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amigos
Joe Silva
Quase amigos
Copyright © Joe Silva
Edição Digital
O que aconteceu entre você e eu? O que era belo se desmoronou. O encanto quebrou e
agora somos só estranhos convivendo em um mesmo lugar. Tentei reconstruir aquilo que tínhamos,
mas o fardo foi pesado e eu não resisti.
Em decorrência dos últimos acontecimentos em nossas vidas, sinto que não posso dar
continuidade ao que um dia chamamos de amizade. Reconheço que é um pouco estranho essa tomada
de decisão da minha parte, tendo em vista que tudo partiu de mim, mas espero que aceite esse
rompimento sem maiores problemas.
Sabemos tudo um do outro, tanto as qualidades quanto os defeitos, sei de todos os seus
gostos e você de todos os meus sonhos. Não posso negar que a melhor parte da minha semana era
quando estava ao seu lado compartilhando momentos agradáveis. Você me encantou com seu interior
e criou em mim um desejo muito grande para te conhecer melhor. Contudo, por diversos fatores, aos
quais não poderei contar por aqui, não poderei realizar esse desejo.
Se existirem outras vidas após essa, espero que possamos nos reencontrar para resolvermos
essa pendência que deixaremos em aberto. Não por sua culpa, é claro, mas por culpa das escolhas
erradas que a vida nos fez tomar.
Como um último pedido, por todos os nossos anos de amizade, peço que não responda ou
tente entender o porquê dessa decisão. Se após ler essa carta você achar que será difícil não ter mais
minha amizade, imagina para mim que está tendo que escrever palavra por palavra que ferem direto
meu coração. A vida, com certeza, te tratará bem e com o tempo isso será apenas uma lembrança
amarga, como uma ferida que se tornou uma cicatriz que não machuca mais.
No mais, tente ser feliz. Realize seus sonhos e encontre um amor.
Afinal, isso é o que importa na vida.
Seu sempre,
Ashtom R. Brandolt Migotto
Um
Imagine-se sendo transformado nesse exato momento em uma carta que viajaria por dias até
seu destino final. Durante essa viajem você passaria por várias mãos que não tinham nenhum
conhecimento sobre seu conteúdo, mas, mesmo assim, te levava para novos lugares como se tivesse
ganhado um passe livre que abrisse qualquer porta. Agora imagine que você fosse uma dessas mãos e
sem querer descobrisse o conteúdo que havia dentro do envelope. Uma mensagem que fora escrita
por alguém para ser lida por outro alguém agora está em suas mãos e, mesmo não sabendo de todo o
contexto da história, entende que aquela carta é possuidora de uma terrível mensagem.
O que você faria? Tentaria esquecer que viu aquilo e daria prosseguimento ao envio da
correspondência ou jogá-la-ia no lixo dando-a como extraviada?
Não tente mentir. A natureza humana, depois da era do romantismo, se tornou sensível.
Mesmo com as várias tecnologias do mundo moderno, existem milhares de pessoas espalhadas por aí
que ainda pensam com o coração. Aliviar alguém de um sofrimento para o resto de sua vida era
quase que um compromisso por parte dessas pessoas. Então, segundo essa minha análise meio que
confusa saída completamente da minha cabeça, sei que você não entregaria essa correspondência ao
destinatário.
Mas vamos esquecer essa correspondência, pelo menos por um momento – que talvez dure
bem mais do que um simples momento, mas você não se importará com isso -, e vamos nos focar em
minha história.
Era estranho estar de volta em uma sala de aula. O constrangimento de olhar para pessoas
que nunca havia visto na vida e receber olhares da mesma forma me faziam regressar ao tempo e me
encontrar de volta no colegial, onde sofri os maiores pesadelos de minha infância. Acho que a escola
é assim para todos...
Nela você encontra as mesmas panelinhas de valentões, que só vão as aulas para atormentar
a vida de outras pessoas, as panelinhas dos descolados, que acham que estão vivendo em algum filme
holiudiano e se sentem os donos da escola, as panelinhas dos estudiosos, que normalmente eram as
vítimas perfeitas para os valentões, as panelinhas dos espertinhos, que não queriam nada com nada e
aqueles que não se encaixavam em nenhuma delas. Adivinhem onde eu estava?
Isso mesmo, na panelinha dos descolados.
Mas não pensem que eu era uma daquelas pessoas insossas que se sentiam com o rei na
barriga. Muito pelo contrário, mesmo com o meu status, sempre fui uma pessoa tímida que me
importava com o sentimento dos outros. Bem piegas. Mas assim que cheguei naquela escola, virei um
hit – um pedaço de carne em alta – por que havia me transferido de outra cidade para lá e todos
queriam me conhecer, saber de onde vim e como era minha antiga cidade. Como não era de conversar
muito, me tornei uma pessoa misteriosa e isso atraiu a atenção de todos. Rapidamente fui chamado
para sentar com as pessoas legais, era convidado para ir a festas e também para sair junto com eles.
Só que mesmo me tornando uma pessoa popular, não fiquei livre das provocações invejosas
daqueles que faziam de tudo para entrar na turma, mas não conseguiam, e graças a isso entrei em
quatro ou trinta brigas ao longo do tempo que estudei naquela escola. Ou seja, até me formar.
Mas o que tudo isso importa nesse momento? Foram anos de glória, depois do ensino médio
entrei para faculdade, segui carreira por alguns anos e cá estou eu de volta a uma sala de aula,
desempregado e sem nenhuma esperança para o futuro.
A sala era bem branca, as carteiras bem azuis e o quadro, daqueles que se escreviam com
pincéis atômicos, bem sujo. Havia um armário no fundo da sala, a mesa do professor maior que a dos
alunos na frente da sala e no teto tinha dois ventiladores preguiçosos que rodavam em uma
velocidade tão baixa que até Rubinho Barrichello ultrapassaria na maior facilidade caso fossem
corredores e estivessem disputando a Fórmula 1.
Por sorte não fui o primeiro a chegar. Quando entrei na sala onde trazia a identificação do
meu curso com um papel impresso preso à porta de entrada, vi que duas figuras já se faziam
presentes naquele ambiente e meio sem jeito troquei um olhar de como quem não queria nada e
balbuciei um "Boa Tarde" quase inaudível. Procurei me sentar próximo à porta e esperei que os
outros alunos chegassem com o professor que ministraria o curso.
Tenho que dizer que meu santo estava de mal comigo. Quando todos os componentes
estavam dispostos em seus lugares, analisei rapidamente com os olhos cada um e percebi que estava
na pior sala de todos os cursos. Primeiro que não devia ter nem quinze pessoas ali, então qualquer
coisa que você fizesse de certo ou errado seria notado por todos no mesmo momento. Segundo, que
não tinha ninguém bonito ou de boa aparência. Todos aqueles que vi entrar que eram bem-arrumados,
bonitos, ou com um visual legal, tipo a garota de cabelo azul que me atraiu instantaneamente, foram
para as outras salas de administração ou segurança do trabalho que também seriam no mesmo turno
que o meu. Ah, e de quebra, meu professor era uma mala.
Então de volta aos meus lamentos: era estranho estar de volta em uma sala de aula.
Duas horas de curso depois a coordenadora entrou na sala para nos dar as boas vindas e as
primeiras instruções de como tudo funcionaria por ali e avisou que passaríamos pelo menos duas
semanas sem receber o material didático. Maravilha, agora além de ter que comprar um caderno para
anotar aquilo que o professor dizia – e quando falo dizia, quero dizer que ele só falava, não escrevia
nenhuma linha no quadro – não teria nada para me distrair quando não quisesse prestar atenção, já
que seria muita falta de educação ficar mexendo no celular durante a aula.
Por fim, quando acabou a aula já estava com vontade de desistir do curso. Fiquei com
aquele sentimento por mais duas aulas, até que me enturmei e montei minha panelinha com quatro
outras garotas.
Tudo começou por aí.
Dois
Quando tinha sete anos peguei catapora e fiquei com o corpo todo empesteado de bolinhas.
Até o céu da minha boca foi dominado por elas e não conseguia nem engolir saliva direito sem que
minha boca toda doesse. Essa foi a primeira vez que fiquei internado em um hospital.
Se você já ficou alguma vez internado, sabe muito bem que o ambiente hospitalar não é um
dos melhores lugares para se ficar, sendo criança, adulto ou idoso. A atmosfera é tão pesada que te
oprime, o cheiro forte de cloro e alvejante misturado aos remédios te dá ânsia, e a comida não desce
de jeito nenhum para dentro do seu corpo.
Chorei demais, pois naquela época a única coisa que queria era voltar para casa e poder
dormi no meu quarto com todos os meus bichinhos de pelúcia e assistir aos desenhos que passavam
de manhã na televisão. Também sentia vontade de comer chocolate, tomar iogurte e comer a comida
da minha mãe que dava de um zilhão a zero na comida daquele lugar.
A única coisa que aliviava minha estada ali eram os momentos que minha irmã mais velha
passava comigo. Ela sempre tentava me animar e fazia qualquer coisa para que eu risse e esquecesse
por um momento a dor e a coceira que estava sentindo. Não sei se foi dela que peguei isso, mas
quando cresci, sempre tive a mania de fazer com que os outros rissem. Às vezes suava a camisa
tentando espremer um sorriso daquelas pessoas carrancudas, mas às vezes era tão simples receber
um sorriso sincero que me sentia muito bem, mesmo sabendo que minha vida não tinha se
transformado naquilo que idealizei desde pequeno.
Foi com o meu bom humor que atraí a atenção de Luara.
O professor explicava suas últimas colocações sobre empreendedorismo para nos liberar
para o lanche, e como ainda estava receoso de sair da sala no horário de intervalo sozinho, esperei
que ela saísse para chamar sua atenção para irmos juntos para a fila.
- Enfim chegou a hora do lanche – falei enquanto em juntava a ela na caminhada. – Já não
sabia mais se prestava atenção no que o professor dizia ou na sinfonia que meu estômago começou a
tocar pela fome que estou sentindo.
Ela sorriu e aproveitei a deixa para fazê-la se apresentar.
- Como é mesmo o seu nome? – perguntei.
- Luara, e o seu?
- Tom – respondi com um sorriso. – Mas não gosto do meu nome. Me chame só de T.
- Mas Tom é tão comum, por que você não gosta?
- Por isso mesmo, ele é muito comum – falei de maneira convencida. – Eu gosto de ser
diferente.
Ela sorriu de novo, então senti que poderia tentar me aproximar dela dentro da sala.
- O que está achando do curso? – perguntei soando interessado.
- Ainda não sei, parece ser legal – disse ela vagamente.
- Também achei legal, só não gostei muito do nosso professor – ela me olhou curiosa, então
continuei. – Não sei se você reparou nos outros professores e nas outras salas, mas parece que nós
pegamos a pior turma.
- Também reparei isso, mas fazer o que?
- Por enquanto nada, mas se continuar assim, vou conversar com nossa supervisora para dar
uma chamada de atenção nele. Se não, no final das aulas, de tão chato que está sendo, ele precisará
jogar um balde de água fria na cabeça de cada um para nos acordar, por que só Deus...
Dessa vez não estava tentando soar engraçado, mas ela riu da mesma forma. Pegamos o
lanche, um copo de suco e um pedaço de bolo, e voltamos para perto de nossa sala. As outras garotas
que sentavam próximas a ela na sala de aula estavam sentadas do lado de fora.
- Vocês vão beber esse suco? – perguntou a garota que descobri que se chamava Eliana
horas depois. – Isso parece mais açúcar com água do que suco.
Bebi para comprovar e ela estava certa. O suco não tinha gosto nenhum a não ser de açúcar.
Cuspi de volta no copo e joguei fora.
- Você já trabalha? – perguntou Luara enquanto bebia o suco sem demonstrar nojo algum.
- No momento não, sou formado em letras, mas estou desempregado.
As duas arregalaram os olhos e pareceram não acreditar no que estava dizendo.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e quatro – respondi.
- Você está brincando, não é?! – perguntou Eliana ainda incrédula.
- Por quê? – perguntei curioso.
- Você parece ter uns dezenove, vinte anos – respondeu ela julgando minha aparência.
Não sei se aquela resposta era para me deixar animado ou chateado. Elas estavam certas por
acharem que era mais novo graças ao meu porte físico. Afinal eu era um cara de 1,63 metro, magro –
mas não esquelético –, usava o rosto sem barba e me vestia como um adolescente. Nunca tive
problemas por causa da minha aparência e também sempre me aceitei do jeito que eu era. Vez ou
outra me surgia a vontade de frequentar a academia para ganhar um pouco de massa muscular, mas
sempre que lembrava que para isso teria que praticar exercícios pesados, desanimava e fazia aquela
ideia voltar para o fundo de minha mente.
Como ela parecia não dizer aquilo de uma forma maldosa, apenas sorri e agradeci.
- Quem dera estivesse com essa idade. Já sou velho...
- Velho? Cadê velho? – perguntou Luara descontraída. – Meu tio também tem vinte e quatro
anos e é engraçado que ele tem o mesmo corpo que você.
- Preciso conhecê-lo então para formarmos uma liga dos magrinhos que aparentam ter
dezenove anos – falei levantando minha mão direita com o punho fechado para o ar.
O intervalo acabou, mas nossa conversa continuou durante o restante da aula.
Assim que entramos, peguei minha mochila e fui me sentar do outro lado da sala próximo a
elas.
- Não vai copiar nada? – perguntou Luara.
- Pra que? Nós não vamos ganhar a apostila que tem tudo isso escrito.
- Verdade, mas ele vai chamar sua atenção – falou ela enquanto copiava.
- Acho que não – falei sem interesse. – Ele está prestando mais atenção lá fora do que aqui
dentro.
Ela acompanhou o olhar do professor que de cinco em cinco segundos se fixava na porta e
me perguntou: - O que está acontecendo lá?
- Não sei – respondi. – Alguém que ele está a fim deve estar nos limites do seu campo de
visão periférico.
- Não acho não – falou ela baixinho quando o professor olhou novamente para fora e
instantes depois uma pessoa passou em frente a porta de nossa sala. – Será que é ele?
- Se nosso professor for gay, creio que sim.
E de fato era. Não porque depois que o cara passou ele não olhou mais para fora, mas
porque dias depois, durante uma de suas aulas, alguém levantou a questão sobre o casamento gay e
ele defendeu com unhas e dentes falando que um dia também casaria na igreja com seu futuro
namorado. Aquilo pôs fim a discussão e ninguém nunca mais tocou em questões sobre orientação
sexual dentro da sala.
Quando a aula acabou, juntei meus materiais e esperei que as meninas juntassem os delas.
Saímos juntos e fomos na mesma direção até certo ponto. Eliana e Tânia viraram à esquerda quando
chegamos na avenida principal e Luara e eu fomos para direita. Por coincidência morávamos na
mesma rua, mas a quase um quilômetro de distância entre as nossas casas. A dela era primeiro, e a
minha a trezentos e oitenta e dois passos bem generosos da dela – sim eu contei.
No dia seguinte, quando cheguei nem ousei sentar longe das garotas. Elas estavam
conversando e assim que me viram lançaram um olhar convidativo para me sentar próximos a ela
novamente.
- Estávamos falando sobre a roupa do professor – disse Luara animada. – Você já reparou
que ele só vem com aquela calça branca, camisa indiana e aquele crocs rosa horrível?
Agora que ela tinha falado, realmente tinha reparado. Não sei se era porque recebia mal
como professor ou se era porque faltava um pouco de senso de moda mesmo, mas parecia um
uniforme cafona que só um mendigo teria coragem de usar.
- Ele é bem peculiar, para não dizer o pior – exalou Eliana com um veneno na língua.
Todos rimos por um bom tempo, até que a atenção se voltasse para mim com a pergunta que
Luara me fez.
- Você tem namorada?
Senti três pares de olhos me encarando e ruborizei.
- É difícil explicar – respondi descontraído. – Tenho um triângulo amoroso.
Ela ficou assustada, então me adiantei em explicar.
- Calma que não é nada imoral. Tenho uma amiga virtual que namora e a trato como
namorada. Sabemos tudo um do outro e é a única para quem conto tudo sobre minha vida, tanto
pensamentos quanto ações, sejam elas erradas ou certinhas, sem censura. Ela não se incomoda que eu
a chame assim e mesmo depois que contou ao namorado sobre mim, não alteramos nossa relação.
Então vez ou outra brinco com ela que sou o outro que mantém a vida e o relacionamento dela
interessante.
- E o cara não sente ciúmes de você? – perguntou Tânia.
- De forma alguma. Também tenho ele adicionado em meu facebook e já cheguei a trocar
algumas ideias com ele.
- Bem diferente isso – falou Luara surpresa. – Não esperava que fosse tão moderninho
assim.
- Viu como sou uma caixinha de surpresas – provoquei. – E vocês, tem namorados?
- Eu tenho – respondeu Luara na lata.
- Eu só pego alguns por aí – falou Eliana sem muito receio.
- Eu sou casada – disse Tânia por fim. Ela era a mais conservadora do grupo e às vezes
ficava vermelha quando entrávamos em algumas conversas mais pesadas.
- Nosso grupinho está todo junto e misturado – brinquei quebrando a tensão que havia se
formado por causa de nossas situações civis. – Tem de tudo um pouco.
Por sorte naquele momento o professor chegou na sala e fomos obrigado a prestar atenção
na aula, porque uma segunda professora estava ali para fazer uma iniciação básica sobre direitos
trabalhistas que se mostrou bem mais interessante do que todo o conteúdo que ele havia apresentado
antes. As horas voaram e quando dei por mim já estava na hora da saída. Acompanhei Luara até em
casa e depois continuei meu percurso sentindo que alguma coisa estava para mudar.
Para meu desespero não era nada agradável, pois meu pesadelo estava prestes a começar.
Três
Quando convites são feitos, esperamos nos beneficiar de alguma forma ao aceitarmos. Se
formos chamados para uma festa infantil em comemoração ao primeiro aninho de um catarrento
qualquer – sim, tenho aversão a crianças pequenas – o mínimo que esperamos encontrar nessa festa
são vários tipos de docinhos, cachorro quente, bolo e refrigerante. Em um casamento esperamos uma
recepção com jantar e bolo de sobremesa. Se formos convidados para viajar, as expectativas
aumentam e esperamos conhecer lugares fantásticos e experimentar coisas exóticas aos quais não
estamos acostumados a experimentar em nossa rotina diária. Mas o que devemos esperar quando
somos convidados para ir a uma igreja?
Luara parecia inquieta mexendo no telefone toda hora. Sentado ao seu lado eu cutucava sua
costela quando percebia que o professor fazia uma cara azeda para o seu lado. Quando tivemos uma
pausa na aula pela ausência do professor que fora resolver um assunto com a coordenadora,
aproveitei para descobrir o que estava acontecendo.
- O que tanto você cutuca nesse celular?
- Estou brava, me deixa.
- O que houve? – pergunto preocupado.
- Estou perdendo uma sessão de cinema na casa do pastor – disse ela como se isso fosse a
pior coisa que poderia acontecer a alguém.
- Aff.
- O que foi? – perguntou séria. – Eu queria ir, poxa.
- Você é evangélica?
- Sou, como você sabe?
- Por que quando alguém se refere ao seu líder da igreja como pastor, normalmente é porque
é evangélico.
- Nem percebi que falei pastor – ela parou um pouco, pensando, e depois soltou: - Você
também é evangélico?
- Porque a pergunta?
- Por que você não fez cara feia quando falei que era evangélica. Normalmente quando
alguém de outra religião ou ateu ouve a palavra "evangélico" em sua frente fazem cara de nojo como
se estivéssemos infectados com uma praga imunda.
- Não sou desses – falei sorrindo.
- Então você não é evangélico?
- Não disse isso.
- Então você é?
- Que menina curiosa.
- Aff, vai responder ou não?
- Ou não – falei brincando. Ela estava prestes a explodir comigo então me apressei em
dizer: – Sou sim, quero dizer, eu frequentava uma igreja evangélica, mas já tem um bom tempo que
não vou.
- Por quê?
- Tive alguns problemas com algumas pessoas lá dentro – falei pensativo. – Algumas me
feriram bastante sem ter motivos. Parece que as pessoas dentro das igrejas são piores dos que as que
não frequentam nenhuma. Elas julgam demais por se acharem as donas da verdade.
- Sei como é.
- Alguém já te machucou dentro da igreja?
- Sim. Uma vez estávamos fazendo a arrumação para uma festa a fantasia que ia rolar para
os jovens e um garoto deixou uma caixa de madeira cair em cima do meu pé. Tive que ir com ele
enfaixado e nem pude dançar.
Ela falou de uma maneira séria que me fez rir.
- Sua besta. Não estava falando disso.
- Eu sei – disse ela com um sorriso largo em seu rosto. – Só queria ver você sorrir.
Nossos olhares se cruzaram e senti minhas bochechas corarem. Fiquei sem saber o que dizer
e percebi que ela também tinha ficado com vergonha pelo que disse.
- Se beijem logo – falou Eliana atrás da gente.
Luara deu um soco em seu ombro e disse alguma coisa como "tá ficando maluca" mexendo
apenas os lábios sem sair nenhum som.
Depois de um tempo, quando a tensão já havia se dissipado no ar e os rostos voltaram a sua
coloração normal, ela se virou para mim ansiosa e esperei que viesse outra bomba.
- Por que você não vai na minha igreja domingo?
Pensei em perguntar se ela tinha sua igreja própria onde todos a cultuavam, mas guardei esse
pensamento para mim e respondi: - Ir na sua igreja?
- É – respondeu ela efusiva. – Lá é bem legal.
- Não sei – falei desanimado. – Não conheço ninguém lá.
- Você me conhece.
- Uau. Então agora eu vou. Você me animou com esse argumento tão convensitivo, se é que
essa palavra existe – falei fingindo animação.
- Bobo – disse ela me dando um soco no ombro. – É sério, vamos?
- Nem sei onde é sua igreja.
- É lá no centro. Você sabe onde é a sorveteria limão com mel? – assenti com a cabeça e ela
continuou. – Então, você entra ali e quando a rua acabar você vira à direita e dará de cara com ela.
- Ai, e quebrar meu rostinho bonito dando de cara com uma igreja. Acho que não.
- É sério, vaaaaaaaaaaaamos – disse ela fazendo biquinho.
- Aff. Vou pensar.
- Então está decidido. Ficarei te esperando lá.
E o pior foi que acabei indo.
Engraçado que domingo acordei animado, cantando e dançando ao som de Katy Perry.
Passei o dia inteiro acessando a internet, vendo séries e lendo para que as horas passassem mais
rápido, mas por incrível que pareça não notei nenhuma mudança no tempo, pois ele passava de
acordo com o que era esperado. Treze horas duram exatas treze horas e isso me rendeu várias
oportunidades para fazer muitas coisas durante elas.
Quando fui me arrumar, adotei aquele mesmo estilo “não quero chamar atenção, mas quero
parecer bonito”, escolhendo uma calça verde bandeira, uma camisa cinza e all star básico. Me olhei
no espelho e aprovei o que estava vendo, ele era bem generoso comigo. Peguei minha carteira e fui
para o ponto de ônibus. Não acreditei quando entrei e vi que Luara estava acompanhada de seu tio, a
julgar pela descrição que ela dera para mim anteriormente, e como sua expressão não parecia
amistosa e sim de medo por ver que realmente estava ali, sentei bem próximo ao trocador e fiquei
intrigado com aquela sensação.
Ao descermos no ponto da padaria Limão com mel, apressei meus passos e fiquei lado a
lado de Luara enquanto caminhávamos para a igreja. Ela não disse muitas coisas e cada vez que nos
aproximávamos ela parecia ficar mais tensa. Decidi não dizer nada e a segui calado pelo resto do
caminho.
A igreja era bem típica. Uma mulher nos recepcionou na porta e disse "Bem vindo" para
mim sem demonstrar muito interesse. Como estávamos na época do verão, provavelmente ela achou
que eu era um dos turistas que só iria ali uma vez e nunca mais botaria os meus pés novamente
naquele lugar. Ela estava enganada. Quando entramos, reparei a arrumação da igreja, na frente ficava
o altar com um púlpito feito de mármore, os instrumentos musicais ficavam logo atrás e as laterais
eram decoradas com tecidos coloridos. Os assentos não era nada mais que cadeiras plásticas iguais
às de um bar, mas dava certo conforto e privacidade ao sentarmos, já que não precisaríamos nos
espremer contra ninguém como naqueles bancos de madeiras comuns de outras igrejas.
Percebi que vez ou outra alguém olhava disfarçadamente para mim me medindo dos pés à
cabeça. Fingi que não via e continuei de boa na lagoa catalogando o resto do lugar em minha mente.
O calor lá dentro estava insuportável, pois cada vez chegavam mais pessoas suadas e os ventiladores
acoplados nas paredes não atendiam o tamanho da igreja.
Quando o culto começou, Luara, seu tio e um outro rapaz sentaram-se ao meu lado na mesma
fileira, então dei um desconto a ela por agir tão estranha naquela noite.
- Normalmente o culto acaba que horas? – sussurrei ao seu ouvido após o pastor nos dar a
liberdade para sentar.
- Por volta das nove e meia, dez horas.
- Tem mais louvou ou pregação?
- Mais louvor – disse ela em um tom que queria dizer “vamos parar de conversar e prestar
atenção lá na frente”.
Entendi os sinais e me aquietei no lugar, participando como um bom moço do restante do
culto.
Quando acabou, não esperei por ela e sai em disparada para o ponto de ônibus. Ela veio
logo atrás de mim, sem pressa, não querendo me apanhar. Assim que cheguei, um ônibus passou e ela
e o seu tio tiveram que correr para entrar. Sorri para mim mesmo e disse um “bem feito” em minha
mente olhando para a direção oposta em que ela estava.
Novamente ela se sentou bem afastada de mim, mas não me preocupei por isso. Naquele
momento não fazia ideia de que uma pequena tempestade estava se formando e em breve seríamos
atingidos por ela, não tendo para onde correr. Coloquei os fones em meu ouvido, encostei minha
cabeça na vidraça do ônibus e esperei que chegasse a minha parada. Saí sem olhar para trás e fui
para casa pensando que teria sido melhor ter ficado em casa naquela noite. Mal sabia que aquele era
só o começo de uma grande dor de cabeça e mais grave que isso, o início de um problema de
coração.
Quatro
Já que estou todo religioso porque fui à igreja, citando a Bíblia: Eu nasci na iniquidade, e
em pecado me concebeu minha mãe. Tendo esse pequeno versículo como base de um pensamento,
desde que nascemos estamos propensos a pecar – verbo que pode ser facilmente substituído por
errar, cometer erros, aprontar.
Lembro que aprontei muito quando era criança. Na minha época de infância, nos anos 90, a
febre do momento era jogar videogame – Nintendo ou Playstation 1 – em lugares como lan houses ou
então ir a bares jogar fliperamas. Meus pais eram totalmente contra essa prática. Para eles
videogame alienavam as crianças e gastar um pouco de dinheiro com diversão era um desperdício.
Resultado: sempre que ia a um desses lugares sozinho ou acompanhado de um ou mais
amigos, tinha que sair escondido. Até aí tudo bem, não estava roubando, nem matando, nem usando
drogas ou muito menos fazendo sexo com alguém – algo que naquela época nem sonhava o que era -,
então, que mal havia nisso? Nenhum, posso te responder sem medo. Mas isso não impediu meus pais
de me darem uma boa surra quando descobriu minha prática ilícita de gastarem o dinheiro que me
davam indo a lugares como esse. Além de ficar com o corpo doendo por alguns dias, tive minha
mesada cortada por seis meses.
Claro que isso nunca me impediu de ir a esses lugares, depois que fiquei sem dinheiro
aproveitava meus amigos para pagarem para mim e continuava jogando sem que meus pais
soubessem. Depois cresci e meus erros foram se agravando, mas isso já é conversa para outras
histórias. O que importa aqui é que todos cometem erros, fazem coisas erradas, enganam seus pais e
por aí vai.
Na segunda feira ainda estava encucado com a atitude de Luara no dia anterior e demorei a
chegar ao curso. Não sei o que dera no professor naquele dia, que ele também se atrasara e mesmo
depois que cheguei ele ficou um bom tempo sem aparecer. Isso nos deu a oportunidade de pensar
coisas erradas e fazê-la.
Assim que cheguei, meu grupinho já estava armado e só faltava eu para ficar completo.
Sentei afastado de Luara e conversei com as outras meninas de forma natural e descontraído.
Olhando para o relógio do celular, fiquei impaciente com a ausência do professor e propus que
matássemos aula para darmos algumas voltas pela rua. Todas elas concordaram, exceto Luara que
ficou receosa com nossa ideia.
Revirei os olhos e fechei a cara. Ela percebeu – e essa era minha intenção -, então mudou de
ideia e nos acompanhou até o calçadão onde ficamos por um tempo conversando, sentados em uma
arquibancada de cimento do campo de areia que os garotos usavam para treinar durante o dia.
- O que está acontecendo? – perguntou Luara depois de um tempo que percebeu o gelo que
estava dando nela.
- Nada – respondi com ironia. – Foi super legal ter ficado sobrando ontem na igreja... bem
que você disse que seria legal.
- Desculpa – pediu ela se sentindo triste. – Meu namorado estava do lado e...
- Você precisava fingir que não me conhecia para ele não ficar com ciúmes.
- Exato – respondeu ela. – Mas não adiantou. Tivemos a maior discussão hoje por telefone
com ele querendo saber quem era o cara que sentou do meu lado e ficava cochichando ao meu
ouvido.
- Então não adiantou nada ter me tratado daquele jeito.
- Não – admitiu. – Fui uma grande estúpida. Se eu tivesse te apresentado a ele, nada disso
teria acontecido.
- Também acho. Afinal, não sou o lobo mal querendo comer a Chapeuzinho – disse sério. –
Sei muito bem respeitar alguém que está em uma relação, nunca furaria o olho de outra pessoa. Não
fui criado dessa forma.
- Eu sei, já pedi desculpas – falou ela meio irritada, meio entristecida. – Expliquei para ele
quem você era.
- Só mais uma pergunta. Se estava com medo dele ficar com ciúmes de mim por ir lá, para
que me chamou para ir na igreja parecendo estar animada com minha ida?
- Está aí uma pergunta que nem eu sei como explicar.
- Então estamos de boa na lagoa novamente?
Ela riu e completou fazendo um sinal com os dois dedinhos: - E de pernas pro ar.
Depois disso as coisas voltaram ao que era antes e pudemos aproveitar o resto do tempo
juntos.
As meninas inventaram de ir a uma pedra que dividia duas praias da cidade, e pelo calçadão
caminhamos até lá. Toda hora cutucava a costela de Luara, tirando-a do sério e depois caíamos na
gargalhada sem saber o por que.
- Quero tirar fotos – gritou Tânia quando chegamos ao local.
Ela me puxou para perto dela e tiramos uma selfie com a câmera do meu celular. Depois
juntamos todos e revezávamos para bater as fotos, fazendo com que todos saíssem com todos nas
fotos. Luara sempre ficava ao meu lado e quando não estava prestando atenção, ela me cutucava e eu
dava um pulo fazendo todas rirem da minha cara.
A noite teria sido muito boa se ela não tivesse acabado.
Nem bem cheguei em casa e Tânia já tinha postado as fotos no Facebook marcando nós
todos com a legenda "Fugidinha da escola... só zoação". Não comentei nem curti, apenas fiquei
receoso com o que o namorado de Luara diria ao ver aquelas fotos no mural dela.
Dito e feito. Na manhã seguinte fui acordado com o toque do meu celular e ainda dormindo
atendi.
- Ainda está dormindo? – perguntou Luara.
- Claro que não – falei com voz de sono. – Já estou acordado faz tempo.
- Que bom – disse ela distraída pensando em uma forma para entrar no próximo assunto. –
Ein, você postou nossas fotos de ontem no Facebook?
- Não – respondi mais acordado sentindo que tinha acontecido alguma coisa.
- Ah. É que meu tio viu as fotos e mostrou para minha vó. Deu o maior galho aqui em casa.
- A Tânia que postou ontem e nos marcou.
Ela demorou um tempo para falar e isso me deixou preocupado.
- Eu sei, já liguei para ela para tirar de lá. Depois que resolver aqui pode postar de boa,
mas por enquanto é melhor não.
- E o seu namorado viu?
- Não – respondeu ela um pouco ansiosa demais. – Ele estava trabalhando ontem à noite e
assim que meu tio veio me encher o saco liguei para ela tirar as fotos.
- Que bom, não é?! Pelo menos isso.
Ela não respondeu e ficou um tempo em silêncio. Depois falou: - Então tá. Era só isso que
queria mesmo. Nos vemos de noite no curso.
- Beleza, até de noite.
Ela desligou e senti que o clima novamente pesava para o nosso lado. Não faziam nem duas
semanas que éramos amigos e já tínhamos mais problemas do que um casal de verdade. Ainda bem
que o namorado dela não tinha visto aquelas fotos, porque se só com o tio dela já deu problemas, não
sei se teria coisa pior do que ele ver aquelas fotos.
Mas tinha.
E descobri isso assim que Luara chegou branca na sala de aula à noite.
Cinco
"É hoje"
Olhei o nome do remente no canto superior da tela e vi que a mensagem havia sido enviada
pelo seu namorado.
- O que ele está querendo dizer com isso? – perguntei intrigado.
- Se soubesse acha que estaria com essa cara?
- É, sua cara não está das melhores. Você conhece algo chamado maquiagem?
- Bobo – ela sorriu e depois voltou a ficar séria. – Estou preocupada. Será que ele viu as
fotos?
- Isso é uma coisa que não posso te responder. Meus poderes se limitam a saber apenas o
que está dentro de mim.
Ela deu um sorriso apagado e voltou sua atenção para o celular.
- Vai ver que ele está apenas te notificando que hoje não é ontem e nem amanhã, tipo, normal
fazer isso – arrisquei tentando tirar um novo sorriso de seu rosto, mas falhei. – Ele já tinha te
mandado alguma mensagem assim?
- Não fora de algum contexto.
- Então ferrou – pontuei.
- Nossa! Muito obrigada pela animação. Você sabe muito bem como fazer isso. Animar as
pessoas.
- Pratico sempre diante do espelho.
- Você não fica sério nenhum minuto? Tipo, estou tentando não entrar em parafusos aqui por
causa dessa mensagem descabida do meu namorado. Será que dá para de fazer gracinhas por, pelo
menos, um minuto?
- Opa, desculpa – falei com sarcasmo. – Achei que tentando melhorar seu humor você
esqueceria desse problema.
- Achou errado – disse ela incisiva. – Você só está piorando a situação.
Ela levou a mão à boca ao terminar de pronunciar aquelas palavras e viu que era tarde
demais. Elas já tinham sido soltas ao vento e atingido muito bem o alvo. Peguei minha mochila, olhei
para ela mais uma vez e saí indo para o outro lado da sala. Passei o resto da aula mexendo no meu
celular ignorando completamente os olhares reprobatórios do meu professor ou os de culpa de Luara.
Se ela iria me tratar assim só porque tentei ser legal com ela, então eu queria era é que ela e
o resto do mundo se fodesse. Meu maior erro na vida sempre foi tratar as pessoas bem demais,
esperando que elas me tratassem da mesma forma. Mas pelo visto isso só fazia a gente quebrar a cara
mais cedo. Quando o intervalo foi anunciado, peguei o fone do meu celular e corri para o banheiro
masculino. Queria evitar que Luara viesse atrás de mim para se desculpar e aquele era o único lugar
na escola que ela não poderia entrar. Por vinte minutos me senti refugiado em um forte fedorento e
úmido que representava o meu fundo do poço.
Tá bom, estou fazendo um pouco de drama para contar essa parte, mas é só para vocês
perceberem o quanto estava puto com aquela situação. Luara era uma garota legal, mas essas
mudanças de humor constante me tiravam do sério e não me deixavam entender como trata-la nessas
explosões. A sorte que não era o namorado dela e não precisava aguentar isso constantemente, caso
contrário, já teria enlouquecido faz tempo.
Para meu azar o intervalo acabou e Luara me esperava do lado de fora com uma expressão
pior a que estava antes.
- Ele virá aqui na escola daqui a pouco e eu não contei para ele que você fazia curso
comigo.
Aquilo me fez sentir um misto de emoções e centenas de pensamentos passaram em minha
cabeça ao mesmo tempo. Olhei para ela sem saber o que dizer e entendi no mesmo instante o que ela
queria: que eu fosse embora e evitasse que o seu namorado me visse ali.
Sentindo as solas dos meus pés pegarem fogo, derretendo o chão por onde pisava, voltei
para sala antes que o professor entrasse, peguei meus materiais jogando tudo dentro da mochila e fui
embora sem que ninguém me visse. Fiquei sem saber o que sentir naquele momento, então escolhi
sentir raiva. Não de Luara por ter me pedido com os olhos para ir embora e compactuar com suas
decisões erradas. Mas por não me impor e dizer para ela acabar com tudo de uma vez e falar com seu
namorado que eu era apenas um amigo.
Só que muitas horas depois naquela mesma noite, um pouco mais calmo, encontrei a
resposta perdida em minha mente que por algum motivo tentei evitar: ela não queria tomar partido
com o seu namorado por uma simples razão, Luara não me considerava como seu amigo.
Seis
Segundo dados estáticos de alguma pesquisa realizada por alguma instituição para atingir
algum público-alvo, 75% das pessoas que você conhece não fariam por você o mesmo que faria por
elas. Isso representa três quartos de todos os seus conhecidos.
Faça uma lista mental rápida aí em sua cabeça – não, se é mental, que tal fazer na sua
geladeira – e conte quantas pessoas você já ajudou até hoje. Desde aqueles parentes mais próximos
ao qual você deve sua vida, como sua mãe e seu pai, até aquele vizinho chato que pede algo
emprestado para você todo final de semana e nunca devolve.
Fez a lista?
Agora desses, me conte quantos retribuíram esse favor de alguma forma.
Viu que impressionante! Às vezes você poderia ser capaz de dar a vida por outra pessoa que
não quebraria nem uma unha para te salvar. Pensando dessa forma, seria melhor então para de fazer o
bem às pessoas e passar a viver de uma forma individualista, cada um cuidando da sua.
Por mais que soubesse desses dados e sempre quebrar a cara por ajudar os outros e não
receber nada em troca, não conseguia ficar de braços cruzados quando via alguém passar por alguma
dificuldade. Parece que quando nasci alguém me programou para ser uma pessoa boa e fazer o mal a
alguém estava fora dos meus programas de comando. O que é uma pena, já que em diversas ocasiões
desejei me vingar de pessoas que não mereciam respirar o mesmo ar que eu.
Dramas à parte, o celular de Luara estava impossível naquela noite. Assim que a tensão da
mensagem do seu namorado se dissipou, uma ligação de sua mãe fez com que a preocupação viesse
novamente à tona.
- Minha mãe saiu e não vai poder vir me buscar depois do curso.
- Liga pro seu boy.
- Ele está trabalhando.
- Se quiser te acompanho até em casa – me ofereci voluntariamente.
- É sério? – disse ela com um jeito infantil. – Obrigada.
Como se o obrigado não fosse suficiente, ela me abraçou e me deu um beijo em minha
bochecha.
- Você é um fofo, sabia? – disse ela com uma voz alterada, parecendo a daqueles mangás
japoneses.
- Sabia – respondi na mesma entonação.
Me soltei de seus braços e pedi licença ao professor para tomar água. Quando retornei, vi
que o amigo do hippie acabava de sair do meu olhar, e antes que entrasse na sala Luara me lançou um
olhar desesperado.
- O que aconteceu? - perguntei quando me aproximei dela.
- Ele pediu meu telefone.
- E você deu?
- Não.
- Então por que está com essa cara?
Ela ignorou minha pergunta e ficamos sem nos falar até o final da aula. Caminhamos com as
meninas até o ponto em que nos separávamos e escoltando-a segui até sua casa onde nenhuma
surpresa aconteceu. Paramos de frente um para o outro e antes que disséssemos alguma coisa, um
carro com o som na maior altura estacionou próximo a nós e não deixou que disséssemos nada.
Boom...
A terra tremeu e senti todos os pelos do meu corpo se eriçar.
Boom...
Pessoas gritavam freneticamente.
Boom...
Meus ouvidos doíam pelo barulho.
Boom...
Os vizinhos saiam de suas casas para olhar o que estava acontecendo.
Boom...
Se a droga daquele homem não desligasse aquele som em cinco segundos, ligaria para a
polícia e mandaria eles metralharem aquele desgraçado filho de uma mãe que não sabia que sua cria
se transformara na pior espécie humana.
Nossa quase conversa se encerrou por ali e antes que tivesse a chance de dizer alguma coisa
ela entrou para sua casa e deu as costas para mim. Saí pensativo e praguejando a existência daquela
criatura que não poderia ser chamada filho de Deus nem se vendesse a pele do seu corpo para
comprar comida para famílias carentes da África.
Sim, eu estava possesso de raiva. Não, eu não sabia o motivo.
Tudo estava bem confuso dentro de mim e não queria chegar a nenhuma conclusão
precipitada para depois quebrar minha cara feio. Quando cheguei em casa fui direto para o meu
quarto, sem jantar ou comer qualquer coisa, mesmo com a fome monstra que estava sentindo. Nem a
cama estava sendo um bom lugar para mim, mas me joguei contra ela e deixei as lágrimas represadas
em meus olhos correrem livres pelo meu rosto sentimentos confusos brincavam de montanha russa
dentro de mim.
Meu despertador biológico me acordou às cinco e meia da manhã. Em um dia normal eu
levantaria bem disposto, colocaria minha roupa de ginástica, calçaria meu tênis confortável e
caminharia por trinta minutos no calçadão à beira mar e depois faria mais trinta minutos de academia.
Mas hoje eu só queria ficar enterrado em meus cobertores e esquecer do mundo lá fora.
O sol começava a despontar na faixa do mar com um céu límpido. Seria um dia perfeito.
Seria, se tudo não estivesse parecendo rir da minha cara, como se quem cuidasse do meu destino
fosse um grande palhaço sem graça, como aqueles que estava acostumado a ver em circos, e
escrevesse as piores histórias para mim.
Faltava apenas um dia para chegar sábado. Mas faltavam três para descobrir que fim levou a
conversa de Luara com seu namorado.
Quando já não aguentava mais ficar deitado por causa de minha fome, peguei meu roupão,
joguei sobre meu corpo dando um laço com o cordão sobre minha cintura e desci para a cozinha. O
cheiro de comida pareceu me nocautear antes de chegar até ela e quase desmaiei, literalmente, de
tanta fome que estava sentindo.
Peguei um pedaço de bolo de fubá e um pão com mussarela e presunto, enchi um copo com
leite e achocolatado e voltei para o meu quarto para ficar em frente ao computador até a hora de sair
para o curso. Nem bem liguei o computador e minha amiga virtual do triângulo amoroso me chamou
para um bate papo.
Aqueles rápidos minutos de conversa com Dina serviu para me animar pelo resto do dia.
Depois daquilo liguei minhas músicas no último volume e deixei tudo aquilo que estava sentindo
guardado no fundo da minha mente. Eu era muito novo para ficar me preocupando com o que
aconteceu, acontecia e o que estava para acontecer. Como dizia os sábios do nosso século pelo
Facebook, a vida é curta demais para não aproveitá-la. Então era isso que faria, independente das
consequências.
Quando recebemos nossos materiais do curso, a mochila tornou-se alvo de piadas por parte
de todos. Além de ser feia, era maior que uma jamanta – seja lá o que for isso – e todos falaram que
não usariam aquilo. Mas como fomos notificados que teríamos uma reunião com os organizadores do
curso e que todos deveriam ir caracterizados com os materiais disponibilizados, fomos obrigados a
usar aquele trambolho contra nossa vontade.
Foi engraçado ver todos desfilando pelo corredor da escola com aquela mochila que cobria
toda a parte de trás dos alunos, estragando qualquer visual que passaram horas se preparando. Mais
engraçado ainda foi saber através do nosso professor que os organizadores não apareceriam e trazer
aquilo foi completamente desnecessário, mas de todas, acho que a nossa sala foi a que menos ficou
com raiva, pois logo após esse comunicado ele completou com um anúncio que deixou todos
animados.
- Na semana que vem acontecerá uma grande feira no estado e quero saber se todos tem
interesse em comparecer.
Houve um momento de silêncio total na sala enquanto todos digeriam aquela proposta e
depois todos explodiram de animação.
- Como nessa semana nós terminamos a parte de qualificação profissional, na próxima
semana já começamos as aulas práticas, ou seja, precisamos sair da sala para apresentar a vocês
tudo o que se trata de turismo na cidade e no estado do Espirito Santo. E como essa é uma das feiras
mais importantes que acontecerá na capital, achei que seria interessante levar vocês até lá.
- E quando estará querendo nos levar lá? – perguntou o hippie, adiantando a curiosidade de
todos.
- Na quinta que vem. A feira tem vários estandes com apresentações sobre os produtos
oferecidos e além do que aprenderão lá, poderão conseguir até algum contato para trabalho.
Os olhos de todos brilharam e a ansiedade ficou visível na expressão de cada um.
- Enviarei um ofício para a prefeitura amanhã solicitando um meio de transporte para nos
levar e caso todos confirmem, teremos que pagar apenas dois reais cada um para pagar a diária do
motorista. Fora uns quinze reais para almoçarmos lá.
- Eu estou dentro – falei empolgado.
Os outros também confirmaram e nossa viagem estava marcada. Seria uma experiência
interessante, mesmo que não conseguisse chamar a atenção de ninguém na feira, poderia curtir um
momento a mais ao lado de Luara e talvez assim definir nossa amizade.
- Quem aqui tem internet em casa? – perguntou o professor.
Fui o único a levantar a mão.
- Então estarei passando uma lista para vocês preencherem com nome completo, número do
cpf e da identidade, e Tom, você pode fazer a nossa inscrição pelo site, pois só podem entrar pessoas
credenciadas.
- Pra mim está de boa na lagoa – falei sorrindo para Luara e ela completou: - Com as duas
perninhas para cima.
Nós dois rimos da nossa piada interna e ninguém entendeu nada. Depois disso ninguém mais
conseguiu se concentrar na aula, todos estavam muito eufóricos com a ideia de ir a uma feira que
recebia pessoas de todo o planeta e só a ideia que algum de nós poderia sair dali com um contato de
emprego que poderia mudar nossas vidas para sempre fazia com que essa empolgação só aumentasse.
Ninguém viu as horas passar.
Quando o professor nos dispensou, ficamos espantados pelo tempo ter passado tão rápido e
pegando nossas mochilas gigantescas saímos em polvorosa pelos corredores falando sobre a viagem.
Depois de uns vinte metros longe da escola, Luara olhou para a rua assustada e me apontou a silhueta
de alguém que vinha ao nosso encontro.
- Aquela é minha mãe – falou ela. – Esqueci de dizer, mas ontem conversei com ela e falei
do carinha esquisito de nossa sala. Ela falou que todos os dias virá me buscar.
- Que legal. Pelo menos assim você estará em segurança até em casa.
Quando avistou Luara, ela parou no meio do caminho e esperou que nos aproximássemos.
Percebi que ela me olhava com um olhar curioso perguntando-se se eu era o cara que estava
assediando sua filha.
Luara só olhou para mim com a expressão um pouco alterada e falou.
- Amanhã então nos vemos no curso – ela voltou sua atenção para sua mãe e me deixou
parado no vácuo, sem entender nada.
Percebi novamente que ela não iria me apresentar a um de seus familiares, então dei um
jeito de apressar meus passos, passei por elas e peguei outro caminho para chegar até em minha casa.
As lágrimas escorriam por meu rosto deixando veios profundos de tristeza em minha alma e naquele
momento só queria gritar com alguém. Pela segunda vez ela demonstrou que não estava disposta a me
apresentar a qualquer conhecido, então deixei uma certeza tomar conta de mim: Luara não merecia
minha amizade, pois como a Dina falou, amizade sempre em primeiro lugar. E para ela eu estava
abaixo daqueles que nem apareciam em sua lista de conhecidos.
A primeira chance fora dada e ela tinha desperdiçado. A segunda veio logo em seguida e ela
deixou passar sem demonstrar nenhum interesse. Seria muita burrice dar uma terceira para ficar no
vácuo novamente. A partir daquele momento Luara se transformaria em uma verdadeira estranha para
mim e se ela quisesse um palhaço para fazê-la rir durante o curso, que colocasse um anuncio nos
classificados, por que para mim estava acabado.
Oito
Dizem que o mal do século XXI é a ansiedade. Você concorda com isso?
Vivemos tão ansiosos com o dia do amanhã que às vezes esquecemo-nos de aproveitar o
presente e depois ficamos nos lamentando que envelhecemos e não aproveitamos nada da vida.
Quantas vezes não tive lembranças saudosas do meu tempo de infância que me deixaram tão
abaladas a ponto de me fazer dar qualquer coisa para voltar e viver aquelas lembranças novamente.
E olha que só tenho vinte e quatro anos... Partindo daí, fico imaginando como será quando já estiver
bem velhinho, próximo da morte e aquele turbilhão de memórias invadirem minha mente me fazendo
ficar arrependido por não ter aproveitado o meu tempo da maneira mais sábia possível.
Esse era um desses momentos que me arrependeria amargamente no futuro. Já se passavam
das dez e ainda não tinha levantado e nem tomado café. Fiquei com medo de abrir meus olhos e
descobrir que minha vida estava mergulhada em um poço de merdas do qual eu nunca conseguisse
sair, mesmo me esforçando dia após dia para isso. E não é que quando acordei comprovei que estava
exatamente nesse lugar.
Como consegui estragar tanto minha vida assim? Lógico que eu sabia que existiam pessoas
que estavam piores que eu, pois graças à Deus eu tinha um teto para morar, roupas para vestir,
comida para comer, internet com uma velocidade razoável para acessar e livros para ler. Então
porque eu me sentia tão vazio daquele jeito?
Claro que uma parte era porque não tinha comido nada ainda e a fome estava monstra, mas
por outro lado o vazio dentro de mim, aquele sentimento de estar faltando algo, se deviam a coisas
bem mais complexas do que o meu cérebro poderia compreender. Se Freud ainda estivesse vivo,
poderia procurá-lo para me dar algumas respostas, mas o danado foi nascer em uma década em que
ainda nem pensava em existir.
Valeu Freud!!!
Só me restava então procurar as respostas dentro de mim e desabafar com a única amiga que
ainda não tinha me deixado, mesmo que, por muitas vezes, a deixava de lado para tentar encontrar
amigos reais em minha cidade.
Desci para cozinha e comecei a preparar o meu lanche. Descobri que não tinha pão, bolo e
nem sequer um biscoitinho para contar história, ou seja, teria que colocar a mão na massa. Dei uma
olhada nos armários para ver se tinha os ingredientes necessários para preparar uma omelete e
preparei tudo como se estivesse em um programa culinário, dispondo cada ingrediente em uma
vasilha separada. Minha mãe morria por isso já que para fritar um simples ovo eu gastava quase
todas as vasilhas limpas dela, e detalhe, deixava tudo sujo dentro da pia para ela lavar.
Ralei ¼ de salsichão de frango, um pedaço de mussarela e cebola. Deixei-os em vasilhames
separados e quebrei dois ovos em uma tigela maior. Dei uma misturada sem batê-los, só para
homogeneizar a gema com a clara, acrescentei uma pitada de sal e uma de orégano. Coloquei uma
frigideira antiaderente para aquecer e depois despejei um pouco de óleo e logo após os ovos. Esse
era o segredo, esperar que o ovo fritasse um pouco antes de acrescentar o recheio para facilitar na
hora da virada, quando percebi que havia se formado uma crosta bem grossa de ovo, despejei o
salsichão e um pouco do queijo e esperei que ele derretesse. Na hora de virar, com o auxílio de uma
espátula desprendi o ovo do fundo e apoiando com ela, virei rapidamente a omelete sem quebrar.
Depois de virada, acrescentei o resto do queijo na parte de cima e assim que ele derreteu desliguei o
fogo e o dispus em um prato bem grande. Peguei um copo de suco de polpa de manga que minha mãe
havia preparado para a janta na noite anterior para acompanhar minha refeição matinal e depois fui
para sala me deliciar com aquela maravilha dos deuses feita por mim enquanto via um pouco de
televisão.
Essa era uma das coisas que eu pouco fazia dentro de casa - não cozinhar, assistir televisão.
Depois que meus pais cancelaram a tv por assinatura para cortar despesas, a opção limitada de
canais e programas que realmente fosse interessantes me fez perder todo o gosto por aquela
atividade, então quando queria assistir alguma coisa, baixava pela internet – ou via on line – e
assistia direto no computador. Coloquei em um programa infantil que só passavam desenhos
repetidos e perdi minha manhã toda ali relembrando da minha infância e de como gostava de passar
horas assistindo aquelas bobeiras que hoje já não tinha graça nenhuma.
Fui forçado a lavar a louça quando minha mãe chegou. Ela disse que se as vasilhas não
ficassem limpas em trinta minutos eu poderia esquecer da comida naquela casa por uma semana,
porque ela já estava cansada disso. Achei engraçado ela declarar greve assim do nada e falei que
conversaria com o sindicato dos filhos revoltados em relação a isso, provavelmente ela estava
quebrando alguma lei familiar e isso geraria um longo processo. Só que pensei melhor e vi que isso
daria muito trabalho, era bem mais fácil lavar as vasilhas e garantir minha comida para a semana.
Após terminar o meu trabalho escravo, fui correndo para o meu quarto antes que desse a
louca em minha mãe e ela pedisse para que eu varresse a casa ou lavasse as roupas que estavam na
máquina.
Não havia nada novo na internet e fiquei com preguiça de chamar Dina para um bate-papo
novamente, então peguei um livro para ler e fiquei preso naquela leitura até chegar a última página.
Por fim só consegui dizer um "uau" e ficar olhando aparvalhado para a capa que parecia rir da minha
expressão boba na cara. Já fazia tempo que não lia um livro assim, o último, se me lembro bem, foi O
Caso dos dez Negrinhos escrito pela dama do crime Agatha Christie.
Quase tomei um tombo da cama quando olhei as horas em meu celular e vi que já estava
quase na hora do curso. Pela primeira vez eu chegaria atrasado e apesar de não me importar nenhum
pouco com isso, fiquei meio receoso por que poderia passar uma impressão de irresponsabilidade
para o professor e ele desistisse de me indicar para o trabalho. Então decidi fazer o que todos
pensariam em minha situação: inventar uma desculpa muito boa para camuflar o meu erro.
Dez
Dizem que depois da tempestade sempre vem a bonança. Ou que nos lugares mais difíceis
nascem as mais belas flores. E ainda, ninguém nasceu para ser infeliz. Pra falar a verdade, existem
milhares de frases com esse mesmo sentido que as pessoas usam para motivar as outras em momentos
difíceis. Muitas delas você encontra em livros de autoajuda, filmes do gênero drama, ou em qualquer
amigo clichê que se acha o mestre da sabedoria pronunciando uma dessas frases prontas.
Naquele momento eu estava precisando ouvir uma frase daquelas. Mais que isso, precisava
de um ombro para chorar, braços para me dar um abraço apertado, conselhos para me motivarem a
continuar em frente. Eu precisava de um amigo. Alguém que me ouvisse e falasse "eu te entendo".
Mas infelizmente eu estava sozinho naquele barco.
A dor que escondia diante das pessoas era a minha companheira na escuridão do meu
quarto. Sua voz fria sussurravam coisas em meu ouvido das quais eu não queria ouvir. Era sempre
assim. Alguém aparecia em minha vida, me mostrava o quanto era legal, e depois partiam deixando
para trás apenas feridas.
O problema estava em mim?
O problema eram os outros?
Era normal ter uma vida tão cagada assim?
Amizades e relacionamentos mais sérios não foram feitos para mim?
Era melhor se eu estivesse morto ou nem ter nascido?
Alguém sentiria minha falta se desaparecesse de uma hora para outra?
O ânimo para fazer qualquer coisa naquele dia e no resto de minha vida tinha se esvaído por
completo. Se eu não tivesse Jesus no coração – podem rir, é uma piadinha para quebrar a tensão –
com certeza teria feito algo muito ruim com a minha vida. Por fim, decidi colocar uma pedra sobre
aquele assunto e tocar a vida para frente. Se já conhecia muito bem aquela situação, o melhor
remédio para curar as decepções da vida era o tempo.
Bem que agora cairia muito bem passar uma legenda daquelas "10 anos depois" para
adiantar um pouquinho o processo. Facilitaria muito mais minha vida, mas como não estava dentro de
nenhuma novela mexicana, teria que enfrentar a vida do meu jeito e fazer de tudo para remediar
minha situação. Para isso eu precisaria de muito sorvete!
Vesti uma bermuda de tactel, coloquei uma camiseta e calcei meus chinelos. O dia estava
ensolarado e sem nuvens, mas ventava bastante e isso diminuía o calor. Caminhei pelo calçadão por
algum tempo até chegar na minha sorveteria preferida. Lá eles tinham mais de cinquenta sabores,
várias opções de cobertura, atendentes atenciosas, preço bom e o melhor de tudo: era você que
montava seu sorvete. Perfeito para o meu estado.
Houve um dia em que ria de pessoas assim, que precisavam de doces para curar sua fossa.
Mas a vida foi tão sacana com isso, que paguei a língua toda vez que sofri alguma decepção, e olha
que nem eram amorosas. Às vezes tento imaginar o que aconteceria comigo caso me apaixonasse e
não fosse correspondido, ou a pessoa que amo me trocar por outro, ou pior ainda, descobrir uma
traição. Será que eu seria capaz de matar?
Calma, não estou planejando um assassinato premeditado, ainda, a falta de açúcar em meu
sangue depois que colocava na cabeça a ideia de comer sorvete me fazia ter pensamentos estranhos.
Como da vez que imaginei como teria sido se Deus tivesse criado o mundo com mutantes, como em
X-man. Com a sorte que eu tenho, provavelmente teria nascido como uma pessoa normal, ou então
como um mutante daqueles com os poderes mais podres que poderia se esperar.
Passei por algumas crianças que brincavam na quadra de arei na praia, idosos sentados na
pracinha contando seus "causos" competindo entre eles quem tinha histórias mais interessantes para
contar, trombei com uma mulher que fazia caminhada em plenas onze horas com um sol de rachar e
quase fui atropelado quando atravessei a rua para chegar no meu destino final.
- E aí estranho – ouvi alguém se dirigindo a mim enquanto decidia se pegaria uma bola de
pistache ou uma de chocolate com menta, na dúvida, peguei uma de cada.
Virei para olhar quem interrompia o meu momento sagrado e dei de cara com Eliana.
- Olá moça, o que está fazendo aqui?
- Comecei a trabalhar aqui semana passada – disse ela animada.
- Que legal! Agora pode dar cortesia para os amigos – disse brincando.
- Só que não – respondeu ela não entendendo a brincadeira. – Meu chefe é muito mão de
vaca.
- Estava só brincando – falei, tentando remediar a situação. – Você conversou com a Luara
depois de ontem?
- Não, por quê?
- Tivemos uma conversa séria ontem dando um xeque-mate em nossa amizade. Acho que
nunca poderemos ser amigos.
- E o que ela disse? – perguntou Eliana se mordendo de curiosidade.
- Só ficou falando de decepcionar a família, ciúmes do namorado e essas coisas. Ou seja, no
fim ela não queria ser minha amiga mesmo.
- Que babado! Então agora acabou mesmo? – perguntou casualmente.
- Creio que sim. Não tenho mais nada a dizer para ela.
Sem que pudesse esperar, ela me puxou para um ponto cego da sorveteria onde o seu patrão
não tinha visão e me deu um beijo demorado na boca. Correspondi.
- O que foi isso? – perguntei depois que nossos lábios se separaram.
- Sempre achei que você e Luara ficariam juntos, então segurei minha vontade de ficar com
você. Amizade vem antes de qualquer relacionamento. Mas agora que disse que não tem mais chance
nenhuma de ser amigo dela, então suponho que se tornar namorado dela será impossível.
- Não sei o que dizer – admiti, como se estivesse confessando.
- Que tal me chamar para sair?
Dei um sorrisinho bobo.
- Você não perde tempo mesmo, ein garota?!
- E correr o risco de outra garota da turma dar em cima de você e me deixar chupando
dedos? – disse ela com um brilho nos olhos. – Me segurei muito até para não quebrar o código de
amigas com Luara.
- Mas por que cismou que Luara e eu teríamos alguma coisa?
- E não estava óbvio? O jeito que vocês dois se olhavam e conversavam... Todos tinham
essa impressão.
- Confesso que nunca reparei nisso. Como falei, sempre quis a amizade dela. Nunca a vi
com outros olhos.
- Sei – disse ela não acreditando muito. – mas então, vai me chamar para sair?
- Que tal pegarmos um cineminha quinta-feira?
- Mas quinta não é o dia da nossa viagem.
- Ixi.... é mesmo, nem estava lembrando disso. Fica pra sexta então, você pode?
- Vou ver na agenda e depois te aviso – disse ela piscando um olho para mim. – Agora deixa
eu voltar ao trabalho se não serei demitida por sua causa.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela me roubou outro beijo e saiu cantarolando
para frente da sorveteria. Percebi que as bolas de sorvete que tinha colocado no copinho já estavam
derretendo, então me apressei em toma-lo e depois comprei mais três bolas de outro sabor.
Nem bem cheguei em casa e meu celular começou a tocar avisando que tinha recebido uma
mensagem de texto.
Não sei chamar os passarinhos para cantar para você. Não posso dar cores ao arco-íris,
nem posso livrar você de seus problemas. Mas sei pedir a DEUS para cuidar bem de você, e sei
que posso dar o que existe de mais forte em mi: o carinho e a vontade de ver você sempre feliz!
Bjusssss *-*
BOA TARDE GATO.
Olhei bem para a tela do meu celular e pensei em que situação havia me metido. Uma das
coisas que eu achava mais cansativo em um relacionamento eram as atitudes melosas entre as
pessoas, sério, qual a necessidade disso? Eliana parecia ser desse tipo de pessoa, mas ainda estava
cedo para dizer com certeza. Então resolvi esperar para ver no que isso daria e torcer para que fosse
o melhor.
Doze
Pedi para que Eliana se sentasse junto com as meninas no fundo do ônibus porque estava
com dor de cabeça e queria ficar um pouco sozinho longe da bagunça da viagem. Sentei-me na
primeira cadeira e me livre por algumas horas do grude da minha, então declarada, namorada.
Era uma viagem de duas horas e meia da nossa cidade até a capital do estado. Podia-se
contar nos dedos as vezes que fora lá passear e conhecê-la um pouco. Por mais que, para muitos, a
viagem de ônibus fosse desconfortável, eu adorava viajar por esse meio de transporte. Era tão legal
ver as paisagens pela janela, sentir a brisa pela janela, se acomodar nas cadeiras reclináveis e
melhor, poder parar em postos ou restaurantes á beira da estrada para lanchar. Sentia-me tão
aventureiro fazendo isso.
Quando chegamos ao parque de exposição onde seria realizada a feira, não imaginava a
proporção do evento. Tudo era tão organizado e... chique. Me senti mal vestido ao ver um rapaz com
aproximadamente a minha idade, saindo de um Volvo prata trajando um terno cinza sob medida e
sapatos sociais brilhando. Era frustrante pensar que poderia ser eu em seu lugar, caso tivesse tido
sorte na vida nascendo e convivendo em seu meio social. Mas não me deixei desanimar.
Depois que fizemos o check in para pegarmos nossas credenciais, adentrei em um mundo
mágico e completamente fora da minha realidade. Estávamos indo ali para termos experiências sobre
o turismo profissional, mas até o exato momento não sabia o que uma feira de mármore e granito
tinha a ver com isso. O ambiente era completamente profissional e os estandes apresentavam seus
materiais ou trabalhos com atendentes carismáticos e uma recepção digna de um rei. Digo isso por
que coquetéis com iscas de salmão, espetos de funghi e iguarias e drinks dos mais variados possíveis
– de chopp as mais rebuscadas bebidas, como marguerita e champanhe.
No início foi constrangedor entrar nos estandes apenas para me deliciar com essas
maravilhas, mas diferentes de todos os outros alunos, inclusive Eliana e Luara, que se dispersaram
para andarem sozinhas pela feira, outra amiga e eu ficamos na cola do professor e assim tivemos uma
experiência mais abrangente de todo o evento.
O melhor de todos era o que tinha um espaço reservado dentro da feira, ocupado por uma
enorme armação de aço criando um espaço fino e elegante no meio de todos aqueles outros estandes.
Em seu interior, algumas bailarinas dançavam e se movimentavam em cima de grandes blocos de
mármore, enquanto modelos ficava ao lado de grandes lascas de mármore, emoldurados na parede
como se fossem obras de arte. Havia também um espaço onde tinha cadeiras confortáveis para
descansar e um bar que fazia drinques maravilhosos. Toda hora passava um garçom por você e
oferecia algum petisco ou bebida, mesmo que estivesse só ali olhando. Achei incrível essa recepção
sem preconceitos e fiquei encantado com tudo que via. Mas o melhor ainda estava por vir.
Por ser um evento de abrangência internacional, pessoas de todo o mundo ia até lá para
fecharem negócios, verem as novidades do mercado e criarem contatos com empresários e
empreendedores de vários países. Vez ou outra passava por algum asiático – não me perguntem se
era da Coreia, China ou Japão, por que infelizmente não sabia diferenciar nenhum, e como também
não sabia falar sua língua, ficava difícil perguntá-los – e ficava admirando o jeito diferente de se
comunicarem e como tudo parecia tão normal para eles àquela mistura de consoantes ininteligíveis
por ouvidos leigos como os meus. Mas quando encontrava com algum americano ou alguém que só se
comunicava com o inglês, compreendia melhor, já que eu era quase fluente nessa língua.
Depois de passarmos por vários estandes que nos passavam informações sobre seus
trabalhos, paramos em um quase no final da feira, administrado por uma empresa turca. A primeira
coisa que me chamou a atenção foi a beleza dos atendentes – sim eram homens, e não, não tenho
vergonha de dizer que acho outros homens bonitos – e como eram tão atenciosos, mesmo não tendo
quase nenhuma visita. Meu professor se adiantou até eles e começou a conversar com um inglês bem
básico fazendo às vezes seu interlocutor não entender o que queria dizer. Quando ele estava saindo,
resolvi me apresentar e pedir uma ecobag que eles estavam dando com um brinde da empresa.
- Hi – falei um pouco nervoso. – My name is Tom and...
Ele se aproximou de mim e apertou minha mão.
- Hi. You're his son?
Demorei um pouco para compreendê-lo, já que tinha bastante tempo que não praticava
conversação com outras pessoas, então respondi feito uma foca em trabalho de parto:
- Errr... I am... errr... student in... errr… your class.
- Oh yes – disse ele compreendendo o que queria dizer. - He is you teacher.
- Yes, yes – falei me sentindo um idiota. Por que não disse logo de início isso? – He is my
teacher.
Ele sorriu e esperou que dissesse mais alguma coisa.
Como sei que talvez você possa não falar inglês fluentemente como eu – nossa, humilhei
agora, - vou transcrever a conversa que tive com o turco em português. Mas lembre-se, toda essa
conversa foi realizada em inglês e me saí muito bem após meu nervosismo se aplacar um pouco.
- Desculpe – disse eu ainda constrangido. – Estou um pouco nervoso por que não tenho
muita prática em conversar com pessoas de outros países, mas estou me sentindo bastante animado
por poder praticar um pouco.
- Fico feliz por isso – disse ele soando sincero.
- Estou atrapalhando você? – perguntei preocupado. – Por que se estiver ocupado, posso ir
embora.
- Não, que isso. Estou bem. Como pode ver, as coisas estão meio paradas no momento.
- Ah sim, mas assim que precisar sair, não se incomode em me dizer.
- Tudo bem.
- Mas como mesmo é o seu nome.
- Ai meu Deus, esqueci completamente de me apresentar. Meu nome é Kemal Tenk.
- Como? – perguntei não entendendo.
- Eu disse Kemal.
- Que nome diferente – falei animado. – É tão legal conhecer uma pessoa tão diferente da
minha realidade.
- Você faz o que? – quis saber ele.
- Eu sou professor e estou fazendo um curso de turismo. Aquele era o meu professor.
- Oh, sim. Entendi.
- E o que você faz exatamente?
- Sou o representante dessa marca – ele me entregou um encarte com vários produtos ligados
ao mármore. – Basicamente fico aqui, apresento o produto aos interessados que chegam aqui e
consigo novos clientes para empresa.
- Entendi. E você viaja muito? – perguntei interessado. – Quer dizer, você viaja pelo mundo
inteiro.
- Normalmente sim.
- Nossa! Que demais! Deve ser incrível.
- É sim, mas é um pouco cansativo também. Às vezes fico quatro ou cinco meses fora de
casa. O pior de tudo é ficar longe da família.
- Você é casado?
- Não, não. Falo da família inicial: pai, mãe, irmãos.
- Ah sim. Desculpe-me.
- Não tem problema.
Fiquei em silêncio e olhei em volta. O movimento na feira havia aumentado e percebi que
várias pessoas chegavam até o estande, mas o outro rapaz que estava ali atendia sem chamar o amigo
para ajudar-lhe.
- Nossa, desculpe. Eu devo estar tomando demais o seu tempo. Se precisar sair para atender
alguém ou quiser que eu vá embora, é só dizer. Por um momento esqueci que estava trabalhando.
Ele sorriu e percebi pelo seu olhar que não estava nenhum pouco incomodado com minha
presença ali.
- Se ele precisar me chama. Mas como ele está vendo que estamos ocupados aqui, não irá
interromper.
- Mas eu não vou comprar nada de vocês – disse, sentindo meu rosto corar. – Quer dizer, eu
não trabalho nessa área de...
- Só que nem por isso você deixa de ser importante para nós – disse ele me interrompendo.
– Todas as pessoas que chegam até nós são importantes a seu modo. Você pode não fechar um
contrato com a empresa, mas está me ajudando bastante.
- Como? – perguntei curioso.
- Se eu te disser que já estou a dois meses viajando e nesse período só tive reuniões chatas
com clientes, minhas únicas conversas informais foram com o meu companheiro de viagem, mas
mesmo assim ele não é muito... como posso dizer... animado, e a nossa conversa está sendo a coisa
mais legal que está acontecendo comigo, ficaria chateado?
Dei um sorriso com uma expressão surpresa e ele também sorriu, esperando ansioso que eu
dissesse alguma coisa.
- De maneira alguma. Posso dizer que estou um pouco chocado e bastante feliz por isso, não
pensei que isso pudesse acontecer. É tão estranho... mas de uma maneira boa – falei, completando a
frase ao perceber sua expressão se retesar.
Olhei para o relógio e percebi que as horas voaram.
- O que foi? – perguntou ele curioso.
- Só tenho mais uma hora para ficar aqui.
- O que? Já?
- É. Estou em uma excursão com o pessoal do curso – expliquei. – Marcamos de ir embora
às cinco.
- Tão cedo.
- Eu sei. Foi vacilo meu professor agendar o ônibus que nos trouxe até esse horário só.
- Mas você irá voltar amanhã, não é?!
- Infelizmente não – disse cabisbaixo. – Estou numa fase que até um pedinte de rua tem mais
dinheiro que eu.
Minha piada o fez rir enchendo o ambiente com um som gostoso de ouvir.
- Que pena – disse ele sinceramente. – Gostei de você.
Olhei-o de uma forma analisadora. Kemal era um cara que tinha por volta dos seus trinta
anos. Boa forma, aparência agradável, simpático, provavelmente bem de vida, turco, solteiro e
estava deixando de lado os clientes para conversar comigo. Não sei o que isso pareceria no país
dele, mas no meu não pegaria muito bem.
Fiquei nervoso com meus pensamentos e a partir daquele momento só conseguia imaginá-lo
dando em cima de mim. Não que isso fosse ruim, caso eu gostasse de homens, mas a situação era que
não estava procurando nenhum relacionamento com pessoas do mesmo sexo, mesmo que isso
representasse a minha saída dessa droga de país.
- O que foi? - perguntou ele.
- Nada, só estava imaginando algumas coisas aqui.
- Tipo?
Dei um sorriso e tentei imaginar o que ele diria caso contasse para ele no que estava
pensando.
- Não é nada sério, somente alguns pensamentos bobos. Mas até agora, o que mais gostou no
Brasil? – tentei mudar de conversa, mas ele captou rápido.
- Se não é nada sério, por que tentou desviar minha atenção para outro assunto tão rápido
assim?
- Além de bonito é inteligente – falei sem pensar e me arrependi em seguida. – Quero dizer...
aff, agora o meu inglês resolveu dar uma engasgada. Eu quis dizer que além de simpático também era
inteligente.
- Sei – disse ele sorrindo enquanto mantinha uma expressão misteriosa em seu rosto. Não
tentei decifrá-la. – Então não me contará o que estava pensando.
- Você vai me desculpar, mas posso ser sincero com você?
Ele assentiu com a cabeça, então continuei.
- Devido a todas as situações, por um momento tive a impressão que estava dando para cima
de mim.
- E isso seria um problema? – perguntou ele de uma maneira sedutora.
- Infelizmente sim. Já estou namorando e minha namorada é muito ciumenta.
- Você é mesmo muito engraçado – disse ele sorrindo. – Mas você estava certo, por um
momento fiquei interessado em você sim. É uma pena.
- O que não nos impede de sermos amigo – falei tentando animá-lo.
- Claro, com certeza quero ser seu amigo.
Olhamos um para o outro e fiquei confuso quanto ao que dizer em seguida. Ele também
parecia meio aéreo, então resolvi acabar nossa conversa por ali. Faltavam apenas quarenta minutos
para procurar o pessoal para ir embora, então não havia mais motivos para ficar ali.
- Então é isso, né?! Acho que já vou indo. Com certeza fui uma péssima companhia, pois
além de ter tomado o seu tempo não comprando nada, também não correspondi suas expectativas.
- Você já está indo? – perguntou assustado.
- Creio que sim. Agora que descobriu que tenho namorada, acho que não vai querer
continuar conversando comigo.
Ele me olhou sério.
- Não estava conversando com você apenas por isso. Claro que se rolasse alguma coisa
seria muito bom – disse ele sorrindo, - mas gostei muito de conversar com você. Tanto é que tenho
uma proposta de emprego para você. Espere só um minuto.
Ele se retirou e chamou seu amigo para conversar. Fiquei olhando para eles, mas não
conseguia entender o que estavam dizendo por que falavam muito baixo. Fiquei imaginando qual
seria essa proposta de emprego e confesso que fiquei um pouco excitado, não no sentido sexual da
palavra, mas sim que fiquei ansioso para saber o que seria. Kemal voltou sorrindo com uma garrafa
de café e me serviu uma xícara. Esperei que ele dissesse alguma coisa, mas ele manteve o suspense
por um bom tempo.
- Não é legal você sair daquela forma no meio de uma frase crucial e quando regressa não
dá prosseguimento a ela – disse brincando.
- Eu sei – disse ele com um olhar maroto. – Estava conversando com o meu amigo sobre a
possibilidade de termos um guia de turismo enquanto nos hospedamos aqui no Brasil. Ele disse que
não havia problema nenhum, então se quiser, o emprego é seu.
- Como assim guia de turismo? Não conheço Vitória muito bem e também nem terminei meu
curso ainda.
- Você já me falou isso. Mas como disse, gostei muito de você e quero te ajudar. Você não
tem emprego, nós não temos alguém que traduza nossas conversas para as pessoas que não sabem
falar inglês, então seria uma mão lavando a outra.
- Então basicamente vocês querem um intérprete?
- Exato!
- Mas tenho que lhe dizer que não sei falar algumas palavras em inglês, como por exemplo,
o nome dessas pedras e desse maquinário.
- Tudo bem. Com paciência nó conseguiremos nos comunicar. Então aceita?
Comprimi meus olhos enquanto mexia meus lábios para a direita e para a esquerda e percebi
que não estava tudo ok. Apesar da proposta ser tentadora, não teria dinheiro para pagar um hotel e
coisas para minha sobrevivência pelos outros quatro dias de feira. Então, com uma expressão
chateada admiti:
- Não posso.
- Qual o problema dessa vez? Está com medo de fazermos algo com você?
- Pelo contrário – disse ao perceber que não havia pensado naquela possibilidade, afinal eu
os estava conhecendo naquela hora. – Confesso que essa proposta era tudo o que esperava encontrar
nessa feira, mas infelizmente não tenho condições para aceitar por não ter como ficar na cidade.
- Mas você é surdo ou é lerdo mesmo? – perguntou brincando. – Eu não falei que estamos
oferecendo um emprego para você? Isso inclui sua hospedagem e o cachê que conversaremos mais
tarde no hotel.
- Sendo assim, estou dentro. Só preciso avisar meu grupo sobre essa notícia maravilhosa e
ligar para avisar meus pais.
- Vai correndo, por que pode chegar um comprador brasileiro aqui a qualquer momento e
talvez precisaremos de sua tradução.
- Vou em um pé e já volto no outro – falei em português mesmo, ignorando a expressão
confusa em seu rosto por não entender nada.
Corri por toda a feira como um cão sem dono à procura do meu professor. Encontrei alguns
colegas de classe que informavam sua localização, mas sempre quando chegava a esse ponto ele já
não estava mais lá. Foi um sacrifício, mas o encontrei de volta naquele estande de primeira classe
com as bailarinas e contei tudo a ele. Confesso que fiquei surpreso ao perceber que ele ficou feliz
por mim, então decidi que assim que voltasse para casa e consequentemente para o meu curso,
procuraria tratá-lo melhor. Depois liguei para os meus pais e contei a novidade a eles e por mais que
achasse que eles ficariam receosos com aquilo, aceitaram até que de boa na lagoa.
Meu celular tocou e vi no visor que era Eliana querendo falar comigo. Apenas ignorei e
guardei-o em meu bolso voltando todo sorridente para o estande. Por quatro dias ficaria longe
daquele pesadelo e não estava me sentindo nenhum pouco mal por isso. Talvez esse tempo fora me
ajudasse a pensar em uma forma de dar um fora nela sem que a fizesse sofrer muito, porque pela
minha intuição aquele relacionamento só me daria dor de cabeça se optasse levá-lo adiante. Dessa
forma, peguei meu celular novamente e segurei o botão até que ele desligasse completamente. Por
quatro dias me desligaria da minha vida e aproveitaria todas as experiências que aquela decisão me
proporcionasse.
Kemal abriu um largo sorriso a me ver novamente e pensei comigo mesmo que esses seriam
os melhores dias da minha vida.
Quinze
Quando Alice correu atrás do coelho branco que mantinha uma postura engraçada em
relação aos outros coelhos que ela já vira antes, nunca esperaria cair em um buraco quase sem fundo
que a levaria para um mundo repleto de maravilhas. Claro que ela não contava com a presença de
uma rainha má que quase lhe cortou a cabeça, mas tenho certeza que, mesmo que soubesse de sua
existência não teria desistido dessa aventura.
A vida humana em si é tão chata. Nascer, crescer e morrer. Muita gente leva isso a sério
demais. Boa parte das pessoas que conheço mantém uma rotina tão certinha, fazendo todos os dias as
mesmas coisas de sempre, que no fim das contas nem elas aguentam, mas não conseguem mudar por
que já se acostumaram com aquilo. O resultado disso são reclamações e desabafos pelas redes
sociais fazendo com que os murais de amigos se transformem em sessões terapêuticas.
Não posso dizer que minha vida é cem por cento rodeada de adrenalina. Tenho os meus altos
e baixos, como uma montanha russa. Mas o que me diferencia de todas essas outras pessoas ao qual
citei anteriormente é que nunca fico conformado com a situação a qual estou vivendo. Sempre quero
mais, sempre quero o melhor. Isso me faz viver experiências únicas ao qual nunca esperaria viver
nem em um milhão de anos.
Desde que entrei no curso, uma coisa visível me diferia do restante da turma: a ambição.
Não sei se era por já se formado e ter a cabeça um pouco mais no lugar ou por ter a mente mais
desenvolvida que eles graças à leitura, mesmo sendo retraído nos primeiros dias, todos percebiam
que eu era diferente. Não falo isso com falsa modéstia, nem de uma forma orgulhosa. Falo isso
porque simplesmente as coisas foram assim.
As coisas são assim.
Antes de ir embora, o professor veio até meu estande – sim, nesse momento já estava me
sentindo o dono do lugar – e teve uma última conversa comigo.
- Tenho que dizer que você me surpreendeu – começou ele. – Mas já sabia que você se
sairia assim aqui hoje. Talvez você tenha sido meu maior motivador a trazer a turma aqui hoje. Como
meu tempo já passou e não posso mais viver essas experiências, apenas tento mostrar da melhor
forma o caminho para meus alunos seguirem e me encho de orgulho quando vejo um deles chegando
lá.
- Confesso que estou surpreso também e agradeço por tudo que tem feito por mim – admiti
agradecido. – Mas não estou indo embora para a Turquia – brinquei tentando quebrar um pouco
aquela tensão.
- Você não sabe. Isso aqui é só o seu primeiro passo. Tenho certeza que chegará bem longe.
Ele me abraçou e realmente senti que aquele abraço fosse como o de uma despedida. Assim
que ele saiu, senti meu rosto queimar e quase comecei a chorar no meio dos meus novos amigos, mas
segurei e passei a pensar em outra coisa. Eu iria vê-lo novamente.
Como as primeiras horas que passei na feira, num piscar de olhos estávamos nos
aproximando do fim do expediente. Durante esse período dei mais uma voltinha pelos estandes já
visitados, agora com um pouquinho mais nariz empinado, já que Kemal fez questão de colar um
adesivo em meu crachá mostrando que trabalhava para a empresa deles. Fui tratado de uma forma
melhor ainda do que havia sido tratado anteriormente.
Quando voltei, fiquei conversando com Kemal e seu amigo Mehmet Cad e decidi que
precisaria inventar um apelido para eles porque seria complicado ter que lembrar desses nomes tão
complicados que faziam minha língua enrolar quando pronunciava.
- Está com fome? – perguntou Kemal olhando as horas em seu relógio.
- Estou bem – respondi. – Comi algumas coisas nos outros estandes e estou cheio. Seu amigo
não fala muito, não é?!
- Viu o que te falei. Ele é sempre assim, por isso que às vezes fico cansado desse emprego.
Sorri concordando.
Tive que admiti para mim mesmo que estava um pouco cansado. Tudo estava sendo muito
legal, mas eu precisava de um bom banho e uma cama confortável. Do banho eu podia ter certeza, já
que todos os quartos de hotel tinha um banheiro, mas quanto a cama confortável estava em dúvida,
como não sabia se alugariam um outro quarto para mim ou me colocariam dormindo com eles, meu
descanso estava à mercê de um sofá ou um tapete no chão.
O dia na feira se encerrou com um brinde entre todos os empresários que estavam à frente
de algum estande após todo o público deixar o local. Vi que alguns marcavam para dar uma volta na
cidade durante a noite, outros para irem a um restaurante assim que saíssem dali e outros
simplesmente deixavam o local sem dizer nada a ninguém. Esperei para ver o que Kemal e Mehmet
iriam fazer para segui-los também. Eles pegaram suas coisas, deram um último gole em suas bebidas
e vieram até mim.
- E então, o que vamos fazer agora? – perguntou ele animado, como se não tivesse passado o
dia inteiro trabalhando. – Restaurante, boate ou hotel.
- Vocês que sabem, estou por sua conta.
Ele sorriu.
- Restaurante acho que é uma boa. Acho que estamos todos cansados, então jantamos e
depois voltamos para o hotel.
- Vocês não preferem ir ao hotel tomar um banho primeiro?
Eles se entreolharam e fizeram uma cara de "por que não pensamos nisso antes" e
confirmaram com a cabeça.
Caminhamos até o estacionamento e fiquei empolgado quando Kemal apertou o botão do
alarme do carro e um Sedan piscou os faróis. Mehmet deixou que eu fosse na frente junto com Kemal,
pois segundo ele queria descansar um pouco, uma desculpa um tanto esfarrapada visto que em menos
de uma hora estacionávamos em frente a enorme recepção do Sheraton Vitória, um hotel refinado com
andares que atingiam o céu visto debaixo para cima.
- É aqui que vocês estão hospedados? – perguntei surpreso.
- Isso. Algum problema?
- Não, é que esse lugar é demais.
- Já tinha vindo aqui antes? – perguntou Kemal de forma casual.
Olhei para ele como se acabasse de ouvir um absurdo.
- Claro. Todo final de semana me hospedo aqui com o grande salário que recebo como
desempregado – respondi com sarcasmo.
Ele entendeu sua mancada e se desculpou.
- Me desculpe, eu não queria...
- Tudo bem – falei sorrindo. – Só estava tirando uma com a sua cara – e dei uma piscada de
olho para ele.
Kemal sorriu e após pegar suas coisas no carro, entregou sua chave ao manobrista e depois
entramos na recepção do hotel. Fui golpeado com um cheiro sofisticado de limpeza e classe que
novamente me senti como se estivesse no lugar errado, não podendo fazer parte daquilo ali. Olhei
para meus pés e fiquei envergonhado pelo que estava usando.
- Você está bem? – perguntou Kemal preocupado.
- Estou sim – menti.
Me olhando meio em dúvida, seguiu até a bancada para conversar com o recepcionista.
Mehmet parou ao meu lado e sem que esperasse, ele começou a conversar comigo em um inglês pior
que o meu então entendi por que ele era tão quieto.
- Kemal ser gente muito boa – começou ele com um sotaque carregado. – Desculpa não falar
muito, meu inglês ser ruim.
- Tudo bem – respondi devagar para me fazer ser entendido por ele. – Também não domino
o inglês completamente. Mas por que diz isso?
- Sobre meu inglês ou Kemal? – perguntou ele em dúvida.
- Kemal.
- Se não fosse por ele, provavelmente já teriam me tirado dessa... é... função de viajar para
feiras pelo mundo, já que domino mais o turco que é minha língua materna.
- Nunca ouvi ninguém falar turco – confessei.
Ele sorriu.
- Não é uma língua muito bonita – disse ele sorrindo. Me surpreendi, pois não sabia que ele
poderia ser tão simpático. – Tanto que desde que eu entrar para essa empresa, procurei ao máximo
aprender outras línguas, mas como pode ver, não tive muito sucesso. Só sei esse inglês e um pouco
de francês.
- Já é mais que eu – falei descontraidamente. – Se quiser, posso te ensinar algumas coisas de
português também. Você não se tornará um expert, mas pelo menos não morrerá de fome caso seja
esquecido aqui no Brasil.
Ele sorriu de um jeito que me lembrou um dos meus irmãos. Seu olhar havia ternura e um
pouco de admiração.
- Você fazer isso por mim?
- Óbvio – respondi animado. – Afinal não estou aqui para ajudá-los a se comunicar durante
a feira. Não seria mais do que minha obrigação fazer isso por você.
Ele mordeu os lábios e desviou o olhar.
- O que foi?
- Nada – falou ele um pouco nervoso.
- Sério que não é nada, por que pela sua expressão parece ser alguma coisa. Vai lá, me conta
– insisti.
- Kemal pediu para não falar nada.
- Kemal? O que ele tem a ver com isso.
Ele começou a dizer algumas coisas de forma rápida e incompreensível em uma língua
estranha que julguei ser o turco e conclui que ele realmente estava com razão, ela era uma língua bem
feia.
- Como eu dizer antes, Kemal é um cara muito legal – disse ele se acalmando um pouco. –
Quando ele conversar comigo lá na feira, falou que tinha conhecido uma pessoa muito especial – o
que presumi ser eu – e perguntou se podíamos ajudá-lo de alguma forma. Ele falou que você estar
desempregado e se eu permitir, ele arrumar um jeito de você ficar com a gente até o fim da feira.
- Então foi isso – falei pensativo. – Mas eu não fiz nada além de conversar com ele.
- E isso ser tudo – disse ele. – Kemal precisava disso. Um dia antes de virmos para o Brasil
ele recebeu uma ligação de casa anunciando a morte de sua avó. Ela tenta ser durão, mas família ser
muito importante para ele. Sei que ele está sofrendo muito por dentro, mas infelizmente não sei lidar
com essas situações. Então quando você demonstrou aquela empatia para ele, provavelmente deve ter
acionado alguma coisa no seu coração para fazer o bem a você.
Ia perguntar mais alguma coisa a ele, mas Kemal voltou da recepção e nos interrompeu com
o seu grande sorriso.
- Está tudo certo. Troquei minha suíte por um quarto duplo e você vai ter ótimas
acomodações.
- Não precisava se preocupar – falei me sentindo mal com aquilo. – Eu poderia dormir em
um sofá ou no tapete do quarto. Comigo não tem disso...
- Até parece que deixaria fazer isso. Está comprovado que não conhece a hospitalidade dos
turcos – falou ele sorrindo.
Não o questionei. Depois que saímos do elevador em nosso andar, dei uma última olhada
para Mehmet que subiria mais dois andares e fiquei intrigado com o seu olhar que parecia dizer "não
o magoe". Engoli em seco e segui Kemal até o quarto mais espetacular que já tinha visto até agora.
Pensei bem em tudo o que tinha me acontecido até agora e agradeci a Deus em silêncio por ser tão
bondoso comigo. E para não ficar em dívida com ninguém, retribuiria essa bondade aos meus novos
amigos e tentaria ao máximo compensar a gentileza de Kemal, tentando aliviar o sentimento de perda
que estava sentindo no momento, mas que não queria demonstrar.
Se ele estava precisando de um amigo, era isso que iria ser. Mesmo que em breve ele fosse
embora e quem ficaria mal seria eu, pois minha sina era essa mesmo, perder as pessoas e não poder
fazer nada em relação a isso.
Dezesseis
O que eu costumava ver em uma mesa de café da manhã era uma garrafa de café preto, uma
caixa de leite, pão francês e margarina, não uma variedade de frutas, queijos, pães e bebidas que iam
das normais, como achocolatado e sucos, até as impróprias para o horário, como licores, vinhos e
conhaques. Pelo menos podíamos escolher à vontade pegando somente aquilo que nos agradava.
Parei em frente à mesa de fruta e me servi com um pedaço de melancia, uma maçã e um cacho de uva.
Mais a frente peguei um croissant, um sanduíche com patê e três pedaços de tipos de queijos
diferentes. Para beber escolhi um copo duplo de achocolatado com chantilly e voltei feliz para a
mesa em que Mehmet e Kemal tomavam apenas uma xícara de café preto.
- Uau. Alguém acordou com fome, ein?! – disse Mehmet olhando espantado para minha
bandeja.
Se ele soubesse que havia passado a noite inteira acordado sendo consumido por um
turbilhão de pensamentos e que graças a isso uma fome monstra se apoderou de mim, não teria dito
nada.
Kemal simplesmente olhou para mim, mas voltou rapidamente sua atenção para o tablet onde
lia uma versão on line do jornal de seu país. Decidi não falar nada.
Vinte minutos depois já lambia meus dedos deixando à minha frente uma bandeja vazia e um
olhar ainda mais espantado de Mehmet que não acreditava que tinha comido aquilo tudo em tão
pouco tempo.
- Não acredito que conseguir comer aquilo tudo.
- Conseguiu – corrigi, dando um sorriso de triunfo para ele.
- Já terminou? – perguntou Kemal meio sisudo. – Temos que ir para feira para prepararmos
nosso estande.
Então ele não ia me mandar de volta para casa? Respirei aliviado, mas me sentia culpado
por ser o responsável dessa frieza que se estendeu entre nós por longas horas naquele dia.
No carro Mehmet cedeu novamente o banco do carona para mim. Ele ainda não sabia que
havia um mal-estar entre o Kemal e eu ainda. Como não havia assunto nenhum para conversarmos,
tirei o celular do meu bolso e segurei o botão de ligar. Ele deu alguns bipes e a tela ganhou vida
revelando algumas mensagens de texto e duas de voz que provavelmente teriam sido enviadas pela
mesma pessoa: Eliana.
Comecei pelas mensagens de texto.
► Eliana – 17h01 17/02/2014
Ei, cadê você? Todo mundo já está no ônibus e estamos quase partindo. Vem logo, estou
guardando seu lugar. Bjs :*
Você vai ficar em Vitória e não me disse nada. E pior, vai ficar ai mais quatro dias? Por
que não respondeu minha mensagem anterior? Bjs :*
Sério que vai me ignorar? Primeiro fica de boa com Luara e agora não me responde
nenhuma mensagem? Isso já está ficando chato. Espero que esteja valendo à pena.
Cheguei em casa e até agora nenhuma notícia sua. Devo ligar para a polícia para
informar sobre o seu desaparecimento? Me responda logo.
Estou indo dormir. Espero que amanhã você ligue para mim, que tipo de namorado é você
que nem se importa em avisar aquela pessoa que disse que ama sobre o que está acontecendo...
Estou muito triste com você :'(.
Revirei os olhos e por um tempo fiquei absorvendo aquelas mensagens em minha mente.
Minha cabeça começava a doer por causa da noite mal dormida, mas fiquei com receio de pedir para
pararmos em uma farmácia, pois sabia que não tinha créditos com o motorista. Então ignorei aquelas
mensagens e nem cheguei a ouvir as que ela havia deixado em minha caixa postal, pois a última coisa
que queria naquele momento era ouvir a voz e os lamentos de Eliana.
Foi quando estacionamos perto de um ponto de ônibus. Kemal desceu do carro sem dizer
nada e esperei que ele desse a volta para abrir a porta para mim e me chutasse ali mesmo, dando
apenas o dinheiro de volta para casa. Mas ele continuou andando até que o perdi de vista no meio
dos transeuntes que já passavam apressados pela calçada correndo para não chegarem atrasados em
seus empregos. Dez minutos depois ele voltou para o carro, estendeu um copo de água em minha
direção e me jogou uma cartela de comprimidos.
- Vai te ajudar com essa dor de cabeça – disse ele pegando o volante e dirigindo sem me dar
muita atenção.
- Como você sabia que estava com dor de cabeça? – perguntei espantado e aliviado ao
mesmo tempo.
- Percebi que toda hora estava friccionando os dedos em sua têmpora enquanto mexia em
seu celular – disse ele, como um médico que diagnostica um de seus pacientes. – E também, passar a
noite em claro depois de tantas taças de vinho, não pode resultar em boa coisa.
- Estamos de bem novamente? – perguntei sorrindo para ele.
- Vamos dizer que estamos em trégua – respondeu ele piscando para mim. – Mas não vai
aprontar de novo.
Sorri como uma criança que acabava de ganhar um presente e a dor desapareceu um pouco,
mas como não era bobo nem nada, tomei dois comprimidos e esperei que fizesse efeito para dizer
que estava realmente bem. Uma coisa era certa: Kemal era uma pessoa vinda de outro mundo e não
podia perder sua amizade por nada nesse mundo, ou nunca me perdoaria por isso.
O clima no carro melhorou após isso. Tanto que até liguei o rádio e comecei a cantar "Just
the way you are" junto com Bruno Mars recebendo aplausos e ovações dos dois bobos que me
acompanharam no refrão final.
- Não sabia que cantava tão bem – disse Mehmet depois de uma longa crise de risos.
- E eu não sabia que você mentia tão bem – respondi brincando.
Ele me deu um soco no ombro e encarei-o bravo pelo retrovisor.
- Isso dá processo judicial por agressão.
- Só quando você tem como provar.
Chegamos à feira por volta das nove da manhã e pegamos nossas credenciais na recepção.
Estava vestido com a roupa da noite passada, que se adequava melhor ao meu novo status como
tradutor dos dois. Eles passaram por alguns estandes antes do nosso para fazer média com os
figurões de outras empresas de mármore e granito e acompanhei-os, aumentando assim a minha rede
de contatos com pessoas importantes.
Por volta das onze fomos almoçar com um grupo de empresários que trabalhavam com
maquinários para cortar pedras de mármore em um restaurante no centro da cidade. Todos seguiram
com seus carrões em fila indiana pelo trânsito da capital até chegarmos ao nosso destino e lá fora
solicitado que juntassem algumas mesas para comportar todo o grupo. Sentei-me ao lado de Kemal e
de uma representante chinesa de uma marca de exportação e apesar de aparentar ter entre seus trinta e
trinta e cinco anos, se portava como uma mulher bem mais velha e experiente. Me senti diminuído em
sua presença.
Fiquei tentado a tirar o celular do meu bolso novamente para jogar algum joguinho, já que
não estava entendendo nada da conversa, mas achei que seria falta de educação e respeito com todos
ali. Então só olhava de um rosto a outro, observando o interlocutor da vez, e repetia o que os outros
faziam enquanto conversavam – balançar a cabeça ou rir de alguma piada sem graça.
Mesmo depois que voltamos para a feira o dia pareceu se estender e não me diverti nenhum
pouco como no dia anterior. Acho que deveria ter ficado feliz por conseguir traduzir uma conversa de
uma possível cliente que só sabia falar português entre Kemal e ela, mas descobri que isso não era
tão divertido quanto pensei ser.
Por alguma razão fiquei com as mensagens de Eliana na cabeça, e todas as vezes que
pensava nela sentia que precisava acabar logo com isso. Pelo que ela havia me dito assim que
começamos a ficar, dava para perceber que em sua mente estar comigo era algum tipo de competição,
pois assim que Luara se afastou de mim ela avançou para cima como um urubu na carniça, ou um
porco na lavagem, ou... Espera um pouco, estamos falando de mim, então porque estou usando
palavras como carniça ou lavagem para me descrever? Corrigindo, ela avançou para cima de mim
como uma gorda em um copo de sundae de chocolate – assim ficou melhor.
Quando as coisas no estande se acalmaram e consegui dar uma volta pela feira, peguei o
celular e digitei uma mensagem rápida para ela.
Não posso falar muito. Assim que voltar para casa precisamos conversar. BYE o/
Desliguei o celular, pois não queria que ela me ligasse desesperada querendo discutir a
relação ali pelo telefone. Quando voltei para perto dos rapazes, sentei na cadeira em que Kemal
atendia e perguntei se podia usar seu notebook. Ele disse que podia pegá-lo a hora que quisesse, pois
não tinha problema. Liguei-o rapidamente e esperei que conectasse com o wi fi gratuito disponível na
feira e abri meu e-mail e o Facebook para conversar com Dina. Estava precisando desabafar um
pouco e só ela conseguiria me entender naquele momento.
Passei os minutos seguintes contando tudo desde a minha briga com Luara, a forma com que
comecei o meu rolo estranho com Eliana e o motivo pelo qual Kemal me contratou. Às vezes ela me
interrompia para tirar com a minha cara ou fazer alguma piadinha sem graça, mas no fundo sabia que
ela estava lendo com bastante atenção para me dar algum apoio ou solução caso eu pedisse.
Dina era a única pessoa que podia realmente chamar de amiga, e mesmo que nunca tivemos
a oportunidade de nos conhecer pessoalmente, ela era a pessoa mais importante para mim. Nossas
conversas sempre me animavam e às vezes me tirava do sério, pois desde que falei para ela que era
graduado em Letras, ela me proibiu de escrever qualquer coisa errada no bate papo, caso fizesse isso
ela me chamava a atenção de diversas formas. Uma vez até postou um vídeo no You Tube me
xingando e mostrando os prints que tirou de nossa conversa falando frases como: "É assim que um
professor de português escreve hoje em dia?" ou então "Como uma escrita assim o Brasil nunca vai
para frente". Dessa forma me acostumei a escrever da maneira correta em plataformas virtuais e
construí uma amizade sólida com aquela louquinha que me tirava do sério, mas no fundo éramos
quase que irmãos.
Como sempre ela foi de grande ajuda para mim. Com seus conselhos me senti mais seguro
para tomar as decisões que já estavam em minha mente, mas que ainda precisavam de um
empurrãozinho para eclodir e se transformar em ações.
Aproximei-me de Kemal e perguntei se precisava da minha ajuda, mas o movimento tinha
acabado e só passavam uns gatos pingados que Mehmet dava conta sem pestanejar.
- Isso que é eficiência – falei quando Kemal veio se sentar perto de mim.
- Ele sempre segura a barra quando preciso – admitiu como se estivesse confessando. –
Graças a nossa vivência juntos, tenho ele como um irmão mais velho que nunca tive.
- Sua família é grande?
- Um pouco, mas de irmãos só tenho duas mais novas. O resto é tios e primos que moram
perto. Cresci entre familiares e me apeguei muito a eles.
Percebi que ele me olhava nos olhos enquanto falava e por alguns segundos vi uma névoa de
tristeza se abater em seu rosto. Ele se segurou para não chorar.
- O que foi? – perguntei preocupado.
- Não foi nada – mentiu.
- Pela minha experiência, o nada não mexe com nossas emoções a ponto de nos deixar
felizes ou triste. E pelo que vi agora, você parece bem deprimido.
Ele deu um sorriso tímido.
- Você não deixa passar nada ein?! Aconteceu uma coisa desagradável antes da minha
viagem para cá – começou ele. Eu sabia que ele ia começar a falar da avó dele, mas não tentei não
demonstrar que já sabia do ocorrido. – Minha vó morreu um dia antes da minha viagem para o Brasil,
está sendo muito difícil não jogar tudo para o ar e pegar o próximo voo para a Turquia para ficar com
meus familiares.
- Vocês eram próximos?
- Morávamos na mesma casa – falou ele não segurando mais as lágrimas. – Éramos uma
grande família feliz. Quando minha mãe não estava, ela era a nossa babá. Brincávamos e nos
divertíamos correndo em volta da casa e no grande quintal que dava para uma das mais belas vistas
de Izmir. Quando o inverno chegava, ela tricotava grossos casacos de lã para nós e ficávamos
rodeados em volta do fogão à lenha ouvindo suas histórias. Dá para imaginar que éramos apegados.
Assenti com a cabeça e esperei o momento certo para falar.
- Não sou muito bom com essa coisa de consolar pessoas que perderam alguém que amava,
mas sei que a dor vai passar e você precisa tirar esse momento de luto, mesmo que não tenha ido ao
enterro de sua avó ou de estar próximo de seus familiares. É um direito seu!
Ele limpou o rosto com as costas de sua mão.
- Vamos conversar sobre isso depois. É meio estranho começar a chorar aqui e depois
chegar um cliente para me ver dessa forma.
- O que desejar.
Ele sorriu e saiu.
Fiquei observando-o trabalhar e senti uma sensação de alívio ao ver que ele confiava em
mim a ponto de se abrir comigo. Em dois dias pode se fazer uma amizade? Bem, se com seis dias
Deus criou o mundo, já tínhamos demorado uma eternidade para nos conhecer e deixar se levar por
esse novo sentimento que crescia dentro de nós. O problema era que só nos restavam mais dois dias
e cada um iria para o seu canto afastando qualquer possibilidade dessa amizade ir para frente, pois
conhecer uma pessoa virtualmente e criar uma amizade à distância era uma coisa, mas conhecer
alguém pessoalmente e depois tentar manter apenas uma amizade virtual era completamente diferente.
Não funcionava.
E não iria funcionar entre Kemal e eu.
Ele olhou para trás com aquele brilho no olhar e não pude deixar de sorrir, mas os
sentimentos por trás daquele sorriso não eram nenhum pouco de felicidade, mas sim de resignação
para aproveitar os últimos momentos que passaria ao seu lado até a hora da despedida chegar.
Dezoito
A maior prerrogativa da morte sobre nossas vidas é que nunca sabemos quando ela vai
chegar. Temos a única certeza de que a morte chegará para todos algum dia, mas não conseguimos
definir que dia será esse nem para nós mesmos.
Já li alguns livros e também já vi filmes onde as personagens tentam enganar a morte, mas
no final eles é que estavam se enganando por acharem que podiam realizar esse feito. Outras
histórias iam adiante e mostravam pessoas com dons – ou maldição, depende do ponto de vista –
capazes de saberem a data exata de algum acontecimento catastrófico que dizimaria várias vidas, ou
então via sobre as pessoas números que definiam a data de suas mortes.
Essa é uma necessidade que os seres humanos têm para achar que estão no controle da
situação, mas que no fim percebe que aquilo que estava para acontecer acontece e ele não pode fazer
nada em relação a isso.
Tudo que conquistamos em vida será apagado pela morte. Nossas lembranças se
desvanecerão com o último suspiro no leito de morte. Seremos lembrados por muitos ou por poucos
– dependendo do sucesso que conquistamos em vida – após nossa morte. Um buraco no chão, um
caixão de madeira e sete palmos de terra é o que teremos em comum quando enfim formos
surpreendidos pela morte.
Talvez com essa premissa de que somos incapazes de controlar nosso futuro por não
sabermos quando a morte chegará para nós, nos desmotive um pouco para viver. Estudar tanto,
trabalhar duro, viver à procura de emoções e sentimentos para encherem nossos egos e criar famílias
que passarão por tudo que passamos se torna tão efêmero quando entendemos que depois do ponto
final tudo estará acabado.
Eu, pelo contrário, tento aproveitar cada segundo da minha vida espremendo todas as
experiências possíveis de qualquer situação. Isso me tornava vivo. Isso me diferenciava de boa parte
da população que desistia de viver ou que aceitavam a mediocridade imposta por experiências
vazias de rotinas diárias.
Assim que saímos da feira, Kemal deixou Mehmet em seu quarto e falou para tomar meu
banho rápido porque iríamos sair naquela noite. Só nós dois novamente. Corri para o banheiro me
certificando de trancar a porta dessa vez e usei o chuveiro para me lavar. Estava cansado, mas minha
vontade de aproveitar a noite na companhia dele era maior que meu cansaço.
Depois que desliguei o chuveiro, ouvi Kemal batendo à porta e depois de abrir uma pequena
fresta, ele me entregou um pacote com roupas novas.
- Quando você comprou isso? – perguntei deixando aquela fresta aberta enquanto me
trocava.
- Dei uma saída durante a feira e comprei algumas coisas para você – disse ele. – Ia te levar
junto, mas você estava tão entretido com o computador que resolvi não te incomodar.
Terminei de me vestir e dei uma olhada no espelho. Novamente ele tinha acertado em cheio
meu tamanho e também meu gosto. Calça jeans skinning com lavagem escura, uma camisa de malha
branca e outra de botão xadrez para ser usada por cima. Ao sair, ele me mostrou mais algumas roupas
na cama e dois tênis All Star e um sapato social preto, peguei o All Star mais claro e calcei. Por fim
arrumei meu cabelo com um pouco do gel dele e usei sua colônia. Me sentia bem.
- Você não precisava comprar isso tudo – falei de modo agradecido.
- Claro que precisava. Você está sob minha responsabilidade e com isso tem que te tratar da
melhor forma.
- Não faz isso se não vou me acostumar...
Ele deu um sorriso de canto de boca e me olhou de uma forma bem intensa, mas não disse
nada.
- E então, para onde vamos hoje?
- Que pessoa curiosa – falou ele fazendo suspense. – É surpresa.
- Isso não vale – falei fingindo tristeza.
- Claro que vale - observou ele, se divertindo por me deixar daquele jeito.
- Então tome seu banho logo, por que não sei se vou aguentar muito até que eu seja obrigado
a tirar essa informação de você à força.
- Pode vir – desafiou ele.
Rimos juntos. Se dependesse disso para saber para onde iríamos, não tinha chance nenhuma,
já que Kemal era maior e mais forte que eu. Dei de ombros enquanto ele se virava para ir para o
banheiro.
- Só não demore – pedi e ele virou sua cabeça para trás me lançando um olhar confuso.
Ao sair do banheiro, Kemal também apresentava um estilo casual e pela primeira vez o via
vestindo jeans e camiseta de malha. Ele ficava bem de qualquer jeito.
Pegamos o carro e seguimos pela beira mar atravessando a Segunda Ponte e entrando em
ruas ao qual eu nunca estivera antes. O GPS ia ditando as entradas e o percurso a percorrer me
deixando um pouco nervoso, já que não confiava muito naqueles aparelhinhos. De acordo com os
filmes que vi a minha vida inteira, eles sempre levava o motoristas a áreas remotas onde morava um
serial killer, ou então a gasolina acabava em um ponto onde não existia viva alma e ficaríamos
perdidos até a morte. Okay, eu estava exagerando um pouco porque minha mente era bem fértil e não
havia nada para distraí-la.
Quando ele estacionou, respirei aliviado por ainda estarmos dentro da cidade e em uma rua
com bastante movimento. Se um assassino aparecesse ali para matar alguém, teria várias vítimas
disponíveis e talvez desse tempo de fugirmos antes que ele nos atacasse. A não ser que ele estivesse
atrás de Kemal ou de mim, então no caso não teria jeito.
- No que está pensando? – perguntou ele antes de sair do carro. – Sua expressão está muito
engraçada.
- Melhor você nem saber – falei revirando os olhos. – Onde estamos?
- Quando chegarmos lá você vai descobrir. Agora saia e feche os olhos.
- É sério que você vai fazer isso comigo?
- É sério que você vai ser tão chato assim essa noite – falou ele brincando. Agora dá um
jeito e feche os olhos logo.
- Se for para me assassinar, pelo menos coloque um capuz preto na minha cabeça. Quero
morrer com estilo.
Ele deu uma risada com bastante vontade e balançou a cabeça.
- Você não tem jeito mesmo.
Sou guiado por ele de uma forma bem segura. Ou pelo menos me sentia seguro com o apoio
de seu braço em minhas costas. Ele andava devagar e me instruía com calma onde deveria pisar e
quando deveria desviar de algum obstáculo. Minutos depois ele parou e me segurou pelo braço.
- Pode abrir os olhos – disse ele com a voz cheia de excitação.
Deixei o momento ser guiado pela magia da emoção como via nos filmes e abri os olhos
lentamente para eles se adaptarem a claridade da rua. Olhei em volta vendo várias pessoas
passeando pela rua, outras sentadas em mesas ao ar livre em barzinhos e restaurante e nenhum
movimento de carros.
- Onde estamos? – perguntei sorrindo.
- Ontem você não disse que preferia uma pizza ou lasanha? – perguntou ele estendendo sua
mão à frente fazendo meus olhos seguirem seus movimentos. – Seu pedido foi atendido.
Deixei a emoção me guiar e abracei-o sem reservas.
- Você não existe, sabia?!
- Vamos entrar? Nossa reserva é para as dez e meia.
Entramos juntos no restaurante italiano. O ambiente abusava dos detalhes do país. Mesas
com toalhas nas cores da bandeira, uma parede rústica e outra logo de frente com um suporte cheio
de vinhos que se estendia do teto ao chão, o bar era dividido por um balcão de madeira e alguns
queijos ficavam expostos sobre ele. Sentia-me como uma criança em um parque de diversões, pois
meu sonho era conhecer a Itália, e como aquilo era o mais perto que eu já tinha chegado até hoje, não
pude conter minha empolgação.
Um garçom nos guiou até nossa mesa e depois nos entregou dois cardápios que pareciam
uma obra de arte tamanha a preocupação que eles tiveram com as folhas utilizadas, as fontes
escolhidas para descreverem seus produtos e as belas imagens de tradições italianas e as belas
paisagens do país. Fiquei com vontade de leva-lo para casa.
- O que está achando? Gostou da surpresa?
- Está de brincadeira, não é?! Como descobriu esse lugar?
- Um mágico nunca revela seus truques.
- Mas você é um representante de mármore e granito, então desembucha.
Ele riu mostrando todos os seus dentes.
- Estou muito feliz por não ter desistido dessa viagem – confessou ele com uma expressão
feliz. Seus olhos brilhavam e demonstrando algum tipo de fascínio por mim. – Se eu disser que
adorei te conhecer parecerei desesperado?
- Parecerá – respondi fazendo uma careta. – Mas consigo te entender, é difícil as pessoas
não me adorarem.
- Quanta modéstia – retrucou rindo. – Mas é sério, onde você estava esse tempo todo?
- Sendo enterrado pela areia de uma vida sem graça.
- Uau, que poeta.
- Às vezes tento ser, mas nem sempre sai como quero – falei perdendo um pouco daquela
animação. Por algum motivo aquilo me fez pensar sobre minha carreira como professor, como tinha
tantos planos em me tornar um escritor famoso após concluir minha graduação, mas por incontáveis
motivos acabei desistindo de tudo e me tornado um professor comum.
- O que é? – perguntou ele percebendo que tinha mudado meu humor. – Falei alguma coisa
errada?
- De forma algum – falei com firmeza. Mas estou pensando aqui, daqui a dois dias isso tudo
parecerá ter sido apenas um sonho. Eu voltarei para minha vidinha sem graça, você continuará
viajando pelo mundo e tudo isso aqui servirá apenas para a vida ficar rindo da minha cara,
mostrando como minha vida poderia ser melhor, mas que não tenho capacidade para fazê-lo. Sou e
sempre serei um grande perdedor.
Não sei por que disse aquilo tudo, mas quando concluí me sentia um lixo. Não era para ter
desabafado com ele dessa forma, não queria parecer um coitadinho para fazê-lo sentir pena de mim,
mas foi isso que consegui. Quando levantei meus olhos, ele me encarava com uma expressão de
condescendência que lançávamos para aqueles moradores de ruas ou para as crianças desnutridas da
África.
- Não diga isso – falou ele sério. – Não perderemos o contato. Estamos na era da tecnologia
com computadores, celulares e milhares de aplicativos que conectam uma pessoa a outra. Só não nos
falaremos se não quisermos, e eu quero e quero muito. Dependerá de você.
- Isso não funciona – falei. – Já tentei manter amizades com pessoas que conheci
pessoalmente, mas com o tempo nos afastamos. E isso não foi uma ou duas vezes, mas várias.
- Então porque não deu certo com algumas pessoas, você simplesmente desiste e ponto final.
As outras pessoas não podem ter escolhas? – perguntou ele um pouco bravo e ao mesmo tempo
preocupado. – Talvez você esteja com a razão, você é um grande perdedor, mas não da forma que
acha. Você é um perdedor porque perde muitas chances para ser feliz por medo do que possa
acontecer no futuro.
- Você só me conhece há dois dias.
- E é tempo suficiente para termos uma noção de como uma pessoa é. E posso te dizer com
todas as letras que você não é o que pensa que é. Às vezes somos muito duros com a imagem que
temos de nós mesmos e não damos importância ao que os outros veem ou damos demais. Eu vejo que
você é uma pessoa legal, divertida, inteligente, sagaz e competente. E se valer de alguma coisa,
foram só dois dias, mas já me importo muito com você e se você deixar, serei seu amigo para o resto
da vida.
Ele estendeu sua mão sobre a mesa por cima da minha e apertou forte.
- Nunca se menospreze. Você é bem mais importante para os outros do que imagina.
Meus olhos me traíram e não consegui segurar minhas lágrimas. Ele era tão bom. Tão
humano. Ele era o tipo de pessoa que ficaria ao seu lado para sempre, sendo fiel, companheiro e
sincero. Um tipo de cachorro de duas pernas, no bom sentido. Limpei meus olhos com o guardanapo
e tentei me recompor.
- Vamos pedir? Essa conversa me deu fome.
Ele deu um leve aceno com a cabeça e assim que o garçom chegou a nossa mesa pedimos
uma pizza média de calabresa com borda de catupiry. Ele também escolheu um vinho a seu gosto e
torci para que o pedido demorasse bastante, pois diferente da noite anterior, não queria que essa
acabasse tão cedo.
- Você namora há quanto tempo? – perguntou ele com cautela para ver se estava pisando em
algum terreno firme, ou se tinha minas pelo caminho prestes a explodir por qualquer contato.
- Duas semanas – respondi enquanto passava um filme pela minha cabeça recordando de
como tudo começou com Eliana. – Mas não duraremos por muito tempo.
- Por que diz isso?
- Ela é muito diferente de mim – procurei palavras mais educadas para dizer que ela era
uma vaca. – Fora que não sinto nada por ela. Nessas duas semanas tentei fazer com que rolasse
alguma química, mas eram apenas beijos e conversas insossas.
- Sei como é – disse ele devaneando.
- E você, já namorou?
- Com mulheres? – perguntou ele me fazendo lembrar que era gay.
Assenti com a cabeça ficando um pouco corado e ele respondeu naturalmente.
- Já tem um tempinho. Acho que fazem uns doze anos que namorei sério com uma mulher –
falou ele se surpreendendo. – Nem penso nisso direito, mas quando dou por mim já se passou tanto
tempo.
- E por que terminaram? Você descobriu que... é... gostava de homens?
- Não, não – ele riu. – Ela me traiu com um colega de trabalho que tinha um cargo mais
elevado que o meu.
- Que vadia – aflei não conseguindo segurar minha língua. Olhei para ele arrependido e
disse: - Desculpe.
- Não, tudo bem. Eu não usaria esse termo para defini-la, mas é bem por aí.
- E quando você começou a ficar com homens? Se quiser me dizer, é claro.
- Outra vez: não, tudo bem. Pode me perguntar o que quiser. Comecei a ficar com homens
dois anos depois desse rompimento, mas bem antes já sentia atração pelo mesmo sexo, só não tinha
coragem ainda de admitir para mim mesmo por causa de preconceito. Mas depois que fiquei um bom
tempo sem arrumar ninguém e comecei a me envolver com um amigo, decidi então que já estava na
hora de me assumir.
- Uau, que coragem.
- Não foi tanto por coragem, mas por que não havia mais motivos para esconder quem eu
realmente era – pontuou com firmeza.
- Às vezes não sei quem eu sou.
- Talvez falte foco em sua vida – disse ele naturalmente. – Quando não sabemos o que
queremos, dificilmente descobriremos quem somos.
- Entendo o que você fala, mas trazer isso para a prática é difícil.
- Sabia que nem tanto. Pela minha longa experiência, não que eu seja velho nem nada –
brincou ele, - mas sou vivido, as pessoas complicam demais para fazerem suas escolhas, investir em
sonhos e por aí vai.
- Então que conselho você pode mudar para que eu consiga mudar de vida?
- Não é difícil, você quer saber sobre sua vida amorosa, profissional ou pessoal?
- E tenho escolha? Não sabia que dispunha de uma consultoria particular gratuita, por que
como deve saber, não tenho dinheiro para pagar seus sábios conselhos – ironizei.
- Engraçadinho.
- Comece pela minha vida amorosa.
- A mais fácil! – disse ele entusiasmado. – Você precisa definir sua relação com Eliana. Se
ficará com ela, terá que buscar meios para fazer isso funcionar. Se for terminar com ela, faça isso
logo. Não é legal estar com alguém sem gostar dela, isso é o mesmo que brincar com os sentimentos
de uma pessoa.
- Já está definido. Terminarei com ela assim que voltar.
- Ponto para você.
- Agora vamos para o próximo tópico: vida profissional ou pessoal?
- Pessoal – respondo casualmente.
- Você é a pessoa mais incrível que conheço – Kemal começa. – Pode parecer exagero, mas
é verdade. Pela forma como nos conhecemos ninguém daria nada por nossa amizade, e olha onde
estamos agora. Você tem tudo para conquistar amigos verdadeiros, mas parece que alguma coisa te
impede disso, e arrisco-me a dizer que seja você mesmo essa coisa. Não conheço muito de sua
história, talvez tenha tido algum trauma, alguma decepção ou uma desilusão, mas o importante é
deixar o passado lá onde ele deve ficar: no passado. Quando falei que queria manter minha amizade
após a feira acabar, estava falando sério. Não vou permitir que você saia da minha vida assim tão
fácil. Uma frase bem clichê, mas bem verdadeira.
- Nossa – falei surpreso. – Não esperava que fosse assim tão... é...
- Esperto? Inteligente? Sábio?
- Iria dizer filósofo, mas para satisfazer seu ego vamos ficar com o sábio – brinquei. Agora
passe para minha vida profissional.
- O que te falta é uma boa proposta. Inteligente, comunicativo, sociável e dominador...
- Você não é o primeiro a me dizer isso – interrompi me lembrando do meu professor.
- Mais uma prova do que o que falo é verdade – falou ele levantando uma de suas
sobrancelhas. – Mas voltando ao que eu ia dizendo, você tem tudo o que um profissional precisa. Só
falta mesmo uma proposta...
- Esse é o ponto. Sou o maior azarado da vida, mesmo correndo atrás de um bom emprego,
sempre como poeira pelo caminho e nunca chego lá.
- Talvez não esteja correndo atrás do emprego certo. Li uma vez que o que foi preparado
para você ninguém pode tomar ou roubar, acho que está na Bíblia.
- Acho que minhas prioridades estão invertidas. Vou trabalhar nisso.
Parecia que ia dizer mais alguma coisa, mas só fez um movimento com a boca e depois
desviou o olhar pensativo. Nosso pedido chegou e depois disso a conversa se desviou para outros
assuntos bem corriqueiros. O vinho me alegrou, o sabor da pizza estava indescritível e Kemal foi um
cavalheiro como sempre.
Seria difícil desacostumar com isso para voltar a minha vidinha monótona. Toda vez que
fazia as contas de quantos dias faltavam, tomava um gole de vinho para entorpecer minha mente e
fazer aqueles momentos durarem para o resto da vida. Sabia que em breve eu teria que encarar a
realidade, mas enquanto estivesse com minha taça cheia era fácil esquecer esse pequeno detalhe
arrasador que perduraria por toda minha existência.
Dezenove
Já tinha o bilhete e estava de partida. Foram os quatro dias mais maravilhosos que já vivi,
mas como tudo na vida isso teve um fim.
Depois daquela noite no restaurante italiano, voltamos para o hotel e desmaiei na cama de
tênis e tudo. Havia bebido demais, rido demais e aproveitado a noite como se aquela fosse a última
da minha vida. Quase foi, porque na manhã seguinte acordei com uma ressaca terrível e meu único
pedido a Deus era para que me tirasse daquele sofrimento me levando mais cedo para o céu. Kemal
se divertiu com meu drama e me ajudou a curar a dor de cabeça com duas xícaras de café bem forte e
sem açúcar. Ele perguntou se eu não queria ficar no hotel aquele dia para descansar um pouco até
melhorar, mas respondi perguntando o que meus patrões pensariam de mim se eu fizesse aquilo.
Tomamos nosso café da manhã em uma lanchonete onde pedi um prato reforçado com pão de
queijo, dois salgados assados e um copo duplo de milk shake de chocolate.
- O que foi? – perguntei ao ver a expressão assustada de Kemal e Mehmet em minha
direção. – Sempre comi muito quando estou passando mal.
- Você é diferente de todas as pessoas que já conheci até hoje – disse Mehmet sorrindo.
- Sem contar que tem um péssimo gosto para combinações – completou Kemal.
- Nunca fale isso de um brasileiro. Você já viu o que os americanos comem? Acho que se
estiverem com muita preguiça e não tiver nada em casa eles são capazes de passar manteiga de
amendoim e geleia no sapato e comê-lo.
- Okay. Você venceu!
- Eu sempre venço – disse de uma maneira triunfante.
- Você tem certeza que não quer voltar para o hotel? – perguntou Kemal preocupado. – Seu
rosto ainda está péssimo.
- Ah, obrigado. Isso animou o meu dia – retruquei sarcasticamente.
- Não foi isso que eu quis dizer.
- Eu sei – falei provocando-o.
- Quer saber, ficarei com você porque não acho que aguentará passar o dia inteiro naquela
feira novamente. – Ele se virou para Mehmet e completou: - Você se importa de segurar as pontas lá
hoje? Se tiver algum problema ou precisar de ajuda pode me ligar que deixarei o celular ligado, e
aparecei lá correndo.
- Tudo bem – respondeu ele. – Não temos tido tanto movimento lá assim. Acho que consigo
segurar as pontas sozinho.
Kemal o abraçou de uma maneira fraternal e achei bonito aquele gesto. Gostaria que meus
irmãos agissem assim comigo, mas isso estava longe da minha realidade. Eles trocaram algumas
palavras em turco e após terminarmos o café, Mehmet pegou a chave do carro com Kemal e foi para
a feira sozinho deixando-nos a sós.
- E então, o que quer fazer?
- Pensei que voltaríamos para o hotel para curar minha ressaca.
- Tão inocente, coitadinho.
Dei um soco no braço dele fazendo cara de mal.
- Nunca mais me chame de coitadinho – brinquei. – Mas é sério, não voltaremos para o
hotel?
- É sério. Você acha que tirei o dia de folga para ficar trancado em um quarto? – perguntou
ele casualmente. – Vamos nos divertir um pouco e quando perceber nem estará sentindo mais nada.
- E para onde vamos?
- Não sei, o guia de turismos aqui é você – falou ele mostrando todos os dentes.
- Agora são quase dez, podemos dar uma volta no Shopping Vitória e depois irmos ao
parque que fica atrás dele. É um programa bom para o senhor?
- Se é o que temos para hoje, dá para o gasto.
Fizemos sinal para um táxi como nos filmes americanos e por incrível que pareça ele parou.
Dei o itinerário a ele e seus olhos brilharam porque daria um bom dinheiro pela corrida, que era a
sua primeira do dia. O trânsito já estava bem intenso e o calor insuportável. Era um dia normal na
capital do estado, mas para quem estava passando mal como eu parecia um purgatório. Ao
chegarmos, Kemal pagou o taxista dando-lhe uma boa gorjeta e só faltou ele estender um tapete
vermelho para descermos do carro tamanho a gratidão que ele ficou com aquele gesto de cortesia de
um passageiro àquela hora da manhã.
Quando entramos em uma loja me sinto seguro ao lado de Kemal. Sua presença impõe
respeito e os atendentes nos tratam melhor. Não sei por que fomos a uma loja de roupas primeiro,
mas meus olhos brilharam quando passei em frente a livraria. Isso era algo que não tinha na minha
cidade e era o que mais me fazia falta, uma vez que para comprar livros precisava visitar livrarias on
line e não tinha a mesma magia de percorrer os corredores de uma física podendo manusear os
livros, sentir sua textura e o cheiro sem precisar necessariamente compra-los.
Após dar umas olhadas pela loja ele separou algumas camisas sociais e foi para o provador
me deixando com uma vendedora que me disse que ele a havia mandado ficar ao meu dispor. Para
não parecer grosseiro, pedi para olhar algumas calças jeans e camisas de malha explicando a ela que
adotava um estilo meio Geek.
- Você só levará isso? – perguntou ele surpreso.
- Ah é, esqueci que estou com um amigo milionário – brinquei.
Ele deu um meio sorriso e foi ao caixa pagar as coisas. Saímos e fomos à outra loja de
roupas. E em outra. E em outra. Pelo visto ele era viciado em compras e adorava comprar roupas.
Quando saímos da última, segurei seu braço antes que ele entrasse em outra e pedi para que fossemos
na livraria. Queria variar um pouco.
A lufada de vento que recebemos ao entrar nesse novo ambiente trouxe um cheiro familiar e
agradável as minhas narinas. Eram tantos livros que não sabia por onde começar. Passei pela
bancada de promoções, depois fui para a sessão de livros policiais, entrei nos de fantasias, subi para
o segundo andar, desci, ia de um lado a outro e à vontade de colocar todos os livros no carrinho me
consumia. Kemal tentava me acompanhar, mas por fim desistiu e foi se sentar na cafeteria que havia
dentro da livraria enquanto eu selecionava alguns títulos para levar.
- Já colocou a livraria toda dentro da sacola? – perguntou quando me aproximei de sua
mesa. Ele tomava uma xícara de cappuccino e mordiscava algum tipo de pão servido naquele lugar. –
Se precisar podemos alugar um caminhão para carrega-la.
- Ha ha ha... Que engraçadinho – falei com sarcasmo. – O que é isso? – perguntei apontando
para o outro pãozinho que estava na bandeja sobre a mesa.
- É um pãozinho de gergelim com açúcar mascavo. Uma delícia, experimente.
Ele pegou o pãozinho e como se fosse um aviãozinho, foi guiando sua mão pelo ar e o
colocou em minha boca. Segurei sua mão próxima ao meu rosto e ele me lançou um olhar
significativo. O que eu estava fazendo? Soltei-a rapidamente e desviei meu olhar como se tudo que
estava à nossa volta fosse mais importante que aquele gesto dado por mim ao me deixar levar por
algo que ainda não entendia ou estava me fazendo de bobo para não entender.
- Por que sempre age assim? – perguntou ele pousando sua mão sobre a minha. – Sempre
que está prestes a demonstrar alguma coisa você volta atrás e parece se arrepender de ter feito
aquilo. O que está acontecendo?
Olhei para seu rosto procurando alguma resposta, mas só via ali um olhar cheio de brilho e
esperança. Sua expressão me lembrava aqueles filhotinhos de cachorros que imploram para serem
levados para casa quando alguém aparece em um pet shop e demonstram algum interesse neles. Será
que era isso que eu estava fazendo? Eu estava demonstrando interesse em uma pessoa do mesmo
sexo que eu? Não, isso não podia estar acontecendo...
- Não sei explicar o que está acontecendo – falei desolado. – Não sei o que estou fazendo e
não quero que pense nada errado sobre mim.
- Como assim pensaria algo errado sobre você? – perguntou ele com voz estrangulada. –
Você sabe que gosto muito de você...
- Exatamente – falei cabisbaixo. – Mas talvez eu não possa corresponder ao que sente por
mim.
- Como assim? Você não gosta de mim?
- Não da forma como você gostaria que fosse.
- E como você acha que eu deveria esperar que você gostasse de mim? Esperando que do
nada você falasse que estava perdidamente apaixonado por mim, me beijasse, sentisse desejo por
meu corpo, transasse comigo e depois ir para o meu país onde montaríamos uma vida juntos? – Ele
fez uma pausa e se inclinou em minha direção. – Não espero nada mais de você além da amizade.
Confesso que se quisesse algo a mais comigo ficaria muito feliz, mas como sei que não é possível,
me contento apenas com sua amizade. Isso que você precisa colocar em sua cabeça.
Me senti mal por tudo que disse.
- E mais, você deveria se permitir mais. Sei que está rolando um grande conflito dentro de
você, e boa parte disso é culpa minha, pois eu não tenho direito de mexer com suas emoções. Mas se
você deixasse as coisas simplesmente acontecerem, talvez conseguisse viver experiências as quais
nunca imaginaria viver. Lembre-se que por muito tempo tentei viver de acordo com o que os outros
queriam que eu fosse e me machuquei demais com isso. Não gostaria de ver você passar pela mesma
coisa.
- Você é a melhor que conheci até hoje. Sei que realmente se importa comigo porque já vi
que possui um bom coração, e essa é a característica que mais prezo nas pessoas. Como eu... deixa
pra lá.
- Deixa pra lá o que? Pode falar o que queria dizer – insistiu.
- Não posso, me comprometeria demais – disse tentando parecer descontraído, mas não
consegui. A tensão estava moldando minha expressão e nem um rolo compressor de calma
conseguiria aliviar aquilo.
- Se permita – pontuou tentando me encorajar.
Olhei fundo em seus olhos e pela intensidade de seu olhar nada mais precisou ser dito. Me
aproximei e levei meus lábios ao encontro dos dele. Primeiro senti um choque de realidade
percorrendo todo o meu corpo, depois relaxei e procurei aproveitar aquela sensação. Seus lábios
eram macios e o hálito doce de cappuccino faziam com que eu não estranhasse o que estava fazendo.
Suas mãos percorreram minhas costas e senti a força de seus braços me pressionando contra seu
corpo firme como uma rocha, com músculos que se encaixavam bem ao meu corpo. Seu perfume me
levava às nuvens e por um momento tudo ao nosso redor se desvaneceu em um sonho. Ele me beijava
vorazmente, como se o mundo estivesse preste a acabar, mas ao mesmo tempo fazia me sentir seguro
protegido pelo seu carinho e desejo.
Quando nos separamos o ar parecia ter saído de meus pulmões e foi difícil descobrir como
se respirava novamente. Estava entorpecido por aquele beijo e via que Kemal estava da mesma
forma. Seu sorriso não cabia em seu rosto e assim como eu, não havia qualquer palavra que
podíamos dizer naquele momento para expressar a dimensão do que estávamos sentindo.
Saímos da livraria e caminhamos em silêncio ignorando todos à nossa volta.
- Para onde vamos agora? – perguntei me aproximando de seus braços. Apesar das sacolas
que ele carregava, me abraçou e caminhamos por um tempo abraçado.
- Não vai dizer nada?
- Momentos de tensão seguidos de momentos de prazer exigem algumas horas de reflexão –
falou ele pensativo.
- E isso é bom?
- Claro. Estou catalogando esses momentos ao seu lado em minha mente para não esquecer
nunca – dizendo isso ele se aproximou de mim e me deu um selinho.
Dessa vez olhei em volta para ver se não tinha ninguém nos olhando e comecei a ficar
desconfortável com o braço de Kemal agarrado em minha cintura. Fingi que estava olhando uma
vitrine de uma loja de calçados femininos e me desvencilhei dele.
- O que foi? Está pensando em comprar aquele salto doze ali?
- Que engraçadinho – murmurei. – Você não estava em seu momento de catalogação no seu
mundo zen ai dentro da sua cabeça?
- Já acabei. Agora preciso de mais informações para catalogar.
Me virei para ele e vi que seu rosto mantinha uma expressão de triunfo, não como se
estivesse se gabando por isso, mas por ter conseguido conquistar o que queria há muito tempo.
- Você já esperava por isso? – perguntei casualmente.
- Você ficar comigo?
Afirmei com a cabeça.
- Sinceramente não, mas tinha uma pontinha de esperança dentro de mim – confessou ele. –
Eu sabia que se tivesse deixado ir aquele dia, minhas esperanças teriam sido vãs. Então dei um jeito
de fazer com que você ficasse ao meu lado para descobrir se realmente teria alguma chance com
você ou se seríamos apenas amigos como Mehmet e eu.
- E você já tentou ficar com Mehmet?
- Não – disse ele com convicção. – Ele é casado e tem duas filhas lindas. Nunca faria isso
com a família dele.
- Mas não é difícil viajar ao lado de um homem e nunca rolar nada? Estou com você por
dois dias e mesmo ainda estando namorando te beijei e...
Ele esperou que eu completasse a frase, mas não sabia mais o que dizer. Então ele disse: -
Sim, mas você não estava feliz com sua namorada e já havia demonstrado que não ficaria com ela
por muito tempo. Então não custava nada ficar próximo a você esperando que desse uma brecha para
que eu mostrasse os meus sentimentos por você.
- Você é muito maquiavélico – apontei. – Ainda bem que fez isso.
- Agora me fala a verdade, você nunca ficou com um homem mesmo ou pelo menos cogitou
essa possibilidade?
- Não, nunca. Teve uma vez que... – contei minha experiência com o meu colega de escola,
mas deixei bem claro no final que não havia acontecido nada. Ele ouvia tudo com bastante atenção e
analisava tudo o que eu falava. – Então não sei se desde esse tempo essa experiência despertou
alguma coisa dentro de mim que deixei encubada por todo esse tempo, mas com você senti essa
necessidade de tentar.
Ele aquiesceu com a cabeça.
- Quer ir a mais algum lugar?
- Já estou satisfeito com minhas compras – respondi.
- Que tal voltarmos para o hotel?
- Você quem sabe – falei como se não tivesse importância.
Caminhos para a saída do shopping e fomos até o ponto de táxi. Jogamos nossas sacolas no
porta-malas e nos sentamos lado a lado no banco de trás do veículo. Kemal segurou minha mão e
recostei minha cabeça sobre o seu ombro. Vi seu sorriso safado pelo retrovisor e fiquei um pouco
constrangido quando o taxista olhou para trás e me lançou um olhar de reprovação. Kemal pareceu
não se importar.
O perfume da camisa dele era uma delícia, parecia ter toques amadeirados com alguma
essência de almíscar. Aquele cheiro me fez relaxar e sem perceber caí no sono em seus braços.
Quando chegamos ao hotel ele sussurrou em meu ouvido para me acordar e assustado, levantei a
cabeça rápido demais acertando seu nariz em cheio. Típico de pessoas desastradas como eu!
- Me desculpa – falei procurando alguma coisa para ele colocar sobre o sangramento, mas
quando olho para seu rosto ele apenas está rindo descompassadamente. – O que foi?
- Relaxa. Não aconteceu nada, você não quebrou o meu nariz. Só o deixou um pouco
dolorido.
Respiro aliviado e desço do táxi me sentindo envergonhado.
- Você está bem mesmo?
- Estou sim. Não se preocupe.
Ouço as pessoas andando na recepção do hotel e imagino todas elas me encarando. Como
toda a fachada do hotel é de vidro, todos viram minha cena desastrosa e na melhor das hipóteses
pensarão que sou apenas uma pessoa que não teve muita assistência quando criança para aprender o
básico sobre coordenação motora fina e grossa e também noções de espaço e lateralidade. Caminho
de cabeça baixa tentando me esconder atrás de Kemal, mas ele faz questão de segurar minha mão e
andar ao meu lado até o guichê onde pega a chave do nosso quarto e dá uma gorjeta ao recepcionista.
Subimos em silêncio e mal vejo a hora de poder enfiar a cabeça debaixo do travesseiro e
nunca mais sair de lá. Talvez compre um daqueles sacos de papel e faço dois furos nos olhos para
ninguém me reconhecer, como nos desenho americanos. Ou ainda posso pegar o dinheiro que
receberei desse trabalho e pague um cirurgião para trocar meu rosto com o de um indigente para ter
outra identidade. E novamente eu estava exagerando, deixando o drama tomar conta de mim, por que
isso já era automático. Acontecia alguma coisa constrangedora e eu já ativava o modo drama king
confabulando inúmeras situações incabíveis para a continuação daquele momento. Se eu seguisse
carreira como ator, em pouco tempo teria minha estante repleta de Oscar e quando subisse ao palco
para receber mais um das mãos de Jeniffer Laurence diria: Chupa essa Leonardo Di Caprio.
- Você sabia que quando fica nesses momentos de devaneios sua cara fica muito engraçada?
– falou ele debochando de mim.
- Cara engraçada? Como assim?
- Não sei explicar, mas sua expressão fica impagável. No que você pensa tanto? Prometo
que não conto a ninguém.
- Se eu te contasse, precisaria te matar depois. Já ouviu aquele ditado que duas pessoas
podem guardar o mesmo segredo, mas somente se uma delas estiver morta?
- Que horror? – disse ele imitando uma expressão de espanto. – Você teria coragem de me
matar.
- No momento, só de beijos.
- Awn, que coisa fofa!
Awn, que coisa gay, pensei.
- O que faremos agora? – perguntei.
- Quero ir para o quarto para te conhecer melhor – disse ele enquanto estávamos no
elevador.
Olhei para ele tentando entender o que ele estava querendo dizer com aquilo e a única
conclusão que cheguei era que estava ferrado. Se Kemal estava pensando que transaria com ele na
primeira noite em que assumi meus sentimentos, ele estava um pouco enganado. Não era tão fácil
assim. Fora que estava morrendo de medo de onde tudo isso iria dar, pois para meu desespero aquela
seria a primeira vez que ficaria sozinho com um homem em um quarto após dar beijos cheios de
significado.
Mas agora não era hora de voltar atrás e eu precisaria dar minha cara à tapa e ir até as
últimas consequências tentando aproveitar tudo da melhor maneira que desse e com o mínimo de dor
possível.
A sensação de estar perdido é desoladora. Quando você olha de um lado a outro e não
encontra nada e nem ninguém familiar te faz pirar e perder a cabeça te fazendo entrar em desespero.
Essa sensação pode acontecer quando você se perde do seu guia de turismo em uma viagem, ou de
sua mãe no supermercado enquanto faz compra ou pior, dentro de si mesmo.
Olhar para o passado e ver o quanto de tempo foi desperdiçado em vão. Ou se focar no
presente e perceber que não chegou ao lugar que um dia sonhou. E ainda mirar no futuro e perceber
que nada espera por você no fim do túnel ao qual chamamos de vida.
O que fazer nessas situações?
O covarde optaria pelo suicídio, uma saída fácil para qualquer problema. O otimista
continuaria a lutar e sempre alimentaria a esperança de um mundo melhor. O intelectual traçaria
planos e metas para fazer sua vida dar um giro de 180º, tirando-o do ponto zero ao qual sua vida
estaria estacionado. O engenheiro construiria pontes para alcançar seus sonhos. O religioso
entregaria tudo nas mãos de Deus.
Que escolha eu tinha?
Provavelmente você irá responder "todas", mas se você já passou pelo que passei saberá
que não é tão fácil assim. Meu quarto pareceu se transformar em uma cripta, o dia ficou escuro de
propósito e por um momento pensei estar vivendo em um dos filmes de Tim Burton, meus familiares
se tornaram verdadeiros estranhos para mim e a vontade de fazer qualquer coisa se esvaia pelo ralo
do banheiro quando me forçava a tomar banho para manter pelo menos a higiene pessoal.
Quase morri afogado pelas minhas próprias lágrimas na viagem de volta para casa de tanto
que chorei por ter deixado Kemal partir assim. Mas não seria justo nem para ele e nem para mim
aceitar aquela proposta dessa forma. Não era capacitado para a função, nem em um milhão de anos
compreenderia os assuntos ligados ao mármore, já que não era algo que me chamava à atenção e
tinha pessoas bem mais preparadas para ocupar esse cargo. Fora que eu tinha sonhos. E trocá-los
para ficar com alguém que me amava seria uma traição a mim mesmo.
A única coisa que quase me fez mudar de ideia e ligar para ele assim que cheguei em casa
foi o pacote que encontrei dentro de minha mala ao chegar em casa com um simples bilhete anexado.
"Abra-o apenas quando estiver preparado, você saberá quando chegar a hora."
- K.
O que ele queria dizer com aquilo?
Fiquei tentado a rasgar o embrulho e descobrir o que havia dentro daquela caixinha
misteriosa que escondia minha última ligação com Kemal, mas resisti ao perceber que aquela
também seria sua última prova de confiança que ele esperava de mim. Não poderia quebra-la
daquela forma, mesmo ele não estando ali para ver isso. Minha mente jamais me perdoaria se eu
fizesse aquilo. Então deixei-o em um dos compartimentos da minha mesinha de computador, onde
todo dia poderia vê-lo para nunca esquecer dele e talvez um dia sentir que estou pronto para abri-lo.
Mas não estava preocupado com isso no momento. Depois que voltei para casa e coloquei
meu celular para carregar, assim que o liguei minha vida virou um inferno. Primeiro que minha caixa
de mensagens não tinha mais espaço para receber mais nenhuma mensagem. A outra foi que Eliana
não parou de me ligar assim que ela viu que meu número não estava mais fora de área. Ignorei todas
as ligações.
Sei que fui um cretino e agi de uma forma que nunca pensei em ser capaz de agir, mas estava
muito estressado com tudo o que estava acontecendo e ela não me dava espaço para respirar. Então
em determinada parte do dia só enviei uma simples mensagem e depois disso uma paz absoluta
reinou em meu aparelho.
Acabou! Não quero mais falar com você! Se valorize e não me mande mais nenhuma
mensagem... estou de saco cheio disso. Se cuide!
Contei a ela em detalhes os dois últimos dias e como Kemal havia se aproximado de mim.
Falei a ela sobre a proposta que ele havia me feito e como fui covarde em recusá-la. Desabafei tudo
o que estava sentindo e chorei minhas mágoas recebendo seu apoio moral virtual.
Dina: Eu sabia que você era o meu BFF gay. Awnt... é tão fofo.
Eu: Aff! Você não me falou isso após ter aberto meu coração a você.
Dina: O que foi? Eu acho fofo, e no mais não há problemas nenhum em ser gay.
Eu: Eu sei, mas ainda não me acostumei a isso. Pra falar verdade nem sei se realmente sou,
afinal nada comprova que beijar na boca de um homem te transforma em um homossexual
instantaneamente.
Dina: Um homem 100% hetero jamais ficaria com outro homem.
Eu: Você está doidinha para que eu me assuma para ter o seu BFFGay neah?!
Dina: Como adivinhou? Sou tão previsível assim :P
Eu: Você não vale nada...
Dina: ...mas eu gosto de você! Pode confessar que me ama... não, pera. Eu não sou homem.
Eu: Com essa vou até sair. Bjs.
Dina: Se cuida, doido.
Meus momentos com Dina me aliviavam de qualquer tensão. Se ela não morassem tão longe
e se eu não tivesse descoberto esse outro lado em mim, provavelmente namoraria com ela. Ou talvez
não, já que relacionamentos sempre deixam a amizade abalada caso aconteça alguma coisa e depois
as pessoas nunca mais são as mesmas uma com a outra. E essa amizade eu queria preservar para
sempre.
Outra que estava pensando seriamente era a de Luara. Nossa amizade estava estável depois
que nos acertamos, mas se passaram quatro dias e apesar dela ter voltado para casa e provavelmente
ter vivido a mesma rotina de sempre, eu tinha vivido experiências que me modificara. Será que
quando encontrasse ela no curso mais a noite as coisas estariam mudadas entre nós? Talvez ela já
estivesse me odiando. Eliana poderia muito bem ter ligado para ela e contado em como a tratei esses
dias, ignorando-a completamente e por fim terminar com ela através de mensagem de texto.
Será que eu estava preparado para mais um drama?
Fiquei tentado a faltar o curso naquele dia, afinal já tinha faltado em tantas aulas que mais
uma não faria diferença. Mas um pontinho dentro de mim pulsava de curiosidade para saber como as
coisas estavam e o que aconteceria com a minha volta.
Chegou com antecedência de dez minutos e mesmo não vendo ninguém familiar, percebi que
algo havia mudado. Aos poucos as pessoas que conhecia apenas de vista começaram a chegar,
sentando-se pelo pátio com os seus grupinhos de amigo. Quando faltava apenas um minuto para as
seis, Luara cruzou o portão e seus olhos fizeram um reconhecimento pelo lugar antes de se focarem
em mim.
Um sorriso bobo se formou em meu rosto, algo que sempre acontecia comigo quando a via, e
enquanto aguardava ela se aproximar de mim troquei o peso do corpo de uma perna para outra
algumas vezes me sentindo inquieto por dentro. Assim que ficamos frente a frente, fiquei sem saber o
que dizer. Ela tomou a iniciativa e me envolveu em um abraço acolhedor.
- Que bom que está de volta, as aulas ficaram um saco sem você – disse ela revirando os
olhos. – E então, me conta como foi lá.
Um filme se desenrolou em minha cabeça e lembrei-me de todas as coisas que haviam
acontecido enquanto procurava algo para contar a ela. Como constatei que não fazia sentido contar-
lhe tudo, inclusive a parte que envolvia o meu lance com Kemal, resumi tudo em apenas: - Foi legal.
Ela arqueou uma de suas sobrancelhas e me encarou.
- Só isso? Quatro dias e tudo que tem a dizer é que "foi legal"?
- Não, né?! Mas o que quer saber?
- Sei lá – disse ela dando de ombros. Como foi o trabalho... conheceu novas pessoas...
conseguiu um emprego integral... esses tipo de coisas.
- Foi uma experiência única – respondi. – Aprendi muito com as pessoas lá, desenvolvi
bastante o meu inglês já que todas as nossas conversas eram apenas nessa língua, conheci algumas
pessoas interessantes e bem ricas, fiz bastante compras e até consegui uma proposta de emprego com
o cara que trabalhei, mas não aceitei porque não fazia muito o meu estilo.
O queixo de Luara foi ao chão e por um minuto pensei que ela fecharia seu punho e me
acertaria com ele no meio do meu rosto.
- Como assim não aceitou? Era que tipo de emprego.
- Ah, sei lá – desconversei. – Envolvia aprender sobre mármore e granito e viajar pelo
mundo representando a marca em eventos como aquele.
- Você ficou doido? – perguntou ela em tom de crítica. – Passamos esses quatros dias de
curso em que você não estava ouvindo o professor te elogiar e falar que você iria se dar bem por lá,
que era um exemplo que devíamos seguir e blá, blá, blá, aí você volta para casa e diz que recusou um
emprego só porque não era sua cara. Você quer que eu te mate agora ou vai esperar os outros alunos
do curso chegarem para te linchar em público?
- Você não entende – falei com pesar. – Minha recusa envolvia fatores aos quais estão bem
além de você entender. Não recusei apenas por não ser a minha cara, existem outros motivos que me
fizeram desistir.
Olhei para ela com um olhar suplicante e fui mal compreendido.
- Espere um pouco – disse ela balançando a cabeça. – Você não desistiu do emprego por
estar apaixonado por mim, não é mesmo?!
Me recompus e endireitei minha postura.
- Claro que não, você ficou maluca? De onde tirou isso.
- Sei lá, você me olhou tão estranho agora que pensei...
- Você tem namorado, e no mais, acabei de sair de um relacionamento confuso e não entraria
em outro logo em seguida.
- Como assim? Você terminou com a Eliana?
Então ela ainda não tinha contado nada a Luara.
- Terminei – respondi com convicção. – Por mensagem de texto.
Ela me olhou abismada e não sei o que deu em mim, mas comecei a sorrir ao ver sua reação
para a minha resposta.
- Você não fez isso – disse ela em dúvida. – Sério que terminou com alguém por mensagem
de texto. Essa é a pior forma de se fazer isso.
- Eu sei, fui um canalha, mas não tínhamos nada a ver um com o outro e ela estava me
enchendo o saco e passando dos limites. Resolvi colocar um ponto final naquela história de uma
forma rápida e sem pensar enviei a mensagem. O que pelo visto funcionou, pois ela não deu nenhum
sinal de vida após isso.
- Ela estava bem estranha esses dias mesmo. Depois que voltamos da viagem ela não
conversou mais comigo e colocou a Tânia contra mim. Nem estamos sentando mais juntas.
- Mas terminei com ela essa tarde.
- Então ela só não gostava de mim mesmo? – concluiu.
- Pelo visto sim. E cá pra nós, é ela que está perdendo.
- Nem ligo, por mim já foi tarde.
Não pude deixar de rir. Luara me lembrava Dina, ou pelo menos me fazia sentir melhor
dependendo do meu estado. Era isso que era amizade verdadeira? Ela passou seu braço pela minha
cintura e eu cutuquei sua costela.
- Você não tem jeito mesmo, ein?! – disse ela também sorrindo.
- É você que me faz ficar assim – admiti fazendo uma careta. – Até ontem eu estava agindo
como um profissional sério e sisudo.
- Você sisudo? Essa eu preciso ver.
- Seu namorado não vai ficar com ciúmes de você me agarrar assim? – provoquei.
- E quem disse que ele precisa saber – ela piscou o olho e apertou minha costela.
- Ai.
- Larga de ser mole. E agora, o que vamos fazer?
- Que tal entrarmos para a sala? Acho que o curso já começou.
- Você está doidinho para ser o centro das atenções e ficar vendo todo mundo babar ovo em
cima de você.
- Quem, eu? – perguntei com sarcasmo.
- Seu bobo. Vamos entrar então por que não sei se conseguirei dar conta desse seu ego todo
sozinha.
Ela me puxou pela cintura e caminhamos agarrados pelos corredores como um casal de
namorado. Quando chegamos à sala Eliana foi a primeira a nos ver e sem que esperássemos ela
avançou para cima de Luara e a derrubou subindo em cima de sua barriga prendendo-a contra o chão.
- Era isso que você queria, não é sua puta? Aposto que foi você que fez isso. Sempre
pegando tudo o que quero, mas isso não vai ficar barato.
Ela começou a estapear a cara de Luara e ela retribui as agressões. Com custo consegui tirar
Eliana de cima dela e o professor certificou de que todas estavam bem. As duas foram levadas para
fora e mesmo já sendo maiores de idade, os pais das duas foram chamados tratando-as como crianças
que se metiam em encrencas na escola. De todas as recepções possíveis que poderia imaginar para o
meu regresso à minha vida normal, essa não chegou nem a passar pela minha mente: um ataque
histérico da minha ex-namorada em cima de uma amiga minha por ciúmes e recalque. Pelo menos o
acontecido serviu para trazer um pouco de normalidade a minha vida e isso fez com que eu já não me
sentisse tão fora de contexto regressando a minha rotina novamente.
Vinte e Um
Não há futuro e nem passado. Não consigo controlar meu destino. Estou sozinho aqui e isso
é tudo o que me resta até o fim da minha vida. Ouço minha família através da porta do meu quarto.
Brigas, discussões, risadas e brincadeiras. Se eu pudesse, convidaria meu irmão para entrar no
quarto e desabafaria todos os meus segredos em troca de um conforto sem julgamentos. Mas não há
como. O único que poderia fazer isso, sem cobranças, uma hora dessas já está do outro lado do
mundo. Se eu não encontrasse uma forma para melhorar meu estado logo, em dias entraria em
depressão e não tenho certeza se sairia dela tão fácil.
Tentei me distrair vendo alguns musicais, mas só consegui piorar minha situação enquanto
assistia RENT: Os Boêmios. Por que Angel tinha que ter morrido? Uma pessoa tão boa que queria
apenas aproveitar o melhor da vida. Essa era uma prova de que ninguém pode ser feliz para sempre,
mesmo tendo encontrado o grande amor de sua vida.
Fico com uma parte de uma das músicas reverberando em minha mente: No other road, no
other way, no day but today[1]. Toda a certeza que temos é apenas no dia de hoje, ninguém sabe o
que o amanhã lhe reserva. Então ficar me lamentando enquanto deixava o dia escorrer pelas minhas
mãos me deixava ainda mais deprimido. Procurei algo construtivo em meu quarto para fazer, mas só
havia livros, boxes de séries e filmes e um computador conectado a internet. O que eu poderia fazer
com isso para me fazer sentir que não estava desperdiçando meu tempo?
Meu celular tocou. Estranho, pois isso não era comum de acontecer. Não depois de ter terminado
com Eliana. Olho para o visor e vejo um número desconhecido.
- Oi? – atendo.
- Tom? Aqui é Luara.
- Luara? Como conseguiu meu número?
- Se eu te contasse teria que te matar depois.
- Nossa, quanto drama. Mas, por que me ligou? Sentiu saudades?
- Que engraçadinho, só que não – ela fez uma pausa. – A coordenadora do curso acabou de
me ligar e falou que o dinheiro já está nas contas. Quer ir ao banco agora?
Tinha até me esquecido disso. O curso era oferecido pelo governo do estado e todos os
alunos recebiam uma bolsa-auxílio para contribuir com algumas despesas. Era uma micharia
comparado a um salário mínimo, mas dinheiro era dinheiro.
- Que horas você vai lá? - perguntei.
- Tipo, agora. Vamos?
- Beleza. Vou me arrumar aqui e te espero em frente à papelaria Arco Íris.
Vinte minutos depois estava vestido com minha bermuda de brim amarela, uma camisa
branca e meu All Star comum. Não gostava de sair de casa de qualquer jeito. Luara, pelo contrário,
vestia um shortinho jeans e uma regata rosa calçada com uma rasteirinha. Algo bem verão. Vi ela se
aproximando no meio dos transeuntes que caminhavam pela calçada e abri um sorriso instantâneo
assim que nossos olhares se cruzaram.
Ela também sorriu e seu rosto se iluminou.
Foi engraçado que senti minhas pernas trêmulas quando ela me abraçou.
- Vamos?
Segui-a ainda tentando entender o que se passava dentro de mim. Nossa caminhada seria um
pouco longa, pois o banco em que íamos ficava no centro da cidade, uns trinta minutos a pé do nosso
bairro. Seria um bom momento para conversarmos e quem sabe desabafar um pouco, contando-lhe a
verdade sobre o que realmente aconteceu em Vitória.
Não. Eu não estava preparado para me assumir assim.
Não quando algo parecia estar acontecendo dentro de mim para ferrar mais ainda com minha
mente. Mas deixaria as coisas rolarem para ver se minhas dúvidas tinham algum fundamento ou se
era só piração da minha cabeça fraca pós-relação confusa com Kemal.
Fugindo dos meus devaneios, deixei que ela guiasse a conversa e falamos sobre tudo, menos
sobre relacionamentos e aquela atração inegável que sentíamos um pelo outro. Ou pelo menos era o
que eu achava. Luara era gentil, engraçada, possuía todas as qualidades que uma boa namorada
deveria ter, e talvez por nossa amizade ser tão liberal, eu tenha confundido as coisas.
- Como está se sentindo depois daquele ataque de ciúmes? – pergunto encontrando algum
assunto que distraia minha mente de pensar no que eu possivelmente estava começando a sentir.
- Estou bem – respondeu ela. – Com muita raiva daquela vaca que provou nunca ser minha
amiga, mas aliviada também, pois nunca considerei ela como algo do tipo mesmo.
- Entendo. E será que ela continuará fazendo o curso?
- Só Jesus sabe – falou ela dando de ombros.
- Mas você foi muito vago em sua estadia em Vitória...
- Pra falar verdade eu fiquei em Vila Velha – interrompi-a fazendo uma pequena correção. –
E não aconteceram tantas coisas divertidas assim.
- Mas foi só trabalho?
Como eu gostaria de contar a ela tudo o que aconteceu. Precisava daquilo, mas como faria
isso sabendo que correria um grande risco de ser mal interpretado e até mesmo hostilizado pelas
decisões que havia tomado?
- Pra falar verdade, não – falei olhando para os meus pés. – Não foi só trabalho que rolaram
nesses dias que fiquei lá.
- O que mais aconteceu – quis saber ela curiosa.
- Não posso contar – falei recebendo em troca um olhar triste. – Não sei se conseguiria
entender tudo.
- Você sabe que pode me contar tudo, afinal somos amigos – disse ela com firmeza.
- Sei que posso te contar tudo, mas isso ultrapassa esse limite da nossa amizade – falei
sério. – Como diria você, se eu te contasse precisaria mata-la depois – completei para tentar quebrar
um pouco da tensão que havia estagnado entre o curto espaço de nossos corpos que caminhavam mais
lentos pelas ruas.
- Eu sei – disse ela com pesar, - você não confia em mim totalmente. Tudo bem.
Olhei para sua expressão triste e senti meu coração sendo rasgado ao meio. Que porra era
essa que estava acontecendo comigo? Não bastava a vida ter me fodido apenas com minha história
com Kemal, agora teria que suportar isso de estar ficando apaixonado por minha melhor amiga?
- Não é isso, claro que confio em você, mas não sei se entenderia o que aconteceu comigo.
- Fica difícil saber se eu entenderia se não me contar o que está acontecendo.
Respirei fundo e reuni o pouco de coragem que ainda restava em mim.
- Durante esses quatro dias que passei fora, vivi a experiência mais maravilhosa da minha
vida: eu me apaixonei.
Esperei que ela esboçasse alguma reação, mas seu rosto continuou neutro com aqueles olhos
tão brilhantes me encarando esperando pela parte que desse sentindo a minha preocupação de contar
o que realmente havia acontecido.
- E qual o problema disso? – perguntou ela. – Ela mora longe, ou algo do tipo.
- É bem mais complicado que isso, já que para começo de conversa não estamos falando
sobre "ela", mas sim sobre "ele".
Ela arregalou os olhos e me encarou com uma expressão boba.
- O que foi? – perguntei.
- Só um minuto – disse ela apontando o dedo indicador para mim. - Deixa só eu digerir isso
rapidamente - ela engoliu em seco e depois deu um sorriso. – Pode parecer estranho, mas já
desconfiava disso.
- Como assim? – perguntei confuso.
- Sei lá – respondeu ela. – Mas de algum modo minha mente deve ter captado algum
movimento estranhos eu ou algum jeitinho que disparou esse alarme em minha cabeça, e agora com
sua confirmação tudo fez sentido.
- E agora? – metralhei-a com uma nova pergunta.
- Normal, eu acho. Você espera minha aprovação?
- Não é isso, mas sua reação será essa?
- E você esperava que eu agisse como? Desse um escândalo, chorasse por um cara bonito
como você gostar da mesma coisa que eu ou então parasse de falar com você por preconceito?
- Ficaria com a primeira alternativa. Pensei que fosse dar pelo menos um piti, tendo em
vista que nunca te falei nada sobre. – Fiquei em silêncio por um minuto e depois acrescentei: - E
como assim sou um cara bonito?
Ela deu um sorriso.
- Você não perde nada mesmo ein?! Eu te acho muito bonito – fiquei corado com essa
afirmação. – E no mais, o que tem demais em você também gostar de homens? Não tenho
preconceitos em relação a isso. Pra falar verdade, sempre quis um BFFG[2].
Fiquei sem saber o que dizer, mas no fundo estava feliz por ela aceitar isso numa boa.
Mas espera aí... eu acabara de contar a ela que ficara com um cara, e pelo fim de sua última
frase ela havia me definido como algo que eu não tinha total certeza de ser: gay. Se ela achava isso
de mim, como falaria com ela que meu coração acelerava sem motivos, não por Kemal, mas por estar
ao lado dela?
- Mas eu não sou gay – procurei me retratar.
- Como assim não? – perguntou ela levantando uma de suas sobrancelhas. – Você não acabou
de me dizer que "não estamos falando sobre ela, mas sim sobre ele"?
- Sim, eu disse isso – confirmei.
- Não entendi nada.
- Eu fiquei com o cara que me contratou, mas isso não faz de mim um homossexual – falei
como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
- Como assim não? Alguém hetero jamais aceitaria ficar com alguém do mesmo sexo. Você
está querendo me dizer que é bissexual então?
- Não... Quero dizer, não sei... É muito confuso. Em um minuto eu estava a fim de você,
depois estava namorando com Eliana, logo após me envolvi com Kemal e agora estou começando a
crer que você nunca saiu da minha cabeça.
Tampei a boca rapidamente com a mão e olhei para ela assustado. Eu não podia ter dito
aquilo. Ela me encarou com uma expressão mais confusa que a minha e deixou que as palavras se
desvanecessem no ar.
- Não vai dizer nada? – perguntei depois de darmos alguns passos em silêncio.
- O que quer que eu diga? É muita coisa para processar de uma só vez.
- E você está me odiando por isso?
- Não – respondeu ela. – Só estou tentando entender tudo.
- Qual parte? A de eu ter ficado com um homem, a de ter terminado com Eliana ou a de estar
gostando de você?
- Todas elas. Isso é muito estranho.
- Se você parar para pensar bem, não é tão estranho assim – tentei explicar de uma maneira
plausível. – Comecei a namorar com Eliana para tentar suprir a falta que você me fazia mesmo sem
saber que já gostava de você – confessei, chegando a essa conclusão pela primeira vez. – Mas nunca
senti nada por ela, foi então que a forma como Kemal me tratava despertou em mim algum sentimento
que não sabia que existia, mas agora percebo que era só carência. E agora enfim descubro que sinto e
sempre senti algo por você, pois não existe explicação para dar a como me sinto tão bem estando ao
seu lado, como começo a rir igual bobo quando te vejo, quando meus pensamentos são tomados do
nada pelo seu sorriso... Eu estou apaixonado.
Ela ainda estava reflexiva e por um momento pensei que desabaria em lágrimas no meio da
rua. Esperei.
Chegamos ao banco, pegamos nossa senha e sentamos um ao lado do outro esperando por
nossa vez. Um abismo se estendia entre nós e qualquer coisa que disséssemos não chegaria aos
ouvidos do outro. Cada um estava imerso em seu próprio pensamento. Fomos atendidos
separadamente, recebemos nosso dinheiro e voltamos a pé pelo mesmo percurso que havíamos
realizado.
Depois de muito tempo ela perguntou:
- Você abandonou sua chance de emprego por minha causa?
Olhei para ela surpreso com a pergunta e as palavras me traíram. Não conseguia pensar em
nada para respondê-la, pois nunca havia me passado pela cabeça o motivo de ter desistido da
proposta que Kemal me havia feito. Até o momento acreditava que o medo, a incerteza e a
insegurança eram os fatores que me motivaram a voltar para casa com uma mão no bolso e outra nas
costas, mas ouvir essa pergunta de Luara me fez repensar em tudo o que havia acontecido para me
levar a tomar essa decisão e no fundo descobri que fazia bastante sentido sua dúvida.
Inconscientemente eu nutria um sentimento por ela, e mesmo com Kemal suprindo minha carência por
aqueles dias, no fundo eu não estava apaixonado por ele, mas sim por ela.
- Não havia pensado dessa forma antes, mas acho que no fundo foi por isso mesmo.
Ela apenas concordou com a cabeça e respirou fundo.
Não trocamos mais uma palavra pelo resto do percurso.
Voltando ao ponto zero de nosso encontro ela olhou sem jeito de um lado para o outro e
ficou esperando que eu dissesse alguma coisa. Observei o fluxo do trânsito por alguns segundos e
depois foquei meus olhos em seu rosto.
- As coisas ficarão estranhas entre a gente depois disso que aconteceu?
- Sinceramente não sei – respondeu ela esfregando seu braço esquerdo com a mão. – Não
esperava que fossemos ter uma conversa desse tipo hoje, então não estava preparada mentalmente
para todas as revelações que foram feitas.
- Das duas uma: podemos esquecer que tivemos essa conversa ou então você pensa melhor
sobre isso e...
- E termino com o meu namorado para ficar com você? É isso que está me propondo? –
perguntou ela incisivamente.
- Não ia chegar a uma conclusão tão definitiva assim, mas...
- Mas no fundo era isso que queria? – perguntou ela me interrompendo novamente.
- É – respondi, não encontrando mais nenhuma palavra que pudesse dizer naquele momento.
- Não posso prometer que farei isso. Você sabe que amo meu namorado.
- Mas você vê como fazemos bem um ao outro.
- Isso aqui é só uma amizade.
- Mas poderia ser mais do que isso se quisesse – forcei.
- Não é tão simples assim – rebateu ela.
- Mas também não precisa ser complicado.
Sua expressão corporal começou a se alterar e pude perceber pequenos detalhes que
mostravam como ela estava tensa. Não queria fazer isso com ela.
- Mas tudo bem, não vou exigir nada de você e nem forçar a barra. Sou daqueles que
acreditam que se alguma coisa tiver que acontecer, ela acontecerá, independente das decisões que
tomamos.
Ela deu de ombros e fez um leve aceno com a cabeça pegando o seu rumo sem dizer mais
nenhuma palavra. Cada passo que dava, enquanto se distanciava de mim rapidamente, era como uma
pisada que esmagava o meu coração lentamente.
Foi assim que descobri que estava apaixonado pela minha (melhor) amiga, como também
descobri que não havia a menor probabilidade de ficarmos juntos, mesmo tendo dito aquela frase
clichê sobre acreditar na predestinação. Sempre me apeguei aos fatos, e nessa situação o fato era que
tomei uma decisão errada e agora enfrentaria as consequências.
Se ao menos eu pudesse voltar ao tempo...
Vinte e Dois
Dizem que estou preso em um sonho. Que o amor é só uma ilusão, uma simples palavra que
os homens inventaram para explicar as reações químicas que o corpo sofre ao encontrar alguém que
desperte atração em nossa mente. Essas mesmas pessoas nos aprisionam em seus dogmas e
paradigmas, ditam nossas leis, como devemos agir, o que devemos gostar, quem somos e de onde
viemos. Acreditar em tudo que é imposto para nós é muito fácil, nos deixam na zona de conforto. Mas
confrontar isso é algo para poucos.
Acordei desse sonho faz tempo. E se tivesse levado em conta quando disseram que era
muito novo para entender dessas coisas, ainda viveria em um estado de coma existencial,
programado como uma máquina. Por sorte fui agraciado pelo grande mágico com um coração vivo e
pulsante, e todas as vezes que me entregava ao sentimento que fazia o músculo mais importante do
meu corpo bombear mais vida para minhas veias, me tornava um pouco mais sábio e mais velho do
que era antes.
A partir daquele beijo, minha intimidade com Luara aumentou e foi automático quando
passamos a andar de mãos dadas ou abraçados pelos corredores da escola. Todos perceberam que as
coisas entre nós havia mudado e alguns até nos parabenizaram dizendo que formávamos um lindo
casal. Não podia discordar disso. Outros, e quando falo “outros” me refiro especificamente a Eliana,
lançava olhares fulminantes em nossas direções e se não fossemos protegido pelo fogo do nosso
próprio amor, Luara e eu provavelmente seríamos consumidos pelo calor desse ódio que ela não
fazia questão de esconder da nossa relação.
Foram os cinco dias mais felizes da minha vida.
Não sou do tipo romântico incorrigível, mas quando estou apaixonado querendo ou não
começo a agir de uma maneira mais sensível, procuro sempre agradar minha parceira e também a
surpreendê-la sempre. Claro que, quando você planeja alguma coisa desse tipo, não espera que a
pessoa que será surpreendida seja você mesmo.
Já fazia dois dias que não comia direito e a imagem do sorriso de Luara, o gosto dos seus
lábios, o calor do seu corpo e o cheiro de sua pele não saiam de minha mente. Estava viciado nela. O
único problema era que eu só a via no curso e era um período muito curto para matar toda essa
vontade e anseio que tinha em estar ao seu lado. Precisava de mais.
Sábado chegou e passou lentamente. Domingo se mostrou o dia mais pedante da semana, e
nem bem chegou à metade, e meu querer era de atirar contra minha testa tamanho o tédio e a
ansiedade que estava sentindo. Foi quando um fato me passou pela mente e uma luz acendeu sobre
minha cabeça.
Era domingo, Luara era evangélica, eu sabia qual igreja ela frequentava e não seria
sacrifício algum aguentar o culto para depois ter sua companhia por, pelo menos, alguns minutos
naquela noite. Resolvi não avisar a ela para fazer uma pequena surpresa e assim como no dia que me
produzi para lutar pelo seu amor, caprichei no meu visual e quando me olhei no espelho na hora o
meu reflexo começou a aplaudir. Tudo bem, estou exagerando um pouco e me achando demais, mas
estava me sentindo tão bem que o amor-próprio estava superestimado por mim.
Fui para o ponto de ônibus as seis e quarenta e fiquei mofando por um tempo observando
outras pessoas passarem arrumadas e cheirosas por mim indo para os seus compromissos semanais
com a sua crença. Não sei por que ela escolheu frequentar uma igreja no quinto dos infernos para
frequentar - é pecado usar essa expressão nesse caso? - já que havia tantas igrejas aqui perto, essa
seria uma boa pergunta para fazer quando estivéssemos juntos.
Cheguei antes dela e fiquei um pouco constrangido ao entrar sozinho e sentir que todos os
que estavam ali me lançavam olhares curiosos. Quando achei um lugar para me sentar, tirei o celular
do meu bolso, coloquei ele no modo de vibração e pensei em escrever uma mensagem rápida para
ela. Mas assim que comecei a digitar, olhei para a porta por acaso e vi que ela havia chegado
acompanhada de seu tio. Meu coração pulsou de felicidade - que clichê! - e abri um sorriso de orelha
a orelha. Quando o olhar dela se cruzou com o meu, vi como ela ficou surpresa com a minha presença
ali, mas o que não esperava era que ela passasse por mim sem dizer nada e fosse se sentar numa das
primeiras cadeiras bem longe de mim. Meu sorriso murchou em meu rosto e milhões de pensamentos
bombardearam minhas certezas e segurança que estava sentindo há poucos minutos.
O culto começou, o grupo musical que guiava as músicas foi para a frente cantar alguns
louvores gospel - era assim que eles chamavam, eu acho - e depois o pastor ganhou a palavra. Se me
perguntarem sobre o que ele pregou ou, pelo menos, que texto da Bíblia ele leu, te responderei com
sinceridade que não tenho a menor ideia, pois durante todo o tempo que passei com o meu corpo
presente naquele lugar, minha atenção estava focada somente na nuca de Luara, que era a única coisa
que podia ver, já que em momento algum ela virou o rosto para trás para me lançar um olhar
carinhoso ou demonstrar um gesto que dissipasse toda a preocupação que se alojou dentro de mim
pelo modo como ela havia entrado e não falado comigo.
Quando percebi que a pregação estava acabando, fiquei um pouco mais aliviado, pois assim
teria a oportunidade de conversar com ela para saber o que estava acontecendo. Mas assim que o
pastor desceu do púlpito uma mulher da igreja tomou o seu lugar e começou a falar:
- Hoje é um dia muito especial para nós - e como é, pensei. - A trinta e cinco anos atrás uma
pequena flor desabrochava aqui nessa cidade, e quem a via naquele tempo não fazia a menor ideia de
como ela serviria para abençoar muitas vidas…
Desliguei minha mente por um tempo porque já havia me cansado dessa balela de crentes.
O que eu queria era sair dali e ir cuidar da minha vida, mas não queria parecer grosseiro e muito
menos mal educado. Peguei o celular, olhei para o relógio, guardei o celular, não me dei conta de que
horas eram então repeti a mesma ação e vi que ainda era oito e quarenta. Fiquei com o celular na mão
e girava ele para passar o tempo e controlar minha ansiedade. Uns cinco minutos depois a mulher
continuava falando, mas assim que voltei a prestar atenção no que dizia fiquei um pouco interessado
no que viria a seguir.
- ...não é nada demais porque fomos pegos de surpresa, mas não poderíamos deixar a data
passar em branco. Em homenagem a nossa querida pastora o grupo de jovens preparou uma canção
para você, então preste bastante atenção na letra e receba todo o nosso carinho.
Então de um em um, todos os jovens que estavam sentados na primeira e na segunda fileira
de cadeiras foram subindo ao púlpito e se colocando em posição de coral. Luara ficou na fileira da
frente ladeada por outras garotas da sua idade. Acompanhados por um playback, todos os jovens
começaram a cantar e aos poucos minha desconfiança foram desaparecendo, pois essa era a
explicação que eu estava buscando. Ela só não deu atenção para mim por que precisava se concentrar
para apresentar esse número musical à sua pastora. Um gesto bem nobre. Prestei até mais atenção no
restante do culto e mal conseguia esperar o término para ir saudá-la pela apresentação magnífica lá
na frente junto com seus amigos.
Quando a última oração é feita e o culto é encerrado, Luara dá uma rápida olhada para trás
e nossos olhares se cruzam pela segunda vez na noite, mas sinto uma grande distância entre nós,
mesmo estando a poucos metros um do outro. Acompanho as pessoas que seguem corredor afora para
o exterior da igreja e paro próximo ao portão esperando por ela. Balanço a cabeça negando quando
pensamentos errados voltam a me atormentar.
Nada estranho estava acontecendo ali, tudo não passava de caraminholas em minha mente,
pois Luara havia decidido ficar comigo e os momentos que tivemos juntos durante a semana
comprovavam isso. Até ver o seu ex com as mãos em volta de sua cintura enquanto caminhavam
juntos para fora da igreja deveria ter uma explicação.
Espera aí… O que estava acontecendo?
Se ingenuidade matasse, eu provavelmente já estaria morto. Meus olhos não estavam me
pregando uma peça e não havia uma explicação para aquilo. O abraço era bem real, o contato bem
intimo e tudo estava muito claro: ela estava me traindo. E se não bastasse toda essa cena que se
desenrolava diante dos meus olhos, Luara passou por mim, virou a cara e me ignorou completamente.
Minha vontade era puxá-la pelo braço e dar umas boas porradas naquela cara sem vergonha
dela, mas como meus princípios sempre falavam mais alto, deixei passar essa raiva e fui embora de
cabeça erguida. Destruído por dentro, mas intacto por fora. Já havia chorado muito antes de
conseguir começar alguma coisa com ela e nossos tempos juntos havia sido muito curto. Não era para
esperar nada disso mesmo.
Só queria ver a cara com que ela chegaria no curso depois disso que havia acontecido. Será
que ela teria alguma explicação para mim, tentaria me convencer que aquilo fora apenas um mal
entendido, ou jogaria na cara que todo o tempo só estava brincando comigo? Resolvi esperar,
sentindo raízes de amargura se aprofundando em meu coração, transformando qualquer sentimento
que havia dentro de mim em ressentimentos.
Naquela noite deitei e não consegui dormir.
Estraguei um possível relacionamento quando escolhi voltar para casa. Me enganei ao
pensar que poderia ter algo sério com minha melhor amiga. Minhas chances para ser feliz no
momento eram nulas. E agora, voltar atrás era impossível.
Era para eu ter esperado por isso. Aconteceu algo parecido quando estava na segunda série.
Não vou entrar em detalhes sobre isso, mas em suma eu fiquei dividido entre duas amizades, quando
ambos me deram um ultimato fiz a minha escolha e depois de um tempo percebi que havia sido a
errada e que não tinha mais volta. A história só se repetia como um círculo vicioso.
Apoio o rosto nas mãos, tentando segurar as lágrimas que ameaçavam sair de meus olhos,
mas foi inevitável. Na manhã seguinte, meus olhos estavam fundos e uma expressão abatida tomava
conta do meu rosto. Ao encarar o meu reflexo no espelho, não reconhecia a imagem que se projetava
à minha frente, já tive dias melhores e por um momento receei que aquele fosse o meu futuro.
A noite chega indesejada e sombria. O dia havia passado sem nem eu perceber, executando
apenas movimentos mecânicos, tarefas rotineiras e mantendo a mente vazia. Fazia frio. Combinava
com o meu interior. Vesti qualquer coisa, peguei um agasalho e fui para a escola chutando a poeira.
Não estava nem um pouco animado de confrontar Luara, mas, ao mesmo tempo, eu precisava ouvir de
sua boca qualquer explicação para aquilo que havia visto na noite anterior, se ela tivesse coragem de
aparecer no curso.
Ela teve.
O ocorrido parece não ter surtido o mesmo efeito para ela, como foi para mim. Seu sorriso
de um milhão de dólares estava emoldurado em seu rosto, como um deboche para mim. Pelo meno
ela veio conversar comigo sem rodeios.
- Acho que precisamos conversar – disse ela chegando tão perto de mim que pude sentir seu
perfume, que na hora me fez embrulhar o estômago.
- Acho que sim – falei sem muita emoção.
- Se for agir dessa maneira fria, melhor conversarmos outra hora.
- Nem ouse fazer isso. Você me deve uma explicação – meus olhos começavam a arder.
- Por que você apareceu na igreja ontem, sem avisar nem nada?
- Por que, preferiria que eu tivesse avisado para você achar um jeito de conciliar minha
presença com a presença do seu ex?
- Na verdade – disse indecisa – ele nunca deixou de ser meu namorado.
Arregalo meus olhos com aquela afirmação e na hora sinto que um chapéu com orelhas de
burro escrito “IDIOTA” é colocado sobre minha cabeça.
- Acho que não consegui te compreender – falei realmente confuso.
- Meu namorado, aquele que você conhece, nunca chegou a ser meu ex – anunciou de uma
forma tão natural que por um momento pensei que meus ouvidos tinham dado algum tipo de defeito.
- Quer dizer que durante semana passada inteirinha enquanto estávamos juntos...
- Eu ainda estava namorando.
- Você sabe como isso soa para mim? – perguntei com voz estrangulada. – Que você é a
maior puta que já conheci.
- Não precisamos descer o nível – ironizou. - O que você esperava, que de uma hora para
outra mudaria minha vida assim só porque alguém que diz ser meu amigo se apaixonou por mim?
Nunca busquei isso com você, sempre quis ser sua amiga, mas pelo visto isso não era suficiente.
- Espera um pouco – contestei, - você está tentando me transformar no vilão aqui?
- Você precisa entender que não existem vilões ou mocinhos nessa história. Somente dois
amigos confusos.
- Amigos? Você acha que ainda somos amigos?
- Não vamos nos precipitar – pontuou.
- Não estou precipitando nada, mas você atravessou a linha da amizade depois daquele
beijo e não há como voltar atrás. Se não pudermos ser namorados, também não podemos mais ser
amigos.
Depois de alguns segundos sem dizer nada, ela cruza os braços.
- Agi feito tolo declarando tudo o que sentia por você daquela forma – admiti como se
estivesse confessando. - Talvez tenha sido impulsivo demais e você não estava preparada para isso.
Ou seja, novamente a culpa recai sobre mim.
- Ninguém é culpado aqui, você agiu certo com os seus sentimentos e eu quis dar
oportunidade ao destino para ver onde isso daria.
- Preferindo me enganar mantendo o reserva caso isso desse errado igual está dando agora –
falei em tom de crítica.
- Não foi bem assim...
- Claro que não. FOI EXATAMENTE ASSIM – gritei essas últimas três palavras chamando
a atenção de um grupo que estava perto de nós. - Você achou que nunca descobriria isso? Quando
procurei iniciar alguma coisa com você, esperava o mínimo de entrega e sacrifício.
- Mas eu não podia terminar meu namoro de quase...
- Essa é a questão, você podia, mas preferiu não terminar. Você nem o ama de verdade. E se
eu soubesse que você queria apenas fazer um teste comigo para saber se eu conseguiria fazer você
sentir o que não consegue sentir com ele, nunca teria cogitado a ideia de falar qualquer coisa sobre
isso com você. Preferiria viver um amor platônico a ter que passar por isso.
Sinto a cabeça rodar.
- Se você estivesse realmente feliz ao lado dele, nunca aceitaria ter ficado comigo e passado
todos aqueles momentos juntos durante a semana passada. Mas se não tem coragem para fazer uma
escolha, não vou ficar aqui servindo de cobaia para seus experimentos amorosos. Se não podemos
ser exclusivos, prefiro não ser nada seu.
Ela ergue uma de suas sobrancelhas.
- Só tenho pena desse infeliz que não sabe que faz parte desse seu esquema tão cruel.
- Essa é sua última palavra?
- Não – falo com convicção. - Por que infelizmente estou realmente apaixonado por você. E
isso é o que mais me deixa com raiva e triste ao mesmo tempo. Então não me importo em continuar o
nosso lance se você terminar com ele e assumirmos o nosso namoro publicamente, com direito até de
mudar o nosso status no Facebook.
Ela sorriu com minha piada e senti meu coração se encher de esperança.
- Só isso?
- Isso depende de você – retruquei.
- Não posso fazer isso. Se não pode aceitar isso até ter uma garantia maior de que o que
estou fazendo é o certo para mim, só o que posso te oferecer é a minha amizade.
- O que é muito pouco para mim.
Dei as costas para ela e senti que o mundo desabava atrás de mim. Uma história tão curta,
meio confusa e sem o mínimo de sentido acabava de ser escrita pelo destino e tinha um dos piores
finais que já havia visto até hoje. Era por isso que às vezes tinha receio de ler alguma coisa, pois vez
ou outra encontrava algum livro em que o autor estragava completamente o final por escolher
caminhos errados para os personagens.
O vento frio cortava o meu rosto como uma punição por ser um grande perdedor, mas não o
culpava pelo gelo que formava em meu interior. Queria chorar, mas não havia lágrimas. Queria gritar,
mas o som não saía de minha garganta. Queria socar alguém, mas minha força se esvaía como a água
que desce pelo ralo. Sentia-me incapacitado.
Não sei porque, mas um diálogo que havia tido há muito tempo com uma pessoa que nem
tenho mais contato me veio à mente.
- A vida nos convida a rir ou a chorar – falou ele.
- Dadas as circunstâncias para hoje eu escolho a segunda opção.
Não lembro em qual contexto isso havia sido dito, mas levando em conta os acontecimentos
de hoje, essa frase veio bem a calhar. Novamente eu estava diante dessas duas opções que a vida me
oferecia, onde podia rir de tudo isso e procurar tirar alguma lição boa para mim, ou então ficar
chorando pelo leite derramado e me lamentar até os dias finais.
Cheguei em casa, preparei um copo de achocolatado para mim, subi para o quarto e fui para
frente do meu computador. Nessas horas receber um pouco de atenção e carinho dos meus amigos
virtuais era a melhor coisa que tinha. Também veria se Dina estava on line para colocar nosso papo
em dia e contar novamente meus dramas amorosos. Minha sorte era que ela não se importava em ser
minha psicóloga particular. No entanto, não queria conversar com ninguém. Apenas ficar na minha
refletindo sobre tudo.
Entrei em alguns sites de entretenimento, visitei minhas redes sociais, vi alguns videoclipes
no You Tube e depois de um tempo percebi que estava com uma guia em branco aberta, olhando para
o monitor do computador sem realizar nenhuma ação. Tento imaginar quanto tempo eu fiquei desse
jeito.
Balanço a cabeça para colocar os pensamentos no lugar, e nesse movimento noto a presença
do pequeno embrulho que Kemal havia colocado em minha bolsa sem eu saber.
"Abra-o apenas quando estiver preparado, você saberá quando chegar a hora."
- K.
“Estarei sempre te esperando, me ligue a qualquer hora que te buscarei onde você estiver.
Meus dias ao seu lado foram os melhores e quero isso para o resto da minha vida e a eternidade.
Não tivemos a chance de dizer isso um ao outro, mas chegou a minha hora:
Eu te amo!!!”
-K
Era a única coisa que faltava para me convencer a fazer aquela ligação. Então, mais uma
vez, Kemal era a única pessoa que ocupava os meus pensamentos. Aqueles quatro dias repassaram
em minha cabeça como um filme e revi todos os nossos momentos juntos, senti a mesma emoção que
sentia quando estava do seu lado, meu peito se inflou quando lembrei do seu sorriso, meu coração
disparou quando lembrei do seu cheiro e meus pés perderam o chão quando o gosto de seus lábios
formigou os meus. Eu nem mesmo tinha percebido que estava tenso, até que ouvi o primeiro toque da
chamada pelo celular.
- Hello – disse a voz do outro lado da linha me fazendo sentir um mini infarto.
- Hello – respondi tentando fazer minha mente se lembrar de todas as regrinhas básicas do
inglês. - I'm Tom. Remember me?
O telefone ficou mudo.
- I love you – foi o que ouvi quando Kemal encontrou sua voz.
- I love you so much – respondi deixando um sorriso brotar em meu rosto.
Relaxei.
Vinte e Quatro
O sol saía após uma noite congelante. Podia ouvir os pássaros sussurrando pela minha
janela a melodia de “Here comes the sun” dos Beatles, enquanto a letra “...os sorrisos voltaram aos
rostos, queridinha, parece que faz muitos anos desde que ele esteve aqui” me fazia levantar
radiante, cheio de felicidade e sorrindo para as paredes.
Permitir-se ser feliz, essa era a da vez.
Enquanto permanecia recluso em minha própria solidão afastando as pessoas uma atrás da
outra, vivi grandes desilusões e nunca alcancei a totalidade na felicidade. Mas a vida é curta demais
para não aproveitá-la da melhor maneira possível.
Existem pessoas boas no mundo. Pessoas que podem nos fazer bem e talvez sentir até algo
mais. Com a conversa que tive com Kemal noite passada não cheguei a jogar todas as minhas fichas,
mas a partir de hoje procuraria viver uma verdade com o que a vida me reservava. Para tanto,
procurei deixar claro que aceitaria sua oferta de emprego, mas que usaríamos o nosso tempo livre
para nos conhecermos melhor e ver se era isso mesmo que iríamos querer um do outro.
Depois que desligamos, voltei a ligar o computador e deixei claro em meu mural do
Facebook que loucura seria deixar minha felicidade por medo das coisas que poderiam dar errado ou
pelo que os outros poderiam pensar. Pela primeira vez eu sentia que o meu momento havia chegado,
aquele que eu devia pensar em mim, procurando a felicidade e o amor acima de tudo.
Mas pensar que seria uma tarefa fácil contar a novidade para minha família e acertar todos
os detalhes da viagem foi uma pequena ilusão que tive antes de descer para tomar o café.
Minha mãe terminava de passar o café e o aroma já tomava conta de todo o ambiente, e meu
pai lia o jornal sentado próximo à janela, uma cena típica de cinema daquelas famílias
convencionais. Meus irmão ainda não haviam se levantado e seria até melhor ter essa conversa
apenas entre nós. Depois que dei um beijo neles, sentei enquanto pegava um pão para passar
manteiga e soltei logo a bomba.
- Recebi uma oferta de emprego.
Meu pai voltou sua atenção para mim e franziu a testa.
- Como assim? Alguém te ligou uma hora dessas para te propor um trabalho?
- Não, recebi a ligação ontem a noite – preferi omitir a parte de que era eu que havia ligado.
- Lembra daquela empresa que me contratou para trabalhar de intérprete na Feira do mármore?
Então, surgiu uma vaga na equipe deles e o rapaz que trabalhou comigo me indicou. Por isso que me
ligaram tão tarde, a empresa fica na Turquia e o fuso horário é diferente.
- Que bom filho, você vai trabalhar em que? - perguntou minha mãe me incentivando.
- A vaga que abriu foi de representante comercial. O outro cara que trabalhava com esse que
me contratou foi transferido para outro cargo, então eles me ofereceram a vaga.
- E isso faz exatamente o que? - essa era a pergunta que eu temia.
- Representamos a marca em feiras por todo o mundo. O serviço exige disponibilidade para
viajar e um inglês fluente. Todas as despesas dessas viagens são por conta deles, o salário é
considerável e claro, a experiência é única.
- Que bom meu filho – falou minha mãe.
Tudo bem, meus pais estavam sendo legais e receptivos com a notícia, mas pela conversa
que projetei em minha mente, havia bem mais lágrimas, tensão e até uma discussão acalorada.
- Acho que vocês não entenderam bem como funcionará o meu serviço – disse com firmeza.
- O trabalho exigirá que eu viaje pelo mundo todo durante um tempo indeterminado e provavelmente
verei vocês poucas vezes ao ano.
- É isso o que você realmente quer? - perguntou meu pai com aquele tom de sabedoria que
só os mais velhos sabem utilizar.
- Acho que sim – falei meio em dúvida.
- Então por que iríamos contra sua decisão. Você já é maior de idade, graduado, encontra-se
desempregado e tem nas mãos uma grande oportunidade para viver experiências únicas como você
mesmo disse. Por que então não te apoiaríamos?
Procuro algo para dizer para que a converse se encaminhe para o que eu havia projetado,
mas não encontro nada, por que pensando bem não era isso o que eu queria, conquistar minha
independência sem ficar mal com meus pais. Sorri agradecido para eles e me emocionei quando
minha mãe veio me abraçar e senti algumas lágrimas molhando o meu ombro.
- Vamos sentir muita falta de você, filho. Mas queremos sempre o melhor para você. Que
Deus te abençoe nessa sua nova jornada e cuide do meu menino enquanto eu não puder cuidar.
Não consegui parar de chorar enquanto tomava meu café. Estava feliz por meus pais terem
aceitado minha mudança numa boa, feliz por ter conseguido esse emprego, feliz por saber que Kemal
ainda me amava e feliz por poder dizer adeus a esse lugar. Mas ao mesmo tempo estava triste. Todo o
meu passado ficaria para trás, aquelas ruas onde vivi todas as minhas experiências marcantes
ficariam apenas na lembrança e algumas pessoas sairiam da minha vida.
Mas a vida era assim, se ficarmos preso relendo os capítulos anteriores, nunca daremos
oportunidade para um novo capítulo ser escrito em nossa história. É preciso abrir mão de algumas
coisas para ganhar outras melhores.
Sair do conforto e da comodidade da casa dos meus pais, no começo seria bem difícil. Não
teria o café prontinho assim que eu acordasse, o almoço não estaria me esperando quentinho no
horário habitual, minhas roupas não ficariam tão macias após a lavagem, o cheiro dos móveis se
perderiam em minhas lembranças e a bagunça da convivência fraternal entre meus pais, meus irmãos
e eu será algo que me motivará a voltar para casa nas minhas folgas e feriados importantes.
Estou crescendo.
Eu não podia acreditar que em alguns dias eu embarcaria para a Turquia. De todos os
lugares que já havia pensado em conhecer, esse era um dos que nem sonhava aparecer em minha
seleção. Ainda tinha tantas coisas para serem feitas, mas, pelo menos, dessa vez eu estava certo do
que faria. Começaria arrumando minhas malas, daria um pouco de trabalho selecionar as coisas mais
úteis para levar comigo, pois não conseguia nem imaginar o que levaria comigo para um país quase
do outro lado do mundo. Teria também que acertar minha situação no curso, felizmente ele serviu
para algum propósito, pois desde que voltei de Vitória já não sentia mais vontade nenhuma em
continuar frequentando-o. Não daria satisfação alguma para Luara ou pra qualquer outra pessoa
daquele lugar, apenas agradeceria cordialmente meu professor por ser o mediador que fez o meu
encontro com Kemal acontecer e assim me desvincularia totalmente da minha turma de Turismo.
Por volta das 16h45, meu quarto parecia uma zona de guerra. Não havia nenhuma parte do
chão que não estava coberto por alguma peça de roupa minha. De qualquer forma, eu me encontrava
no meio daquela bagunça. Pouco antes de começar a me arrumar para ir para o curso, coloquei a
última peça de roupa na pilha de doações com aquelas roupas que sabia que nunca mais usaria, que
minha mãe levaria para a caridade da igreja. Minha mala também estava quase pronta e olhando para
tudo aquilo, parecia que eu ia partir no dia seguinte.
Minha despedida tinha que ser com classe. All star de cano médio estampado, bermuda
jeans rosa, camisa branca sem estampa e camisa de botão xadrez para ser usada aberta por cima. A
combinação estava formada para chamar a atenção em meu último dia de curso. Esse era um sinal
que não me importava mais com o que os outros pensavam de mim, afinal, todos continuariam
levando suas vidinhas medíocres nesse lugar enquanto eu voaria pelos quatro cantos do mundo
vivendo experiências que ninguém jamais sonhou em viver.
Mas, então, Luara aparece linda e reluzente desfilando pelos corredores com uma aura de
luz ao seu redor.
Porra, por que me sentia desse jeito em relação a ela?
Quando ela me alcançou, eu achei que ela me abraçaria e me beijaria como acontecia todos
os dias antes da cena que havia visto no domingo, mas ao contrário disso ela só estendeu a mão em
minha direção, um gesto ainda mais estranho, já que hoje em dia ninguém cumprimentava outras
pessoas assim.
- Preciso conversar com você – disse ela.
- Acho que não tenho nada para falar com você – falei como uma criança que fazia pirraça.
- É sério – insistiu. - Preciso fazer com que você entenda o por que fiz aquilo.
- E já não foi bem clara quanto a isso. Aquilo que aconteceu já foi bem explicativo.
- Você está agindo como uma criança mimada.
- E você como uma vadia mesquinha – soltei sem conseguir controlar minha língua.
Ela me olhou assustada.
- Me desculpe, não queria ter dito isso – falei com sinceridade.
- Tudo bem, dá para entender o que está sentindo. Mas não queria que você tivesse visto
aquilo. Não queria te fazer sofrer e muito menos te enganar dessa forma – disse ela se inclinando na
minha direção. - Eu realmente agi como uma vadia insensível.
- É mesquinha – falei sorrindo.
- Isso, mesquinha – frisou enquanto sorria. - Mas agora, falando sério, quero ser honesta
com você. Já fazia um tempinho que também nutria esse sentimento que você sente por mim. Quando
tivemos aquela primeira briga meu coração se partiu em um milhão de pedaços e foi com a sua
ausência que percebi o que estava sentindo. Então você começou a namorar com Eliana...
- Mas isso...
- Por favor, deixa eu terminar primeiro, depois você fala – disse com firmeza me cortando. -
Logo depois você desapareceu por alguns dias e quando voltou parecia estar diferente. Estávamos de
boa novamente, e mesmo dando alguns sinais de que estava interessado em você, parecia que você
não correspondia ao que sentia. Foi então que Eliana, acho que por inveja e ciúmes da nossa amizade
me mostrou uma conversa que vocês tiveram pelo Whatsapp onde você dizia claramente que, abre
aspas, você nunca ficaria comigo. Éramos apenas amigos. Então senti o chão se abrindo sob mim.
Estava tudo muito confuso. Eu estava muito confusa.
Luara fez uma cara de sofredora.
- Do nada então você solta aquela bomba sobre mim, sem aviso prévio, sem preparar o
terreno e sem qualquer sutileza. Simplesmente falou que me amava e pela forma com que tudo
ocorreu, a impressão que tive era de que você queria que eu jogasse tudo para o ar para ficar com
você.
- E não teria sido perfeito?
Ela balançou a cabeça.
- Isso dói. Pois apesar de estar com você fosse bem melhor do que estar com o meu
namorado, não conseguia ver segurança em uma relação entre nós dois. Então te cortei todas as vezes
naquele dia e quando cheguei em casa pensei, pensei e pensei mais um pouco.
- Foi então que decidiu ficar comigo.
Ela me fulminou com o seu olhar e me calei na hora.
- Foi então que decidi ficar com você – falou suspirando enfastiada. - No começo queria
apenas saber como seria ficar com você, como era o seu beijo e se tudo aquilo que sentia tinha algum
fundamento. Só que não foi uma boa ideia, pois depois do nosso primeiro beijo confirmei todas as
minhas suspeitas: eu estava apaixonada por você.
Seus olhos se estreitaram.
- O que dificultaria todo o processo, pois já havia decidido que não terminaria o meu
namoro para ficar com você até ter certeza de que você também sentia o mesmo por mim. Então
comecei a levar essa vida dupla com meus dois relacionamentos. Em cada beijo, cada conversa e
cada momento que passávamos juntos sentia que ficar com você seria a escolha certa, mas, e sempre
tem um “mas”, havia aquela questão que sempre voltava a minha mente, o seu affair com outro
homem. Sei que é bobeira, mas sei lá, vai que...
Ela deixou a frase morrer no ar e me olhou nos olhos. Percebi que era a minha vez de falar
alguma coisa.
- Não tive muitas relações ao longo da minha vida – admiti, como se estivesse confessando.
- Mas em todas elas eu sempre fui o que se entregava mais. Quando me declarei para você, realmente
estava sendo sincero com os meus sentimentos, só que sei que era muito cedo para falar que te
amava, pois o amor exige realmente conhecer o outro. E para não ficar nenhum mal entendido entre
nós, a mensagem que enviei para Eliana realmente era verdade... naquela época, pois eu estava
curtindo ser seu amigo e sabia que se algo acontecesse entre nós e não desse certo, nunca voltaríamos
a ter o que tínhamos antes. Então ela me perguntou e fui sincero com ela. E quanto a essa outra sua
preocupação em relação a essa minha aventura gay, jamais ficaria com qualquer outra pessoa se
estivesse com você. Se tem uma coisa pela qual sou apaixonado é pelo ser humano, qualquer dor ou
sofrimento que alguém passa perto de mim eu sofro junto. E você é humana. Sofreria o triplo se eu
visse que eu faria você sofrer por mim.
Luara assentiu vigorosamente.
- Nas depois do que aconteceu domingo as coisas mudaram. Nunca pensei que estava
fazendo parte de um sorteio, onde você ditava as regras escrevendo em uma lista os meus pontos
positivos e negativos e comparando com os do seu namorado, para ver qual seria mais viável
permanecer a relação.
- Eu não queria que a situação chegasse a esse ponto.
- Claro, ninguém gosta de ser pego no erro – falei em tom de crítica. - Mas agora não
importa mais.
- Óbvio que importa, quero ficar bem com você – disse ela em tom de súplica.
- Não falo sobre nossa relação. Para mim tanto faz você continuar o seu namoro com o seu
namorado, pois não ficarei aqui por muito tempo.
- Como assim não ficará aqui por muito tempo.
- Não é da sua conta – fui rude com ela propositalmente, - mas vou dizer mesmo assim.
Recebi uma oferta de emprego da firma que trabalhei na Feira do mármore, e em alguns dias viajarei
para a Turquia onde começarei meu novo trabalho.
Aquilo não havia durado nem um minuto. A expressão que Luara deixou por alguns segundos
em seu rosto serviram para partir meu coração ao meio. Não era minha intenção fazê-la sofrer, mas
ainda estava com raiva do que ela havia me feito. Só que não esperava que sua dor me causasse dor
também.
Sem prever seus movimentos, nossos olhares se cruzam. Fico olhando para a intensidade da
cor de seus olhos tentando descobrir o que se passa em sua mente. Ela pisca uma... duas... três vezes.
Umedece seus lábios com a língua.
Espero pelo que vai acontecer.
Nos aproximamos e nossos lábios se encontram.
Consigo sentir as bastidas do coração dela pelo meu peito pressionado contra o dela. O
mundo parece deixar de existir e não consigo ouvir nada além do barulho de nossos corpos.
Estávamos em êxtase.
- Por que isso? - perguntei enquanto nos afastávamos.
- Só para ter certeza – respondeu ela.
Fiquei um pouco irritado com sua resposta.
- Você não tem esse direito de ficar brincando com os meus sentimentos. Você sabe o que
sinto por você e se aproveitar disso é baixo, quase imoral.
- Vai dizer que não gostou?
- Isso não vem ao caso – falei exaltado. - Ser enganado, iludido e sim, traído, já é bem ruim.
Mas alimentar uma esperança que não existe é bem pior. Não posso mais mudar meus planos por
você, vou dar uma chance para a minha felicidade.
- Viu como a vida se encarregou de trazer a resposta para os meus medos. Ela viu que você
não seria bom para mim a longo prazo e deu um jeito de te tirar antes de causar maiores estragos.
- Você não está sendo justa comigo – comentei com uma pontada de tristeza em minha voz. -
Se ficássemos juntos eu nunca iria te fazer mal. Mesmo que nós tivéssemos nossos problemas, já que
nenhuma relação é perfeita, encontraria um jeito de fazer com que as coisas não impactasse tanto
nosso relacionamento. Seríamos felizes.
- Você não pode garantir isso – disse ela em tom de crítica.
- E agora nem posso provar também – suspirei enfastiado. - O tempo é nosso inimigo.
Sem ter mais o que dizer, dei as costas para ela e comecei a caminhar em direção a nossa
sala para explicar ao professor o motivo da minha desistência do curso. Assim que dei cinco passos,
ouvi-a chamar meu nome.
- Tom, espere – ela correu até mim e agarrou o meu braço. - Não vai fazer muita diferença
agora, mas não estou mais namorando, e agora estou sendo sincera.
Vinte e Cinco
Eu poderia dizer que a vida estava começando a entrar nos trilhos certos, mas, se eu
dissesse, estaria mentindo. Luara demorou menos de vinte segundos para implantar uma dúvida em
mim e agora minha cabeça estava em curto. Já ouvi dizer que quando chegássemos em uma
encruzilhada, o melhor a se fazer era seguir o seu instinto. Mas também ouvi dizer que a intuição
podia muito bem ser distraída pelo medo, a insegurança, com as dúvidas e também com a nossa
própria esperança.
Nas mãos, tinha duas possibilidades de futuro para escolher. Duas pessoas que me faziam
bem de formas diferentes. Dois amores completamente distintos.
Na mesma noite liguei para Kemal e passei horas conversando com ele sobre todas as
minhas inseguranças. Em momento algum ele achou que eu estava sendo fraco por dar espaço à
dúvida em nossa futura relação. O medo fazia parte do desconhecido. Seu conselho foi me mandar
ser honesto com o meu coração.
Então, pela primeira vez em muito tempo, peguei meu caderno que usava para levar para o
curso e uma caneta esferográfica azul. Apoie-o sobre a mesa do computador e comecei a rascunhar
uma carta. A primeira saiu um garrancho, não só pela letra desmazelada, mas pelo conteúdo insosso,
sem emoções e que não queria dizer nada. Rasguei a folha, fiz uma bolinha e tentei acertar o cesto de
lixo que ficava do outro lado do meu quarto, mas sou péssimo de mira. Fiz uma nova tentativa e
apesar de ter melhorado minha caligrafia, o conteúdo continuava bem impessoal. Não parecia sair de
mim.
Estalei os dedos. Pensei em algumas técnicas de escrita. Lembrei das atividades que meus
professores passavam nas aulas de redação quando sorteavam outro colega de classe para que
redigíssemos uma epístola a ele contando como havia sido nossas férias ou coisa do tipo. Tentei me
inspirar nos filmes românticos que giravam em torno de cartas, como “Cartas para Julieta” ou
“Querido John”. Coloquei algumas músicas tristes para ouvir. E contudo a inspiração não aparecia.
Ouvi batidas na porta e abandonei essa tarefa por alguns minutos. Meu pai entrou
acompanhado de minha mãe e me entregou as passagens de ônibus para chegar à capital, onde fica o
único aeroporto do estado, e a passagem aérea. Pego-as e sinto o peso de cada uma delas em minhas
mãos. Minha mãe ofega. Eu sinto vontade de chorar. Sei que ambos estamos pensando a mesma coisa.
De alguma forma é inevitável pensar que daqui a seis dias estarei saindo de casa para viver a minha
vida, deixando para trás minha família. Nós três nos abraçamos, e sem dizer nada, choramos em
silêncio.
Quando volto a ficar sozinho, a tristeza permanece ao meu lado. Pego a caneta em minha
mão, coloco as passagens de lado, e palavras vão se desenhando no papel. Enquanto isso acontece,
meus pensamentos trabalham rápido e lembranças dos meus momentos com Luara e Kemal dançam
em passos complicados, como os do tango, me fazendo perceber que será difícil dizer adeus a um
deles. Mas já estou certo da minha decisão.
Os dias passaram em seu ritmo normal e aproveitei cada segundo deles para ficar com
minha família, pois sei que sentirei muitas saudades e no começo será difícil suportar ficar longe de
casa. Minha mãe tenta não chorar quando está perto de mim, mas sempre percebo seus olhos
vermelhos e meu coração se dilacera todas as vezes.
Ao longo desses últimos dias que fiquei em minha cidade, enviei uma mensagem de texto
para Luara – pois não queria ouvir sua voz para correr o risco de não voltar atrás em minha decisão,
- pedindo para que ela me encontrasse na rodoviária uma hora antes da minha partida.
Então era isso.
Tudo estava pronto.
Assim que amanhecesse, um novo ciclo começaria em minha vida.
Um dia cheio de promessas, onde pela primeira vez usaria minhas palavras como uma arma,
mas seriam recebidas como munição pesada. Difícil seria definir o alvo, mas no momento certo não
me acovardaria e diria tudo o que fosse preciso.
Peguei meus bilhetes, desci com minhas malas, meus pais me acompanharam até a
rodoviária, fazendo companhia no táxi que havia me buscado e minutos depois esperava o ônibus no
terminal marcado. Faltavam ainda uns quarenta minutos para o horário do embarque, mas nunca
gostava de chegar atrasado a lugar nenhum por causa da minha ansiedade, então fiz de tudo para sair
no horário marcado.
Também tinha outro motivo para eu ter chegado ali com antecedência. Na mensagem que fiz
a Luara marquei com ela de me encontrar ali, pois tinha uma última coisa a dizer para ela. Antes que
eu fosse embora, antes que minhas novas experiências mudassem o que sentia por ela e antes que ela
passasse a fazer parte apenas do meu passado, ao qual não me apegaria para dar oportunidade a
felicidade me encontrar no futuro.
Os ponteiros do relógio que ficava no centro do terminal não davam trégua e de sessenta em
sessenta segundos um novo minuto passava, fazendo assim a hora da partida chegar. Minha mãe,
emotiva como sempre, não conseguia conter sua emoção e chorava como uma criança que sabia que
acabara de perder o seu brinquedo preferido. Não que eu fosse o filho preferido dela, pois o amor de
mãe era igual para todos, mas eu sempre fui o mais apegado a ela. Então meus olhos ardiam só de vê-
la daquele jeito. Por um momento, passou pela minha cabeça essa coisa toda, a relação mãe e filho, e
lembrei de uma música sertaneja que ficou famosa uns anos atrás quando os cantores descreviam o
início de sua jornada, recebendo todo o apoio de sua mãe. Abracei-a forte e deixei as lágrimas
escorrerem pelo meu rosto.
Vez ou outra olhava para a entrada da rodoviária para constatar se Luara não estava vindo, e
todas as vezes só avistava rostos desconhecidos. Ela não viria!
Passaram dez, vinte, trinta, trinta e cinco minutos e sempre que me dava conta de que a hora
da minha partida estava mais próxima, sentia meu coração ficar apertadinho em meu peito,
murchando como uma uva passa.
Se ela ao menos soubesse o que eu diria a ela...
Por fim não havia mais nada a fazer. O embarque fora anunciado pela voz metálica saída dos
alto-falantes, fui para a fila do embarque e antes de entregar minha passagem para o motorista
conferir para liberar minha entrada, voltei para os meus pais, dei um último abraço apertado em cada
um ouvindo seus conselhos para me cuidar e visitá-los sempre que possível, e também para fazer um
último pedido ao meu pai.
E agora voltamos ao ponto principal disso tudo.
Lembram da história da carta e da primeira pergunta direta que fiz a você:
O que você faria se uma carta endereçada a alguém caísse em suas mãos para levá-la até o
receptor, mas sem querer você descobrisse que o conteúdo não era tão agradável assim.? Tentaria
esquecer que viu aquilo e daria prosseguimento ao envio da correspondência, mesmo sabendo que
aquilo magoaria muito aquela pessoa, ou jogá-la-ia no lixo dando-a como extraviada para aliviar
essa pessoa de talvez passar por um momento de decepção?
Você está com o poder da decisão. Magoar alguém ou poupá-lo?
Tirei do bolso do meu casaco a carta que havia escrito há alguns dias e entreguei ao meu
pai, fazendo a minha escolha. Expliquei muito bem onde deveria ser entregue e pedi para que ele não
desse nenhuma informação sobre mim para ninguém a partir daquele momento.
Dei o beijo de adeus em meus pais e me juntei aos passageiros que subiam um a um para os
seus lugares. Na poltrona que dava para a janela bem no fundo do ônibus, fiquei olhando para eles
abraçados dando tchau para mim, em qualquer outro momento acharia aquilo meio bobo, mas não
nesse. O passarinho havia aprendido a bater as asas e voava para longe do seu ninho.
Esse é o antes, um grande furacão. Uma bagunça.
Me desliguei do mundo durante a viagem depois que coloquei meus fones de ouvido. Chorei
ao lembrar dos meus pais e irmãos. Chorei por conquistar pela primeira vez algo grande em minha
vida. E chorei por saber que nunca poderia ter Luara da forma como queria. Aquela carta selava o
nosso destino, e mesmo que no futuro nos reencontrássemos, não havia nenhuma chance de ficarmos
juntos.
Não nascemos para sermos almas gêmeas. Muito menos afins.
Como um balão de gás que sofre muita pressão, nossa amizade ficou bonita por algum tempo
e depois, não resistindo as adversidades, explodiu deixando apenas retalhos de algo que poderia ter
se transformado em uma coisa maior.
Não éramos mais amigos.
Sempre fomos “quase”.
O que não foi suficiente para que se tornasse infinito.
Agora, buscaria o meu infinito em outra vida... mesmo depois de tantas mágoas e decepções
eu queria sentir o amor e sabia muito bem quem me mostraria isso.
Ele seria o meu tudo.
Para sempre!
Epílogo
Quando abri aquele envelope com dobras profundas no meio, era como acordar dentro de
um pesadelo. Duramente li palavra por palavra que metralhavam minha alma com balas de prata, nem
o ser mais forte da terra sobreviveria aquilo.
No fim eu só queria encontrar um verdadeiro amor e acabei destruindo as duas
possibilidades que tinha, sendo uma verdadeira vadia mesquinha, como Tom havia falado. E em
nenhum só momento posso tirar a razão dele, pois o que eu estava fazendo era errado, deixar que
duas pessoas ficassem apaixonadas por mim para depois eu escolher qual seria a melhor para ficar.
Se eu lesse tantos livros como ele, poderia dizer que minha vida parecia ter sido tirada de um deles.
Fato é, agora eu estava sozinha.
Mas havia algo pior que isso.
Ele iria embora pensando que eu era a pior pessoa do mundo, algo que machucaria toda vez
que eu lembrasse. Mas em minha memória Tom ficaria guardado na seção das pessoas especiais da
minha vida. Ele não chegou a ser um grande amor, nem mesmo um namorado fixo. Sua passagem em
minha vida foi apenas um flash de algo que poderia ter se tornado grande, mas não cabia a mim
prendê-lo, fazendo com que perdesse a grande oportunidade de sua vida.
Para mim, Tom seria sempre um grande amigo.
Ou quase.
[1]
Não há outra estrada, não há outro caminho, nenhum dia, a não ser hoje.
[2]
Best friend forever gay – melhor amigo gay para sempre