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SERENA.
Ensino Médio.
A melhor fase da vida para a maioria das pessoas. É literalmente o
fim da vida fácil e descontraída dos adolescentes; os últimos três anos antes
da faculdade e, eventualmente, da vida adulta.
É por isso que devemos desfrutá-la da melhor maneira possível,
correto?
Errado.
Bem, pelo menos para mim. Minha vida era resumida a dias
consecutivos trancafiada em casa, fitando estupidamente o teto enquanto as
demais garotas da minha idade estavam por aí, se divertindo. E tudo isso se
dava graças às regras bizarras do meu pai. Ele era uma dessas pessoas
extremamente antiquadas e conservadoras que acreditava veemente que
devemos ter cautela e viver pacientemente, respeitando as “etapas da vida”.
E foi tendo esse pensamento abominável em mente, que ele
estipulou a regra: "se Astrid não for, você não vai" – o que inferia, em
outras palavras, que eu não poderia fazer absolutamente nada sem a
presença da minha irmã.
Festas? Nem pensar.
Encontros? Definitivamente não.
Qualquer interação humana fora da escola?
Absolutamente fora de cogitação.
Quanto a isso, me permita explicar melhor: Astrid Spencer, a minha
"adorável" irmã mais velha, era uma megera. E não no sentido figurativo;
literalmente. Ela inclusive ganhou esse apelido devido a sua personalidade
difícil e rabugenta, justificando o fato de quase nunca sair de casa e,
consequentemente, de me impossibilitar de desfrutar das festividades da
vida adolescente.
Se fosse para depender da presença da minha irmã para alguma
coisa, eu morreria sozinha e ainda por cima, em cárcere privado.
Uma peculiaridade a meu respeito, é que nunca fui a filha
inteligente. O status de "cérebro" da família se dava exclusivamente para
Astrid, quem vivia enfurnada no quarto, lendo algum dos milhares de livros
que abrigava lá; contudo, apesar de não ser tão inteligente quanto minha
querida irmãzinha, eu tinha a beleza e o carisma que lhe faltavam além de,
regularmente, ter ideias que surpreendiam até a mim mesma, tamanha a
genialidade delas; e foi exatamente o que aconteceu certa vez, quando tive a
melhor ideia de todas.
Tudo começou em um dia qualquer com aulas – insuportáveis – de
uma quinta-feira comum. Eu estava especificamente na aula entediante de
literatura inglesa, mascando um chiclete na tentativa frustrante de não
sucumbir ao sono – como boa parte da turma estava fazendo – quando de
repente, a Senhorita Brooke passou um de seus fúnebres e detestáveis
trabalhos mensais – que se baseava, em suma, a fazer uma leitura, análise e
interpretação de um livro qualquer, desde que o mesmo que tivesse autoria
inglesa.
E foi exatamente isso o que fiz ao chegar em casa.
Ao invés de me enfiar em uma biblioteca como boa parte dos meus
colegas de classe, fui mais prática: fiz minha busca em uma espécie de
biblioteca particular, o que significava que, em outras palavras, resolvi
vasculhar o quarto da minha irmã mais velha, que, por sinal, era quase uma
biblioteca.
A questão foi que, ao buscar por qualquer livro que tivesse o nome
de William Shakespeare na capa – já que a senhorita Brooke tinha uma
obsessão inexplicável por ele –, acabei me deparando com um título
aparentemente fútil, que, posteriormente se tornaria o fator X do meu plano;
era o livro "A Megera Domada''.
A princípio, após folhear rapidamente as páginas do tal livro,
concluí que o mesmo era igualmente entediante a todos os demais livros
que eu já havia lido anteriormente – e com ler, quero dizer folhear;
diferentemente de minha irmã, eu passava bem longe de ser o que se podia
chamar de leitora voraz.
Comecei a fazer a redação, dando uma conferida no Google em
busca de um resumo da obra – tendo em mente que mais alguns minutos
lendo aquilo e eu cairia em sono profundo – quando, repentinamente, o
impensável aconteceu: notei que a narrativa do livro era bizarramente
semelhante a minha vida.
Para o meu espanto, uma das personagens, descrita como Bianca
Minola, era ridiculamente parecida comigo, e sua irmã, descrita como Kate,
assemelhava-se muito a minha irmã. Na peça, a filha caçula de Baptista
Minola, (Bianca) possuía vários admiradores, mas Baptista se recusava a
permitir que ela se casasse até que sua filha Kate encontrasse um marido e
blá blá blá. Moral da história: a garota bonita – Bianca – tinha semelhança
praticamente absoluta comigo, incluindo o fato de ter uma irmã má vista,
assim como eu.
Fechei a tampa do notebook bruscamente, formulando em minha
cabeça, aquilo que ocasionaria a minha liberdade: só precisava achar um
cara aleatório para sair com a charlatona da minha irmã e então, bingo:
minha tão almejada liberdade adolescente.
Passei a semana seguinte inteira buscando o Petruchio ideal para o
meu plano, mas, para a minha consternação, ninguém concordava em sair
com a megera de Lester Ville, porque, apesar do rostinho bonito, com uma
única palavra ela conseguia espantar quem quer que fosse.
Após incontáveis tentativas frustrantes de encontrar alguém decente,
o destino ironicamente me levou até Jacob Davies, o famoso delinquente de
Lester Ville. Apesar da beleza notória, Jacob era um daqueles sujeitos com
os quais não se deve brincar. Especulavam-se diversos boatos sobre ele,
especificamente sobre seu caráter duvidoso e a natureza extremamente
impulsiva, o que acarretava em brigas e mais brigas que, unidas a seus
incontáveis delitos, justificavam a péssima reputação que obtinha. De toda
forma, apesar dos diversos boatos, ninguém sabia muito sobre a vida
particular de Jacob. Tudo o que se sabia dele é que morava na parte feia da
cidade – a periferia, em outras palavras – e que vivia com o pai, que,
adivinhe só: estava no xadrez. E, foi justamente devido a situação de seu
pai, que pude chegar à conclusão de que Jacob Davies poderia sim, ser o
meu Petruchio.
Foi surpreendentemente fácil convencê-lo a compactuar com meu
plano. Como imaginado, Jacob era uma daquelas pessoas fáceis de
comprar: bastou que lhe mostrasse a quantia generosa que seria ofertada,
para que concordasse – o sujeito era realmente muito maleável.
Depois de combinar os termos do nosso “acordo”, fui para casa com
um sorriso imenso no rosto, certa de que, finalmente, poderia me ver livre
das amarras da minha entediante irmã mais velha.
Agora, o que me restava a fazer era torcer para que minha irmã não
estragasse tudo com seu mau hábito de ser uma pessoa insuportável, e que
cedesse aos encantos daquele delinquente indiscutivelmente atraente.
01.
ASTRID.
JACOB.
“Os olhos são as janelas para a alma”, já dizia meu caro amigo,
Edgar Allan Poe.
E, considerando a forma como a lourinha diante de mim me olhava
– como se pudesse arrancar meu couro fora – pude ter certeza de que o Poe
foi um verdadeiro gênio em vida.
Que Deus o tivesse.
Quando Serena Spencer – a intitulada "Rainha da Beleza de Lester
Ville” – veio à minha procura na semana passada, mal acreditei; e o que
veio em seguida foi ainda mais bizarro: a Barbie psicótica queria que eu
descolasse alguns encontros com a irmã dela em troca de uma grana
respeitável, e eu, sendo o sujeito inteligente e assumidamente capitalista
que era, nem pensei duas vezes antes de aceitar aquela quantia generosa.
Quer dizer, cem pratas só para levar uma garota para sair?
Moleza.
Ou pelo menos era o que eu pensava, até conhecer a peça.
— Posso saber o que diabos você está fazendo aqui? — disparou a
lourinha diante de mim, cuja expressão era digna de uma Lady Killer
prestes a entrar em ação e executar alguém.
— Como assim? — indaguei, fingindo inocência. — Já expliquei:
quero a sua ajuda para escolher um livro.
Os olhos dela se estreitaram ainda mais, ao mesmo tempo que seus
braços eram cruzados sob o peito, chamando a minha atenção para o decote
inexistente de sua blusa – uma pena, porque aquela garota definitivamente
tinha belos seios.
— Pessoas como você não frequentam bibliotecas e tampouco
costumam ler, Jacob Davies. — soltou, quase cuspindo o meu nome.
— Olhe só! E não é que você realmente me conhece? — retruquei,
com um sorriso enorme nos lábios.
Ela deu um passo à frente bruscamente, se colocando a milímetros
de distância do meu rosto. Muito embora toda aquela proximidade me
agradasse, a expressão no rosto dela era fugaz o suficiente para eu saber
que, se olhares matassem, eu definitivamente já estaria morto.
— É quase impossível morar nessa cidade e não ter ouvido falar
sobre você e a sua repugnante reputação, Davies. declarou, me fitando
com uma severidade quase fatal.
Imitei sua postura, pondo o rosto a milímetros do seu e sustentando
seu olhar com um sorriso quase involuntário nos lábios.
— O mesmo vale para você, Astrid Spencer — desviei
propositalmente o olhar para seus lábios. — Ou devo chamá-la de
“Megera”, como é popularmente conhecida?
Ela franziu os lábios, endurecendo ainda mais sua expressão.
Ao invés de recuar como pensei que faria, ela ergueu o queixo,
ignorando completamente a minha provocação e abriu um meio-sorriso
presunçoso. Era quase como se tivesse orgulho do apelido que recebeu; ou,
talvez, simplesmente não desse a mínima, o que me pareceu mais plausível.
— Por que você não fala de vez o que veio fazer aqui? Isso pouparia
o meu trabalho de ter que descobrir sozinha — exigiu, descruzando os
braços e recuando um passo, se afastando.
Desviei os olhos do seu rosto, para o resto de seu corpo, notando
pela primeira vez, que era mais alta do que a maioria das garotas que eu
conhecia - sempre fui um cara notoriamente alto, e a garota diante de mim
era alguns poucos centímetros mais baixa do que eu. Frente a frente, o topo
de sua cabeça alcançava o meu queixo, o que era impressionante em
comparação com a sua irmã, por exemplo, que mal atingia a altura dos
meus ombros.
Meu olhar deslizou por todo o seu corpo, se demorando na extensão
de suas pernas – que estavam cobertas por jeans cintura alta largado - antes
de passar rapidamente pela parte frontal de sua blusinha listrada –
especificamente em seus seios pequenos e empinados perceptíveis sob o
tecido fino – e, por fim, voltando para seu rosto. No entanto, a julgar pela
sua carranca, pude ter certeza de que não gostou nada da minha conferida à
sua aparência.
— Então? — ela tornou a exigir, arqueando uma das sobrancelhas.
— Vai ou não me dizer o que está fazendo aqui?
Mantive meu sorriso intacto, enquanto tornava a me aproximar dela
e me colocava a meros milímetros de seu corpo esguio.
— Tudo bem — cedi. — Você me pegou. Não vim até aqui para
alugar um livro.
— Esse é o momento em que devo fingir surpresa? — declarou,
sarcástica.
Me aproveitando da proximidade entre nossos respectivos corpos,
passei uma das mãos pelos seus cabelos, enrolando uma mecha loura-clara
entre os dedos, enquanto fitava seu rosto com um sorriso provocador.
Tinha a total ciência de que deveria dar encima dela, mas a
oportunidade de provocá-la me parecia estranhamente mais tentadora.
— Vim aqui por você. — declarei, prendendo uma risada ao notar a
careta em seu rosto. — Estava me sentindo solitário e você não faz ideia do
quanto um amigo faz falta hoje em dia.
— Está de sacanagem com a minha cara? — grunhiu, dando um
tapa na minha mão que anteriormente segurava uma mecha de seu cabelo.
— Na realidade, sim — confessei, prendendo outra risada. A garota
era realmente brava. — Mas não completamente, já que realmente vim até
aqui por você.
Ela estreitou seus olhos acastanhados, me fitando em nítida
desconfiança.
— Quero que você saia comigo — revelei pausadamente, enquanto
analisava seu rosto com atenção.
— Isso foi uma ordem ou um pedido? — ironizou, arqueando uma
das sobrancelhas.
— O que você quiser que seja falei, dando o meu melhor sorriso.
Ela deu um passo para o lado, afastando-se por completo de mim, ao
mesmo tempo que me olhava dos pés a cabeça.
— Agradeço o pedido ou ordem, ou, seja lá o que tiver sido isso,
mas terei que recusar. Lamento desapontá-lo, mas se me der licença, tenho
que trabalhar. Deveria seguir o exemplo, em vez de, você sabe, perder o seu
tempo aqui comigo declarou, abrindo um sorrisinho irônico e não me
passou despercebida a sua indireta quanto a minha “ociosidade”.
Trinquei o maxilar.
Astrid não era muito diferente de todas as pessoas que moravam
naquela cidade: mesquinha, arrogante e esnobe; afinal, todos ali pareciam
sentir um prazer bizarro em zombar das dificuldades daqueles que não
tinham o “privilégio” de fazer parte de seus respectivos ciclos sociais. Nós,
os favelados de Lester Ville, sofríamos constantemente com os maus
olhares e as críticas cruéis às nossas condições de vida. Eles achavam que
tinham o direito de nos intimidar, simplesmente por terem empregos e
moradias melhores que as nossas e como consequência de seus
pensamentos racistas e preconceituosos, acabávamos quase sempre sendo
associados à criminalidade – não que realmente não existissem muitos
crimes na nossa parte da cidade, é claro, mas o que eles não sabiam, é que
nem todos éramos iguais. Meu pai, por exemplo, era a prova viva disso, ao
estar cumprindo pena na prisão por um delito que nem mesmo cometeu.
Ergui uma das mãos até a minha cabeça, ajustando meu gorro
enquanto lançava um olhar indiferente para a garota que, agora, me olhava
de forma intrigada. Era como se estivesse surpresa pela minha reação – ou
melhor, pela falta dela – à sua provocação.
— Nos vemos por aí. — declarei, forçando um sorriso aos lábios,
enquanto girava nos calcanhares e caminhava casualmente na direção da
porta, como me havia sido sugerido.
— O quê? — ela inquiriu às minhas costas, mais para si mesma, do
que para mim, parecendo imersa em confusão.
Estanquei no lugar, virando o rosto apenas o suficiente para lhe
lançar um olhar divertido.
— Eu disse que nos vemos por aí. E, da próxima vez, espero que
responda um sim ao invés da quantidade absurda de insultos que disparou
contra mim.
Ela franziu a testa, de modo que seus olhos castanhos se
arregalassem com o movimento, e nada foi mais satisfatório do que
observar a expressão surpresa em seu rosto.
Aquela garota era exatamente como comentavam por aí: arrogante,
fria, sarcástica e, principalmente, rabugenta. Entretanto, havia algo que ela
não tinha o menor conhecimento ao meu respeito: quanto maior o desafio,
mais tentador me parecia o prêmio. E com prêmio, não me referia apenas à
quantia que me havia sido ofertada para que a levasse para sair, e sim, ao
prazer que teria ao domar aquela megera;
Acabei cometendo um erro ao julgar mal a famosa megera da
cidade, subestimando-a ao acreditar veementemente que ela aceitaria sair
comigo em uma primeira tentativa. No entanto, Astrid também me julgou
mal ao pensar que se livraria tão fácil de mim. Ao contrário do que a
maioria das pessoas pensava ao meu respeito, eu tinha uma paciência
invejável e não me daria por satisfeito enquanto não tivesse aquela lourinha
azeda na palma das minhas mãos – o que obviamente não seria fácil, mas
que apenas tornava tudo mais interessante.
03.
ASTRID.
Bastou que pusesse meus pés sobre o gramado da minha casa para
que percebesse que algo estava errado.
Um mau cheiro insuportável vinha me perseguindo desde que eu
havia dobrado o quarteirão, e foi com pesar que percebi que, infelizmente,
advinha diretamente da minha casa.
Confusa, bati bruscamente a porta atrás de mim e o odor se tornou
dez vezes pior. Torci o nariz, enquanto depositava minha jaqueta no gancho
ao lado da porta e seguia pela casa, adentrando primeiramente na sala – que
estava vazia, por sinal – e seguindo o rastro horrendo que seguia até a
cozinha.
Estanquei no lugar assim que cheguei até o cômodo em questão,
tendo de piscar algumas vezes até que entendesse o que estava vendo.
— Pai? — chamei, e o homem com um avental cor-de-rosa que
vasculhava o forno elétrico se virou na minha direção, me permitindo
vislumbrar sua mão enluvada e, especificamente o que segurava: uma
travessa contendo uma espécie de torrão em seu interior.
Meu pai piscou.
— Astrid! — exclamou, enquanto largava bruscamente a travessa
sobre o balcão da cozinha. Parecia aliviado. — Já estava começando a ficar
preocupado, filha! Por que demorou tanto?
Suspirei, posicionando ambas as mãos na cintura, em cada lado do
corpo, enquanto passava os olhos pela cozinha e avaliava o estrago. Detalhe
importante: Edgar Spencer era um completo desastre na cozinha e, por isso,
a tarefa de administrar a alimentação de todos em casa era minha.
— Pai, por que está fazendo o jantar? — fiz uma careta, notando o
conteúdo de aparência duvidosa dentro da travessa. — Quer dizer, por que
está tentando fazer o jantar? E, caramba, nem vou perguntar o que é isso e o
motivo de estar com esse cheiro horrendo.
Ele bufou, tirando o avental e o entregando para mim, antes de
seguir na direção da sala de estar.
— Você estava demorando e acabei tomando a liberdade de preparar
o jantar — explicou, ao mesmo tempo que se sentava no sofá e ligava a
tevê. — Mas como já deve ter percebido, a culinária e eu não nos damos
muito bem. — olhou para trás, fixando seus olhos na travessa fumegante
sobre o balcão. — E isso, aliás, é um bacalhau. Ou pelo menos era, antes
que me distraísse e o deixasse por tempo demais no forno.
Prendi uma risada.
— Bom, não precisa se preocupar com a comida, pai. Deixe-a
comigo. Apenas faça um favor a todos nós e fique longe da cozinha, está
bem?
Ele assentiu, se limitando a fazer um sinal de positivo com o
polegar, com os olhos pregados à tevê, local por onde uma partida de
basquete se desenvolvia a todo vapor.
Prendi o cabelo em um coque frouxo e vesti o avental, destinando
toda a minha atenção para o chão imundo e o odor insuportável de bacalhau
queimado – quer dizer, torrado – que ainda emanava pelo ar. Dando um
longo suspiro, comecei a enxaguar todos os pratos e utensílios que haviam
sido usados – desnecessariamente – no processo para o preparo do peixe,
antes de enxugá-los e depositá-los em seus respectivos locais. Em seguida,
despejei o alvejante por todo o piso, suspirando de alívio ao sentir o odor
anteriormente podre, sendo gradativamente substituído pelo agradável das
ervas daninhas.
Assim que constatei que a faxina havia sido bem sucedida e que
aquele cheiro desagradável havia se dispersado completamente, tratei de
migrar até a sala, onde meu pai estava.
— Já que você fez o favor de destruir o peixe que eu havia deixado
no congelador, vou pedir pizza. — informei, me jogando no sofá ao lado
dele, genuinamente irritada pelo incidente na cozinha.
— Claro. — concordou ele, parecendo incapaz de desviar sua
atenção da tevê. — Peça o que quiser.
Estendi um dos braços, prestes a pegar o telefone fixo, quando
lembrei de algo: Serena era extremamente rigorosa e seletiva no quesito
escolha de sabores, e visando evitar uma discussão – o que certamente me
causaria uma tremenda dor de cabeça, uma vez que Serena conseguia ser
irritantemente chata quando queria –, optei por ser mais flexível e consultá-
la antes de fazer o pedido. E foi só então que percebi o quanto minha irmã
estava estranhamente quieta. O jantar em nossa casa sempre acontecia
pontualmente às sete em ponto – regras explícitas do meu pai –, e
considerando que já passavam das oito, o fato de Serena não ter dado as
caras até aquele momento era, no mínimo, estranho.
— Pai, aonde está Serena? — perguntei, desconfiada.
— No quarto. — respondeu, fitando a tevê plasma diante de si com
atenção. — Está lá desde que chegou da escola e como estava visivelmente
brava, resolvi não incomodá-la.
Bufei, ao mesmo tempo que me levantava bruscamente do sofá,
segurando o telefone fixo entre os dedos, e pisava duro, rumando até as
escadas. Subi apressadamente cada degrau, realmente irritada por ter que
cuidar de literalmente tudo naquela casa. Desde a partida da minha mãe,
acabei assumindo o papel dela: eu limpava, cozinhava e fazia basicamente
todas as funções que uma chefe de família deveria fazer. Não que estivesse
reclamando nem nada do tipo, uma vez que tinha total consciência de que
meu pai fazia o possível por nós, mas, às vezes, era extremamente cansativo
e estressante ter de fazer tudo – praticamente – sozinha.
Como não desejava que nenhuma de suas filhas trabalhassem –
apesar de eu obviamente ter passado por cima de seu desejo –, era papai
quem arcava com a maioria das despesas de casa; ele trabalhava como
psicólogo no único consultório da cidade, o que significa, em outras
palavras, que fazia o atendimento psicológico de boa parte dos residentes de
Lester Ville – dentre os quais estavam os temíveis “aborrecentes”, razão
pela qual poderia explicar o porquê de suas paranoias com as companhias
que suas filhas tinham; ou melhor: com as companhias que Serena tinha –
não era como se ele realmente tivesse que se preocupar comigo em tal
quesito, considerando a minha evidente antissociabilidade.
Ouvindo o piso amadeirado ranger sob meus pés, percorri o pequeno
corredor do segundo andar, parando na porta esbranquiçada onde a frase
"não perturbe" estava pendurada. Ergui uma das mãos, prestes a bater na
porta, mas me dei conta de que estava entreaberta. Espiando pela fresta,
observei Serena balançar desenfreadamente seus pés sobre sua cama queen-
size, enquanto fitava fixamente o dispositivo sobre suas mãos: seu celular.
Seus olhos observavam-no com um olhar matador, ao mesmo tempo que
seus dedos se moviam agilmente pela tela, digitando algo. Deixando de lado
o momento stalker, empurrei bruscamente a porta, fazendo com que minha
irmã quase saltasse da cama mediante o susto.
— Caramba! — exclamou, se sentando rapidamente. — Será que
poderia pelo menos bater? Mas que droga!
— Vou pedir pizza. — falei, ignorando seu comentário anterior. —
Qual sabor você vai querer?
Ela bufou, dando de ombros e voltando sua atenção para o celular
sobre suas mãos.
— Tanto faz. Escolha o que quiser — resmungou.
— Qual é o seu problema? — retruquei, irritada. — Vim até aqui
porque você sempre reclama dos sabores que escolho, e agora que venho
perguntar a sua opinião, está me dizendo que posso escolher o que eu
quiser?
— É, Astrid! Isso mesmo. Agora dê o fora. — ordenou, apontando
rudemente em direção da porta.
Estreitei os olhos, alternando o olhar entre seu rosto e o celular em
suas mãos.
— Por que está tão brava? E com quem está falando?
— Um: talvez possa encontrar a resposta que procura no fato de que
estou trancada em casa em plena sexta à noite, quando poderia estar na festa
da Kelly Jensen, e dois: não é da sua conta.
— Inacreditável — murmurei, balançando a cabeça em
desaprovação. — Ainda está brava por causa da festa da tal Kelly Jensen?
— O que você acha? Por sua causa vou ter que ficar trancada nessa
casa, quando poderia estar me divertindo! — disparou, esticando um dos
braços e jogando um travesseiro na minha direção. — Tenho quinze anos,
Astrid! Ingressei no Ensino Médio no ano passado e simplesmente não
posso fazer nada porque estou presa a você, que é uma tremenda egoísta
insensível!
— Não fui eu quem estipulou a regra que prende você a mim. —
rebati, desviando do objeto que havia sido disparado contra mim. — Se
realmente deseja culpar alguém, culpe ao papai e a si mesma. Se você não
fosse tão...
— Tão o quê? — interrompeu ela, me fitando com uma expressão
fugaz. — Normal?
Fechei a boca com força, lhe direcionando um olhar repleto de
seriedade.
Eu estava certa de que a culpa não era realmente minha,
considerando que certamente o problema fosse com nosso pai e sua
natureza extremamente conservadora e protetora, mas, ao mesmo tempo,
não conseguia deixar de me sentir mal ao constatar o quanto Serena era
bizarramente parecida com a nossa mãe: as duas eram espíritos livres e
detestavam se manter presas a algo ou alguém. E talvez por essa mesma
razão, papai fosse tão protetor com Serena, porque a semelhança entre ela e
a sua falecida esposa o assustava.
— Você tem 15 minutos. — falei em meio a um suspiro.
Serena piscou.
— Quinze minutos para se arrumar, enquanto convenço papai a nos
deixar ir a essa tal festa. — esclareci, já abrindo a porta do seu quarto.
— Ai meu Deus! — exclamou ela, extasiada. Você está falando
sério? Realmente vamos à festa de Kelly?
— Só se você se aprontar em 15 minutos — condicionei, berrando
de volta, já descendo as escadas.
Um gritinho feliz ecoou pela casa inteira e me peguei sorrindo
involuntariamente.
A partida de minha mãe me fez aprender uma lição importante: nada
era mais importante do que a família. E por mais que eu não gostasse nada
das festividades adolescentes – como um dia já gostei – não permitiria que
Serena as perdesse. Queria que minha irmã desfrutasse de sua juventude
assim como eu costumava fazer, quando tinha a sua idade.
No entanto, enviá-la ao mundo das festas e da curtição adolescente
não poderia me deixar mais receosa, afinal, eu sabia o quanto ele podia ser
cruel. Mas, o que me servia de consolo, todavia, era o fato de conhecer
minha irmã suficientemente bem para saber que não cometeria o mesmo
erro que eu.
Porque Serena era inteligente e não se permitiria ser enganada tão
facilmente quanto eu fui – ela seria inteligente o suficiente para não se
apaixonar tão tolamente quanto eu o havia feito há dois anos, erro pelo qual
paguei caro e arcava com as consequências até os dias atuais.
04.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
Filho da puta.
“Eu adoraria, Isabella, mas preciso ir”, disse o bastardo, todo
sorridente, apenas alguns minutos depois de quase ter transado comigo
sobre a pia daquele maldito banheiro.
Trinquei o maxilar, batendo com mais força do que o necessário a
porta do armário, fazendo com que o ruído soasse perceptível até mesmo
em meio a todo o tumulto de todas as pessoas que passavam pelos
corredores.
Quando é que você vai me dizer o que foi que houve com você?
Serena indagou ao meu lado, intrigada. Ela tinha seus livros abraçados
contra o peito, enquanto me olhava, desconfiada. Irritada, peguei meus
livros e então a olhei, arqueando uma das sobrancelhas para a sua
expressão. Ela rapidamente franziu o cenho. O quê? Não me olhe assim.
Você está toda emburrada desde ontem e sequer me explicou o motivo por
trás dessa repentina mudança de humor.
Respirei fundo, tentando manter a calma.
Não há nada de errado comigo, Serena. Estou bem.
Certo, então diga isso para o nosso pai comentou, franzindo a
testa. Ele passou a manhã inteira me perguntando o motivo de você estar
“mais temperamental do que o normal”.
Revirei os olhos.
Já disse que estou bem, Serena. Apenas me deixe em paz, ok?
Quero ficar sozinha murmurei.
Ela estreitou os olhos, analisando meu rosto com atenção.
Ainda é por causa do que aconteceu ontem? quis saber e
rapidamente me senti enrijecer. Eu já disse que não ia fazer nada demais,
Astrid. Só queria socializar um pouco, e quando Carly apareceu e me
cumprimentou, eu simplesmente não pensei, só a segui.
Carly é uma idiota, Serena. E você já deveria saber disso
resmunguei, lhe lançando um olhar mortal.
Ela suspirou.
É, eu sei. Mas ela é popular confidenciou, como se isso
explicasse alguma coisa.
Arqueei uma das sobrancelhas.
Pessoas populares são normalmente as mais idiotas, Serena
falei.
Você costumava ser popular, Astrid ela lembrou, com uma
expressão irônica.
É, e adivinhe só: eu também era uma idiota. Está vendo só? Não
existe uma exceção à regra declarei, fazendo com que ela revirasse os
olhos.
Bem, eu preciso ir agora informou, suspirando. Tenho aula
agora e não posso me atrasar.
Assenti, e no segundo seguinte, minha irmã já passava por mim, se
enfiando entre todo o mar de pessoas que lotava os corredores àquela hora
da manhã. Soltando um suspiro, abracei meus próprios livros contra o peito,
me recostando contra o armário, enquanto tentava pensar em alguma coisa
que não fosse Jacob ou, claro, Bella. Eu havia passado a noite inteira em
claro pensando nos dois, e mesmo que Jacob tivesse me ligado umas cinco
vezes, foi quase impossível não cerrar os punhos a cada vez que seu nome
surgia pela tela do meu celular.
Franzindo as sobrancelhas com a lembrança, senti minha expressão
endurecer ainda mais, conforme avistava um rapaz alto com um gorro negro
sobre sua cabeça, vindo até mim com uma expressão séria no rosto. E foi
suficiente para que eu girasse nos calcanhares e rapidamente começasse a
me mover, tentando escapar dele. Meros minutos depois, contudo, notei que
minha atitude havia sido falha, assim que senti uma mão agarrando o meu
antebraço, me fazendo parar.
Ei, precisamos conversar ele disse e, hesitante, virei o rosto
para fitá-lo. Ele tinha o cenho franzido em preocupação, e a julgar pela
forma como vasculhou o meu rosto, pude apostar que parecia genuinamente
inquieto.
Aqui não praticamente sibilei, notando todos os olhares
curiosos sobre nós.
Ele bufou, me ignorando.
Liguei para você feito um maluco ontem, mas você simplesmente
me ignorou acusou.
Afastando bruscamente o meu braço da mão dele, fechei a cara, ao
passo que cruzava ambos os braços sob o peito.
Eu estava cansada menti, mas considerando a maneira como
ele estreitou os olhos para mim, certamente não havia sido convincente o
suficiente.
Custava ao menos ter me enviado uma mensagem de texto,
então? indagou, parecendo ironicamente irritado.
Trinquei o maxilar.
Que parte de eu estava cansada você não entendeu? soltei,
impaciente. Eu não quis checar a porra do celular, Jacob, então não
encha.
Ele franziu as sobrancelhas, surpreso.
O que diabos aconteceu com você? indagou, estreitando os
olhos. Por que você está assim?
Cerrei os punhos.
Porque você estava dando mole para aquela garota insuportável
apenas alguns minutos depois de quase ter transado comigo, seu imbecil!
Não é nada, Jacob. Apenas me deixe em paz, está bem?
disparei, tentando passar por ele. Preciso ir para a aula.
Para a minha consternação, no entanto, ele voltou a agarrar meu
braço, me mantendo no lugar com uma expressão impaciente no rosto.
O que você está fazendo? exigi saber, tentando me
desvencilhar do seu toque de aço. As pessoas vão nos ver, Jacob! Mas
que porra, me solte!
Em vez de me responder, ele simplesmente me puxou, praticamente
me arrastando pelo corredor lotado, parando apenas quando atravessamos
uma porta qualquer, a qual ele fez questão de trancar, nos deixando a sós.
Bufando, desviei os olhos dele, para o lugar: uma sala
esbranquiçada repleta de instrumentos musicais; a sala de música.
Tudo bem ele falou, ficando à minha frente. Já estamos a
sós agora, Astrid. Pode ir começando a falar.
Endurecendo a minha expressão, ergui afrontosamente o queixo, ao
passo que cruzava ambos os braços por debaixo do peito, sustentando o seu
olhar em desafio.
Não tenho nada a dizer soltei friamente.
Ele pareceu perplexo.
Ah, não? retoricou, irritado. Eu posso dar algumas
sugestões, então: que tal começar falando sobre o fato de estar me
ignorando desde ontem e de agora estar assim, toda fria?
Meu queixo quase caiu.
Por que não procura uma resposta no fato de ter cedido às
investidas nada sutis de Isabella Northwest, seu idiota? esbravejei, lhe
fuzilando com o olhar.
Ele piscou.
Então é por isso que você está brava? interrogou, franzindo o
cenho.
O que você acha? indaguei, irônica.
O que você queria que eu dissesse? ele soltou, inquieto.
Que eu a empurrasse ou coisa assim?
Eu não sei, Jacob, mas qualquer coisa teria sido melhor do que
aquele sorrisinho sacana seguido de um “eu adoraria, Isabella, mas preciso
ir agora” falei, fazendo uma imitação barata do seu tom de voz.
Ele pareceu ainda mais confuso.
Não estou entendendo você, Astrid comentou, balançando
negativamente a cabeça. Foi você quem disse que não queria um
“compromisso” e que ninguém soubesse sobre nós, e agora está agindo
assim?
Fechei a boca com força, ciente de que ele tinha razão – coisa que
eu não confessaria nem morta.
Quer saber? Esqueça, Jacob cuspi, tentando passar por ele,
mas, outra vez, o bastardo agarrou meu cotovelo esquerdo, me puxando
novamente para trás, bem à sua frente.
Você não vai fugir avisou, sério. Você tende a tentar
escapar sempre que as coisas complicam, mas não vou permitir que saia
antes que possamos conversar sobre isso.
Isso o quê? eu quis saber, franzindo a testa.
Ele suspirou.
Isso que está rolando entre nós esclareceu. Não acho que
vá dar certo.
Levei alguns segundos até compreender o que ele dizia com
exatidão e quando finalmente aconteceu, não pude deixar de me sentir uma
pontada bem no peito; ele estava me descartando. Porra, aquilo doía. Doía
para caralho.
Decidida a não demonstrar isso, no entanto, eu simplesmente ergui o
queixo, encarando-o com uma expressão decida no rosto e então assenti.
É, você tem razão concordei, ignorando a dor instalada em
meu peito.
Ele piscou.
Tenho?
Sim falei. Realmente não daria certo. É melhor que
acabemos antes que seja tarde declarei, notando, assim que as palavras
me escaparam, a expressão repleta de incredulidade presente em seu rosto.
Agora eu realmente preciso ir. Me daria licença?
Esperei que ele protestasse, ou que dissesse qualquer coisa para me
impedir, mas ele simplesmente deu um passo para o lado e sua atitude
equivaleu a uma facada bem na porra do meu coração.
Ignorando a dor que aquilo me causou, apenas passei por ele,
caminhando até a porta com uma expressão apática que destoava por
completo da forma como me sentia internamente: meus olhos estavam
quase lacrimejando e meu peito apertava, numa evidência de que eu havia
me entregado demais e, outra vez, tinha sido tapeada.
Só que, dessa vez, por ironia do destino, a dor parecia dez mil vezes
mais intensa, tornando tudo pior.
E foi só ali, que entendi tudo: eu havia me perdido no meu próprio
jogo, e estava, outra vez, apaixonada.
Porra.
27.
JACOB.
ASTRID.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
JACOB.
ASTRID.
Dois dias após o terrível jantar com Jacob na minha casa, meu pai
ainda estava bravo.
Não, bravo não; usar tal termo seria eufemismo.
Ele estava irado.
E eu, no entanto, estava adorando perceber o quanto as suas
tentativas de tentar me castigar estavam sendo ineficazes.
Depois de confiscar o carro e o celular, ele tentou me tirar o
computador – grande diferença – e ao notar que sua atitude novamente não
surtiu efeito, ele finalmente partiu para o diálogo.
Foram longas quatro horas trancados no meu quarto, tentando
“entrar em consenso” como ele mesmo dizia e, no final das contas, foi
exatamente assim que acabou: chegamos à conclusão de que ele não tinha o
direito de tentar boicotar o meu relacionamento, assim como eu também
não tinha o direito de questionar a sua autoridade.
Em suma, tudo não passou de uma troca de compreensões até que
chegássemos ao veredito de que tínhamos de manter o respeito. E, no final
das contas, estabelecemos algumas regras de convivência que fariam com
que mantivéssemos o respeito mútuo e que, por fim, conquistássemos a
harmonia.
Jacob Davies, hein? questionou Nelly ao meu lado, me tirando
de meus devaneios. Eu não poderia estar mais surpresa, Astrid.
Dei de ombros, abrindo um sorriso enquanto fechava a porta do meu
armário e depositava ambos os meus livros debaixo do braço.
A vida é uma caixinha de surpresas, Nelly informei, virando
rosto para fitá-la.
Ela estreitou seus olhos azuis para mim, parecendo resignada.
Eu só não consigo acreditar que isso aconteceu bem debaixo do
meu nariz e eu nem percebi se queixou ao mesmo tempo que franzia a
testa.
Franzi o cenho.
O que você quer dizer com “isso”?
Ela bufou.
O fato de vocês dois terem se apaixonado. Me refiro a oitava
maravilha do mundo: o amor.
Ai meu Deus murmurei, prendendo uma risada e girando nos
calcanhares, me enfiando no mar de pessoas que revestia os corredores da
escola àquela hora da manhã. Você está parecendo uma romancista,
Nelly. Pare com isso.
Ei, eu sou uma leitora voraz defendeu, ofendida. Sou
assumidamente uma romântica incurável estreitou os olhos para mim.
Assim como sei que você também é. Já a vi lendo Shakespeare, Astrid.
Não me julgue.
Leio romances trágicos. É diferente. corrigi, erguendo o
indicador, mesmo sabendo que estava sendo uma baita hipócrita, afinal, eu
lia de tudo – mas é claro que acabei omitindo isso para poder provar meu
ponto.
Nelly bufou.
Bem, que seja. De todo modo, a sua vida está mais movimentada
do que a minha revelou, suspirando. O que me faz lembrar: como o
seu pai reagiu a tudo isso, considerando, você sabe, o jeito dele?
Muito mal. confessei. Mas acabamos nos resolvendo
ontem à noite e estabelecemos algumas regras e limites. Em suma, está tudo
bem.
Bem? ironizou uma voz ao meu lado que, no segundo
seguinte, descobrir pertencer à Serena. Eu não diria que está tudo bem;
não ainda, pelo menos. Papai ficou muito chateado pelo seu comportamento
rebelde e certamente não irá ceder tão facilmente virou o rosto para
mim, arqueando uma das sobrancelhas. Sabe o que estou dizendo com
ceder, não é? Nada de encontros com o seu namorado Bad Boy.
Revirei os olhos.
Não seja chata, Serena.
Estou sendo realista. É mil vezes diferente ela rebateu,
acompanhando Nelly e eu pelos corredores lotados.
Dá na mesma resmunguei e ela me mostrou a língua em
resposta.
Fiz uma careta.
Muito maduro, Serena.
Falou a garota que saiu escondida de casa para fazer Deus sabe o
quê com o namorado retrucou, fazendo cara feia.
Estou na adolescência. Não é a fase das atitudes impulsivas e dos
incontáveis erros justificados pelos “hormônios a flor da pele”?
questionei, franzindo a testa. Acho que estou no meu direito.
Acrescente normal na sua resposta e está tudo certo Serena
ironizou, abrindo um sorriso doce. Mas eis a questão, irmãzinha: você
não é uma adolescente normal.
Fechei a cara.
Ah, cale a merda da boca grunhi e ela sorriu.
Viu só? Essa é a Astrid que eu conheço. Grosseira, rabugenta e
estressada.
Estava prestes a xingá-la, quando o som de um pigarreio me
conteve.
Está na minha hora. Tenho aula de Física agora e não posso me
atrasar. informou Nelly, apontando com o polegar na direção da sala à
nossa direita. Nos vemos na aula de laboratório, Astrid. Não se atrase!
Ok, nos vemos mais tarde. respondi, observando suas costas
desaparecerem pela multidão que nos cercava.
Retomei o percurso até a sala de aula, notando que Serena
permanecia ao meu lado, me observando com atenção.
Não sabia que você e Nelly Ford eram amigas disse ela, me
avaliando com atenção.
E não somos. respondi no automático, antes de lembrar de
todas as nossas conversas nas aulas que frequentávamos juntas. Quer
dizer, não próximas, pelo menos.
Serena fez uma careta.
Estou começando a acreditar nessas baboseiras que dizem por aí
sobre o amor mudar as pessoas. revelou, me fitando acusatoriamente.
Não comece você também. grunhi, revirando os olhos.
Você lê romances. O que espera que eu diga? justificou, quase
cuspindo a palavra romances.
E você não lê nada que não tenha imagens apontei. No fim
das contas, tenho mais vantagens a contar do que você.
Ela fez cara feia e estava prestes a me responder, quando teve sua
atenção repentinamente roubada para algo diante de nós. Segui seu olhar e
notei que ela não era a única a fitar aquele ponto em específico: a multidão
de alunos ao nosso redor abria espaço para três garotas que passavam pelo
corredor como se fossem parte da realeza inglesa ou coisa assim.
E foi ao reconhecê-las que tudo fez sentido.
Há apenas alguns metros de onde Serena e eu estávamos, o ABC –
que agora era apenas “AB” – fazia seu majestoso percurso pelos corredores,
ambas com sapatos altos, bolsas de grife e saias cor-de-rosa. Fechei a cara
em contrapartida com o som de seus saltos estalando contra o piso, se
assemelhando a uma cena bizarra do filme “Meninas Malvadas”, onde
Carly incorporava uma versão da icônica Regina George com sua expressão
de cadela em ação.
Serena Spencer cantarolou a dita cuja assim que se pôs diante
de nós.
Serena piscou.
Carly, Bella cumprimentou, oscilando o olhar entre as duas,
estreitando os olhos em desconfiança.
Desloquei o olhar pelo corpo da garota em questão, notando a forma
como seu cabelo ridiculamente impecável caía em ondas pelas suas costas e
sua saia cor-de-rosa se ajustava perfeitamente às curvas voluptuosas de seu
corpo. O mesmo podia ser dito de Carly que, não muito diferente de Bella,
tinha uma saia rosa que fazia maravilhas com seu corpo de manequim.
Pisquei com força, voltando à realidade, ao passo que Bella estendia
uma das mãos até minha irmã e lhe ofereceu um pequeno papel delicado
que, não muito depois, notei ser um convite. Ela tinha pelo menos trinta
iguais a ele por debaixo do braço, o que me fez perceber que ela
literalmente estava selecionando as pessoas que iriam para a sua festa – a
festa anual do ABC; eu sabia disso porque fui eu quem criou a tradição.
Serena alternou o olhar entre o delicado convite e o rosto de Bella,
arqueando uma das sobrancelhas em uma indagação silenciosa e parecendo
se dar conta disso, foi a vez de Carly intervir:
É um convite. ela esclareceu, constatando o óbvio. Nós
estamos convidando você para uma das festas oficiais do ABC.
Bella assentiu.
Exatamente. Será uma festinha intima na minha casa. arrastou
os olhos para mim. Apenas para o pessoal autorizado.
Serena franziu o cenho.
Ok disse pausadamente, parecendo desconfiada. Obrigada,
eu acho.
Bella abriu um sorriso doce, antes de me lançar um olhar
desdenhoso e girar nos calcanhares, retomando seu percurso majestoso
pelos corredores, sendo fielmente seguida por Carly, que assim como sua
amiga me lançou um olhar repulsivo, antes de praticamente correr para
alcançar a sua “amiga”.
Mal posso acreditar nisso Serena murmurou ao meu lado,
reconquistando a minha atenção. Fui convidada para uma festa do ABC.
sussurrou, parecendo descrente.
Uhu, que notícia maravilhosa! ironizei, usando um tom de voz
exageradamente animado. Devo parabenizá-la pelo feito ou algo do
tipo?
Poderia calar a boca. ela rebateu, fechando a cara para mim.
Seria de grande ajuda.
Então, não vai abrir? questionei, ignorando seu comentário e
apontando sugestivamente para o pequeno envelope dourado sobre suas
mãos.
Ela suspirou.
Não. De que me adianta receber e até abrir esse envelope, se não
posso... se interrompeu, piscando algumas vezes antes de voltar o olhar
para mim com um sorriso largo nos lábios. Bem, pensando melhor,
talvez eu possa ir para essa festa.
Estreitei os olhos.
Não, não pode.
Posso sim, se você for.
Fechei a cara.
Não respondi sem nem pestanejar, fazendo com que seu
sorriso vacilasse.
Ela piscou.
Como assim não? fez uma careta. E por que não?
Porque como você mesma disse, é uma festa do ABC. E como
também já deve saber, eu odeio o ABC.
Ora, por favor! Não seja estraga-prazeres! pediu, agarrando
meu cotovelo e me fazendo estancar no lugar.
Não estou sendo estraga-prazeres. grunhi, me desvencilhando
do seu toque. Estou apenas constatando um fato: que eu odeio o ABC.
Ela suspirou.
Vamos, lá suplicou, voltando a agarrar meu cotovelo. Não
seja chata. O que aconteceu com a sua repentina rebeldia? Há literalmente
dois dias, você saiu escondida de casa. argumentou, arqueando uma das
sobrancelhas de maneira dramática. Não acha que sair um pouco da sua
zona de conforto, seria uma excelente alternativa para fugir da monotonia
da vida real?
Não, não acho. retruquei, fazendo uma careta. Como
diabos encher a cara debaixo do teto da minha pior inimiga seria algo bom?
Experiências novas? tentou e quando fechei a cara, arqueou
uma das sobrancelhas. Certo, então que tal voltarmos ao fato de que
você é uma adolescente e que há pouco tempo atrás estava dizendo
exatamente isso? O que aconteceu com o papo de “erros incontáveis e
atitudes impulsivas”?
E o que aconteceu com o papo de que não sou uma adolescente
normal? relembrei, arqueando uma das sobrancelhas.
É, mas aí é que está: eu sou uma adolescente normal e preciso de
um pouco de entretenimento na minha vida entediante. Será que dá para
deixar o egoísmo de lado por pelo menos uma vez na vida? Além do quê,
papai não poderá nos impedir de ir à essa festa. Ele conhece as próprias
regras e jamais as ignoraria.
Revirei os olhos.
Certo, Serena. Excelentes argumentos, mas ainda estou sem
carro. Papai o confiscou e duvido muito que me devolva hoje, apenas para
que possamos ir para uma festa.
Você tem um namorado que dirige, esqueceu? lembrou ela,
me fitando como se eu fosse estúpida.
Exato, Serena. Um namorado, não um uber.
Ela bufou.
Tanto faz. De todo modo, ter um namorado lhe garante caronas
grátis, não é?
Não é bem assim que funciona.
Ela deu de ombros.
Que seja, mas a questão central não é essa. É o fato de que
certamente você adoraria ver a cara de desgosto do ABC ao vê-la na festa,
não é? indagou, franzindo o cenho. Imagine só a cara daquelas três
patetas ao verem você, a antiga líder delas, na festa? Seria um verdadeiro
escândalo. Também serviria como comprovação de que você deixou todo o
seu passado para trás e que agora, simplesmente já não dá mais a mínima
para o ABC ou Nataniel Hawkins, aparecendo por lá com o seu mais novo
namorado. Seria o ápice da sua superação.
A fitei de olhos estreitos, odiando admitir o quanto seu raciocínio
caía bem à situação, porque mesmo que a contragosto, eu sabia que ela
estava certa em basicamente tudo: adoraria ver a expressão de Bella ao me
ver na sua festa e também amaria provar de uma vez por todas para Nate
que ele já não tinha mais efeito sobre mim; que agora, estava mais do que
feliz com Jacob.
De soslaio, notei os olhar de Serena cravado a mim, aguardando
pela minha resposta com expectativa.
Suspirei.
Está bem, Serena. Você venceu. Vamos a essa maldita festa.
ergui o indicador, fazendo seu sorriso vacilar. Mas sob uma condição:
Não demoraremos. Passamos por lá e não tardaremos a voltar, está bem?
Ela assentiu, balançando a cabeça para cima e para baixo em
evidente animação.
Então, sem sequer me agradecer ou pelo menos me lançar um olhar,
ela saiu disparada pelos corredores e, à julgar pela sua expressão eufórica,
sabia que iria contar a novidade para as amigas.
Suspirando, retomei o percurso até a minha classe, o que me fez
recordar Jacob e a sua expressão tensa de ontem à noite.
Ele estava estranho desde ontem à noite, após a nossa conversa em
uma lanchonete local.
Frustrada, retomei o percurso até a minha classe, sorrindo com o
pensamento de Bella e Carly irritadas com a minha repentina aparição na
festa que ocorreria hoje à noite.
Fiz uma careta.
Talvez Serena tivesse razão.
Eu realmente estava diferente.
Contudo, ao invés de me espantar ou frustrar com a ideia,
simplesmente sorri.
Talvez o amor realmente mudasse as pessoas.
39.
JACOB.
Logo após uma noite inteira mal dormida, acabei optando por parar
de adiar o inevitável.
Empurrei as portas francesas que davam acesso para a área interna
na cafeteria Brook’s, a preferida do meu pai, e, ao fazê-lo, instantaneamente
o aroma inconfundível de fritura e café, invadiu meus sentidos, fazendo
com que inspirasse aquele odor extremamente nostálgico.
Passei os olhos pelo estabelecimento, engolindo em seco ao notar o
homem elegante sentado algumas mesas à minha frente. À passos
hesitantes, segui em sua direção, pigarreando ao finalmente me colocar
diante dele, que agilmente moveu seus olhos verdes do jornal sobre suas
mãos para mim.
Jacob murmurou, puxando os lábios em um sorriso educado.
Por que não se senta? ofereceu ele, quando nada mais fiz além de fitá-
lo em evidente nervosismo.
Assenti, atendendo ao seu pedido e acomodando o assento à sua
frente.
Obrigado por ceder um pouco do seu tempo para vir até aqui,
doutor Hilton. agradeci, assim que me recostei no assento acolchoado às
minhas costas.
Disponha. ele respondeu, abrindo um sorriso antes de voltar a
bebericar o líquido fumegante que jazia em sua xícara.
Pigarreei.
Bem, antes de qualquer coisa, gostaria de lhe pedir desculpas por
não ter atendido as suas ligações ontem. Estava ocupado e acabei as
ignorando, lamento.
Sem problemas, meu rapaz. No entanto, acredito que já saiba o
motivo por trás das minhas ligações, o que nos poupa bastante tempo.
Assenti.
Sim, eu sei murmurei, fitando as minhas próprias mãos sobre
a mesa, ao invés do seu rosto. O senhor quer que eu efetue o pagamento.
Exatamente. ele concordou, cruzando ambas as mãos por
debaixo do queixo. Conversamos antes sobre a situação do seu pai e
você me pediu que lhe desse uma quantidade de tempo maior para que
pudesse providenciar a quantia equivalente á fiança. E cá estou, exatos
trinta dias depois, assim como combinamos.
Fechei os olhos com força, intensificando o aperto em minhas mãos
e soltando o ar com força.
Eu sei que combinamos trinta dias após o acordo, mas agora não
tenho condições. Preciso de um pouco mais de tempo.
Inconcebível. ele me cortou, endurecendo o tom. Você me
disse exatamente a mesma coisa há um mês: que precisava de mais tempo, e
eu cedi. Agora, todavia, já não vejo mais como prolongar isso, Jacob. Você
sabe da situação do seu pai e mais ainda, de como foi difícil conseguir um
acordo judicial apelando para o pagamento da fiança. Já faz dois meses,
Jacob. Se nos prolongarmos ainda mais nisso, o xerife poderá mudar de
ideia e caso aconteça, o acordo será vetado.
Isso não vai acontecer declarei, trincando o maxilar. Já
consegui os dez mil dólares de adiantamento. Se me der mais algum tempo,
garanto que consigo a quantia exata até...
Já disse que é inconcebível, Jacob. Lamento, mas não vejo como.
Suspirei, deixando de lado todo o orgulho e me inclinando na mesa,
de modo a tocar uma das mãos dele em uma súplica desesperada.
Por favor, Adam pedi, apertando forte a sua mão. Você tem
acompanhado esse caso desde sempre e sabe como tenho feito de tudo para
que meu pai saia da cadeia. A única coisa que peço agora é que, por favor,
me conceda um prazo maior. Converse com o xerife e peça um pouco mais
de tempo.
Ele sustentou meu olhar por longos segundos, antes de se
desvencilhar do meu toque e soltar um longo suspiro.
Tudo bem. Verei o que posso fazer. declarou, fazendo com
que eu soltasse uma lufada de ar em alívio. No entanto, quero que saiba
que ainda que eu consiga um prazo maior, não será como da última vez.
Estou falando de alguns dias, Jacob. Uma semana, no máximo. Depois
disso, caso não consiga o dinheiro, lamento, mas terá que desistir.
Assenti, aliviado demais para dizer qualquer outra coisa.
Certo, então seguirei no aguardo para que você realize o
pagamento da fiança. ele afirmou, suspirando. Mas, na realidade, há
algo que me intriga, meu jovem.
O quê?
Por que motivo você não comentou com o seu pai, sobre os
problemas financeiros pelos quais está passando?
Porque não quero preocupá-lo. Ele já está sofrendo o suficiente
passando dias consecutivos trancafiados naquela cela imunda. Não quero
que saiba sobre nada disso. comentei, antes de erguer o olhar até seu
rosto, notando seus olhos cravados em mim.
Como quiser. ele declarou por fim, voltando a bebericar sua
xícara de café. Fiz menção de me levantar, mas me contive quando ele
ergueu uma das mãos, me interceptando: Não precisa ir agora. Fique
mais um pouco. Fiz um pedido em seu nome.
Agradeço, mas já estou atrasado para a aula. Não posso demorar.
informei, coçando a nuca em constrangimento.
Não seja mal educado, garoto. Aceite o meu convite. Pagarei pelo
seu pedido.
Agradeço de verdade, Adam. Mas realmente está tarde e...
Acomode a droga da bunda no assento, Jacob. ele ordenou e
prontamente o fiz, estranhando seu atípico tom de voz.
Adam era um velho amigo do meu pai e o fato de ele ser advogado
soou como uma verdadeira bênção para nós, quando a sentença do meu pai
saiu.
Fazia dois anos desde que Adam e eu estávamos buscando alguma
lacuna na maldita lei que pudesse de algum modo, favorecer meu pai.
Contudo, para a nossa consternação, Billy Hawkins era influente demais
para permitir que algo assim acontecesse. Era exatamente por isso que meu
pai cumpria pena em Hertwake, ao invés de Lester Ville, como uma forma
de garantir que nada desse errado e que ninguém intervisse no caso, o que,
obviamente, acabaria prejudicando seu esquema criminoso de
acobertamento.
Era o maldito Martin Hawkins quem deveria estar detrás das grades,
não meu pai.
E por mais que esta verdade me revoltasse, sabia que não havia
muito a ser feito para mudá-la.
Afinal, como poderia tentar contrariar um cara que era dono de
metade da cidade e, ainda por cima, que tinha total domínio sobre o xerife e
o departamento de polícia?
Billy Hawkins era o equivalente a um rei em Lester Ville e seu
domínio ia muito além dali: Hertwake era sua também.
A única alternativa que me restava era tentar livrar o meu pai
daquele tormento da forma mais cabível possível: através da boa e velha
fiança.
Caríssima, por sinal.
Desde que soube sobre o acordo judicial que Adam conseguiu para
meu pai, fiz o possível – e até o impossível – para conseguir a quantia
equivalente a fiança necessária para libertá-lo e agora, no entanto, sentia-me
um verdadeiro traidor por ter me esquecido do meu real objetivo: a porra do
dinheiro.
Era apenas nele em que pensava quando concordei em ajudar no
plano de Serena. E era nele, também, em que deveria estar pensado quando
beijei Astrid pela primeira vez. Apesar disso, era na forma como seus lábios
pareciam convidativos demais, ou na maneira como seus olhos castanhos
brilhavam contra a má iluminação da piscina naquele dia, que eu estava
pensando durante o ato.
E agora, depois de tê-la, tudo se tornou mil vezes pior.
Antes, tudo não passava de uma fantasia. Agora era realidade – e era
completamente impossível de ignorar. Acabei me afastando do meu real
objetivo e não conseguia parar de me sentir culpado por estar feliz quando
não deveria estar. Por quantas vezes eu havia presenciado meu pai batalhar
para que pudesse pagar as contas da casa ou para que simplesmente eu
pudesse comer?
Ele era a pessoa mais altruísta e nobre que conhecia, sendo a minha
maior inspiração, mesmo sabendo que jamais poderia ser como ele, afinal,
mesmo que a concepção de que não deveria estar com Astrid me atingisse
feito um soco no estômago, eu sabia que não era forte o suficiente para
deixá-la.
Eu a amava muito mais do que gostaria e não estava disposto a
perde-la.
Aconteceu alguma coisa? questionou Adam, provavelmente
ao notar a minha expressão.
Não menti, forçando um sorriso ao rosto. Está tudo bem.
Ele assentiu, mas a expressão em seu rosto beirava a desconfiança, o
que me fez ter certeza de que a mentira que contei não soou tão convincente
quanto o desejável.
Escute só, meu rapaz recomeçou a falar, após apenas alguns
segundos em silêncio. Seja lá o que estiver acontecendo com você, saiba
que pode contar comigo. Farei o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo.
declarou, me arrancando um sorriso.
Obrigado, Adam.
Disponha. retrucou, sorrindo.
Abri a boca para respondê-lo, mas antes que o fizesse, a garçonete
chegou com nossos respectivos pedidos. Ela carregava consigo uma
bandeja com waffles e alguns burritos, e não tardou a colocá-los sobre a
nossa mesa, servindo-nos.
Sorrindo, mordisquei um dos burritos e pelo menos naquele
momento, me permiti degustar a comida, sem me preocupar com mais nada.
40.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
A fitei por longos segundos antes de seguir a sua ordem, sem deixar
de fazer uma careta ao constatar o quanto aquela cena soava como um deja
vú bizarro. Alguns segundos se passaram, até que a garrafa por fim
estancou, apontando entre Jacob e Bella. Estreitei os olhos para a expressão
presunçosa dela, notando, então, que o gargalo apontou para ele, tornando
evidente que seria ela a fazer a pergunta.
Maravilha... murmurou Jacob, esfregando o rosto, enquanto
Bella sorria largamente.
Bem, vamos lá: verdade ou desafio? inqueriu ela, esboçando
um sorriso malicioso.
Verdade. respondeu Jacob sem rodeios, provavelmente
receoso de que ela, dessa vez, o desafiasse a beijar Nate nos lábios.
Excelente escolha ela opinou, desviando o olhar dele, para um
ponto fixo às suas costas. Imediatamente segui seu olhar, observando que
ela fitava as escadas e, em específico, Carly, que tinha Serena ao seu lado.
Deslizei o olhar para Jacob que assim como eu, tinha o cenho
franzido em confusão.
Vou começar a pergunta com a própria “fonte” ao lado disse
Bella, com os olhos fixos em Serena. Pois bem: é verdade, Jacob Davies
fez uma pausa, alternando o olhar entre Jacob e eu. Que você foi pago
para sair com a sua atual namorada?
Pisquei algumas vezes, completamente incrédula pela sua pergunta,
mas foi apenas ao virar ao rosto e fitar a expressão empalidecida de Jacob,
senti o coração acelerou.
É verdade confirmou Serena, com a voz arrastada. Eu o
procurei no mês passado e ofereci uma grana para que saísse com a minha
irmã confidenciou com dificuldade, apontando entre Jacob e eu.
Então ele aceitou e foi muito além do acordado: acabou namorando com
ela.
Olhei bruscamente para Jacob, esperando pelo momento em que ele
a desmentiria, mas para a minha total consternação, ele permanecia calado,
com os olhos fixos em Serena.
Jacob chamei, num fiasco de voz. É verdade? fiz uma
pausa, sentindo os lábios tremeram em uma previsão de que não demoraria
para que me rendesse as lágrimas. A minha irmã pagou você para que
saísse comigo?
Relutantemente, os olhos dele desviaram de Serena para mim e uma
expressão sofrida assumiu seu rosto, antes que ele abrisse e fechasse a boca
diversas vezes, tentando encontrar as palavras certas para usar.
E foi o suficiente para que eu encontrasse a resposta para a minha
pergunta.
Senti as lágrimas rolarem desgovernadas pelo meu rosto, enquanto
sons de risadas entonavam ao meu redor, ao mesmo tempo que Jacob tocava
desesperadamente meu rosto.
Por favor pediu, engolindo em seco. Me deixe explicar, eu
posso...
Não toque em mim, seu desgraçado! disparei, o
interrompendo enquanto me desvencilhava bruscamente do seu toque e me
colocava de pé em um movimento brusco.
É realmente verdade, não é? Serena pagou você para que me
levasse para sair. indaguei, já ciente da verdade.
Ele imitou meu gesto com agilidade, se colocando de pé à minha
frente e tentando tocar meu rosto, ato que impeli, ao empurrá-lo, fazendo
com que cambaleasse.
Sem conseguir conter as lágrimas e os soluços que me escapavam
involuntariamente, passei por ele, ignorando o som das risadas que sabia
que pertenciam à Bella e Carly, e me dirigi até as escadas, quase tropeçando
em meus próprios pés ao passar pelos degraus estreitos.
Sentindo o peito arder e a respiração falhar, em meio a tropeços e
empurrões, passei pelo mar de pessoas que preenchiam a sala de estar e um
soluço descontrolado me escapou quando girei a maçaneta da porta da
frente e saí, sentindo a brisa da noite me atingindo em cheio.
Minhas pernas cederam assim que atravessei o jardim frontal da
propriedade, e foi ao cair de joelhos no gramado bem aparado, que ouvi o
som da sua voz.
E imediatamente enrijeci.
43.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
ASTRID.
JACOB.
ASTRID.
JACOB.
Hoje fazia exatos dois dias desde que não conversava com Astrid e,
não fosse pelo meu momento stalker durante o turno dela na Pop’s, sequer a
veria.
O despertador tocou na cômoda ao lado da minha cama, se
revelando verdadeiramente inútil, tendo em mente que eu já estava
acordado. Não conseguia dormir nem mesmo se quisesse e sabia que estava
a meros passos de me tornar um zumbi ambulante. Me espreguicei, me
pondo de pé logo em seguida e migrando até o banheiro, aonde tratei de
realizar a minha higiene matinal.
Depois de estar devidamente limpo, fiz o percurso até a cozinha,
abrindo a geladeira na esperança de encontrar algo para comer, mas ao abri-
la, fui tristemente bombardeado pela lastimável realidade: havia usado
quase que completamente o meu dinheiro no pagamento da fiança do meu
pai, o que me impediu de fazer a rotineira ida ao supermercado e,
consequentemente, de comprar comida.
Bufando, bati a porta da geladeira e foi nesse exato momento que
um batido à porta entonou, chamando a minha atenção. Eram sete e trinta.
Quem diabos poderia ser àquela hora?
Coçando a nuca, me dirigi casualmente até a porta, conferindo o
olho mágico antes de eventualmente abrir a porta, dando passagem para
Adam, permitindo que entrasse. Entretanto, ao invés de adentrar na casa, ele
apenas permaneceu imóvel, com um sorriso enorme nos lábios.
Estreitei os olhos.
Aconteceu alguma coisa? questionei, estranhando o ato.
São sete e trinta da manhã e você está na porta da minha casa. Por que está
sorrindo?
O sorriso dele permaneceu intacto, ao mesmo tempo que ele
estendia uma das mãos até mim, me entregando um papel esbranquiçado.
Suspirei.
Por favor, que não seja nenhuma multa ou coisa do tipo, porque
se for, juro que terei de recorrer a prostituição para me manter.
Adam bufou, recolhendo o papel das minhas mãos em um
movimento brusco.
Já que você obviamente não irá ler, vou ser mais prático e lhe
explicar o conteúdo aqui expresso ao vivo e a cores.
Franzi o cenho.
Do que diabos está falando? E desde quando usa expressões
como “ao vivo e a cores”?
Ele suspirou, antes de dar um passo para o lado, revelando alguém.
Longos segundos se passaram para que pudesse me certificar de que
não estava vendo uma miragem ou pior, tendo uma alucinação.
Mas não.
Lá estava ele, bem diante dos meus olhos.
O pouco cabelo que costumava ter, agora estava ralo, deixando
apenas alguns fios visíveis sobre a careca brilhante em sua cabeça. Os olhos
âmbar, exatamente iguais aos meus, tinham rugas, com olheiras arroxeadas
os cercando, e não custei a perceber o quanto havia perdido peso.
Ainda incrédulo, dei mais alguns passos em sua direção e foi apenas
quando ele abriu os braços, deixando escapar algumas lágrimas pelo seu
rosto, que corri em sua direção, o abraçando apertado no momento que
aniquilei a distância entre nós. Sem acreditar no que estava acontecendo,
recuei um passo, espalmando seu rosto e o tateando em incredulidade.
Você está aqui murmurei estupidamente, sentindo as lágrimas
quentes rolarem pelo meu rosto enquanto o fitava.
Estou, meu filho. E é tudo graças á você. deslocou o olhar
para um ponto fixo às minhas costas e, ao segui-lo, fitei Adam com uma
expressão emocionada. Graças à vocês dois. corrigiu, antes de passar
um dos braços pelo meu ombro, exatamente como costumava fazer. Meu
Deus, garoto, olhe só para você constatou, me medindo dos pés a cabeça
com um sorriso enorme nos lábios.
Sorri.
E você perdeu o barrigão comentei, fitando sugestivamente o
local em questão onde, alguns anos atrás, uma enorme “pança” costumava
jazer.
Ele socou meu ombro.
Olhe o respeito, garoto. Ainda sou seu pai. Espero que tenha
cuidado bem da Betsy enquanto estive fora.
Adam franziu o cenho, ao mesmo tempo que revirei meus olhos.
É claro que cuidei, pai. E não sei se você se recorda disso, mas a
deu para mim antes de ir parar em cana.
Ele fechou a cara.
É verdade, mas agora a estou confiscando de volta. Ela é minha,
afinal de contas.
Adam pigarreou.
Perdão, mas quem é Betsy?
Papai riu, enquanto tive o desprazer de ter que sinalizar para a
caminhonete estacionada na garagem da casa.
Adam piscou várias vezes, parecendo descrente sobre a real
identidade de Betsy, popularmente conhecida como o amor da vida do
velho Mike Davies.
Ok, eu preciso de um banho. Um banho de verdade. declarou
o homem em questão, largando a bolsa que anteriormente carregava nas
costas contra o chão, antes de agilmente se dirigir até o interior da nossa
casa.
Adam estava prestes a segui-lo, quando o interceptei, pigarreando.
Rapidamente conquistei a sua atenção mediante o ato.
Adam, como isso aconteceu? indaguei, baixando o tom de voz
e arriscando um olhar na direção da porta da sala, de modo que pudesse me
certificar que meu pai não nos estivesse ouvindo. Como conseguiu soltá-
lo? Não depositei a quantia inteira e, pelo que me lembro, faltava um pouco
menos da metade dela.
Adam coçou o queixo.
Bem, quanto a isso não há com que se preocupar. A fiança foi
paga. Devidamente paga, devo dizer.
Franzi a testa.
Mas como? Que parte de faltava um pouco menos da metade
dela, você não entendeu?
Entendi o que você disse, mas não menti quando confirmei que a
fiança foi devidamente paga. O pagamento total foi efetivado ainda ontem,
o que garantiu a liberdade do seu pai. No entanto, ele terá de arcar com
algumas obrigações, como, por exemplo, comparecer perante a autoridade
da cidade vizinha ou até mesmo desta, caso ocorra alguma intimação para
os atos do inquérito ou do processo. Você deverá ficar de olho no seu pai,
meu rapaz.
Adam o interrompi ansiosamente. Agradeço os conselhos e
por tudo o que tem feito por nós, mas sinceramente, a única coisa em que
consigo pensar agora é em como a fiança foi paga se eu não a paguei e
certamente você também não. De onde esse dinheiro saiu?
Adam franziu os lábios, desfazendo o contato visual enquanto
ajustava a sua gravata. Sua postura esbanjava desconforto, algo que me fez,
de imediato, desconfiar.
Adam o chamei, estreitando os olhos. Você sabe de alguma
coisa, não é? Sabe de onde essa grana veio e não quer me contar.
Ele esfregou a testa, parecendo cansado.
O responsável pelo pagamento da fiança me pediu sigilo.
Como assim? Quem diabos seria tão caridoso assim em Lester
Ville? As pessoas daqui não são nem perto boas, Adam. Poderia, por
gentileza, informar a identidade desse ser angelical?
Ele negou com a cabeça.
Sinto muito, mas não posso.
Bufei.
Ah, por favor, Adam. Seja lá quem tiver sido, tem de ser
reembolsado, porque meu pai e eu pagaremos cada centavo do dinheiro.
Não acha que temos o direito de saber de quem se trata para que possamos,
posteriormente, pagá-lo?
Ele ficou quieto por alguns segundos, parecendo ponderar sobre a
minha declaração até suspirar e finalmente falar:
Tudo bem, você está certo. Contarei em respeito à honra que seu
pai e você tem, terei de, infelizmente, romper com o pedido que me foi
feito, mas não vejo outra alternativa. refletiu, ajustando a gravata antes
de voltar a me fitar: Anteontem recebi uma ligação de Edgar Spencer,
me perguntando sobre o caso de Mike Davies e quando o questionei sobre a
sua motivação, ele explicou que gostaria de fazer o pagamento da quantia
restante que faltava para a efetuação da fiança. De início desconfiei, mas
quando recebi a confirmação do depósito que ele havia feito na minha conta
bancária, nada mais pude fazer além de respeitar o seu pedido, efetuando
por completo o pagamento da fiança de Mike.
Meu queixo caiu.
Espere um segundo: está me dizendo que foi Edgar Spencer
quem pagou pela fiança do meu pai?
Exatamente. Ele é um homem indiscutivelmente muito nobre,
não acha?
E maluco complementei embasbacado, fazendo o homem
diante de mim me fitar espantado. Ele claramente não sabia sobre Astrid e
eu, então não entenderia a minha razão em desconfiar da atitude de Edgar.
Não fazia o menor sentido.
Por que não comemora o regresso do seu pai ao invés de ficar se
preocupando tanto? Adam sugeriu, me trazendo de volta à realidade.
Seu pai comentou o percurso inteiro até aqui, que está morrendo de vontade
de comer algo bem gorduroso, com muita cerveja para acompanhar.
Sorri.
É bem típico dele, querer se entupir de porcarias. comentei,
balançando a cabeça em diversão ao lembrar de todas as comidas
gordurosos cm as quais meu pai estava habituado a comer antes de ser
preso. “Cerveja” sempre foi o nome do meio dele.
Adam assentiu alegremente.
E então, o que acha de realizar o desejo do seu pobre pai? Aposto
que ele ficará extasiado ao se deparar com um bom e velho hambúrguer
gorduroso e, é claro, algumas cervejas. Devo admitir que eu também
adoraria degustar de tais coisas antes de voltar para casa.
Suspirei.
Ok, Adam. Já entendi. Vou providenciar a droga dos
hambúrgueres e você pode ficar para o almoço, se quiser.
Ele abriu um sorriso largo e, sem pestanejar, girou nos calcanhares,
adentrando na nossa casa e provavelmente indo direto até a cozinha.
Conferi minhas roupas e praguejei baixinho ao me dar conta que
nada mais usava do que um moletom velho e uma camiseta preta surrada.
Bufando, passei pela porta da sala, sorrindo ao ouvir o barulho do
chuveiro ecoar pela casa que, por tanto tempo, permaneceu
insuportavelmente preenchida pelo silêncio da solidão.
Troquei de roupas, bufando ao notar Adam se queixar sobre a falta
de alimentos na geladeira e tive de realmente me impedir de soltar um
palavrão ao ter que abrir mão da pequena economia que tinha guardado em
uma das gavetas do meu quarto, mas instantaneamente relaxei ao me
recordar que ele estava aqui.
O objetivo que, por tanto havia arduamente perseguido, por fim
havia sido alcançado e ainda que me sentisse completamente aliviado e
realizado por ter meu pai de volta, ainda sentia que estava faltando algo.
E lá no fundo, sabia exatamente o que era.
Ou melhor, quem era.
Sentia falta dela a cada maldito segundo do dia, e a lembrança de
que havia sido seu pai o responsável pelo pagamento da fiança do meu, me
deixava intrigado e definitivamente desconfortável.
Não conseguia compreender a real motivação dele e a desconfiança
estava me consumindo segundo a segundo.
No entanto, ao invés de continuar com a dúvida fixa à cabeça, decidi
seguir o conselho de Adam: comemorar o retorno do meu pai.
Então, sem hesitar, saí de casa, pegando a caminhonete que por
tanto tempo esquecera seu nome, e dirigindo até a lanchonete mais próxima,
em busca da comida fast food que meu pai tanto desejava naquele
momento.
Lidaria com os problemas no dia seguinte.
Hoje era dia de comemorar.
51.
ASTRID.
EPÍLOGO.
JACOB.
Julho.