maneira impaciente contra o volante.
— Por favor, pode deixar de ser teimosa e entrar nesse carro?
Oi? Como ele pode ser assim? Ele acha que pode simplesmente
chegar e me falar o que fazer? Não, as coisas não serão do jeito dele!
— Não — digo simplesmente, como uma criança mimada.
Sinto as bochechas queimarem sob o seu olhar intenso. Suas íris azuis
parecem travar uma batalha no mais íntimo do seu ser. Observo-o cobrir o
rosto com as mãos, respirando fundo. Percebo sua impaciência.
Penso por um milésimo de segundo no quanto desejei esse encontro.
A forma como ansiei que ele me procurasse, tendo em vista que eu me
recusava a fazê-lo. Mesmo que fosse apenas para colocarmos um ponto final,
definitivamente. Por esses dias, foi tudo o que eu mais quis.
Ele está aqui, indo contra o seu ímpeto de se esconder sob sua camada
impenetrável, onde não me mostra o que sente ou pensa. Está aqui por um
motivo e decido que quero descobrir esse motivo.
Sem falar palavra alguma, abro a porta de trás, onde deixo as sacolas.
O alivio é imediato, afinal elas estavam pesadas. Contorno o carro em passos
decididos e entro na sua Mercedes, sentando-me no banco de passageiro.
Contenho um sorriso amargo ao me lembrar de quando ele veio aqui
me buscar e me levou no meio do nada... Minha nossa, para o bem da nossa
conversa, preciso afastar esses pensamentos. O problema é que sua presença
me afeta demasiadamente. Isso é perigoso.
Ao contrário do que pensava, no entanto, Felipe não arranca com o
carro. Apenas inclina o banco para trás, cruzando os braços sobre o peito. Ao
virar o seu rosto em minha direção, sinto cada músculo do corpo vacilar.
— Você está linda... — ele sussurra e leva a mão direita até o meu
cabelo, sem a minha permissão. Seus dedos se enroscam brevemente em uma
onda loira que pende sobre o meu rosto, torcendo-a com leveza. — Ficou
muito bem em você!
Fecho os olhos, lutando para me manter firme. O fato é que estou a
ponto de surtar. As sensações que ele me provoca conseguem se sobressair
em relação a minha mágoa.
— O que você está fazendo aqui? — Ouço a minha voz pairar entre
nós dois, e estou feliz por me impor. Se ele achava que eu iria desistir de
descobrir isso, estava enganado.
— O que você acha? — Sua voz é um pouco mais áspera do que eu
gostaria. Acho que ele também notou, uma vez que se corrige. — Vim te ver!
— E por que só agora? Já passou um tempo considerável — ergo as
pálpebras, encontrando os seus olhos me encarando de volta.
Percebo pela sua expressão que ele está lutando para conseguir falar e
isso me desarma completamente. Felipe gira o seu rosto para o outro lado,
evitando me encarar e então ouço a sua voz sair num sussurro:
— Não é só agora... Tenho vindo todas as noites desde que você foi
assinar sua rescisão.
“Ah. Meu. Deus”.
Cantando Pneu
A temperatura do carro sobe drasticamente ao passo em que o meu
mundo gira depressa. Felipe tem o dom de me levar sempre ao ápice dos
sentimentos.
— O quê? — pergunto, mas não o dou tempo de responder. — Vindo
aqui? Não faz sentido! Por que nunca subiu?
— Não é tão fácil quanto parece... — ele encolhe os ombros, ainda
olhando para o outro lado.
Muito embora seus olhos sejam demasiadamente intensos, eu preferia
que estivessem em mim. Assim, ao menos, eu poderia captar um pouco do
que está pensando.
— Você me quebrou — suas palavras vêm aos sussurros. — Mas eu
sinto a sua falta.
Por mais que o gesto dele seja incrível, uma onda de raiva me toma de
supetão. Por que estou reagindo assim a aproximação dele? A verdade é que
as minhas orelhas estão queimando quando o observo olhar janela afora. Sem
que possa evitar, deixo a pergunta que está me incomodando escapar pelos
lábios.
— Então, se eu não tivesse passado por aqui hoje, você teria
continuado vindo aqui todas as noites sem nunca falar comigo?
O seu silêncio é desconcertante. Felipe, o advogado intimidante e
poderoso com quem convivi, raramente ficava tão vulnerável como agora.
Qual o problema?
— Parece mentira. — Ouço-me dizer e, finalmente, ganho a sua
atenção outra vez.
Seus olhos estão brilhantes e é quase impossível desviar deles. Felipe
une as sobrancelhas, parecendo bravo com as minhas últimas palavras.
— Por que acha que estou mentindo? — pergunta e no mesmo
momento, noto que o seu tom já esfriou um pouco. “Muito bem... Lá vamos
nós”.
— Não sei... — digo, perdendo um pouco da coragem.
Ouço-o respirar fundo, para logo em seguida cruzar as mãos sobre o
volante.
— Vai continuar na defensiva? — sua voz indica o quanto está
cansado. Tanto quanto no dia em que pedi a demissão.
Isso tudo é uma enorme bagunça e não sei realmente o que pensar.
— Você me parece muito bem — falo por fim. — Quero dizer, pra
mim é quase como se depois de duas semanas você tivesse sentindo falta de
alguém para passar um tempo e daí se lembrou que eu existo.
Caramba. O que está acontecendo comigo? Eu sinto tanto a falta dele,
no entanto quanto mais segundos passam dentro deste carro, mais o clima
fica tenso. As palavras estão pulando para fora da minha boca e sinto que
apesar de sua confissão, estou chateada porque estamos lutando contra os
nossos sentimentos. Podia ser tudo mais fácil. Mas por que não é?
— Se existe alguém que parece ter superado aqui, esse alguém é você.
Seus olhos passam de mim para as sacolas em um movimento ligeiro.
Estreito os olhos, ao mesmo tempo comovida e desconcertada com o seu
julgamento. Se ele tivesse me visto no shopping mais cedo saberia que eu
estava longe de estar bem, ainda hoje. O fato de eu ter ficado na fossa era
puramente por culpa dele.
Inferno, Felipe está me tirando do sério. Toda hora me lembro dele
conversando com aquela vadia e sinto o sangue ferver. Ele deve ter me visto
sair da praça... Isso definitivamente é um joguinho idiota. Eu não posso com
isso.
— Se você veio aqui para jogar qualquer coisa na minha cara, então
acho melhor eu subir.
Percebo que Felipe aumenta a força nas mãos entrelaçadas, uma vez
que os nós dos seus dedos estão ficando esbranquiçados. O mais irritante é
que por mais que eu sinta a tensão que emana dele, ele luta o máximo
possível para que eu não saiba. É sempre muito complexo entender o que se
passa pela mente deste homem enigmático ao meu lado e mesmo os raros
momentos em que se abre para mim duram muito pouco.
— Por que está tornando tudo mais difícil? — a forma como pergunta
esconde um vestígio de tristeza.
Meu coração batuca ferozmente enquanto o observo decidir até que
ponto vai expor o que está passando.
— Eu estou aqui, não estou? — ele continua e reconheço a irritação
por trás de sua voz. — Por mais que eu não quisesse, não tenho a merda de
uma escolha. Toda hora que fecho os olhos, a única coisa que consigo
imaginar é que você me enganou, mesmo depois de te avisar que não divido
nada que é meu.
— Eu não queria nada com ele!
— É mesmo? — Felipe indaga, com a voz ficando mais alta a cada
segundo. — Se a situação fosse o contrário, como estaríamos? Eu devo ser
um idiota!
O ar ficou completamente rarefeito. Mal posso respirar aqui dentro. A
tensão entre nós é quase palpável. Minha cabeça começou a martelar e já
começo a acreditar que foi um erro ter entrado aqui.
— Eu te vi no Mueller hoje — digo simplesmente.
Ao contrário do que previ, no entanto, Felipe não demonstra ter ficado
abalado. Dado o nosso silêncio constrangedor, ele balança a cabeça, como se
perguntasse silenciosamente “e daí?”.
Esse gesto é o suficiente para me afundar em uma nuvem negra
novamente. É doloroso saber que ele acha que não tem importância o fato de
ter passado a tarde na companhia de outra mulher e que agora pode apenas
chegar aqui e me contar uma historinha idiota de que tem vindo todas as
noites me procurar.
Quero bater no seu rosto perfeito até ele deixar de ser assim!
— Eu te vi na droga no shopping e você estava com outra! —
explodo, gesticulando loucamente para me fazer entender. — Como você
acha que eu me sinto sabendo que enquanto sofro diariamente pelo nosso
término, você está seguindo em frente assim tão fácil? Achei que me amava!
— Hey, calma! — ele suspira, segurando os meus pulsos com as suas
mãos grandes. Percebo o quão inabalado está. — Não é isso. Por que não me
perguntou sobre ela, se isso estava te incomodando?
— Porque eu não sou idiota! Eu penso o suficiente para ligar os
pontos! — Cuspo as palavras, sentindo-me cada vez mais infantil e
humilhada.
Meu único desejo neste momento é disparar para fora deste carro.
Chega, ele já mexeu demais comigo. Preciso vestir os meus pijamas e assistir
mais um punhado de comédias românticas no Netflix.
— Bem, eu fiquei sabendo de tudo pelo próprio Renato e ainda assim
te dei uma chance de se explicar. Mesmo depois de você mentir pra mim, eu
ainda estive disposto a te ouvir. Não acha que mereço o mesmo? Depois você
pode tirar as suas próprias conclusões, assim como tirei as minhas.
Estremeço sob o seu olhar penetrante e aquiesço.
— Aquela era a minha psicóloga.
— No shopping? — Incredulidade passa pela minha voz.
— Odeio estar no consultório... por isso sempre nos encontramos por
fora — ele me presenteia com um sorriso sincero. — Desde os quinze anos
frequentando tantos lugares parecidos... Acabei pegando aversão.
Suas palavras penetram os meus tímpanos, deixando-me subitamente
envergonhada. É tudo tão confuso, Felipe é tão complicado. Nossa relação é
complicada. Ou ao menos, passou a ser.
Esfrego o rosto com as palmas das mãos, mentalizando que queria
estar em qualquer outro lugar do mundo. Estou magoada com a situação toda.
Renato criou tudo isso e a única coisa que desejo é gritar com ele até que a
raiva que estou sentindo passe.
No entanto, a culpa é minha. Eu escondi isso de Felipe e sei que se a
situação fosse inversa eu provavelmente não teria mais olhado na cara dele.
Preciso de um tempo. Isso é o que eu sinto. Preciso viajar para a
minha cidade e colocar a cabeça no lugar. Não posso simplesmente ceder,
porque me lembro da forma como ele foi grosseiro comigo no seu escritório e
isso ainda machuca. Ainda que eu tenha errado, não sou a única nesse jogo
que foi contra as regras. Ele também errou.
— Preciso subir — digo por fim e vejo a surpresa em seus olhos
cristalinos.
Desapontamento toma os seus traços, conferindo-lhe anos a mais.
Droga, sinto muito por isso. Realmente sinto. Venho desejado estar nos
braços de Felipe desde que nos separamos, mas agora que estamos perto da
reconciliação, não parece tão simples na prática como é na teoria.
— Madu... — ele geme e vejo que está ultrapassando os limites de
seu orgulho. Está relutando contra o desejo de se esconder em sua camada de
“não me toque”.
Sua mão direita vem de encontro à minha coxa e eu deixo-a
permanecer ali. O contato leva uma corrente elétrica para todo o corpo,
deixando-me cheia de saudades. Minha nossa, por que estou fazendo isso?
Porque não consigo simplesmente ceder?
— Seria mais fácil se você se abrisse mais comigo... — minhas
palavras surpreendem a nós dois. Acho que no fundo estou farta de não saber
nada sobre sua vida além daquilo que ele me deixa saber. — Nunca sei o que
está sentindo ou pensando...
— Por um acaso você é exatamente assim, também — Felipe suspira,
virando novamente o seu rosto em direção à janela, para cortar o nosso
contato visual. — Acho que você não tem ideia do quanto não me mostra
nada. Estar aqui é contra tudo o que eu sou, mas eu estou. E mesmo assim
você não colabora!
Suas palavras atropelam umas as outras, tamanha é a velocidade com
a qual ele as cospe. Percebo que o estou deixando triste e isso também
machuca em mim.
— Isso não tem como dar certo — murmuro, contra a vontade. —
Somos muito diferentes, nós dois sabemos disso.
— Você só pode estar brincando comigo... — ele sussurra, ainda sem
me encarar.
Meu corpo todo estremece e tenho a sensação de que ele foi para o
quarto escuro de sua mente. Desejando não piorar as coisas um pouco mais,
abro a porta do carro, provocando um estalido doloroso. Isso é o fim.
Eu sou uma idiota por estar fazendo isso. Eu o amo demais, mas a
minha vida ficou tão intensa. Foi tão complicado passar esse tempo longe
dele para que simplesmente chegue aqui achando que tudo vai ficar ok tão
facilmente.
Muitas coisas passam pelos meus pensamentos... Ele preferiu
acreditar em Renato. Não em mim. Ainda que tenha me dado o benefício da
dúvida, preferiu seguir em frente. Não me deu um voto de confiança. Eu sei
que não merecia, no entanto isso não torna menos doloroso.
Se eu tivesse permanecido trabalhando para ele, o quão ruim estaria a
nossa convivência? Talvez estivéssemos nos xingando nesta altura do
campeonato.
Dou a volta no carro e pego as sacolas, notando toda a tensão no
corpo de Felipe. Meus olhos captam o leve tremor em seus dedos e a forma
como a sua respiração parece aumentar a velocidade a cada segundo. Ele não
está bem. E se isso é o que eu causo nele, então realmente devemos nos
separar. Ao menos por ora, tudo o que preciso é refletir.
Tão logo fecho a porta de trás e me preparo para entrar no prédio, sua
voz vem fria e sem emoção de encontro aos meus tímpanos:
— Eu não vou mais persistir. Não além disso. Saiba que se você virar
as costas agora, isso não tem mais volta.
— Talvez seja isso que a gente precisa — devolvo, fazendo-o revirar
os olhos.
— Tudo bem, Maria Eduarda. Espero que não se arrependa.
Suas palavras pairam ao meu redor por segundos a fio, ao passo em
que o observo arrancar com o carro, cantando os pneus.
“Droga, o que foi que eu fiz?”
Sonho
O telefone vibra, fazendo-me pular de susto. Faz horas que estou
entretida com a mala, de forma que até me esqueci do resto do mundo. Corro
até o celular, pegando-o na mão com expectativa. Vejo a foto de Vanessa me
chamando pelo WhatsApp e domino um sorriso. Eu sabia que ela iria falar
comigo depois de eu avisá-la que vou para a minha cidade amanhã.
“Vou sentir saudades...Você está legal?”. Fecho os olhos por alguns
segundos, lembrando-me da noite anterior. Incrivelmente, estou bem. Achei
que voltaria para a fossa, mas a verdade é que me conformei com o rumo que
as coisas levaram. Talvez o melhor fosse isso mesmo. Hesito por um
momento, mas então decido contar-lhe sobre a visita que tive depois no nosso
passeio no shopping.
“Estou bem, amiga. O Felipe estava me esperando aqui ontem, para
conversar comigo” meus dedos digitam apressados no celular. Assim que a
vejo começar a digitar, apresso-me para enviar antes dela: “Está tudo
terminado. Decidi que precisava de um tempo, de toda a forma”.
A lembrança da maneira como ele demonstrou estar com raiva no
momento em que saí do carro... jamais vou me esquecer. Mas não é como se
me arrependesse, também. Não totalmente, e não agora. Talvez mais tarde a
ficha caia e eu me assuste, contudo esse é o melhor para mim, ao menos por
ora, sei disso.
Ao pensar nos quinze dias de luto que tive depois de pedir as contas e
no tanto que sofri... Simplesmente não me parece normal. Ainda que tente me
convencer de que é por amá-lo demais, não desce. A verdade é que desde o
dia em que o conheci venho nutrindo algo muito grande por ele. Fiquei
apaixonada logo de cara e quando finalmente o tive para mim, parecia bom
demais para acreditar. Esse é o problema. Não o fato de eu ter me entregado
completamente, mas sim de me tornar dependente de Felipe emocionalmente.
Antes de ter qualquer tipo de relacionamento o que eu preciso é me
entender e me encontrar. Sempre acreditei que estava no controle, mas era
bem o oposto disso.
Sei que talvez as coisas fossem mais fáceis se não fôssemos tão
orgulhosos. No entanto, é mais difícil admitir um erro desde que você não é o
único culpado. Eu tive tanto medo de interferir no trabalho de Felipe, que
acabei interferindo no nosso relacionamento. Se eu pudesse voltar atrás e
corrigir, tenho certeza de que teria contado sobre Renato no mesmo dia em
que ele voltou ao Fasano, para me importunar. Mas a grande questão é que
não posso. As coisas nunca funcionam dessa forma, por mais que eu gostaria
que sim.
No dia em que Felipe me confrontou a respeito das flores, eu fiquei
tão assustada que menti sobre uma coisa idiota. Esse foi o maior dos
problemas, porque não se pode corrigir um erro com outro. O fato de eu ter
mentido fez parecer que estava mesmo escondendo alguma coisa importante,
mas o que realmente machuca é que Felipe não me deu uma chance. Ele
apenas virou as coisas e me deixou para trás, preferiu acreditar em um
homem que destruiu o nosso relacionamento. Para ele foi mais fácil acreditar
que eu o traí do que o contrário.
E, por mais que eu tente meter na cabeça que ele me tratou mal no
trabalho por causa da sua doença, recordo toda a sua frieza e ela me machuca.
Como eu poderia seguir em frente sem colocar os pontos nos is? Quero dizer,
ele parou com o remédio por conta própria, disse que eu tinha que confiar
nele. Por mais que estivéssemos brigados e ele tivesse motivos para estar
nervoso, estávamos em ambiente de trabalho. Foi injusto agir daquela forma,
porque eu realmente não teria para onde correr. Foi exatamente o que
aconteceu. Toda a sua grosseria latente foi de graça, em um ambiente que
deveria ser neutro. Se eu simplesmente deixasse isso para lá, quantas outras
vezes teríamos situações parecidas? Em quantas outras vezes ele iria
descontar sua raiva em mim e ser um ogro?
Eu pedi demissão e ele não fez nada além de aceitar. Nunca mais me
procurou ao passo em que eu definhava sozinha no meu apartamento. Se ele
foi dia após dia na frente do prédio me esperar, o que custava apertar a droga
do interfone e me avisar que estava ali? Quem sabe não teria sido diferente?
A questão é que estou cansada de me sentir por fora de sua vida.
Quem é Felipe Antunes? É o advogado criminalista para quem trabalhei por
um curto período de tempo. Aliás, um vergonhoso período que só vai
manchar a minha carteira, mas esse é o menor dos problemas neste momento.
No entanto, o que quero realmente dizer é: quem é o Felipe pessoa, e não o
Felipe profissional? O que aconteceu aos seus quinze anos? Por que ele é
doente? Sobre o que ele e a sua mãe estavam falando na noite em que conheci
os seus pais? Por que ele não queria se envolver comigo no começo e me
disse que não era o homem certo para mim? Por que têm tantos mistérios o
rondando, no fim das contas? Qual o maldito problema dele em me dizer
claramente o que está acontecendo?
Céus, somente pensar a respeito me deixa zonza. Preciso desse tempo
não por ele, não pela Vanessa e não pelos meus pais. Preciso desse tempo por
mim. Preciso desse tempo para entender toda essa bagunça que a gente se
meteu. Preciso desse tempo para me perdoar pelos meus erros e para seguir
em frente. Preciso desse tempo para parar de me sentir essa criança birrenta
que só aceita as coisas do jeito dela.
O celular vibra outra vez, chamando-me para a realidade novamente:
“E o que ele disse? Quem era aquela mulher com ele?”, Vanessa me
questiona do outro lado da linha, ao que meus dedos digitam sem vontade:
“Era a psicóloga dele... E ele me disse que não tinha mais volta”.
Dobro mais algumas mudas de roupa até que a sua resposta chegue:
“Nossa. Sinto muito... Você está mesmo bem?”. Essa é uma boa pergunta.
Talvez eu esteja mais anestesiada do que bem. Acho que uma quinzena foi
um período e tanto de sofrimento e não é como se eu precisasse de mais.
Estou me proibindo de derramar mais uma lágrima sequer para Felipe, ou
qualquer outro homem que seja.
“Estou bem, tirando que vou ficar por longas oito horas dentro do
ônibus amanhã...” respondo, desejando mudar de assunto desesperadamente.

Aprendendo com a lição que a viagem até São Paulo me deu, engulo
um Dramin na rodoviária, esperando o ônibus chegar. Será uma longa viagem
e o que menos preciso é passar mal e vomitar sem ter ninguém para me
consolar.
Esse é o dia mais frio do ano até aqui, por isso estou tremendo feito
uma louca no momento em que finalmente chega o veículo que me levará de
volta para Cianorte, onde vivi vinte anos da minha vida. Corro entre o
massivo grupo de pessoas que se formou para colocar as malas no bagageiro
e, com sorte, consigo ser uma das primeiras a despachar os pertences.
Entro no ônibus já me sentindo severamente sonolenta. É incrível o
quanto esse remédio me faz capotar tão rápido e tão intensamente. A parte
boa é que as oito intermináveis horas passarão voando desta forma.
Aconchego-me no meu lugar, na fileira que fica atrás do motorista, na
poltrona ao lado da janela. Não que vá realmente fazer diferença para mim,
mas esse é o lugar que costumo escolher sempre que viajo de ônibus
eventualmente. Já faz um tempo desde que visitei a minha família a última
vez, por isso estou mais do que animada para estar de volta. As últimas
semanas foram turbulentas demais para mim. Preciso estar em um lugar onde
as preocupações desapareçam.
Durmo assim que o ônibus começa a andar, mas ao contrário do que
gostaria, não tenho um sono calmo e reparador. Ao invés disso, Renato
aparece nos meus sonhos, com o seu sorriso esnobe e a sua maneira incisiva
de cortejar uma mulher. Estamos na piscina, ele me segura pelos quadris e
estou incomodada com a liberdade que não lhe dei. Algo neste sonho é
nostálgico, mas algo não é, e não consigo entender por quê. Quando ele
começa a me beijar, já anoiteceu e estamos brincando de não fazer barulho
algum. Renato mergulha e tento correr do seu toque. Mas ele é tão
persistente... Minha nossa, ele não sabe ouvir um não.
Suas risadas ressoam alto pelo ambiente enquanto ouço um barulho
de cortar o coração. Felipe está chorando de maneira desesperada, como
quando o encontrei na academia. Preciso fazer algo a respeito, no entanto não
consigo encontrá-lo!
Começo a lutar para sair da piscina, mas quanto mais me esforço,
mais difícil se torna. O choro de Felipe é desconcertante e triste. Ele puxa o
ar em uivadas desoladas, que se misturam com as gargalhadas irritantes de
Renato. Preciso ajudá-lo! Ele aparenta estar desconsolado e não há nada que
eu possa fazer até que saia daqui.
Então o barulho de saltos-altos ressoa pelo deque de madeira que
circunda a piscina, sobressaindo-se sobre os demais ruídos. Vindo em minha
direção está a mesma mulher que vi com Felipe no shopping: os cabelos
vermelhos caindo em ondas até a altura dos ombros e os olhos castanhos
vibrantes e muito grandes. Está com um arranjo de orquídeas vermelhas nos
braços, cuja a intensidade da cor ofusca a visão.
— Eu nunca me esqueço de uma dívida, Madu! — a voz de Renato
sussurra através da minha orelha, fazendo-me vacilar.
Preciso sair dessa piscina... Preciso encontrar Felipe... Preciso
resolver essa bagunça... Mas a água está subindo e me encontro incapaz de
me mover. Vou me afogar, sei disso.
O mundo gira ao que sou engolida pela água e, por um milésimo de
segundo, quase posso sentir a dor latejante da água invadindo os meus
pulmões.
Acordo sem fôlego com um par de olhos castanhos-esverdeados me
encarando de volta. Endireito-me no banco e olho em volta para notar que
todos já desceram do ônibus. Sobramos só eu e essa menina que acabou de
me acordar.
— Achei que não acordaria sozinha... — ela diz com um sorriso
tímido. — Acabamos de chegar em Cianorte.
— Oh, obrigada! — respondo, envergonhada.
Ainda bem que ela teve a bondade de me chamar. Seria ainda mais
vergonhoso ser acordada pelo motorista. Sigo-a para fora do veículo e pego a
minha enorme mala verde-água. Não preciso caminhar muito para encontrar
os meus pais. Estão sentados nos bancos de espera dessa minúscula
rodoviária, e, ao me verem, levantam-se de uma vez, com sorrisos largos
tomando os lábios.

Cianorte é uma cidade pequena demais para o meu gosto. Sempre me


senti um pouco aprisionada aqui, e no íntimo, sempre soube que acabaria
indo para longe. Tem muita gente que não se importa, enquanto que uns até
mesmo preferem a tranquilidade. Eu não percebi o quanto me incomodava
viver aqui até que me mudei para Curitiba. Lá é tudo diferente. Desde que
pisei na cidade cinzenta em que moro há três anos, soube que amava aquele
lugar.
Já ouvi dizer que Curitiba é para os curitibanos e para mim isso tem
um sentido especial: não são todos que amam essa cidade, mas quem ama
jamais quer sair de lá.
Por isso, cada vez que volto para Cianorte, ainda que esteja
completamente feliz em me encontrar com aqueles que mais amo na vida,
uma sensação engraçada me acompanha. Como se eu não pertencesse a essa
pequenina cidade, recheada de nostalgia e lembranças de uma infância
pacata. Dessa vez, no entanto, eu não podia estar mais em casa.
Em primeiro lugar, foi um alívio descobrir que aqui estava bem mais
ameno do que na capital. Santo Deus, se existe algo que eu definitivamente
não gosto lá é o clima complicado, mas aqui não. Aqui estava tudo como
sempre, e essa foi a parte mais reconfortante.
Foi difícil, logo que cheguei, ter que encarar os meus pais e entregar-
lhes a justificativa que mereciam por eu estar para cá. Quero dizer, por mais
que a UFPR ainda estivesse em greve, era esperado que eu estivesse
trabalhando. E, uma vez que não tinha mais um emprego, eles queriam
entender o porquê.
Fui criada de uma forma tão aberta que nunca existiram segredos
entre nenhum de nós. Enquanto via muitas amigas tendo um péssimo
relacionamento com a família, eu não podia me queixar da minha. Amor,
respeito e diálogo foram abundantes em minha vida e como uma troca justa,
eu os deixava por dentro de tudo.
Contei-lhes sobre o meu relacionamento com Felipe. Para o meu pai
foi mais por cima, mas a minha mãe era a minha melhor amiga desde sempre.
Eu não poderia esconder nada dela, nem mesmo se quisesse.
Confessei que tudo tinha começado na viagem, inclusive o assédio de
Renato. Não poupei nenhum detalhe, porque sabia que ela não me julgaria e
estaria disposta a me aconselhar da melhor maneira possível. Contei sobre a
doença de Felipe, sobre quando conheci os seus pais e ele me disse que me
amava. Contei toda a nossa história até o momento em que ele arrancou com
o seu carro, alguns dias atrás.
O lado bom de colocar todas aquelas lembranças para fora é que eu
tirava um peso enorme das costas. Contando para ela, pude enxergar vários
pontos que até então não via.
O nosso relacionamento começou já de uma maneira estranha. Era
mais como uma brincadeira de gato e rato, onde nos provocávamos, mas
nunca admitíamos os nossos sentimentos. O tempo foi passando e nos
envolvíamos sempre um pouco mais, no entanto o nosso diálogo era
problemático e escasso. Eu só sabia aquilo que Felipe me deixava saber,
assim como ele só sabia o que eu lhe permitia.
Eu estava com medo do que a minha mãe me diria depois de ouvir o
meu monólogo. A primeira coisa que ela fez foi perguntar se eu
verdadeiramente o amava. Sendo ela a mãe presente que é, tenho certeza de
que sempre soube o quanto eu nunca realmente me envolvi em outros
relacionamentos. Talvez ela me conhecesse bem o bastante para perceber o
quão intenso era aquilo que vinha nutrindo pelo Felipe, ou talvez apenas
fosse óbvio para todos.
Depois da minha resposta, ela me disse que o problema é que nenhum
de nós queria ceder. Ambos estávamos equivocados, mas não nos dávamos a
oportunidade de reparar os erros. Ela me explicou que orgulho não levava a
nada se não a destruição e encerrou dizendo que nada era melhor para curar
uma ferida do que o tempo.
— Dê tempo ao tempo, querida — foi o que disse, com a voz calma e
experiente de alguém que sabe das coisas.
Mesmo horas depois de ela ter me deixado no meu antigo quarto,
continuei refletindo sobre as suas palavras. Cada vez me sentia menos
culpada por ter virado as costas ao Felipe e a tristeza também ia embora.
Talvez tempo fosse, de fato, o que precisávamos. Desde que
começamos a nos envolver, nunca realmente soubemos o que era estar longe
um do outro. Fosse no trabalho, ou na casa dele, qual de nós podia respirar?
Aproveitei as merecidas férias e encontrei com os amigos de escola
que ainda moravam em Cianorte. Não existe muito o que fazer na cidade
além de ir um para a casa do outro ou então comer fora, mas não vou me
queixar disso. Às vezes o segredo da vida está nos momentos simples.
As risadas que dei com as minhas amigas de infância foram
necessárias para reacender dentro de mim a alegria que tinha ido embora
desde que briguei com Felipe. Aos poucos, eu via a Madu de sempre voltar à
tona e percebia o quanto tudo tinha mexido tão intensamente comigo.
O tanto que eu amava Felipe continuava sendo incrivelmente forte e
eu sabia que para ele também era. Entretanto, muitas coisas estavam erradas
nisso, dentre elas a confiança. Não falo só por parte de um. Eu mesma não
confiei nele ao omitir tudo o que vinha acontecendo comigo. Em
compensação, ele não confiava em mim por outros motivos, ele não me
deixava conhecê-lo por dentro. Algo o freava e eu jamais entendi o motivo. O
receio de Felipe em se envolver sempre foi gritante para mim, mas só agora
me parecia errado.

Os dias passam e permaneço conferindo o celular eventualmente, com


a esperança de que acabarei sendo surpreendida pela aproximação de Felipe.
Infelizmente as suas palavras continuam a deslizar pela minha mente, como
um alerta: “Saiba que se você virar as costas agora, isso não tem mais
volta”. A sua expressão, ou a maneira que os seus dedos estavam unidos com
tanta força... Oh, céus! Ele estava irado com a rejeição, mas a grande questão
é que eu precisava me impor.
Mesmo que ele tivesse ido noite após noite na frente do meu
apartamento, ele nunca realmente se esforçou para me encontrar. Nossa
conversa foi mais como um golpe do destino. Além disso, ele continuava
firme em acreditar que eu o tinha traído. “Espero que não se arrependa”, sua
voz ecoa, embrulhando o meu estômago.
A minha mãe disse que isso não dará em nada a menos que um dos
dois finalmente ceda. É dolorido pensar que talvez tenha de ser eu a procurá-
lo. Ainda assim, é menos doloroso do que não o ter mais para mim. Sei que
ele é orgulhoso o suficiente para manter a sua palavra, além de que está sem
os medicamentos. “Droga! Os medicamentos...”, penso com amargura.
Será que ele retomou o tratamento? Por mais que queria acreditar que
sim, visto que ele estivera com a sua psicóloga no shopping, algo dentro de
mim grita que não. O meu sexto-sentido é realmente um pé no saco, mas
raramente falha. Sempre que essa angústia me assola, é com um motivo justo.
Talvez ele não tenha voltado para os remédios e esteja surtando... Ou
talvez isso seja apenas uma maneira que o meu subconsciente arrumou de se
ocupar com a lembrança do homem que não quero tirar da cabeça por nada.
Abro o WhatsApp e o procuro lá. Sua foto é a mesma de sempre: está
usando um boné e munido de um sorriso largo que derreteria todo o Ártico.
Seus cabelos loiros escapam pelas bordas do boné e a barba dourada está por
fazer. Eu adoro quando está com um pouco de barba. Fica sexy e
incrivelmente excitante.
Meu polegar acaricia a tela e me repreendo pelo comportamento
desesperado. Estou com tantas saudades... O que ele está fazendo em uma
tarde de sábado como essa? Espero que esteja bem.
De repente, o meu coração aperta de uma maneira que beira o
insuportável. Eu o amo. O amo mais do que um dia imaginei que fosse amar
alguém. Não sei exatamente como demos a grande sorte de parar na vida um
do outro, mas o fato é que aconteceu. Não posso ficar longe dele, visto a
forma como ele me eleva ao paraíso com tão pouco.
O jeito protetor e cuidadoso com que Felipe sempre se porta comigo.
A forma como os seus olhos brilham perversos ao me despir. Santo Deus,
damos tão certo juntos. É errado que estejamos dificultando as coisas dessa
maneira.
Se somos dois cabeças duras e teimosos e se para mim é óbvio que ele
não vai ceder, tudo bem. Orgulho já não faz tanto sentido desde que tenho
sofrido tanto sem ele aqui comigo. Não me importo se errou assim como eu e
se patinamos sem sair do lugar. O que me importa no momento é que existe
dois possíveis fins para a nossa situação: o primeiro é permanecermos, os
dois, sem dar o braço a torcer e isso acabar de verdade. O outro é deixar tudo
isso de lado e procurar o homem da minha vida de novo, enquanto ainda é
tempo.
Meus olhos examinam uma vez mais a foto de Felipe no celular, no
entanto, antes que possa escrever algo, bloqueio o telefone, decidida. Há
coisas que devem ser ditas pessoalmente. Essa é uma delas.
Assim que eu voltar para Curitiba, irei até a sua casa. Está decidido.
Não sou mais uma criança para continuar agindo como tal, e sei que ele não
vai colaborar sem os remédios.
Se mesmo assim não der certo, quero olhar para trás sabendo que fiz
tudo o que podia. Porque, caso contrário, sei que vou me arrepender
amargamente por não ter tentado, assim que não houver mais lugar para o
orgulho dentro do meu coração.
A Ligação
Os braços fortes de Felipe me apertam com força, e tudo o que posso
captar neste momento é o seu perfume delicioso e intenso, além do tanto que
senti a sua falta. Enterro o rosto no seu pescoço, ficando na ponta dos pés
para isso. As lágrimas escorrem ligeiras pelas minhas bochechas e tudo o que
posso pensar é que jamais permitirei que a gente brigue novamente, ainda
mais por outras pessoas.
— Eu senti tanto a sua falta! — ele sussurra, apertando-me um pouco
mais entre os braços.
— Eu também! — admito, com o coração transbordando de alegria.
Viro o rosto em sua direção, para beijar os lábios rosados e perfeitos
pelos quais sou viciada. Sua língua vem de encontro a minha, coberta de
desejo e paixão, em uma dança sensual e ritmada que me envolve a ponto de
incendiar todo o corpo.
Deixo os dedos deslizarem pelos botões de sua camisa, desesperada
por sentir sua pele na minha e devorar o seu corpo monumental com os olhos.
Interrompo o beijo e levo os lábios ao seu abdômen, beijando a pele
bronzeada e convidativa em direção à barriga.
As minhas mãos alcançam o cós de sua calça social no mesmo
momento em que ouço a minha mãe me chamar. Mas, o estranho é ela estar
aqui...
Pisco os olhos algumas vezes, tentando colocar a cabeça no lugar.
Droga! É o primeiro pensamento que me vem em mente, ao constatar que era
só um sonho.
Respiro fundo, observando o pequeno quarto onde cresci. É pequeno
e ajeitado. O guarda-roupa planejado de carvalho-avelã termina em uma
escrivaninha, onde jaz o computador que meus pais usam para conversar
comigo. A cama é posicionada logo abaixo do maleiro e da janela pende uma
cortina veneziana horizontal, em faixas grossas.
Esfrego os olhos, ouvindo a minha mãe me chamar mais uma vez lá
de fora. Alcanço o celular e vejo que já é meio dia. Santo Deus, será difícil
me acostumar a acordar cedo novamente, depois dessas férias.
— Já acordei! — grito em resposta, antes que ela me chame pela
enésima vez.
Meus dedos instintivamente clicam no WhatsApp, procurando a foto
de Felipe. O sonho parecia tão real... Sinto tanto a sua falta. O lado bom é que
volto para Curitiba depois de amanhã e espero honestamente poder acabar
logo com isso. Anseio ter suas mãos em mim novamente, sua boca
percorrendo a minha pele... Não consigo mais tirá-lo da cabeça. Quanto mais
o tempo passa, mais incômodo se torna.
Já não me importa mais quem errou, ou porque errou. A única questão
que verdadeiramente me interessa é tentar fazer as pazes com o homem que
amo. A forma como me sinto em sua companhia é especial e verdadeira
demais para eu deixar escapar pelos dedos desta maneira. Quero dizer, como
pude ser burra neste ponto?
As sensações que ele me causa despertam o melhor de mim. Desde o
seu olhar, até o seu toque cuidadoso, ou a maneira de falar comigo: uma
oscilação arrebatadora entre séria e brincalhona. Não há nada em Felipe
Antunes que não mexa comigo. Pensar nele faz com que meus hormônios
entrem em ebulição. Seu corpo sendo um pedacinho de pecado como é, e seu
rosto bonito demais para lidar... Ainda não posso acreditar que ficamos
mesmo tanto tempo longe um do outro.
Será que ele tornou a ir até o meu apartamento? E se foi, será que ele
teve coragem de descer e tocar o interfone? A ideia arranca um sorriso dos
meus lábios. Imagino-o voltando atrás puramente por saudades minhas,
dirigindo em alta velocidade até estacionar suavemente em frente ao meu
prédio, no Centro Cívico. Na minha imaginação, ele está usando roupas
esportivas. Provavelmente calças de moletom e alguma camiseta que deixe os
seus bíceps terrivelmente provocativos. Ele passa pelo porteiro e entra no
elevador com os punhos fechados, lutando entre ceder ou não ceder. Eu amo
como às vezes ele beira o descontrole quando se trata de seus sentimentos.
Ele sai do elevador e toca a campainha, só esperando eu abrir a porta para me
empurrar contra a parede, com um beijo de tirar o fôlego.
Bem, é incrivelmente excitante na minha fantasia, mas o fato é que
não estou do lado de dentro, apenas esperando a campainha para abrir a porta
e tudo ficar bem. E, muito possivelmente, ele também não está do lado de
fora, com as emoções a flor da pele, deixando que o seu desejo o domine
inteiramente.
Começo a me perguntar, então, se ele sentiu saudades minhas. Se, em
todos esses dias que formaram um mês desde que conversamos dentro de sua
Mercedes, ele se pegou observando o celular, assim como venho fazendo
com tanta constância ultimamente. Será que seu polegar acariciou a tela,
enquanto seus olhos cristalinos tentavam captar todos os detalhes da minha
foto?
Será que ele se coçou de vontade de me procurar, mas aguentou
puramente por orgulho? Será que, ao andar pela imensidão de sua casa, ele
começou a lembrar dos nossos momentos pelos cômodos espaçosos e bem
decorados? Será que todas as noites, antes de dormir, ele se lembrou de
nossos corpos enroscados em sua cama enorme e confortável?
Espero honestamente que sim. Porque, desta forma, sei que passamos
pelo mesmo. Tenho o ansiado mais do que achei ser possível. A saudade, que
outrora já foi mais controlada, agora quase me estoura por dentro. Sinto falta
dos detalhes mais simplórios... Como o seu sorrisinho de canto, ou a
expressão de concentração presente em seu rosto, sempre que fazia o nó da
gravata. Até mesmo dos seus dedos apoiados nas minhas costas, toda vez que
ia me indicar o caminho.
No entanto, lá no mais profundo dos meus pensamentos, tenho um
pouco de medo e expectativa. Espero que ele simplesmente não me rejeite.
Espero que ele me perdoe e perceba que estou cedendo porque não aguento
mais ficar longe dele. Espero que entenda o como funcionamos juntos e que
não tem porque nadar contra a corrente quando damos tão certo. A nossa
química, o nosso temperamento, as nossas brincadeiras... Céus, precisamos
acabar logo com isso. Neste momento, estou contando os segundos para
voltar para a cidade cinzenta que me acolheu tão bem.
Logo depois de fazer a higiene matinal, encontro a minha mãe
preparando o almoço.
— Boa tarde, dorminhoca! — ela diz com um sorriso no rosto. — O
que acha de visitarmos os seus avós uma última vez antes de você ir embora?
— Parece ótimo! — digo com honestidade, buscando a toalha de
mesa dentro da primeira gaveta da pia. — Vou sentir falta das rosquinhas de
pinga da vovó!
— Vou ligar pra ela e pedir pra fazer um pouco pra você levar...
— Não precisa incomodar! — replico, alcançando três pratos no
armário.
— Você sabe que não é incomodo! Ela vai ficar toda, toda.
Respiro fundo, decidindo não discutir. De toda forma, vou sair no
lucro por ter um estoque de rosquinhas de pinga para comer em Curitiba,
onde estou longe de ter essas mordomias. Vou aproveitar enquanto ainda
posso.
— E então, está preparada para voltar? — mamãe me pergunta,
encarando-me com seus olhos azuis-esverdeados, de quem herdei os meus.
Agora que estou loira, sou uma réplica exata desta mulher.
— Acho que sim. Preciso descobrir mais notícias sobre a greve da
UFPR... Espero que não nos atrase muito.
— Eu vi hoje no jornal que eles vão fazer uma assembleia semana que
vem, para tentar um acordo.
— Ufa, espero que consigam!
Com um punhado de talheres nas mãos, observo o meu pai entrar no
cômodo usando só bermudas. É incrível o quanto pode estar nevando lá fora
e ele continua na mesma. Quero dizer, ainda que não esteja tão frio quanto na
capital, ainda estamos no inverno, de toda forma.
Meu pai é de quem eu puxei os cabelos escuros e até onde sei, foi só
isso. Qualquer um que bater os olhos em mim e depois em minha mãe saberá
que eu sou uma cópia perfeita dela. Ele, por sua vez, é mais alto que nós duas
e está mais gordinho do que me lembrava. Deve ser das cervejas que toma
assistindo aos jogos do Corinthians, afinal, foi com ele que aprendi a gostar
de umas geladas. Seus olhos, diferente dos nossos, são verdes puros. Eu
particularmente acho maravilhosos e não me importaria nada se os tivesse
herdado.
— Achei que estava em coma! — ele comenta assim que me vê e me
pego rindo gostosamente. Vou sentir falta da leveza da casa dos meus pais.
O nosso almoço é mais barulhento do que o normal e pressinto que
eles já estão começando a ficar com saudades precoces. Se para mim é
horrível me separar deles, imagino que deva ser ainda pior para esses dois.
Depois de tanto tempo para pensar, o que preciso é retomar a minha
vida. A segunda coisa que pretendo fazer depois de voltar para Curitiba é
arrumar um novo emprego. Se vou investir na relação com Felipe, não
deveríamos realmente misturar as coisas.
Posso tentar procurar um emprego mais na minha área e sei que ele
também pode encontrar alguém mais qualificado para o importante cargo que
executei por um curto tempo.

Estou lavando a louça para a minha mãe no momento em que o meu


celular começa a tocar. Não atendo de primeira por estar com as mãos
molhadas, no entanto ele persiste e persiste, ressoando a melodia pelos
cômodos da nossa casa.
O meu coração dispara tão logo corro em sua direção e não posso
evitar deixar a mente me levar para a ideia de ser Felipe do outro lado da
linha. Quando pego o telefone nas mãos, sou tomada por desapontamento.
Não é o telefone dele no visor. Para ser honesta, eu nem conheço esse
número, mas sei que é de Curitiba, uma vez que o código é 41.
Não costumo atender números desconhecidos, mas dado o fato de que
está me ligando tantas vezes, resolvo dar essa chance para quem quer que
queira falar tanto assim comigo.
— Madu? — ouço uma voz conhecida do outro lado da linha e
demoro alguns segundos até me dar conta de que é Vitória. Instantaneamente,
o meu sangue gela e o meu alerta de que há algo errado começa a soar.
— Ah, oi! Tudo bem? — A hesitação em minha voz é tão evidente
quanto a tristeza na sua.
— Madu, você está em Curitiba? — ela indaga, ignorando a pergunta
anterior. Algo em sua voz me faz ter certeza de que passou muito tempo
chorando. “Santo Deus, o que está acontecendo?”
— Estou na minha cidade, mas volto depois de amanhã... Por quê?
— Oh, querida! — ela se lamenta. — Precisamos muito de você aqui!
Será que pode adiantar a passagem?
As minhas pernas já estão incrivelmente fracas neste ponto. Sei tão
certo como o ar que respiro que tem algo muito errado e temo descobrir o
quê.
— Depende... O que houve? — A minha voz é quase um sussurro e
me pergunto se estou mesmo preparada para a resposta.
— Felipe está internado, querida! — ela diz exatamente no mesmo
memento em que cede ao choro. — Tentou suicídio ontem à noite.
“Oh, meu Deus!”
Com a cabeça girando com a notícia, deixo o celular escapar da mão,
caindo no chão com um baque. O barulho atrai a minha mãe até a cozinha, às
pressas e, no momento em que nossos olhares se cruzam, a única certeza que
tenho é que preciso arrumar as malas o mais rápido quanto possível.

CONTINUA...
Agradecimentos
Bem, se você chegou até aqui, a primeira coisa que tenho a dizer é um
grande e sonoro Muito Obrigada! Escrever um livro é uma intensa mistura de
emoções, dentre elas a expectativa enorme de saber a reação dos leitores.
Tenho a sorte de, nesta jornada, ter contado com o apoio da minha
família e amigos, que conseguiram controlar os meus nervos nos momentos
de tensão, e resgatar os meus ânimos quando eu já estava à flor da pele.
Sem vocês, possivelmente eu não teria chegado aqui. Ou talvez não
com o cabelo intacto sobre a minha cabeça. Por isso, muito obrigada por
tudo! Vocês fazem parte disso tanto quanto eu.
O ACUSADO

SEUS SEGREDOS PODEM


MOLDAR O PRESENTE

leis da atração | livro 2


FELIPE —
FANTASMAS
Tomo dois comprimidos de Dramin de uma só vez, com um longo
gole de Whisky. De olhos fechados, tento acalmar essa confusão de
pensamentos. Eu só quero dormir, é a única maneira de esquecer.
Seria melhor para o meu orgulho dizer nunca mais ter voltado ao
apartamento da Madu depois daquela noite, sobretudo depois ter dito a ela
para não se arrepender de suas escolhas. Seria uma mentira lavada, no
entanto. Não consigo mais me ver sem ela.
Mulheres por vezes são difíceis de entender, ainda mais tão novas. Eu
sei o quanto ela também está envolvida. Mas isso não a impediu de afirmar
sermos diferentes demais e, consequentemente, não termos chances de dar
certo. Depois de todas as palavras ditas, de todas as vezes que percorri o seu
corpo com as minhas mãos ou então vi seu rosto entregue para mim, com os
olhos azuis enormes me encarando cheia de expectativa... eu simplesmente
não esperava.
Quero dizer, eu tinha os meus motivos para ficar irritado, não? Desde
o começo a respeitei, da mesma maneira como gostaria de ser respeitado.
Cansei de alertar não ser um homem de brincadeiras. O amor para mim é uma
coisa séria.
Na minha profissão, estou cansado de ver cinismo e jogos de ironia. É
preciso pisar em ovos quando se trata de acreditar em palavras jogadas ao ar.
Trata-se de um imenso jogo de quem sabe blefar melhor.
Por isso, no que diz respeito à vida pessoal, sempre tento
descomplicar tudo. O passado já foi complicado demais, assim como o
cotidiano continua sendo. Então por que arrumar mais problemas para uma
cabeça já fodida?
Como disse, o amor para mim é uma coisa séria! Eu não o estava
procurando, mas, uma vez que o encontrei, por que complicar? Madu
apareceu na minha vida quando eu menos imaginava, em uma foto sorridente
no currículo para a vaga de assistente pessoal. Apesar de não ter nenhuma
qualificação para o cargo, algo no seu jeito espontâneo, alegre e falante me
fisgou. Por algum motivo eu a queria por perto, embora pudesse usar a
desculpa de ser apenas profissionalmente. E, mesmo tentando me esquivar do
interesse aparente dela, não percebi o quanto já tinha me envolvido logo de
cara.
Não se pode controlar os sentimentos, disso eu sei muito bem. Seria
mais fácil não precisar de três tipos de remédios diferentes, caso contrário
fosse. A vida nem sempre é fácil, mas não me queixo. Tenho motivos de
sobra para agradecer, apesar de ter muitos para lamentar.
Por isso, depois de nos entregarmos... depois de abrir a merda de
nossos corações, qual o propósito de complicar? Eu a amo tanto que dói!
Odeio o quanto me sinto vulnerável admitindo isso, mas qual a vantagem em
mentir para mim mesmo? Ela era a luz nos meus dias escuros, no entanto se
foi, deixando-me quebrado.
Agora, depois de tantos dias refletindo, começo a ver muito mais
sentido na versão da história dela. Pelos sete infernos, Renato está sendo
processado por assédio, como eu pude dar ouvidos a ele?
Para mim, é difícil confiar nas pessoas, em primeiro lugar. Eu não
confio em ninguém. Nem mesmo nela, embora seja doloroso admitir isso.
Afinal, é impossível confiar em outrem quando não se confia em si mesmo.
Renato pode mesmo tê-la infortunado, realmente faz o estilo dele. Porém, o
pensamento insistindo em permanecer na minha mente já turbulenta é: por
que ela precisou mentir?
Não sei ao certo quanto tempo faz desde o nosso último encontro. Só
consigo me lembrar do quanto estava linda e segura de si mesma com os
cabelos novos, parecendo até mesmo anos mais velha. Aparentava estar tão
bem... É egoísmo remoer isso, eu sei. Às vezes acho ser melhor deixá-la ir,
pelo bem dela. Eu sou um problema. Um problema sem solução. E ela é
muito nova para eu estragar a sua vida.
Voltei com as bebidas desde aquela noite. Não sou um alcoólatra, na
verdade está bem longe disso. Mas, quando estou prestes a encher um novo
copo com Whisky, lembro-me dos inúmeros psiquiatras com os quais já
estive ao longo dos anos. Todos me alertando sobre o quanto a bebida pode
piorar o quadro do Transtorno Bipolar. “Procurar alívio nas drogas faz parte
do problema, não da solução”, eles diriam se me vissem agora. Foda-se! Se
eles precisassem lidar com metade do que carrego aqui dentro da cabeça,
fariam companhia para mim, tenho certeza.
É mais fácil lidar com as lembranças assim. Não muito responsável de
minha parte, e, com certeza, egocêntrico; mas, de toda forma, chega um
ponto em que se cansa de tanta merda. Olho ao redor... a vida confortável, os
pais amorosos, o sucesso profissional... ironicamente, nada capaz de cobrir
esse vazio terrível. Nada capaz de apagar os fantasmas teimando em me
perseguir, ou todo o terror de lembranças passadas. Como se eu já não me
castigasse o suficiente...
Encaro o celular, passando o polegar sobre o visor. Então me lembro
do dia em que Madu me mandou uma mensagem, pouco antes de viajarmos
para São Paulo, perguntando se podia levar o biquíni para horas vagas... O
pensamento me arranca um sorriso fraco. Sempre tão provocativa, tão cheia
de vida!
O problema está no fato de Madu não ser a única a perturbar a minha
mente, Deus sabe que não. Nos últimos dias, minha irmã, Amanda, voltou a
protagonizar os meus pesadelos, impedindo-me de dormir. Cada maldita vez
em que fecho os olhos ela aparece, com as íris azuis elétricas e os cabelos
loiros como os meus, e o terror volta a me assombrar. Depois choro por horas
a fio, como uma criança assustada, tentando me agarrar a esperança de que
algum dia todo esse tormento me abandonará, algum dia conseguirei ser
plenamente feliz. Eu já não sei se essa ilusão me convence minimamente.
Respiro fundo, alcançando o décimo comprimido de Dramin dessa
noite e o jogo garganta adentro com outra longa golada de Whisky,
constatando já quase não sentir o sabor descer ardendo. Preciso dormir para
fugir dos pensamentos traiçoeiros, esse é o meu único desejo. Normalmente,
um ou dois comprimidos cuidam do trabalho, mas não hoje. Estou aceso
como uma lâmpada fluorescente, os pensamentos a mil. Precisarei carregar
esse carma eternamente. Até quando minha cabeça continuará sendo o meu
pior inimigo? Estou cansado!
Deixo as unhas rasparem contra a barba por fazer, piscando os olhos
lentamente. Olho ao redor e percebo tudo rodando sem parar, enquanto o
coração começa a palpitar com uma cadência cada vez mais alarmante. Tem
algo errado! O mundo virou um borrão confuso, sinto-me como se estivesse
em uma montanha-russa.
O mal estar me pega de surpresa. Tento afrouxar a gravata me
sufocando. Minhas mãos começam a suar frio e percebo, atônito, a respiração
cada vez mais curta e rápida, como se o oxigênio estivesse escasso dentro
deste quarto. Levanto da cama e me arrependo instantaneamente. Escoro-me
nas paredes a fim de segurar a tontura me dominando e luto para chegar até
Leonor.
Alcanço o corredor com dificuldade, começando a acreditar ter me
metido em uma enrascada. “Porra, que merda eu fui fazer?”, penso irritado
tão logo o entendimento ganha a minha consciência. Foram muitos remédios,
no fim das contas... Já até posso imaginar o olhar triste dos meus pais, de
Leonor, ou até mesmo da Madu... São tantas pessoas para decepcionar, eu
sou o campeão nisso.
Minhas pernas ficaram pesadas como chumbo, por isso é difícil
continuar. Escoro-me na parede deste maldito corredor interminável, odiando
o fato do quarto de Leonor estar tão longe. Meu peso está insuportável, eu
simplesmente não vou conseguir.
Conformado com o final patético para uma vida igualmente patética,
deixo o corpo escorregar até o chão, provocando um baque abafado. A
sonolência está me tomando em uma velocidade alarmante, então fecho os
olhos. Na escuridão da minha mente, Amanda volta, trazendo a culpa com
ela. As lágrimas banham o meu rosto, quando percebo talvez ser melhor
simplesmente ceder e acabar com tudo de uma vez. A quem estou
enganando? Não desejo essa vida fodida nem para o meu pior inimigo.
Então Bia, com o seu sorriso maravilhoso e a pele negra de tirar o
fôlego, aparece por fim, terminando de me arrastar para o fundo do poço. Mal
consigo respirar, tamanha é a intensidade com a qual choro. Todas as
malditas memórias se entrelaçam, confundindo-me a respeito do que é ou não
real.
Tombo no chão, captando o som de passos cheios de urgência vindo
em direção a mim, depois de algum tempo. Oscilo entre consciente e
inconsciente, tentando, com todas as forças, abrir os olhos.
— Felipe! — ouço um grito, parece ser a voz de Leonor.
Meu corpo é chacoalhado, provocando uma nova onde de náusea.
Quero alegar estar tudo bem, dizer não haver motivos para preocupação,
porém só consigo murmurar algo ininteligível. Leonor continua a gritar o
meu nome, mas sua voz se torna cada vez mais distante, a medida em que a
escuridão avança sobre mim, finalmente apagando a dor.
MADU —
CULPA
Estou quase cochilando quando o ônibus chega em Curitiba.
Passei as últimas oito horas com os olhos bem abertos, sem conseguir
acalmar a profusão de pensamentos me bombardeando. A viagem aparentou
ter durado, no mínimo, uma semana.
Não me lembro de alguma vez na vida ter me sentido tão angustiada
quanto agora. Desde que Vitória me ligou, horas atrás, com a notícia, a minha
cabeça parou de processar novas informações. Mamãe precisou encerrar a
ligação, enquanto eu corria para arrumar as minhas malas, sem pensar em
nada mais além de Felipe e se ele estava bem.
Meus pais pareceram tão aflitos quanto eu quando tentei explicar por
cima a situação. Papai se ofereceu para me trazer de carro até Curitiba, mas
eu jamais poderia aceitar causar tanto trabalho para ele. Imagine só viajar
quinhentos quilômetros para me deixar aqui e depois fazer o caminho de
volta... Preciso enfrentar isso sozinha!
Por sorte, conseguimos a passagem neste ônibus onde me encontro
agora, apesar dele estar apinhado de pessoas. Combinei com os pais de Felipe
o horário previsto para a chegada, depois de eles insistirem tanto em me
buscar na rodoviária. A verdade é que eu estou com medo de encontrá-los
porque, dentro de mim, sinto uma culpa enorme por todos os acontecimentos
recentes.
Mil perguntas pululam simultaneamente na minha mente. Se eu o
tivesse procurado antes, ele teria tentado tirar a própria vida? Não sei se
quero descobrir a resposta. Tratando-se dos sentimentos de Felipe, é
complicado afirmar alguma coisa com confiança. A minha única certeza é de
ele estar sem tomar seus remédios há muito tempo, ou jamais teria tentado
algo assim... Santo Deus, só de imaginar o que poderia ter acontecido, as
lágrimas voltam a saltar dos meus olhos.
A senhora ao lado deve estar preocupada com a quantidade de choro
derramada por mim ao longo da viagem. Mas como posso evitar? A cada
segundo imagino Felipe tentando fazer algo contra si mesmo, então uma dor
avassaladora me domina. Ao tentar imaginar como seria a vida se o pior
tivesse ocorrido, perco uma batida do coração. Droga, como isso foi
acontecer?
Pela janela do ônibus, constato termos chegado à rodoviária. Sem me
importar com o quanto devo parecer maluca para os demais passageiros,
levanto em um pulo e corro pelo corredor. Quero sair daqui o mais rápido
possível. Esse ambiente claustrofóbico me lembra, a todo o momento, do
quão atadas as minhas mãos se encontram, eu odeio demais não poder fazer
nada. Quanto antes chegar até Felipe, melhor. É tudo o que me importa agora.
O resto eu penso depois.
Tão logo o veículo estaciona e a porta é aberta, avanço como um raio
para fora, desesperada para pegar a minha mala e me encontrar com os pais
de Felipe. Enquanto espero o motorista encontrá-la, sinto um toque
cuidadoso no ombro direito, quase me provocando um enfarto.
Giro os calcanhares, encontrando Isaque com os olhos inchados e uma
expressão cansada tomando as feições. A semelhança entre ele e Felipe é
gritante, eles são a cópia exata um do outro. Ele me envolve com os braços,
em um abraço cheio de significado. Nem mil palavras diriam tanto. É neste
momento que finalmente cai a ficha. Até então, era como se tudo tivesse
acontecendo com outra pessoa e eu apenas testemunhasse, sem experimentar
as emoções com a intensidade merecida. Céus, Felipe quase morreu!
Aperto Isaque com toda a força permitida pelos meus braços esguios,
não me importando com as outras pessoas nos olhando cheias de curiosidade.
Minha nossa, esse é, sem dúvidas, o pior dia da minha vida. Eu só espero que
Felipe não me odeie a esta altura do campeonato.
— Vai ficar tudo bem, querida — ele sussurra, desvencilhando-se do
abraço em seguida.
Isaque passa o braço pelos meus ombros, insistindo em levar a mala
para mim no caminho até o estacionamento. É possível ver em seus olhos o
quanto se encontra abatido, parece ter perdido o chão, e entendo muito bem.
Alcançamos, então, o seu carro: uma Range Rover Evoque marrom, a
qual teria me impressionado em outra ocasião. O Batel não fica longe da
rodoviária — além do mais, são cinco da manhã — por isso, cerca de vinte
minutos depois, paramos em frente à mansão de Felipe. Suspiro aliviada,
agradecendo aos céus por ele já ter recebido alta e estar em casa.
Apesar de a minha vontade ser correr até o quarto dele, acompanho os
passos tranquilos de Isaque.
— Ele recebeu alta quando? — pergunto com a voz vacilando.
— Pouco depois de te ligarmos... Mas quase não ficou acordado,
desde então. Ainda deve estar dormindo, caso contrário Vitória teria
telefonado.
Assinto para ele, incapaz de prolongar as poucas palavras trocadas
entre nós desde a rodoviária. Subimos os lances de escada até o terceiro
andar, onde fica o quarto de Felipe. Antes de o alcançarmos, Vitória e Leonor
saem pela porta, os mesmos olhares cansados e terrivelmente abatidos de
Isaque.
Leonor vem até mim primeiro, com o seu jeito protetor de sempre. Os
olhos estão apagados, assim como os de Vitória, afinal, ela é como uma
segunda mãe para Felipe, ele mesmo me disse isso. Eu a abraço um pouco em
choque, novamente anestesiada. Embora tenha tentado me preparar para esse
momento ao longo da viagem, percebo não poder me encontrar mais longe
disso.
Porém, é ao abraçar Vitória que toda a culpa reprimida me alcança,
como a onda de um tsunami. Meu Deus, vou desabar aqui mesmo! Com a
cabeça rodando, aumento a força do abraço como se dependesse disso para
viver, permitindo-me chorar como uma criancinha. De repente, não me
parece claro o motivo para ter me afastado de Felipe. Droga, por que precisei
ser tão cabeça dura?
— Já está tudo bem! — ela profere carinhosamente.
— Não está, não! — murmuro, em meio a soluços intermináveis. — É
tudo culpa minha! — as palavras são jorradas, externando aquilo que venho
tentando negar desde quando a notícia penetrara os meus tímpanos.
Os braços de Vitória me apertam com força e sou embalada em seu
perfume intensamente doce.
— Não é culpa sua, querida!
— Nós brigamos por um motivo idiota... Ele estava sem os remédios
e eu sabia disso, mas fiquei tão confusa! Eu sinto muito!
— Não é culpa sua, Madu! — ela repete, com a voz falhando no final
da frase.
Como não tenho reação alguma, Vitória se afasta ligeiramente de
mim, segurando o meu queixo com a mão e me forçando a encará-la nos
olhos.
— Não é a primeira vez a acontecer.
Talvez o choque no meu rosto seja visível, tendo em vista o fato de
ela continuar:
— Você não sabe?
— O quê?
Olho para os lados, buscando Isaque ou Leonor, no entanto percebo
atônita não estarem mais ali. Somos só nós duas. Tão logo volto a encará-la,
ela sorri tristemente, balançando a cabeça em negativa.
— O Felipe carrega traumas profundos.
— O que aconteceu? — indago em um sussurro, inconformada por
estar completamente alheia a situação.
O silêncio perdura por alguns minutos, antes dela responder com uma
expressão vazia.
— Sinto muito você não saber sobre nada disso ainda... — Vitória
suspira, secando as lágrimas com as costas das mãos. — Logo ele estará
melhor e vocês poderão conversar. São assuntos que mexem muito com ele,
querida, eu jamais seria capaz de contar em seu lugar. — Ela olha em direção
ao quarto e aperta o meu ombro esquerdo com suavidade. — Vou descer para
tomar uma água...
— Calma! Como... como ele tentou...?
— Tomou uma cartela inteira de Dramin... — Sorri com amargura,
uma nova lágrima escorre pela bochecha, formando um rastro brilhante. —
Precisou fazer uma lavagem gástrica de urgência. O médico disse que mais
um pouco e não teria aguentado... Temos sorte por Leonor tê-lo encontrado a
tempo.
Suas palavras permanecem no ar enquanto a observo se afastar,
deixando-me sozinha. Em passos lentos, caminho até o quarto onde passei
tantas noites emaranhada nos braços fortes de Felipe. Então, prendendo a
respiração, empurro a porta, com um misto de sensações à flor da pele.
FELIPE —
BOA LEMBRANÇA
Não me lembro de muitas coisas após ter perdido a consciência no
chão de casa. As memórias vêm em flashes confusos e imagens parecendo
extraídas de um sonho do qual já me fugiram alguns detalhes.
Recordo da sirene da ambulância e do som de choro — com certeza
tinha um constante choro histérico — e não preciso pensar muito para
deduzir ser a minha mãe. Depois existem alguns borrões sobre os médicos
tentando descobrir o que eu havia ingerido. Não sei dizer qual foi a minha
resposta, mas, dado o fato de continuar vivo, imagino ter conseguido falar
alguma coisa relevante, apesar de ainda não ter decidido se estou feliz ou não
com isso.
Então os lapsos vão se tornando cada vez mais escassos... um cano
entrando desconfortavelmente pelo nariz, eu vomitando as minhas tripas por
horas a fio, conversas aos sussurros sobre o estado crítico alcançado por mim.
Se existia um jeito de piorar toda a merda da minha vida, executei com
maestria!
Depois disso, lembro-me somente do percurso silencioso até o meu
lar. Eu sentado no banco traseiro como um maldito adolescente, tentando
parecer arrependido por ter perdido o controle. É tão nostálgico... sinto
vontade de rir dessa grande piada de mau gosto. Como pude ser tão burro?
Não troco palavra alguma com o meu pai, com a minha mãe, ou até
mesmo Leonor. Em parte porque não tenho como explicar os acontecimentos
recentes, mas, principalmente, por imaginar a conclusão de todos. Tudo bem,
as evidências estão contra mim e o passado também. Pareço com a merda de
um suicida e prevejo a dor de cabeça interminável que essa fatídica noite me
trará.
Sentindo-me exausto, mergulho em um sono profundo e inquieto.
Acordo eventualmente, encontrando sempre pares de olhos diferentes me
acompanhando. Minha mãe é quem permanece mais tempo. Mal posso
exprimir o quanto lamento por isso.
Eu devo uma justificativa para os meus pais, em primeiro lugar. Eles
merecem um motivo. O meu medo é precisar encarar as pessoas que mais me
amam no mundo e explicar porque fodi com tudo mais uma vez. No fim das
contas, é isso que eu faço de melhor: estrago tudo.
No entanto, aproveito enquanto ainda posso adiar este momento,
perambulando entre a consciência e a falta dela. Na escuridão da minha
mente, encontro as duas pessoas responsáveis por me assombrar todos os dias
da minha vida fodida.

Sou desperto com o clique da porta se fechando suavemente,


porém permaneço de olhos fechados. A queimação no estômago está pior do
que nunca. “Ótimo, consegui foder um pouco mais comigo”, penso
amargurado, soltando um longo suspiro.
Perdi a noção do tempo. Pode ter passado horas ou anos, para mim
seria exatamente da mesma maneira. Abro os olhos com cautela, tentando
descobrir, sem ser notado, quem é a companhia de agora, contudo sou
surpreendido ao descobrir estar sozinho. É a primeira vez desde que cheguei
aqui.
Uma onda de alívio me invade, como se finalmente pudesse respirar.
Ter sempre alguém no quarto é um sinal de amor, muitos diriam. Mas não
para mim. Quero dizer, quando se tem uma doença com índice tão alto de
suicídios e um histórico como o meu, a permanência constante de alguém em
sua companhia soa mais como vigília.
Quero aproveitar essa sutil liberdade, mesmo por segundos, porém
ainda possuo Dramin correndo pelas veias. O sono é implacável. Muito
embora a lavagem gástrica tenha impedido o pior, passei um tempo
considerável absorvendo os dez comprimidos do remédio. O suficiente para
derrubar um urso, imagine então eu.
Por isso, mesmo a contragosto, vou, aos poucos, apagando
novamente, zonzo, enojado e deprimido. Desta vez, porém, vez não é
Amanda nem Bianca quem encontro nos meus sonhos, mas sim Madu.
Depois de semanas de pesadelos intermináveis, uma trégua parece quase com
o paraíso.
Nele, ela tem os cabelos loiros presos em um coque no alto da cabeça
e veste uma das minhas camisetas, a qual, ocasionalmente, sobe, revelando a
calcinha rendada branca que adoro vê-la usando.
Aproximo-me dela, sem saber ser um sonho, sem saber que não a
tenho mais, sem saber da merda que se tornou a minha vida desde que Madu
parou de fazer parte dela.
Ela se encontra apoiada contra a ilha central da cozinha, comendo
distraidamente uma goiaba. De onde estou, tenho uma visão privilegiada de
suas curvas, ou da forma como está empinando a bunda neste momento,
mesmo sem a intenção. Ela não me vê — e isso torna tudo ainda mais
interessante.
Uma rajada de vento entra pelas janelas amplas, trazendo o perfume
doce dela até as minhas narinas. “Esse cheiro...”, penso, inspirando
profundamente para tentar memorizá-lo. Parecia esquecido em alguma parte
do cérebro, mas agora se faz intenso a ponto de me deixar desnorteado.
Percorro a distância entre nós, envolvendo-a em um abraço por trás.
Madu dá uma risada gostosa ao perceber que estou duro, soltando o restante
da fruta sobre a superfície da bancada e girando o corpo para ficar de frente
para mim.
— Já acordou animado? — pergunta, com o sorriso de menina
travessa responsável por ter me deixado louco por ela.
— Você está muito cheirosa! — murmuro, enterrando o rosto no
pescoço dela e trazendo-a para mais perto de mim. — Não tenho culpa, você
faz isso comigo.
— Isso o quê?
— Me deixa louco!
— Hum... — com um impulso, ela se senta sobre a bancada. O olhar
provocativo é impagável. — E se eu fizer isso? — diz, abrindo as pernas. —
O que acontece?
A gargalhada escapa dos meus lábios antes que eu possa fazer algo a
respeito.
— Não vou me responsabilizar por perder o controle... — respondo,
segurando o seu rosto entre as mãos, pronto para provar o seu sabor.
Então o clique da porta me busca deste momento delicioso, trazendo a
realidade que não quero encarar. Aos poucos, retomo a consciência, sem
nunca deleitar o que estava por vir no sonho.
Ouço passos se aproximando da cama e, por isso, permaneço de olhos
fechados. Ocasionalmente precisarei encarar a realidade, eu sei, no entanto
este ainda não é o momento adequado. Mereço mais algumas horas de
calmaria antes de outra tempestade.
O sonho foi demasiadamente real. É possível até mesmo sentir o
perfume da Madu no ar — ou isso ou talvez esteja mesmo enlouquecendo,
com certeza existe a possibilidade. Eu só queria voltar para lá, se aquele é o
único lugar onde ainda a tenho para mim.
Madu pode ser teimosa de uma maneira irritante, ou até mesmo
mimada em alguns momentos, talvez um pouco imprevisível e absolutamente
esfomeada, também. Contudo, foram exatamente detalhes assim a me
deixarem louco por ela. Ela é autêntica. É possível ver exatamente como está
se sentindo ao fitar os seus olhos translúcidos, e isso é o que mais gosto em
Madu. “Então por que foi tão difícil acreditar nela?”, minha consciência me
cobra uma resposta, embora eu não tenha uma.
Os minutos passam e a sonolência volta a me embalar, como em uma
dança. Sou seduzido pela ideia de encontrá-la novamente nos meus sonhos,
por isso não resisto.
Estou quase cochilando quando sinto um leve roçar nos meus lábios,
imaginando ser a ponta dos dedos dela, percorrendo suavemente o desenho
da minha boca. “Essa é uma boa lembrança”, penso, incapaz de dominar o
sorriso. Foi a última vez que Madu dormiu aqui comigo. Acordou-me com os
dedos passeando nos meus lábios... Parece há muito tempo, quem sabe até em
outra vida.
— Você sempre acorda as pessoas assim? — repito em um sussurro a
pergunta feita por mim no dia em questão, sem me importar com quem quer
que esteja me vigiando neste momento.
Foda-se, apenas estou com saudades!
— Só você!
As palavras penetram os meus tímpanos, deixando-me
momentaneamente sobressaltado. Abro os olhos de uma só vez, ponderando a
possibilidade de a minha mente estar me traindo exatamente agora. Porque,
de frente para mim, vejo as íris esverdeadas, o nariz empinado e os lábios
carnudos pelos quais estive doente de saudade.
MADU —
LÁGRIMAS
Os olhos de Felipe se abrem, revelando uma imensidão azul.
Santo Deus, como ele está abatido... nunca o vi dessa maneira antes!
Assombro toma seus traços perfeitos por segundos, os quais uso
juntando a coragem necessária para me inclinar sobre ele, tocando os seus
lábios agora com a boca.
O tempo parece parar. Sinto a respiração morna dele ricochetear
contra o rosto, de maneira mansa e até mesmo um pouco preguiçosa. O toque
macio e úmido de seus lábios está vívido na memória, apesar de contar um
bom tempo desde que o beijei pela última vez. Felipe não reage e por isso me
afasto, na tentativa de ler os seus pensamentos.
Seus lábios se separam, ele está claramente surpreso. Depois dos
acontecimentos recentes, imagino ser a última pessoa a quem ele esperava ver
agora. Suas íris azuis me estudam com atenção. É quase como se ele tentasse
convencer a si mesmo de que estou aqui.
Percebo o quanto permaneço inclinada sobre ele, ficando ligeiramente
constrangida com isso. Ele acabou de passar por momentos difíceis. Precisa
de espaço para se recuperar, e aqui estou eu sendo inconveniente. Respiro
fundo, repreendendo-me por tê-lo beijado agora. Por que preciso ser tão
impulsiva?
Quando ameaço me afastar da cama, porém, Felipe finalmente esboça
uma reação. Primeiro os lábios se torcem sutilmente em um sorrisinho —
quase imperceptível, mas suficiente para roubar o ar dos meus pulmões. Suas
mãos grandes vêm de encontro ao meu rosto, segurando-o dos dois lados e
me forçando a percorrer novamente a distância entre os nossos rostos.
A colisão de nossos lábios é um pouco dolorida dessa vez. Apesar de
visivelmente sonolento, Felipe parece determinado em corresponder ao
desejo. Sua língua busca passagem entre os meus lábios com certo desespero,
o qual me lembra do começo de nossa relação, quando mal podíamos
suportar a vontade um pelo outro. Pelo jeito nada mudou neste sentido.
Nossas línguas se enroscam em uma dança agitada e um pouco
violenta. Só então me lembro de ainda permanecer com a respiração presa e,
por isso, busco por ar com um pouco de urgência. Os dedos dele se perdem
entre os fios do meu cabelo, deixando-me arrepiada. Droga, como senti
saudade do cheiro dele, ou do seu contato autoritário e protetor...
Levo as mãos ao rosto de Felipe, imitando o seu gesto.
Instantaneamente, as lágrimas começam a pular dos meus olhos. A dor
preenchendo o meu coração está a ponto de esmagar. Sou grata pelo pior não
ter acontecido, mas, a todo momento, pego-me pensando na possibilidade de
nunca mais ter a chance de beijá-lo como faço agora, então estremeço,
apavorada somente com a perspectiva.
As lágrimas lavam o meu rosto em uma velocidade surpreendente, de
forma que Felipe percebe o choro, encerrando o nosso beijo com uma
sucessão interminável de beijinhos ligeiros. Sorrio um pouco sem vontade,
feliz por ele continuar o mesmo, apesar de tudo. Uma mistura perfeita de
carinhoso e brincalhão pela qual sou apaixonada.
Permanecemos mais alguns segundos com os lábios unidos, olhos
fechados e mãos segurando um ao outro. Felipe roça a boca na minha
suavemente, em um movimento de vai e vem. Apesar da saudade esmagadora
dentro de mim, é quase como se tivéssemos nos visto ainda ontem pela
última vez. Nada mudou.
Afasto o rosto dele, com o choro cada vez mais sentido. Abro os olhos
e o encontro olhando para mim, a expressão de carência pela qual sou
apaixonada, apesar das olheiras causadas por tantas horas de sono, somada à
expressão abatida.
Tento encontrar palavras para quebrar o silêncio, mas pareço ter
perdido a habilidade da fala. Não consigo mover um único músculo,
encarando as íris azuis profundas de frente para mim. Deixo os dedos
percorrerem os cabelos dourados de Felipe, vendo-os refletirem a luz natural
vinda da janela. O dia lá fora é pálido e deprimente, tal como a minha alma se
encontra neste momento.
Uma de suas mãos percorre as minhas bochechas, limpando as
lágrimas insistindo em cair sem trégua. O contato me conforta e, com ele,
uno a força necessária para quebrar o silêncio entre nós. Respiro fundo,
preparando-me para um monólogo.
— Por favor, me desculpa! — minha voz falha. Retomo a coragem e
continuo. — Eu fui uma idiota, me desculpa! Estava tão confusa, não pensei
direito, eu nunca quis escon...
Seus lábios voltam a se unir aos meus, detendo-me. Sinto seus
polegares acariciarem as minhas bochechas com ternura e me permito
aproveitar o momento. Felipe é sempre tão intenso, mesmo agora,
recuperando-se de uma noite traumática, continua vivo em sua essência.
Relutante, torno a me afastar, olhando-o cheia de cumplicidade. Quando abro
a boca para falar, ele me interrompe. A voz está arrastada e rouca, mas, ainda
assim, rouba-me uma batida do coração.
— Eu te amo! Amo demais, Maria Eduarda! Nunca mais vou te
deixar sair de perto de mim, está entendendo? — Felipe percorre o contorno
dos meus lábios com o polegar direito, tal como eu fizera com ele há pouco.
— Você não pode nem imaginar o quanto senti a sua falta... no fim das
contas, somos teimosos na mesma medida. — Seus lábios retorcem em um
sorriso amargo. — Não tem razão para se sentir culpada pelo que aconteceu,
tudo bem?
— Mas se eu tivesse te procurad... — começo, porém ele me
interrompe novamente, repousando o indicador sobre os meus lábios.
— Shhh! Você está aqui, algo mais importa?
Seus braços protetores me envolvem, buscando-me para perto de si.
Inclino-me novamente sobre o seu corpo, recebendo o abraço sem hesitar.
Fecho os olhos, sorvendo o perfume de shampoo vindo dos seus cabelos.
Céus, meu coração se encontra em frangalhos. Como se alguém o tivesse
colocado em um moedor de carne para depois tentar unir os minúsculos
pedaços.
Finalmente consigo me livrar do peso esmagador pairando nos meus
ombros desde que recebi a ligação de Vitória. Quase como se tivesse feito
tudo no modo automático, sinto-me despertando de um longo pesadelo. Eu
apenas quero que tudo isso termine e voltemos a ser apenas Felipe e eu, sem
todo esse melodrama nos rondando.
Todavia, muito embora o peso tenha se aliviado, ainda existe tanto me
afligindo... Uno as sobrancelhas, sentindo as mãos pesadas de Felipe subirem
e descerem nas minhas costas. O que aconteceu com ele? Quais são os
fantasmas responsáveis por fazê-lo odiar a própria vida? Sem perceber, volto
a chorar, molhando o algodão de sua camiseta. Droga, meus sentimentos
estão à flor da pele! Eu preciso colocar pra fora as palavras ensaiadas por
longas oito horas de viagem. Talvez existam momentos melhores, eu sei, mas
a culpa está me sufocando.
Ainda segura em seus braços fortes, decido ser o melhor momento
para falar, assim, pelo menos, não precisarei enfrentar os olhos fundos,
emoldurados por olheiras arroxeadas. Não, isso tornaria tudo muito pior.
Munindo-me novamente de uma nova dose de coragem, começo a sussurrar
contra o seu ouvido, preparada para não permiti-lo me interromper outra vez.
— Eu sinto muito. Por tudo. Eu te amo tanto! Desde o começo você
não quis se envolver, mas existe algo em você que mexe comigo... eu soube,
desde quando nos conhecemos, que o queria pra mim. E não me importa,
sabe? Você pode ter os seus traumas e talvez ainda não esteja preparado para
lidar com eles... eu só quero estar aqui quando este momento chegar, porque
vai chegar e eu sei disso.
A força nos braços de Felipe aumenta, deixando-me ligeiramente
esmagada.
— Eu nunca brinquei com você! Apenas tive medo... Renato estava
me cercando e era um cliente muito importante para a sua carreira. Só que,
mesmo se não fosse, era a minha palavra contra a dele. Em quem você
acreditaria? — suspiro, roçando os lábios no lóbulo de sua orelha. — Eu
achei que podia lidar com isso sozinha, você parecia ter problemas demais.
Agora eu vejo o tamanho do meu erro e sinto muito, Fê.
Ele me solta e elevo o tronco, encarando-o de cima. O sorriso torto
em seu rosto faz as palmas das minhas mãos suarem frio. Sua mão direita
prende uma mexa de cabelo atrás da orelha, sem interromper o contato visual
entre nós dois, no entanto.
— Adoro quando me chama assim!
As palavras pairam pelo ar, cobertas de sonolência. Lembro-me dele
me dizendo isso em outras ocasiões e, por isso, uma risada baixa escapa dos
meus lábios. Noto suas pálpebras fechando com uma frequência cada vez
maior e constato, com amargura, o fato de precisar descansar. Há muito para
conversamos, mas o tempo está ao nosso lado desta vez.
FELIPE —
RECAÍDA
Acordo sobressaltado, levando alguns segundos para me lembrar
de onde estou. Olho ao redor, piscando vezes o suficiente para os olhos se
acostumem com o escuro, então começo a reconhecer os detalhes do quarto.
Meu peito sobe e desce em uma respiração curta e a pele toda cintila com
gotículas de suor, apesar de estarmos no auge do inverno.
Não consigo recordar detalhes do pesadelo, mas tive um, estou certo
disso pela maneira como o coração batuca contra o peito. Subitamente,
percebo o quanto me encontro acordado, digo, realmente acordado. Desde
que caí como um abacate no corredor, nunca estive tão lúcido como me
encontro agora.
Estico o braço, alcançando o interruptor na parede e o acendo sem
hesitar. Minha visão instantaneamente percorre toda a extensão do quarto, a
procura da companhia da vez. Encontro meu pai dormindo em sono profundo
na chaise estrategicamente posicionada no segundo ambiente.
Esfrego o rosto, varrendo para longe qualquer vestígio de sonolência.
Dormi nestes dois dias o suficiente para a semana inteira, não quero voltar
para a cama tão cedo.
Giro o corpo para fora, recebendo de bom grado a liberdade em
finalmente escapar dessa prisão. Passo silenciosamente pelo meu pai,
decidindo tomar um banho em outro banheiro, para não ser pego no flagra.
Tudo o que preciso neste momento é desfrutar um pouco da claridade da
minha mente, sem precisar encarar o inevitável.
Tomo uma chuveirada sem pressa, deleitando-me com o jato
relaxante de água ricocheteando contra as minhas costas. Acordei de bom
humor depois de hibernar quase o final de semana inteiro, a ironia da situação
como um todo me causa asco. De toda forma, não vou choramingar pelo leite
derramado. Não há nada a se fazer a respeito de uma má decisão além de
encarar as consequências. Eu apenas preciso ser forte o bastante para mostrar
o meu lado da história.
Caminho pela casa como uma barata tonta, parando, por fim, na área
de lazer da cobertura — lugar que me oferece uma boa visão da propriedade.
Uma brisa gélida lambe a minha face, despenteando-me os cabelos. Estou
com a mente inquieta, os pensamentos correndo a mil por hora dentro da
cabeça. Essa é a pior sensação, no fim das contas: a de não conseguir
acompanhar a própria mente. São nesses momentos que o Transtorno Bipolar
me pega desprevenido, por isso preciso estar alerta.
Deixo os dedos percorrerem o vidro temperado da sacada,
permitindo-me um sorriso. Ao refletir sobre o meu estilo de vida, assim como
as conquistas acumuladas ao longo destes anos, o único pensamento que me
surge é o de ter chegado longe demais para simplesmente jogar tudo fora.
Eu apenas não consigo entender a razão de ser tão difícil focar nos
momentos bons quando mais preciso fazer isso. Agora me sinto bem, talvez
até demais. O problema é, na verdade, quando a tristeza pega. Funciona
quase como um trem vindo ao longe: primeiro ouvimos o som suave, depois
sentimos um leve tremor se aproximando, entretanto, no momento em que
menos esperamos, ele irrompe o ambiente de maneira agressiva. A tristeza
não tem piedade. Vem de uma vez só, impossibilitando-me de reagir.
Como agora, por exemplo. Consigo definir a presença dela por meio
de pequenos detalhes — o aperto no coração, o nó na garganta e o vazio
crescendo dentro de mim. Por que é tão complicado seguir em frente? Mesmo
com essa casa cheia de pessoas preocupadas comigo, sinto-me como se fosse
o último ser humano do planeta. É angustiante.
O brilho pálido da lua é refletido na piscina, pequenos feixes brancos
em meio a uma imensidão negra. Tal como a minha existência — pequenos
momentos de alegria ofuscados por um mar de horrores.
Fecho os olhos, tentando me controlar. “Vamos lá, Felipe. Você é
dono de sua mente e não o contrário”, meu subconsciente incentiva. Porém,
assim como um trem, as lembranças penetram a cabeça de supetão. Amanda
aparece com as bochechas rosadas pelo calor e a inteligência acima da média
para uma criança de dois anos. Estremeço com a memória de senti-la segura
em meus braços, os pés gordos como bisnaguinhas, a pele macia... Inferno,
não posso ter uma recaída novamente! Não agora, depois de a última ter me
rendido uma madrugada no hospital em estado crítico.
Inclino o corpo para frente, apoiando-me nos cotovelos. As lágrimas
começam a se formar nos olhos, o vazio e a inércia me dominam. Os sons do
dia fatídico estão tão nítidos nos meus tímpanos que é quase como se tudo
estivesse acontecendo agora mesmo — os gritos histéricos de mamãe, o
choro silencioso do meu pai, a sirene da viatura. Estou desabando. Caindo em
uma velocidade surpreendente para o fundo do poço. A culpa crescendo e me
dominando. Ódio de mim mesmo. “Por que não acabo logo com isso?”,
pergunto-me. Essa questão me acompanhou a vida inteira. A morte parece, de
fato, convidativa vendo por essa perspectiva. “Por que continuar no limbo,
afinal?”
Sou abruptamente arrancando do buraco negro por um toque suave no
braço esquerdo. Giro a cabeça por cima do ombro e encontro Madu, com os
cabelos presos em um coque, como no meu sonho, mas, ao contrário dele,
veste uma camisola de cetim realmente sexy.
Respiro fundo, sentindo o ar penetrar os pulmões. Tão linda... merece
alguém melhor, tenho certeza disso. Alguém menos fodido que não corra o
risco de eventualmente estragar tudo. Foda-se, sou egoísta o suficiente para
nunca mais permiti-la sair de perto de mim.
— Você está bem? — pergunta ela, com uma expressão preocupada
no rosto.
Busco-a para perto de mim com os braços, colando nossos corpos.
— Eu nunca estou bem. — Sorrio, deixando as mãos correrem pela
sua cintura.
Madu me encara por alguns segundos, como se juntasse coragem para
encontrar as palavras certas. Pego-me contemplando detalhes do seu rosto
que tanto senti falta, como as leves sardas salpicadas pelo nariz ou os longos
cílios emoldurando os olhos enormes.
— Algum dia você vai me contar quais são os seus fantasmas?
Fito-a, cheio de empatia, sentindo a garganta secar no mesmo
instante. Eu entendo sua posição, não deve ser fácil ser mantida fora do
círculo. Todos sabendo exatamente o que está acontecendo e a mantendo
alheia a situação. Eu realmente gostaria de que fosse fácil colocar para fora,
mas não é. Não quando externar em palavras signifique revelar o monstro
dentro de mim, é demais para nós dois aguentarmos.
Deposito um beijo em sua testa, afastando-me em seguida.
— Eu mereço saber o que aconteceu para você se culpar tanto!
— Não sei se consigo encarar as lembranças... — Encolho os ombros.
— E nem você.
Madu respira fundo, parecendo chateada. Vejo-a girar o corpo para
frente, desviando o olhar. Ela morde o lábio inferior uma ou duas vezes antes
de falar:
— Eu não vou te julgar. Você já deveria saber disso! Eu apenas
quero... quero entender você.
— Não é fácil, meu amor.
— Você precisa enfrentar todas essas lembranças, ou elas continuarão
eternamente aí dentro. Se você não se perdoar, jamais será feliz, Fê!
Esfrego o rosto, apavorado somente com a perspectiva de precisar
encarar o passado novamente.
— Por favor... não só por mim, mas principalmente por você.
Volto a apoiar os cotovelos no vidro, abaixando a cabeça entre os
braços. As palavras ditas por ela não são diferentes das ouvidas ao longo de
anos, dentro de consultórios psiquiátricos diversificados. “Você precisa
querer se curar”, eles diziam. É tão fácil na teoria. Faz parecer que sou um
garoto mimado precisando de atenção. Porém, estou cansado de magoar as
pessoas a quem amo. Madu merece mais de mim, ela precisa saber com o que
está lidando. Além do mais, não quero perdê-la novamente.
Levanto a cabeça, procurando seus olhos.
— Tudo bem, eu conto.
MADU —
O PASSADO
Meu coração acelera ao ouvir essas quatro palavras.
“Tudo bem, eu conto” pode parecer inocente para qualquer outra
pessoa, no entanto, para mim, significa a quebra de uma extensa muralha
entre nós dois. Quero dizer, essa é a primeira vez em que descobrirei algo
sobre o passado de Felipe. Não sobre sua carreira, ou suas conquistas como
advogado, mas sim algo que o torna frágil e humano, tal como eu.
Ele tem uma doença séria e ela o está dominando. Nesta tarde, Vitória
conversou comigo sobre o quanto é difícil lidar com Felipe em suas crises.
Não só pelos acessos de raiva, os momentos de euforia ou a depressão —
sintomas característicos do Transtorno Bipolar — mas, principalmente, pela
recusa em admitir precisar de ajuda. A recusa em aceitar o tratamento e
entender o fato de, no fim das coisas, não existir outro caminho.
Tenho a esperança de ajudá-lo na medida do possível. Talvez isso não
represente tanto assim, porém quero ter certeza de que lutarei com as armas
ao meu alcance. Afinal, o Felipe a quem conheci não se odeia — ou, ao
menos, não parecia se odiar.
Droga, é tudo muito difícil! Amanhã já é segunda-feira e eu não faço
a menor ideia de como as coisas serão daqui para frente. Se, para mim, essa
situação já está trazendo um turbilhão de emoções, nem posso mensurar para
a sua família — e, principalmente, para ele. Porém, posso tentar entender e
por isso estou aqui. Nada feito por ele pode ser tão grave quanto ele faz
parecer. Basta olhar para Felipe, sua essência é nítida em seus olhos azuis. Eu
não tenho dúvidas quanto a isso.
Coloco uma mão sobre a sua, percebendo a forma como ele já se
afastou consideravelmente de mim. Embora estejamos assim tão próximos
fisicamente, Felipe é sempre bem-sucedido quando se trata de se fechar em
seu próprio mundo sombrio. Respiro fundo, decidida a dar a ele todo o tempo
necessário para juntar a coragem.
Observo-o desviar a atenção de mim para a piscina lá embaixo. Suas
feições se contorcem uma ou duas vezes, no que parece ser ele tentando criar
forças para conseguir externar o que, definitivamente, é tão claro em sua
cabeça. Ele passou muitos anos guardando dentro de si esses fantasmas.
Agora que precisa encará-los, não consegue fazer jus a proporção tomada por
eles.
Em um rompante, a voz dele penetra meus tímpanos, sobressaltando-
me por uma fração de segundo.
— Eu tinha 12 anos quando descobri que minha mãe estava grávida
— suas palavras pairam sóbrias pelo ar. Felipe leva o punho fechado em
frente à boca. — Fiquei um pouco assustado no começo... na época nem
imaginava, mas estava morrendo de ciúmes... Sabe como é, depois de tantos
anos alguém ia tomar o meu pódio! Deus sabe o quanto isso me deixou
perplexo.
Uma lágrima escapa do seu olho direito, rolando pela bochecha.
Aumento a força na mão sobre a dele, mordiscando a parte de dentro da
bochecha nervosamente. O ar se torna mais rarefeito, conforme novas
palavras saem da sua boca.
— Aos poucos, a casa foi ganhando a presença de Amanda, antes
mesmo de ela ter nascido. Eu torcia o nariz sempre que me perguntavam
sobre a nova integrante da família. Minha mãe foi internada no final do
sétimo mês de gestação para uma cesárea de urgência. Fiquei apavorado. Mas
quando fui até a enfermaria e vi aquele bebezinho na incubadora... foi só
então que dei por mim...
Ele para de falar subitamente, imerso em pensamentos muito longes
daqui. Felipe teve uma irmãzinha? Caramba, meu coração está tão acelerado
que talvez eu não sobreviva até o final para descobrir o resto da história!
Tantas perguntas brotam em minha mente... preciso usar de muita força para
não despejá-las sobre ele, quebrando o momento.
— Ela era tão feinha... eu ficava me perguntando se alguma coisa
tinha dado errado. — Felipe ri e mais lágrimas escorrem pelo rosto. — Na
noite em que ela foi para casa, passei a madrugada inteira acordado, bobo
com o quanto era pequenininha, frágil... Ela agarrou o meu dedo com a
mãozinha inteira, por isso apenas permaneci ali, maravilhado. Naquela noite
eu percebi o quanto a amava. Era mais do que a mim mesmo. E isso nunca
mudou... mesmo hoje, o amor e a saudade permanecem iguais.
Estremeço, estudando seu perfil banhado pela luz do luar. Este é um
daqueles momentos nos quais Felipe aparenta ser anos mais velho. As
sobrancelhas unidas, assim como os lábios crispados, evidenciam as linhas de
expressão no rosto dele. Respiro fundo, sentindo o ar gelado penetrar meus
pulmões. A atmosfera se tornou demasiadamente pesada, mal consigo
raciocinar direito. Felipe, por outro lado, mantém-se bem focado no passado,
sabendo exatamente o que está por vir. As lágrimas brotando de seus olhos
são ininterruptas.
Ouço o vento soprar de maneira melancólica e, ao longe, um cachorro
uiva tristemente. De repente, todos os sons noturnos me soam como uma
melodia sombria. Os pios solitários de uma coruja, o farfalhar das folhas nas
árvores, o canto em uníssono das cigarras... Talvez o problema esteja em
mim, no fim das contas. Finalmente começo a experimentar um pouco do
peso carregado por Felipe por tantos anos.
— Então, num dia como outro qualquer, minha mãe começou a passar
muito mal — sussurra, com a voz falhando. — Era uma tarde chuvosa e
cinzenta, bem típica de Curitiba... meu pai precisou levá-la para o hospital e
eu fiquei com Amanda. Ela tinha dois anos na época.
Ele afasta a mão da minha, passando-a pelos cabelos em um gesto
nervoso. Quanto mais fundo chegamos em suas memórias, mais ele perde o
controle que tenta tecer ao seu redor. A calma vai se dissipando e o terror
ficando mais evidente em cada centímetro de sua face.
— Não era a primeira vez que eu cuidava dela, mas naquele dia eu
estava tão cansado...
Os minutos correm com suas palavras pairando no ar. Para mim é
evidente que ele perdeu a coragem. É cabível, de toda forma. Afinal de
contas, finalmente paramos à beira do precipício, aguardando para dar o
último salto.
— O que houve? — pergunto, tentando encorajá-lo.
Felipe parece acordar de um transe e se lembrar de mim. Ele gira o
rosto em minha direção, fazendo nossos olhares se encontrarem. Suas íris
obscurecidas deixam todos os pelos do meu corpo eriçados enquanto o
coração se comprime de supetão. Céus, talvez ele tivesse razão, não sei se
estou preparada para lidar com isso. É evidente que aconteceu alguma
tragédia pela qual ele se culpa. No entanto, a questão não é essa, e sim o fato
de, ao encarar estes fantasmas de frente, Felipe reacenderá uma nova onda de
ódio dentro de si mesmo. Não sei se foi uma boa ideia, porém já é tarde para
voltar atrás.
Vejo-o balançar a cabeça em negativa e mordo o lábio inferior com
força. “Não importa se estou ou não preparada, isso não é sobre mim e sim
sobre ele”, meu subconsciente me lembra. E é por isso que, em um ímpeto de
coragem, tomo o seu rosto com as mãos, deixando um beijo rápido em sua
boca.
— Isso não mudará o que eu sinto por você.
— Você diz isso agora! — Ele sorri tristonho.
— Bem, você precisará correr esse risco. — Encolho os ombros,
arrancando dele uma risada quase inaudível.
Felipe raspa as unhas na barba, concordando com a cabeça. Encara-
me por mais alguns segundos, nos quais perco o fôlego, tamanha é a
intensidade contida em suas íris. Então se vira novamente para frente,
focando a atenção em algum ponto no horizonte.
— Eu dormi, Madu. Isso aconteceu! — Noto uma nesga de ira
transparecer por sua voz. — Tinha acompanhado o meu pai em uma
viagem... nós havíamos acabado de voltar quando minha mãe passou mal. O
voo teve muita turbulência e eu não consegui pregar os olhos nem por um
segundo, por medo. Liguei o Cartoon Network para Amanda e eu assistirmos
juntos... lembro certinho, estava passando Dois Cachorros Bobos...
A cada palavra proferida, a entonação se torna um pouco mais baixa.
Observo-o fechar os punhos com força, deixando os nós dos dedos
esbranquiçados. E, mesmo sem perceber, deixo de respirar.
— Ela estava tão quietinha comigo que acabei dormindo. Quando
acordei a vida já estava de ponta cabeça. Já faz vinte e um anos e, desde
então, as sensações nunca me abandonaram. O medo ao ser acordado pelos
meus pais ainda é palpável, o susto por não ter Amanda ao lado... Minha mãe
perguntando se eu a tinha colocado para dormir...
As lágrimas agora são constantes. Felipe está tão frágil neste
momento, tão fragmentado. Tento resgatar na memória a época em que o
considerava sólido e inquebrável, mas falho miseravelmente. Todo este
tempo ele apenas construiu um castelo de aparências, tentando suprir o vazio
constante com as conquistas profissionais. Eu o admiro por chegar tão longe
apesar de toda a dor. Mostra o quanto é forte em lutar contra a doença. Um
verdadeiro paradoxo.
— Depois disso, restam apenas fragmentos. Minha mente tentou
dissipar a memória para evitar o sofrimento. Não foi muito eficiente, no
entanto. — Ele limpa as lágrimas com as costas da mão. — Recordo dos sons
como se estivessem acontecendo agora mesmo... lembro do coração
palpitando desenfreadamente, lembro do terror percorrendo cada centímetro
do corpo e lembro do exato momento em que vi o corpinho inerte no chão da
cozinha.
É somente ao perceber o meu rosto molhado que me dou conta de
também estar chorando. Ele volta a me encarar, antes de sussurrar com a voz
rouca:
— Amanda encontrou uma garrafa pet no armário da cozinha... mas...
mas era... — Ele pigarreia, juntando forças para me entregar suas últimas
palavras. — Era Soda Cáustica.
MADU —
HORA DE ACORDAR
Respiro fundo, sentindo o peso de muitas horas passadas em
branco recair sobre o corpo. Todas as minhas juntas protestam, assim como a
cabeça, que começou a doer de maneira alarmante. Os primeiros raios de sol
começam a rasgar o horizonte, colorindo a palidez presente no céu até então.
Pelo canto dos olhos, tento medir a reação de Felipe e descubro, surpresa,
encontrar-se adormecido.
Ainda não consegui digerir todas as lembranças amargas
compartilhadas por ele nesta madrugada. Quero dizer, embora eu seja filha
única, não é difícil imaginar o tamanho do seu sofrimento. De todas as dores
existentes, a culpa é a pior delas. Afinal, só é possível seguir em frente
quando finalmente nos perdoamos.
Levanto da cadeira, parando na frente dele. Meus olhos percorrem os
detalhes já tão conhecidos: os cabelos dourados, a barba por fazer, o
charmoso nariz fino e lábios bem delineados. Minha mente divaga para longe
e, sem perceber o tempo passar, pego-me imaginando Amanda nos dias de
hoje, caso ainda estivesse viva. Céus, ela teria a minha idade! Quem sabe as
infinitas possibilidades que poderia ter traçado... talvez tivesse seguido os
passos dos homens da família, tornando-se uma advogada respeitada? Ela
possivelmente seria maravilhosa também, não tenho dúvidas disso.
Essa deve ser a parte mais complicada, enfim. Pensar em quem
poderia ter sido caso essa fatalidade não houvesse ocorrido. Sim, porque
evidentemente não foi culpa de ninguém. Para mim, soa mais como uma peça
de mau gosto pregada pelo destino.
Levo os dedos até os cabelos finos de Felipe, é incrível como não
consigo ficar perto dele sem tocá-lo, sem tê-lo para mim. Jamais entenderei o
que esse homem fez comigo, a forma como conseguiu me deixar louca por
ele sem o menor esforço.
— Madu! — A voz de Isaque me faz pular de susto. — Graças a Deus
vocês estão aqui... — Ele suspira, deixando-me subitamente sem graça.
Sorrio sem vontade. Não sei exatamente o que é esperado de mim em
uma situação como essa, então simplesmente o observo se aproximar de nós
dois, até se sentar na cadeira de vime posicionada logo ao lado de onde Felipe
dorme em um sono calmo. Isaque cruza os braços sobre o peito, acenando
com a cabeça.
— Temi que... você sabe... Acordar sem o Felipe na cama, nestas
circunstâncias, é um pouco alarmante.
Ele sorri, encolhendo os ombros como se estivesse se desculpando por
pensar no pior.
— Não consegui pregar os olhos essa noite de novo — explico.
O silêncio nos acolhe confortavelmente. Meus dedos estão doendo,
tamanho é o frio. Meus únicos pensamentos agora são sobre o quanto me
encontro exausta e com muita fome. Minha barriga ronca, protestando pelas
inúmeras horas de negligência. Mas, por Deus, como posso pensar em comer
com a vida de ponta cabeça?
De pensar que há algumas semanas os únicos problemas eram
relacionados ao fato de Renato ser um babaca, sinto saudade de quando a
relação com Felipe era mais amena. O problema de passar por uma longa
tempestade é que, por vezes, esquecemo-nos de como os dias ensolarados
são.
— Ele me contou — Ouço as palavras pairarem pelo ar, sem a minha
permissão.
Isaque busca o meu olhar, com uma expressão confusa tomando os
traços tão semelhantes aos de Felipe. Por isso, sou obrigada a completar:
— Sobre... hum... sobre a Amanda.
Vejo-o franzir o cenho e perco o fôlego. Droga, devia ter ficado
quieta! Já não bastava cutucar a ferida de um integrante da família? Desvio os
olhos, encarando o horizonte. Já estou me preparando para pedir desculpa
quando sou surpreendida por Isaque, com a voz ligeiramente embargada.
— Não existe nada pior do que a dor de perder um filho, Madu.
Sobretudo em circunstâncias tão... — A voz dele morre no ar, deixando a
mensagem subtendida. — Levamos a vida adiante, no entanto. Um dia após o
outro nos ensinou que não é fácil pra ninguém... todos sofrem! E, embora
Vitória e eu nos culpemos tanto quanto Felipe, a pior parte é vê-lo tentando
se destruir, desde então.
Assinto com a cabeça, emudecida. Observá-los lado a lado é
desconcertante, tamanhas são as semelhanças. Jogo o peso do corpo para uma
única perna, esperando-o dar sequência ao desabafo. Vim a calhar como
ouvinte para esta família fragmentada, no fim das contas. Ao me lembrar da
noite em que conheci os pais de Felipe, um gosto amargo me toma a boca.
Estávamos todos tão felizes...
— Ele é o filho que eu sempre quis ter e poderia passar horas listando
mil bons motivos para eu ser um pai abençoado. E por isso é tão doloroso,
entende? Nós seguimos em frente. Veja bem, isso não significa termos
esquecido ou deixado de sentir falta de Amanda. Mas Felipe... ele maquina
isso diariamente. Tentou se matar a primeira vez logo depois do enterro. —
Isaque respira fundo, parecendo pensativo. — Perder um filho é doloroso o
suficiente. Eu não sei se aguentaria perdê-lo também. Ele não percebe isso.
Vê-lo assim novamente depois de tanto tempo com a doença sob controle...
não é fácil!
— Eu não fazia ideia de nada disso — murmuro. — Ele parece muito
sólido.
Um sorriso rasga os lábios de Isaque ligeiramente e, então, ele se
levanta de supetão, parando de frente para mim.
— O médico não queria liberá-lo. Precisei perder as estribeiras para
Felipe não ser internado em um hospital psiquiátrico. A carreira dele iria por
água abaixo... tantos anos de luta... — Balança a cabeça em negativa. — De
toda forma, se ele não colaborar com o tratamento, não me restarão
alternativas.
Fisgo o lábio inferior, o coração perdendo uma batida. Minha nossa,
as notícias só pioram por aqui! Talvez eu tenha estampado o desespero no
rosto, pois Isaque me lança uma expressão de dó, antes de segurar meu
ombro delicadamente, tal como Felipe faz com os clientes eventualmente.
— Você é muito nova, Madu... sabe onde está se metendo?
— Perdão? — pergunto, piscando os olhos confusa.
Isaque balança a cabeça outra vez, como um meio sorriso no rosto.
— Sinto muito, me expressei mal. Acredito que Felipe tenha visto em
você uma motivação para seguir em frente... Eu apenas temo que o fardo seja
pesado demais.
— Eu aguento! — Arquejo de maneira infantil. — Talvez não seja tão
fácil, eu sei, mas estou disposta a tentar.
— É claro. — Ele meneia a cabeça. — E é esse o motivo da pergunta
inicial. Sabe onde está se metendo, querida?
Encolho os ombros, lançando-o um olhar de súplica. Por que ele acha
que não vou aguentar? Pareço assim tão frágil?
— Não, eu não sei — respondo. — Mas não importa... se for preciso
vencer essa tempestade, ainda que ela se torne intimidante, quero estar ao
lado dele, segurando o guarda-chuva.
Sou surpreendida por uma risada baixa de Isaque. Não é de deboche,
porém. Parece mais como se estivesse satisfeito com a resposta.
— Felipe teve sorte em te encontrar. Nunca perca esse jeitinho Madu
de ser! — sorrio para ele, agradecendo silenciosamente. — Vou passar um
café... você deveria dormir. Está bem pálida, se é que tinha como... — Pisca
para mim, deixando-me para trás com um sorriso enorme no rosto. Bem,
agora sei de quem o Felipe herdou o jeito brincalhão.
Observo Isaque abandonar a área de lazer tranquilamente, meus olhos
recaem para seu filho logo em seguida. Inspiro o ar, sentindo-o preencher os
pulmões. Percorro a distância até a cadeira, ajoelhando-me ao lado dela.
Levo as costas das mãos até a bochecha direita de Felipe, acariciando-
a com leveza. Suas pálpebras se mechem suavemente, porém não passa disso.
Um novo sorriso rasga o meu rosto quando roço o polegar pelo contorno dos
lábios dele. Esse virou o nosso lance, no fim das contas.
Felipe pestaneja por alguns segundos, lutando para organizar a mente.
Logo em seguida um sorriso torto rasga seus lábios finos, acendendo uma
sensação aconchegante dentro de mim. Foi por esse sorriso que me
apaixonei! Quero vê-lo mais vezes em seu rosto, no lugar das habituais
lágrimas.
— Você já dormiu demais! — digo, cruzando os braços sobre o peito
dele. Nossos narizes quase se tocam. — Chegou a hora de acordar!
Minhas palavras pairam pelo ar por segundos a fio. Embora eu esteja
falando especificamente sobre esse final de semana, elas também se aplicam
a todos estes anos nos quais ele apenas escondeu uma alma quebrada por trás
da carreira bem-sucedida.
Ele percorre suas íris translúcidas pelo meu rosto, demorando o olhar
em um ponto que acho ser a boca. Observo-o umedecer os lábios e me
adianto, roubando um beijo. O tempo em que estivemos afastados só serviu
para aumentar o desejo aqui dentro. Se eu puder, deixarei nossos lábios
unidos o máximo de tempo possível. Afasto-me dele tão logo sou tomada por
um sentimento avassalador. Um calor gostoso subindo pelas entranhas,
aquecendo-me de maneira agradável.
Sem dizer palavra alguma, levanto da cadeira, agarrando sua mão e
puxando-o para repetir os meus movimentos. Ele levanta sem protestar e,
embora ainda muito melancólico, percebo a leve melhora em relação à
outrora. Começo a rumar em direção ao quarto, com ele em minha cola. Abro
a porta e libero a entrada, dando espaço para ele passar. Felipe me encara
com o olhar maravilhoso de cachorro sem dono, sem entender o meu
comportamento. No entanto, é somente ao fechar a porta que ele quebra o
silêncio entre nós.
— O que está fazendo?
— Te mostrando as coisas boas da vida! — sussurro, colando os
nossos corpos enquanto minhas mãos sobem sua camiseta delicadamente.
MADU —
INCORRIGÍVEL
Sem pensar muito se é a hora certa para isso, arranco o tecido
cinza mescla para fora do tronco de Felipe, revelando o abdômen malhado.
Percorro os dedos pelos músculos definidos da sua barriga, experimentando o
contato morno da pele.
Sinto o peso do seu olhar sobre mim, porém ele não me interrompe.
Continuo subindo as mãos, passando pelo peitoral e estacionando nos
ombros. Senti tanta falta dele... mas agora que estamos frente a frente, o
aperto no peito parece ainda maior. Quão contraditórios são os sentimentos!
Uno novamente nossos lábios, enroscando os braços ao redor do seu
pescoço. Felipe me envolve pela cintura, apertando nossos corpos. Ouço sua
respiração ruidosa e sou envolta pelo calor emanando dele. Deixo as unhas
rasparem seus braços, escorregando eventualmente até as costas e voltando
para a barriga. Quero sentir cada centímetro. Preciso matar a saudade. Preciso
me lembrar de como me sinto quando somos só nós dois, e nada mais no
mundo importa.
Forço o corpo contra o dele, guiando-o em direção à cama. Felipe
esboça um sorriso com os lábios ainda nos meus e, no mesmo instante,
minhas pernas perdem a força. É incrível o quanto ele consegue me abalar
com tão pouco. Santo Deus, não há a menor chance de eu me separar dele
outra vez! Essa confusão dentro de mim é só mais uma prova de como damos
certo juntos. Não existe nada do mundo que me cause sensações semelhantes.
Tão logo as pernas dele se chocam contra a cama, empurro-o para trás
com a ponta dos dedos, fazendo-o se sentar.
— O que exatamente são essas coisas boas? — Ele me provoca,
umedecendo os lábios.
— Ah, você vai ver! — Brinco, deslizando uma das alças da camisola
pelo ombro.
Felipe acena negativamente, com o sorrisinho torto iluminando o
rosto enquanto cruza os braços sobre o peito.
— Você não toma jeito, não?
— Algumas coisas são incorrigíveis — segredo, arrastando a outra
alça e sentindo o cetim da camisola escorregar pelo corpo.
No mesmo instante, meu coração dá uma forte guinada. Percorro
minhas próprias curvas com as mãos, notando o fato de seus olhos não
desgrudarem de mim. Observo seu peito subindo e descendo um pouco mais
rápido do que minutos atrás e não posso dominar um sorriso. É lisonjeador
saber que também o afeto desta maneira.
Felipe inclina a cabeça ligeiramente para o lado, como se esperasse
uma reação. Giro nos calcanhares, ficando de costas para ele ao deslizar a
calcinha pelas coxas. Solto o cabelo, olhando-o por cima do ombro antes de
trancar a porta do quarto.
Ao me virar novamente de frente, a intensidade do seu olhar provoca
um arrepio que percorre todos os meus membros. Avanço em passos lentos
— em parte porque a situação como um todo é muito sexy, mas,
principalmente, por, depois de tantas semanas, finalmente tê-lo para mim.
Quero prolongar o quanto puder.
Alcanço a cama e apoio as mãos em seus ombros, ao passo em que
monto nele, colocando uma perna de cada lado do seu colo. Sinto a ereção
contra as minhas coxas, sendo o tecido da calça de moletom a única barreira
existente. Então seguro seu rosto com as duas mãos, imitando a maneira
como ele faz comigo, e uno nossas bocas. As mãos de Felipe me apertam na
cintura para me segurarem. Procuro espaço por entre seus lábios, deixando
escapar em meus atos uma nesga de desespero.
Nossas línguas se entrelaçam e sinto seus dedos se enterrarem nos
meus cabelos. Sugo seu lábio inferior, incapaz de reprimir um gemidinho
quando ele enlaça meus cabelos, depositando força além do necessário.
Raspo as unhas no pescoço dele, sem me importar muito com o fato de,
muito provavelmente, ter ardido. Ele mordisca o meu lábio inferior de
maneira lenta e erótica. “Céus...”, mentalizo atônita, com os pensamentos se
tornando, a cada segundo, mais nebulosos. É impossível pensar em qualquer
outra coisa com Felipe. Ele tem a força motriz responsável por me arrebatar.
— Me deixa te mostrar o tamanho do meu amor! — sussurro contra a
boca dele.
Felipe solta um gemido baixo, arfando pesadamente em seguida.
Afasto o rosto alguns centímetros, a fim de medir sua expressão. Ele
permanece de olhos fechados, o tesão transparecendo na feição. Uma de suas
mãos desce em direção aos meus seios, massageando-os em uma cadência
suave.
— Sou todo seu! — responde com a voz rouca. — Faça o que quiser
comigo.
Estremeço tão logo suas palavras penetram os meus tímpanos.
Caramba, o que esse homem provoca em mim é surreal! Dada a minha falta
de reação, Felipe usa a mão prendendo os meus cabelos para puxar a minha
cabeça para cima, deixando o pescoço em evidência. Sinto-o roçar o próprio
rosto ali, raspando-me com a barba por fazer.
A esta altura, ofego de maneira descompassada. Ele funga contra a
minha pele, sorvendo o meu cheiro e me deixando completamente extasiada.
— Eu quero te dar motivos para sorrir... — ronrono.
— Você já deu.
Rebolo com suavidade contra o seu colo, fazendo-o depositar mais
força nas duas mãos. Afasto-me novamente, lutando contra a vontade de me
entregar logo de cara. Mais uma vez, forço o corpo contra o seu, fazendo-o
tombar na cama.
Felipe torna a abrir os olhos, fitando-me com uma intensidade
tangível. Mordo o lábio inferior enquanto saio do colo dele, preparando-me
para despi-lo completamente. Arrasto o moletom azul-marinho por suas
pernas, deliciando-me com cada centímetro de pele descoberto. Então, ao
terminar o trabalho, engatinho sobre ele, depositando uma sucessão
interminável de beijinhos pelo caminho.
Suas mãos grandes me puxam para cima, de encontro ao seu rosto.
Felipe brinca com nossos lábios, fazendo deliciosos movimentos
provocativos. A cada nova tentativa de unir nossas línguas, ele afasta
ligeiramente o rosto, piscando um dos olhos. “É tão sexy que chega a ser
obsceno...”, penso comigo mesma.
Participo do jogo até simplesmente ser vencida pela vontade ardente.
Quando isso acontece, lanço o corpo para frente, deixando um beijinho no
canto da boca dele.
— Senti muito a sua falta! — digo, alcançando sua ereção.
— Eu também, Madu. Você nem imagina o quanto...
Agito a mão em um compasso suave. Sinto-o pulsante, tamanha é a
sua excitação. Só então me dou por vencida e o encaixo entre as pernas.
Desço os quadris e o sinto me preencher lentamente. Já contava um tempo
considerável desde a última vez em que o tive dentro de mim. De toda forma,
minha memória não fazia jus à explosão de sensações experimentadas sempre
que estamos entregues à paixão.
As mãos de Felipe passeiam pelo meu corpo ao passo em que me
movimento ao redor dele. Rebolo e me contorço copiosamente, sentindo-o
em pontos diferentes e tomando suas reações como estímulos. Repouso as
mãos sobre o seu peito, subindo e descendo o corpo com um ritmo comedido.
Embora estejamos lutando para não fazer barulho, vez ou outra nossos sons
baixos se unem, formando um arranjo sensual.
Inclino-me para frente, apoiando-me nos braços. Encosto a testa suada
na dele, fechando os olhos. O coração batuca descompassadamente dentro da
caixa torácica e a respiração se torna a cada segundo mais agitada.
Felipe inclina o rosto, falando contra os meus lábios.
— Sou incompleto sem você!
— Fê... — grasno, rouca de desejo.
Engulo um gemido dele, responsável por fazer meu corpo vibrar
inteiro. Cravando as unhas nas minhas coxas, ele sussurra.
— Fala de novo!
— Fê... — chamo-o, sentindo os músculos do ventre se contraindo.
Abandonando a passividade, Felipe me segura pela cintura,
dominando os movimentos. O ritmo se torna mais agressivo e as estocadas
são fortes e ritmadas. Preciso morder a parte de dentro das bochechas para
não gritar como uma louca aqui dentro. “Pai amado, isso é muito gostoso!”.
Perdendo a força dos músculos, preparo-me para a crescente onda de
espasmos se espalhando pelo corpo todo. Os gemidos que eventualmente
deixo escapar estão se tornando cada vez mais altos e, por isso, ele repousa a
mão sobre minha boca, abafando os sons.
Mais algumas investidas e eu me contorço inteira sobre o corpo dele,
sentindo-o latejar dentro de mim. Seus olhos se espremem com força e seus
traços se contorcem em uma careta de prazer alucinante. Eu poderia gozar de
novo só por vê-lo assim...
Tiro-o de dentro de mim, caindo sobre o seu corpo em seguida. Os
únicos sons são os de nossas respirações agitadas. Os braços de Felipe me
envolvem, apertando-me com uma força que poderia esmagar os meus ossos.
Deixo algumas mordidinhas no seu ombro, seguindo o caminho da clavícula
e terminando no pescoço. Seus dedos passeiam suavemente pela minha pele
em movimentos de vai-e-vem.
Dentro deste quarto, o relógio parece ter parado de contar novas
batidas. É quase como se aqui estivéssemos protegidos da dor de outrora.
Uma trégua em todo o sofrimento. Eu tenho certeza de quão grande é o meu
amor. E, é com essa certeza que compreendo: posso enfrentar o mundo
inteiro se for preciso, desde que Felipe esteja comigo.

MADU —
COMPANHIA
Acordo sobressaltada, sem me lembrar de quando dormi. Meus
olhos percorrem as conhecidas paredes do quarto de Felipe, para, em seguida,
encontrarem o outro lado da cama vazio.
Espreguiço-me, notando pela janela já ser finalzinho de tarde,
começando a anoitecer. Respiro fundo, esfregando o rosto em uma tentativa
de varrer o sono para longe. A última vez em que dormi nesta cama foi no
último dia trabalhando para Felipe.
Está tão gostoso dentro destas cobertas que eu não queria sair daqui...
Com um ímpeto de coragem, afasto as camadas de edredons. “Estou
dormindo desde cedo...”, constato o óbvio, ao encontrar a camisola ainda
jogada ao chão. Também pudera, depois de me privar do sono por duas
noites, faz sentido eu ter hibernado.
Alcanço a camisola, vestindo-a sem muita pressa e estremecendo com
o contato gelado do cetim. Ao sair pelo corredor, deparo-me com o vazio —
quase como se estivesse sozinha neste casarão. Um arrepio percorre a minha
espinha, eriçando os cabelos da nuca. Não sei se conseguiria viver sozinha
em um lugar tão grande assim, é um pouco sombrio.
Jogo um pé atrás do outro, em direção ao quarto de hóspedes onde
está a minha enorme mala verde-água. Desde o dia que cheguei não fui para
casa. Vasculho as roupas em busca de uma blusa bem quentinha e visto-a
logo sem seguida.
Sinto a barriga doer de tanta fome e, por isso, giro nos calcanhares,
decidida a procurar por algo para comer. Ando descalça pelo piso frio de
madeira corrida, porém, ao alcançar a escada, uma voz exasperada vem do
andar de baixo, fazendo-me saltar de susto.
Estreito os olhos, percebendo um zumbido baixinho, de pessoas
conversando. Aliás, não conversando... parecem discutir! Respiro fundo,
preparando-me para a iminente turbulência.
Desço os degraus de dois em dois, segurando-me no corrimão para
não cair. Conforme me aproximo da cozinha, os sons vão se tornando mais e
mais altos. Não consigo discernir as palavras, no entanto, tamanho é o meu
nervosismo.
Adentro o aposento, encontrando Felipe e a família. Vitória segura
uma taça com algo que parece ser vinho, os braços cruzados e um olhar
vazio, sem focar em nenhum ponto específico. Leonor já está em seu pijama
de flanela, acuada em uma extremidade da cozinha, o coque espesso
permanece firme no topo da cabeça.
Isaque e Felipe parecem leões raivosos se enfrentando. Usando a ilha
central feita em mármore como barreira, cada um está posicionado de um
lado, com rostos vermelhos de raiva e olhares intimidantes — alguns dos
quais Felipe já dirigiu a mim em outras ocasiões.
— Foi um acidente, eu já falei! — Urra Felipe, batendo na superfície
com o punho fechado e provocando um baque surdo. — Dane-se o que
parece! Estou dizendo que não tentei me matar e você deveria ouvir! Vocês
dois, aliás! — complementa, apontando para a mãe.
— Você não percebe o quanto está doente, querido! Isso faz parte da
doença! — Repousando a taça sobre o balcão, Vitória grasna, e noto estar se
segurando para não chorar.
Recosto-me contra a parede, aliviada pelo fato de a minha presença
ter passado despercebida. Felipe passa as mãos pelos cabelos nervosamente,
como se estivesse prestes a enlouquecer. Engulo em seco, apertando as unhas
nas palmas com força. Quando esse pesadelo terminará?
— Não! — ele acena negativamente. — Não estou doente. Tenho
tudo sob controle! Apenas triste e, quem sabe, bebendo demais, mas não
doente.
Céus, como Felipe pode afirmar que está tudo bem? Isaque ri
incrédulo, aparentando cansaço em sua expressão desolada. Encontra-se
irado, nem parece o mesmo homem calmo com quem conversei nesta
madrugada.
— Tudo bem, filho. Vá em frente e destrua a própria vida enquanto
sua mãe e eu o assistimos de mãos atadas!
— Eu... não... estou... destruindo... a merda da minha vida! — ele
sussurra entredentes, jogando a taça de Vitória contra a parede e servindo
como gatilho para o choro dela finalmente vir à tona. — Foda-se, não quero
mais vocês aqui! Estão tornando tudo pior!
Leonor encolhe os ombros, parecendo igualmente abatida, para então
abandonar a cozinha, como alguém que admite ser uma batalha perdida.
— Filho...
— Não preciso de ninguém tomando conta de mim. Eu sou um
adulto, caso ainda não tenham notado!
“Parece que Felipe ogro está de volta...”, penso, resgatando na
memória ele sendo grosseiro comigo no trabalho, depois de nossa discussão
sobre as flores de Renato. Os pais dele têm razão, ele está péssimo e não
admite. Não sei o que fazer, porém preciso ajudar, afinal, hoje de manhã ele
parecia melhor! Foi tão carinhoso, tão apaixonado... Merda, estou quase
chorando de novo!
— Não estamos tentando cuidar de você, meu amor! — sua mãe
geme, os olhos de safira estão apagados. — Nós te amamos, apenas queremos
o seu bem. Quem te fará companhia se formos embora?
Adianto-me um passo e, sem raciocinar direito, ouço minhas palavras
preencherem o ambiente, ganhando a atenção dos três.
— Eu posso fazer! Quero dizer, se for ajudar, posso ficar aqui com
você! — miro nos olhos cristalinos de Felipe, suplicando silenciosamente
para não ser rude comigo.
— Por quê? — Ele me desafia, arqueando uma sobrancelha e girando
o corpo para ficar de frente para mim.
Caramba, até o seu olhar está diferente! Aparenta ser outra pessoa
aqui de frente para mim. “Fica calma, vai dar tudo certo”, meu
subconsciente segreda, em uma tentativa de me encorajar a seguir em frente.
— Pra você não se sentir sozinho. Pra quando a tristeza bater ter
alguém com quem desabafar. E porque sozinhos não vamos muito longe.
Mas, principalmente — dou de ombros. —, porque eu quero!
— Você não sabe o que está falando! — insiste ele, dando um passo à
frente.
— Sei sim! Mas que droga! Você quer que te ouçam, mas não se dá
ao trabalho de ouvir os outros? Quero ficar! Se você não quiser, tudo bem,
vou entender. Só pense a respeito primeiro!
Os pais dele permanecem emudecidos em surpresa. Meu sangue
ferve e meus dedos estão formigando. Percebendo tê-lo deixado sem reação
também, complemento:
— Não para sempre... apenas o tempo necessário.
Ele fisga os lábios, concordando com a cabeça. Percebo com
satisfação tê-lo desarmado. Toda a camada de ironia desapareceu, revelando
o homem a quem amo. Em um segundo está tudo um caos e então, no
seguinte, Felipe retorna das sombras, como em um verdadeiro paradoxo.
— Nos deem um momento, por favor! — pede educadamente para os
pais, olhando por cima do ombro. E, de pensar que há alguns minutos estava
berrando e jogando taças contra a parede, sinto até um nó na boca do
estômago.
Sua mão direita repousa sobre minha lombar, fazendo o meu coração
ir para a boca. Um gesto tão pequeno, porém tão significativo... Aos poucos,
nesgas de sua essência verdadeira vão surgindo, sem a densidade do
transtorno bipolar.
Caminhamos em silêncio até o hall de entrada, onde ele me puxa
contra o próprio corpo, unindo as nossas bocas com um pouco de urgência.
Correspondo ao ato com igual paixão, esquecendo-me por alguns segundos
da cena na cozinha. Seus polegares acariciam minhas bochechas de maneira
terna.
— Obrigado... — geme contra os meus lábios. — Obrigado por estar
aqui!
— Isso é um sim?
— Precisa pegar suas coisas, receio — Ele se afasta, franzindo o
cenho em uma careta pensativa.
Embora tenha fugido da resposta em si, suas palavras deixam as
minhas pernas como gelatina e, por um momento, preciso me concentrar para
não despencar no chão. Ah, meu Deus! Vou morar com Felipe! Tudo bem, é
apenas até ele melhorar, mas, mesmo assim... só de me imaginar na presença
dele a cada segundo do dia já sinto o mundo girar depressa.
— Pre-preciso — gaguejo.
Ele sorri, caminhando até o elegante aparador de madeira de
demolição, posicionado ao lado da enorme porta principal, onde alcança um
molho de chaves. Está vestindo somente uma calça de moletom cinza, por
isso me demoro observando as deliciosas entradas da sua barriga. “Minha
nossa...”, penso, distraída.
Felipe estaca a poucos centímetros de distância, entregando-me as
chaves do carro. Olho para a palma da minha mão, engolindo em seco.
— O que é isso?
— Você pode ir lá sozinha, enquanto converso com os meus pais?
Caramba, é impressão minha ou o ar ficou rarefeito por aqui?
Como é?
Ele quer que eu dirija a Mercedes dele?
— Você está louco? — grasno, acenando negativamente. — Não
posso!
Felipe inclina sutilmente a cabeça para a direita, parecendo confuso.
— Pensei que tivesse habilitação!
— Eu tenho! Mas nesses 4 anos devo ter dirigido, sei lá, umas vinte
vezes? E, qual é, olha pro seu carro! — Deixo escapar uma risadinha nervosa,
sentindo o rosto pegar fogo. — Sem chances de eu conseguir chegar até ao
meu apartamento e voltar com ele intacto!
— Tudo bem... Estou mesmo querendo trocar de carro. Ao menos
terei um bom motivo — pisca um dos olhos, sorrindo torto antes de me
deixar sozinha com as pernas bambas.
Santo Cristo, Felipe ainda me matará. Tenho certeza disso! Como
chegarei à minha casa sabendo que estou conduzindo um veículo cujo valor
deixaria uma pessoa desavisada de cabelos em pé?
MADU —
AZARADA
Deslizo a trama fina da meia-calça preta pelas minhas pernas, para
me proteger do frio lá de fora. Fecho a mala com um pouco de dificuldade,
calçando o par de sapatilhas em seguida. Alcanço a bolsa jogada de qualquer
jeito sobre a cama impecavelmente arrumada, conferindo se a minha
habilitação está na carteira com os demais documentos. “Falta pouco para
ela vencer...”, constato, percorrendo o polegar pelo plástico que a envolve.
Com todos os meus pertences em mãos, sigo em direção à saída, o
coração batucando só com a ideia do que está por vir. Santo Deus, espero não
bater o carro! Tudo bem, sou muito desastrada, eu sei, porém isso seria
demais até para mim.
Desço a escadaria com cuidado, levando em conta o fato de a mala ter
quase o meu peso — e isto dificulta bastante a empreitada. Estou prestes a
entrar na cozinha quando percebo o fato de Felipe e a família estarem falando
muito baixo lá dentro. Um contraste gritante perto de minutos atrás.
Aproximo-me da porta cuidadosamente, atenta às palavras ditas.
— ...preocupada com ela, querido. É tão nova e não s...
Vitória praticamente sussurra, por isso não consigo compreender
todas as palavras. Dou mais um passo, chegando ao limite de onde ainda não
posso ser vista. Apuro os ouvidos, tendo consciência de ser a pauta deles.
— Idade não importa. Não para mim.
— Não é isso, meu bem. É evidente o quanto ela gosta de você... mas
já faz tanto tempo desde de que Bia...
Isaque tosse, impedindo-me de ouvir o restante da frase. Fisgo o lábio
inferior, perguntando-me quem diabos é Bia. Então uma onda de frustração
me toma de uma vez. “Pensei que ele tivesse me contado tudo...”, suspiro,
balançando a cabeça em negativa.
— Eu nunca quis isso. Acha que não percebo o tamanho da minha
responsabilidade com ela? Apenas aconteceu...
Com o coração do tamanho de uma ervilha, aperto a alça da mala
entre os dedos, avançando cozinha adentro como se tivesse acabado de
chegar.
— É... Hum... — sorrio amarelo ao notar a expressão desconfortável
dos três. — Não devo demorar. Querem alguma coisa da rua? — encolho os
ombros, desejando sair daqui desesperadamente.
— Não se incomode, querida. — Vitória acena com a mão e Isaque se
limita apenas a sorrir, desviando o olhar.
— Eu te acompanho — Felipe diz sério, para, logo em seguida,
adiantar-se até mim, alcançando a minha mala.
Caminhamos em silêncio até o carro, onde ele guarda meus pertences
no porta-malas com agilidade — quase como se quisesse me despachar logo
para conversar com os pais tranquilamente. Não posso julgá-lo por isso.
Querendo ou não, sou uma intrusa aqui. Eles merecem esse momento, afinal
de contas não tiveram a chance de conversar desde o incidente.
Felipe abre a porta, mas, ao me preparar para entrar no veículo, sou
refreada por um singelo toque no ombro. Sua mão desliza pelo meu braço até
alcançar o pulso, onde seus dedos se fecham, prendendo-me. Ergo os olhos,
encontrando-o me encarando de volta, cheio de hesitação.
— Você tem certeza disto?
Coço a nuca um pouco sem jeito e, temendo o rumo de nossa
conversa, resolvo me fazer de desentendida.
— Dirigir esse carro? — pergunto. — Nem em mil anos... mas posso
lidar com o desafio.
Ele sorri, meneando a cabeça e cruzando os braços sobre o peito. Seus
bíceps se contraem de maneira deliciosa.
— Muito perspicaz em desviar do assunto! No entanto, já te disse, é
péssima em mentir.
Solto o ar dos pulmões pesadamente. Eu nem havia percebido ter
prendido a respiração por tanto tempo.
— Eu tenho. E você também parecia ter há poucos minutos... alguma
coisa mudou nesse intervalo de tempo?
Sua mão vem de encontro a uma mecha de cabelo. Em um movimento
lento, ele a ajeita atrás da minha orelha.
— Nada mudou. Quero você comigo! Mas a minha consciência não
está colaborando...
— E por que não? Fui eu que me ofereci! Estou vindo por conta e
risco!
— Eu sei. Mas há tantos problemas implícitos...
Reviro os olhos, lançando-o um olhar indignado no segundo seguinte.
Sem me dar a chance de protestar a respeito, ele continua:
— Seus pais. Eles não vão gostar muito da notícia, receio. — Ele
umedece os lábios, raspando o polegar pelo ossinho da minha mandíbula com
delicadeza.
— Eles não precisam saber, precisam? É só por um tempo, Fê. Só até
essa maré ruim passar.
— E eles ficarão pagando o aluguel do apartamento à toa?
— O que foi, hein? — pergunto, elevando o tom de voz. — Se você
não quer, então me fale de uma vez! Só estou tentando ajudar!
— Shhhh, fica calma! — Ele sorri, avançando um passo e repousando
sua pesada mão sobre o meu pescoço.
Encaro-o frustrada. Minhas sobrancelhas estão unidas e imagino estar
com uma careta emburrada estampando minhas feições. Essa é a menor das
preocupações, porém.
— Eu quero, já falei. É o que mais quero... — ele se aproxima um
pouco mais. — Desde quando você parou de iluminar os meus dias com a sua
personalidade elétrica... não sabe o quanto a desejei aqui só pra mim. Madu,
eu quero ter certeza de que você fará parte de cada segundo da minha vida...
mas não que se sacrifique por isso, entende?
“Oh. Meu. Deus”, mentalizo, lutando para organizar os pensamentos
caóticos causados por suas palavras. Como ele pode me derreter com tão
pouco?
— Não estou sacrificando nada... a minha vida só é completa com
você. Não foi isso que me disse? — pergunto, com lágrimas brotando nos
olhos enquanto o encho de beijinhos. — Você é a pessoa mais confusa de
Curitiba inteira, sabia?
— Ossos e ofícios em ser Bipolar! — Felipe pisca de maneira
brincalhona. — Agora, você tem uma hora para estar de volta!
— Ou então? — provoco.
— Bom... você sabe o que penso sobre atrasos... e também o que faço
com garotas más!
Deixo a gargalhada escapar dos lábios e o observo sumir porta
adentro. Ainda trêmula, lembro-me do que estou prestes a fazer ao encarar a
Mercedes branca de Felipe, reluzindo ao lado de maneira imponente. Sinto as
mãos soarem frio diante da expectativa. Caramba, são muitas emoções para
um dia só e eu estou passando mal de fome. Espero encontrar algo bom lá em
casa, afinal, marcar bobeira com esse carro é a última coisa que pretendo.
Sento-me no banco de couro sintético, fechando a porta com um
clique suave. O perfume forte e delicioso de Felipe está impregnado em cada
centímetro deste automóvel, é quase como se ele estivesse sentado aqui
comigo. Limpo as palmas no vestido, deixando o olhar percorrer o bonito
painel de madeira. “Jesus, me ajude a não bater esse carro!”, penso,
ajustando o banco pelos botões digitais posicionados na porta. Prendo o cinto
de segurança, passando os polegares pelos botões do volante em seguida. Ok,
é agora ou nunca! Preciso me agilizar para não ficar tão tarde.
Respiro fundo, digitando o endereço no GPS. Embora o Centro
Cívico seja a poucos minutos daqui, não quero aumentar as chances de algo
dar errado. Tremendo como uma vara verde, abro o portão elétrico e giro a
chave na ignição, procurando o freio de mão para soltar em seguida.
Chocada, percebo não existir um, e demoro um tempo até encontrar o botão
correspondente a ele. Minhas bochechas queimam a ponto de incomodarem
e, além disso, as minhas mãos deslizam pelo volante, tamanha é a intensidade
com a qual estou suando frio. É bom o Felipe estar preparado quando eu
voltar, porque vou matá-lo por fazer isso comigo!
O percurso até a minha casa leva o dobro de tempo do que o esperado,
em decorrência da velocidade — pouco mais de quarenta por hora. Chegar e
voltar com o carro intacto já é uma vitória e tanto e, acredite, não estou
exagerando. As coisas costumam dar errado para mim... acabei me
acostumando com esta condição.
É somente ao estacionar em frente ao prédio que consigo voltar a
respirar. Demoro alguns minutos para me recuperar do nervoso. Gostaria de
entender o motivo para ter tanto medo de dirigir... talvez seja o longo período
sem pegar em um volante, mas o fato é: mais um pouco e eu teria desmaiado.
“Droga, quero só ver para voltar”.
Alcanço a bolsa no banco de trás e pego, com um pouco de
dificuldade, a mala no porta-malas. Tranco o carro de Felipe e limpo o suor
da testa. Apesar de estar um frio do cão, por dentro estou fervendo. Adentro
as portas de vidro do hall de entrada do edifício, encontrando um porteiro até
então desconhecido. É um rapaz espinhento aparentando ter a minha idade,
cujos braços delgados se encontram cobertos por uma espessa blusa de lã
vermelha.
— Boa noite! — diz ele, com um sotaque arrastado.
— Noite!
— Meu nome é Guilherme, sou o novo porteiro — explica
nervosamente. — Na verdade não tão novo, já vai fazer três semanas que
trabalho aqui.
Mordo a parte de dentro da bochecha pra não rir. Ele está tentando
puxar assunto comigo!
— Pois é, eu fiquei sumida um tempo. — Sorrio. — É um prazer,
Guilherme, pode me chamar de Madu. — Aceno com a cabeça, preparando-
me para retomar a caminhada.
— Ah, só um minuto, por favor. Qual é o seu apartamento?
— Novecentos e oito.
— Novecentos e... — sua voz morre no ar, enquanto ele confere as
correspondências. Penso na profusão de contas me esperando e estremeço.
Guilherme coloca sobre o balcão alguns envelopes e, logo ao lado,
uma caixa retangular de tamanho modesto. Crispo os lábios, aproximando-me
um passo do balcão de madeira. “Ah, não! Ah, não, por favor, não seja o que
estou pensando!”.
— Você assina aqui?
Ele indica a lista de correspondências, onde assino com a mão trêmula
ao mesmo tempo em que ouço o meu estômago roncar novamente. Preciso
comer ou desfalecerei.
— Obrigada! — grasno, agarrando tudo na medida do possível e
saindo como um raio em direção ao elevador.
Tenho a sensação de ter sido um pouco mal educada, mas, neste
momento, existem prioridades maiores do que ser gentil com pessoas que
acabei de conhecer.
Tão logo piso em casa, sou recebida com o cheiro de ar parado, poeira
e mofo. Deixo a mala no meio da sala, jogo a bolsa no sofá e, antes de
qualquer outra coisa, procuro entre as cartas a confirmação das minhas
suspeitas. Encontro-a em um envelope branco e discreto, endereçado apenas
com “Maria Eduarda Albuquerque, apartamento 908”.
“Ele veio aqui de novo...”, meu subconsciente indica, temeroso.
Abro o envelope, com os dedos frouxos. Tem tanto acontecendo...
Não preciso de mais! Céus, por que precisa ser tudo tão difícil?
Arrasto o papel para fora, encontrando a elegante caligrafia já
conhecida de Renato:

Eu raramente desisto do que quero, Madu. Estou disposto a te


mostrar isso... Agora que não está mais vinculada ao Antunes, que tal aquele
nosso jantar? Aguardo sua resposta.

Ps.: Estou ansioso para vê-la neste vestido e mais ainda para vê-la
sem.

Abraços,

R.
MADU —
SEXTO SENTIDO
Meu queixo cai, tamanha é a incredulidade. Santo Deus, como
Renato teve a audácia de falar assim comigo? Arfante, esfrego o rosto, para
me acalmar. Leio o bilhete mais algumas vezes, na tentativa de absorver as
palavras quando o cérebro parece ter parado de processar novas informações.
Então um arrepio percorre a espinha e sou dominada por um medo horrível.
“Esse cara é louco!”, penso, atônita. Qual o maldito problema com ele? Qual
foi o exato momento em que virei uma presa?
Caramba, fui muito idiota por achar que ele tinha me deixado em paz.
Foi fácil demais para ser verdade! Num impulso de frenesi, busco o celular
na bolsa, pronta para ligar para o Felipe, mas, ao pegá-lo, mudo de ideia. É
melhor contar pessoalmente, afinal ele e seus pais estão conversando agora.
Sentindo o mundo girar, cedo ao peso das pernas, jogando-me contra
o sofá.
“Ótimo, tudo o que eu precisava agora era que a pressão caísse”.
Sinto os membros do corpo formigarem e, por isso, apenas
permaneço esparramada no sofá como um peso morto, o tempo necessário
para o mal-estar me abandonar.
Preciso contar para Felipe, eu sei, até porque, não quero repetir o
mesmo erro de outrora. No entanto, somente imaginar as possíveis reações
me deixam com um nó enorme na garganta. Ele está imprevisível sem os
remédios, uma verdadeira bomba-relógio prestes a explodir a qualquer
momento. Renato não pode nos prejudicar outra vez... Droga, realmente
acreditei que, depois de ter se vingado de mim contando uma mentira para
Felipe, seguiria em frente.
Ledo engano!
Levanto-me com dificuldade e caminho até o armário, vasculhando-o
em busca de algo para forrar o estômago depois de tantas horas de descaso.
Não encontro nada para me saciar rápido, apenas coisas que necessitam ser
preparadas — um pacote pela metade de arroz, feijão-preto e macarrão
parafuso. Suspiro, um pouco frustrada.
A cozinha está girando! Tento resgatar na memória há quanto tempo
fiquei sem comer na loucura que se tornou a minha vida, mas não recordo
exatamente. Não vou conseguir arrumar nada nesse estado...
Sinto o estômago revirar de uma só vez e o gosto ácido do refluxo
invade a boca. Renato é o responsável por eu ter ficado assim, tão nervosa. A
cada segundo me lembro de suas palavras, lembro-me de suas atitudes, pego-
me pensando no fato de ele continuar vindo para Curitiba apenas para me
desestabilizar. Por que precisa ser assim? Por Deus, qual o motivo para ele ter
ficado tão obcecado em mim?
Sem pensar muito, alcanço o celular novamente, discando o número
de Felipe no modo automático. A ligação chama apenas uma vez antes dele
atender — quase como se já estivesse com o aparelho em mãos.
— Já se passaram quarenta minutos... — enuncia com a voz rouca,
deixando-me momentaneamente desnorteada com o quanto consegue ser
arrebatador.
Demoro-me buscando as palavras certas e, como elas não chegam, o
silêncio na linha apenas se estende. Felipe percebe o meu comportamento
estranho, pois logo pergunta:
— Você está bem?
Engasgo antes de conseguir responder e, sem mais nem menos, caio
no choro. Esse final de semana foi tão turbulento, quero dizer, nem dá para
acreditar que só se completaram dois dias desde a minha chegada! O susto
por quase perder Felipe ainda não se dissipou completamente, porém eu nem
ao menos tenho chance de me recuperar quando mil coisas estão acontecendo
simultaneamente.
A cada passo dado, regredimos dois logo depois. Preciso ajudar
Felipe a se reerguer e isso já é intenso o suficiente. Porém, agora também tem
o Renato e suas palavras invasivas, responsáveis por me deixarem perplexa.
A todo o momento recordo o final do bilhete “Estou ansioso para vê-la neste
vestido e mais ainda para vê-la sem”, e uma nova onda de náusea me
domina. Ele não passa de um nojento!
— Madu? — Felipe pergunta, mudando completamente o tom de voz.
A preocupação é notável.
Limpo as lágrimas com as costas das mãos, mas é como se um gato
houvesse comido a minha língua. Não consigo colocar para fora a angústia
me assolando.
— Foi o carro? Porque, se foi, não tem problema! Sério! Você se
machucou? Só me fale onde está para eu te encontrar, tudo bem?
Sua preocupação me arranca um sorriso e, com isso, consigo
encontrar a lucidez novamente. Santo Deus, ele pensa que bati o carro e,
ainda assim, está mais preocupado comigo? O que faço com esse homem
maravilhoso?
— Não... — pigarreio, limpando a garganta. — Não é isso. Desculpa,
estou em casa, você pode vir aqui, por favor? Não estou me sentindo bem.
Ouço-o soltar um suspiro de alívio antes de responder.
— Logo chego aí.
Aproveitando o fato de me encontrar na cozinha, interfono na
recepção e informo ao Guilherme que estou esperando visita. Ignoro a nesga
de decepção escapando em suas palavras, destrancando a porta em seguida,
para quando Felipe chegar.
Atiro-me no sofá, com o corpo doendo como se tivesse levado uma
pancada. Abraço o tronco e, sem perceber, acabo cochilando novamente.

— Invertemos os papéis? — a voz grossa de Felipe penetra os


meus tímpanos, despertando-me de uma vez. — Agora você é a dorminhoca?
Pisco os olhos algumas vezes, encontrando-o sentado na beirada do
sofá. Pela primeira vez destes últimos dias não está vestindo um de seus
moletons com os quais treina. Inclino o pescoço, estudando-o. Encontra-se
com um jeans de lavagem escura, justo ao corpo, e um blazer azul marinho
por cima de uma camiseta cinza mescla.
— Como você está bonito! — gemo, ajeitando-me.
— Diga algo que não sei. — Ele pisca um dos olhos, lançando-me um
sorriso de canto irresistível. — Está se sentindo melhor? — pergunta,
enterrando os dedos nos meus cabelos de maneira afável.
— Não muito... Parece que levei uma surra. Preciso comer um
hambúrguer bem gorduroso com batatas fritas e muito refrigerante!
Ele acena negativamente com a cabeça, rindo de mim.
— Faz quanto tempo que não come?
— Eu não sei... Desde ontem a tarde, acho.
Felipe endurece a expressão, suas íris se tornando obscurecidas por
uma fração de segundo e, de alguma forma, sei que está atribuindo a culpa a
si mesmo.
— Estava pensando em Burger King, mas pode ser McDonald’s,
também! — falo, tentando distraí-lo de pensamentos perigosos.
Ele se inclina, deixando um beijo rápido nos meus lábios.
— Vamos, então. Depois voltamos aqui para você arrumar as suas
coisas...
Sem conseguir dominar um sorriso, assinto com a cabeça e me apoio
nos cotovelos para levantar. Meus olhos recaem sobre a caixa retangular na
extremidade oposta do sofá e engulo em seco, olhando de Felipe para a
embalagem copiosamente.
Ele inclina a cabeça para o lado e seus olhos se estreitam ao irem de
encontro ao objeto aparentemente inofensivo. Eu nem ao menos o abri — e
nem quero.
— O que foi? — ele me pergunta, repousando a mão na minha coxa.
Estico o braço, buscando o bilhete responsável por me deixar
atordoada e o entrego em seguida. Há situações nas quais não existe maneira
melhor de explicar além de ir direto ao ponto. Por isso, apenas mantenho os
olhos fixos em seu rosto, a fim de medir suas reações.
Felipe permanece com a expressão séria e concentrada que o vejo
adotar na companhia dos clientes. Suas sobrancelhas loiras se unem,
enquanto os olhos percorrem as poucas palavras escritas. Pela demora dele,
imagino estar lendo mais de uma vez, tal como eu mesma fiz.
Ele respira fundo, esfregando o rosto com as duas mãos por tempo
além do necessário.
— Ele dará trabalho... — murmura para si mesmo. Quando seus olhos
azuis encontram os meus, tremo com a intensidade contida neles. — Talvez
seja melhor para nós dois que você esteja morando comigo.
— Como assim?
Felipe encolhe os ombros, oferecendo-me um sorriso desanimado.
— Monteiro está sendo processado por assédio sexual, Madu.
Receber uma recusa não é exatamente seu esporte favorito. Aliás, como ele
sabe o seu endereço?
Mordo o lábio inferior, tornando a ficar zonza.
— Ele me disse que conseguiu com você...
— Claro que falou! — Felipe revira os olhos, impaciência
dominando-o. Com o corpo rígido como se estivesse em estado de alerta, ele
confere as horas no relógio preso ao pulso.
— Esqueça isso, tudo bem? — diz, forçando um sorriso. — Vamos
jantar e depois voltamos para pegar as suas coisas.
— Certo. — Concordo com a cabeça, ouvindo o meu sexto sentido
chegar de mansinho, avisando para me preparar para mais problemas.
FELIPE —
ESPERANÇA
Observo Madu abocanhar o sanduíche com certo desespero e não
posso dominar um sorriso. Olhando-me de soslaio, ela limpa os lábios com as
costas da mão antes de alcançar um punhado de batatas e levar boca adentro.
Balanço a cabeça em negativa, já acostumado com o fato de namorar
a deusa da gula. Mas, também pudera, ela estava sem comer desde ontem...
Respiro fundo, decidido a não ceder ao desânimo. É isso o que causo nas
pessoas ao redor, no fim das contas — preocupação e sofrimento.
Embora ela permaneça firma ao meu lado, com o jeito teimoso de
levar a vida à sua maneira; temo, aos poucos, consumir sua energia vital. Ao
me lembrar dos meus pais indo embora ainda há pouco, com os rostos
abatidos e olhares cansados, sinto um gosto amargo na boca. No entanto,
mantê-los comigo só pioraria tudo. Preciso mostrar a todos — sobretudo a
mim mesmo — que posso seguir em frente. E vou.
— Alguma notícia sobre a greve da UFPR? — pergunto, de modo a
evitar os meus pensamentos traiçoeiros.
— Não sei... — ela diz com a boca cheia. — Minha mãe comentou
algo sobre uma assembleia para tentar acordo. Preciso me informar.
Assinto, raspando as unhas na barba.
— Imagino que esteja cogitando procurar um novo emprego?
— Não agora, tão cedo — responde ela, encarand0-me perplexa. —,
mas, eventualmente, sim.
— E não existe a possibilidade de voltar a trabalhar comigo?
— Felipe... — Suspira, desviando a atenção. — Não sei se é uma boa
ideia.
— Ainda está chateada — afirmo.
— Não! Não é isso! É que... bem... eu não consigo mais misturar as
coisas. Agir profissionalmente é uma droga! Não sei esconder os meus
sentimentos, você sabe disso!
Aquiesço, cruzando os braços sobre o peito. Permito meus olhos
passearem pela menina-mulher de frente para mim. Os cabelos loiros estão
presos em um rabo no topo da cabeça, de onde alguns fios pendem de
maneira desordenada e incrivelmente sexy. As bochechas e o nariz estão
rosados pelo frio e, apesar de emoldurados por olheiras, os enormes olhos
esverdeados se encontram mais vibrantes do que nunca.
Fisgo o lábio inferior, debruçando-me nos cotovelos sobre a mesa,
sentindo-me incapaz de desviar os olhos dela. Não compreendo exatamente a
razão para merecê-la, mas o fato é: não vou colocar tudo a perder, como
sempre faço. Não mesmo.
Madu percebe o peso de meu olhar e o retribui, visivelmente
encabulada.
— Pode ficar só até eu encontrar outra secretária? — indago,
lançando a minha melhor expressão de inocência.
Um sorriso brota nos meus lábios enquanto minha mão percorre sua
perna, massageando-a até bem perto da virilha — o mais longe que consigo
alcançar de onde estou. Ela arfa em surpresa para depois olhar em todas as
direções, procurando algum possível espectador.
— Outra secretária?
Minha risada paira entre nós, fazendo suas bochechas ficarem ainda
mais avermelhadas.
— Algum problema? — pergunto, enterrando os dedos na parte
interna da sua coxa.
— Precisa ser necessariamente do sexo feminino?
— Isso a incomoda? — dou de ombros, para provocá-la. Algo sobre
vê-la irritada está me deixando louco.
Arranho suas pernas, sentindo a meia-fina desfiar sob as minhas
unhas. Madu fecha os olhos ligeiramente, com uma expressão de quem está
lutando para se controlar. Avanço com a mão novamente, notando sua
respiração se alterar a cada segundo.
— Não vai comer?
Ela aponta para meu o sanduíche esquecido na bandeja, deixando
transparecer uma nesga de tesão em sua voz. Está tentando mudar de assunto,
eu sei, porém não permitirei isso. Não quando quero vê-la gritando para mim
o mais breve possível.
— Vou — sussurro e, de maneira inconsciente, ela inclina o tronco
para frente, a fim de ouvir melhor. — Mas, definitivamente, não isso.
Sua boca se abre, formando um “o” de surpresa tão logo o
entendimento a alcança. Rio satisfeito pelo trabalho de tê-la deixado
desconcertada, ela fica adorável com os desejos à flor da pele.
— Ah, não? Vai comer o quê? — pergunta, com uma expressão
atrevida tomando suas feições.
“Provocativa, como sempre...”, constato, deliciado.
— Eu te mostro assim que sairmos daqui!
Madu assente, puxando minhas batatas fritas para si mesma, com o
sorriso cismando em permanecer nos lábios.

Dirigir se torna uma tarefa muito difícil ao passo em que Madu


resolve jogar comigo. Minha visão está turva de desejo, enquanto a mão dela
aperta o meu pau, esfregando-me sem pudor para cima e para baixo.
Chegando ao prédio dela, freio o carro bruscamente, em uma notável
demonstração da minha perda de controle. Pelos sete infernos, o que ela
provoca em mim é mais alucinógeno que uma droga!
Arquejo, soltando o cinto de segurança e avançando sobre ela, como
um animal selvagem indo em direção à presa. Invado sua boca com a língua,
puxando os seus cabelos para vê-la se arrepiar inteira para mim.
— Você é uma safada, sabia? — sussurro, mordendo o lóbulo de sua
orelha e arrancando um gemido delicioso.
Escorrego a mão para dentro do vestido e, depois, da calcinha.
Encontro-a encharcada e não posso reprimir um novo gemido. Penetro-a com
o dedo médio, observando sua expressão mudar completamente em uma
fração de segundo. Esfrego seu clitóris com o polegar e, como resposta,
Madu libera um som gutural, inclinando o quadril para cima, em um
movimento puramente involuntário.
Tiro o dedo de dentro dela, levando-o até a sua boca e, nela, imitando
o mesmo movimento de vai-e-vem que estivera fazendo lá em baixo.
— Vamos subir — profiro, engolindo em seco.
Ela concorda, puxando a mão de dentro da minha calça. Então, depois
de se recompor, salta para fora. Abotoo o jeans, sem me importar com o
quanto minha ereção está visível. Saio com tranquilidade, querendo provocá-
la um pouco mais. Pigarreio, trancando o carro e percorrendo a distância
entre nós com uma paciência exagerada. Ao alcançá-la, toco com suavidade o
vão de suas costas. Madu estremece, mordiscando o lábio inferior
demoradamente.
Adentramos o hall, imersos em um silêncio repleto de tensão sexual.
Ela meneia a cabeça para o porteiro, cumprimentando-o silenciosamente.
Noto os olhos dele nos acompanharem até sairmos do seu campo de visão e
constato o fato de claramente estar interessado nela. O pensamento me
arranca um sorriso, exatamente quando entramos no elevador.
Tão logo a porta metálica se fecha atrás de mim, minha visão percorre
o cubículo, sem encontrar nenhuma câmera. É cabível, afinal de contas esse
prédio deve ter, no mínimo, uns cinquenta anos. Confiro rapidamente as
horas no relógio em meu pulso, descobrindo faltar pouco para a meia-noite.
Madu está alheia à ideia me seduzindo neste momento e, por isso, salta de
surpresa quando aperto o botão de emergência com um pouco de brutalidade,
fazendo o elevador parar com um baque.
— O que vo... — começa a perguntar, no entanto o som é abafado
com a colisão de nossas bocas.
Abro o zíper, liberando meu membro rijo para fora. Arrasto suas
meias até as coxas pouco antes de erguê-la pelas pernas, apoiando-a contra o
espelho.
— Felipe! — Tenta se desprender, parecendo preocupada em ser
pega.
Eu adoraria aproveitar a deixa para colocar a cabeça no lugar, mas
Deus sabe o quanto sou viciado na adrenalina causada pela perspectiva de
poder ser descoberto a qualquer segundo. Foda-se, será aqui mesmo e será
agora!
Encaixo-me entre suas pernas, penetrando-a lentamente. Sinto-a
úmida e quente ao meu redor e fecho os olhos, encostando nossos testas.
— Não... — Ronrona. — É muito arriscado!
— Você não quer? — pergunto com a voz rouca, saindo de dentro
dela. — Me fala que não quer e eu paro! — provoco, estocando de uma vez
até o talo.
Ela solta um gritinho, o qual tento abafar com uma das mãos. Deixo
escapar uma risada, completamente louco por essa menina enroscada em
mim.
— Hein? — desafio-a.
Madu contorce o rosto, com a minha expressão favorita no mundo —
pálpebras semicerradas, sobrancelhas formando uma única linha, a boca
aberta ao máximo. Cravando os dedos em toda a extensão de suas pernas,
roço meus lábios nos seus, eventualmente alternando com mordidas.
No momento em que a sinto se apertando ao redor do meu corpo, o
elevador começa a descer com um solavanco. Com o coração batucando
contra a caixa torácica, desvencilho-me dela, correndo contra o tempo para
me reordenar antes de chegarmos ao andar para onde estamos sendo levados.
Cruzo os braços sobre o peito, recostando-me despretensiosamente
sobre o espelho. Pelo canto dos olhos, noto minha menina ofegar, já com o
vestido e meia nos lugares exatos. A porta é aberta para uma desconfiada
idosa entrar, estudando-nos com uma expressão de denúncia tomando os
traços vincados pelo tempo. Preciso me segurar para não rir do pânico
evidente no rosto de Madu, o qual só é aliviado quando a senhora pula para
fora do cubículo. Ela desfere um leve soco contra o meu peito, vermelha
como um pimentão.
— Céus, Felipe! Isso não se faz!
— Quem disse que eu acabei com você? — indago, enlaçando-a pela
cintura e a trazendo contra mim.
Saímos do elevador com os corpos emaranhados e o trajeto até o
apartamento dela se torna um verdadeiro desafio. Madu abre a porta com as
mãos trêmulas, entrando como um raio. Sigo-a até a sala, onde aproveito para
despi-la com a urgência acumulada desde a lanchonete.
Passeio minhas mãos por suas curvas, apalpando, beliscando e
explorando seu corpo delicioso.
— Também quero te ver... —diz ela, adiantando-se em tirar o meu
blazer. Seguro seu pulso, negando com a cabeça.
— Hoje só eu serei o privilegiado. É o seu castigo...
— E por que estou sendo castigada?
— Por ser uma gostosa! — falo já contra sua boca, guiando-a com o
corpo até a sacada.
Madu morde o lábio, apoiando-se nos cotovelos e olhando para fora
com expectativa. Devido à hora, não existe nenhuma alma viva na rua, além
do mais, a falta de iluminação colabora conosco.
Ela me surpreende ao me encarar por cima do ombro e lançar uma
piscadinha, quase como se perguntasse silenciosamente “você não vem?”.
Gemo cheio de tesão, foram gestos audaciosos como este responsáveis por
me arrebatar... eu amo a brasa ardente que Madu tem dentro de si. É
alucinante!
Desfiro um tapa em sua bunda, segurando-a pelos cabelos para forçá-
la a permanecer empinada para mim. Com a mão livre, cubro sua boca —
embora seus gritos me sirvam como combustível, já estamos abusando da
sorte.
Inclino-me sobre ela, apoiando o queixo no seu ombro. Gemendo
contra o seu ouvido, retomo as investidas, ouvindo nossas respirações
agitadas se fundirem aos sons de nossos corpos colidindo.
— Ahhhh, que gostoso... — As palavras são abafadas pela minha
mão. — Me castiga mais!
“Puta merda”, meu subconsciente profere, atônito. Puxo seus cabelos
um pouco mais, obrigando-a a deixar o pescoço em evidência. Deslizo a mão
pelo seu corpo até o meio de suas pernas, onde retomo a atenção ao clitóris.
Estou chegando ao clímax e quero levá-la comigo.
— Você me faz perder a razão... — sussurro contra sua pele,
aumentando o ritmo das investidas enquanto brinco com o polegar, traçando
movimentos circulares. — Goza pra mim, Madu!
Seus gemidos se tornam crescentes, mas, desta vez, não dou a mínima
se algum vizinho porventura ouvir. Fecho os olhos, sorvendo o aroma de seus
cabelos ao enterrar o rosto neles. Ela começa a movimentar os quadris
seguindo o compasso das estocadas, servindo como estopim para o meu
corpo se manifestar.
Em uma alucinante explosão de espasmos, preencho-a com o meu
gozo, sentindo-a tremelicar descomedidamente, seu último gemido morrendo
no ar. Saio de dentro dela, percebendo a calmaria dentro da minha cabeça. É
irônico que a paz venha depois de uma profusão de sensações, porém não me
queixarei. Afinal, ultimamente são poucos os momentos em que minha mente
é silenciada.
Madu vira de frente para mim e, com um braço de cada lado dela,
seguro a grade descascada da sacada, beijando-a com todo o ardor guardado
aqui dentro. Seus braços circundam o meu pescoço e percebo estar arrepiada
de frio. Trago-a para dentro novamente, sentindo-me afortunado enquanto
percorro os dedos pelo seu corpo nu.
Desde que Maria Eduarda apareceu na minha vida, eu comecei, de
fato, a viver. Talvez realmente exista uma esperança para mim, no fim das
contas.
FELIPE —
SALVAÇÃO
Abro a gaveta de gravatas do closet, encontrando uma sucessão
interminável. Deslizo os dedos por elas, sentindo a textura de uma, a qual
acabo escolhendo para usar hoje.
Desde a fatídica quinta-feira em que quase tirei a minha própria vida,
só se passaram 4 dias, mas, ainda assim, parece-me com uma eternidade.
Trajar novamente um terno e observar a imagem refletida no espelho causa
um estranhamento, como se eu houvesse passado anos a fio sem exercer a
minha profissão.
Respiro fundo, passando a gravata ao redor do colarinho, meus dedos
realizando o nó italiano no modo automático. Tinha cerca de dez anos quando
o aprendi. Via meu pai metido num terno a todo o momento e, por isso,
queria ser como ele. Recordo da luta para aprender, mas, depois disso, jamais
esqueci. Ao acordar, a primeira coisa a fazer era escolher uma gravata dele
para passar o dia.
A memória me arranca um sorriso fraco. Confiro as horas no relógio
— não passa das seis. É muito cedo para estar pronto, eu sei, porém não
consegui dormir direito nesta noite. Era só fechar os olhos para os traumas
voltarem à tona. Suspiro desanimado. Quero seguir em frente, no entanto
minha consciência não colabora.
Além disso, agora tenho mais uma preocupação — Renato Monteiro.
Esfrego o rosto, recordando as palavras dele no bilhete enviado para Madu.
Sinto uma onda de adrenalina percorrer as minhas veias me fazendo
estremecer. Eu já conhecia a fama dele, sempre metido em intermináveis
escândalos... somente nunca imaginei a possibilidade dele ficar tão obcecado
por uma mulher. Acho que, no fim das contas, a recusa dela o instiga a
continuar, afinal, o prêmio é um atrativo e tanto — massagear o próprio ego.
Crispo os lábios, aflito. Deus sabe o quão longe a dignidade abalada
pode levar uma pessoa e é esse o motivo me preocupando em toda a história.
Isso e o fato dele ter sido processado por assédio — a razão de nosso laço, no
fim das contas. Agora vejo, Madu foi honesta desde o princípio sobre as
abordagens dele. Meu rosto queima em arrependimento pelas semanas
passadas longe um do outro.
Pesco o One Million na prateleira. Madu já comentou comigo em
algumas ocasiões o quanto gosta do meu perfume e, por isso, é inevitável não
deixar o pensamento ser levado até ela sempre que o espirro contra a pele.
Encaro a imagem refletida no espelho uma última vez e, apesar da confusão
na qual me encontro, assumo a impenetrável imagem adotada por anos a fio,
a fim de esconder todos os meus problemas.
Antes de descer para a cozinha, sigo até o quarto, seduzido pela ideia
de vê-la dormindo novamente. Recosto-me contra o batente da porta, socando
as mãos nos bolsos da calça. Madu se encontra deitada de bruços, braços e
pernas espalhados por toda a cama. A respiração suave é o indicativo do
quanto está tranquila em seus sonhos. Sorrio, fechando a porta com um clique
suave e, em seguida, dirigindo-me aos andares de baixo.
Já ao pé da escada, sou recebido pelo delicioso aroma de pão sendo
assado. Meu peito se comprime ao encontrar Leonor em seu uniforme branco,
ocupada em preparar o desjejum.
— Que final de semana, hein? — comento casualmente, deixando um
beijo demorado na bochecha dela.
— Pois é, menino. Você deu um susto e tanto na gente.
— Eu não tinha a intenção... — enuncio, pelo que parece ser a
vigésima vez.
— Eu sei que não, meu bem. Mas, ainda assim, foi irresponsável...
tomar tantos comprimidos e misturar com bebida... ai, ai, ai, Felipe. Olha só
para você! Um homem tão bonito, saudável, com tanta gente que te ama... só
toma cuidado! Da próxima vez pode não ter tanta sorte.
— Você tem razão. Chegou a hora de tentar encarar a vida com outros
olhos — digo, colocando uma capsula na cafeteira.
— Tá tomando os seus remédios?
Encolho os ombros, olhando-a de soslaio.
— Não preciso deles. Tenho tudo sob controle.
— Felipe...
— Por favor, Leonor. Não quero brigar com você também! Sei que
está do meu lado.
— Infelizmente, sim, querido. Tenho você como um filho, apoio duas
decisões mesmo não concordando com elas. Mas acho que você tá
prolongando o sofrimento sem os remédios...
Raspo a unha na barba, anotando mentalmente que preciso fazê-la o
quanto antes. Apanho a xícara fumegante com o café, e, apoiando-me nos
cotovelos, elevo o corpo, sentando sobre a ilha central. Leonor balança a
cabeça negativamente, com um sorriso no rosto. Decido por mudar o rumo do
assunto.
— Estou te devendo um final de semana, não? — pergunto com o
rosto afundado na xícara.
— Claro que não, menino. Foi uma fatalidade! — Ela acena com a
mão. — Deixa de besteira.
— Vou te compensar... pago esses dias como horas extras!
Ela estaca no caminho, encarando-me significativamente com seus
olhos de jabuticaba.
— Dinheiro não é tudo.
— É grande parte, no entanto.
— Felipe... — ela lamenta tristonha. — Cedo ou tarde vai perceber
que não devemos dar tanta importância ao dinheiro... pode nos custar caro,
querido.

O barulho de saltos ganha a minha atenção e, por isso, desvio os


olhos da tela do notebook, exatamente quando Madu entra na sala.
A visão dela me deixa ligeiramente desconcertado. É a sua primeira
vez usando saltos para trabalhar — os que eu dei a ela de presente — e um
vestido preto de mangas compridas contornando o corpo esguio de maneira
provocativa. O cabelo está solto em ondas loiras e, por um segundo, pego-me
mordiscando a ponta metálica da minha caneta, sem me dar conta.
Pelos sete infernos, onde está a minha menina e o que essa mulher
fatal fez com ela?
Madu caminha sem hesitar ao peso do meu olhar e, apoiando as mãos
no tampo da mesa, oferece um sorriso.
— Bom dia!
— Está melhor agora. — Sorrio, enfeitiçado pelo seu magnetismo.
— Você levantou a que horas?
— Cedo. Não consegui dormir direito, então acabei desistindo de
tentar... — Encolho os ombros. — Não quis te acordar, parecia sonhar com
algo bom.
— Hum... sobre não ter dormido bem... queria mesmo falar com você
sobre isso.
— Algum problema?
Ela une as sobrancelhas, parecendo desconfortável em levar a
conversa adiante. Noto os vincos em sua testa até que ela finalmente toma
coragem para prosseguir.
— Eu também não dormi direito... porque você, hum... você estava
chamando uma tal de Bia. Sem parar — balbucia.
— Eu o quê? — pergunto, sentindo o sangue se esvair do rosto.
— Acho que deve ter tido um pesadelo, mas, de toda forma, não
consegui te acordar. Estava em sono profundo, se mexendo bastante...
— Madu...
— Não! Não tem problema. — Ela se empertiga, desviando o olhar
para as próprias mãos. — Eu sei que ela também faz parte do seu passado.
Ouvi um pedaço da conversa com os seus pais ontem à noite.
Levo as mãos ao rosto, sem reação. De fato, Bia faz parte do passado.
No entanto, assim como Amanda, insiste em me acompanhar no decorrer dos
dias, sem uma trégua.
— Olha, eu não vou mentir, fiquei um pouco decepcionada... depois
de tudo o que me contou sobre... sua... — Ela respira fundo, pigarreando em
seguida. — Eu só quero ajudar! Eu... eu... não sei o que preciso fazer para
você começar a confiar em mim. Estou dando o máximo, Felipe, mas você
insiste em colocar essa barreira entre nós.
Engulo em seco, incapaz de encontrar palavras capazes de aliviar os
seus sentimentos intensos. Como eu gostaria que lidar com feridas tão antigas
fosse mais fácil, porém não é. Embora deem a sensação de terem se
amenizado depois de tantos anos intocadas, feridas abertas sempre serão
feridas, a dor permanece lá, esperando para nos atingir de supetão. É isso o
que ninguém entende! A dor não é deles, a dor é minha, ela mora aqui dentro.
Apenas eu preciso lidar com ela, e isso torna o peso quase insuportável.
Respiro fundo, percorrendo meus cabelos com as mãos e encontrando
íris esverdeadas me encarando com uma cobrança a qual não consigo
compreender. “Por que isso a chateia tanto? Ela não percebe o fato de eu
estar tentando?”
— É mais difícil do que parece, meu amor! — sussurro, e as palavras
soam nostálgicas de uma maneira irônica.
Então, quase como se tivesse acabado de ser atingido por um raio, um
flash invade minha mente já perturbada, trazendo uma vívida Bia.
O cabelo crespo se encontra solto e volumoso da maneira como mais
adoro; na boca, um batom roxo que prende meus olhos nos lábios carnudos.
Tão linda... porém tão perturbada.
Observo as lágrimas escorrerem pelos olhos de ônix dela
copiosamente, e tomo sua tristeza como minha. Precisa ser assim? Ela não
entende o quanto é angustiante querer ajudar e não conseguir?
Aproximo-me, tomando suas mãos nas minhas, incapaz de raciocinar
direito. Meus olhos recaem instantaneamente para os braços flagelados,
pincelados com um vermelho mórbido e sinto o coração se comprimir dentro
do peito, ficando do tamanho de uma semente de mostarda.
Com um nó enorme na garganta, sufocando-me mais a cada segundo,
traço um dos finos cortes com o polegar, levemente. Por Deus, ela está pior
do que nunca...
— Não faz isso comigo, Bia, por favor.
— É mais difícil do que parece, loirinho.
— Eu sei. Mas vamos conseguir passar por isso juntos, não foi o que
combinamos?
Sou desperto dos meus devaneios pelo toque suave da minha menina.
Seus dedos avançam pelos meus, em um gesto que faz o estômago revirar.
— Não precisa se esconder de mim! Só queria que soubesse disso. —
Ela repuxa os lábios num sorriso amargo. — Não posso mensurar o tamanho
da sua dor, mas posso tentar compreender. E isso só será possível se você
parar de agir na defensiva. Me deixa te ajudar, Fê...
Apesar do desejo imenso de confortá-la, prometendo me esforçar para
melhorar, emudeço. Afinal de contas, como posso assegurar algo que foge do
controle? Como posso oferecer uma mentira lavada?
Madu permanece me fitando com o olhar cheio de expectativa e eu,
por alguma razão, esquivo-me. Deslocando o olhar para o computador, afasto
minhas mãos do toque cuidadoso das suas.
— Não é a hora e nem o local adequado — falo, um pouco mais seco
do que gostaria.
Pelo canto dos olhos, vejo-a acenar com a cabeça, decepcionada.
Tamborilando as unhas no tampo da mesa de uma maneira um pouco
agressiva, profere com a voz embargada.
— Eu não posso te ajudar se você não quer a salvação, Felipe.
Ninguém pode.
E então, sem vacilar, marcha em seus scarpins Valentino para fora da
sala.
MADU —
RETRATOS
Alguns diriam ser egoísmo, porém, na verdade, é muito difícil não
se deixar dominar por pensamentos traiçoeiros ao ver uma pessoa querida
encontrando mil motivos para tentar se afundar um pouco mais. Não digo
isso por ter passado o dia remoendo a atitude e as palavras frias de Felipe,
mas sim por, somente agora, conseguir compreender a forma agressiva como
o pai dele lida com a situação toda.
Quando conheci esse advogado chamado de imbatível, jamais poderia
imaginar a ruína na qual se encontra. Quem poderia, afinal? Escondido por
trás de uma carreira sólida e uma vida de luxos, a solidão passa quase
despercebida. Já me perguntei, no entanto, o porquê de um homem como ele
não ser casado e possuir uma família. Só nunca imaginei a complexidade de
seus problemas.
No momento, estou com um misto de raiva e frustração. Apesar de
me culpar por me sentir assim, não chegarei a lugar algum enganando a mim
mesma. Estou aqui por ele — na sua casa e no emprego responsável por unir
nossos caminhos — mas ele está aqui por mim? Quero dizer, ele realmente
está tentando?
Depois de todo um expediente sendo evitada e, por vezes, tratada de
maneira ácida, tornou-se um pouco inevitável não alimentar o rancor. Em
momentos como este, o Felipe que adoro se apaga da minha lembrança,
deixando em evidência o que não gosto tanto assim.
Desligo o computador, saindo para trancar o portão de acesso ao
escritório. Inspiro o máximo de ar, na tentativa de oxigenar o cérebro e
afastar essa nuvem de amargura. Deixando-me levar pelos pensamentos,
perco a noção de tempo, enquanto observo as pessoas da vizinhança
retornando aos seus lares depois de um longo dia de trabalho. Quando dou
por mim, já quase anoiteceu e, a constatação de que ninguém deu por minha
falta faz o estômago revirar.
Melancólica, percorro o caminho ladeado por irregulares pedras
brancas, trancando as imponentes portas atrás de mim. Pesco o celular na
gaveta da escrivaninha, encontrando uma mensagem de Vanessa nele.
“Ainda tenho uma melhor amiga?”
Sorrio, sentindo uma onda de remorso me dominar. Eu nem ao menos
a avisei sobre minha chegada! Coitada!
“Precisamos colocar o papo em dia...”, digito e, logo em seguida,
complemento: “Alguma notícia sobre a greve?”.
Em passos arrastados, percorro a enorme casa de Felipe,
estremecendo com a quietude. É estranho, mas embora em um primeiro
momento ela tenha me impressionado, agora só me causa temor. Eu jamais
conseguiria viver aqui sozinha, como ele viveu por tanto tempo. Além de
tudo é um exagero.
Como se as paredes pudessem me espionar, subo até o quarto de
Felipe o mais depressa possível, porém não o encontro lá. Sentindo os pés
protestarem após tantas horas no salto, aproveito a deixa para arrancá-los e,
sentada na enorme cama, um pensamento intrigante invade a mente.
Não existe nenhum porta-retratos nesta casa... Na sala, no quarto, ou
em qualquer lugar; apenas não existem registros. Nenhuma foto. Nada.
O celular vibra e, por isso, confiro-o, deparando-me com a resposta de
Nessa. Céus, eu já havia me esquecido dela! “Sua louca, as aulas voltam
nessa quinta!”. Apesar da saudade da minha amiga, estou tomada por um
desejo irreversível e não posso ignorá-lo.
Observo os criados-mudos ao redor da cama com um interesse
crescente e decido por começar com o móvel ao lado de onde ele dorme.
Abro a gaveta com um pouco de urgência, revirando os papéis em busca de
algo que nem ao menos sei o que é. No fundo estou apenas desesperada por
respostas.
Desordenando uma profusão de papéis sem significado nenhum, parto
para a gaveta de baixo, sem encontrar nada, da mesma forma. Respiro fundo,
com o coração bombeando mais rapidamente o sangue pelo corpo. A
adrenalina é pulsante e meus dedos se encontram trêmulos. “Senhor, que
loucura estou fazendo?”, pergunto-me, contornando a cama para alcançar o
outro criado-mudo.
Suando frio, continuo a busca até, finalmente, ter um estalo. Meu
sexto sentido sussurra para eu ir ao closet e, como ele nunca falha, obedeço-
o. Desço os degraus de dois em dois, sem me preocupar com o paradeiro de
Felipe — sem me lembrar da sua existência, para ser honesta.
Entro no cômodo, sendo acolhida pelo sentimento melancólico que,
hoje em especial, parece tomar cada centímetro desta casa. Vejo o meu
reflexo no grande espelho, sem deixar escapar o quanto minhas olheiras se
encontram proeminentes. Com isso, tento me convencer de ser minimamente
aceitável a invasão de privacidade — eu não conseguirei descansar enquanto
não desvendar este homem enigmático pelo qual meu coração pulsa mais
forte. Dane-se, preciso acabar com a angústia. Não ficarei sentada vendo-o
agir com tamanha inércia em relação à própria vida.
Meus olhos fazem uma varredura pelas elegantes divisórias
construídas em imbuia, lotadas de ternos em cores e cortes variados. “Onde
diabos ele poderia guardar algo de que queira se lembrar?”.
Arrisco alguns passos desnorteados, até finalmente focar nas gavetas
ao fundo do quarto, posicionadas de maneira simétrica entre os dois
corredores existentes aqui dentro. Abrindo uma por uma, vou revelando os
conteúdos escondidos — gravatas, meias, lenços... — até finalmente chegar à
última. Deslizo-a sem muita expectativa e, por essa razão, não posso reprimir
um grunhido de surpresa ao achar exatamente o que queria. “Ai. Meu.
Deus!”, penso atônita, ficando tonta de expectativa.
Ajoelho-me em frente a ela, um pouco decepcionada por não ter a
quantidade enorme de recordações que esperava encontrar, mas sim um
número escasso delas.
Qual não é a minha surpresa ao descobrir ter uma foto 3x4 minha ali
dentro! Mordo o lábio com força, tomando-a com os dedos em pinça. O
coração vem à garganta e toda a tristeza se dissipa em um passe de mágica.
Meu Deus, essa foto... eu a entreguei junto com os meus documentos quando
fui contratada! É a mesma do currículo... Ele a guardou desde então?
Nem ao menos percebo o sorriso idiota nos meus lábios, limito-me a
encará-la por minutos a fio, dominada por uma inexplicável felicidade. A
contragosto, coloco-a de lado, vasculhando uma faceta desconhecida de
Felipe — a sentimental. A cada nova descoberta, mais o meu coração se agita
de maneira descompassada. Uma foto na formatura, tão mais jovem; outra
vestindo um elegante terno azul-marinho, ao lado de Isaque, ambos com
sorrisos enormes no rosto. Droga, estou chorando! Isso é idiotice, eu sei, mas,
por outro lado, é emocionante conhecer o lado humano do homem que tanto
amo.
A próxima foto me rouba o fôlego. Nela, ele ainda é adolescente,
porém os traços são inconfundíveis — olhos azuis intensos, cabelos dourados
e o eterno sorriso torto nos lábios. Em seus braços, um bebê trajando um
pomposo vestido cor-de-rosa e, seguro em suas mãos gordinhas, um
mordedor em formato de pé. Amanda! Crispo os lábios, subjugada à dor. Ela
era tão linda! As bochechas rosadas, os enormes olhos de safira...
Então, por uma fração de segundo, meus olhos são atraídos para
dentro da gaveta. Solto a foto de Amanda e Felipe sem perceber, hipnotizada
com a mulher sorrindo para mim do último retrato da gaveta.
Engulo em seco, notando, ao pegá-la, que está presa a um pedaço de
papel com um clips. “Seria essa a Bia?”, pergunto-me, deixando os olhos
percorrerem os seus traços — olhos amendoados, sobrancelhas espessas e um
sorriso de tirar o fôlego emoldurado por grossos lábios pintados de vermelho.
Ela é linda!
Meus dedos deslizam o clips, soltando a foto do papel e descobrindo,
atônita, tratar-se de uma carta. Com a mão trêmula, desdobro o bilhete
amarelado pelo tempo. O coração martela com veemência e todos os poros do
corpo resolvem suar ao mesmo tempo. Apesar do frio, queimo por dentro.
Então, ignorando o fato de estar literalmente bisbilhotando o passado
de Felipe, começo a absorver cada uma das poucas palavras eternizadas
naquele singelo pedaço de papel.

Meu amor,
Sei que você não vai me perdoar por isso tão cedo e sinto muito que
precise ser assim. Eu juro que tentei, lutei com toda a força para melhorar e
ser a pessoa que você merecia. Lutei para ser seu alicerce, assim como você
é o meu. Lutei para viver o nosso “felizes para sempre”, mas é impossível.
Não suporto mais um dia sequer, essa angústia dentro de mim está
devastando tudo o que existia de bom. Não existe mais luz, apenas trevas.
Jamais, nem por um único segundo, pense que a culpa foi sua! Talvez
o amor suma com o tempo, talvez você até mesmo me odeie em determinado
momento, mas eu estou indo feliz. Lembre-se sempre disso. Não há mais dor,
há apenas paz. O martírio acabou e você está livre para procurar a sua paz
também.
E, por favor, em nome do seu amor por mim, não desista como eu.
Você tem um caminho brilhante pela frente, o qual assistirei de onde quer
que esteja. Seja feliz. Liberte-se do passado, sobretudo de mim.
Sempre te amei e sempre te amarei, meu loirinho.
Da sua pretinha,
Bia.

Levo a mão à boca, chocada. Meus pensamentos são uma desordem


alucinante. “Minha nossa, minha nossa...”, meu subconsciente repete sem
parar.
Antes de sequer digerir o conteúdo da carta, pulo de surpresa ao ouvir
um barulho atrás de mim. Estupefata, giro o corpo encontrando Felipe a
alguns passos de onde permaneço. Está apenas com uma calça de moletom
branca, o abdômen nu brilha de suor, fazendo-me constatar o óbvio — estava
na academia particular.
Observo o seu peito subir e descer descompassado. Os punhos
fechados e o maxilar trancado são indicativos alarmantes de seu estado de
espírito. Caramba, nunca o vi desta maneira antes!
— Que. Merda. Você. Está. Fazendo? — pergunta entredentes, a
sobrancelha formando uma única linha no rosto contorcido pela ira.
— Felipe... eu... — balbucio. — Não queria... descu...
— Saia daqui! — urra ele, suas íris brilhando além do normal. —
Agora!
Levanto-me com as pernas bambas, quase como se começassem a
derreter. Encontro-me tão assustada que nem ao menos consigo controlar o
corpo aturdido. Encaro-o com o terror transparecendo nos meus olhos. Em
seus quase dois metros de altura, Felipe está assustador como um urso. Basta
a forma mordaz como me olha para um arrepio percorrer o corpo inteiro.
Nem parece a mesma pessoa.
— Felipe... — minha voz morre tão logo ele avança um passo,
fechando os olhos.
Seu punho direito vai em frente à boca, a respiração dele parecendo a
cada segundo mais desenfreada. Como se ele travasse uma batalha interna
entre a sanidade e o descontrole.
— Saia daqui antes que eu fale algo que me arrependa! — sussurra,
com a voz rouca.
— Não! — surpreendo-me ao ouvir minha voz pairando pelo ar. —
Vamos lá, me fale!
— Maria Eduarda... por favor!
— Coloca pra fora! Não guarde esse veneno aí dentro! Eu aguento!
Vejo-o colocar as mãos na cabeça, taciturno.
— Não complique tudo... — praticamente implora.
— Eu estava fuçando nas suas coisas, Felipe! Deliberadamente! —
grasno, avançando um passo em sua direção. — Conhecendo o seu passado
que você insiste em manter trancado de mim. Eu estav... — emudeço quando
ele elimina a distância entre nós como um raio, segurando o meu rosto com
as mãos e me calando com seus lábios desesperados.
MADU —
FOGO
Este beijo é diferente de todos os outros. Felipe me consome com
sua fúria transformada em um ato de paixão. Encontra-se em chamas e, por
isso, o contato é ardente, quase queima. Sua respiração ricocheteia contra
minha pele, em lufadas rápidas e curtas. Os dedos seguram o meu rosto com
força, como se para me impedir de sair daqui.
Ele me prensa contra a superfície de madeira às minhas costas, unindo
nossos corpos de maneira incisiva, quase como se quisesse ocupar o mesmo
espaço que eu. É possível notar a revolta da sua alma na forma agressiva
como ele enrosca nossas línguas, ou no quanto me traga, deixando-me sem ar
nos pulmões.
Ao ameaçar explorar seu corpo, no entanto, ele me impede com as
suas mãos, segurando os meus pulsos em frente ao ventre. Arfo em surpresa,
com o coração quase saindo pela boca.
Meus membros reagem ao beijo apaixonado de maneira inusitada —
pareço estar em brasa. Cada centímetro de pele servindo como um fio
condutor da eletricidade correndo de um corpo para o outro. Suas mãos
grandes e pesadas voltam ao meu rosto, aprisionando-me de corpo e alma
nesta entrega alucinante.
Semelhante a se estivesse em queda livre, todos os meus músculos
formigam. É perigosamente alucinante. Estou sem fôlego no momento em
que ele afasta um pouco o rosto, com os lábios inchados e avermelhados.
Seus olhos cristalinos são como raios-X, penetrando a minha alma e me lendo
com tamanha facilidade. Através deles, é possível ver a batalha sendo travada
dentro de si. Suas íris me estudam com atenção enquanto ele tenta abrandar a
respiração descontrolada.
Ele estreita os olhos, engolindo em seco e então, quando acho que me
libertará, seus braços me levantam do chão com facilidade. Sua boca busca a
minha novamente, com a mesma fome de antes, ele quer me devorar.
Girando o tronco e se inclinando para frente, Felipe me deita no chão,
ficando sobre mim. Arrasta o vestido com facilidade para fora do meu corpo
e depois se apoia nos cotovelos, deslocando os beijos para a orelha, pescoço,
ombro e clavícula, onde deixa algumas mordidas. Tão logo arrisco colocar as
mãos nele, a recusa anterior se repete e, balançando a cabeça em negativa, ele
segura meus pulsos com uma só mão, acima da cabeça.
Sustento o olhar penetrante, estremecendo com a intensidade dele.
Felipe tem a testa cheia de vincos, em uma expressão de angústia.
— Felip...
— Shhhh! — Ele volta a fechar as pálpebras.
Comovida pelo sofrimento aparente no seu rosto perfeito, limito-me a
percorrer cada um de seus traços com meus olhos sedentos. O maxilar
anguloso, o nariz fino e comprido, os lábios bem delineados... é muito viril,
muito convidativo aos olhos. Cada pedacinho de mim clama por Felipe como
uma viciada clama por droga, estou constantemente em abstinência, tratando-
se dele.
— Você me tira do sério — murmura desconcertado. — Isso que faz
comigo... é covardia.
— O que eu faço com você? — sussurro.
— Coloca o meu mundo de cabeça pra baixo. Devasta o autocontrole
que lutei tantos anos para ter... — Ele respira fundo, deitando a cabeça sobre
o meu tronco, para a minha surpresa. Seus braços musculosos me abraçam
pela cintura. — Você me deixa louco, Maria Eduarda. Estou louco por você!
Perco o rumo ao perceber a umidade na minha barriga. “Ele está
chorando!”, constato o óbvio, mortificada. Sem saber o que fazer, passo os
dedos pelos seus cabelos dourados, enquanto seus ombros balançam
sutilmente. Permito-o chorar pelo tempo necessário — ultimamente parece
ser a única coisa feita por nós dois. De toda forma, não posso me queixar
disso, afinal, toda dor precisa ser sentida, não há outra maneira de colocar um
fim. Por isso, apenas fecho os olhos, atormentada por não conseguir
compreender Felipe da maneira como eu gostaria.
O tempo caminha sem pressa dentro deste quarto. Perco a noção e
fisgo os lábios, melancólica. Ontem mesmo estávamos fazendo amor no
elevador. Céus, essa oscilação de melhora e recaída é um veneno para as
nossas almas.
Sua voz quebra o silêncio desconcertante num rompante,
sobressaltando-me por um momento.
— Estive anestesiado todos esses anos... tanto para os sentimentos
bons quanto para os ruins — fala entre arfadas e o sopro de suas palavras
vem de encontro a barriga, causando calafrios. — Você apareceu e mudou
tudo, minha menina.
Estremeço ao ouvi-lo me chamar assim. Existe algo de protetor
implícito nestas ingênuas palavras, responsável por me deixar alucinada. Por
Deus, sou a menina dele. Algo mais importa?
— Você está trazendo vida onde só existia devastação... mas o preço é
muito caro.
— Mas, Fê, ele só é pago uma vez! Você precisa encarar essas feridas
se quiser curá-las! Do contrário, ficarão aí pra sempre. Não entende isso?
— É mais fácil na teoria, Madu!
— E qual a outra escolha? — pergunto, frustrada. — Desistir? É isso?
Ele se inclina, de modo a encontrar o meu olhar com suas íris
impetuosas. Arqueio as sobrancelhas, desafiando-o. Num leve balançar de
cabeça, ele me mostra a fúria voltando a dominá-lo. Nossos rostos estão tão
próximos que as pontas nos narizes se tocam suavemente.
— Não faça isso...
— O quê?
— Não me provoque — ele sussurra, com a voz rouca. — Não quero
perder o controle com você.
“Pois eu quero que perca”, penso, sem quebrar nosso contato visual.
Passar tantos anos anestesiado, como ele falou, não me parece realmente uma
maneira boa de se viver. Se o que torna a existência especial são os
sentimentos efervescendo dentro de cada pessoa, então por que evitá-los?
— A única coisa que você pode fazer para me machucar é continuar
se afundando por conta própria — falo. — e isso você já está fazendo.
Minhas palavras servem de estopim. Felipe torna a avançar sobre
mim, cobrindo meus lábios com os seus. Antes que perceba, estou novamente
com as mãos para cima do corpo, sendo proibida, mesmo de maneira
implícita, de tocar sua pele morna, de acariciá-lo como estou tentada a fazer.
Ele está pegando fogo e cada gesto é o suficiente para me deixar
ardendo. Sua mão livre percorre o meu corpo de maneira violenta, apertando-
me com avidez, transparecendo a fúria em sua alma revolta. Felipe, o homem
contido e fechado, cada vez se abre mais para mim, e são esses momentos os
responsáveis por me enfeitiçarem ainda mais. A alma selvagem, a maneira
insana de amar, de se entregar, de romper com o passado sombrio... é como
fazer um mergulho sem volta nas ferozes ondas do seu coração.
Seus lábios descem pelo meu colo, causando uma corrente elétrica
onde tocam. Meu corpo corresponde ao menor dos gestos, arrepiando-se
inteiro e estremecendo ao desesperado contato dominante. Felipe abaixa com
dificuldade a própria calça, usando apenas uma mão, a outra permanece me
imobilizando. Eu sei, essa é a sua forma de me mostrar a própria insanidade,
mas o fato é que estou inflamada de tesão. Molhada de desejo e suando frio
com a ânsia pelo corpo dele.
Seus olhos intensos me perfuram, emoldurados pelas sobrancelhas
unidas. O rosto tão rígido quanto concreto alastra todo o paradoxo carregado
dentro de si — controle e renúncia; raiva e paixão.
Com o joelho, Felipe abre as minhas pernas, sua respiração
entrecortada é o único som dentro deste closet. Jogando o peso do corpo
sobre o meu, ele se apoia no cotovelo livre e então afasta a calcinha para o
lado antes de me preencher.
Um gemido baixo escapa de seus lábios ligeiramente separados e me
deixa com as pernas fracas. Seus olhos obscurecem, sem nunca desviarem
dos meus, porém. A linha do nosso contato visual é quase palpável e isso é
novidade para mim. Ele se movimenta para dentro e para fora do meu corpo
com a mesma ferocidade com a qual me beijara há poucos minutos. Meus
grunhidos em resposta ao prazer invadem o ambiente a medida que ele me
possuí, com apetência.
Então, ele apruma o tronco de supetão, encarando-me de cima com a
mesma expressão lasciva. Meu coração batuca, meus músculos se contraem e
as palmas das mãos suam frio. Tudo formiga, tudo queima, tudo é uma
deleitosa explosão de sensações.
— Ah, Madu... — grasna, resignado. — Minha menina...
Felipe agarra um dos meus joelhos, dobrando-o contra minha barriga
e me deixando mais exposta. Arrisco fechar os olhos, mas a intensidade em
suas íris me impede de ir adiante. “Pai amado, esse homem é um furacão”.
Sem me controlar, meus gemidos se tornam cada vez mais altos.
Sinto-me como se fosse uma panela de pressão sem uma válvula de escape,
podendo explodir a qualquer segundo. No entanto, sempre quando está perto
de acontecer, Felipe diminui a cadência das investidas consideravelmente,
deixando-me cega de excitação.
— Você acaba comigo... — a voz rouca de tesão penetra os meus
tímpanos.
— E você comigo.
Ele umedece os lábios e sinto uma vontade louca de tê-los aos meus,
para beijar, morder, sugar... Tento inclinar o tronco para cima, mas o fato de
ter as minhas mãos presas me impede. Percebendo o meu anseio, um
sorrisinho torto rasga seu rosto, os olhos ganhando uma nova chama.
— Fê... — chamo-o em um suspiro. — Por favor...
— Por favor? — ele provoca. — Por favor o quê?
— Não aguento mais... — tremo inteira, um calafrio percorrendo o
corpo.
— Sinto muito... — diz com malícia. — Essa noite eu vou te
enlouquecer também.
E, tão logo suas palavras pairam pelo ar, ele volta a se inclinar sobre
mim, diminuindo o ritmo das investidas de uma forma que me alucina.
Raspando os lábios nos meus impiedosamente, a respiração ruidosa vem
contra o meu rosto. A força segurando meus pulsos um no outro aumenta,
numa silenciosa demonstração de quem manda nas coisas hoje.
A minha garganta arranha e, num ímpeto de determinação, inclino-me
na medida do possível, mordendo sua boca com desejo. Ele geme, finalmente
fechando os olhos e dando a batalha por perdida. O descontrole o tomou,
assim como a mim.
Beijando-me alucinadamente, Felipe retoma os movimentos
voluptuosos e então, de uma só vez, a vista fica turva e todo o corpo vibra em
espasmos. Vou ao delírio, girando os olhos nas órbitas e lutando para
recuperar o fôlego dos pulmões. Sinto-o pulsar dentro de mim e seus dedos
afrouxam, liberando as minhas mãos.
Levo-as direto ao seu rosto, segurando-o com ternura enquanto nos
entregamos a um beijo sereno e, ironicamente, tranquilo. Com isso, percebo
ter se dissipado toda a fúria aprisionada em seu corpo. Aquele homem prestes
a entrar em colapso não está mais aqui, mas sim o Felipe que conheço e amo.
Ele encosta a testa suada na minha.
— Nunca mais faça isso!
— O qu... — começo, mas sou interrompida por seu indicador sobre
meus lábios. Ele o mantém por uma fração de segundo e depois direciona a
mão para uma mecha do meu cabelo, colocando-a atrás da orelha.
— Não brinque com fogo, Madu. Nem sempre dá pra sair ileso.
MADU —
UMA LIGAÇÃO
O ônibus sacoleja, despertando-me do transe momentâneo. Desde
quando li a carta de Bia para Felipe, não consigo tirá-la da cabeça. Meus
pensamentos vagueiam para a tristeza contida em suas palavras e me
pergunto o que de fato aconteceu com aquela linda mulher. Quero dizer,
apesar de já ter unido os pontos e possuir uma vaga ideia do ocorrido, seria
ótimo entender, de uma vez por todas, o passado conturbado de Felipe.
Ajeito a mochila de couro no colo, espiando o caminho passar janela
afora. É estranho estar aqui, retomando a rotina repetida ao longo dos últimos
três anos, depois de todos estes meses longe da faculdade. Sinto um
inexplicável frio na barriga causado pela expectativa de voltar. Observo o
campus onde o Setor de Ciências Biológicas da UFPR está localizado se
aproximar cada vez mais, até o veículo finalmente parar com uma sucessão
de pequenos solavancos.
Com o estômago revirando, praguejo o motorista em pensamentos
enquanto pulo para fora. Lembrei o motivo para odiar tanto vir de ônibus... eu
sempre passo mal! Respiro fundo, caminhando em direção ao prédio com as
pernas trêmulas. Atravesso o amplo jardim verdejante do campus,
permitindo-me admirar as flores multicoloridas espalhadas pelo caminho.
Uma brisa gélida vem de encontro a mim, fazendo a pele do rosto
arder. Soco as mãos nos bolsos da jaqueta de couro, apertando o passo para
chegar logo na área coberta. “Não vejo a hora deste inverno repugnante
acabar”, penso irritada, ao me lembrar da minha quantidade enorme de
vestidos no guarda-roupa esperando ansiosamente para serem usados.
Meus olhos percorrem a bonita fachada feita em panos de vidro, por
onde é possível observar a movimentação de alunos indo e vindo do lado de
dentro, concedendo vida ao prédio. Estar aqui é reconfortante, no fim das
contas. Não só por ser o curso que tanto amo, mas por poder refrescar os
pensamentos e tirá-los da cúpula de amargura a qual se tornou a minha rotina.
Encolho-me quando, mais uma vez, sou atingida por uma nova
corrente de ar frio e, no momento em que estou para atravessar a entrada,
ouço uma conhecida voz estridente se sobressair aos demais sons.
— Madu! Me espera! — Giro nos calcanhares, tão logo as palavras
penetram os meus tímpanos. Vanessa vem ao meu encontro saltitando, com
um enorme sorriso.
Sem nos importarmos com as pessoas ao redor, abraçamo-nos como
se não nos víssemos há anos, rindo como bobas. Minha amiga está com o
cabelo solto, caindo em camadas sedosas e negras até o meio da cintura. Os
olhos castanhos se encontram destacados com algumas camadas de rímel e,
nos lábios, um batom fúcsia confere alguma cor ao rosto. “Céus, é tão linda
que dá raiva”, mentalizo, retomando os passos e sendo acompanhada por ela.
— Tá gata, hein... — Vanessa comenta, estudando-me com os olhos
curiosos. — Seu brilho está ofuscando todo mundo, amiga. A viagem te fez
muito bem. Ou isso, ou... — Ela para de rompante, encarando-me com uma
nesga de acusação nas íris escuras. — Madu! Você voltou com o advogato?
Fisgo os lábios, sentindo as bochechas queimarem. As palavras
somem da boca e, por isso, apenas continuo caminhando. O silêncio é tomado
como uma resposta e o riso de Vanessa é histérico.
— Caramba, você não perde tempo!
— Cala a boca, sua tonta. — Empurro-a levemente com o ombro, ao
adentrarmos a nossa sala de aula.
Aceno com a cabeça para os rostos conhecidos, dirigindo-me em
passos lentos ao meu habitual lugar — a primeira carteira na fileira ladeando
as amplas janelas. Como de costume, Vanessa se senta ao lado, torcendo o
cabelo em um coque no alto da cabeça.
— Você vai me contar tudo! Ah, se vai! — ameaça ela, mas, neste
momento, meus olhos estão fixos em um rapaz a duas fileiras de distância.
Na verdade, mais especificamente para coxinha em suas mãos.
Vanessa acompanha o meu olhar, arqueando as sobrancelhas em
seguida.
— Não jantou?
— Jantei! — Dou de ombros, procurando a carteira dentro da
mochila. — Mas deu vontade... Até parece que não me conhece!
A risada dela vem ao meu encontro, contagiando-me.
— Você não muda, né?
— Acredite, você não é a única a me falar isso! — pisco um olho,
sentindo uma onda de calor percorrer o corpo ao me lembrar de Felipe. “O
que ele está fazendo a uma hora dessas?”, meu subconsciente pergunta,
enquanto fico em pé com um pouco de pressa. — Vamos lá? Se a gente der
uma corridinha, conseguimos voltar antes do professor chegar!
— Ai, Madu... — ela revira os olhos, levantando-se em seguida. —
Você só me dá trabalho, amiga!
— Sei... Você está é morrendo de saudades!
Nossas risadas chamam a atenção de todos com os quais cruzamos no
corredor. De fato, o que eu mais precisava agora era distrair a cabeça.

A aula de Fisiologia Vegetal I está enfadonha a ponto de causar


sonolência. O professor Thiago, um atarracado homem na casa dos quarenta,
fala com a voz de garça sem nem ao menos parar para respirar. Tento me
concentrar em suas palavras arrastadas sobre a estrutura e função das células,
porém dou-me por vencida ao perceber estar pestanejando além do normal.
Olho ao redor e flagro um punhado de inconfundíveis rostos
entediados, com olhares vazios e vincos na testa. “Parece que não sou a
única”, penso, pulando ao sentir o celular vibrar dentro do bolso. Enrijeço-
me, ponderando se saio da sala ou não para atendê-lo. Pesco-o com a ponta
dos dedos e, ao reconhecer o código da ligação piscando no visor, engulo em
seco. É de São Paulo! E só conheço uma pessoa de lá.
Crispando os lábios, faço um sinal com a mão para o professor no
momento em que ele mira os olhos caídos em minha direção, pedindo
silenciosamente para sair da sala. Ele concorda com a cabeça, sem
interromper a interminável sabatina, porém.
Vanessa me lança um olhar curioso, mas nem ao menos esboço uma
reação, tamanho é o meu atordoamento. Corro para fora, atendendo a
chamada tão logo passo pela porta.
— Boa noite — A conhecida voz de Renato me deixa de boca seca. É
grossa e tem suavidade. Estremeço.
— O que você quer, Renato? — atiro, sem me importar com a
agressividade contida nas palavras.
— Sempre espirituosa, não? — seu tom tem um quê de cinismo. Não
gosto.
— Um bom jeito de se esquivar da pergunta...
— Achei que fosse bem óbvio o que quero, Madu. Você, é claro!
Pigarreio, desconcertada. Paro ao lado do bebedor de água, grata pelo
fato de o corredor se encontrar vazio. Recosto-me na parede, fechando os
olhos em sinal do cansaço pesando em meus músculos.
— Eu já disse, não estou interessada!
“Santo Deus, qual o problema deste homem?”.
— E eu já disse que não desisto fácil! — uma risadinha mordaz vem
do outro lado da linha, arrepiando-me inteira.
Esfrego as têmporas com a mão livre, sem saber a melhor maneira de
lidar com a situação. Ignorando o meu aparente estarrecimento, ele assume
um tom despreocupado ao fazer o próximo comentário.
— Seus olhos verdes não saem da minha cabeça, Madu... Suas pernas
torneadas... Cristo, você é irresistível!
— Renato, eu...
— Gostou do último presente? — ele me interrompe.
Fisgo o lábio inferior, recordando-me das palavras que ficaram
martelando no cérebro mesmo depois de horas: “Estou ansioso para vê-la
neste vestido e mais ainda para vê-la sem”.
Eu nem ao menos cheguei a conferir o “presente”. Para mim, errar
uma vez foi o bastante para aprender a lição. De Renato eu apenas desejo
distância — a maior possível.
Com o coração batucando descompassadamente, faço a pergunta
entalada há muito tempo na garganta.
— Por que, Renato? — balbucio. — Por que está fazendo isso
comigo?
— Fazendo o que, docinho?
— Me encurralando, persistindo... ignorando o que eu te falo.
— Ora, Madu, você já deveria saber... a dificuldade torna qualquer
situação mais interessante.
— Isso não é um jogo! — bufo, incrédula.
— Se você está dizendo... — ele faz pouco caso e seu tom de voz
sugere estar sorrindo do outro lado da linha. — Mas, da minha parte, não
somente é um jogo, como está apenas começando.
— O qu... — minha voz morre no ar.
— Bem, preciso desligar. Prometo não tirá-la dos pensamentos,
Madu. Espero não sair dos seus também... — Solta uma risadinha maliciosa.
— Até breve.
E então desliga, deixando-me com suas palavras ecoando em meus
tímpanos. “Até breve, até breve, até breve...”. Ele tinha razão, no fim das
contas: será impossível afastá-lo da cabeça depois disso.
MADU —
PENNE AO PESTO
Quando o ônibus para em frente ao ponto, a Mercedes branca de
Felipe já está estacionada na esquina, como havíamos combinado. Temi que
ele acabasse esquecendo, mas, como sempre, sua pontualidade é
inquestionável.
Aperto o passo, tentando me esquivar do frio. O silêncio cortante da
rua confere uma atmosfera sombria, a qual é intensificada pelo fato de não
existir uma única alma viva por aqui — também pudera, já passa da meia-
noite. O céu de veludo não tem uma única estrela quebrando todo o negrume
e, mesmo com a fraca luz emanando dos postes na rua, a escuridão parece
predominar.
Dou três batidinhas com os nós do dedo no vidro do lado do
passageiro ao notar o fato de as portas se encontram trancadas. Felipe está
recostado no banco com os braços cruzados sobre o peito e os olhos
fechados, quase como se estivesse em um sono calmo e profundo. Ao me
ouvir, porém, empertiga-se de supetão, destravando o carro no segundo
seguinte.
Tão logo entro, sendo acolhida pelo calor reconfortante, a certeza do
péssimo estado de espírito dele vem de encontro a mim como um bloco de
concreto, deixando-me desnorteada. Sei disso pela maneira como suas íris de
safira estão obscurecidas, a força com a qual trava o maxilar e também pelo
cenho franzido.
Inclino o corpo para frente, deixando um beijinho em seus lábios
mornos, mas Felipe mal parece perceber. Sua mente está muito longe daqui.
Ele dá partida e, somente alguns quarteirões depois, já em frente à sua
mansão, realmente nota a minha presença. Lançando-me um meio sorriso,
repousa a pesada mão na minha coxa carinhosamente antes de me prestigiar
com a voz grossa:
— Como foi sua aula?
O coração dá uma guinada no peito. Eu mal me lembro dela, afinal, o
único som ricocheteando nas paredes do crânio são as palavras incisivas e
desprovidas de bom-senso de Renato. Engulo em seco, ponderando se agora é
a melhor hora de tocar no assunto. Sua expressão é de poucos amigos, não
quero piorar. Felipe me conhece mais do que eu imagino, no entanto, pois me
encara com atenção logo depois de estacionar o carro suavemente.
— Ele voltou a te incomodar? — pergunta com uma expressão
irreconhecível tomando os traços perfeitos. Distraio-me o admirando e, por
isso, levo tempo além do necessário para responder.
— Sim — falo simplesmente, mas não é o suficiente para ele, pois
continua me estudando com os olhos intensos. Esparramo-me no banco,
desviando o rosto para a janela. — Me ligou no meio da aula, falou um monte
de porcaria e... — Suspiro profundamente. — Deixa pra lá. Não quero falar
sobre ele, não aguento mais o Renato na minha vida. E, fora isso, estou
exausta. Desacostumei com o ritmo de trabalhar e estudar.
Felipe assente com a cabeça, respeitando a minha vontade, porém sem
falar mais palavra alguma. Descemos do carro e só então percebo o quanto
está suado, apesar do frio cortante. Sigo seus passos determinados, entrando
no casarão logo depois dele.
— Estava malhando? — indago, querendo puxar assunto.
Felipe dá de ombros, concordando com a cabeça. Tranco a porta atrás
de mim e, ao girar os calcanhares na direção em que ele estava há poucos
segundos, encontro o vazio. “Ótimo, está se afastando mais uma vez”, penso,
seguindo para a cozinha, onde uma luz acaba de ser acesa.
Encontro-o com uma garrafa de Whisky na mão, servindo-se de uma
quantidade generosa da bebida. Sem pensar duas vezes, leva o copo aos
lábios, esvaziando o conteúdo em poucos goles. Tiro a mochila dos ombros,
colocando-a sobre a bancada enquanto percorro a distância até ele, tomando o
copo de sua mão tão logo se serve pela segunda vez.
Felipe estreita os olhos, parecendo um pouco contrariado. Apesar de
ter odiado o sabor do Whisky na única vez em que o tomei na vida, prendo a
respiração e o deixo deslizar garganta adentro.
— Você não bebia tanto quando te conheci — atiro, com o rosto
escondido atrás do copo. O forte gosto de madeira é puro fel e preciso resistir
ao desejo de cuspi-lo fora.
— De fato... — murmura, perfurando-me com os olhos injetados. —
Não era preciso.
— E agora é?
— Sim.
Ele não quer conversar, isso é nítido. Porém nós dois sabemos o
quanto posso ser obstinada quando quero.
— Por quê? — insisto, notando a impaciência estampada em seus
traços perfeitos. Felipe alcança o copo novamente, despejando um pouco
mais da bebida castanha dentro dele.
— As lembranças... elas voltaram com tudo. A cada segundo do dia,
ininterruptamente. O rosto delas está em toda parte... — beberica o Whisky,
crispando os lábios em seguida. — Eu só quero que sumam. Não é pedir
demais.
Emudecida, sustento o olhar e percebo toda sua angustia. Meu único
desejo é poder confortá-lo e dar um fim ao sofrimento o acompanhando há
tantos anos.
Um sonoro ronco de fome vem da minha barriga, quebrando o clima
pesado, ao menos por segundos. Felipe suaviza a expressão, abandonando o
copo sobre a bancada de mármore e segurando o meu rosto com as duas
mãos. Instantaneamente minhas pernas amolecem e me sinto uma boba. O
menor dos gestos vindos dele são o suficiente para as minhas mãos soarem
frio, o coração acelerar e o ar sumir dos pulmões. Céus, esse homem ainda
acabará me matando, estou certa disso!
— Você não comeu nada na faculdade? — a preocupação implícita
em suas palavras me arranca um sorriso. Ele pode ser extraordinariamente
complicado e estar muito instável sem os remédios, mas nunca deixará de ter
essa essência protetora que tanto amo.
— Uma coxinha de frango no começo da aula, um salgado de
presunto e queijo no intervalo e, enquanto estava no ônibus, um pacote de
bolacha que levei na mochila.
— Meu Deus! — Felipe arqueia as sobrancelhas surpreso, antes de
uma risada baixa escapar. — O que faço com você, hein?
— No momento, apenas me alimente! — pisco um olho de maneira
sugestiva, arrancando outra risada dele.
Ele me segura pela cintura e, com os braços fortes, facilmente eleva o
meu corpo, colocando-me como uma boneca sobre a ilha central da cozinha.
Enlaço seu pescoço com os braços, aprisionando-o para mim. Ele roça a
ponta do nariz no meu, fechando as pálpebras e deixando os cílios dourados
em evidência. Caramba, eu poderia passar horas engolindo-o com os olhos e
jamais enjoaria, é um deus grego.
— Machuca te ver assim — suspiro, por fim. — Quero meu Felipe de
novo.
— Ele voltará. É só uma maré ruim...
Sua respiração tenra me embala e o tempo me escapa pelos dedos,
como areia fina. Sentindo o coração transbordar, apenas aproveito a ruptura
da sua grossa camada de proteção, sem saber até quando ela durará.
Depois do que parece uma eternidade, Felipe se desvencilha de mim,
beijando o topo da minha cabeça. Tento protestar, porém a sombra de um
sorriso torto rasgando seus lábios me refreia. Amo essa expressão, amo a
forma como ele consegue ser tão sedutor de maneira despretensiosa.
— O que acha de um Penne ao Pesto?
Arqueio as sobrancelhas, incrédula com as palavras que acabei de
ouvir. Embora tenham sido jogadas ao ar de maneira inocente, deixam-me
com o queixo caído.
— Ahn?
— Não está com fome? — Ele inclina a cabeça ligeiramente para o
lado, sem entender o meu atordoamento.
— Você vai cozinhar?
Felipe sorri genuinamente, mas os olhos não acompanham.
Permanecem obscurecidos e, eu sei, apesar de estar se esforçando para
aparentar o contrário, por dentro continua péssimo.
— Ah, é esse o problema? — pergunta, inclinando-se para pegar uma
panela no armário sob a pia. — Está com medo de morrer envenenada ou
passar mal, não?
Gargalho, fisgando os lábios.
— Talvez...
— Bem, não vou negar que você corre esse risco... — ele encolhe os
ombros, erguendo as duas mãos em sinal de rendição. Rimos feito duas
crianças enquanto o observo alcançar os ingredientes necessários.
Felipe é uma caixinha de surpresas, no fim das contas, e não me canso
de descobrir suas facetas ocultas — mesmo as obscuras — afinal, a cada dia
o conheço um pouco mais. Ele é simplesmente irresistível.
Aproveitando o clima restaurado entre nós, faço o que sei fazer de
melhor — falo demais e sem pensar na melhor maneira para isso.
— Ainda está sem os seus remédios? — indago, balançando as pernas
no ar.
Ele se apruma, de costas para mim. O movimento é tão sutil que eu
mal teria percebido caso não o estivesse secando descaradamente.
— Sim.
— Fê... — chamo-o e, no mesmo instante, ele gira o corpo ficando de
frente para mim. Eu mexo com ele chamando-o desta maneira, sei disso pela
energia emanando de suas íris cristalinas. — Fê, eu... — titubeio. — Você
não acha... não acha que as coisas estariam mais fáceis com eles?
Ele passa as mãos nos cabelos com uma expressão indecifrável.
Parece ser alguns anos mais velho. Mordisco o lado de dentro da bochecha
nervosamente, temendo despertar o vulcão dentro de Felipe.
— Antes você não sofria tanto e... — as palavras jorram da boca.
“Droga, Madu, fique quieta antes que esse homem enlouqueça”, meu
subconsciente ordena, temeroso.
— É só uma fase difícil, meu amor. Eu já disse, vai ficar tudo bem.
Apenas confie em mim — diz e me dá as costas novamente, concentrado em
lavar as folhas de manjericão.
— Você me pediu isso quando resolveu abandonar o tratamento, mas
olha só no que deu. — Deixo escapar e fico mortificada, esperando um
terremoto dentro da cozinha.
Estremeço ao vê-lo se inclinar para frente, com as mãos espalmadas
sobre o mármore com o qual a pia é feita. Sua cabeça cai para frente, Felipe
aparenta usar todas as suas forças para não estourar.
— Madu... — ele geme, ainda sem olhar para mim. — Não quer
tomar um banho enquanto preparo o macarrão? Pode ser que demore um
pouco aqui.
Assinto com a cabeça, fisgando o lábio inferior. Convenço-me de já
ter abusado da sorte e, por isso, apenas pulo para o chão e caminho até
Felipe, deixando um beijo no seu pescoço.
— Tudo bem, eu já volto — digo em um sussurro.
Então abandono a cozinha, perguntando-me quando poderemos
conversar abertamente sobre isso e quando ele perceberá que seus
pensamentos estão nublados pela doença.
MADU —
MENSAGEM
Reviro-me na cama pela décima vez só na última hora, com os
pensamentos a mil. Apesar do cansaço tomando cada centímetro do corpo,
estou acesa como um farol, para o meu desgosto. Alcanço o celular no
criado-mudo, conferindo as horas e descobrindo passar das três da manhã.
Ainda não consegui pregar os olhos, pelo contrário, a ansiedade aumenta a
cada nova batida do relógio.
Respiro fundo, dando-me por vencida. Estendo o braço, alcançando o
interruptor acima da cabeceira da cama e apertando o botão para ligar apenas
a suave iluminação de led embutida ao gesso. Esfrego o rosto, completamente
desanimada com a perspectiva de, em poucas horas, precisar acordar para
trabalhar.
Felipe dorme tranquilamente, sua respiração suave faz o peito subir e
descer em uma cadência moderada. Meus olhos percorrem seus traços
perfeitos e preciso me segurar para não tocá-lo, o que é realmente difícil, pois
seus lábios são convidativos ao extremo... Santo Deus, ele me atrai como um
ímã! Encará-lo sem poder fazer nada é quase como espiar o paraíso pela
fechadura — provocativo de uma maneira torturante. Acabarei
enlouquecendo se ficar aqui por mais tempo!
Giro o corpo para fora da cama e, ao tirar as camadas de cobertores de
cima de mim, sou recebida impiedosamente pelo frio. Encolho-me inteira,
mas, tão logo a ideia de vaguear pelos corredores sombrios desta mansão até
o closet invade a minha cabeça, descarto-a sem hesitar. Uma blusa não vale o
sacrifício. A verdade é que quanto mais os dias passam, menos eu gosto
daqui. Esta casa pode ser luxuosa e imponente a ponto de tirar o fôlego,
porém, para mim, causa apenas arrepios. É como se anos de sofrimento
estivessem aprisionados aqui, afinal, foi onde Felipe se escondeu por tanto
tempo, rumando sem uma direção.
Caminho até o segundo ambiente do quarto, onde uma chaise off-
white de pernas palito está posicionada na diagonal, conferindo um charme
extra ao espaço. Meu notebook jaz esquecido sobre ela e decido ser uma boa
ideia para passar o tempo, até eventualmente encontrar o sono.
Coloco-o sobre o colo e me acomodo da melhor maneira possível,
tentando ignorar os pelos do corpo eriçando de frio. Enquanto aguardo o
computador ligar, minha mente vagueia para horas atrás. O Penne ao Pesto
preparado por Felipe estava surpreendentemente delicioso. Quem poderia
imaginar que, dentre todas as qualidades excepcionais dele, a culinária era
uma delas?
No entanto, embora eu tenha apreciado tanto a comida quanto o fato
de ele ter tido um gesto cuidadoso e preocupado, o sentimento bom é
ofuscado pelo gosto amargo ao me lembrar da sua recusa insistente em
admitir estar doente. Crescendo como um câncer dentro de mim, tudo o que
consigo sentir é amargura por me encontrar com as mãos atadas nesta
situação desgastante.
É por isso que, ao repousar os olhos na tela do notebook, meus dedos
digitam no modo automático na busca do navegador “transtorno bipolar de
personalidade”. Apesar de eu já entender um bocado, se comparando ao que
eu sabia antes de conhecer Felipe, ainda é muito pouco. Preciso de mais. Do
contrário, jamais poderei ajudá-lo a sair desse buraco.
Perco a noção do tempo vagueando de um site para o outro, em busca
de respostas. Abro fóruns, sites especializados, leio depoimentos de
portadores da doença, assim como de pessoas próximas aos bipolares e, aos
poucos, consigo clarear ainda mais os pensamentos.
Em meio a infindável pesquisa, encontro dois artigos que acalmam os
meus nervos neste momento delicado da minha vida. O primeiro vem de um
discreto site sobre doenças psicológicas, cujas letras minúsculas complicam a
tarefa de ler para o meu cérebro cansado.

A gangorra de sentimentos

Caracterizado por variações bruscas de humor, o Transtorno Bipolar


faz com que o portador se sinta como se estivesse em uma gangorra,
oscilando entre a ansiedade e a falta de interesse, a alegria e a tristeza, a
hiperatividade e o desdém.
Apesar de todas as pessoas terem, ocasionalmente, variações de
humor acarretadas por situações do cotidiano, a pessoa bipolar apresenta
mudanças de humor sem um motivo aparente e de maneira demasiadamente
intensa e repentina.
Além do mais, as pessoas com transtorno bipolar são, por vezes,
incapazes de compreender o próprio estado e, por isso, recusam o
tratamento, acreditando estarem perfeitamente saudáveis.

Engulo em seco, vendo um pouquinho de Felipe em cada linha. Como


na forma como ele afirma com veemência ter tudo sob controle e também o
fato de acreditar cegamente que, em algum momento de um futuro próximo,
ficará tudo bem.

Como lidar com uma pessoa bipolar

Os sintomas do Transtorno Bipolar de Personalidade não afetam


somente o portador, como também as pessoas de sua convivência. Saber
como lidar com um bipolar é importante para que as relações interpessoais
não se desgastem, mantendo assim, o alicerce necessário para a sua
recuperação.
Antes de mais nada, é essencial lembrar que cada caso é único e nem
todos os conselhos valem para todos.
Procure por especialistas: Não existe cura para o TBT, no entanto
ele pode ser controlado e o portador levar uma vida normal. Por isso, é de
suma importância procurar tratamento, caso contrário é impossível dominar
as crises. Mas não o obrigue. A melhor maneira de lidar com a situação é
conversando e aconselhando.
Pesquise: Ter conhecimento sobre a doença e os possíveis surtos te
deixa preparado. Além disso, procurar um especialista é aconselhável para
saber a melhor maneira de agir e as decisões a serem tomadas até o
portador da doença aceitar o tratamento.
Tire um tempo para si: Leve em conta as suas próprias necessidades,
tendo em mente o fato de ser impossível ajudar outrem quando nós mesmos
nos encontramos abalados.
Tenha paciência: Evite as discussões, tente relevar coisas
insignificantes. Saiba se controlar, pois o bipolar não sabe.
Seja amoroso: Para um bipolar, todos estão contra ele. Por isso, é
imprescindível demonstrar carinho e mostrar o quanto se importa. Tente ser
sempre positivo, mesmo que a pessoa com TBT esteva depressiva, e não a
culpabilize de maneira alguma. Lembre-se: ela é quem mais sofre.
Mantenha o diálogo: Uma boa comunicação é necessária em
qualquer relacionamento. Fale com calma e pergunte o que ela precisa.
Seja firme: Ela precisará disso. Tanto nos períodos de depressão
quanto nos de euforia, não a ajude a ser uma vítima e nem facilite tudo.
Acompanhe-a, ampare-a, mas não se esqueça: é ela quem precisa agir.
Saia da rotina: Ao menos nos fins de semana, tente quebrar o ciclo,
marcando programas diferentes.
Por fim, aceite o transtorno e desfrute dos bons momentos com o
portador de TBT, afinal, nem tudo precisa ser mau.

Termino de ler com os olhos marejados. Santo Deus, Felipe precisa se


medicar! É a única maneira de realmente se libertar de toda a tormenta.
Eu quis me convencer de que somente a força do nosso amor bastaria
para a sua recuperação, no entanto agora vejo o quanto fui ingênua e infantil.
Não é disso que ele precisa — não só disso. É certo que o amor é importante,
mas não para curá-lo, e sim para iluminar o caminho obscurecido por sua
cabeça atormentada.
Escondo o rosto nas mãos, com o coração do tamanho de uma ervilha.
Já são quase cinco da manhã e eu precisarei acordar dentro de duas horas,
porém como dormir com essa profusão de sensações turbulentas dentro de
mim?
Meus olhos vão até Felipe e, num ímpeto de coragem, fecho o
notebook, caminhando até o criado-mudo e agarrando o celular com
determinação. Sem pensar realmente nos meus atos — mas certa de ser uma
ideia sensata — deixo os dedos digitarem furiosamente a mensagem, a qual
envio antes que mude de ideia: “Vitória, podemos nos encontrar amanhã
para conversar? Espero que sim. Preciso entender o que está acontecendo.
Beijos, Madu”.
MADU —
JARDIM BOTÂNICO
Desperto com o peso do braço de Felipe sobre a minha cintura e
não levo mais que segundos para me situar. Ronrono com o aperto do seu
abraço e o ouço suspirar contra a minha nuca, arrepiando-me inteira.
— Bom dia! — sussurra com a voz ainda rouca de sono.
— Ótimo dia!
Felipe deixa um beijo demorado na curva do meu pescoço antes de se
levantar para o banho matinal. Espreguiço-me sem pressa, esfregando os
olhos na tentativa de varrer a sonolência para longe. Estou quebrada... a
sensação é a mesma de ter sido atropelada por um trator na noite passada, no
mínimo umas quatro vezes. Não quero nem ver as minhas olheiras...
Em um movimento involuntário, tateio o criado-mudo, alcançando o
celular. Ao ver a notificação de Vitória, sinto o sangue gelar. Céus, eu
mandei uma mensagem para ela!
“Bom dia, querida! Apenas me diga o horário e o local onde devo te
encontrar, será um prazer”.
Sou tomada por uma onda de adrenalina e não posso conter a vontade
de sorrir. Ai, meu Deus! Ela aceitou! Isso é ótimo! Depois de dias de
tempestade, finalmente vejo um raio de esperança atravessar as nuvens
corpulentas pairando sobre a minha vida.
Com os dedos trêmulos, digito a resposta e envio logo em seguida:
“Faz três anos que moro aqui e ainda não conheço o Jardim Botânico... que
tal por volta das duas e meia?”. Quase como se estivesse com o celular na
mão, a mensagem dela chega: “Nos vemos lá”.
A perspectiva de ter tomado uma atitude — ainda que mínima —
funciona como uma injeção de ânimos e, com isso, quase não posso me
lembrar de ter dormido pouco mais de duas horas esta noite. Nada pode
abalar o meu bom humor hoje.
Saltitante, vou até o closet onde deixei as minhas coisas em um
pequeno espaço cedido por Felipe. Gostaria de ter o bom-senso de me sentir
uma intrusa em sua vida, mas é muito pelo contrário. Ver pequenas partes de
mim em meio a uma vastidão de coisas dele me faz pensar como se, aos
poucos, estivéssemos nos unindo de maneira permanente. “Senhor, estou
mesmo otimista hoje!”, penso, rindo sozinha.
Depois de escolher um vestido cinza de tweed e um casaco com
estampa Pied Poule, dirijo-me ao quarto dele novamente. Não é como se não
existissem outros banheiros nesta casa enorme — porque de fato existem
muitos — no entanto, qual seria a vantagem em morar junto com Felipe se
não for para ter a presença dele em cada parte do dia?
Entro no banheiro sem bater na porta e o encontro já com uma toalha
enrolada na cintura enquanto faz a barba concentrado. Ela está baixa o
suficiente para se tornar um pecado não secar suas entradas. Além disso,
gotículas de água percorrem seu abdômen, traçando o caminho o qual eu
gostaria de fazer com a minha língua neste exato momento.
— Droga, demorei demais!! — lamento, soltando um suspiro.
Felipe ri gostosamente, espalhando gel pós-barba em suas mãos
grandes para depois aplicar no rosto.
— Vejo que alguém acordou animada. — Sorri, piscando um dos
olhos com o maldito sorriso safado nos lábios.
Demoro-me alguns segundos o observando. Não me lembro de já tê-
lo visto completamente sem barba. Fica igualmente bonito, embora eu prefira
com ela. No modo automático, seus dedos percorrem os cabelos dourados,
arrumando-os no habitual estilo despojado.
— É o seu efeito em mim!
Tão logo ouve as minhas palavras, Felipe para o que está fazendo,
encarando-me através do espelho. Minhas pernas perdem a força e eu engulo
em seco. Caramba, como ele consegue me deixar com calor em pleno
inverno?
Confiro brevemente as horas no celular para descartar, logo sem
seguida, a ideia de puxar a toalha dele para fora do corpo, pois infelizmente
não temos tempo o suficiente. Ainda com o celular preso aos dedos, recordo-
me do encontro com Vitória e hesito alguns segundos, tentando decidir se
devo ou não contar. Fisgo o lábio, com um frio na barriga enorme ao decidir,
por enquanto, não contar. Bem, não completamente. Estou fazendo isso pelo
bem dele e, de toda forma, tenho esse direito.
— Fê... — chamo e sinto um calor gostoso quando ele se vira no
mesmo instante, encarando-me com os olhos elétricos. — Tudo bem se eu
adiantar tudo no escritório agora pela manhã? Queria tirar a tarde livre.
Ele raspa as unhas no pescoço, formando sutis vergões rosados.
Unindo a sobrancelha, dirige-me uma expressão repleta de curiosidade.
— Claro. Precisa de algo?
— Hum, na verdade não. Sua mãe vai me levar para conhecer o
Jardim Botânico. Confesso que estou bem animada... todo esse tempo
morando aqui e ainda não conheço o cartão postal de Curitiba! — forço um
tom teatral, fazendo rir baixinho.
— Eu posso te levar...
— Não, tudo bem! Nós precisamos disso para nos conhecermos
melhor. É a minha sogra, afinal — enuncio a palavra com certo deleite. É
estranho me dirigir à Vitória assim, mas preciso me acostumar com isso.
— Acho que vocês estão tramando contra mim!
— E se estivermos? — provoco.
— Alguém será castigada... — ele estreita os olhos e suas mãos
pesadas deslizam as alças da minha camisola pelos ombros, fazendo-a
escorregar pelo meu corpo em uma fração de segundo.
Suas íris de safira fazem uma varredura pelas minhas curvas e,
instantaneamente, fico em chamas. “Puta. Que. Pariu.”, penso, com a
respiração já ofegante. Felipe umedece os lábios e deixa um beijo rápido na
minha boca, sorrindo de canto antes de me deixar para trás atordoada.

Pulo para fora do ônibus em uma parada tubular a poucos metros


do Jardim Botânico. Arrumo a alça da bolsa no ombro e me encaminho até a
entrada, onde combinei de me encontrar com Vitória.
A brisa cortante me faz praguejar em pensamentos por não ter
colocado uma meia calça mais grossa. Não demoro a encontrá-la elegante
como sempre, usando um conjunto de alfaiataria preto sobre uma camisa de
cetim off white. Os cabelos soltos voando ao vento me fazem constatar a
nossa terrível falta de sorte — o tempo está fechando em uma velocidade
surpreendente.
Vitória me cumprimenta com um sorriso genuíno tomando as feições
e depois acena em direção ao céu.
— Precisaremos ser rápidas... — diz, encolhendo os ombros como
alguém que se desculpa pelo inevitável.
Marchando em uma velocidade moderada, anoto mentalmente que
preciso voltar aqui no verão para aproveitar melhor o passeio. É
simplesmente maravilhoso! O caminho central do amplo jardim francês é
ladeado de maneira simétrica por cercas vivas bem podadas, por onde uma
porção de alamedas formam desenhos geométricos. Ao fundo, a icônica
estufa de ferro e vidro nos observa de volta, com três grandes abóbadas,
seguindo o inconfundível estilo Art Nouveau.
Notando a maneira como eu mal consigo desviar os olhos da
construção à nossa frente, Vitória diz despreocupadamente.
— A estufa foi inspirada no Palácio de Cristal de Londres. Linda,
não?
— E como! — arfo, recordando em um rompante o motivo para
estarmos aqui. Pigarreio desconfortavelmente, porém antes de encontrar as
palavras adequadas, ela quebra novamente o silêncio.
— Conheceu o lado difícil do Lipe? — indaga com um sorriso triste.
“Direta ao ponto!”, penso surpresa, “melhor assim”.
Empertigo-me no lugar, lutando para encontrar a voz presa na
garganta.
— Ao menos o estou conhecendo... — falo e nós duas rimos. —
Levou muito tempo para chegarmos aqui, então, acredite em mim, isso é uma
vitória e tanto!
— Sabe, Madu, Isaque e eu não tínhamos mais esperanças de que ele
fosse encontrar alguém. Havíamos nos conformado com a ideia de Felipe
seguir a vida solitário, então qual não foi a nossa surpresa quando ele nos
avisou que conheceríamos a sua namorada! — Ela sorri apertando o meu
ombro suavemente e sinto borboletas no estômago somente por recordar
dessa noite. — Ainda mais uma garota tão adorável... Somos muito
afortunados por tê-la em nossa família!
Enrubesço e tenho a sensação de estar parecendo um tomate neste
exato momento. Encaro-a significativamente, agradecendo em silêncio pelas
palavras. Vitória parece entender, pois meneia a cabeça e pisca um dos olhos.
Ficamos em silêncio enquanto adentramos a estufa climatizada e é
possível sentir a diferença de temperatura tão logo passamos pelo portal de
entrada. Demoro-me observando as inúmeras espécies de plantas ao redor,
esquecendo-me por tempo considerável a razão para estarmos aqui.
Sou desperta dos meus devaneios somente quando Vitória torna a
tocar o meu ombro com suavidade, agora indicando o céu que ficou
enegrecido subitamente.
— Sinto muito, querida. Precisamos ir ou acabaremos ensopadas!
Concordo com a cabeça, emudecida. “Droga! Precisava chover
agora?”, meu subconsciente protesta. Notando a decepção em meu rosto, ela
complementa:
— Não precisamos ir embora. O que acha de um café?
— Parece ótimo!
MADU —
MACCHIATO DE CARAMELO
Apertamos o passo em direção ao carro de Vitória e me
surpreendo ao não encontrar a Range Rover de Isaque, mas sim uma
reluzente BMW X1 vermelha. Fisgo os lábios, ficando bem consciente da
nossa gritante diferença social.
Acolho-me do vento desordenado ao entrar no carro, sentando-me
encolhida depois de colocar a bolsa no banco de trás. Vitória passa o cinto de
segurança pelo tronco, ligando o veículo em seguida. Aproveito o momento,
em um ímpeto de coragem, para retomar a nossa conversa.
— Por que você e Isaque achavam... que... — balbucio. — O Felipe ia
viver sozinho para sempre?
Ela me estuda pelo canto dos olhos e noto os nós dos seus dedos
esbranquiçarem ao apertarem o volante com força.
— Tem a ver com a Bia? — insisto. — Eu entendo que você respeita
o Felipe a ponto de preferir que ele me conte sobre os próprios traumas... e
também entendo que vocês todos já sofreram demais, mas ele não me falará
tão cedo sobre isso. Conforme os dias passam, mais recluso ele se torna e eu
vejo a constante batalha travada dentro de si mesmo... — as palavras se
atropelam, tamanha é a rapidez com a qual as cuspo. — Eu quero ajudá-lo,
Vitória! Eu realmente quero, porque o conheci na fase boa e me dói muito vê-
lo assim. Mas antes eu preciso entender.
— Ah, Madu... — ela suspira, resignada. — Sinto muito. Você é tão
nova e tão cheia de vida, Isaque e eu nos preocupamos muito com os danos
q...
— Não — peço, interrompendo-a. — Por favor, não diga isso. Eu não
sou tão frágil assim. Eu amo o Felipe, mesmo ele sendo um turrão e estando
doente, apenas me ajude, ok? Torne as coisas mais fáceis pra mim! Eu
preciso compreender. Mereço isso!
Noto uma lágrima escapar de seu olho, porém Vitória rapidamente a
limpa com as costas da mão. Engulo em seco, desviando a atenção para a
janela e sendo surpreendida ao me deparar com a chuva torrencial — eu nem
ao menos notei quando começou.
— De-depois da... — sua voz trôpega me faz pular de susto. —
Catástrofe que aconteceu com a nossa família, Felipe ficou completamente
perdido. Ele sempre acreditou ser culpa dele, apesar de nos culparmos tanto
quanto. É uma situação muito difícil. — Ela dá um toque na buzina tão logo o
carro da frente nos fecha. — Mas tinha algo errado, ele estava muito
diferente... não só triste. Eu devia ter percebido, no entanto já estava cega
pela dor. Logo depois do velório ele tentou se matar.
Sua voz falha no final da frase, fazendo-me perceber que o assunto
ainda a machuca muito, mesmo depois de tantos anos.
— Eu fiquei com muito medo. Perder dois filhos de uma vez só seria
um castigo muito grande. Nós ainda não sabíamos sobre o transtorno, então
acreditávamos ser apenas sua forma de luto. Mas, aos poucos, aquele menino
brincalhão foi desaparecendo e restou apenas uma confusão de sentimentos.
As oscilações começaram e, pior, ele começou a se odiar.
Vitória estaciona o carro, trazendo-me para a realidade novamente.
Ao lado de fora, percebo a bonita fachada de um café seguindo estilo
europeu.
— Precisaremos esperar a chuva diminuir... — comenta com um
sorriso que não acompanha os olhos. — Bom, resumindo a história
consideravelmente, notamos certos comportamentos diferentes e, por isso,
resolvemos levá-lo a alguns psiquiatras. Foi unânime: ele estava doente e
precisava de tratamento. Felipe já tinha predisposição e o trauma acabou
despertando o Transtorno, nos explicaram. Ele aceitou os remédios e a terapia
facilmente, mas, quando começaram os efeitos colaterais, já não estava tão
animado... Mesmo assim, aos trancos e barrancos, começamos a ver o
resultado. Meu Lipe voltava e finalmente poderíamos suspirar aliviados.
— Mas então ele piorou — concluo o óbvio.
— Sim, piorou. Aos dezessete precisamos interná-lo contra a vontade.
— Ah, meu Deus! — grasno, sentindo o sangue se esvair do rosto. —
Ele... ele não...?
— Não tentou, porém estava perto e sentíamos isso. Jamais
esquecerei o olhar de ódio de Felipe quando chegamos ao Hospital
Psiquiátrico. Chorei por horas, mas o que poderia fazer? Ele precisava de
ajuda!
Levo a mão à boca, sentindo-me indisposta. De repente, minha única
vontade é sair correndo. Eu me precipitei, no fim das contas. Ainda não estou
preparada para saber mais.
— Foi onde encontrou a Bianca e, com ela, um motivo para lutar —
Vitória hesita por um momento, testando a minha reação. — Ele voltou para
casa bem antes do previsto, pois sua melhora foi significativa. Para a nossa
surpresa, ele estava completamente motivado a levar o tratamento a sério.
Continuamos visitando Bianca até ela ser liberada e depois foi natural os dois
namorarem. Isaque e eu estávamos felizes porque um poderia ajudar o outro,
afinal eles se entendiam. Mas, veja bem, ela não estava lá tirando férias... —
capto a nesga de ironia em suas palavras. — Tinha depressão depois de ser
abusada durante toda a infância pelo tio e, se era possível, estava ainda mais
atormentada que o Lipe. Ah, vamos aproveitar agora? — pergunta, espiando
o lado de fora.
— Ah, que bom, uma trégua! Estou mesmo com fome! — suspiro,
alcançando a bolsa. No fundo, sinto-me grata por ter um tempo para clarear a
mente.
Somos acolhidas por uma aconchegante iluminação amarelada ao
adentrarmos o estabelecimento e o cheiro de pão assando me deixa
momentaneamente desnorteada. Caminhamos até uma mesinha redonda
escondida ao fundo do estabelecimento, com duas charmosas banquetas de
madeira a circundando. Sobre a toalha de trama xadrez, um cardápio com a
capa feita em juta me arranca um sorriso. Que lugar lindo!
Quando a atendente vem nos receber, peço um Croissant de presento
e queijo e um Macchiato de caramelo. Vitória se contenta apenas com um
Latte. Esfrego as mãos uma na outra a fim de recobrar a sensibilidade dos
dedos congelados. Tão logo ficamos novamente sozinhas, ela não hesita em
prosseguir a sabatina.
— Os anos foram passando e, apesar das frequentes recaídas de Bia,
as coisas pareciam estar nos eixos. Os dois começaram a fazer faculdade com
apenas um semestre de diferença. Para a nossa família e a dela, já era certo de
que se casariam eventualmente. Mas, por ironia do destino, ela parecia piorar
ao passo que ele melhorava... — Pigarreia, passando a mão nos rostos em um
movimento que já vi Felipe imitar várias vezes. — Se mutilava cada vez
mais, abandonou o curso, não saía da cama, até que...
— Ela...?
— Sim. Ela se enforcou no banheiro da própria casa, que Deus tenha
piedade! — Vitória arfa, seus olhos enchendo de lágrimas. — Uma menina
linda, inteligente... se já foi horrível para nós, imagine a tristeza para a
família! Achamos que Felipe iria piorar, mas, incrivelmente, ele permaneceu
firme. Ele se focou nos estudos, construiu a carreira e, quando pôde, saiu da
nossa casa.
— Ele nunca mais piorou como agora?
— Algumas recaídas, sim. Nada tão grave, no entanto. — Encolhe os
ombros. — Mas, além disso, nunca mais teve um relacionamento com mulher
alguma. Felipe, por algum motivo, se culpa por todas as fatalidades que já
aconteceram em sua vida. Na cabeça dele, merece sofrer eternamente... como
se já não tivesse sofrido o bastante. Vive em constante acusação.
Mesmo depois de minutos de suas palavras serem jogadas ao ar, a
única coisa que pareço ter ouvido é o final. “Vive em constante acusação”.
MADU —
CRUEL
Minha cabeça permanece zunindo com a profusão de informações
adquiridas nesta tarde. Talvez o fato de ter dormido tão pouco tenha ajudado
consideravelmente nisso. Santo Deus, estou com os pensamentos confusos e
o corpo inteiro clamando por um descanso adequado.
É somente ao sentir uma gota cair no topo da minha testa que percebo
já contarem alguns bons minutos desde quando Vitória me deixou aqui em
frente à casa de Felipe. Respiro fundo, tateando os bolsos em busca da minha
cópia das chaves.
Minhas entranhas se contorcem enquanto me encaminho com um
pouco de pressa para dentro. Agora eu realmente o conheço. Não um dos
advogados criminalistas mais bem-sucedidos do país, mas sim Felipe
Antunes. O pacote completo. Seus traumas, sua história, suas limitações. E
então, mesmo para a minha mente cansada, muitos aspectos da sua
personalidade reclusa começam a fazer sentido. Como o fato de ele sempre
afirmar destruir as coisas ao redor, ou de não se julgar o homem certo para
mim na noite do nosso primeiro beijo.
É como se depois de tanto tempo tentando unir as peças de um
quebra-cabeça, eu finalmente pudesse contemplá-lo de cima, observando o
todo. O engraçado é que, apesar de ter conhecido todas as facetas as quais ele
lutou tanto tempo para esconder, não estou assustada. Pelo contrário, eu o
amo ainda mais. Ele se enxerga como um ser errante; eu, como uma pessoa
forte. Afinal, mesmo lidando com perdas importantes somadas a uma doença
difícil, seguiu em frente e conseguiu conquistar muito.
O silêncio com o qual me deparo aqui dentro é desconcertante. Um
arrepio percorre a espinha como um raio, eriçando todos os pelos. Dirijo-me
à cozinha, de onde vem um suave tilintar, porém não encontro Felipe, e sim
Leonor. Vestindo uma camisola florida, ela engole o jantar tranquilamente.
Cumprimento-a, sentando na banqueta ao lado.
— Servida? — pergunta, indicando o próprio prato com um gesto
ligeiro.
— Não se incomode comigo! Preciso só de banho e cama! — falo e
nós duas rimos.
— Acha, menina! Não vai pra aula hoje?
— Não — digo desanimada. — Estou destruída... preciso me
acostumar com o ritmo de novo.
— Tá com umas olheiras enormes, mesmo, Madu — fala com o rosto
enterrado atrás do copo de suco. — E por onde andou hoje?
— Fui conhecer o Jardim Botânico com a Vitória. Mas não tivemos
muita sorte... só choveu!
— Ah, que pena! É tão lindo!
— É mesmo! — suspiro, apoiando o rosto na mão. — Espero voltar
no verão para olhar com mais calma.
Minhas palavras morrem no ar e o silêncio nos acompanha ao passo
em que Leonor termina o prato de comida. Traço linhas imaginárias no
mármore da ilha central com o indicador, os pensamentos me levando para
bem longe daqui. Por isso, quando ela fala comigo novamente, pulo no lugar,
sobressaltada.
— Ele é uma boa pessoa... só sofreu demais! — diz, assumindo um
tom sábio e maternal.
Endireito a postura, encarando-a com confusão estampando cada
centímetro do rosto.
— O quê?
— Depois que te conheceu, ele mudou. Pra melhor. E ainda está
mudando, sem nem ao menos se dar conta disso.
Ela se levanta, levando a louça até a pia para lavar em seguida.
Paralisada, observo-a sem ousar abrir a boca e quebrar o momento. É a
primeira vez que temos uma conversa assim.
— Só não fica desanimada... pode ser difícil, eu sei. Também precisei
lidar com a fera por muitos anos! — uma risadinha escapa dos seus lábios. —
Mas você está se saindo muito bem e, quando menos esperar, terá o domado.
Fito seus olhos de jabuticaba significativamente. “Tomara que sim”,
penso comigo, sem conseguir colocar para fora. Ao invés disso, concordo
com a cabeça, lançando um sorriso desanimado em sua direção.
— Obrigada — falo, levantando-me. — Vou dormir um pouco antes
que acabe desfalecendo! Nos vemos amanhã!
Leonor repuxa os lábios em um novo sorriso, observando-me arrastar
as pernas para fora da cozinha. Antes de eu atravessar a porta, no entanto, ela
me chama novamente, com um tom completamente diferente.
— Ele não está legal essa noite... — Encolhe os ombros.
— Posso lidar com isso — tento convencer a nós duas antes de girar
os calcanhares, abandonando finalmente a cozinha.
Subo os degraus sentindo como se os meus ossos fossem feitos de
chumbo. Faço uma parada no closet, onde pego o meu pijama de flanela bem
quentinho. Pode até não ser o mais bonito do mundo, mas levando em
consideração o frio severo, não dou a mínima.
Procuro por Felipe no nosso quarto, contudo não o encontro lá.
Encaminho-me até a varanda onde ele me contou sobre a Amanda, também
sem sucesso em achá-lo. Pondero sobre a possibilidade de ainda estar em sua
academia, entretanto ela é descartada tão logo ouço sons vindos da sala de
televisão, localizada também no terceiro andar. São tantos cômodos, até me
perco aqui dentro...
A sala de televisão mais se parece com um cinema particular.
Posicionado de frente para a televisão de oitenta polegadas, um enorme sofá
futon na cor chumbo foi posicionado diretamente no chão, conferindo um
clima informal e moderno para o ambiente. Ele se encontra forrado de
almofadas indo do branco ao preto, em diversos tons de cinza diferentes.
Apesar de já ter estado aqui em outras ocasiões, é impossível não me
impressionar. Esse é o problema, no fim das contas — quando estou com
Felipe, esqueço-me do quão diferentes nós somos. Quero dizer, olhe para
essa mansão! Céus, nunca, em toda a minha vida, estive em um lugar tão
luxuoso!
Felipe permanece ainda em seu terno azul-marinho, sem o blazer, e
com as mangas da camisa listrada dobradas até a altura dos cotovelos. Os
braços cruzados sobre o peito apertam o algodão egípcio, evidenciando os
bíceps definidos. “Mais bonito impossível”, meu subconsciente segreda.
Consigo sentir o seu cheiro delicioso daqui da porta. Inspiro profundamente,
revirando os olhos enquanto sorvo o perfume já conhecido. Aproximando-me
de Felipe, noto o filme a que assiste tão concentrado — Pulp Fiction, do
Tarantino. Um sorriso rasga os meus lábios, eu amo os filmes dele!
Meus olhos recaem para o copo com a inconfundível bebida castanha,
o qual jaz no chão ao lado da garrafa de Whisky. Engulo em seco e me sento
ao lado de Felipe, tentando afastar a sensação ruim se espalhando pelas
minhas veias na velocidade da luz.
— Estou atrapalhando? — indago.
Ele me encara e, mesmo no escuro, seus olhos azuis brilham intensos
em direção a mim, o sorriso torto estampando o rosto. Meu coração dá uma
guinada com o simples gesto. Santo Deus, Felipe acaba com o meu
psicológico...
Notando a distância considerável entre nós dois, ele estende o braço
esquerdo, enlaçando-me pela cintura e me puxando contra si. Sua boca vem
de encontro a minha orelha e, quando sussurra, arrepio-me com suas palavras
ricocheteando contra a pele.
— Você nunca me atrapalha.
Arfo, sentindo toda a angústia se dissipar, ao menos por enquanto.
Cristo... Embora a caminhada do nosso relacionamento seja difícil, momentos
assim fazem tudo valer a pena. Tê-lo para mim é a maior das recompensas.
— Como foi sua tarde? — pergunta, ainda contra o meu ouvido e, no
mesmo instante, uma onda irrefreável de tesão me atinge. É preciso muito
autocontrole para não soltar um gemido.
— Hum?
— O passeio com a minha mãe... o que vocês aprontaram?
Umedeço os lábios, concentrando-me nas palavras e não na forma
enlouquecedora como ele as está jogando ao ar.
A mão dele avança carinhosamente sobre a minha coxa, apertando-me
com suavidade. “Já vi uma vez onde esse jogo leva...”, penso, deliciada.
— O Jardim Botânico é lindo — ofego, com a visão borrada. — Mas
tivemos pouco tempo antes da chuva começar. Você precisa me levar no
verão para eu ver com calma!
— Levo! Está com fome?
— Não. Nós paramos para comer.
Felipe segura o meu queixo e inclina o meu rosto em sua direção. Tão
logo nossos olhares se encontram, meus músculos todos amolecem. Amo a
sensação de ser cuidada por ele, amo suas mãos pesadas me tocando, amo o
seu perfume marcante e viril impregnado nas minhas narinas...
Percorrendo a distância entre nós, roça os lábios contra os meus,
invadindo a minha boca com a língua. Guiando o beijo com experiência e
carinho, ele me eleva às nuvens. Os pensamentos somem da cabeça, os sons
do filme silenciam e, no mundo inteiro, é como se só existíssemos nós dois.
Sinto o gosto amadeirado do Whisky em sua saliva, entretanto não me
incomodo. Pelo contrário, esse gosto me lembra do nosso primeiro beijo. O
frio na barriga aumenta a medida em que seus dedos afundam contra a minha
pele, queimando e despertando um desejo incontrolável. Eu o desejo
ardentemente... preciso dele como o dia precisa da noite para continuar
existindo. Minha nossa, como o amo!
Encerro o beijo e me afasto na tentativa de recuperar o fôlego,
percorrendo seus traços perfeitos com os olhos. Como que para me provocar,
Felipe assume a icônica expressão carente responsável por fazer o meu
sangue ferver.
— Você me tira do sério... — arquejo.
— Essa fala é minha! — Sorri, deixando uma mordidinha na minha
clavícula antes de soltar o meu rosto, ajeitando-se novamente para ver o
filme.
— Como foi a sua tarde? Deve ter sido bem chata sem a minha
companhia!
Felipe gargalha, alcançando o copo para beber um demorado gole
dele.
— Não há como negar.
— A Leonor comentou comigo sobre você não estar legal...
— Apenas estressado com o trabalho — ele responde, um pouco
menos caloroso que segundos atrás.
— Sei... e é por causa do trabalho que está escondido aqui bebendo?
— tão logo as palavras escapam, enrijeço-me no lugar. “Merda, Madu! Você
e a sua mania de falar muito!”.
Arqueando as sobrancelhas, ele me encara, surpresa estampada em
seu rosto.
— É pecado querer um tempo sozinho? — seu tom é suave, eu diria
até... divertido.
— Me desculpa, estou um pouco irritada. Dormi muito pouco.
— Falei dormindo de novo?
— Não — admito. — Não foi culpa sua. Eu fiquei acordada
pesquisando sobre Transtorno Bipolar e não vi o tempo passar.
— Ah. — Ele se apruma, desviando o olhar.
— E conversei sobre isso com a sua mãe...
Felipe pigarreia, alcançando o controle para pausar o filme em
seguida. O silêncio subsequente recai sobre nós, trazendo desconforto.
“Parabéns, Madu!”, penso comigo mesma, “está indo muito bem na parte
de não provocá-lo!”.
— Claro que conversou! — fala, por fim. A frieza de suas palavras
gela meus ossos. Uma mudança súbita e esperada. Eu sabia ser um terreno
perigoso e mesmo assim persisti.
É irônico pensar no fato de hoje mesmo, ao acordar, acreditei que
nada seria capaz de abalar o meu bom humor. Agora já nem parece possível
enxergar a alegria com a qual comecei o dia.
— Felip...
— Shhhh — pede, apertando o indicador contra os meus lábios
delicadamente. Perco o fôlego com o gesto. — Por que apenas não
aproveitamos o nosso tempo juntos? Exatamente como estávamos fazendo
até agora?
— Não consigo. Não dá pra fingir estar tudo bem, quando não poderia
ser o mais longe disso.
Suas sobrancelhas douradas se unem, a testa formando inúmeros
vincos. As mãos vão até a gravata, afrouxando o nó e abrindo o primeiro
botão da camisa logo depois, quase como se já se preparasse para o iminente.
Apoiando os cotovelos sobre os joelhos, ele cruza as mãos e inclina o tronco
para frente.
— Vamos lá, coloque para fora! — pede e estremeço ao constatar ter
adotado a postura profissional e impassível. — Já está arrependida?
— Arrependida? Não! Não é isso!
— É o que, então?
— Estou preocupada com você! — atiro as palavras, elevando o tom
de voz sem nem ao menos perceber. — Quando nos conhecemos você não
mudava de humor três vezes ao dia, não bebia para fugir dos problemas e
passava mais tempo rindo do que chorando!
— Você... eu... o quê? — pergunta perplexo enquanto suas mãos
percorrem os cabelos. — Fugir dos problemas? É isso mesmo?
Tomada por um ímpeto de coragem, movo o corpo, ficando de frente
para ele. Uma fúria febril se alastra pelos meus membros, subindo como uma
chama crepitante.
— Sim, fugindo! Você não vê que a droga dessa doença está te
controlando? Você precisa de tratamento! Precisa dos seus remédios, mesmo
negando até a morte!
Noto a maneira como ele tranca o maxilar. Eu deveria tomar isso
como um bom indicativo para parar por aqui, mas tenho o defeito de sempre
querer levar uma decisão até o fim, independente das consequências. Por
isso, apesar de o meu sexto sentido berrar para não continuar provocando
Felipe, ignoro-o. “Saiba se controlar, pois o bipolar não sabe”, foi o que li
nesta madrugada, porém aqui estou eu, fazendo justamente o contrário.
— Sabe o que mais? Todos estamos sofrendo em te ver assim! —
cuspo, sem me importar com o quão infantil e egoísta soo falando isso. —
Você não pode nem imaginar o quanto é frustrante amar tanto uma pessoa,
querer ajudá-la, mas não poder, porque ela simplesmente é inacessível! E,
embora você faça tudo o que pode, ela continua te evitando e se escondendo
eternamente!
Levantando-se num rompante, Felipe me perfura com seus olhos
injetados. Penso ter atingido um ponto fraco, pois seu peito sobe e desce
descompassadamente. Fechando um punho em frente a boca, esconde a outra
mão no bolso da calça de corte impecável, em um gesto nervoso. Está
perdendo o controle, sinto isso.
— O que você sabe sobre problemas, Madu? — desafia com um
sorriso mordaz nos lábios. — O que você sabe sobre a vida?
— Eu...
— Não! — diz categoricamente, estreitando as pálpebras. — Você
atirou tudo o que queria para cima de mim, agora é a minha vez de falar!
Mordo o lado de dentro da boca para não interrompê-lo. Ele merece
isso, no fim das contas. Assinto, sem desviar a atenção de seus olhos
cristalinos.
— Você se considera muito sagaz, não é? Acha que pode vir aqui me
chamar de covarde e me dizer o que devo ou não fazer. Mas, novamente
pergunto, o que você sabe sobre viver, Maria Eduarda? — apesar de
praticamente sussurrar, suas palavras doem tanto quanto uma sucessão
interminável de tapas. — Qual foi o seu maior sofrimento? Seus pais
atrasarem a mesada? Você já conquistou algo nessa sua vidinha ordinária sem
ser de mão beijada?
Engasgo, atônita, cobrindo a boca com as duas mãos. Suas palavras
permanecem pairando no ar, reverberando contra os meus tímpanos. No
mesmo segundo, lágrimas pululam dos meus olhos, embaçando a visão.
Muitas delas.
Felipe demonstra ter notado a forma como foi cruel, pois seu rosto
suaviza consideravelmente. Vejo arrependimento em seus traços. Todavia,
quando ele ameaça dar um passo em minha direção para me tomar em seus
braços, afasto-me sem hesitar.
— Você tem razão — afirmo. —, talvez eu esteja mesmo me
arrependendo!
Giro nos calcanhares logo em seguida, em busca de um lugar onde
possa colocar todas as lágrimas para fora em paz.
MADU —
JANTAR
Limpo o suor da testa com as costas das mãos, repousando o rodo
na parede do banheiro. Céus, neste tempo abandonado, o meu apartamento
conseguiu acumular uma boa camada de poeira e, por isso, devo ter levado o
dobro de tempo que o usual para limpá-lo. Respiro fundo, satisfeita por ter
concluído a faxina, no entanto ainda tomada por um péssimo humor que
sempre me domina em situações como essa. Eu sei, soa péssimo odiar limpar
a própria casa, mas o que posso fazer se realmente detesto?
Seco o suor das mãos nos meus shorts enquanto caminho até a sala,
pescando o celular sobre o sofá. Nenhuma mensagem. Nada. Suspiro fundo,
lutando para afastar o rancor se alastrando pelas entranhas. Algumas horas
atrás, quando falei com mamãe e papai ao telefone, foi preciso engolir a culpa
ao contar as novidades sem mencionar o fato de ter me mudado
temporariamente para a casa do Felipe. Mentir para eles não é exatamente o
meu esporte favorito, mas eu poderia relevar se a razão para isso estivesse
colaborando um pouco comigo. “Felipe é complicado...”, penso, com um
gosto amargo na boca.
Momentos assim dificultam a tentativa de convencer a mim mesma
ser essa a coisa certa a se fazer. Quero dizer, eu realmente o provoquei
ontem, mesmo sabendo não ser uma boa ideia. Não contava 24h que eu havia
feito uma pesquisa enorme sobre o transtorno, li artigos auxiliando sobre
como não agir e, mesmo assim, fui lá e falei demais. Mesmo depois de a
Leonor ter me avisado sobre o estado de espírito dele. Eu sei, agindo assim
não tinha como esperar outra reação. Porém, dizer que entendo e fingir que
não me machucou são duas coisas completamente distintas.
Quando fecho os olhos, as únicas palavras ecoando dentro da cabeça
são “Você já conquistou algo nessa sua vidinha ordinária sem ser de mão
beijada?”, e, bem, a resposta é não. Tudo o que tenho foi com a ajuda dos
meus pais, a minha única conquista foi entrar para a universidade onde
estudo. Tirando isso, nenhum feito relevante, nada excepcional. Então preciso
segurar o choro, esforçando-me para enfiar na cabeça o fato de ele ter feito
isso justamente para me afastar. Esse é o seu mecanismo de defesa e, embora
continue machucando, uma vozinha no fundo da consciência me recorda:
“Saiba se controlar, pois o bipolar não sabe”.
Cristo, se eu soubesse como o amor pode ser dolorido...
Depois da nossa discussão ontem à noite, recolhi os meus pertences e
dormi em outro quarto. Talvez não tenha sido a atitude mais madura para se
tomar, porém eu não conseguiria agir diferente, ainda mais com uma
profusão interminável de lágrimas insistindo em escorrer dos olhos. Ainda
tenho amor-próprio, mesmo que uma nesga dele. Chorei até pegar no sono e,
ao acordar, as únicas palavras trocadas com Felipe foram para avisar que eu
precisava vir ao meu apartamento para dar uma atenção a ele e refazer a
minha mala. Sem me encarar, Felipe se ofereceu para me trazer e, assim,
deixou-me em frente ao prédio no mais absoluto silêncio.
Meus olhos recaem para a enorme mala verde-água e a sombra de um
sorriso toma os meus lábios ao constatar o quanto ela virou uma companheira
inseparável nos últimos meses. Seguro-a com dificuldade e caminho até o
quarto, pronta para a segunda coisa que mais odeio na vida depois de limpar a
casa — fazer a bagagem.
Abro o zíper e despejo as roupas em cima da cama, sentindo-me
igualmente vazia. O cheiro de lavanda do produto usado no chão penetra as
minhas narinas, trazendo uma saudade enorme da casa dos meus pais. Há três
anos, quando me mudei para Curitiba, eu me considerava tão adulta, tão
madura por conseguir sobreviver sem eles. Contudo, agora estou me sentindo
tão perdida... como uma garotinha assustada incapaz de tomar as decisões
corretas.
A campainha toca, sobressaltando-me. Com o coração na boca, levo
alguns segundos para processar a informação de que existe alguém me
esperando do lado de fora. Corro na ponta dos pés em direção à sala,
adiantando-me até a porta em seguida. Ao espiar no olho mágico, não posso
deixar de sorrir com a pessoa que encontro.
Em questão de segundos, esqueço-me de que estive remoendo a nossa
briga a tarde inteira e escancaro a porta, derretida com a expressão de
cachorro sem dono tomando seus traços. Felipe veste um blazer cáqui
sobreposto a uma camisa preta; nas pernas, um jeans de lavagem escura
puxando também para o preto. Mordo os lábios, deliciada com a imagem...
Santo Deus, devia ser pecado existir homens com capacidade para
desestabilizar uma mulher apenas existindo... Felipe não precisa do menor
esforço para arrancar suspiros!
Dou um passo para o lado, abrindo espaço para ele passar. Ele marcha
em passos tranquilos, deixando um rastro do irresistível perfume no caminho.
Inspiro profundamente e só reparo no tecido preso em suas mãos quando ele
estaca no meio da sala.
Encaro-o com curiosidade e percebo um sorrisinho cismando em
aparecer na boca que tanto adoro. Droga, era para eu estar morrendo de raiva
desse imbecil, mas estou aqui com as pernas bambas diante da intensidade
com a qual me examina.
Surpreendendo-me, Felipe se adianta de maneira decidida em minha
direção. Dou um passo para trás, porém suas mãos me enlaçam pela cintura,
prendendo-me contra o corpo dele. Arquejo, incapaz de desviar a atenção da
imensidão azul me enfeitiçando. Felipe vence a distância entre nossos rostos,
cobrindo meus lábios com os seus. O contato morno e delicado me deixa com
a cabeça nas nuvens e, por isso, apenas me entrego, admitindo para mim
mesma que, ao longo do dia, o sentimento a me dominar foi puramente
saudade.
Afastando-se de mim com beijinhos em posições diferentes da minha
boca, ele assume o sorriso torto capaz de me deixar desorientada.
— Preciso da sua opinião — sussurra de maneira cínica e, mesmo
sem saber o que está prestes a dizer, sorrio. — Comprei esse vestido para
uma pessoa, mas não sei se ela vai gostar...
Tão logo termina a frase, Felipe estende a peça de roupa, de frente
para mim. É um vestido sereia preto, terminado um pouco abaixo do joelho,
com um vasto decote em V, além de transparências em renda, distribuídas em
pontos estratégicos. Prendo a respiração, olhando dele para Felipe sem parar.
— É maravilhoso! — arfo, estupefata. — Mas... por quê?
— Porque vamos jantar no restaurante de uma Chef brasileira
reconhecida mundialmente. Devo salientar, inclusive, que foi necessário
mexer uns pauzinhos para conseguir uma reserva tão em cima da hora...
Aliás, se não quisermos nos atrasar, você precisa começar a se arrumar! —
Ele sorri, contornando o meu maxilar e depois a boca com o polegar. — Não
que precise de muito esforço... agora mesmo já está linda.
Rio com o elogio, sentindo as bochechas queimarem. Devo estar
realmente magnífica com o cabelo suado e despenteado depois de uma faxina
enorme. Então caio em mim, notando o absurdo da situação como um todo.
— Felipe... — começo, no entanto ele me silencia com outro beijo.
Quando nossos lábios se separam, estou com o corpo inteiro trêmulo.
Minha nossa, como ele consegue fazer isso? Suspiro profundamente, dando
um tapinha contra o seu peito.
— Seu idiota...
— Não vou negar ser um. — Sorri largamente, puxando-me para um
abraço. Então sua boca vem até o meu ouvido e me arrepio ao sentir o sopro
de suas palavras. — Eu falei coisas que não devia e estou disposto a
conquistar o seu perdão essa noite. Por isso, apenas me deixe te mimar um
pouco... por favor.
— Meu Deus, não precisa de nada disso! — grasno, rindo baixinho
enquanto tento ignorar o fato de todos os pelos do corpo se encontrarem
eriçados. — Só o fato de ter reconhecido que foi um ogro já é o suficiente.
— Não estou perguntando se é ou não preciso. Estou dizendo que
quero te levar para jantar, e vou!
Suas mãos grandes avançam pelos meus cabelos, roubando o ar dos
meus pulmões. Deslizando os lábios recém-umedecidos pelo meu pescoço,
ele arranca de mim um som gutural, quase um engasgo. Deixando
mordidinhas enlouquecedoras perto da orelha, Felipe consegue me conquistar
facilmente.
— Então seja boazinha e coloque esse vestido antes que eu mesmo
coloque.
— Humm — gemo, seduzida com a imagem formada em minha
imaginação pra lá de fértil. — Não seria má ideia!
MADU —
EMERGÊNCIA
Felipe serve as duas taças de champanhe tranquilamente,
ignorando a maneira como os meus membros se encontram trêmulos com a
experiência exorbitante.
— Isso é loucura! — arfo, tocando as bochechas com as pontas dos
dedos para constatar o quanto estão gelados.
Ele apenas sorri, tomando uma taça para si e a erguendo no ar,
sugerindo um brinde. Imito o movimento, ainda sem acreditar no que está
acontecendo. Deixo meus olhos examinarem o perímetro e, instantaneamente,
o ar se torna rarefeito aqui dentro. Cruzes, estamos mesmo em um jatinho
particular? Quero dizer, quando, em toda a minha vida pacata, fantasiei
vivenciar algo parecido? Não posso nem imaginar o valor obsceno
desembolsado por ele para estarmos aqui.
— Um brinde aos olhos verdes que me dão razões para levantar da
cama dia após dia, mesmo quando a minha vontade é justamente o oposto!
Meu sorriso vai de orelha a orelha e, por alguns segundos, a minha
atenção abandona o luxo com o qual estamos viajando e foca em nós dois.
Apesar de intimidada, percebo o quanto ainda se trata apenas de Felipe e eu.
No fim das contas, é sempre isso. Sempre que estamos juntos, não existem
diferenças, existem apenas os nossos sentimentos, e deles não tenho dúvidas.
Beberico o espumante, julgando ser um bom aliado para vencer essa
rigidez me dominando. Pela janelinha circular, observo as luzes da cidade,
tão pequeninas vistas daqui de cima. Parecem um interminável pisca-pisca de
natal, é simplesmente lindo. Suspiro, sem palavras. Percebendo o meu estado
catatônico, Felipe se inclina sobre mim e apoia os cotovelos sobre os meus
joelhos, estudando-me com as safiras intensas.
— O que foi?
— Você sempre faz isso? — a curiosidade me vence e eu
simplesmente pergunto, sentindo as bochechas queimarem.
— Só em emergências. — Encolhe os ombros, piscando um dos
olhos.
— Nosso encontro se encaixa em uma emergência?
— Certamente! A mulher da minha vida estava chateada comigo, com
toda razão. Se isso não é uma emergência, não sei o que é.
Felipe leva as duas mãos ao ar, como se dizendo silenciosamente
“você precisa concordar comigo”. Minha gargalhada preenche o espaço entre
nós. “Cristo, tem como ficar chateada com esse homem?”, meu
subconsciente indaga, porém, no momento, as únicas palavras absorvidas
pelo meu cérebro entorpecido foram “mulher” e “da minha vida”.
— Você está se sentindo desconfortável — ele conclui, colocando
uma onda loira atrás da minha orelha.
— Só não estou acostumada com... isso. — Inclino a cabeça para o
lado, indicando o avião com o olhar. — Eu teria adorado ir à padaria perto da
sua casa se fosse com você...
— Eu sei! Mas quero cuidar de você como merece. Será que pode ser
menos teimosa, só por essa noite?
— Vou tentar — respondo, tomando outro gole do champanhe.
— E é bom conseguir, ou teremos uma conversa séria em casa!
Rimos por segundos a fio, e preciso concordar, existem vantagens em
uma viagem onde não existe ninguém mais além dos pilotos. É quase como
se estivéssemos em um refúgio particular nas nuvens, apenas Felipe e eu.
Tem como ficar melhor?
— Fazendo esse tipo de ameaça, fica difícil considerar ser uma boa
menina — sussurro para só ele ouvir e me delicio com a expressão safada em
seus traços perfeitos.
Como eu já deveria ter adivinhado, Felipe deixou uma Mercedes
alugada, esperando por nós na estrutura aeroportuária da companhia aérea
particular. Decidida a ignorar a palavra “dinheiro”, assim como tudo
relacionado a ela, consigo me sentir muito melhor e começo a, de fato,
aproveitar a noite. Afinal de contas, o que pode ser um valor exorbitante para
mim, não necessariamente é para Felipe. E se ele planejou esse encontro para
nós dois, quem sou eu para ficar cheia de caraminholas na cabeça?
Ele repousa a mão enorme na minha coxa, causando um arrepio
gostoso. Procuro seus olhos e os encontro com um irresistível brilho
faiscante, de alguém que acabou de descobrir que o natal será mais cedo este
ano. “Céus, Felipe, assim você destrói o meu psicológico!”, penso, incapaz
de desviar a atenção dele.
— Depois da nossa briga de ontem, a sua primeira ideia de
reconciliação foi me trazer para jantar? — indago de maneira brincalhona.
— Conhecendo a namorada esfomeada que tenho, não poderia ser de
outra maneira.
Arquejo, fingindo um ar ofendido, mas depois caio na gargalhada,
sendo acompanhada por ele.
— É assim tão óbvio que eu sou facilmente manipulada pela barriga?
— Só para quem já te conhece bem. O que levaria pouco mais de... eu
não sei, meia hora? — pergunta, piscando e causando mais uma explosão de
risadas.
Desfiro uma sucessão de tapinhas contra o seu braço forte, com a
dignidade abalada.
— Felipe, seu ridículo, você não era assim antigamente!
— Assim como? Completamente apaixonado por você? — pergunta
com a voz grossa, deixando-me desnorteada. “Nossa senhora, alguém
precisa prender esse homem porque ele claramente está apelando!”,
mentalizo, mordendo o lábio inferior.
— Vou aceitar essa resposta por enquanto, mesmo sendo um golpe
baixo! — falo, arqueando as sobrancelhas e fazendo-o rir como uma criança.
— Mas você está muito enganado se pensa que deixarei barato, Senhor
Antunes!
Felipe aproveita o fato de termos parado em um semáforo para
avançar em direção a mim, segurando os meus cabelos com uma das mãos e
os afastando para o lado, de modo a deixar a orelha descoberta. Ao sentir sua
respiração ricochetear contra a pele delicada da região, uso de toda a
concentração para não demonstrar o quanto já estou cega de tesão.
— Ah, minha menina insolente... você me deixa maluco com essas
provocações! Desse jeito a minha janta será aqui no carro mesmo.
Contenho um gemido, fechando os meus olhos para manter os
pensamentos no lugar. Felipe é como um furacão: com simples palavras, vem
e abala tudo. Engolindo em seco, inspiro uma porção de ar, na tentativa de
oxigenar o cérebro e clarear a mente.
Ele se ajeita antes de dar partida, tão logo o semáforo fica verde.
Sentindo a mudança drástica na atmosfera entre nós, resolvo mudar o rumo
da conversa antes que estejamos, de fato, embrenhados no banco traseiro.
— Quero saber mais sobre o restaurante para onde está me levando!
— peço manhosa. Ele pigarreia e depois responde com a voz rouca, tão sexy
que chega a ser revoltante.
— Vamos ver... ele acumula uma porção de prêmios importantes,
além de uma estrela no Guia Michelin.
— Uma estrela? E isso é bom?
— No Brasil, apenas dois restaurantes têm. Os dois ficam aqui em
São Paulo.
— Uau, estou impressionada! — comento, enquanto entramos em
uma ruela aparentemente pacata. — Esse é um daqueles lugares onde
comemos coisas diferentes em porções minúsculas? Igual em filmes?
Felipe ri com a pergunta, dando seta para parar em frente a um
estabelecimento de fachada discreta, cujo único detalhe é uma placa de
madeira laminada. Nela, a palavra Sapé fora talhada em uma elegante
caligrafia minimalista.
— Receio não existir definição melhor que essa. — Ele pula para fora
e, em passos ligeiros, circunda o veículo para abrir a minha porta.
Entregando a chave para o manobrista, recosta a mão na minha
lombar, cuidadosamente. Meu estômago revira com o contato. É bobo, eu sei,
no entanto inevitável. Felipe causa isso em mim, no fim das contas. Deixa o
meu mundo de ponta cabeça — de um jeito bom, como no looping de uma
montanha russa. Com direito ao friozinho na barriga, até.
Uma das hostess nos acompanha até a nossa mesa, localizada na área
externa, onde uma charmosa estrutura construída com vigas de madeira serve
de moldura para o maravilhoso céu estrelado. Ele afasta a cadeira para mim,
deixando-me com um sorriso idiota estampado na cara. Santo Deus, ele pode
ser uma confusão, mas é meu! E eu simplesmente amo a forma como cuida
de mim, amo a maneira como faz com que eu me sinta a única pessoa
presente aqui dentro. É quase como se a existência dos demais fosse
meramente decorativa. Felipe faz com que eu me sinta especial.
— É lindo! — suspiro, olhando o redor.
— Eu também acho — comenta, segurando o meu queixo para erguer
o meu rosto. Quando nossos olhares se encontram, tenho certeza: ele não está
se referindo ao restaurante.
FELIPE —
SAPÉ
Madu tem os olhos fechados e uma expressão deliciosa no rosto,
responsável por uma irrefreável vontade de arrancar o seu vestido aqui
mesmo.
— Meu Deus! — ela grasna, abrindo as pálpebras e revelando as
enormes íris esverdeadas. — Com certeza devem servir isso aqui no Céu!
Rindo do seu entusiasmo, levo uma garfada do purê de taioba à boca,
deixando-o derreter suavemente na língua. De fato, é delicioso! No entanto,
nem se compara com o quanto a companhia dela me deixa satisfeito. O brilho
nos seus olhos, ou as bochechas rosadas pelo vinho... Não existe lugar no
mundo que eu quisesse estar além de aqui, junto ela.
— Pelo jeito gostou... — brinco, alcançando o guardanapo para
limpar o molho em sua bochecha. Sinto-a estremecer com o contato e sorrio.
— Não. Gostar é muito pouco. Eu não sei como consegui viver tanto
tempo sem isso aqui!
Pelos sete infernos, não consigo tirar o sorriso estúpido do rosto! Mas
como poderia se cada pequena reação dela ocasiona um turbilhão de
sensações? Madu desperta o melhor de mim, e isso é visível para qualquer
um.
— E eu não sei como consegui viver tanto tempo sem você —
sussurro.
Acho graça na forma como o seu rosto fica vermelho como um
tomate maduro. Então, tomado por um calor inundando todos os membros do
corpo, aproveito a deixa para falar o que passei a madrugada ensaiando.
Desde o momento em que a ataquei com um punhado de palavras severas,
não tenho pensado em outra coisa, além disso. Só a possibilidade de perdê-la
novamente já me deixa com um gosto amargo na boca.
Tomo sua delicada mão esquerda entre as minhas, fazendo um
sanduíche. Maria Eduarda me encara com o olhar curioso, concentrada em
saborear a comida em sua boca. Meu sorriso se alarga — é muito fácil de
amá-la. Ela consegue conquistar as pessoas ao redor sem esforço algum.
— Eu te trouxe aqui para pedir desculpa por ontem, como sabe.
— Fê... — Porra, é uma covardia sem tamanho a forma como ela me
tem nas mãos quando me chama assim! Deus sabe como faria qualquer coisa
pedida depois de um “Fê” desses... — Eu já esqueci isso.
— Mas eu não.
— É sério, não precisa dizer nada. Nossa noite está perfeita.
— Preciso discordar e, como um bom advogado, tenho meus
argumentos — assumo, de maneira teatral, um tom sério.
Madu gargalha, alcançando o vinho em seguida. Sem quebrar o
contato visual, ela diz com o rosto escondido dentro da taça:
— Sou toda ouvidos, então.
— Em primeiro lugar, eu não consigo entender o que fiz de tão bom
para merecê-la. Deve ter sido algo notável porque você, sem sombra de
dúvidas, é o que tenho de mais bonito! Poderia dizer que você é muito
importante na minha vida, Madu, mas não seria honesto. Você é a minha
vida! — limpo a garganta, retomando a coragem para prosseguir. — Eu não
consigo tirá-la da cabeça nem por um único segundo... pequenos detalhes do
dia passaram a ter um novo significado depois que você apareceu.
— Ah, meu Deus, Felipe! Se você me fizer borrar a maquiagem nesse
lugar chiquérrimo, eu juro que te mato! — Madu atira e noto sua retina
brilhando além do normal. Não consigo dominar a risada ao vê-la sendo
sempre tão espontânea.
— Que tipo de pessoa interrompe um discurso ensaiado por toda uma
madrugada, desse jeito?
— Minha boca veio sem o zíper, desculpa! Pode continuar com a sua
defesa!
— Não serei tão compassivo na próxima!
Ela concorda com a cabeça, um sorriso provocativo pincelando os
lábios cheios. Respiro fundo, retomando os pensamentos. Desvio a atenção
para as nossas mãos, tempo suficiente para reunir a determinação outra vez,
afinal, falar de sentimentos não é exatamente o que faço de melhor.
— Eu queria ter o controle dessa minha cabeça fodida, pra poder te
prometer que as coisas deixarão de ser tão turbulentas o quanto antes... Eu
não posso nem cogitar uma vida sem você, Maria Eduarda. Embora você
esteja morando comigo há pouco tempo, para mim já se tornou difícil me
lembrar de como era antes. Porque, por Deus, é tão certo estarmos juntos!
Desde então, não posso nem mensurar o quanto adoro acordar com você em
meus braços, sorvendo o perfume dos seus cabelos, sentindo sua respiração
calma... — esfrego o rosto nervosamente. — Não me recordo a última vez
que estive tão feliz como me sinto agora. Talvez eu nunca realmente tenha
experimentado essa sensação de leveza...
Sou refreado pela lágrima que percorre a bochecha dela, deixando um
rastro brilhante. Madu tem os olhos redondos como burquinhas e estes
brilham a ponto de parecerem duas gemas azul-esverdeadas. Seguro o rosto
dela com as duas mãos, buscando-o para perto do meu.
— Você é a razão para eu continuar, minha menina. Não posso prever
se estarei bem ou não na próxima semana, ou mesmo nas próximas horas. No
entanto, posso assegurar que não deixarei novamente de te tratar da única
maneira como você merece. Assim.
E então a beijo ternamente, sem saber a melhor maneira de expressar
os sentimentos. Preciso fazer um esforço sobre-humano para me desvencilhar
dela, tendo em vista o fato de estarmos em um restaurante apinhado de
pessoas. Sorrio para ela, afundando os dedos nas madeixas loiras em um
gesto afetuoso.
— Bem... esses são ótimos argumentos — Madu balbucia, limpando
os olhos com as costas das mãos.
— Achei que fosse me matar por estragar sua maquiagem... —
provoco e, ao notar a maneira como suas pupilas não desgrudam dos meus
lábios, umedeço-os, louco para vê-la da mesma maneira como estou:
descontrolado de desejo.
— Espere só sairmos daqui! — ameaça, piscando para mim.
O garçom traz a conta dentro de uma pasta de couro, entregando-
me antes de abandonar a mesa. Tateio os bolsos a procura da carteira ao
passo em que meus olhos captam a expressão exasperada no rosto de Madu.
— Tudo bem? — indago, observando-a com atenção.
— Eu jamais serei a mesma depois desse flan de chocolate! — diz,
raspando o indicador no potinho de vidro, a fim de alcançar o restante da
sobremesa. — Não dá, Felipe, agora que você me mostrou o paraíso, nada
mais será tão bom! Olha essa consistência!
— Podemos voltar sempre quando quiser!
— Como a Chef se chama, mesmo?
— Letícia Porto — respondo despreocupadamente.
— Quero idolatrá-la! — Madu suspira. — Você trabalhou pra ela?
Por isso conseguiu uma reserva em cima da hora?
— Não para ela... o dono do restaurante é um dos meus clientes. Já
jantei aqui outras vezes, mas não a conheço pessoalmente.
Deslizo o dinheiro para dentro da pasta, procurando o garçom com os
olhos para chamá-lo, porém, antes que consiga encontrá-lo, Madu arfa como
se houvesse acabado de ter uma ideia fantástica.
— Ah, Felipe, tem um filme de romance que eu adoro, a protagonista
é Chef... chama Sem Reversas, eu acho. Os clientes a chamam da cozinha
para agradecer pelo jantar! Eu quero fazer isso também!!
Empertigo-me no lugar e a encaro perplexo.
— Fazer o quê? — pergunto, apenas para confirmar se ouvi direito.
— Chamar a Chef para... agradecer?
— E dizer que ela cozinha muito bem!
— Eu receio que ela já saiba disso, Madu.
— Por favooor! — choraminga, pestanejando inocentemente.
Deslizo a mão pela coxa dela por baixo da mesa, apertando-a com
suavidade para ganhar sua atenção.
— Não podemos, sinto muito! Vamos atrapalhar o trabalho dela... —
explico, sem desviar os olhos de Madu. — No entanto, acabou de me passar
pela cabeça que essa é uma boa noite para tirarmos a nossa primeira foto
juntos... o que você acha?
Assim que as palavras pairam pelo ar, os lábios dela se separam por
uma fração de segundo.
— É... preciso concordar, essa é uma ideia bem mais convidativa! —
afirma, pulando para a cadeira ao lado em um piscar de olhos.
Pesco o celular dentro do bolso, entregando-o para ela. Passo um
braço ao redor da sua cintura e a puxo para mais perto de mim. Enquanto
Madu estende o braço à nossa frente, pronta para tirar uma selfie, repouso a
cabeça em seu ombro, embalado pelo inebriante perfume doce penetrando as
minhas narinas.
Então direciono a atenção para o visor do celular, a tempo de registrar
na memória os nossos sorrisos largos e a maneira arrebatadora como ela faz,
sem ao menos se dar conta disso, eu me sentir vivo e completo. Enfeitiçado
pelo momento, deixo de lado o bom-senso e faço um sinal para chamar o
garçom. Dane-se, eu farei tudo o que estiver ao meu alcance para fazê-la
sorrir com a mesma intensidade de agora. Trata-se de um sorriso radiante,
exprimindo a forma exata como me sinto: afortunado. Não me importa a
mínima se vamos ou não atrapalhar a cozinha, eu poderia fazer loucuras por
Maria Eduarda. Ela me tira do sério, nos melhores sentidos possíveis.
O jovem rapaz de pele oliva chega rapidamente. Ao estender a pasta
de couro para ele, aproveito o momento e peço para cumprimentar a Chef.
Ele franze o cenho, assumindo uma expressão hesitante, como se eu tivesse
acabado de solicitar que se despisse no meio do salão.
— Senhor, ela não possa sair de lá agora... são muitos pedidos! A
cozinha está uma loucura!
Pelo canto dos olhos, noto a expectativa no rosto de Madu, assim
como a surpresa por eu ter mudado de ideia. Pelos sete infernos, qual a
chance de eu desistir quando ela está com essa carinha linda? Respiro fundo,
voltando a tatear os bolsos em busca da carteira, de onde tiro um cartão
pessoal e o entrego. Realmente odeio usar a minha posição vantajosa para
conseguir alguma coisa, mas há momentos — e este com certeza é um destes
— em que não restam alternativas.
— Sou amigo do Castelli... Veja o que pode fazer por mim, pode ser?
Não temos pressa, esperaremos o tempo necessário.
O rapaz joga o peso do corpo para a outra perna, a testa permanece
vincada, em preocupação. Ele olha por cima do ombro, estuda o restante do
salão e assente com a cabeça.
— Tudo bem, senhor. Só um momento, por favor. Vou falar com ela.
Tão logo ficamos sozinhos novamente, Madu explode em uma risada
nervosa, porém satisfeita.
— Caramba! Você realmente acabou de usar uma versão educada de
“sabe com quem está falando?”, ou é só impressão minha?
— Isso é o que você faz comigo. Pega a minha razão, picota e depois
joga no lixo. — Encolho os ombros, fazendo-a rir com vontade.
— Obrigada! — Sorri ela, contornando o meu pescoço com o braço
esquerdo e unindo nossos lábios.
Estamos no meio de um beijo delicioso quando ouço um pigarrear
nervoso, de alguém desconfortável o bastante com a situação. Desvencilho-
me de Madu, encontrando o garçom com um sorriso amarelo.
— A Chef Letícia me pediu para acompanhá-los até a cozinha!
— Sério? — ela arqueja, visivelmente empolgada.
Um riso baixo me escapa, ao constatar o quão pouco é necessário para
impressioná-la. A caminhada é rápida e logo estamos em frente a uma porta
vai-e-vem, empurrada com força pelo garçom. Ele a segura, ainda do lado de
fora, fazendo um gesto com a mão para entrarmos. Agradeço com um aceno
da cabeça, desviando a atenção para a cozinha industrial impressionante logo
à frente.
É difícil acompanhar exatamente tudo o que está acontecendo, tendo
em vista o fato de ter, a todo momento, muitas pessoas se movendo, em todas
as direções, segurando panelas flamejantes, facas de tamanhos e formatos
diferentes e utensílios que nem ao menos sei como se chamam. As bancadas
de inox se encontram repletas de toda a sorte de objetos, além de ingredientes
intermináveis. Ademais, a confusão de instruções vindas de todas as direções
me deixa atordoado. Por Cristo, eu não duraria um único dia em um ambiente
como esse!
Busco a mão de Madu, entrelaçando os nossos dedos para ter certeza
de que ainda está processando novas informações. O sorriso enorme nos
lábios comprova o seu estado de espírito e agradeço por não ter perdido a
oportunidade de vivenciar esse momento único.
Vinda do meio da confusão, uma mulher na casa dos trinta caminha,
com passos decididos, em nossa direção, limpando nervosamente as mãos no
avental. Seus cabelos escuros encontram-se contidos por um turbante azul
que a confere certo charme. Os traços harmoniosos estão endurecidos por
uma expressão que, embora tente parecer educada, entrega a impaciência. É
uma mulher muito bonita e a constatação me deixa surpreso. Por algum
motivo, não imaginava uma Chef assim.
— Boa noite! — diz e sorri, olhando de um para o outro. — Sinto
muito não ter conseguido ir até a mesa de vocês... como podem ver, as coisas
estão caóticas por aqui!
— Nós é que precisamos pedir desculpas por te atrapalhar! — Madu
me surpreende ao tomar as rédeas da conversa naturalmente. — Eu me
chamo Maria Eduarda, e esse é o meu namorado, Felipe. Ele insistiu para não
fazermos isso, mas acredite, se eu pudesse te colocaria num pedestal e
passaria o resto da vida fazendo oferendas! Minha nossa, jamais serei a
mesma depois dessa noite!
Finalmente a rigidez contida de Letícia se esvai, em uma gargalhada
descontraída.
— Eu não acharia ruim, para ser honesta! Mas — Ela gira os
calcanhares, apontando para a cozinha. —, não seria justo com eles. Somos
como uma engrenagem... uma única peça faltando pode comprometer todo o
resto.
Letícia nos explica por cima a função de cada um, assim como a
importância que têm para o andamento da cozinha. Noto a maneira ansiosa
com a qual esfrega as mãos uma na outra e constato: embora esteja dando o
máximo para nos oferecer uma experiência agradável, não consegue tirar o
foco do trabalho, ou do fato de permanecer ausente.
Por isso, lanço uma piscadela para Madu e depois toco com o
indicador no relógio em meu pulso. Ela entende o recado. Agradecemos não
uma, nem duas, mas várias vezes pela atenção e pelo ótimo jantar e, logo em
seguida, partimos.
Contorno a cintura de Madu com os dois braços, ficando por trás dela
enquanto caminhamos para fora do Sapé. Apoio o queixo no seu ombro para
sussurrar contra sua orelha um “obrigado”. Sinto-a estremecer antes de me
perguntar com a voz rouca:
— Pelo quê?
— Por ser minha!
MADU —
VULCÃO
Uma vez que estamos no jatinho novamente, a caminho de
Curitiba, Felipe volta a nos servir o mesmo Champanhe com o qual iniciamos
essa noite maravilhosa. Embora eu já esteja consideravelmente alegre depois
de tantas taças de vinho no jantar, desperdiçar a oportunidade de um desfecho
a altura de todo o encontro soa como uma ofensa.
A lembrança de que, nesta mesma tarde, eu estivera triste com ele
pela maneira como falou comigo na noite passada parece tão distante quanto
uma porção de lapsos desfocados de um pesadelo tido a muito tempo.
Também pudera, quem em sã consciência ficaria remoendo um detalhe tão
pequeno levando em consideração a forma como Felipe se esforçou para
conseguir a retratação? Santo Deus, ele me surpreende sempre mais!
Como se lendo os meus pensamentos, ele inclina o tronco até o meu
pescoço, inspirando profundamente e depois percorrendo toda a extensão
com uma sucessão de beijos deliciosos. Todos os pelos do meu corpo se
eriçam de uma só vez. Dou um gole da bebida, fechando os olhos para
aproveitar da melhor maneira o seu gesto enlouquecedor. Com uma das
mãos, ele afasta os meus cabelos e seus lábios deslizam em direção à nuca.
Arfo de desejo, deixando a minha mão resvalar pela sua coxa.
Então abro os olhos, mirando a cabine onde os dois pilotos se
encontram. Diferente de um avião convencional, ela não fica completamente
isolada, de forma que seria uma loucura me render ao desejo aqui dentro.
“Mas isso não me impede de retribuir a maneira como Felipe fez eu me
sentir singular hoje”, penso, seduzida por uma ideia irresistível e, no mesmo
momento, abro o zíper da calça dele e escorrego a mão para dentro,
alcançando sua ereção. Ele geme baixinho contra a minha orelha e, ao
simples som, meu corpo inteiro reage com um arrepio intenso.
Seus dedos sobem de encontro aos meus seios, apertando-os com
desejo e sem se importar com o fato de não estarmos sozinhos. Bem, para
falar a verdade, eu também não me importo. Ele tem esse poder sobre mim,
de me deixar completamente entregue. E a sensação é maravilhosa.
Sinto-o pulsar conforme o esfrego em ritmo a princípio lento, mas que
fica cada vez mais rápido. Felipe se esparrama na poltrona, apalpando-me em
pontos diferentes, como se quisesse sentir cada pedacinho de mim. Os lábios
úmidos permanecem passeando em lugares onde sabe que me deixará cega de
tesão. Alternando com mordidinhas não tão leves, ele é o único culpado pela
minha respiração se tornar um pouco mais ofegante a cada segundo.
Com os olhos fixos na cabine, para o caso de sermos pegos no flagra,
dou um pulinho de susto ao sentir seus dedos avançarem por baixo do
vestido, puxando a calcinha para o lado e me encontrando encharcada de
desejo. Mordo o lábio inferior com força, lutando para não permitir que um
gemido escape. Mas isso é tão difícil quando Felipe pressiona o polegar
contra o meu clitóris, friccionando-o em movimentos circulares responsáveis
por fazer os músculos do ventre se contraírem de prazer. “Minha nossa...”,
meu subconsciente grasna, tão atônito quanto eu.
Aumento a força nos dedos, tentando copiar a cadência com a qual ele
me eleva às alturas — ainda que, ironicamente, já estejamos no céu. Giro o
rosto para a direita, em busca de sua boca. Beijamo-nos apaixonadamente,
como se houvéssemos passado anos sem nos ver e finalmente estivéssemos
nos encontrando novamente. O sabor do beijo tem gosto de champanhe e
isso, de alguma maneira, deixa-me ainda mais excitada. Rebolo os quadris
tão logo ele me penetra com um dedo, fazendo o movimento de “vem cá”
dentro de mim.
Engolindo os seus gemidos baixos, sinto as pernas tremerem enquanto
as extremidades do meu corpo começam a formigar. Estou quase lá, mas o
quero comigo, por isso, começo a subir e descer freneticamente a mão em seu
comprimento. Posso sentir o membro rijo latejando e, num gesto
completamente sem juízo, inclino-me em direção ao seu colo, deslizando os
lábios por sua ereção.
O seu sabor chega em espasmos dentro da boca ao mesmo tempo em
que eu chego ao ápice. Com a respiração curta e rápida, voltamos a nos
beijar, extasiados pelo prazer e pela loucura do ato como um todo. As mãos
dele se ocupam em fechar a própria calça antes de virem até o meu rosto,
protetoramente.
— Você me deixa louco... — sussurra contra a minha boca. —
Deliciosa e irreversivelmente desajuizado.
— Isso é bom. Não existe graça na sanidade. Assim como a minha
vida não tem graça sem você!
— Eu amo você, Madu. Sempre mais.
— Eu também, Felipe Antunes. Te amo deliciosa e irreversivelmente
— imito suas palavras, arrancando um sorriso torto dele.

Quando pisamos na casa de Felipe, já passa da meia noite.


Encontrar os imponentes cômodos escuros e silenciosos me desperta um
calafrio desconfortável. Enquanto subimos as escadas de mãos dadas, acabo
soltando o que há muito vem me incomodando:
— Eu odeio essa casa — admito e surpreendo a nós dois com as
palavras. — É muito grande para uma pessoa só, com cômodos demais e,
além do mais, me causa arrepios!
— Nossa, isso foi inusitado!
— Eu sei, sinto muito por falar agora, eu não aguentei.
Julguei que ele tivesse ficado ligeiramente ofendido com o
comentário e, por essa razão, sua risada me deixa perplexa. Felipe ri
gostosamente, segurando-me pela cintura ao passo em que caminhamos
trôpegos em direção ao quarto.
— O que foi?
— Você é muito espontânea. Adoro isso em você.
Ele se despe do blazer, atirando-o na chaise sem desviar os olhos de
mim. Minhas bochechas queimam com a intensidade do seu olhar. Acho que,
no fim das contas, estou bêbada. Sei disso pelo torpor me dominando de
pouquinho em pouquinho.
— Mas é a mais pura verdade! Já deixei de fazer coisas por medo de
andar sozinha nos corredores.
— E por que agora?
Dou de ombros, virando de costas e lançando um olhar para ele, por
cima do ombro. É o suficiente para Felipe percorrer a distância entre nós,
arrastando o zíper do meu vestido lentamente — como se para me provocar
um pouco mais.
— Eu não sei. Aconteceu. Você se escondeu aqui por tantos anos,
lidando com toda a sua dor. É como se a melancolia tivesse impregnada nas
paredes... não consigo explicar. Apenas não me sinto confortável aqui. Não
quando você não está por perto.
Ele deixa um beijo na minha testa, desabotoando a camisa tão
rapidamente que paro para observá-lo. Logo sou presenteada com a visão
irresistível do seu corpo definido e não me envergonho de engolir Felipe com
os olhos. Droga, ele é muito bonito! É impossível não ficar boquiaberta.
— Se continuar me olhando assim, vou precisar terminar o que
começamos no avião...
— Não há como evitar. — Sorrio pra ele. — Sou viciada em você.
— Venha, vou te dar um banho. — Felipe me segura no colo,
caminhando comigo em direção ao banheiro.
Tão logo ele me solta sentada sobre a pia, sou traída pela boca e ouço
a minha voz ricocheteando contra as paredes.
— Fê, depois do que aconteceu com a Bia, você... você nunca mais se
envolveu com ninguém?
“Droga, Madu!”, ralho comigo mesma por estragar o momento.
Depois de uma noite maravilhosa, o que eu menos quero é outra discussão
como a de ontem. No entanto, a conversa com Vitória não abandonou os
meus pensamentos desde então. Eu acabaria enlouquecendo se não
perguntasse, cedo ou tarde. Afinal, ainda existe um período da vida dele
desconhecido para mim, compreendendo desde a morte de Bia até o dia em
que o conheci. Preciso saber disso e só então descansarei.
Porém, ao olhar para seu o maxilar travado e o vinco entre as
sobrancelhas, constato não ter sido uma boa ideia e, inconscientemente,
preparo-me para o vulcão que é Felipe prestes a entrar em erupção.
MADU —
BIANCA
Felipe esfrega o rosto com as duas mãos, parecendo subitamente
cansado. Então o impensável acontece: ele se aproxima em passos lentos até
a bancada onde me encontro sentada, apoiando os braços sobre as minhas
coxas.
— Tem certeza de que quer conversar sobre isso agora? — pergunta
com uma nesga de desanimo traindo a voz, deixando uma das mãos passear
para dentro dos meus cabelos.
Sua reação me deixa perplexa. Depois da nossa discussão na sala de
televisão, eu esperava algo mais explosivo em se tratando de cutucar feridas.
Mas, pelo jeito, ele estava sendo honesto quando garantiu jamais voltar a me
tratar daquela maneira novamente. Posso ver em seu corpo rígido e nas íris
ardentes o quanto está se esforçando para isso e a constatação libera uma
corrente elétrica para o resto do corpo, anestesiando-me. Emudecida, apenas
assinto com a cabeça. No fim das contas, este é exatamente o meu desejo.
Quanto antes colocarmos os pingos nos Is, melhor.
— O que minha mãe te contou? — pergunta.
— Não fique bravo com ela por isso, eu insisti muito para saber!
Estava ficando louca. Ainda estou, na verdade, por iss...
— Shhh! — Ele me cala com beijo. — Eu te devo isso.
Respiro fundo, ignorando a velocidade alarmante com a qual o meu
coração bombeia sangue para o resto do corpo. Finalmente os segredos entre
nós acabarão! A perspectiva me rouba a força das pernas.
— Ela me disse sobre você ter ficado muito doente a ponto de
precisar ser internado... então conheceu a Bianca lá. E, hum... — titubeio,
limpando a garganta antes de continuar. — Bem, ela contou o que precisava
ser contado.
— Certo.
Ele meneia a cabeça, parecendo buscar uma boa dose de coragem para
encarar, mais uma vez, o passado. Sustentamos o olhar pelo que parecem
horas antes dele percorrer os dedos pelos próprios cabelos, fazendo-os cintilar
com um brilho dourado. Fisgo os lábios, sem fôlego com a sua beleza
imponente. Eu jamais vou me acostumar com ela. É impossível não se deixar
abalar.
— Bianca era como um reflexo de mim mesmo. Ela entendia a minha
dor, conhecia o meu sofrimento. Era a única que verdadeiramente me
compreendia. As demais pessoas... apenas tentavam. Quando nos
conhecemos, em uma terapia em grupo, eu não demorei mais que segundos
para me encantar com o jeitinho doce dela, ou com o sorriso enorme que
surgia eventualmente. Antes mesmo de voltar para casa eu já a amava. Aquilo
era novidade para mim, porque, como deve saber, passei a adolescência
ocupado em odiar a mim mesmo e pular de médico em médico.
Felipe umedece os lábios e suas íris de safira estudam as minhas
reações. As mãos enormes me seguram carinhosamente pela cintura e, eu
entendo, essa é a sua maneira de me mostrar que está aqui comigo. Pode
parecer um gesto pequeno, no entanto, depois de meses lidando com um
Felipe constantemente tentando se fechar no próprio mundinho e me
proibindo de entrar, esse simples ato me deixa atônita. Ele não está se
afastando, pelo contrário, está mais presente que nunca. No mesmo instante,
sinto os olhos encherem de lágrimas e pestanejo além do normal para conter
o choro. Não quero quebrar esse momento importante.
— Eu realmente acreditei que conseguiríamos nos ajudar de maneira
mútua. Para mim fazia sentido, mas hoje vejo que as duas almas estavam
quebradas e esse era o agravante. Como poderíamos curar um ao outro
quando não podíamos lidar com nós mesmos? — Felipe arqueia as
sobrancelhas ligeiramente. — Eu não via assim na época. Acreditava poder
consertá-la. A cada recaída dela, pensava ser minha culpa não conseguir tirá-
la do fundo do poço. Era difícil assimilar a ironia da situação. Eu me sentia
vivo e feliz com ela, realmente acreditava que éramos capazes de passar por
cima dos problemas. Ao menos eu estava disposto a tentar o quanto fosse
preciso... Mas ela não. Conforme os dias passavam, Bianca se afundava
mais... em um lugar onde eu não podia alcançá-la. Ninguém podia.
Com um pesado suspiro, ele desvia o olhar para baixo. Suas mãos
permanecem firmes na minha cintura, porém.
— Você se via com ela para sempre — não soa como uma pergunta,
mas sim uma constatação.
— Sim. — Ele crispa os lábios, erguendo o rosto para me perfurar
com os intensos olhos azuis. — Sim, eu me via. Ainda éramos muito novos,
mas eu enxergava um mundo de possibilidades. Todas com Bia. E, por isso,
quando... quando aconteceu, eu a odiei. Com todas as minhas forças. —
Felipe se empertiga e percebo que o seu corpo o está traindo. Em toda a sua
rigidez é possível ver o quanto o assunto ainda mexe com ele. — Não é muito
nobre da minha parte, eu sei. Porém, a única pergunta martelando na minha
cabeça, na época, era: por quê? Por que ela fora tão egoísta a ponto de me
deixar sozinho, mesmo com toda a dor, toda a culpa? Para não enlouquecer,
eu foquei todas as energias na faculdade e, depois, na carreira profissional.
Com o tempo, o ódio se esvaiu, restando apenas a ferida aberta e impossível
de cicatrizar.
— Você ainda guarda rancor pelo que ela fez?
— Não. Tantos anos vivendo no limbo me trouxeram empatia...
ninguém decide tirar a vida a toa, Madu. Eu não conhecia o tamanho do
sofrimento dela. Ninguém jamais soube além dela mesma.
Concordo com a cabeça, mordendo o lábio inferior com força. Eu não
posso nem mensurar a dificuldade da situação, como um todo. Deve ser
difícil perder alguém a que amamos tanto e, agora eu compreendo, é natural
atribuir a culpa a si mesmo. Novamente, Felipe é o acusado. E o pior: por ele
mesmo.
— E, com isso, voltamos a pergunta inicial... — Sorrio, tentando
amaciar a rigidez entre nós. — Nunca mais se envolveu com ninguém antes
de mim?
— Depende do que você considera se envolver.
— Não entendi.
— Se por envolver você quer dizer namorar, então não.
— Mas teve outras mulheres — sussurro e, por alguma razão, meu
coração se comprime.
— Não sou de ferro... — diz ele, segurando o meu queixo com uma
das mãos e me forçando a encará-lo. — Depois de ter passado o luto, eu
tentei desesperadamente me livrar de todo esse veneno — Ele alcança a
minha mão e a posiciona sobre o próprio peito. —, e pensei,
equivocadamente, que o encontraria dessa maneira. Não me orgulho em dizer
que me aproveitei muito do status trazido com o sucesso profissional para
levar toda a sorte de mulheres para a cama.
— O quê? — Meus lábios se separam em surpresa. — Não acredito!
— Por que não? — ele pergunta suavemente.
Balanço a cabeça em negativa, submersa em uma profusão de
confusas sensações. Ele aproveita a deixa para continuar.
— Estive com uma mulher diferente a cada noite, por tempo o
suficiente para perceber que eu apenas patinava sem realmente ir para lugar
algum. Não era o que queria para mim. Além disso, era inútil tentar me
enganar. Eu não estava me libertando do passado. Então, quando entendi isso,
aceitei de bom grado a solidão.
— Quando nos conhecemos... fazia quanto tempo?
— Anos. Nunca parei para contar quantos, na verdade. — Ele pisca e
vejo a sombra de um sorriso nos seus lábios. No entanto, nem isso consegue
afastar o gosto amargo da boca.
— E porque foi diferente comigo?
— Honestamente? Não sei. Você apareceu e eu compreendi que não
tinha mais volta... — explica, encolhendo os ombros. — Apenas... aconteceu.
Como foi com você.
Inclino o tronco para frente, envolvendo-o em um abraço apertado.
Encaixo o rosto na curva do seu pescoço, sorvendo o perfume delicioso de
Felipe. Então percebo que o peso nos ombros dobrou o tamanho. Essa
conversa sugou as minhas energias. Quero dizer, é péssimo admitir isso, mas
eu simplesmente não consigo lidar com a ideia de ele já ter amado tanto
alguém. É por isso que, apesar de me sentir patética, não posso evitar a
pergunta subsequente.
— Se você pudesse mudar o passado e... de alguma forma... —
balbucio. — De alguma forma tê-la de volta, faria isso?
— Bia está morta — diz de maneira enfática. — Apesar de ter
experimentado uma vida dura, essa foi uma decisão unicamente dela e não há
como alterar as coisas. Você apareceu, no entanto, trazendo luz onde só
existia escuridão. Eu podia amá-la naquela época, mas agora é você quem
amo.
Encolho os ombros, sem encontrar uma palavra adequada para
oferecer como resposta. Felipe me estuda por alguns segundos e então suas
mãos vêm de encontro ao meu rosto, segurando-o com ternura, para se fazer
entender.
— Eu sei que está se perguntando se eu estaria com ela agora, caso
nada disso tivesse acontecido, mas é justamente essa a questão, Madu! Ela
não está! É você quem está aqui. Eu estava fadado a amá-la e depois perdê-la.
É somente com você que quero ficar e mais ninguém. Então não, eu jamais
mudaria nada.
MADU —
PIQUENIQUE
Com a cabeça recostada na janela do ônibus e os pensamentos
longe daqui, dou um pulo quando a melodia do meu celular começa a tocar,
despertando-me dos devaneios. Tateio a mochila em busca do aparelho e
ganho alguns olhares curiosos com a música quebrando o silêncio daqui de
dentro. Depois de um longo dia, todos estão cansados demais até mesmo para
conversar e desejam, mais do que tudo, chegar ao conforto de seus lares. E
isso me incluí, é claro. Depois de uma longa greve, os professores estão
desesperados para colocar o conteúdo em dia usando na metade do tempo,
por isso as aulas ficaram ainda mais puxadas.
Confiro o identificador e descubro ser mamãe quem está me ligando.
Com um sorriso nascendo no rosto, atendo a chamada.
— Madu! Que saudade!
— Oi, mamãe. Eu também! Como vocês estão?
— Morrendo de frio... Acabamos de jantar sopa de lentilha e nos
lembramos de você.
Suspiro, constatando que nada poderia ser melhor para uma noite fria
como esta. Então, de repente, percebo estar morrendo de saudade deles. Nem
parece fazer tão pouco tempo que estive lá, para ser honesta. Aconteceram
tantas coisas... a viagem aparenta ser uma memória distante. A minha
sensação é de contarem meses desde que os vi pela última vez. Então,
estalando de um transe, empertigo-me no banco e respondo com o máximo de
animação que consigo para o momento:
— Que delícia! Eu também quero, pode tratar de mandar para mim!
— Quando você vier de novo eu faço!
— Isso não é justo... sopa de lentilha só é gostosa no inverno.
— Ninguém mandou morar longe — ela brinca e posso jurar ter um
sorriso em seu rosto. — Mas, me diga, como você está? As provas já
começaram? E o Felipe?
Estremeço com o bombardeio de perguntas. Apesar de eu não passar
uma semana sem conversar com a minha família ao menos uma vez, a culpa é
sempre corrosiva pelo fato de eles não saberem sobre a mudança temporária
para casa do Felipe. Eu tento ser o mais honesta possível com todos os outros
detalhes da minha rotina, para compensar essa omissão que, embora seja por
uma boa causa, só deixaria as coisas mais complicadas se eles soubessem
agora.
— Estou bem! Sofrendo muito para retomar o ritmo de trabalhar e
estudar. Um pouquinho que eu fiquei fora da rotina e já está uma luta para
conciliar os dois... As provas começam semana que vem, mas estou cheia de
trabalhos... Jesus, deveria ser proibido todos os professores resolverem passar
atividades de uma vez só! — A risada dela ressoa do outro lado da linha e me
pego sorrindo feito uma idiota, enquanto vejo a cidade passar janela afora. —
O Felipe está melhorando... a cada dia ele fica um pouco melhor. Jamais
ficará realmente bem sem os remédios, mas estamos trabalhando nisso —
admito.
— E não está sendo estranho trabalhar com ele de novo, filha? — ela
pergunta pela quinta vez desde que lhe dei a notícia.
— Um pouco, na verdade. Não consigo misturar as coisas muito
bem... Eu só estou esperando ele encontrar outra pessoa. Depois vou tentar
achar um estágio na minha área.
— É a melhor coisa, Madu. Amor é amor, trabalho é trabalho — fala
categoricamente. — Agora nós precisamos conhecê-lo, né? Quero saber quais
são as intensões desse Felipe co...
— Mãe! — repreendo e nós duas caímos na risada.
Embora ela estivesse só brincando comigo, a ideia de apresentar
Felipe aos meus pais é convidativa ao ponto de me arrancar um sorriso.
“Quem sabe mais para frente?”, penso comigo mesma, deliciada com a
imagem se formando na cabeça.
Ao longo do caminho, mamãe e eu continuamos conversando
animadamente pelo telefone. Descubro que meus pais adotaram um
cachorrinho de rua e deram o nome de Beethoven. Mas, apesar dos meus
protestos para o fato de este ser deveras clichê, ela argumenta que ele tem
cara de Beethoven e nenhum outro nome daria tão certo.
Papai também fala comigo antes de eu desligar. Eu adoro os nossos
assuntos, porque são sempre mais descontraídos e espontâneos. Ele me
pergunta sobre o que eu aprendi hoje e me pede para tentar explicar (porque
só assim saberá se eu realmente aprendi). Passo minutos a fio falando a
respeito de Zoologia dos Cordados quando percebo estar quase chegando ao
ponto em que preciso descer. Por isso, despeço-me com uma sucessão
interminável de “amo vocês” e “estou com saudade”, desligando o celular em
seguida.
Pulo para fora do ônibus me sentindo um pouco melancólica e não me
surpreendo ao me deparar com a Mercedes branca me esperando. Percorro a
distância até o veículo e, tão logo sou recebida pelo calor confortável do lado
de dentro, cujo perfume delicioso do Felipe está impregnado em cada
centímetro, encontro-o com um sorriso torto no rosto. Ele se inclina sobre
mim, cobrindo meus lábios com os seus. Em uma fração de segundo, todos os
pensamentos são varridos da cabeça e eu perco o chão. Felipe tem o poder de
me fazer alcançar as nuvens...
Ao se afastar, com os lábios ligeiramente inchados, percebo seus
olhos obscurecidos e só então me dou conta de que ele se encontra com as
roupas de academia. Malhar assim tão tarde não é algo que ele faça
habitualmente, a menos que esteja se sentindo mal.
— Não gosto que você fique andando sozinha assim tão tarde — diz
ele, repousando a mão na minha coxa.
— Eu fiz isso por três anos. — Encolho os ombros. — Tá tudo bem,
realmente não me importo.
— Mas eu sim.
— E é por isso que vem me buscar no ponto, não? — Sorrio.
— De fato. Mas ficaria mais feliz se você fosse menos teimosa e
usasse o carro para ir até a faculdade.
— De jeito nenhum!
— Madu... — Ele me olha com uma expressão rígida, porém noto a
sombra de um sorriso pincelando os lábios. Sustentamos o olhar pelo tempo
necessário até eu cair na risada e ele me acompanhar.
Enquanto esperamos o portão abrir, seus dedos longos apertam minha
perna, subindo pela coxa e me fazendo estremecer. Contudo, antes de
alcançar a virilha, Felipe afasta a mão, a fim de estacionar o carro.
— Você precisa de dois ônibus para ir e mais dois para voltar... —
recomeça, ao passo em que caminhamos para dentro de sua casa sombria. —
Indo de carro, economizaria bastante tempo. Que você poderia usar
estudando... ou simplesmente ficando comigo.
— Hum... assim a oferta fica mais interessante!
— Estou falando sério! — afirma ele, no entanto está sorrindo. — Por
que escolher o caminho difícil se você pode optar pelo mais fácil?
— Você sabe que eu tenho medo!
— Medo por quê?
— É uma Mercedes, Fê! — grasno, perplexa por ele não entender a
gravidade da situação.
— E daí? Você fala como se fosse um animal selvagem.
Gargalho, dando um tapinha contra o seu peito. Ao chegar à cozinha,
atiro a mochila contra o balcão de mármore, sentando-me em uma das
banquetas da ilha central em seguida.
— Eu vejo dessa forma — admito.
— É só um carro, o máximo que pode acontecer é eu precisar mandar
ao conserto... Não é como se isso fosse um grande problema pra mim.
— Seu metido! — brinco e ele deixa um beijo no topo da minha
cabeça. — O problema é qu...
— Não aceitarei um não — Felipe me interrompe, segurando a minha
cintura com as duas mãos. — Eu me preocupo com você, jamais ofereceria o
carro se, de alguma forma, isso me incomodasse.
— Fê...
— Por favor.
— Você joga baixo!
— E isso faz de mim um ótimo advogado! — diz e pisca o olho,
derretendo-me inteira.
Saio do banho com uma nuvem de fumaça e encontro Felipe
sentado na cama, tão rígido quanto uma escultura talhada em mármore. Está
vestindo apenas uma boxer preta, apesar do frio. “Homens e o seu calor
excessivo...”, penso divertida, lembrando-me do meu pai.
Com os braços esticados ao lado do corpo, os olhos miram para lugar
nenhum, enquanto os pensamentos parecem vagar para longe daqui. Embora
tenha tentado disfarçar o estado de espírito soturno desde quando cheguei, eu
o conheço bem o suficiente para notar.
Vê-lo assim me deixa péssima. Quero dizer, é possível observar um
padrão acontecendo aqui: recaída, crise e breve melhora. Continuamente e
sempre de maneira cíclica, sua doença o está mantendo como refém. Eu não
posso permitir isso. Então me recordo do artigo dando dicas sobre como lidar
com um bipolar: “Saia da rotina: Ao menos nos fins de semana, tente
quebrar o ciclo, marcando programas diferentes”.
Tão logo o pensamento invade a cabeça, um sorriso enorme rasga os
meus lábios. É isso! Precisamos mudar o ciclo natural das coisas, Felipe não
pode esquecer ser o dono de sua mente. É ele quem manda e não o transtorno.
Aproveitando o fato de ainda não ter sido notada pelo meu advogato,
desço furtivamente, vencendo o medo deste casarão sinistro. Percorro a
cozinha até a adega, onde escolho (mesmo sem entender nada) um vinho. A
ideia de passar madrugada adentro acordada com Felipe, no meio da semana,
parece promissora. Perambulo para todos os lados, abrindo os armários em
busca de comidas que combinem com um piquenique noturno. O sorriso
permanece no rosto e, por isso, quando a voz de Felipe invade a cozinha e eu
me viro em sua direção, ele percebe que estou tramando algo.
— Não vi que já tinha saído do banho. — Suas íris percorrem a
quantidade considerável de lanchinhos espalhados pela ilha central. —
Acabamos de jantar... Está com fome?
— Ainda não. Mas vamos ficar. — Encolho os ombros, divertida com
a confusão em sua feição. — Onde encontro uma toalha?
— Toalha?
— Melhor ainda se for xadrez, porque, você sabe, está no manual do
piquenique que é preciso ter uma toalha xadrez!
Unindo as sobrancelhas, Felipe se adianta em minha direção, sem
conseguir dominar um sorriso.
— E faremos esse piquenique agora?
— Bom, eu não tenho nenhum compromisso. Você tem?
Ele balança a cabeça em negativa, rindo como um bobo. Suas mãos
seguram o meu rosto dos dois lados e fecho os olhos no mesmo instante,
esperando ele me beijar. Ao invés disso, ouço sua voz rouca penetrar os
tímpanos.
— Não sei o que fazer com você...
Fico na ponta dos pés, alcançando os lábios pelos quais sou viciada.
— Pode começar me beijando! — falo contra eles.
Felipe atende ao desejo e, no segundo seguinte, sinto os braços fortes
me prendendo contra o seu corpo de maneira protetora.
MADU —
TERRAÇO
Estaciono, lutando contra o tremor se espelhando pelo corpo.
Santo Deus, preciso vencer esse medo de dirigir o carro de Felipe, caso
contrário jamais conseguirei ir e voltar da faculdade todos os dias.
Observo Felipe pelo canto dos olhos e percebo que ele está se
segurando para não rir de mim. “Você me paga!”, penso comigo mesma.
— Esqueceu alguma coisa? — ele me pergunta, ao notar o fato de
termos parado em frente ao prédio onde moro.
— Não, aqui é onde faremos o piquenique!
Explico e ele assente, deixando transparecer uma nesga de
desapontamento. “Bobinho... ele acha que será no meu apartamento”.
Depois de nos vestirmos de maneira adequada para o frio rigoroso
desta noite e juntarmos toda a sorte de comidas para passar a madrugada,
Felipe me perguntou se eu tinha pensado em um lugar seguro onde
poderíamos ficar tranquilamente. Porém, contrariando a sua constante
necessidade de controlar a situação, arranquei a chave do carro de seus dedos,
com um sorriso maroto no rosto. Em parte porque realmente queria deixá-lo
curioso, mas também porque seria bom praticar um pouco no volante com ele
por perto.
— É surpresa! — eu disse, arrancando um sorriso safado de Felipe,
seguido pela impagável expressão de cachorro sem dono.
Estou certa de que ele deve ter imaginado mil possibilidades pelo
caminho e, por isso, está com essa cara engraçada neste momento. No
entanto, a verdade é: eu tive a ideia do lugar antes mesmo de pensar no
piquenique.
Pulo para fora do carro, sendo recebida pelo frio e estremecendo com
a sensação térmica semelhante a estar no polo norte. Droga, esse inverno
parece interminável! Eu simplesmente não aguento mais.
Contorno o carro, encontrando Felipe com uma cesta de vime
grandalhona, onde nossos preparativos se encontram amontoados. Ele
estende a mão livre para mim e entrelaço os dedos gelados nos dele. Agora
começou a me passar pela cabeça que um piquenique seria bem melhor no
verão, mas tudo bem. O importante é ficarmos juntos. Teremos a noite toda
só nossa.
Tão logo adentramos o elevador, segundos depois, um arrepio
percorre a minha espinha como um raio e, ao notar que me enrijeci, Felipe
gargalha, puxando-me contra si.
— Lembrou-se de alguma coisa? — pergunta ele, sorrindo
cinicamente para mim.
— Jamais verei qualquer elevador com os mesmos olhos...
— Nem eu! — Ele me puxa para um beijo e eu suspiro ao sentir os
braços fortes me apertando contra o seu corpo. Não existe nada no mundo
inteiro que eu goste mais do que estar aconchegada nele.
É somente quando o elevador para que ele percebe o fato de a viagem
ter demorado além do habitual. Então os olhos de safira me procuram cheios
de dúvida, enquanto eu caminho para fora.
— Em qual andar estamos?
— No último — explico, sorrindo genuinamente. —, onde fica o
terraço. — Estendo o molho de chaves, chacoalhando-o no ar como se isso
respondesse qualquer questão.
Ele arqueia as sobrancelhas e os lábios se entortam para o lado, em
um sorriso. A mão livre vem de encontro a minha cintura ao que giro de
costas para ele, concentrada em destrancar a porta. Somos recebidos por um
espaço enorme a céu-aberto, onde estive uma única vez com os meus pais,
logo que me mudei, há pouco mais de três anos. Tranco-nos para fora,
ganhando um olhar divertido de Felipe.
— É permitido vir aqui?
— Sim. Todos têm a chave.
— Então podemos ser pegos a qualquer momento?
Nossas risadas ecoam pelo ar, parecendo ainda mais altas no silêncio
imaculado daqui de cima. Retomo os passos em direção às muretas de
proteção, sendo acompanhada por ele.
— Eu não acho que alguém levantaria no meio da madrugada, com
um frio desses, para vir até aqui. Até porque, não há muito para fazer.
— Preciso discordar, Madu. Existem tantas possibilidades para um
lugar como este...
Ele pisca o olho esquerdo, inclinando ligeiramente a cabeça para o
lado. Demoro alguns segundos para entender a implicação por trás destas
palavras e, quando isso acontece, é impossível dominar uma gargalhada.
Felipe tem um fraco para transar em lugares nada convencionais,
principalmente se existe a mais remota possibilidade de sermos pegos. “Um
homem da lei que gosta de quebrar as regras”, penso comigo mesma,
mordendo o lábio inferior com força.
Felipe deixa a cesta no chão, percorrendo o trajeto até a parede em
miniatura, a qual nos protege de uma queda assustadora. O vento lambe
nossos rostos com veemência, jogando nossos cabelos para todos os lados.
Acima de nós, o céu, tão negro quanto Ônix, encontra-se repleto de estrelas,
como se infinitos cristais Swarovski houvessem sido espalhados por ele. A
lua cheia nos banha com uma pálida luz azulada, brilhando sobre nossas
cabeças de maneira imponente. À nossa frente, um mar de edifícios de
tamanhos e formas variadas nos recebe com luzes parecendo vagalumes
voando pela noite.
Prendo a respiração diante de tamanha beleza e percebo Felipe tão
boquiaberto quanto eu. Ele suspira, repousando o pesado braço sobre os meus
ombros e me puxando contra si. Inspiro profundamente, sorvendo seu
perfume delicioso. Estou enfeitiçada pelo momento como um todo.
— Ótima escolha... — sussurra, deixando um beijo no topo da minha
cabeça.
— Não tinha como ser diferente com você do meu lado!
— Isso não está certo! — ele protesta de maneira teatral. — Se existe
alguém que precisa ser mimado aqui, esse alguém é você e não eu.
— Agora eu precisarei discordar, doutor Antunes! — digo, levando as
mãos ao seu rosto. — Essa noite é para você não esquecer...
— Ah, é? — indaga. — Não me esquecer do quê?
— Que eu te amo — falo baixinho contra o seu ouvido, deixando os
lábios roçarem em sua pele. — Que minha vida não tem sentido se você não
estiver nela... que eu não vou desistir de tentar te fazer feliz, porque nós dois
só funcionamos juntos!
Ouço um gemido baixinho vindo dele e estremeço com o som
delicioso.
— Você me deixa louco, Madu!
— Mais? — brinco, fazendo-o gargalhar gostosamente.
— Bem observado... acho que você me deixa são, então.
Seus dedos se enterram nos meus cabelos pela nuca e, no mesmo
instante, perco a força nos joelhos. Santo Deus, esse homem só sabe jogar
baixo!
— Estou brincando, eu gosto da loucura — sussurro contra a orelha
dele, na tentativa de deixá-lo arrepiado.
Não sei se funciona, mas ao menos ganho outro gemido alucinante.
— Até a minha?
— Principalmente.
Seus braços se fecham ao meu redor em um abraço apertado, o qual
rouba o ar dos pulmões. Sinto sua respiração ricochetear contra o meu
próprio ouvido e sou eu a ficar inteira arrepiada.
— Ah, Madu! — Suspira Felipe. — Você é perfeita para mim!
Percebe o quanto sou afortunado por tê-la?
— Shhh! — colo nossos lábios. — Se você continuar, serei obrigada a
tirar a minha roupa... e está frio demais para isso!
Felipe gargalha, balançando a cabeça em negativa.
— Parece que o vinho veio a calhar.
Entrego-me à risada e mostro a língua para ele, encaminhando-me até
a cesta e alcançando a toalha de mesa. Infelizmente, Felipe não tinha uma de
trama xadrez, como pede o guia oficial do Piquenique. Por isso, contentamo-
nos com a de tema natalino que, segundo ele, foi dada por sua mãe logo
quando ele se mudou para a própria casa, contudo, jamais fora usada.
Depois de brigar contra o vento para conseguir estender o tecido no
chão, procuro pela garrafa de vinho e o abridor, oferecendo-os para ele em
seguida. Acomodo-me no chão e então caço as taças, enquanto ele se ocupa
em abrir a garrafa. Ouço um estalo abafado da rolha sendo liberada e, logo
depois, Felipe se senta ao meu lado, servindo-nos.
— Precisamos brindar!
Ele ergue a própria taça com um sorriso de canto pincelando os
lábios. Levo algum tempo pensando, no qual seus olhos não desgrudam de
mim nem por um único segundo.
— Um brinde à vaga de emprego responsável por mudar as nossas
vidas!
Tão logo as palavras saem da minha boca, nós dois rimos como duas
crianças antes de conseguir tomar o vinho tinto. Ele é tão saboroso que me
pego lambendo os beiços.
— Assim você me faz querer tirar a sua roupa, sem me importar com
o quão frio está aqui em cima...
— Você vai precisar de mais vinho para isso, Fê.
— Isso não é um problema, visto que temos uma garrafa inteira — ele
provoca, sem parar de sorrir por um único segundo.
“Assim é bem melhor”, mentalizo, feliz com a leveza nos rondando.
Beberico um pouco mais, observando-o buscar algo para mastigar dentro da
enorme cesta de vime.
— Foi bom você ter falado em emprego. Precisarei viajar na próxima
semana.
— Sério? — Aprumo-me no lugar.
— Tenho reunião na filial de Porto Alegre... Eu te chamaria para ir
comigo, mas suas aulas voltaram agora, sei que vai recusar.
— Certamente, sim — assumo. — Você ficará muito tempo fora?
— Coisa de uns quatro dias. Nem vai dar tempo de sentir saudades!
— Ele sorri, enterrando o rosto na taça.
Encolho os ombros, pensando nas últimas palavras. Felipe não
poderia estar mais errado... Só de ir para a faculdade e voltar eu já sinto
saudades, imagine então a eternidade de quatro logos dias!
Sem me deixar protestar, no entanto, ele quebra o silêncio novamente:
— Assim que eu voltar de viagem, conseguirei procurar com calma
uma nova assistente pessoal e você estará livre de mim. Ao menos
parcialmente.
— Ai, droga! Você e esse papo de uma nova assistente. Uma!!! Por
que não um novo? — pergunto e ele ri, parecendo deliciado com o meu
repentino mau humor.
— Você fica ainda mais linda irritada, sabia?
— Estou falando sério! — tento parecer brava, mas sou traída pelo
sorriso. É impossível não ser contagiada pelo olhar carente feito para mim
neste exato momento! Cretino, sabe direitinho como me deixar louca! — Não
estou gostando di...
— Venha cá! — ele me interrompe, segurando o meu rosto com força
para me beijar e me consumindo com todo o seu desejo ardente.
Quando se afasta ligeiramente de mim, sou derretida pelo brilho
malicioso em suas gemas azuis cristalinas. Antes que eu possa ter uma
reação, porém, sinto-o pressionar meu corpo para trás, empurrando-me para
me fazer deitar no chão.
MADU —
QUEBRA DE CICLO
As mãos habilidosas de Felipe sobem a minha saia até a calcinha
ficar à mostra por baixo da meia calça. Com um sorriso safado tomando os
lábios, ele desliza ambos pelas minhas pernas, deixando-me nua da cintura
para baixo.
Apesar do coração imitando a bateria de uma escola de samba, não
arrisco nenhum movimento para impedi-lo. No fundo acho que Felipe está
me contagiando com o seu gosto por lugares exóticos. Deitada onde estou,
tenho a visão do céu, o qual parece infinito. Não poderia ser mais perfeito.
Seus dedos passeiam pelas minhas canelas, subindo sem pressa e
contribuindo para o arrepio crescente. Inspiro profundamente, conforme as
unhas dele se fundam na minha carne, em uma massagem selvagem e lasciva.
— É impossível resistir a você, minha menina.
Não existe mais o frio. Embora a brisa continue roçando a minha pele
em intervalos ritmados, sinto-me como se todos os membros estivessem em
brasa. Felipe é um combustível para todo o desejo preso dentro de mim.
Somente ele é capaz de me deixar em combustão.
Quando seus lábios vão de encontro a parte interna da minha coxa,
deixo um gritinho de surpresa escapar, ecoando por todo o terraço. O contato
morno deles é delicioso o bastante para eu desejar experimentar no corpo
inteiro. Minha nossa, nada que Felipe fizer jamais será o bastante para mim.
Eu sempre precisarei de mais e mais... quero ter uma overdose deste homem
delicioso.
Intercalando beijos suaves com mordidinhas na ponta dos dentes, ele
avança para o meio das minhas pernas e me contorço inteira. O tesão corre
pelas veias em uma velocidade surpreendente, de modo que o anseio por
Felipe aumenta de maneira desenfreada.
Ele raspa a ponta do nariz pelo meu sexo em movimentos
provocativos e deliciosos. Sua barba por fazer roça a minha coxa, causando
um misto de cosquinha e formigamento.
Oh, Céus...
Meus músculos estremecem, pedindo por mais e, como se lendo a
minha mente, os dedos longos sobem pelo meu tronco, em busca dos seios.
Sinto o seu toque desesperado e compreendo que o seu desejo é na mesma
medida que o meu. Excitada, fecho os olhos, embalada pelo cheiro delicioso
de Felipe que parece ainda mais intenso. Ou talvez eu que esteja com os
sentidos aguçados...
Então ele me abocanha, com uma fome insaciável. Sua língua passeia
pelo meu corpo com vontade, provando-me inteira. Felipe muda os
movimentos, a pressão e a velocidade de acordo com as minhas reações.
Quanto mais a minha respiração se torna curta e rápida, mais ele parece
satisfeito consigo mesmo e, aos poucos, seus gemidos baixos passam a
acompanhar os meus gritos frenéticos. No entanto, ele não parece se importar
com o barulho. Abro os olhos para espiá-lo, encontrando-o com uma
expressão deliciada. As sobrancelhas unidas formam sulcos na testa e os
lábios entreabertos o deixam ainda mais sexy.
Tão logo nossos olhares se cruzam, Felipe decide ser o momento
certo para me enlouquecer, pois, ao mesmo tempo em que um sorrisinho torto
rasga sua boca, um dos dedos me penetra devagarzinho. Envergo a lombar e
o tiro do campo de visão. Mas isso pouco importa, afinal o desejo acaba de
me cegar. Santo Deus, isso é tão bom...
Coordenando os movimentos da língua com as investidas do dedo, ele
me faz esquecer de tudo. Só existe essa profusão de sensações maravilhosas
que Felipe sabe provocar com maestria. As minhas extremidades começam a
tremelicar suavemente e os músculos do ventre se contraem em espasmos.
Ciente disto, Felipe coloca outro dedo dentro de mim e se concentra
em sugar o meu clitóris cheio de apetite. Agarro seus cabelos curtos na
medida do possível, sentindo uma irrefreável onda elétrica se espalhar pelo
corpo inteiro.
— Fê! — grito de maneira desentoada, sentando-me, ao atingir o
ápice do prazer.
Com o peito subindo e descendo e os olhos fechados à medida em que
luto para restabelecer o autocontrole, assusto-me ao sentir a boca de Felipe
contra a minha. Cedo ao beijo, sentindo o meu sabor misturado à sua saliva.
Apertando-me com os braços protetores, ele me esmaga com todo o seu
amor, lembrando-me de que toda a luta vale a pena, afinal, a recompensa é tê-
lo para mim.

Observo seus bíceps se contraindo enquanto Felipe gira o volante


para a esquerda. Apesar de ter guiado o carro até o prédio, não achei que seria
uma boa ideia voltar no volante tendo em vista o fato de não conseguir nem
ao menos me equilibrar sobre as pernas. Ele tinha razão, o álcool viera a
calhar.
Espio as horas no painel para descobrir ser pouco mais de quatro da
manhã. “Estamos tão ferrados!”, penso comigo mesma, sem conseguir
dominar o sorriso. Apesar de saber que ficarei exausta amanhã, estou certa de
ter valido a pena. Ver Felipe tão leve e bem humorado é a maior recompensa.
Essa noite não foi apenas um momento especial partilhado por nós, mas
também um marco, simbolizando esperança.
Nesta noite, eu decidi que poderíamos reverter a situação e ele
agarrou a ideia comigo.
Hoje nós quebramos o ciclo.
Felipe aperta a minha coxa suavemente durante o tempo em que
esperamos o portão de sua casa abrir. Encaro suas íris translúcidas e sinto um
calor irradiar dentro de mim. Apesar de toda a maré ruim, parece que
finalmente estamos aprendendo a remar nesta relação tão intensa.
— Eu amei a nossa noite — sussurro, soltando o cinto de segurança.
Uma parte de mim está louca para tomar outro banho quentinho e se
jogar embaixo das inúmeras camadas de edredons da cama King Size de
Felipe, no entanto, a outra metade não quer abrir a porta do carro e encarar o
fim do passeio. Por que os melhores momentos de nossa vida precisam passar
em um piscar de olhos?
Como se partilhasse os mesmos sentimentos, Felipe enrosca os dedos
nos meus cabelos, acariciando-me de maneira cuidadosa. Fecho os olhos,
desejando fervorosamente que este instante não termine nunca.
— Obrigado por permanecer aqui... por ser tão persistente, tão
teimosa comigo. É exatamente disso que preciso. Da sua paciência, do seu
cuidado — ele enuncia as palavras sem pressa, sua voz rouca causando
arrepios constantes em mim. —, e da forma elétrica como você leva a vida.
Você me tirou de um buraco muito fundo essa noite, assim como continua
fazendo dia após dia, sem nem ao menos perceber.
— Droga, Fê! Você está querendo me despir outra vez, né?
A gargalhada dele irrompe no ar no segundo seguinte. Eu adoro vê-lo
rindo, amo a forma como seus olhos formam pés de galinha e as bochechas
ficam avermelhadas. Se existe uma forma de Felipe ficar ainda mais bonito
do que já é, certamente é quando está rindo tão gostosamente, como agora.
— Você não toma jeito! — afirma ele, puxando-me com os braços
fortes contra si.
Enterro a cabeça na curva do seu pescoço, sorvendo o perfume
maravilhoso encontrado ali, pelo qual sou viciada. Então permanecemos
unidos pelo que parecem horas, incapazes de colocar um ponto-final nesta
noite maravilhosa.
Tão logo nos desvencilhamos, encontro-o com uma expressão
pensativa e não posso deixar de perguntar:
— O que foi?
Felipe me tortura com o silêncio enquanto pulamos para fora do carro
e percorremos o caminho até a entrada. Ele só responde ao estarmos
protegidos do frio, no hall.
— Seu aniversário está chegado, não?
— Olha só, você se lembra! — Sorrio.
— Pode parecer que não, mas apesar de você ser uma tagarela, eu
presto atenção em tudo.
A risada escapa dos meus pulmões, rondando-nos. Mostro a língua
para ele e, em seguida, falo de maneira teatral.
— Felipe Antunes, você está insinuando que eu falo demais?
— Receio que sim. — Ele pisca um dos olhos, mordendo o lábio
inferior.
Seu braço direito me envolve pela cintura ao passo em que subimos o
lance de escada em direção ao quarto. Nossas risadas parecem intermináveis.
— Não acredito! Está afirmando na cara dura! Então eu te canso com
toda a minha falação?
— Jamais me cansaria de você, Madu — responde ele, deixando uma
mordidinha no meu maxilar. Sinto uma corrente elétrica percorrer a espinha,
eriçando todos os pelos encontrados no caminho.
— Dane-se — falo, deslizando a saia pelas pernas. — Não vamos
dormir essa noite!
MADU —
BRIGADEIRO
O cheiro delicioso de chocolate penetra as minhas narinas,
deixando-me momentaneamente desnorteada. Endireito a coluna, tirando o
caderno do colo e, em passos ligeiros, caminho até a cozinha, encontrando
Vanessa chupando o dedo indicador com vontade.
— Caraca... esse brigadeiro ficou maravilhoso! Eu me superei!
— Sei! — brinco, pegando uma colher no escorredor e avançando até
o fogão. — Só acredito vendo. Ou melhor, provando!
Rimos feito crianças enquanto me ocupo em raspar uma quantidade
razoável do doce. Tão logo o saboreio, não consigo evitar um longo gemido
de satisfação, responsável por arrancar um sorriso vitorioso de Vanessa. Nós
duas sabemos muito bem o quanto ela é disparadamente melhor na cozinha
do que eu.
— E então? — Ela provoca e, como resposta, jogo um guardanapo
contra o seu rosto.
— Nessa, você é tão insuportável!
— Pode até ser... mas isso não muda o fato de eu ser um arraso com
brigadeiro de colher!
— Sim. E essa é uma das razões para eu te amar tanto!
Inclino-me sobre a panela a fim de pegar mais um pouco de
brigadeiro, mas então ela me dá um tapinha ardido na mão, unindo as
sobrancelhas em uma expressão séria.
— Só depois de pronto!
Reviro os olhos de maneira teatral e jogo a colher dentro da pia,
arrancando mais risadas dela. Então abandono a cozinha a procura do meu
celular.
Hoje completam três dias que Felipe viajou para Porto Alegre. Três
dias os quais se parecem com uma torturante eternidade. Eu já imaginava que
sentiria muita saudade dele, o que eu não sabia é que seria tão estranho não
vê-lo na maior parte do dia. Quase como se uma parte de mim estivesse
constantemente em falta — e, no fundo, está mesmo.
Sua viagem foi a razão principal para eu ter voltado ao meu
apartamento. Isso e o fato de Vanessa nem sonhar que eu estou morando com
ele temporariamente. No entanto, eu não poderia ficar lá sozinha. Não quando
cada centímetro daquele lugar me causa arrepios. É como se eu pudesse sentir
toda a angústia acumulada por anos a fio, e ela pulsa ininterruptamente, com
uma força esmagadora. Toda a dor, todo o ódio, toda a melancolia
permanecem lá e talvez sejam um agravante na doença de Felipe. Uma
energia negativa que considero pesada demais para suportar sem ele.
Por um lado, sinto-me aliviada em estar no meu lar que, embora
pequeno demais, é aconchegante na medida certa. Por outro, a culpa em
deixar Leonor para trás naquela casa macabra incomoda tanto quanto uma
farpa espetada no dedo. Porém, isso é algo com que precisarei lidar.
De toda forma, Felipe sabe da minha vinda para cá. Expliquei para ele
o quanto seria desgastante ficar lá sozinha por quase uma semana e ele foi
compreensivo. Sorriu torto antes de me falar com um tom
desconcertantemente sexy:
— De fato, seria realmente insuportável permanecer em qualquer
lugar sem a minha presença. Quem aguentaria?
Sorrio com a lembrança, fisgando o lábio inferior. Eu amo vê-lo bem-
humorado, adoro quando faz suas piadinhas. É simplesmente irresistível
contemplar o sorriso safado nascendo nos lábios, seguido pela expressão de
cachorro sem dono, tão dele. Céus, sou fissurada neste homem!
Sou desperta dos pensamentos por Vanessa e o aroma delicioso de
brigadeiro a acompanhando. Giro nos calcanhares, ficando de frente para ela
e suspiro ao me dar conta de toda a matéria que ainda precisaremos estudar
madrugada adentro.
— Estamos ferradas — gemo, atirando-me no sofá.
— Ferrada é pouco. Não chegamos nem na metade do conteúdo! E eu
já estou confundindo genética com microbiologia...
Minha gargalhada a faz pular de susto no lugar para depois me
acompanhar na risada.
— Sua boba. Fica falando isso, só que não tira menos de 8!
— Como se você não fosse igual!
— Não somos amigas a toa, né? — digo, cutucando as costelas dela
com o indicador só para irritá-la. Nessa me empurra para o lado com o
bumbum, como protesto. — Somos iguais... tirando a parte de você ser
natureba. Aliás, que milagre foi esse de querer comer brigadeiro?
— Ai, amiga, nós merecemos! Se precisaremos passar a noite inteira
no limbo, pelo menos que seja comendo uma coisa bem gostosa!
Vanessa estende uma colher limpa em minha direção, a qual agarro
com precisão. Ocupamo-nos em entupir nossas correntes sanguíneas com
doce, parecendo duas formigas desesperadas por uma boa quantidade de
açúcar. Tirando o som das colheres tilintando contra o metal da panela, só
existe uma sucessão interminável de “hmmm” e “que gostoso”, vindos de
ambas.
Então, num rompante, ela se empertiga no sofá, como se tivesse
acabado de se lembrar de algo muito importante. Sua expressão é um misto
de excitação e incredulidade.
— Madu, sua louca! Quando você pretendia me contar que está indo e
voltando da faculdade com uma Mercedes? — pergunta e é impossível não
notar a nesga de chateação por eu ter omitido isso dela.
— Desculpa, amiga... ainda não digeri a ideia muito bem. É sempre
um pânico pegar no volante daquele carro.
— Pânico? Por que, sua tonta? Eu, por exemplo, estaria no céu.
— Você dirige desde que tirou carteira! — gesticulo, para me fazer
entender. — Eu dirigi umas 5 vezes nesse intervalo de tempo. E não era um
carro custando mais do que o meu apartamento!
Vanessa joga a cabeça para trás, rindo gostosamente.
— Você não existe! Faz quanto tempo?
— Desde que Felipe viajou. Ele insistiu tanto para eu usar o carro...
ficou dizendo que é perigoso e blá, blá, blá.
— Você sabe que é mesmo — ela diz de maneira enfática. — Mas,
nossa, então vocês dois estão mesmo ficando sério, hein?
Sinto as bochechas pegarem fogo. Se ela soubesse o quanto... Em
momentos assim, é péssimo esconder um passo tão importante das pessoas
que mais amo na vida, porém, no meu coração existe a certeza de ser por um
bom motivo. Tão logo as coisas se acertarem, Felipe e eu poderemos voltar a
ser um casal normal e eu não precisarei esconder mais nada.
— Está na hora de eu conhecer pessoalmente esse advogato! —
Vanessa afirma, tomando o meu silêncio como vergonha.
— Ai, meu Deus! Você e a minha família só podem ter se unido
contra mim! Todo mundo quer conhecer o Felipe!
— É inevitável, amiga! Estamos apenas curiosos... E, quanto ao carro,
se ele insistiu, não há porque ficar com medo. Ele já deve saber que namora
uma barbeira!
— Nessa, é sério, por que eu sou sua amiga mesmo? — pergunto e
explodimos em risadas.

Pego uma toalha de banho dentro do guarda-roupa e entrego para


Vanessa, que me espera em frente ao banheiro. Ela assente com a cabeça,
parecendo cansada demais para responder. Eu compreendo perfeitamente,
depois de horas a fio com a cara enfiada nos livros, estou contando os
segundos para poder me atirar contra a minha cama e dormir — ainda que
por poucas horas. Aproveito a oportunidade para mandar uma última
mensagem para Felipe, embora a possibilidade de ele já estar dormindo seja
enorme.
Meus olhos recaem para a confusão de anotações, livros e cadernos
espalhados pela sala, fazendo-me questionar se em algum dia encontrarei
novamente o meu celular nesta bagunça. Quase como se fosse uma resposta
divina, ouço-o tocar, a melodia abafada sugerindo estar soterrado por papéis.
Demoro um pouco para encontrá-lo e, por isso, atendo a chamada sem
conferir o visor. Porém, exatamente enquanto levo o aparelho à orelha, passa-
me pela cabeça a estranheza de uma ligação tarde da noite, no meio da
semana. Não tenho tempo de pensar em nada mais, no entanto, pois ouço
uma voz conhecida do outro lado da linha responsável por levar o coração à
boca. Renato.
— Te acordei?
— O que você quer? — pergunto, interrompendo-o.
— Você já foi mais educada, docinho...
“Este maldito apelido...”, penso, sentindo o rosto esquentar de raiva.
— Renato, não estou com paciência! Existe algo que queira me dizer
ou já posso encerrar a chamada?
— Ora, ora. Alguém está estressada. O que a falta de um homem não
faz, não é?
Tão logo as palavras entram pelos meus tímpanos, perco a força das
pernas.
— Calma, o quê? — titubeio.
— Engraçado você não acompanhar o Antunes na viagem, dessa vez.
Ele ficou com medo da concorrência?
— Eu... — minha voz morre no ar. Na minha cabeça existe uma
confusão de pensamentos se atropelando, com uma única pergunta
reverberando sem parar: como? Como ele pode saber disso?
— Mais engraçado ainda foi você ter voltado para o seu apartamento
neste intervalo de tempo... eu, por exemplo, preferiria desfrutar dos luxos da
casa de Felipe, mas isso vai de cada um. Não posso negar, no entanto, que
considero a relação de vocês deveras interessante.
Em um impulso, arranco o celular da orelha desligando-o com os
dedos trêmulos. “Minha nossa senhora!”, meu subconsciente suspira, tão
apavorado quanto eu. Sinto a pressão cair de uma só vez e preciso me sentar
para não me estatelar no chão.
Estou apavorada. Não, é mais do que isso. Estou em choque!
Renato me ligar tão tarde da noite para me falar essas coisas não
mostra apenas que estou sendo espionada, mas principalmente, que ele quer
que eu saiba disso.
Jesus, eu só desejo que esse pesadelo acabe!
MADU —
CHOQUE DE REALIDADE
Eu tinha acabado de pisar na faculdade quando Felipe me ligou,
avisando que já estava em sua casa novamente. Apesar de a viagem ter
durado tão pouco, o meu coração disparou no mesmo instante com a notícia
e, depois disso, tornou-se impossível prestar atenção na aula. Como Vanessa
faltou, as horas demoraram ainda mais para passar e foi uma tortura tentar me
concentrar enquanto meu corpo inteiro clamava por Felipe. Senhor, como ele
consegue me afetar tanto?
Por isso, neste momento, encontro-me dirigindo como uma louca para
o endereço dele, sem me importar muito (pela primeira vez) com o fato de
estar guiando uma Mercedes. A cada semáforo encontrado vermelho,
tamborilo os dedos nervosamente no volante, louca para estar entre os braços
dele, louca para ter seus lábios passeando por mim. Só então me passa pela
cabeça que tem poucas roupas minhas lá e o certo seria passar no meu
apartamento antes, para providenciar uma nova mala. Pondero a hipótese de
desviar a rota, mas logo a descarto. Quero dizer, amanhã é sábado! Quem
precisa de roupas com um homem daquele? Eu certamente não!
Sorrindo como uma criança que acaba de ganhar um algodão doce
gigante, paro em frente à mansão imponente do meu advogado e até mesmo o
tempo levado para o portão abrir por completo me parece angustiante. Estou
me sentindo como uma adolescente apaixonada, porém o que posso fazer se
Felipe faz isso comigo?
O clima está bem mais ameno comparado à madrugada do nosso
piquenique. Neste momento, estou usando apenas uma camiseta de mangas
compridas e uma calça jeans — pois é, o que a saudade não faz com uma
pessoa, não? — e me sinto completamente confortável. E, para uma pessoa
friorenta, isso significa muito.
Aperto o passo e entro na casa sombria de Felipe, estremecendo com
o quão sem vida ela parece. Chacoalho a cabeça, a fim de afastar o
pensamento. No fundo sei se tratar apenas do meu psicológico, nada aqui é
realmente macabro ou melancólico. No entanto, mesmo sabendo disso, é
impossível me livrar da sensação de que as paredes me observam. Embora
enorme, esta mansão é estranhamente claustrofóbica. Sigo em direção à
cozinha, sendo guiada pela luz acesa. O demais cômodos permanecem
escuros, contribuindo com o mau agouro cismando em me acompanhar.
Deparo-me com Felipe sentado sobre o balcão da pia, os olhos
injetados e trajando roupas de academia. Em uma das mãos, um copo com
um líquido castanho-avermelhado pela metade e, ao lado, uma garrafa de
Whisky recém-aberta. “Ah, droga... isso parece tão nostálgico”.
Antes da viagem nós estávamos tão bem que foi até fácil me esquecer
do fato de, na verdade, não poder ser o mais distante disto. Felipe tem uma
doença séria. Ele nunca estará realmente bem enquanto lutar para aceitar a
própria condição. Nunca terá a redenção sem procurar por ajuda.
Aproximo-me dele e só ganho a sua atenção ao parar na sua frente,
com uma expressão apreensiva no rosto. Ele me prometeu nunca mais
descontar as frustrações em mim e, embora esteja de fato cumprindo a sua
palavra, nunca se sabe. O Transtorno Bipolar tem o poder de transformá-lo
em outra pessoa. Uma que é cruel e impaciente com aqueles que o amam.
Sem dizer palavra alguma, Felipe estende os braços, fazendo sua
melhor expressão de carência. Abro um sorriso enorme e corro para o abraço,
feliz por constatar que ele se sente da mesma maneira como eu. A colisão dos
nossos corpos provoca um baque surdo. Deposito nos braços a força
correspondente a toda saudade guardada aqui dentro de mim. Espalho uma
sucessão interminável de beijinhos pelo rosto dele, arrancando uma risada
gostosa.
— Você está proibido de sumir assim de novo!
— É só ir comigo da próxima vez! — Ele sorri. — O hotel tinha
piscina aquecida... um verdadeiro desperdício sem você lá.
— Seu safado! — rio, deixando uma mordida no seu pescoço. Felipe
estremece, segurando-me pela cintura e me afastando o suficiente para
conseguir me encarar.
— Nunca neguei ser um.
Ele pisca para mim, erguendo as mãos para o alto como se pedindo
desculpa silenciosamente. Sinto um calor gostoso percorrer os membros,
carregando alívio com ele. Apesar de estar visivelmente no meio de uma
recaída, consigo perceber que está se esforçando para agir normalmente — e
isso já é um grande passo.
— Como foi na prova? — pergunta, deslizando os dedos pela minha
cintura carinhosamente.
— Bom, acho que passar a madrugada estudando foi uma escolha
sensata, estava dificílima! Mas consegui resolver tudo.
Tão logo as palavras pairam pelo ar, a memória da ligação de Renato
invade a minha cabeça como um raio. Engulo em seco, coçando a nuca com
nervosismo. Começo a ponderar se é uma boa ideia contar isso agora,
levando em conta o seu estado de espírito, porém Felipe me conhece bem o
suficiente para ler as minhas emoções. Depois de me encarar por alguns
segundos, ele pergunta:
— Se foi bem, por que está com essa carinha preocupada?
— Renato me ligou de novo! — falo sem rodeios. — Na noite que a
Vanessa dormiu em casa. O celular tocou de madrugada e eu estava com
sono, achei que pudesse ser você... acabei atendendo sem olhar. E ele sabia,
Fê.
— Sabia o quê? — pergunta, enrijecendo.
— Sabia tudo! Que você estava fora da cidade. Que moramos juntos.
Que eu não estava aqui.
— Calma, como é? — Ele leva o punho fechado em frente à boca,
parecendo perplexo e furioso. — Aquele bastardo! Eu... eu não acredito. Isso
é loucura... Renato perdeu o juízo!
Fisgo o lábio inferior, na tentativa de conter a vontade de chorar.
Como não podia contar para mais ninguém, a lembrança esteve reprimida na
memória. Eu estava lidando como se isso não tivesse acontecido comigo, mas
sim com outra pessoa e eu apenas houvesse presenciado a situação. Agora
que desabafei, uma onda de nervoso me engole, arrastando-me para um mar
de pânico.
— Eu fiquei com tanto medo... — admito em um sussurro.
Felipe une as sobrancelhas, deixando a testa lotada de vincos. Seus
braços voltam a me apertar contra o próprio tronco, de maneira protetora e
reconfortante.
— Eu estou aqui agora, minha menina. Nada vai te acontecer. Ele não
vai tocar um único dedo em você! Eu prometo!
— Se eu não tivesse dado corda pra ele quando nos conhecemos... —
começo, no entanto sou interrompida por Felipe.
— Isso não é culpa sua, Madu! Está me ouvindo? Tudo bem ele
persistir uma ou duas vezes, mas isso já ultrapassou a linha da normalidade
há muito tempo. Monteiro está doente. Nada que você pudesse fazer mudaria
isso. Apenas...não se torture. Vamos dar um jeito.
— Espero que sim — grasno.

Saio do banheiro depois de um tempo considerável e me deparo com


o quarto vazio. Como Felipe tomou banho antes de mim, imaginei que estaria
me esperando na cama, como de costume. Por isso, é inevitável não estranhar
a situação.
Visto o roupão e saio à procura deste homem enigmático, entrando de
cômodo em cômodo, apesar de ser uma tortura. Começo a ponderar a
possibilidade de Felipe estar novamente na academia, quando percebo a luz
fraca vindo do seu escritório.
Uno as sobrancelhas, surpresa. Então, sem pensar duas vezes,
encaminho-me até lá, encontrando-o em sua mesa imponente, completamente
imerso no artigo que lê no computador. A imagem é estranha aos olhos, já
que eu nunca o tinha visto sem terno neste ambiente. Agora, porém, Felipe
usa apenas calças de moletom brancas.
Pigarreio a fim de indicar a minha presença, ganhado sua atenção
logo em seguida.
— Uau, que tal vir trabalhar assim na segunda-feira? Eu iria gostar!
— aponto seu torso nu com o indicador, fazendo-o rir gostosamente.
— Acredite, eu também!
Sento-me na cadeira de frente para ele, cruzando as mãos sobre a
superfície de madeira. Felipe mantém os olhos fixos em mim neste intervalo
de tempo.
— O que está fazendo?
— Trabalhando.
— Agora?
— Você estava demorando muito... — Ele encolhe os ombros. —
Fiquei inquieto e vim para cá.
— E no que está trabalhando?
Felipe esfrega o rosto em um gesto rápido, aparentando desconforto.
O que é realmente muito estranho dado o fato de trabalharmos juntos.
— Na tese de defesa da PoliBev — fala por fim, desviando os olhos
dos meus.
Permaneço o encarando ao longo de minutos. Devo estar com a maior
cara de idiota do mundo, mas não consigo esconder o meu espanto. Ainda há
pouco nós conversamos sobre o comportamento insensato de Renato e sobre
o quanto ele me deixou atemorizada e aqui está Felipe, agindo como se nada
tivesse acontecido.
Respiro fundo, finalmente conseguindo acordar deste transe
temporário e me empertigo no lugar antes de conseguir perguntar:
— Você... você ainda está trabalhando para ele?
— Sim. Por que achou o contrário? — indaga, com o semblante sério.
— Eu não sei. Achei que depois de tudo o que Renato tem feito... as
coisas que te contei...
Fisgo os lábios, com o coração apertado.
— Madu... — Felipe começa e, no mesmo instante, percebo qual será
a sua resposta.
Argh, que droga! Estou me sentindo estúpida por ter acreditado,
mesmo que por um segundo sequer, que ele deixaria esse asqueroso de lado.
Concentro toda a atenção nas minhas mãos cruzadas sobre a mesa, sem
conseguir disfarçar o quanto essa notícia me deixou abalada.
Felipe segura o meu queixo com delicadeza, erguendo o meu rosto
para os nossos olhos se encontrarem novamente.
— Renato é um babaca com o qual precisaremos ficar atentos, mas eu
não posso me dar ao luxo de misturar as coisas. Somos adultos, Madu.
Estamos falando de honorários milionários, você sabe. — O tom usado por
ele me deixa ainda mais infeliz. É como se eu fosse uma criança levando um
sermão de forma sutil. — Além do mais, ter uma empresa como a PoliBev no
meu currículo é um salto muito significativo na minha carreira. Não posso
abrir mão de um cliente tão importante assim... por mais desgastante que seja.
Caramba, que choque de realidade!
Quão ridícula eu não fui por imaginar que ele faria diferente?
— Tudo bem — assinto, levantando-me em um rompante. — Você
tem razão, eu confundi tudo. Bom, vou te esperar lá em cima.
Minhas palavras pairam pelo ar enquanto eu saio da sala magoada,
sentindo o peso do seu olhar me acompanhando. Por mais imaturo que seja
da minha parte, a única coisa que eu consigo pensar da situação é o quanto
pareço não ter tanto valor na vida de Felipe, às vezes.
MADU —
JOGO BAIXO
Prendo o cabelo em um coque, levantando-me para fazer um café
e tentar varrer o sono para longe. Demoro-me escolhendo qual capsula eu
quero e, por isso, não ouço Felipe entrar na recepção. Ao girar nos
calcanhares, deparo-me com ele a poucos centímetros de distância e
praticamente desfaleço.
— Ai, meu Deus, Felipe! Você quer me matar? — pergunto,
colocando as mãos sobre o peito.
— Isso está fora de cogitação!
— Aceita um café?
— Obrigado, mas eu passo — diz ele, deslizando as mãos para dentro
dos bolsos.
Meus olhos o estudam e eu resisto à tentação de beijá-lo. Preciso ser
minimamente profissional. Ao menos, só até ele encontrar outra pessoa para
tomar o meu lugar. Depois disso, eu não me responsabilizarei pelos meus
atos. Nenhum deles.
Droga, é impossível não me abalar quando ele fica tão irresistível
vestido socialmente. Hoje, em especial, está de tirar o fôlego com o terno
cinza claro e a gravata slim fit combinando. Percebendo a maneira como eu o
estou engolindo com o olhar, Felipe sorri torto, umedecendo os lábios
provocativamente.
— Por Deus, Madu, você é insaciável, hum? — Brinca, fazendo-me
gargalhar gostosamente.
— Você não colabora!
— Nem você... escolhendo esses vestidos colados para vir trabalhar...
— profere, encurtando a distância entre nós de maneira perigosa. É possível
sentir sua respiração contra a minha face e isto me deixa de joelhos trêmulos.
— Rebolando sobre estes saltos por onde anda...
— Fê... assim fica difícil manter uma postura profissional —
murmuro com a voz rouca de desejo e arranco uma risada alta de Felipe.
— Bom, já falhamos uma vez nisso uma vez, não é? — Ele pisca para
mim, afastando-se o suficiente para me permitir voltar a respirar com
normalidade.
Santo Deus, que homem intenso!
Agarro a caneca com o café recém-saído da cafeteira e caminho até a
proteção da minha mesa de trabalho. “É mais seguro aqui”, penso comigo
mesma, ao me aconchegar na cadeira.
Respiro fundo e pigarreio antes de perguntar:
— Precisa de alguma coisa?
Felipe sorri, fisgando o lábio inferior como se estivesse deliciado com
a situação.
— Na verdade, sim. Como está a agenda para depois do almoço?
— Você tem horário com o Sr. Garcia, às 14h30. Me pediu para
marcar somente ele, pois, de acordo com suas próprias palavras, é um cliente
muito prolixo.
A risada dele me envolve, fazendo subir um calor aconchegante pelos
membros do corpo. Sinto-me contagiada a acompanhá-lo.
— Certo. Você pode ligar para ele e marcar essa reunião para outro
dia, num futuro próximo, por favor?
— Tudo bem — assinto com a cabeça, a curiosidade acendendo
dentro de mim como uma lamparina. — Alguma razão especial para isso?
— Tenho um compromisso importante. Aliás, não almoçarei em casa.
Serão apenas você e a Leonor.
Uno as sobrancelhas, louca para extrair mais informações. O fato de
Felipe ser tão misterioso pode ser um charme a parte, como também uma
característica muito irritante — principalmente para alguém tão curiosa,
como eu. Antes que eu possa formular uma pergunta, no entanto, ele
prossegue:
— Talvez eu não volte antes de você ter saído para a faculdade... mas
estou indo de taxi, para você poder usar o carro, tudo bem?
— Felipe... — começo, porém ele me interrompe, aproximando-se da
mesa.
— Não estou perguntando, Madu. Estou avisando! — Sorri torto,
arrancando um suspiro de mim. Teimoso deveria ser o seu nome do meio.
Mas, pensando bem, o meu também! Somos iguais neste aspecto.
— Ok, senhor mandão, nos vemos a noite, então?
— Contarei os minutos! — responde, inclinando-se para deixar um
beijo no canto da minha boca.
Levo alguns minutos para me recompor, ficando com as mãos
trêmulas. Cruzes, gostaria de saber como ele consegue provocar esse
turbilhão de sensações em mim tão facilmente. Depois de me encarar com
uma expressão de quem guarda um segredo bom demais, Felipe gira nos
calcanhares, deixando-me para trás com um punhado de perguntas na cabeça.

O dia demora o dobro para passar sem a presença de Felipe.


Apesar de assumirmos posturas profissionais aqui dentro, é sempre muito
excitante vê-lo na companhia dos clientes. O Felipe profissional — com o
cenho constantemente franzido, a expressão concentrada e inúmeros ternos
de cortes impecáveis — é irresistível.
A maneira como se sente confortável em sua profissão está presente
na postura e também na fala. Ele tem uma confiança notável em cada gesto,
em cada movimento premeditado. É como se, silenciosamente, revelasse ser
o melhor. Como se sussurrasse em nossos ouvidos “nem o céu é o limite para
mim”. Como se, por dentro, sua essência fosse tão resistente quanto aço e não
fragmentada como de fato é.
Depois de trancar o escritório e comer três pedaços do bolo de fubá
feito por Leonor, subo até o nosso quarto a fim de começar a me arrumar para
a aula. Olho para a banheira da suíte e me sinto tentada a me afundar nela.
Por isso, sem pensar duas vezes, coloco-a para encher. Quero dizer, agora
que não preciso mais ir de ônibus, tenho tempo considerável para isso.
Graças ao Felipe, o meu dia ganhou algumas horas!
Com o corpo imerso na água relaxante, meu pensamento é levado até
ele e me pergunto onde esteve durante todas estas horas. A curiosidade está
me corroendo desde que ele me deu as costas. Eu sei o quanto é importante e
cheio de compromissos, mas normalmente são todos planejados com
antecedência. Mudar repentinamente os planos não combina muito com
Felipe. Além do mais, ele não respondeu nenhuma das minhas mensagens.
Quando estou terminando de me vestir, ouço passos determinados
subirem pela escada e, logo em seguida, Felipe abre a porta de uma vez, com
um sorriso maravilhoso indo de orelha a orelha. Ele confere, em um piscar de
olhos, as horas no relógio em seu pulso antes de quebrar o silêncio.
— Por pouco não nos desencontramos!
— Eu já estava achando que só nos veríamos depois da faculdade... O
que andou fazendo? — pergunto, incapaz de refrear a língua.
— Vou te mostrar — responde ele, agarrando o meu pulso e
praticamente me arrastando para fora.
Percorremos o caminho até o andar de baixo e, tão logo cruzamos a
porta principal, entendo completamente o motivo para a sua euforia. Na
garagem, parada ao lado da Mercedes Classe C branca, uma reluzente
Mercedes S65 preta novinha em folha. Prendo a respiração, estupefata.
— Uaaaau! É linda! Combina com você... mas... o que vai fazer com
o outra? — pergunto inocentemente. Afinal, se ele pretende vender a antiga,
eu não posso nem cogitar usar a nova. Está fora de hipótese.
Como não obtenho uma resposta, desvio a atenção para Felipe e o
encontro com a mesma expressão animada que fizera nesta manhã, pouco
antes de sair. Ele encolhe os ombros, arqueando as sobrancelhas como se a
resposta fosse óbvia.
Então a minha fixa cai.
O fato de ele ter insistido tanto para eu usar o seu carro para realizar o
trajeto até a faculdade nas últimas semanas não foi em vão. Ela havia
comentado sobre o desejo de trocá-lo há algum tempo. E, muito
provavelmente, já tinha em mente este plano maligno!
Pai amado... o que faço com este homem?
Encaro Felipe significativamente. O sorriso dele diz com todas as
letras “é seu”, para o meu desespero. Mas eu jamais poderia aceitar. Jesus,
não!
Empertigo-me no lugar, engolindo em seco. Nós dois destoamos
completamente um do outro agora. Enquanto eu estou tensa e a ponto de
hiperventilar de nervoso, Felipe se encontra sereno e com uma felicidade
contagiante. Ele parece até mesmo se divertir com as minhas reações.
— Não! — falo categoricamente, arrancando uma gargalhada dele.
— Madu... será que você pode não ser teimosa pelo menos uma vez
na vida?
— Não, Felipe, você não está entendendo! Isso é demais! É insano!
— as palavras saem atropeladas umas nas outras. — Eu não posso! Isso...
esse...
Quanto mais eu me atrapalho, mais ele dá risada. É desconcertante.
Estremeço quando ele percorre a distância entre nós, segurando os
meus pulsos com firmeza, na tentativa de ganhar a minha atenção. Ele
consegue, pois, no mesmo instante me calo, a espera de sua próxima ação.
— E se colocarmos as coisas dessa forma: não estou te dando um
presente. Apenas comprei outro carro e não vejo problemas em você usar
esse, já que ele ficará sobrando...
— Mas...
— Eu ficaria ofendido se você recusasse. Realmente ofendido.
Respiro fundo, balançando a cabeça em negativa e me entregando a
vontade de rir. Será inútil discutir a respeito. Ele já possui a opinião formada.
— Eu já disse o quanto você joga baixo?
— E existe outro jeito de jogar que não esse? — ele brinca, puxando-
me para um beijo.
MADU —
VIAGEM
Encontro-me ocupada digitando um documento para Felipe no
momento em que ele sai da sua sala em passos tranquilos, trazendo seu
perfume delicioso consigo. Parando de frente para a mesa, limita-se a me
observar com uma expressão de quem está tramando algo. Este homem se
torna mais e mais impossível a cada dia! O que, no fim das contas, é uma
coisa boa. Afinal, foi por essa personalidade brincalhona e segura de si que
me apaixonei. É bom vê-lo retornando aos poucos.
— Você fica linda concentrada, sabia?
— Ah, é? — Sorrio, girando na cadeira para ficar de frente para ele.
— Seu cenho fica franzido e você faz um biquinho engraçado quando
está dedicada a alguma coisa importante... Deus sabe o quanto adoro essa
careta.
Dou risada enquanto ele puxa uma das cadeiras de espera para
posicioná-la mais perto de mim, sentando-se e cruzando as pernas em
seguida.
— Sentirei saudade de ter você aqui.
— Sei que sim. — Pisco para ele, arrancando uma risada baixa. —
Mas não precisa se preocupar com isso agora... ainda vai demorar para
acontecer.
— Eu não quero ser um estraga prazer, mas você não poderia estar
mais enganada!
As palavras penetram os meus tímpanos causando uma desordem de
pensamentos. Fisgo o lábio inferior, arqueando as sobrancelhas em surpresa.
Calma aí, como é?
Agarro uma caneta do suporte sem nem ao menos me dar conta e,
inconscientemente, começo a batucar a ponta contra o tampo de maneira em
uma cadência irritante.
— Perdão?
— Bom, vou entrevistar duas estudantes de direito logo depois do
expediente. Tive ótimas indicações sobre elas, de um amigo que fez
faculdade comigo e agora leciona na PUC. Sendo otimista, talvez eu já
encontre a profissional que procuro...
Felipe se inclina para frente, cruzando as mãos sobre a mesa. Tento
ignorar o fato de o sorriso dele ter dobrado de tamanho, porém é praticamente
impossível. Céus, ele é um cínico! Veio aqui só para me deixar com ciúmes!
E o pior é que conseguiu! “Droga, por que precisa ser alguém do sexo
feminino?”, pergunto-me, subitamente de mau humor e sentindo o rosto
pegar fogo.
Quero dizer, Felipe conversará com duas possíveis estagiárias
enquanto eu estiver fora. Se não der certo hoje, em algum momento ele
acabará contratando uma mulher com quem conviverá diariamente, no lugar
onde eu já estive. Vendo esse Deus grego desfilar para cima e para baixo em
seus ternos de corte impecáveis, com o seu perfume enlouquecedor e a sua
confiança invejável. E se eles precisarem viajar juntos? Foi assim que Felipe
e eu nos apaixonamos, aliás. Senhor, não posso pensar muito nisso ou
acabarei enlouquecendo! É uma tortura saber que precisarei lidar com isso
quando simplesmente não me sinto preparada.
No entanto, apesar de por dentro estar semelhante a um vulcão em
erupção, decido não demonstrar para ele nem mesmo uma nesga. Não quero
dar muita importância ao assunto, afinal de contas ele quer apenas me
provocar. Porque é isso o que fazemos... desafiamo-nos incansavelmente,
neste jogo de conquista delicioso.
Respiro fundo, fazendo cara de desdém antes de responder:
— Legal. Espero que dê tudo certo.
Felipe me estuda por alguns segundos e vejo no rosto dele o quanto
está se segurando para não rir.
— Você ficou irritada? — pergunta por fim.
— Não.
— Parece.
— Mas não fiquei.
— Acho que ficou bem irritada, na verdade...
— Que droga, Felipe, eu já falei que não! — respondo, com uma
careta azeda.
— Sei... — Ele ri, parecendo muito satisfeito com a minha explosão.
Então estica o braço direito e acaricia o meu maxilar, mandando uma onda de
adrenalina para o corpo inteiro. — Se existe uma careta que eu adoro ainda
mais do que a de concentrada, certamente é a de irritada.
— Felipe, você é um insuportável! — finalmente cedo, rindo com ele.
— Cristo, por que eu te amo, no fim das contas, hein?
— Partilhamos da mesma duvida!
O som estridente do telefone ressoa, deixando-me sobressaltada. Por
um segundo eu me esqueci de onde estávamos. Endireito-me na cadeira e
atendo a chamada, enrubescendo com a maneira atenta com a qual ele me
observa executar o trabalho. Contudo, tão logo a pessoa do outro lado da
linha responde, sinto o sangue se esvair do rosto.
— Renato! — minha voz falha, fazendo-o rir suavemente.
— Com saudades, docinho?
— O que voc... — começo a perguntar, porém sou interrompida por
ele.
— Dessa vez não estou ligando para falar com você, sinto muito te
desapontar. O Antunes está?
Ergo os olhos, encontrando Felipe com uma expressão de curiosidade
tomando os traços perfeitos. Renato tem o poder de me deixar atordoada ao
extremo... depois de tanto tempo tentando me esquivar do seu
comportamento doentio, é um choque me lembrar de que ele é um cliente de
Felipe. Um cliente importante, aliás, como ele me lembrou na noite em que
voltou de viagem. Suspiro com desânimo, com o coração do tamanho de um
grão de mostarda.
— Sim, só um momento, por favor.
— Ah, gosto muito mais deste tom — ele cantarola, para me
provocar. Nojento! Não existe ninguém, no mundo inteiro, que eu odeie mais
do que o Renato.
— É para você! — murmuro, estendendo o telefone em direção ao
Felipe.
Ele assente, sério, pegando o aparelho da minha mão e se levantando
em um rompante, para se dirigir até a sua sala.

Desço os degraus de dois em dois, já com a mochila nas costas,


querendo comer alguma coisa na cozinha antes de sair para a aula. Ao
alcançar o térreo, deparo-me com Felipe vindo a minha procura. Está sem o
paletó, e as mangas da camisa se encontram dobradas desajeitadamente na
altura dos cotovelos, da maneira como adoro. Fica despretensiosamente sexy.
— Estava te procurando! — diz, segurando-me pela cintura a poucos
centímetros de distância. — Vou precisar viajar de novo.
— Não acredito! Não faz nem um mês que você voltou da última!
— Dessa vez é bate-volta... vou para São Paulo depois de amanhã
cedo e volto no último voo.
— São Paulo? — indago, recordando da ligação de horas atrás.
— Sim... tenho uma reunião com Renato. Ele me pediu para ir hoje,
mas está muito em cima da hora. Precisamos reorganizar meus clientes de
amanhã. Você quer ir comigo?
— Não posso, tenho a apresentação de um seminário que vale muita
nota. E esse professor é meio chatinho... jamais me deixaria apresentar
depois.
— Tem certeza? — pergunta ele, munindo-se da irresistível expressão
de cachorro sem dono.
Esfrego o rosto com as duas mãos, confusa. Por um lado, seria ótimo
acompanhá-lo. Da última vez que foi para São Paulo sozinho, Renato o
envenenou com mentiras e isso resultou no pior. No entanto, eu realmente
não posso sacrificar a faculdade. Além do mais, trata-se apenas de um dia.
Não há como isso dar errado, certo?
Encaro-o significativamente, concordando com a cabeça.
— Se fosse para ficar mais de um dia eu até pensaria a respeito... mas
acho que consigo suportar a saudade!
— Bom, eu não posso dizer o mesmo.
— Sei... aposto que hoje, quando estiver conversando com as alunas
de direito, nem vai se lembrar de mim! — faço o meu melhor tom manhoso,
arrancando uma gargalhada contagiante dele.
— Ahhh, então você ficou com ciúmes! — provoca, colando o corpo
no meu e me prendendo com os braços fortes.
— Claro que não.
— Nem um pouquinho?
— Não.
— Mesmo se elas forem bonitas? — ele pergunta contra a minha
orelha, pouco mais alto que um sussurro e preciso me segurar para não
escorregar direto para o chão.
— Não me importo.
— E se alguma delas der em cima de mim?
— Ai, meu Deus, Felipe! — grasno, lançando-o um olhar ameaçador
e arrancando outra risada. — Você está querendo morrer, é?
— Pensei que não se importasse! — provoca.
— Você está impossível hoje! — rio, virando o rosto para roubar um
beijo. Porém, ele se inclina para trás de maneira sutil, encarando-me com
intensidade.
— Eu só tenho olhos para você, Madu! — diz, assumindo um tom
sério. — Principalmente quando está assim, nervosinha.
— É, né? — fico na ponta dos pés a fim de conseguir colar os nossos
lábios. — Então me aguarde, porque quando eu voltar, vou me vingar de toda
essa provocação!
— Contarei os minutos para isso!
MADU —
COZINHA
Dobro o último vestido, colocando-o dentro da mala e fechando o
zíper em seguida. Seria muito mais fácil trazer a maior quantidade de roupas
possíveis para a casa de Felipe, assim eu não precisaria refazer a mala de
tempos em tempos. Mas o fato é que, desta forma, mantenho a consciência
limpa. Pois a necessidade de fazer um rodízio de roupas eventualmente é
como um lembrete de que não moro aqui. Não permanentemente. Sou mais
como uma visitante e, apesar de amar Felipe, o meu lugar não é aqui. Em
breve precisarei voltar para o meu lar e retomar o controle da minha vida.
Ao entrar no nosso quarto, encontro-o deitado confortavelmente na
cama, ocupado em ler um livro sobre Direito. Os pés estão cruzados e o livro
jaz em seu colo, o conjunto é tão harmônico que ele mais se parece com uma
escultura renascentista. Céus, como posso ser tão caidinha por ele?
Arrasto a bagagem para dentro, a fim de não me esquecer dela
amanhã pela manhã. Embora Felipe vá passar apenas um dia viajando, eu não
posso nem cogitar a hipótese de ficar aqui, sem a companhia dele. Soa
infantil e mimado ao extremo a maneira como eu venho me sentindo em
relação a esta casa, eu sei, mas simplesmente não consigo ficar confortável
aqui dentro. É grande demais, vazia demais e, principalmente, deprimente
demais. Prefiro a comodidade do meu apartamento pequenino.
O barulho causado por mim chama a atenção de Felipe, fazendo-o
fechar o livro e repousá-lo sobre o criado-mudo ao lado da cama. Seus olhos
me estudam com atenção antes de ele cruzar os braços sobre o peito.
— Não vai ficar?
Meneio a cabeça em sinal de negativa, fazendo-o franzir o cenho.
— Mas é só um dia! — ele insiste.
— Não consigo, sinto muito. Não me sinto a vontade aqui quando não
estou com você. Pareço uma intrusa...
— Você sabe que não é — diz, batendo a ponta dos dedos na
superfície do colchão, indicando para que eu me sente ao seu lado.
Sem pensar duas vezes, jogo-me na cama, deitando a cabeça no seu
colo, onde o livro estivera há pouco. Uma mão vem ao meu cabelo no mesmo
instante, acariciando-o em uma cadência suave.
Tateio os bolsos, a procura da cópia das chaves do meu lar e, tão logo
pesco o molho, entrego-o. A princípio, Felipe não parece entender, porém,
passados alguns segundos, um sorriso pincela os lábios dele.
— Para o caso de chegar antes do previsto, já sabe onde me encontrar.
— Vai mesmo voltar para o seu apartamento? — pergunta, com
incredulidade.
Fito as íris azuis e demoro algum tempo para perceber a razão para
estar insistindo no assunto. “Ele está com medo que eu já esteja indo embora
de vez”, penso comigo mesma, sem conseguir dominar um sorriso.
— Vou. Mas eu volto!
Felipe suaviza a expressão e inclina o tronco para baixo, deixando um
beijo no topo da minha cabeça.
— É claro que você vai voltar! — brinca, piscando para mim. — Eu
disse que não te deixaria mais sair de perto e não estava brincando!
Em um rompante, ele eleva o meu tronco e desliza para fora da cama.
Antes que eu possa protestar, no entanto, Felipe se inclina sobre mim,
erguendo a minha camiseta para deixar uma sucessão de mordidas na barriga.
Rio histericamente enquanto ele me tortura e, quando finalmente termina,
estou sem fôlego para conseguir falar.
— Estou descendo. Vou preparar algo para jantarmos... você tem 10
minutos para estar lá em baixo de banho tomado. Caso contrário, as
consequências serão severas! — fala, olhando-me de cima com um sorriso
deliciosamente safado no rosto.

Apesar de não achar má ideia ser “castigada” por Felipe, resolvo


seguir as instruções dadas por ele. Estive ocupada com a mala depois de ter
chegado da faculdade e, como ele viajará amanhã cedinho, não teremos muito
tempo para nos curtirmos nesta noite. Por isso quero aproveitar todos os
segundos. Sei que amanhã ficarei morrendo de saudade. Embora se trate de
apenas um dia, a verdade é que depois de tantas semanas morando e
trabalhando juntos, estou muito acostumada com a companhia dele em cada
pedacinho da minha rotina.
Tão logo atravesso a porta da cozinha, deparo-me com a cena mais
desconcertantemente sexy já presenciada, desde que conheci Felipe (e isso
quer dizer bastante). Vestindo apenas uma calça de moletom, ele se encontra
concentrado em frente ao cooktop, misturando com determinação algo que
cheira muito bem. Deus, o fato de ele cozinhar já é um golpe baixo o
suficiente. Sem camisa então... nossa!
Pigarreio, ganhando a atenção dele. Olhando-me por cima do ombro,
Felipe fisga o lábio inferior, percorrendo-me com os olhos famintos e
provocando um calor alucinante em todos os membros.
— Pode fechar a porta, por favor? — pede, desligando a chama sob a
panela.
Assinto e o obedeço, desconcertada. Com um sorriso bobo no rosto,
percorro a distância entre nós, querendo descobrir o que ele está preparando.
Porém, não consigo chegar perto do fogão, pois, ao passar por Felipe, ele
agarra o meu pulso e me puxa contra si.
— Onde pensa que vai?
— Descobrir o que é isso. Está com um perfume maravilhoso!
— E quem disse que eu deixei? — provoca, com um sorriso
malicioso.
Deixo os olhos passearem pelo seu rosto, na tentativa de memorizar
cada pedacinho dele. A barba dourada, o rosto avermelhado pelo calor da
cozinha, a expressão cheia de excitação... Felipe é como um maravilhoso
pedaço de chocolate, o qual quanto mais se prova mais se deseja.
Para a minha surpresa, ele segura o meu rosto com as duas mãos,
aproximando-se o suficiente para eu sentir o ar saindo das suas narinas roçar
contra a minha pele. Ao colar nossos corpos, percebo sua ereção contra o
meu baixo ventre e arfo em surpresa, arrancando uma risadinha baixa dele.
Felipe adianta-se em colar os nossos lábios, invadindo a minha boca
com a língua e guiando-me em uma dança apaixonada, apesar de suave. As
minhas mãos passeiam pelos músculos dos seus braços, apalpando-os
eventualmente. Eu preciso tocá-lo a todo o momento, é quase um vício.
Apertando o quadril contra mim, Felipe me mostra o quanto me
deseja. Gemo baixinho e, ao fazê-lo, lembro-me de que estamos na cozinha!
Após recobrar a consciência, empurro-o levemente com a ponta dos dedos,
percebendo estarmos levemente arfantes.
— Você não tem juízo!
— Nem um pouco! — ele concorda, sem parar de sorrir.
Então, com uma expressão malandra, ele alcança a colher de pau com
a qual estivera preparando a receita e a tira de dentro da panela. Depois de
assoprar um pouco o molho cujo perfume está me deixando morta de fome,
Felipe me surpreende ao afastar o cabelo do meu pescoço e untá-lo com o
molho. O contato é morno e agradável e a sensação é excitante. Prendo a
respiração, incapaz de reagir. Isso é novidade para mim.
Felipe está com cara de quem me devorará a qualquer momento,
fitando-me com um olhar lascivo, enquanto as mãos enormes se fecham ao
redor dos meus braços para me manterem no lugar. Seu rosto vem de
encontro ao pescoço e, no segundo seguinte, sua língua percorre toda a
extensão melada da minha epiderme.
Santo Deus! Jamais, em toda a minha vida, vivenciei um momento tão
sensual assim! Quero dizer, é excitante de uma maneira selvagem. Senti-lo
me provando dessa maneira faz meu corpo reagir de maneira sedenta. Estou
encharcada e, mais que isso, desesperada por ele.
— Gosta disso? — a voz rouca invade meus tímpanos, despertando-
me do transe. Abro os olhos (os quais nem havia reparado ter fechado) e o
encontro com uma expressão arrebatadora de tesão.
Respondo a pergunta com um gemido de protesto, pelo fato de seus
lábios não estarem mais em mim. Com um sorriso satisfeito, ele volta a me
enlouquecer e, a medida que desce em direção aos seios, faminto, meus sons
aumentam a intensidade.
Ocupo-me em despi-lo o mais depressa possível. Se há poucos
minutos estive nervosa por nos encontrarmos no meio da cozinha, agora o
pensamento nem ao menos passa pela cabeça. Dane-se, eu preciso de Felipe
neste instante! Preciso tê-lo em mim, preciso que ele me queime com todo o
seu desejo ardente.
Raspo as unhas pelos músculos das suas costas, arrancando suspiros
dele. Nossas respirações formam, juntas, um arranjo inconstante, frenético.
Sem hesitar, Felipe me ergue do chão, sentando-me sobre a bancada de
mármore. Arquejo em surpresa, erguendo os braços para ajudá-lo a arrancar a
minha camisola.
— Você é deliciosa... — ele sussurra contra a minha pele, deixando-
me arrepiada. — Minha gostosa!
— Sua! Completamente sua!
Quando seu polegar vai de encontro ao clitóris, esfregando-o sem
pudor, alcanço sua ereção, deslizando a mão para frente e para trás em um
ritmo suave. Felipe geme, fechando as pálpebras e deixando em evidência os
cílios dourados. Suspiro, constatando que não consigo durar mais um
segundo sequer. Contorço os quadris, deixando mordidas pelo contorno do
seu maxilar até chegar à orelha, onde peço:
— Não aguento mais, Fê! — minha voz falha, tamanho é o tesão. —
Quero você... preciso te sentir em mim...
Ele concorda com a cabeça, taciturno. Encaixa-se entre as minhas
pernas e, no segundo seguinte, preenche-me com o seu comprimento.
— Humm... que gostoso! — gemo.
Felipe segura o meu queixo com força, erguendo o meu rosto para me
beijar com intensidade. Sua língua percorre a minha boca com urgência,
roubando-me todo o ar dos pulmões. A outra mão segura os meus cabelos
com tanta força que chego a lacrimejar. Apesar disso, não ouso protestar. Sua
dominância é deliciosa. Eu amo ser possuída por ele. Amo que ele seja tão
experiente e saiba exatamente o que é necessário para me satisfazer.
Sugando a minha língua de maneira erótica, Felipe estoca em mim
com a mesma necessidade com a qual me beija. Meus gemidos são abafados
por sua boca, mas isso não impede que eu o arranhe com força, liberando
toda a energia percorrendo o meu corpo.
— Gosta que eu te coma assim?
Incapaz de responder, apenas assinto e, por isso, ele puxa ainda mais
os meus cabelos, fazendo o meu coração martelar contra a caixa torácica. —
Hein, safada?
— G-gosto!
— Eu quero ouvir você falar... — Ele aumenta ainda mais a força na
mão, forçando-me a erguer o rosto para encontrar seus olhos em chamas.
— Eu adoro! Adoro dar pra você!
Surpreendo-me quando ele sai de dentro de mim e força o tronco
contra o meu, para eu me deitar sobre o mármore. Antes que eu possa
compreender a situação, Felipe toma impulso e sobe no balcão também.
Apoio as pernas nos seus ombros, arrancando um gemido inebriante dele.
Sustentando-se com os cotovelos ao meu redor, ele encaixa a ereção na
minha entrada novamente e, embora eu anseie o mesmo ritmo frenético de
segundos atrás, ele permanece imóvel. Ao notar o sorriso torto nascendo,
percebo que está me provocando.
— Quer mais?
— Sim! Por favor! — imploro, rebolando em busca de mais contato.
Como resposta, ganho um ardido tapa no rosto. Separo os lábios, surpresa,
arrancando uma risadinha divertida dele.
— Você vai ficar quietinha, ouviu? — sussurra de maneira tão sexy
que, inconscientemente, rebolo outra vez. Sou recebida com outro tapa,
responsável por deixar a face ardendo.
Meu peito sobe e desce desenfreadamente, mostrando a maneira como
a respiração se tornou ainda mais inconstante.
“Senhor, isso é uma tortura!”, penso, atônita.
— Felipe...
Outro tapa.
Caramba, se ele continuar, acabarei gozando!
— Eu falei quietinha!
Concordo com a cabeça, encarando suas íris azuis. Elas brilham em
perversidade. Vejo, então, que ele está como eu: a ponto de explodir. No
entanto, o prazer em me inflamar parece ser maior.
— Pelos sete infernos, você fica deliciosa quando está com tanto
tesão! — sussurra ele, resvalando a mão pela minha barriga até alcançar os
seios. Fecho os olhos, ouvindo o som de nossas respirações pesadas se
fundirem. Felipe belisca o meu mamilo impiedosamente, num misto de dor e
prazer e, por isso, contorço-me inteira.
O tapa vem do outro lado do rosto agora, deixando a pele quente. Tão
logo torno a abrir as pálpebras, encontro-o com um sorriso enorme, os dentes
perfeitamente alinhados a mostra.
— Adoro o quanto te afeto, Madu. Adoro saber que te deixo assim... a
ponto de perder o controle. Tal como você faz comigo!
No momento em que menos espero, Felipe estoca até o talo,
arrancando-me um gritinho. Sua mão cobre a minha boca, a fim de abafar os
sons. Ele sai de dentro de mim outra vez e, num ímpeto de descontrole,
desfiro um tapa contra o seu rosto, provocando um estalo alto. Ele geme,
estreitando os olhos com se dissesse “você está ferrada”. Que bom, porque é
exatamente o que eu quero!
— Eu sou uma menina má, Felipe! Seja cruel comigo! Me castiga sem
dó! Quero gozar com você dentro de mim!
As palavras servem como estopim. Parecendo um cão raivoso, Felipe
tira minhas pernas dos seus ombros e me puxa pelos braços para que eu me
sente no seu colo. Depois disso, é impossível não gritar como uma louca. Os
lábios no pescoço alternam entre beijos e chupões enquanto os dedos cravam
na carne das minhas coxas. Ele atende ao meu pedido, imprimindo todo o
desejo em cada movimento. Tudo é intenso, tudo me consome. Não demora
para, juntos, alcançarmos o ápice.
Nossos sons se fundindo, o suor em nossas peles, as respirações
sincronizadas. Dois corpos sendo um só.
MADU —
UMA VISITA
Meu celular começa a tocar exatamente quando desço do carro,
no estacionamento do prédio. Ligo o alarme e só então me ocupo em
encontrar o telefone na desordenada imensidão da minha bolsa. Depois de
alguns minutos vasculhando entre maquiagens, papéis e toda a sorte de
porcaria que pode ser encontrada na bolsa de uma mulher, alcanço o aparelho
estridente.
A foto de Felipe me faz estremecer. Ao longo do dia, fui
acompanhada por um pressentimento estranho, como se algo errado estivesse
prestes a acontecer com ele, a qualquer momento. Engulo em seco, atendendo
a chamada. Tão logo sua voz soa do outro lado da linha, um sorriso rasga o
meu rosto. É engraçado o quanto já estou com saudade, apenas em algumas
horas de ausência. É tão certo estarmos junto que mesmo pequenos intervalos
de tempo se parecem com uma eternidade.
— Você sempre usa esse tom super sexy para falar ao telefone? —
indago, arrancando uma risada dele.
— Principalmente com os clientes. É um diferencial e tanto.
— Agora entendo o seu sucesso profissional!
— Como está sendo o seu dia? — pergunta ele, com um tom que
sugere ter um sorriso no rosto.
— Estranho... acho que não consigo mais desgrudar de você. Temos
um sério problema!
— Eu te chamei para me acompanhar!
— E eu aprendi a lição! Na próxima você não terá escolha além de
me arrastar junto! — falo, torcendo uma mexa de cabelo. — Como foi a
reunião com o queridíssimo Renato?
— Ainda não me encontrei com ele. Estive na filial e agora vim para
o hotel descansar e comer alguma coisa até dar a hora da nossa reunião.
— Que é...?
— Combinamos às seis e meia, mas se tratando de Renato, não posso
contar com a pontualidade. Ele é imprevisível.
— Boa sorte!
— Vou mesmo precisar... — lamenta-se. — Bom, tenho que desligar.
— Tudo bem. Estarei no meu apartamento te esperando... bom
trabalho!
Respiro fundo depois de desligar o celular e jogá-lo bolsa adentro,
aproveitando para pescar o molho de chaves. A angústia percorrendo as
minhas veias parece cada vez mais aguda e, apesar de eu tentar me convencer
não ser nada demais, sei que raramente me engano ao sentir algo tão
intensamente, como agora.
Eu apenas espero que Felipe fique bem. Quero dizer, é o primeiro
encontro deles pessoalmente em meses — nos quais Renato fez uma lista
interminável de absurdos.
Esfrego o rosto e aperto o botão do elevador, ignorando a maneira
como as minhas entranhas parecem se contorcer. “Céus, Madu, controle-se.
É apenas saudade e nada mais!”, mentalizo, com o coração agitado.
No entanto, a medida em que me aproximo do meu andar, maior se
torna a pressão no peito. O pensamento de ligar novamente para Felipe
invade a minha cabeça para ser descartado logo em seguida. “Ele está
trabalhando! Não o interrompa por besteira”, meu subconsciente fala
categoricamente e sou obrigada a concordar.
Chego ao nono andar com um suave solavanco. Inspiro
profundamente, percebendo um perfume delicioso e nostálgico no ar e, antes
que possa sequer tentar descobrir de onde vem, noto a pessoa em frente à
minha porta.
O tempo congela.
Meus olhos captam fragmentos de um todo. O terno risca de giz, os
cabelos escuros alinhados com gel, a barba por fazer, o sorrisinho mordaz.
Em uma das mãos, uma garrafa de vinho e, na outra, um buquê de orquídeas
vermelhas, tais como as dada por ele há alguns meses.
Renato Monteiro.
Em Curitiba.
Quando deveria estar em São Paulo, conversando com Felipe.
Assisto-o depositar as flores e a bebida no chão sem desgrudar os
olhos ardentes de mim. Já fazia tanto tempo que não o via que alguns
detalhes haviam sido apagados da memória. Quero dizer, antes eu o achava
bonito, charmoso, galante. Agora, porém, tem algo muito errado com a sua
expressão.
Então, como se eu tivesse acabado de despertar de um transe, ligo os
pontos.
O tempo volta a correr.
“Meu Deus do céu!”, penso atônita, tão logo o entendimento me toma
de supetão. Giro nos calcanhares o mais depressa que posso e corro em
direção ao elevador. Para o meu azar, não está mais neste andar. Contudo,
não consigo arriscar um único passo em direção à escada de emergência.
Com uma tranquilidade desconcertante, Renato agarra o meu braço direito e
me puxa contra si. Nossos corpos se colidem e ele me enlaça pela cintura.
Antevendo uma sucessão de gritos histéricos, ele cobre a minha boca
com a mão livre. Não agressivamente, mas sim de uma maneira branda,
quase carinhosa.
Meu coração martela violentamente, parece prestes a escapar pela
boca. É a única parte do corpo funcionando direito, de toda forma. O restante
ficou paralisado, em choque. Principalmente a mente. Não consigo nem ao
menos processar o que está acontecendo. Soa como um pesadelo assustador.
Uma brincadeira de muito mau gosto pregada pela minha cabeça.
— Não faça isso... só vai piorar as coisas — ele diz, o tom de voz
calmo destoa completamente do meu pânico. — Aliás, é uma falta de
educação sem tamanho não convidar uma visita para entrar... sobretudo
quando ela veio de tão longe, unicamente por sua causa.
Assinto, com a garganta seca. As únicas palavras ecoando dentro de
mim são “só vai piorar as coisas”, responsáveis pelo temor correndo nas
minhas veias. Minhas mãos tremem com tamanha intensidade que a simples
tarefa de socar a chave na fechadura se torna um empecilho e tanto. Sinto os
olhos lacrimejarem enquanto atravesso a porta, como um condenado indo em
direção à sentença de morte.
Eu jamais vivi algo parecido. Nunca tive os músculos amortecidos
pelo medo, tampouco esse sentimento de impotência. É terrível! O que devo
fazer? E se eu gritar e ele estiver armado? O que ele pretende...?
“Deus, me ajude!”, peço silenciosamente e noto que Renato ainda
não me alcançou. Ao olhar para trás, vejo-o com as flores e o vinho
novamente nos braços. Não é preciso muito para entender a razão do seu
atraso.
É então que, em um ímpeto de coragem, abro a bolsa a procura do
celular e, ao encontrá-lo, corro para o quarto, a fim de ganhar algum tempo e
conseguir ligar para a polícia.
No momento em que estou prestes a alcançar o trinco da porta, no
entanto, sou puxada para trás com violência. Renato pega o telefone da minha
mão e me empurra contra a parede do corredor com força, fazendo-me bater a
cabeça e deslizar para o chão, ligeiramente tonta.
— Ah, minha querida, você não quer piorar as coisas. Não quando eu
sei tanto sobre a sua família!
Ao olhar para cima, encontro olhos injetados e um sorriso demente,
que reforçam a insanidade do homem parado de frente para mim.
MADU —
O IMINENTE
— Você me enfeitiçou, docinho — a voz insossa de Renato
penetra os meus tímpanos, arrancando-me do transe.
Ele roça o polegar na minha bochecha com delicadeza, porém o
contato causa asco. É como se tivesse uma lesma no meu rosto. Segurando a
vontade de chorar, tento colocar a mente para trabalhar, buscando uma
alternativa, buscando uma saída, fantasiando mil formas de isso acabar bem,
mesmo desconfiando, intimamente, não existir como.
Eu quero reagir, mas o medo pode ser realmente cruel. Ele é
paralisante. Estou incapacitada, neste momento. Embora entenda que algo
horrível está prestes a acontecer, a pior parte é a constatação de não poder
fazer nada. Quero dizer, como poderia, quando esse sádico tem tanto poder
nas mãos? Eu jamais me perdoaria se algo acontecesse aos meus pais, ou
mesmo ao Felipe, por minha causa. O fato de Renato saber disso me deixa
deprimida. Ele brinca com os meus sentimentos. Para ele é divertido exercer
seu poder, exercer sua maldade, sua arrogância. Gostaria de dizer que o
odeio, no entanto vai muito além disso. Eu sinto repugnância por este homem
asqueroso.
Em um movimento rápido, de quem tem muitos anos de prática, ele
arranca a gravata do pescoço, desfazendo o nó de uma só vez. Fecho os olhos
no momento em que Renato para atrás de mim, segurando os meus pulsos
com força.
— Cruze os dedos! — sussurra ele, colando a boca na minha orelha e
sussurrando de maneira odiosa.
Obedeço-o e, no segundo seguinte, tenho as mãos imobilizadas e
amarradas com uma gravata. “Deus, por que eu não fiquei na casa de
Felipe?”, penso sem parar, odiando-me por todas as decisões tomadas até
aqui. Como isso foi acontecer? Como chegamos a este ponto?
Segurando os meus braços suavemente, Renato me guia até o sofá,
onde me sento. Ele se agacha de frente para mim, erguendo o meu queixo
para me obrigar a encará-lo.
— Não sei como fez isso comigo, mas estou louco... alucinado. Não
tiro você dos pensamentos, Madu!
Seu hálito adocicado pelo vinho vem de encontro ao meu rosto,
conforme as palavras são jogadas ao ar, e concluo que já estava bebendo
muito antes de me encontrar. Isso explica o comportamento agitado, beirando
a insanidade. Nas outras vezes em que estive com Renato ele sempre foi mais
contido, apesar de muito incisivo. Agora, porém, é o oposto disso. As
máscaras caíram, restou apenas o monstro habitando logo abaixo do
cavalheirismo forçado.
Sem mais nem menos, minha garganta arranha e eu caio no choro. A
negação vai embora e percebo a gravidade da situação. Entendo o quão
ferrada estou e percebo justamente quais são suas intenções comigo. As
lágrimas escorrem em abundância pelo rosto enquanto eu lamento por
pensamentos, imaginando todas as maneiras como eu gostaria que isso fosse
diferente.
Renato sorri de canto — um gesto o qual adoro em Felipe, mas que,
nele, é simplesmente assustador — colocando uma mecha de cabelo atrás da
minha orelha antes de se levantar, decidido. Ele caminha com tranquilidade
até a mesa, onde os dois presentes jazem. Abrindo a garrafa de vinho, com
um abridor tirado de dentro do bolso, ele leva a garrafa à boca, bebendo uma
quantidade considerável em um só gole.
Depois de limpar o rosto com as costas da mão, Renato volta ao lugar
onde estava — agachado na minha frente.
— Você está precisando beber um pouco, docinho. Está muito tensa.
Faço um “não” com a cabeça, mas acreditar que ele respeitaria a
minha vontade foi muito inocente da minha parte.
— Preciso insistir que beba! — diz com um tom mordaz e segura a
minha cabeça com força, cravando os dedos no queixo sem o menor cuidado
para então pressionar a garrafa contra os lábios. Logo o sabor do vinho
preenche a minha boca e eu preciso engolir para não engasgar. Ele me força a
tomar uma grande quantidade e depois se ocupa em beber um pouco mais.
— Sabe, eu realmente não compreendo o que o Antunes tem que eu
não tenha também... — fala Renato, com um ar arrogante. — Não há nada
que ele possa te oferecer que eu também não possa, Madu. Eu estou doente
por você, não entende isso?
Inclino o rosto para o lado, usando o ombro para limpar as lágrimas
ininterruptas. “Esse homem é louco”, penso, mordendo o lábio inferior para
tentar conter o choro, mas falho miseravelmente. Seus olhos me estudam
com atenção e, logo em seguida, sou obrigada a beber mais vinho. A bebida
desce pela garganta aquecendo todo o caminho.
— Por que está triste, docinho? Eu até te trouxe flores. As que você
gosta! — Diz ele, piscando.
O gesto serve como estopim para um choro desentoado. Fico sem
fôlego, expressando toda a angústia me assolando neste momento. O que eu
faço? Se eu gritar, posso até conseguir ajuda, mas colocarei a vida das
pessoas que amo em risco. Eu o conheço, agora entendo o tamanho da sua
insanidade. Sei do quanto ele seria capaz, apenas para me mostrar que pode,
apenas para provar conseguir tudo o que quer.
Santo Deus, ele se vingará de todo tempo perdido, de todas as recusas.
Eu vejo na chama em suas íris o quanto ele quer me humilhar, o quanto ele
não liga a mínima para o meu sofrimento. Pelo contrário, quanto mais eu
choro, mais ele parece ficar divertido com a situação.
A melodia do meu celular ressoa pelo ambiente, despertando-me do
transe. Meu coração perde uma batida. Quanto tempo já se passou desde que
eu entrei para esse inferno?
Felipe já descobriu que Renato não está em São Paulo?
Tão logo o pensamento invade a mente, no entanto, uma onda de
desânimo e terror me domina. Deus sabe o que pode acontecer até ele voltar
para Curitiba, a noite. Talvez ele aproveite para resolver assuntos
profissionais, talvez ele nem ao menos estranhe o fato de eu não estar
respondendo as mensagens. “Será que estarei viva?”, pergunto-me e, no
segundo seguinte, um choro histérico escapa pela minha garganta,
preenchendo o minúsculo apartamento.
Com um sorriso debochado no rosto, Renato tateia os bolsos em
busca do aparelho. Ele o confere ligeiramente e dá de ombros, estendendo o
telefone em frente ao meu rosto para me mostrar a foto de Felipe na tela. A
chamada chega ao fim, mas, em uma fração de segundo, começa novamente.
Ele quer mesmo conversar comigo.
— Por falar no Antunes... — Suspira, tomando impulso para se
levantar.
Observo-o caminhar até a janela, abrindo-a despreocupadamente.
Depois de olhar para baixo por algum tempo, Renato lança o celular para
fora, girando nos calcanhares para ficar novamente de frente para mim.
— Bom, ele pode esperar um pouco. Afinal, eu já esperei bastante.
Tenho o direito de te querer só para mim.
— Renato... — peço, com a voz trêmula. — Por favor, não.
Socando as mãos no bolso, ele percorre a distância entre nós, com as
sobrancelhas arqueadas em uma careta surpresa. Ao estacar na minha frente,
dessa vez permanecendo em pé, Renato passa os nós dos dedos pela minha
bochecha, deslizando para o pescoço e contornando levemente a curva dos
seios. Embora o movimento tenha sido rápido, ter suas mãos em mim
reacendeu o pavor paralisante. Estremeço e fecho os olhos, rezando
silenciosamente para esse tormento acabar e um milagre acontecer. Eu não
suportarei o iminente.
— Madu... — ele fala com um ar divertido. — Você deveria saber
melhor que ninguém o quanto considero a palavra “não” instigante.
MADU —
TERROR
Renato força a garrafa contra a minha boca novamente. Eu até
perdi a conta de quantas vezes ele já fez isso. Sinto o refluxo pela grande
quantidade de álcool ingerida em tão pouco tempo, eu não sou exatamente do
tipo que bebe.
Renato toma o restinho do vinho, deixando o vidro vazio sobre a
mesa. Minha cabeça pesa, os olhos pestanejam e eu percebo, atônita, a
maneira como tudo ao redor parece rodar sutilmente. Não posso fazer
movimentos bruscos, porque eles deixam a visão turva e me sinto ainda mais
enojada.
Se antes já estava difícil ordenar os pensamentos, agora é
praticamente impossível. As lágrimas até secaram, de tanto que eu chorei
neste intervalo de tempo — tempo o qual não tenho a menor noção de quanto
seja, diga-se de passagem.
É por isso que, ao perceber Renato desbotoando a camisa
pacientemente, não consigo nem mesmo esboçar uma reação. O choque é tão
grande que me limito a ficar conformada com a situação e calma, a fim de
sofrer menos. Não consigo pensar em nada, não consigo sentir nada, todo o
medo de outrora já me abandonou. Sobrou apenas um casco vazio, pois
minha mente entrou no modo automático. A bebida foi uma aliada, no fim
das contas. Pelo menos estarei aérea, quem sabe se eu fechar os olhos e fingir
que nada disso está de fato acontecendo, seja mais fácil de suportar o terror.
Ele joga a peça de roupa no chão, tirando os calçados logo em
seguida. Balanço a cabeça negativamente, ignorando a ânsia de vômito me
dominando. Isso não pode estar acontecendo. Não pode ter chegado a hora.
Penso então em Felipe — pela primeira vez desde que o celular tocou.
Lembro-me de ontem a noite, penso na maneira carinhosa como ele sempre
cuida de mim, como ele faz com que eu me sinta amada. Aparenta ter sido há
muito tempo que eu o encontrei cozinhando e nos despedimos. Parece
pertencer a tempos remotos de uma vida passada. Engulo em seco, com o
coração do tamanho de uma ervilha.
O pensamento vaga dele para os meus pais em uma velocidade
alarmante. Memórias desconexas chegam aos poucos: papai assistindo ao
futebol com uma cerveja de companhia, mamãe ocupada em algum tapete de
crochê. Olho para fora da janela e constato, surpresa, já ter anoitecido. Eu
deveria estar na aula, apresentando um trabalho importante. Será que Vanessa
tentou me ligar? Será que ela imagina que algo errado tenha acontecido?
— Não existe não para um homem como eu, docinho — diz Renato,
agarrando os meus braços para me forçar a levantar. — É tudo uma questão
de perspectiva... eu os tomo como desafios, como estímulos. E provo para
mim mesmo que consigo o que quero.
Renato me guia para trás até as minhas costas tocarem a parede
suavemente e apoia os braços ao meu redor, aprisionando-me com o próprio
corpo de uma maneira claustrofóbica. Ele dá um passo à frente, roçando a
ereção contra mim. Engulo em seco, perdendo a força das pernas. O baque é
tão grande que, por um segundo, acho que vou desmaiar. Infelizmente,
continuo bem consciente.
— Alguns desafios são mais trabalhosos. Como você, Madu. Mas, no
fim das contas, eu venço todos!
Com uma das mãos, ele sobe a minha saia com agilidade, apertando a
minha coxa de uma maneira repugnante. Seus dedos massageiam a pele,
subindo em direção à virilha. Meu organismo libera uma nova descarga de
adrenalina. Todos os poros do corpo resolvem suar simultaneamente, o
coração vai para a boca e a respiração se torna entrecortada.
Tudo está rodando.
Eu apenas quero que isso acabe.
— Além do mais, eu sei como vocês, mulheres, funcionam... Anseiam
ser conquistadas, precisam se sentir especiais. — Renato prossegue,
indiferente ao fato de eu estar prestes a desmaiar. — Vocês nunca querem,
realmente, dizer não. Não para um homem como eu, sei disso.
Nossos olhares se encontram e eu vejo a arrogância presente em cada
centímetro do rosto que, um dia, achei bonito. Ele pisca, abrindo um sorriso
largo e cheio de si.
— Eu tenho tudo para te oferecer... todo o luxo que você deseja e
muito mais. Com esse rostinho inocente e esse corpo delicioso, você arranca
o que quiser de mim, Madu. Qualquer coisa. Merda, eu estou doente por
você, docinho. Não sei o que fez comigo! Sonhei tanto com você gritando
para mim! Desejei tanto contemplar seu corpo sem nenhum pano cobrindo-
o...
Tão logo as palavras penetram os meus tímpanos, Renato puxa a
minha saia para baixo em um movimento brusco, deixando-me apenas de
calcinha. Então, em um rompante, ele me beija. Sua língua invade a minha
boca, como um lembrete da terrível realidade. Tento, inutilmente, soltar as
mãos do nó feito com a gravata e, como não consigo, sinto as lágrimas
tornarem a irromper dos olhos, enquanto o gosto da sua saliva fica
impregnado em mim. Suas mãos seguram o meu rosto com tanta força que
machuca. Ele suga os meus lábios de maneira vulgar, movimentando os
quadris para frente e para trás, violando-me, dando-me uma amostra do que
ainda está por vir.
Seus dedos avançam em direção aos meus cabelos e, quanto mais eu
tento me esquivar da sua boca, mais ele os puxa, como forma de punição. Em
dado momento, apenas paro de lutar, com o couro cabeludo dolorido, a
dignidade abalada e o torpor do vinho ameaçando tomar a minha consciência.
— Como posso não me meter em problemas? Tenho um fraco por
mulheres gostosas, Madu. E você, com certeza, é uma. Não consigo me
aguentar... a cabeça de baixo sempre fala mais alto! Mas que culpa eu tenho?
Deus sabia, quando criou vocês, que seriam a perdição dos homens — Sua
gargalhada demente ressoa pela sala, alta e escandalosa demais. — Além do
mais, você estava pedindo. Você quer tanto quanto eu, sei disso! Estava
apenas me provocando, me atiçando. Você será a minha ruína, docinho. Não
importa... O troféu vale a pena!
Renato volta a enfiar a língua na minha boca de maneira agressiva,
movendo-a sem pudor algum. Uma das mãos me solta. Logo depois, ouço o
barulho característico de um zíper sendo aberto. O som desperta o pânico, até
então anestesiado. Movida pelo medo e sem pensar muito, finalmente
consigo reagir. Fisgo o seu lábio inferior com os dentes, mordendo-o com
toda a força que consigo.
Depois disso, tudo acontece muito rápido.
Renato lança o próprio corpo para trás, desvencilhando-se de mim.
Sinto o nauseante gosto metálico de sangue na boca e sorrio. Uma linha
vermelha viva escorre da boca dele, em direção ao queixo. Renato leva a
ponta dos dedos ao ferimento, manchando-os de carmim. Vejo suas mãos
tremerem suavemente ao passo em que ele observa o sangue nos dedos, com
uma expressão assassina no rosto.
Seus olhos se voltam para mim, brilhando de ódio.
— Desgraçada! — rosna ele, avançando como um animal e
desferindo um tapa com as costas da mão contra o meu rosto.
No mesmo momento, o sague se espalha pela boca e meus olhos
lacrimejam. Suas duas mãos vêm de encontro ao meu pescoço, apertando-o
com força para me sufocar. A visão fica embaçada enquanto eu luto por um
pouco de ar. A satisfação no rosto dele me deixa nauseada.
Muito embora esteja me debatendo na tentativa de me livrar de suas
garras, aos poucos sinto os músculos amolecendo e eu sei que meu fim está
próximo. Estou a ponto de perder a consciência quando o barulho da porta
abrindo nos surpreende.
Renato me solta, sobressaltado, a tempo de assistir Felipe
atravessando a entrada como um raio em nossa direção, com uma expressão
sanguinária enrijecendo os músculos do rosto.
FELIPE —
CÓLERA
Vejo tudo vermelho, o mundo parece em chamas.
Cada músculo do meu corpo treme, exprimindo o ódio correndo pelas
veias. Faço uma varredura com os olhos, captando todos os detalhes que
precisam ser absorvidos. O estado no qual Madu se encontra, o sorriso
debochado no rosto de Renato Monteiro, a perspectiva do que poderia ter
acontecido se eu tivesse chegado alguns minutos mais tarde. Toda a profusão
de pensamentos não leva mais que um segundo, porém.
Dominado pelo ódio transcendente em seu estado mais puro, a única
coisa que consigo realmente enxergar é ele. Pelos sete infernos, eu vou matar
esse bastardo! Deus sabe que sim!
Antes de eu alcançá-lo, Renato ergue as mãos, em sinal de rendição.
Ele abre a boca para falar, mas eu não o dou a oportunidade. Choco o punho
fechado contra o seu rosto, no entanto não existe espaço para a dor, não
existe espaço para mais nada. Nada além da raiva envenenando a alma.
Pelo canto dos olhos, percebo com pesar o estado de choque de Madu.
Ela nem ao menos se mexeu desde a minha chegada. A única mudança
significante foi que agora está chorando desenfreadamente, com puxadas de
ar sonoras e cheias de desespero.
— Filho da puta! — rosno, prestes a acertá-lo uma segunda vez.
Contudo, sou surpreendido ao ouvir sua gargalhada histérica ressoar pelo
ambiente. Fico tão perplexo a ponto de refrear o golpe. O meu braço
permanece parado no ar.
— Quem diria, hein, Antunes? Nós dois, homens adultos, brigando
por uma vagabunda! Comer ela é tão bom assim?
Minha mão o acerta um pouco acima dos olhos desta vez, cortando o
supercílio e arrancando mais uma risada, a qual não condiz em nada com a
situação. Puxo-o pelos ombros, a fim de nos afastarmos de Madu.
Dominado pela cólera, despejo em golpes intermináveis toda a ira
acumulada desde quando percebi que tinha algo muito errado acontecendo
nesta tarde. A angústia por não conseguir me comunicar com a minha
menina, o temor causado por todas as alternativas assombrando os meus
pensamentos. A certeza da insanidade deste cretino.
A raiva parece nunca ter fim. Embora Renato tente se defender, eu
tenho a vantagem de estar sóbrio. Além do mais, existe adrenalina de sobra
no meu organismo.
Prenso-o contra a parede oposta a que Madu se encontra, tal como ele
estivera fazendo com ela. Só de imaginar... só de pensar no que ele pode ter
praticado até eu chegar... Inferno, eu vou matar esse desgraçado!
Não interrompo os golpes, apesar de, cada vez mais, minha mão ficar
manchada com o meu sangue e o dele. Foda-se, eu não me importo! Apenas
não posso conceber a ideia de que ele colocou as mãos nela. Eu não posso
aceitar que ela está machucada. Não posso sequer conjeturar a hipótese de
que ele simplesmente achou que poderia...
— Seu... bastardo... — murmuro entredentes, acertando-o mais uma
vez.
Desta vez, porém, as risadas cessam. Renato geme, cedendo ao peso
das pernas e deslizando para o chão. Estou com a perna no ar para chutá-lo
quando a voz de Madu penetra os meus tímpanos, buscando-me do transe.
— Felipe, não! — Olho por cima do ombro, encontrando seu olhar
desamparado. — Já basta! Você... e-ele está muito machucado, não faça uma
besteira, por favor! Eu, eu não... — as últimas palavras se embolam e ela cai
no choro.
Olho para os nós dos meus dedos, abertos e sangrando. Logo em
seguida, estudo o rosto de Renato, sentindo a garganta arranhar ao ver o
estado no qual o deixei. Mais um pouco e eu poderia arruinar tudo.
Respiro fundo, girando nos calcanhares para alcançá-la. A imagem é
tão comovente que me sinto um idiota por quase perder o controle. Não posso
conceber o medo sentido por ela, deve ter sido horrível. Por Deus, presenciá-
la neste estado alimenta a necessidade de machucar Renato, sem me importar
com as consequências. Envolvo-a com os braços, depois de soltar suas mãos
do apertado nó feito com a gravata.
— Shhh, eu já estou aqui — tento confortá-la, com os olhos grudados
nele. — Está tudo bem agora.
Suas lágrimas deixam o tecido sobre o meu peito ensopado, grudando
na pele. Passeio as mãos pelas suas costas, deixando um beijo no topo de sua
cabeça.
— Nada mais vai acontecer.
Tão logo as palavras são lançados no ar, a risada fria de Renato vem
como um golpe, deixando-me novamente ensandecido. Faço o possível e o
impossível para me manter onde estou, apesar da vontade de socá-lo até ele
parar de respirar. Seu riso se torna cada vez mais descontrolado,
transformando-se em uma tosse estridente.
— Você... — Renato limpa a garganta, apontando o indicador para
mim em seguida. — É igualzinho a mim! No fim das contas, somos farinhas
do mesmo saco, não?
— Você está enganado, Monteiro. Não poderíamos ser mais
diferentes!
— Ah, é? — Ele solta um gemido de dor. — Você só se importa com
o dinheiro, meu caro. Tal como eu. Depois de tudo o que aconteceu, ainda vai
me defender no tribunal. Desde que eu o pague um pouco mais, pelo
inconveniente.
— O quê?
Balanço a cabeça em negativa, atordoado, depositando mais força no
abraço. A voz de Leonor invade a minha mente, tão clara como se ela tivesse
acabado de sussurrar no meu ouvido: “cedo ou tarde vai perceber que não
devemos dar tanta importância ao dinheiro... pode nos custar caro,
querido”.
Engulo em seco, finalmente compreendendo o peso das palavras.
Permanecer nesta causa, mesmo depois de todos os inconvenientes vindos da
parte dele... tudo pelos honorários milionários. Não percebi o quanto poderia
afetar Madu e eu, o quanto poderia nos desestabilizar, sobretudo o quando
poderia valer esta decisão. Agora vejo como custou caro. Muito além de
carros importados, ou viagens em jatinhos particulares. Custou o que tenho
de mais precioso.
— Quanto você quer? Quanto custa o seu esquecimento?
Deixo outro beijo no topo da cabeça de Madu antes de me
desvencilhar dela, tateando os bolsos na calça a procura do celular. Ela me
olha significativamente, os lábios tremendo. Sorrio, segurando a vontade de
me entregar às lágrimas. Embora eu esteja em frangalhos por dentro, não
demonstrarei. Preciso fazer isso por ela.
Caminho novamente até Renato, parando na frente dele. Seus olhos
procuram os meus, debochados. Consigo notar o quão seguro de si ele está a
respeito do meu posicionamento. Está certo de que eu serei comprado com
alguma quantia obscena de dinheiro.
É por isso que, ao ligar para a polícia e dar detalhes claros sobre o
fato de tê-lo pego em flagrante em uma tentativa de estupro, Renato engasga,
num misto de surpresa e incredulidade. Tão logo encerro a chamada, com a
promessa de que uma viatura estará aqui o mais breve possível, sua voz vem
de encontro aos meus ouvidos, cheia de sarcasmo.
— Você não pode ser tão idiota!
— Estou abrindo mão da defesa da PoliBev, Renato. Eu desisto dos
processos.
— Vai manchar a sua carreira! — afirma ele, com as íris brilhando.
“Foda-se a carreira”, penso, mas limito-me a sorrir, dando nos
ombros.
— Bom... Posso garantir que não mais que você!
MADU —
MODO AUTOMÁTICO
Já é dia quando atravessamos a porta de entrada da casa de Felipe.
Com o braço sobre o meu ombro de maneira protetora, ele me guia até a
nossa suíte, fazendo-me sentar na cama enquanto se ocupa em encher a
banheira.
Respiro fundo ao me encontrar sozinha novamente e um calafrio
percorre a espinha. Ainda não ousei a reviver os acontecimentos recentes na
memória. Estou tentando não pensar muito nisso. Não sei se tenho forças
para encarar de frente todo o terror passado com Renato. Horas que mais se
pareceram com semanas. A certeza de que, a qualquer momento, algo terrível
aconteceria.
A dor de cabeça é lancinante. Sinto como se alguém estivesse batendo
com um martelo nas têmporas, impiedosamente. Deve ser de tanto chorar. No
entanto, nem mesmo isso impede as lágrimas de avançarem pelas bochechas,
tão logo o sentimento esmagador volta a me dominar.
Eu não me lembro de mais nada depois da chegada de Felipe,
colocando um fim ao sofrimento. Quero dizer, até me lembro, mas tudo soa
artificial. Não parece de verdade. Fiquei anestesiada pelo choque, o corpo
permaneceu funcionando no modo automático.
Os policiais chegando, as horas passadas na delegacia, prestando
depoimento, abrindo um Boletim de Ocorrência. As mãos de Felipe em mim
a todo momento, como um lembrete de que eu não estava mais sozinha. O
engraçado é que, embora eu saiba ter contado tudo o que deveria ser dito,
talvez mais de uma vez até, eu não me lembro disso. Meu cérebro bloqueou a
memória, apesar de tão recente, como uma maneira de me proteger. Uma
forma de me poupar. E, mesmo assim, ainda é terrível.
Santo Deus, é como assistir a um filme de horror tão repugnante, tão
indigesto que é impossível manter os olhos abertos em algumas cenas. Eu me
sinto assim. Exatamente assim. O nó na garganta se mantém presente, o
coração não suavizou o ritmo, a respiração parece que jamais voltará a
abrandar. Eu jamais serei a mesma.
Então, sem a minha permissão, um flash invade os pensamentos.
Renato se esfregando em mim, as mãos nojentas me apalpando, sua boca
colada na minha. Tal como se eu fosse um objeto, o qual ele pudesse usar
sempre quando quisesse. O choro calmo se torna um rugido lastimável,
responsável por chacoalhar o corpo inteiro.
Felipe irrompe o quarto com os olhos preocupados e não demora mais
que segundos para me alcançar, envolvendo-me com o seu corpo quente e
acolhedor. Não sei dizer quanto tempo passamos abraçados, mas as lágrimas
continuam jorrando incessantemente. Elas me lavam de dentro para fora.
Ele deixa um beijo terno na minha testa antes de sussurrar baixinho:
— Você precisa descansar, meu amor. Foi uma longa noite.
— S-se você... se você não tivesse chegado... — engasgo-me com o
choro, fazendo-o me abraçar com mais força.
— Shhh, já passou! E o pior não aconteceu, graças a Deus! — Ele me
oferece um sorriso triste, raspando suavemente o polegar sobre a ferida nos
meus lábios. — Eu estou aqui. Nunca mais, não importa o que você disser,
vou te deixar sozinha. Nem mesmo para tomar banho.
Pego-me sorrindo também, apesar dos olhos continuarem úmidos. O
vazio dentro de mim parece crescer a cada segundo e eu me pergunto quanto
tempo levará para parar de machucar. Quanto tempo ainda sonharei com esse
homem maldito? Quanto tempo carregarei o trauma comigo?
— Como você descobriu?
Felipe faz uma expressão de sofrimento e sei que ele entendeu a
pergunta, mesmo com as informações escassas. Ele suspira pesadamente,
acariciando o meu braço com suavidade.
— Já tinha passado uns vinte minutos do horário combinado. Mas eu
estava inquieto, como se tivesse sido horas e horas esperando. E, de repente,
você parou de mandar mensagens... ficou tudo tão silencioso que eu tive a
ideia de ligar no escritório dele e perguntar se já havia saído para se encontrar
comigo. Dai descobri que ele nem ao menos estava na cidade. — Suas
pálpebras se fecham como se ele estivesse revivendo a lembrança. — Eu
soube na hora que havia algo errado. Te liguei para avisar que ele
possivelmente estaria por perto. Nas duas primeiras vezes tocou até cair e
depois começou a dar desligado. Então eu peguei o primeiro voo e vim o
mais depressa possível.
— Ele ameaçou a minha família. Eu queria ter gritado, me
defendido... queria ter feito alguma coisa! Fui tão impotente, ele poderia ter
feito o que quisesse comigo... Mas na hora, na hora nada funcionava dentro
de mim. Eu tive tanto medo... — minha voz morre no ar.
— Eu não posso nem imaginar o que você passou, Madu. Sinto muito
que tudo isso tenha acontecido. Porra, como sinto! — Ele encosta a testa na
minha e percebo as lágrimas escapando dos olhos ainda fechados. — Passei
toda a viagem imaginando o que aquele bastardo estava fazendo e... inferno!
Deus sabe que eu faria uma loucura se ele... se ele tivesse...
Felipe enterra a cabeça na curva do meu pescoço, chorando como
uma criança. Seus braços estão firmes ao meu redor, como se ele mal pudesse
acreditar no fato de eu me encontrar aqui. Bom, nem mesmo eu acredito.
Depois de algum tempo, cheguei a desistir de mim mesma. Eu não via mais
saída.
— Felipe... — chamo-o e instantaneamente as íris azuis se revelam
para mim.
As palavras somem. Percebo não saber como expressar o que está me
afligindo neste momento. Como fazê-lo entender? No entanto, como se fosse
capaz de ler a minha mente, Felipe se empertiga, assumindo uma careta
pensativa.
— Você está segura. Ele foi pego em flagrante, por isso foi detido. É
provável que o futuro advogado dele faça um pedido de Habeas Corpus para
Renato responder o processo em liberdade. Mas, dado o histórico dele, estou
certo de que esteja realmente encrencado.
Respiro aliviada, com o coração reconfortado. A informação tirou um
peso enorme dos meus ombros, correspondente ao medo do depois. Medo de
que Renato fosse se vingar de mim, medo de que tê-lo denunciado servisse
como combustível para a sua loucura. Uma porção de “e se” foi
simplesmente apagada.
— E o fato de você ter aberto mão do processo não vai te prejudicar?
— Tomo impulso para me sentar, sendo seguida por ele.
— Sério mesmo? — ele indaga, cheio de incredulidade. — Depois de
tudo o que aconteceu, você está preocupada com a minha carreira?
Olho-o significativamente, emudecida. Eu me importo com Felipe.
Além disso, nada poderia ter sido diferente, desde que Renato me conheceu.
Ele é maluco e perigoso.
Algo na minha expressão arranca uma risadinha baixa dele.
Balançando a cabeça em negativa, responde:
— Todo advogado pode desistir de um processo, Madu. Desde que
com um bom motivo. E, bem, nós certamente temos um. — Felipe esfrega o
rosto nervosamente. — Não posso defender um cliente que fez... isso com
você... — ele é traído pela voz. — Preciso preparar uma notificação a fim de
passar o processo nas mãos do advogado que Renato porventura escolher.
Depois disso, não será mais um problema meu.
Assinto com a cabeça, deixando os olhos recaírem para as mãos
feridas dele e sentindo o estômago embrulhar.
— Você tem razão. Precisamos descansar. Acho que talvez um
Dramin caia bem, para ajudar a dormir.
— Eu passo o Dramin... — Felipe encolhe os ombros, com a
expressão de carência que tanto amo. — Mas aceito um banho na
hidromassagem com você. Bem demorado.
Sorrio, sentindo-me um pouco melhor do que quando chegamos.
MADU —
PONTO FINAL
Acordo de sobressalto, com a respiração entrecortada. Sento-me
na cama, colocando as mãos sobre o peito para sentir o coração batucar
contra a caixa torácica.
Renato.
Ele estava no meu sonho, com as mãos de garras, a postura
ameaçadora, o olhar insano estampado no rosto e o sorriso debochado de
sempre.
Olho em volta, constatando, com um pouco de decepção, o fato de
Felipe não se encontrar aqui na cama, comigo. Alcanço o celular na
escrivaninha, descobrindo ser pouco mais de quatro da tarde. Depois de um
longo suspiro, salto para fora da cama, lançando pé ante pé, sem muito
ânimo.
De alguma forma eu sei onde encontrá-lo. Imagino exatamente onde
estará e a razão para isso. Não por intuição, mas por já conhecê-lo tão bem.
Felipe é um homem com um passado difícil. Duas tragédias enormes
ocorreram na vida dele, das quais ele se culpa muito, apesar de já contarem
tantos anos, desde então. Este é um sentimento compreensível, no fim das
contas. Eu realmente consigo entendê-lo e não sei como agiria se estivesse no
seu lugar. Talvez eu não conseguisse ter a mesma força que ele teve para
seguir adiante, mesmo com a doença complicando tudo.
Ele acredita ser um problema. Um incorrigível e repugnante
problema. Na cabeça dele, existe a convicção de que todos os contratempos
são sua culpa. E isso nem sempre é verdade. Principalmente se tratando de
fatalidades. Afinal, como ele poderia ter evitado o acidente com Amanda, ou
impedido Bianca de tirar a própria vida? Além do mais, Renato teria, sim,
feito alguma loucura, independente de Felipe estar ou não defendendo ele.
Eu sei, tão certo quanto o ar entrando em meus pulmões, que ele está
se condenando pelos acontecimentos recentes. Mais do que nunca, Felipe se
odeia.
Ao atravessar a porta da academia, não é uma surpresa encontrá-lo
correndo alucinadamente na esteira. O som do seu choro soa como um uivo
desentoado e carregado de sofrimento. Eu me sinto exatamente assim. Porém,
a ironia disso tudo é que aqui foi onde descobri sobre o Transtorno Bipolar.
Exatamente aqui, uma nesga do passado problemático dele me foi revelada.
Agora vejo o quanto este dia foi um marco na nossa relação.
Aproximo-me cautelosamente, os olhos correndo pelo suor cintilando
na pele nua do seu torso. Os músculos se contraindo, os braços sacudindo no
ar. Então eu entendo o quanto não aguento mais isso. A constatação vem
como um soco na boca do estômago.
Talvez eu ainda esteja apática por causa dos traumas. Mas ninguém
pode me culpar, de toda forma. Ainda é muito recente. E, no fim das contas, é
sobre mim que isso se trata. De todos os dias nos quais ele poderia ter uma
crise, hoje, absolutamente, não é um deles. Hoje eu não tenho ânimo para
confortá-lo. Hoje eu não conseguirei assisti-lo erguer uma muralha em volta
de si para poder se torturar por algo que não tem o menor cabimento. Ele me
salvou. Só Deus sabe o que teria acontecido caso ele não tivesse agido
depressa.
É por isso que pressiono, com um pouco de urgência, o enorme botão
vermelho, forçando a parada da esteira. Parecendo acordar de um transe,
Felipe me encara com os olhos surpresos. Observo-o descer no aparelho,
esfregando o rosto como sempre faz quando está nervoso.
— Você prometeu que não ia me deixar sozinha nem para tomar
banho! — protesto, não conseguindo esconder o ar irritado.
Ele estaca, segurando a minha cintura e me buscando para perto de si.
As lágrimas continuam rolando pelo seu rosto, unindo-se com o suor. Ele está
lamentável.
— Me desculpa! Não consegui pregar os olhos e como estava muito
inquieto, fiquei com medo de te atrapalhar. Você merecia umas boas horas de
sono — ele fala sem nem ao menos respirar, as palavras se atropelando umas
nas outras.
Fisgo o lábio inferior, não sabendo como agir. Sinto-me tão cansada,
tão esgotada. Hoje, meu único desejo era poder sumir. Desaparecer da vida
de todos. Poder ficar sozinha até tudo isso acabar.
As safiras dele percorrem o meu rosto, demorando-se na boca. Antes
de me deitar, ela estava bastante inchada e com um corte de tamanho
considerável começando no lábio superior e terminando no inferior. Temo
que o inchaço tenha pirado ainda mais neste intervalo de tempo.
— Merda, olha só pra isso... — sussurra ele, a cadência do choro
aumentando no mesmo instante. — Eu sou amaldiçoado! Todos ao meu redor
estão fadados ao sofrimento!
— Fê, por favor... preciso tanto de você! Não siga por esse caminho.
Ele repousa as mãos no meu rosto, como costuma fazer ao me beijar.
Agora, no entanto, apenas permanece me olhando com intensidade. Os olhos
continuam transbordando. Embora eu entenda que a doença o faz se sentir
desta maneira, não consigo ter empatia. Não consigo consolá-lo. Por Deus, eu
só quero esquecer tudo. Eu só quero que possamos, juntos, superar este
incidente. Eu só quero que ele volte a ser o homem de antes.
Só me dou conta de que também estou chorando quando ele limpa
algumas lágrimas com os polegares.
— Eu te prometi que ele jamais encostaria um dedo em você, Madu.
Em meio a todos os abusos dele, pensei que conseguiria te proteger, dado o
fato de você estar aqui comigo. Mas eu me enganei! E eu jamais vou
conseguir me redimir por isso...
— Você mesmo me falou que ele era doente, meu amor! Nesse
mesmo dia. Não foi culpa de ninguém. — Respiro fundo. — Você me
ajudou! Você não entende o que teria acontecido se não tivesse agido rápido
e vindo ao meu socorro?
— Você não precisaria se defender se eu não tivesse te deixado
sozinha, em primeiro lugar!
— Felipe! — eu praticamente grito. — Pare de se acusar! Pare de
atribuir a si mesmo todas essas culpas! Elas não lhe pertencem! Pelo amor de
Deus, eu estou em frangalhos! Você pode estar presente uma única vez? Será
que você ainda consegue controlar a sua própria mente ou essa doença
maldita já te consumiu?
As palavras o deixam atônito. Toda a cor é drenada para fora do rosto
em segundos. Ele assente, soturno, mas permanece calado. Não tenho tempo
de me arrepender pelas palavras duras. Estou farta, essa é a verdade. Não
aguento mais vê-lo se destruir, tal como seus pais também não. Machuca
muito amar tanto uma pessoa e não poder fazer nada por ela. Ele deveria
saber disso melhor que ninguém.
Seguro suas mãos e as afasto do meu rosto, satisfeita por nós dois
termos parado de chorar. “Bom, isso já é um começo”, penso comigo mesma,
arriscando um passo para trás.
— Passou da hora de reagir, Felipe.
Seus olhos se estreitam, mostrando a dúvida o assolando. Limpo a
garganta antes de continuar:
— Amanda e Bianca precisam ficar no passado, esse é o lugar delas.
Você merece seguir em frente. E todos que te prezam também merecem isso.
— Fecho as pálpebras, a fim de evitar o seu olhar perdido. — Vou me trocar.
Nós vamos sair para colocar um ponto final nisso.
— O-o quê? — pergunta ele, em um sussurro. — Colocar... um ponto
final?
— Sim. Nós vamos ao cemitério onde elas foram enterradas.
MADU —
CEMITÉRIO
Felipe e eu andamos silenciosos pela grama verdinha do
cemitério, um ao lado do outro. Ele traz um punhado de Gérberas amarelas
consigo, as quais comprou na floricultura logo na entrada, tão logo
chegamos. Sinto a força com a qual ele esmaga os meus dedos em um aperto
forte e cheio de desespero, mas não protesto. É bom vê-lo experimentando os
sentimentos. Permanecer anestesiado por tanto tempo não trouxe nenhum
bem a ele. Pelo contrário, ele apenas postergou o inevitável. Não há outro
jeito de se livrar da dor, além de vivenciá-la. Ele não estava preparado para
isso. Nós nunca estamos prontos para sair da zona de conforto, essa é a
verdade.
Sendo guiada por ele, vamos diminuindo a velocidade até finalmente
estacar, em frente a uma singela lápide, igual a todas as outras. Este é um
lugar no qual eu gostaria de ser enterrada, quando morrer um dia. Nem
mesmo se parece com um cemitério, mas sim com um jardim enorme e
bonito.
Felipe gira o rosto em minha direção, os olhos injetados me
perguntando silenciosamente o que fazer agora. Fisgo o lábio inferior,
esfregando o seu braço direito de uma maneira encorajadora.
— Coloque para fora todos esses tormentos... se livre dessas correntes
e se permita ser feliz! — sussurro, oferecendo-o um sorriso.
Ele concorda com a cabeça e se aproxima um pouco mais do túmulo,
parecendo desolado. Arrisco um ou dois passos para trás, no entanto é
impossível desviar os meus olhos dele. Felipe é o homem cujos sentimentos
são impenetráveis. Ao olhar para trás e ver a nossa caminhada até aqui,
percebo o quão longa foi. Por isso, reconheço o quanto deve ser difícil, para
ele, dar este imenso passo. Isso é de se admirar.
Depois de passar alguns minutos com a mão livre socada no bolso da
calça, evitando encarar o iminente de frente, ele se dá por vencido. Num
rompante, Felipe se agacha, deixando as flores no colo e cruzando as mãos
em frente à boca.
— Amanda... — começa ele e, no mesmo instante, a minha garganta
arranha. — Eu te amo tanto! Não há um dia em que eu não pense em você.
Às vezes sinto o seu cheirinho de bebê e sorrio ao me lembrar das dobras do
seu pescoço brancas, cheias de talco... É tão forte que me deixa com a
sensação de que você está por perto. E, bem, quero acreditar que sim, está.
Eu... eu apenas... me perdoa! Eu sinto tanto por ter tomado a sua vida. Falhei
como irmão e não existe nada capaz de reparar esse buraco enorme que ficou
em mim. Você teria sido uma mulher impressionante, sei disso. Espero que
esteja feliz e...
A voz dele falha e assisto com pesar sua cabeça tombando para frente.
Em um ímpeto de coragem, percorro a distância entre nós e me ajoelho ao
seu lado, enlaçando-o com os braços. Felipe repousa o rosto na curva do meu
pescoço e não demora para eu sentir as lágrimas escorrendo por ali.
Conforme os minutos caminham, o choro suaviza, até finalmente
cessar. Ele seca os olhos com as costas das mãos, deixando algumas flores
sobre a lápide antes de se levantar, decidido.
— Tá tudo bem?
— Não. Mas vai ficar — afirma, estendendo a mão no ar para mim.
Eu a agarro com força, indicando que estou aqui. Ele não está sozinho.
Andamos sem pressa pelo imenso campo verdejante, cruzando com
algumas pessoas pelo caminho. Todas possuem o mesmo olhar vazio de
Felipe, a mesma postura curvada, triste. A morte tem esse efeito sobre nós:
lembra-nos de quão frágeis somos. Mostra-nos que, em um segundo, tudo
pode mudar para sempre. Irreversivelmente. Por mais inconcebível que seja.
Ao pararmos em frente ao túmulo de Bianca, noto a postura dele
mudar quase imperceptivelmente. Felipe enrijece, raspando as unhas na barba
por fazer. Arrisco dar um passo para trás, porém sua mão vem de encontro ao
meu pulso, segurando-me com suavidade.
Para Bia, é necessário mais tempo. Ele aparenta desconcerto, é como
se não tivesse a menor ideia de como colocar para fora as questões o
atormentando. Quando menos espero, Felipe se abaixa, da mesma maneira
como fizera na sepultura de Amanda. Então, surpreendendo-me, ele tira de
dentro do bolso da calça um papel dobrado com uma foto presa em um clips e
reconheço no mesmo instante. Meu coração fica do tamanho de uma ervilha
enquanto assisto Felipe colocá-lo sobre a grama, com as flores em cima.
— Você foi muito importante para mim, pretinha — sussurra, com a
voz trêmula. — Por isso foi tão difícil de entender. Me desculpa por levar
tanto tempo para conseguir... Mas eu te perdoo. Espero que tenha encontrado
a sua paz!

— Você precisa começar o tratamento, Felipe! — Atiro-me


contra a cama, inclinando o tronco para abrir o zíper da bota. — Há meses,
você me pediu para confiar em você quando decidiu parar, por conta própria,
com os remédios. E eu confiei! Mas isso foi muito irresponsável! Olha só a
bola de neve sem fim que virou a nossa relação!
— Depois de tudo o que aconteceu, eu entendo que você esteja
nervosa, Madu. Podemos discutir isso depois.
— Não! Não tem depois. Eu cansei de deixar pra mais tarde! Cansei
de acreditar que tudo vai ficar bem a qualquer momento... por que não vai,
Felipe. Você não enxerga? Não existe milagre. Existe o que precisa ser feito e
você está em negação!
Ele sorri para mim, batendo as mãos nas pernas, incrédulo.
— Não quero brigar com você. Sei que ainda está digerindo os
eventos traumáticos. Eu tenho total controle dos meus sentimentos e...
— Isso não precisa ser uma briga! — interrompo-o, irritadiça. —
Você é adulto, sabe muito bem das suas responsabilidades. Você tem
Transtorno Bipolar desde os 15 anos de idade e jura para mim que não há a
menor chance de esse medo dos medicamentos não ser um sintoma da
doença?
— Por que está fazendo isso? — pergunta, deixando escapar na voz
uma nesga do descontrole que está por vir.
Meus olhos fazem um apanhado nos sinais: os dedos trêmulos, o
maxilar travado, a ira nascendo nas íris.
— Atingi o limite. Não dá mais!
— Não dá mais...? O quê? — Uma gargalhada escapa dos seus lábios
e estremeço, lembrando-me de Renato.
Vê-lo assim é terrível. Eu queria poder abraçá-lo, confortá-lo, garantir
que tudo ficará bem. No entanto é uma mentira lavada. Nada ficará bem a
menos que essa seja a vontade dele. Nada ficará bem enquanto ele tentar fugir
da verdade. E a verdade é que ele está enfermo e precisa dos remédios, como
em qualquer outra doença.
Felipe começa a andar em círculos, enterrando os dedos nos cabelos
dourados. Ele está prestes a estourar, sei disso. Mas, mesmo assim, não posso
esconder o choque no momento em que ele agarra o abajur sobre o criado-
mudo e o atira contra a parede. Dou um pulo, cobrindo a boca com a mão e
tentando não ceder ao peso do corpo.
— Merda, Madu! — ele rosna, raivoso. — Já não basta tudo o que
faço por você? Tudo o que tenho feito? Você acha que é fácil para mim?
— Eu não disse isso.
— Eu fui na porra do cemitério hoje, eu abri essas feridas enormes!
— Eu sei. E te admiro por isso!
Ele respira fundo, passando as mãos no rosto. A ponta do seu pé
direito sobe e desce, em um tique nervoso.
— Atingiu o limite? — insiste ele, como se fosse incapaz de digerir a
informação.
Respiro fundo, sem desviar os olhos.
— Sim, Felipe. Chegamos a um impasse! — aponto o indicador para
ele. — Eu estou doando a minha vida por você e quando peço uma coisa em
troca você atira abajures e grita como um animal raivoso! Se você me ama
como diz, nós vamos marcar um horário no psiquiatra o mais depressa
possível e você vai voltar para os remédios e a terapia. Caso contrário, esse é
fim da linha para nós dois.
Ele encolhe os ombros, balançando suavemente a cabeça de um lado
para o outro.
— Eu não preciso disso, Madu. De nada disso. Basta ter paciência
comigo! Eu vou melhorar, vai ficar tudo bem — ele praticamente implora. É
lamentável.
— Não, Fê. Não vai. Sinto muito. Eu te amo demais... não vou assistir
você destruir a própria vida. Se você quer fazer isso consigo mesmo,
precisamos terminar, porque eu não vou compactuar com a sua destruição!
Os lábios dele se separam de surpresa. Então eu sou tomada pela
nostalgia ao recordar de quando pedi demissão, meses atrás. Olha só onde
viemos parar...
Inclino-me para frente novamente, tornando a calçar os sapatos os
quais acabei de tirar. Felipe não estoura, não grita, tampouco esboça uma
reação. Permanece me encarando, chocado demais para fazer qualquer coisa.
Levanto-me, despedaçada, e o encaro no mais profundo de sua alma antes de
falar as últimas palavras que gostaria:
— Estou indo embora, Felipe.
MADU —
RECOMEÇO
Esfrego as palmas das mãos na saia, tentando me livrar do suor.
Observo pelo canto dos olhos a última candidata abandonar o escritório,
agradecendo à secretária antes de se dirigir em direção à saída. Respiro
fundo, sabendo ser a próxima. Ajeito a alça da bolsa no ombro e, quando a
entrevistadora aparece na porta para me receber, quase desfaleço.
Ela é uma mulher baixinha e tem cabelos castanhos em corte Chanel.
Seu aperto de mão é tão sem vontade que me sinto segurando uma alface.
Sorrio amarelo ao me apresentar e então começamos a entrevista.
Foi Vanessa quem me indicou para essa vaga, na biblioteca da UFPR,
e por isso estou aqui. Não conta como estágio obrigatório, pois o meu curso
não tem a menor relação. Mas posso usar para eliminar algumas das horas de
atividades complementares da faculdade, e isso é muito bom. Além do mais,
o emprego oferece uma pequena remuneração condizente com as escassas
horas de trabalho. A única parte ruim será precisar novamente da ajuda
financeira dos meus pais, pelo menos até conseguir completar o estágio na
minha área. Porém, não me queixarei disso. Não adianta querer colocar a
carroça na frente dos burros... é preciso dar um passo de cada vez.
A parte boa, por outro lado, é que finalmente consegui me desvincular
por completo de Felipe. Ao contrário da primeira vez em que nós
terminamos, não me sinto tão infeliz. Estou com a cabeça tranquila porque sei
ter feito tudo o que podia por ele. Por nós. Se no passado nos separamos por
falta de diálogo e um pouco de teimosia por parte de ambos, agora eu estou
certa de ter me doado tanto quanto foi possível. Céus, eu até mesmo me
mudei para a casa dele! Mas como é possível ajudar alguém se recusando a
ser ajudado? Qual o propósito de lutar por uma causa perdida?
Por essa razão, aqui estou: tentando retomar a minha vida. Lutando
para colocar os trilhos nos eixos outra vez. Por maior que seja o meu amor
por Felipe, não posso me esquecer de me colocar em primeiro lugar. Só é
justo lutar por uma relação quando você não é a única parte fazendo isso.
Tomei essa decisão, pois não podia mais permanecer de braços
cruzados enquanto ele piorava sem admitir para si mesmo o que é evidente
para todo mundo. Droga, olhe só para a família dele! O quanto eles sofrem...
o medo que nunca vai embora de que todo dia seja o último para Felipe. De
que, em um ímpeto de coragem desmedida, movida pela doença, ele acabe
com a própria vida.
Não posso mais fingir que aguento. Isaque tinha razão, eu não tinha a
menor ideia de onde estava me metendo! É demais para mim! Acreditei ser
capaz de ajudá-lo, afinal, se foi tão fácil abandonar o tratamento, deveria ser
igualmente fácil retornar, não é? No entanto é dolorido demais assistir ao
Felipe tentando, de todas as formas, sabotar a si mesmo.
Isso não significa, porém, que eu não tenha saudade. Porque eu tenho
muita! Cruzes, é como se faltasse algo crucial na minha vida. E, de fato, falta.
Todo dia, do amanhecer ao anoitecer, sou acolhida pela sensação de vazio.
Algo dentro de mim já não é mais como antes. Eu preciso ficar repassando na
cabeça a razão para persistir na escolha, a fim de não sucumbir à vontade de
pegar o primeiro ônibus até o endereço de Felipe e acabar logo com isso.
Não posso voltar atrás. Seria como dizer “está tudo bem você se destruir aos
poucos”, e não poderia ser o mais distante disso.
Logo depois do incidente com Renato, precisei comprar um novo
celular, visto que ele arremessou o antigo pela janela. Menti para todos que
fui assaltada e assim segui os meus dias. Eu não tenho mais o número de
Felipe e nem ele tem o meu. Nossas vidas, outrora tão entrelaçadas, agora
não possuem mais nenhum vínculo em comum. Mesmo assim, ele nunca me
procurou, desde então. Jamais foi atrás de mim, embora saiba onde eu moro.
Talvez já tenha seguido em frente.
Eu, por outro lado, só consigo me perguntar quando vou conseguir
esquecê-lo por completo e se realmente vou.

Vanessa corre na minha direção com um sorriso enorme no rosto


e os braços bem abertos, sem se importar com o fato de estarmos no meio do
shopping. Cedo à vontade de rir e abraço em meio a gargalhadas. Dane-se se
parecemos duas loucas! Hoje é um dia especial. Finalmente tive uma notícia
boa depois de uma maré ruim!
— Amiga, parabéns!!! Eu sabia que você ia conseguir essa vaga!
— Obrigada, Nessa! Se não fosse por você...
— Ai, fica quieta! — Ela desfere um tapinha contra o meu braço. —
Vamos, precisamos fazer um brinde para comemorar! Tem um restaurante
que está com promoção de Chopp.
— O quê? — pergunto, forçando um tom teatral. — A maior natureba
de todas querendo beber no meio da tarde de uma terça-feira? Ai, meu Deus!
Quem é você e o que fez com a minha melhor amiga?
— Tonta! É só em ocasiões especiais, não se acostume!
Enganchando o braço no meu, ela me guia em direção à escada
rolante, com o inabalável bom humor de sempre. Vanessa está vestindo o
uniforme da boutique onde trabalha e isso nos deixa severamente destoantes.
Enquanto eu uso um vestido branco com a cintura marcada e sapatilhas,
aproveitando o clima consideravelmente agradável desta semana; ela está tão
arrumada com seu conjunto social preto que poderíamos muito bem sair
daqui direto para um barzinho.
Pedimos dois Chopps e escolhemos uma mesa afastada das demais, na
praça de alimentação. Pela primeira vez em dias eu me sinto leve como uma
pluma flutuando ao vento. Consigo até mesmo ver um lampejo de esperança
lá na frente. “As coisas vão melhorar”, penso comigo mesma, deixando a
bolsa sobre a cadeira vazia.
— Chegando em casa, preciso ligar para os meus pais para dar a
notícia... Eles vão ficar super felizes!
Vanessa sorri para mim, erguendo a caneca no ar. Empertigo-me,
imitando o movimento, com um sorriso enorme no rosto.
— Um brinde ao arco-íris depois da tempestade!
— Até que enfim, né? — brinco, arrancando risadas dela.
Encosto o copo no dela, antes de levá-lo até os lábios. A bebida desce
refrescante pela garganta, combinando com o clima mais ameno do começo
da primavera.
— Dá para acreditar que ano que vem já é o nosso TCC? — pergunta
Vanessa, com os olhos distantes.
— Nem me fale! Você já começou a pensar em algum tema?
— Ainda não tenho a menor ideia! E você?
Beberico um pouco mais do Chopp, pensando nisso pela primeira vez,
de fato.
— Um dos motivos para eu ter escolhido o curso foi porque, no
ensino médio, eu achava tudo tão bonito... nossas células, os tecidos... são tão
complexos. Eu adorava os desenhos que os professores faziam...
— Eu também! — Vanessa concorda com a cabeça, sorrindo.
— Deve ser um desafio ensinar biologia para uma criança com
deficiência visual, né? Acho que quero algo relacionado a esse tema, não
sei...
— É por isso que eu te amo, Madu! — brinca. — Você é foda!
Então, em meio a risadas constantes e várias rodadas de Chopp, a
conversa flui por assuntos diversos. Desde faculdade até nossas cidades
natais e as melhores séries na Netflix, do momento. Eu não posso deixar de
constatar, em determinada altura, o quanto é bom experimentar a leveza
novamente.
FELIPE —
DECISÃO
Desligo o notebook, afastando a cadeira da mesa o mais
silenciosamente possível. Fechando os olhos para fugir da tontura que me
acertou em cheio, respiro fundo e levo os dedos trêmulos ao nó da gravata,
afrouxando-o. Logo em seguida, subo as mangas da camisa, desesperado por
tentar me livrar do calor exacerbado subindo pelos meus órgãos internos.
Diminuo a temperatura do ar condicionado e apoio os cotovelos sobre a
superfície da mesa, enquanto espero o mal-estar me abandonar.
Não é a primeira vez no dia e estou certo de estar longe de ser a
última. No entanto, nem mesmo isso é capaz de abalar a minha determinação.
“São apenas alguns obstáculos”, penso comigo, concentrando-me para não
vomitar aqui mesmo.
Os segundos correm tranquilamente, ao passo em que eu permaneço à
mercê do meu corpo. Aguardando uma melhora, juntando a segurança
necessária para me levantar sem correr o risco de ser arrastado para o chão.
Eu tenho uma parcela de culpa nisso tudo, afinal, não estou conseguindo
colocar comida alguma para dentro. Embora eu tenha consciência sobre a
necessidade de me forçar a comer, não o faço a menos que esteja trêmulo de
fraqueza, como agora.
Constato animado que o mundo parou de girar e, com isso, levanto-
me com uma nova dose de confiança. Pé ante pé, caminho até a porta,
recostando-me no batente e cruzando os braços sobre o peito. Não posso
refrear a nesga de decepção a me dominar tão logo meus olhos recaem sobre
Jéssica, dando-me um choque de realidade. Já conta um tempo relevante
desde que Madu deixou de fazer parte da minha vida e mesmo assim é difícil
abandonar a sensação de que ela estará sentada na escrivaninha, concentrada
no trabalho, os cabelos loiros presos no alto da cabeça de maneira
desconcertantemente sexy. Ao invés disso, existe a minha nova estagiária,
uma garota dedicada e talvez muito tímida, que estremece sempre quando eu
me aproximo demais de sua mesa de trabalho.
Balanço a cabeça em negativa, deixando escapar um suspiro audível,
o qual a indica a minha presença. Aprumando-se na cadeira com uma
expressão de pavor estampando os traços harmônicos, Jéssica pigarreia antes
de me perguntar titubeante:
— P-precisa de algo, senhor Antunes?
— Não, obrigado. — Sorrio para confortá-la. — Vim apenas avisar
que já deu o horário.
— E-eu só vou terminar de redigir esse documento e já vou — sua
voz falha no final.
Confiro as horas no relógio em meu pulso e arrisco alguns passos em
direção a ela. No mesmo instante, Jéssica desvia o olhar, visivelmente
nervosa. “Por Deus, eu fiz algo para deixá-la assim?”, pergunto-me,
desconcertado com a forma como a afeto. Repousando os dedos sobre a
mesa, procuro o seu olhar, deixando-a ainda mais perplexa.
— Pode terminar amanhã, tudo bem. Já fez o bastante por hoje. Além
do mais, vai acabar perdendo o ônibus.
Jéssica assente, com a cor se esvaindo do rosto, parecendo
completamente focada em encarar as próprias mãos. Desistindo de tentar
manter um diálogo natural entre nós dois, meneio a cabeça, girando nos
calcanhares para sair daqui.
— Ah, sim, você consegue trancar tudo sozinha, por favor? —
pergunto, estacando no caminho. — Tenho um compromisso agora, não vou
poder te esperar.
— C-claro, senhor Antunes.
— Qualquer coisa pode chamar a Leonor, tudo bem?
— Ok.
Sorrio, acenando brevemente com a cabeça em despedida e então saio
em passos apressados.

Fecho aporta atrás de mim, sentindo o cansaço recair sobre os


ombros. Foi um dia estressante ao extremo, mas finalmente poderei
descansar. Encontro o vazio do meu lar e sinto uma pontada no peito,
sabendo exatamente quem está faltando aqui. Com um pesado suspiro,
começo a subir o lance de escadas e, conforme me aproximo do terceiro
andar, as risadas de Leonor se tornam mais altas.
Quando chego à sala de televisão, onde a encontro, o sorriso já ocupa
todo o meu rosto, indo de orelha a orelha. Eu não teria a menor chance sem
essa segunda mãe dada pela vida, estou certo disso.
Tiro a camisa de dentro da calça e percorro a distância até o sofá,
jogando-me contra ele ao seu lado para só então perceber no fato de se
encontrar ocupada com as agulhas de crochê. Deus sabe que todos os tapetes
que já tive na vida foram feitos por Leonor. E ai de mim se eu porventura
comprasse algum na rua.
Pausando o filme de comédia ao qual estava assistindo, ela me encara
cheia de expectativa.
— Quero saber tudinho! — afirma, arrancando-me uma risada. —
Como foi a terapia?
Recosto a cabeça sobre o seu ombro, surpreso por ter gostado tanto.
Quero dizer, eu realmente precisava colocar para fora toda a angústia me
assolando. E foi ótimo ter alguém disposto a ouvir. Mais do que isso, alguém
disposto a ajudar. Tento buscar na memória se alguma vez na vida já me senti
tão bem com algum terapeuta e descubro que não, jamais havia
experimentado a maravilhosa sensação de estar em paz comigo mesmo. A
cabeça silenciosa, sem os sons aterrorizantes de um passado que já deveria ter
ficado há muito tempo para trás.
Conto para Leonor, sem deixar escapar nenhum detalhe, a forma
maravilhosa como estou me sentindo agora e o quanto a sessão me ajudou.
Sua animação em ouvir a sabatina me contagia e, com isso, vem a certeza de
estar fazendo a coisa certa. Ou melhor, vem a reafirmação necessária para me
manter firme e forte nesta complicada etapa de me adaptar ao tratamento.
— E os remédios, ainda tão dando enjoo?
— Um pouco... — admito, sem me deixar abalar, porém. — Estive
sonolento durante todo o dia e passei mal um punhado de vezes, mas seria
desonesto da minha parte fingir que não está me fazendo nenhum bem.
— Você já percebeu alguma mudança?
— Algumas, acho. — Uno as sobrancelhas, pensativo. — As vozes na
minha cabeça finalmente silenciaram... me sinto mais bem disposto... menos
explosivo... e, com certeza, mais otimista! E você, reparou em algo?
— Menino, e como! — brinca ela, gesticulando. — O verdadeiro
Felipe finalmente voltou! Deus me livre, parecem duas pessoas diferentes,
sabia? Até a sua postura muda, sua expressão... dá pra ver nos seus olhos que
está mais leve, mais tranquilo.
— Que bom. É um alívio saber que estou melhorando.
— Você está fazendo a coisa certa, meu bem!
Deixo um beijo na bochecha de Leonor e tomo um impulso para me
levantar.
— Vou te deixar assistir ao filme em paz. — Pisco para ela, sorrindo.
— Boa noite!
— Tudo bem, querido. Durma bem!
Apesar de não passar das oito, não menti sobre estar prestes a me
deitar. O meu corpo ainda não se habituou à medicação. Desde que retomei o
tratamento, não tenho mais energia para me exercitar durante a semana. O
trabalho tem me consumido além do normal. Além do mais, ainda tem
Jéssica e a polidez necessária para lidar com ela sem abrir margem para
deixá-la ainda mais contida em minha presença.
Atravesso o quarto, desabotoando a camisa o mais depressa possível.
Instintivamente, caminho até o criado-mudo, atraído pelo mais novo
componente da decoração. Sobre ele, um porta-retratos jaz solitário,
chamando atenção em sua moldura feita com rolhas de vinho. Tão logo meus
olhos estudam a foto, é impossível dominar um sorriso.
Nela, Madu e eu nos encontramos no restaurante Sapé. Essa é a nossa
primeira e única foto juntos. Minha cabeça está repousada sobre o ombro
dela, como eu fizera há pouco com Leonor. Ela está bonita de um jeito
radiante, os olhos esverdeados arregalados da forma como mais adoro.
Nossos sorrisos, no entanto, são o que, de fato, chamam atenção. Parecemos
tão felizes, tão completos, tão afortunados. Uma fisgada no peito me deixa
momentaneamente desnorteado e preciso me sentar na cama.
Agarro o porta-retratos com as duas mãos, trazendo-o para mais perto
de mim. Resvalo o polegar sobre a imagem dela, na tentativa vã de conter a
saudade esmagadora aqui dentro. Pelos sete infernos, existem os dias em que
quase não consigo aguentar. Contudo, uso estes momentos de dor extrema
como combustível para me manter firme na minha recuperação. Quero dizer,
a situação toda só chegou aqui por uma razão: a minha inconsequência.
Maria Eduarda me disse algo que reverberou nos meus tímpanos por
dias depois de ela ter ido embora: não existe outro caminho além desse. Não
há como fugir. Apesar de ter sido praticamente engolido pela amargura, o
choque de não tê-la mais presente foi necessário para me mostrar o quanto eu
ainda poderia perder, caso continuasse em negação. Afinal, qual era
probabilidade de todos ao meu redor estarem equivocados e eu não? Quando
percebi isso, entendi que precisava desesperadamente de ajuda.
Admitir é o passo mais doloroso, no entanto, uma vez que você o faz,
fica fácil partir para a etapa seguinte. Dirigi até a casa dos meus pais e, pela
primeira vez em muito tempo, ofereci abertura para que eles pudessem
verdadeiramente se aproximar de mim e me oferecer suporte. Ao contar a
minha decisão, o alívio ficou estampado no rosto dos dois. Eles foram
comigo na primeira consulta, como forma de apoio.
Leonor também foi fundamental na caminhada. As reações adversas
acarretadas pelos remédios foram cruéis já desde o primeiro dia. Mas ela
permaneceu aqui, dia após dia, disposta a sentar e conversar, como sempre
esteve. Não me deixou vacilar, mesmo diante das adversidades.
Porém, não é apenas por eles que estou fazendo isso, tampouco por
mim mesmo. É também, mas a verdadeira força-motriz por trás desta
importante decisão é Maria Eduarda. Ela é a razão principal para eu levantar
da cama diariamente e vencer todos os infortúnios. Ela é a motivação, mesmo
quando estou a um fio de desistir.
Madu fez muito por mim e eu nem estou me referindo ao fato de ter
vindo morar aqui. Ah, não! Vai muito além disso. Se hoje eu não mais pereço
na escuridão do passado, é graças ao seu amor infindável. Sua entrega sempre
foi sincera e completa. Eu devo isso a ela, por trazer vida onde só existiam
ruínas. Por ter me despertado de uma longa hibernação.
É por Madu. Por ela eu vou melhorar. Serei tudo o que ela merece e
nada menos que isso.
MADU —
ANIVERSÁRIO
Pigarreio, desconcertada, segurando a sombrinha nervosamente
sobre a cabeça para me proteger da chuva. Os meus pés e pernas se
encontram encharcados depois de minutos a fio passados nesta mesma
posição, mas sinto-me incapaz de sair daqui. À frente, a mansão onde tenho
um punhado de recordações se projeta de maneira imponente, como se me
desafiando a entrar. Respiro fundo, alternando as pernas a sustentarem o peso
do corpo.
Contrariando todos os conselhos dados pelo meu subconsciente, saí
de casa decidida a conversar com Felipe para tentar convencê-lo a retomar o
tratamento. Quero dizer, quão idiotas somos por jogar a nossa história no lixo
assim tão fácil? Céus, eu o amo demais e, embora os dias tenham se
transformado em semanas e as semanas em meses, desde que sai daqui, o
sentimento não diminuiu. Pelo contrário, a angústia tem crescido
exponencialmente.
Então por que é tão difícil percorrer o caminho até o escritório e
encarar os penetrantes olhos de safira? Talvez eu simplesmente não esteja
preparada para lidar com a intensidade deles. Ou quem sabe eu esteja com
medo de Felipe ter seguido em frente.
Por Deus, que tortura sem fim! Hoje é a droga do meu aniversário e
nada está como eu imaginei! Todos os planos maravilhosos feitos para esse
dia envolviam Felipe. Todas as possibilidades foram por água abaixo.
Movida pelo amargor, avanço pelo trajeto percorrido tantas outras
vezes. Atravesso o ornamentado portão e sigo pelo caminho no jardim
impecável, ladeado por pedregulhos brancos. Abandono o guarda-chuva do
lado de fora da porta e, prendendo a respiração, entro para a recepção.
Meus olhos são instantaneamente atraídos para a nova secretária.
“Será que ela é uma estudante de direito?”, penso comigo mesma, sem
compreender a razão para isso me chatear tanto. Seus cabelos castanhos caem
em cascatas pelas costas, em ondas tão perfeitas quanto se tivesse acabado de
sair de um salão de beleza. As maças do rosto são acentuadas e os lábios têm
o formato de um coração. Engulo em seco, ignorando o fato de ela ser
realmente bonita e tentando me convencer que isso não significa nada.
Fitando-me por trás dos óculos, ela me recebe com um sorriso tímido
responsável por revirar o meu estômago. Ela bem poderia seguir carreira de
modelo, tenho certeza disso. “Céus, Madu! Isso não significa nada. Ela
apenas trabalha aqui!”, tento me tranquilizar, porém o meu subconsciente
completa: “tal como você, um dia”.
— Eu... — minha voz morre no ar e eu preciso limpar a garganta para
buscá-la novamente em algum lugar dentro de mim. — Eu estou procurando
por Felipe.
— Ah, sim. Você tinha um horário marcado?
— Não. Apenas estava passando por aqui e resolvi... hum... somos
conhecidos. Na verdade eu trabalhava aqui, assim como você! — mordo o
lado de dentro da bochecha, para refrear a língua. Inferno, por que eu falei
tudo isso para ela?
A secretária faz uma expressão confusa, assentindo com a cabeça. Ela
parece hesitante.
— É que o senhor Antunes não está na cidade hoje... ele viajou a
trabalho. Posso deixar o recado, se você quis...
— Não! — interrompo-a. — Não será preciso. Obrigada! — Dou uma
risadinha nervosa, sentindo-me uma maluca. Depois disso, com a certeza de
ter atingido a cota de estranhezas do dia, dou alguns passos para trás,
querendo acabar logo com isso. — Bom, já vou indo. Obrigada outra vez!
Sem dar a oportunidade de ela responder, praticamente corro para
fora, agarrando a sombrinha e desejando me afastar o mais rápido possível
daqui. Depois de aproximadamente duas quadras, cedo ao peso das pernas e
sento no meio-fio, arrasada. As lágrimas pululam dos olhos, com a mesma
intensidade com a qual as gotas da chuva caem do céu.
Por alguma razão misteriosa até mesmo para mim, ter vindo ao Batel
despertou os piores sentimentos possíveis. Onde eu estava com a cabeça?
Quero dizer, não é obvio que ele não me quer mais? Caso contrário já teria
arrumado um jeito de me procurar. Ele preferiu seguir em frente, como eu já
deveria ter feito há muito tempo.
A cadência da precipitação diminui consideravelmente enquanto
permaneço deprimida, no meio de uma rua estranha. Então tenho um choque
de realidade ao refletir sobre o quão patética devo estar neste momento.
Molhada, perdida, desolada. Por isso, em um rompante, levanto-me, pronta
para retornar ao conforto do meu lar.
Essa é a deixa para o fim. Usarei este dia como o marco. O término de
um ciclo importante na minha vida. Eu amei Felipe intensamente e fiz tudo o
que esteve ao meu alcance. E, apesar de ainda nutrir os mesmos sentimentos
puros aqui dentro, preciso reconhecer que é chegada a hora de prosseguir.
Afinal de contas, depois de um ponto final tem sempre um novo parágrafo
apenas aguardando para nos mostrar todas as oportunidades existentes.

Desligo o celular, após falar por alguns minutos com os meus


pais. Alcanço o notebook na mesa e me dirijo ao sofá, vestindo o meu pijama
mais confortável e com a toalha ainda enrolada na cabeça.
Diferente dos nossos eventuais telefonemas, desta vez eles pareciam
aéreos. Tanto mamãe quanto papai desejaram felicitações típicas de
aniversário, como “que você seja muito feliz” ou “espero que viva muitos
anos e tenha muita saúde”, entre outra infinidade de palavras as quais
pareciam decoradas. No entanto, o que mais me incomodou foi o fato de
ambos terem encerrado o diálogo o mais brevemente possível. Até mesmo o
meu pai, que costuma ser mais prolixo. Quase como se não quisessem
verdadeiramente conversar comigo e estivessem ocupados demais para isso.
Eu sei, parece dramático afirmar algo assim, mas hoje está sendo um
dia de cão e queria apenas um pouco de atenção. Somente assim conseguiria
me afastar desse buraco onde, por conta própria, estou me enfiando. É
exatamente por isso que, antes de ligar o computador, alcanço o celular e
abro no WhatsApp, clicando na foto de Vanessa para digitar em seguida:
“Nessa, o que vamos fazer essa noite?”.
Alguns segundos depois, a resposta chega como um balde de água
fria. “Madu, sinto muito! Uma vendedora do turno da noite faltou e como
hoje é fechamento de meta, vou precisar cobrir a falta”.
Permaneço encarando o visor do celular por algum tempo, sem me
conformar com a minha falta de sorte. Nós havíamos combinado de matar
aula na faculdade para comemorarmos o meu aniversário e ela ficou de vir
aqui quando saísse do trabalho. Santo Deus, está bem que é o meu inferno
astral, mas precisava dar tudo errado de uma só vez?
“Ai, não fala isso, por favor! Esse é o pior aniversário de todos! Ser
adulto é uma droga!”, mando, tentando pensar em uma alternativa para o
resto do dia que seja diferente de me entupir de porcarias enquanto choro
assistindo a algum filme na Netflix. Meu celular vibra e, desanimada, leio a
última mensagem dela: “Espero que fique bem!”.
Bufo, abrindo o notebook para ligá-lo. Raspo os dedos nas teclas, com
a mente inquieta. Será que Felipe ao menos se lembra de que hoje é o meu
aniversário? Será que, mesmo por um segundo, ele pensou em mim hoje? Se
ele soubesse o quanto o meu dia está uma droga, ele me procuraria apenas
para eu me sentir melhor?
“Não seja ridícula, Madu”, meu subconsciente zomba e sou obrigada
a concordar. Como se ele Felipe se importasse com alguém...
Ao abrir o navegador, deparo-me com a notícia em destaque,
responsável por roubar todo o fôlego dos pulmões. Enrijeço no lugar, lutando
para acalmar o coração batendo desenfreadamente.

EX-DIRETOR EXECUTIVO DA POLIBEV PERMANECE


PRESO APÓS SER OUVIDO EM AUDIÊNCIA
Empresário da maior cervejaria da América Latina é acusado de tentativa de
estupro e agressão

Fisgo o lábio inferior, sentindo os olhos umedecerem. Abro a matéria


completa e, conforme leio o conteúdo, sou tomada por um misto de alegria e
alívio. Felizmente, a minha identidade foi preservada, mas, além de mim,
existem mais duas denúncias contra Renato Monteiro. Ao pensar que Felipe o
estava defendendo contra outras mulheres que foram vítimas, assim como eu,
um arrepio desce pela espinha. Ainda bem que ele caiu em si, ou acabaria
cometendo uma injustiça sem tamanho.
Eu entendo, essa é o trabalho dele. Porém, no fim das contas, o que
vale mais? O status de ser bem sucedido profissionalmente, ou ter a
consciência limpa e poder dormir com tranquilidade à noite, por não ter
ajudado a manter um homem como Renato a solta?
Balanço a cabeça em negativa, resistindo à tentação de procurar mais
informações sobre o caso. Eu prometi para mim mesma, há algum tempo,
afastar-me o máximo possível das notícias, a fim de evitar o sofrimento. O
que passou deve ficar para trás, pois não existe lugar mais adequado. Nada
jamais mudará o terror causado por Renato. O melhor para fazer a respeito é
esquecer, afinal, é como dizem: a vida precisa seguir.
Só então me dou conta do quanto a notícia teve um reflexo positivo
sobre mim. A justiça está sendo feita! Saber disso é revigorante e serve como
uma nova injeção de ânimos. Mesmo momentaneamente, consigo me
esquecer dos detalhes ruins de hoje e me agarrar à esperança. Ainda tenho a
noite toda para reverter a perspectiva deste aniversário.
Navego pelo Facebook por muito tempo, distraindo-me com toda a
sorte de conteúdos inúteis e me pego até mesmo rindo com algumas imagens.
Leio e respondo todas as congratulações no meu mural, sem conseguir me
livrar da decepção por não encontrar nenhum parabéns sequer de Felipe.
“Mas por que ele faria isso, afinal de contas? Não temos mais nada...”,
penso comigo mesma, exatamente quando recebo uma nova notificação.
Com um longo bocejo, abro a caixa de mensagens sem esperar muita
coisa e qual não é a minha surpresa ao descobrir que a mensagem veio
justamente dele?
Ai, meu Deus!

Felipe: Eu preciso concordar com você, essa casa causa arrepios.


Morar aqui jamais foi tão solitário...

Esfrego os olhos, apenas para me certificar de que não foi uma peça
pregada pela minha mente devastada pela saudade.
Endireito-me no sofá, ajustando o notebook no colo. Um sorriso
aparece no meu rosto e eu nem tenho tempo de ralhar comigo mesma por
jogar o orgulho no lixo.
Madu: Ao menos concordamos em algo.

Felipe: Muito mais do que você imagina... como foi o seu dia?

Madu: Nada extraordinário. Gostava mais de fazer aniversário na


época em que as festas eram temáticas.

Felipe: hahahah

Felipe: Se isso te consola, o meu dia também foi horrível.

Madu: Na verdade consola, sim. Obrigada!

Felipe: Sempre muito doce...

Madu: Estou brincando!

Madu: Ou não...

Madu: Por que teve um dia ruim?

Felipe: Bom, ironicamente hoje faz dois meses que te perdi outra vez.

Felipe: Não é exatamente a minha data favorita no mundo.

Começo a digitar umas três vezes e estaco, afogada em um mar de


sensações contraditórias. Só percebo estar roendo as unhas quando acabo
deixando uma delas muito curta. Fecho os olhos, contando até dez para me
acalmar. Mas o fato é que eu não consigo. Meu corpo todo anseia
desesperadamente por Felipe, desde o dia em que coloquei um fim em tudo.
E isso foge do meu controle.
No entanto, eu simplesmente não sei o que responder. Afinal, dois
meses já se passaram! Droga, por que ele precisou esperar tanto para dar o
primeiro sinal de vida? Qual a droga do problema dele?

Felipe: Quero muito conversar com você!

Felipe: Te devo algumas explicações...

Madu: Humm...
Felipe: Não estou pedindo para me perdoar, nem para voltar comigo.
Apenas... me ouvir.

Felipe: É muito audacioso da minha parte querer levar a minha ex-


namorada para jantar no aniversário dela?

Madu: Depende.

Madu: Se estiver pensando em um lugar como aquele Sapé, até


podemos negociar...

Madu: Caso contrário, sem chance nenhuma!

Felipe: Sério que a comida é mais importante que a minha


companhia?

Madu: Você me conhece o suficiente para saber que... SIM!

Felipe: hahaha

Felipe: Bom, já é alguma coisa!

Felipe: Te busco às oito?

Madu: Oito está ótimo para mim.


MADU —
FELICIDADE
Estou colocando os brincos quando o som da campainha me faz
saltar no lugar, de susto. Fecho os olhos e conto até dez na tentativa de
diminuir o ritmo frenético com o qual o coração bombeia sangue para o
corpo. Céus, minhas mãos estão suando tanto!
Respiro fundo e caminho sobre os scarpins Valentino dados por
Felipe na época em que nós ainda tentávamos nos enganar, fingindo não
termos interesse um no outro. Confiro pelo olho mágico, apenas por
desencargo de consciência. Depois do evento traumático com Renato, eu
adquiri uma paranoia imensa, da qual não consigo me livrar de maneira
alguma.
É impossível dominar um sorriso ao contemplar Felipe parado ao lado
de fora, parecendo tão nervoso quanto eu — ou talvez até mais. Abro a porta
de uma vez e meu estômago revira de excitação ao sentir o perfume dele
vindo de encontro ao meu rosto. Fico momentaneamente desnorteada.
Um sorriso enorme rasga os lábios de Felipe, revelando os dentes bem
alinhados. Ele veste um terno italiano azul marinho de corte impecável, com
a camisa de trama xadrez por baixo da gravata slim bordô. Percebo suas duas
mãos para trás, como se estivesse trazendo algo consigo.
— Por Deus, você está deslumbrante! — sussurra ele, despertando-me
do transe.
Pensei em usar um dos meus vestidos mais formais, mas, ao invés
disso, aproveitei o fato de morar perto do shopping Mueller para correr em
busca de algo capaz de surpreendê-lo. Escolhi um macacão branco com
detalhes no decote em guipir azul marinho que aparenta ser feito sob medida
para mim. E, bem, deu certo! Vejo a surpresa nos seus olhos e isso faz as
borboletas no estômago voarem em todas as direções.
— Você também!
— Posso entrar?
— Er, é claro que sim! — fisgo o lábio inferior, sem conseguir
compreender a razão para estar tão tímida com ele. Sinto-me como uma
adolescente indo ao primeiro encontro.
Dou alguns passos para trás, saindo do caminho. Felipe entra,
fechando a porta atrás de si e, no segundo seguinte, estende um imenso buquê
de lírios brancos para mim. Arfo em surpresa, tomando-o nas mãos e
afundando o rosto nele, a fim de sorver o perfume leve e adocicado. É a
primeira vez que ele me dá flores! Felipe não faz exatamente o tipo
romântico, eu sei, por isso é impossível me livrar do sorriso idiota. Amo
quando ele se esforça para me deixar feliz... faz eu me sentir importante na
sua vida e não apenas uma coadjuvante.
— São lindas! Obrigada!
— Sabe o significado delas? — pergunta ele, com um maravilhoso
sorriso torto. Balanço a cabeça em negativa, magnetizada por sua presença.
— Você vai saber... mas não agora. — diz, piscando para mim.
Meu coração perde uma batida e, tentando me esconder dos olhos
desconcertantemente intensos, ocupo-me em encontrar um bom recipiente
para o buquê.
Felipe se recosta contra a parede, colocando as mãos nos bolsos. A
cada passo dado no minúsculo apartamento, sinto o peso do seu olhar me
acompanhando. A sensação é a mesma de quando ainda estávamos nos
conhecendo. É tudo engraçado e nostálgico e, embora eu tente manter firme
na minha cabeça que a única condição para reatarmos depende apenas dele, o
meu coração parece já tê-lo recebido de bom grado. “Droga, por que sou
assim tão vulnerável ao efeito de Felipe?”, pergunto-me, sem jamais
descobrir a resposta.
Finalmente percorro a distância entre nós, parando em sua frente e
Felipe oferece o braço em um gesto cavalheiro.
— Obrigado por aceitar o convite! — diz ele, ao sairmos do
apartamento.
— Obrigada por me convidar.

O restaurante escolhido por Felipe para passarmos o meu


aniversário é quase um ponto turístico da capital paranaense, segundo ele.
Chama-se Terrazza 40 e fica no quadragésimo andar de um prédio,
oferecendo uma linda vista panorâmica da cidade.
Ele reservou uma mesa em um ambiente mais privado do salão, ao
lado das amplas janelas cuja visão arranca o fôlego. Lá fora, Curitiba é
charmosamente iluminada por milhares de luzes. Não poderia existir um
lugar mais perfeito para esta noite!
Felipe arrasta a cadeira para mim, sendo bem sucedido em me manter
com um sorriso bobo-alegre no rosto. Então, quando está prestes a se sentar,
ele tateia os bolsos. As sobrancelhas unidas indicam existir algo errado.
— Droga, esqueci a carteira no carro! Volto em um segundo! Que tal
ir dando uma olhada no cardápio enquanto isso?
— T-tudo bem — murmuro, estranhando o fato de Felipe Antunes ter
se esquecido de algo. Busco na memória se em alguma outra vez ele já fez
algo parecido e constato que não, isso não condiz muito com a sua
personalidade. Assisto-o girar nos calcanhares e fisgo o lábio inferior, sem
conseguir entender a razão para o meu coração estar tão acelerado assim.
Embora eu prefira esperá-lo voltar para decidirmos o nosso pedido,
faço o que ele sugeriu, apenas para me distrair deste nervosismo bobo me
dominando desde que Felipe entrou em contato comigo, hoje à tarde.
Ao abrir o cardápio, encontro um bilhetinho escrito à mão, com a
caligrafia dele. “É tudo por você!”, leio, embora a minha visão já esteja
embaçada pelas lágrimas. Pigarreio, espalmando uma das mãos sobre o
coração. Com a outra, pesco o papel timbrado dobrado ao meio, logo atrás do
bilhete. Trata-se de um laudo médico. Sei disso pela assinatura acompanhada
do CRM, no final. Conforme absorvo as palavras, descubro que Felipe
retomou os medicamentos para o Transtorno Bipolar, não há uma, nem duas
semanas; mas sim há um mês e meio. E que, de acordo com o psiquiatra, ele
já se encontra estabilizado e com a dose de lítio nivelada. Além do mais, já
conta quinze dias desde o último episódio de mania. Os intervalos tendem a
ser cada vez maiores, até que praticamente cessem.
A esta altura, as lágrimas correndo pelas minhas bochechas são tantas
que eu tenho certeza de estar com a maquiagem arruinada e os olhos
parecidos com os de um urso panda. Pego o segundo papel timbrado, desta
vez da terapeuta. Com a respiração entrecortada, leio sobre o quanto ele está
dedicado ao tratamento dele. É uma grata surpresa digerir todo o conteúdo à
minha frente.
Quero dizer, não é como se Felipe estivesse me oferecendo promessas
vazias; mas sim as provas concretas de que ele se agarrou a minha condição
para ficarmos juntos. Conforme sou tomada pelo entendimento, mais os
membros do corpo tremem. Estes dois meses nos quais não me procurou não
foi por estar seguindo em frente, como eu imaginava. Ele jamais deixou de
pensar em mim! Santo Deus, acho que vou enfartar!
O meu celular começa a tocar, buscando-me para a realidade
novamente. “O que está acontecendo?”, penso comigo mesma, olhando ao
redor para ver se ele já está chegando. Resignada, atendo a chamada para
descobrir ser a voz dele do outro lado da linha. Antes que eu consiga parar
para pensar que ele não deveria ter o meu número novo, pego-me
perguntando com a voz falha:
— Fê, c-cadê você? Eu... o que está acontecendo?
— Meu amor, preciso que você olhe pela janela, lá em baixo... —
pede ele, com a ligação cortando, e desliga em seguida.
Tremendo dos pés à cabeça, levanto-me e percebo que minhas pernas
estão com consistência de geleia de mocotó. Prendo a respiração ao me
aproximar do vidro e, ao olhar para fora e encontrar o que Felipe queria me
mostrar, o mundo inteiro parece parar.
Sou tomada pela emoção no estado máximo e não sei escolher se rio
ou se choro, por isso acabo fazendo os dois. Lá em baixo, um enorme letreiro
luminoso pisca ininterruptamente com os dizeres: casa comigo?
Meu coração martela furiosamente dentro da caixa torácica, chega a
doer. “Minha nossa, minha nossa, minha nossa!”, são as únicas coisas que
consigo pensar, incapaz de esboçar a menor das reações.
Ouço um suave pigarrear atrás de mim, responsável por uma nova
onda de adrenalina. Agora não somente as pernas estão moles, como todos os
membros. Estou entrando em fusão. Giro nos calcanhares, encontrando
Felipe com o sorriso mais lindo do mundo.
Ele avança até ficar bem pertinho e, quando se ajoelha na minha
frente, não posso evitar levar as mãos à boca.
— Eu fui um idiota por não perceber antes o quanto estava doente... e,
com isso, quase joguei fora o que tenho de mais valioso. Maria Eduarda, você
salvou a minha vida! Eu estive perdido por muito tempo, rumando sem
direção... mas, agora, tudo passou a fazer sentido. Você enxergou algo bom
em mim e me deu um motivo para lutar por uma batalha que eu já tomava
como perdida. Eu quero ser uma pessoa melhor! — Ele enfia a mão direita
dentro do bolso do paletó e, ao tirá-la de lá de dentro, está com uma caixinha
preta de veludo segura nos dedos. — Se eu conheço a felicidade hoje, é
graças a você, Madu! É tudo por você, minha menina!
Ele toma impulso para se levantar e só então percebo que também
está chorando — não na mesma intensidade que eu, é claro, mas,
definitivamente chorando. Usando as costas da mão para secar as maças do
rosto, ele avança mais um passo, parando bem próximo de mim. Posso até
sentir sua respiração ricochetear contra o rosto.
— Me deixa te fazer feliz do mesmo jeito que você me faz! —
sussurra, com o sorriso ainda firme no rosto e, logo em seguida, abre a
caixinha, revelando um delicado e maravilhoso anel de diamante.
Tento responder, porém me encontro estupefata. É como se um gato
tivesse comido a minha língua. Por isso, tudo o que faço é puxá-lo para um
abraço. No mesmo momento, seus braços se fecham ao redor da minha
cintura, com força. Busco seus lábios, sedenta de saudade. Felipe
corresponde ao beijo com ternura, fazendo-me esquecer de tudo em volta.
— Eu aceito! — assopro contra sua boca, finalmente encontrando a
voz.
— Eu te amo!
— Eu também te amo!
Seu sorriso se alarga um pouco mais, se é que existia como. Felipe
toma a minha mão entre as dele, deslizando a joia pelo dedo anelar. É então
que uma salva de palmas irrompe ao nosso redor, deixando-me mortificada.
Meus olhos desviam dele — pela primeira vez desde que chegamos — para a
segunda explosão de sentimentos da noite. A poucos metros de distância vejo
os pais dele, Leonor, e...
Ah, minha nossa, são... os meus... pais ali? E... Vanessa?
Voltando a chorar como uma louca, atiro-me contra os braços de
mamãe, cujos olhos aparentam estar tão inchados quanto os meus, sem
conseguir processar mais nenhuma informação sequer.
— Foi maravilhoso, filha! Você merece!
Papai completa o abraço e assim permanecemos, por minutos a fio.
Logo em seguida sou arrastada para os braços da minha melhor amiga,
também de olhos injetados.
— Ai, meu Deus, Madu! Parecia cena de filme! — diz ela, contra o
meu ouvido.
— Eu sei! Ainda estou com medo de tudo isso ser um sonho e eu
acordar na minha casa a qualquer momento!
Vanessa me belisca com força, fazendo-me soltar um gritinho de dor.
— Não é um sonho! É a coisa mais linda que eu já vi na vida. — Ela
suspira, com os olhos sonhadores.
E, mesmo depois de cumprimentar Leonor e os pais de Felipe, minha
cabeça permanece aérea, digerindo o fato de todos terem sido cúmplices do
melhor dia da minha vida! Meus pais estiveram estranhos ao telefone,
Vanessa mentiu sobre o trabalho... Felipe esteve por trás de tudo!
Ao procurar suas íris de safira, encontro-o me fitando
significativamente e entendo: a felicidade está apenas começando.
MADU —
PRESENTE
Felipe estaciona o carro em frente ao hotel onde os meus pais
estão hospedados e descubro, estupefata, que eles já estavam em Curitiba
quando conversamos pelo telefone, ainda hoje! Despedimo-nos deles,
combinando de almoçar todos juntos amanhã, embora ainda não saibamos
exatamente onde.
Observo-os sumir para dentro das enormes portas de vidro e, no
mesmo instante, Felipe avança sobre mim e me beija. Ele segura o meu rosto
com as duas mãos, provocando um arrepio gostoso em mim.
— Está feliz? — sussurra contra os meus lábios.
— Como nunca estive!
— Eu também! — Sua mão direita se enterra nos meus cabelos, indo
em direção à nuca. — Sou o homem mais sortudo do mundo por ter você,
sabia?
— Você não me contou sobre o significado das flores! — lembro-me,
dando um tapinha contra o seu peito.
— Você ainda não adivinhou? — ele força um tom ofendido e, ao que
nego com a cabeça, prossegue. — Lírios brancos significam matrimônio. Ou,
pelo menos, foi o que me falaram na floricultura!
Minha gargalhada preenche o carro, exprimindo exatamente o como
me sinto.
— Você não existe!
— Existo, sim. Graças a você!
“Meu senhor...”, penso, sendo inundada por um calorão. O coração
acelera como em um passe de mágica.
— O que foi? — ele pergunta, com um sorrisinho maroto.
— Eu tinha me esquecido do seu efeito intenso sobre mim...
— Mas já? — Felipe se inclina para frente, roçando os lábios na curva
do meu pescoço em um movimento alucinante. — Dois míseros meses e já
estava se esquecendo de mim. É isso mesmo?
— Hmmm.... — gemo quando ele dá uma mordidinha na pele
sensível.
Para a minha surpresa, Felipe deixa um selinho na minha boca,
voltando para o seu lugar. O movimento como um todo é tão rápido que levo
alguns segundos para entender. Vendo a decepção no meu rosto, ele sorri e
repousa a mão sobre a minha coxa.
— Acredite, quero isso tanto quanto você. Mas ainda preciso te
mostrar o seu presente!
— O meu... o quê?! — meus lábios se separam em surpresa. —
Felipe!
— Parece até que não me conhece... — diz, revirando os olhos.
Nossas risadas se fundem enquanto suas mãos vão até a gravata,
desfazendo o nó em uma fração de segundo. Ele volta a se inclinar sobre
mim, dessa vez para me vendar. Fico ligeiramente sobressaltada com a
lembrança remetida por este simples gesto. Percebendo a minha reação, ele
libera os meus olhos e noto que a cor foi drenada do seu rosto.
— Me desculpa. E-eu não...
— Shhhhh! — Sorrio. — Eu confio em você! Estou curiosa para
saber o que preparou para mim!
— Tem certeza?
— Fê... — chamo, com voz de manha e arranco outro sorriso.
Dessa vez ele me venda para valer. Perco o ar dos pulmões quando
Felipe passa a ponta da língua pelos meus lábios. Contorço-me inteira, sendo
tomada pela excitação do momento, porém noto, sobressaltada, que ele já
retornou ao banco de motorista.
O carro é ligado e, com um pequeno solavanco, começamos a nos
locomover. Em meio a curvas que embaralham a mente, o meu pensamento
vaga para as infinitas possibilidades do nosso destino. Mas a verdade é que se
tratando de Felipe, ele sempre consegue fugir do óbvio.
— Ainda não caiu a ficha de que você reuniu as pessoas que mais
amo essa noite... É sério, não poderia ter sido mais perfeito!
— Falei com a Vanessa primeiro... ela foi uma cúmplice e tanto, a
propósito! Me ajudou a coletar informações para conseguir contatar os seus
pais!
— Ela... Não acredito!
— Acredite. Depois liguei para a sua mãe e perguntei se poderia
viajar até Cianorte para conversar com eles dois...
— Ai. Meu. Deus!
— Temi pela minha vida, para ser honesto... — diz ele, fazendo-me
rir como uma criança. — Mas eles foram muito receptivos.
— Você está me dizendo que viajou pouco mais de 500 quilômetros
para pedir a permissão deles?
— Isso é exatamente o que estou dizendo! Expliquei como eu queria
fazer o pedido e disse que seria muito importante tê-los aqui. Devo salientar,
inclusive, que seus pais não pensaram duas vezes!
— Era por isso que estava viajando... Passei no seu escritório hoje.
— Passou, é? — Seu tom curioso me arranca um sorriso. — Posso
saber por quê?
— Porque estava doente de saudade de certo advogado...
— Então conheceu a Jéssica?
— Conheci. Aliás, foi muito bom tocar no assunto, Felipe! Como
assim você contratou uma pessoa que, claramente, poderia estar nas
passarelas?
Sua risada divertida me derrete por completo.
— Eu já disse que só tenho olhos para você, meu amor! E, mesmo se
eu fosse um homem solteiro e estivesse interessado, nada aconteceria entre
nós. Ela fica completamente apavorada quando estou por perto!
Perco o fôlego de tanto dar risada com a maneira ofendida com a qual
ele proferiu as últimas palavras. Eu posso entender sua nova secretária, de
toda forma. Eu também me sentia intimidada pela beleza desconcertante de
Felipe. No entanto, fico aliviada em saber que não preciso me preocupar com
ela.
O trajeto não leva mais de vinte minutos. Ouço a porta dele ser aberta
e, no momento em que estou prestes a afastar a gravata dos olhos, sinto os
dedos de Felipe se fecharem ao redor do meu pulso, para me impedirem de
continuar.
— Ainda não...
Ele me segura pela cintura, guiando-me pelo caminho, o qual preciso
fazer às cegas. Durante o percurso, fico atenta aos sons, tentando descobrir o
que exatamente está acontecendo. Sinto a pressão característica de um
elevador e logo em seguida o som de uma porta sendo aberta.
Felipe empurra o meu corpo para frente com o seu e, pouco antes de
tirar a venda dos meus olhos, sua respiração vem contra a minha orelha,
arrepiando todos os cabelos da nuca deliciosamente.
— Feliz aniversário!
Minha primeira constatação é que se trata de um apartamento imenso.
Contemplo o amplo hall de entrada, responsável por conectar as espaçosas
salas de TV e de jantar. Com o coração quase saindo pela boca, caminho pelo
piso de porcelanato, descobrindo detalhes que saltam aos olhos, como as
luminárias de cristal ou os luxuosos papéis de parede decorando os cômodos.
Noto a escadaria levando ao andar superior, mas sou atraída para a
imensa sacada, onde descubro, estupefata, estarmos na cobertura deste
prédio. A vista é tão esplêndida quanto do restaurante onde estávamos — ou
talvez até mais. Inspiro profundamente o ar fresco na noite, seguindo o
caminho até me deparar com a varanda, cuja piscina reflete a luz da lua em
ondulações suaves.
Embora eu já possua uma vaga ideia do que esteja acontecendo neste
exato momento, não posso acreditar. Novamente, a situação parece boa
demais para existir. Sinto-me como em um sonho maravilhoso do qual não
quero acordar nunca mais. Giro nos calcanhares, encontrando Felipe a alguns
centímetros de distância, com a expressão de cachorro sem dono que me
deixa completamente louca.
— O que isso significa? — indago com a voz desafinada e percebo
estar a ponto de chorar.
— Como assim?
— Por que você me trouxe aqui?
Ele sorri, segurando o meu rosto com a mão direita de maneira
carinhosa. Seu polegar faz o contorno do lábio inferior delicadamente, como
se o simples gesto fosse um enorme deleite para ele.
— Porque quero que conheça nosso lar.
— Eu... é o quê? — pergunto, já com lágrimas nos olhos.
— Você não gostava da minha casa... e nem eu, para ser honesto.
Como vamos começar nossa vida juntos, nada mais justo que seja do zero.
Queria que fosse uma surpresa, por isso escolhi sozinho. Mas vamos poder
decorar com calma, do jeito que você preferir e...
— Puta que pariu, Felipe! — interrompo-o, chorando como uma
criança e arrancando uma gargalhada deliciada dele.
— Venha, quero te mostrar o resto!
Apesar do estado catatônico, assinto com a cabeça, curiosa para
explorar cada centímetro do cenário onde protagonizaremos a felicidade.
No andar superior, o primeiro cômodo apresentado por ele é o
escritório. Felipe me explica que não atenderá ninguém em casa, mas gostaria
de ter um lugar específico onde possa estudar os seus processos quando não
estiver no expediente. Gosto da maneira como ele se mostra preocupado em
ter o meu consentimento, pedindo a minha opinião sobre cada detalhe. Sinto
um calor aconchegante subir pelo peito enquanto exploramos cada pedacinho
do nosso lar.
Ele me mostra o closet, a pequena academia e cada uma das quatro
suítes — uma delas destinada à Leonor — terminando pela suíte máster, com
uma pequena sala acoplada e uma hidromassagem gigante no banheiro.
Passo os dedos pelo mármore da pia, boquiaberta. Céus, eu ainda nem
me recuperei do pedido de casamento mais lindo de todos... Somente
imaginar como será morar aqui com ele já me deixa com as pernas fracas.
Mordo o lábio inferior, para tentar conter as novas lágrimas querendo
escapar. Talvez eu tenha chorado mais hoje do que no ano inteiro, no entanto
foi puramente de prazer!
Mesmo em frente a todas as dificuldades e pedras no caminho, eu
olho para trás e fico feliz em saber aonde chegamos. E, se chegamos aqui,
significa que o nosso sentimento foi grande o bastante para suportar todas as
adversidades.
— O que achou? — a voz dele me busca para a realidade novamente.
Suas mãos sobem pelas minhas coxas, passando pela cintura e
chegando aos seios, onde ele se mantém focado. Fecho os olhos, ao passo em
que seus dedos afundam na minha carne, em movimentos que, aos poucos,
incendeiam-me por dentro.
— Hein? — insiste e noto uma nesga de provocação em sua voz.
— Eu amei! Eu... estou sem palavras.
— Gosto assim...
Ele aperta o quadril contra o meu corpo, a fim de me mostrar sua
ereção. Apoio as mãos no mármore, dobrando o tronco para frente e
empinando o bumbum. “Também sei as regras do jogo, meu amor”, penso
comigo mesma. Felipe solta um gemidinho baixo, deslizando o extenso zíper
do meu macacão sem muita pressa.
Puxando o tecido com as mãos, ele me despe em uma fração de
segundo, pegando-me no colo e, em seguida, deixando-me sobre a pia.
Distribuindo beijos pelo meu pescoço, Felipe tira as próprias roupas com a
mesma urgência que uma pessoa em estado de inanição teria ao ver um prato
de comida. Seu desejo é ávido, insaciável. Quando ele se encaixa entre as
minhas pernas, silencia o restante do mundo. Nada mais existe além de nós
dois. Felipe tem o poder de aflorar as melhores sensações em mim.
— Ah, Madu... eu te amo tanto!
Quero dizer que eu também. Quero dizer o quanto ele me completa e
mais uma porção de coisas, porém limito-me a beijá-lo, entregando-me de
corpo e alma para o homem capaz de dar um sentindo à minha vida. Depois
de tantas surpresas em uma única noite, permaneço emudecida. Não existem
palavras para expressar essa felicidade esmagadora dentro de mim, não com a
fidelidade merecida.

Inclino-me sobre as grades de vidro da sacada, inspirando uma boa


lufada de ar. Observo o céu particularmente estrelado desta noite, enquanto
tento me recuperar de tudo o que vivenciei. Foi muito. Felipe sempre foi
intenso demais, em vários aspectos. E sua forma amar é apenas um deles.
Quanto mais eu penso sobre o fato de nossas vidas — díspares em
tantos sentidos — terem se cruzado em dado momento, mais eu entendo a
palavra que Felipe sempre usa quando se refere a nós dois. Afortunados. É
exatamente o que somos.
Pelo canto dos olhos, vejo-o se aproximar devagarinho, novamente
vestido. As íris translúcidas parecem em brasa ao me estudarem, com um
sorriso torto nascendo no rosto.
— No que está pensando?
— Em tudo o que passamos até chegar aqui... — surpreendo-me ao
ouvir as palavras pairando pelo ar.
Felipe se posiciona atrás de mim, apoiando uma mão de cada lado no
vidro e repousando o queixo sobre o meu ombro.
— Eu sabia que estava encrencado quando te conheci... me lembro
certinho, estava com um vestido azul um pouco indecente demais para uma
entrevista de emprego, não?
Minha gargalhada ecoa ao nosso redor. Dou uma leve cotovelada
contra as suas costelas, fazendo-o rir comigo.
— Seu tonto!
— E depois ainda veio com aquele papinho de “posso levar um
biquíni?”, quando estávamos prestes a viajar... Porra, Madu, você me deixou
louco naquele dia!
Solto um pouco do peso do corpo contra ele, aconchegando-me em
seu tronco. Ela fecha os braços ao meu redor, na altura da barriga, mantendo-
me segura.
— Que bom que a minha presença era tão importante naquela
viagem... — suspiro, com um sorriso no rosto. — Ela mudou tudo.
— Na verdade não era! Pelo menos não profissionalmente. — ele diz
com tranquilidade ao passo em que eu permaneço com os lábios abertos em
surpresa.
— O quê...? Mentira!
— Sério que você caiu mesmo nisso, Madu?
— Felipe, fala sério!
— Estou falando, ué. Eu ainda não tinha admitido para mim mesmo,
mas apenas te queria por perto.
Permaneço emudecida, sem conseguir me livrar do sorrisinho idiota
na cara. “Ai, meu Deus! Jamais deixarei de ficar boquiaberta perto deste
homem”, penso, ainda incrédula.
Então Felipe aproxima um pouco mais o rosto da minha orelha.
Estremeço ao sentir sua respiração na minha pele e fecho os olhos, extasiada.
— Obrigado — ele sussurra, com a voz rouca. — Obrigado por nunca
desistir de mim.
— Na verdade, eu d...
— Shhhh — Felipe me interrompe. — Você é insuportavelmente
tagarela, sabia? Eu estava prestes a me declarar! — Rio, descansando as mãos
sobre as suas e ele toma a deixa para prosseguir. — Não foi isso o que
aconteceu. Você cansou, com razão. E, se não tivesse me assustado indo
embora de casa, talvez eu estivesse até agora me recusando a enxergar a
realidade.
Felipe jamais foi ou será perfeito, assim como eu também não. Somos
humanos, cometemos erros. Nem sempre é fácil fazer a escolha certa. E isso é
exatamente o que torna tudo tão bonito: a escolha diária implícita em amar
alguém. O fato de esquecermos nossos defeitos para focarmos apenas nos
motivos que nos tornaram apaixonados. A força motriz nos guiando em
direção um ao outro.
— Bom, agora é a minha vez! Obrigada por não desistir de mim,
também. Por não ter ficado na zona de conforto, apesar de lá ser mais fácil.
A força nos braços dele aumenta consideravelmente e então eu sei: a
felicidade terá sempre o seu perfume forte e marcante, seu estado de espírito
brincalhão ou o seu toque ardente que me consome.
Certa vez ele me disse que era muito certo estarmos juntos e agora
isso faz mais sentido do que jamais fizera.
Felipe Antunes não é apenas importante na minha vida.
Ele é a minha vida.
FELIPE —
EPÍLOGO
2 ANOS DEPOIS

Pé ante pé, aproximo-me da sacada, tentando não ser descoberto.


O vento vindo lá de fora agita as cortinas e avança pela sala, alcançando o
meu rosto e me ajudando a despertar. Bocejo, esfregando os olhos a fim de
afastar a sonolência.
Apesar de o sol sequer ter nascido, Madu já se encontra acordada.
Não é a primeira vez essa semana, aliás. Tão logo percebi estar sozinho na
cama, soube na hora onde encontrá-la. A sacada é como o seu esconderijo
secreto. Ela sempre vem aqui quando precisa organizar os pensamentos,
espairecer ou simplesmente não ser incomodada. O fato é que, tratando-se do
último item, isso raramente acontece. Não consigo deixá-la em paz nem por
um único segundo.
Ela permanece inclinada para a frente, imersa em devaneios. Os
cabelos, recentemente tingidos de castanho escuro, estão presos em um coque
no alto da cabeça, como estão desde o dia quando ela “fez essa enorme
besteira”, de acordo com suas próprias palavras. Para mim, Madu ficaria
linda até mesmo careca. Mas a minha opinião não tem sido exatamente bem-
vinda nos últimos dias, então ela apenas ignorou todas as tentativas de elogio.
Observo seu ombro nu, onde o robe escorregou um pouco além do
esperado. A visão é surpreendentemente convidativa, embora igualmente
inocente. Arrisco um ou dois passos à frente, atraído pela serenidade pairando
ao redor dela.
No momento em que estou prestes a tocá-la, no entanto, Madu olha
por cima do ombro, como se pressentindo a minha presença. Ela dá um
pulinho de susto com os lábios ligeiramente separados e entendo no mesmo
momento que está irada comigo. O motivo me escapa, porém não deixo de
recuar, de qualquer maneira.
— Que droga, Felipe! Eu já falei pra você não vir de mansinho desse
jeito!
— Eu não queria ter te assustado, eu...
— Mas assustou! — rosna, franzindo o cenho.
— Acordei sozinho e vim te procurar — completo a frase, embora ela
já não esteja mais ouvindo.
— Não sei o que está acontecendo! Preciso corrigir cerca de quarenta
provas, preparar as minhas aulas; tenho um milhão de coisas para fazer e não
consigo pregar a merda dos olhos nem por um segundo! — suas palavras se
atropelam umas nas outras. — Estou exausta!
Fisgo o lábio inferior, aproveitando que ela aparenta ter abaixado a
guarda para me aproximar novamente. Tomo-a nos braços, buscando o seu
rosto contra o meu peito. Ela aceita, aconchegando-se em mim.
— Por que não está conseguindo dormir?
— Pra começar, porque você não para de se mexer um segundo
sequer! Parece que tem uma pulga andando em você, pelo amor de Deus!
Depois que, em todo o espaço disponível naquela cama enorme, você sente a
necessidade de ficar em cima de mim!
Não consigo segurar a risada e isso a enfurece ainda mais.
— Qual é a maldita graça?
— Desculpa, você fica linda irritadinha. Eu não tenho culpa se sinto a
necessidade de estar perto de você a cada segundo do dia.
— Isso não é hora de brincadeira, Felipe! Você não me leva a sério,
né?
Respiro fundo, assentindo com a cabeça. Estamos em uma daqueles
momentos difíceis, cada vez mais recorrentes. Seguro o queixo dela,
forçando-a a olhar nos meus olhos.
— Alguma outra queixa nesta pacata manhã de quinta-feira? —
sussurro, com um sorriso no rosto.
— Nenhuma.
— Bom, eu só queria dizer que me usar como saco de pancadas não
vai fazer eu me afastar. Pelo contrário... — digo, roçando os polegares nas
suas bochechas mornas. — Vou ficar no seu pé até entender o que está
acontecendo.
Madu morde o lábio inferior, fechando as pálpebras em seguida,
como se estivesse contando até 10 mentalmente. Tentando se manter firme
em não perder o controle. Como se o simples fato de eu estar aqui a irritasse
profundamente. Eu só consigo me perguntar o que, de tão errado, andei
fazendo ao longo desta semana para deixá-la tão brava comigo.
Quando as íris esverdeadas são reveladas novamente, percebo que a
tensão a abandonou. Assim, em uma questão de segundos. Como se o espírito
ruim tivesse tirado uma pausa para o almoço.
— Droga, estou agindo como uma idiota, não? — ela me pergunta,
com o tom muito mais leve.
— Bom, no nosso casamento eu disse que aceitava o pacote completo,
então não posso me queixar.
As palavras finalmente acarretam uma reação positiva sobre ela.
Madu ri gostosamente e sua expressão suaviza a medida que os minutos
avançam.
— Sinto muito. Eu realmente não entendo o que há de errado comigo!
É como se eu tivesse chumbo nos ossos... estou morrendo de cansaço a maior
parte do dia e quando deito a cabeça no travesseiro o sono simplesmente
desaparece. Dai tem esses momentos de raiva extrema, nos quais eu quero te
esganar!
— E ainda dizem que eu sou o bipolar! — brinco e recebo um tapinha
no braço. — Você está sobrecarregada, é normal. Ainda não se habituou ao
ritmo de dar aula... está estressada. Eu também já passei por isso.
— Até parece! — Madu me provoca, piscando para mim.
Desfiro um tapa contra sua bunda deliciosa, enterrando o rosto na
curva do seu pescoço para sussurrar:
— Venha, vamos tomar um café antes que eu acabe te castigando por
toda essa insolência!
Caminhamos de mãos dadas até a cozinha, onde me ocupo com a
cafeteira expressa ao passo em que ela arrasta uma banqueta, sentando-se
para me observar. Escolho o blend mais forte para ela e a cozinha é invadida
pelo aroma característico do café, em seguida. Entrego-lhe a xícara
fumegante e, logo depois de Madu bebericar o conteúdo da xícara, sua
expressão muda drasticamente. Uno as sobrancelhas, vendo-a levar as mãos à
boca, como se estivesse prestes a vomitar.
— Tá tudo bem?
— Não, o café me deixou enjo... — sua voz morre no ar, ao mesmo
tempo em que os olhos ficam redondos como burquinhas.
— O que foi? — avanço em direção a ela.
— Ai, meu Deus, Felipe! Eu estou grávida!!
As palavras penetram os meus tímpanos me fazendo estacar no chão,
como se os meus pés estivessem colados.
— V-você... você está...
— Grávida!
— C-como pode ter tanta certeza? — pergunto, atordoado demais
para conseguir parar de balbuciar.
Madu larga a xícara, saltando para fora da banqueta a fim de percorrer
a distância entre nó. Só então percebo o quanto estou trêmulo.
— Eu... não tenho. Só acho que faz... faz sentido, não? O cansaço, a
irritabilidade, e... Céus, eu estou grávida! Você sabe o quanto eu gosto de
café e hoje só o cheiro já me deixou de estômago embrulhado!
Abro e fecho a boca para falar, pelo menos quatro vezes, no entanto
as palavras não saem. “O quê?”, é a única coisa se passando pela minha
cabeça. Quero dizer, em um único segundo toda a perspectiva da minha vida
está se alterando. Como isso é possível? Ainda há pouco ela estava irritada
comigo na sacada e agora está dizendo...
— Mas como? Se-eus remédios...?
— Eu... — Madu hesita, mordendo o lábio inferior nervosamente. —
Posso ter me esquecido de tomar em alguns dias... talvez mais do que era
seguro...
— Minha nossa! — esfrego o rosto, caminhando de um lado para o
outro. Minhas pernas parecem ter vida própria. Sem ao menos me dar conta,
lágrimas começam a jorrar dos meus olhos enquanto eu luto para dar conta
desta enorme profusão de pensamentos me bombardeando. — Precisamos te
levar em um médico imediatamente. E depois avisar nossos pais. E
precisamos começar a montar o qua...
— Fê! — ela me chama, com um sorriso no rosto. — Tá tudo bem.
Fica calmo!
Forço as pernas a pararem e coloco as mãos na cintura. Encaro-a com
a visão embaçada, tentando controlar a respiração entrecortada.
— Podemos fazer isso depois... só me diga, como está se sentindo? —
ela volta a se aproximar, em passos lentos, como se esperasse que, a qualquer
momento, eu pudesse sair correndo.
— Eu... você... — engasgo, sem conseguir refrear as lágrimas
escorrendo pelo meu rosto. Madu para na minha frente, pegando as minhas
mãos com delicadeza e colocando-as sobre a própria barriga. — Um bebê?
— Nosso bebê!
Assinto com a cabeça, começando a reencontrar a lucidez.
— Um bebê, sim? — pergunto novamente, só para garantir ter ouvido
direito.
Ela gargalha, deixando escapar uma lágrima.
— Isso mesmo! Um bebê!
— Tudo bem! Posso lidar com isso! Eles são... inofensivos. — Finjo
um tom blasé, fazendo-a rir novamente. — Só me deixe ter certeza de que
não estou enfartando primeiro!
Puxo-a para os meus braços e, ao abraçá-la, ergo-a do chão alguns
centímetros. Enterro o rosto em seus cabelos, estupefato com a notícia. É
como se vários neurônios tivessem queimado simultaneamente. A verdade é
que estou me sentindo um garotinho assustado.
— Eu te amo! Eu... Minha nossa!
— Está feliz?
— Estou! Mas aterrorizado, ao mesmo tempo. Isso é normal?
— Acho que sim, porque eu também estou!
A risada de Maria Eduarda tem um efeito calmante sobre mim. Sorvo
o perfume suave dos seus cabelos, apertando a força nos braços, incapaz de
me desvencilhar dela.

9 MESES DEPOIS

Acordo com a luz nos olhos e, ao abri-los, encontro Madu com o


celular na mão, olhando fixamente para o cronômetro. Não precisamos trocar
nenhuma palavra sequer para eu entender o que está acontecendo.
— Contrações? — ouço-me perguntando.
— Já estão bem regulares... — ela responde com uma tranquilidade
de dar inveja. — De seis em seis minutos.
Inclino o tronco para beijá-la antes de girar o corpo para fora da cama.
Como se alguém tivesse apertado um botão, o meu coração começa batucar
com violência contra a caixa torácica, em uma questão de segundos. Alcanço
o relógio no criado mudo e descubro ser pouco mais de quatro horas da
manhã. “Vamos lá”, penso comigo mesmo, ainda sem acreditar.
Ao longo destes nove meses passados em um piscar de olhos, eu
experimentei as mais diversas — e intensas — sensações. Na maior parte do
tempo, a excitação predominava. Eu me pegava refletindo sobre o futuro
próximo e percebia que nunca realmente me preparei para a paternidade.
Deve ser porque, na minha cabeça, eu já havia me condicionado à solidão.
Então, uma vez que Madu mudou completamente o rumo da minha vida, tudo
o que eu passei a vivenciar com ela foi uma grande novidade. Principalmente
sua gestação.
Não me orgulho em dizer, no entanto, que nem sempre estive
completamente otimista. A perspectiva de ter um bebê nas nossas vidas me
deixava aterrorizado em alguns momentos. Precisei dobrar as visitas à minha
terapeuta até enfiar na cabeça que o fato de ter acontecido uma tragédia
imensa no passado não significava que eu estaria fadado a sofrer eternamente.
O que, aliás, foi uma questão recorrente durante todo esse tempo.
Apesar de me sentir abençoado, dentro de mim uma sementinha de pânico ia
germinando com o passar dos dias, expandindo-se e dominando tudo o que
encontrava pelo caminho. A dura verdade é que, depois da minha irmã, eu
nunca mais toquei em um bebê. Sequer cheguei perto. Eu não podia me
arriscar a... estragar tudo outra vez. Por isso a preocupação crescia cada vez
mais. Como eu poderia confiar em mim mesmo se já havia falhado tanto com
outro ser humano?
Apesar de eu ter tentado esconder os meus anseios de Madu para não
preocupá-la, já deveria imaginar o quanto ela me conhece. Ela consegue
decifrar os meus pensamentos com a mesma facilidade com a qual pode ler
uma revista. Então, enquanto acompanhávamos todas as etapas de uma
gravidez comum, ainda precisávamos lidar com a minha doença ameaçando
se manifestar.
— Você será um ótimo pai! — ela me garantia, cada vez que me via
sucumbir ao medo.
Tive algumas crises nestes meses, mas felizmente tanto tempo de
medicamento me deixaram mais estabilizado — mesmo nos momentos de
recaída. Além do mais, a terapia me ajudou a lidar com os sintomas do
Transtorno Bipolar. Quando eu reconhecia que estava começando a me sentir
mal, já sabia exatamente como reagir.
O fato de eu ter me casado com a mulher mais incrível do mundo
inteiro também foi decisivo nesta caminhada de autodescobrimento. Madu
esteve firme ao meu lado, embora ela precisasse carregar um fardo muito
maior — como, por exemplo, lidar com o corpo mudando constantemente e
enfrentar as preocupações contidas em ser uma mãe de primeira viagem.
Acho que, no fim das contas, a maternidade chega para as mulheres muito
antes do que a paternidade para nós.
Inclusive, foi dela a ideia de deixarmos para descobrir o sexo da
criança apenas no nascimento. Segundo ela, o fato de não sabermos antes da
hora seria uma ótima forma de evitar a pressão da família e fugir de um
enxoval inteiro rosa ou inteiro azul; além de ser uma enorme surpresa e um
momento único para nós dois. Apesar de a maioria dos nossos conhecidos
terem desaprovado, para mim, a proposta caiu como uma luva. Aproveitando
a deixa, sugeri que não definíssemos nenhum nome antes de ver o rosto do
nosso bebê. Só escolheríamos depois de conhecer a carinha... seria o nome
que tivesse a ver com ele, ou ela.
— É por isso que eu te amo, sabia? — disse Madu, na ocasião. —
Você me completa!

Enquanto ela arruma o que ainda falta na mala para levar ao


hospital, ocupo-me em pegar as lembrancinhas e ligar para nossas famílias,
avisando que nosso bebê está a caminho. Como hoje é sábado e Leonor não
está aqui, envio uma mensagem no WhatsApp dela, não querendo acordá-la
no meio da madrugada.
— Como está a dor? — pergunto para Madu, tão logo ela chega à
sala.
Meus olhos percorrem a imensa barriga e não posso conter um
sorriso. Ainda é um deleite sem tamanho vê-la assim, sobretudo levando em
consideração o quanto ela curtiu cada momento.
— Está ficando mais forte e mais longa... os intervalos cada vez
menores. — Ela me surpreende quando um sorriso radiante nasce em seu
rosto, contagiando-me. — Ansioso para descobrir o sexo?
— Um pouco — confesso, pegando a mala para sairmos. — Mas,
independente de qual for, sei que vou amar mais do que a mim mesmo! Você
tem algum palpite?
— Sim, mas não vou contar antes!
— E como vou saber se você estava mesmo certa, ou apenas
blefando?
— Não vai! — ela pisca, fazendo-me rir para logo depois sairmos.

As horas se arrastam de uma maneira odiosamente lenta. Andando


de um lado para o outro, experimento toda a sorte de sensações
contraditórias. Desde o medo à felicidade, passando pela excitação, o
nervosismo e a impotência em presenciar Maria Eduarda passando dor e não
poder fazer nada.
Meu pai tenta me tranquilizar, embora eu mal consiga prestar atenção
no que diz. Cada vez que ela contorce o rosto, eu perco a força das pernas.
Merda, se eu permanecer vivo até o final do parto já terá sido um lucro e
tanto!
Mamãe, por sua vez, perambula tranquilamente pelo quarto com a
filmadora, decidida a registrar cada mísero segundo.
— Meu primeiro netinho, dá pra acreditar? — diz ela, para qualquer
um disposto a ouvir.
Então, exatamente às onze da manhã, Madu é levada à sala de parto.
Visto as estranhas roupas do hospital, coloco as camisinhas sobre os
calçados, assim como a touca, e entro logo atrás dela, tremendo de uma
maneira preocupante e já sentindo os olhos ficarem úmidos.
Meu coração congela no instante em que o som do choro penetra
os meus tímpanos. Limpo as lágrimas do rosto com o ombro e aperto a mão
de Madu com força, notando que ela está sorrindo para mim.
— Eu amo você! — sussurro.
— Eu também te amo!
A enfermeira entrega nosso filho nos braços de Madu, que a segura
com confiança e eu sei que jamais esquecerei este momento. A maneira cheia
de encanto com a qual ela está olhando para o minúsculo bebê seguro em
suas mãos, as lágrimas escorrendo pelo rosto e o sorriso mais lindo do
mundo, indo de orelha a orelha.
— É uma menininha! — sua voz falha de emoção. — Nossa filha, Fê!
— e se inclina, para que eu a pegue.
Embora eu queira isso mais do que tudo, enrijeço no lugar, com um
enorme nó na garganta. Percebendo a minha hesitação, Madu sussurra para
mim:
— Nós confiamos em você!
Assinto com a cabeça, emudecido, e a tomo para mim, um pouco sem
jeito. A primeira coisa que percebo é o calor emanando do corpinho
minúsculo — tão pequeno que dá até medo de segurá-la no colo. Contemplo
cada detalhe com calma... o narizinho arrebitado de Madu; os ralos
cabelinhos loiros claríssimos desaparecendo contra a pele, ainda meio
arroxeada. Ela é linda! Mais que isso, ela é a perfeição!
Roço o polegar pela bochechinha macia como veludo sem me
importar com o quanto estou soluçando. Porra, quem dá a mínima? Eu sou
pai! Essa menininha nos meus braços é parte de mim! Essa experiência única,
essa emoção jamais vivida... sinto como se eu estivesse sonhando! Agora sei
o que, de fato, é o amor em sua mais pura essência.
Entregá-la para a enfermeira é uma tortura. Eu poderia passar o resto
da existência observando esse rostinho. Porém ela me explica que há exames
os quais precisam ser feitos e, por isso, será levada para a enfermaria por
algum tempo.
Com o coração parecendo grande demais para caber dentro de mim,
sento na beirada da cama onde Madu está deitada e visivelmente baqueada
pelo cansaço.
— Como você está se sentindo? — pergunto, deixando um beijo no
topo de cabeça dela.
— Como a pessoa mais sortuda do universo!
— Isso não é possível, já que eu, claramente, sou essa pessoa!
Ela repousa a mão sobre a minha, de maneira carinhosa.
— Pensei em um nome enquanto te vi segurando ela no colo...
— Ah, é?
— Sim — Madu entrelaça os dedos nos meus. — Amanda.
Meu coração perde uma batida. Busco seus olhos e a encontro com
um sorriso genuíno no rosto. Sua expressão de cumplicidade me diz muito e,
em um ímpeto de emoção, seguro seu rosto com as mãos, cobrindo-o com
beijinhos. Nenhuma palavra que eu ousasse dizer neste momento poderia
expressar a maneira como eu me sinto. Nem ao menos chegaria perto!
Amanda, um nome que, outrora, foi um dos principais motivos para a
minha ruína, será, a partir de agora, a personificação de toda a felicidade
jamais imaginada. Madu, com o seu amor incondicional, salvou a minha vida.
Ela foi a única capaz de curar as profundas feridas do passado, com sua
paciência e dedicação. Por isso eu devo muito a ela.
Eu devo tudo.
E compensarei, retribuindo ao longo de nossas vidas.
Lembrando-a diariamente o quanto é amada e o quanto sou grato por
ter me dado o melhor presente que uma pessoa poderia conceder a alguém:
uma família.

FIM
NOTAS DA
AUTORA
Muitas pessoas me perguntaram a razão para o nome deste livro
ser O Acusado. Desde que eu divulguei a capa, houve muita especulação a
respeito de quem o título estava se referindo e por qual motivo.
De acordo com o dicionário Michaelis, a palavra acusar apresenta as
seguintes definições: 1- Imputar falha, culpa ou crime a alguém ou a si
mesmo; culpar(-se), incriminar(-se). 2- Apresentar-se como culpado;
denunciar-se. 3- Expressar um julgamento em relação a alguém ou a si
mesmo; culpar(-se), censurar(-se).
A palavra culpa, por sua vez, significa: Responsabilidade por algo,
condenável ou danoso, causado a outrem.
Certa vez eu li que a culpa é a pior das dores, pois não existe perdão
no mundo capaz de aliviá-la se nós mesmos não nos perdoarmos primeiro. E
foi exatamente isso que eu quis abordar na série Leis da Atração.
Muito além de um romance intenso, essa é uma história sobre o
quanto uma pessoa pode ser sua própria inimiga e tentar, de todas as
maneiras, se sabotar. Trata-se de uma longa caminhada de autoconhecimento
e, principalmente, de conseguir perdoar a si mesmo pelos erros do passado.
Felipe possuía traumas enormes os quais, por força das circunstâncias,
ele se responsabilizava. Não obstante, a situação era agravada pelo fato de ele
ser portador do Transtorno Bipolar de Personalidade e permanecer sem os
medicamentos.
De acordo com a Associação Brasileira de Transtorno Bipolar
(ABTB), o distúrbio atinge cerca de 4% da população brasileira. Apesar
disso, ainda existem muitas dúvidas e até mesmo prejulgamentos
equivocados acerca do assunto.
Recebi muitos comentários no Wattpad questionando o motivo para a
Madu continuar persistindo na relação quando o próprio Felipe não se
esforçava ou então afirmando o quanto ele era dramático e difícil, entre
outros comentários do tipo.
Assim como qualquer doença, o Transtorno Bipolar necessita de
tratamento e, mais importante ainda, de respeito, carinho e paciência. Se a
Madu tivesse simplesmente desistido de Felipe, talvez ele jamais conseguisse
enxergar a própria condição e, desta forma, não teria procurado por ajuda.
Esse foi um dos principais motivos para eu ter decidido abordar o
tema. Convivi por muitos anos com uma pessoa bipolar e sei o quanto o amor
e a compreensão são necessários na vida de um enfermo. Talvez eles não
sejam a cura por si só, mas ajudam muito na caminhada.
Espero, de alguma forma, ter tocado o coração de vocês e trazido um
pouco mais de informação.
Com carinho,
Lola.
AGRADECIMENTOS
Walt Disney disse certa vez que “se podemos sonhar, também
podemos tornar nossos sonhos realidade”. Jamais uma frase fez tanto sentido
para mim.
Este tem sido um ano de incríveis descobertas e realizações, no
entanto, eu jamais poderia ter chegado até aqui sozinha.
Em primeiro lugar, MUITO OBRIGADA. Sério, MUITO
OBRIGADA MESMO, leitores queridos, por me acompanharem com tanto
carinho! Se o Felipe e a Madu (#MaLipe) chegaram até aqui, foi graças ao
incentivo de vocês. Como diria o Fê: é tudo por vocês!
Ao meu marido, Charles, muito obrigada por acreditar em mim e
levar o meu trabalho tão a sério. Você é a minha maior inspiração!
Ruby Lace, minha irmã gêmea dada pela vida, muito obrigada pela
cumplicidade, apoio e, sobretudo, a amizade. Obrigada por ouvir os meus
surtos e por me aguentar manhã após manhã. O que seria de mim sem você?
Por fim, quero agradecer imensamente à Maria Rosa, que acreditou
nessa história desde o começo. Sem você eu não teria informações cruciais
para o enredo deste livro. Obrigada por tudo!
Família, amigos, leitores... todos vocês são como peças de uma
engrenagem que, aos poucos, vão se encaixando, fazendo tudo girar. Por isso,
obrigada demais. Eu nunca conseguirei agradecer à altura.
SOBRE A
AUTORA
Lola Salgado é o pseudônimo de uma autora paranaense de 23
anos que acredita fervorosamente no fato de o sushi ser, talvez, a melhor
invenção da humanidade.
Gosta dos dias mais frescos, de café amargo e de histórias que mexem
com os seus sentimentos. Está em relacionamento sério com os livros desde
quando se considera gente e escreve desde os 10 anos de idade, porque
alguém certa vez lhe disse ser assim que se fazia magia. Desde então, levou
isso como lema de vida.
Seu livro de estreia, O Advogado, conquistou 1 milhão de leituras no
Wattpad e figurou por mais de uma semana o primeiro lugar na lista de E-
books Mais Vendidos da revista Veja, ficando entre os 20 mais vendidos da
Amazon por um mês. A continuação, O Acusado, ganhou o prêmio
internacional Wattys, no Wattpad, concorrendo com mais de 100 mil obras
participantes.
Você pode acompanhar o trabalho dela pelo Facebook
(https://www.facebook.com/autoralolasalgado/), ou Wattpad
(https://www.wattpad.com/user/LolaSalgado).
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