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CABRAL
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Copyright© Julia Cabral
Este e-book é uma obra de ficção. Embora possa ser feita referência a eventos
históricos reais ou locais existentes, os nomes, personagens, lugares e
incidentes são o produto da imaginação da autora ou são usados de forma
fictícia, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas,
estabelecimentos comerciais, eventos, ou localidades é mera coincidência.
Ela olhava para mim como se tivesse acabado de encontrar a solução mais
incrível do mundo. A cura para o câncer. Como se tivesse construído a
tecnologia mais inovadora dos últimos tempos. E eu conhecia aquele olhar.
Aquela determinação. A maluquinha não iria desistir até que eu dissesse sim.
Mas era a proposta mais absurda que já tinha me feito.
— Não! Nem pensar! Sempre achei que fosse doida, mas agora tenho
certeza — deixei escapar com um tom de voz que era mais um grunhido do
que qualquer outra coisa.
— Você não está enxergando a situação pelo prisma correto. Eu acho
que... — Se ela usasse óculos, pareceria uma professora ou uma cientista
compenetrada, explicando ao mundo sua mais nova invenção, com o dedo em
riste e a expressão solene.
— Que porra de prisma, Amanda? Isso não vai mudar a sua situação.
Poderia te dar mais alguns dias, o que não adianta de nada.
— Mas é exatamente o que eu preciso! Algum tempo para pensar. Para
decidir...
— Decidir? — Colocando as mãos na cintura, eu dei uma risadinha
sarcástica. — Depois do que acabou de acontecer, eu deveria me sentir
insultado que ainda precise escolher.
— Depois do que quase acabou de acontecer — ela corrigiu em um tom
bem baixinho. — Além do mais, não é uma decisão simples. Há muita coisa
envolvida.
— Claro que há. Eu e você temos uma história. E uma bem inacabada,
pelo que pude ver aqui.
— E se for só tesão, Murilo? Nós éramos adolescentes e...
Aquilo me deixou puto. Puto de verdade. Eu a amava. Nunca deixei de
amar. Não confundiria um sentimento como aquele com algo físico. Eu não
era esse tipo de cara. Mas se ela preferia acreditar nisso e pensar daquela
forma, assim seria.
— Chega, Amanda! A resposta é não. É o tipo de coisa que eu nunca
faria, não importa o quanto você implore. — Comecei a caminhar na direção
da porta, pronto para ir embora e me afastar daquela loucura toda. No entanto
eu sabia que se ficasse mais tempo, acabaria concordando com aquela merda
toda.
— Mas, Murilo...
— Sem mas. Você já fez sua escolha aqui e agora. Não quero ser cobaia
de ninguém.
Saí batendo porta com força, sentindo-me puto da vida. Se eu tinha o
direito disso? Provavelmente não, mas ninguém poderia me culpar. Eu estava
com o coração partido, e, sim – por mais difícil que fosse admitir –, com o
ego um pouco ferido.
Entrei na minha caminhonete com a decisão tomada. Eu não iria cair nas
loucuras de Amanda, porque elas sempre me colocaram em encrencas.
Só que também foram o motivo pelo qual me apaixonei desesperadamente
por ela.
Enquanto eu dava partida no carro, mal fazia ideia de como as coisas
mudariam... de como minha decisão naquele dia seria alterada, porque eu era
um babaca que ainda caía de quatro pela namoradinha de adolescência.
Patético? Eu sei... mas essa é a nossa história...
CAPÍTULO UM
Assim como minha mãe adorava a imprensa, João Pedro amava uma
badalação. E... bem, tinha dinheiro para gastar, não tinha? Ou seja, nossos
eventos eram sempre os mais disputados. Naquele momento, eu estava
sentada na cama enorme de sua cobertura no Leblon, apoiando-me com as
mãos no colchão, observando-o terminar de se arrumar.
Porque, sim, ele era mais vaidoso do que eu. Sempre brincava que no dia
de nosso casamento seria o noivo a se atrasar e não eu.
Seu cabelo loiro era bem liso, então ele costumava penteá-lo para trás,
com gel, dando-lhe um ar arrumadinho que eu não sabia se gostava. Mas
provavelmente o erro era meu. O homem era lindo, como eu poderia colocar
um defeito sequer em sua aparência?
— Estamos atrasados? — ele perguntou, ainda se olhando no espelho e
colocando uma dose extra de seu perfume Ralph Lauren, que era sua marca
registrada.
Chequei meu relógio de pulso.
— Um pouquinho — respondi, entediada.
Ele abriu seu sorriso de um milhão de dólares e cheio de dentes brancos
perfeitos.
— Ótimo. Não é de bom tom sermos os primeiros a chegar. Já te falei
isso, né?
— Algumas vezes — tentei soar brincalhona, porque também não era
justo apressá-lo.
— Ah, mas é sempre bom repetir. Você veio de outra realidade, né? Não
custa eu te dar um toque sobre regrinhas básicas assim. — Através do
espelho, ele deu uma piscadinha para mim.
— Não é nenhum segredo guardado a sete chaves no clubinho dos ricos. É
algo que sei desde pequena.
Ele sorriu meio sem graça, como se o que eu tinha acabado de falar não
tivesse a menor importância. Na verdade, podia jurar que não estava mais
ouvindo uma única palavra que saísse da minha boca.
Foram mais uns quinze minutos dele selecionando blazers em sua coleção
infinita, até que selecionou um azul escuro que combinava com sua camisa e
seus olhos. Ele tinha um excelente gosto, isso eu não podia negar.
Saímos de seu apartamento e entramos em seu carro do ano, partindo para
a festa. Aconteceria na casa de um jogador de futebol muito famoso, com a
presença de uma legião de celebridades e subcelebridades, que era o que João
mais amava. Ele queria ter algum talento em alguma coisa. Tentara a música,
tentara atuar – e até participara de uma novela em um papel pequeno –, mas
nada disso deu muito certo. Sendo assim, ele decidiu aceitar sua posição de
herdeiro milionário bonitão e estava feliz com isso.
Seus pais tinham morrido há alguns anos, mas ele não tinha interesse em
trabalhar na empresa de petróleo que o pai deixou. Ainda assim, lucrava e
muito com ela, deixando outras pessoas fazerem o serviço.
Aí você vai me perguntar: como me interessei por alguém assim? Bem... o
cara tinha uma lábia e tanto. Soube me conquistar, me seduzir, me encheu de
presentes e isso sem contar que meus pais o adoravam. Mais pelo que ele
representava do que pela pessoa em si. Mas era uma grande coisa, não?
E, para ser bem sincera, eu não tinha muitas expectativas em me interessar
por alguém de novo. Por mais patético que pudesse ser, meu coração ainda
estremecia quando eu me lembrava do meu primeiro e único namorado antes
de João.
Só que isso era passado. Eu o havia deixado no passado. Em outra cidade.
Em outra vida.
Uma vida que não mais me pertencia.
E eu tinha aprendido a amar João Pedro. Como não? Ele era divertido,
gentil, educado e...
Tinha um milhão de outras qualidades. Ele seria um ótimo marido. O
melhor!
Quando chegamos, a festa já estava lotada. João Pedro sempre tinha a
clara certeza de que seríamos o centro das atenções ao saltarmos e entrarmos
na casa, cercados pela imprensa, mas isso nunca acontecia. E olha que ele
tentava. Um ou outro repórter vinha nos cumprimentar e tirar uma foto, mas
nunca durava muito tempo, porque sempre alguém mais interessante surgia.
Uma influencer com mais de dez milhões de seguidores, um funkeiro da
moda, uma atriz que estava protagonizando a novela mais recente.
Isso não me incomodava, mas eu sentia João bem frustrado.
Já dentro da casa, aproximamo-nos de um grupo de pessoas que eram
convenientes para meu noivo e rapidamente nos dividimos, com mulheres de
um lado e homens do outro. Algumas delas eu já conhecia, de outros eventos
com João, e elas eram bem simpáticas. Não tínhamos muito em comum, mas
ainda assim elas não me faziam sentir como um peixe fora d’água, e eu até
conseguia me divertir.
Sempre havia um story a ser feito, algum vídeo para o Tik Tok, porque
elas gostavam de mostrar onde estavam, e eu era incluída, embora,
provavelmente, seus expectadores nem soubessem quem eu era.
Os homens estavam bem longe da gente quando as meninas, bem
embriagadas, começaram uma brincadeira de EU NUNCA e EU JÁ. Aquele
tipo de coisa nunca acabava muito bem, mas eu estava sóbria, então suspeitei
que não teria nenhum problema.
Uma das garotas encontrou papel e um pilot dentro da sua bolsa e fez
nossas plaquinhas. Peguei as minhas, quase com a certeza de que usaria
muito mais a EU NUNCA, já que não tinha exatamente uma vida muito
emocionante.
Tudo começou inocente, com perguntas engraçadas, e eu estava me
divertindo de verdade. Até que...
— Eu nunca senti tanto tesão por alguém ao ponto de não aguentar e fazer
sexo em um local público — uma delas propôs, com a voz já embolada, e a
maioria colocou EU NUNCA.
Claro que eu poderia mentir, mas estaria apagando uma fase deliciosa da
minha vida das minhas lembranças. Negar era como fingir que nada tinha
acontecido, e eu não queria isso.
— A escola conta?
Todos os olhos se voltaram para mim, surpresos. Aquela pergunta não
deveria ter sido feita em voz alta, mas quando dei por mim já era tarde
demais.
— Como assim, Amanda? Na escola?
Dei de ombros, tentando minimizar as coisas. Mas, pelo amor de Deus,
fazia sete anos, e eu ainda me lembrava como se tivesse acabado de
acontecer.
Eu e João Pedro tínhamos um relacionamento sexual bem saudável,
possuíamos química, mas nada se comparava ao que acontecera no passado.
Nunca me vi desesperada por ele como por ele.
— Foi meu primeiro namorado. As coisas entre nós eram... — Incríveis.
Perfeitas. Quentes. Ternas. Ele era o meu melhor amigo. Deixá-lo foi a coisa
mais difícil que fiz na vida. — Intensas. — Eu poderia ter usado qualquer
uma das palavras anteriores e muitas mais, mas foi aquela que meu cérebro
escolheu em uma decisão aleatória, como em uma roda da fortuna.
— Uau. Ele tinha quantos anos? — outra perguntou e, quando dei por
mim eu estava na berlinda.
— Dezessete. Mas não era nada sério. — Tentei sorrir enquanto contava a
maior mentira da minha vida. Era sério. Ao menos para nós dois. — Tanto
que ficou no passado. — Ergui minha mão direita, com o enorme anel de
noivado que havia ganhado de João. — Meu futuro é outro.
— É um ótimo futuro, querida. — Uma das meninas deu alguns tapinhas
no meu joelho, e eu continuei sorrindo, sabendo que era isso que esperavam
de mim.
Só que meu coração já estava apertado dentro do peito.
Tanto que quando meu telefone vibrou dentro da bolsa no meu colo,
minutos depois, e eu vi o DDD de José de Alencar, minha cidade natal,
cheguei a estremecer.
Que coincidência.
Sim, porque eu não queria pensar que era destino.
Quando atendi, a voz da minha prima, Ticiane, falou meu nome do outro
lado da linha, antes que eu mesma pudesse dizer qualquer coisa. Por um
momento... um mísero momento eu...
Mas, não. Ele provavelmente nem lembrava que eu existia. Fora uma
ilusão ridícula. Uma que durou pouco.
E também era melhor assim. O que poderíamos dizer um para o outro
depois de tanto tempo?
— Oi, Tici! — cumprimentei um pouco sem graça. Fazia algum tempo
que eu não falava com a minha prima. Ela recebera um convite para o
casamento, me mandara mensagem pelo Whatsapp parabenizando, e eu
respondi com um emoji por conta da pressa, o que eu odiava.
Nós duas costumávamos ser muito próximas quando mais novas; ela fora
minha melhor amiga, e assim como fiz com tantas outras coisas, ela meio que
ficou no passado. Com a diferença de que era parte da minha família, e eu
não podia – e não queria – arrancá-la da minha vida.
— Manda, é o vovô... Ele teve um infarto.
Ouvi todo o resto como se a outra pessoa estivesse debaixo d’água falando
comigo. Uma voz embolada, palavras indefiníveis, tudo era irreal.
Meu avô era feito de pedra. Era o homem da minha vida. Meu maior
amor.
Não era possível que...
— Manda? Tá ouvindo? — com seu jeitinho insistente, Ticiane
perguntou.
— Estou, prima. Vou sair do Rio agora e partir para José de Alencar.
Chego aí em algumas horas.
Minha prima ficou em silêncio por alguns instantes, enquanto eu já me
levantava de um rompante, fazendo novamente todas as meninas olharem
para mim.
— Ele está bem. Foi só um susto. Você pode vir amanhã de manhã. Não
precisa dirigir de madrugada.
O alívio percorreu minhas veias, e eu quase me permiti chorar. Mas não
era hora para isso. Quando estivesse do lado dele, olhando para aquela
carinha amada sorridente, me olhando com os olhinhos cheios de amor,
poderia me permitir algumas lágrimas, tanto de saudade quanto de medo de
perdê-lo.
— Não, eu vou agora. Nem adianta tentar me convencer.
— Nunca adiantou, né? Nós já estamos em casa, ok? Ele ficou no hospital
alguns dias, e eu sei que deveria ter te ligado antes, mas as coisas ficaram
confusas.
Engoli em seco, querendo não pensar que não estive do lado dele quando
precisou.
— Não tem problema, Tici, eu entendo. Vou falar com a minha mãe
também.
Ticiane não falou nada. Eu sabia muito bem o que ela estava pensando:
não faria muita diferença. Minha mãe não teria a mesma reação. Quando
decidira deixar seu passado de privações para trás, o pai dela ficou no pacote.
Fosse como fosse, despedi-me da minha prima e comecei a me preparar
para sair. Dei uma olhada ao meu redor, mas não encontrei João Pedro em
lugar algum.
Tentei ligar para ele, mas o celular estava na caixa postal.
Droga! Estávamos na mesma casa, mas o lugar era enorme. Como iria
encontrá-lo?
— Amanda, o que foi? — uma das garotas perguntou, então eu tive uma
ideia.
— Meu avô sofreu um infarto, e eu vou vê-lo. Vocês podem avisar ao
João? Estou com o celular, se quiser falar comigo.
— Claro. Vai lá.
Com um sorriso agradecido, eu realmente saí correndo, deixando tudo
para trás.
Meu avô era mais importante do que qualquer coisa, e precisava estar do
lado dele. Por mais que voltar para José de Alencar fosse algo que não
estivesse nos meus planos, eu teria que engolir o orgulho.
Era por uma boa causa.
CAPÍTULO TRÊS
A casa do seu Donato vivia aberta. Desde que eu me entendia por gente,
ele nunca fechara suas portas, porque gostava quando as crianças do bairro
entravam para lhe pedir doces. Seu pote estava sempre cheio de balas, de
bananada, suspiros e pirulitos. Nunca chiclete, porque ele dizia que podia
grudar no estômago se a gente engolisse.
Foi por culpa dele que eu nunca enfiei um único chiclete na boca.
Minha mãe sempre brigava comigo, porque dizia que era feio eu abusar de
sua hospitalidade e de sua generosidade, mas eu sabia que Seu Dodô, como a
gente o chamava, amava ter a casa cheia de crianças. Meninos e meninas que
adoravam ouvir suas histórias e que o chamavam de “vô”, mesmo que ele só
tivesse duas netas de sangue.
Era uma mania minha passar por aquela porta sem pedir licença. A
maioria das crianças acabara se dispersando ao longo dos anos, indo morar na
cidade grande, e as mais novas, que iam nascendo, pareciam sair cada vez
menos de casa para brincarem nas ruas, ficando presas a seus videogames e
computadores, então a casa do Seu Dodô não era mais tão frequentada.
Fiquei meio que com a incumbência de manter o movimento, desde que
Ticiane, a neta que morava com ele, se casara com meu melhor amigo e fora
morar em outra casa, embora perto. Não que o tivesse abandonado, porque
era uma garota e tanto, mas tinha suas coisas para fazer. E, para ser sincero,
não conseguia me desapegar.
Seu Donato fora a figura paterna que conheci, uma vez que meu pai
abandonou minha mãe quando ela descobriu que estava grávida durante a
escola. Fora ele que me ensinara a soltar pipa, andar de bicicleta e a jogar
bolinha de gude. Minhas melhores lembranças de infância e adolescência
tinham alguma ligação com ele – até mesmo a primeira garota por quem me
apaixonei.
Uma coisa na qual eu não queria e não podia pensar.
Naquele dia, portanto, quando entrei na sua casa por volta das seis, para
tomar um café, como sempre fazia, eu percebi que nunca tinha sentido tanto
medo na vida. Encontrar o homem que eu amava como um pai – ou um avô –
caído no chão da cozinha, com a mão no peito, quase me deixou em pânico,
paralisado. Só consegui me mover porque agir rápido em situações como
aquela era essencial. Por isso, levei-o nos braços para a minha caminhonete e
parti para o hospital.
Para a minha sorte, chegamos a tempo. Se Donato morresse...
Porra, eu não queria nem pensar nisso, porque esse tipo de coisa podia
atrair negatividade. Ao menos era o que minha mãe sempre dizia.
Fiquei com ele o tempo todo, assim como Ticiane e Afonso, seu marido.
Minha mãe nos ofereceu suporte de outra forma, e eu nem pensei em trabalho
– ou em qualquer outra coisa –, até que pude levá-lo para casa, dias depois,
são e salvo.
Amparei-o até colocá-lo na cama, o que o fez resmungar.
— Não sou um inválido, garoto. Me dê mais alguns dias, e eu te ganho
numa queda de braço. — Era sempre a mesma ladainha.
Quando eu era pequeno, Seu Dodô sempre me deixava ganhar. Depois
que cresci, os papéis se inverteram, e eu lhe dava a vitória.
— Isso eu não duvido — falei com um sorriso, feliz por ele estar ali me
dizendo aquelas coisas.
Ajudei-o a ajeitar a almofada, deixando-o mais confortável. Depois peguei
o controle da televisão.
— O que quer assistir? — perguntei. Provavelmente, por causa dos
remédios, ele dormiria em dez minutos, mas não entraria nessa discussão.
— Um bom filme de tiro.
Eram nossos favoritos. Quanto mais mentirosos, melhor.
— Ótimo. Pode ser uma série? Não assisti nenhum filme sem ser em sua
companhia, não saberia indicar.
— Claro que pode.
Escolhi uma que tinha assistido com minha mãe no início do ano passado,
que eu imaginei que ele ia gostar.
Deixei o controle na cabeceira da cama e me inclinei, deixando um beijo
em sua cabeça calva, com apenas alguns cabelos grisalhos.
— Descanse, Dodô. Nos vemos amanhã.
— Obrigado, garoto. Dê um beijo nas suas meninas por mim.
Sorri e saí do quarto, deixando-o lá.
Parti para a sala e encontrei Ticiane na cozinha, preparando alguma coisa
para comer. Já passava das onze, mas eu sabia que ela não tinha ingerido
nada.
Parei na porta, apoiando-me no batente, com os braços cruzados, olhando
para ela.
— Tem certeza de que não quer que eu passe a noite aqui? — Se Afonso
pudesse, ele ficaria com ela, sem dúvidas, mas era policial, seu pai era
delegado da cidade, e eu sabia que estava de serviço naquela noite.
— Tenho — ela respondeu, olhando-me por cima do ombro. — Qualquer
coisa eu te ligo, mas acho que vai ficar tudo bem.
— Vai sim. — Tinha que ficar. Era um susto grande demais para ser
seguido por outro tão recente.
Estava pronto para ir embora, embora não quisesse, de forma alguma,
afastar-me de Seu Dodô, mas Ticiane virou-se na minha direção, jogando o
pano de prato no ombro e se encostando na bancada da pia. Seu olhar me
dizia que tinha algo nada agradável para me dizer.
— Olha, preciso te avisar que acabei de falar com Amanda. Ela está vindo
para José de Alencar. Esta noite.
Tentei me manter impassível, com o rosto sem demonstrar nenhuma
emoção, só que a reação dentro de mim foi rápida. Senti minhas entranhas se
revirarem e o coração acelerar.
Mas que merda! Como era possível que a simples menção do nome dela
causasse tanto estrago? Já fazia sete anos. Sete malditos anos. Ela tinha
seguido com a vida dela, pelo que eu sabia, e eu ainda estava preso em
lembranças de adolescência. Como podia ser tão patético?
— Não sei o que ela vem fazer aqui — resmunguei como se fosse mais
velho até que Seu Dodô.
— Ver o avô. Ninguém pode negar que ela o ama. E você sabe disso.
— Se amasse tanto teria voltado para visitá-lo.
Eu sabia que Seu Dodô e Ticiane tinham feito visitas ao Rio de Janeiro
para passar algum tempo com a família por lá, mas Amanda nunca mais
voltara a José de Alencar. Era como se toda a cidade fosse uma mancha no
seu passado ou uma lembrança ruim. E isso me incluía, sem dúvidas.
— Não julgue as decisões da Amanda. Você foi meio babaca com ela na
época.
Não era uma mentira. Amanda não tivera escolha quando precisou sair da
cidade com os pais. Ela poderia ter ficado morando com o avô, como lhe
sugeri que fizesse, mas, pelo amor de Deus, a garota tinha dezesseis anos e a
promessa era a de uma vida de princesa. Boas escolas, boa faculdade, uma
casa que mais parecia um palácio. Por que iria preferir ficar na cidade
pequena por causa do namoradinho de infância?
Só que como o garoto impulsivo que fui, nunca consegui enxergar as
coisas dessa maneira. Permiti que fosse embora com nós dois brigados e
depois nenhum retomou o contato, por mais que Ticiane tivesse insistido que
poderia me dar o telefone dela.
Éramos muito jovens. Eu a conhecia desde que me entendia por gente.
Talvez tivesse me apaixonado por ela ainda criança, mas sempre jurei que
seria a única. Uma promessa que fiz quando perdemos a virgindade juntos,
meses antes de ela ir embora e de nunca mais nos vermos.
— Não importa o que aconteceu no passado. Só não sei o que ela vem
fazer aqui — mais um resmungo.
— É avô dela. E não podemos dizer que ela o negligenciou como a mãe
fez. — De fato, Ticiane estava certa. Até onde eu sabia, Amanda e o avô se
falavam sempre, e ela o ajudava financeiramente. A mãe, em contrapartida,
tinha vergonha de suas origens, o que era ridículo.
Mas quem iria me garantir que Amanda não tinha se tornado uma esnobe
também? Eu sabia que ela estava prestes a se casar. Minha mãe costumava
seguir alguns Instagrams de fofocas, e ela já tinha aparecido ao lado de seu
noivo metido à besta mais de uma vez. Claro que D. Sílvia sempre
compartilhava comigo as notícias, me olhando de soslaio para ver se eu ainda
me importava.
Eu me importava. Para caralho.
— Que ela faça uma boa viagem. E que vá logo embora. — De
preferência sem que esbarrássemos um no outro, aliás. Mas isso eu não disse
para Ticiane, que, aliás, abriu um sorriso como se ela fosse a pessoa mais
sábia do mundo.
Depois dessa, eu simplesmente saí da casa, sem nem me despedir, entrei
na minha caminhonete e fui embora.
Abri a porta de casa e vi que estava tudo escuro, o que indicava que minha
mãe já tinha ido dormir, provavelmente só depois de eu ter avisado que
Donato estava indo para casa, são e salvo.
Eu estava cansado. Exausto, na verdade. Mas antes de partir para o meu
quarto, tomar um banho e dormir, passei no cômodo ao lado, abrindo a porta
devagar e me debruçando no berço.
Lá dentro estava o meu maior tesouro. Minha garotinha de um ano.
Um sorriso finalmente cruzou meus lábios, observando-a dormir serena,
com os dois bracinhos esticados, a boquinha vermelha aberta, com o
macacãozinho de abelhinhas. Desejava pegá-la e encostá-la no meu peito,
sentir seu cheirinho e ouvir sua respiração, mas não queria acordá-la. Poderia
fazer isso no dia seguinte.
Mas perdi algum tempo admirando-a e pensando que por mais que
houvesse alguns percalços na minha história e que eu tivesse cometido
muitos erros, aquela princesinha ali era o meu maior acerto. Ela sempre seria.
CAPÍTULO QUATRO
Então eu fiz o que ela pediu. E que bom, porque o abraço que
compartilhamos quando abriu a porta fez todo o cansaço da viagem valer a
pena.
Muitas vezes eu me sentia o pior dos seres humanos por ter deixado uma
parte da minha família para trás. Nós não nos víamos com tanta freqüência
quanto eu gostaria, e, na maioria das vezes eu estava tão absorvida pelo
trabalho e pelo namoro – depois noivado – que não percebia o quanto estava
errada.
O quanto sentia saudade.
Ticiane me guiou até o sofá, onde nos sentamos, uma em cada
extremidade. Ficamos nos olhando por um tempo, e eu percebi que ela tinha
pintado o cabelo de loiro.
— Ficou bonita em você essa cor — comentei, apontando, o que a fez
sorrir. Droga, parecíamos duas quase desconhecidas conversando dentro de
um elevador.
— Obrigada. — Ela, por sua vez, apontou para a minha mão, onde estava
o anel de noivado. — Uau. Quase ofuscou minha vista.
Assim como ela, sorri, embora mal conseguisse fazê-lo. A razão de tudo
ali era nosso avô, então eu quis ir direto ao assunto.
— Como ele está? — perguntei quase aflita. Tudo bem que ela tinha me
dito que estava tudo bem, e o fato de ter recebido alta sem dúvidas contava a
favor de sua situação, mas queria informações mais precisas.
— Graças a Deus está bem. Se não fosse pelo Murilo, eu não...
Ah, pronto. Eu poderia checar no relógio, mas não demorou nem cinco
minutos, eu tinha certeza. Algo sempre me disse que no exato momento em
que pisasse em José de Alencar aquele nome seria invocado. Tipo a loira do
banheiro? Pois é. Sempre foi o que eu temia.
As pessoas naquele lugar sempre associaram minha imagem à de Murilo e
vice e versa. Sabe aquela coisa de você chegar em um estabelecimento, não
receber sequer bom dia e apenas perguntarem: “onde está Fulano?”; era assim
conosco. Era como se tivéssemos nascido como siameses, porque nos
conhecemos muito pequenos e nunca nos desgrudamos. Fora assim com Tici
e Afonso, mas eles se casaram, levaram o relacionamento em frente.
Provavelmente teria acontecido comigo e com Murilo também, se eu tivesse
permanecido próxima a ele.
Só que agora eu ia me casar com outro homem, e Murilo teria que ficar no
passado.
Ou melhor... ele já estava, não estava?
— Foi Murilo quem o levou ao hospital — ela falou, mal terminando a
frase anterior.
Eu queria mudar de assunto, mas infelizmente aquilo me chamou a
atenção.
— Ele ainda vem aqui? — Eu não deveria perguntar esse tipo de coisa,
porque não era uma surpresa. Murilo amava meu avô tanto quanto eu. Era
como se fosse da família dele também.
— Todos os dias, religiosamente. Você sabe como os dois são apegados.
Eu sabia disso e de muitas outras coisas. Sabia o quanto meu avô o tinha
como um neto e o quanto incentivara nosso namoro, mesmo que só
tivéssemos treze e quatorze anos em nosso primeiro beijo. Foi, aliás, para
meu avô que contei, e não para a minha mãe, assim como contei de quando
perdi a virgindade. Acredite ou não... percebendo que nós dois estávamos
com os hormônios à flor da pele, foi vovô que entregou a primeira camisinha
a Murilo, com um sermão de que se iria “deflorar” – palavras dele mesmo –
sua netinha, que o fizesse com segurança.
Sim, Seu Dodô era um avô incomum. O melhor.
— Seja como for, vovô está bem. Acho que... — Ticiane começou a falar,
mas foi interrompida pelo toque do meu celular.
Peguei-o dentro da bolsa, vendo o nome de João Pedro na tela.
Rapidamente me senti um pouco apreensiva, o que deveria me assustar.
Não era para ser assim em um relacionamento, certo? Deveria haver amizade,
cumplicidade e confiança, mas o que eu tinha de experiência? O que vivi com
Murilo não poderia entrar na lista porque éramos apenas duas crianças
descobrindo as coisas. Ele nunca me sufocou, porque estávamos sempre
juntos e conhecíamos as mesmas pessoas. Provavelmente, com seu jeitão
mais bruto, Murilo seria ainda pior.
Ou pelo menos era o que eu queria acreditar.
— Oi, amor! — atendi com cautela.
— Mas que história é essa de sair da festa sem falar comigo? — E ele só
tinha percebido horas depois? O que diabos estava fazendo que não se deu
conta antes? — Sorte que uma das meninas me avisou.
— Ela avisou porque eu pedi. E imagino que tenha explicado o motivo.
Meu avô sofreu um infarto. — Era a primeira vez que eu falava com ele com
aquela firmeza. Talvez o fato de estarmos tão longe e de eu me ver em um
lugar que considerava tão seguro tivesse algo a ver, mas não quis me
submeter. Imaginei, também, que ele ficaria ao menos preocupado com meu
avô. Era o que eu esperava, por saber da importância dele para mim.
Mas não foi bem o que aconteceu.
— Você deveria ter pedido para me chamarem.
Aquilo me deixou com raiva. Muita.
— Ok, mas não chamei. Estou em José de Alencar, na casa do meu avô —
falei, bem fria. Novamente, era a primeira vez que o tratava daquela forma,
mas João Pedro nunca tinha chegado tão longe em me deixar estressada.
— Quanto tempo vai ficar aí?
Sério? Aquela era a pergunta que ele iria fazer?
Nada de: “e como está seu avô?” ou “precisa de alguma coisa?”, ou, quem
sabe, “talvez seja uma boa hora para eu dar uma passada aí para conhecer a
pessoa por quem você sente tanto amor”. Mas, não. Juro que esperei que ele
dissesse qualquer outra coisa antes de eu responder, porque não era possível
que fosse tão insensível.
— Vou ficar quanto tempo for necessário — foi a minha resposta.
— Nosso casamento está próximo. Há muitas coisas para preparar ainda.
Respirei fundo, tentando me controlar.
E eu juro que tentei muito, mas não deu.
— Meu avô é muito mais importante do que uma festa de casamento.
Tudo o que tiver que resolver eu posso resolver de longe, e minha mãe vai ter
um prazer imenso em preparar as coisas sem meus pitacos. — Sim, porque eu
estava pouco me lixando se as flores seriam lilases ou cor de rosa naquele
instante. Eu poderia me casar de laranja que não faria diferença se perdesse
meu avô. E eu queria algum tempo com ele.
João Pedro ficou em silêncio do outro lado da linha, e pela primeira vez eu
pensei que ele poderia nem estar no seu estado normal. Provavelmente tinha
bebido, e eu queria relevar aquela ligação ridícula, por isso, desligar antes
que disséssemos mais coisas que nos fizessem arrepender seria um divisor de
águas.
— Olha, João, eu cheguei bem, mas estou cansada. Mais tarde nos
falamos.
— Tudo bem, Amanda. Qualquer coisa me liga. — E a ligação foi
encerrada. Seria só isso mesmo. Sem uma única palavra que me fizesse
perceber que ele se importava.
Novamente: preferia acreditar que se tratava da bebida, que depois que ele
dormisse teríamos uma conversa muito melhor. Se não fosse assim, minha
decepção seria infinita, e eu não queria que isso acontecesse pouco antes de
nosso casamento acontecer.
— Seu noivo? — Ticiane perguntou. Minha vontade naquele momento era
desabafar, colocar para fora todas as merdas que estava pensando dele, mas
seria traição, não seria?
Fora apenas uma ocorrência desagradável em um relacionamento
tranquilo. João Pedro não era assim tão insensível, com certeza ficara
preocupado comigo viajando e dirigindo tão tarde.
— Sim. Queria saber se estava tudo bem. — Claro que Tici tinha ouvido
boa parte da conversa, ao menos a minha, e sabia que não fora bem assim,
mas eu a conhecia o suficiente para saber que não se intrometeria. Para mudar
de assunto, joguei o telefone de lado e respirei bem fundo, tentando um
sorriso: — Bem, onde está nosso dodoizinho?
Também sorrindo, Ticiane estendeu a mão para mim, entrelaçando o
braço no meu, conduzindo-me pelas escadas da casa de vovô. Cada degrau
me enchia de lembranças da melhor infância que eu poderia ter tido.
Lembrava-me das brincadeiras com outras crianças lá dentro, do cheirinho
do pudim que ele passou a fazer depois que vovó morreu – e eu praticamente
não a conheci –, de sua voz amada me chamando de manhã. Eu não morava
com ele, mas passava os finais de semana em sua casa, e eram meus dias
favoritos.
Quando chegamos à porta do quarto, Tici abriu a porta, e a TV estava
ligada. A mensagem da Netflix perguntando se o expectador ainda estava ali,
assistindo, me fez imaginar que ele dormira no meio de alguma série. Vovô
sempre amou filmes de ação. Gostava dos que tinham muito tiro, muita
porrada e, de preferência, aqueles onde o mocinho precisava vingar a morte
de sua esposa ou de um irmão, ou qualquer coisa assim, bem clichê.
Sorri ao vê-lo acomodado na cama, com a boca aberta, roncando baixinho.
Peguei o controle sobre a mesinha ao lado e ousei desligar a TV, mesmo
sabendo o que aconteceria.
— Estou assistindo — ele resmungou, ainda de olhos fechados.
Sua voz causou um estrago no meu coração.
Ah, Deus... ele estava vivo. Estava bem. Meu avozinho...
— Não está, não — falei cheia de ternura, com a voz embargada. Ele
rapidamente abriu os olhos.
— Amandinha? — Olhou para mim, surpreso.
— Cheguei, vovô. Vou cuidar de você com a Tici.
Ele nem esperou mais nada, apenas estendeu os braços, e eu me sentei na
cama, entregando-me àquele amor, sabendo que ninguém, no mundo, poderia
se colocar acima do que eu sentia por meu avô. Nunca.
CAPÍTULO CINCO
A ideia não era sair para espairecer? Tomar umas cervejas com um amigo
e relaxar? Por que diabos, então, eu estava mais estressado do que quando
cheguei?
Aliás... amigo? Da onça, só se fosse. Afonso tinha montado a armadilha, e
eu caí como um patinho. E o filho da puta nem atendia ao telefone para que
eu pudesse lhe passar um sermão.
Ficar dentro daquele bar tornou-se insuportável para mim. Não porque
estivesse verdadeiramente puto com Amanda...
Ou melhor, eu estava. Não com ela, de fato, mas com toda a situação.
Estava irado com a forma como ela ainda mexia comigo. Como sentia cada
gota do meu sangue correr mais quente pelo corpo só pela proximidade.
Isso só podia ser doença. Eu não a tocava há sete anos. Quando o fiz, era
só um garoto inexperiente, e ela, mais ainda. Nossa primeira vez foi
desajeitada, mas nos amávamos; com o tempo, fomos nos conhecendo
melhor e as coisas foram melhorando. Muito, por sinal. Ao ponto de não
conseguirmos tirar as mãos um do outro. Era um milagre que eu não a tivesse
engravidado, porque nem sempre nos lembrávamos da camisinha.
Sentindo que sua presença era tóxica para mim, peguei a cerveja e fui me
sentar lá do lado de fora, abrindo a caçamba da minha caminhonete e me
acomodando nela. A noite estava bonita, estrelada, e um vento gostoso batia
no meu rosto.
Poderia ser pior.
Eu deveria voltar para casa. As chances de Amanda sair por aquela porta
enquanto eu ainda estava ali eram imensas. Mais ainda de ela vir atrás de
mim e tentar continuar aquela conversa estúpida. Não havia mais nada a ser
dito entre nós. Namoramos quando garotos, ela foi embora, seguiu com a
vida, eu tive uma filha e agora ela ia se casar. Ponto final. Nada de “e foram
felizes para sempre”. Que surpresa! Não havia nada de conto de fadas na
realidade.
Só que por algum motivo, acabei ficando ali. Talvez eu realmente fosse
masoquista.
Uma hora depois de ter saído lá de dentro, ouvi o som de passos pisando
no cascalho e ergui os olhos para ver Walter, com as mãos nos bolsos, vindo
na minha direção. Sem nem esperar ser convidado, ele se sentou do meu lado,
na caminhonete, e me entregou mais uma cerveja.
— Esta é por conta da casa — falou e a abriu, com seu inseparável
abridor, que ficava preso ao cinto.
Ele estava com uma na mão também, para si, o que era raro. Então
levantou a garrafa na minha direção e brindamos.
— Algum motivo para brindar? — perguntei, meio de mau humor.
— Às mulheres que partem nossos corações todos os dias.
Era uma frase bem melancólica, especialmente porque eu sabia que
Walter era apaixonado pela minha mãe há muitos anos. Só que,
aparentemente, ele era o melhor amigo do meu pai, na época, e por mais que
o safado a tivesse abandonado, ela não quis “dar o troco”. Só que muitos anos
já tinham se passado, e só D. Sílvia não percebia que nada mudara. O bom e
velho Walter continuava caidinho por ela.
Não neguei o motivo do brinde. Era um tão bom quanto qualquer outro. E
eu poderia dizer que Amanda não me afetava mais, mas Walter me conhecia
desde moleque. Sem dúvidas saberia dizer se era mentira. Até melhor do que
eu.
— Ela só queria conversar, sabe? — ele falou.
— Foi ela que te mandou aqui? — a pergunta saiu em um impulso, mas
logo me arrependi. Especialmente pela forma como uma das sobrancelhas de
Walter se ergueu.
— Pensei que me conhecesse bem, garoto. Eu não costumo ser pombo-
correio de ninguém.
Balancei a cabeça, dando uma golada na cerveja, concordando. Ele estava
certo.
— Ela pode querer, mas eu, não.
— E por que não?
Remexi-me no assento. Não queria continuar aquele assunto, mas não
poderia mandar Walter embora, principalmente porque o bar era dele. Por
mais que tecnicamente estivéssemos do lado de fora, aquela área pertencia
mais a ele do que a mim.
— Porque ela vai embora, Walter — comecei em ar de confissão. — Vai
voltar para o noivo rico, e eu vou ficar aqui. Pensando nela como fiquei sete
anos atrás. Vamos pagar de amiguinhos, e ela vai viajar para a merda do Rio
de Janeiro depois de — fiz o sinal de aspas com os dedos — “fechar um
ciclo”. Não é assim que todos falam?
— Hummm — Walter murmurou. — Então você não está dando a ela o
direito de se explicar para puni-la?
Eu ia negar imediatamente. Cheguei a abrir a boca, mas logo meu cenho
se franziu, e eu analisei as coisas. Talvez fosse exatamente isso, só que não
de uma forma tão cruel. Não uma punição. Só não queria colocar aquele
ponto final. Enquanto a história ficasse inexplicada, eu teria a sensação de
que ela poderia continuar de alguma forma.
— É complicado — foi tudo o que eu disse.
— Claro que é. A vida é complicada. Você não é o único sortudo. Aposto
que aquela garota lá dentro também tem um monte de problemas além de um
ex-namorado que ainda a ama.
— Eu não... — mais uma vez me preparei para negar, mas... novamente...
era Walter. Assim como minha mãe e Seu Dodô, era uma das pessoas mais
velhas que cercavam a minha vida e que me conheciam tão bem que era
assustador.
— Olha, eu não quero bancar o fofoqueiro — ele começou, mas o tom era
exatamente de fofoca. — A garota bebeu um pouco mais do que deveria e
acabou falando demais também. Não acho que esteja exatamente apaixonada
pelo noivo. Não sinto isso quando ela fala dele.
— Virou vidente agora? — resmunguei, tentando disfarçar o quanto
aquela informação me interessava. — E o que isso pode ter a ver comigo?
— Pelo que eu entendi, ela vai ficar em José de Alencar por alguns dias.
Talvez seja o suficiente para que...
— Não, Walter — interrompi com veemência. — Nem me vem com essa.
Eu não vou...
Pretendia continuar falando, negando que tinha qualquer interesse em
tentar reconquistá-la – porque eu realmente não tinha –, mas vi Ticiane sair
do bar e vir em nossa direção.
Ah, que ótimo! Mais um advogado de Amanda.
No entanto, a expressão dela não parecia tão boa.
— Ei, Murilo... você pode me ajudar? — ela pediu sem graça. — Eu
pediria ao Walter, mas sei que ele não pode sair do bar, ao menos não por
enquanto.
— O que aconteceu? — indaguei.
— A Amanda acabou de cair no banheiro.
Levantei-me da picape imediatamente, e Walter fez o mesmo.
— Ela se machucou? — preocupei-me.
— Não. Ela caiu de bunda. Só que está muito bêbada, e eu acho que seria
melhor levá-la embora. Não vou conseguir fazer isso sozinha, ainda mais que
viemos andando. Você pode me ajudar?
Como eu poderia negar? Não era só por ser Amanda, mas eu não era do
tipo que negava auxílio a ninguém.
Fechei a caçamba da picape e entreguei a garrafa quase vazia para Walter.
— Como ela conseguiu ficar tão bêbada em uma hora? — questionei no
caminho para o banheiro.
— Aparentemente ainda não é muito forte para bebidas.
Uma coisa era não ser forte aos dezesseis, quando conseguíamos comprar
algo escondido. Outra era uma mulher de vinte e três anos guardar a mesma
particularidade.
Bem, mas não era hora de pensar nisso naquele momento.
Entrei em companhia de Ticiane no banheiro, esperando quando uma
mulher passou por nós, sem entender o que eu estava fazendo ali.
Não precisava ser muito observador para perceber em qual cabine
Amanda estava, porque eu conseguia ouvir a voz dela cantando baixinho uma
música da Beyoncé. Talvez Run the World, se eu não estava enganado.
A porta da cabine estava aberta, então quando eu a abri, vi Amanda
sentada no chão, cantando e dançando sozinha a música, como se estivesse
no meio de uma super festa.
Assim que viu a mim e à prima, abriu um sorriso completamente fora de
noção.
— Ah, olha vocês dois aí! Eu estava me perguntando: onde diabos está o
herói da cidade que ainda não veio aqui resgatar a donzela bêbada? — a voz
dela estava embargada. — Você, Murilo, é um pé no saco, sabia?
Franzi o cenho, olhando para ela. Eu sabia que era um pé no saco, mas ela
também sabia ser difícil. Não respondi nada.
Ticiane se aproximou e pegou a bolsa da prima do chão, ajudando-a a
levantar-se, apoiando-a.
— Vem, Manda! Vamos te levar para casa!
— Não! — Ela se desvencilhou de Ticiane e quase se desequilibrou,
precisando segurar-se na parede da cabine. — Não quero que meu avô me
veja assim ou de ressaca amanhã. Eu acho melhor...
Só que Amanda nunca falou o que achava melhor, porque simplesmente
despencou nos braços de Ticiane. Apressei-me em ampará-la, porque por
mais que fosse uma coisinha pequena, sua prima não era tão maior assim e
não iria aguentá-la, especialmente lânguida como estava.
Sem nenhuma dificuldade, eu a levantei no colo, saindo da cabine com
cuidado e depois levando-a para fora do banheiro, sabendo muito bem que
seríamos o assunto da semana na cidade.
— O que vamos fazer? Ela não quer ir para casa — Ticiane falou,
enquanto eu carregava Amanda para a picape.
— Não sei se ela tem muito poder de decisão, incoerente como estava.
— Claro que tem. E podemos mesmo evitar que vovô a veja assim. Sabe
que ele sempre foi liberal, mas se vê-la nesse estado, desmaiada, vai ficar
preocupado. Não queremos assustá-lo.
— Por que, então, não a levamos para a sua casa?
— Porque eu não vou dar conta dela sozinha.
Por que será que de alguma forma eu tinha a impressão de que, assim
como seu marido, Ticiane estava tentando armar alguma cilada para mim?
— Se ela não voltar para casa ele também vai ficar preocupado.
— Não se estiver com você.
Parei no meio do caminho em direção à caminhonete, olhando para ela,
confuso.
— E o que Amanda poderia estar fazendo, passando a noite comigo,
sendo que é comprometida? — quase rosnei as palavras. Eu não estava
gostando nada daquilo.
— A gente pode inventar alguma coisa, que vocês decidiram conversar,
ela foi pra sua casa e ficou tarde para voltar. Vovô quer muito a amizade de
vocês, ficaria feliz com isso.
Merda! Havia um problema nas artimanhas de Afonso e Ticiane: eu caía
em todas.
— Ok, Tici. Eu vou levá-la para a minha casa. Mas fique sabendo que
amanhã de manhã bem cedo ela estará na sua porta, acordada ou não. Aí você
se vira para achar uma desculpa.
Ela assentiu e me ajudou a colocar Amanda no banco do passageiro.
Como não podia ser diferente, ofereci-lhe uma carona, e ela seguiu na minha
caçamba mesmo, pulando ao chegar em casa e me dando tchauzinho.
Quem diria que eu terminaria aquela noite com Amanda no meu carro,
desacordada, completamente bêbada, sem ter a menor noção do que deveria
fazer com ela?
CAPÍTULO DEZ
O silêncio era uma merda. Eu nunca soube lidar muito bem com ele,
principalmente quando estava ao lado de uma pessoa com quem me sentia
bastante desconfortável. Não costumava ser assim com Amanda. A gente
sempre teve assunto o suficiente para ficarmos conversando por horas. Isso
quando não passávamos uma eternidade nos beijando.
Nada nunca era incômodo com ela, porque mesmo quando estávamos
caladoS, havia um entrelaçar de dedos, ou eu a tinha aninhada nos meus
braços, ou nossas respirações pareciam se encaixar, em uníssono. Tudo
sempre foi natural.
Mas não mais.
Eu queria desesperadamente que Amanda dissesse alguma coisa. Qualquer
coisa. Porque não estava nem um pouco inclinado a começar algum assunto.
Se fizesse isso, começaria a dar explicações sobre Raíssa, e eu não devia
absolutamente nada a ela. Não precisava lhe contar os detalhes do nascimento
da minha filha, mas sabia que estava curiosa.
Tanto que foi a primeira a abrir a boca, embora conhecesse seu orgulho e
soubesse que ele não permitiria que fosse direta. Ela iria sondar.
— Sua filha é linda — ela comentou, tentando parecer algo
completamente corriqueiro.
— Ela é — respondi, com os olhos fixos no caminho à minha frente.
— Imagino que a mãe também seja. — Daquela vez quase sorri. Eu não
lhe daria tudo de mão beijada. Era um joguinho infantil, mas estava pouco me
lixando.
— Sim. É muito bonita.
Amanda se remexeu no banco, parecendo incomodada. Ora, ora... ela
podia exibir um anel de noivado enorme no dedo, mas eu não podia ter uma
filha com outra mulher?
Esperei que fizesse mais alguma pergunta, mas controlou-se. Eu não sabia
se teria tanto sangue frio se fosse o contrário.
Passamos mais algum tempo em silêncio, enquanto eu dirigia, mas ouvi o
som do telefone dela tocando. Algo me incomodou em sua reação. Amanda
me pareceu tensa demais, nervosa demais, e quando ouvi sua saudação de
“oi, amor”, preocupei-me mais ainda. Era o noivo, sem dúvidas, e ela fez um
sinal de silêncio para mim, ainda muito alterada.
— O quê!? — exclamou, mais assustada ainda. — Você está na casa do
meu avô? Como assim? — Seus olhos se voltaram para mim, parecendo uma
reação involuntária, e eu continuava não gostando nada daquilo. — Não, tudo
bem. Eu só... fui visitar uma amiga que não via há muito tempo. Já estou
chegando.
Tentei parar de prestar atenção à conversa, porque definitivamente não era
da minha conta. Ela estava mentindo para o noivo, porque claramente não se
sentia à vontade para lhe contar a verdade.
Bem... não que fosse simples, porque ela tinha passado a noite na casa do
ex-namorado, completamente bêbada. Ainda assim, eu a sentia tensa demais.
Como se estivesse com medo.
Isso gelou o meu sangue. Se aquele filho da puta fosse abusivo com ela de
alguma forma...
Amanda encerrou a ligação e rapidamente se voltou para mim:
— Você pode, por favor, me deixar aqui? Vou andando o resto do
caminho. — Faltava apenas um quarteirão para que chegássemos à casa de
Seu Dodô, e eu poderia atender ao seu pedido. E poderia fazer isso sem lhe
perguntar nada. Mas era mais forte do que eu.
— Você tem medo do seu noivo? — a voz saiu rouca, como um rosnado.
Não queria parecer tão à flor da pele ou passional, mas era impossível.
— Não! — ela respondeu rápido demais, o que novamente me deixou
preocupado. — Claro que não. Mas não quero que me veja com você. Pode
tirar conclusões precipitadas.
Balancei a cabeça lentamente e parei o carro, como ela pediu.
— Obrigada pela carona. Por tudo, aliás. Acho que vou repetir a frase que
mais ouvi esses dias: se não fosse por você... — Ela tirou o cinto de
segurança e se voltou para mim com um sorriso sem graça.
Eu poderia deixá-la saltar. Deveria, aliás. Amanda tinha sua vida, como eu
tinha a minha. Ela estava noiva, e eu era pai. Cada um seguira seu caminho, e
eles não se cruzavam. Não havia mais chances para nós. Mas isso não me
impedia de me preocupar com ela, de querer que estivesse segura.
Foi por esse motivo que fechei a mão em seu braço, impedindo-a de saltar.
— Amanda... — chamei seu nome, e ele acariciou minha língua de uma
forma que eu não esperava. Soou suave, macio, como um beijo. Ela voltou os
olhos azuis na minha direção, tão expressivos que eu poderia mergulhar
neles. — Se ele fizer algo contra você... se te machucar ou for grosseiro... Se
for abusivo...
Ela suspirou. Minha voz soara intensa demais, protetora. Poderia disfarçar
ou fingir que essa não era a minha intenção, mas não quis. Por mais que
estivesse magoado, Amanda fora importante para mim, e eu não poderia
nunca negligenciá-la. Não faria isso com mulher nenhuma que eu descobrisse
que vivia um relacionamento abusivo, muito menos com uma que fizera parte
da minha história.
Sua mão tocou a minha, ainda em seu braço, e ela outra vez deu um
daqueles sorrisos desanimados. O brilho do anel que ela carregava no dedo
quase me cegou, e eu a soltei por impulso.
— Está tudo bem, de verdade. Mas obrigada...
Amanda saltou do carro, deixando-me lá dentro, ainda não muito
convencido de que estava mesmo tudo bem. Havia algo de estranho naquele
relacionamento. Minha cabeça não conseguia parar de pensar que ela não
estava tão apaixonada assim pelo cara, como Walter dissera. Ou talvez fosse
só eu me iludindo como o babaca que sempre fui quando tinha a ver com ela.
Praguejando, fiquei observando-a caminhar por um tempo, até que dei
meia volta e segui para casa, esperando poder apagar aquela impressão da
mente.
Abri a porta da casa do meu avô sentindo o corpo inteiro tenso e pensando
no que Murilo dissera: “se for abusivo...”.
Eu nunca tinha pensado em João Pedro dessa forma, como um namorado
controlador, mas as coisas começaram a pipocar na minha cabeça. Um
homem não necessariamente precisa agredir fisicamente uma mulher para ser
considerado abusivo. Atitudes pequenas são sinais também.
Jurei que, com mais calma, iria pensar no assunto, mas naquele momento
eu tinha outras coisas para lidar.
Entrei na casa e ouvi uma conversa vinda da cozinha. A primeira coisa
que vi foram os três homens reunidos: Afonso, meu avô e João Pedro. Este
parecia tão deslocado quanto possível. Ele frequentava os locais mais
elegantes do Rio de Janeiro, conhecia mil pessoas importantes, então eu
podia ver em cada um de seus movimentos o quanto estava odiando cada
segundo na casinha humilde do meu avô. Peguei-o remexendo-se na cadeira
desconfortável e olhando para o copo de geleia onde fora servido o café como
se estivesse sujo demais para seus lábios esnobes.
Naquele momento eu o odiei.
— Ah, ela chegou! — Afonso falou, apontando para mim.
João Pedro levantou-se imediatamente e veio me receber, pegando-me em
um abraço, como se não me visse há tempos. Então sussurrou baixinho no
meu ouvido:
— Como você aguentava viver nessas condições? Ainda bem que sua
família deu sorte, né? — Não me deu tempo de responder porque logo se
virou na direção do meu avô, que estava sentadinho à mesa.
Olhei em seus olhinhos sempre doces, e ele não parecia nem um pouco
encantado com o meu noivo.
— O assunto era exatamente você, meu amor. Nós, aliás — João Pedro
disse, passando um braço pelos meus ombros. — Estava comentando com o
seu avô como queremos que participe do nosso casamento, mas ele me
explicou que não sabe se vai poder fazer viagens longas por algum tempo. —
Ele não tinha me dito isso, mas provavelmente era verdade. E fazia todo
sentido. — Então eu tive uma ideia sensacional.
Medo. Muito medo.
— O que você acha de transferirmos o casamento no civil para cá? Afonso
me falou que o cartório local é super bonitinho, que tem um espaço para uma
cerimônia pequena. Podemos fazer algo simbólico para seus amigos e família
daqui.
— Acho que minha mãe teria um treco — respondi em um impulso.
— Não, claro que não. Ainda teremos a festa enorme lá no Rio, mas é só
uma forma de seu avô participar. E assim podemos adiantar as coisas
também. Já estamos com a papelada toda pronta, não temos por que esperar.
— De quanto tempo estamos falando?
— O que acha de uma semana?
— Uma semana? — eu e meu avô falamos juntos, em um tom nada
tranquilo.
— João, eu acho impossível conseguirmos data assim tão em cima da
hora... — tentei.
— Em uma cidade pequena como esta? Com certeza se consegue. Além
do mais, amor, você sabe que eu posso dar uma molhada na mão de quem
quer que seja para a gente conseguir o que quiser — lá estava seu jeito
esnobe de falar novamente. Ele costumava me divertir, mas por algum
motivo passou a me deixar muito enojada. — A não ser que você não queira
se casar comigo tão rápido...
Minha resposta deveria ser não. Ele estava me dando esse espaço, não
estava? Mas sua expressão parecia bem menos simpática do que tentava
transparecer. Eu odiava conflitos, odiava contrariar as pessoas... Dificilmente
dizia não, mesmo quando queria fazê-lo.
E, além do mais... o que mudaria? O casamento aconteceria em
pouquíssimos meses, não seria cancelado. Semanas a mais ou a menos? O
resultado seria o mesmo.
— Tudo bem, a gente se casa em uma semana. — Assim que respondi
olhei para o meu avô e, por algum motivo, ele parecia muito contrariado. Era
difícil vê-lo assim, e isso me deixou muito triste.
Mas será que eu estava chateada apenas pela reação do meu avô ou estava
decepcionada comigo mesma?
CAPÍTULO DOZE
A comida, como sempre, estava uma delícia, mas ela descia pela minha
garganta sem que eu nem sentisse o gosto dela. Apenas mastigava uma, duas,
três vezes e engolia, como se não tivesse um pingo de educação.
Eu sabia que minha mãe estava me olhando com aquele ar de quem sabe
tudo, e eu preferia evitar contato visual antes que ela fizesse algum
comentário que iria me deixar ainda mais de mau humor.
O dia começara péssimo e tinha potencial para ficar pior, porque eu não
recebi muito trabalho para fazer, ou seja, não teria onde afundar minhas
mágoas. Dar de cara com Amanda na minha varanda, vestindo nada mais do
que uma camisa minha, tornara minha manhã um inferno. Só que nada se
comparava à preocupação que passei a sentir depois que vi a forma como
reagiu a uma simples ligação do noivo.
Porra, podia fazer anos, mas eu conhecia Amanda apaixonada. Porque ela
fora apaixonada por mim. Inegavelmente apaixonada. Lembrava-me de seus
olhares, seus beijos, seus sorrisos e o quanto suas palavras soavam
verdadeiras. Não fora um engano. Ela sofrera quando foi levada embora. Ela
não parecia sentir o mesmo pelo cara novo.
E isso ficou ruminando na minha cabeça por um bom tempo, até que D.
Sílvia não aguentou mais o silêncio.
— Amanda está muito bonita, você não acha? — Olhei para ela no
momento em que terminou de falar, e a safada sequer me encarava. Estava
brincando com a comida no prato, coisa que sempre me censurou por fazer
quando eu era garoto.
— O que eu acho é que todos vocês têm que parar de ficar me empurrando
para ela — respondi em um resmungo baixo.
Da forma mais canastrona possível, minha mãe arregalou os olhos, em
uma tentativa de parecer inocente que não convencia ninguém.
— Eu? Está equivocado, Murilo Alberto! — Um dia ela já me assustou
quando me chamava pelo nome composto, mas não mais. — Foi só um
comentário como outro qualquer.
— Conheço vocês. Pensa que não sei que já falou com Ticiane e com
Dodô? Te ouvi ao telefone mais cedo.
— E eu não poderia estar falando com outra pessoa? Com um crush
qualquer? — Eu teria rido da forma como ela falou crush, mas preferi me
manter sério, porque o assunto pedia isso.
— Claro que poderia, mas não acho que ele teria o nome de Ticiane. E
também não acho que você ficaria a fim do Seu Donato.
— Ah, e por que não? Ele é um homem interessante.
— Com idade para ser seu pai.
— Não existem barreiras para o amor, nem a diferença de idade. — Lá
estava ela novamente tentando me fazer rir. Minha mãe sempre foi boa nisso,
porque era cínica e provocadora.
— Mãe, eu estou falando sério. Amanda não voltou para José de Alencar
de vez. Ela vai ficar aqui só por alguns dias, por causa do avô. E ainda por
cima vai se casar.
— É, aparentemente ela vai se casar aqui.
— Aqui? — Pronto, ela conseguiu chamar a minha atenção.
Como assim Amanda ia se casar aqui? Em José de Alencar? E todos os
preparativos para a festa mais elegante do ano, com salão caro e concorrido,
buffet de chef famoso e convites espalhados para celebridades brasileiras e
algumas até internacionais? Não era isso que dizia a notícia que minha mãe –
enxerida – leu para mim há algumas semanas?
— Pelo que minhas fontes seguras me contaram, o tal noivo — ela usou
de um imenso desdém para dizer a palavra — deu a ideia de fazerem o
casamento no cartório daqui, com uma pequena cerimônia lá mesmo. Algo
simbólico para o Seu Dodô poder participar, já que não seria muito prudente
ele fazer uma viagem longa em sua condição.
— Bem, foi até legal da parte dele, não? — Elogiar o babaca era algo que
me dava até ânsia de vômito, e eu não sabia por quê. Até onde eu sabia, ele
podia ser um cara legal, não? O que vi nos olhos de Amanda dentro do carro
poderia ser só uma impressão.
— Foi o que eu pensei de início também, mas tanto Tici quanto Seu Dodô
acharam meio estranho. E Amanda não ficou muito feliz com isso, mas não
negou. — Com ares de fofoqueira, minha mãe se aproximou de mim, por
sobre a mesa, como se houvesse alguém ao nosso redor que pudesse nos
ouvir para que precisasse sussurrar. — O Dodô não foi com a cara do sujeito.
Muito arrogante, sabe? Não parece que a ideia dele de adiantar o casamento
só para incluir o coroa tem mesmo a ver com gentileza. Parece ter um
interesse por trás.
Em qualquer outra situação eu poderia jurar que se tratava de um exagero,
mas conhecia a família de Amanda, e eles eram acolhedores ao extremo.
Sempre foram comigo, e eu sabia que havia uma preferência pela minha
pessoa, mas nenhum deles iria minimizar as escolhas dela por causa de um
relacionamento que aconteceu tantos anos antes. Eram boas pessoas, com um
bom senso de julgamento, e isso começou novamente a me preocupar.
Tanto que, sem querer, dei com a língua nos dentes:
— Amanda me pareceu um pouco tensa ao falar com ele hoje, sabe?
Quando a deixei em casa. Tanto que pediu que eu estacionasse a um
quarteirão de distância da casa para que não nos visse chegando juntos —
confessei.
— Ah, que absurdo! Não aconteceu nada entre vocês! Eu estava aqui,
você só foi cavalheiro com ela — indignou-se.
— É, eu sei disso, mas foi o que senti. Acho que o cara é um pouco
controlador. Ou mais do que um pouco.
— Temos que descobrir! — ela disse isso dando um tapa na mesa de
madeira, tão alto que acordou Raíssa, o que fez minha mãe praguejar
baixinho, uma palavra que eu não repetiria perto da minha filha quando ela já
fosse grandinha o suficiente para compreender.
Levantei-me imediatamente, fazendo um sinal para que minha mãe
deixasse comigo, e peguei a neném do carrinho, embalando-a no meu colo.
— Calma, filha, papai está aqui. Não foi nada, só a sua avó maluca... —
disse, em um tom de brincadeira, e um osso de frango foi atirado em minha
testa, com a pontaria perfeita que eu sabia que ela tinha. Ao menos serviu
para Raíssa trocar o choro por uma gargalhada.
— A vovó não tem nada de maluca, Raíssa. Estou bem lúcida. Seu pai que
é um bobalhão.
— Ei, ei, ei... de onde veio isso?
— Acho que é bem óbvio. A menina está em péssimas mãos com o noivo,
e você não vai fazer nada? — Minha mãe se levantou e foi na direção da
cozinha, mas eu fiquei parado no mesmo lugar, falando um pouco mais alto
para que me ouvisse:
— Primeiro que não sabemos se ela está mesmo em péssimas mãos e,
além disso, por que eu teria que fazer alguma coisa? Não sei se você
esqueceu, mas faz sete anos que não temos nada a ver um com o outro.
Minha mãe não respondeu nada, como se não estivesse dando a menor
bola para todo o meu discurso. Percebi que havia uma travessa em suas mãos;
uma que ela estendeu a mim.
— Toma. Vai levar isso aqui para o Dodô e apurar essa história direito.
Como a neném tinha se acalmado um pouco, coloquei-a em sua
cadeirinha. Ela não fazia as refeições conosco em si, porque eu ou minha mãe
a alimentávamos antes, para regular seus horários, mas sempre a
mantínhamos em nossa companhia. Estava começando a se tornar arteira e
não podia ficar muito tempo sem supervisão.
— O que diabos é isso?
— É uma torta de banana. A preferida dele. Amanda gostava também
quando era menina. É a desculpa perfeita para você aparecer lá e dar uma
olhada no tal do noivo.
Franzi o cenho, balançando a cabeça em negativa.
— Não, mãe! Não! — Ergui as mãos em um sinal de “basta!”. — Eu não
vou lá. Não tem sentido. Amanda me pediu para estacionar o carro bem longe
da casa, porque não queria que o noivo me visse. O que acha que vou causar
se aparecer lá?
Ela revirou os olhos como se fosse muito óbvio.
— É diferente! Você não vai estar chegando de manhã com a garota em
casa, como se tivessem passado a noite juntos. Estará fazendo uma visita a
um amigo. — Ainda não fui convencido, então ela imitou minha expressão,
também franzindo o cenho. — Murilo Alberto, você obedeça à sua mãe. Leve
a porcaria da torta para Donato — alterou-se. — E vá com Raíssa, ele vai
gostar de vê-la.
Abri a boca para falar alguma coisa, mas... bem... eu conhecia a D. Sílvia.
Não só seu poder de argumentação quanto de chantagem. Quando dei por
mim, já estava na porta da casa de Donato, pronto para entrar, com a porra da
torta na mão e empurrando o carrinho da minha filha com a outra.
Daquela vez, nem entrei direto; bati, esperando ser atendido. E quem eu vi
do outro lado da porta foi Amanda.
Assim que percebeu quem era, ela arregalou os olhos, deu uma olhada ao
redor, como se estivesse fazendo algo completamente errado e não quisesse
que ninguém visse, colocou a mão no meu peito e me empurrou para fora,
saindo também e fechando-nos lá fora.
— Você ficou maluco? — ela sussurrou, mas alterada, então sua voz
subiu uma oitava. Seria engraçado se não fosse trágico.
— Por vir entregar um bolo para o seu avô convalescente? — zombei.
— Você sabe que não é disso que estou falando! Meu noivo está aqui.
— E eu estou aqui. Não sou ninguém, Amanda. Só um amigo da família.
Um velho amigo — quase repeti as palavras da minha mãe.
Amanda olhou para mim com pesar. Quase como se quisesse dizer que
não era bem assim.
Porém não tivemos tempo para discutir a minha afirmação, porque Dodô
surgiu abrindo a porta ao lado de um cara loiro, alto, que usava uma blusa
pólo azul marinho e uma calça black jeans. Todo engomadinho, com cara de
rico. Só podia ser o noivo da Amanda.
— Ô, Murilo! O que você está fazendo aí fora? E por que bateu na porta?
Entra logo que eu quero pegar essa coisinha linda aí — disse, apontando para
Raíssa, que estava acordada por um triz no carrinho.
Dei uma olhada em Amanda, que parecia muito nervosa, mas meu olhar
parou no tal noivo.
A animosidade foi instantânea. Ele não foi com a minha cara.
Ótimo, porque eu também não fui com a dele.
CAPÍTULO TREZE
Eu já deveria ter ido embora. Há horas. Desde que o babaca também saiu,
deixando Amanda para trás. O que me prendia ali?
Bem, eu sabia a resposta, mas não queria pensar nela.
Dodô tinha ido se deitar um pouco, alegando que estava cansado, mas
conhecendo bem aquele velho estrategista, eu sabia que o que queria era me
deixar sozinho com sua neta. Bem, Raíssa estava conosco, mas ela não era
exatamente testemunha, né? Na verdade, minha filha parecia piorar o cenário,
porque estava nos braços da mulher, parecendo encantada com ela, enquanto
Amanda a entretinha cheia de caras e bocas.
Eu não era de ferro. Qualquer um que tratasse bem a minha filha ganharia
pontos comigo. Naquele caso então...
— Meu Deus, ela é uma delicia! — Amanda comentou apaixonada, e eu
não conseguia tirar os olhos das duas. — Estou apaixonada por esses
laçarotes! — Tocou o laço daquela vez, que era de um roxo vivo,
combinando, como sempre, com o vestido.
Um pensamento muito fugaz cruzou a minha mente, um pelo qual me
condenei rapidamente: Raíssa poderia ser nossa. Nós poderíamos ser uma
família, se o destino não tivesse nos separado de uma forma tão cruel.
Naquele instante, nós estávamos sentados na varanda da casa de Seu
Dodô, comendo o doce que minha mãe enviou – como já tínhamos feito
tantas outras vezes no passado. A sensação era agridoce.
— Ela é — eu poderia ser muito mais eloquente ao falar sobre a minha
filha, mas temia que minhas palavras entregassem mais do que eu queria
demonstrar. Não queria que ela percebesse o quanto minha voz estava
embargada por ver as duas daquele jeito.
— Estou me controlando desde mais cedo para perguntar, mas... você e a
mãe dela ainda estão juntos?
Amanda era bem mais corajosa do que eu. Era o tipo de questionamento
que eu não faria se estivesse no lugar dela.
— Não, não estamos — fui econômico, porque queria que ela fizesse mais
perguntas. Queria que demonstrasse interesse em minha vida amorosa,
embora isso fosse uma idiotice. A prova de que nunca mais poderia acontecer
nada entre nós tinha saído daquela casa algumas horas antes.
— O que aconteceu? — Ela deu uma garfada na torta, tentando muito
parecer blasé. Minha filha se remexia em seu colo, tentando tocar o prato, e
Amanda voltou sua atenção para a neném, novamente brincando e fazendo
meu coração se apertar no peito.
Eu era um idiota.
Em resposta à sua pergunta, dei de ombros.
— Nada de mais. Foi uma noite apenas. Ela era de outra cidade, modelo, e
não queria a responsabilidade de ser mãe vinte e quatro horas por dia. Eu pedi
a guarda. E é isso. Somos amigos.
— Ela é presente para Raíssa?
— O máximo que consegue ser.
— Isso não te causa ressentimento?
— Por que causaria? Homens fazem isso o tempo todo, não fazem? Minha
filha está comigo, e é ela que me importa. Não preciso que alguém seja
forçado a fazer algo que não quer, porque não preciso de ajuda além da que já
tenho.
Amanda deu uma olhada na minha garotinha e depois para mim. O sorriso
em seu rosto tornou-se mais cálido, o que mexeu comigo.
Novamente... eu era um idiota.
— Você é um cara legal demais para o seu próprio bem, Murilo.
Não entendi o que ela quis dizer com aquilo, mas apenas assenti,
desejando não pedir explicações. Caímos em um silêncio quase confortável, e
eu fiquei me perguntando o que mais aquela estadia de Amanda na cidade iria
me custar, porque ela estava ali há pouquíssimo tempo, e eu já sentia que
causaria um belo de um estrago.
CAPÍTULO QUATORZE
Era estranho estar ali. Mais do que isso... era estranho se sentir tão à
vontade, como se aquele tipo de coisa acontecesse todos os dias. Como se
fosse um revival do passado, embora tudo estivesse diferente. Há sete anos,
nós não éramos as pessoas que tínhamos nos tornado. Eu não estava noiva.
Murilo não tinha uma filha. Era como ser jogada de paraquedas em uma
realidade alternativa.
Mas quando respirei bem fundo, sentindo o ar mais puro da cidade
pequena, sem os sons insuportáveis de buzinas, sem o cheiro da selva de
pedra em que vivia, eu realmente me senti criança novamente. Como se
tivesse todo o futuro diante dos meus olhos.
— Por que está sorrindo? — Nem percebi que meus lábios tinham se
curvado até Murilo falar alguma coisa. Não poderia dizer que me esqueci da
presença dele ao meu lado, porque era impossível. Ele era parte do cenário.
Parte do que me fazia rever lembranças muito queridas.
— Estou me lembrando do quanto eu amava este lugar — respondi em um
sussurro. Há alguns minutos Murilo tinha ido pegar o carrinho de Raíssa, e
ela dormia entre nós, serena e doce, como um anjinho.
— O lugar sempre esteve aqui, você que foi embora.
Abri os olhos devagar, voltando-os para Murilo por um segundo, mas logo
abaixando-os em direção ao piso de madeira da varanda. Eu não tinha motivo
para me envergonhar, e o tom que ele usou nem pedia isso. Não parecia uma
reprimenda; ainda assim, não era fácil de ouvir.
— Eu não fui porque quis, e você sabe disso — afirmei com convicção.
Murilo comeu mais um pedaço de torta. Era nossa segunda rodada, mas eu
mal tinha tocado no meu segundo prato.
— Sim, eu sei — era a primeira vez que admitia isso, o que me deixou
surpresa. Seria uma trégua entre nós? — Mas também sinto falta...
Ele deixou a frase no ar, e eu poderia fingir que nada aconteceu. Poderia
simplesmente deixar para lá, como se não fosse importante, mas era.
— Sente falta do quê? — continuei com o tom de voz baixo, como se
minha coragem não permitisse que eu fosse mais longe.
— De nós.
Uau... eu não esperava que ele fosse ser tão direto. Murilo nunca foi um
cara que curtiu joguinhos, não media palavras e não fazia rodeios. Era uma
das coisas que eu mais amava nele.
Só que o fato de sua confissão ser tão surpreendente não apenas me
deixou confusa, mas também remexeu minhas entranhas, causando-me uma
dor quase física. Era fácil não pensar no que vivemos quando não o tinha por
perto ou quando ele era apenas uma memória distante e quase inacessível.
Lado a lado, ouvindo sua voz, sentindo seu cheiro e sendo alvo daquele tipo
de comentário, as coisas ficavam mais complicadas.
— Não só de sermos namorados, Amanda. Não só de te beijar, de te
tocar... mas do que tínhamos. Ia além de algo físico. Eu não só perdi a mulher
que eu amava, mas perdi a minha melhor amiga.
Beijos... toques... Ah, meu Deus.
Tudo bem, tudo bem... toda a mensagem tivera um baita significado, e eu
estava comovida por ela, mas pensar em todo o resto me provocou um
arrepio que percorreu a minha espinha terminando na minha nuca, fazendo
minha cabeça girar.
— Você deixou bem claro, Murilo. Não queria mais falar comigo. O que
queria que eu fizesse?
— Eu era um garoto idiota. Na época quis que você lutasse por nós. Na
minha cabeça, era você que estava indo embora, deveria ser a responsável por
tentar uma nova chance.
— É, foi bem idiota da sua parte — comentei com sinceridade. — Mas
ainda podemos ser amigos. Recuperar o tempo perdido.
Murilo voltou-se para mim com o olhar mais intenso que eu poderia
receber. Seus olhos pequenos estavam estreitos, pesados, não muito
diferentes de como ficavam quando o garoto que conheci demonstrava desejo
por mim.
— Você acha que podemos, Amanda? Acha mesmo que existe alguma
forma de sermos amigos? — havia um tom ácido na forma como proferiu a
última palavra. Um que quase fez com que eu me encolhesse, constrangida.
Não respondi. O que eu poderia dizer? Dias atrás eu teria aquela resposta
na língua, completamente segura do que queria, mas foi só vê-lo para as
coisas perderem o rumo.
Murilo não ficou muito mais na casa do meu avô naquela noite. Minutos
depois de sua pergunta que ficou sem resposta, ele pegou sua bebezinha e foi
embora, deixando-me sozinha. Meu avô já estava dormindo, e eu até fui para
a cama, mas passei a noite inteira em claro, pensando. O que diabos eu tinha
feito com a minha vida?
Dois dias se passaram na velocidade da luz, e quando me dei conta, já
estava no carro, partindo com Ticiane e Sílvia – sim, a mãe de Murilo – para
a cidade vizinha, onde elas me juraram que havia uma loja nova, bem chique
– como as duas disseram –, onde eu poderia conseguir um vestido incrível
para a cerimônia no civil.
Eu deveria estar radiante. Por mais que não fosse a festança que vinha
preparando desde que fui pedida em casamento, seria algo a se comemorar,
não? Seria especial do mesmo jeito, e eu me tornaria esposa de João antes do
tempo.
Por que, então, isso me assustava tanto?
Só não me assustava mais do que a quantidade de vezes que pensei em
Murilo nos últimos dois dias.
A loja realmente era ótima, e as vendedoras se desesperaram para me
atender, porque, aparentemente, sabiam quem eu era. Em quinze minutos, eu
tinha oito vestidos pendurados numa cabine, embora houvesse um preferido.
Por acaso ele foi o último que vesti. Nenhum deles ficou ruim, mas eu
sabia que aquele seria o escolhido. Esperei sentir um frio na barriga, uma
emoção especial, ouvir fogos de artifício, mas nada aconteceu. Quando me
olhei no espelho do lado de fora, permitindo que as outras duas mulheres o
vissem também, continuei acreditando que era o vestido certo. Só que...
talvez... eu não fosse a noiva certa.
Ele era em um tom de azul bem clarinho – não branco, porque eu queria
guardar a cor para a igreja –, tinha um bonito decote, uma cintura marcada
abaixo do busto por uma linda faixa de cetim, e caía em uma saia armada,
mas não me fazendo parecer como se eu estivesse no meio de um baile
vitoriano. Não era de mais nem de menos, era perfeito. Os olhos brilhando
das minhas duas companhias me disseram isso.
— Meu Deus, Manda! Que coisa mais linda! — minha prima exclamou
animada, aproximando-se.
Sílvia ficou parada, observando-me de longe. Meus olhos encontraram os
dela através do reflexo do espelho, e eu a vi sorrir.
— Linda, querida. Como sempre. — Só que ela também não parecia feliz.
Era como se me compreendesse.
Ticiane encarou a nós duas, confusa.
— É um casamento, viu? Não um enterro. Por que as duas estão com
essas caras de bunda?
Nenhuma de nós respondeu, mas, em silêncio, concordamos.
— Acho que estou um pouco nervosa, só isso — foi a minha resposta.
No entanto, quando cheguei em casa, depois de algumas horas, joguei a
sacola sobre a cama e fiz o mesmo, olhando para o teto, aproveitando que
vovô estava dormindo. Não queria que ele me visse naquele estado, porque
rapidamente compreenderia que eu estava com dúvidas a respeito do meu
casamento.
Só que o que mais bagunçava meus pensamentos era o medo de nunca ter
tido certeza. De ter me precipitado. De ter tomado uma decisão influenciada
pela minha mãe.
Como me deixei chegar a esse ponto? Nunca permiti que tentasse
controlar a minha vida, nunca deixei que se metesse, principalmente quando
tinha a ver com meus amigos. E com Murilo. Por ele eu lutei tanto... e perdi.
Nós dois perdemos.
Meus pensamentos começaram a ser envenenados por ideias perigosas. O
vestido ao meu lado parecia gritar: EU POSSO SERVIR PARA OUTRA
COISA.
Claro que poderia; ele era lindo. E, além do mais, não era como se eu não
tivesse dinheiro para comprar uma roupa e não usar. Eu poderia doar para a
caridade uma dezena de vestidos como aquele, se isso significasse um futuro
feliz.
Um que eu já não conseguia mais enxergar ao lado de João Pedro.
Sem nem perceber o que fazia, liguei para a minha mãe. Só me dei conta
quando ouvi seu “alô” do outro lado da linha.
O que eu estava fazendo? Já sabia a opinião dela.
— Oi, filha! Como estão as coisas aí? Está aguentando esse muquifo? —
Achei melhor nem dar bola para seu comentário maldoso e fui direto ao
ponto:
— Mãe, o quão ruim seria se eu cancelasse o casamento?
Um silêncio atordoante se seguiu à minha pergunta. Parecia que eu tinha
acabado de lhe dar uma notícia de algum falecimento. Ou melhor... se ligasse
para contar que vovô tinha morrido – bate na madeira três vezes – ela não
ficaria tão abalada. Porque eu sabia que esse era o caso. Minha mãe falava
pelos cotovelos, principalmente quando não devia, e ela estar completamente
calada só podia significar que seus neurônios tinham dado tilt.
— Mãe? — precisei chamar, porque já estava agoniada.
— Amanda, eu espero que você esteja brincando — ela saiu falando, em
um tom que tinha subido uma oitava.
— Talvez eu esteja falando sério.
Novamente o silêncio. Por um momento, um único instante, jurei que ela
iria tentar ter uma conversa comigo de mãe para filha. Poderia tentar me
convencer de que eu estava louca, de que o casamento estava batendo na
porta e que João era um partido que eu não poderia me dar ao luxo de perder,
mas o que veio em seguida já era de se esperar: uma gargalhada.
— Você é mesmo uma piadista, minha filha. Só que estou ocupadíssima
na manicure, e a Telma está terminando meu pé, vou precisar liberar as mãos
para ela fazer.
Era isso? Ela ia me trocar por suas unhas?
Tive vontade de gritar, de praguejar, de deixá-la boquiaberta com a
quantidade de desaforos que poderiam escapar da minha boca, mas apenas
fiquei calada. Para variar.
Nós nos despedimos como se nada tivesse acontecido. Como se minha
opinião não contasse para nada.
E, para ela, não contava.
Em um ataque de raiva, dei um tapa na bolsa de papel que guardava o
vestido, fazendo-a cair no chão. Isso não ia mudar em nada, mas fiquei ali
parada, com as mãos entrelaçadas sobre a barriga, olhando para o teto e
pensando que não podia definir o resto da minha vida dali a alguns dias.
Precisava de mais tempo, mas sabia que João Pedro teria o mesmo
comportamento da minha mãe.
Eu precisava fazer alguma coisa.
CAPÍTULO QUINZE
Aquilo tudo era muito irreal, mas estava acontecendo. Eu não podia fingir
que não havia uma mulher amarrada na caçamba da minha caminhonete e que
eu tinha acabado de tirá-la do altar, impedindo-a de se casar com um babaca
que a chantageava.
Ok, se eu ficasse recapitulando a situação, surtaria. Era melhor só dirigir
mesmo.
Eu tinha um destino certo – meu chalé ermo, à beira de um lago, que
comprei pouco depois que Raíssa nasceu, na intenção de termos um local
para onde ir, para descansarmos e ela poder brincar. Meu trabalho me
permitia fazer minhas tarefas remotamente, o que era providencial.
Só nunca pensei que isso me facilitaria para o rapto de uma pessoa.
Assim que chegamos, estacionei o carro e saltei, fazendo um sinal para
que Amanda esperasse um pouco. Abri a porta da casa e voltei para ela,
tirando-a da caçamba e carregando-a para dentro, de uma forma bem mais
gentil do que quando a levei do cartório.
— Você está bem? — perguntei, enquanto ainda a tinha nos meus braços.
— Claro que estou. Não é como se eu estivesse muito contra esse rapto —
brincou. Sim, ela parecia muito mais tranquila do que eu.
Coloquei-a sentada no sofá e fui até a cozinha, pegar uma faca afiada para
cortar os laços que a prendiam. Tirei o paletó para fazê-lo, colocando-o sobre
uma poltrona de couro, que era meu assento preferido naquele lugar.
Assim que terminei a tarefa, sentei-me sobre a mesa de centro, de frente
para ela. Peguei suas mãos nas minhas e beijei seus pulsos, como um pedido
de desculpas pelo que eu tinha feito. Mas ela fora minha cúmplice.
— E agora, o que faremos? — perguntei, porque não fazia a menor ideia.
— Como já te falei antes, sou novo nessa coisa de sequestrador — tentei
brincar, porque, no final das contas, tudo tinha dado certo. Ou o mais certo
que poderia ser.
— Três dias, Murilo. É o que temos.
— Não, você não pode estar falando sério! — Levantei-me de um pulo,
irritado.
— Não estou dizendo que vou voltar para ele. Mas preciso encarar o
problema. Quero esses dias com você, porque acho que temos direito. Acho
que precisamos entender o que está acontecendo entre nós. Só que quero
voltar. E você tem uma filha!
— Você não precisa me lembrar disso. Minha mãe vai ficar com Raíssa e
vai trazê-la aqui amanhã para passarmos um tempo com ela, se você não se
importar.
— Claro que não me importo.
Alguns instantes de silêncio se interpuseram entre nós, então eu a vi
olhando os arredores.
— Este lugar é lindo. Como conseguiu? É alugado? Foi muito caro?
Posso...
— É meu — eu a interrompi antes que sentisse meu orgulho sendo ferido.
Era algo idiota da minha parte, sem dúvidas, mas ainda não queria que ela
soubesse sobre alguns detalhes da minha vida. No tempo certo, eu lhe
contaria.
A surpresa em seus olhos não me passou despercebida.
— É seu?
— Sim. — Estendi a mão para ela, que rapidamente a pegou. — Vou te
mostrar suas futuras instalações, senhora — falei com um tom canastrão e
com uma mesura, o que a fez sorrir.
Eu sabia que ela não estava inteiramente ali, que sua cabecinha navegava
em preocupações que não deveriam lhe pertencer. Donato não entrara em
muitos detalhes a respeito da chantagem que João Pedro fizera, mas eu sabia
que tinha a ver com algum escândalo da família. Fosse o que fosse, eles
teriam que encarar, porque eu não iria permitir que Amanda se casasse com
alguém que não queria para proteger pessoas que nunca cuidaram dela como
deveriam.
Fui apresentando o chalé para ela, com uma leve pontada de orgulho no
peito. Eu não era do tipo de homem que se vangloria por suas conquistas ou
seus feitos, mas era bom ver que Amanda estava impressionada com algo que
me pertencia, que eu tinha adquirido com meus esforços – afinal, ela era uma
garota que tinha tudo que o dinheiro podia comprar.
Todo o lugar tinha um aspecto rústico, amadeirado, mas era confortável,
com móveis de bom gosto, que eu encomendei escolhidos com a ajuda da
minha mãe, já que não entendia nada de decoração. No segundo andar havia
três quartos, sendo dois deles com banheiro. Havia uma cama imensa na suíte
principal, também com um aspecto de fazenda, mas a modernização vinha
pelo sistema de TV e áudio, já que uma das coisas que eu mais gostava era
me jogar em um lugar confortável para assistir a um filme, com uma boa
cerveja e alguma coisa gostosa para comer.
— Uau... esse lugar é mesmo lindo. Estou impressionada — Amanda
comentou e parecia sincera.
— Que bom. — Esfreguei as mãos nas calças, meio que me sentindo um
adolescente sem saber o que fazer. Amanda também não parecia muito à
vontade e, sinceramente, não era o que eu queria. Como ela tinha dito,
teríamos pouco tempo juntos, precisávamos aproveitar cada segundo.
Só que, antes que eu pudesse dar um passo na direção dela, eu a vi abrir os
braços, constrangida.
— Só não sei o que vou fazer em relação a roupas. Não posso ficar o
tempo todo com esse vestido.
Eu queria dizer que essa era a última coisa com a qual ela precisava se
preocupar, porque eu tinha intenções de deixá-la nua pelo máximo de tempo
possível, mas ainda não tínhamos estabelecido se aquele seria o tipo de
comportamento que teríamos nos três dias que viriam pela frente.
— Tem algumas coisas no quarto ao lado. Talvez sirvam em você e... —
Ela ergueu as sobrancelhas, e eu não compreendi. Especialmente quando
cruzou os braços contra o peito. — O que foi?
— Não vou usar roupas de alguma mulher que você trouxe para cá,
Murilo Alberto.
Qual era a coisa daquelas mulheres com meu nome composto?
Apesar de tudo, não pude conter um sorriso.
— Se você tivesse me deixado terminar de falar... — Dei um passo na
direção dela, colocando as mãos em seus braços. — São da minha mãe. Ela é
mais alta do que você, mas algum vestido deve servir.
Amanda corou, constrangida.
— Desculpa. Eu nem tenho o direito de sentir ciúme, né? Estava prestes a
me casar até algumas horas atrás.
Inclinei-me, tomando seu rosto com ambas as minhas mãos, e toquei seus
lábios com os meus. Tinha a intenção de dizer alguma coisa, qualquer merda
sobre deixar o resto do mundo do lado de fora daquele chalé e só pensar em
nós dois, ali dentro, mas... puta que pariu.
O que diabos acontecia com aquela boca que simplesmente me deixava
completamente intoxicado ao ponto de eu não conseguir pensar em mais
nada?
Mal me dei conta do momento em que as coisas ficaram mais intensas.
Quando percebi, nossas línguas mais pareciam em guerra de tão
desesperadas. Nossas respirações se tornaram cada vez mais altas, e eu a
segurava com força contra mim, agarrando-a como se disso dependesse a
minha vida.
Não sei qual de nós dois se afastou primeiro, mas quando o fizemos,
estávamos ambos ofegantes, e os olhares que trocávamos poderiam ter
incendiado o chalé inteiro. O que havia entre nós era quase sobrenatural. Era
como se um poder mais forte do que o destino nos atraísse, um magnetismo
mais intenso do que a gravidade.
— Acho melhor a gente ir com calma, né? — ela perguntou, passando as
mãos pelos cabelos, que estavam soltos, esticados e bem lisos, não pesados e
revoltos como sempre. Claro que ela os havia preparado para o casamento.
De alguma forma, o pensamento de bagunçá-los me proporcionou um revirar
de estômago gostoso.
Nós dois estávamos bagunçando tudo. Mas não foi sempre assim? Era o
mais perfeito em relação ao nosso relacionamento. Juntos éramos caos, mas
também perfeição.
— Depois do que eu acabei de fazer, você acha que algo entre nós é
calmo? — Ela deu uma risadinha, mas eu balancei a cabeça. — Mas tem
razão. Fique à vontade, vá tomar um banho, se quiser. Vou preparar algo para
comermos.
— Tem algo na despensa? Você pensou nisso?
— Trouxe umas coisas preciosas na caminhonete. — Sem resistir,
inclinei-me e a beijei novamente, mas daquela vez mantive o contato
realmente inocente. — Uma delas mais do que as outras.
Amanda suspirou, mas não demorou a se afastar para se trocar.
Depois de ser deixado sozinho, fui à caminhonete buscar as coisas e as
levei para a cozinha. Antes de começar a cozinhar, dei uma ligada para a
minha mãe, avisando que estávamos bem e perguntando como tinham ficado
as coisas depois que saímos.
— Pode apostar que vocês serão o comentário da cidade. Por décadas. O
que, de emocionante, acontece em José de Alencar? — Minha mãe
provavelmente estava dando de comer a Raíssa, porque eu ouvia a minha
bebê do outro lado da linha balbuciando e mastigando.
Por um momento pensei que estava fazendo uma loucura, porque sabia
que ia morrer de saudade dela. Desde que nascera não passei uma única noite
longe dela.
— Claro que eu saí como o vilão da história — comentei, apoiando-me na
bancada da cozinha.
— De jeito nenhum. Está todo mundo achando romântico. Todas as
garotas da cidade queriam ser a Amanda.
— São umas loucas, sem dúvidas. Mas seja como for, estamos bem.
Qualquer coisa me liga. E diga à Raíssa que o papai a ama, ok?
— Ela sabe. Amanhã passo aí com ela e levo mais algumas coisas para
vocês.
— Obrigada, mãe. Por tudo.
— Não tem que me agradecer. Eu quero que você seja feliz.
Sorri, porque sabia que era verdade. Aquela mulher sacrificara tudo por
mim e, depois, por sua neta. Era uma guerreira. E eu também queria que ela
fosse feliz.
Só que cada um escrevia sua própria história. Eu estava começando um
capítulo novo da minha e lutando para que ele me levasse a um “felizes para
sempre”. De uma forma um pouco torta, é claro. Mas nunca ninguém disse
que a felicidade era simples.
CAPÍTULO DEZENOVE
Meu. Deus.
Como era possível que as coisas tivessem dado uma reviravolta digna de
um filme Hollywoodiano?
Ok... uma novela mexicana era mais propício.
Ainda assim... Uau! Era emocionante, não era? E eu, provavelmente,
estava precisando de uma chacoalhada na minha vida para apagar as burradas
que eu vinha fazendo em combo. Não que pedir ao meu ex-namorado para
ser sequestrada no altar fosse algo muito inteligente, mas talvez, de fato,
tivesse sido a melhor ideia que eu poderia ter.
Enquanto tomava banho, tentava não pensar na expressão vingativa de
João Pedro. Sabia que ele não ia deixar barato. Que assim que eu voltasse,
depois dos três dias, sofreria retaliação. Isso se ele fosse mesmo cumprir a
palavra e não acabasse soltando coisas que não devia antes de conversarmos
como pessoas civilizadas.
Porque poderíamos fazer isso, não poderíamos? As coisas acabariam
terminando bem. Era no que eu precisava acreditar.
Voltei para a sala do lindo chalé para onde Murilo tinha me levado, ainda
surpresa com a beleza do lugar. Não era uma cabaninha simples no meio do
nada. Era uma propriedade digna de nota. Olhando para tudo aquilo foi que
me dei conta de que eu não sabia absolutamente mais nada sobre Murilo.
Quando saí de José de Alencar, ele era apenas um garoto no colegial, com
grandes ambições, mas com uma mãe que ralava como garçonete no bar do
Walter para pagar as contas com dificuldade. Eles moravam ainda na mesma
casa, porque pertencera aos avós de Murilo, que morreram quando ele ainda
era criança, deixando muito pouco dinheiro.
O que tinha acontecido no meio do caminho para que as coisas
prosperassem? Eu ficava muito feliz por saber que isso tinha acontecido, mas
também muito curiosa. Mal sabia o que ele fazia da vida.
Se pensasse bem... o que sabíamos um do outro? Não éramos mais o
Murilo e Amanda do passado, o tempo nos tornara pessoas diferentes. Mas,
aparentemente, em qualquer circunstância, com qualquer tipo de
personalidade, acabaríamos nos apaixonando um pelo outro.
Ou melhor... eu ainda não sabia se tinha a ver com paixão, amor... mas
atração... Pelo amor de Deus. Se com um beijo já mal conseguíamos nos
conter e respirar, não podia nem imaginar o que aconteceria quando...
Bem, provavelmente naqueles três dias eu tiraria a prova. Naquela noite!
Porque eu não iria perder tempo.
Quando cheguei ao primeiro andar do delicioso chalé, havia algo no forno
que cheirava muito bem, mas Murilo não estava por perto. Fui na pontinha do
pé, clandestina, até lá, para tentar abri-lo e ver o que teríamos para comer,
porque estava morrendo de fome, mas dois braços fortes me agarraram por
trás, puxando-me para longe, o que me fez rir.
— Pega no flagra — brinquei e fui girada em seus braços, ficando frente a
frente com Murilo.
Deus, como ele estava bonito. Eu nunca me cansaria de dizer e de
perceber isso. Tudo em Murilo inspirava masculinidade e rudeza, como um
diamante bruto, mas que não precisava ser nada lapidado. Os maxilares
fortes, cobertos por uma barba bem feita, os olhos castanhos pequenos e
expressivos, a boca desenhada, mas não muito carnuda, o que poderia lhe dar
um ar menos másculo. Seus cabelos curtos, espetados, pareciam veludo
quando se passava a mão. Isso sem contar todo o resto; o corpo esculpido de
ombros largos, peitoral amplo, braços musculosos, a altura imponente. O
único detalhe que suavizava suas feições era a covinha. E lá estava ela,
porque ele sorria para mim.
— Você sempre foi uma coisinha impaciente, não é, Mandioca?
Fiz uma careta para nosso apelido de infância.
— É, sim, Muriçoca. — Lembro-me de que, na época, eu queria tanto
encontrar uma palavra que tivesse o som do nome dele, mas que pudesse ser
um apelido bobo, só entre nós, que peguei o dicionário do meu avô e levei
uma tarde pesquisando. Achei que um tipo de mosquito seria uma boa
resposta ao Mandioca, que, na época, com dez anos de idade, achei péssimo.
Naquele momento, a nostalgia bateu tão fundo que eu passei a achá-lo
lindo.
Passei meus braços ao redor de sua cintura estreita, espalmando minhas
mãos nas costas musculosas e erguendo minha cabeça para olhá-lo.
— Eu senti sua falta — sussurrei, olhando em seus olhos, falando com
todo o meu coração.
— Eu também. — Murilo novamente se inclinou para um beijo, mas se
afastou rápido demais, recuando e demonstrando uma expressão brincalhona.
— Mas deixe de ser enxerida e saia pela porta dos fundos. Preparei uma
coisinha para nós.
Ergui uma sobrancelha, provocadora, mas acatei. Quando já estava na
porta, pronta para abri-la e sair, ouvi sua voz me chamando e me virei para
ele, que disse, em um tom zombeteiro:
— Esse vestido ficou uma gracinha em você.
Não tinha ficado. Não era uma peça feia em si, mas estava enorme, porque
Sílvia era realmente mais alta e mais curvilínea. Sobrava tecido por todas as
partes, e eu provavelmente era a coisa menos sexy que Murilo já vira na vida,
mas não me importei. Esse era o nível de intimidade que tínhamos.
Mas se ele podia me provocar, eu também tinha esse dom.
— Se não gostou, você pode tirá-lo em algum momento — ao dizer isso,
com um sorriso malicioso, finalmente saí, ainda rindo e feliz por ter sido a
dona da última palavra.
Só que meu sorriso desapareceu rapidamente no momento em que
contemplei o que havia à minha frente.
Se eu já tinha achado a casa assombrosamente bonita, naquele momento
meu coração chegou a afundar no peito. Havia um enorme terreno atrás, um
quintal bem capinado e cuidado, com um lago rodeado por pedras e
bromélias em tons vivos, que proporcionavam um colorido de encher os
olhos.
Em frente ao lago, havia uma mesinha, coberta por um guarda sol, já posta
com pratos e copos.
Meu coração afundou um pouquinho mais no peito.
Eu estava no lugar mais lindo e romântico possível, com meu primeiro
amor. Por mais que tudo estivesse desmoronando lá fora, no mundo que
deixamos para trás, eu não conseguia me lembrar de um momento recente em
que fui mais feliz.
— Gostou? — Mal sei quanto tempo fiquei ali parada, admirando a
paisagem, até que a voz de Murilo me chamou a atenção. Quando me virei
para ele, eu o vi com uma enorme travessa nas mãos calçadas com luvas.
Havia muito queijo derretido borbulhando, e o cheiro era maravilhoso.
— Amei. Mas amei isso aí também. O que é?
Murilo pousou a travessa sobre a mesa.
— Bem, eu saí pegando coisas na despensa da minha casa, porque não
tive muito tempo para pensar em estratégias. Então é uma lasanha
improvisada de pão de forma com muito queijo, presunto e alguns pedaços de
calabresa. Não é uma iguaria parisiense, senhorita, mas acho que vai nos
alimentar.
— Eu achei maravilhoso — respondi com um sorriso largo, sabendo que
comeria até jiló ao lado daquele homem, naquele lugar.
E olha que eu odiava jiló.
O dia estava lindo, céu azul sobre nossas cabeças, e uma brisa tímida
beijava as águas do lago, provocando um som calmante que se misturava à
nossa conversa e aos ruídos que fazíamos enquanto comíamos.
— É sério que a sua mãe ainda não deu uma chance ao Walter? Ela não
percebeu que ele ainda gosta dela? — comentei de forma leve, enquanto
levava uma garfada à boca. Aquela era a refeição mais simples e mais gostosa
que eu comia em anos.
Murilo balançou a cabeça com veemência, levando o guardanapo à boca,
limpando-a.
— Se ele não tomar uma atitude de verdade, vai perder. Ela estava falando
sobre se cadastrar no Tinder esses dias.
Quase cuspi a comida que tinha na boca com aquela informação.
— Meu Deus... acho que eu nem saberia diferenciar o Tinder de outro
aplicativo qualquer. Nunca nem abri.
Aquilo pareceu surpreender Murilo.
— Jura? Solteira e na cidade grande? — Dei de ombros. Não era grande
coisa. Tinha meus motivos e sabia que ia acabar falando mais do que deveria.
— Por quê?
Ergui uma sobrancelha, pousando meu garfo e faca no prato, como a regra
da etiqueta pedia. Minha mãe sempre foi tão obcecada com isso que eu não
conseguia relaxar nem mesmo na presença de uma pessoa que estava pouco
se lixando para tal.
— Tem certeza de que você nem imagina, Murilo? — Ele pareceu
confuso. — Antes de João Pedro você foi o único homem da minha vida, em
todos os sentidos.
Seus ombros largos caíram, como se um peso enorme tivesse sido tirado
deles. Ou como se a informação fosse surpreendente o suficiente para deixá-
lo sem ação – o que eu tomava mais como certo.
Enquanto eu me enchia de constrangimento pela confissão, Murilo me
olhava como se eu fosse a coisa mais linda que acabara de pousar na sua
frente. Era um tipo de olhar que costumava me consumir, porque ele era
perito nele. Sempre provou seu amor por mim sem precisar de palavras ou de
grandes gestos. Eu sabia só de observá-lo.
Assim como soube naquele momento. Ele ainda me amava.
O sentimento poderia estar adormecido dentro daquele peito enorme e do
coração maior ainda, mas começava a despertar lentamente.
Eu sentia a mesma coisa.
Estendendo a mão na minha direção, com um sorriso preguiçoso, ele
chamou:
— Vem cá — foi um som tão doce, mesmo proferido por uma voz tão
masculina, profunda e rouca, que eu me sentiria compelida para fazer
qualquer coisa que pedisse.
Quando me aproximei, ele me puxou para seu colo, fazendo-me sentar
sobre uma de suas coxas, e eu fui beijada, o que corroborou para que eu
compreendesse que sim... o sentimento dentro de mim estava realmente
voltando à vida, e isso deveria me assustar, mas apenas me trazia um alívio
que eu mal sabia explicar.
CAPÍTULO VINTE
Uma vez me disseram que não existe forma mais sublime de se encontrar
o prazer quando se tem um sentimento tão profundo envolvido. Ou talvez eu
tenha lido em um livro de romance bem meloso, não importava. Na época, eu
já estava longe de Murilo e sabia muito bem que essa frase era real. Meu
íntimo dizia que não importava o quanto acabasse me apaixonando dali para
frente, não conseguiria me entregar cem por cento.
E isso não quer dizer que não se possa amar duas vezes. Claro que sim.
Mas eu não queria amar outra pessoa. Meu coração ainda estava ligado às
lembranças de um passado do qual eu não tinha absolutamente nada a
reclamar. O qual me proporcionava apenas borboletas no estômago e uma
saudade indescritível.
Não consegui conter uma risada, enquanto Murilo me descia para o chão
com uma delicadeza comovente.
— Eu deveria me sentir ofendido porque você está rindo depois de
fazermos sexo? — ele provocou com um daqueles sorrisos de canto
irresistíveis.
— Não. Mas... isso aqui conta como um lugar público? — fiz a pergunta
do nada, e Murilo pareceu um pouco confuso.
— Teoricamente, sim. Por quê?
Novamente não pude conter a risada.
— Eu estava conversando com umas meninas outro dia, brincando de EU
NUNCA, e fui a única que respondi que já fiz sexo em um local público. Na
escola, lembra?
— Como iria me esquecer? Nós éramos dois coelhos — Murilo respondeu
com a voz mais sexy do mundo, apertando minha bunda e tirando meus pés
do chão, dentro da água, só para me dar mais um beijo.
— Acho que agora tenho mais um local para acrescentar à lista.
— Posso contribuir um pouco mais para ela no futuro. — Uma gargalhada
minha foi interrompida por um vento um pouco mais frio que me fez
estremecer.
Murilo ergueu uma mão, pedindo que eu aguardasse um pouco. Então ele
foi saindo do lago, completamente nu, e eu mal consegui tirar meus olhos de
sua bunda perfeita, conforme seu corpo ia se revelando acima da superfície
da água. Sua silhueta era de dar água na boca, e um lado meu que estava
adormecido há muito tempo queria simplesmente pular em cima dele e pedir
mais alguns orgasmos como aqueles que tinha me dado minutos atrás.
Eu o observei vestir a calça jeans que deixara caída sobre as pedras,
virando-se para mim e fazendo um sinal para ir até ele. Corri o máximo que
minhas pernas conseguiam fazer dentro d’água, e ele me enrolou em sua
grossa blusa de flanela, como se eu fosse um pacotinho. Ainda assim eu
tremia, mas me sentia mais feliz do que nunca.
Agarrado a mim, tentando me esquentar, Murilo me conduziu até o chalé,
onde entramos e fomos tomar banho.
Comemos algo leve, até porque não tínhamos muitas opções, e nos
sentamos no sofá de couro, aninhados, com nossas mãos brincando uma com
a outra. Tanto meus olhos quanto os de Murilo estavam fixos nelas, com suas
diferenças ridículas de tamanho. Era algo bobo, mas eu sentia novamente
toda a intimidade que sempre compartilhamos. Murilo era como voltar ao lar
para mim. Era como revisitar um lugar muito querido e ser golpeada por toda
a nostalgia acumulada por tanto tempo.
Não precisávamos de palavras. Não precisávamos de provas de nossa
conexão. Era nos pequenos detalhes que a sentíamos.
Acordamos tarde no dia seguinte, depois de novamente fazermos amor de
madrugada, com alguém buzinando. Pulei da cama assustada, com medo de
que fosse João Pedro, que tinha mudado de ideia indo me buscar, mas Murilo
riu, como se soubesse a verdade.
Ele se levantou completamente nu, vestindo uma bermuda e a camisa que
estavam no chão, lançando-me o vestido de sua mãe que usei no dia anterior.
Saiu do quarto primeiro, e eu ouvi uma risadinha de bebê que me aqueceu o
coração.
Bem, a cena em si não provocou um sentimento muito diferente. Murilo
era um homem grande, másculo e com uma aparência quase bruta, mas a
delicadeza com que pegava e aninhava sua bebezinha em seus braços
enormes era tão comovente que meu útero chegou a coçar.
(Não me julguem. Os de vocês coçaram também só de eu falar isso.)
Então ele voltou seus olhos para mim, com aquela coisinha fofa no colo,
que parecia endeusá-lo – e como não endeusaria? Ele deveria ser o herói dela
–, e eu me derreti. Não apenas porque era lindo ver um pai tão apaixonado
por sua filhinha, mas porque a forma como ele me olhou fez com que me
sentisse parte daquele momento. Murilo me convidou, com um gesto de
cabeça, para me juntar a eles, o que eu não faria caso contrário.
Eu não era parte deles. Perdi esse direito quando fui embora anos atrás, e
era doloroso pensar que aquela menininha poderia ser minha e de Murilo.
Que poderia ser a nossa família.
Ainda assim, atendi ao seu chamado, e ele usou o outro braço para me
puxar para si, beijando o topo da minha cabeça.
— É tão bom ver vocês assim — Sílvia comentou. — Bem-vinda de volta,
querida.
Será que eu estava mesmo de volta? Será que poderia estar? Por que,
então, sentia, dentro de mim, um incômodo, como se João Pedro fosse fazer
de tudo para estragar aquele momento? Eu não podia esquecer que estávamos
ali como clandestinos, roubando momentos da realidade.
Passamos a tarde juntos, os quatro, e Sílvia levou coisas deliciosas para
comermos, entre frutas, pães, frios, além de ingredientes para fazer um bolo,
que ficou com uma aparência maravilhosa, mas que deixaríamos para comer
de noite.
Quando eu e ela estávamos lavando a louça, longe de Murilo, que fora
para o quintal com Raíssa, ouvi seu comentário:
— Encontrei seu noivo quando estava no mercado ontem, sabe? Deixei
Raíssa com seu avô e fui comprar as coisas para vocês.
João Pedro em um mercado? Isso era estranho demais.
— O que ele estava fazendo lá? Te incomodou? — perguntei, preocupada.
— Não, foi até educado. Disse que estava comprando algo de higiene, não
sei o quê, e reclamou da pensão da Maria. — Sílvia fez uma cara de nojo e
desdém, o que João Pedro realmente merecia por ser tão esnobe. — Foi
estranho, porque ele apareceu um pouco silencioso, enquanto eu estava
falando com o Murilo no telefone. Até me assustei, achando que poderia ser
hostil, mas perguntou de você, se eu sabia se estava bem.
Era estranho.
Não, não era estranho. Era bizarro. João Pedro não era do tipo de pessoa
que socializaria com a mãe do homem que arrancara sua noiva do altar antes
que ela pudesse se tornar sua esposa, especialmente se chegara a me
chantagear para ir em frente com o casamento.
— Acho que deveríamos comentar isso com Murilo — soltei, dando uma
olhada para ele de soslaio, que nem prestava atenção em nós, de tão entretido
com a pequena.
— Não. Não vá estragar esses dias que vocês estão tendo. Não foi nada,
de verdade. Ele provavelmente só queria sondar. Foi até educado, juro.
Mas ainda não consegui ficar calma, tanto que mesmo mais tarde, depois
de Sílvia ir embora com Raíssa, já adormecida após um dia de brincadeiras
onde dei o meu melhor para não transparecer minha preocupação, esperei que
Murilo tomasse banho, sentada no sofá, olhando para o nada, sentindo meus
ombros tensos.
Claro que não passou despercebido pelo meu companheiro, que logo veio
se sentar perto de mim e me abraçou, puxando-me contra seu peito depois de
pousar um pedaço de bolo, em um prato, sobre a mesinha de centro.
— No que está pensando, Mandioquinha? — Não pude deixar de rir com
o apelido.
Sílvia tinha me pedido para não contar nada a Murilo, e eu sabia que ele
ficaria estressado e que poderia arruinar nossa noite, mas não queria lhe
esconder nada. Não era justo depois de tudo pelo que passamos.
— Sua mãe esbarrou com João Pedro no mercado. Achei um pouco
estranho, mas não quero ficar pensando nisso.
Murilo se remexeu no sofá, incomodado.
— Como assim? Ele falou algo para ela? Foi grosseiro? — O vinco em
sua testa surgiu, profundo, fazendo-me arrepender imediatamente de ter
tocado no assunto.
— Não. Sua mãe mesmo falou que não.
— Então por que você parece tão tensa? — Suas mãos foram parar nos
meus ombros, massageando-os, e eu respirei fundo.
Era melhor não ficar incentivando o assunto, porque provavelmente não
havia nada de mais no encontro. Deveria ser só a minha consciência pesada
falando. Para aliviar a tensão, inclinei-me e peguei o bolo, pronta para provar
um pedaço.
— Acho que foi só a menção do nome dele. Mas não quero mencioná-lo
mais. — Peguei uma garfada do bolo, levando-a à boca. — Sabe o que eu
acho? — Peguei mais um pedaço de bolo e o coloquei bem na curva do
pescoço dele, comendo-o exatamente de lá, tomando cuidado para passar a
língua em sua pele e soltar um murmúrio de aprovação.
Com um sorriso provocador, felizmente esquecendo o problema, Murilo
deixou o prato na minha mão, mas me tirou do sofá em seus braços.
— Então acho que podemos ir para a cama, mocinha. E vamos levar esse
bolo.
— Uma ótima ideia.
Jurei que enquanto estivesse com Murilo, não iria mais pensar em nada de
ruim. Eram nossos dias. Nada poderia atrapalhá-los.
Ou eu pensei que seria assim...
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Um leão enjaulado, era como eu me sentia. Não era certo eu estar dentro
daquela merda de cela enquanto o verdadeiro criminoso continuava solto,
próximo de Amanda, pronto para lhe fazer mal.
Porra, se ele encostasse um único dedo nela...
Só de pensar nisso, já senti novamente uma onda de raiva e agarrei duas
barras da cela, desejando conseguir quebrá-las com meus próprios punhos.
— Carlos! — chamei, e ele olhou na minha direção. — Porra, Carlos,
você me conhece desde menino!
— Conheço. E sei o quanto você ama aquela garota. A gente faz coisas
bobas por amor, filho.
— Mas não sem o consentimento dela. — Odiava revelar o segredo
daquela forma, ter que contar a verdade sobre o sequestro sem a permissão de
Amanda, mas imaginava que ela não me deixaria ficar preso caso tivesse
algum papel naquela história.
— Garoto, sem a palavra da moça, eu não posso fazer nada. Tem uma
queixa e...
— A queixa de um homem que tentou matá-la! — gritei em um tom
gutural que chegou a fazer o outro oficial, que estava na outra mesa,
sobressaltar-se. — Você poderia, pelo menos, enviar alguém para ficar de
olho nela no hospital. — Ele olhou para mim, ponderando, e eu decidi tentar
ser um pouco mais paciente, ao menos externamente. — Por favor, Carlos.
Ela pode estar realmente em perigo.
— O noivo parecia bem apaixonado, Murilo. Preocupado. Provavelmente
foi um acidente e...
— Acidente porra nenhuma! — berrei de novo, sentindo-me fora de mim.
Algo me dizia que poderíamos estar perdendo tempo ali. Um sexto sentido,
fosse o que fosse.
— Eu tenho um respeito grande por você e pela sua mãe, garoto, mas se
continuar causando desordem dessa forma, não vou nem te ouvir. — Carlos
sempre foi uma figura paterna para mim, assim como Dodô, só que eu sabia
que estava mesmo passando dos limites.
— Desculpa. Estou exaltado, mas é por um motivo. Por favor, envie
alguém para o hospital e...
— Nem precisa — fui interrompido pela voz familiar do meu melhor
amigo, Afonso, que chegava na delegacia com a minha mãe. Esta, com a
maior cara de enfezada do mundo, o que teria me feito rir se a situação não
fosse tão séria. — Acabei de sair de lá, e ela não está mais. Sílvia foi me
procurar.
— Como assim ela não está mais lá? — indaguei, com o coração
acelerando no peito, enquanto Afonso tirava as chaves de dentro do bolso
para abrir a cela onde eu estava preso.
— Ela assinou responsabilidade pela alta, e o babaca a levou. — A cela se
abriu, e eu praticamente pulei de dentro dela.
— Afonso, eu não autorizei a soltura do prisioneiro — Carlos falou,
tentando manter a autoridade, levantando-se.
— Pai, eu sou testemunha de que foi Amanda quem planejou todo o
sequestro — era mentira, eu sabia, mas Afonso estava provando mais uma
vez o quão meu amigo era. — E também estou muito preocupado com ela,
aliás.
— Irresponsabilidade, é assim que se chama — minha mãe começou a
tentar se meter, e eu coloquei a mão em seu ombro, esperando que não
piorasse as coisas. — A uma hora dessas o almofadinha já levou Amanda
para a pensão. Sabe lá Deus o que ele pode fazer com ela. Isso se não levá-la
para o Rio e...
Puta que pariu! Sim, D. Sílvia estava piorando a situação, mas a minha,
porque eu estava começando a ficar ainda mais nervoso.
Sem nem precisar de um pedido, Afonso fez um sinal para mim, para que
saíssemos. Minha mãe vinha atrás de nós, mas eu a impedi.
— Não quero ter que me preocupar com a senhora também. Fique aqui na
delegacia, assim que eu tiver notícias te aviso. Ou vá para casa.
— Se for para casa, Dodô vai ficar sabendo de tudo, e eu não quero que se
emocione. Vou para o Walter. Vou tomar uma porcaria de uma cerveja,
porque não vou aguentar isso tudo sóbria.
Balancei a cabeça, assentindo, e segui Afonso, entrando no carro dele.
Partimos imediatamente para a pensão da Maria – graças a Deus a única
hospedagem da cidade inteira ou ainda teríamos que procurar –, no máximo
de velocidade que as ruas de José de Alencar permitiam. Durante todo o
tempo, minhas mãos se mantinham cerradas em punhos, enquanto eu tentava
me controlar para não descontar a raiva e o nervosismo nas pessoas erradas.
Só havia um culpado naquela história. E eu ia pegá-lo antes que sequer
tocasse em Amanda para machucá-la de novo.
A pensão da Maria, de fato, não era um hotel cinco estrelas, mas era um
ambiente limpo, familiar, com comida boa e quartos decentes. Naquele
momento, odiei o estabelecimento com todas as minhas forças, porque sabia
que aquele filho da puta estava hospedado ali.
— Ei, Rosa! — Afonso, muito mais controlado do que eu, chegou
cumprimentando a recepcionista. — Aquele cara lá da cidade grande está
hospedado aqui? João Pedro o nome do sujeito.
— Ele chegou quase agora com a Amanda. Ela não parecia muito bem
não, porque ele tava com ela no colo. Avisou por telefone que um homem do
cartório ia chegar, pediu que eu o deixasse subir sem nem precisar avisar — a
garota saiu falando, sem filtro.
— Filho da puta! — exclamei, consternado.
— Rosa, é ordem de polícia, você precisa nos informar em qual quarto ele
está hospedado — Afonso disse, em tom de comando, embora ele não
pudesse, sem um mandado, exigir informações assim. Mas a moça não sabia,
é claro, e se tratava de uma emergência.
— Q-quarto 6.
No momento em que ela falou, titubeando, nem esperei por nada, apenas
saí correndo em direção às escadas, subindo os degraus de dois em dois,
enfurecido.
Amanda não estava bem, Rosa falou. O que ele poderia estar fazendo com
ela? O tabelião fora comprado, sem dúvidas, e ele a obrigaria a assinar a
certidão de casamento, era o que eu imaginava. Ela se tornaria sua esposa,
refém de suas chantagens e de sua ambição.
Mas eu não ia deixar.
Poderia ter batido na porta, fingindo ser o tabelião, mas enfiei a porra do
pé na madeira, arrombando-a. Era um negócio velho, que devia ter uns
cinquenta anos de idade, assim como toda a casa, então cedeu no primeiro
chute.
— Mas que porra é essa? — o tal de João Pedro exclamou, e eu logo vi
Amanda sentada numa cadeira, amarrada e amordaçada, com os olhos
cansados e débeis, provavelmente ainda grogue dos remédios.
Como um animal, parti para cima do desgraçado, dando-lhe um soco na
cara. Um daqueles que se dá com toda a fúria, que nos faz ouvir os ossos do
outro estalando sem piedade. Seu rosto ainda estava marcado do meu golpe
anterior, e seria legal vê-lo novamente marcado pela minha raiva.
Agarrei-o pela gola da camisa e o puxei do chão, imprensando-o na
parede.
— O que pensa que estava fazendo com ela? Que porra ia fazer com ela?
— repeti, mais alto, mais grave, tentando soar mais assustador.
— Uma esposa rica e morta vale mais do que... — Nem o deixei terminar.
Outro soco o levou ao chão, e eu poderia jurar que ele não esperava que o
homem que estava comigo, à paisana, fosse um policial, ou não teria dito
isso. Tanto que sua expressão de confusão, quando começou a ser algemado e
a ouvir seus direitos, foi de puro desespero.
— Não! Isso é ridículo! Vocês estão prendendo o homem errado. Foi esse
brutamonte que seqüestrou a minha noiva! Ele é o criminoso! — Afonso
levantou-o do chão, já com as algemas. Eu sabia que ele não iria sair daquele
quarto sem um escândalo. — Ele me agrediu. Quero prestar queixa por isso!
— Eu vi tudo. Foi legítima defesa — Afonso falou em um tom irônico
que poderia ter me feito rir em qualquer outro ambiente.
— Abuso de poder! Seu...
— Olha! — meu amigo o impediu, novamente de zombaria. — Se xingar
uma autoridade, sua situação pode se complicar!
Enquanto João Pedro era tirado do quarto, aos berros, outra figura surgiu:
Maria, e ela parecia muito contrariada. Como já imaginava que mais
confusão aconteceria, comecei a desamarrar Amanda, que parecia pálida e
pronta para desabar a qualquer momento.
— Você está bem? — perguntei assim que tirei a mordaça.
— Só muito cansada.
Claro. Depois de tudo pelo que passou...
— Ainda bem que é você, Murilo, que sei que tem dinheiro para pagar por
essa porta quebrada — Maria falou em um tom ranzinza, e eu vi Amanda
olhando para mim, confusa.
É, eu ainda não tinha contado para ela sobre o que eu fazia para viver.
— Rosa me contou por alto algumas coisas, e eu estou concluindo outras
— ela falou, olhando para Amanda, enquanto eu ainda lutava contra os nós
que a prendiam. — Tem um homem lá embaixo querendo subir, mas não vou
deixar, não. Vou avisar à delegacia se ele resolver me trazer problemas.
Vocês sabem que não gosto de confusão na minha pensão — disse, severa.
— Sei, Maria, me perdoa. É que... — fui falando, terminando minha
tarefa, e Maria me olhou com compaixão.
— Não você, menino. Você seria incapaz de começar algo desse tipo. Foi
aquele sujeito da cidade, que não pertence a este lugar. Conheço um
encrenqueiro de longe, e aquele cheiro de perfume caro dele não me enganou.
— Maria estendeu uma chave, mostrando-a para nós. — Venha, garoto, traga
a menina para outro quarto e a deixe descansar, por conta da casa. O avô dela
ia ficar louco se a visse chegando assim em casa e não queremos Dodô em
um hospital outra vez.
Suspirei, agradecido, pensando que aquelas horas pareciam não terminar
nunca. Ajudei Amanda a se levantar, mas ela cambaleou, e eu a peguei nos
braços com cuidado, sentindo-a encostar a cabeça no meu peito. Vulnerável e
assustada. Era uma covardia pensar no que aquele demônio pretendia fazer
com ela.
Acompanhei Maria até o quarto ao lado, o cinco, e entrei. Ainda com
Amanda no colo, voltei-me para a dona do lugar, com uma expressão
empática.
— Obrigado — foi tudo o que consegui dizer.
— Fiquem à vontade. Cuide dela. Se quiserem comer, é só falar. Mas aí
não vai ser por conta da casa. Você tem dinheiro suficiente para pagar uma
refeição para a sua garota.
Não pude deixar de sorrir e assentir.
Minha garota. Soava bem.
Maria fechou a porta, deixando a chave na fechadura, por dentro, para se
quiséssemos usá-la, mas eu deixei Amanda na cama primeiro, com cuidado,
para realmente voltar e trancar a porta para nos dar privacidade.
— Fica comigo — Amanda pediu com uma voz suave e frágil, porque eu
sabia que seria apenas uma questão de minutos para que pegasse no sono.
Estava exausta e cheia de remédios na veia. Não era de se assustar, mas vê-la
daquele jeito causou um aperto no meu coração.
Parti para a cama, tirando os sapatos e deitando-me atrás dela. Nós dois
estávamos com as mesmas roupas de quando saímos do chalé, então, quando
a puxei para os meus braços, aconchegando-a em mim, tentei colocar na
minha cabeça que fora apenas um pesadelo. Eu tinha que ligar para a minha
mãe, mas faria isso quando Amanda dormisse.
— Está tudo bem, amor — sussurrei para ela, beijando sua cabeça, no
momento em que a senti estremecer. — Pode descansar, estou aqui. Nada
mais vai te acontecer.
— Eu sei... Se não fosse por você...
Depois de dizer isso, ela pegou no sono pesadamente, e por mais que eu
soubesse que tinha várias coisas a fazer, acabei tendo o mesmo destino,
porque estava exausto e aliviado de que, no final das contas, tudo tinha ficado
bem.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
UM ANO DEPOIS
FIM