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J.J.

CABRAL
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Copyright© Julia Cabral

Este e-book é uma obra de ficção. Embora possa ser feita referência a eventos
históricos reais ou locais existentes, os nomes, personagens, lugares e
incidentes são o produto da imaginação da autora ou são usados de forma
fictícia, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas,
estabelecimentos comerciais, eventos, ou localidades é mera coincidência.

Capa: Y3Y Assessoria


Revisão: Independente
Diagramação: Y3Y Assessoria
SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
EPÍLOGO
PRÓLOGO

Ela olhava para mim como se tivesse acabado de encontrar a solução mais
incrível do mundo. A cura para o câncer. Como se tivesse construído a
tecnologia mais inovadora dos últimos tempos. E eu conhecia aquele olhar.
Aquela determinação. A maluquinha não iria desistir até que eu dissesse sim.
Mas era a proposta mais absurda que já tinha me feito.
— Não! Nem pensar! Sempre achei que fosse doida, mas agora tenho
certeza — deixei escapar com um tom de voz que era mais um grunhido do
que qualquer outra coisa.
— Você não está enxergando a situação pelo prisma correto. Eu acho
que... — Se ela usasse óculos, pareceria uma professora ou uma cientista
compenetrada, explicando ao mundo sua mais nova invenção, com o dedo em
riste e a expressão solene.
— Que porra de prisma, Amanda? Isso não vai mudar a sua situação.
Poderia te dar mais alguns dias, o que não adianta de nada.
— Mas é exatamente o que eu preciso! Algum tempo para pensar. Para
decidir...
— Decidir? — Colocando as mãos na cintura, eu dei uma risadinha
sarcástica. — Depois do que acabou de acontecer, eu deveria me sentir
insultado que ainda precise escolher.
— Depois do que quase acabou de acontecer — ela corrigiu em um tom
bem baixinho. — Além do mais, não é uma decisão simples. Há muita coisa
envolvida.
— Claro que há. Eu e você temos uma história. E uma bem inacabada,
pelo que pude ver aqui.
— E se for só tesão, Murilo? Nós éramos adolescentes e...
Aquilo me deixou puto. Puto de verdade. Eu a amava. Nunca deixei de
amar. Não confundiria um sentimento como aquele com algo físico. Eu não
era esse tipo de cara. Mas se ela preferia acreditar nisso e pensar daquela
forma, assim seria.
— Chega, Amanda! A resposta é não. É o tipo de coisa que eu nunca
faria, não importa o quanto você implore. — Comecei a caminhar na direção
da porta, pronto para ir embora e me afastar daquela loucura toda. No entanto
eu sabia que se ficasse mais tempo, acabaria concordando com aquela merda
toda.
— Mas, Murilo...
— Sem mas. Você já fez sua escolha aqui e agora. Não quero ser cobaia
de ninguém.
Saí batendo porta com força, sentindo-me puto da vida. Se eu tinha o
direito disso? Provavelmente não, mas ninguém poderia me culpar. Eu estava
com o coração partido, e, sim – por mais difícil que fosse admitir –, com o
ego um pouco ferido.
Entrei na minha caminhonete com a decisão tomada. Eu não iria cair nas
loucuras de Amanda, porque elas sempre me colocaram em encrencas.
Só que também foram o motivo pelo qual me apaixonei desesperadamente
por ela.
Enquanto eu dava partida no carro, mal fazia ideia de como as coisas
mudariam... de como minha decisão naquele dia seria alterada, porque eu era
um babaca que ainda caía de quatro pela namoradinha de adolescência.
Patético? Eu sei... mas essa é a nossa história...
CAPÍTULO UM

O som dos saltos do meu Louboutin ecoava pelo piso elegante do


restaurante. Localizado em um dos bairros mais nobres do Rio de Janeiro,
cada prato era tão caro que alguém poderia negociar um rim em bom estado
para pagar a conta. Felizmente, há sete anos não era um problema para nós.
Desde que a sorte começou a sorrir para a minha família, almoços e jantares
como aqueles eram frequentes. Meus pais não mediam esforços para aparecer
em locais onde poderiam ser notados.
Novos ricos – era a expressão. A maioria a usava com certo desdém, e era
essa imagem que minha mãe queria eliminar como quem decide que quer
matar uma barata inconveniente dentro do box do banheiro. A determinação
dela era inabalável e acabou sobrando para mim.
Não que eu pudesse reclamar do meu destino. Estar prestes a se casar com
o único herdeiro de um dos homens – já falecido – mais ricos do país – além
de não ser nada desagradável de se olhar – era algo a se comemorar. E nós só
estávamos juntos há cinco meses. Um relacionamento relâmpago, e eu fui
pedida em casamento.
Uhu! Sorte a minha. E sorte da minha mãe que ficou extasiada com a ideia
de eu carregar um sobrenome como Gauthier no Brasil.
João Pedro Gauthier III. Um nome e tanto, não é?
Pois é, meu futuro marido. Louro, alto, corpo atlético, olhos azuis, um
príncipe nórdico.
Ah, eu tinha muita sorte.
Fui guiada pela hostess até a mesa que eu deveria ocupar, e um menu me
foi entregue. O almoço, naquele dia, era com a minha mãe, e ela já estava
com uma carta de vinhos na mão. Eu era um pouco fraca para álcool, mas iria
acompanhá-la.
— Mandy, você sabe que pêssego não é uma cor que te valorize. Você é
muito branquinha — ela comentou. Eu estava usando uma blusa naquele tom,
de seda, com uma calça social preta. Quando me olhei no espelho, antes de
sair de casa, jurei que estava extremamente apropriada. — Sabe que sua cor é
o azul, para valorizar seus olhos.
— Mas não posso encher meu closet de roupas da mesma cor, mãe —
falei com um sorrisinho falso, bebericando um pouco da água Perrier que ela
tinha pedido para nós duas.
— Não, mas também não precisa errar tanto. — Uau! Que lisonjeiro. Mas
preferi nem comentar. Aquela era a minha mãe. Ou ao menos era desde que
nossa vida deu uma girada de trezentos e sessenta graus. — Vou te passar o
contato de uma personal stylist maravilhosa que uma das amigas do clube
recomendou. Agora que vai se tornar uma Gauthier, precisa agir como tal.
Assenti, ainda bebendo da minha água. Eu não ia perder tempo discutindo,
porque sempre era inútil.
Com o meu silêncio, minha mãe se deu por vencida e abriu a carta de
vinhos com um sorriso.
— Como é bom poder escolher sem olhar os preços — cantarolou como
se estivesse em um musical da Broadway, só que em uma versão menos
afinada. Isto era algo que ela dizia há sete anos. Uma ladainha da qual nunca
se cansava. — Nunca mais quero ser pobre, Amanda.
— Nunca fomos pobres, mãe. Nunca passamos fome — era algo que eu
dizia para provocá-la. Claro que gostava de ser rica. Muito. Quem não
gostaria?
Aos dezesseis anos, quando meu pai recebeu uma herança de um tio
afastado, que consistia em algumas propriedades, muito dinheiro no banco e
uma empresa muito bem-sucedida do ramo de laticínios, fui apresentada a
uma vida de princesa. Consegui estudar em uma boa escola, fazer um pré-
vestibular de qualidade e passei para uma faculdade federal, estudando
Publicidade e Propaganda. Minha mãe queria que eu fizesse Direito,
Medicina ou algo assim renomado, que me daria um título de doutora, mas
preferi seguir meus instintos. Meu pai ficou muito feliz, porque eu decidi
trabalhar com ele na empresa, e as coisas iam muito bem, obrigada.
— Quem não é rico, é pobre. Esta é a minha prerrogativa. — Cheia de
desdém, ela ergueu a mão para chamar o garçom, fazendo seus pedidos. Ela
escolheu uma salada com salmão, e eu pedi uma massa, o que rapidamente a
fez retorcer a cara. — Deveria tomar mais cuidado com o que come, querida.
Esse seu corpinho não vai durar para sempre. Além do mais, com a sua
altura, qualquer ganho de peso é fatal.
Esta era outra ladainha que ela sempre repetia, porque vivia de dietas,
embora não houvesse um pingo de gordura no seu corpo esbelto. Ela era mais
alta que meu pai, a quem provavelmente saí. Eu media um metro e cinquenta
e cinco e meio de altura. O “e meio” era importante. Só que pesava uns
quarenta e sete quilos, ou seja, eu era magra. Tinha curvas, que eu gostava,
fazia exercícios constantemente... Ou seja, era uma mulher saudável. Não era
isso que importava?
Não para a minha mãe.
— O vestido estava largo na última prova. Posso me dar ao luxo de
engordar um pouco — falei, dando uma checada no meu celular. João Pedro
não gostava muito quando eu demorava para responder suas mensagens.
No início isso me enchia o saco. Ele foi meu primeiro namorado sério
desde... Bem... desde a adolescência, e minha primeira experiência deixou
certas marcas. Eram homens – se é que meu primeiro namorado podia ser
chamado de homem na época, já que mal tinha dezoito anos quando o deixei
– completamente diferentes. Só que minha mãe estava tão empolgada com
nosso relacionamento e vivia sempre defendendo João em tudo, que eu
acabei realmente acreditando que não conseguiria coisa melhor caso ele me
deixasse.
Provavelmente, se eu analisasse nosso relacionamento com mais atenção
veria que se tratava de algo meio estranho, mas, novamente, ele era um
partidão. Que mulher em sã consciência largaria um cara perfeito?
Mesmo uma que já teve o cara perfeito nas mãos...
Ok, não era hora de pensar nisso.
— Você sabe, por acaso, se João colocou algum dos amigos famosos e
importantes dele na lista de convidados? — Minha mãe fez a pergunta, mas
não estava nada focada em mim ao falar. Ela girava a cabeça de um lado para
o outro, como se procurasse algo ou alguém.
— Deve ter colocado — respondi sem muito interesse.
— Tem que colocar. Vai ser o casamento do ano, tenho certeza!
— Claro, claro — continuei não muito interessada. Aquela era uma
tradição entre mim e minha mãe desde que me mudei para um apartamento só
meu. Eu trabalhava com o meu pai, então o via todos os dias, mas com ela as
coisas eram mais agendadas. Tinha seu trabalho voluntário, os compromissos
com as mulheres do condomínio e as do clube, além das aulas de yoga, o
crossfit e suas sessões de beleza. Por isso, uma vez a cada duas semanas nos
encontrávamos para almoçar juntas.
Desde que fui pedida em casamento, no final do mês anterior, ela nunca
mais mudara de assunto comigo.
O garçom chegou para servir nosso vinho – um bem caro, diga-se de
passagem –, e eu agradeci com um sorriso, embora minha mãe nem tivesse
olhado para a cara do sujeito. Ela não se submetia a esse tipo de coisa.
Estávamos provando a bebida quando ela deu mais uma olhada ao redor.
Então finalmente sorriu, o que me deixou confusa.
Voltei-me na direção de seus olhos e vi um homem se aproximando de
nossa mesa. Jovem, usando óculos, cabelos meio revoltos, uma blusa de
flanela e uma bolsa carteiro. Segurava o celular na mão.
Minha mãe rapidamente levantou-se para recebê-lo.
— Camilo, que bom te ver! — Dois beijinhos para cumprimentá-lo, e eu
continuei meio perdida. — Ainda não conhece a minha filha pessoalmente,
não é? — Voltou-se para mim, apontando com um gesto exagerado. —
Minha princesa Amanda. Muito mais bonita do que nas fotos, concorda?
Fiquei sem graça, olhando para o cara, principalmente quando se inclinou
na minha direção para me dar dois beijinhos.
— Muito mais. João Pedro é um homem de sorte. — Com as duas
sobrancelhas erguidas, fiquei olhando do homem para a minha mãe e da
minha mãe para o homem, sem entender absolutamente nada. Ele pareceu
perceber, porque deu um sorriso sem graça e se explicou: — Sou jornalista.
Trabalho para aquele IG de famosos, o Babados Incríveis, sua mãe me ligou
dizendo que você estava disposta a nos dar uma entrevista para falar sobre o
casamento.
Olhei para a minha mãe, mais do que surpresa, chocada.
— Eu não estava... — comecei a falar, mas fui interrompida por D.
Carmem, que com certeza não queria que sua mentira fosse divulgada.
— Claro que ela está disposta. Eu posso dar uma palavrinha também, já
que estou muito empenhada na preparação de tudo.
Minha mãe adorava a imprensa. Eu, nem tanto. Ainda assim, acabei não
negando e comecei a conversar com o repórter, já me sentindo cansada. E o
casamento nem tinha acontecido ainda.
Mas tudo bem... eu era uma mulher de sorte.
Não era?
CAPÍTULO DOIS

Assim como minha mãe adorava a imprensa, João Pedro amava uma
badalação. E... bem, tinha dinheiro para gastar, não tinha? Ou seja, nossos
eventos eram sempre os mais disputados. Naquele momento, eu estava
sentada na cama enorme de sua cobertura no Leblon, apoiando-me com as
mãos no colchão, observando-o terminar de se arrumar.
Porque, sim, ele era mais vaidoso do que eu. Sempre brincava que no dia
de nosso casamento seria o noivo a se atrasar e não eu.
Seu cabelo loiro era bem liso, então ele costumava penteá-lo para trás,
com gel, dando-lhe um ar arrumadinho que eu não sabia se gostava. Mas
provavelmente o erro era meu. O homem era lindo, como eu poderia colocar
um defeito sequer em sua aparência?
— Estamos atrasados? — ele perguntou, ainda se olhando no espelho e
colocando uma dose extra de seu perfume Ralph Lauren, que era sua marca
registrada.
Chequei meu relógio de pulso.
— Um pouquinho — respondi, entediada.
Ele abriu seu sorriso de um milhão de dólares e cheio de dentes brancos
perfeitos.
— Ótimo. Não é de bom tom sermos os primeiros a chegar. Já te falei
isso, né?
— Algumas vezes — tentei soar brincalhona, porque também não era
justo apressá-lo.
— Ah, mas é sempre bom repetir. Você veio de outra realidade, né? Não
custa eu te dar um toque sobre regrinhas básicas assim. — Através do
espelho, ele deu uma piscadinha para mim.
— Não é nenhum segredo guardado a sete chaves no clubinho dos ricos. É
algo que sei desde pequena.
Ele sorriu meio sem graça, como se o que eu tinha acabado de falar não
tivesse a menor importância. Na verdade, podia jurar que não estava mais
ouvindo uma única palavra que saísse da minha boca.
Foram mais uns quinze minutos dele selecionando blazers em sua coleção
infinita, até que selecionou um azul escuro que combinava com sua camisa e
seus olhos. Ele tinha um excelente gosto, isso eu não podia negar.
Saímos de seu apartamento e entramos em seu carro do ano, partindo para
a festa. Aconteceria na casa de um jogador de futebol muito famoso, com a
presença de uma legião de celebridades e subcelebridades, que era o que João
mais amava. Ele queria ter algum talento em alguma coisa. Tentara a música,
tentara atuar – e até participara de uma novela em um papel pequeno –, mas
nada disso deu muito certo. Sendo assim, ele decidiu aceitar sua posição de
herdeiro milionário bonitão e estava feliz com isso.
Seus pais tinham morrido há alguns anos, mas ele não tinha interesse em
trabalhar na empresa de petróleo que o pai deixou. Ainda assim, lucrava e
muito com ela, deixando outras pessoas fazerem o serviço.
Aí você vai me perguntar: como me interessei por alguém assim? Bem... o
cara tinha uma lábia e tanto. Soube me conquistar, me seduzir, me encheu de
presentes e isso sem contar que meus pais o adoravam. Mais pelo que ele
representava do que pela pessoa em si. Mas era uma grande coisa, não?
E, para ser bem sincera, eu não tinha muitas expectativas em me interessar
por alguém de novo. Por mais patético que pudesse ser, meu coração ainda
estremecia quando eu me lembrava do meu primeiro e único namorado antes
de João.
Só que isso era passado. Eu o havia deixado no passado. Em outra cidade.
Em outra vida.
Uma vida que não mais me pertencia.
E eu tinha aprendido a amar João Pedro. Como não? Ele era divertido,
gentil, educado e...
Tinha um milhão de outras qualidades. Ele seria um ótimo marido. O
melhor!
Quando chegamos, a festa já estava lotada. João Pedro sempre tinha a
clara certeza de que seríamos o centro das atenções ao saltarmos e entrarmos
na casa, cercados pela imprensa, mas isso nunca acontecia. E olha que ele
tentava. Um ou outro repórter vinha nos cumprimentar e tirar uma foto, mas
nunca durava muito tempo, porque sempre alguém mais interessante surgia.
Uma influencer com mais de dez milhões de seguidores, um funkeiro da
moda, uma atriz que estava protagonizando a novela mais recente.
Isso não me incomodava, mas eu sentia João bem frustrado.
Já dentro da casa, aproximamo-nos de um grupo de pessoas que eram
convenientes para meu noivo e rapidamente nos dividimos, com mulheres de
um lado e homens do outro. Algumas delas eu já conhecia, de outros eventos
com João, e elas eram bem simpáticas. Não tínhamos muito em comum, mas
ainda assim elas não me faziam sentir como um peixe fora d’água, e eu até
conseguia me divertir.
Sempre havia um story a ser feito, algum vídeo para o Tik Tok, porque
elas gostavam de mostrar onde estavam, e eu era incluída, embora,
provavelmente, seus expectadores nem soubessem quem eu era.
Os homens estavam bem longe da gente quando as meninas, bem
embriagadas, começaram uma brincadeira de EU NUNCA e EU JÁ. Aquele
tipo de coisa nunca acabava muito bem, mas eu estava sóbria, então suspeitei
que não teria nenhum problema.
Uma das garotas encontrou papel e um pilot dentro da sua bolsa e fez
nossas plaquinhas. Peguei as minhas, quase com a certeza de que usaria
muito mais a EU NUNCA, já que não tinha exatamente uma vida muito
emocionante.
Tudo começou inocente, com perguntas engraçadas, e eu estava me
divertindo de verdade. Até que...
— Eu nunca senti tanto tesão por alguém ao ponto de não aguentar e fazer
sexo em um local público — uma delas propôs, com a voz já embolada, e a
maioria colocou EU NUNCA.
Claro que eu poderia mentir, mas estaria apagando uma fase deliciosa da
minha vida das minhas lembranças. Negar era como fingir que nada tinha
acontecido, e eu não queria isso.
— A escola conta?
Todos os olhos se voltaram para mim, surpresos. Aquela pergunta não
deveria ter sido feita em voz alta, mas quando dei por mim já era tarde
demais.
— Como assim, Amanda? Na escola?
Dei de ombros, tentando minimizar as coisas. Mas, pelo amor de Deus,
fazia sete anos, e eu ainda me lembrava como se tivesse acabado de
acontecer.
Eu e João Pedro tínhamos um relacionamento sexual bem saudável,
possuíamos química, mas nada se comparava ao que acontecera no passado.
Nunca me vi desesperada por ele como por ele.
— Foi meu primeiro namorado. As coisas entre nós eram... — Incríveis.
Perfeitas. Quentes. Ternas. Ele era o meu melhor amigo. Deixá-lo foi a coisa
mais difícil que fiz na vida. — Intensas. — Eu poderia ter usado qualquer
uma das palavras anteriores e muitas mais, mas foi aquela que meu cérebro
escolheu em uma decisão aleatória, como em uma roda da fortuna.
— Uau. Ele tinha quantos anos? — outra perguntou e, quando dei por
mim eu estava na berlinda.
— Dezessete. Mas não era nada sério. — Tentei sorrir enquanto contava a
maior mentira da minha vida. Era sério. Ao menos para nós dois. — Tanto
que ficou no passado. — Ergui minha mão direita, com o enorme anel de
noivado que havia ganhado de João. — Meu futuro é outro.
— É um ótimo futuro, querida. — Uma das meninas deu alguns tapinhas
no meu joelho, e eu continuei sorrindo, sabendo que era isso que esperavam
de mim.
Só que meu coração já estava apertado dentro do peito.
Tanto que quando meu telefone vibrou dentro da bolsa no meu colo,
minutos depois, e eu vi o DDD de José de Alencar, minha cidade natal,
cheguei a estremecer.
Que coincidência.
Sim, porque eu não queria pensar que era destino.
Quando atendi, a voz da minha prima, Ticiane, falou meu nome do outro
lado da linha, antes que eu mesma pudesse dizer qualquer coisa. Por um
momento... um mísero momento eu...
Mas, não. Ele provavelmente nem lembrava que eu existia. Fora uma
ilusão ridícula. Uma que durou pouco.
E também era melhor assim. O que poderíamos dizer um para o outro
depois de tanto tempo?
— Oi, Tici! — cumprimentei um pouco sem graça. Fazia algum tempo
que eu não falava com a minha prima. Ela recebera um convite para o
casamento, me mandara mensagem pelo Whatsapp parabenizando, e eu
respondi com um emoji por conta da pressa, o que eu odiava.
Nós duas costumávamos ser muito próximas quando mais novas; ela fora
minha melhor amiga, e assim como fiz com tantas outras coisas, ela meio que
ficou no passado. Com a diferença de que era parte da minha família, e eu
não podia – e não queria – arrancá-la da minha vida.
— Manda, é o vovô... Ele teve um infarto.
Ouvi todo o resto como se a outra pessoa estivesse debaixo d’água falando
comigo. Uma voz embolada, palavras indefiníveis, tudo era irreal.
Meu avô era feito de pedra. Era o homem da minha vida. Meu maior
amor.
Não era possível que...
— Manda? Tá ouvindo? — com seu jeitinho insistente, Ticiane
perguntou.
— Estou, prima. Vou sair do Rio agora e partir para José de Alencar.
Chego aí em algumas horas.
Minha prima ficou em silêncio por alguns instantes, enquanto eu já me
levantava de um rompante, fazendo novamente todas as meninas olharem
para mim.
— Ele está bem. Foi só um susto. Você pode vir amanhã de manhã. Não
precisa dirigir de madrugada.
O alívio percorreu minhas veias, e eu quase me permiti chorar. Mas não
era hora para isso. Quando estivesse do lado dele, olhando para aquela
carinha amada sorridente, me olhando com os olhinhos cheios de amor,
poderia me permitir algumas lágrimas, tanto de saudade quanto de medo de
perdê-lo.
— Não, eu vou agora. Nem adianta tentar me convencer.
— Nunca adiantou, né? Nós já estamos em casa, ok? Ele ficou no hospital
alguns dias, e eu sei que deveria ter te ligado antes, mas as coisas ficaram
confusas.
Engoli em seco, querendo não pensar que não estive do lado dele quando
precisou.
— Não tem problema, Tici, eu entendo. Vou falar com a minha mãe
também.
Ticiane não falou nada. Eu sabia muito bem o que ela estava pensando:
não faria muita diferença. Minha mãe não teria a mesma reação. Quando
decidira deixar seu passado de privações para trás, o pai dela ficou no pacote.
Fosse como fosse, despedi-me da minha prima e comecei a me preparar
para sair. Dei uma olhada ao meu redor, mas não encontrei João Pedro em
lugar algum.
Tentei ligar para ele, mas o celular estava na caixa postal.
Droga! Estávamos na mesma casa, mas o lugar era enorme. Como iria
encontrá-lo?
— Amanda, o que foi? — uma das garotas perguntou, então eu tive uma
ideia.
— Meu avô sofreu um infarto, e eu vou vê-lo. Vocês podem avisar ao
João? Estou com o celular, se quiser falar comigo.
— Claro. Vai lá.
Com um sorriso agradecido, eu realmente saí correndo, deixando tudo
para trás.
Meu avô era mais importante do que qualquer coisa, e precisava estar do
lado dele. Por mais que voltar para José de Alencar fosse algo que não
estivesse nos meus planos, eu teria que engolir o orgulho.
Era por uma boa causa.
CAPÍTULO TRÊS

A casa do seu Donato vivia aberta. Desde que eu me entendia por gente,
ele nunca fechara suas portas, porque gostava quando as crianças do bairro
entravam para lhe pedir doces. Seu pote estava sempre cheio de balas, de
bananada, suspiros e pirulitos. Nunca chiclete, porque ele dizia que podia
grudar no estômago se a gente engolisse.
Foi por culpa dele que eu nunca enfiei um único chiclete na boca.
Minha mãe sempre brigava comigo, porque dizia que era feio eu abusar de
sua hospitalidade e de sua generosidade, mas eu sabia que Seu Dodô, como a
gente o chamava, amava ter a casa cheia de crianças. Meninos e meninas que
adoravam ouvir suas histórias e que o chamavam de “vô”, mesmo que ele só
tivesse duas netas de sangue.
Era uma mania minha passar por aquela porta sem pedir licença. A
maioria das crianças acabara se dispersando ao longo dos anos, indo morar na
cidade grande, e as mais novas, que iam nascendo, pareciam sair cada vez
menos de casa para brincarem nas ruas, ficando presas a seus videogames e
computadores, então a casa do Seu Dodô não era mais tão frequentada.
Fiquei meio que com a incumbência de manter o movimento, desde que
Ticiane, a neta que morava com ele, se casara com meu melhor amigo e fora
morar em outra casa, embora perto. Não que o tivesse abandonado, porque
era uma garota e tanto, mas tinha suas coisas para fazer. E, para ser sincero,
não conseguia me desapegar.
Seu Donato fora a figura paterna que conheci, uma vez que meu pai
abandonou minha mãe quando ela descobriu que estava grávida durante a
escola. Fora ele que me ensinara a soltar pipa, andar de bicicleta e a jogar
bolinha de gude. Minhas melhores lembranças de infância e adolescência
tinham alguma ligação com ele – até mesmo a primeira garota por quem me
apaixonei.
Uma coisa na qual eu não queria e não podia pensar.
Naquele dia, portanto, quando entrei na sua casa por volta das seis, para
tomar um café, como sempre fazia, eu percebi que nunca tinha sentido tanto
medo na vida. Encontrar o homem que eu amava como um pai – ou um avô –
caído no chão da cozinha, com a mão no peito, quase me deixou em pânico,
paralisado. Só consegui me mover porque agir rápido em situações como
aquela era essencial. Por isso, levei-o nos braços para a minha caminhonete e
parti para o hospital.
Para a minha sorte, chegamos a tempo. Se Donato morresse...
Porra, eu não queria nem pensar nisso, porque esse tipo de coisa podia
atrair negatividade. Ao menos era o que minha mãe sempre dizia.
Fiquei com ele o tempo todo, assim como Ticiane e Afonso, seu marido.
Minha mãe nos ofereceu suporte de outra forma, e eu nem pensei em trabalho
– ou em qualquer outra coisa –, até que pude levá-lo para casa, dias depois,
são e salvo.
Amparei-o até colocá-lo na cama, o que o fez resmungar.
— Não sou um inválido, garoto. Me dê mais alguns dias, e eu te ganho
numa queda de braço. — Era sempre a mesma ladainha.
Quando eu era pequeno, Seu Dodô sempre me deixava ganhar. Depois
que cresci, os papéis se inverteram, e eu lhe dava a vitória.
— Isso eu não duvido — falei com um sorriso, feliz por ele estar ali me
dizendo aquelas coisas.
Ajudei-o a ajeitar a almofada, deixando-o mais confortável. Depois peguei
o controle da televisão.
— O que quer assistir? — perguntei. Provavelmente, por causa dos
remédios, ele dormiria em dez minutos, mas não entraria nessa discussão.
— Um bom filme de tiro.
Eram nossos favoritos. Quanto mais mentirosos, melhor.
— Ótimo. Pode ser uma série? Não assisti nenhum filme sem ser em sua
companhia, não saberia indicar.
— Claro que pode.
Escolhi uma que tinha assistido com minha mãe no início do ano passado,
que eu imaginei que ele ia gostar.
Deixei o controle na cabeceira da cama e me inclinei, deixando um beijo
em sua cabeça calva, com apenas alguns cabelos grisalhos.
— Descanse, Dodô. Nos vemos amanhã.
— Obrigado, garoto. Dê um beijo nas suas meninas por mim.
Sorri e saí do quarto, deixando-o lá.
Parti para a sala e encontrei Ticiane na cozinha, preparando alguma coisa
para comer. Já passava das onze, mas eu sabia que ela não tinha ingerido
nada.
Parei na porta, apoiando-me no batente, com os braços cruzados, olhando
para ela.
— Tem certeza de que não quer que eu passe a noite aqui? — Se Afonso
pudesse, ele ficaria com ela, sem dúvidas, mas era policial, seu pai era
delegado da cidade, e eu sabia que estava de serviço naquela noite.
— Tenho — ela respondeu, olhando-me por cima do ombro. — Qualquer
coisa eu te ligo, mas acho que vai ficar tudo bem.
— Vai sim. — Tinha que ficar. Era um susto grande demais para ser
seguido por outro tão recente.
Estava pronto para ir embora, embora não quisesse, de forma alguma,
afastar-me de Seu Dodô, mas Ticiane virou-se na minha direção, jogando o
pano de prato no ombro e se encostando na bancada da pia. Seu olhar me
dizia que tinha algo nada agradável para me dizer.
— Olha, preciso te avisar que acabei de falar com Amanda. Ela está vindo
para José de Alencar. Esta noite.
Tentei me manter impassível, com o rosto sem demonstrar nenhuma
emoção, só que a reação dentro de mim foi rápida. Senti minhas entranhas se
revirarem e o coração acelerar.
Mas que merda! Como era possível que a simples menção do nome dela
causasse tanto estrago? Já fazia sete anos. Sete malditos anos. Ela tinha
seguido com a vida dela, pelo que eu sabia, e eu ainda estava preso em
lembranças de adolescência. Como podia ser tão patético?
— Não sei o que ela vem fazer aqui — resmunguei como se fosse mais
velho até que Seu Dodô.
— Ver o avô. Ninguém pode negar que ela o ama. E você sabe disso.
— Se amasse tanto teria voltado para visitá-lo.
Eu sabia que Seu Dodô e Ticiane tinham feito visitas ao Rio de Janeiro
para passar algum tempo com a família por lá, mas Amanda nunca mais
voltara a José de Alencar. Era como se toda a cidade fosse uma mancha no
seu passado ou uma lembrança ruim. E isso me incluía, sem dúvidas.
— Não julgue as decisões da Amanda. Você foi meio babaca com ela na
época.
Não era uma mentira. Amanda não tivera escolha quando precisou sair da
cidade com os pais. Ela poderia ter ficado morando com o avô, como lhe
sugeri que fizesse, mas, pelo amor de Deus, a garota tinha dezesseis anos e a
promessa era a de uma vida de princesa. Boas escolas, boa faculdade, uma
casa que mais parecia um palácio. Por que iria preferir ficar na cidade
pequena por causa do namoradinho de infância?
Só que como o garoto impulsivo que fui, nunca consegui enxergar as
coisas dessa maneira. Permiti que fosse embora com nós dois brigados e
depois nenhum retomou o contato, por mais que Ticiane tivesse insistido que
poderia me dar o telefone dela.
Éramos muito jovens. Eu a conhecia desde que me entendia por gente.
Talvez tivesse me apaixonado por ela ainda criança, mas sempre jurei que
seria a única. Uma promessa que fiz quando perdemos a virgindade juntos,
meses antes de ela ir embora e de nunca mais nos vermos.
— Não importa o que aconteceu no passado. Só não sei o que ela vem
fazer aqui — mais um resmungo.
— É avô dela. E não podemos dizer que ela o negligenciou como a mãe
fez. — De fato, Ticiane estava certa. Até onde eu sabia, Amanda e o avô se
falavam sempre, e ela o ajudava financeiramente. A mãe, em contrapartida,
tinha vergonha de suas origens, o que era ridículo.
Mas quem iria me garantir que Amanda não tinha se tornado uma esnobe
também? Eu sabia que ela estava prestes a se casar. Minha mãe costumava
seguir alguns Instagrams de fofocas, e ela já tinha aparecido ao lado de seu
noivo metido à besta mais de uma vez. Claro que D. Sílvia sempre
compartilhava comigo as notícias, me olhando de soslaio para ver se eu ainda
me importava.
Eu me importava. Para caralho.
— Que ela faça uma boa viagem. E que vá logo embora. — De
preferência sem que esbarrássemos um no outro, aliás. Mas isso eu não disse
para Ticiane, que, aliás, abriu um sorriso como se ela fosse a pessoa mais
sábia do mundo.
Depois dessa, eu simplesmente saí da casa, sem nem me despedir, entrei
na minha caminhonete e fui embora.
Abri a porta de casa e vi que estava tudo escuro, o que indicava que minha
mãe já tinha ido dormir, provavelmente só depois de eu ter avisado que
Donato estava indo para casa, são e salvo.
Eu estava cansado. Exausto, na verdade. Mas antes de partir para o meu
quarto, tomar um banho e dormir, passei no cômodo ao lado, abrindo a porta
devagar e me debruçando no berço.
Lá dentro estava o meu maior tesouro. Minha garotinha de um ano.
Um sorriso finalmente cruzou meus lábios, observando-a dormir serena,
com os dois bracinhos esticados, a boquinha vermelha aberta, com o
macacãozinho de abelhinhas. Desejava pegá-la e encostá-la no meu peito,
sentir seu cheirinho e ouvir sua respiração, mas não queria acordá-la. Poderia
fazer isso no dia seguinte.
Mas perdi algum tempo admirando-a e pensando que por mais que
houvesse alguns percalços na minha história e que eu tivesse cometido
muitos erros, aquela princesinha ali era o meu maior acerto. Ela sempre seria.
CAPÍTULO QUATRO

Com algumas roupas dentro de uma mochila, que peguei muito


rapidamente no meu apartamento, saí em disparada para José de Alencar.
Fazia anos que eu não seguia aquele caminho, e sempre ensaiava a ideia de
uma visita, mas acabava desistindo. O que era uma atitude extremamente
covarde da minha parte.
Mas naquele momento nada mais importava além do meu avô. Não
adiantava ouvir de Ticiane que ele estava bem. Eu queria tocá-lo. Queria
sentir seu abraço. Ouvi-lo falar comigo com aquela voz carinhosa de sempre.
Sempre o enxerguei como uma rocha. Por mais que sua aparência fosse
mudando com o passar do tempo, e cada vez mais cabelinhos brancos fossem
surgindo, em sua cabecinha de setenta e cinco anos, ele era só sorrisos, sua
saúde sempre estava em dia, e ele se exercitava constantemente. A
alimentação não era a melhor, porque costumava comer mais doces do que
seria prudente, mas não era nada absurdo. Claro que eu sabia que chegaria o
dia em que o perderia, porque todo ser humano é perecível, mas jurei que
ainda demoraria muito para me dar um susto daquele tamanho.
Eu odiava dirigir tão tarde, mas nem me importei, só segui, enquanto fazia
minha mente focar no mais importante:
Vovô está bem.
Vovô está bem.
Vovô está bem.
Respirando fundo, desacelerei um pouco, porque não seria nada bom eu
sofrer um acidente e não chegar para vê-lo.
Aliás, será que ele sabia que só fui avisada há algumas horas? Ou será que
estava pensando que o deixei de lado? Deus... eu precisava me explicar.
Quando cheguei na cidade já passava das duas da manhã, e eu mandei
uma mensagem para Ticiane no caminho, oferecendo que poderia ficar na
única pensão da cidade, para eles não terem que me receber tão tarde, mas a
resposta dela foi:

TICI: Tá louca? Vai ficar na pensão da Maria? Amanhã às seis da manhã


todo mundo vai saber que você está na cidade, que roupa estava usando
quando chegou e o tamanho do seu anel de noivado. Vem para cá. Estou
acordada, sem sono.

Então eu fiz o que ela pediu. E que bom, porque o abraço que
compartilhamos quando abriu a porta fez todo o cansaço da viagem valer a
pena.
Muitas vezes eu me sentia o pior dos seres humanos por ter deixado uma
parte da minha família para trás. Nós não nos víamos com tanta freqüência
quanto eu gostaria, e, na maioria das vezes eu estava tão absorvida pelo
trabalho e pelo namoro – depois noivado – que não percebia o quanto estava
errada.
O quanto sentia saudade.
Ticiane me guiou até o sofá, onde nos sentamos, uma em cada
extremidade. Ficamos nos olhando por um tempo, e eu percebi que ela tinha
pintado o cabelo de loiro.
— Ficou bonita em você essa cor — comentei, apontando, o que a fez
sorrir. Droga, parecíamos duas quase desconhecidas conversando dentro de
um elevador.
— Obrigada. — Ela, por sua vez, apontou para a minha mão, onde estava
o anel de noivado. — Uau. Quase ofuscou minha vista.
Assim como ela, sorri, embora mal conseguisse fazê-lo. A razão de tudo
ali era nosso avô, então eu quis ir direto ao assunto.
— Como ele está? — perguntei quase aflita. Tudo bem que ela tinha me
dito que estava tudo bem, e o fato de ter recebido alta sem dúvidas contava a
favor de sua situação, mas queria informações mais precisas.
— Graças a Deus está bem. Se não fosse pelo Murilo, eu não...
Ah, pronto. Eu poderia checar no relógio, mas não demorou nem cinco
minutos, eu tinha certeza. Algo sempre me disse que no exato momento em
que pisasse em José de Alencar aquele nome seria invocado. Tipo a loira do
banheiro? Pois é. Sempre foi o que eu temia.
As pessoas naquele lugar sempre associaram minha imagem à de Murilo e
vice e versa. Sabe aquela coisa de você chegar em um estabelecimento, não
receber sequer bom dia e apenas perguntarem: “onde está Fulano?”; era assim
conosco. Era como se tivéssemos nascido como siameses, porque nos
conhecemos muito pequenos e nunca nos desgrudamos. Fora assim com Tici
e Afonso, mas eles se casaram, levaram o relacionamento em frente.
Provavelmente teria acontecido comigo e com Murilo também, se eu tivesse
permanecido próxima a ele.
Só que agora eu ia me casar com outro homem, e Murilo teria que ficar no
passado.
Ou melhor... ele já estava, não estava?
— Foi Murilo quem o levou ao hospital — ela falou, mal terminando a
frase anterior.
Eu queria mudar de assunto, mas infelizmente aquilo me chamou a
atenção.
— Ele ainda vem aqui? — Eu não deveria perguntar esse tipo de coisa,
porque não era uma surpresa. Murilo amava meu avô tanto quanto eu. Era
como se fosse da família dele também.
— Todos os dias, religiosamente. Você sabe como os dois são apegados.
Eu sabia disso e de muitas outras coisas. Sabia o quanto meu avô o tinha
como um neto e o quanto incentivara nosso namoro, mesmo que só
tivéssemos treze e quatorze anos em nosso primeiro beijo. Foi, aliás, para
meu avô que contei, e não para a minha mãe, assim como contei de quando
perdi a virgindade. Acredite ou não... percebendo que nós dois estávamos
com os hormônios à flor da pele, foi vovô que entregou a primeira camisinha
a Murilo, com um sermão de que se iria “deflorar” – palavras dele mesmo –
sua netinha, que o fizesse com segurança.
Sim, Seu Dodô era um avô incomum. O melhor.
— Seja como for, vovô está bem. Acho que... — Ticiane começou a falar,
mas foi interrompida pelo toque do meu celular.
Peguei-o dentro da bolsa, vendo o nome de João Pedro na tela.
Rapidamente me senti um pouco apreensiva, o que deveria me assustar.
Não era para ser assim em um relacionamento, certo? Deveria haver amizade,
cumplicidade e confiança, mas o que eu tinha de experiência? O que vivi com
Murilo não poderia entrar na lista porque éramos apenas duas crianças
descobrindo as coisas. Ele nunca me sufocou, porque estávamos sempre
juntos e conhecíamos as mesmas pessoas. Provavelmente, com seu jeitão
mais bruto, Murilo seria ainda pior.
Ou pelo menos era o que eu queria acreditar.
— Oi, amor! — atendi com cautela.
— Mas que história é essa de sair da festa sem falar comigo? — E ele só
tinha percebido horas depois? O que diabos estava fazendo que não se deu
conta antes? — Sorte que uma das meninas me avisou.
— Ela avisou porque eu pedi. E imagino que tenha explicado o motivo.
Meu avô sofreu um infarto. — Era a primeira vez que eu falava com ele com
aquela firmeza. Talvez o fato de estarmos tão longe e de eu me ver em um
lugar que considerava tão seguro tivesse algo a ver, mas não quis me
submeter. Imaginei, também, que ele ficaria ao menos preocupado com meu
avô. Era o que eu esperava, por saber da importância dele para mim.
Mas não foi bem o que aconteceu.
— Você deveria ter pedido para me chamarem.
Aquilo me deixou com raiva. Muita.
— Ok, mas não chamei. Estou em José de Alencar, na casa do meu avô —
falei, bem fria. Novamente, era a primeira vez que o tratava daquela forma,
mas João Pedro nunca tinha chegado tão longe em me deixar estressada.
— Quanto tempo vai ficar aí?
Sério? Aquela era a pergunta que ele iria fazer?
Nada de: “e como está seu avô?” ou “precisa de alguma coisa?”, ou, quem
sabe, “talvez seja uma boa hora para eu dar uma passada aí para conhecer a
pessoa por quem você sente tanto amor”. Mas, não. Juro que esperei que ele
dissesse qualquer outra coisa antes de eu responder, porque não era possível
que fosse tão insensível.
— Vou ficar quanto tempo for necessário — foi a minha resposta.
— Nosso casamento está próximo. Há muitas coisas para preparar ainda.
Respirei fundo, tentando me controlar.
E eu juro que tentei muito, mas não deu.
— Meu avô é muito mais importante do que uma festa de casamento.
Tudo o que tiver que resolver eu posso resolver de longe, e minha mãe vai ter
um prazer imenso em preparar as coisas sem meus pitacos. — Sim, porque eu
estava pouco me lixando se as flores seriam lilases ou cor de rosa naquele
instante. Eu poderia me casar de laranja que não faria diferença se perdesse
meu avô. E eu queria algum tempo com ele.
João Pedro ficou em silêncio do outro lado da linha, e pela primeira vez eu
pensei que ele poderia nem estar no seu estado normal. Provavelmente tinha
bebido, e eu queria relevar aquela ligação ridícula, por isso, desligar antes
que disséssemos mais coisas que nos fizessem arrepender seria um divisor de
águas.
— Olha, João, eu cheguei bem, mas estou cansada. Mais tarde nos
falamos.
— Tudo bem, Amanda. Qualquer coisa me liga. — E a ligação foi
encerrada. Seria só isso mesmo. Sem uma única palavra que me fizesse
perceber que ele se importava.
Novamente: preferia acreditar que se tratava da bebida, que depois que ele
dormisse teríamos uma conversa muito melhor. Se não fosse assim, minha
decepção seria infinita, e eu não queria que isso acontecesse pouco antes de
nosso casamento acontecer.
— Seu noivo? — Ticiane perguntou. Minha vontade naquele momento era
desabafar, colocar para fora todas as merdas que estava pensando dele, mas
seria traição, não seria?
Fora apenas uma ocorrência desagradável em um relacionamento
tranquilo. João Pedro não era assim tão insensível, com certeza ficara
preocupado comigo viajando e dirigindo tão tarde.
— Sim. Queria saber se estava tudo bem. — Claro que Tici tinha ouvido
boa parte da conversa, ao menos a minha, e sabia que não fora bem assim,
mas eu a conhecia o suficiente para saber que não se intrometeria. Para mudar
de assunto, joguei o telefone de lado e respirei bem fundo, tentando um
sorriso: — Bem, onde está nosso dodoizinho?
Também sorrindo, Ticiane estendeu a mão para mim, entrelaçando o
braço no meu, conduzindo-me pelas escadas da casa de vovô. Cada degrau
me enchia de lembranças da melhor infância que eu poderia ter tido.
Lembrava-me das brincadeiras com outras crianças lá dentro, do cheirinho
do pudim que ele passou a fazer depois que vovó morreu – e eu praticamente
não a conheci –, de sua voz amada me chamando de manhã. Eu não morava
com ele, mas passava os finais de semana em sua casa, e eram meus dias
favoritos.
Quando chegamos à porta do quarto, Tici abriu a porta, e a TV estava
ligada. A mensagem da Netflix perguntando se o expectador ainda estava ali,
assistindo, me fez imaginar que ele dormira no meio de alguma série. Vovô
sempre amou filmes de ação. Gostava dos que tinham muito tiro, muita
porrada e, de preferência, aqueles onde o mocinho precisava vingar a morte
de sua esposa ou de um irmão, ou qualquer coisa assim, bem clichê.
Sorri ao vê-lo acomodado na cama, com a boca aberta, roncando baixinho.
Peguei o controle sobre a mesinha ao lado e ousei desligar a TV, mesmo
sabendo o que aconteceria.
— Estou assistindo — ele resmungou, ainda de olhos fechados.
Sua voz causou um estrago no meu coração.
Ah, Deus... ele estava vivo. Estava bem. Meu avozinho...
— Não está, não — falei cheia de ternura, com a voz embargada. Ele
rapidamente abriu os olhos.
— Amandinha? — Olhou para mim, surpreso.
— Cheguei, vovô. Vou cuidar de você com a Tici.
Ele nem esperou mais nada, apenas estendeu os braços, e eu me sentei na
cama, entregando-me àquele amor, sabendo que ninguém, no mundo, poderia
se colocar acima do que eu sentia por meu avô. Nunca.
CAPÍTULO CINCO

Eu não devia aparecer lá naquela manhã. Ticiane dissera que Amanda


chegaria de madrugada, não fora? Por que diabos, então, eu estava me
metendo na casa de Dodô às oito, antes mesmo de começar a trabalhar? Se eu
quisesse saber como ele estava, não poderia enviar uma mensagem? Porra, se
eu fosse na merda do mercado descobriria todo o laudo médico dele, o que
comera, quais dores sentia e quantos comprimidos tomara. Sem dúvida as
vizinhas fofoqueiras já tinham falado com alguém que falara com alguém,
que tinha todas as informações.
Mas lá estava eu, saltando da caminhonete, com uma travessa do nosso
jantar de ontem, porque minha mãe achava que comida nunca era de mais.
Eu só podia ser masoquista, especialmente quando vi um carro chique
estacionado; um que nunca vi por ali. Com certeza ela tinha chegado.
Entrei, vendo a casa vazia, e deixei o embrulho sobre a bancada da
cozinha. Subi as escadas, na direção do quarto de Dodô, esperando ter a sorte
de não esbarrar com ela. Se tivesse dirigido por horas, de madrugada,
provavelmente ainda estaria dormindo. Ao menos durante a adolescência
nunca fora de acordar muito cedo.
E, de fato, eu ainda a conhecia um pouco, porque Amanda realmente
estava dormindo. Só que sentada na poltrona ao lado da cama do avô, com a
mão entrelaçada à dele.
Por ser bem pequena, ela cabia direitinho no móvel, com as pernas
encolhidas, a cabeça tombada no encosto. Estava vestida com algo bem mais
chique do que qualquer mulher usaria naquela cidade, com o rosto todo
maquiado, mas ainda era a mesma garota que conheci.
Se eu não tomasse cuidado, ela poderia até mesmo me enganar.
Aquela não era mais a minha namorada, a menina travessa, doce e
espevitada que conheci. Era uma mulher nova, rica, noiva de um herdeiro
playboy, completamente proibida para mim.
Fosse como fosse, não consegui parar de observá-la por alguns instantes.
Não ao menos até que se remexesse, o que me fez sobressaltar e recuar,
dando de costas com a porta, que bateu na parede, causando um barulho
desnecessário.
Merda!
Eu poderia fugir como um covarde, mas o estrago já estava feito.
Amanda abriu os olhos indecentemente azuis, piscando-os algumas vezes
para afastar o sono, chegando a checar seus arredores, como se não estivesse
muito ciente de onde havia passado a noite. Não demorou muito, porém, para
que se situasse.
Só que uma das primeiras coisas que viu foi um cara de quase um metro e
noventa na sua frente, braços cruzados, admirando-a como se fosse um
babaca.
Bem, eu era.
Mas... ok. Houve algo naquele momento. Era um reencontro, não era? Um
depois de muitos anos. O silêncio e a forma como nos olhávamos poderia ser
um indicativo do quanto ainda havia a ser dito e resolvido entre nós.
Meus pensamentos também. Odiava que a primeira coisa que tivesse
surgido na minha cabeça fosse: caralho, como ela está linda. Porque sempre
foi. Desde menininha, passando pela garota em quem dei meu primeiro beijo,
mas a mulher em Amanda era deslumbrante.
Já tinha visto uma foto ou outra, quando minha mãe insistia em me
mostrar notícias sobre ela, mas era diferente ao vivo.
— Oi, Murilo — sua voz saiu em um sussurro frágil, quase doce, trazendo
à tona memórias que eu queria que se mantivessem guardadas. Não era a
mesma voz da qual eu me lembrava, é claro. Tinha um tom mais maduro,
como sua aparência também adquirira, mas fez minhas entranhas se
revirarem.
— Oi — respondi, seco. Nem sabia se tinha esse direito, mas foi assim
que soou. — Ele está dormindo, volto outra hora.
Era um ato de total covardia, mas naquele instante eu não queria provar
nada a ninguém.
Sem lhe dar espaço para dizer qualquer coisa, fui saindo do quarto, mas
aquela mesma voz chamou meu nome, e eu não consegui não parar.
— Murilo!
Fiquei parado de costas por um tempo, abaixando a cabeça e respirando
fundo. Eu não deveria me virar. Não deveria olhar para ela. Se o fizesse,
poderia me arrepender. Só que...
Porra, eu não conseguiria ignorá-la.
Sem dizer nada, girei o corpo e a olhei.
Por mais que não tivesse sido uma decisão muito correta, vê-la olhando
para mim de cima a baixo, prendendo o ar, me proporcionou certa satisfação.
Amanda parecia gostar do que via.
Infelizmente, eu também.
— Obrigada. Ticiane me contou que você o salvou. — Havia sinceridade
em seus olhos. Emoção. Abaixei a cabeça mais uma vez, novamente incapaz
de olhar para ela. Porque fazer isso era ter o passado jogado na minha cara
com violência. Era como sentir uma mão pesada espremendo meu coração até
que ele explodisse.
— Não foi nada. Eu estava no lugar certo, na hora certa — foi pouco mais
do que um resmungo.
O que fazia com que me sentisse como um idiota. Tratá-la como uma
pessoa qualquer seria tão mais inteligente da minha parte. Mostrar-me adulto,
centrado e maduro. E normalmente eu era tudo isso. Tinha uma filha. Era pai.
Meu mundo inteiro mudara quando Raíssa – minha bebezinha – nascera.
Minha vida era dedicada praticamente cem por cento a ela, ou seja, não havia
espaço para lamentações por conta de uma ex-namorada que já pertencia a
outro homem.
— Você sabe que não é só isso.
Não, não era. Ainda assim, eu deveria ficar calado.
Só que, aparentemente, eu estava fazendo merda atrás de merda.
— Eu cuido de quem amo. Não deixo as pessoas para trás.
Merda! Idiota!
O que eu ganharia com uma indireta como aquela? O que queria provar?
No máximo a faria pensar que ainda me importava.
E eu não me importava. De jeito nenhum.
Não poderia me importar.
Amanda abaixou a cabeça, como fiz anteriormente, parecendo
envergonhada. Aparentemente a carapuça serviu. Só que se eu fosse
realmente sincero, precisava admitir que ela não abandonara ninguém além
de mim. Aquela dor era minha. A coceirinha incômoda afetava a minha pele,
e Seu Dodô, provavelmente, não tinha uma única reclamação da neta a fazer.
Nem Ticiane. Ambos concordavam que o único motivo para ela não voltar
para a cidade era eu, porque provavelmente disseram que eu ainda estava
puto, porque não sabia seguir em frente.
E as últimas palavras que lhe disse, sobre ingratidão e sobre não me amar
de verdade... Ok, eu só tinha dezessete anos, mas ela tinha o direito de estar
puta comigo, de jogar coisas na minha cara, mas mesmo assim engolira seu
orgulho para me agradecer por ter salvo seu avô.
Eu precisava sair dali, o mais rápido possível, antes que fizesse mais
merdas.
— Eu volto mais tarde — repeti, outra vez em um tom de voz que mais
parecia um rosnado. Odiava minhas reações a ela. E olha que eu ensaiei mil
vezes como seria um reencontro entre nós. Prometi a mim mesmo que seria
até simpático.
Doce ilusão.
Aquele era o tipo de coisa que não se controlava.
Amanda não insistiu. Ainda bem. Sendo assim, pude finalmente fugir dali,
com passos apressados, descendo as escadas e saindo porta afora, quase
trombando com Ticiane que chegava com duas sacolas do mercado. Teria lhe
oferecido ajuda se ela parecesse mais enrolada com o peso, mas apenas
resmunguei um oi e saí, ignorando seus chamados.
Ninguém me faria ficar mais um segundo naquela casa. Tinha fantasmas
lá dentro, e um deles era uma mulher bonita demais para o meu gosto e viva
demais.
Algo me dizia que a merda só estava começando.
CAPÍTULO SEIS

PELO. AMOR. DE. DEUS.


O que tinha acabado de acontecer?
Ok, respira, Amanda. Mas respira muito, porque não é todo dia que se
acorda, sentada numa poltrona, toda de mau jeito e com o pescoço doendo, só
para dar de cara com o ex-namorado que você não vê há mais de sete anos.
E o pior... ele se tornou o pecado em pessoa.
Não que eu já não imaginasse isso. Murilo sempre foi um rapaz bonito.
Não de um jeito convencional, como João Pedro, só que ele certamente tinha
um apelo maior com as mulheres, especialmente naquela sua versão homem.
Moreno, alto – admita, você cantou o resto da música, mas eu não vou fazer
isso porque seria brega demais –, musculosão, grande e intimidador, embora
seu coração fosse doce e gentil. Os olhos em tom de chocolate eram
pequenos, e eu sempre os adorei, porque viviam cheios de ternura. Isso sem
contar a forma como olhavam para mim, como se eu fosse a coisa mais linda
do mundo.
Era triste ver que isso tinha mudado. Que tudo o que Murilo sentia por
mim era mágoa.
Durante muito tempo, eu imaginei mil e uma formas de como conversaria
com ele na primeira vez em que nos encontraríamos. Como seríamos
civilizados, como exporíamos nossos ressentimentos, como pediríamos
perdão pelos mal entendidos, e como no fim de tudo nos abraçaríamos e
estreitaríamos laços eternos de amizade. Ele fora importante para mim, e eu
queria que fôssemos amigos. Só que não era tão simples.
Claro que não era.
No momento em que o vi, senti muito mais coisas do que julguei que
sentiria. Tanto que fiquei parada naquele corredor, olhando para o caminho
por onde seguiu, como se ele estivesse novamente escorrendo por entre meus
dedos, embora a situação fosse completamente diferente. Daquela vez ele me
abandonara. Ele fora embora sem me dar chance de tentar me explicar.
Só que... o que eu explicaria? O que lhe diria que ainda não sabia?
— Manda? — Ouvi a voz de Ticiane e me voltei em sua direção. Meus
olhos estavam fixos na escada por onde ela subia, mas não consegui enxergá-
la. Talvez eu não conseguisse ver absolutamente nada à minha volta. — Tá
tudo bem? Vi Murilo sair daqui quase agora. Vocês se encontraram?
Assenti, sem conseguir dizer nada.
— Ah, que merda. Não era para vocês se verem assim, né?
— Ia acontecer, mais cedo ou mais tarde.
Ticiane terminou de subir as escadas, aproximando-se de mim.
— Eu sei, mas vocês poderiam ter um mediador, né? Pela cara dele o
encontro não foi exatamente amigável.
— Também não foi um desastre. — Ou fora? Eu nem saberia medir. —
Mal nos falamos. Conhecendo o gênio de Murilo, eu quase poderia dizer que
foi um sucesso.
Só que eu não conhecia mais Murilo. Sete anos poderiam mudar e muito
uma pessoa.
Soltando um suspiro, voltei-me na direção do quarto de vovô e percebi
que ele estava acordando. No exato momento em que seus olhos se voltaram
para mim e para Ticiane, ele abriu um sorriso que poderia derreter um iceberg
inteiro. O sorriso que eu mais amava no mundo.
— Jurei que era um sonho, mas aí estão vocês; minhas duas netinhas. —
Vovô estendeu a mão para mim e para Tici, e nós fomos até ele. Ele beijou os
nós dos dedos de cada uma de nós, e eu quase comecei a chorar de novo.
Controlei-me ao máximo, porque não era momento de tristeza. Era de alegria.
— Não sou fofoqueiro, mas ouvi o nome de Murilo. Ele esteve aqui?
E obviamente eu não teria a sorte de o assunto ser trocado. Falaríamos
sobre o dito cujo durante todas as horas em que eu estivesse em José de
Alencar. Não estava muito errada quando decidi me afastar da cidade por
tanto tempo.
Mentira... estava, sim. Eu poderia suportar tudo aquilo só para passar
algum tempo com vovô.
— Esteve, vô. Disse que volta mais tarde — respondi, porque ele deixara
o “recado” comigo, não deixara?
— É um garoto de ouro. Se não fosse por ele...
Respirei fundo. Era a segunda vez em menos de vinte e quatro horas.
— A Amanda já está sabendo, vô. Contei tudo para ela — Ticiane veio
em minha salvação.
Já falei que minha prima era maravilhosa?
— Tudo bem, tudo bem. Nada de falar de Murilo aqui. Até porque, minha
caçulinha vai se casar, não é? — Meu avô deu outro beijo na minha mão, e eu
engoli em seco ao ouvi-lo falar do casamento.
Não era para isso acontecer, era? A ideia de me tornar esposa de João
Pedro deveria me provocar um frio gostoso na barriga. Pensar em caminhar
até um altar, vestida de noiva, para me unir para sempre ao homem que eu
amava precisava ser motivo de ansiedade e excitação, não de dúvida. Não
conseguia entender por que nos últimos dias tinha começado a me incomodar
com a ideia.
A proximidade, talvez? Toda noiva deveria se sentir assim, não? Era algo
que eu poderia perguntar a Ticiane, embora ela não tivesse realmente se
casado no papel, mas não queria demonstrar inseguranças em relação ao meu
relacionamento.
Porque não havia nenhuma, certo?
— Só fico triste de não conhecer o rapaz — meu avô comentou, com seu
jeitinho maliciosamente inocente. — É um desaforo minha netinha se casar, e
eu nem saber a fuça do noivo.
— Eu te mostrei fotos dele, vô — Ticiane novamente me defendeu.
— Foto não é a mesma coisa. A gente se engana com essas coisas. Tipo
naquele negócio de Instagram. Todo mundo é feliz, todo mundo sorri demais.
Isso não pode ser verdadeiro. A gente tem rugas, a gente fica bravo... temos
nossos problemas — palestrou Seu Dodô, e eu e Tici nos entreolhamos,
revirando os olhos como fazíamos quando éramos mais novas.
Pronto. Aquele pequeno gesto causou o remexer gostoso de estômago que
eu esperei que a menção ao casamento me provocasse. Eu deveria ter algum
problema, sem dúvidas.
E nem queria admitir para mim mesma que o encontro com Murilo
também proporcionara isso.
Ouvimos um som vindo do andar de baixo, o que não me surpreendeu.
Poderia estar um pouco desacostumada àquele tipo de coisa, mas as portas da
casa de vovô estavam sempre abertas.
— Ô de casa! — uma voz masculina chamou, avisando de sua chegada.
Não era Murilo. Por mais estranho que pudesse parecer, eu conhecia o tom
rouco que saía de sua garganta. Desde que fui embora ele já tinha uma voz
bem masculina que só se tornara mais profunda com o passar do tempo.
— É Afonso — Ticiane avisou, e eu abri um sorriso.
Afonso era a quarta parte de nosso quarteto inseparável. Ele foi o último a
chegar à cidade, e mesmo assim o fez quando tinha apenas uns dez anos de
idade. A conexão foi instantânea, tornando-se melhor amigo de Murilo pouco
tempo depois. Com o passar dos anos, formamos dois casais. Nossa sintonia
era tão profunda que todos juravam que nosso amor e amizade seriam para
sempre.
Eu fui a responsável por desfazer esses laços. Esperava que apenas Murilo
não conseguisse me perdoar.
Mas aparentemente Afonso também não guardava muitas mágoas.
— Ah, pulguinha — era assim que ele me chamava, pelo motivo óbvio do
meu tamanho —, que bom te ver! — Sem nem me dar chance de responder,
ele veio na minha direção, pegando-me em um abraço de urso que chegou a
me tirar do chão.
O alívio que me inundou foi imenso. Eu estava feliz demais por rever
aquelas pessoas. Não via Afonso desde que saí de José de Alencar, porque ele
e Ticiane não se casaram no papel e nem na igreja, então não houve festa e
nem cerimônia; apenas juntaram as escovas de dente. Ele nunca fora ao Rio
me visitar, porque odiava cidade grande, e eu sempre imaginei que tinha algo
a ver com Murilo, como um pacto silencioso de lealdade. Ainda assim, lá
estava ele, me recebendo daquele jeito caloroso.
— Estou feliz em te ver, garota! — afirmou, depois de me colocar no
chão.
— Eu também... Nossa, estou muito! — falei com toda a minha
sinceridade, com um sorriso que parecia cortar meu rosto em dois.
Aproximando-se da cama de vovô, Afonso deu alguns tapinhas no ombro
dele.
— Ei, Seu Dodô, hein! Agora chega de dar susto na gente, né? Se não
fosse pelo Murilo...
Ok. Terceira vez. Quantas outras pessoas diriam a mesma coisa?
Parecendo um pouco sem graça, Afonso virou-se na minha direção, com
um olhar que parecia pedir desculpas, mas dei de ombros. O que poderia
fazer? Murilo era uma parte de nós, ele sempre seria mencionado.
Só não precisavam enaltecer o herói incrível que ele era, né? Porque eu
sabia disso. Sempre foi protetor, atencioso, cuidadoso e, por mais que tivesse
um jeitinho meio ogro, sabia ser gentil.
— Seja como for... estou de folga hoje à noite. Sabe qual é a minha
missão? — Afonso jogou-se na poltrona do lado da cama de vovô. — Vou
fazer companhia pra esse velho aqui e deixar as duas mocinhas saírem para
tomar uma cerveja.
Ticiane ergueu uma sobrancelha para mim, como se fizesse parte daquela
conspiração.
— Ah, mas eu não sei se... — falei, por mais que a ideia me agradasse. Eu
tinha ido a José de Alencar para ficar com meu avô e não para sair para me
divertir.
— Eu acho uma ótima ideia. Vocês duas não ficam juntas há um tempão,
e eu gosto de saber que minhas meninas estão felizes — vovô falou, então
estendeu a mão enrugada na direção de Afonso, dando-lhe tapinhas no joelho.
— Este rapaz aqui está me devendo uma revanche no xadrez. E acho melhor
estar preparado.
— Tá vendo? Vocês não podem nos privar desse momento — Afonso
insistiu.
Olhei para Tici, sentindo-me mais animada e confiante.
— A não ser que você não esteja a fim, Manda, mas eu ia adorar. Acho
que temos muito a colocar em dia — minha prima disse.
— Então nós vamos!
Fazia tanto tempo que eu não saía com uma amiga, sem João Pedro, que
nem me lembrava mais da sensação. Ele normalmente não gostava quando eu
fazia isso, porque tinha medo de que algum veículo de imprensa me
abordasse e tirasse fotos minhas, insinuando problemas no nosso
relacionamento. Mas em José de Alencar não seria um problema, não é? Ali
eu era nada mais do que outra nativa da cidade, mais uma em meio a alguns
poucos milhares de pessoas.
Uau... e esse sentimento era bom. Mais do que bom.
Seria gostoso ser normal por alguns dias, antes do meu mundo inteiro
mudar no momento em que eu me tornasse a Sra. Gauthier.
CAPÍTULO SETE

Foi um dia cheio. Normalmente eu gostava de dias assim, porque a


recompensa de descer do meu escritório, me jogar no sofá e ficar um pouco
com a minha garotinha era enorme. Depois que Raíssa dormia, eu me dava ao
direito de tomar uma cerveja na minha varanda, normalmente sozinho,
olhando as estrelas e pensando na vida. Não tinha muito para refletir, na
verdade. Não era exatamente uma vida agitada. Mas eu preferia assim.
Muitos também alegariam que meu trabalho não era exatamente o mais
cansativo. Ainda mais numa cidade pequena, onde as pessoas eram simples o
suficiente para pensar que o que eu fazia era fácil e exigia pouco esforço, eu
nem tinha do que reclamar.
Não mesmo. E não era uma garota que deveria ser apenas uma lembrança
dolorosa que me faria mudar de ideia. Eu era feliz. Tinha tudo o que um
homem poderia precisar – uma casa boa, uma renda mais do que suficiente,
uma mãe zelosa que me ajudava em tudo e, principalmente, uma bebezinha
que era uma dádiva. Se eu quisesse me divertir um pouco ou encontrar prazer
com uma mulher, era só pegar o carro, sair para alguma cidade vizinha e me
aventurar em um bar. Eu não era exatamente desajeitado com o sexo oposto.
Costumava me sair muito bem, obrigado, embora não fizesse isso
constantemente. Para ser sincero, desde que Raíssa nasceu – desse jeito, aliás,
de um pequeno acidente –, não tive muito interesse em sexo casual.
Talvez estivesse na hora de encontrar alguém para ficar para valer; alguém
que pudesse e quisesse servir de figura materna para minha filha. Alguém que
a amasse. Nem precisava amar a mim. Minha bebê era prioridade.
Só que naquela noite eu estava um pouco inquieto e nem tentei fingir que
não sabia do que se tratava. Enganar a mim mesmo seria a maior burrice,
porque eu poderia encontrar mil desculpas – um problema no servidor, um e-
mail que esqueci de mandar, uma reclamação de algum comprador... Ok,
tudo isso realmente acontecera no dia, mas não me afetara tanto quanto ela.
Amanda Quintana. Quando, no mundo, esperei vê-la novamente?
E era uma ilusão boba imaginar que nunca mais nos encontraríamos, já
que o avô dela morava na mesma cidade que eu. Mas tive alguma esperança
de que conseguiria passar ileso por uma visita sua, porque seria avisado com
antecedência e sumiria de José de Alencar, inventando férias de última hora
para a minha família.
No entanto, não foi bem assim que aconteceu. No momento em que soube
que ela estava presente, corri para a casa do velho Dodô. E que o diabo me
carregasse se eu mentisse que não fora para vê-la.
Ainda não tinha entendido o motivo, na verdade. Talvez quisesse me
torturar ou provar para mim mesmo que Amanda não me afetava mais como
antes.
Parabéns, idiota! O tiro saiu pela culatra, e lá estava eu, sentindo até os
ombros tensos de tanto que o encontro me afetou.
Mas agora tudo o que eu tinha que fazer era ficar longe dela. Por quantos
dias se manteria na cidade? Provavelmente poucos, porque não iria aguentar
de saudade do luxo e do namorado mauricinho.
Namorado, não, Murilo. Noivo. Amanda ia se casar. Muito em breve.
Merda!, sem nem pensar no que fazia, soquei a mesa, ao lado do meu
notebook que quase pulou sobre a madeira. Talvez fosse mesmo hora de
parar de trabalhar e ir ficar um pouco com Raíssa.
Respirando fundo, parti para o quarto dela e encontrei minha mãe sentada
em sua cadeira de balanço, costurando mais um daqueles laçarotes enormes
que ela gostava de colocar na cabeça da neném, enquanto esta brincava no
chão, babando um de seus inúmeros brinquedos.
Agachei-me e peguei-a, ouvindo-a balbuciar um “papai” que sempre me
desmontava. Beijei sua testa, observando seus cabelinhos castanhos afastados
dos olhos por uma das faixas larguinhas com o laço enorme de sempre.
Daquela vez era vermelho de bolinhas brancas, combinando com a roupinha
que usava. Olhando para a mão da minha mãe, percebi que estava
confeccionando outro, um preto estampado com coraçõezinhos cor de rosa.
— Você sabe que não precisa mais costurá-los, não sabe? Temos pessoas
fazendo isso o tempo inteiro, em produção industrial.
Ela deu de ombros.
— Os da minha neta eu faço. A ideia foi minha, afinal. Sorte a sua que
tem uma mãe com um excelente senso de moda.
Não pude deixar de rir.
— Para bebês.
— Que seja. Eu sabia que um dia iria servir para alguma coisa. — Ela fez
uma pausa e mudou de assunto, sem erguer os olhos para mim, enquanto eu
me sentava na poltrona, próxima à cadeira onde ela estava, com Raíssa no
colo. — Afonso ligou. Disse que vai tomar umas cervejas no bar do Walter.
Te convidou.
O bar do Walter era o máximo de balada que tínhamos em José de
Alencar. Era ele que proporcionava algumas festas, de vez em quando, para
os jovens, tinha música ao vivo todos os finais de semana e durante as outras
noites as pessoas iam lá para beber e aproveitar do que ele chamava de
“centro recreativo”, que consistia numa mesa de sinuca, uma de totó e um tiro
ao alvo que estava meio caindo aos pedaços. Não era exatamente uma boate
badalada, mas a cerveja estava sempre gelada, e ele até inventava uns
drinques diferentes quando inspirado. Era um cara gente boa, nunca
permitindo que alguém bebesse além da conta quando estava sozinho ou
dirigindo.
— Não sei se estou muito na vibe hoje. De repente eu bebo uma cerveja
aqui em casa mesmo. — Dona Sílvia finalmente olhou para mim, por cima da
armação de seus óculos, com aquela cara que eu conhecia muito bem, de
quem está prestes a dar uma palestra, o que era sua especialidade.
— Você tem vinte e quatro anos, Murilo. Está parecendo mais velho do
que eu.
— Como se você fosse muito de sair...
— Não, mas estou começando seriamente a pensar em me cadastrar no
Tinder.
Se eu estivesse bebendo alguma coisa, teria certamente me engasgado.
Como não era o caso, praticamente pulei no meu assento, o que fez Raíssa
pensar que era uma brincadeira de cavalinho. A gargalhada dela ecoou no
quarto e quebrou o silêncio. Ainda bem, porque o choque foi enorme para eu
conseguir dizer qualquer coisa.
— O que foi? Não posso arrumar um namorado? — minha mãe voltou à
sua costura como se não tivesse acabado de dizer algo bombástico.
— Eu acharia ótimo se você arrumasse um, mas estou mais chocado em
imaginar que o Tinder funcionaria aqui em José de Alencar. Acho que a
missa de domingo seria mais eficaz para flertar com alguém. Pelo amor de
Deus, mãe, quem além de todo mundo que você já conhece poderia te dar
match? Não tem gente nova por aqui.
— Vai que eu estou perdendo os sinais de alguém? Tem alguns homens
mais discretos aqui mesmo na cidade que poderiam se interessar por mim.
— Noventa por cento dos viúvos ou solteiros da sua faixa etária, sem
dúvidas, mas você conhece todos. — Minha mãe tinha exatos quarenta e um
anos de idade. Quando eu nasci, ela tinha dezessete, ou seja, era jovem, muito
bonita, um partidão. Sempre insisti que deveria sair mais e tentar se apaixonar
novamente, porque sempre vivera para mim e, depois, para a neta, mas suas
respostas eram sempre evasivas. Aparentemente o momento tinha chegado.
— As pessoas sempre podem nos surpreender — era uma frase e tanto de
efeito. Claro que ela não parou por aí. — Mas deixando a minha vida
amorosa de lado, eu acho que você deveria ir. Sei que teve alguns dias
estressantes por causa de Dodô. Merece relaxar.
— Quero ficar com a Raíssa. — Falando nela, a pequena estava
literalmente se divertindo como nunca só porque eu estava mexendo a perna,
brincando de cavalinho. Que bom que minha filha tinha gostos tão simples
quanto eu.
— Você pode ficar com ela amanhã. Vá sair, garoto. Aproveite enquanto
eu não arrumo o tal namorado. Quando isso acontecer, vamos ter que
negociar as noites de folga.
O poder de argumentação da minha mãe era impressionante, tanto que me
vi, uma hora depois, de banho tomado, roupa limpa – que consistia em uma
camiseta de algodão preto e jeans –, sentado no bar do Walter, com uma
garrafa de cerveja bem gelada na mão, bebendo do gargalo. Não planejava
tomar muitas daquela, apenas umas duas no máximo, então o faria com
calma.
Antes de sair de casa enviei uma mensagem para Afonso, que confirmou o
que disse à minha mãe, mas ele estava um pouco atrasado. Imaginei que ia
dar uma passada no Dodô antes, talvez para falar com Ticiane... Bom, eu
poderia esperar.
Só que os minutos foram passando, passando, passando, e quando me dei
conta, percebi que já iam quarenta desde que cheguei ali. Peguei o celular e
liguei para ele, mas caiu na caixa postal. Enviei uma mensagem, perguntando
onde ele estava, e comecei a ficar um pouco inquieto. Aquilo não estava me
cheirando nada bem.
Afonso não era de dar bolo desse jeito, a não ser que algo grave
acontecesse. Como policial, ele poderia ter seus imprevistos, embora quase
nunca acontecesse nada em José de Alencar, mas provavelmente me avisaria.
E se fosse algo com Donato?
Esse pensamento foi o suficiente para que eu me levantasse do banquinho,
remexendo no bolso, em busca da carteira para pagar a única cerveja que
tomei, pronto para sair dali e ir ver com meus próprios olhos o que tinha
acontecido.
Só que mal consegui colocar a mão no dinheiro e vi qual era o motivo de
tudo aquilo.
Lá estava Amanda, entrando com Ticiane no bar, as duas rindo como se
não tivessem se passado sete anos desde a última vez em que vi a cena. Na
época nenhum de nós tinha idade para beber, mas frequentávamos o bar para
jogar sinuca, bebendo coca-cola.
Era isso: meu melhor amigo tinha armado para mim.
Eu não ia conseguir fugir daquela mulher. Nem se tentasse muito.
CAPÍTULO OITO

Era como entrar numa máquina do tempo e ser transportada para o


passado. Quantas vezes eu não vivi aquela cena? Quantas vezes não passei
minhas noites no famoso “bar do Walter”, enquanto nós implorávamos que
ele nos vendesse uma cerveja. Uma única, que fosse, que poderíamos dividir
pelos quatro. Mesmo quando Afonso, que foi o primeiro de nós a completar
dezoito, podia comprar, Walter nunca vendia, porque sabia que nós iríamos
compartilhar.
Meu estômago chegou a revirar de tão boas que eram as lembranças.
Mais uma vez. Lá estávamos nós reparando em uma sensação que o meu
próprio casamento não me proporcionava. Isso começava a me assustar.
Ok, Amanda, nada de pensar nisso. Só curte a noite, como há muito
tempo você não faz.
Talvez eu estivesse sendo injusta, porque minha vida social era bem
agitada, embora eu dificilmente tivesse a chance de escolher os eventos. E
como poderia se João Pedro sempre tinha algum convite imperdível? Daquela
vez, com Tici, iria apenas ser eu mesma, rir um pouco, quem sabe dançar e
rever pessoas.
A ideia parecia boa na teoria, ao menos até eu bater os olhos na pessoa.
Eu tinha um carinho muito grande pelo pessoal de José de Alencar. Como
toda cidade pequena, havia os fofoqueiros e os inconvenientes, mas a maioria
se tratava de gente boa, humilde e trabalhadora, que não hesitaria em te
ajudar se você precisasse. Rever alguns rostos não me assustava, pelo
contrário. Mas eu definitivamente não queria ver Murilo.
Como se houvesse um imã a nos atrair, nossos olhares se encontraram no
momento em que entrei no bar. Ele estava de pé, segurando a carteira, o que
quase me deixou feliz, porque parecia prestes a ir embora.
Perdemos alguns instantes daquele jeito, quase presos em um frenesi
hipnótico, até que alguém se aproximou dele, cumprimentando-o e fazendo
sua atenção desviar. Ao mesmo tempo, Ticiane me puxou, falando algo que
não entendi, porque minha cabeça estava girando como se eu já tivesse
bebido todas naquela noite.
Para o meu alívio, ela me levou ao bar, mas colocando-nos a alguns
metros de distância de Murilo, enquanto eu pensava que iria simplesmente
nos reunir como se nada tivesse acontecido. Apesar disso, a distância ainda
era curta. Enquanto estivéssemos na mesma cidade, estaríamos perto demais.
Mas eu não iria embora por causa dele. Queria passar um tempo com meu
avô, e depois do casamento ficaria mais complicado, sem dúvidas.
— Olha quem está aqui! — a voz masculina familiar me fez virar na
direção do outro lado da bancada, dando de cara com uma versão mais velha
de Walter.
Ele tinha uns cinquenta anos àquela altura e sempre foi o que eu e Ticiane
chamávamos de “coroa bonitão”. Seu cabelo estava um pouco mais
comprido, como se estivesse sem tempo de cortar; era liso, de um castanho
claro quase loiro. Eu não me admiraria se o confundissem com algum
daqueles vocalistas de bandas de rock antigas, que tinha envelhecido muito
bem. Algumas rugas aqui ou ali, alguns fios grisalhos, mas, no geral, um belo
homem.
— E aí, bonitão? Sentiu minha falta? — brinquei, subindo em uma das
banquetas, com um sorriso provocador. Quando eu era mais nova sempre
zombei que quando fosse maior de idade iria largar Murilo para ficar com ele.
Respeitoso, nunca caiu na minha brincadeira.
Naquele momento, assim que me ajeitei e que Tici também se sentou, ele
pegou minha mão e a beijou.
— Claro que senti. José de Alencar nunca mais foi a mesma sem você. —
Por um acaso do destino, a mão que segurou era a mesma que carregava o
anel enorme de noivado. — Caramba, garota! O sortudo não poupou nessa
pedra aqui, hein! Queria mesmo marcar território.
Abri um sorriso, esperando que não parecesse tão falso.
Marcar território. Era uma explicação mais do que coerente.
— Pois é... — Decidi mudar de assunto: — Posso conseguir uma cerveja
ou vou ter que mostrar a minha identidade?
Um sorriso curvou seus lábios, e ele virou-se para o enorme freezer atrás
de si para pegar as duas garrafas de cerveja. Abriu a ambas, entregando cada
uma para uma de nós. Eu e minha prima brindamos.
— Posso supor que isso quer dizer que Seu Dodô está bem? — ele
perguntou, apoiando-se no balcão.
— Está, graças a Deus. Afonso ficou lá com ele para eu e Amanda
podermos sair um pouco — Tici respondeu.
— Que boa notícia. Encontrei a Sílvia hoje no mercado, e ela me contou
alguma coisa, mas é bom saber por vocês. Todo mundo ama Seu Dodô. Que
bom que o Murilo chegou lá, né? Se não fosse por ele...
Ah, pelo amor de Deus! Não era possível.
Eu já estava quase me colocando de pé no meio da rua, pedindo para que
todas as pessoas que quisessem dizer aquilo se pusessem em fila.
Não pude evitar dar uma olhada de soslaio para o dito cujo, esperando que
já tivesse ido embora, mas lá estava ele, sozinho. De costas para o balcão,
apoiado nos cotovelos, cerveja ao lado, os olhos virados para mim. Era quase
intimidador.
Eu poderia ignorar, sabe? Poderia fingir que ele não estava ali – embora
fosse difícil ignorar um homem daquele tamanho –, ou apenas dar um sorriso
e erguer a mão em um aceno simpático, mas não iria funcionar. Não era esse
tipo de interação que queria ter com o cara que um dia julguei ser o amor da
minha vida. Queria conversar com ele, resolver nossas pendências, se é que
fosse possível.
Senti a mão de Ticiane sobre a minha, fazendo-me olhar para ela.
— Prima, no que você está pensando? Não vá fazer besteira.
— Conversar civilizadamente é besteira? — Ergui uma sobrancelha,
surpresa. Ela estava certa, sem dúvidas, mas não queria admitir. Mal tinha
tomado uma única cerveja e minha mente já me pregava peças.
— Acha que vai dar certo?
— O que eu tenho a perder? — foi uma resposta no impulso, mas era real.
Não haveria perdas naquele caso, porque eu e Murilo não éramos mais nem
amigos.
— Você pode se magoar. Ou magoar a ele.
— Já estamos magoados. Quem sabe não resolvo as coisas?
Sem permitir que Ticiane me dissuadisse e deixando-a na companhia de
Walter, peguei minha cerveja – porque não queria fazer isso completamente
sóbria – e me aproximei de Murilo.
No momento em que fiz isso, me arrependi, mas aí já era tarde demais.
— Oi — cumprimentei, quase tímida. E completamente sem graça. O que
eu estava fazendo ali? O que ia dizer a ele?
Que Deus protegesse a minha impulsividade.
Ele estava com sua cerveja na mão e deu uma boa golada nela, como se
precisasse disso para me responder.
— Oi — falou, desconfiado, sem nenhum traço de simpatia.
Respirei fundo, tomando coragem. Já que estava ali, era melhor colocar a
tal conversa para funcionar.
— Posso te fazer uma pergunta? — Ele deu de ombros, sem nem se
esforçar para parecer educado. — Por que você está tão magoado comigo?
Murilo deu uma risadinha sarcástica e se remexeu. Tentei me esforçar
para não ficar reparando no quanto ele estava bonito. Não era hora para isso.
— Não estou magoado com você, Amanda. Não faz diferença.
Ai. Doeu.
— Faz para mim. Eu não gosto de deixar pendências na minha vida.
De forma inesperada, Murilo inclinou-se para frente, colocando seu rosto
muito próximo do meu, o que me deixou tensa, paralisada. O que ele ia fazer?
— Nada entre nós ficou pendente. Foi uma história que terminou. Ponto
final. Vida que segue. — Ele se afastou, voltando para sua cerveja. O que eu
esperava, afinal? Que me beijasse? — Você, pelo que sei, seguiu muito bem
com a sua. — Usando a mão livre, apontou para o meu anel.
Nunca tinha percebido o quanto aquele negócio era visível ao redor, mas
começava a acreditar que João realmente quisera marcar território, porque
parecia mais um aerólito no meu dedo. Ou talvez uma placa de neon.
Fosse como fosse, eu não podia deixar que Murilo me tratasse daquela
forma. Claro que errei em nossa história, mas ele não era um santo também.
Inflei o peito, tomei coragem e soltei:
— Quer saber de uma coisa, Murilo? Você está sendo ridículo. Nós dois
erramos. E tudo bem por isso, porque éramos adolescentes. Será possível que
depois de tantos anos você ainda não cresceu e continua com a mesma mágoa
daquela época?
Ele pareceu tocado pelas minhas palavras. Ao menos por breves instantes.
Jurei que meu pequeno rompante valeria de alguma coisa, mas Murilo apenas
respirou fundo, e sua expressão se moldou em um semblante impaciente,
como se houvesse uma criança travessa conversando com ele e não uma
mulher. A mulher com quem ele tinha uma história. E uma bem intensa, aliás.
— É, provavelmente você está certa. Estou agindo como um moleque,
mas não me importa. — Eu o vi suspirar, cansado, até completar: — Doeu,
Amanda.
Ah, droga. Eu não esperava por isso. Esperava que ele fosse continuar no
modo ranzinza, e eu não me comoveria, apenas ficaria mais e mais irritada.
Só que, naquele momento, eu estava a ponto de derramar algumas lágrimas.
E não tinha nada no mundo que odiasse mais do que chorar na frente dos
outros.
Ou melhor... tinha: a minha necessidade em deixar todos felizes, em
agradar a todo mundo, mesmo que isso me colocasse em segundo plano. Ter
alguém magoado comigo, como Murilo, fazia com que mal conseguisse
dormir à noite, remoendo os pensamentos.
— Doeu em mim também.
Ele soltou um resmungo qualquer.
— Você foi embora — a frase também saiu num resmungo.
— Mas não porque quis. Não era como se eu tivesse escolha. Te dei a
opção de continuarmos juntos, você terminou o namoro! — alterei-me,
pousando a cerveja sobre o balcão, ao lado da dele. As pessoas ao redor nos
olharam, e eu sabia que seríamos o comentário de José de Alencar na manhã
seguinte.
Murilo e Amanda atacam novamente, depois de anos de separação – seria
a manchete do jornal. Fofoca quentíssima na cidade onde nada acontecia.
— Tá, e fala para mim: como iríamos viver um relacionamento à distância
se sua mãe me odiava? Se ela queria te separar de mim a todo custo? Ela mal
deixou você voltar para ver seu avô depois que foram embora.
Ele estava certo. Nossa partida para o Rio, com a questão da herança do
meu pai, foi uma bênção para a minha mãe, porque ela nunca aprovou meu
namoro com Murilo. Sem dúvidas tudo seria feito para nos separar.
Mas eu não queria admitir que ele estava certo, então usei uma péssima
cartada:
— Se você me amasse de verdade, teria me esperado. Com dezoito anos
eu teria vindo morar com meu avô e...
— Não teria, não! — Murilo me interrompeu. — E nem sei se eu ia querer
isso. Você tinha oportunidades na cidade grande que não teria aqui. Eu
terminei o namoro para não empatar a sua vida, mas jurei que, pelo menos,
continuaríamos nos falando. Que você iria me ligar uma vez ou outra, que
não perderíamos o contato.
— Você também não me ligou! Era só ter pedido meu telefone à Tici. —
Cruzei os braços contra o peito, como uma criança mimada. Mas era isso o
que parecíamos, não? Os mesmos adolescentes que brigaram da última vez.
Era como se nossa primeira discussão não tivesse terminado, só tivesse
entrado em hiato.
— É, Amanda, mas aparentemente somos dois orgulhosos. — Ele ergueu
a cabeça, altivo, e o tom com que fez sua afirmação foi baixinho, deixando
sua voz ainda mais rouca do que o natural. Cheio de melancolia. — Eu ainda
sou orgulhoso. E não estou pronto para ter essa conversa com você ainda.
Dizendo isso, ele pegou sua cerveja e se afastou, deixando-me sozinha,
surpresa e machucada.
Eu não deveria ter me aproximado. Não deveria ter cogitado a
possibilidade de que poderíamos tentar algum tipo de reconciliação da
amizade.
Um cabeça dura! Isso que ele era.
Precisei de alguns instantes, mas quando voltei para perto de Ticiane,
sentei-me novamente na banqueta e fiz um sinal para Walter.
— Uma tequila! Só para começar.
Embebedar-me não era a resposta nem a solução, mas eu não fazia isso há
séculos. Seria apenas por uma noite. Uma só...
CAPÍTULO NOVE

A ideia não era sair para espairecer? Tomar umas cervejas com um amigo
e relaxar? Por que diabos, então, eu estava mais estressado do que quando
cheguei?
Aliás... amigo? Da onça, só se fosse. Afonso tinha montado a armadilha, e
eu caí como um patinho. E o filho da puta nem atendia ao telefone para que
eu pudesse lhe passar um sermão.
Ficar dentro daquele bar tornou-se insuportável para mim. Não porque
estivesse verdadeiramente puto com Amanda...
Ou melhor, eu estava. Não com ela, de fato, mas com toda a situação.
Estava irado com a forma como ela ainda mexia comigo. Como sentia cada
gota do meu sangue correr mais quente pelo corpo só pela proximidade.
Isso só podia ser doença. Eu não a tocava há sete anos. Quando o fiz, era
só um garoto inexperiente, e ela, mais ainda. Nossa primeira vez foi
desajeitada, mas nos amávamos; com o tempo, fomos nos conhecendo
melhor e as coisas foram melhorando. Muito, por sinal. Ao ponto de não
conseguirmos tirar as mãos um do outro. Era um milagre que eu não a tivesse
engravidado, porque nem sempre nos lembrávamos da camisinha.
Sentindo que sua presença era tóxica para mim, peguei a cerveja e fui me
sentar lá do lado de fora, abrindo a caçamba da minha caminhonete e me
acomodando nela. A noite estava bonita, estrelada, e um vento gostoso batia
no meu rosto.
Poderia ser pior.
Eu deveria voltar para casa. As chances de Amanda sair por aquela porta
enquanto eu ainda estava ali eram imensas. Mais ainda de ela vir atrás de
mim e tentar continuar aquela conversa estúpida. Não havia mais nada a ser
dito entre nós. Namoramos quando garotos, ela foi embora, seguiu com a
vida, eu tive uma filha e agora ela ia se casar. Ponto final. Nada de “e foram
felizes para sempre”. Que surpresa! Não havia nada de conto de fadas na
realidade.
Só que por algum motivo, acabei ficando ali. Talvez eu realmente fosse
masoquista.
Uma hora depois de ter saído lá de dentro, ouvi o som de passos pisando
no cascalho e ergui os olhos para ver Walter, com as mãos nos bolsos, vindo
na minha direção. Sem nem esperar ser convidado, ele se sentou do meu lado,
na caminhonete, e me entregou mais uma cerveja.
— Esta é por conta da casa — falou e a abriu, com seu inseparável
abridor, que ficava preso ao cinto.
Ele estava com uma na mão também, para si, o que era raro. Então
levantou a garrafa na minha direção e brindamos.
— Algum motivo para brindar? — perguntei, meio de mau humor.
— Às mulheres que partem nossos corações todos os dias.
Era uma frase bem melancólica, especialmente porque eu sabia que
Walter era apaixonado pela minha mãe há muitos anos. Só que,
aparentemente, ele era o melhor amigo do meu pai, na época, e por mais que
o safado a tivesse abandonado, ela não quis “dar o troco”. Só que muitos anos
já tinham se passado, e só D. Sílvia não percebia que nada mudara. O bom e
velho Walter continuava caidinho por ela.
Não neguei o motivo do brinde. Era um tão bom quanto qualquer outro. E
eu poderia dizer que Amanda não me afetava mais, mas Walter me conhecia
desde moleque. Sem dúvidas saberia dizer se era mentira. Até melhor do que
eu.
— Ela só queria conversar, sabe? — ele falou.
— Foi ela que te mandou aqui? — a pergunta saiu em um impulso, mas
logo me arrependi. Especialmente pela forma como uma das sobrancelhas de
Walter se ergueu.
— Pensei que me conhecesse bem, garoto. Eu não costumo ser pombo-
correio de ninguém.
Balancei a cabeça, dando uma golada na cerveja, concordando. Ele estava
certo.
— Ela pode querer, mas eu, não.
— E por que não?
Remexi-me no assento. Não queria continuar aquele assunto, mas não
poderia mandar Walter embora, principalmente porque o bar era dele. Por
mais que tecnicamente estivéssemos do lado de fora, aquela área pertencia
mais a ele do que a mim.
— Porque ela vai embora, Walter — comecei em ar de confissão. — Vai
voltar para o noivo rico, e eu vou ficar aqui. Pensando nela como fiquei sete
anos atrás. Vamos pagar de amiguinhos, e ela vai viajar para a merda do Rio
de Janeiro depois de — fiz o sinal de aspas com os dedos — “fechar um
ciclo”. Não é assim que todos falam?
— Hummm — Walter murmurou. — Então você não está dando a ela o
direito de se explicar para puni-la?
Eu ia negar imediatamente. Cheguei a abrir a boca, mas logo meu cenho
se franziu, e eu analisei as coisas. Talvez fosse exatamente isso, só que não
de uma forma tão cruel. Não uma punição. Só não queria colocar aquele
ponto final. Enquanto a história ficasse inexplicada, eu teria a sensação de
que ela poderia continuar de alguma forma.
— É complicado — foi tudo o que eu disse.
— Claro que é. A vida é complicada. Você não é o único sortudo. Aposto
que aquela garota lá dentro também tem um monte de problemas além de um
ex-namorado que ainda a ama.
— Eu não... — mais uma vez me preparei para negar, mas... novamente...
era Walter. Assim como minha mãe e Seu Dodô, era uma das pessoas mais
velhas que cercavam a minha vida e que me conheciam tão bem que era
assustador.
— Olha, eu não quero bancar o fofoqueiro — ele começou, mas o tom era
exatamente de fofoca. — A garota bebeu um pouco mais do que deveria e
acabou falando demais também. Não acho que esteja exatamente apaixonada
pelo noivo. Não sinto isso quando ela fala dele.
— Virou vidente agora? — resmunguei, tentando disfarçar o quanto
aquela informação me interessava. — E o que isso pode ter a ver comigo?
— Pelo que eu entendi, ela vai ficar em José de Alencar por alguns dias.
Talvez seja o suficiente para que...
— Não, Walter — interrompi com veemência. — Nem me vem com essa.
Eu não vou...
Pretendia continuar falando, negando que tinha qualquer interesse em
tentar reconquistá-la – porque eu realmente não tinha –, mas vi Ticiane sair
do bar e vir em nossa direção.
Ah, que ótimo! Mais um advogado de Amanda.
No entanto, a expressão dela não parecia tão boa.
— Ei, Murilo... você pode me ajudar? — ela pediu sem graça. — Eu
pediria ao Walter, mas sei que ele não pode sair do bar, ao menos não por
enquanto.
— O que aconteceu? — indaguei.
— A Amanda acabou de cair no banheiro.
Levantei-me da picape imediatamente, e Walter fez o mesmo.
— Ela se machucou? — preocupei-me.
— Não. Ela caiu de bunda. Só que está muito bêbada, e eu acho que seria
melhor levá-la embora. Não vou conseguir fazer isso sozinha, ainda mais que
viemos andando. Você pode me ajudar?
Como eu poderia negar? Não era só por ser Amanda, mas eu não era do
tipo que negava auxílio a ninguém.
Fechei a caçamba da picape e entreguei a garrafa quase vazia para Walter.
— Como ela conseguiu ficar tão bêbada em uma hora? — questionei no
caminho para o banheiro.
— Aparentemente ainda não é muito forte para bebidas.
Uma coisa era não ser forte aos dezesseis, quando conseguíamos comprar
algo escondido. Outra era uma mulher de vinte e três anos guardar a mesma
particularidade.
Bem, mas não era hora de pensar nisso naquele momento.
Entrei em companhia de Ticiane no banheiro, esperando quando uma
mulher passou por nós, sem entender o que eu estava fazendo ali.
Não precisava ser muito observador para perceber em qual cabine
Amanda estava, porque eu conseguia ouvir a voz dela cantando baixinho uma
música da Beyoncé. Talvez Run the World, se eu não estava enganado.
A porta da cabine estava aberta, então quando eu a abri, vi Amanda
sentada no chão, cantando e dançando sozinha a música, como se estivesse
no meio de uma super festa.
Assim que viu a mim e à prima, abriu um sorriso completamente fora de
noção.
— Ah, olha vocês dois aí! Eu estava me perguntando: onde diabos está o
herói da cidade que ainda não veio aqui resgatar a donzela bêbada? — a voz
dela estava embargada. — Você, Murilo, é um pé no saco, sabia?
Franzi o cenho, olhando para ela. Eu sabia que era um pé no saco, mas ela
também sabia ser difícil. Não respondi nada.
Ticiane se aproximou e pegou a bolsa da prima do chão, ajudando-a a
levantar-se, apoiando-a.
— Vem, Manda! Vamos te levar para casa!
— Não! — Ela se desvencilhou de Ticiane e quase se desequilibrou,
precisando segurar-se na parede da cabine. — Não quero que meu avô me
veja assim ou de ressaca amanhã. Eu acho melhor...
Só que Amanda nunca falou o que achava melhor, porque simplesmente
despencou nos braços de Ticiane. Apressei-me em ampará-la, porque por
mais que fosse uma coisinha pequena, sua prima não era tão maior assim e
não iria aguentá-la, especialmente lânguida como estava.
Sem nenhuma dificuldade, eu a levantei no colo, saindo da cabine com
cuidado e depois levando-a para fora do banheiro, sabendo muito bem que
seríamos o assunto da semana na cidade.
— O que vamos fazer? Ela não quer ir para casa — Ticiane falou,
enquanto eu carregava Amanda para a picape.
— Não sei se ela tem muito poder de decisão, incoerente como estava.
— Claro que tem. E podemos mesmo evitar que vovô a veja assim. Sabe
que ele sempre foi liberal, mas se vê-la nesse estado, desmaiada, vai ficar
preocupado. Não queremos assustá-lo.
— Por que, então, não a levamos para a sua casa?
— Porque eu não vou dar conta dela sozinha.
Por que será que de alguma forma eu tinha a impressão de que, assim
como seu marido, Ticiane estava tentando armar alguma cilada para mim?
— Se ela não voltar para casa ele também vai ficar preocupado.
— Não se estiver com você.
Parei no meio do caminho em direção à caminhonete, olhando para ela,
confuso.
— E o que Amanda poderia estar fazendo, passando a noite comigo,
sendo que é comprometida? — quase rosnei as palavras. Eu não estava
gostando nada daquilo.
— A gente pode inventar alguma coisa, que vocês decidiram conversar,
ela foi pra sua casa e ficou tarde para voltar. Vovô quer muito a amizade de
vocês, ficaria feliz com isso.
Merda! Havia um problema nas artimanhas de Afonso e Ticiane: eu caía
em todas.
— Ok, Tici. Eu vou levá-la para a minha casa. Mas fique sabendo que
amanhã de manhã bem cedo ela estará na sua porta, acordada ou não. Aí você
se vira para achar uma desculpa.
Ela assentiu e me ajudou a colocar Amanda no banco do passageiro.
Como não podia ser diferente, ofereci-lhe uma carona, e ela seguiu na minha
caçamba mesmo, pulando ao chegar em casa e me dando tchauzinho.
Quem diria que eu terminaria aquela noite com Amanda no meu carro,
desacordada, completamente bêbada, sem ter a menor noção do que deveria
fazer com ela?
CAPÍTULO DEZ

Havia barulhos indefiníveis ao meu redor. Provavelmente foi o que me


puxou de um sono no qual eu preferia ficar perdida. Isso e a claridade que
vinha da janela, que anunciava que havia amanhecido.
Sabia que tinha bebido além da conta. Minha memória tinha certo limite,
provavelmente até a quinta tequila. Lembrava-me de Walter se recusando a
servi-la e de eu ter insistido tanto que ele cedeu, afinal de contas, eu não ia
voltar sozinha para casa.
Também me lembrava vagamente de ouvi-los cochichando que Murilo
ainda estava lá fora, que se eu acabasse dando PT – sim, perda total –, eles
apelariam pedindo ajuda.
E foi aí que as coisas ficaram um pouco tensas.
Eu não queria a ajuda de Murilo. Não queria absolutamente nada que
viesse dele. Não queria que aquele corpo incrivelmente sexy chegasse perto
de mim.
Aquele corpo incrivelmente sexy – ai, merda, eu tinha uma leve certeza de
que foram essas as exatas palavras que soltei. Na frente de um bar inteiro, em
alto e bom som. Pouco antes de correr para o banheiro, com uma vontade
desesperadora de fazer xixi. Tici foi comigo, e então eu não me recordo de
absolutamente mais nada.
Ainda assim, eu estava em uma cama. Deitada de bruços, sobre lençóis
que cheiravam a algodão.
Remexendo-me um pouco e com cuidado, porque a cabeça latejava como
se alguém estivesse martelando dentro dela, olhei para mim mesma e me vi
usando uma camisa masculina. Ajeitando-me mais ainda até me colocar
sentada, percebi que tinha duas vezes o meu tamanho.
Passei a mão pelo rosto, afastando os fios de cabelo que caíam sobre meus
olhos e os pisquei algumas vezes tentando dissipar a neblina que os cobria.
Ao olhar ao meu redor, reconheci o ambiente. Era uma lembrança vaga, mas
existia.
Não era exatamente a mobília, porque parecia relativamente nova, mas a
disposição das coisas. Então eu vi algo sobre a mesinha de cabeceira: dois
bonequinhos de madeira unidos em um abraço. Era uma peça artesanal, que
fora vendida em uma feirinha em José de Alencar oito anos atrás.
Uma peça que eu comprei, com minha escassa mesada, para dar de
presente a Murilo. Algo para simbolizar nosso relacionamento.
E eu não sabia o que me deixava mais inquieta: o fato de ele tê-la
guardado até aquele momento, bem ao lado de sua cama, ou de eu estar em
sua cama.
Ah, meu Deus... não diga que...
Levantei-me de um pulo, tentando ignorar a dor em nome de uma
investigação muito mais importante. Descalça, comecei a andar pelo quarto,
em direção à porta, passando por ela, enquanto ouvia sons distintos:
movimentos em uma cozinha, de panelas, um TOC, TOC de marteladas e... o
choro de um bebê.
Assim como fiz com a dor, consegui ignorar tudo isso, porque o cheiro do
café me dominou.
Eu ainda me lembrava bem da casa. E como não lembraria se passei boa
parte da minha infância e adolescência ali? Aliás, a cena foi tão familiar que
quase me desequilibrou. Sílvia, na cozinha, preparando alguma coisa,
cantarolando. Ela parecia não ter envelhecido um ano sequer.
Mas havia um bebê, de fato. Meus ouvidos não me traíram. Será que ela
engravidara de novo? Não tinha muito mais de quarenta anos, poderia ter
acontecido, não?
— Ah, aí está você! — ela falou, olhando para mim com um sorriso.
Sempre a achei linda, mas a maturidade só lhe fez bem. — Foi uma noite e
tanto, hein!
Levei ambas as mãos ao rosto, morrendo de vergonha.
Eu conhecia Sílvia muito bem, e sabia que ela era a mãe mais moderna e
permissiva que Murilo poderia ter. Eu e ele nos encontrávamos em sua casa,
e tínhamos todas as liberdades lá, contanto que nos cuidássemos. Ela nos
dava privacidade, porque preferia que transássemos sob seu teto seguro do
que em um motel de beira de estrada perigoso, ou no banheiro da escola ou
qualquer coisa assim que nos encrencaria. Quando precisava de um conselho
de mulher para mulher, era a ela que eu recorria, já que minha mãe sempre
foi mais dedicada a fazer social com as amigas da igreja e as esposas dos
caras menos desfavorecidos da cidade. Aliás, ela sempre teve um ranço
imenso da Sílvia, e eu fingia não saber por que, mas imaginava que era uma
baita inveja, porque todos os homens da cidade babavam nela.
Inclusive o meu pai.
— Ainda estou um pouco confusa — respondi.
— É normal, querida. Estou passando um café, logo você vai ficar melhor,
mas antes... — Ela abriu os braços. — Vem cá e me dá um abraço que eu
estava morrendo de saudade de você.
Então seria assim? Ela me receberia como se nada tivesse acontecido,
mesmo depois de eu ter partido o coração de seu filho?
Bem, não iria reclamar.
Aproximei-me mais ainda e me entreguei àquele carinho, aproveitando
cada segundo. Sílvia era alta, e eu conseguia encostar minha cabeça em seu
peito, de forma muito maternal. Acariciou meus cabelos e deixou um beijo
deles, afastando-nos.
— Está tão linda, querida. É bom te ver.
— É bom te ver também, Sílvia. Você não mudou nada.
Voltando-se para o café, ela estalou a língua.
— Bobagem. Consigo contar cada ruga nova a cada dia quando me olho
no espelho.
— Você está vendo coisas de mais. — Então me virei para a neném.
Era a coisinha mais linda que eu já tinha visto, com imensos olhos verdes,
cabelinhos castanhos e um laçarote rosa claro na cabeça, com detalhes em
renda, combinando com o vestidinho que usava. Ela estivera chorando, mas,
curiosa, parara para ficar olhando para mim – uma pessoa nova em sua vida.
Agachei-me para falar com ela.
— Oi, bonequinha. Você eu não conheço. — Toquei sua perninha e
comecei a brincar com os dedos, subindo pela barriguinha e fazendo
cosquinhas. Ela abriu um sorriso tímido e banguela. Voltei-me para Sílvia, e
esta estava olhando para mim com uma expressão que eu não conseguia
interpretar. — Qual o nome dela?
— Raíssa. Completou um aninho tem pouco menos de um mês.
O que me fez acreditar que Sílvia tinha engravidado aos trinta e nove. Ela
nunca mencionou nada sobre querer ter outro filho, e eu nem sabia se tinha se
casado novamente. Achei que não seria de bom tom perguntar, mas queria
saber mais.
— A gravidez foi tranquila, Sil?
Ela pareceu confusa por alguns instantes, mas logo uma estranha
compreensão se iluminou em seu rosto.
— O nascimento de Raíssa foi tranquilo. Mas acho que você precisa
conversar com Murilo.
— Por quê?
— Sobre a neném. Acho que ele vai te contar melhor sobre ela.
Aquilo me deixou curiosa o suficiente para que eu seguisse os sons das
marteladas – que pareciam ecoar dentro da minha cabeça –, tendo em mente
que provavelmente era Murilo que estava trabalhando em alguma coisa na
varanda da casa.
Nem me importei por estar usando apenas uma camisa por cima da minha
lingerie e saí da casa, vendo Murilo com uma camiseta muito mais apertada
do que eu gostaria, porque não era saudável olhar para um corpo como aquele
e não sentir o meu responder ao dele.
— Bom dia — cumprimentei, e ele não parou de martelar por mais alguns
instantes, como se terminar sua tarefa fosse muito mais importante do que me
dar atenção. Insistente, pigarreei.
Finalmente Murilo olhou para mim. Seu cenho estava franzido como
sempre, quando tinha a ver comigo, como se ele não estivesse nem um pouco
interessado em me olhar.
Só que eu sabia que isso era uma farsa, porque ele nem tentou disfarçar.
Ou talvez tenha tentado, mas não conseguiu, porque da mesma forma como o
comi com os olhos, ele fez o mesmo. A camisa que eu usava provavelmente
não favorecia em muito a minha silhueta, mas uma boa parte das minhas
pernas estava de fora, e foi nelas que seu olhar parou.
Foram longos minutos em que permanecemos admirando um ao outro, e
eu sentia minha respiração começar a ficar entrecortada. O magnetismo, a
intensidade, as emoções... tudo era exacerbado. Que tola eu fui em pensar que
Murilo era parte do meu passado.
Não poderia ser. Não enquanto me atraísse daquela forma.
— Que bom que acordou — ele disse, jogando as ferramentas dentro de
uma bolsa de couro e fechando-a. — Está na hora de te levar para a casa do
seu avô.
Ele já ia entrar na casa, mas segurei seu braço. O que foi um erro. Apenas
um toque foi suficiente para que eu sentisse a eletricidade que nos rondava.
Um simples contato quase me fez perder todo o ar – já precário – que ainda
havia nos meus pulmões.
— O que aconteceu ontem? — precisei perguntar. Era algo mais
importante do que a garotinha lá dentro, não era?
— Em resumo? Você bebeu além da conta, pediu que eu não te levasse
para casa, porque não queria que seu avô te visse naquele estado. Então
desmaiou e eu a trouxe para cá. Se está preocupada em ter traído seu
noivinho, fique tranquila. Você dormiu na minha cama, e eu, no quarto da
neném. Quem trocou sua roupa foi minha mãe.
Bem, ninguém poderia negar que Murilo tinha um poder de síntese muito
bom.
Ele fez menção de novamente entrar na casa, mas continuei segurando-o.
— A neném é sua irmãzinha? Filha da sua mãe? — eu não precisava
perguntar aquilo naquele momento. Poderia esperar estarmos no carro, a
caminho da casa do meu avô ou... sei lá... nem precisava saber com tanta
urgência, mas outra teoria se formou na minha cabeça.
E aparentemente eu estava certa.
— É minha filha.
Uau.
Murilo tinha uma filha. Uma bebezinha de um ano.
Quem seria a mãe? Seria ainda importante para ele? Ainda estariam
juntos?
Aquelas, no entanto, seriam respostas que eu não receberia, primeiro
porque não tinha coragem de fazer as perguntas e, em segundo lugar, porque
ele finalmente se soltou do meu aperto, dizendo:
— Vá se trocar. Suas roupas estavam imundas, e minha mãe as lavou.
Deixou alguma coisa para você vestir em cima da cômoda. Vou te levar para
casa.
Então ele entrou, me deixando sozinha, cheia de dúvidas e incertezas.
CAPÍTULO ONZE

O silêncio era uma merda. Eu nunca soube lidar muito bem com ele,
principalmente quando estava ao lado de uma pessoa com quem me sentia
bastante desconfortável. Não costumava ser assim com Amanda. A gente
sempre teve assunto o suficiente para ficarmos conversando por horas. Isso
quando não passávamos uma eternidade nos beijando.
Nada nunca era incômodo com ela, porque mesmo quando estávamos
caladoS, havia um entrelaçar de dedos, ou eu a tinha aninhada nos meus
braços, ou nossas respirações pareciam se encaixar, em uníssono. Tudo
sempre foi natural.
Mas não mais.
Eu queria desesperadamente que Amanda dissesse alguma coisa. Qualquer
coisa. Porque não estava nem um pouco inclinado a começar algum assunto.
Se fizesse isso, começaria a dar explicações sobre Raíssa, e eu não devia
absolutamente nada a ela. Não precisava lhe contar os detalhes do nascimento
da minha filha, mas sabia que estava curiosa.
Tanto que foi a primeira a abrir a boca, embora conhecesse seu orgulho e
soubesse que ele não permitiria que fosse direta. Ela iria sondar.
— Sua filha é linda — ela comentou, tentando parecer algo
completamente corriqueiro.
— Ela é — respondi, com os olhos fixos no caminho à minha frente.
— Imagino que a mãe também seja. — Daquela vez quase sorri. Eu não
lhe daria tudo de mão beijada. Era um joguinho infantil, mas estava pouco me
lixando.
— Sim. É muito bonita.
Amanda se remexeu no banco, parecendo incomodada. Ora, ora... ela
podia exibir um anel de noivado enorme no dedo, mas eu não podia ter uma
filha com outra mulher?
Esperei que fizesse mais alguma pergunta, mas controlou-se. Eu não sabia
se teria tanto sangue frio se fosse o contrário.
Passamos mais algum tempo em silêncio, enquanto eu dirigia, mas ouvi o
som do telefone dela tocando. Algo me incomodou em sua reação. Amanda
me pareceu tensa demais, nervosa demais, e quando ouvi sua saudação de
“oi, amor”, preocupei-me mais ainda. Era o noivo, sem dúvidas, e ela fez um
sinal de silêncio para mim, ainda muito alterada.
— O quê!? — exclamou, mais assustada ainda. — Você está na casa do
meu avô? Como assim? — Seus olhos se voltaram para mim, parecendo uma
reação involuntária, e eu continuava não gostando nada daquilo. — Não, tudo
bem. Eu só... fui visitar uma amiga que não via há muito tempo. Já estou
chegando.
Tentei parar de prestar atenção à conversa, porque definitivamente não era
da minha conta. Ela estava mentindo para o noivo, porque claramente não se
sentia à vontade para lhe contar a verdade.
Bem... não que fosse simples, porque ela tinha passado a noite na casa do
ex-namorado, completamente bêbada. Ainda assim, eu a sentia tensa demais.
Como se estivesse com medo.
Isso gelou o meu sangue. Se aquele filho da puta fosse abusivo com ela de
alguma forma...
Amanda encerrou a ligação e rapidamente se voltou para mim:
— Você pode, por favor, me deixar aqui? Vou andando o resto do
caminho. — Faltava apenas um quarteirão para que chegássemos à casa de
Seu Dodô, e eu poderia atender ao seu pedido. E poderia fazer isso sem lhe
perguntar nada. Mas era mais forte do que eu.
— Você tem medo do seu noivo? — a voz saiu rouca, como um rosnado.
Não queria parecer tão à flor da pele ou passional, mas era impossível.
— Não! — ela respondeu rápido demais, o que novamente me deixou
preocupado. — Claro que não. Mas não quero que me veja com você. Pode
tirar conclusões precipitadas.
Balancei a cabeça lentamente e parei o carro, como ela pediu.
— Obrigada pela carona. Por tudo, aliás. Acho que vou repetir a frase que
mais ouvi esses dias: se não fosse por você... — Ela tirou o cinto de
segurança e se voltou para mim com um sorriso sem graça.
Eu poderia deixá-la saltar. Deveria, aliás. Amanda tinha sua vida, como eu
tinha a minha. Ela estava noiva, e eu era pai. Cada um seguira seu caminho, e
eles não se cruzavam. Não havia mais chances para nós. Mas isso não me
impedia de me preocupar com ela, de querer que estivesse segura.
Foi por esse motivo que fechei a mão em seu braço, impedindo-a de saltar.
— Amanda... — chamei seu nome, e ele acariciou minha língua de uma
forma que eu não esperava. Soou suave, macio, como um beijo. Ela voltou os
olhos azuis na minha direção, tão expressivos que eu poderia mergulhar
neles. — Se ele fizer algo contra você... se te machucar ou for grosseiro... Se
for abusivo...
Ela suspirou. Minha voz soara intensa demais, protetora. Poderia disfarçar
ou fingir que essa não era a minha intenção, mas não quis. Por mais que
estivesse magoado, Amanda fora importante para mim, e eu não poderia
nunca negligenciá-la. Não faria isso com mulher nenhuma que eu descobrisse
que vivia um relacionamento abusivo, muito menos com uma que fizera parte
da minha história.
Sua mão tocou a minha, ainda em seu braço, e ela outra vez deu um
daqueles sorrisos desanimados. O brilho do anel que ela carregava no dedo
quase me cegou, e eu a soltei por impulso.
— Está tudo bem, de verdade. Mas obrigada...
Amanda saltou do carro, deixando-me lá dentro, ainda não muito
convencido de que estava mesmo tudo bem. Havia algo de estranho naquele
relacionamento. Minha cabeça não conseguia parar de pensar que ela não
estava tão apaixonada assim pelo cara, como Walter dissera. Ou talvez fosse
só eu me iludindo como o babaca que sempre fui quando tinha a ver com ela.
Praguejando, fiquei observando-a caminhar por um tempo, até que dei
meia volta e segui para casa, esperando poder apagar aquela impressão da
mente.

Abri a porta da casa do meu avô sentindo o corpo inteiro tenso e pensando
no que Murilo dissera: “se for abusivo...”.
Eu nunca tinha pensado em João Pedro dessa forma, como um namorado
controlador, mas as coisas começaram a pipocar na minha cabeça. Um
homem não necessariamente precisa agredir fisicamente uma mulher para ser
considerado abusivo. Atitudes pequenas são sinais também.
Jurei que, com mais calma, iria pensar no assunto, mas naquele momento
eu tinha outras coisas para lidar.
Entrei na casa e ouvi uma conversa vinda da cozinha. A primeira coisa
que vi foram os três homens reunidos: Afonso, meu avô e João Pedro. Este
parecia tão deslocado quanto possível. Ele frequentava os locais mais
elegantes do Rio de Janeiro, conhecia mil pessoas importantes, então eu
podia ver em cada um de seus movimentos o quanto estava odiando cada
segundo na casinha humilde do meu avô. Peguei-o remexendo-se na cadeira
desconfortável e olhando para o copo de geleia onde fora servido o café como
se estivesse sujo demais para seus lábios esnobes.
Naquele momento eu o odiei.
— Ah, ela chegou! — Afonso falou, apontando para mim.
João Pedro levantou-se imediatamente e veio me receber, pegando-me em
um abraço, como se não me visse há tempos. Então sussurrou baixinho no
meu ouvido:
— Como você aguentava viver nessas condições? Ainda bem que sua
família deu sorte, né? — Não me deu tempo de responder porque logo se
virou na direção do meu avô, que estava sentadinho à mesa.
Olhei em seus olhinhos sempre doces, e ele não parecia nem um pouco
encantado com o meu noivo.
— O assunto era exatamente você, meu amor. Nós, aliás — João Pedro
disse, passando um braço pelos meus ombros. — Estava comentando com o
seu avô como queremos que participe do nosso casamento, mas ele me
explicou que não sabe se vai poder fazer viagens longas por algum tempo. —
Ele não tinha me dito isso, mas provavelmente era verdade. E fazia todo
sentido. — Então eu tive uma ideia sensacional.
Medo. Muito medo.
— O que você acha de transferirmos o casamento no civil para cá? Afonso
me falou que o cartório local é super bonitinho, que tem um espaço para uma
cerimônia pequena. Podemos fazer algo simbólico para seus amigos e família
daqui.
— Acho que minha mãe teria um treco — respondi em um impulso.
— Não, claro que não. Ainda teremos a festa enorme lá no Rio, mas é só
uma forma de seu avô participar. E assim podemos adiantar as coisas
também. Já estamos com a papelada toda pronta, não temos por que esperar.
— De quanto tempo estamos falando?
— O que acha de uma semana?
— Uma semana? — eu e meu avô falamos juntos, em um tom nada
tranquilo.
— João, eu acho impossível conseguirmos data assim tão em cima da
hora... — tentei.
— Em uma cidade pequena como esta? Com certeza se consegue. Além
do mais, amor, você sabe que eu posso dar uma molhada na mão de quem
quer que seja para a gente conseguir o que quiser — lá estava seu jeito
esnobe de falar novamente. Ele costumava me divertir, mas por algum
motivo passou a me deixar muito enojada. — A não ser que você não queira
se casar comigo tão rápido...
Minha resposta deveria ser não. Ele estava me dando esse espaço, não
estava? Mas sua expressão parecia bem menos simpática do que tentava
transparecer. Eu odiava conflitos, odiava contrariar as pessoas... Dificilmente
dizia não, mesmo quando queria fazê-lo.
E, além do mais... o que mudaria? O casamento aconteceria em
pouquíssimos meses, não seria cancelado. Semanas a mais ou a menos? O
resultado seria o mesmo.
— Tudo bem, a gente se casa em uma semana. — Assim que respondi
olhei para o meu avô e, por algum motivo, ele parecia muito contrariado. Era
difícil vê-lo assim, e isso me deixou muito triste.
Mas será que eu estava chateada apenas pela reação do meu avô ou estava
decepcionada comigo mesma?
CAPÍTULO DOZE

A comida, como sempre, estava uma delícia, mas ela descia pela minha
garganta sem que eu nem sentisse o gosto dela. Apenas mastigava uma, duas,
três vezes e engolia, como se não tivesse um pingo de educação.
Eu sabia que minha mãe estava me olhando com aquele ar de quem sabe
tudo, e eu preferia evitar contato visual antes que ela fizesse algum
comentário que iria me deixar ainda mais de mau humor.
O dia começara péssimo e tinha potencial para ficar pior, porque eu não
recebi muito trabalho para fazer, ou seja, não teria onde afundar minhas
mágoas. Dar de cara com Amanda na minha varanda, vestindo nada mais do
que uma camisa minha, tornara minha manhã um inferno. Só que nada se
comparava à preocupação que passei a sentir depois que vi a forma como
reagiu a uma simples ligação do noivo.
Porra, podia fazer anos, mas eu conhecia Amanda apaixonada. Porque ela
fora apaixonada por mim. Inegavelmente apaixonada. Lembrava-me de seus
olhares, seus beijos, seus sorrisos e o quanto suas palavras soavam
verdadeiras. Não fora um engano. Ela sofrera quando foi levada embora. Ela
não parecia sentir o mesmo pelo cara novo.
E isso ficou ruminando na minha cabeça por um bom tempo, até que D.
Sílvia não aguentou mais o silêncio.
— Amanda está muito bonita, você não acha? — Olhei para ela no
momento em que terminou de falar, e a safada sequer me encarava. Estava
brincando com a comida no prato, coisa que sempre me censurou por fazer
quando eu era garoto.
— O que eu acho é que todos vocês têm que parar de ficar me empurrando
para ela — respondi em um resmungo baixo.
Da forma mais canastrona possível, minha mãe arregalou os olhos, em
uma tentativa de parecer inocente que não convencia ninguém.
— Eu? Está equivocado, Murilo Alberto! — Um dia ela já me assustou
quando me chamava pelo nome composto, mas não mais. — Foi só um
comentário como outro qualquer.
— Conheço vocês. Pensa que não sei que já falou com Ticiane e com
Dodô? Te ouvi ao telefone mais cedo.
— E eu não poderia estar falando com outra pessoa? Com um crush
qualquer? — Eu teria rido da forma como ela falou crush, mas preferi me
manter sério, porque o assunto pedia isso.
— Claro que poderia, mas não acho que ele teria o nome de Ticiane. E
também não acho que você ficaria a fim do Seu Donato.
— Ah, e por que não? Ele é um homem interessante.
— Com idade para ser seu pai.
— Não existem barreiras para o amor, nem a diferença de idade. — Lá
estava ela novamente tentando me fazer rir. Minha mãe sempre foi boa nisso,
porque era cínica e provocadora.
— Mãe, eu estou falando sério. Amanda não voltou para José de Alencar
de vez. Ela vai ficar aqui só por alguns dias, por causa do avô. E ainda por
cima vai se casar.
— É, aparentemente ela vai se casar aqui.
— Aqui? — Pronto, ela conseguiu chamar a minha atenção.
Como assim Amanda ia se casar aqui? Em José de Alencar? E todos os
preparativos para a festa mais elegante do ano, com salão caro e concorrido,
buffet de chef famoso e convites espalhados para celebridades brasileiras e
algumas até internacionais? Não era isso que dizia a notícia que minha mãe –
enxerida – leu para mim há algumas semanas?
— Pelo que minhas fontes seguras me contaram, o tal noivo — ela usou
de um imenso desdém para dizer a palavra — deu a ideia de fazerem o
casamento no cartório daqui, com uma pequena cerimônia lá mesmo. Algo
simbólico para o Seu Dodô poder participar, já que não seria muito prudente
ele fazer uma viagem longa em sua condição.
— Bem, foi até legal da parte dele, não? — Elogiar o babaca era algo que
me dava até ânsia de vômito, e eu não sabia por quê. Até onde eu sabia, ele
podia ser um cara legal, não? O que vi nos olhos de Amanda dentro do carro
poderia ser só uma impressão.
— Foi o que eu pensei de início também, mas tanto Tici quanto Seu Dodô
acharam meio estranho. E Amanda não ficou muito feliz com isso, mas não
negou. — Com ares de fofoqueira, minha mãe se aproximou de mim, por
sobre a mesa, como se houvesse alguém ao nosso redor que pudesse nos
ouvir para que precisasse sussurrar. — O Dodô não foi com a cara do sujeito.
Muito arrogante, sabe? Não parece que a ideia dele de adiantar o casamento
só para incluir o coroa tem mesmo a ver com gentileza. Parece ter um
interesse por trás.
Em qualquer outra situação eu poderia jurar que se tratava de um exagero,
mas conhecia a família de Amanda, e eles eram acolhedores ao extremo.
Sempre foram comigo, e eu sabia que havia uma preferência pela minha
pessoa, mas nenhum deles iria minimizar as escolhas dela por causa de um
relacionamento que aconteceu tantos anos antes. Eram boas pessoas, com um
bom senso de julgamento, e isso começou novamente a me preocupar.
Tanto que, sem querer, dei com a língua nos dentes:
— Amanda me pareceu um pouco tensa ao falar com ele hoje, sabe?
Quando a deixei em casa. Tanto que pediu que eu estacionasse a um
quarteirão de distância da casa para que não nos visse chegando juntos —
confessei.
— Ah, que absurdo! Não aconteceu nada entre vocês! Eu estava aqui,
você só foi cavalheiro com ela — indignou-se.
— É, eu sei disso, mas foi o que senti. Acho que o cara é um pouco
controlador. Ou mais do que um pouco.
— Temos que descobrir! — ela disse isso dando um tapa na mesa de
madeira, tão alto que acordou Raíssa, o que fez minha mãe praguejar
baixinho, uma palavra que eu não repetiria perto da minha filha quando ela já
fosse grandinha o suficiente para compreender.
Levantei-me imediatamente, fazendo um sinal para que minha mãe
deixasse comigo, e peguei a neném do carrinho, embalando-a no meu colo.
— Calma, filha, papai está aqui. Não foi nada, só a sua avó maluca... —
disse, em um tom de brincadeira, e um osso de frango foi atirado em minha
testa, com a pontaria perfeita que eu sabia que ela tinha. Ao menos serviu
para Raíssa trocar o choro por uma gargalhada.
— A vovó não tem nada de maluca, Raíssa. Estou bem lúcida. Seu pai que
é um bobalhão.
— Ei, ei, ei... de onde veio isso?
— Acho que é bem óbvio. A menina está em péssimas mãos com o noivo,
e você não vai fazer nada? — Minha mãe se levantou e foi na direção da
cozinha, mas eu fiquei parado no mesmo lugar, falando um pouco mais alto
para que me ouvisse:
— Primeiro que não sabemos se ela está mesmo em péssimas mãos e,
além disso, por que eu teria que fazer alguma coisa? Não sei se você
esqueceu, mas faz sete anos que não temos nada a ver um com o outro.
Minha mãe não respondeu nada, como se não estivesse dando a menor
bola para todo o meu discurso. Percebi que havia uma travessa em suas mãos;
uma que ela estendeu a mim.
— Toma. Vai levar isso aqui para o Dodô e apurar essa história direito.
Como a neném tinha se acalmado um pouco, coloquei-a em sua
cadeirinha. Ela não fazia as refeições conosco em si, porque eu ou minha mãe
a alimentávamos antes, para regular seus horários, mas sempre a
mantínhamos em nossa companhia. Estava começando a se tornar arteira e
não podia ficar muito tempo sem supervisão.
— O que diabos é isso?
— É uma torta de banana. A preferida dele. Amanda gostava também
quando era menina. É a desculpa perfeita para você aparecer lá e dar uma
olhada no tal do noivo.
Franzi o cenho, balançando a cabeça em negativa.
— Não, mãe! Não! — Ergui as mãos em um sinal de “basta!”. — Eu não
vou lá. Não tem sentido. Amanda me pediu para estacionar o carro bem longe
da casa, porque não queria que o noivo me visse. O que acha que vou causar
se aparecer lá?
Ela revirou os olhos como se fosse muito óbvio.
— É diferente! Você não vai estar chegando de manhã com a garota em
casa, como se tivessem passado a noite juntos. Estará fazendo uma visita a
um amigo. — Ainda não fui convencido, então ela imitou minha expressão,
também franzindo o cenho. — Murilo Alberto, você obedeça à sua mãe. Leve
a porcaria da torta para Donato — alterou-se. — E vá com Raíssa, ele vai
gostar de vê-la.
Abri a boca para falar alguma coisa, mas... bem... eu conhecia a D. Sílvia.
Não só seu poder de argumentação quanto de chantagem. Quando dei por
mim, já estava na porta da casa de Donato, pronto para entrar, com a porra da
torta na mão e empurrando o carrinho da minha filha com a outra.
Daquela vez, nem entrei direto; bati, esperando ser atendido. E quem eu vi
do outro lado da porta foi Amanda.
Assim que percebeu quem era, ela arregalou os olhos, deu uma olhada ao
redor, como se estivesse fazendo algo completamente errado e não quisesse
que ninguém visse, colocou a mão no meu peito e me empurrou para fora,
saindo também e fechando-nos lá fora.
— Você ficou maluco? — ela sussurrou, mas alterada, então sua voz
subiu uma oitava. Seria engraçado se não fosse trágico.
— Por vir entregar um bolo para o seu avô convalescente? — zombei.
— Você sabe que não é disso que estou falando! Meu noivo está aqui.
— E eu estou aqui. Não sou ninguém, Amanda. Só um amigo da família.
Um velho amigo — quase repeti as palavras da minha mãe.
Amanda olhou para mim com pesar. Quase como se quisesse dizer que
não era bem assim.
Porém não tivemos tempo para discutir a minha afirmação, porque Dodô
surgiu abrindo a porta ao lado de um cara loiro, alto, que usava uma blusa
pólo azul marinho e uma calça black jeans. Todo engomadinho, com cara de
rico. Só podia ser o noivo da Amanda.
— Ô, Murilo! O que você está fazendo aí fora? E por que bateu na porta?
Entra logo que eu quero pegar essa coisinha linda aí — disse, apontando para
Raíssa, que estava acordada por um triz no carrinho.
Dei uma olhada em Amanda, que parecia muito nervosa, mas meu olhar
parou no tal noivo.
A animosidade foi instantânea. Ele não foi com a minha cara.
Ótimo, porque eu também não fui com a dele.
CAPÍTULO TREZE

Aquilo não poderia estar acontecendo. Quantas mais emoções eu iria


suportar naquela cidade? Era para ser uma visita calma ao meu avô, para vê-
lo, matar as saudades e até dar um oi para as pessoas que conheci por quase
uma vida, mas, não. Claro que não. Porque o furacão Murilo não parava de
me surpreender.
Mentira. A culpa não era só dele. Não foi ele que me embebedou, e eu
tinha que admitir que fora bastante cavalheiro ao lidar com isso. Mas por que
diabos decidira aparecer na casa do meu avô, sabendo que João Pedro estava
lá também?
E eu não podia negar: o ar estava pesado. Os dois se olhavam como se
estivessem prontos para entrar em um combate digno de UFC, só que João
não teria a menor chance contra Murilo. Os dois eram altos, mas meu ex-
namorado... pelo amor de Deus, o braço dele era do tamanho da minha coxa.
Um soco daquela mão imensa faria um estrago e...
Por que isso me deixava tão excitada?
Eu era uma traidora, isso, sim. Porque trair em pensamento era tão errado
quanto trair para valer.
Os dois nem tentavam conversar. João, para ser mais sincero, evitava se
dirigir a Murilo, como se ele fosse muito inferior. Será que tinha um sexto
sentido assim tão bom ou será que eu e Murilo emanávamos tanta química
que ficava visível a olho nu?
— Mas João estava dizendo que precisa ir embora hoje, não estava? —
Voltei a cabeça na direção do meu avô, que segurava a filhinha adormecida
de Murilo nos braços, como provavelmente fizera comigo e Ticiane no
passado. O que mais chamou a minha atenção foi a forma natural com que ele
praticamente expulsou meu noivo, com seu jeitinho doce e despretensioso.
João, que olhava para seu café naquele copinho de geleia, como se não
fizesse sentido e precisasse de uma xícara decente de porcelana, ergueu os
olhos, balançando a cabeça. Ser incluído na conversa provavelmente lhe deu
a oportunidade perfeita para largar a bebida e sorrir, como se estivesse se
sentindo completamente à vontade.
— Infelizmente, preciso. Tenho alguns compromissos. — Eu não poderia
imaginar quais, sendo que meu noivo não era exatamente um exímio
trabalhador. — Mas estava com esperança de que Amanda pudesse voltar
comigo. Ainda mais que retornaremos a José de Alencar em pouco tempo
para nos casarmos. — Ele colocou a mão sobre a minha, olhando na minha
direção de um jeito que não me agradava. Parecia querer me convencer,
quase me obrigar.
Ouvi a cadeira, onde Murilo estava sentado, se remexer e percebi o vinco
em sua testa aprofundar.
— Eu quero ficar um pouco mais, João. Quero passar mais algum tempo
com meu avô. Quando você retornar na semana que vem, para casarmos, eu
volto com você.
— É o mínimo, né? — Ele deu uma risadinha desdenhosa, saindo de seu
personagem. — Imagina passarmos nossa noite de núpcias aqui ou você
resolver ficar afastada de mim depois de casados...?
Todos os olhos se voltaram para ele, que rapidamente se empertigou,
como se percebesse que tinha agido de forma muito explícita, deixando suas
opiniões a respeito de minhas origens muito claras.
— Seja como for, seria bom você voltar comigo — falou em voz de
comando. Não era a primeira vez que fazia isso, mas era a primeira em que
eu percebia tão claramente.
— Acho que ela tem que voltar se quiser voltar — Murilo quase rosnou.
Durante toda a visita, que já durava uns quarenta minutos, ele sequer abriu a
boca. Apenas soltava seus olhares que mais pareciam venenosos em direção
ao meu noivo, analisando cada um de seus movimentos, claramente não
aprovando nenhum.
João ergueu os olhos para ele também, e eu quase congelei diante da
tensão que se formou. Eu ia responder que não iria voltar, que ia ficar com
meu avô ao menos mais aquela semana, mas Seu Dodô piscou para mim,
aproveitando que lancei um olhar de soslaio para ele, sem entender, mas não
demorei a perceber qual era sua estratégia.
Subitamente, levou a mão ao peito, e seu rosto se transfigurou em uma
careta.
— Ai, deu uma coisa estranha aqui, sabe? Do nada... — Murilo levantou-
se de um pulo, correndo em direção ao meu avô, e eu senti pena dele, todo
assustado. Mal sabia que era uma artimanha de Seu Donato.
— Seu Dodô, quer que o leve ao hospital de novo? — lá estava Murilo
querendo ser o herói da história pela segunda vez. E o pior era que ele não
fazia esforço para isso. Era seu coração enorme mesmo.
— Não precisa, meu filho. Não precisa. Já está passando. Acho que foi o
medo de ficar de novo com saudade da minha netinha. — Então, com uma
cara irresistível de pidão, ele se voltou para João: — Você não teria coragem
de tirá-la de mim, teria? Serão só mais alguns dias e depois vocês terão a vida
inteira juntos.
Murilo olhou para mim, confuso a princípio, mas não demorou a
compreender do que tudo aquilo se tratava.
— Não, Seu Donato, pode deixar. Amanda fica — voltou-se para mim,
pegando a minha mão, beijando-a e fingindo-se de complacente. — Eu deixo
— foi em tom de zombaria, mas com a leve arrogância de sempre.
Por que estava me irritando tanto, se João sempre foi assim? Como nunca
percebi que não eram brincadeiras inocentes?
Percebi Murilo tenso, mas meu avô segurou o braço dele.
Ao senti-lo tão protetor e intenso ao meu respeito, meu estômago se
revirou.
Meu coração batia acelerado no peito. Mas pelo homem errado.

Eu já deveria ter ido embora. Há horas. Desde que o babaca também saiu,
deixando Amanda para trás. O que me prendia ali?
Bem, eu sabia a resposta, mas não queria pensar nela.
Dodô tinha ido se deitar um pouco, alegando que estava cansado, mas
conhecendo bem aquele velho estrategista, eu sabia que o que queria era me
deixar sozinho com sua neta. Bem, Raíssa estava conosco, mas ela não era
exatamente testemunha, né? Na verdade, minha filha parecia piorar o cenário,
porque estava nos braços da mulher, parecendo encantada com ela, enquanto
Amanda a entretinha cheia de caras e bocas.
Eu não era de ferro. Qualquer um que tratasse bem a minha filha ganharia
pontos comigo. Naquele caso então...
— Meu Deus, ela é uma delicia! — Amanda comentou apaixonada, e eu
não conseguia tirar os olhos das duas. — Estou apaixonada por esses
laçarotes! — Tocou o laço daquela vez, que era de um roxo vivo,
combinando, como sempre, com o vestido.
Um pensamento muito fugaz cruzou a minha mente, um pelo qual me
condenei rapidamente: Raíssa poderia ser nossa. Nós poderíamos ser uma
família, se o destino não tivesse nos separado de uma forma tão cruel.
Naquele instante, nós estávamos sentados na varanda da casa de Seu
Dodô, comendo o doce que minha mãe enviou – como já tínhamos feito
tantas outras vezes no passado. A sensação era agridoce.
— Ela é — eu poderia ser muito mais eloquente ao falar sobre a minha
filha, mas temia que minhas palavras entregassem mais do que eu queria
demonstrar. Não queria que ela percebesse o quanto minha voz estava
embargada por ver as duas daquele jeito.
— Estou me controlando desde mais cedo para perguntar, mas... você e a
mãe dela ainda estão juntos?
Amanda era bem mais corajosa do que eu. Era o tipo de questionamento
que eu não faria se estivesse no lugar dela.
— Não, não estamos — fui econômico, porque queria que ela fizesse mais
perguntas. Queria que demonstrasse interesse em minha vida amorosa,
embora isso fosse uma idiotice. A prova de que nunca mais poderia acontecer
nada entre nós tinha saído daquela casa algumas horas antes.
— O que aconteceu? — Ela deu uma garfada na torta, tentando muito
parecer blasé. Minha filha se remexia em seu colo, tentando tocar o prato, e
Amanda voltou sua atenção para a neném, novamente brincando e fazendo
meu coração se apertar no peito.
Eu era um idiota.
Em resposta à sua pergunta, dei de ombros.
— Nada de mais. Foi uma noite apenas. Ela era de outra cidade, modelo, e
não queria a responsabilidade de ser mãe vinte e quatro horas por dia. Eu pedi
a guarda. E é isso. Somos amigos.
— Ela é presente para Raíssa?
— O máximo que consegue ser.
— Isso não te causa ressentimento?
— Por que causaria? Homens fazem isso o tempo todo, não fazem? Minha
filha está comigo, e é ela que me importa. Não preciso que alguém seja
forçado a fazer algo que não quer, porque não preciso de ajuda além da que já
tenho.
Amanda deu uma olhada na minha garotinha e depois para mim. O sorriso
em seu rosto tornou-se mais cálido, o que mexeu comigo.
Novamente... eu era um idiota.
— Você é um cara legal demais para o seu próprio bem, Murilo.
Não entendi o que ela quis dizer com aquilo, mas apenas assenti,
desejando não pedir explicações. Caímos em um silêncio quase confortável, e
eu fiquei me perguntando o que mais aquela estadia de Amanda na cidade iria
me custar, porque ela estava ali há pouquíssimo tempo, e eu já sentia que
causaria um belo de um estrago.
CAPÍTULO QUATORZE

Era estranho estar ali. Mais do que isso... era estranho se sentir tão à
vontade, como se aquele tipo de coisa acontecesse todos os dias. Como se
fosse um revival do passado, embora tudo estivesse diferente. Há sete anos,
nós não éramos as pessoas que tínhamos nos tornado. Eu não estava noiva.
Murilo não tinha uma filha. Era como ser jogada de paraquedas em uma
realidade alternativa.
Mas quando respirei bem fundo, sentindo o ar mais puro da cidade
pequena, sem os sons insuportáveis de buzinas, sem o cheiro da selva de
pedra em que vivia, eu realmente me senti criança novamente. Como se
tivesse todo o futuro diante dos meus olhos.
— Por que está sorrindo? — Nem percebi que meus lábios tinham se
curvado até Murilo falar alguma coisa. Não poderia dizer que me esqueci da
presença dele ao meu lado, porque era impossível. Ele era parte do cenário.
Parte do que me fazia rever lembranças muito queridas.
— Estou me lembrando do quanto eu amava este lugar — respondi em um
sussurro. Há alguns minutos Murilo tinha ido pegar o carrinho de Raíssa, e
ela dormia entre nós, serena e doce, como um anjinho.
— O lugar sempre esteve aqui, você que foi embora.
Abri os olhos devagar, voltando-os para Murilo por um segundo, mas logo
abaixando-os em direção ao piso de madeira da varanda. Eu não tinha motivo
para me envergonhar, e o tom que ele usou nem pedia isso. Não parecia uma
reprimenda; ainda assim, não era fácil de ouvir.
— Eu não fui porque quis, e você sabe disso — afirmei com convicção.
Murilo comeu mais um pedaço de torta. Era nossa segunda rodada, mas eu
mal tinha tocado no meu segundo prato.
— Sim, eu sei — era a primeira vez que admitia isso, o que me deixou
surpresa. Seria uma trégua entre nós? — Mas também sinto falta...
Ele deixou a frase no ar, e eu poderia fingir que nada aconteceu. Poderia
simplesmente deixar para lá, como se não fosse importante, mas era.
— Sente falta do quê? — continuei com o tom de voz baixo, como se
minha coragem não permitisse que eu fosse mais longe.
— De nós.
Uau... eu não esperava que ele fosse ser tão direto. Murilo nunca foi um
cara que curtiu joguinhos, não media palavras e não fazia rodeios. Era uma
das coisas que eu mais amava nele.
Só que o fato de sua confissão ser tão surpreendente não apenas me
deixou confusa, mas também remexeu minhas entranhas, causando-me uma
dor quase física. Era fácil não pensar no que vivemos quando não o tinha por
perto ou quando ele era apenas uma memória distante e quase inacessível.
Lado a lado, ouvindo sua voz, sentindo seu cheiro e sendo alvo daquele tipo
de comentário, as coisas ficavam mais complicadas.
— Não só de sermos namorados, Amanda. Não só de te beijar, de te
tocar... mas do que tínhamos. Ia além de algo físico. Eu não só perdi a mulher
que eu amava, mas perdi a minha melhor amiga.
Beijos... toques... Ah, meu Deus.
Tudo bem, tudo bem... toda a mensagem tivera um baita significado, e eu
estava comovida por ela, mas pensar em todo o resto me provocou um
arrepio que percorreu a minha espinha terminando na minha nuca, fazendo
minha cabeça girar.
— Você deixou bem claro, Murilo. Não queria mais falar comigo. O que
queria que eu fizesse?
— Eu era um garoto idiota. Na época quis que você lutasse por nós. Na
minha cabeça, era você que estava indo embora, deveria ser a responsável por
tentar uma nova chance.
— É, foi bem idiota da sua parte — comentei com sinceridade. — Mas
ainda podemos ser amigos. Recuperar o tempo perdido.
Murilo voltou-se para mim com o olhar mais intenso que eu poderia
receber. Seus olhos pequenos estavam estreitos, pesados, não muito
diferentes de como ficavam quando o garoto que conheci demonstrava desejo
por mim.
— Você acha que podemos, Amanda? Acha mesmo que existe alguma
forma de sermos amigos? — havia um tom ácido na forma como proferiu a
última palavra. Um que quase fez com que eu me encolhesse, constrangida.
Não respondi. O que eu poderia dizer? Dias atrás eu teria aquela resposta
na língua, completamente segura do que queria, mas foi só vê-lo para as
coisas perderem o rumo.
Murilo não ficou muito mais na casa do meu avô naquela noite. Minutos
depois de sua pergunta que ficou sem resposta, ele pegou sua bebezinha e foi
embora, deixando-me sozinha. Meu avô já estava dormindo, e eu até fui para
a cama, mas passei a noite inteira em claro, pensando. O que diabos eu tinha
feito com a minha vida?
Dois dias se passaram na velocidade da luz, e quando me dei conta, já
estava no carro, partindo com Ticiane e Sílvia – sim, a mãe de Murilo – para
a cidade vizinha, onde elas me juraram que havia uma loja nova, bem chique
– como as duas disseram –, onde eu poderia conseguir um vestido incrível
para a cerimônia no civil.
Eu deveria estar radiante. Por mais que não fosse a festança que vinha
preparando desde que fui pedida em casamento, seria algo a se comemorar,
não? Seria especial do mesmo jeito, e eu me tornaria esposa de João antes do
tempo.
Por que, então, isso me assustava tanto?
Só não me assustava mais do que a quantidade de vezes que pensei em
Murilo nos últimos dois dias.
A loja realmente era ótima, e as vendedoras se desesperaram para me
atender, porque, aparentemente, sabiam quem eu era. Em quinze minutos, eu
tinha oito vestidos pendurados numa cabine, embora houvesse um preferido.
Por acaso ele foi o último que vesti. Nenhum deles ficou ruim, mas eu
sabia que aquele seria o escolhido. Esperei sentir um frio na barriga, uma
emoção especial, ouvir fogos de artifício, mas nada aconteceu. Quando me
olhei no espelho do lado de fora, permitindo que as outras duas mulheres o
vissem também, continuei acreditando que era o vestido certo. Só que...
talvez... eu não fosse a noiva certa.
Ele era em um tom de azul bem clarinho – não branco, porque eu queria
guardar a cor para a igreja –, tinha um bonito decote, uma cintura marcada
abaixo do busto por uma linda faixa de cetim, e caía em uma saia armada,
mas não me fazendo parecer como se eu estivesse no meio de um baile
vitoriano. Não era de mais nem de menos, era perfeito. Os olhos brilhando
das minhas duas companhias me disseram isso.
— Meu Deus, Manda! Que coisa mais linda! — minha prima exclamou
animada, aproximando-se.
Sílvia ficou parada, observando-me de longe. Meus olhos encontraram os
dela através do reflexo do espelho, e eu a vi sorrir.
— Linda, querida. Como sempre. — Só que ela também não parecia feliz.
Era como se me compreendesse.
Ticiane encarou a nós duas, confusa.
— É um casamento, viu? Não um enterro. Por que as duas estão com
essas caras de bunda?
Nenhuma de nós respondeu, mas, em silêncio, concordamos.
— Acho que estou um pouco nervosa, só isso — foi a minha resposta.
No entanto, quando cheguei em casa, depois de algumas horas, joguei a
sacola sobre a cama e fiz o mesmo, olhando para o teto, aproveitando que
vovô estava dormindo. Não queria que ele me visse naquele estado, porque
rapidamente compreenderia que eu estava com dúvidas a respeito do meu
casamento.
Só que o que mais bagunçava meus pensamentos era o medo de nunca ter
tido certeza. De ter me precipitado. De ter tomado uma decisão influenciada
pela minha mãe.
Como me deixei chegar a esse ponto? Nunca permiti que tentasse
controlar a minha vida, nunca deixei que se metesse, principalmente quando
tinha a ver com meus amigos. E com Murilo. Por ele eu lutei tanto... e perdi.
Nós dois perdemos.
Meus pensamentos começaram a ser envenenados por ideias perigosas. O
vestido ao meu lado parecia gritar: EU POSSO SERVIR PARA OUTRA
COISA.
Claro que poderia; ele era lindo. E, além do mais, não era como se eu não
tivesse dinheiro para comprar uma roupa e não usar. Eu poderia doar para a
caridade uma dezena de vestidos como aquele, se isso significasse um futuro
feliz.
Um que eu já não conseguia mais enxergar ao lado de João Pedro.
Sem nem perceber o que fazia, liguei para a minha mãe. Só me dei conta
quando ouvi seu “alô” do outro lado da linha.
O que eu estava fazendo? Já sabia a opinião dela.
— Oi, filha! Como estão as coisas aí? Está aguentando esse muquifo? —
Achei melhor nem dar bola para seu comentário maldoso e fui direto ao
ponto:
— Mãe, o quão ruim seria se eu cancelasse o casamento?
Um silêncio atordoante se seguiu à minha pergunta. Parecia que eu tinha
acabado de lhe dar uma notícia de algum falecimento. Ou melhor... se ligasse
para contar que vovô tinha morrido – bate na madeira três vezes – ela não
ficaria tão abalada. Porque eu sabia que esse era o caso. Minha mãe falava
pelos cotovelos, principalmente quando não devia, e ela estar completamente
calada só podia significar que seus neurônios tinham dado tilt.
— Mãe? — precisei chamar, porque já estava agoniada.
— Amanda, eu espero que você esteja brincando — ela saiu falando, em
um tom que tinha subido uma oitava.
— Talvez eu esteja falando sério.
Novamente o silêncio. Por um momento, um único instante, jurei que ela
iria tentar ter uma conversa comigo de mãe para filha. Poderia tentar me
convencer de que eu estava louca, de que o casamento estava batendo na
porta e que João era um partido que eu não poderia me dar ao luxo de perder,
mas o que veio em seguida já era de se esperar: uma gargalhada.
— Você é mesmo uma piadista, minha filha. Só que estou ocupadíssima
na manicure, e a Telma está terminando meu pé, vou precisar liberar as mãos
para ela fazer.
Era isso? Ela ia me trocar por suas unhas?
Tive vontade de gritar, de praguejar, de deixá-la boquiaberta com a
quantidade de desaforos que poderiam escapar da minha boca, mas apenas
fiquei calada. Para variar.
Nós nos despedimos como se nada tivesse acontecido. Como se minha
opinião não contasse para nada.
E, para ela, não contava.
Em um ataque de raiva, dei um tapa na bolsa de papel que guardava o
vestido, fazendo-a cair no chão. Isso não ia mudar em nada, mas fiquei ali
parada, com as mãos entrelaçadas sobre a barriga, olhando para o teto e
pensando que não podia definir o resto da minha vida dali a alguns dias.
Precisava de mais tempo, mas sabia que João Pedro teria o mesmo
comportamento da minha mãe.
Eu precisava fazer alguma coisa.
CAPÍTULO QUINZE

Amanda, Amanda, Amanda...


Parecia que desde que ela tinha chegado naquela cidade o assunto só
girava em torno desse nome. Todas as pessoas, não só minha família e meus
amigos, mas todo mundo em quem esbarrava me perguntava sobre ela. Como
se eu tivesse alguma ligação com a mulher. Como se ela ainda fosse minha...
Que ironia.
Vinha tentando fugir há dois dias. Eu mal fazia minhas visitas diárias a
Dodô, porque sabia que ia encontrá-la, e não era saudável para mim. Nossa
última conversa sobre continuarmos amigos mexeu comigo de uma forma
nada agradável.
E sabe o que era mais estúpido? Ela tinha voltado para José de Alencar há
pouquíssimo tempo. Não era possível que tão rápido os sentimentos que me
fizeram companhia no passado tivessem retornado com tanta força.
Exatamente como uma história inacabada. Como se os sete anos que nos
dividiram ao meio tivessem sido apenas uma fenda no tempo, destruída no
momento em que ficamos mais uma vez frente a frente.
Para completar o meu mau humor, minha mãe resolveu ir buscar Dodô na
casa dele para jantar conosco. Amanda estava com Ticiane, para ajustar
alguma coisa da merda do vestido do casamento, já que Tici era uma ótima
costureira.
Não era para aquele velho enxerido estar descansando? Aparentemente já
estava mais forte que um touro, dando um banho na minha mãe num jogo de
cartas qualquer.
— Amanda ficou linda no vestido, né, Dodô? — Lá estava a cobra
venenosa, traidora. Minha mãe era o amor da minha vida, uma santa, a
mulher mais corajosa que eu conhecia, mas quando colocava uma coisa na
cabeça, ela saía espalhando merda para tudo que era lado, se achasse
necessário.
E, por algum motivo, seu passatempo daqueles dias era me provocar em
relação a Amanda.
— Linda? É pouco. Ela ficou parecendo uma princesa. Mas vamos ser
sinceros... minhas netas são maravilhosas. — Pronto, Seu Dodô entrou no
esquema. Eu podia sentir em seu tom de voz a ironia.
Continuei dando o jantar a Raíssa, tentando me focar na minha tarefa,
porque minha filha merecia toda a minha atenção. No entanto, nenhum dos
dois parecia muito interessado em parar.
— Eu só acho que ela não vai ser feliz, sabe, Sil? Não fui com a cara
daquele noivo dela. Ele parece que quer controlar a menina em tudo —
Donato mostrou indignação, e eu não pude deixar de apurar os ouvidos para
escutar, por mais que soubesse que fosse errado fazê-lo.
Eu tinha reparado a mesma coisa, não tinha? O cara não era flor que se
cheirasse, e isso não tinha absolutamente nada a ver com o fato de estar me
sentindo um pouco – só um pouco – a fim de Amanda novamente.
O que era completamente errado e me tornava igualmente canalha por
estar desejando a mulher de outro.
— Você acha, Dodô? Pois é, eu tive a mesma impressão hoje, quando ela
foi comprar o vestido. Nunca vi uma noiva tão triste se olhando no espelho
— outro comentário “inocente”.
Merda... eles iam me contaminar.
— Eu acho que eu deveria conversar com ela. Imagino que quem esteja
fazendo a cabeça da Amanda seja Carmem. Conheço a minha filha, Sílvia.
Aquela ali... — Ele estalou a língua. — Não sei onde errei com ela. A mãe da
Tici é um anjo, vive a vidinha dela lá em São Paulo e não dá problemas.
Falando em língua, quem deveria conter a minha era eu, mas...
— Amanda é adulta. Ela sabe tomar as próprias decisões. Se chegou ao
ponto de aceitar se casar com aquele cara é porque quer se casar com ele.
Os dois se voltaram para mim como se eu fosse uma assombração, de
olhos arregalados e surpresos. Em segundos, um vinco profundo apareceu na
testa da minha mãe, um sinal de total descontentamento.
— Não fale do que não sabe, Murilo Alberto! Não sabe o que significa ser
uma mulher presa em um relacionamento abusivo!
Aquilo me preocupou.
— Vocês acham que aquele filho da puta machuca a Amanda?
Minha mãe e Seu Dodô se entreolharam, quase como cúmplices.
— Há muitas formas de um homem ser abusivo com uma mulher, meu
filho. E a mãe dela também é. Sempre foi, você sabe disso.
— Mas ela nunca deixou a mãe controlá-la.
— Porque nós nunca deixamos — Seu Dodô falou, e ele estava certo. Nós
incitávamos Amanda a lutar contra os mandos e desmandos da mãe.
Pensando nisso, meu sangue começou a ferver. Lembrava-me de várias
vezes em que Amanda surgiu chorando e eu a acalentei no meu peito,
tentando consolá-la por causa dos absurdos que a mãe fazia. Os castigos que
ela sofria simplesmente por namorar comigo. Nunca era nada físico, mas ela
aguentava humilhações e horas e horas de trabalho duro em casa, para que a
mãe ficasse sentada, cuidando da aparência ou vendo suas novelas. Várias
vezes Amanda dormiu no meu colo, exausta, por causa das exigências que
recebia para que pudesse ser deixada em paz para ficar comigo.
Sempre a achei corajosa. Sempre quis ir na casa dos pais dela e dizer
poucas e boas aos dois. Pensar que um idiota poderia estar subjugando-a de
alguma maneira me deixava doente.
Sem nem pensar no que fazia, levantei-me, pousando o pratinho de Raíssa
sobre a mesa de jantar, onde minha mãe e Donato jogavam. Minha neném
estendeu os bracinhos, como se estivesse indignada porque parou de ser
alimentada, então eu voltei à consciência.
— Mãe, pode terminar aqui? — perguntei, sabendo que ela entenderia ao
quê eu me referia.
— Posso, mas o que você vai fazer?
— Falar com Amanda. Descobrir o que está acontecendo.
Não deixei que falassem mais nada, apenas saí, marchando e seguindo
para a casa de Dodô.
Esperava que Ticiane ainda estivesse lá, é claro, porque não confiava em
mim mesmo sozinho com Amanda, especialmente depois de ficar sem vê-la
por dois dias.
A porta, como sempre, estava aberta. Naquele momento eu deveria ter
pensado em bater, em pedir permissão para entrar, porque não era mais
apenas Dodô ali. Duas mulheres possivelmente estavam ali dentro, e eu nem
sabia se as duas estavam decentes.
Mas eu não ouvia vozes. Não ouvia absolutamente nada. Ao menos até
que fui entrando na casa, caminhando e chegando às escadas. Parei quando
ouvi um soluço baixinho.
Um pânico me invadiu, e eu saí correndo como um louco pelos degraus,
apavorado de que pudesse ter acontecido algo, traumatizado com a noite em
que encontrei Dodô caído e quase agonizando.
Quando passei pela porta do quarto que pertencera a Amanda no passado,
e onde provavelmente ela estava hospedada, fiquei paralisado.
Ela se olhava no espelho de corpo inteiro, com um vestido azul que a
deixava parecendo uma princesa. Curvas, seios, colo, braços, cintura... tudo
parecia acentuado e na medida perfeita dentro da peça.
Claro que era o vestido com o qual iria se casar. Com o qual iria dizer sim
a outro homem e se tornar a senhora de outra pessoa.
O vestido com o qual eu a perderia para sempre, por mais que ela não
fosse mais minha.
Através do espelho, ela me viu ali, parado, observando-a como se ela
fosse a coisa mais linda do mundo.
E ela era.
Porra, ela era.
Qualquer um enxergaria isso, mas eu duvidava que aquele babaca com
quem iria se casar a consideraria mais linda do que eu.
— Murilo! — Ela limpou as lágrimas com pressa, como se a
envergonhassem. — Desculpa, não te vi aí.
Continuei calado. Meus pensamentos eram muito perigosos naquele
momento. Se eu falasse qualquer coisa, se desse um único passo, poderia
fazer algo que me deixaria arrependido.
Ou não.
Se não fizesse, poderia ser um arrependimento eterno.
— O que foi? Precisa de alguma coisa? — ela perguntou com uma voz
doce, fazendo-me lembrar demais da Amanda que eu conheci. Da minha
Amanda.
Então eu poderia culpar minhas lembranças pela atitude que tomei.
Fui até ela em um rompante, pegando seu rosto com minhas duas mãos, o
que a deixou muito assustada.
— Me dá um motivo... Só um motivo para eu não te beijar agora — falei
em um tom de voz rouco, quase como se fosse um marinheiro hipnotizado
por uma sereia.
— Eu vou me casar em alguns dias — ela respondeu muito séria, o que
me fez recuar. Só que as mãos de Amanda se fecharam nos meus punhos,
mantendo-me ali. — Não... o que está fazendo?
— Você me deu um motivo. Um bem relevante, aliás.
— Não! — ela exclamou, com os imensos olhos azuis arregalados. —
Não... não foi um motivo... foi um comentário... eu... — Amanda respirou
fundo. — Estou assustada, Murilo. Não tenho mais certeza se quero me casar.
Preciso de mais algum tempo.
— Você não precisa se casar. Pode pedir para adiar um pouco.
— Não posso. Eu... não posso... é complicado... — Deus, ela parecia tão
triste. Como nenhuma noiva deveria parecer às vésperas de seu casamento.
Abaixou a cabeça por alguns instantes, mas logo a ergueu, olhando-me nos
olhos. — Mas eu quero o beijo, Murilo. Preciso... por favor... me beija.
Naquele momento, daquele jeito, eu teria feito qualquer coisa que me
pedisse. Nem pensei nas consequências, nas suas palavras anteriores ou no
que poderia vir a acontecer caso nós dois nos magoássemos de novo. Caso eu
me apaixonasse por ela outra vez e tivesse que vê-la se tornando esposa de
outro.
Eu só a beijei.
Inclinei-me em sua direção, ainda com as mãos em seu rosto, colando
nossos lábios. Demorei algum tempo apenas parado, daquele jeito, sentindo a
maciez da boca que eu já conhecia. Depois pedi passagem. Lentamente deixei
que minha língua tocasse a dela, explorando, reconhecendo, relembrando.
Seduzindo. Desejando. Possuindo.
Minhas mãos começaram a deslizar para baixo, e uma delas se espalmou
na curva de suas costas, puxando-a mais para mim. A outra se embolou em
seus cabelos, segurando-os com a medida certa de força para não machucá-la.
Ouvi quando soltou um suspiro longo e delicioso. Um que fez cócegas no
meu cérebro e me levou a agir com ainda mais ímpeto.
Literalmente a tirei do chão, como se ela realmente fosse uma noiva.
Amanda soltou um som de surpresa, com a boca ainda presa à minha, mas
colocou os braços ao redor dos meus ombros. Levei-a para a cama, deitando-
a lá.
Eu não estava respondendo por meus atos. O gosto dela era o mesmo de
sete anos atrás, e eu nem fazia ideia de como ainda me lembrava com tantos
detalhes. Só que havia algumas diferenças. Não éramos mais os garotos que
fomos. Eu não era mais o menino inexperiente e afobado que mal sabia o que
fazer com o corpo de uma mulher, mas que queria fazer tudo ao mesmo
tempo. Queria desfrutar do beijo. Queria que o tempo parasse para nós.
— Porra, Amanda... Porra... — sussurrei, descendo minha boca por seu
maxilar, por seu pescoço, sentindo-a estremecer. — Nada entre nós mudou.
Nada...
— Eu sei, Murilo. Eu nunca deixei de pensar em você. Nunca.
Tomei novamente seus lábios com ainda mais gana do que antes.
Ela pensara em mim tanto quanto pensei nela. Era como se aqueles anos
não tivessem passado.
— Se você não tomar uma decisão, eu vou cometer uma loucura e te
sequestrar do altar, só para que a gente tenha mais uma chance de... — foi
uma brincadeira, eu juro.
Uma brincadeira feita em um momento de insanidade, de frenesi.
Só que Amanda simplesmente sobressaltou-se, e por um momento
acreditei que tivesse ficado insultada ou indignada. Quase me apressei em me
explicar, mas um sorriso enorme curvou seus lábios.
— É isso! É essa a solução para os meus problemas! — exclamou,
animadíssima.
Remexi-me, saindo de cima dela e me levantando da cama. Amanda se
sentou, sem nem se preocupar em amassar o vestido.
— Do que você está falando? — indaguei, começando a ficar assustado.
— É o plano perfeito! Você vai me sequestrar no altar!
CAPÍTULO DEZESSEIS

Era um bom plano.


Pelo amor de Deus, era a melhor ideia desde que a roda foi inventada.
Fazia todo sentido: as pessoas adoravam uma história dramática e cheia de
reviravoltas. Um amor inacabado, um casal separado injustamente, um
homem lindo, sexy e apaixonado que não se conforma em perder a mulher
que ama... Ah, daria até um livro. E isso seria aceitável. Romântico. Um bom
motivo para que uma garota como eu pudesse desistir de um casamento
aparentemente perfeito.
Sem dúvida as mulheres do mundo inteiro iriam se identificar e me
compreender.
Era só elas olharem para Murilo. Não ia sobrar nenhuma com a calcinha
intacta.
Seria um escândalo? Claro. Mas ninguém poderia ficar contra mim.
— Amanda, fala que você está brincando! — Murilo pediu, não parecendo
tão animado quanto eu.
— Não, estou falando sério. Pensa só: eu, no altar, prestes a dizer o sim.
Você chega, me arrebata da igreja, me leva para algum lugar isolado – eu
posso providenciar, sem problemas, caso você não tenha nenhum em mente
–, ficamos alguns dias lá, sozinhos, e pronto! Eu ganho tempo. — Para ser
muito sincera, eu já imaginava o que aconteceria depois daqueles tais dias
que estava propondo a Murilo. O casamento seria cancelado, porque nem
mesmo João iria querer uma mulher que lhe causasse um escândalo daquele
tamanho. Ele suporia que eu o traí ou qualquer coisa assim. Conseguiríamos
terminar de uma forma amigável, e eu não faria o trabalho todo sozinha.
Eu sabia e imaginava muitas coisas, mas não as diria a Murilo, porque não
queria fazer promessas que não poderia cumprir.
— Ganha tempo? — ele cuspiu as palavras, com uma risada sarcástica.
— É, ué... tempo. — Eu tinha falado alguma coisa errada? O que ele não
estava entendendo?
— Não! Nem pensar! Sempre achei que fosse doida, mas agora tenho
certeza! — ele falou alterado, em um grunhido, passando as mãos pelos
cabelos curtos e escuros.
— Você não está enxergando a situação pelo prisma correto. Eu acho
que...
— Que porra de prisma, Amanda? — ele me interrompeu. — Isso não vai
mudar a sua situação. Poderia te dar mais alguns dias, o que não adianta de
nada.
— Mas é exatamente o que eu preciso! Algum tempo para pensar. Para
decidir...
— Decidir? — Muito contrariado, Murilo falou de um jeito que até me fez
sobressaltar, com sarcasmo e colocando as mãos na cintura. — Depois do que
acabou de acontecer, eu deveria me sentir insultado que ainda precise
escolher.
— Depois do que quase acabou de acontecer — precisei corrigir, mesmo
com dor no coração. Fora um beijo e tanto, e obviamente já contava como
traição. Eu tinha traído João. Só que não iria mais longe do que isso e não
podia mais continuar com nosso relacionamento, de jeito nenhum. Não era
uma opção. Queria apenas terminá-lo de uma forma menos... dolorosa. —
Além do mais, não é uma decisão simples. Há muita coisa envolvida.
— Claro que há. Eu e você temos uma história. E uma bem inacabada,
pelo que pude ver aqui.
Eu concordava com ele, mas minha cabeça estava muito confusa. Tudo o
que eu queria era que ele novamente me beijasse, mas ao mesmo tempo meu
senso de responsabilidade para com outra pessoa não me permitia sequer
tentar.
— E se for só tesão, Murilo? Nós éramos adolescentes e...
— Chega, Amanda! A resposta é não. É o tipo de coisa que eu nunca
faria, não importa o quanto você implore. — interrompeu-me novamente.
— Mas, Murilo...
— Sem mas. Você já fez sua escolha aqui e agora. Não quero ser cobaia
de ninguém.
Merda, eu não queria magoá-lo. Não queria magoar ninguém, mas só
criava confusão. Sempre foi assim.
Assistir Murilo sair por aquela porta fez o meu coração diminuir no peito
até parecer um grãozinho de areia. Quantas vezes mais nós sairíamos feridos
naquele relacionamento – se é que poderia ser chamado assim?
No momento em que ouvi a porta da casa batendo, anunciando que ele
tinha realmente saído e que não havia mais chance de mantê-lo ali para que
eu pudesse me explicar, joguei-me de volta na cama onde tínhamos acabado
de nos beijar como dois loucos.
Levei a mão aos lábios, sentindo-os inchados e pensando que nunca
apenas um beijo com João Pedro fora daquele jeito. Meu corpo ainda reagia à
forma como Murilo me tocara, como se precisasse mais de mim do que
precisava respirar. Nunca me senti tão desejada.
Ou melhor... já. Por ele. Porque sempre foi daquela maneira. Não
conseguíamos tirar as mãos um do outro por muito tempo.
Mas não era apenas tesão. Nunca foi.
E eu sabia disso.
Tanto sabia que, provavelmente de impulso, peguei o telefone. Chamei o
número de João, pronta para resolver aquela situação. Era um momento de
coragem, porque sentia o cheiro de Murilo ainda em mim. Mas não era por
Murilo a decisão. Era por mim. Se cheguei ao ponto de sentir vontade de trair
meu noivo, não poderia mais me casar.
Não poderia me tornar esposa de um homem pensando em outro. Eu não
era esse tipo de mulher.
E foi o que eu disse para João. Contei-lhe toda a verdade. Pedi que
compreendesse, que não pensasse que fora algo de caso pensado. Prometi que
iria para o Rio no dia seguinte, para que conversássemos pessoalmente, só
não queria adiar porque não seria justo com ele, dado o que acabara de
acontecer.
Precisei de toda coragem e saí despejando nele uma torrente de palavras
sem parar. João me ouviu calado e por um momento senti pena. Se fosse eu
no lugar dele, estaria arrasada.
Mas não esperava o que veio em seguida.
— Terminou, Amanda? — havia um desdém em sua voz, uma malícia,
uma maldade... Isso me assustou.
— Bem... sim. Acho que fui sincera e falei tudo. Você quer falar alguma
coisa? — indaguei envergonhada, já preparada para lidar com animosidade.
O que eu queria também? Estava terminando com o cara por telefone, poucos
dias antes de nosso casamento.
— Ótimo, porque você não vai cancelar casamento algum. Eu tenho seu
querido pai nas minhas mãos. Agora você é que vai me ouvir.
E eu realmente ouvi.
Não precisava de tantas explicações para que eu entendesse que não
poderia seguir meu coração. O casamento teria que acontecer.
Estava espumando de raiva quando cheguei em casa. Como ela tivera
coragem de me fazer uma proposta tão absurda? E era ardilosa o suficiente
para fazer isso depois de eu tê-la beijado desesperadamente, o que poderia ter
me deixado com os neurônios meio afetados. Mas ainda bem que consegui
pensar o suficiente para não permitir que me deixasse levar.
— Sua neta é doida! Doida! — falei, apontando para Dodô, que
continuava na sala da minha casa, jogando com a minha mãe. Raíssa não
estava mais à vista, provavelmente já se encontrava no bercinho, dormindo.
— O que aconteceu? — Donato perguntou, e por um momento eu me
arrependi de ter falado com ele daquela maneira. O homem tinha sofrido um
infarto há pouco tempo, no que estava pensando?
Abri a boca para responder, mas quase não consegui falar. A história era
tão absurda que eu poderia jurar que qualquer um acreditaria que era mentira.
Só que os olhos dos dois já estavam fixos em mim. Não haveria escapatória.
— A louca pediu para eu sequestrá-la no altar — soltei de uma vez.
— O QUÊ? — os dois disseram em uníssono.
— Ah, ainda bem que não fui só eu que fiquei chocado. — Não conseguia
ficar quieto. Andava de um lado para o outro, com as mãos na cintura, depois
as levava aos cabelos. Parecia que havia um inseto dentro de mim me
comendo, e não sabia se ele iria me envenenar ao ponto de eu cogitar aquela
ideia absurda.
Porque obviamente existia uma chance.
— Calma, Murilo, você não está fazendo sentido. A Amanda cogitou
isso? — minha mãe perguntou.
— Não é absurdo? Repito: ela é doida.
— Mas o que aconteceu para ela falar uma coisa dessas? Porque
certamente não veio do nada.
Cocei a sobrancelha, envergonhado. Não era o tipo de coisa que eu
gostaria de falar na frente da minha mãe e do avô da mulher em questão. Só
que eu já estava mesmo no inferno...
— Nós nos beijamos. — Não precisava entrar em detalhes, não é? Só isso
era suficiente.
Novamente vi Donato e D. Silvia se entreolharem.
— Então ela está disposta a cancelar o casamento? — Seu Dodô
perguntou.
— Ela parece estar em dúvida ainda.
— E você? Tem dúvidas do que quer? — outra vez a minha mãe. Onde
será que eles estavam querendo chegar?
— Não, não tenho. Mas a qual custo eu a teria de volta?
— Para ser sincero, achei uma boa ideia.
O quê?
Não... ele só podia estar brincando. Ou ficando gagá.
Mas aparentemente minha mãe também, porque olhou para mim e
balançou a cabeça com aquela expressão de pessoa sábia que parecia
conhecer todos os segredos do universo.
— Ah, não é possível. Eu estou no meio de loucos, com certeza!
Saí de perto daqueles dois, porque começava a acreditar que a situação
estava chegando no nível de uma formação de quadrilha, e eu era a vítima.
Parti para o meu quarto e nem fui dar uma olhada em Raíssa, como teria
feito em outro dia. Sentia-me tão agitado, de uma forma negativa, que não
queria passar aquele sentimento para a minha filha.
Entrei debaixo do chuveiro, assim que arranquei as roupas e as joguei nos
chão, deixando a água escorrer pelo meu corpo, esperando que ela, na
temperatura mais fria possível, me proporcionasse um pouco de sanidade.
Só que não deu muito certo, porque naquela noite eu me revirei na cama,
enquanto a proposta descabida também se revirava, mas na minha mente.
E assim foi por dias. Até que me vi insone novamente na véspera do
casamento de Amanda.
Quando acordei, já tinha uma decisão em mente.
CAPÍTULO DEZESSETE

O silêncio dentro do carro era sufocante. Ou talvez eu estivesse me


sentindo sufocada dentro do meu próprio corpo. Dentro daquele vestido.
Era uma roupa linda, com a qual me senti incrível, mas era como se ela
tivesse passado a guardar o cheiro de Murilo. Ela era a portadora das
memórias que me faziam bem e mal ao mesmo tempo. Eu guardaria aquele
beijo na lembrança para sempre, porque sabia que a partir daquele dia em
diante, nunca mais teria o direito de sentir aquele tipo de misto de emoções.
Só que eu era a única culpada. Eu comecei aquela história. Eu aceitei me
casar com um homem que julguei amar. Mas eu sabia o que era o amor. Tive
e vivi uma linda história que menosprezei, acreditando ter sido um romance
infantil. Não era. Ainda sentia que eu e Murilo tínhamos muito a viver.
Só não nos seria permitido.
Senti a mão do meu avô, ao meu lado, no carro, dirigido por Afonso, com
Ticiane no banco do passageiro, pousar sobre a minha.
— Você não precisa fazer isso, filha — vovô falou baixinho.
— Preciso, sim. — Eu tinha contado para ele a verdade. O que João Pedro
usara para me chantagear.
— Não é nada de outro mundo, querida. Seu pai é adulto, precisa assumir
as responsabilidades dele. Além do mais, é bom que tudo se resolva.
— Eu sei. Mas seria cruel com a minha mãe, não seria? — Voltei meus
olhos suplicantes para ele, quase querendo que me dissesse que não. Porque
eu sabia que não era um problema meu, embora afetasse a minha família.
— E quantas vezes ela foi cruel com você?
A pergunta pairou no ar, e eu sabia o quanto deveria estar sendo difícil,
para o meu avô, falar aquele tipo de coisa. Era filha dele, por mais que fosse
claro que não se davam bem. Por culpa da minha mãe, obviamente, já que
não deveria haver ninguém no mundo que pudesse ser indiferente ao Seu
Dodô.
— Amanda, está na hora — Afonso me avisou. Já estávamos parados ali,
na porta do cartório, há mais de trinta minutos. Atrasados. Eu sabia que
aquelas pessoas estavam esperando um único sinal meu para saírem dali em
disparada, em fuga. E talvez eu realmente devesse fazer isso.
Meu avô estava certo, meus pais eram adultos e precisavam lidar com os
erros deles. Não importava que o nome da nossa família fosse para a lama. O
que eu perderia com isso? Status nunca foi importante para mim.
Só que precisaria de mais coragem do que tinha. Eu não era forte como as
heroínas dos romances que lia. Era só uma garota que odiava magoar os
outros, por mais cruéis que pudessem ser com ela.
Enquanto eu pensava, alguém bateu na janela do carro. Lá estava João
Pedro, em um terno bem cortado, parecendo um galã de cinema.
De quê adiantava aquela aparência se eu tinha descoberto que ele era
podre por dentro?
Muito a contragosto, baixei a janela ao meu lado.
— E aí, noivinha? Pensando em fugir? — o sarcasmo foi o pior de tudo.
E, sim, eu estava pensando em fugir. Estava pensando em ir bem para
longe. Em me esconder em qualquer lugar onde ninguém pudesse me achar.
Só Murilo, talvez.
Deus, como eu precisava de um abraço. Como precisava daquele peito
largo e de seu colo. Como pude ser tão ingênua ao pensar que algo mudaria
entre nós? Éramos predestinados. Sempre fomos.
Não me dignei a responder, apenas saltei do carro, tentando manter a
cabeça erguida. Se teria que fazer aquilo, ao menos faria com dignidade.
Ninguém que me visse diria que eu era uma noiva coagida, que estava sendo
obrigada a me casar com um cara que fizera o mais vil tipo de chantagem
dias antes.
João Pedro tentou pegar o meu braço, mas eu o evitei, desejando entregá-
lo ao meu avô.
— Você vai conseguir o que quer, João, mas não vai ter uma esposa de
verdade. Vamos nos casar hoje, mas a partir desse dia nunca mais vai
encostar a mão em mim — falei por entre dentes, baixinho.
— Isso é o que vamos ver — ele sussurrou no meu ouvido, com um tom
provocador, quase sedutor. Só que eu só sentia nojo.
Estremecendo e pensando no que faria naquela noite – o que ele
consideraria como nossa noite de núpcias –, agarrei o braço do meu avô, feliz
por ele não ter ouvido a insinuação.
Entramos no cartório, e a cada passo que eu dava, sentia-me mais e mais
como num corredor da morte. Poderia ser um exagero da minha parte, mas a
infelicidade que me tomou foi imensa. E eu sabia que Murilo era grande
responsável por isso, mesmo que indiretamente, porque não teríamos tempo
de descobrir o que ainda sentíamos um pelo outro.
Enquanto caminhava pelo tapete vermelho que o cartório da cidade
proporcionava, com meu avô ao meu lado, já que João tinha se dirigido ao
altar, sorridente como se realmente me amasse – o que eu sabia que não era
verdade –, sentia uma lágrima solitária escapar. Sentia como se ela fosse o
grito que eu não podia soltar.
Tentei desligar minha mente do que estava acontecendo. Tentei afastar
meus pensamentos para qualquer outra coisa: receita de bolo, um filme que
vi, uma música que eu gostava. Quando o juiz começou a falar algumas
palavras bonitas, nas quais eu não acreditava, eu meio que me deixei perder.
Abaixei a cabeça, sentindo meu peito se comprimir. Eu não deveria pagar
pelos erros dos outros, mas lá estava eu.
Ergui os olhos na direção do meu avô, e seus olhinhos pequenos me
observavam com uma compaixão que me doeu na alma.
Eu queria sair dali. Mas não podia.
Só que foi nesse momento que a porta do cartório se abriu com um
estrondo.
As poucas pessoas presentes se voltaram na direção dela. O sol atingiu
meus olhos, e tudo o que consegui ver foi uma silhueta grande, que tomava
quase todo o tamanho da entrada.
Era Murilo.
Meu Deus... ele estava ali. E vinha na nossa direção a passos firmes e
decididos. Um vinco na sua testa, os olhos fixos em mim – um homem com
uma missão.
— Mas que merda você está fazendo aqui? — João perguntou, indignado.
Murilo não lhe respondeu, veio direto para mim, arrancando o buquê
estúpido da minha mão e o jogando no chão. Seus olhos ainda estavam presos
nos meus, quando disse:
— Com licença.
Inclinando-se, ele agarrou minhas pernas e me lançou em seu ombro, em
um ato teatral e dramático, começando a me levar pelo mesmo caminho por
onde veio.
Da posição em que estava, pude ver toda a comoção no cartório. Meu avô,
Tici e a mãe de Murilo pareciam radiantes. João tentou vir na nossa direção,
mas Afonso se colocou no caminho dele, como se estivesse tudo ensaiado,
mas eu tinha a impressão de que não. Parecia ser uma decisão completamente
de impulso.
Murilo estava de terno e gravata, pelo amor de Deus! Quem diabos ia
sequestrar alguém em um altar daquele jeito?
Ele seguia calado, parecendo muito decidido.
— O que você está fazendo? — perguntei baixinho, depois de não
suportar mais o silêncio.
— Você pediu para ser sequestrada. Arrebatada, foi a palavra que você
usou. Espero que tenha sido nisso que você pensou — por que o tom de voz
dele estava tão ríspido? Sim, eu pedi tudo aquilo, mas já estava conformada.
Não estava?
Ele continuou caminhando, caminhando, sem dizer nada.
— Para onde vai me levar? — indaguei, quase assustada.
— Para a minha caminhonete. Estacionei longe, porque... Ah, porra, eu sei
lá porquê. Nunca sequestrei ninguém na minha vida, achei que alguém me
veria e iriam desconfiar, sei lá.
Não fazia sentido algum. Mas será que alguma coisa em toda aquela
história fazia?
No momento em que chegamos à sua caminhonete, ele me baixou com
todo o cuidado para o chão.
— Você pode, pelo menos, entrar de boa vontade? Ou vai querer que eu
continue com o teatro e te coloque aí dentro como um homem das cavernas?
— Murilo, eu não sei... Algumas coisas mudaram e...
— O que mudou? Você voltou a querer se casar? — Ele arregalou os
olhos como se fosse completamente absurdo.
— Tem alguns detalhes que você não sabe... Coisas que envolvem a
minha família. João me chantageou.
— É, seu avô me falou por alto. Ele disse que você estava terrivelmente
triste, mas que ia se sacrificar por sua família. Não posso permitir, Amanda.
Você não merece ser infeliz. — Aquilo quase me fez chorar, não apenas suas
palavras, mas como ele as proferiu. Com aqueles olhos intensos pesados de
sentimentos por mim. — E se para te provar isso eu precisar chegar ao
extremo de acatar sua ideia maluca, vou fazer isso.
Eu ia dizer alguma coisa, mas meus olhos pararam em João Pedro, que
vinha na nossa direção.
— Ah, meu Deus! Ele tem que pensar que é um sequestro mesmo, e nós
estamos aqui conversando como se nada tivesse acontecido! — exclamei.
— Você ainda está preocupada com a opinião dele?
— Não, eu quero que ele se foda! — Murilo se assustou com a minha
explosão, mas eu continuei: — Só que se ele pensar mesmo que é um
sequestro, pode poupar minha família, achar que não é minha culpa, não sei...
não sei...
Comecei a pensar, mas ainda via João caminhando. Afonso tentava atrasá-
lo, impedi-lo, e eu sabia que ele não era louco de agredir um policial –
especialmente um bem maior do que ele. Então Murilo agiu, arrancando sua
própria gravata e me virando de costas, unindo meus dois punhos com ela.
— Olha, não é uma má ideia — comentei, divagando. — Realmente
poderíamos estar parados aqui para você fazer isso.
— Isso está indo longe demais, Amanda! Me avise se estiver muito
apertado.
— Não. Tudo bem. Mas por que raios você veio de terno?
— Minha mãe falou que se eu não ia fazer alguma coisa que prestasse
para te impedir que eu tinha que ir à cerimônia para ver o que estava
perdendo. Você sabe como D. Sílvia pode ser persuasiva quando quer. — Ele
fez uma pausa, enquanto ainda trabalhava no nó. — Não acredito que
estamos de papo furado em meio a essa situação.
Dei uma risadinha, começando a me sentir animada, porque não iria me
casar com João. Ao menos não naquela manhã.
Ele terminou os nós, bem feitos, então, quando eu já estava contida, me
ergueu do chão com facilidade e me colocou na caçamba, tirando a faixa do
meu vestido, que era apenas puro enfeite, repetindo o gesto com meus
tornozelos.
Não me contive em fazer uma brincadeira, porque ele estava sério demais.
— Você está se saindo bem. Já fez isso alguma vez?
Então seu olhar mudou. Havia algo de provocador, o que eu gostei bem
mais do que o de antes. Um dos cantos dos seus lábios até se curvou,
revelando a covinha que andava escondida naquele seu novo jeitão
rabugento.
— O quê? Sequestrar uma mulher? Não. Mas não é a primeira vez que
amarro uma.
Aquilo me chocou mais do que eu poderia explicar. Só que mal tive tempo
para processar o poder daquelas palavras e o estrago que elas causaram no
meu corpo, porque João se aproximou. Empertigando-se e mais parecendo
um gigante, Murilo se colocou diante dele.
— Solta ela, seu brutamonte. Isso é um crime — ele vociferou, indignado.
— Chantagem também — Murilo falou calmamente. — Se precisa disso
para convencer uma mulher a se casar com você, só posso sentir pena.
O babaca do meu noivo – ou ex – tentou acertar um soco em Murilo, mas
este se esquivou, revidando. Conhecendo o quanto ele era bom de briga, sabia
que tinha dosado e muito sua força, mas mesmo assim João caiu de bunda no
chão.
Com a mão no maxilar, eu vi João cuspir um pouco de sangue no asfalto,
o que me deixou nervosa. O olhar que lançou para mim e para Murilo era
bem ameaçador. Preferi continuar calada, mantendo a personagem.
— Quer passar um tempinho com essa vadia? Fique à vontade. Te dou
três dias para se fartar da boceta dela. Quando passar esse prazo, o escândalo
do papaizinho estará em tudo que é jornal. Sua família estará arruinada.
Murilo ia avançar em João novamente, mas Afonso chegou, impedindo-o.
— Só vai, Murilo. Eu cuido disso.
Murilo estava respirando fundo, seu peito subia e descia, irado. Eu sabia
que era pela forma como João se referira a mim, principalmente pelo que
falou depois:
— Filho da puta! Você não merece nem respirar o mesmo ar que ela!
Ah, Deus! Ele ia me deixar apaixonada de novo. Como resistir?
Eu não fazia ideia.
Mas fosse como fosse, ele entrou no carro, começando a dirigir, me
levando para algum lugar que eu não sabia onde era. Ele parecia saber
perfeitamente o que fazer, como se tivesse pensado. Não fora um plano
elaborado com antecedência, mas era como se tivesse cogitado a hipótese
desde que lhe fiz a proposta.
O que quer que fosse acontecer dali em diante, eu estava nas mãos de
Murilo. E essa era uma perspectiva que me deixava muito, muito animada.
CAPÍTULO DEZOITO

Aquilo tudo era muito irreal, mas estava acontecendo. Eu não podia fingir
que não havia uma mulher amarrada na caçamba da minha caminhonete e que
eu tinha acabado de tirá-la do altar, impedindo-a de se casar com um babaca
que a chantageava.
Ok, se eu ficasse recapitulando a situação, surtaria. Era melhor só dirigir
mesmo.
Eu tinha um destino certo – meu chalé ermo, à beira de um lago, que
comprei pouco depois que Raíssa nasceu, na intenção de termos um local
para onde ir, para descansarmos e ela poder brincar. Meu trabalho me
permitia fazer minhas tarefas remotamente, o que era providencial.
Só nunca pensei que isso me facilitaria para o rapto de uma pessoa.
Assim que chegamos, estacionei o carro e saltei, fazendo um sinal para
que Amanda esperasse um pouco. Abri a porta da casa e voltei para ela,
tirando-a da caçamba e carregando-a para dentro, de uma forma bem mais
gentil do que quando a levei do cartório.
— Você está bem? — perguntei, enquanto ainda a tinha nos meus braços.
— Claro que estou. Não é como se eu estivesse muito contra esse rapto —
brincou. Sim, ela parecia muito mais tranquila do que eu.
Coloquei-a sentada no sofá e fui até a cozinha, pegar uma faca afiada para
cortar os laços que a prendiam. Tirei o paletó para fazê-lo, colocando-o sobre
uma poltrona de couro, que era meu assento preferido naquele lugar.
Assim que terminei a tarefa, sentei-me sobre a mesa de centro, de frente
para ela. Peguei suas mãos nas minhas e beijei seus pulsos, como um pedido
de desculpas pelo que eu tinha feito. Mas ela fora minha cúmplice.
— E agora, o que faremos? — perguntei, porque não fazia a menor ideia.
— Como já te falei antes, sou novo nessa coisa de sequestrador — tentei
brincar, porque, no final das contas, tudo tinha dado certo. Ou o mais certo
que poderia ser.
— Três dias, Murilo. É o que temos.
— Não, você não pode estar falando sério! — Levantei-me de um pulo,
irritado.
— Não estou dizendo que vou voltar para ele. Mas preciso encarar o
problema. Quero esses dias com você, porque acho que temos direito. Acho
que precisamos entender o que está acontecendo entre nós. Só que quero
voltar. E você tem uma filha!
— Você não precisa me lembrar disso. Minha mãe vai ficar com Raíssa e
vai trazê-la aqui amanhã para passarmos um tempo com ela, se você não se
importar.
— Claro que não me importo.
Alguns instantes de silêncio se interpuseram entre nós, então eu a vi
olhando os arredores.
— Este lugar é lindo. Como conseguiu? É alugado? Foi muito caro?
Posso...
— É meu — eu a interrompi antes que sentisse meu orgulho sendo ferido.
Era algo idiota da minha parte, sem dúvidas, mas ainda não queria que ela
soubesse sobre alguns detalhes da minha vida. No tempo certo, eu lhe
contaria.
A surpresa em seus olhos não me passou despercebida.
— É seu?
— Sim. — Estendi a mão para ela, que rapidamente a pegou. — Vou te
mostrar suas futuras instalações, senhora — falei com um tom canastrão e
com uma mesura, o que a fez sorrir.
Eu sabia que ela não estava inteiramente ali, que sua cabecinha navegava
em preocupações que não deveriam lhe pertencer. Donato não entrara em
muitos detalhes a respeito da chantagem que João Pedro fizera, mas eu sabia
que tinha a ver com algum escândalo da família. Fosse o que fosse, eles
teriam que encarar, porque eu não iria permitir que Amanda se casasse com
alguém que não queria para proteger pessoas que nunca cuidaram dela como
deveriam.
Fui apresentando o chalé para ela, com uma leve pontada de orgulho no
peito. Eu não era do tipo de homem que se vangloria por suas conquistas ou
seus feitos, mas era bom ver que Amanda estava impressionada com algo que
me pertencia, que eu tinha adquirido com meus esforços – afinal, ela era uma
garota que tinha tudo que o dinheiro podia comprar.
Todo o lugar tinha um aspecto rústico, amadeirado, mas era confortável,
com móveis de bom gosto, que eu encomendei escolhidos com a ajuda da
minha mãe, já que não entendia nada de decoração. No segundo andar havia
três quartos, sendo dois deles com banheiro. Havia uma cama imensa na suíte
principal, também com um aspecto de fazenda, mas a modernização vinha
pelo sistema de TV e áudio, já que uma das coisas que eu mais gostava era
me jogar em um lugar confortável para assistir a um filme, com uma boa
cerveja e alguma coisa gostosa para comer.
— Uau... esse lugar é mesmo lindo. Estou impressionada — Amanda
comentou e parecia sincera.
— Que bom. — Esfreguei as mãos nas calças, meio que me sentindo um
adolescente sem saber o que fazer. Amanda também não parecia muito à
vontade e, sinceramente, não era o que eu queria. Como ela tinha dito,
teríamos pouco tempo juntos, precisávamos aproveitar cada segundo.
Só que, antes que eu pudesse dar um passo na direção dela, eu a vi abrir os
braços, constrangida.
— Só não sei o que vou fazer em relação a roupas. Não posso ficar o
tempo todo com esse vestido.
Eu queria dizer que essa era a última coisa com a qual ela precisava se
preocupar, porque eu tinha intenções de deixá-la nua pelo máximo de tempo
possível, mas ainda não tínhamos estabelecido se aquele seria o tipo de
comportamento que teríamos nos três dias que viriam pela frente.
— Tem algumas coisas no quarto ao lado. Talvez sirvam em você e... —
Ela ergueu as sobrancelhas, e eu não compreendi. Especialmente quando
cruzou os braços contra o peito. — O que foi?
— Não vou usar roupas de alguma mulher que você trouxe para cá,
Murilo Alberto.
Qual era a coisa daquelas mulheres com meu nome composto?
Apesar de tudo, não pude conter um sorriso.
— Se você tivesse me deixado terminar de falar... — Dei um passo na
direção dela, colocando as mãos em seus braços. — São da minha mãe. Ela é
mais alta do que você, mas algum vestido deve servir.
Amanda corou, constrangida.
— Desculpa. Eu nem tenho o direito de sentir ciúme, né? Estava prestes a
me casar até algumas horas atrás.
Inclinei-me, tomando seu rosto com ambas as minhas mãos, e toquei seus
lábios com os meus. Tinha a intenção de dizer alguma coisa, qualquer merda
sobre deixar o resto do mundo do lado de fora daquele chalé e só pensar em
nós dois, ali dentro, mas... puta que pariu.
O que diabos acontecia com aquela boca que simplesmente me deixava
completamente intoxicado ao ponto de eu não conseguir pensar em mais
nada?
Mal me dei conta do momento em que as coisas ficaram mais intensas.
Quando percebi, nossas línguas mais pareciam em guerra de tão
desesperadas. Nossas respirações se tornaram cada vez mais altas, e eu a
segurava com força contra mim, agarrando-a como se disso dependesse a
minha vida.
Não sei qual de nós dois se afastou primeiro, mas quando o fizemos,
estávamos ambos ofegantes, e os olhares que trocávamos poderiam ter
incendiado o chalé inteiro. O que havia entre nós era quase sobrenatural. Era
como se um poder mais forte do que o destino nos atraísse, um magnetismo
mais intenso do que a gravidade.
— Acho melhor a gente ir com calma, né? — ela perguntou, passando as
mãos pelos cabelos, que estavam soltos, esticados e bem lisos, não pesados e
revoltos como sempre. Claro que ela os havia preparado para o casamento.
De alguma forma, o pensamento de bagunçá-los me proporcionou um revirar
de estômago gostoso.
Nós dois estávamos bagunçando tudo. Mas não foi sempre assim? Era o
mais perfeito em relação ao nosso relacionamento. Juntos éramos caos, mas
também perfeição.
— Depois do que eu acabei de fazer, você acha que algo entre nós é
calmo? — Ela deu uma risadinha, mas eu balancei a cabeça. — Mas tem
razão. Fique à vontade, vá tomar um banho, se quiser. Vou preparar algo para
comermos.
— Tem algo na despensa? Você pensou nisso?
— Trouxe umas coisas preciosas na caminhonete. — Sem resistir,
inclinei-me e a beijei novamente, mas daquela vez mantive o contato
realmente inocente. — Uma delas mais do que as outras.
Amanda suspirou, mas não demorou a se afastar para se trocar.
Depois de ser deixado sozinho, fui à caminhonete buscar as coisas e as
levei para a cozinha. Antes de começar a cozinhar, dei uma ligada para a
minha mãe, avisando que estávamos bem e perguntando como tinham ficado
as coisas depois que saímos.
— Pode apostar que vocês serão o comentário da cidade. Por décadas. O
que, de emocionante, acontece em José de Alencar? — Minha mãe
provavelmente estava dando de comer a Raíssa, porque eu ouvia a minha
bebê do outro lado da linha balbuciando e mastigando.
Por um momento pensei que estava fazendo uma loucura, porque sabia
que ia morrer de saudade dela. Desde que nascera não passei uma única noite
longe dela.
— Claro que eu saí como o vilão da história — comentei, apoiando-me na
bancada da cozinha.
— De jeito nenhum. Está todo mundo achando romântico. Todas as
garotas da cidade queriam ser a Amanda.
— São umas loucas, sem dúvidas. Mas seja como for, estamos bem.
Qualquer coisa me liga. E diga à Raíssa que o papai a ama, ok?
— Ela sabe. Amanhã passo aí com ela e levo mais algumas coisas para
vocês.
— Obrigada, mãe. Por tudo.
— Não tem que me agradecer. Eu quero que você seja feliz.
Sorri, porque sabia que era verdade. Aquela mulher sacrificara tudo por
mim e, depois, por sua neta. Era uma guerreira. E eu também queria que ela
fosse feliz.
Só que cada um escrevia sua própria história. Eu estava começando um
capítulo novo da minha e lutando para que ele me levasse a um “felizes para
sempre”. De uma forma um pouco torta, é claro. Mas nunca ninguém disse
que a felicidade era simples.
CAPÍTULO DEZENOVE

Meu. Deus.
Como era possível que as coisas tivessem dado uma reviravolta digna de
um filme Hollywoodiano?
Ok... uma novela mexicana era mais propício.
Ainda assim... Uau! Era emocionante, não era? E eu, provavelmente,
estava precisando de uma chacoalhada na minha vida para apagar as burradas
que eu vinha fazendo em combo. Não que pedir ao meu ex-namorado para
ser sequestrada no altar fosse algo muito inteligente, mas talvez, de fato,
tivesse sido a melhor ideia que eu poderia ter.
Enquanto tomava banho, tentava não pensar na expressão vingativa de
João Pedro. Sabia que ele não ia deixar barato. Que assim que eu voltasse,
depois dos três dias, sofreria retaliação. Isso se ele fosse mesmo cumprir a
palavra e não acabasse soltando coisas que não devia antes de conversarmos
como pessoas civilizadas.
Porque poderíamos fazer isso, não poderíamos? As coisas acabariam
terminando bem. Era no que eu precisava acreditar.
Voltei para a sala do lindo chalé para onde Murilo tinha me levado, ainda
surpresa com a beleza do lugar. Não era uma cabaninha simples no meio do
nada. Era uma propriedade digna de nota. Olhando para tudo aquilo foi que
me dei conta de que eu não sabia absolutamente mais nada sobre Murilo.
Quando saí de José de Alencar, ele era apenas um garoto no colegial, com
grandes ambições, mas com uma mãe que ralava como garçonete no bar do
Walter para pagar as contas com dificuldade. Eles moravam ainda na mesma
casa, porque pertencera aos avós de Murilo, que morreram quando ele ainda
era criança, deixando muito pouco dinheiro.
O que tinha acontecido no meio do caminho para que as coisas
prosperassem? Eu ficava muito feliz por saber que isso tinha acontecido, mas
também muito curiosa. Mal sabia o que ele fazia da vida.
Se pensasse bem... o que sabíamos um do outro? Não éramos mais o
Murilo e Amanda do passado, o tempo nos tornara pessoas diferentes. Mas,
aparentemente, em qualquer circunstância, com qualquer tipo de
personalidade, acabaríamos nos apaixonando um pelo outro.
Ou melhor... eu ainda não sabia se tinha a ver com paixão, amor... mas
atração... Pelo amor de Deus. Se com um beijo já mal conseguíamos nos
conter e respirar, não podia nem imaginar o que aconteceria quando...
Bem, provavelmente naqueles três dias eu tiraria a prova. Naquela noite!
Porque eu não iria perder tempo.
Quando cheguei ao primeiro andar do delicioso chalé, havia algo no forno
que cheirava muito bem, mas Murilo não estava por perto. Fui na pontinha do
pé, clandestina, até lá, para tentar abri-lo e ver o que teríamos para comer,
porque estava morrendo de fome, mas dois braços fortes me agarraram por
trás, puxando-me para longe, o que me fez rir.
— Pega no flagra — brinquei e fui girada em seus braços, ficando frente a
frente com Murilo.
Deus, como ele estava bonito. Eu nunca me cansaria de dizer e de
perceber isso. Tudo em Murilo inspirava masculinidade e rudeza, como um
diamante bruto, mas que não precisava ser nada lapidado. Os maxilares
fortes, cobertos por uma barba bem feita, os olhos castanhos pequenos e
expressivos, a boca desenhada, mas não muito carnuda, o que poderia lhe dar
um ar menos másculo. Seus cabelos curtos, espetados, pareciam veludo
quando se passava a mão. Isso sem contar todo o resto; o corpo esculpido de
ombros largos, peitoral amplo, braços musculosos, a altura imponente. O
único detalhe que suavizava suas feições era a covinha. E lá estava ela,
porque ele sorria para mim.
— Você sempre foi uma coisinha impaciente, não é, Mandioca?
Fiz uma careta para nosso apelido de infância.
— É, sim, Muriçoca. — Lembro-me de que, na época, eu queria tanto
encontrar uma palavra que tivesse o som do nome dele, mas que pudesse ser
um apelido bobo, só entre nós, que peguei o dicionário do meu avô e levei
uma tarde pesquisando. Achei que um tipo de mosquito seria uma boa
resposta ao Mandioca, que, na época, com dez anos de idade, achei péssimo.
Naquele momento, a nostalgia bateu tão fundo que eu passei a achá-lo
lindo.
Passei meus braços ao redor de sua cintura estreita, espalmando minhas
mãos nas costas musculosas e erguendo minha cabeça para olhá-lo.
— Eu senti sua falta — sussurrei, olhando em seus olhos, falando com
todo o meu coração.
— Eu também. — Murilo novamente se inclinou para um beijo, mas se
afastou rápido demais, recuando e demonstrando uma expressão brincalhona.
— Mas deixe de ser enxerida e saia pela porta dos fundos. Preparei uma
coisinha para nós.
Ergui uma sobrancelha, provocadora, mas acatei. Quando já estava na
porta, pronta para abri-la e sair, ouvi sua voz me chamando e me virei para
ele, que disse, em um tom zombeteiro:
— Esse vestido ficou uma gracinha em você.
Não tinha ficado. Não era uma peça feia em si, mas estava enorme, porque
Sílvia era realmente mais alta e mais curvilínea. Sobrava tecido por todas as
partes, e eu provavelmente era a coisa menos sexy que Murilo já vira na vida,
mas não me importei. Esse era o nível de intimidade que tínhamos.
Mas se ele podia me provocar, eu também tinha esse dom.
— Se não gostou, você pode tirá-lo em algum momento — ao dizer isso,
com um sorriso malicioso, finalmente saí, ainda rindo e feliz por ter sido a
dona da última palavra.
Só que meu sorriso desapareceu rapidamente no momento em que
contemplei o que havia à minha frente.
Se eu já tinha achado a casa assombrosamente bonita, naquele momento
meu coração chegou a afundar no peito. Havia um enorme terreno atrás, um
quintal bem capinado e cuidado, com um lago rodeado por pedras e
bromélias em tons vivos, que proporcionavam um colorido de encher os
olhos.
Em frente ao lago, havia uma mesinha, coberta por um guarda sol, já posta
com pratos e copos.
Meu coração afundou um pouquinho mais no peito.
Eu estava no lugar mais lindo e romântico possível, com meu primeiro
amor. Por mais que tudo estivesse desmoronando lá fora, no mundo que
deixamos para trás, eu não conseguia me lembrar de um momento recente em
que fui mais feliz.
— Gostou? — Mal sei quanto tempo fiquei ali parada, admirando a
paisagem, até que a voz de Murilo me chamou a atenção. Quando me virei
para ele, eu o vi com uma enorme travessa nas mãos calçadas com luvas.
Havia muito queijo derretido borbulhando, e o cheiro era maravilhoso.
— Amei. Mas amei isso aí também. O que é?
Murilo pousou a travessa sobre a mesa.
— Bem, eu saí pegando coisas na despensa da minha casa, porque não
tive muito tempo para pensar em estratégias. Então é uma lasanha
improvisada de pão de forma com muito queijo, presunto e alguns pedaços de
calabresa. Não é uma iguaria parisiense, senhorita, mas acho que vai nos
alimentar.
— Eu achei maravilhoso — respondi com um sorriso largo, sabendo que
comeria até jiló ao lado daquele homem, naquele lugar.
E olha que eu odiava jiló.
O dia estava lindo, céu azul sobre nossas cabeças, e uma brisa tímida
beijava as águas do lago, provocando um som calmante que se misturava à
nossa conversa e aos ruídos que fazíamos enquanto comíamos.
— É sério que a sua mãe ainda não deu uma chance ao Walter? Ela não
percebeu que ele ainda gosta dela? — comentei de forma leve, enquanto
levava uma garfada à boca. Aquela era a refeição mais simples e mais gostosa
que eu comia em anos.
Murilo balançou a cabeça com veemência, levando o guardanapo à boca,
limpando-a.
— Se ele não tomar uma atitude de verdade, vai perder. Ela estava falando
sobre se cadastrar no Tinder esses dias.
Quase cuspi a comida que tinha na boca com aquela informação.
— Meu Deus... acho que eu nem saberia diferenciar o Tinder de outro
aplicativo qualquer. Nunca nem abri.
Aquilo pareceu surpreender Murilo.
— Jura? Solteira e na cidade grande? — Dei de ombros. Não era grande
coisa. Tinha meus motivos e sabia que ia acabar falando mais do que deveria.
— Por quê?
Ergui uma sobrancelha, pousando meu garfo e faca no prato, como a regra
da etiqueta pedia. Minha mãe sempre foi tão obcecada com isso que eu não
conseguia relaxar nem mesmo na presença de uma pessoa que estava pouco
se lixando para tal.
— Tem certeza de que você nem imagina, Murilo? — Ele pareceu
confuso. — Antes de João Pedro você foi o único homem da minha vida, em
todos os sentidos.
Seus ombros largos caíram, como se um peso enorme tivesse sido tirado
deles. Ou como se a informação fosse surpreendente o suficiente para deixá-
lo sem ação – o que eu tomava mais como certo.
Enquanto eu me enchia de constrangimento pela confissão, Murilo me
olhava como se eu fosse a coisa mais linda que acabara de pousar na sua
frente. Era um tipo de olhar que costumava me consumir, porque ele era
perito nele. Sempre provou seu amor por mim sem precisar de palavras ou de
grandes gestos. Eu sabia só de observá-lo.
Assim como soube naquele momento. Ele ainda me amava.
O sentimento poderia estar adormecido dentro daquele peito enorme e do
coração maior ainda, mas começava a despertar lentamente.
Eu sentia a mesma coisa.
Estendendo a mão na minha direção, com um sorriso preguiçoso, ele
chamou:
— Vem cá — foi um som tão doce, mesmo proferido por uma voz tão
masculina, profunda e rouca, que eu me sentiria compelida para fazer
qualquer coisa que pedisse.
Quando me aproximei, ele me puxou para seu colo, fazendo-me sentar
sobre uma de suas coxas, e eu fui beijada, o que corroborou para que eu
compreendesse que sim... o sentimento dentro de mim estava realmente
voltando à vida, e isso deveria me assustar, mas apenas me trazia um alívio
que eu mal sabia explicar.
CAPÍTULO VINTE

A noite foi se esgueirando no céu, cobrindo-o de uma escuridão bem


vinda. Continuamos do lado de fora da casa, em frente ao lago, e eu acendi
algumas velas sobre a mesa para iluminarem os nossos arredores apenas o
necessário.
Já tínhamos conversado sobre tudo, mas principalmente sobre o nosso
passado. Trouxemos à tona lembranças cálidas e as revivemos em meio a
risadas e versões diferentes de uma mesma história.
Em intervalos regulares, pegávamo-nos em silêncio, contemplando o
nada. Eu não podia ler os pensamentos de Amanda, mas os meus estavam um
misto de excitação e medo. Era bom tê-la ali, nos meus braços. Mas havia
tantas coisas com as quais teríamos que lidar quando fôssemos embora que
chegava a me desanimar. Ela, na verdade, teria muito mais problemas a
enfrentar, por mais que eu estivesse disposto a não sair do seu lado.
Naquele momento, por exemplo, eu a sentia um pouco quieta demais.
Uma alma agitada como a de Amanda dificilmente entrava naquele modo de
inércia, e isso me assustava, porque temia que se arrependesse. Que, de
repente, resolvesse que era melhor se enfiar naquele casamento sem amor
para proteger a família. E eu ainda nem sabia qual era o segredo que o filho
da puta estava usando para chantageá-la, porque ela não me contara. Decidi
não pressioná-la, preferia que tomasse seu tempo.
Ainda assim, eu queria saber o que se passava por sua cabeça.
— O que foi? Você está calada demais. Devo me preocupar com algum
plano de dominação mundial? — brinquei, enquanto apertava meus braços
um pouco mais ao seu redor, esperando que ela se sentisse segura o suficiente
para falar o que quer que a afligia.
Amanda deu uma risadinha adorável.
— Quase isso. — Então ela se virou no meu colo, trocando de posição e
colocando-se montada sobre minhas coxas. Isso rapidamente me deixou em
alerta, surpreso, excitado com a atitude e um pouco sem rumo. Mas
obviamente tentei manter o controle e coloquei minhas mãos em sua cintura,
firmes, esperando que esse gesto me devolvesse à realidade. — Estou
pensando no quanto quero que você faça amor comigo. No quanto preciso
que coloque suas mãos em mim.
Respirei fundo absorvendo aquelas palavras e sabendo que elas poderiam
causar um caos dentro da minha mente sem muito esforço.
— Não tenho camisinha aqui agora, preciso pegar.
— Nunca fiz sexo sem camisinha, Murilo. Só com você. E tomo
anticoncepcional.
Aquilo mexeu comigo, mas decidi não demonstrar.
— Eu também nunca fiz sem camisinha, com exceção da mãe de Raíssa,
uma única vez, por um descuido. Fui testado quando descobrimos a gravidez.
Desde então não estive com mais ninguém.
— Então nada pode nos deter — ela falou com um sorriso delicioso.
— Não vou me opor a isso, de forma alguma — respondi, sentindo-me
quase o adolescente bobo que a tocou pela primeira vez, sem saber como
começar.
Eu tinha um pouco mais de experiência. Desde que ela foi embora, tive
outras mulheres. Poucas, na verdade, mas não me poupava de me sentir
completamente perdido quando se tratava daquela mulher.
Porque eu queria lhe dar tudo. Absolutamente tudo.
Fechando minhas mãos um pouco mais em sua carne, eu a puxei para
mim, beijando-a. Não foi um furacão como das outras vezes, porque eu sabia
que se intensificasse as coisas, não conseguiria me segurar. Não conseguiria
aproveitar absolutamente tudo o que queria a respeito dela.
Explorei sua boca com calma, como se tivéssemos o tempo todo do
mundo. Ao menos, naquela noite, ele pertencia a nós. Ela não iria a lugar
algum a não ser à minha cama.
Só que, aparentemente, Amanda tinha planos diferentes desses.
No momento em que o beijo se tornou um pouco mais intenso, ela se
desvencilhou das minhas mãos, saindo do meu colo e começando a recuar.
Seu rosto lindo estava transfigurado em uma expressão de pura provocação,
enquanto simplesmente começava a desabotoar o vestido que usava, que
realmente estava enorme em seu corpo pequeno.
— O que tem em mente, garota malvada? — perguntei com uma voz que
mais parecia um rosnado, porque eu já estava cheio de tesão.
— Pensei em dar um mergulho no lago...
— Agora?
— E tem hora melhor? — Ela tirou tudo. Ficou completamente nua na
minha frente. Senti a boca seca, ansiando por usá-la em cada parte de seu
corpo.
Eu me lembrava de cada detalhe de Amanda, de cada curva que toquei, de
cada gosto inesquecível. Só que, assim como eu não era mais o mesmo garoto
inexperiente, ela não era mais a mesma menina. Embora sempre tivesse sido
linda, a mais bonita que conheci, nada me preparara para seu corpo dourado
pela suave iluminação do fogo das velas que amenizavam a escuridão da
noite. Sua silhueta perfeita parecia feita de ouro, e a pele branca brilhava em
todos os locais certos.
Como um náufrago em direção à terra firme, levantei-me da cadeira e
comecei a tirar minha roupa também, mas ela se pôs a correr, fugindo de
mim, iniciando uma perseguição divertida.
Com minhas pernas mais longas, consegui chegar a ela e a agarrei por
trás, erguendo-a e ouvindo seu gritinho de surpresa. Entramos no lago juntos,
e eu a coloquei no chão, virando-a para mim.
Os sorrisos largos desapareceram de nossos rostos, dando espaço para
expressões mais solenes. Minhas mãos foram parar em suas faces,
reverenciando-a, enquanto meus olhos percorriam cada pequeno detalhe de
suas feições. Um dia eu a tive daquele jeito, e talvez não tivesse valorizado
direito cada momento. Aquela era uma nova oportunidade que estava
recebendo, e por mais que estivesse decidido a brigar pelo que queria, a lutar
por ela e por nós, não queria dar nada como garantido. Havia uma longa
estrada até que pudesse me dar por vencido, então decidi tomar meu tempo
como se fosse a última vez.
— Linda... — sussurrei, enquanto meus dedos deslizavam por sua pele
macia, vendo conforme fechava os olhos azuis, saboreando meu toque.
Suas mãos pequenas foram parar no meu peito, e ela começou a me
observar também, com a respiração acelerando.
Deixei que me tocasse devagar, sentindo suas mãos frias da água do lago
me queimarem. Seu toque ainda era um pouco tímido, mesmo que não fosse a
primeira vez. Embora já estivéssemos muito próximos, ela ainda se juntou
mais a mim, encostando seus lábios macios nos mesmos pontos onde suas
mãos tinham acariciado.
Minha respiração também ficou mais pesada, e minhas mãos deslizaram
cada vez mais para baixo, passando por sua cintura e se fechando em sua
bunda redonda, apertando-a, sentindo-a.
Então eu esgueirei uma mão pelo vão entre nossos corpos e encontrei seu
clitóris, massageando-o, o que a fez estremecer. Era pouco ainda. Eu a queria
gemendo meu nome e me pertencendo em todos os sentidos naquela noite.
Invadi sua entrada com um dedo, sentindo-a úmida por dentro – algo que
não tinha nada a ver com a água do lago. Deixei o dedo em formato de
gancho, em busca do ponto onde ela sempre sentiu mais prazer. Não demorei
a encontrá-lo, começando a ficar um pouco mais satisfeito com suas reações.
A forma como inclinou a cabeça para trás enquanto um choramingo
prazeroso escapava de sua garganta deixou meu pau ainda mais duro,
ansiando por estar dentro dela.
— Ainda me lembro de como você gosta — falei baixinho, sentindo a voz
pesada, pouco antes de deixar minha língua desenhar o contorno de sua
orelha.
— Você nunca errou — respondeu, arfante.
— Estou só começando.
Então investi o dedo com um pouco mais de força, ouvindo seu gemido
mais alto e sentindo seus dedos se afundarem na carne dos meus ombros,
segurando-se.
Agachei-me, levando a boca a um de seus mamilos, já eriçados pelo
desejo e pela brisa da noite, chupando-o no mesmo ritmo em que estocava o
dedo, logo acrescentando mais um à sua fenda que começava a ficar muito,
muito molhada.
A outra mão, livre, ocupou-se do outro seio, girando o bico nos dedos,
puxando-o sem piedade, combinando todos os movimentos para deixá-la
mais e mais excitada.
— Ah, Murilo... Meu Deus... — ela gritou, sua voz ecoando pela noite, e
eu agradeci pelo fato de estarmos em um ponto tão ermo.
Não parei em nenhum momento, desejando levá-la ao orgasmo daquele
jeito, como se, daquela forma, pudesse reivindicá-la para mim.
E foi o que aconteceu. Amanda gozou com um gemido profundo,
chegando a se desestabilizar, então eu a segurei, com um enorme sorriso,
pensando que ela sempre me parecera ainda mais linda quando encontrava
seu êxtase.
Quando percebi que estava se recuperando, tomei seus lábios nos meus,
em um beijo profundo, lento, sensual, que era apenas o prelúdio para o que
estava por vir.
Agarrei-a pelas coxas, posicionando-a com as pernas entrelaçadas à minha
cintura, enquanto, ao mesmo tempo, movimentava o quadril para encaixar-
me dentro dela.
Porra, ela ainda estava molhada, pegajosa, e meu pau deslizou
perfeitamente. Fazia mais de um ano que eu não fazia sexo, e poderia até
pensar que era por isso que parecia tão intenso. Mas era ela. Era a mulher que
sempre me deixara louco.
Queria fazer amor devagar e de forma cadenciada, queria que fosse longo
e suave, para que pudéssemos demorar mais tempo, mas foi impossível. No
momento em que cheguei bem fundo dentro dela, sentindo-a apertada ao meu
redor, mal pude me conter.
Movimentando-a, estoquei com força, e o gemido alto que ela soltou só
me incentivou.
— Mais, Murilo. Mais — ela choramingou, e isso foi a minha ruína.
Logo as coisas ficaram selvagens, porque nenhum de nós dois parecia se
satisfazer com a intensidade dos movimentos. Era como se estivéssemos nos
redescobrindo, não apenas como casal, mas como homem e mulher,
individuais. De alguma forma, éramos mais completos um com o outro, e eu
sabia disso.
Continuamos daquela forma por algum tempo, até que Amanda gritou
alto, anunciando seu orgasmo, e eu a segui logo depois, desesperado,
ansiando por também encontrar minha libertação.
Naquele instante eu decidi que nada me faria perdê-la novamente. Que eu
enfrentaria o que fosse para mantê-la comigo, porque ainda a amava.
Se ela também me amasse, nada poderia nos deter. Nem um noivo idiota,
nem sua família, a cidade inteira...
Nem o destino.
CAPÍTULO VINTE E UM

Uma vez me disseram que não existe forma mais sublime de se encontrar
o prazer quando se tem um sentimento tão profundo envolvido. Ou talvez eu
tenha lido em um livro de romance bem meloso, não importava. Na época, eu
já estava longe de Murilo e sabia muito bem que essa frase era real. Meu
íntimo dizia que não importava o quanto acabasse me apaixonando dali para
frente, não conseguiria me entregar cem por cento.
E isso não quer dizer que não se possa amar duas vezes. Claro que sim.
Mas eu não queria amar outra pessoa. Meu coração ainda estava ligado às
lembranças de um passado do qual eu não tinha absolutamente nada a
reclamar. O qual me proporcionava apenas borboletas no estômago e uma
saudade indescritível.
Não consegui conter uma risada, enquanto Murilo me descia para o chão
com uma delicadeza comovente.
— Eu deveria me sentir ofendido porque você está rindo depois de
fazermos sexo? — ele provocou com um daqueles sorrisos de canto
irresistíveis.
— Não. Mas... isso aqui conta como um lugar público? — fiz a pergunta
do nada, e Murilo pareceu um pouco confuso.
— Teoricamente, sim. Por quê?
Novamente não pude conter a risada.
— Eu estava conversando com umas meninas outro dia, brincando de EU
NUNCA, e fui a única que respondi que já fiz sexo em um local público. Na
escola, lembra?
— Como iria me esquecer? Nós éramos dois coelhos — Murilo respondeu
com a voz mais sexy do mundo, apertando minha bunda e tirando meus pés
do chão, dentro da água, só para me dar mais um beijo.
— Acho que agora tenho mais um local para acrescentar à lista.
— Posso contribuir um pouco mais para ela no futuro. — Uma gargalhada
minha foi interrompida por um vento um pouco mais frio que me fez
estremecer.
Murilo ergueu uma mão, pedindo que eu aguardasse um pouco. Então ele
foi saindo do lago, completamente nu, e eu mal consegui tirar meus olhos de
sua bunda perfeita, conforme seu corpo ia se revelando acima da superfície
da água. Sua silhueta era de dar água na boca, e um lado meu que estava
adormecido há muito tempo queria simplesmente pular em cima dele e pedir
mais alguns orgasmos como aqueles que tinha me dado minutos atrás.
Eu o observei vestir a calça jeans que deixara caída sobre as pedras,
virando-se para mim e fazendo um sinal para ir até ele. Corri o máximo que
minhas pernas conseguiam fazer dentro d’água, e ele me enrolou em sua
grossa blusa de flanela, como se eu fosse um pacotinho. Ainda assim eu
tremia, mas me sentia mais feliz do que nunca.
Agarrado a mim, tentando me esquentar, Murilo me conduziu até o chalé,
onde entramos e fomos tomar banho.
Comemos algo leve, até porque não tínhamos muitas opções, e nos
sentamos no sofá de couro, aninhados, com nossas mãos brincando uma com
a outra. Tanto meus olhos quanto os de Murilo estavam fixos nelas, com suas
diferenças ridículas de tamanho. Era algo bobo, mas eu sentia novamente
toda a intimidade que sempre compartilhamos. Murilo era como voltar ao lar
para mim. Era como revisitar um lugar muito querido e ser golpeada por toda
a nostalgia acumulada por tanto tempo.
Não precisávamos de palavras. Não precisávamos de provas de nossa
conexão. Era nos pequenos detalhes que a sentíamos.
Acordamos tarde no dia seguinte, depois de novamente fazermos amor de
madrugada, com alguém buzinando. Pulei da cama assustada, com medo de
que fosse João Pedro, que tinha mudado de ideia indo me buscar, mas Murilo
riu, como se soubesse a verdade.
Ele se levantou completamente nu, vestindo uma bermuda e a camisa que
estavam no chão, lançando-me o vestido de sua mãe que usei no dia anterior.
Saiu do quarto primeiro, e eu ouvi uma risadinha de bebê que me aqueceu o
coração.
Bem, a cena em si não provocou um sentimento muito diferente. Murilo
era um homem grande, másculo e com uma aparência quase bruta, mas a
delicadeza com que pegava e aninhava sua bebezinha em seus braços
enormes era tão comovente que meu útero chegou a coçar.
(Não me julguem. Os de vocês coçaram também só de eu falar isso.)
Então ele voltou seus olhos para mim, com aquela coisinha fofa no colo,
que parecia endeusá-lo – e como não endeusaria? Ele deveria ser o herói dela
–, e eu me derreti. Não apenas porque era lindo ver um pai tão apaixonado
por sua filhinha, mas porque a forma como ele me olhou fez com que me
sentisse parte daquele momento. Murilo me convidou, com um gesto de
cabeça, para me juntar a eles, o que eu não faria caso contrário.
Eu não era parte deles. Perdi esse direito quando fui embora anos atrás, e
era doloroso pensar que aquela menininha poderia ser minha e de Murilo.
Que poderia ser a nossa família.
Ainda assim, atendi ao seu chamado, e ele usou o outro braço para me
puxar para si, beijando o topo da minha cabeça.
— É tão bom ver vocês assim — Sílvia comentou. — Bem-vinda de volta,
querida.
Será que eu estava mesmo de volta? Será que poderia estar? Por que,
então, sentia, dentro de mim, um incômodo, como se João Pedro fosse fazer
de tudo para estragar aquele momento? Eu não podia esquecer que estávamos
ali como clandestinos, roubando momentos da realidade.
Passamos a tarde juntos, os quatro, e Sílvia levou coisas deliciosas para
comermos, entre frutas, pães, frios, além de ingredientes para fazer um bolo,
que ficou com uma aparência maravilhosa, mas que deixaríamos para comer
de noite.
Quando eu e ela estávamos lavando a louça, longe de Murilo, que fora
para o quintal com Raíssa, ouvi seu comentário:
— Encontrei seu noivo quando estava no mercado ontem, sabe? Deixei
Raíssa com seu avô e fui comprar as coisas para vocês.
João Pedro em um mercado? Isso era estranho demais.
— O que ele estava fazendo lá? Te incomodou? — perguntei, preocupada.
— Não, foi até educado. Disse que estava comprando algo de higiene, não
sei o quê, e reclamou da pensão da Maria. — Sílvia fez uma cara de nojo e
desdém, o que João Pedro realmente merecia por ser tão esnobe. — Foi
estranho, porque ele apareceu um pouco silencioso, enquanto eu estava
falando com o Murilo no telefone. Até me assustei, achando que poderia ser
hostil, mas perguntou de você, se eu sabia se estava bem.
Era estranho.
Não, não era estranho. Era bizarro. João Pedro não era do tipo de pessoa
que socializaria com a mãe do homem que arrancara sua noiva do altar antes
que ela pudesse se tornar sua esposa, especialmente se chegara a me
chantagear para ir em frente com o casamento.
— Acho que deveríamos comentar isso com Murilo — soltei, dando uma
olhada para ele de soslaio, que nem prestava atenção em nós, de tão entretido
com a pequena.
— Não. Não vá estragar esses dias que vocês estão tendo. Não foi nada,
de verdade. Ele provavelmente só queria sondar. Foi até educado, juro.
Mas ainda não consegui ficar calma, tanto que mesmo mais tarde, depois
de Sílvia ir embora com Raíssa, já adormecida após um dia de brincadeiras
onde dei o meu melhor para não transparecer minha preocupação, esperei que
Murilo tomasse banho, sentada no sofá, olhando para o nada, sentindo meus
ombros tensos.
Claro que não passou despercebido pelo meu companheiro, que logo veio
se sentar perto de mim e me abraçou, puxando-me contra seu peito depois de
pousar um pedaço de bolo, em um prato, sobre a mesinha de centro.
— No que está pensando, Mandioquinha? — Não pude deixar de rir com
o apelido.
Sílvia tinha me pedido para não contar nada a Murilo, e eu sabia que ele
ficaria estressado e que poderia arruinar nossa noite, mas não queria lhe
esconder nada. Não era justo depois de tudo pelo que passamos.
— Sua mãe esbarrou com João Pedro no mercado. Achei um pouco
estranho, mas não quero ficar pensando nisso.
Murilo se remexeu no sofá, incomodado.
— Como assim? Ele falou algo para ela? Foi grosseiro? — O vinco em
sua testa surgiu, profundo, fazendo-me arrepender imediatamente de ter
tocado no assunto.
— Não. Sua mãe mesmo falou que não.
— Então por que você parece tão tensa? — Suas mãos foram parar nos
meus ombros, massageando-os, e eu respirei fundo.
Era melhor não ficar incentivando o assunto, porque provavelmente não
havia nada de mais no encontro. Deveria ser só a minha consciência pesada
falando. Para aliviar a tensão, inclinei-me e peguei o bolo, pronta para provar
um pedaço.
— Acho que foi só a menção do nome dele. Mas não quero mencioná-lo
mais. — Peguei uma garfada do bolo, levando-a à boca. — Sabe o que eu
acho? — Peguei mais um pedaço de bolo e o coloquei bem na curva do
pescoço dele, comendo-o exatamente de lá, tomando cuidado para passar a
língua em sua pele e soltar um murmúrio de aprovação.
Com um sorriso provocador, felizmente esquecendo o problema, Murilo
deixou o prato na minha mão, mas me tirou do sofá em seus braços.
— Então acho que podemos ir para a cama, mocinha. E vamos levar esse
bolo.
— Uma ótima ideia.
Jurei que enquanto estivesse com Murilo, não iria mais pensar em nada de
ruim. Eram nossos dias. Nada poderia atrapalhá-los.
Ou eu pensei que seria assim...
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Acordei de madrugada assustado, sentindo Amanda se remexer na cama,


inquieta. Por um momento acreditei que se tratasse de um pesadelo, mas ela
se levantou da cama em um pulo e se fechou no banheiro. Momentos depois
ouvi sons de vômito, o que me deixou assustado.
Bati na porta, e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela gritou:
— Não entra aqui! — Sério mesmo que ela estava com vergonha de que
eu a visse vomitando? Fosse como fosse, decidi respeitá-la, mas não consegui
voltar para a cama e fiquei esperando-a do lado de fora. Qualquer problema,
entraria mesmo sem sua permissão.
Por um momento, fiquei um pouco intrigado, pensando em uma
possibilidade: gravidez. Um bebê de João Pedro. Ela dissera que tomava
anticoncepcional, mas poderia ter havido um deslize, não?
A ideia deixou meu coração um pouco ferido por um momento, temendo
que ela desistisse de nós dois, caso houvesse uma criança na história. Porque
eu não desistiria. Eu também tinha um bebê de outro relacionamento e estaria
disposto a pegar a mão dela nessa jornada. Mas era uma escolha de Amanda,
não poderia obrigá-la.
Só que quando ela saiu da suíte, percebi que esse não era o problema.
Havia manchas vermelhas em sua pele, como uma reação alérgica. Sua
aparência era péssima, ela estava pálida e cambaleante. Precisei segurá-la
assim que pisou fora do banheiro, porque teria ido ao chão. Assim que a
toquei, eu a senti queimando.
— Você está ardendo em febre.
— É uma r-reação a-alérgica — gaguejou, fraca, tremendo. — D-descobri
que sou a-alérgica a c-castanha há alguns anos e... — Amanda cambaleou
mais uma vez. Deus, como ela tremia. Segurei-a contra mim, sentindo seus
lábios ficarem quase azuis, inchados. — P-preciso ir p-para o hospital.
Nem pensei duas vezes, apenas a amparei até o quarto, para que eu
pudesse vestir uma camisa por cima do short que usava, também colocando
uma camisa minha sobre sua lingerie, que era tudo o que tinha no corpo, e a
peguei no colo, correndo para a caminhonete, agarrando carteira e chaves no
caminho.
O que diabos ela poderia ter comido que causara aquilo? Não comemos
nada com castanhas, nem qualquer coisa parecida... – esses eram meus
pensamentos enquanto a colocava no banco do passageiro e dava a volta no
carro, entrando e partindo, cantando pneus.
Seria uma meia hora até o hospital mais próximo e... Merda! Era como
se eu não conseguisse dirigir rápido o suficiente. A estrada de volta para José
de Alencar era escura e sinuosa, e eu temia causar um acidente. Durante todas
as oportunidades tentei observá-la, temendo que perdêssemos tempo demais e
sentindo-me mais nervoso do que nunca. Nem mesmo durante o parto de
Raíssa eu fiquei daquela forma, até porque tudo correra bem.
Naquele momento Amanda poderia morrer.
Nas minhas mãos. Sob minha responsabilidade.
No exato instante em que chegamos ao pequeno hospital de José de
Alencar, tirei Amanda do carro e corri como um louco, entrando pelas portas
de vidro que se abriram com nossa aproximação.
— Me ajudem, por favor — gritei desesperado, e duas atendentes vieram
apressadas. Uma delas partiu corredor adentro, com certeza para chamar
alguém. Ajeitei a mulher nos braços, sentindo-a completamente lânguida e
respirando com dificuldade. Seus lábios estavam ainda mais arroxeados, e eu
jurei que não duraria muito tempo se não fizessem alguma coisa. — Porra,
alguém chame um médico! Ela está mal! — Uma lágrima deslizou dos meus
olhos, em total agonia, tanto que nem vi quando um enfermeiro tirou Amanda
de mim, colocando-a numa maca.
Só me dei conta quando meus braços já estavam vazios e ainda tentei
segui-los, mas fui impedido por uma enfermeira.
— Murilo, você está muito nervoso. — Claro que ela me conhecia. Em
um local como José de Alencar era difícil passar incógnito por qualquer que
fosse o ambiente.
Certamente ela era uma das pessoas que sabia que eu tinha raptado
Amanda do altar. Só que ninguém sabia exatamente o que tinha acontecido, e
eu via os olhares que todos lançavam para mim naquela recepção. Fossem
pacientes esperando para serem atendidos, as recepcionistas ou funcionários
em geral, eles me achavam um lunático. Eu tinha arrancado a moça de um
cartório, privado-a de seu casamento e lá estava eu correndo com ela para um
hospital. Não sabiam o que ela tinha, porque obviamente não conseguiram
vê-la – e mesmo se tivessem visto não saberiam exatamente o que se passava
–, e eu me sentia o culpado.
Se ela morresse...
Será que estaria mais segura com o babaca do noivo? Poderia estar em sua
lua de mel, sã e salva...
Mal senti quando me joguei em uma cadeira, apoiando os cotovelos nos
joelhos e a cabeça nas mãos, desolado.
Não sei por quanto tempo fiquei parado daquela maneira, até que ouvi
uma voz familiar:
— Filho? — Seria a minha mãe? A voz era dela.
Ergui a cabeça, com os olhos marejados, e a vi. O rosto bonito que me
servira de consolo e que me dera tanto amor em todos os anos da minha vida.
Que recebera minha filha em sua vida de braços abertos, mesmo que Raíssa
tivesse nascido de um acidente.
Lá estava ela de novo, puxando um marmanjo de mais de um metro e
noventa para seus braços como se ele fosse outra vez o menininho que gerou.
— A Lurdes, da recepção, me avisou. Deixei Raíssa com Dodô e não
contei para ele o que aconteceu. — Assenti, mas meio que sem saber o que
pensar. — Vai ficar tudo bem, filho. Vai ficar tudo bem — ela repetia com
uma voz cálida, deixando-me chorar em seu peito.
Era a primeira vez que eu chorava em anos. Ao menos daquele jeito.
Quando Raíssa nasceu, foram lágrimas de alegria. Mas de tristeza, a última
vez também fora por Amanda. Que ironia.
Passei o tempo todo abraçado à minha mãe, sentindo-me um garoto tolo e
impotente, tentando não agarrar-me à culpa e me sentir ainda mais miserável.
Tentando não pensar no pior.
Eu sabia qual era o procedimento para uma reação alérgica como aquela.
Não passava de uma injeção de adrenalina, certo? Por que diabos estavam
demorando tanto para trazer notícias?
Fazia uma hora que eu estava ali. O que mais poderiam estar fazendo com
Amanda?
— Murilo? — Eu e minha mãe erguemos a cabeça quase que
imediatamente. Lá estava Carlinhos, o pai de Afonso, com dois de seus
homens ao seu lado. Pouco atrás, com sua cara de playboy e segurando um
buquê de flores, o babaca do noivo de Amanda. — Vamos precisar que nos
acompanhe.
— O quê? — Minha mãe deu um salto da cadeira, colocando-se diante
dos homens como se tivesse condição de enfrentá-los. — Como assim “vou
precisar que nos acompanhe”?
— Sílvia, não dificulte as coisas — Carlos falou, com pesar. — Foi feita
uma queixa, e nós precisamos agir.
— Quem fez a queixa? — Ah, a inocência de D. Sílvia! Eu já estava
olhando para o responsável há alguns segundos, e o sorriso malicioso que
abriu para mim era prova suficiente de que ele não tinha apenas se
aproveitado de uma situação.
Então, pensamentos muito sombrios começaram a se formar na minha
cabeça...
Amanda dissera que João Pedro esbarrara na minha mãe no mercado. Não
sabia muito mais sobre o tal encontro, mas um rastro de bile subiu pela minha
garganta, como se eu pudesse jurar que havia algo de muito, mas muito
errado.
No momento em que a suspeita cruzou meu rosto, em uma expressão
provavelmente muito óbvia, as sobrancelhas de João Pedro se ergueram e o
sorriso se alargou.
— Filho da puta! — murmurei baixinho, mas rapidamente perdi o
controle. Já não tinha muito, levando em consideração que Amanda estava
mal e eu não tinha notícias. Avancei, pronto para ir em direção a João Pedro,
querendo agarrar a gola daquela sua camisa polo sem um único amassado e
exigir explicações, mas os três policiais montaram uma muralha na minha
frente. — Foi ele! Ele fez alguma coisa com a Amanda!
— Eu? — João Pedro demonstrou cara de espanto. — Você estava com
ela. Você a sequestrou. Quem garante que não fez isso em busca de um
resgate?
— A garota foi por livre e espontânea vontade — minha mãe novamente
se intrometeu.
Fui segurado por dois dos policiais, sentindo-me ferver de ódio. Eu queria
enfiar a porrada naquele babaca. O rosto dele ainda estava marcado pelo meu
soco, mas não era suficiente.
— Murilo, por favor, não faça isso. Não queremos te tirar daqui algemado
— Carlos falou, mas eu estava cego e surdo pelo ódio. Aquele filho da puta
tinha arquitetado tudo, sem dúvidas.
— Algemado? Mas isso é um absurdo!
— A queixa foi dada, Sílvia. Se a moça disser que foi com Murilo de
forma consensual, ele será solto, mas há testemunhas de que a viram
amarrada na caçamba da caminhonete dele.
Minha mãe continuava reclamando, dizendo que era um absurdo, mas eu
respirei fundo e coloquei a mão no ombro dela. Mesmo que não houvesse um
único resquício de calma dentro de mim, tentei apaziguar as coisas. Por ora
João Pedro tinha vencido.
— Tudo bem, mãe. Eu vou com eles, não tem problema. — Então me
virei para Carlos: — Mas só saio daqui quando tiver notícias de Amanda. —
Deixei meus ombros caírem, tentando exercer toda a minha humildade. — Eu
não sou um cara perigoso, e você me conhece desde criança, Carlinhos. Sou o
melhor amigo do seu filho. Não precisa duvidar de que vou acompanhar
vocês sem resistir, mas tenho o direito de saber como ela está.
Carlos assentiu sem demora. Claro que ele me conhecia. Eu nunca fui um
encrenqueiro.
— Não, isso é ridículo! Esse homem não tem o direito de saber como
minha noiva está — João Pedro se meteu, e eu lancei um olhar para ele que o
fez calar a boca e se encolher.
Juro, o babaca se encolheu.
— Se quiserem que eu vá por bem, vão ter que descobrir como Amanda
está. — Não precisei dizer mais nada. Carlos e os outros me conheciam para
saber que eu não era um cara de briga, mas que se precisasse, seria capaz de
criar um caos.
Entendendo isso, um dos policiais que acompanhava Carlos se prontificou
a pegar notícias. Foram os minutos mais longos da minha vida, mas quando
ele voltou, sua expressão era serena.
— A moça está bem. Está dormindo, mas vai ficar tudo bem.
Isso era o que importava.
Então eu simplesmente acompanhei os policiais, manso e um pouco
menos desesperado, mas sabia que precisava fazer alguma coisa, porque no
momento em que olhei para João Pedro por cima do ombro, lá estava a cara
dele de vitorioso, e eu tinha toda a certeza de que fora responsável pelo que
acontecera com Amanda.
E eu iria descobrir, porque sentia que, de alguma forma, precisava
protegê-la.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Vozes falavam ao meu redor, enquanto eu me sentia voltando ao mundo.


Minha boca estava seca e minha garganta ardia, isso sem contar o quão
cansada me sentia. Não era a primeira vez que tinha aquela sensação.
Minha crise anterior, e quando descobri que tinha me tornado alérgica a
algumas oleaginosas, principalmente castanhas, acontecera alguns meses
antes, e eu já estava namorando João Pedro. Fora ele que me acudira, aliás, e
não fora nada agradável. Desde então passei a tomar muito cuidado com as
coisas que comia. E eu sabia que nada do que ingeri naquele chalé poderia
me fazer mal.
A última coisa que coloquei no estômago foi o bolo que Sílvia fizera para
nós. Eu assisti enquanto o preparara, vi todos os ingredientes e nenhum deles
era perigoso para mim. O que poderia ter acontecido? Será que tinha
desenvolvido outro tipo de alergia? A chocolate?
Deus me livre!
Abri os olhos, ainda me sentindo um pouco grogue, depois de alguns
minutos e quando o quarto já estava em silêncio, jurando que tinha sido
deixado sozinha. Mas logo me deparei com um homem de jaleco branco.
— Ah, você acordou! — O homem sorriu com simpatia. — Você
obviamente não se lembra de mim, mas eu era residente aqui neste hospital
durante o parto da sua mãe. Eu me lembro muito dela, porque nunca
nenhuma mulher gritou tanto para parir — brincou, e quase imaginei minha
mãe realmente dando um escândalo, porque ela fazia isso até por um corte de
nada.
— Típico dela — comentei, tentando dar uma risada, mas me sentindo
zonza até para isso. — Doutor, o que aconteceu? Foi uma reação alérgica,
não foi?
— Sim, foi isso mesmo.
— Estranho. Sei que sou alérgica a algumas oleaginosas, mas tomo muito
cuidado com isso.
— Muitas vezes alguns produtos que consumimos têm fragmentos de
castanhas, nozes, amendoim... isso vem avisado na embalagem. É preciso
tomar cuidado.
— Eu sei. Mas não foi o caso. Realmente tomo cuidado com essas coisas,
porque já sei de tudo isso — expliquei quase indignada; quase me
defendendo, o que era ridículo.
— Você pode fazer mais alguns testes antes de sair do hospital. Mas agora
o importante é pensar que ficou tudo bem. Você chegou a tempo. Aliás, se
não fosse por Murilo... É um bom garoto.
Se não fosse por Murilo...
Meu coração deu uma cambalhota no peito, ao receber aquela frase que
tanto me incomodara dias atrás, quando cheguei à cidade, mas pensando que
Murilo realmente era um herói em vários sentidos.
Mas onde ele estava naquele momento?
Estava prestes a perguntar isso para o médico quando alguém entrou no
quarto. Um enorme buquê de flores escondia o rosto do visitante, mas nem
por um momento confundi. Não apenas porque eram corpos diferentes, mas
porque eram pessoas distintas. Era uma questão de aura.
Como não percebi antes? Mas havia algo de sombrio em João Pedro que
parecia piscar em neon. Só que eu estive cega demais para ver.
— Meu amor, você está de volta! — o cinismo estava intrínseco em sua
voz, e eu cheguei a estremecer. João se aproximou e beijou minha testa,
pousando o enorme buquê sobre a mesinha ao lado da cama. — Nossa, você
não sabe o quanto me deixou assustado!
Sentia-me um pouco confusa, não querendo falar o que não deveria falar,
mas ansiosa para saber o que tinha acontecido. Por que Murilo não estava ali?
— Bem, vou deixá-los em paz. — Ouvi a voz do médico e quando voltei
meus olhos para ele, havia algo de estranho em seu olhar. Uma desconfiança
ou talvez uma repreensão. A forma como falara de Murilo fazia com que
pensasse que tinha clara preferência, mas eu também tinha. Se pudesse
escolher, não queria ficar sozinha com João, mas talvez fosse o momento da
conversa que precisávamos ter, embora eu não estivesse nas melhores
condições para isso.
O doutor saiu, fechando a porta atrás de si. João Pedro ficou parado,
olhando para mim, braços cruzados e uma expressão que me causou um
calafrio.
Não que eu duvidasse que poderia estar irritado por tudo que aconteceu.
Suspeitei que já soubesse que o sequestro não fora exatamente contra a minha
vontade, e tinha todo o direito de soltar os cachorros em cima de mim. Mas
eu queria me explicar:
— João, nós precisamos conversar — comecei, com calma, esperando que
pudéssemos ter um diálogo civilizado.
— Como você está se sentindo? — Por mais que pudesse parecer uma
pergunta inocente, de alguém que se preocupava comigo, o tom que usou me
assustou. Não só porque era cínico, mas porque havia muitas entrelinhas. Ele
não apenas ignorara completamente o que eu disse, mas também pareceu usar
de um tom ácido.
— Um pouco melhor.
Balançando a cabeça, ele caminhou pelo quarto e se sentou na cadeira ao
lado da cama, puxando-a mais para perto de mim. Por puro instinto, eu me
encolhi, querendo me afastar ao máximo, mas me sentindo fraca demais para
isso.
— Que bom. Mas fico feliz que você tenha sofrido bastante. A intenção
era essa — ele soltou como se não fosse nada. Como se estivesse comentando
comigo sobre o tempo ou sobre algo trivial.
— Do que você está falando? — minha voz soou mais frágil do que
nunca, porque eu estava apavorada.
— Não sei o que aquela velha gostosa fez com o chocolate, mas ele estava
adulterado, docinho.
— O quê? — Arregalei os olhos, sentindo-me ainda mais zonza do que
antes. Será que estava entendendo a mensagem correta?
Em um movimento rápido, João agarrou a minha mão. Tentei me
esquivar, mas meus movimentos estavam comprometidos, provavelmente por
causa do efeito dos antialérgicos, e eu estava morrendo de sono. Ao mesmo
tempo, sentia-me em alerta.
— Essa é a parte da história em que o vilão revela seu plano mirabolante.
É clichê e brega, eu sei, mas quero que você entenda até que ponto sou capaz
de ir para o que quero e preciso. — Cheguei a perder o ar, ouvindo-o falar
enquanto apertava a minha mão com um pouco mais de força. — Eu fiquei
sabendo que sua ex-sogrinha iria levar algumas coisas para vocês. É
impressionante como se descobre tudo em uma cidade pequena, se ficar de
ouvidos bem atentos. Fui até o mercado e troquei o pote de achocolatado da
cesta dela. Não foi fácil, mas eu tenho meus contatos, e a embalagem ficou
perfeita, trabalho de mestre, principalmente no lacre, em tempo recorde. Aqui
mesmo em José de Alencar a gente consegue o que quer com as pessoas
certas e boas indicações.
Não consegui responder. Sentia-me completamente paralisada,
horrorizada, perplexa.
— Você tentou me matar? — sussurrei, ainda mais apavorada.
— Claro que não. Qual seria o meu benefício com isso? Só quis te mostrar
o quão longe posso chegar pelo que eu quero.
— O que você quer?
Ele deu uma risada sarcástica e beijou a minha mão.
— Eu poderia ser ridículo e dizer você, mas não quero soar apaixonado,
porque não é o caso. Quero sua assinatura na nossa certidão de casamento,
querida. Seu pai me prometeu muito dinheiro caso a gente se casasse, porque
ele quer associação com o meu sobrenome. Obviamente isso é coisa daquela
insuportável da sua mãe.
Meu pai tinha... me vendido?
Era mesmo isso?
— Está surpresa, meu amor? Ah, não deveria estar. Você sabe como seus
pais são ambiciosos, não apenas por dinheiro, mas por status. Só que eu quis
me certificar, porque sabia que você poderia mudar de ideia. Acelerei todo o
processo do nosso casamento, mas mesmo assim não me senti seguro. Então
vasculhei todos os podres possíveis que te rondavam.
— E foi assim que descobriu que meu pai tem outra família? — Ele
apenas assentiu.
Porque era isso. Meu pai não apenas tinha uma amante como infelizmente
alguns homens possuíam. Ele tinha outra esposa e filhos. Fora o que João me
contara naquele telefonema, chegando a me enviar fotos incontestáveis.
Não era um fim de mundo. Não era algo que fosse levar meu pai à cadeia
nem nada do tipo. Mas eu, como filha, não queria que toda a sua vida secreta
fosse lançada em um jornal, levando nossa família àquele tipo de
constrangimento. E num momento de desespero, casar-me com João Pedro –
já que fui eu que comecei a confusão toda, aproximando a cobra daquelas
pessoas – me pareceu a única solução.
Mas não era. Se meu pai tinha um problema, ele precisava resolver. Minha
mãe tinha o direito de saber que era traída há anos, que havia outras pessoas
envolvidas, que eu tinha irmãos.
Deus, eu realmente tinha irmãos... A ideia nem me desagradava, embora
fosse estranho pensar dessa maneira.
Só que naquele momento o problema era maior do que uma segunda
família que meu pai poderia ter formado por nossas costas. Meu noivo tinha
tentado me matar. Ele poderia dizer que não, que não fora sua intenção, mas
o resultado de sua brincadeirinha macabra poderia ter sido muito assustador
se...
Ok, se não fosse por Murilo...
Se não fosse por Murilo, se ele não tivesse acordado naquela hora,
percebendo que havia algo de errado; se ele não tivesse agido rápido em me
levar para o hospital; se não fosse tão cuidadoso, atencioso e heróico, eu
poderia estar em uma situação muito pior.
— O que você vai fazer, João? — perguntei, sentindo-me cansada. Era um
pesadelo, mas aquele cara não sairia tão fácil da minha vida.
— Simples. Vamos sair daqui agora e vamos para aquela pensão nojenta
onde estou hospedado. Há um tabelião pronto para nos encontrar por lá. Você
vai assinar os papéis e se tornar a Sra. Gauthier esta tarde. Não é romântico?
— Você está louco. Eu mal consigo me colocar sentada na cama. O
médico nunca vai me dar alta.
— Vai sim. Você pode se responsabilizar por si mesma, uma vez que está
consciente. Está na lei, querida, especialmente porque já está fora de perigo,
apenas em observação. É só assinar um papelzinho — ele falava como se
tudo fosse muito simples.
— E por que eu assinaria alguma coisa? Por que concordaria com essa sua
ideia absurda? — nervosa, cheguei a ficar ofegante.
— Porque eu posso ser bem cruel com as pessoas que você ama. Aquele
seu valentão tem uma bebezinha, não tem? Acha que ele continuaria
bancando seu herói se você fosse, indiretamente, a culpada por...
— Você não vai fazer nada contra a neném — interrompi e acrescentei: —
Não vai. — Então elevei a voz. Se eu gritasse alguém poderia parar aquele
louco e levá-lo preso, não? — ALGUÉM... ALGUÉM ME...
Sua mão grande cobriu a minha boca, e eu arregalei os olhos pela surpresa
do movimento e pela forma rude com que me tocava.
Idiota! O que eu poderia esperar de um homem capaz do que estava
fazendo desde que começara a me chantagear?
— Você vai calar a sua boca e cooperar, senão o grandalhão e a família
dele vão pagar. Seu Murilo está na cadeia agora, onde deveria estar, já que
sequestrou uma moça indefesa, não é? E ainda não cuidou dela direito. Quem
garante que não foi ele que fez isso por ciúme? Pelo simples fato de que você
está tão apaixonada por mim que não cedeu a ele?
Aquilo me deixou ainda mais assustada. Murilo estava na cadeia? Como
assim?
Então meus pensamentos entraram em ordem, refletindo. Claro que ele
estava. Por minha causa, um crime fora cometido aos olhos da cidade, e João
Pedro não iria perder a oportunidade de usar e abusar disso.
Seria necessária apenas uma palavra minha para que ele fosse solto, já que
não foi exatamente um rapto, já que tivera o meu consentimento, mas
imaginava que João não iria me permitir fazer nada. Ao menos não até que
concedesse seus desejos. E quando isso acontecesse, já seria tarde demais. Eu
seria sua esposa.
— Você vai concordar com tudo que eu disser, não vai? — Hesitei, mas
assenti. Ameaçar as pessoas a quem eu amava era o mesmo que colocar uma
arma na minha cabeça. Teria o mesmo poder. — Ótimo.
Depois dessa conversa ridícula, vi tudo ir acontecendo quase como se
fosse uma expectadora da minha vida. Tive que mentir para o médico,
afirmando que queria sair do hospital, que me sentia pronta para voltar, e
então João Pedro me amparou até o lado de fora, quase como se eu fosse uma
inválida, porque eu realmente ainda me sentia muito cansada. Vestia apenas a
camisa de Murilo, que chegava às minhas coxas, e nem me importei com
isso. Não faria a menor diferença se alguém visse a minha calcinha ou a
minha bunda naquele momento. Eu me sentia como uma condenada no
corredor da morte.
Podia ser um exagero, mas meu coração estava devastado. Pela
chantagem, por ser obrigada a algo que seria repulsivo para mim a partir do
momento em que descobri quem era o meu noivo, mas principalmente por
Murilo estar preso por minha causa. Ele tinha sua vidinha feliz, com sua
filhinha adorável, que, aliás, fora ameaçada também.
Eu estava estragando a vida dele.
Quando chegamos à pensão da Maria, sentia-me tão fraca que mal
conseguia saltar do carro. João me pegou no colo – bem mais desajeitado do
que Murilo fazia, embora eu não fosse exatamente pesada – e me levou para
o quarto, sorrindo para a mulher na recepção, que parecia um pouco confusa.
Claro que ela deveria conhecer Murilo e saber o que acontecera. A cidade
inteira provavelmente andava comentando, e eu esperava que isso contasse ao
meu favor.
No momento em que me colocou sentada na cadeira, João Pedro não
perdeu tempo e pegou dois pedaços de corda, amarrando-me.
— Não estou em condições de fugir, João, por favor — pedi, porque não
queria ficar tão indefesa perto dele. Não depois do que ele fora capaz de
fazer.
— Não quero ficar bancando a babá. Quando o tabelião chegar, eu te
solto. — Depois de terminar sua tarefa, ele beijou o topo da minha cabeça, o
que me deixou extremamente enojada. Como se fosse muito normal, colocou
um pano na minha boca, para que eu não gritasse, e entrou no banheiro,
cantarolando, animado.
Olhando ao meu redor, sem saber o que fazer, comecei a pensar que não
haveria jeito... que, daquela vez, ninguém chegaria para me impedir de me
casar.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Um leão enjaulado, era como eu me sentia. Não era certo eu estar dentro
daquela merda de cela enquanto o verdadeiro criminoso continuava solto,
próximo de Amanda, pronto para lhe fazer mal.
Porra, se ele encostasse um único dedo nela...
Só de pensar nisso, já senti novamente uma onda de raiva e agarrei duas
barras da cela, desejando conseguir quebrá-las com meus próprios punhos.
— Carlos! — chamei, e ele olhou na minha direção. — Porra, Carlos,
você me conhece desde menino!
— Conheço. E sei o quanto você ama aquela garota. A gente faz coisas
bobas por amor, filho.
— Mas não sem o consentimento dela. — Odiava revelar o segredo
daquela forma, ter que contar a verdade sobre o sequestro sem a permissão de
Amanda, mas imaginava que ela não me deixaria ficar preso caso tivesse
algum papel naquela história.
— Garoto, sem a palavra da moça, eu não posso fazer nada. Tem uma
queixa e...
— A queixa de um homem que tentou matá-la! — gritei em um tom
gutural que chegou a fazer o outro oficial, que estava na outra mesa,
sobressaltar-se. — Você poderia, pelo menos, enviar alguém para ficar de
olho nela no hospital. — Ele olhou para mim, ponderando, e eu decidi tentar
ser um pouco mais paciente, ao menos externamente. — Por favor, Carlos.
Ela pode estar realmente em perigo.
— O noivo parecia bem apaixonado, Murilo. Preocupado. Provavelmente
foi um acidente e...
— Acidente porra nenhuma! — berrei de novo, sentindo-me fora de mim.
Algo me dizia que poderíamos estar perdendo tempo ali. Um sexto sentido,
fosse o que fosse.
— Eu tenho um respeito grande por você e pela sua mãe, garoto, mas se
continuar causando desordem dessa forma, não vou nem te ouvir. — Carlos
sempre foi uma figura paterna para mim, assim como Dodô, só que eu sabia
que estava mesmo passando dos limites.
— Desculpa. Estou exaltado, mas é por um motivo. Por favor, envie
alguém para o hospital e...
— Nem precisa — fui interrompido pela voz familiar do meu melhor
amigo, Afonso, que chegava na delegacia com a minha mãe. Esta, com a
maior cara de enfezada do mundo, o que teria me feito rir se a situação não
fosse tão séria. — Acabei de sair de lá, e ela não está mais. Sílvia foi me
procurar.
— Como assim ela não está mais lá? — indaguei, com o coração
acelerando no peito, enquanto Afonso tirava as chaves de dentro do bolso
para abrir a cela onde eu estava preso.
— Ela assinou responsabilidade pela alta, e o babaca a levou. — A cela se
abriu, e eu praticamente pulei de dentro dela.
— Afonso, eu não autorizei a soltura do prisioneiro — Carlos falou,
tentando manter a autoridade, levantando-se.
— Pai, eu sou testemunha de que foi Amanda quem planejou todo o
sequestro — era mentira, eu sabia, mas Afonso estava provando mais uma
vez o quão meu amigo era. — E também estou muito preocupado com ela,
aliás.
— Irresponsabilidade, é assim que se chama — minha mãe começou a
tentar se meter, e eu coloquei a mão em seu ombro, esperando que não
piorasse as coisas. — A uma hora dessas o almofadinha já levou Amanda
para a pensão. Sabe lá Deus o que ele pode fazer com ela. Isso se não levá-la
para o Rio e...
Puta que pariu! Sim, D. Sílvia estava piorando a situação, mas a minha,
porque eu estava começando a ficar ainda mais nervoso.
Sem nem precisar de um pedido, Afonso fez um sinal para mim, para que
saíssemos. Minha mãe vinha atrás de nós, mas eu a impedi.
— Não quero ter que me preocupar com a senhora também. Fique aqui na
delegacia, assim que eu tiver notícias te aviso. Ou vá para casa.
— Se for para casa, Dodô vai ficar sabendo de tudo, e eu não quero que se
emocione. Vou para o Walter. Vou tomar uma porcaria de uma cerveja,
porque não vou aguentar isso tudo sóbria.
Balancei a cabeça, assentindo, e segui Afonso, entrando no carro dele.
Partimos imediatamente para a pensão da Maria – graças a Deus a única
hospedagem da cidade inteira ou ainda teríamos que procurar –, no máximo
de velocidade que as ruas de José de Alencar permitiam. Durante todo o
tempo, minhas mãos se mantinham cerradas em punhos, enquanto eu tentava
me controlar para não descontar a raiva e o nervosismo nas pessoas erradas.
Só havia um culpado naquela história. E eu ia pegá-lo antes que sequer
tocasse em Amanda para machucá-la de novo.
A pensão da Maria, de fato, não era um hotel cinco estrelas, mas era um
ambiente limpo, familiar, com comida boa e quartos decentes. Naquele
momento, odiei o estabelecimento com todas as minhas forças, porque sabia
que aquele filho da puta estava hospedado ali.
— Ei, Rosa! — Afonso, muito mais controlado do que eu, chegou
cumprimentando a recepcionista. — Aquele cara lá da cidade grande está
hospedado aqui? João Pedro o nome do sujeito.
— Ele chegou quase agora com a Amanda. Ela não parecia muito bem
não, porque ele tava com ela no colo. Avisou por telefone que um homem do
cartório ia chegar, pediu que eu o deixasse subir sem nem precisar avisar — a
garota saiu falando, sem filtro.
— Filho da puta! — exclamei, consternado.
— Rosa, é ordem de polícia, você precisa nos informar em qual quarto ele
está hospedado — Afonso disse, em tom de comando, embora ele não
pudesse, sem um mandado, exigir informações assim. Mas a moça não sabia,
é claro, e se tratava de uma emergência.
— Q-quarto 6.
No momento em que ela falou, titubeando, nem esperei por nada, apenas
saí correndo em direção às escadas, subindo os degraus de dois em dois,
enfurecido.
Amanda não estava bem, Rosa falou. O que ele poderia estar fazendo com
ela? O tabelião fora comprado, sem dúvidas, e ele a obrigaria a assinar a
certidão de casamento, era o que eu imaginava. Ela se tornaria sua esposa,
refém de suas chantagens e de sua ambição.
Mas eu não ia deixar.
Poderia ter batido na porta, fingindo ser o tabelião, mas enfiei a porra do
pé na madeira, arrombando-a. Era um negócio velho, que devia ter uns
cinquenta anos de idade, assim como toda a casa, então cedeu no primeiro
chute.
— Mas que porra é essa? — o tal de João Pedro exclamou, e eu logo vi
Amanda sentada numa cadeira, amarrada e amordaçada, com os olhos
cansados e débeis, provavelmente ainda grogue dos remédios.
Como um animal, parti para cima do desgraçado, dando-lhe um soco na
cara. Um daqueles que se dá com toda a fúria, que nos faz ouvir os ossos do
outro estalando sem piedade. Seu rosto ainda estava marcado do meu golpe
anterior, e seria legal vê-lo novamente marcado pela minha raiva.
Agarrei-o pela gola da camisa e o puxei do chão, imprensando-o na
parede.
— O que pensa que estava fazendo com ela? Que porra ia fazer com ela?
— repeti, mais alto, mais grave, tentando soar mais assustador.
— Uma esposa rica e morta vale mais do que... — Nem o deixei terminar.
Outro soco o levou ao chão, e eu poderia jurar que ele não esperava que o
homem que estava comigo, à paisana, fosse um policial, ou não teria dito
isso. Tanto que sua expressão de confusão, quando começou a ser algemado e
a ouvir seus direitos, foi de puro desespero.
— Não! Isso é ridículo! Vocês estão prendendo o homem errado. Foi esse
brutamonte que seqüestrou a minha noiva! Ele é o criminoso! — Afonso
levantou-o do chão, já com as algemas. Eu sabia que ele não iria sair daquele
quarto sem um escândalo. — Ele me agrediu. Quero prestar queixa por isso!
— Eu vi tudo. Foi legítima defesa — Afonso falou em um tom irônico
que poderia ter me feito rir em qualquer outro ambiente.
— Abuso de poder! Seu...
— Olha! — meu amigo o impediu, novamente de zombaria. — Se xingar
uma autoridade, sua situação pode se complicar!
Enquanto João Pedro era tirado do quarto, aos berros, outra figura surgiu:
Maria, e ela parecia muito contrariada. Como já imaginava que mais
confusão aconteceria, comecei a desamarrar Amanda, que parecia pálida e
pronta para desabar a qualquer momento.
— Você está bem? — perguntei assim que tirei a mordaça.
— Só muito cansada.
Claro. Depois de tudo pelo que passou...
— Ainda bem que é você, Murilo, que sei que tem dinheiro para pagar por
essa porta quebrada — Maria falou em um tom ranzinza, e eu vi Amanda
olhando para mim, confusa.
É, eu ainda não tinha contado para ela sobre o que eu fazia para viver.
— Rosa me contou por alto algumas coisas, e eu estou concluindo outras
— ela falou, olhando para Amanda, enquanto eu ainda lutava contra os nós
que a prendiam. — Tem um homem lá embaixo querendo subir, mas não vou
deixar, não. Vou avisar à delegacia se ele resolver me trazer problemas.
Vocês sabem que não gosto de confusão na minha pensão — disse, severa.
— Sei, Maria, me perdoa. É que... — fui falando, terminando minha
tarefa, e Maria me olhou com compaixão.
— Não você, menino. Você seria incapaz de começar algo desse tipo. Foi
aquele sujeito da cidade, que não pertence a este lugar. Conheço um
encrenqueiro de longe, e aquele cheiro de perfume caro dele não me enganou.
— Maria estendeu uma chave, mostrando-a para nós. — Venha, garoto, traga
a menina para outro quarto e a deixe descansar, por conta da casa. O avô dela
ia ficar louco se a visse chegando assim em casa e não queremos Dodô em
um hospital outra vez.
Suspirei, agradecido, pensando que aquelas horas pareciam não terminar
nunca. Ajudei Amanda a se levantar, mas ela cambaleou, e eu a peguei nos
braços com cuidado, sentindo-a encostar a cabeça no meu peito. Vulnerável e
assustada. Era uma covardia pensar no que aquele demônio pretendia fazer
com ela.
Acompanhei Maria até o quarto ao lado, o cinco, e entrei. Ainda com
Amanda no colo, voltei-me para a dona do lugar, com uma expressão
empática.
— Obrigado — foi tudo o que consegui dizer.
— Fiquem à vontade. Cuide dela. Se quiserem comer, é só falar. Mas aí
não vai ser por conta da casa. Você tem dinheiro suficiente para pagar uma
refeição para a sua garota.
Não pude deixar de sorrir e assentir.
Minha garota. Soava bem.
Maria fechou a porta, deixando a chave na fechadura, por dentro, para se
quiséssemos usá-la, mas eu deixei Amanda na cama primeiro, com cuidado,
para realmente voltar e trancar a porta para nos dar privacidade.
— Fica comigo — Amanda pediu com uma voz suave e frágil, porque eu
sabia que seria apenas uma questão de minutos para que pegasse no sono.
Estava exausta e cheia de remédios na veia. Não era de se assustar, mas vê-la
daquele jeito causou um aperto no meu coração.
Parti para a cama, tirando os sapatos e deitando-me atrás dela. Nós dois
estávamos com as mesmas roupas de quando saímos do chalé, então, quando
a puxei para os meus braços, aconchegando-a em mim, tentei colocar na
minha cabeça que fora apenas um pesadelo. Eu tinha que ligar para a minha
mãe, mas faria isso quando Amanda dormisse.
— Está tudo bem, amor — sussurrei para ela, beijando sua cabeça, no
momento em que a senti estremecer. — Pode descansar, estou aqui. Nada
mais vai te acontecer.
— Eu sei... Se não fosse por você...
Depois de dizer isso, ela pegou no sono pesadamente, e por mais que eu
soubesse que tinha várias coisas a fazer, acabei tendo o mesmo destino,
porque estava exausto e aliviado de que, no final das contas, tudo tinha ficado
bem.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

Acordar nos braços de Murilo, depois de tudo o que aconteceu, sentindo-


me viva e um pouco mais revigorada, era um presente. Como despertar
aliviada depois um pesadelo que parecera real demais.
Eu só não imaginava que ele já tinha resolvido várias coisas enquanto eu
dormi por pouco mais de quatro horas. Havia comida no quarto da pensão, e
ele me fez comer um pouco. Sílvia levara roupas para nós, e eu pude sair dali
usando algo mais decente.
Enquanto comíamos, eu e Murilo conversamos, e eu lhe contei tudo o que
João Pedro revelou sobre seus planos, sobre a adulteração do chocolate, sobre
o “dote” que meu pai lhe prometeu, e concordei em prestar uma queixa, o que
esperava que o mantivesse na cadeia. Mas quis fazer mais do que isso.
Antes mesmo de sair da pensão, peguei o celular de Murilo e liguei para
uma amiga jornalista, contando toda a história para ela, pedindo que a
publicasse o quanto antes como um furo urgente. Ela era dona de um portal
pequeno de fofocas, e eu esperava que isso a fizesse crescer e se espalhasse
por toda parte. Queria o nome de João Pedro Gauthier III na lama.
Queria que meus pais descobrissem o que ele tinha feito comigo pela
imprensa. Depois eu teria uma conversinha com os dois.
Quando me levantei da cama, depois de comer, já me sentia bem melhor e
concordei em voltar para casa de Murilo, doida para ver meu avô, que estava
lá. De acordo com o que me contara, Sílvia não tinha explicado a ele o que
ocorrera e ficava por minha conta decidir sobre a verdade ou não.
No momento em que o abracei, meu coração se apertou de tal forma,
porque tinha certeza de que se algo acontecesse comigo, ele iria sofrer. Eu
poderia ser, indiretamente, a causadora de mais um problema para sua saúde.
Então achei melhor esperar mais um pouco para contar. Que pelo menos João
Pedro estivesse bem longe, no Rio, como logo aconteceria quando seus
advogados chegassem para livrá-lo da cadeia, onde Afonso pretendia mantê-
lo até segunda ordem.
Fora isso, as coisas estavam começando a ficar quentes internet afora.
Muitos sites e IGs famosos replicaram a notícia. Não que João Pedro fosse
exatamente famoso, mas era filho de um milionário que dava algum ibope.
Seu pai, há algum tempo, chegara a concorrer a um cargo político, onde não
teve muito sucesso, mas tudo o que acontecia de muito bombástico na família
era alvo de fofocas. E lá estava uma quentíssima.
Saíra sobre o sequestro – que fora arquitetado pela própria noiva para se
livrar do futuro marido chantagista –, tentativa de assassinato e outro
sequestro, além de um salvamento por um herói sexy e apaixonado. Eu não
disse que era história de livro?
Já havia mulheres suspirando por Murilo por todo canto, porque uma foto
dele foi divulgada.
Mas ele era meu. Que todas as outras me desculpassem, mas aquele
homem maravilhoso, gato, musculoso, sexy e protetor tinha sido fisgado.
Muitos anos atrás, aliás. O tempo só nos manteve separados para que nos
reuníssemos novamente e vivêssemos uma aventura.
E fazia muito tempo que eu não sentia tanta paz. Ao lado das pessoas que
amava, brincando com a coisinha linda da Raíssa, que usava um enorme laço
na cabeça, como sempre, combinando com seu vestidinho. Ambos eram
azuis, com cupcakes rosa estampados.
— Fala sério, Amanda, a minha ideia com esses laços foi sensacional, não
foi? — Sílvia perguntou, depois de dar uma golada em sua limonada,
provavelmente percebendo que eu estava mexendo no lacinho de Raíssa,
enquanto ela gargalhava no colo do pai.
Olhei de Sílvia para Murilo, que tinha um olhar conspiratório no rosto.
— Não estou sabendo de nada...
Foi a vez de Sílvia se voltar para o filho, boquiaberta, chocada.
— Você não contou para ela, Murilo? Que absurdo! — Mas obviamente
ela não demorou a se explicar: — Eu costumava costurar esses lacinhos para
a Raíssa, sempre combinando com a roupa. Aí fiz um Instagram para ela,
privado. Só que a mãe dela é modelo, aí o que acontece é que ela saiu
mostrando fotos da filha para um monte de gente, e o negócio pegou. Ela nos
apresentou a algumas pessoas e virou um negócio em poucos meses. Eu
mesma comecei costurando, mas os pedidos aumentaram muito rápido.
Conseguimos uma fábrica que se tornou nossa parceira, e hoje temos uma
marca de moda infantil.
— É mesmo? Que legal! — exclamei, verdadeiramente impressionada. —
Como se chama?
— Tiquinho de Gente, porque era assim que eu chamava Raíssa quando
recém nascida. — Orgulhosa, Sílvia pegou seu celular e o apontou para mim,
com uma página do Instagram aberta. Rapidamente arregalei os olhos.
— Meu Deus, vocês têm mais de dois milhões de seguidores! —
surpreendi-me.
— Somos muito bem-sucedidos no negócio, graças a essa coisinha aqui.
— Murilo ergueu a filha por baixo dos braços, e ela soltou outra gargalhada,
além de um “papá” que me desmontou.
Lá estava a explicação para o lindo chalé no lago do qual Murilo era o
dono. Mas era extremamente curioso que ainda morasse na mesma casa, não
tivesse um carro muito novo, embora fosse bem conservado, e que não
ostentasse seu dinheiro. Talvez eu estivesse muito acostumada a pessoas que
precisavam mostrar às outras que eram ricas. Murilo nunca foi assim, ele
sempre amou a vida simples que levava.
Aparentemente eu gostava dela também, mais do que pensei.
Ticiane também passou por lá, para me dar um pouco de apoio e carinho,
mas não demorou para voltar para casa, porque sabia que Afonso iria jantar
em casa, e ele estava cansado. Carlos prometera ficar de olho em João Pedro,
que seria transferido para o Rio na manhã seguinte, a pedido de seu
advogado.
Com claras intenções de nos deixar sozinhos, Sílvia fez um convite para
Dodô ir jogar xadrez com ela, em sua casa, levando Raíssa. Ele fazia isso
muitas vezes, pelo que Murilo me contara, e passava a noite lá. O que me
deixou intrigada...
— Acha que sua mãe e meu avô...? — falei, com clara insinuação na voz.
Murilo tinha acabado de preparar um chocolate quente para nós, daquela
vez sem castanhas. Ele mesmo derretera a barra lacrada e misturara ao leite –
como sempre fazia quando éramos adolescentes, e eu nunca provei algo
melhor.
— O quê? — perguntou, chocado. — Não...! Não! — Seu rosto se
transfigurou numa careta de incômodo. — Nossa, é como imaginar minha
mãe se relacionando com meu avô. Não! Dodô é um pai para ela. Acho que
está mais do que na hora — Murilo se acomodou no sofá, deixando um pouco
de suspense em sua fala. Sentou-se, puxando-me para seu colo, onde me
aconcheguei deliciosamente — de ela perceber que tem um cara legal a fim
dela, você não acha?
Arregalei os olhos, animada:
Era impossível pensar que Sílvia não percebia o quanto era amada. Era
fácil me lembrar de momentos em que peguei Walter olhando-a, mesmo no
passado, com um sentimento forte estampado no rosto. A forma como a
admirava, como mencionava seu nome... nunca foi algo fraterno.
— E eles fariam um casal lindo! — comentei e refleti um pouco. Ainda
excitada com a possibilidade, praticamente dei um pulinho no colo dele,
remexendo-me e virando-me de frente, sem nem perceber o que fazia. —
Precisamos juntá-los, Murilo! Precisamos fazer alguma coisa e...
As mãos grandes foram parar na minha cintura, apertando-me, e o assunto
parecia não ser mais a respeito de unir outras duas outras pessoas. Éramos
nós unidos ali. Só eu e Murilo.
Era fácil perceber que sua ereção começava a despertar, por debaixo do
tecido da calça de moletom, grande, imponente e suplicando por atenção.
Coloquei meus braços ao redor de seus ombros, respirando fundo e
sabendo muito bem o que queria.
— Você não deveria me provocar assim, Mandioquinha. Sabe que não
resisto a você... — aquela voz rouca... Deus, me provocava arrepios em todas
as partes do corpo.
— E por que resistiria?
— Porque você passou por muita coisa. Precisa ser cuidada, não fodida.
Ele estava falando de forma muito pervertida e muito sensual para quem
queria apenas me dar carinho.
— Uau. Gostei do som disso. Aliás, Murilo Alberto... Que história foi
aquela de que você tem experiência em amarrar mulheres? Não me lembro de
nenhuma aventura nossa com essa sua vertente. Me sinto em desvantagem.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Mesmo depois do que aconteceu? Com aquele filho da puta e...
Levei um dedo aos seus lábios, substituindo-o logo depois pelos meus, em
um beijo rápido só para interrompê-lo.
— Não há ninguém aqui além de nós dois, então não vamos trazer outras
pessoas para o nosso momento. O que aconteceu ficou no passado, e eu não
quero que sobre nenhum trauma. Com você as coisas são diferentes.
— Bom saber disso.
Com um sorriso de canto muito sexy, Murilo levantou-se, mantendo-me
suspensa, com as pernas entrelaçadas em sua cintura. Desta forma, começou
e me levar pelas escadas da casa.
Daquela vez, não havia peso nas nossas costas nem em nossas
consciências. Não importava o que iria acontecer com João Pedro, eu já
pertencia novamente a Murilo. E ele pertencia a mim.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

Quando Murilo me sentou na cama, o olhar que ele expressava me fez


estremecer. Sempre houve muito tesão entre nós, éramos completamente
apaixonados e nossa química era do tipo que se poderia tocar caso
estendêssemos a mão; só que, naquele momento, havia uma aura diferente.
Sabe o que ele falou sobre me foder? Pois é... eu sentia que seria isso o
que aconteceria.
E há uma diferença... Pode acreditar, amiga. A gente sabe.
Ele se afastou, deixando-me ali, retornando pouco tempo depois com
algumas coisas nas mãos. Deu a volta na cama e usou um tecido preto para
vendar meus olhos.
Ok... ele estava levando a ideia a sério. Eu não iria me opor nem um
pouco.
Ainda sem dizer nada, tirou a minha blusa por cima da cabeça, fazendo o
mesmo com meu sutiã, deixando-me nua da cintura para cima.
Senti o calor de seus lábios encontrando a minha pele, subindo uma trilha
com a língua pelo desenho da minha coluna, desde o início da fenda entre as
minhas nádegas até a minha nuca, afastando o cabelo de seu caminho. Um
suspiro pesado escapou do meu peito, enquanto meu coração acelerava de
uma forma totalmente nova.
Era um tipo diferente de adrenalina. Eu já estava excitada só pela
expectativa.
A respiração quente de Murilo atingiu meu ouvido no momento em que
sussurrou:
— Então você vai ser toda minha esta noite?
Como manter uma calcinha intacta com aquele homem falando essas
coisas? Impossível.
— Não só esta noite.
— Ah, não? — enquanto perguntava de forma zombeteira, ele segurou
meus punhos para trás das costas, como fizera no momento do “sequestro”,
amarrando-os com habilidade. — Por mais quanto tempo?
— Para sempre.
Uma risadinha ecoou atrás de mim, e eu arfei quando suas mãos ásperas
foram parar nos meus seios, depois de terminar sua tarefa com meus punhos.
Em segundos, dedos ávidos começaram a girar meus mamilos, causando a
perfeita sensação de desejar mais e mais. Enquanto me torturava daquela
forma, Murilo começou a beijar meu pescoço, deixando-me ainda mais
sensível. Mesmo quando era um garoto inexperiente, sempre ousou e
experimentou coisas, o que nos tornou muito bons juntos quando estávamos
na cama, mas era fácil ver que tinha se tornado um homem muito hábil em
seduzir.
Puxando-me um pouco contra seu peito, ele manteve uma das mãos no
meu seio, enquanto a outra escorregava pelo meu corpo, entrando pelo meu
short e calcinha, encontrando meu clitóris, massageando-o preguiçosamente.
Tombei a cabeça em seu ombro, arfando, e já me sentindo completamente
pronta, por mais que eu soubesse que nada seria apressado.
Quando usou o mesmo dedo que brincava com aquela parte sensível entre
as minhas pernas para me penetrar, bem fundo, eu gemi alto, agradecendo
pela casa estar vazia, principalmente porque sabia que, de jeito nenhum, iria
conseguir me controlar e ser discreta e silenciosa naquela noite.
— Geme para mim, amor. Quanto mais você gemer, mais eu vou te dar —
outro sussurro rouco e sexy. Eu estava tão molhada que o dedo de Murilo
escorregava sem dificuldade.
Outro dedo foi usado junto ao primeiro, chegando fundo e acelerando os
movimentos.
Murilo queria que eu gemesse, não queria? Bem, eu estava atendendo aos
seus desejos, principalmente porque era involuntário. Estava além do meu
controle.
Eu ia gozar se ele continuasse daquela maneira. Forte. Seria um começo
de noite maravilhoso.
Só que ele não continuou.
Simplesmente me deixou, saindo de trás de mim. A venda me impedia de
saber o que estava fazendo, especialmente o motivo de estar demorando
tanto, e os braços presos não me deixavam retirá-la para espreitar. Era uma
forma muito excitante de vulnerabilidade. Um delicioso suspense que só
servia para manter o momento mais erótico.
Foram alguns minutos de mistério até que suas mãos grandes agarraram
minhas coxas e me puxaram para frente na cama. Quando eu estava bem na
beirada, Murilo empurrou meu peito, indicando que queria que eu me
deitasse. Era um pouco incômodo, com os punhos presos, e ele percebeu isso,
porque sumiu mais uma vez. Ao voltar, soltou-me só para me prender de
novo, com os braços esticados para cima. Como eu estava deitada ao
contrário na cama, com as pernas para a lateral dela, Murilo deve ter usado
uma extensão e amarrado a outra ponta no estrado, ao lado do colchão. Era
uma cama de madeira, que permitia isso.
— O que você vai fazer? — perguntei, ansiosa, mas ele não me
respondeu. Deixou-me na expectativa por mais tempo, até que tirou o short
que eu usava e minha calcinha.
Não esperei pelo que aconteceu, mas lá estava ele com a cabeça entre as
minhas pernas, usando sua língua na minha boceta, fazendo-me contorcer.
— Ah, meu Deus! — gemi sem controle, remexendo-me, com os
movimentos restritos, desejando desesperadamente que ele não parasse o que
quer que estivesse fazendo.
Era, sem dúvidas, o melhor sexo oral que já tinha recebido na vida,
inclusive de Murilo. Ele não perdoou, não poupou nada. Sua língua explorou
cada centímetro, sugou, lambeu, sua boca chupou e mordeu, e eu me sentia
tomada por um desejo tão insano que seria capaz de gritar e implorar que me
fodesse naquele instante.
Só que tudo ficou ainda pior quando senti sua boca gelada. O filho da mãe
estava com uma pedra de gelo, sem dúvidas.
— Murilo! — gritei seu nome, arqueando as coxas, querendo, ao mesmo
tempo, fugir e pedir que continuasse.
— Fique quietinha, amor, você vai gostar.
Claro que eu ia gostar. Já estava gostando. Mas como diabos ia suportar
aquela tortura sem querer mais e mais?
Murilo foi de cima a baixo com a pedrinha, molhando-me e gelando o que
estava muito quente. Depois – o filho da mãe – soprou todo o caminho,
fazendo-me contorcer como louca. Era como um veneno, mas no melhor
sentido possível. Estava me entorpecendo.
Quando jurei que não iria mais suportar, ele recomeçou tudo de novo, com
uma imensa paciência. Daquela vez não consegui me segurar – e nem queria
–, acabei gozando como nunca antes.
Pensei que Murilo iria me dar um pouco de tempo para me recuperar, mas
lá estava ele, buscando um dos meus seios com a boca, enquanto o outro
recebia outra pedrinha de gelo.
Foi alternando boca e gelo entre meus dois seios, novamente com muita
paciência, até que eu recomecei a me contorcer e a esfregar uma coxa na
outra. Foi então que ele finalmente me deu o alívio que eu buscava.
Arrancou minha venda, e eu o vi nu na minha frente, excitado, desejando-
me. O tesão era tanto que cheguei a passar a língua no lábio inferior, que
estava seco. A boca inteira estava seca.
Sabendo muito bem o que fazia, Murilo ergueu minhas duas pernas,
colocando-as apoiadas nos seus ombros. Quando me penetrou, foi tão fundo
que a impressão que ficou foi de que éramos um só de verdade.
Em sentimentos, nós éramos.
Se nem mesmo o tempo e a distância foi capaz de apagar o que havia em
nossos corações, nada mais seria.
Não era exatamente o tipo de pensamento para se ter enquanto um homem
enorme como aquele me fodia até fazer meus neurônios derreterem, mas eu o
amava. Nunca deixei de amar.
Murilo estocava como louco, e eu gemia na mesma intensidade. Com um
movimento rápido, ele me empurrou mais para cima na cama, deitando-se por
cima de mim e pegando a minha boca em um beijo. Conforme sua língua me
invadia, ele foi me soltando, e, quando me dei conta, estava montada em seu
colo, sentada, cavalgando-o em um ritmo frenético.
Suados, nossos corpos se chocavam, e eu não conseguia parar de beijá-lo.
Não conseguia e não podia. Era uma necessidade.
Cheguei novamente ao orgasmo, e Murilo me seguiu alguns minutos
depois, ambos externando nosso prazer em ruídos que não deixavam muita
dúvida sobre o que estávamos fazendo.
Mais uma vez... ainda bem que estávamos sozinhos.
Ao fim, éramos dois corpos cansados e saciados sobre uma cama, os dois
rindo sem motivo.
Mas o olhar e o beijo lento e doce que trocamos diziam tudo. Nós dois
tínhamos, de alguma forma, voltado para casa.
CAPÍTULO VINTE E SETE

Fui acordado no susto, com vozes invadindo a minha cabeça. Amanda,


ainda nua nos meus braços, também se remexeu. Nós nos entreolhamos,
sonolentos, sem entender muita coisa, até que a porta do quarto onde
estávamos foi aberta.
Apressei-me em puxar as cobertas, para proteger o corpo despido de
Amanda de olhares indesejados, mas lá estavam os pais dela. E Dodô.
Ótima plateia. Os pais e o avô da mulher com quem eu visivelmente tinha
transado na noite anterior. Além disso, todas as evidências do que fizemos,
em forma das nossas roupas, espalhadas pelo chão.
Provavelmente teríamos algumas explicações para dar.
— Eu não acredito, Amanda! — a voz estridente de D. Carmem penetrou
meus ouvidos, me proporcionando uma dor de cabeça nada bem-vinda. —
Não acredito que você realmente está com esse garoto!
É, eu posso literalmente dizer que minha sogra – bem, porque eu e
Amanda estávamos juntos de novo, não estávamos? – não era exatamente a
minha maior fã. Tudo bem que eu e sua filha tínhamos aprontado algumas, eu
tirei sua virgindade talvez um pouco cedo para os padrões da merda da
sociedade, mas não era por nada disso que seu ranço por mim era enorme. O
motivo era eu ser pobre.
Ou ter sido, né? Mas ela não sabia que minha condição financeira havia
mudado.
Amanda estava calada do meu lado, cobrindo-se até o pescoço com o
lençol, já sentada na cama. Segui a direção de seus olhos e vi que fitava o
avô. Só que Seu Dodô sorria, aparentemente feliz porque nós dois tínhamos,
de fato, nos acertado. Não duvidaria que erguesse o polegar em um joinha
para nós, incentivando.
— Mãe, você pode nos dar um pouco de privacidade? — Amanda pediu,
ainda constrangida, mas recomposta. — Nós vamos descer em alguns
minutos.
— Você não tem noção do que... — Carmem ia dizer mais alguma coisa,
mas Amanda a interrompeu:
— Podemos conversar com eu e Murilo nus. Ele tem um pau enorme,
acho que você ia ficar assustada ou morrendo de inveja.
Era difícil saber se eu estava com mais vontade de rir pela forma como
Amanda respondeu ou orgulhoso, como qualquer homem besta ficaria, de ser
elogiado daquela forma.
Ao menos foi uma forma de fazer as três pessoas que nos aguardavam
saírem dali e realmente nos darem um momento para nos tornarmos mais
decentes.
Eu e Amanda nos vestimos rapidamente, como se a casa estivesse
pegando fogo, sem dar uma única palavra um ao outro, mas nossos olhares
diziam tudo. Não importava o que dissessem, ninguém mais iria nos separar.
Éramos adultos, donos de nossas vidas, não mais os adolescentes presos aos
caprichos de seus pais.
Descemos de mãos dadas, ansiosos para mostrar que éramos fortes juntos.
Minha mãe estava lá com Raíssa. Mais parecia um tribunal com os
advogados de defesa e os promotores. O réu, naquela sessão, era o nosso
amor.
O olhar de Carmem para nós foi de total desdém. Mal nos sentamos até
que ela começasse a falar:
— Como pôde fazer o que fez, Amanda? Eu tenho certeza de que a
questão com João Pedro foi um engano.
Aquilo eu não podia permitir.
— O cara tentou matar a sua filha — eu queria dizer muito mais coisas,
mas foi o que saiu.
— Não sabemos. Ela estava com você, não estava? Quem pode provar que
não foi sua culpa?
— Olha, Carmem, aqui na minha casa, você não vai insultar os meus
amigos — Dodô interveio.
— E se falar assim do meu filho de novo, vou te dar a lição que deveria
ter dado no passado quando disse um bando de merdas que o garoto não
merecia. Só não fiz isso em respeito à sua garota, a quem eu amo muito — D.
Sílvia, a leoa, estava lá, presente também.
Carmem remexeu-se no sofá, empertigando-se, mas claramente sua
expressão não era das melhores. As reprimendas a haviam afetado, mimada
como era.
— João sempre foi um bom rapaz, é difícil de acreditar — o pai de
Amanda falou pela primeira vez, parecendo um pouco incomodado. E não era
para menos.
— Claro que você pensaria isso, não é, pai? Prometeu um dote para ele.
Como teve coragem? Estava me vendendo. Ele nunca me amou, só queria seu
dinheiro, porque está falido. Só tem o sobrenome para sustentar sua vida de
playboy — Amanda disse, indignada. — Isso, sem contar, que ele andou
fuçando a sua vida. Acho que você tem muitos segredos que não
conhecíamos, não é?
Daquela vez ele ficou realmente abalado. Pensei que Carmem fosse
prestar atenção nessa questão do tal segredo, exigir alguma explicação, mas
sua mente gananciosa focou em outra coisa.
— Como assim João Pedro está falido? — sua voz já insuportável subiu
uma oitava, o que me proporcionou uma discreta careta. Até minha filha
soltou um som de incômodo, e eu a peguei da minha mãe, balançando-a um
pouco no colo para fazê-la se acalmar. Raíssa era um doce de criança, mas a
verdade era que tinha um gênio e tanto.
— Você não leu as notícias?
— Não, Amanda. Você sabe que não sou de me levar pela imprensa.
— Pois dessa vez deveria. Ele perdeu o dinheiro todo do pai depois que
este faleceu.
Amanda foi interrompida por uma risada. Claro que era a barraqueira da
minha mãe. Ela gargalhava com vontade.
Todos a olharam, então ela fez a melhor expressão de inocência falsa. Um
Oscar para aquela mulher.
— Ai, me desculpem, mas é que eu nunca vi uma situação tão irônica na
vida. Essazinha aí esnobou o meu filho por ser pobre e separou os dois que se
amavam, mas ia casar a filha com um falido, enquanto o meu garoto está
muito bem de vida. — Ainda teatralmente olhou para o teto: — Obrigada,
Deus, pelas voltas que o mundo dá.
Amanda riu discretamente do meu lado, e Dodô observava a cena como se
estivesse assistindo a um filme muito interessante, sentado em sua cadeira de
balanço, com as duas mãos na barriga.
Novamente, Carmem só captou a parte da conversa que lhe interessava.
— Bem de vida? — Porra de mulher interesseira. Seu olhar dizia tudo, até
a forma como colocou o cabelo pintado de loiro atrás da orelha, olhando para
mim como se tivesse acabado de descobrir a minha existência.
Não deveríamos, mas me dignei a explicar para ela o meu negócio, assim
como fizemos com Amanda no dia anterior. Nunca na minha vida Carmem
prestou tanta atenção em algo que lhe falei. No final das contas, a impressão
que ficou foi de que eu era o melhor partido possível para sua filha.
Enquanto ainda estávamos conversando, Ticiane surgiu, entrando pela
porta sempre aberta da casa de Dodô.
— Ei, vocês, eu tenho uma... — Toda a animação que demonstrava
murchou no momento em que deu uma olhada em quem tínhamos como
visita. — Ah... oi, tios, tudo bem?
A forma como Ticiane foi cumprimentada me deixou ainda mais irritado.
Como aqueles dois podiam tratar boas pessoas daquela maneira?
— Bem, eu tenho um recado de Afonso. Ele mesmo foi ao Rio numa
escolta a João Pedro. Provavelmente o bundão não vai ficar preso, mas meu
assim que meu digníssimo voltar pediu que Amanda vá à delegacia para fazer
um Registro de Ocorrência para uma medida restritiva. O babaca não vai
poder chegar perto de você, prima.
— Ele não ia chegar mesmo, porque não pretendo voltar ao Rio. E aqui,
em José de Alencar, tenho bastante proteção. — Ao dizer isso, ela se
aconchegou a mim, e eu passei o braço ao redor de seus ombros, dando um
beijo em sua testa.
Lancei um olhar para Carmem, e ela estava nos olhando ainda com um
pouco de desconforto. Não importava o quanto de dinheiro eu tivesse; não
importava que meu negócio estivesse em ascensão, eu sempre seria um vira-
lata.
Por mim tudo bem, desde que a filha dela não pensasse isso.
Amanda discutiu um pouco com os pais sobre sua decisão de não voltar
ao Rio, e eu fiquei apenas calado, digerindo aquela informação, porque era
uma novidade para mim.
Algum tempo depois, os dois foram embora, mas não sem antes Amanda
chamar o pai em um canto – o que ela me contou como sendo uma forma de
puxar sua orelha sobre a outra família, revelando a ele que sabia de tudo e
que se não contasse à mãe nos próximos dias, ela o faria. Isso se João Pedro
não fizesse primeiro, porque ele tinha provas e estava, provavelmente,
sedento por vingança.
Foi só mais tarde, quase noite, quando nos pegamos sozinhos na varanda
da casa de Dodô, Amanda brincando com Raíssa – o que sempre aquecia meu
coração – que tive coragem de comentar:
— Quer dizer que você vai ficar na cidade? De vez?
Seus lindos olhos azuis se voltaram para mim, primeiro um pouco
surpresos com a pergunta, mas depois sorridentes, acompanhando seus
lábios.
— Eu nunca quis ir embora. Agora tenho mais um motivo para ficar.
Ergui a sobrancelha e curvei um dos cantos da boca em um sorriso
zombeteiro.
— Posso ficar convencido com isso?
— Claro que não. Vou ficar por essa coisinha fofa aqui. — Amanda fez
cosquinhas em Raíssa, que gargalhou, já encantada com ela. Mas depois deu
uma piscadinha para mim, o que me fez suspirar. — Só que talvez eu precise
de um emprego.
— Se enviar seu currículo para mim, posso precisar de uma profissional
gabaritada de publicidade. Ainda mais se ela for gata assim...
Amanda ficou boquiaberta de forma divertida.
— Será que eu vou ter um caso com o meu chefe? Seria excitante, não?
— Com certeza seria.
Inclinei-me para beijá-la, sentindo-me mais feliz do que poderia me
lembrar. Era como ter tudo o que eu sempre quis ao meu alcance. E ai de
quem tentasse me tirar o que demorei tanto para conquistar.
EPÍLOGO

UM ANO DEPOIS

Era a minha segunda vez naquele cartório. Diferente da primeira, eu


estava feliz, ansiosa e empolgada para me tornar a Sra. Ramalho. Aquele
último ano fora uma jornada sensacional. Eu e Murilo passamos cada dia de
nossas vidas redescobrindo nosso relacionamento e constatando o quanto
nosso amor podia ser forte. Pude me apaixonar também por Raíssa,
acompanhá-la crescer e me tornar um pouquinho sua mãe também, embora a
biológica fosse, de fato, muito gente boa. Não era um tipo de ex chata que
iria se intrometer entre nós. Pelo contrário, ficou feliz ao saber que Murilo
tinha finalmente reencontrado a mulher que sempre amou – achei lindo isso,
aliás.
Por falar em ex...
Bem, a história do meu é um pouco mais trágica. Obviamente, com sua
influência, João Pedro foi solto com uma fiança básica, mesmo eu tendo
prestado queixa. Só que as coisas foram se avolumando tanto para o lado
dele, enfiando-se com coisas erradas para ganhar dinheiro, que fora
encontrado em seu quarto, na mansão de sua família, depois de tomar vários
comprimidos para dormir com uma dose considerável de uísque. O bilhete
suicida fora endereçado à imprensa, de forma bem dramática.
Não sei se ele esperava ser salvo e ter uma história gloriosa para contar,
mas ninguém apareceu para vê-lo por dias. Não havia mais empregados na
casa, porque parara de pagar o salário, ele tinha pouquíssimos amigos, e a
maioria deles se aproximara por causa de seu status, então morrera sozinho.
Um lado muito babaca do meu coração chegou a sentir um pouco de pena,
mas era só lembrar o que quase fez comigo, o que ameaçou fazer com uma
bebezinha, com meus pais, e eu logo mudava de ideia. Cada um colhia o que
plantava.
Meus pais tinham se separado, depois de meu pai ter revelado à minha
mãe a respeito de sua outra família, e até onde eu sabia ele estava muito feliz
com sua nova mulher e os filhos. Que, aliás, iriam ao meu casamento, porque
tínhamos estabelecido uma relação bem gostosa. Era legal ter irmãos,
especialmente tão mais novinhos, a quem eu poderia aconselhar. Eu e meu
pai passamos a ser um pouco mais próximos, enquanto com minha mãe a
relação só foi esfriando.
Ela nem ia comparecer ao meu casamento. Não porque não aprovasse o
relacionamento, já que Murilo tornava-se cada vez mais bem sucedido com
sua empresa, principalmente depois que comecei a ajudar com dicas de
marketing e publicidade, mas porque estava fazendo uma viagem à Europa
com o dinheiro que ganhou depois do divórcio. Imaginava que acabaria
gastando mais do que devia, e nem mesmo com o exemplo de João Pedro
encontrava um meio-termo. Algumas pessoas nunca aprendiam.
Mas eu tinha aprendido a minha lição e não queria perder Murilo de novo.
Tanto que já estava na salinha em anexo ao salão de cerimônias do cartório,
esperando-o. Estava atrasado, aliás. Eu e meu avô o aguardávamos – eu
andando de um lado para o outro, começando a ficar um pouco irritada.
Como assim o noivo se atrasava para o casamento?
Deveria haver uma lei sobre isso. Não?
— Se aquiete, minha filha. Já, já ele chega. — Lancei um olhar para o
meu avô, quase desesperado. E se ele me abandonasse no altar? Daquela vez
eu estava mesmo vestida de noiva!
Só que não era possível. Na noite anterior nós fizemos amor, e ele se
mostrou ainda mais ansioso por se tornar meu marido no dia seguinte.
Planejamos tudo, já morávamos juntos há alguns meses, desde que Sílvia
finalmente decidiu abrir os olhos e enxergar Walter, indo também morar com
ele.
— Está atrasado, vô! Mais de meia-hora. Murilo sempre foi certinho com
horários. O que pode ter...?
Minha fala foi interrompida pelas portas se abrindo. Imaginei que fosse
alguém avisando que Murilo tinha chegado, ou pior... que algo havia
acontecido, mas lá estava o próprio, fazendo uma entrada quase triunfal.
Veio em minha direção em passos decididos, como fizera um ano atrás,
quando me tirara daquele mesmo cartório, me salvando de um casamento
sem amor.
Mas o que diabos estava fazendo daquela vez?
— Murilo, dá azar você me ver vestida de noiva antes e... — Um de seus
dedos foi parar na minha boca, me calando, e este logo foi seguido por um
beijo tão terno que cheguei a estremecer. Ao se afastar, havia um sorriso
condescendente em seu rosto.
Era um bom sinal, não?
Ele tirou o buquê da minha mão, entregando-o a vovô, que sorria mais
ainda. Era uma conspiração?
— Com licença, mais uma vez.
Repetindo o movimento de um ano atrás, Murilo se agachou, me lançando
em seu ombro, o que me fez gritar em surpresa.
— Murilo! O que você está fazendo? — Pendurada, sendo carregada
como se eu não pesasse absolutamente nada, perguntei quase em um gemido,
sentindo-me completamente confusa.
— Estou raptando a noiva — ele respondeu, em total zombaria.
— Mas a noiva é sua!
— Por isso mesmo que eu a estou pegando. — Fui colocada novamente na
caçamba de sua caminhonete – que ele tinha trocado meses antes por um
modelo mais moderno e mais seguro para andarmos com Raíssa –, ainda sem
entender nada. — Vou precisar te amarrar de novo ou você vai confiar em
mim?
Arregalei os olhos.
— Acho que estou confiando já, não é?
Ele deu um sorriso sexy, e só então eu percebi que estava usando um terno
de três peças, com direito a colete e tudo.
Deus... se ele não era a coisa mais deliciosa do mundo, eu não saberia
mais o que poderia ser.
E se ele estava vestido daquela forma, até usando um cravo na lapela...
bem... nós iríamos mesmo nos casar. Então por que estava me tirando do
cartório?
Seguimos de carro pela mesma estrada da outra vez. As pessoas paravam
para olhar, com sorrisos nos rostos, porque, de alguma forma, viramos um
casal queridinho da cidade. Ah, todo mundo gostava de uma boa história de
romance, e a nossa era digna de um filme de Hollywood, uma daquelas
comédias românticas bem clichê de Sessão da Tarde.
Nós chegamos no chalé, que se tornou – pronto, lá vou eu ser brega – o
nosso ninho de amor. Passávamos alguns finais de semana nele, com Raíssa,
mas não chegamos a voltar sozinhos, porque aquela garotinha era parte total
de nossas vidas.
Continuei surpresa, principalmente quando Murilo me tirou da caçamba
no colo, de forma bem mais gentil do que antes, e me levou em direção ao
lago. Não fiz mais perguntas, porque já imaginava que ele tinha cartas na
manga.
E eu não estava errada.
Havia várias pessoas reunidas, com todo um cenário montado no local
onde tivemos nosso almoço romântico, depois do rapto. Havia uma tenda,
com direito a flores, cadeiras elegantes, um tapete vermelho sobre a gama, e
havia bolas douradas e prateadas flutuando no lago.
Pessoas da cidade que eram importantes para nós: Tici, Afonso, Carlos,
Maria, meu avô – que provavelmente fora levado por alguém, especialmente
porque Murilo dirigira bem devagar propositalmente –, meu pai, meus
irmãos, Sílvia e Walter (lindos como um casal) encontravam-se lá.
Um altar montado, o padre da cidade... tudo o que um casamento de
verdade tinha direito. Um casamento por amor.
Ainda nos braços de Murilo, senti meus olhos marejarem. Não era
possível que aquele homem maravilhoso tivesse mesmo preparado todo
aquele momento para nós. Tínhamos combinado um casamento simples, por
mais que possuíssemos condições para mais, mas porque eu supus que fosse
o que ele queria. Mas meu noivo – ai, que delícia falar isso – não era um
homem de se apegar aos seus próprios desejos. Ele era generoso, e ali estava
uma das provas disso.
— Tia Anda! Papá! — Uma coisinha pequena, com um imenso laçarote
rosa choque em seus cabelos castanho claros, combinando com a faixinha de
seu vestido branco de daminha, veio correndo para nós. — Tia Anda pincesa.
— Era assim que ela me chamava, porque ainda não conseguia pronunciar
meu nome perfeitamente. Não a incentivávamos a me chamar de mamãe,
porque ela tinha uma, mas eu permitiria e adoraria se um dia me desse essa
honra. Nós teríamos filhos nossos, é claro, afinal era um desejo dos dois, mas
Raíssa era a nossa luz.
A mãe dela estava presente, aliás, e sorria para nós.
Murilo me colocou no chão com cuidado, e eu me agachei para abraçar a
pequena.
— Você acha que a tia Amanda está parecendo uma princesa? — Ela
balançou a cabeça com veemência, e eu a beijei no rosto.
— Mas ta cholanu... — comentou, cheia de dúvidas.
— É porque estou muito feliz.
Voltei-me para Murilo, que também parecia emocionado. Lindo. Todo
meu.
Eu queria parecer mais controlada, mais blasé, mas simplesmente me
joguei em seus braços, agarrando-o pelos ombros, saindo do chão, esperando
que ele fosse rápido em me segurar. E foi. Murilo nunca me deixaria cair, em
nenhum sentido.
— Ei, o padre não me deixou beijar a noiva ainda — comentou, em tom
de brincadeira.
— Você vai poder beijar essa noiva aqui para sempre. Qual a diferença de
beijar agora ou depois do sim?
Então ele o fez, e todos ao nosso redor aplaudiram.
E pensar que a minha história poderia ter sido completamente diferente,
que eu poderia ter me casado com o homem errado e estar vivendo uma vida
que não fora destinada para mim. Porque eu sabia que aquele era o certo. Eu
estava nos braços do homem que fora feito para mim, com as pessoas que eu
amava, no lugar que eu amava. Minha vida era perfeita.
Ok, eu tinha que aceitar, ele era o herói da história... Se não fosse por
Murilo...

FIM

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