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Copyright © 2022 Annia Elle

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, de toda ou


qualquer parte desta obra, por meio eletrônico ou físico, sem o
consentimento da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código
Penal.
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é
mera coincidência.

Revisão: Wedla Silva


Betagem: Wedla Silva e Carolina Martins
Playlist
Notas da Autora
Dedicatória
Epígrafe
Prólogo
01 | Armando
02 | Alana
03 | Nickolay
04 | Nickolay
05 | Alana
06 | Nickolay
07 | Armando
08 | Nickolay
09 | Alana
10 | Alana
11 | Nickolay
12 | Alana
13 | Armando
14 | Alana
15 | Nickolay
16 | Alana
17 | Nickolay
18 | Alana
19 | Nickolay
20 | Alana
21 | Nickolay
22 | Armando
23 | Alana
24 | Nickolay
25 | Nickolay
26 | Armando
27 | Nickolay
28 | Alana
29 | Nickolay
30 | Alana
31 | Nickolay
32 | Nickolay
33 | Armando
34 | Alana
35 | Nickolay
36 | Nickolay
37 | Alana
38 | Armando
39 | Nickolay
40 | Armando
41 | Alana
Epílogo | Alana
Epílogo | Nickolay
Agradecimentos

Se você gosta de ler ouvindo música, Saída tem uma playlist


no Spotify com 44 músicas. É só escanear a imagem abaixo para
ouvir, ou clicar aqui.

Boa leitura!

Chegamos no último!
Saída é o terceiro livro da trilogia Peça-Chave, e deve ser lido
após os dois primeiros.
Saída é uma história com gatilhos. Menção de abuso e abandono
infantil, morte, violência e consumo de drogas e álcool são os mais
importantes de serem sinalizados. Sempre priorize a sua saúde mental
antes de ler.
Os protagonistas, além de seus milhares de gatilhos, possuem
alguns vícios linguísticos. Qualquer erro nas falas faz parte da
caracterização do personagem.
Também, palavras e frases em língua estrangeira têm a devida
tradução assim que aparecem pela primeira vez no texto, e estão em
itálico.
Para todos que são mais visuais, meu Instagram (@anniaelle) está
cheio de informações adicionais, vídeos e imagens que usei de
inspiração ao criar essa história.
Um beijo, e espero que goste do desfecho de Nico e Lana,

Pra você, que chegou no último livro deles, e promete


só ameaçar de morte a autora depois da página final.

Saída: (figurado) Maneira de superar uma dificuldade.


Momento de partida.
Dito inesperado.

Itália, 1995.
— O que você fez?
Engraçado como nunca pensamos que vamos morrer. A gente
não tem o costume de pensar na morte antes de muitos, muitos
anos vividos. Eu, pelo menos, não tinha. Nunca pensei.
Então, achava sim engraçado como, mesmo sem nunca ter
parado para pensar no meu fim, a morte tinha me achado, tão como
eu tinha encontrado quem usava seu nome. O tive tantas vezes
deitado ao meu lado, o ceifador personificado, e ainda assim, com
minha Morte, criei a vida que ouvia chorar no meu quarto.
Anna.
Abri a boca, sentindo meus músculos formigarem, até que
parei de senti-los por completo. Anna era tão pequena. Ela não
conseguiria sobreviver sozinha, e Armando nem ao menos a tinha
segurado. Ele não tinha, e eu nunca deveria tê-la largado e aberto a
porta da frente. Respirei uma última vez, focando no que havia
deixado cair. O que eu mastigava caiu da minha boca, minha
mandíbula perdendo a força para triturar, meu cérebro ainda
tentando juntar os pedaços para entender o que acontecia.
Os olhos foram a última parte minha da qual perdi o controle.
Fui para o chão, o peito queimando, querendo puxar um ar que não
vinha, e meus olhos percorriam o quarto, indo do vermelho para o
berço onde queria estar. Eu vi vermelho, para então acabar cara a
cara com o verde e marrom que havia me conquistado minutos
antes.
Quem vivia me chamando de ingênua era Barbara, e naquela
tarde, nunca me senti mais estúpida. Minha bebê chorava e
chorava, estando a metros de mim, e minha burrice me impedia de ir
até ela. De aninhá-la em meus braços. De beijá-lo outra vez. Eu
queria tanto sentir seus lábios uma última vez, o homem que era
parte do meu amor distante de mim por tempo demais.
— Sinto tanto, Carina. — Mas não parecia correto ela me pedir
perdão, assim como não parecia certo aquele ser o meu fim. Eu
ainda tinha tanto para viver! Era desesperador perceber que estava
perdendo todos os meus dias. Justo agora, justo quando sentia que
minha vida tinha começado de verdade.
Parecia estar flutuando. Eu estava sem respirar já havia tempo
demais, era por isso. Anna ainda chorava, mas os sons estavam
cada vez mais baixos, e pensei nas últimas palavras que escrevi no
caderno verde. Era uma verdade dolorosa, meu último pensamento
sendo os braços tatuados a segurando, antes de perder o resto da
minha força. Meus lábios levantaram mesmo comigo triste, mesmo
com lágrimas caindo dos meus olhos.
Armando cuidaria do nosso amor, e minhas últimas palavras
escritas se tornaram meias verdades: eu nunca mais pararia de
sorrir.

2019 | Dez dias antes da morte de Matarazzo.

Vancouver tinha as piores macarronadas de todo o mundo. Eu


provei todas, em todos os restaurantes, durante os últimos três
anos, e nenhuma chegava perto das que Barbara fazia aos
domingos.
O sangue que manchava o chão do galpão parecia muito mais
com molho de tomate italiano que as tentativas patéticas daquela
cidade.
Tudo parecia patético demais ali. O clima era patético. A neve,
que quase nunca caía, e que quando resolvia aparecer parava a
cidade, era patética. A garoa, que algumas vezes queria ser chuva e
virava granizo, era patética. O calor, que quando aparecia,
queimava os gramados e colocava fogo nas florestas, era realmente
patético. E talvez as idiotices da natureza transformassem os
moradores em seres, por falta de melhor palavra, patéticos.
O homem que morreu com a cabeça estourada era um dos
mais imbecis que habitou o Canadá, sem dúvida. Sua imbecilidade
conseguiu foder com tudo que construí para eles, e eu me sentia tão
idiota quanto por não o ter matado. Matarazzo levou a família inteira,
os três corpos deitados não muito longe do patriarca de um
sobrenome morto ainda com os sacos na cabeça.
Odiava quando a máfia chegava nas crianças, e Matarazzo
não sabia mais arrancar informações. O último detalhe era uma
benção, claro. Depois que fui embora, demoraram muitos anos para
surgir alguém tão cruel quanto seu braço direito, que todos achavam
ter morrido no mar.
Eu não gostava de pensar na palavra cruel. Preferia me iludir
dizendo que era apenas um trabalhador impecável: conseguia
cumprir minhas funções, e me desassociar dos feitos ao pisar fora
do trabalho. Sempre fiz isso ao pisar dentro das minhas casas.
Nickolay, não. Mas eu não conseguia ver como cruel o menino
que sempre foi tão doce. Também me desgostava pensar que, justo
o filho que tanto tentei deixar fora de tudo, abraçou a máfia e suas
piores funções.
Nickolay não era cruel, Nickolay era quebrado. Tão quebrado
quanto eu havia me tornado. De tudo que poderia ter passado a ele,
sentia que tinha lhe dado apenas minhas piores qualidades. Todos
os meus vícios, e nem dividíamos o mesmo DNA.
Deveria ter morrido mais cedo.
— Meia hora, e ele teria encontrado a garota — escutei de
Dimitri, o russo entrando com uma equipe inteira, o cheiro de cloro
tomando conta do ar.
Sair da máfia italiana para acabar na irmandade russa foi a
melhor e pior coisa que fiz. A melhor porque isso livrava quem eu
não queria perto do sobrenome insano. A pior porque os russos são
versões insanas de mim.
Mas talvez devesse considerar as duas coisas como boas. Se
eu não tivesse reaprendido a desligar com eles, não estaria mais
vivo. E se tivesse desistido e me encontrado com ela, duvidava que
Lorenzo teria conseguido manter minhas duas melhores partes
intocadas — nem toda a competência do mundo teria o ajudado.
Não que Nico e a esposa — esposa — estivessem exatamente
livres, por mais que não soubessem ainda. Eu conseguia dar mais
alguns dias de ignorância para os dois.
— Não se preocupe, Yan está atrás da sua filha.
— Alana não é minha filha. — Anna era minha filha. E Anna,
eu me forçava a repetir todos os dias, morreu com Carina.
Alana era filha de Astrid. A conversa que tive horas atrás foi
com minha nora. A mulher que peguei no colo no meio da neve não
tinha nada do bebê que eu me neguei a segurar naquela tarde.
— E Nickolay é?
Forcei meus olhos a encararem os sem vida até o corpo ser
removido, um esfregão limpando o vermelho, a água rosada
batendo nas minhas botas.
— Victor não quer te matar. Foi o que Mantovanni disse, pelo
menos. — Lorenzo, e sua irritante mania de suavizar as coisas.
Victor, do outro lado da linha, gritava que faria muito pior quando
descobriu minha real história. — Ele parece até bonzinho, muito
menos sádico do que o italiano-russo que eu lidava no Brasil.
Deveria se contentar com o mais velho.
— Deveria manter a boca fechada. Ou posso abrir a minha, e
falar para o Pakhan sobre o dia em que eu comprei seu silêncio
quanto ao filho que nunca foi dele — avisei, o celular vibrando
novamente me fazendo iluminar a tela. — Falando no diabo. — E eu
aceitei a ligação. — DeLucca.
— O assassino italiano, correto? — Não era Demidov. Pelo
menos, não o Demidov para quem eu costumava trabalhar. — Acho
que sou o seu novo chefe.

Eu sabia que não era normal uma TPM durar um mês inteiro.
Engraçado como, de tudo que havia acontecido nas últimas vinte e
quatro horas, era aquilo que não saía da minha cabeça.
Dane-se o sangue que eu ainda lembrava manchando a neve,
para o inferno o homem que foi e o que ressurgiu dele. Nico estava
sorrindo, eu estava sorrindo, ambos provavelmente não acreditando
no que nossos lábios faziam, mesmo depois de termos armas
apontadas para a cabeça outra vez, em menos de seis meses.
Foi quando quis jogar a casa inteira na cabeça do mais velho
que o alarme disparou na minha mente. Eu fiquei tão nervosa, não
era normal. Não naquele nível, não a ponto de querer agredir
fisicamente alguém. Por mais nervosa que fosse, violência física só
entrava em cogitação quando minha vida dependia dela.
Então eu subi, e agradeci ter um estoque de testes de gravidez
na gaveta. E junto de uma boa vontade de fazer xixi, e um atraso
que eu só agora notava ser bem maior do que o último que me deu
falsas esperanças, eu positivei — positivar era um verbo? — três
testes. Três. Testes. Positivos.
— Parabéns, papai. — Era como tirar três notas dez, ou ao
menos era para Nickolay, uma expressão que parecia tanto
desacreditada quanto orgulhosa no seu rosto.
O italiano se levantou, indo até mim e cobrindo a boca com as
mãos ao olhar para um dos positivos, os olhos escuros alternando
do teste para os meus. Ele sorria, apesar da queimação que deveria
estar sentindo na orelha, mesmo sabendo que mais uma pessoa
havia o abandonado em vida. Nico sorria, uma das palmas tocando
minha barriga ainda reta, ele focando no que crescia ali. Nunca teve
tanto amor em um gesto, e eu sentia que finalmente tínhamos o que
nós dois sempre desejamos, por pior que fosse o tempo. Um filho,
com o homem que eu chamava de lar.
Então, assim que era sonhar de olhos abertos.
— É sério? — Os olhos ainda iam do resultado para minha
barriga, para então voltarem a buscar os meus. — É sério isso,
Alana?
Nem sequer havia considerado a possibilidade com ele fora.
Tendo feito um teste um dia após Nickolay sair de casa, ver o
negativo tinha sido o suficiente para meu cérebro descartar qualquer
possibilidade de sucesso vinda das nossas tentativas. Eu vivia
atrasada e não grávida, afinal. Os seios doloridos eram, com
certeza, culpa do inchaço. A vontade que eu tinha de gritar, para
depois chorar e então ter uma crise de riso era, sem dúvida, culpa
da bagunça que estava minha vida sem ele. Todas as maçãs que
devorava era puramente para irritá-lo nos meus pensamentos.
— Eu acho que sim? — Tinha certeza que sim, as outras duas
varetas descansando sobre a pia nos mostrando o mesmo
resultado. — Bem, eu fiz três testes, e os três deram positivo, então
a não ser que tenha algo de muito errado comigo, eu tô bem
grávida. — Muito, muito grávida.
Meus dedos acharam as bordas do sutiã por cima da camiseta,
notando que a peça, que antes eu lembrava ser larga, estava muito
mais justa.
— Pelo menos um mês grávida. — E fechei os olhos, me
deixando aproveitar por alguns segundos o toque carinhoso do meu
marido. Aquela barriga estaria gigante em alguns meses, e ao
mesmo tempo que já a queria enorme, desejava aproveitar cada
segundo a vendo crescer. — Isso seriam quatro semanas? Eu
nunca entendi como se conta…
Os lábios grossos me calaram, os braços tatuados me
puxando para ele. Nico tinha o melhor dos gostos e dos cheiros, e
do mesmo jeito que ele se modelava em mim, eu me agarrava ao
seu corpo, meus dedos amassando o tecido da sua camiseta, meus
olhos fechando e imaginando uma vida com nós três.
Só voltei a enxergá-lo minutos depois, quando sua boca deixou
a minha, e ele ainda vestia o maior dos sorrisos.
— Um filho.
— Ou filha. — E eu tive que rir com a memória que me veio. —
Ou, o que você disse mesmo da última vez? Os dois, se fez direito?
Acha que fez direitinho, italiano?
A risada dele se juntou à minha, Nickolay me pegando nos
braços como se eu não pesasse nada. Me perguntar se ele
conseguiria fazer o mesmo em alguns meses foi inevitável e fez
meu sorriso aumentar mais, a minha felicidade com certeza sendo
nauseante para quem via de fora.
Mas nem a parte das náuseas que eu talvez viesse a sentir
conseguia me fazer triste, nós dois indo parar na cama, eu
colocando o teste na mesa de cabeceira e me deitando em cima do
meu marido. Apoiando o rosto nas mãos, meus cotovelos em seu
peito, estudei o italiano. O homem, para mim, já era o melhor pai do
mundo, por mais que soubesse que Nickolay fosse me irritar e
discordar da minha certeza.
— Como consegue, Alana? — Era como se as últimas horas
não tivessem existido, e eu nos deixaria esquecê-las por mais
algumas. A mão grande tirava os fios que insistiam em cair no meu
rosto sempre que soltos, e eu via nossa alegria refletida em seus
olhos. — Como consegue melhorar até meu pior dia? Sou um
puttano[1] sortudo por te ter do meu lado.
E então, a preocupação que aquele dia — aquela noite — não
precisava.
— Amore mio[2], está bem? — Era eu quem deveria perguntar
aquilo. — Essa briga, Armando… — Entendia o motivo da
preocupação, e por um segundo, desejei saber se o excesso dela
que com certeza viria me deixaria louca nos próximos meses.
Era minha vez de calá-lo, e eu esperava que conseguisse
expressar com o beijo que lhe dava o quanto estava longe de
qualquer coisa ruim. Não iria pensar em nada, naquela noite, além
de nós três. Me afastei apenas o suficiente para conseguir falar,
meus dedos ainda roçando pela barba maior do que a que estava
acostumada, eu notando os detalhes de sua íris. Já imaginava
aquela cor no bebê que não sairia de nossos braços, o castanho
esverdeado sendo tudo que desejava ver no que chamávamos de
nosso.
Talvez eu realmente fosse parecida com Carina. Mas não
admitiria aquilo jamais para quem se atrevia a me chamar de filha.
— Nico — o coração dele batia contra o meu, e sabia que nós
dois não víamos a hora de começar a sentir o terceiro entre nós. —
Eu nunca estive melhor.

Acordei com o sol batendo no rosto, as tatuagens ao meu


redor, a respiração de Nickolay no meu pescoço. Abrindo os olhos,
decidi que aquele trio era o suficiente para fazer um dia perfeito. Me
virei para ele com um sorriso, meu marido fazendo eu me apaixonar
ainda mais pelo número três ao me beijar na testa, no nariz, e então
finalmente capturar meus lábios.
Nenhum dos dois se importava com o gosto metálico do lábio
aberto, e eu precisava do beijo antes mesmo de escovar os dentes.
Nico me colocava em cima de seu peito, e mentalmente, me
perguntei se estávamos nos tornando aqueles casais que antes me
dava enjoo só de ver.
— Bom dia, italiano — falei preguiçosa, nós dois com sorrisos
maiores que o normal, meus olhos favoritos brilhando contra a luz
azulada de um dia com neve. — Que cara é essa?
— Nunca achei que fosse ser tão feliz. — Talvez ele nunca
tivesse me dado tanta sinceridade quanto agora, e eu senti meu
peito leve, apesar dos últimos acontecimentos.
Apesar do que estava por vir, e eu lembrei de toda a noite
passada. De toda a tarde. De todos os problemas que surgiriam
para resolvermos.
— Mesmo depois de ontem? — Minha mão traçou as linhas
fortes do seu rosto, meus dedos chegando perto do curativo que
cobria a orelha esquerda.
— O que aconteceu ontem? — Ele a segurou, levando-a até
seus lábios. — As duas me fazem esquecer. — E com aquilo, Nico
me dizia o quanto não gostaria de falar sobre o assunto que voltaria
a nos procurar até o final do dia.
Bem, algumas horas de paz não nos matariam. Ao menos, era
o que eu esperava.
— As duas? — Levantei uma sobrancelha. — Tá achando que
vai ganhar uma menina?
— Eu vou amar o que vier, dolcezza. — Sempre as melhores
respostas, e o que eu sentia embaixo de mim era, também, um
ótimo bom dia.
Já empurrava seu peito de volta para cama, as mãos
agarrando minhas coxas enquanto me pressionava contra sua
ereção, quando meu estômago, finalmente, resolveu se manifestar.
Nunca saí tão rápido de cima dele, cobrindo a boca com a mão e
esperando chegar a tempo no banheiro.
— Bella[3], está bem? — escutei enquanto ainda esvaziava o
nada que tinha na barriga, e até passar mal me deixava feliz. Menos
de um ano atrás, era um motivo completamente diferente que me
fazia vomitar, e não fosse pela mão que esfregava minhas costas,
poderia nunca ter a chance de experimentar o que sentia agora. —
Eu estou aqui, Alana.
Irritantemente perfeito, e eu nunca mais iria parar de sorrir,
tinha certeza.
Demorou alguns bons minutos até meu corpo decidir desistir
de esvaziar o que já estava vazio, meu estômago resolvendo sentir
fome logo após eu sair do chão. Meu organismo estava
definitivamente maluco, e me perguntei se os hormônios realmente
nos deixariam loucos nos próximos meses.
Não conseguia ver o homem que descia as escadas na minha
frente reclamando daquilo.
— Finalmente faz sentido — já estava sentada no banco da
cozinha quando ele disse.
Nickolay preparava ovos mexidos, o italiano cozinhando me
deixando com água na boca tanto pela visão, quanto pelo cheiro da
comida. Precisava confessar que além dele, sentia falta das receitas
que nos alimentavam, tendo cansado de comer macarrão com
salsicha antes do vigésimo dia.
— O que? — o olhei curiosa, esperando uma continuação.
— Todas as vezes que eu te vi com uma maçã na mão. — Ele
colocou os ovos prontos numa tigela, o pão saltando da torradeira.
— Tem desejos de maçã, não tem?
Tudo era irritantemente perfeito e sincronizado quando Nico
estava na cozinha, tão diferente do caos que eu fazia.
— Você voltou pra casa não faz nem dois dias — comecei,
molhando os lábios ao ter o cheiro posto na minha frente. — Me viu
comer uma ontem de noite, e já acha que tenho desejo disso?
Ele soltou uma risada baixa, voltando com as fatias do pão de
sanduíche.
— Eu te vi com uma maçã ontem, sim. Também te vi com uma
no dia que não cedeu às minhas tentativas de tirar sua roupa e me
mandou embora. — Revirei os olhos, pensando se comentava ou
não sobre o drama que Nico fazia algumas vezes.
— Dois dias! — Tinha continuação.
— Então, te vi comprando maçãs quatro vezes no mercado.
Flávia me contou que tudo que cozinhava com açúcar tinha maçã.
Comia uma maçã todas as noites, antes de se deitar no sofá. E na
tarde que busquei a foto… — A voz se perdeu antes dele terminar, e
eu sabia qual momento Nickolay tinha se lembrado: ele bêbado, eu
derrubando o saco de maçãs na neve. — Cazzo[4], estava grávida, e
eu me comportei como um idiota. Perdi um mês inteiro sendo um.
Sacudi a cabeça.
— Bem, se você perdeu um mês disso, eu perdi também. —
Dei uma garfada, meus olhos procurando a fruta pela cozinha,
mesmo saboreando o melhor café da manhã que tive em semanas.
— Não é como se eu soubesse antes de ontem.
Por mais deliciosa que a comida estivesse, meus lábios
formaram um bico ao perceber o que eu não conseguia achar.
— O que foi?
— Comi a última maçã ontem de manhã. — Poderia escutar
aquela risada rouca o resto da vida.
— Vamos comprar maçãs, dolcezza.
Saíamos do mercado quando o celular dele vibrou, eu vendo
na tela o nome do meu cunhado antes de meu marido atender.
Eram duas da tarde, e eu achava cedo demais para acabarmos com
a felicidade falsa que nos deixávamos sentir. Os olhos me
observavam com menos brilho do que segundos antes, e fiquei com
raiva dos homens que mancharam a alegria pura que havia na
gente desde a noite passada.
— Estão todos na casa do meu irmão — escutei quando
desligou, Nickolay franzindo a testa ao me ver carregando nossas
compras. — Todos menos Dimitri, porque ainda existe um Deus, e
Alana, por que resolveu carregar as sacolas agora?
Ok, eu o deixaria fingir que toda a irritação que via ali era culpa
de uma sacola, não me opondo ao tê-la retirada dos meus braços.
Ele bufou, abraçando o papel pardo contra o peito, a mão livre indo
para minha cintura após guardar o celular de volta no casaco.
Entramos em casa e o sorriso voltou, permanecendo enquanto
guardávamos a comida. Ficou nos lábios de nós dois durante os
minutos que enrolamos pensando em nomes de bebê, em todos os
segundos que ele examinou minha barriga com as mãos grandes.
Só depois de gastarmos todas as desculpas possíveis para
adiarmos nossa saída de casa que Nickolay voltou a me mostrar
preocupação.
Mas mesmo parecendo aflito, ele dirigiu cantarolando até o
endereço que já era familiar demais. Dez minutos depois, com ele
dirigindo o mais devagar que conseguia, parávamos na frente da
casa conhecida, a frente dela ocupada por mais um carro. Sabia de
quem era, eu tendo entrado no mesmo dias atrás, ao torcer o
tornozelo.
Não queria pensar no quanto o homem havia sido agradável
de se conversar, e por Nickolay, faria o possível para enterrar aquela
memória. Armando podia ser meu pai biológico, mas não ter sido o
pai do menino que tanto precisava de um me deixava incapaz de ver
qualquer coisa boa nele.
— Nico…
— Está tudo bem — ele me assegurou, uma das mãos na
minha coxa, e eu sabia que não estava. — Todas as dores estão
melhores do que ontem. Eu não estou preocupado comigo. —
Depois de minutos demais comportada eu, finalmente, revirei os
olhos.
Nickolay nunca estava preocupado com ele mesmo.
— Mas deveria! — E bufei, como Nico havia feito mais cedo,
meu marido sabendo que minha irritação era, como a dele, inteira
com a situação, e não conosco. — Nickolay, é seu pai!
— É seu pai.
Ok, talvez um pouco da minha irritação fosse pela sua
teimosia.
— Não é não! — E era ele quem revirava os olhos agora, e eu
queria mais do que tudo que tivéssemos continuado sem roupa ao
invés de nos vestido e dirigido até aqui. — Para de fingir que não
me entendeu. Eu tenho sete meses e alguns dias para chorar, gritar
e colocar toda a culpa nos hormônios, então se comporta — avisei,
abrindo a porta, e o alívio me invadiu outra vez ao ver o sorriso dele
voltar.
— Cazzo — escutei quando ele trancou o carro, me puxando
para perto ao chegar do meu lado. — Não vou ter paz nunca mais.
— E ainda assim, tá rindo. — Um último momento de
normalidade antes de bater na porta. Não sabia quando a teríamos
de volta depois daquela tarde. — Cê gosta de sofrer hein, italiano?
— provoquei, aproveitando nossos segundos finais de calma.
Nickolay parou na frente da porta, virando-se para mim antes
de bater.
— Dolcezza — eu sabia o que ele pediria, e me esforçaria para
aquilo. — Tente não ficar muito nervosa, ok?
A porta foi aberta antes que eu pudesse responder.
— Graças a Deus. — Era Anna Flávia, a mulher nos
apressando para dentro com uma cara exausta.
Talvez eu estivesse com a mesma expressão, tivesse passado
mais do que cinco minutos escutando os gritos em italiano que
vinham da sala. Pendurei meu casaco e tirei as botas, meu marido
fazendo o mesmo, eu notando só agora que sim, ainda havia
sangue na neve. Outra vez, sangue fazia parte dos meus dias, e
sentia que precisaria ser duas vezes mais forte do que havia sido no
passado.
— Eu não aguento mais esses dois — minha cunhada
reclamou, a filha menor agarrada nela, ameaçando chorar. — Só os
faça parar, por tudo que é mais sagrado — ela pediu, olhando uma
última vez para Nickolay antes de rumar para o outro lado.
Era pior do que eu esperava, e ainda nem estava entendendo
a provável briga.
— Eu não faço ideia do que ele tá gritando, mas não soa como
algo bom — arrisquei, conseguindo ver Victor e sua cara nem um
pouco feliz de onde estávamos parados.
— Não é. — E Nickolay fez uma careta no final da última frase
gritada pelo irmão. Era cômico o quanto justo meu marido, que
deveria ir para a sala e ajudar Victor a xingar quem os dois
chamaram de pai, parecia chocado com fosse lá o que estivesse
sendo proclamado para a vizinhança inteira ouvir. — Isso foi brutal.
— Eu quero saber o que é? — Ele encolheu os ombros, e eu
nunca quis tanto falar italiano. — Resume pra mim.
— Victor está elogiando o quão bom pai Armando foi. — O
sarcasmo não passou despercebido, e eu coloquei a mão na frente
da boca, tentando segurar o riso.
Mas qualquer desconforto da parte dele passou rápido demais,
Nickolay me copiando ao escutar a próxima frase. Até em italiano,
fosse lá o que tivesse sido dito soava ruim, e eu só conseguia
pensar que o homem que recebia todas aquelas palavras as
merecia.
— Não prefere ficar com Flávia? — Sabia que ele tentaria me
tirar do meio dos homens, ainda mais agora que eu não era mais
apenas eu. — Que tal se…
— Eu vou ficar aqui, Nickolay. — E o sorriso forçado que dei
ao me virar para ele deixou claro que não haveria qualquer
negociação, meu marido se limitando a respirar fundo e resmungar
que sua alegria sempre durava pouco demais.
Dramático, reclamando, mas me mostrando com seus olhos
que ainda tinha felicidade ali, principalmente ao ver quem eu ouvi
tantas vezes o chamar de filho descendo as escadas. Lorenzo
aparentava estar cansado, mas dava um sorriso largo ao ver nós
dois na entrada.
— Lana, está radiante. — Sempre tão educado, eu levantando
a mão num aceno quando a do meu marido se recusou a me deixar
sair de seu lado. — Nico.
— Estou feliz que esteja bem — Nickolay disse, sincero. A
continuação foi igualmente transparente. — E também quero te
matar.
Não consegui mais segurar o riso, sabendo que estávamos a
minutos de perder nossa vida normal, mas me sentindo demais em
uma família. Bons e maus momentos, gritos e risadas. Tirando os
tiros e mortes, conseguia até me sentir como uma mulher comum.
— Agradeço o equilíbrio. Pelos sorrisos que vejo, acho que
estão tendo um bom dia. — Olhei de canto de olho meu italiano, ele
outra vez com uma expressão feliz, os dedos inconscientemente
acariciando minha barriga.
— Não tenho do que reclamar. Bem, não muito — ele se
corrigiu, nos fazendo andar alguns passos para frente. — Que cara
é essa, Lorenzo? Eu pensei em várias possibilidades dirigindo até
aqui, e nenhuma dessas me incomodou tanto quanto o olhar que
vejo em ti agora.
Quando olhei outra vez para o homem que considerava o
verdadeiro pai de meu marido, ele parecia bem menos relaxado. Vi
os olhos claros passarem rapidamente por onde a mão tatuada
acariciava, e me impressionou Nickolay não ter percebido o quão
óbvio estava sendo.
— Assim que Victor terminar a conversa que está tendo,
precisamos nos sentar. — E eu notei pela primeira vez nosso
sobrinho mais velho, o garoto observando curioso o que acontecia
na sala.
Nico enfim me soltou, cruzando os braços antes de ir para o
lado do menino. Mattia estava para abrir a boca quando Lorenzo o
fez antes.
— Você não.
— Eu tenho dezessete…
— Não interessa, bambino[5]. — O homem mais velho pareceu
usar o termo de propósito, o olhar do garoto igualando o do pai
quando bravo. — É pequeno demais para entender sem causar
problemas.
— Eu não sou pequeno, cazzo! — Ele era, mas eu entendia
bem o que era ser deixada de fora para não empatizar com a
situação.
Não que fosse ajudá-lo a ficar, nunca desejando que alguém
tão novo precisasse ouvir sobre as dificuldades que já sabia que
escutaríamos.
— Não vai sentar conosco, Mattia. E sua mãe vai saber se
resolver se intrometer nos assuntos — Nickolay afirmava num tom
não aberto a qualquer oposição, e outra vez, eu já conseguia
imaginá-lo pai. Ao menos o pensamento me deu um último sorriso, o
garoto passando por nós sem nenhum. — E melhore esse sotaque
se quiser respeito falando italiano, ragazzo[6]!
Sim, aquele meu novo lado, criado assim que vi o positivo,
adorava vê-lo se comportar como faria com nosso filho.
— Quando Victor terminar de gritar, é melhor seguir com o
menino para a cozinha. — Esse novo lado também era bem, bem
mais irritado do que o meu normal, minha resposta vindo irônica e
automática.
— Cê tá brincando, né?
— Não. — Ele nem descruzou os braços, e Lorenzo achou
mais confortável migrar para a sala.
Sim, o homem mais velho devia lembrar bem de nossas brigas
antigas.
Me igualei a Nickolay, e eu perder qualquer traço de bom
humor o deixava muito mais propenso a me escutar. Os olhos
suavizaram, o italiano se aproximando e colocando as mãos nos
meus ombros.
— Me dá um bom motivo. — O vi abrir a boca, imediatamente
sabendo o que sairia dos lábios grossos. — O que tá na minha
barriga não é motivo pra me mandar sair — sussurrei para que
apenas nós dois ouvíssemos, franzindo a testa.
Nico desistiu de tentar ao ver que, mais teimoso do que ele,
apenas eu. Só notei que os gritos haviam silenciado quando a
mesma voz antes berrando chamou meu nome, meu cunhado nos
cumprimentando como se não tivesse acabado de xingar nos
últimos dez minutos o homem que eu não queria ver.
— Não vi que tinham chegado. — Victor era mais parecido
com Nickolay do que eu gostaria. — Lana, talvez seja bom você…
— Se me mandar pra cozinha, eu volto de lá com uma faca. —
Precisava admitir que estava ficando irritada, o toque do meu marido
não servindo muito de calmante quando todos queriam me manter
no escuro. Respirei fundo, forçando um sorriso inocente nos lábios,
Nickolay resolvendo interromper o irmão antes que eu o fizesse.
— Ouviu minha mulher, Victor. — A voz tinha uma tonalidade
sofrida, mas o sorriso estava de volta nos lábios. O meu se tornou
um pouco mais verdadeiro ao ver que, apesar de tudo, estava difícil
sugar toda a felicidade de quem merecia tão mais do que tinha. —
Ela não é exatamente fácil.
— Deve ter se dado muito bem essa manhã pra continuar com
esse sorriso na cara.
— Eu entendo inglês, Victor. — Revirei os olhos para não
bufar. — Não sei se lembra.
— Eu disse, ele nunca gostou do fácil. — E Lorenzo estava de
volta, o homem que ninguém queria ver ainda se mantendo invisível.
Fiz um bico ao escutar e não entender nada das frases
trocadas entre meu marido e a única pessoa que queria chamar de
seu pai, e resolvi que aprenderia aquela língua. Era o melhor a ser
feito para manter a minha calma, aquele sendo o único jeito de não
ser deixada de fora das coisas que minha intuição me dizia que
viriam.
— O que você perguntou pro Lorenzo? — Quis saber quando
outra vez éramos apenas nós na entrada, e notei que manter a
paciência seria um exercício diário. Eu já queria matar todos os
homens daquela casa.
— Se falaríamos sobre algo que te deixaria nervosa.
— Pra suavizar as coisas até eu ser uma só de novo? — Nico
fazia um ótimo trabalho em se manter vivo ao envolver meu rosto
com as mãos e calar meus lábios com os dele antes de começar a
falar.
— Para eu poder te preparar para qualquer coisa que possa te
machucar, amore mio. O que eu mais quero é te proteger, ainda
mais agora que não é só tu. Eu não estou tentando te diminuir te
mandando para fora da sala, Alana.
— Eu sei. — Eu realmente sabia daquela parte. — E eu te amo
por isso, Nico. Eu também vou ficar. Ficar aqui. — Ele estreitou os
olhos antes de desistir, beijando minha testa. — Vamos logo acabar
com isso, italiano.
Ao menos uma vitória — talvez a única do dia. Nico me
mostrou com apenas um olhar o quanto estava agradecido pela mão
que não soltava a dele, enquanto eu nos puxava para a pessoa que
não queríamos encarar.
Os olhos iguais aos meus pararam em mim tão logo eu pisei
no cômodo, a expressão do homem mais velho espelhando a minha
de segundos atrás. Meu pai biológico estava irritado. Perceber que
ele era mais um homem que me queria fora disso me fazia ter
vontade de copiar a noite passada e arremessar o que houvesse
próximo direto na sua cabeça.
A pergunta em italiano claramente não era para mim, por mais
que ele continuasse me encarando. Escutei meu marido responder,
e antes que me desse conta do que acontecia, Nickolay soltava
minha mão e se aproximava de quem eu ainda me recusava a
chamar pelo nome. Não o usaria, eu tendo, pela primeira vez na
vida, raiva de letras.
Precisava aprender italiano, e tentei manter a calma ao me
servir da água que havia em cima da mesa. Assim que o líquido
tocou minha língua, entendi que tinha enchido até a borda um copo
com vodka, o gosto revirando meu estômago, o deixando como ele
estava no início daquela manhã.
Sem minha água, mas com dois homens que competiam para
ver quem gritava mais alto numa língua que eu não entendia,
conseguia sentir toda a paciência evaporar do meu corpo. As
expressões dos dois ajudavam a minha calma a ir embora ainda
mais rápido, e quando os vi se aproximarem mais um passo um do
outro, agi antes de pensar.
Ao menos era vodka, pensei ao ver o líquido escorrendo pela
parede. Ao menos, a parede tinha continuado intacta, apenas o
copo tendo sido quebrado em vários cacos. E, ao menos, os dois
homens tinham sido surpreendidos o suficiente para calarem a boca
e olharem para mim, ao invés de começarem uma briga física.
Sabia que Nickolay venceria qualquer luta, e realmente
precisava aprender aquela língua, porque ser deixada de fora com
ela estava começando a me fazer odiar italiano.
— Não disse que ela seria uma ótima Donna[7] da máfia? —
Lorenzo disse, numa tentativa falha de melhorar o humor péssimo
que dominava o ar. — A Famiglia[8] só vai ficar mais interessante
com uma mulher assim nos jantares. — Muito, muito falha, quem
era meu pai biológico com certeza respondendo algo que eu não
falaria tão cedo na frente do meu filho, Nickolay encarando os olhos
azuis como se eles lhe tivessem danado.
E por um momento, eu não entendi. Era um elogio, ele disse
que eu faria uma ótima mulher da máfia.
Uma Donna da máfia. Porque Nickolay seria o novo Don.
— Você tá brincando, não tá? — Era a segunda vez que eu
perguntava aquilo num intervalo curto demais de tempo.
Era a segunda vez que não brincavam.
Oh, cazzo.

Imaginei que minha paz acabaria tão cedo pisasse na casa


onde estavam os homens que meu cérebro evitou lembrar por
horas. Resolvi ser positivo e pensar que a calma havia durado por
quase dez minutos a mais do que esperava que durasse. Alana
também não entendia metade do que era gritado por Victor, aquilo
também sendo ótimo. Armando não era meu pai, mas era o dela, e
eu ainda não fazia ideia de como minha mulher se sentia quanto ao
fato, por mais que lembrasse de sua reação na última noite.
Ela disfarçava bem demais seus sentimentos ruins quando os
queria esconder. Ela, claramente, não os queria esconder no
momento de agora.
— Donna da máfia? — A escutei repetir o título que Lorenzo
havia falado, um dos meus braços voltando protetor para o redor de
sua cintura.
Os olhos mel que amava pararam nos meus, e eu soube que
ela havia entendido perfeitamente o que foi dito. Respirei fundo,
meu coração pesando ao vê-la mordiscar o lábio inferior, eu
querendo parar suas mãos quando a vi cutucar as peles soltas dos
dedos.
— Alana, vamos sentar. — E todos os três homens sentaram-
se antes de nós, eu bufando antes de continuar. — Não sou o chefe
dessa merda para se apressarem como se eu tivesse mandado.
Péssima hora para piadas. — Revirei os olhos, puxando uma das
cadeiras para Alana antes de me sentar ao seu lado.
O silêncio reinou na mesa até minha mulher abrir a boca, e eu
queria socar Lorenzo ao vê-lo levantar os lábios. Eu provavelmente
já era o chefe dessa merda.
— O que está acontecendo? — Meus olhos outra vez pararam
nos claros, e era irritante como nem a pior das minhas caras
conseguia fazê-lo me temer. Havia ficado assim dócil com Alana ao
meu lado? — Qual é a graça? — ela fez a segunda pergunta
cruzando os braços, e era irritante ver mais receio em todos olhando
para minha mulher brava do que para mim.
Pelo menos alguém conseguiria impor alguma ordem para
esses três, pensei ao ver o sorriso ir embora de Lorenzo e Armando.
— Nenhuma — o último falou, limpando a garganta, minha
mulher apenas enrugando mais a testa por não ganhar a resposta
que queria.
Ou por qualquer resposta ter vindo justo dele.
— É o chefe quem começa falando, dolcezza — expliquei, e
era irritante como eu mesmo quis rir ao vê-la tão sem paciência.
Alana parecia andar pegando muito do que eu mantinha guardado
para mostrar para o mundo, deixando claro o quanto estava
gostando de estar ali ao bufar e fechar mais a cara.
— Já está fazendo direitinho, cunhada. — Victor com certeza
não conhecia direito quem provocava.
— Qual era o plano vindo aqui, Lorenzo? — resolvi intervir,
antes que o que me atrevia a dizer ser excesso de hormônios
causasse um estrago maior. — O que negociaria com Matarazzo?
Eu?
— Claro que não, Nickolay. — Os dois mais velhos trocaram
um olhar, Lorenzo pronto para continuar quando o interrompi.
— Não sobra muita coisa para negociar além de mim, e eu não
acho que seria louco para pensar em entregar minha mulher. Ia
deixar Matarazzo me matar? Ia prendê-lo aqui? Claramente não
estava nos planos matar o velho — observei, lembrando de Lorenzo
xingando quem havia acabado com a vida do antigo chefe.
Armando insistindo em se fazer presente irritava.
— Não tem mais importância o que seria feito. O que precisa
ser…
— Cale a boca — responder foi automático para mim.
— Cala a boca — para Alana, também.
Foi inteligente da parte de todos manter silêncio por alguns
segundos, antes de Mantovanni quebrá-lo.
— Talvez seja mais importante focar no agora — ele tentou
amenizar o desconforto crescente, levantando uma das mãos ao ver
o amigo de anos ameaçar abrir a boca. — Se é que eu posso falar.
— E o que acontece agora? — Ainda não via um motivo bom o
suficiente para quem eu agora considerava meu pai implicar que eu
era o novo chefe, aquela sendo a última coisa que tinha vontade de
fazer. — Para todos, Alana está — E por mais que fosse mentira,
era desconfortável relacionar a palavra a ela. — Morta. Eu estou
morto. E posso afirmar por nós dois que é assim que queremos
continuar para o cazzo dessa Famiglia.
— Quanto a isso — Dava para ver pela expressão do homem
que não vinham boas notícias. — O que eu te disse sobre o
Caveira, quando me contou que o deixaria ir? O que eu falei sobre
confiar demais, Nickolay?
Achei a mão de Alana por baixo da mesa, a minha tão gelada
quanto a dela.
— Vivia me dizendo para não resolver tudo com sangue! —
reclamei, minha mandíbula travando.
— Não com ele! — A resposta veio numa voz tão irritada
quanto a minha. — Não com esse traste, que eu sempre te disse
que amigo seu não era! Nunca me escuta, Nickolay, che cazzo[9]!
Lorenzo mostrando irritação verdadeira fazia um bom trabalho
em me calar, e eu já sabia o que seria dito.
— Quem é esse? — Alana perguntou numa voz baixa,
juntando rápido demais as peças. — É o cara que você disse que
visitou em Vancouver, não é mesmo? — Minha mulher era mais
esperta do que eu lhe dava crédito. — Que você não matou. —
Nunca me arrependi tanto de não tirar uma vida. Tivesse o feito,
talvez continuássemos livres.
— Uma vez um rato, sempre um rato. Quis eu mesmo matá-lo
quando descobri, mas já era tarde. Matarazzo sabia, e matou ele e a
família inteira a caminho daqui. — Ainda mais depois de ouvir
aquilo. Se o tivesse matado, vidas inocentes teriam sido poupadas.
— Mas não antes de conseguir as imagens do dia que visitou o
estúdio.
Alana entendeu sem precisar de mais palavras, a expressão
de agonia que odiava ver em seu rosto me fazendo prometer nunca
mais hesitar. Faria o que fosse necessário para proteger minha
família, por mais que pudesse condenar minha alma.
— Quem sabe? — Ainda assim perguntei, minha mulher tendo
me tornado um esperançoso. — Que estou vivo, quem sabe? —
Poderia acabar com algumas vidas, se aquilo nos mantivesse
enterrados. — Ninguém sabe dela, então…
Alana estava bem mais forte do que quando a conheci, o
aperto que queria esmagar a minha mão conseguindo até causar
um mínimo desconforto. A mulher sabia o que eu sugeriria, antes de
Lorenzo me interromper.
— Eles sabem de Alana. — Mantovanni focou na minha
mulher, e eu também juntei as peças e senti minha falta de sorte.
— O estúdio que fez a tatuagem era o dele. — Sacudi a
cabeça, largando dela e escondendo o rosto com as mãos, tentando
me controlar para não gritar. — Como conseguiu escolher o único
lugar que não deveria entrar, Alana? — lamentei, mais para mim do
que para ela.
Talvez devesse escolher melhor o que falar perto da mulher,
visto a situação de agora e nossos últimos dias.
— Como não pensou em me falar que o cara que você visitou
era um tatuador que eu podia encontrar na rua? — A voz
demonstrava incômodo.
— Porque nunca me disse que queria uma tatuagem!
— Bem, quando você tá sozinha numa casa grande demais e
numa cidade muito pequena, o tédio vem junto com as vontades
mais estranhas! — Levantei as sobrancelhas. — Desculpa por tatuar
o seu nome com alguém que fodeu você no passado! — Ela
realmente conseguia fazer as pessoas calarem a boca.
E não contive uma risada. Ouvir Alana brava era muito melhor
do que a alternativa que viria, e preferia escutá-la assim o resto do
dia, se isso calasse o resto da mesa. O olhar que ganhei me fez ter
certeza de que, se quisesse o fazer, Alana me mataria de algum
jeito.
— É o normal dos dois. — Ela também daria um jeito de matar
Lorenzo, se eu não o fizesse primeiro.
— Ninguém fica entediado quando o drama deles está
presente. — E Victor entrava na minha lista.
— Fale logo quem sabe, Mantovanni. Quem eu vou ter que
matar? — Saiu mais natural do que deveria, e ganhei surpresa do
meu irmão.
Alana nem reagiu, fazendo eu me perguntar o quanto a havia
feito confortável em aceitar a morte que vinha das minhas mãos. Por
mais que aquilo fosse o melhor para a situação de agora, era tudo
que não queria com ela. Pensar em nós três numa vida cercada de
assassinatos me enjoava.
Queria meu normal de volta.
— Ele mandou o arquivo para Ferreti. — Aceitar tão rápido que
teria que matar uma mulher também trazia náusea, minha família
me transformando num assassino completo.
Só que não bastaria matar Emília. A informação nas mãos dela
me confirmava que todos sabiam, e eu não conseguia acabar sem
morrer com uma máfia inteira.
Ao menos, era o que eu achava. Sempre poderia tentar.
— Então todos. Sabem onde estou? Sabem, vero[10]? — A
mão pequena voltou a apertar a minha, os olhos esperançosos nos
meus.
— Isso quer dizer que eu posso — soube o que sairia de seus
lábios antes dela pronunciar as palavras. — Falar com minha mãe?
Por que algumas coisas ela entendia tão bem, e as que mais
lhe danariam ouvir precisavam ser mastigadas?
— Ainda está viva como filha do Don, dolcezza. — Ela franziu
o cenho, mostrando-se, finalmente, sem paciência.
— Bem, agora eu consigo provar que não sou!
— E essa seria a pior coisa a se fazer. — Era sábio me
deixarem falar, todos quietos enquanto eu tentava acalmar quem
mostrava estar odiando minhas palavras. — Tem muitos homens
leais a Matarazzo. Melhor te verem como filha dele e te protegerem,
do que…
— Descobrirem a verdade e quererem me matar. — Ela usou
as palavras que eu não consegui pronunciar. — É isso?
— Sim, Alana. — Lorenzo confirmou quando meu silêncio
durou segundos demais. — Nickolay só continuou vivo naquele
tempo por ser o favorito do Don. E o Don está morto. Ter você como
família dele dá o mínimo de segurança para os dois. — Três, corrigi
mentalmente, passando uma mão nervosa pelos cabelos antes de
apoiar os cotovelos na mesa.
Não consegui voltar a falar antes de minha mulher explodir por
nós dois.
— Então você tá dizendo que não tem jeito? Que eu tô presa
nisso? Que é uma porra de uma maldição que vai cair em mim e no
meu filho que ainda nem nasceu… — Ela se parou tarde demais, a
mão cobrindo a boca ao revelar o que tínhamos achado melhor não
dizer.
Armando se mostrou feliz com a notícia, e me fez ver o quanto
eu estava fodido com Alana esperando nosso bebê. Porque ela o
assassinava com o olhar, e se insistisse apenas um pouco, eu
terminaria feliz o serviço.
— Está grávida? — Irritante que ele, como às vezes eu fazia,
não sabia reconhecer a hora que deveria permanecer quieto perto
dela.
— Por que você tá sorrindo? — E ia começar tudo de novo. —
Não é como se fosse ficar perto do meu filho! Olha o que fez com o
que você tinha que cuidar! Acha que te quero junto da gente?
Foi ali que vi que, diferente do que Alana tinha me afirmado
antes, não estava tudo bem. Passava longe do bem, tanto para
mim, quanto para ela. Me perguntei se doía se ver nos olhos mais
velhos, do mesmo jeito que pinicava tê-los me observando.
Precisaríamos conversar sobre aquilo, e me arrependi de ter
ignorado o assunto antes de nos fazer encará-lo. Alana mostrou o
quanto queria conversar se levantando, a cadeira empurrada na
ação quase caindo.
— Dolcezza, não…
— Não o que? Não fique incomodada com o desgraçado que
me criou sorrindo e achando que vai ser avô? — Ela recuou quando
me levantei. — Não precisa tentar me tirar daqui, eu saio! — Falar
qualquer coisa antes dela desabafar tudo que precisava seria
impossível, e eu nem me incomodei em tentar. — Agora eu sei
porque as mulheres ficam lá: pra vocês continuarem vivos!
Se tivesse uma porta para bater, ela teria a destruído. Tudo
isso por causa de um sorriso. Precisávamos conversar, ou eu viveria
fodido.
— Ela sempre foi desse jeito. — Lorenzo, que estava no meio
dos outros dois, foi quem resolveu abrir a boca.
Nunca ninguém sabia ficar quieto, e me tornando realmente o
líder de uma máfia, precisaria aprender a fazer todos se calarem.
— Eu acho que Alana melhorou muito. — Voltei a me sentar,
cruzando os braços. — Ela tem todos os motivos para querer gritar,
e é até mais seguro que o faça por nós dois. Então calem a boca e
deixem a minha mulher berrar à vontade. — Era um aviso, os três
continuando quietos, Victor pressionando os lábios juntos tentando
cumprir o que havia ordenado. Que inferno. — Che? Fale logo.
— Vou ser mesmo tio? — Fiz que sim, não contendo um meio
sorriso. Victor deu um muito maior, alcançando meu antebraço com
a mão que levava a cruz antes de continuar. — Parabéns, irmão.
Elas podem fazer o que quiserem nessa época. Sabe disso, não
sabe?
— Acho que já deixo Alana fazer o que bem quer em todas. —
Tive que rir, aquilo agora sendo totalmente verdade. — Mas
obrigado por me lembrar. — Os olhos azuis ainda estavam em mim.
— Quer me dar os parabéns também, ou começar a parte ruim?
— Gostaria de fazer só o primeiro. — Eu odiava quando tinha
pena naquele rosto, e minha perna esquerda começando a
chacoalhar não passou despercebida. — Nico, precisa esconder
melhor seu nervosismo para isso dar certo.
E eu gargalhei. Talvez, finalmente, eu tivesse ficado louco.
Porque não tinha graça nenhuma, mas ainda assim, eu ria. Não
passava perto do engraçado saber que levaria minha família para o
meio que achava ter me livrado, não tinha sombra de motivo para
fazer algo que não fosse gritar.
Respirei fundo, ignorando os três homens que me olhavam
com preocupação.
— Como que eu volto a ser o que era com ela do meu lado?
Me fale como, eu quero saber. Eu quero descobrir como que vivo a
vida que não quero para nós. Como eu mantenho qualquer calma
nessa merda que vou viver? — Sempre que achava que ia me livrar
de vez da maldita bola na garganta, ela voltava maior. — Meu pai
biológico morreu. Quem assumiu o comando?
— Nico, vamos por partes…
— Onde está o stronzo[11] do Levina, qual é o cazzo que vou
ter que cumprir para a irmandade? Para quem eu estou devendo
agora? Um Don, devendo! Tudo na minha vida parece uma piada!
Os três trocaram olhares, e do mesmo jeito que deixei óbvio
meu nervosismo, eles deixavam claro que já sabiam de tudo que eu
iria descobrir.
— O nome é Alexei. — Não olhei para quem falava, mas para
meu irmão.
— E o que ele é, Victor? Nosso tio? Primo?
E a vontade de gargalhar voltava. Esfreguei os olhos,
querendo ir com Alana para a cozinha. A última vez que não
consegui aceitar minha realidade foi ao ter Nicolas arrancado de
mim.
— Eu mal tive tempo de aproveitar isso. — Ninguém me foi
tirado agora, mas se fosse, sentia que dessa vez, eu seguiria. —
Mal tive tempo de aproveitar ela, mal falei sobre essa merda que li
com a minha mulher…
— Tiveram um mês. Um mês para discutir sobre essa merda.
— Foi quem deveria permanecer quieto que me interrompeu, e eu
mantive os olhos na garrafa de vodka. Era mais seguro olhar para o
vidro do que encará-lo, e após a próxima frase, quebrar a garrafa e
ir para cima de Armando não parecia uma má ideia. — E por quase
um mês, a deixou sozinha em casa. — Não parecia, por mais
verdadeira que fosse sua afirmação. Eu havia deixado Alana
sozinha na nossa casa, e eu não podia olhar para quem um dia
chamei de pai. — Achava que ao menos algo eu tinha te ensinado
de bom antes de partir. — Partir.
Não, não podia olhar, porque se o fizesse, Alana com certeza
viria correndo da cozinha até aqui. Porque eu acabaria com ele, e
todos veriam o monstro que realmente havia dentro de mim.
— Ela nunca ficou sozinha — afirmei, por mais que soubesse a
verdade. Ela tinha sim ficado, eu não tendo passado todas as noites
do lado de fora.
— Não, ela não ficou — Armando também não me encarava
ao concordar, o homem me deixando tanto grato quanto fazendo eu
me sentir um moleque. Então seria assim que passaria os próximos
meses tendo esse fantasma ao meu lado.
O maldito me deixou achar que tinha morrido, e em uma frase,
me fez ir do total ódio para todo meu agradecimento. Soube sem
precisar de mais palavras que ele havia ficado nas noites em que eu
não pude, e me perguntei quanto tempo havia que o homem nos
observava de longe.
Mesmo assim, no fundo, surgiu uma incomodação que eu não
tinha o direito de sentir. Proteger Alana, afinal, era minha prioridade.
Também era, e sempre foi, a dele.
Lorenzo pareceu entender o que acontecia, e talvez por isso
tenha mantido os outros dois em silêncio quando saí da casa.
Levantei quieto, indo para a entrada pensando quando deixei de ser
prioridade para quem antigamente chamava de pai. Agarrei meu
casaco e abri a porta, desejando saber se algum dia sequer fui.
Foquei no vermelho escuro que ainda via numa parte da rua:
deveriam limpar melhor aquele cazzo, e eu deveria parar de pensar
nessas merdas e apenas agradecer.
Acendi o cigarro que precisava fumar, eu tendo prometido que
pararia, e já querendo acabar com o maço inteiro que tinha no
bolso.
Sabia que seria Mantovanni o primeiro a sair.
— Não.
— Nickolay… — Sabia que o que viria era tudo que eu não
queria ouvir.
— Hoje não. — Traguei fundo, fechando os olhos e segurando
a respiração, antes de soltar a fumaça pelo nariz. Eu não queria
encarar a realidade. — Não o defenda. — Não queria encarar quem
eu sabia que não iria mais embora.
Então, encarei Lorenzo.
— Eu entrei aqui feliz. Saio com um peso maior do que
gostaria.
— Nico, se não fosse pelo homem…
— Eu não seria tão fodido. — A verdade saiu natural, nós dois
surpresos com minha sinceridade.
— Se quiser culpar alguém, culpe a mim. — Sacudi a cabeça,
preferindo voltar e manter a atenção no filtro amarelo. — Sempre
soube que Armando não era seu pai. Eu sabia de Anna, sabia de
Carina, sabia da história inteira e escolhi não te contar.
— Porque prometeu a ele. — Vi ser verdade quando minha
atenção foi para o homem que apertava meu ombro. — Eu deveria
te odiar também.
O frio fazia milagres, minha orelha machucada parando de
pulsar mesmo sem qualquer anestésico. Não acontecia o mesmo
com o meu peito, meu coração parecendo que iria estourar. Deveria
ter ido até a cozinha, mas só me sentiria pior ao precisar tirar
conforto de alguém que eu apenas deveria confortar, ainda mais
após as últimas notícias.
Não era comigo que deveriam se preocupar. Ainda assim, era
eu quem parecia ser a maior preocupação de todos na mesa.
— Te achei na praia naquela tarde. — O aperto ficou mais
forte, o homem tentando me passar o conforto que eu sempre
negava. — Você ficou tão mal, Nickolay. Não lembra daquela época,
eu sei que seu cérebro deu um jeito de trancar tudo para funcionar
outra vez.
Naquela tarde, eu aceitei, minha mão livre cobrindo a dele.
— Estava lá, para mim. Depois que Armando começou a
dormir com a porta trancada, e eu não parava de chorar. Estava lá,
e ficou por todo o tempo. — Tinha surpresa no rosto do mais velho,
nos meus lábios um sorriso triste. — É, eu andei lembrando.
— Tempo livre é um perigo — ele brincou, por mais que não
tivesse graça a situação.
Não tinha graça nenhuma. Por mais que tivesse gargalhado na
sala, estava longe de cômico eu ser o novo Don. Não merecia
risadas meu passado, nem todas as mentiras que eram
desenterradas dele.
— É uma benção, também. — Se algo poderia ser engraçado,
era eu finalmente conseguir espaço para quem nunca desistiu de
mim. — Eu não vou te culpar. Me salvou mais vezes do que
imagina, desculpa reconhecer isso só agora. Só estou vivo por sua
causa — Apaguei o cigarro na neve, soltando o resto da fumaça
antes de me virar. — Pai. É o único que merece o título.
Tinha felicidade misturada com arrependimento em nós dois,
Lorenzo soltando um longo suspiro antes de voltar a falar.
— Tentei tanto te livrar disso, moleque.
— Consegui estragar todas as tentativas, vero? — E o que me
veio à cabeça foi justo o dito para Alana que nos causou nossa
primeira real briga. — Desculpe por ser um — O sujo falando da mal
lavada. — Pirralho mimado. — Queria poder me recordar dessas
coisas sem querer gritar pelo meu azar, e continuei falando para não
o fazer. — Fale para minha mulher dessa minha fase, me chamava
do que mesmo? Moleque inconsequente? — Queria não ter sangue
manchando todas as minhas histórias. — Alana vai adorar ouvir
isso. Nunca vai me dar paz.
Sempre desejei o normal, e hoje, gostaria de nunca nem ter
tentado alcançá-lo. O normal que ganhei com ela me fazia querer
fugir de um destino que deveria enfrentar. Um destino que me trazia
de volta um morto.
Quem eu hoje considerava meu pai, como sempre,
reconheceu meu conflito.
— Nós vamos protegê-la. Vamos proteger todos vocês. — Os
olhos claros, como antes os meus fizeram, acharam o ponto
vermelho-escuro perto da calçada.
Me perguntei o que os russos tinham feito com os corpos,
minha mão indo até o curativo que tinha na orelha esquerda. Alana
me fazia feliz por não ter sido um dos deitados no chão, mas não
tinha como não desejar saber como teria sido a vida dela caso eu
fosse. Ela e meu filho estariam livres disso, comigo morto? Armando
conseguiria dar um jeito, caso fosse apenas os dois?
— Ele só está aqui para ajudar, Nico.
— Ajudar, claro.
— Ele te deve isso. — Franzi a testa: Armando não me devia
nada.
— Vamos precisar ir para a Itália, não vamos?
— Para algumas formalidades, sim.
— O nome da formalidade é Alexei? — O olhar que ganhei
confirmou minhas suspeitas. Quem quer que fosse o novo chefe
russo queria alguém que lhe devesse no meio italiano.
— Depois que tudo se resolver, sempre pode indicar alguém
de confiança para assumir seu lugar. — Não deveria ser tão difícil
aceitar que mais uma vez, quem era minha família me usaria como
meio para um fim.
— Quando achar alguém que não queira acabar comigo, o
faço sem pensar duas vezes. Quanto tempo acha que vai demorar?
— Pela expressão do mais velho, muito mais tempo do que os
poucos meses que eu considerava. — Em alguns meses o meu filho
nasce. Ela tem que ir? — perguntei, mesmo já sabendo a resposta.
— Alana não é só sua esposa, e você sabe. — Ela também
era quem todos acreditavam ser filha do antigo Don. Quem
Matarazzo havia dito por anos que assumiria os negócios em seu
lugar. Outra vez, queria matar um morto.
— O que iriam negociar com o velho?
— A verdade sobre Stella e Catarina. — Levantei as
sobrancelhas, a informação não fazendo muito sentido.
A verdade sobre as duas me mataria, a não ser que, de
alguma forma, houvesse um jeito de me tirar daquela tarde. Lorenzo
resolveu ignorar minhas dúvidas e continuar.
— E Armando. Ele se entregaria, para Matarazzo fazer o que
quisesse. Matá-lo, pegá-lo de volta como assassino. — Não parecia
ser apenas isso, mas passavam das quatro da tarde, e eu estava
exausto para discutir. — Esperávamos que fosse a segunda opção.
— Armando está velho para trabalhos. — Ele estava, e se
tivesse seguido o que tinha, minha família estaria livre.
Ou ao menos, era o que eu repetia para odiá-lo mais.
— Armando é o melhor assassino que conheço. Eu sei que
quer culpá-lo, e eu entendo. — Era, também, mentira. — Mas
duvido que você não teria reagido, caso ele tivesse deixado
Vincenzo continuar apontando uma arma para sua mulher.
Bufei, incomodado por além dele me conhecer bem demais,
quem um dia chamei de pai parecia também saber dos meus
detalhes. Armando nunca pareceu se importar nem com as coisas
grandes, e incomodava ele entender minhas particularidades.
Olhei para a porta quando a escutei fechar, Victor descendo a
varanda com as mãos nos bolsos. O sol ameaçava sair por detrás
das nuvens brancas, Armando nos observando por detrás das
cortinas. Fechei a cara, voltando a atenção para Victor.
Era melhor focar no que minha mente estava evitando com
sucesso, do que em quem eu queria que tivesse continuado perdido
no mar.
— Quem é Alexei?
Quando fugimos, Victor já tinha idade o suficiente para se
lembrar de muitas coisas. Minha memória era defeituosa por conta
de traumas, mas a do meu irmão talvez não tivesse seguido o
mesmo rumo. Ele, pequeno, falava uma ou outra coisa em russo
quando éramos apenas nós três, eu acreditando na nossa mãe
sempre que ela dizia seus motivos para não me ensinar.
“Ainda é muito novo, Kolya. Se te ensinar agora, não vai
conseguir aprender direito a língua que deve falar.”
Havia preocupação no olhar trocado pelos dois homens.
Ultimamente, as pessoas faziam um bom trabalho em calar a minha
boca.
— Alexei é seu irmão.
Era difícil aceitar a morte da mãe que eu lembrava. Quando
descobri sobre a tarde na qual fugiríamos, tentei entender como a
mulher que eu recordava ser tão boa poderia simplesmente
abandonar um dos seus meninos.
Não deve ter sido difícil para Katerina abandonar um dos filhos
naquela quinta. Até porque, descobria agora que anos atrás, ela já o
havia feito.
— Nosso irmão? — Victor fez que não.
— Não nosso. — Os olhos verdes foram para onde antes os
meus estavam, a neve parecendo a cada segundo absorver mais o
vermelho.
Chegaria a hora em que a neve derreteria e voltaria a manchar
tudo com aquela cor. Eu entendia a neve. Absorver as coisas e
continuar firme era cansativo demais.
— Só seu, Nico.

Eu sempre quis mais um irmão. Lembrava de ter pedido pelo


menos três vezes para minha mãe quando pequeno por mais
alguém para brincar. Lembrava também dos olhares que recebia,
algo que antes via como indiferença neles, agora se transformando
em tristeza.
Katerina se arrependia do filho que havia abandonado?
Também doía cada vez que eu pedia uma família maior?
— Só seu, Nico. — Era difícil admitir que a imagem pura que
tinha de alguém tão importante se tornava cada vez mais maculada.
— Mamãe o deixou para trás quando fugimos.
Foi quando me atingiu.
— Como assim, só meu? Não é o cazzo do meu irmão
também, Victor?
— Eu sou seu meio-irmão, seu e de Alexei. Mas meio-irmão,
para eles, era a mesma coisa que nada. — O homem enrugou a
testa, a falha na sobrancelha ficando em evidência. — Mamãe não
era minha mãe. Eu nem me lembro da minha mãe biológica, ainda
era um bebê quando ela resolveu que seria melhor ser criado pelo
meu pai. — E veio um sorriso amargo. — Eu não me lembrava, mas
nosso pai sempre fez questão de lembrar a todos disso. Que eu era
o bastardo da família, e deveria ficar agradecido por ter um teto, já
que minha mãe biológica nem isso me dava.
Cada vez mais tinha a certeza de que Victor era a melhor
pessoa que já levou o sobrenome Demidov — se algum dia ele o
teve, não sendo um filho vindo do casamento.
— Acho que não demos muita sorte com pais — ele brincou,
tomando um cutucão no ombro do homem mais velho.
— Ah, não? Todos esses anos eu fui o que seu, moleque? —
Teve uma risada feliz que pouco combinava com a situação que
vivíamos.
— Desculpa, Lore. — Meu irmão deu alguns passos para
frente, virando-se para nós. — Mas você me entendeu.
Tinha um olhar reprovador nos azuis, e me perguntei se
Lorenzo teria coragem de abrir a boca para defender o homem que
eu queria esquecer que existia. Resolvi ficar quieto quanto aquilo e
reclamar sobre o que via.
— Ainda tem tanto sangue na grama.
— A neve vai derreter e limpar tudo. — Ela iria, e quando isso
acontecesse, Alana e eu provavelmente estaríamos a quilômetros
de distância dali. — Não é como se quem viesse aqui fosse reparar
no sangue. — Victor terminou de falar no momento em que ouvimos
novos passos.
Era incrível como Levina conseguia aparecer nos piores
momentos.
— Os meninos vão — ele observou, chutando um pedaço
vermelho. — Crianças não deveriam ficar vendo essas merdas. —
Então, a bota preta jogou neve limpa sobre o sangue.
— Primeira vez que te vejo falando algo e não quero te matar.
— Eu fiz o mesmo com a mancha que havia perto dos meus pés. —
Parabéns.
Pela cara surpresa que ganhei, entendi que deveria ter ficado
quieto.
— O que, isso que escutei foi uma migalha de humor? — A
voz debochada tomava o lugar da séria de antes, Dimitri dando um
sorriso que casava bem com o tom usado. — Alguém se deu bem
noite passada!
Eu poderia quebrar todos os ossos da mão que dava tapinhas
nas minhas costas. Escolhi dar um passo à frente, e assassiná-lo
apenas no meu pensamento.
— Menos de dez segundos, como consegue? — A risada que
vinha era igualmente debochada, e olhei irritado para meu irmão
quando o escutei dar uma parecida demais.
— É um dom, rir na cara da Morte. — Mas a risada durou
pouco. Dava para notar que havia algo de errado, e lembrei da
conversa que precisaríamos ter.
— Não parece querer rir agora. — Era o motivo do russo estar
ali, afinal, e descobri que preferia tê-lo debochado e gargalhando.
— Alexei não é tão engraçado quanto era o pai de vocês. —
Se fosse novo no mundo para qual voltava, pensaria que Levina
estava exagerando. Alexei era, afinal, meu irmão. E para alguém
normal, um irmão seria apenas motivo de alegria. — Ele quer vocês
dois na Itália. — Para mim, um irmão que eu nunca conheci era
motivo de inquietação. — Você e sua mulher.
Era irreal pensar que eu reclamava de ter que lidar com minha
normalidade semanas atrás.
— E se eu não for?
— Eu tenho uma foto da família do seu amigo. — Soube quem
era o amigo em segundos, eu ligando o que havia deixado de
“lembrança” com o russo revirando minha casa noite passada. —
Tem suas digitais nela. A sua caveira também está bem clara no
vídeo em que aparece enforcando o homem. A polícia canadense é
fácil de comprar, Victor?
Não precisava vir nenhuma resposta, a carranca do meu irmão
me dizendo que eu estava encurralado.
— Deveria ter matado esse maldito na Itália. É um erro que
não vou voltar a cometer — lamentei, forçando uma expressão
neutra ao me virar para Lorenzo. Não queria que viesse de Dimitri o
que Mantovanni provavelmente já sabia. — Quanto tempo tenho
aqui?
— Eu aconselharia irmos hoje mesmo, mas sei que não
consigo tirar vocês tão rápido do Canadá.
— Conhece bem a mulher que tenho. — Tudo que eu não
queria era contar a ela que tínhamos apenas mais alguns dias no
meio da neve.
— Não só a mulher — Cruzei os braços, meu rosto indo da
neutralidade para a irritação. Poderia demonstrar irritação, não
poderia? — Não me olhe como se eu fosse o difícil, Morte.
— O que Alexei quer?
— O Pakhan quer alianças na Itália. Ouviu dizer que os
políticos são facilmente compráveis — Eu não conheço políticos.
— E que isso ajuda muito nos negócios — Levina me ignorou,
minha testa enrugando mais. Abri a boca para responder quando ele
continuou. — Se não conhece políticos, trate de conhecer. Se acha
que não vão te aceitar como Don, faça-os aceitarem — ele se
anteviu. — Dê seu jeito, DeLucca.
— É Orlov.
— É DeLucca. — Não esperava ser corrigido nisso, o figlio di
puttana[12] me devolvendo o sobrenome de quem eu não queria ter
mais nada. Nunca me livraria de Armando, meu cérebro não me
dando sossego e repetindo que Alana era uma das coisas que vinha
dele. — Ou prefere mudar os documentos para Matarazzo?
Foi difícil manter a neutralidade, eu entendendo cada vez mais
o quanto poderia me foder na Itália com minha nova adquirida
transparência.
— DeLucca, Orlov. Ficar vivo ou acabar no fundo do mar, a
escolha é sua. — Ele colocou as mãos nos bolsos, se distanciando
alguns passos antes de virar-se para mim. — E não, não sou eu te
ameaçando, Nickolay: eu até gosto de você.
— Claro. — Se ele até gostava, não queria imaginar o que
Alexei sentia.
Se meu recém-descoberto irmão não sentisse nada, eu já
estaria no lucro.
— Mantovanni sabe como me achar. Ah, quase esqueci. —
Uma das mãos jogou um objeto redondo para mim, eu
reconhecendo o que era antes de pegá-lo. — Parabéns.
Não teve nada de engraçado em nossa última troca de
olhares, o russo entrando no carro vermelho estacionado um pouco
à frente ao de Victor. Não o ter notado antes só reforçava o quanto
eu não estava pronto para voltar à Itália.
A normalidade havia me transformado num relaxado.
— Como ele já sabe? — Olhei da chupeta que segurava para
Lorenzo, os olhos claros querendo me passar um conforto que eu
não conseguia sentir agora. — Não tem como fugir deles, tem?
— Aconselho a nem tentar. — Escutamos o motor do carro
ligando, Dimitri acenando para nós ao passar, eu querendo atirar
nos pneus, ou explodir o veículo junto de toda a irmandade russa.
— Cazzo. — Fechei os olhos, jogando a cabeça para trás
antes de respirar fundo.
— Também aconselho a parar de ter dó de Emília, Nico. —
Não queria encarar Mantovanni e as próximas verdades que viriam,
mas o fiz. — Emília fez a sua caveira na Itália assim que voltou.
Deixou o Brasil quando saíram dele, o que me faz pensar que,
depois de ter o marido morto, tudo que a mantinha no país era a
raiva que ela tinha de você. A mulher não merece pena — E eu
estava prestes a responder que não tinha mais nenhuma depois dos
últimos acontecimentos, quando o mais velho continuou. — Por
mais que não tenha sido exatamente justo o que aconteceu com ela
no passado.
De canto de olho, observei Victor levantar uma sobrancelha.
— Eu não sabia!
— Sabia o suficiente para entender como os bebês eram
feitos, não? — bufei, e todos gostavam de falar demais ultimamente.
— E o que aconteceria com ela se não fosse mais virgem ao se
casar.
— Não é como se eu tivesse forçado a mulher a tirar a roupa e
deitar na minha cama. — Pelo que lembrava, o contrário era mais
verdade, Ferreti bem empenhada em tirar a dela e a minha.
— Poderia ter dito não. — Depois daquela frase, eu me deixei
rir.
— Disse não para alguma mulher nua que parou no seu colo
quando tinha dezesseis? — Minha vida até aquela idade passava
bem perto de uma normal, percebi pela primeira vez.
— Ah Nickolay, acredite, eu disse não para algumas — a
resposta veio com um sorriso meio debochado, Lorenzo sacudindo
a cabeça, uma mão parando no meu ombro. — Sei também que
sente culpa por conta do fim da história de vocês, Nico. Pare de
sentir isso se quiser sobreviver lá.
— Nada é mais importante que Alana e nosso bebê. Isso
responde suas dúvidas? — Coloquei a chupeta no bolso, já
pensando em como daria a notícia de nossa partida para quem me
aguardava na cozinha.
— Isso deve ser o suficiente para nos mantermos vivos por
algum tempo. Armando vai também. Não-negociável, Nickolay —
veio rápido, Lorenzo provavelmente achando que iria me opor a ter
tal presença.
— Esse homem é a melhor ajuda que posso ter. — Sabia bem
daquilo. — Pelo menos por Alana, ele morreria sem pensar.
Odiava quando recebia olhares reprovadores que, para mim,
não faziam sentido. Ao mesmo tempo, estava exausto demais para
sequer pensar em discutir o tópico sobre o qual menos queria falar.
— Entre quando estiver pronto. — Quase respondi que, se
dependesse disso, eu não entraria nunca mais.
Mas outra vez, achei o silêncio minha melhor opção, e
observei Mantovanni sumir casa adentro antes de me virar para
Victor.
— Nosso pai era assim ruim?
— Ele era.
— E nosso irmão? Era difícil como eu fui? — o tom usado era
de brincadeira, mas a resposta que veio foi séria demais.
— Difícil o suficiente para mamãe nunca nem ter considerado
levá-lo junto. — Os olhos verdes se perderam em um dos montes
brancos. — Eu lembro bem dessa parte. Lembro de ter perguntado
quando saímos da mansão, e foi uma das últimas coisas que ela
me… — Meu irmão parecia ser igual a mim para falar sobre o
passado. — Ela me respondeu: não dá para salvar Alexei, Vitya.
Mamãe sempre o chamava pelo nome. Ele nunca a obedecia. Alexei
tinha dez anos quando fomos embora. Com dez anos, eu brincava,
fazia besteiras, gargalhava. Coisas que crianças normais fazem. Até
você fazia isso, Nico.
— Achei que eu tinha sido difícil. — A frase me rendeu uma
carranca.
— Se você era difícil, Alexei poderia ser considerado
impossível. Ele era uma criança fria. Muita convivência com nosso
pai nunca fez bem a ninguém.
— Ótimo de se ouvir, visto que é com esse homem que vou
precisar lidar — reclamei, ainda considerando alguma saída para o
destino que não queria ter. — Katerina era boa, vero?
A resposta demorou mais do que deveria.
— Nossa mãe era boa, Nico. Ela me criou como seu filho, me
levou com ela quando fugimos. — Irritante como as últimas
informações que tive da mulher manchavam demais sua imagem. —
Sabe, nosso pai não era o maior exemplo de fidelidade. Talvez
existam mais irmãos perdidos pela Rússia.
— Será que algum deles gostaria de tomar meu lugar? — Eu o
cederia de bom grado.
— Bastardos como eu não valem nada.
O puxei pelo ombro, querendo lhe dar toda a verdade que
podia.
— Valem muito. É meu único irmão, Victor. E no me frega un
cazzo[13] se temos ou não temos o mesmo sangue. — Continuar era
tão difícil quanto meu novo irmão de sangue parecia ser. — Acha
que Alexei pode vir a ser um problema? Maior do que ele já é?
— Se ele achar que você está atrás do que Nikolay construiu,
talvez. Eu não sei de muito, nós dois não éramos exatamente
próximos. Alexei imitava demais nosso pai, o que quer dizer que
para mim, a presença dele não era exatamente agradável.
— Vou adivinhar: quem sabe de tudo, como sempre, é
Lorenzo. — O sorriso que recebi deu minha resposta.
— Pegue um dia para conversar com ele. Antes de viajarmos,
de preferência.
Victor já andava em direção à porta quando minha resposta o
fez parar.
— Não vai, Victor. Nem tu, nem ninguém da sua família.
— Você é minha família! — ele levantou a voz, me fazendo
copiá-lo.
— E você está morto! E isso é tudo que eu gostaria de estar,
então mantenha essa benção que tem. O que fez por mim já é mais
do que eu sequer me atreveria a pedir! Foi seu primeiro tiro, não foi?
— me atrevi a adivinhar.
Mesmo antes da resposta, eu sabia que tinha sido.
— Claro que não…
— Para matar. Seu primeiro para matar. Já matou alguém
antes? Eu não me lembro de ti chegando com sangue em nenhuma
das vezes que te vi na Itália. — Os olhos verdes não me encararam,
eu não sendo o único que se deixava ler fácil demais ali. —
Desculpe trazer isso comigo.
— Eu aceitei tudo que viria quando disse sim. E eu escolhi tirar
a vida.
— Para salvar a minha. — Eu realmente trazia morte por onde
passava. — Os fantasmas podem ficar por um tempo. Quero
acreditar que todos que são bons os veem. — Alana os via, afinal.
Já fazia um tempo que os meus haviam sumido. — Sinto muito. E
obrigado.
— Não quero te perder de novo.
— Não vai, Victor. Eu vou voltar. — Precisava acreditar
naquelas palavras. — Vou resolver tudo isso, e voltar para a paz
que minha mulher merece.
Alana merecia toda a paz do mundo depois do último ano.
Alana, também, tinha uma certa dificuldade em se dar bem com
aquela palavra.
— Paz que ela insiste em não nos dar, ma per che cazzo[14]
ela está gritando agora? — Ao menos os gritos na voz dela eram
bem mais fáceis de serem ouvidos. — É sempre assim quando
estão grávidas? — reclamei, já seguindo para a porta.
— O melhor é você me perguntar isso com um sorriso na cara.
— Sacudi a cabeça, virando a maçaneta: não tinha como não sorrir
pensando nela. Ela junto de nossa melhor parte seria meu único
motivo de felicidade nos próximos meses, eu já sabia.
— Che cazzo succede[15], dolcezza? — saiu assim que entrei
na casa, Alana se virando para mim de braços cruzados.
Dava para notar as bochechas mais cheias, assim como era
clara a irritação que havia ali.
— É sério que ele tá indo pra casa com a gente?

Inacreditável. Era inacreditável como a minha vida tinha uma


mania irritante de mudar completamente em questão de minutos.
Eu entrei feliz na casa do meu cunhado. Pisava dentro da
cozinha querendo assassinar alguém. Era tão errado querer matar
carregando meu filho, e ao mesmo tempo, sabia que assassinato
estava na lista de coisas que faria sem pensar para manter meu
bebê seguro.
— Resolveu vir para o lado sábio da casa? — Flávia, e todo o
café que eu iria tomar, fariam a raiva passar.
Ao menos foi o que me forcei a repetir, puxando uma cadeira e
tentando não gritar.
— Desculpa a demora. — A cozinha estava dominada por
mulheres naquela tarde, Ella entretida com um dos seus brinquedos
no carrinho. — Onde estão os meninos?
— Mandei pro quarto. — Ela se sentou ao meu lado,
colocando numa taça vazia o que ainda sobrava de uma garrafa de
vinho. — Minha paciência anda com um limite bem baixo. Divide
comigo?
Álcool estava na lista das coisas que eu mais queria no
momento.
— Passo. — Os olhos azuis se mostraram surpresos, minha
amiga enrugando a testa. Bem, eu já havia contado para todos os
adultos da casa fora ela. — Seu sobrinho ou sobrinha passa
também — arrisquei com um meio sorriso.
O sorriso que recebi foi muito maior, Anna Flávia cobrindo a
boca antes de se levantar e me puxar para um abraço. Daquela
reação eu gostava, e no abraço dela, dava até para esquecer que
em mais alguns dias, eu não teria mais tantos conhecidos ao meu
redor.
— Como isso? — veio quando nos separamos, eu lembrando
que até noite passada, tinha total certeza de não estar grávida.
— Acho que fiz aquele primeiro teste cedo demais — dei os
ombros, aquela sendo uma verdade.
Sendo verdade, eu sabia até o dia em que deixei de ser uma
só. Nunca fiquei sozinha, Nickolay tendo ido embora, mas deixado
um pedaço dele comigo. As maçãs não eram por birra dele, o
culpado ou culpada me fazendo salivar com o cheiro que dominava
a cozinha.
— Seja lá o que estiver no forno, eu não vou dividir com quem
estiver na sala, e eu quero a receita. — Fazia tempo que não sentia
tanta fome, e nem me envergonhava do estômago roncando alto. —
Ou melhor, meu marido quer a receita, eu duvido que consiga fazer
seja lá o que for isso.
Voltei para a cadeira, e Anna, para seu copo de vinho.
— É só pão, sua boba.
— “Só pão” cheira bem demais.
— Até uns meses atrás, eu tava igual — ela nos recordou, eu
sabendo que aquilo era verdade. Se meu humor se mantivesse
como o dela, já poderia me dar por satisfeita.
— Vou precisar de algumas dicas pra sobreviver com essa
italianinha na barriga — saiu natural, eu me juntando ao desejo do
pai.
Pai. Queria associar a palavra apenas a coisas boas, quem
estava na sala ao lado despertando uma ponta da minha raiva.
— Torcemos para uma menina, então? — Não iria pensar nele
agora.
Mas pensamentos não tão agradáveis vinham numa
velocidade mais rápida do que o confortável desde que deixei a
presença dos homens. Os hormônios iriam me deixar louca.
— Nico já chamou de filha umas três vezes, por mais que diga
que não se importa com o que vier. — Me deixariam maluca, e eu
não queria pensar em como o que nós tanto queríamos veio na pior
hora possível, como tudo vinha na minha vida.
O quanto ele se lembraria de Nicolas, viesse um menino? O
quanto Nickolay estava preparado para tudo que aconteceria,
depois de ter me entregado um pacote cheio de droga que ele com
certeza consumiu? Era tão óbvio nos olhos escuros, e ele nem
conseguiu admitir aquilo.
Armando estava na sala e tinha os meus olhos. Se eu estava
prestes a surtar por causa disso, imaginava que para meu italiano, o
surto já poderia ter começado, por melhor que ele estivesse
escondendo.
— Não é como se nós fossemos parar no primeiro. —
Precisava limpar a cabeça. O bico que vi em Anna não ajudava. —
Que cara é essa?
— Vocês tão indo embora, não tão? — Respirei fundo e forcei
um sorriso: não, ela não ajudava.
— Provavelmente. — Desviei os olhos para minha barriga
inexistente, me perguntando o quanto deveria me manter
preocupada com nossa situação. O quanto poderia ser bom para
esse bebê eu viver em estado de alerta? — Vou sentir sua falta.
Da janela, dava para observar Nickolay junto do irmão e do
único que ele deveria chamar de pai. Ótimo, quem eu queria longe
de nós estava bem distante dele.
Será que Nico poderia querê-lo perto?
— Eu também, Lan. — As palavras vieram com Flávia tirando
o assado do forno, os pães que esfriavam na forma sobre o fogão
sendo o suficiente para alimentar a casa inteira.
— Acha que consigo uma consulta amanhã? — Me sentia
ridícula salivando por causa de um pão, mas meu cérebro afirmava
que o ar tinha um dos melhores cheiros que havia na Terra. — Só
pra checar se tá tudo bem?
Não deu para permanecer sentada, meu aparente desejo por
pão pelando me obrigando a ir até a comida.
— Podemos dar um jeito. — Mas uma mão me impediu de
alcançar a única coisa que eu queria mastigar, e foi o suficiente para
eu querer chorar. — Tá quente demais pra comer, maluquinha! —
Definitivamente, precisava de umas dicas para sobreviver aos oito
meses restantes. — Tem queijo na geladeira, aquele que gosta. E
não precisa fazer essa cara: eu embrulho um dos pães pra você,
pidona.
E meu humor decidiu que a oferta era boa o bastante, assim
como os próximos minutos de conversa leve foram suficientes para
devolver meu sorriso. Comparado com os últimos minutos na sala,
estava tudo bem demais.
As palavras sempre faziam um alarme soar no meu cérebro.
Flávia dava atenção para a filha quando o barulho da porta
fechando me fez voltar para a sala, a ausência de outro barulho me
fazendo ter certeza ser Nickolay quem voltava para dentro.
Não era, e tinha mais cuidado que o necessário nos olhos
azuis de Lorenzo quando os meus acharam duas bolsas de couro
perto da entrada.
— Pra que essas malas? — Eu sabia tão bem o porquê.
Precisava parar de fazer perguntas que só me deixariam mais
estressada. — Lorenzo, pra que essas malas? A gente já tá indo?
— Eu sabia que as malas não eram nossas.
Assim como eu sabia muito bem de quem era uma delas antes
de vir a negativa.
— Não, ragazza.
Eu não lembrava de ter passado por tantas emoções da
primeira vez, mas talvez fosse por estar vivendo apenas com a
tristeza por tempo demais. Foram três meses tristes, eu nem tendo
tempo de procurar um médico. Por não fazer ideia do que fazer,
imaginava que poderia haver algum suplemento. Alguma tática, algo
que fizesse meus hormônios se acalmarem. Torcia para ser o
conjunto de más notícias do dia o responsável por tudo que eu
sentia.
— Ah, não. — Porque não tinha como viver naquela montanha
russa por mais oito meses. — Não!
Forcei meus olhos a ficarem nas malas. Respirei fundo, uma,
duas vezes. Nickolay iria pirar se tivesse que abrigar o fantasma.
O fantasma: eu decidi na mesa que o apelidaria disso. Eu não
pensaria no nome, e deletaria a pessoa que havia sido tão
agradável durante nossos encontros. Ele era um fantasma que
deveria ter continuado morto, seu renascimento incomodando
demais quem eu queria livre de tristezas.
— Lana...
— Negativo! Ele não vai ficar na minha casa. — Nem mesmo
havia motivo para eu dividir a casa com o fantasma: ele podia muito
bem manter-se atormentando o filho mais velho, ao invés de vir tirar
a paz do meu marido.
Odiava os olhos serem um carbono dos meus, e eu não
pensaria que o contrário era o verdadeiro. Não pensaria no quanto
minha mãe quis aqueles olhos em mim. A única coisa que me
autorizaria a pensar era na dor que eu sempre vi — e ainda via —
no meu italiano, cada vez que o nome do fantasma era pronunciado.
— Se eu não fui clara o bastante noite passada, posso usar
palavras bem específicas agora: não. Eu não quero, e meu marido,
definitivamente, está longe de querer você no nosso lar. Ele só é
educado demais pra falar!
— Escuta, An...
— Não abre a boca pra me chamar de Anna, Armando! —
Armando, e eu lembrava de todas as vezes que vi o nome escrito
com o “R” cortado. Dela o apelidando de mandão, de todos os
malditos detalhes que eu consumi feliz, e agora, era um peso
recordar.
Eles me quiseram tanto, e deu tudo errado. E o dar tudo
errado, fez dar tudo errado para o menino que merecia o certo.
Nenhuma criança merecia o errado, e quem o dava para um menino
traumatizado não poderia ser bom.
— Você sabe que esse não é o meu nome! E eu juro que se
ousar falar qualquer coisa sobre a minha personalidade, eu
arremesso o que tiver na minha frente em você! Nickolay! — Já
previa o surto dele, dividir o teto com o falecido longe da nossa lista
de prioridades. — Eu não acredito nisso.
Era tão irritante termos colocado camas nos quartos vazios.
Era tão doloroso saber que eu não montaria o quarto que queria
aqui, mas na Itália.
Só que me trazia um mínimo de sossego meus gritos terem
sido altos o suficiente para trazer meu italiano de volta. Todos
olhamos para a porta quando essa foi aberta, e Nickolay entrando
sorrindo me deixava perto das lágrimas.
— Che cazzo succede, dolcezza?
Eu não queria que aquele sorriso fosse embora.
— É sério que ele tá indo pra casa com a gente?
Mas eu sabia que iria.
— Alana...
— Quer dizer que eu vou ter que aceitar um mentiroso vivendo
debaixo do mesmo teto que eu? — mantive os braços cruzados, me
forçando a encarar apenas meus olhos favoritos. — Que nosso
filho? Você quer isso? Porque eu não quero! — Eu não pensaria no
quanto era semelhante a Carina por querer os olhos do pai no bebê
que não sairia do meu colo.
Mas eu não os queria tristes, nunca os queria tristes. E já
conseguia enxergar uma ponta de tristeza neles.
— Eu não quero esse homem na nossa casa...
— Quer sim — Nickolay me interrompeu, o rosto ficando sério.
— Que? — O sorriso havia sumido como previa, mas não
havia braveza ali, meu marido vestindo uma expressão muito mais
pedinte do que irritada.
— Um minuto — escutei com a mão tatuada já no meu braço,
Nico me fazendo calçar as botas e nos levando em direção à porta.
— Volto para as malas.
A porta fechou, e eu me controlei para não travar no meio do
caminho. Eu não iria discutir com ele, não iria, aquele homem que
deveria ter continuado um fantasma não ia conseguir terminar com a
felicidade que havia naquele dia. Não iria, não iria.
— Um minuto? — Nickolay nem se virou, continuando a andar
comigo em direção ao carro. — Por que um minuto? — Enruguei a
testa, irritada pela ausência de resposta e pronta para começar a
briga que meu pequeno lado racional tentava evitar. — Vai me dar
uma bronca, falar que tô agindo como...
Eu não esperava ser prensada contra a caminhonete, assim
como não esperava que minha irritação fosse ser dissolvida com um
beijo. Seus lábios nos meus se mostravam urgentes, sua língua
procurando a minha, eu provando Nico, e a nicotina que nem tinha
como reclamar dele ter fumado. A mão que apertava minha bunda
me pressionava contra sua ereção, o gemido que senti me fazendo
imitá-lo e agarrar seus cabelos.
Passou menos de um minuto, mas estávamos ofegantes ao
nos separarmos. Mal dava para sentir frio com todo o calor que
vinha dele. Nickolay me dizia o quanto queria parar ao sugar uma
parte descoberta do meu pescoço, arfando quando meus dedos
acharam a elevação na calça de moletom. De todos os dias para ele
seguir minha sugestão de escolher aquele tecido, justo hoje ele
obedecia.
— Eu quero te foder agora, juro por Deus. — A voz rouca se
fez presente quando agarrei seu pau por cima da calça, seus olhos
achando os meus antes dele continuar. — Alana, se disser sim,
rasgo sua calça e abaixo a minha. — Sabia que a promessa era
séria, e por um segundo, pensei em perguntar o que ele estava
esperando. — Não estou no melhor dos meus controles hoje, então
não me tente.
— Posso ter bem mais que um minuto dessas ameaças,
italiano — respondi com um meio sorriso, Nickolay pulsando na
minha mão até as suas serem sábias e prenderem as que o
provocavam contra seu peito. — Tudo isso pra eu parar de brigar
com o fantasma? — usei pela primeira vez o apelido em voz alta, as
sobrancelhas grossas se levantando.
Eu sabia que não era, o italiano me dando toda a verdade num
olhar, antes de me dá-la em palavras.
— Dolcezza, se está destratando ele por ti, pelo que está
sentindo em relação a quem é seu pai… — Revirei os olhos: ele não
era meu pai. — Aguente só um pouco. Eu odeio admitir, mas o
homem é uma boa proteção, e eu ainda nem sei o quanto
precisamos ter medo.
Era impossível não sorrir ao ver o dele voltar.
— Se está fazendo isso por mim… — Como um olhar poderia
mostrar tanto agradecimento? — Grazie[16]. — E meus dedos
gelados foram postos contra seus lábios, Nickolay os beijando antes
de continuar. — Nunca achei que fosse ganhar tanto de alguém
como ganho de ti, Alana. — Doía ver Nico se mostrando tão
agradecido com o que era o normal de se dar num relacionamento.
E eu parei. Aquele não era o meu normal de um
relacionamento antes dele. Não tinha como não ficar quente por
dentro, por mais frio que estivesse do lado de fora.
— Bobo. — Mas a boba era eu, quase chorando por, apesar
de todas as anormalidades que surgiram na vida, estar finalmente
me sentindo normal.
— Por ti, eu sou. Ti voglio tanto, bella[17]. — Ele encostou a
testa na minha, os olhos tão pedintes quanto os meus deveriam
estar quando o pão saiu do forno. — Não deixe isso estragar o dia.
Apesar de tudo, é um dia feliz. Quero lembrar dele como um dia
feliz.
Eu também queria.
— Posso pelo menos cutucar? — Ele revirou os olhos, mas o
sorriso continuou ali.
— Só não me faça ter que matá-lo.
— O que? — E o sorriso se transformou num debochado.
— Sua cara foi impagável!
Também queria rir da piada, mas não conseguia ver muita
graça na afirmação do italiano. Ele não havia dito nada, mas lá no
fundo, sabia que a morte se tornaria uma constante em nossa vida
na Europa. Estávamos, afinal, voltando para a máfia que Nico tanto
quis deixar para trás.
No entanto, era outra coisa que me incomodava.
— Você o mataria? — O olhar que recebi foi mais sério do que
estava pronta para ganhar.
— Alana, se algum dia eu precisar escolher entre qualquer
coisa e você, vai ser sempre você.
Dias atrás, a minha escolha também seria sempre ele.
— Não, Nico. — Era minha vez de envolver o rosto com
minhas mãos, a barba grande mais quente que minha pele gelada.
— Não somos mais só nós dois. Se tiver que escolher algum dia,
você já sabe quem tem que escolher.
Eu não queria ver nenhuma angústia nele, e decidi que aquela
seria a última vez na semana que diria ao italiano qualquer coisa
que pudesse causar algo ruim.
— Nunca vamos precisar disso, amore mio. — Ele se
recuperava tão rápido quanto eu. — Se precisar escolher, vou
escolher sempre as duas. Posso buscá-los?
Dava para ver o fantasma nos observando pela janela, e decidi
que se não poderia brigar, poderia ao menos causar desconforto no
filho da mãe. Ver a filha se esfregando num homem — por mais que
ele fosse seu marido — era desconfortável o suficiente, não era?
O jeito que agarrei a bunda do meu não foi nada discreto,
minha mão livre o puxando para um beijo. Meus dedos entrelaçaram
nos fios pretos, e eu considerei pedir para ele cumprir sua ameaça e
rasgar mais uma das minhas calças.
Não tinha mais ninguém na janela quando nos separamos,
Nico entendendo bem demais o que aconteceu.
— Agora pode.
O homem sacudiu a cabeça, mas o tom usado estava longe de
ser um de reclamação.
— Você é um caso perdido.

Nickolay levava as malas para cima, deixando os três homens


e eu sozinhos na entrada da casa. Lorenzo e Matteo trocaram um
olhar antes do mais velho me observar curioso, o que não era bem-
vindo tendo a decência de permanecer quieto, olhando para a porta.
Eram cinco e meia da tarde, as maçãs ocupavam uma boa
parte do balcão-ilha que tinha na cozinha, e eu decidi que o melhor
para não começar a gritar outra vez era fazer macarrão. Macarrão
sempre ajudava, e eu daria espaguete cortado coberto de queijo
para os quatro italianos que resolvi que iria alimentar.
Talvez meu mau humor tenha feito os três manterem a
distância, Nickolay sendo o único corajoso o suficiente para oferecer
ajuda. A mão com a caveira cortava o bacon enquanto as minhas
derretiam o queijo, meu marido e eu sendo protagonistas de uma
cena comum, que logo nos seria arrancada. Decidi ignorar todos os
convidados na sala que eu também perderia em breve e focar só em
nós três. O italiano se deixava ser mais carinhoso que o habitual, as
mãos sempre me achando, os lábios em mim, e me perguntei se era
pela felicidade do novo integrante que estava por vir, ou
simplesmente para irritar quem nos observava da sala. Eu queria
irritar os olhos iguais aos meus, e imaginava que o ressentimento
que Nico sentia tornava suas vontades parecidas com as minhas.
Ao menos, os outros italianos me ignoraram até irmos com a
janta para a mesa. Nickolay interrompia uma conversa na língua que
eu mal entendia — e nem tinha vontade de entender no momento —
e chamava os três para a mesa enquanto colocava de qualquer jeito
a pasta que eu tinha preparado quase sozinha.
Precisava admitir que o assado da travessa não tinha a melhor
das aparências, mas nada que cheirasse a cheddar poderia ser
ruim. E ruim não estava, decidi ao dar a primeira garfada.
Só depois que engoli vi que todos os olhos estavam em mim,
os homens sentados em silêncio ao meu redor.
— Podem ir comprar alguma coisa, se não quiserem comer
macarrão — estreitei os olhos, meu marido forçando os lábios juntos
para segurar um sorriso.
Lorenzo fez o mesmo, a pasta[18] — aquilo realmente parecia
uma pasta — fazendo um barulho gosmento ao cair no prato.
— Macarrão — era Nico quem não se continha, e, de frente
para ele, meus olhos estreitaram ainda mais. Ele poderia, ao menos,
ficar quietinho, meu corpo resolvendo lembrar justo agora de todas
as ocasiões nas quais ele me pediu o mesmo.
Malditos hormônios.
— Macarrão está ótimo. Você que fez? — Mantovanni parecia
esperar uma resposta diferente, erguendo as sobrancelhas e
sorrindo nervoso ao ouvir meu sim. — Deus abençoe.
Nickolay realmente me conhecia bem demais.
— Está delicioso, dolcezza.
Matteo, escolhendo ficar quieto, também lembrava bem de
mim.
Armando, não.
— Está muito bom. — Eu não queria mais escutar aquela voz,
assim como não queria vê-lo comendo o que eu preparei.
Ele, escolhendo franzir o nariz antes de engolir, bastou.
— Então por que tá fazendo essa cara?
Vi os dois que faltavam provar a janta, apenas um corajoso o
suficiente para abrir a boca e me contrariar.
— Está bem salgado, Lana. — Pela cara dos restantes, eu
imaginava que deveria estar.
— Obrigada, Lorenzo. — Coloquei mais uma garfada na boca:
para mim, estava normal. — Acho que já sei pra qual dos quatro
perguntar as coisas.
— Não sente o sal? — Veio da outra ponta da mesa, meu
italiano erguendo as sobrancelhas.
Ele sempre ser tão chato com sua comida, e ainda assim
comer a minha, me suavizava.
— Pra mim, tá ótimo. — Suavizava o suficiente para eu ignorar
o projeto de risada que veio do único que não queria sentado
conosco. — O que foi?
— Foi uma das coisas que sua… — E o que eu tinha na boca
não conseguiu mais descer.
Que minha mãe. Nunca estive tão perto de descobrir tudo que
sempre quis saber sobre quem havia me gerado. Doía estar tão
perto, e saber que eu não perguntaria. Não para ele.
— Que Carina percebeu, antes de te perceber — Armando
finalizou, e o macarrão não parecia mais tão gostoso.
— Deve ser normal. — Ainda assim, forcei mais uma garfada
boca adentro. Talvez devesse comer uma salada. — A minha mãe
também disse que sentia gostos diferentes quando ela tava grávida
dos meus irmãos.
Dava para ouvir os talheres batendo nos pratos, nenhum dos
homens abrindo a boca para falar por minutos demais. Já sentia as
lágrimas pinicarem meus olhos quando os escuros de Nico
chamaram minha atenção.
— Lembra do que te disse ano passado sobre a Itália? — E
meu cérebro mais uma vez fez o favor de lembrar apenas das
indecências, a voz rouca falando na minha cabeça que me foderia
em todas as partes do iate que iríamos alugar. — O que acha de ir
tomar um gelato[19] na Sicília?
Um mês era realmente bastante tempo longe dele, e lembrar
de tudo que Nickolay conseguia fazer com comidas geladas era
tortura para um corpo coberto.
— Eu acho que eu não tenho opção. — Dei um meio sorriso,
virando o rosto para Lorenzo antes de continuar. — Tenho?
— Vai perguntar tudo para ele, agora? — A falsa irritação me
devolveu um sorriso inteiro.
— Tá com ciúme, italiano? — Eu sabia que ele não estava,
mas vê-lo revirar os olhos com minhas provocações havia se
tornado um vício que eu amava suprir diariamente.
Um vício que nos fazia parecer tão normais. Era difícil aceitar
que perderíamos a normalidade outra vez, e nem todo o sorvete da
Itália conseguiria nos comprar uma vida perto da nossa canadense.
— Dai, non essere sciocca[20], Alana. — Era difícil parar depois
de começar, e o vi revirar os olhos novamente quando voltei os
meus para Mantovanni.
— O que ele disse? — Em minha defesa, eu não fazia ideia.
— Boba. — Veio do italiano, antes do pai postiço que eu
gostava dar uma risada.
Tão, tão normal. Se fosse apenas o defunto vivo, nem seria tão
ruim assim.
Mas, mesmo com todos trocando sorrisos, não tinha graça
nenhuma a bagunça na qual mais uma vez eu tinha me metido.

Já era tarde quando me deitei na cama. Meus olhos fechavam,


eu lutando para mantê-los abertos até o italiano sair do banho que
decidiu tomar.
— Como você tá? — Ele foi para o seu lado, parecendo tão
acabado quanto eu estava. — Como tá o machucado?
Pelo menos, o curativo na orelha permanecia limpo.
— Estou bem. — Nico puxou para baixo sua parte do
edredom, deitando-se antes de focar em mim. — Não precisa se
preocupar tanto. — Veio com um sorriso. — Realmente estou bem,
dolcezza.
— Tô vendo. Passou a janta sorrindo, comendo macarrão
salgado com companhia ruim.
Fechei os olhos quando a mão com a caveira acariciou minha
bochecha, aproveitando o cheiro dele enquanto tentava desfocar
dos problemas.
— Eu vejo de outro jeito. Comi macarrão com cheddar, com
quatro ótimas companhias. — A outra mão tocou minha barriga, ele
me falando em silêncio que a quarta companhia não era o fantasma.
— Gosto quando é assim positivo. — Positivo: eu gostava
daquela palavra. — Quando sorri desse jeito.
A palavra era uma que eu precisaria usar vezes demais nos
próximos meses. Me esforçava para ser positiva e não surtar cada
vez que lembrava do que estava prestes a acontecer conosco.
— Parece que tudo fica mais fácil quando eu vejo o seu sorriso
— confessei quando voltei a encará-lo.
— Vou lembrar de sorrir mais vezes. — Ele soltou um suspiro,
eu mordendo o lábio inferior. — Pergunte, Alana. — Queria poder
continuar fingindo que questionamentos não existiam. — Eu sei que
está cheia delas.
E foi minha vez de suspirar.
— Por que não podemos simplesmente sumir? Morrer outra
vez? Ou só falar que não queremos, que você não quer mais fazer
parte disso, nem ser chefe! Ninguém quer ser o chefe no seu lugar?
— Não é assim simples, dolcezza. — Aquilo, eu já sabia.
— Por causa do Dimitri?
— Dimitri. — Ao menos, a careta que veio quando ele repetiu o
nome era engraçada.
Porque o resto passava longe de ter graça.
— A irmandade russa é o motivo principal de estarmos
voltando, sim. Mas vai além de Levina. Eu sei demais. Eu sei coisas
demais, sobre muitos homens, muitos assuntos. E isso me torna
tanto valioso, quanto mais perigoso do que o que posso fazer. Não
tenho tantos favores para cobrar. É melhor ser um perigoso
respeitado, do que um perigoso foragido. E uma vida fugindo não é
uma vida, amore mio. Não quero passar a vida fugindo contigo e
uma criança, Alana.
Respirei fundo. Eu também não queria.
— Está nervosa. — Meu sentimentos, como sempre, eram
óbvios para o italiano. — Com o bebê?
— Um pouco. É seguro viajar agora, não é? — Os dedos
voltaram a fazer carinho na minha barriga reta, os lábios grossos
roubando um beijo antes dos olhos escuros trancarem nos meus.
— O Google me disse que o primeiro trimestre é o melhor para
viagens de avião. — Levantei as sobrancelhas. — O que? Não
posso pesquisar uma coisa ou outra na internet?
— Você me falando isso parece tão normal. — Era para ter
soado engraçado, mas assim que me escutei, toda a graça foi
embora. Mais uma vez o normal ia embora, nós precisando
abandonar a casa onde construímos nossa normalidade nos últimos
meses. — Acha que conseguimos comprar passagens de ida e volta
no primeiro trimestre?
A expressão que ganhei deu a resposta antes das palavras.
— Alana, já viu todos os meus lados. Sabe o que posso fazer.
— As mãos grandes seguravam meu rosto, meus olhos se
afundando na sinceridade que Nickolay me dava. — Ninguém vai te
tocar. Ninguém vai tocar na minha mulher, na minha família. Eu
destruo cada um que for louco de tentar.
Aconchegando a cabeça no peito dele, quis que nossa vida
fosse tão fácil quanto era acreditar nas palavras de Nickolay.

Nunca gostava de acordar depois dela, odiando a nova


dificuldade em pegar no sono, e o jeito que isso fazia meu corpo
dormir até mais tarde. O relógio, esquecido por já semanas na mesa
de cabeceira, marcava oito e meia, e eu me forcei a acreditar que
estava tudo bem enquanto jogava água na cara e trocava de roupa.
Alana sendo o oposto do silêncio ajudava. Conhecia bem
demais todos os barulhos da minha mulher para entender que era
ela quem estava na cozinha, até mesmo os passos diferentes dos
outros.
Ninguém mais conseguia queimar coisas como ela, e me
surpreendeu o alarme de incêndio não ter soado, o cheiro de pão
que passou do ponto ficando mais forte a cada degrau que descia.
Ela com certeza tinha desenvolvido seus truques para não ativar o
dispositivo, a mulher colocando uma frigideira na pia antes de me
perceber.
— Fez café? — Ela sorriu, colocando o prato vazio junto do
resto da louça suja, um com o que parecia ovos mexidos e uma
torrada bem tostada ainda na mesa. — Deveria ter me acordado.
Me sentei, tomando um gole do café que acompanhava a
comida. O gosto era muito melhor do que a aparência, Alana tendo
melhorado muito na cozinha, mas ainda sendo dona das piores
apresentações.
Mordi um pedaço do pão, o roupão que ela usava
escorregando de um dos ombros, a boca ainda quieta.
— Não deveria estar vestida? — Vi as sobrancelhas
levantarem, Alana se sentando com calma demais na bancada que
dividia a cozinha da sala. Comi o último pedaço da torrada antes de
voltar a falar. — Aproveitando os últimos meses de silêncio? — O
sorriso que recebi me fazia querer aproveitar outras coisas ao lado
dela.
Eu não era o único com aquele pensamento. Coloquei a
caneca de café vazia sobre a mesa no instante em que a tira do
roupão foi aberta, mostrando que a peça branca era a única que
minha mulher usava. Molhei os lábios, Alana abrindo as pernas e
me fazendo ver que estava molhada igual.
Não tinha como continuar sentado. Parei na frente dela,
minhas mãos encaixando nos seus seios, os bicos enrijecendo
contra meus dedos, Alana mordendo o lábio inferior e respirando
fundo.
— Eu não gosto do silêncio. — Gemi quando fui agarrado por
cima da calça, meu pau querendo rasgar o tecido, eu querendo me
enterrar nela sem preliminar nenhuma. — Bem melhor.
As palavras foram embora quando deslizei um indicador pela
sua boceta, Alana se movendo contra o meu dedo sendo, como
sempre, hipnótico.
— Não dá para usar moletom contigo. — Morreria sem
entender como essa mulher me deixava pegando fogo em
segundos, os gemidos que ela dava junto da mão que me esfregava
sendo quase suficientes para eu gozar. — Não dá para usar nada
que não seja a porra de um jeans, e não sei mais o que fazer para
me cansar de ti.
Sua mão livre agarrou meus cabelos, trazendo minha boca
para perto da dela.
— Quando descobrir, me conta. Vai que funciona pra mim
também — escutei antes dela me calar da melhor maneira, o beijo
engolindo os sons que eu queria soltar.
— Assim vamos nos atrasar. — E eu quase não ligava, não
fosse um atraso para a consulta com a médica que Anna Flávia nos
conseguiu. — Temos meia hora…
— Temos que treinar nossa rapidez, não acha? — Estava
prestes a responder que rapidez não seria um problema quando os
dedos brincando com o elástico acabaram com meu foco. — Duvido
eu ter meia hora pra te chupar daqui uns meses.
Os olhos mel acharam os meus, me deixando ver bem demais
tudo que a dona sentia. A deixaria fazer o que quisesse, se isso
aliviasse o nervosismo que vi.
— Não estamos sozinhos, dolcezza — adverti, mas era eu que
derretia na mão dela, Alana melando meus dedos com os lábios
bem mais quietos.
— A casa é nossa, quem se incomodar pode tampar os
ouvidos. — Não estava em condições de discordar daquilo, por mais
que lembrasse bem do último atraso que Lorenzo nos impediu de
ter. — Lembro bem de uma tarde nesse balcão. — Nunca dava para
manter a calma com ela sussurrando no meu ouvido.
— Talvez eu precise ser mais delicado, bella. Por enquanto. —
Os olhos estreitaram, Alana bufando e afastando minha mão. —
Não faça essa cara. — A dela continuava me tentando a realizar seu
próximo pedido.
— Me debruça no balcão e me fode que eu paro de fazer essa
cara.
Mordi tarde demais o lábio inferior, um gemido longo saindo
quando a mão foi para dentro da minha calça. Escondi o rosto no
pescoço branco, o cheiro dela me invadindo, a mão pequena
tentando fechar ao redor do meu pau.
— Eu tenho uma ideia melhor. — A peguei no colo sem aviso,
os braços indo parar no meu pescoço, as pernas firmes na minha
cintura.
Não iria debruçá-la em nada, mas lembrava bem de como a
mulher que sugava meu pescoço gostava de ser fodida enquanto
nos observava. A respiração quente na minha pele me causava
arrepios, meu pau pulsando quando as unhas dela me marcaram.
— Gosta de nos ver pelo espelho, não gosta? — A encostei
contra a parede, os seios rosados enrijecidos contra meu peito,
minhas mãos segurando-a pelas coxas.
Estávamos perto demais da escada, mas eu poderia muito
bem ter plateia e não ligaria ao ser engolido sem esforço por sua
boceta. Alana estava encharcada, me apertando com vontade
quando me enterrei até o fim.
— Bom? — Um dos pés enganchou na calça de moletom, o
tecido sendo empurrado para baixo, minha mulher sorrindo ao achar
nosso reflexo.
— Melhor agora. — Ela tinha zero intenção em ser silenciosa,
o choro que soltou com certeza sendo ouvido por toda a casa.
Filha da mãe. Alguém ia acabar saindo de um dos quartos, o
lado exibicionista dela com certeza amando a possibilidade.
— Alana… — O beijo não tinha delicadeza, mas necessidade,
eu lhe dando o que ela me dizia precisar e estocando rápido. —
Quarto, Alana — mal achei voz para falar, diferente da mulher que
não sabia ser quieta.
Estava a segundos de nos levar para cima quando a vi
ofegante, os choros curtos e agudos me dizendo que estava prestes
a gozar. As unhas arranhando minhas costas por cima da camisa
me deixavam tão perto quanto ela mostrava estar, Alana me
pedindo para não parar com seus olhos.
— Isso, bella. — Que se foda o silêncio. — Faz todo mundo
escutar quem está te fodendo — deixei sair quando a vi fechá-los, e
decidi que se foda o barulho: ela poderia acordar a cidade inteira se
fosse para chorar meu nome daquele jeito.
Alana obedecia bem demais minhas ordens. Ouvi-la me
chamando enquanto gozava sempre acabava com muito do meu
controle, diminuir o ritmo das minhas investidas sendo uma tortura.
Sua boceta melava minha pele, o barulho que as estocadas faziam
só me deixando mais duro.
— Vai falar que isso foi rápido? — escutei-a perguntar numa
voz preguiçosa, os cor de mel outra vez em mim. — Quero você
sem roupa desde que me agarrou na caminhonete.
— Por que não disse? — Os lábios finos continuaram a não se
importar em fazer silêncio, Alana me incentivando a não parar ao
mexer os quadris.
— Você tava cansado. Não vou te torturar só porque meus
hormônios estão fazendo o mesmo comigo.
— Desde quando é tortura te foder? — Ela contraiu forte ao
meu redor, me lembrando do quanto gostava de me ouvir. As mãos
puxando meus cabelos faziam meu pau pulsar, o jeito que deslizava
a cada investida, delicioso. — Será que consigo te fazer gozar de
novo em um minuto?
— Se você se esforçar. — E eu estava prestes a fazê-lo
quando fui obrigado a desfocar dela.
Por mais que estivéssemos fazendo zero esforços em não
acordar os homens no andar de cima, parte da minha atenção
estava nos barulhos que poderiam vir de lá. Definitivamente não
esperava escutar a porta da frente sendo aberta, Alana me
mostrando que tinha sobrado alguma vergonha nela: não havia
ninguém na casa além de nós. Ao menos, não havia até um
segundo atrás.
— Não, não, vamos ficar do lado de fora por uns minutos. — A
voz era de Lorenzo, e por um dos espelhos eu via seu meio sorriso,
assim como o via impedir o amigo de entrar. — As crianças estão
acostumadas com sobremesa no café da manhã, se é que me
entende.

O relógio mostrava que estávamos cinco minutos atrasados.


Odiava atrasos, mas queria postergar ao máximo a raiva que sabia
que passaria assim que pisasse na varanda.
— Terminaram? — veio de Lorenzo, o homem nunca sabendo
ficar quieto. — Preciso falar que na Itália, um pouco mais de
discrição seria bem-vindo?
Encostei a porta atrás de mim, encarando os olhos azuis.
— Não vou ser eu o Don dessa merda? — Até a paciência de
Alana parecia estar ficando comigo. — Do que me adianta a
posição, se não posso foder minha mulher quando ela quer?
Escutei os passos dela descendo as escadas, a última frase
sendo dita apenas para provocar quem tirava um Marlboro do bolso.
— Sem cigarros perto de Alana. — Não pensei antes de
arrancá-lo da mão tão tatuada quanto a minha, fugindo dos olhos
que estreitaram. — E sem uma palavra sobre isso quando ela sair
— terminei ao jogar o cigarro na neve.
Uma voz muito mais alegre — e debochada — que a minha
encheu o ambiente, me impedindo de continuar.
— Eu não ligo não. — Alana sempre ouvia demais, mas as
provocações dela, quando não direcionadas para mim, eu gostava.
— Seu menino adora açúcar no café da manhã, Lorenzo. Até antes
do jantar, você lembra, não lembra? — ela continuou, vestindo um
gorro enquanto caminhava para seu carro. — Já deveria saber dos
vícios do seu filho.
Mantovanni não fez nenhum esforço para conter a risada, e eu
me perguntava se isso faria parte do meu novo normal.
— Voltamos para o almoço.

Por mais que a presença de Armando me incomodasse, Alana


era luz o suficiente para manter meu bom humor na maior parte do
tempo. Era nosso último dia ali, mas nem o almoço de despedida,
nem o frio canadense, conseguiam fazer o calor que minha mulher
me dava diminuir.
Esperava que continuasse assim quando pisasse no meu país
de origem. E outra vez, precisava de um cigarro, Alana e nosso filho
longe o suficiente para me sentir confortável em acender um: eu não
era italiano.
— Nunca te vi tão feliz. — Victor se sentou no primeiro degrau
da varanda, eu descendo para a neve.
— Está tudo bem com Alana e nosso bebê. Vou deixar isso
bastar para minha felicidade.
— Vai achando que é fácil, irmão. — Fechei os olhos,
respirando fundo e alcançando o maço fechado.
— Não é fácil, eu sei que não é fácil. — Abri o lacre, Nicolas
voltando para meus pensamentos depois de dias de descanso. —
Tem horas que tudo que se quer é um pouco de silêncio, noites
onde dói fisicamente sair da cama para acudir um choro que não
para. Eu sei disso.
— Sempre falo merda. — Os olhos verdes mostravam
arrependimento. — Eu também sei que o difícil vale a pena, Nico.
Você tem o difícil, mas tem todas as primeiras vezes. As tardes nas
quais você ganha um sorriso, e uma coisa tão pequena compensa
uma boa parte das horas que quer dormir e não pode. Vai ter isso,
irmão.
Fiz que sim: eu teria isso. Eu teria isso, no mesmo meio que
me tirou a minha primeira família. Que me tirou minha mãe.
A luz sempre ficava mais fraca quando me deixava lembrar do
que aconteceria amanhã.
— Já compraram as passagens? — Fiz que sim, enfim
acendendo o cigarro. — E qual o plano?
Me deixei tragar antes de responder.
— Ficar vivo. — Era a verdade. — Eu não faço ideia do que
fazer lá, Victor. Vai demorar, muito mais do que esperava —
lamentei, a nicotina não funcionando tão bem quanto deveria. —
Talvez seja melhor comprar de volta a casa...
— Negativo. Vão ficar com ela, mesmo que fique vazia por um
tempo. — O vi cruzar os braços de canto de olho. A neve já derretia,
o vermelho não mais visto na lama que se formava. — Cazzo, não
quero ela vazia. Deixa eu ir...
— Não vamos discutir isso de novo. — o cortei assim que a
porta da frente abriu, Armando passando em silêncio por nós. — Era
mesmo necessário ter me feito aturá-lo todos os dias? — A pergunta
foi feita quando o vimos abrir a porta da caminhonete vermelha. —
Já vou viver com o desgraçado colado em mim quando partirmos.
Pela expressão, sabia que Victor estava considerando demais
o que responder. Lembrava dos gritos trocados pelos dois naquela
primeira tarde após o caos, assim como tinha visto sem meu irmão
saber o abraço que deram em uma das noites.
Era eu quem nunca havia considerado abandonar quem
chamei de pai. Sempre que pensava naquilo, me sentia o maior dos
estúpidos.
— Anna Flávia não me daria paz se eu não a deixasse
convidá-lo — foi a desculpa que veio. — Ela sente dó do velho.
— Ela é a única — retruquei, sempre que Armando era tópico,
minha paciência evaporando. — Alana está pior que eu.
Era irritante receber um olhar sério, Victor, daquela vez, não
freando sua resposta.
— Ela toma muito suas dores, Nico. — Voltei para o cigarro.
— Não creio que seja apenas isso. — Não era. Não, Alana
também doía. E eu queria arrancar aquela dor de perto dela. — E se
for, eu agradeço. As coisas já estão difíceis o suficiente, ao menos
alguém entende o que eu sinto. — Porque quem era meu irmão não
parecia estar entendendo.
— Só tenha certeza de que você também entende o que ela
está sentindo. — Achei minha mulher pela janela, ela aproveitando
os últimos momentos com os sobrinhos. — Armando é o pai dela,
Nico. Ela também…
— Cigarro? — o interrompi pela segunda vez, mostrando
minha disposição em conversar sobre o assunto.
Ao menos meu irmão entendia quando parar.
— Se Flávia me pegar fumando, ela me mata.
— Certa está sua mulher. — Lorenzo, como andava fazendo,
apareceu no melhor momento, a porta fazendo barulho ao fechar. —
E a sua deveria reclamar disso. Não sei como consegue comer esse
cazzo.
Me virei, enfrentando os olhos azuis.
— Eu tenho a opção de comer esse cazzo e continuar calmo, e
a de não fumar e matar seu amigo — fui sincero.
Armando era muito mais silencioso que Mantovanni.
— Precisa de um isqueiro? — A voz veio de trás de mim, eu
reconhecendo o Zippo dourado assim que meus olhos pararam no
item.
Foi automático pensar que papai sempre o usou para acender
os cigarros e charutos que fumava, e pensar nele como pai me
queimava. Armando não era meu pai.
— Tem um cigarro? — Era só o que me faltava, e quem
sempre quis ser minha família e eu nunca deixei reconhecia o quão
perto eu estava de começar uma briga. Nos últimos dias, tudo
parecia ser motivo para o meu cérebro.
— Nico, é só um cigarro. — Patético como eu me sentia um
garotinho tomando uma bronca com aquelas palavras.
Joguei no ar o maço que eu não queria mais, resolvendo que
me sentar ao lado de Victor era minha escolha mais sábia.
— Grazie. — Ao menos não era o único que revirava os olhos,
dando um último trago antes de apagar o cigarro numa das poças
de neve derretida nos degraus de baixo.
— Esse é um silêncio confortável, meninos. — Mantovanni
nunca conseguia ficar quieto.
— Lore, você não vale nada! — E Victor, aparentemente,
nunca conseguia parar de rir nos momentos mais inconvenientes. —
Então, pai — A palavra foi enfatizada com deboche, ao menos
naquilo meu irmão concordando comigo: bom pai, o homem não
havia sido. — Por onde andou todos esses anos?
Queria sair dali, sem vontade de escutar qualquer mentira que
viria.
— Por alguns lugares.
— Hum. — Era melhor ficar de fora da conversa. — Ele estava
aqui fazia quanto tempo, três anos?
— Quatro. — Quatro anos, e Lorenzo também sabia.
— Aqui? — Era melhor ficar de fora, mas eu quase nunca fazia
o que era melhor para mim.
— Uhum. Vancouver. — Armando confirmou, eu forçando
meus olhos a continuarem no jardim.
— Fazendo?
— Trabalhando. Esperando. — Nunca mais daria respostas
monossilábicas para Alana, prometi ali. — Por que entraram para a
máfia?
Fechei os olhos, tentando manter alguma luz. Deveria entrar.
— Eu precisava do dinheiro. — Foi Victor quem respondeu, e
eu deveria entrar.
— Eu te deixei dinheiro!
— Não era meu dinheiro!
— É claro que era! Tinha seu nome! — Tinha, também, certa
raiva na voz, o que me fez focar, pela primeira vez no dia, em quem
deveria estar morto. — Não é como se não tivesse usado quando
resolveu morrer...
— Não. — E Victor já não estava mais tão feliz com nossa
antiga família. — Só pare.
A ausência de insistência era uma benção. Armando resolver
focar em mim, não. Deveria abrir a boca e contar algo que ele
provavelmente já sabia? Ouvir alto o motivo iria doer mais em mim
do que nele.
— Porque mataram o meu filho. — Deveria, também, ter
continuado a encarar a água. Ver dó nos olhos cor de mel não
ajudava meu humor. — Tu?
— Só segui os passos do meu pai. — Quem resolveu encarar
a água foi ele, eu percebendo estar inapto de fazer o mesmo. — Vivi
na máfia desde pequeno, não sei se algum dia tive muita escolha.
— Acho que podemos dizer o mesmo — deixei escapar junto
com a fumaça.
— Não, não podem! — Braveza vinda dele era algo que
deveria ser esperado, visto tudo que ganhei do homem nos seus
últimos anos vivos. Ainda assim, era tudo que eu não esperava
receber agora. — Eu me esforcei para que não!
E o inesperado fez eu não conseguir mais me calar.
— Ah, eu lembro tão bem de seus esforços! — A acusação
veio com uma risada de minha parte, o som passando longe de
qualquer graça.
— Eu fiz o que consegui, Nickolay.
— Não conseguia nem olhar para mim depois que mamãe
morreu! — Me levantar foi automático, os anos me mostrando que
minha altura tinha ultrapassado a dele quando parei do seu lado.
— Porque toda vez que olhava, escutava de ti algo sobre ela!
— Porque doía, e eu precisava falar!
Será que Armando reagiria se eu começasse uma briga? O
quão mais forte que eu ele poderia ser? O quão grande seria o
estrago se fossemos para o chão? Deveria chegar com o rosto
limpo na Itália, aquele sendo um dos motivos que me impediu até
agora de tentar interações com aquele homem.
— Nico… — Lorenzo tentou começar quando viu minha
caveira se fechar na gola do casaco de seu amigo.
— No! — E como na tarde sangrenta, o descontrole me
invadiu, as palavras saindo antes que pudesse parar minha boca. —
Era nosso pai até aquele dia, eu lembro dos bons momentos! Se
nunca tivessem existido, não doeria tanto o que eu recebi de ti
depois daquela maldita tarde! — Agarrei mais forte o tecido,
enrugando a testa ao ver, outra vez, o sentimento que descobri
odiar.
Agora, entendia bem demais Alana reagindo com raiva sempre
que via aquilo nos meus olhos. Dó machucava.
— Por que simplesmente não jogou na minha cara que não
tínhamos o mesmo sangue? — Ele nem tentava escapar do meu
aperto.
— Porque prometi para sua mãe que nunca faria isso! — E a
aceitação que tinha nele para o que quer que fosse acontecer
irritava.
— Duvido que ela tenha te feito prometer transformar minha
vida num inferno antes de morrer! — De canto de olho, a vi pela
porta aberta, Alana e Flávia com certeza tendo escutado nossos
gritos, silenciados nos últimos dias. — Por que, Armando? Por que
nos odeia tanto?
Eu perguntava, mas desejava que nenhuma resposta viesse.
Que a quietude reinasse ao menos uma vez na minha vida.
— Eu não odeio! — Talvez em alguns anos, com o atraso de
sempre que havia nos meus pedidos, eu tivesse o silêncio.
— Então o que foi? O que aconteceu? — E mesmo a ouvindo
arfar, eu mantive meu aperto no tecido preto, puxando Armando
para perto pelo casaco.
Eu conseguia fazer meu desespero se transformar em ódio tão
rápido quanto minha mulher mudava de humor.
— Estava apaixonado por outra, puttano. — O olhava de cima,
minha voz baixa, meus olhos procurando apenas um motivo.
Apenas um motivo, e sabia que Alana não me pararia. — Eu
entendo um casamento sem amor. Eu passei por um. Eu olhei para
os lados também.
E nenhum outro conseguiria me parar, quando começasse.
— Mas sempre deixei Nicolas chorar nos meus braços. Então
por que se incomodava tanto em me escutar chorando pela minha
mãe?
Andava errando demais ultimamente, bastando uma verdade
para a briga que eu queria começar não ser mais considerada.
— Porque sua mãe matou a mulher que eu amava!

2001

O último copo de whisky que tomei foi na tarde em que me


despedi do menino que chamava de filho. Já haviam passado dois
meses, minha mão quase acostumada com a falta de álcool. Boa o
suficiente para o tiro que precisava dar.
Se errasse, morreria. Se não tivesse que cuidar de longe de
três filhos vivos, consideraria não acertar.
Trabalhar para o pai biológico dos meus dois meninos era um
inferno, e tudo que eu precisava para esquecer da maldita tarde.
Tudo que eu precisava para voltar a viver no automático, e parar de
pensar nas possibilidades que Katerina arrancou de nós.
Deveria ter matado essa maldita quando desconfiei do que
acontecia. Agora, precisava me contentar em fazer aquela
organização desaparecer para sempre.
E eu o faria. E deixaria esse mundo apenas após tomar a
última vida necessária para extinguir aquela merda.

— Porque sua mãe matou a mulher que eu amava! —


Verdades doíam. — E cada vez que eu te escutava chorando por
quem tirou um pedaço do meu coração, algo em mim morria. Era
meu filho, mas eu morria a cada lágrima sua!
Encarando os olhos do homem, dava para enxergar toda a
sinceridade na cor mel. Verdades doíam, e finalmente entendia
Alana e seu silêncio. Eu estaria muito mais em paz sem saber
daquela parte. Estaríamos em paz se nada daquilo tivesse sido
desenterrado.
Engoli, tentando suavizar a bola que bloqueava minha
garganta. Deveria ter escolhido a Tailândia.
— Inacreditável. — A voz era brava, a mão branca indo para
cima da minha, Alana na ponta dos pés. — Nico, solta. — Obedeci
sem pensar, tentando ignorar o zumbido que parecia ter dentro da
minha cabeça.
Era melhor fechar os olhos do que encarar os dela, e o fiz.
— Sabia disso? — A ausência de uma resposta foi minha
confirmação.
— Vamos embora. — Ela tentou me puxar pelo braço, mas
meus pés não queriam se mexer, meu corpo parecendo ter tomado
um banho de água fria. — Agora, Nickolay, vamos embora!
Ter minha dúvida confirmada me deixava paralisado ali. O
receio mantinha meus olhos fechados, com medo do que fosse
achar nos de Alana. Teria dó, do mesmo jeito que os meus um dia
mostraram para ela? Teria raiva?
Cazzo.
Tinha outra mão em cima da dela, e se eu pudesse me mover,
o teria levado para o chão por se atrever a tocá-la. Era
desesperador me sentir tão paralisado, e como no dia em que achei
que fodia minha irmã, eu só queria desligar.
Por que eu não conseguia? Fugir do que me torturava era tão
difícil, e eu deveria facilitar para nós dois e deixá-la me arrastar dali.
— Deixe-o respirar, Alana — escutei a voz que queria quieta, o
aperto no meu peito crescendo, eu puxando um ar que parecia não
vir. Meu coração batia forte contra meus ouvidos, me deixando
quase surdo para tudo que não fosse o barulho do bombear.
A voz dela sempre se sobressaía. A voz dela me daria a calma
que eu precisava, rezava para que fosse verdade.
— Você acha que conhece meu marido melhor do que eu? —
Mas minha mulher passava longe de qualquer calma naquele
momento, a língua tão afiada quanto minutos antes de descobrir
sobre nosso bebê. — Sabe, quando li os diários pela primeira vez,
eu…
Os dedos quentes achando a pele do meu pulso me fizeram
abrir os olhos, a primeira coisa que vi sendo a mão me fazendo um
carinho. A unha do indicador estava roída, o esmalte que ela tinha
colocado, lascado. O cheiro de framboesa se misturava com o meu
forte de nicotina, o gosto do cigarro ainda na minha língua pedindo
para ser substituído pelo dela.
Focar nela era melhor que um calmante, Alana me cedendo a
sua paz.
— Eu sempre quis saber quem eram meus pais. Quando li os
diários pela primeira vez, eu gostei de você. O jeito que Carina
falava sobre o amor da vida dela me lembrava o jeito que eu via
meu marido. O que também me fazia lembrar o quanto ele deve ter
se espelhado nas suas partes boas. — Talvez me cedendo-a por
inteiro. — Mas eu me recordava, por tudo que escutei do seu filho,
que havia muitas partes ruins. Você foi um filho da puta com ele, e
Nico era uma criança!
— Alana, no. — Eu mal pude me ouvir falar, o som
ridiculamente fraco.
Se ela ouviu, ignorou por completo.
— E não dá pra esquecer dessa parte! Mas tudo bem, porque
você estava morto, e eu tento respeitar os mortos. — Ela riu. —
Bem, pelo menos a maioria. E então, você aparece, vivo. — A mão
me soltando que me fez levantar a cabeça, Alana, mais uma vez,
tomando meus desejos para ela. — E me olhando como você
deveria olhar pra ele!
Foi a voz falhando no final que me fez ter certeza de que
deveríamos conversar, assim que nós conseguíssemos tal. As
palavras de Victor encheram minha mente, eu entendendo bem
demais naquele momento que havia, sim, dor da parte de Alana.
— Ok, vamos embora. — Ela me ignorou de novo, o indicador
cutucando o peito de Armando a cada palavra.
— Como você se atreve a olhar pra mim desse jeito? Onde
você tava quando tinha um cara querendo me matar?
— Che? — Virei a cabeça para a varanda, olhos verdes
mostrando surpresa, meu irmão de pé com Lorenzo, a porta abrindo
atrás da minha cunhada. Alana usava português, mas gritava, e
dava para ver os olhos grandes de Antonello, a criança parada na
entrada.
— Quando me fizeram ser testemunha de um assassinato? —
Não precisava olhá-la para saber que as lágrimas tinham começado,
a mulher fungando irritada antes de continuar. — Quando eu tinha
que aturar as mãos dele em mim toda a noite, sem poder fazer
nada?
— Flávia, não deixe os meninos saírem agora — veio de
Mantovanni, e minha atenção foi da porta que voltava a fechar para
minha mulher.
— Thobias me socou por menos de cinco minutos, mas o
tempo nunca passou tão devagar. E você estava vivo! — Alana,
quando brava, conseguia dobrar sua força, quase se soltando dos
meus braços. Sentiria orgulho daquilo, se coubesse algo além da
vontade de eliminar quem nos encarava surpreso. — Eu só tô viva
por causa do filho que você tanto machucou!
A segurei mais forte, ela tendo sugado toda a minha tristeza, e
me dado toda sua raiva.
— Não vale a pena, dolcezza…
— Você não faz um bom trabalho em proteger as pessoas que
ama, diferente de Nico! Você só machuca mais! — E minha mulher
finalmente relaxou, as mãos limpando irritadas as bochechas, eu a
soltando quando os olhos mel acharam os meus. — Vamos embora.
Tinha silêncio, mais quietude que o confortável para todos ali,
Alana indo em direção ao nosso carro sem mais palavras. Inferno de
pedidos, sempre realizados com atraso.
— Se Alana reagir assim outra vez por alguma merda que
falar, eu mesmo te mando para o inferno que achei que estava. —
Ao menos a briga tinha servido para algo: conseguiria passar por
cima de qualquer sentimento, qualquer limitação, para defender
minha família. Eu conseguia. — Prefira o silêncio quando minha
mulher estiver perto.
E pensando que aquilo deveria bastar, segui para o carro,
abrindo a porta do lado do motorista. Alana já estava no banco, a
chave na ignição, os olhos perdidos na paisagem à frente.
— Eu consigo dirigir. — Os dedos agarravam forte o couro do
volante, os lábios finos pressionados firmes. — Eu consigo, Nico…
— Vá pro banco, dolcezza — pedi, tocando seu rosto, minha
mão passando pelos cabelos longos quando ela desistiu de lutar,
tirou o cinto de segurança e obedeceu. Sentei no seu lugar, achando
no banco de trás o saco de frutas desidratadas que havia sido
esquecido na volta do mercado. — Maçã?
A mão pequena agarrou o pacote, Alana comendo, eu
dirigindo, nós dois em silêncio. Me deixei pensar nas coisas boas,
ela tendo apetite mesmo nervosa sendo a única vitória do dia.
Apenas quando estacionei em frente à nossa garagem que me
deixei voltar a pensar. Minha mulher colocava mais um pedaço de
maçã desidratada na boca, os lábios fechando ao redor da fruta, a
mão esquerda mostrando um dourado que, agora, doía ver.
— Você não precisava saber disso. — Os olhos mel evitavam
os meus, preferindo observar as gotas que caíam no para-brisas.
Puxei seu queixo para mim, as lágrimas dela outra vez prontas para
cair, Alana fungando antes de derrubar a primeira. — Não precisava,
não desse jeito! É a sua mãe!
— Sabia, e usa o anel... — O anel de uma assassina. Minha
mãe era uma assassina, do mesmo jeito que era meu pai biológico.
Eu realmente tinha a morte no sangue.
— Alana, tira esse anel! — Mas ela puxou a mão para longe
dos meus dedos, fechando-a contra o peito.
— Esse anel é seu. Você deu ele pra mim. Eu não tô
desconfortável usando esse anel, e eu não vou tirar, a não ser que
você o queira de volta. — Suspirei, desistindo e encostando a
cabeça no apoio do banco.
— Por que não me falou, dolcezza? Eu não aguento mais
descobrir as coisas que sabe — a verdade saiu antes que eu
conseguisse parar, fazendo eu me sentir pior. — Cazzo, esquece
que eu disse isso.
Puxei uma respiração, esfregando os olhos. Os analgésicos
pareciam estar parando de fazer efeito e minha orelha voltava a
incomodar, o zumbido que ainda aparecia mesmo depois de dias só
voltando a ser ignorado quando a senti subindo no meu colo. Era só
a cor de mel que enxergava quando os dedos quentes tocaram
minhas bochechas.
— Nickolay, a gente mal teve tempo de conversar. Eu nem
tinha certeza antes de falar com Victor, nem ele tinha certeza. — Os
lábios eram sinceros, seu toque, o melhor anestésico. — Victor
sabia, então se quiser mais informações, pergunta pro seu irmão.
Eu não perguntei, e depois dos últimos dias… — Ela mordeu o
canto do lábio, o arranhão que ganhou perto dele na tarde maldita já
tendo desaparecido. — Eu só queria te deixar feliz mais um
pouquinho.
— Só queria me deixar feliz — sussurrei, dando um sorriso
amargo.
Lembrei da noite na qual saí de casa, e tudo que pensei ao
fechar a porta da frente. Me angustiava não ver minhas vontades
refletidas na cor mel, eu me perguntando se houve algum momento
em que minha mulher desejou, como eu, que aquilo tivesse acabado
de maneira diferente. Que minha mãe nunca tivesse cruzado o
caminho da sua.
Eu nem mesmo era filho de Armando, e minha mãe matou a
mulher que o homem chamava dele.
— Alana, como não tem raiva? — Não tinha como não
perguntar aquilo para os olhos que só me davam amor. — Como
não tem raiva disso?
— Da sua mãe? — Fiz que não, as sobrancelhas finas
arqueando. — De você, Nico? Como que eu vou ter raiva…
— Quem matou sua mãe foi a minha! E usa esse anel…
— Minha mãe é Astrid. — A voz se tornou séria, as mãos
pequenas mantendo meu rosto rente ao dela. — E você não tem
culpa de nada disso. Eu tenho culpa de algo? — Outra vez sacudi a
cabeça, querendo rir: dias atrás, era eu falando isso para ela. — Se
eu não tenho, você também não tem. O que Armando fez não foi
certo. Faria isso no lugar dele? Existiria alguma coisa que te faria
odiar Nicolas?
Ela sempre tinha o poder de tornar as coisas mais suportáveis.
— No. — Fui sincero, e continuei com o que estava me
consumindo. — Mas eu entendo o que ele sente. O inferno que
deve ter sido um moleque chorando por uma assassina.
Ser empático dentro da máfia só trazia morte. Entender
Armando gritava problema, empatia sendo um luxo que eu não
deveria ter.
— Isso é porque você é bom. — E ali estava Alana, outra vez
afirmando o quanto um assassino era bom. — Entender não torna o
que ele fez certo, Nico. Você merecia um bom pai. — Ela encostou a
testa na minha, os olhos nunca deixando os meus. — Biscoitos e
chocolate quente.
Realmente amava aquela cor, e a culpa era toda da mulher em
cima de mim.
— Grazie, bella.
— Por?
— Existir. — Os sorrisos dela eram toda a bondade que eu
queria no nosso filho, minhas palmas contornando a barriga coberta.
Foi difícil pedir, mas me forcei a pronunciar as próximas palavras. —
Alana, não o trate mal por minha causa.
O bico, enfim, veio, Alana separando a testa da minha antes
de responder.
— Ah, eu definitivamente vou tratá-lo apenas pior depois de
hoje! O fantasma não tinha o direito de…
— Se isso é tu me defendendo, eu não quero essa defesa,
Alana. — E o bico aumentou, os braços cruzando embaixo dos
seios que só agora notava estarem maiores. — Armando é quem
sempre quis conhecer, é quem eu cacei no Brasil, sua família de
sangue…
— Eu sempre quis conhecer minha mãe!
— E ele, com certeza, sabe de muito mais do que Carina
escreveu — disse o que ela estava se negando a entender, Alana
suspirando vencida. — Eu lembro um pouco dela. Carina era
carinhosa, ela teria sido uma ótima mãe. Ela com certeza foi no
tempo que te teve, amore mio.
Tinha gratidão que não me achava merecedor nos olhos que
me encaravam.
— Eu sei que ele tem. Eu sei que ele é minha família de
sangue, eu sei que tudo que eu quiser saber de Carina, vou
conseguir encontrar nele. Mas por enquanto, quero apenas as suas
memórias, italiano. — Deixei uma das mãos ir para debaixo das
camadas de roupa dela, a memória que veio ao acariciar a barriga
ainda reta me fazendo, enfim, sorrir. — Que foi?
Sabia que ainda havia dor e orgulho demais para ela pedir
qualquer lembrança para quem teria as melhores, e decidi que
conseguia lhe dar todas as que meu cérebro mantinha.
— Te conheci antes de nascer, dolcezza. Eu coloquei a mão
bem aqui, disse que gostava de maçãs, e te senti chutar. E agora, aí
está, viciada nessa fruta. — O sorriso que recebi pagava bem
qualquer desconforto meu. — Nossa história é até bonita, não é? —
saiu quase irônico, mas o que recebi dela foi verdadeiro demais.
— É a mais linda que já ouvi.

Era confortável vê-la sem ter problemas para dormir. Era


desconfortável não conseguir o mesmo, o silêncio da noite fazendo
o zumbido voltar a ficar perceptível, eu levantando e me
perguntando quando que meu ouvido voltaria ao normal.
A orelha havia ficado sem um pedaço, mas nenhum fragmento
perfurou o tímpano, e eu não entendia por que o cazzo do barulho
simplesmente não ia logo embora. Agarrei um casaco na entrada,
peguei o maço de cigarros e abri a porta.
Minha parte pirracenta também não entendia por que Armando
não podia simplesmente sumir outra vez. Ele não se virou quando
fechei a porta atrás de mim, meu cérebro sempre insistindo em me
atormentar: era respeito, ou desinteresse?
Deveria tê-lo mandado para um hotel, e procurei o isqueiro que
guardava sempre no bolso.
Estava no outro casaco. Merda.
O Zippo que me foi jogado era prateado, e tinha um coração
gravado em um dos lados. O desenho era parecido demais com os
que enchiam as páginas do diário da mãe de Alana, o cigarro aceso
nos meus lábios não tendo o melhor dos gostos naquela
madrugada.
Coloquei o objeto sobre a cerca da varanda, tragando antes de
ir para a grama. Dividir espaços apenas com ele ainda passava
longe do confortável, a última memória da vez que o fizemos,
agridoce. Foi só ao terminar o cigarro que consegui calma suficiente
para abrir a boca.
— Por quê? — O suspiro veio dele.
— Por que o que agora? — Me virei, encarando os olhos tão
parecidos com os de Alana. Eu conseguia identificar todas as
semelhanças, mesmo no escuro. Eram as similaridades que me
suavizavam?
— Por que minha mãe fez o que fez?
— É o que busquei descobrir nos últimos anos.
O vi guardar o Zippo depois de acender mais um cigarro, e já
sabia que parar de fumar, para mim, seria impossível. Queria comer
um maço cada vez que o olhava. Cada vez que me lembrava de
tudo que estava me aguardando na Europa.
— Carina segurava uma maçã mordida. Lembra das maçãs?
Mantovanni me disse que lembra. — Fiz que sim, minhas mãos indo
para os bolsos do casaco, a garoa que não andava dando trégua
deixando a noite mais gelada, por mais que por dentro, eu
queimasse. — O plano era fugir contigo e Catarina. Katerina deixou
isso escrito. — E mais um suspiro, as feições de Armando amargas
antes de continuar. — Ela só não cumpriu o plano.
Tinha arrependimento quando os olhos cansados pararam em
mim.
— Primeiro, eu fui para a praia. Estava segurando Stella
quando cheguei, estava em choque. Recebi uma ligação da mãe de
Anna Flávia, essa mesma Anna Flávia que é agora sua cunhada. A
mãe e Carina eram próximas, e naquela manhã, quando a mulher
foi até o apartamento, a porta da frente estava encostada. Tu estava
desacordado nos meus braços, e tudo que eu queria era acreditar
que não havia nenhuma ligação entre os ocorridos. Porque eu só
queria assassinar Katerina quando tive minha certeza.
Desviei a atenção para a porta, tentando tirar da cabeça todas
as vezes que chorei e pedi por uma assassina na frente do homem.
— Lorenzo te levou para casa, e eu fui até as duas. Carina
estava no chão. Estava sorrindo. Foi tão atípico de Katerina. Deixar
tudo jogado. Tudo tão corrido, como se aquilo tivesse sido um erro.
Eu tentei entender por anos. — Ele acabou com o cigarro, apagando
a bituca no cinzeiro improvisado, a garrafa de cerveja âmbar
mostrando que ao menos meio maço havia sido fumado por parte
dele. — Anna gritava e gritava no quarto, mesmo com a mulher
tentando fazê-la parar de chorar. Foi a primeira vez que a escutei
chorar. Como hoje, não foi um choro bom.
Fiz meu lixo se juntar ao dele, eu notando que entre os
homens com os quais viajaria, continuava sendo o mais alto. Forcei
a manter uma cara de poucos amigos quando comecei a falar,
precisando expor que, por melhores que pudessem ser as palavras,
elas não tinham a intenção de ser amigáveis.
— Odeio ser tão difícil continuar te odiando. Me tratou como se
eu fosse um fantasma até sumir, e então eu cresço, e caso com sua
filha. E Alana, Alana é tudo. Ela me salvou, muito mais do que eu a
salvei.
Não esperava ganhar nada em troca. As surpresas vinham em
demasia naquele dia.
— Carina foi a mulher mais incrível que passou pela minha
vida. Ela me amou, eu sei que amou, apesar de tudo. Apesar de eu
chegar com sangue nas roupas, apesar dos segredos. Carina me
amava sorrindo. Se Alana for igual à mãe, fico muito feliz por ti, fil…
— Fechei a cara com a sombra da palavra, Armando mostrando ser
realmente rápido. — Nickolay. Fico feliz que, de algum jeito, eu
consegui te deixar algo bom.
Queria gritar que ele não havia deixado nada, mas me
contentei em revirar os olhos. Tirei a mão que ainda escondia no
bolso, meus dedos segurando o metal, tão gelado quanto o ar que
nos cercava.
— Isso é seu. — Armando reconheceu no mesmo segundo o
que eu lhe estendia, não escondendo o meio sorriso ao pegar o
relógio, traçando com a almofada do indicador as palavras gravadas
na parte de trás. — Nunca parou de doer? — Ele fez que não, os
olhos não saindo da declaração. — Sinto muito.
Eu já tocava a maçaneta quando as palavras voltaram.
— Sei que não quer minha ajuda, Nickolay. Sei que não me
quer presente, e não precisa se dar ao trabalho de negar..
— Eu sei que preciso de ti. Não sou idiota, Armando.
— Sei que fui injusto. Fazer o que pude na época não foi o
suficiente, e esse foi um dos motivos pelo qual escolhi partir. —
Respirei fundo para não começar com novos gritos. Era, afinal, mais
de duas da manhã. — Mas saiba que farei de tudo para que nunca
sinta o que eu nunca vou parar de sentir. Vão voltar para cá,
Nickolay. Vão sair da Itália e viver o que eu nunca pude, nem que eu
dê minha vida para isso.
Subi as escadas com a última frase ainda se repetindo na
minha cabeça. Irritante como, apesar de tudo, me incomodava que o
final dela poderia facilmente se tornar verdade.

Nico fechava a mala, os primeiros raios calorosos de sol do


ano saindo bem no dia em que deixávamos nossa casa. O calor
tocou meu rosto, do mesmo jeito que a mão de caveira havia feito
minutos atrás, meu marido sorrindo como se não estivéssemos indo
para o inferno.
Nickolay era bom demais, diferente de quem eu via pela janela
terminar mais um cigarro.
Eu não conseguia ver nada de verdadeiramente bom no
fantasma, por mais que me esforçasse. As palavras que um dia
minha mãe escreveu não suavizavam quem deveria ter sido um
bom pai, mas não foi.
Ao menos não me sentia mais culpada ao me referir a Carina
como mãe, e foi pensando nisso que desci os degraus, meu marido
atrás.
— Deixa a foto aqui. — Nickolay parou minha mão, a imagem
dele e do filho ficando na moldura. — Nós vamos voltar, Alana — ele
me reafirmou, como se o abandono da foto fosse uma prova
concreta de que aquilo aconteceria.
E eu sorri, porque era o que me restava.

O caminho até o aeroporto de Vancouver foi um feito em


silêncio, comigo observando os pinheiros e ignorando as palavras
trocadas em italiano entre os homens. Era no mínimo sábio da parte
do fantasma ter decidido seguir com o próprio carro e nos encontrar
em Toronto, e eu não sabia que uma gravidez poderia dar tanto
sono.
— Como tá sua orelha? — perguntei assim que chegamos no
terminal, tentando arrancar algo de quem estava monossilábico
desde que entramos na caminhonete.
Estávamos na fila da Starbucks, e quando abri a boca, já sabia
que aquela seria uma das nossas últimas normalidades. A resposta
veio mais ríspida do que estava acostumada, ele fugindo do meu
toque.
— Viu como está hoje de manhã. — A testa franziu, Nickolay
fechando os olhos e suspirando. — Dói menos. O zumbido também
parou. Vem cá. — A mão tatuada me puxou para perto de seu peito,
nós dando um passo para frente, a fila longa finalmente se
movimentando.
Eu sabia o que estava acontecendo.
— Você tá nervoso.
— Eu estou — Nico não se deu o trabalho de negar. — Não
como daquela vez, mas estou. Não sei o que esperar.
Definitivamente não era como eu queria te levar para conhecer a
Itália, dolcezza.
Também não me dei ao trabalho de falar o óbvio: não fazia a
menor questão de ir naqueles termos.
— Você é o chefe, não é? — Ele fez que sim, e andamos mais
um passo. — Isso não é bom?
— Só se todos aceitarem.
E era minha vez de franzir a testa.
— Por que não aceitariam? Você casou com a filha do antigo
chefe, o cargo é seu por direito — falei com confiança. Talvez se eu
repetisse o suficiente, a confiança entrasse em nós dois.
O braço apenas me manteve perto, os lábios grossos beijando
o topo da minha cabeça antes de chegarmos na frente do caixa.
— Um expresso duplo e um descafeinado com leite. — Aquilo
era estranho. — O nome é Nickolay.
— Por que quer o seu sem graça? — provoquei com um
sorriso, Nickolay me devolvendo um nervoso depois de pagar. — O
que foi? Você tá sempre com essa cara agora quando quer me falar
algo que vai me deixar brava.
— Dolcezza, talvez seja bom diminuir a cafeína.
— Por que eu pararia de tomar café normal? — Ele abriu a
boca para responder quando eu finalmente entendi, a mão que
andava sempre parando na minha barriga me lembrando de todas
as xícaras que eu havia tomado no último mês.
O descafeinado era pra mim.
— Eu esqueci completamente! — Meus olhos cresceram, eu
puxando uma respiração, meu coração acelerando. — Nico, eu
tomei tanto nos dias que você tava fora, eu tomei café contigo…
— Está tudo bem, bella. — A resposta veio muito mais calma
do que eu, o italiano pegando os dois copos postos no balcão. — Eu
troquei o nosso por descafeinado assim que descobri — ele explicou
com um meio sorriso, me entregando o copo de plástico. — Mas
hoje, um pouco de cafeína me faria bem. Desculpa? — A voz
poderia soar inocente, mas não tinha inocência alguma nos lábios
grossos.
— Por isso ando com ainda mais sono toda manhã. — Não
tinha, e além de exausta, meu cérebro insistia em pensar naquele
homem sem roupas vinte e quatro horas por dia. Ir da sonolência
para querer arrancar as roupas dele em segundos seria engraçado,
não estivesse tão nervosa com a viagem. — Acha bonito, italiano?
— Acho. Bellissima. — Nickolay não ajudava ao sussurrar na
minha orelha, minha pele arrepiada, eu querendo aquela boca
sussurrando coisas bem mais embaixo.
Lembrar do meu corpo entre ele e a parede era o suficiente
para me deixar quente, minha mão livre achando a cintura. Sabia o
quanto ele se deixava afetar quando tentava marcá-lo, e fiz minha
melhor cara doce quando rocei as unhas por cima do tecido.
— Alana…
— Que bom que você tá de jeans?
— Estamos no meio de um aeroporto norte americano. — Ele
tomou um gole do expresso, o cheiro cítrico se misturando com meu
segundo favorito. — Para de fazer eu querer te foder até chegarmos
no jato em Toronto, ou vamos ser presos.
Contive um riso quando o vi largar o copo no balcão e fechar o
casaco, e me perguntei se ele me manteria distante agora que
voltaria para as calças sociais.
— Desculpa?
Ele que tente.

Apaguei durante todo o primeiro voo, acordando com uma mão


na minha bochecha, a outra acariciando minha barriga. Nickolay
parecia tão cansado quanto meu corpo estava, os olhos me
contando em silêncio que eu havia sido a única a dormir.
Aviões não me traziam as melhores memórias, e depois de
mais algumas horas, ao entrar no privado que ouvi Lorenzo
comentar agora ser meu, me perguntei se voar seria confortável
algum dia.
Não hoje. O fantasma já nos aguardava em uma das cadeiras,
a mão tatuada que estava na minha cintura tensionando assim que
o homem foi percebido. O rosto de Nickolay permanecia neutro, mas
a respiração que puxou quando ele me trouxe para mais perto
denunciava demais seu desconforto. Ao menos, conseguia lhe
passar alguma paz.
O couro dos assentos era creme, e me perguntei se algum
deles já tinha sido sujo com a cor que a máfia atraía tanto. Nickolay
nos sentou em uma dupla de poltronas, Lorenzo e Matteo acabando
na nossa frente, quem eu preferia nem olhar, do outro lado do
corredor. Quanto custava aquele luxo? Tinha um piloto e uma
mulher — comissária de bordo, eu esperava — e manter tanto um
avião quanto uma equipe para ele deveria custar uma nota no fim do
mês. Quase nunca pensava no quanto aqueles homens tinham
dinheiro, mas agora, me perguntava como que Nickolay não se
importou nenhuma vez em levar o lixo ou lavar a louça nos últimos
meses. Ele cozinhava sorrindo, e eu queria muito saber se aquela
era a primeira vez que o italiano não tinha uma empregada.
— Acqua o champagne, signora[21]? — Nico respondeu o que
eu imaginava ser água para nós dois, e eu sabia que precisaria
aprender com urgência o idioma que faria parte da minha nova vida.
Foram minutos demais em silêncio. Agarrei a mão grande ao
lado da minha quando o avião começou a correr na pista, olhando
pela talvez última vez para o país que tinha feito de nova casa.
Suspirei, querendo que o frio na barriga fosse apenas pela
decolagem, e não pela incerteza que outra vez tomava conta da
nossa vida.
De canto de olho, via uma cor muito igual a minha me
observar, e agradeci por estar na janela. Dava para disfarçar meu
desconforto encarando as nuvens do lado de fora.
— É sempre confortável uma reunião familiar — foi Lorenzo
quem se atreveu a abrir a boca, eu reparando só agora que a mão
que segurava suava.
Ainda assim, a voz rouca soou séria, Nickolay escondendo
muito melhor seu nervosismo agora do que dias atrás.
— Tentando deixar as coisas mais leves? — Ele alcançou o
copo posto na sua frente, meu cérebro focando nas coisas mais
bestas e se perguntando o quão seguro era ter vidro ali. E se
passássemos por uma turbulência? Os homens nem estavam
usando os cintos, o meu sendo o único posto assim que me sentei.
— Porque se a resposta for sim, está falhando miseravelmente.
Pensamentos bestas continuavam sendo melhores de se ter.
Encarar a realidade poderia ser adiado por mais um tempo.
— São mais de cinco horas de viagem — o mais velho
continuou, e eu me perguntei, finalmente, se Lorenzo era de fato
mais velho que o fantasma.
O que me fez, enfim, olhar para quem se sentia confortável
demais em me observar. Enruguei a testa, e foi irritante ser a que
primeiro desistiu da competição que eu criava na minha cabeça.
Observar os olhos escuros de Nico era muito melhor, me confortava.
— E eu tenho mais de cinco horas de leitura, então fico
contente com o silêncio.
Dei um meio sorriso, esperando ganhar sua atenção antes de
abrir a boca.
— Acho que eles preferem quando nós fazemos barulho. —
Sim, era confortável vê-lo estreitar os olhos, os lábios imitando os
meus.
Escutei o fantasma limpando a garganta e alcancei minha
água, aproveitando a pequena vitória.
— A boca dessa daí é pior que a de Dimitri.
Não tinha como não responder Mantovanni.
— Não é o que seu filho fala.
A reclamação em italiano que seguiu reafirmou minha
necessidade de aprender a língua, Nickolay não a traduzindo
daquela vez, mas me encarando pedinte antes de desviar os olhos
para o teto.
— Nunca tenho paz nesse cazzo. — Era uma reclamação, só
que o sorriso leve voltou assim que a palma da mão foi para minha
barriga.
Foi a primeira vez que fiquei nervosa com aquilo, e me senti a
pior pessoa por permitir relacionar a emoção com o que crescia em
mim. Eu não iria pensar sobre o que adiava me deixar ter
conhecimento, eu não iria.
Foi a primeira vez, também, que me deixei gostar da
companhia do fantasma.
— Vai ter. — A voz era grossa como a de Nico, o homem
continuando ao ganhar a atenção de meu marido. — Quando se
conheceram?
O gostar durou apenas um segundo: a pergunta era para mim.
Filho da mãe.
— Faz quase um ano. — Não poderia ter perguntado para o
filho? — Preciso contar como foi pra esse também? — falei, meus
olhos nos azuis de Lorenzo, os hormônios que me atreveria a culpar
durante os próximos meses soltando minha língua. — Logo mais, o
único que não vai saber é meu pai de verdade.
Poderia culpar os hormônios pelas lágrimas que vieram assim
que processei o que tinha dito? Me irritava ver dó em todos os
quatro, Nickolay sendo o primeiro a conseguir disfarçar a emoção.
Se ele abrisse a boca para tentar me consolar, eu tinha certeza de
que algo ia estilhaçar no meu peito. Precisei agradecer, por mais
que fosse mentalmente, o fantasma, por ter se adiantado e aberto a
boca.
— Deve ter se divertido tanto, maledetto[22] — ele falou
olhando para Lorenzo, o jeito de sorrir dele parecido demais com o
de meu italiano. — Quando soube disso?
— Me atrevo a dizer desde a primeira noite. Nico não tinha
exatamente o costume de repetir, se é que me entende. — Lorenzo
trocou um olhar divertido com Matteo. — Mas tivemos provas mais
concretas quando o moleque levou a ragazza para um jantar.
— Nickolay se dando o trabalho de levar alguém para jantar,
isso foi um evento! — Matteo, quase sempre quieto, se juntou às
provocações.
— E quando Enzo veio me dizer que Nico tinha puxado a
cadeira para a ragazza e a chamado de minha mulher? — Os
homens riram entre eles, o fantasma observando curioso, Nickolay
revirando os olhos. — O homem nunca tinha companhia feminina
fora da cama, tratava Ferreti como se a loira tivesse um cazzo no
meio das pernas, e então aparece com Lana...
— Ria enquanto pode.
O italiano mais novo foi ignorado por todos, com honras.
— A tratando como uma rainha! Parecendo querer matar
qualquer um que sequer olhasse para ela. Enzo disse que quase
infartou quando ficou sozinho com sua donna. Você falou de um
jeito que ele ficou até com medo de olhar para a ragazza e te
incomodar!
Lembrar tão bem da tarde me obrigou a rir com os homens, a
expressão de Nickolay finalmente suavizando. Era difícil pensar que
aquilo se tornaria raro nos próximos meses, e eu não queria admitir
que poderia demorar meses para nos livrarmos da máfia.
Talvez anos. Talvez aquilo fosse nós dois, nos enganando que,
algum dia, seríamos verdadeiramente livres. Não consegui mais
acompanhar o riso até o avião pousar, estando pela primeira vez em
solo italiano.
— Vou buscar o carro — Era Matteo quem saía primeiro, meu
olhar indo da mão sem tatuagens que tocava o braço de Lorenzo,
para os olhos azuis que paravam no fantasma.
— Vá junto com ele, Morte.
Ainda era perceptível demais para mim — se era para mim,
deveria ser para todos — como meu marido relaxava quando eram
apenas os meus olhos mel no ambiente. Nickolay se levantou,
mexendo os ombros e estralando o pescoço, ele mal tendo se
mexido durante todo o voo.
— Nunca falou sobre ninguém, Lorenzo. — O mais velho
levantou as sobrancelhas. — Donne[23]. Nunca teve uma assim?
Lorenzo hesitou por alguns segundos antes de decidir por abrir
a boca.
— Uma donna, não. Disse que neguei muitas no meu colo, não
disse? — ele respondeu sério, os olhos claros em nós dois. Nico
pareceu confuso por um momento até entender. — Mas eu tive sim
um amor, muito parecido com o de vocês. Naquela época, não era
visto com bons olhos dois homens apaixonados. Ele escolheu se
casar, eu não quis mais mentiras. — O mais velho também se
levantou, andando em direção à porta de saída. — Surpreso, Nico?
— ele soltou ao passar por nós. — Onde acha que Matteo dormiu
nos últimos dias? Armando ocupou o quarto de hóspedes com a
cama de solteiro, o que deixou sobrando o com a cama de casal.
— Deveria ter me dito...
— Que gosto de homens?
— Si! Pelo menos, eu não ficaria falando sozinho sobre as —
ele escolheu demais as palavras antes de continuar. — Coisas. —
Nico limpou a garganta. — Vou me trocar. Não acho que essa roupa
combine com a Itália.
Sacudi a cabeça, indo para junto do mais velho.
— Ele ia falar mulheres, não ia?
— Conhece bem seu marido, não conhece? — Sorri, olhando
para a porta que era fechada, Nico sumindo em uma cabine com
uma mala. — Pelo menos eles não estão se matando.
— Porque seu filho é a melhor pessoa que existe no mundo —
falei a verdade, não resistindo em soltar a continuação. — Eu teria
atirado.
Me enganar trazia uma sensação boa.
Escutei um suspiro do mais velho: como se eu fosse a difícil na
situação que vivíamos.
— Sei que o que Armando fez foi errado, Alana. Ele deveria ter
morrido quando Carina morreu, e deixado os moleques comigo. O
homem quis tentar…
— Deveria ter tentado mais — rosnei, abaixando o tom, não
querendo que Nico se incomodasse com qualquer coisa referente a
quem ninguém gostava sequer de tocar no nome. — Ele tá doendo,
Lorenzo. Eu não gosto de ver Nico doendo.
— Lana, o pai de vocês…
— Ele não é nosso pai! — Não deu para controlar a voz, ela
saindo muito mais alta, eu desejando que Nico não tivesse escutado
nada, mas já sabendo que o italiano deveria estar prestando
atenção.
Respirei fundo, buscando toda a calma que eu mal tinha,
percebendo o carro que estacionava a metros de onde estávamos.
Alcancei a bolsa largada na poltrona de couro, reparando que se
Nico achava que seu jeans e camisa não combinavam com a Itália,
o moletom que estava em mim passava longe de prestar.
Foi só quando desci o primeiro degrau que ouvi outra vez a
voz de Mantovanni.
— Sei que toma as dores do seu marido, Alana. Você está
certa nisso, eu não vou contrariar — ele continuou quando me viu
abrir a boca. — Armando era o único que sabia sobre meus casos.
Nem no dia em que descobriu, ele ligou. Quando se é diferente num
meio igual demais, alguém que não te julga pelas suas preferências
vale ouro.
Lorenzo desceu antes de mim, se juntando aos outros dois
italianos, os olhos parecidos demais com os meus outra vez me
procurando. Ver algo de bom neles pela primeira vez era conflitante.

A Sicília era tão linda quanto um dia Nico a descreveu. Por


mais que o italiano não parecesse compartilhar da mesma opinião
agora, era impossível não notar a beleza da cidade praiana que via
pelas janelas do carro.
A viagem até onde seria nossa nova moradia demorou menos
do que eu esperava, o Mercedes parando em frente à uma mansão,
muito maior do que a que vivemos por um tempo no Brasil.
Se eu algum dia achei que havia seguranças demais na casa
brasileira, a italiana que via me fazia reconsiderar o pensamento. Os
muros altos escondiam muito da propriedade, o portão pesado com
toda a certeza sendo difícil de derrubar. Já imaginava que andaria
para todos os lugares com pelo menos três homens atrás de mim,
meu desejo de sair cada vez menor.
Foi o fantasma que deixou primeiro o carro, sumindo entre os
guardas que tomavam conta da entrada. Ele estava morto para
todos, e desejei saber se, depois de anos, o homem poderia ser
reconhecido no meio. Era por isso que todas as tatuagens estavam
cobertas, os olhos escondidos por óculos escuros num dia nublado,
os cabelos raspados?
Não permaneci naquele pensamento por muito tempo, uma
mulher bem mais velha cobrindo a boca com as mãos ao colocar os
olhos em Nickolay. Foi o primeiro sorriso verdadeiro que Nico deu
que não pra mim desde que pisamos no país, ele se curvando para
deixar as mãos enrugadas tocarem seu rosto. A mulher falava brava
algo que, pelo que parecia com ela apontando, deveria ser
relacionado ao curativo que ele ainda tinha na orelha, as palavras
em italiano apenas parando quando saí do carro.
Tinha um reconhecimento nos olhos grandes que me dava
quase certeza de quem era aquela mulher. Para alguém que foi tão
próxima dos meus dois pais biológicos, deveria ser óbvio, e me
perguntei se seria esperto fazer algumas mudanças na minha
aparência, estando na Itália.
Eu queria aquela expressão leve no meu marido todos os dias.
— Alana, essa é Barbara — Nico voltou para o português, me
trazendo para perto pela mão esquerda. — Ela foi como uma avó
para mim.
Barbara. A senhora que, pelas palavras escritas de Carina, eu
sabia que o fantasma chamava de mãe. A mais velha não demorou
para repetir o que havia feito com o italiano comigo, as mãos
geladas nas minhas bochechas quentes.
Só pude sorrir ao ouvir as frases em italiano, eu pegando
algumas palavras, mas não conseguindo entender o contexto. O
braço tatuado foi para minha cintura quando a mulher se afastou,
Nickolay me conduzindo pelo caminho que dava à entrada, o rosto
voltando a ficar sério.
— O que ela disse? — perguntei, todos ao meu redor fazendo
eu me sentir malvestida com as roupas simples que usava.
Ao menos eu estava toda coberta, aquilo parecendo ser a
definição de uma mulher de respeito para aqueles homens.
— Que nossos filhos vão ser lindos. — Deu para ver o sorriso
que Nico queria dar e conteve, e dei meu melhor por nós dois. —
Visitas inesperadas não são incomuns, Alana — ele usou meu
nome, mantendo os olhos no caminho, e eu já imaginava o que viria.
— Sempre vestida, dolcezza. Sei que é nossa casa...
Não era nossa casa. Não era, e eu queria gritar para todos
ouvirem que aquela mansão era tudo, menos calorosa. Não era, e
eu sabia que daríamos um jeito de sair da situação. Nico sempre
dava um jeito.
Resolvi tocar num assunto que tirasse a culpa dos olhos
escuros.
— Quer dizer que faz um ano que eu te levei para o banheiro?
— provoquei, tendo lembrado da data no começo daquela manhã, o
céu agora já escuro.
Ele nos parar e me beijar na testa foi uma surpresa, todos os
seguranças parando junto com o italiano. O vi tirar uma caixa de
veludo de um dos bolsos, e agradeci a pouca luz que havia, meu
rosto queimando ao ser presenteada na frente de todos.
A caixa aberta mostrava brincos de diamantes que poderiam
muito bem custar uma casa, e me senti inocente ao me perguntar
quando conseguiria usar aquilo e sair pela rua. Respirei fundo e
achei os olhos escuros: eu nunca mais sairia pela rua sozinha. Mas
decidi não me importar com aquilo ao lado dele.
— Feliz aniversário, amore mio. — Mesmo no escuro, dava
para ver o meio sorriso, Nico se curvando e continuando a sussurrar
perto do meu ouvido. — Achou que eu não lembraria, vero? Foi
inesquecível desde a primeira vez que me chupou, dolcezza.
Bocejar, agora, não fazia parte do meu plano.
— Está exausta. O que acha de comer alguma coisa e dormir?
— Voltamos a andar, a porta se fechando atrás de nós assim que a
atravessamos, os seguranças ficando do lado de fora. — Alana?
E eu bocejei de novo. O que crescia em mim combinado com a
falta do meu vício, naquela noite, estava acabando comigo.
— Dormir não era bem o que eu tinha planejado pra hoje de
noite. — Definitivamente não era, eu me lembrando de tudo que
tinha pensado em fazer assim que ficássemos outra vez a sós.
— Vamos ter uma vida inteira para comemorar tudo que
quisermos. — Ele colocou as mãos nas minhas bochechas, os olhos
verdadeiros. — Eu vou garantir isso, Alana. Eu vou nos tirar daqui.
— Eu acredito.
Os lábios, finalmente, calaram os meus.
— Bem-vinda a Itália, signora DeLucca.

O pouco que vi da Itália nos últimos dois dias era tão lindo
quanto o homem que dormia todas as noites ao meu lado. Italiano
era necessário de se aprender, e as aulas que eu começaria na
próxima semana tomariam uma boa parte da minha manhã.
Os negócios da máfia também pareciam tomar uma boa parte
do tempo de Nickolay, eu abrindo os olhos pela segunda vez no dia
e encontrando o lado dele da cama frio. Voltei a fechá-los e me
agarrei no edredom, o eterno cansaço que sentia desde que pisei no
país quase me fazendo dormir outra vez.
Foi o barulho da porta abrindo e fechando que me trouxe de
volta, e eu sabia quem se sentava no colchão, mesmo de olhos
fechados.
— Buon giorno[24], italiano — arrisquei assim que senti os
lábios grossos na minha testa, o cheiro cítrico dele me acordando
melhor do que o café que sentia falta de tomar.
— Buon giorno, dolcezza. — Abri os olhos quando o senti se
afastar, Nickolay de roupa social sendo tão delicioso quanto sem
nada. O puxei de volta para mim pela gola da camisa, minha boca
finalmente provando da dele, a língua do homem com gosto de
Listerine. — Vamos nos atrasar se eu não te tirar da cama.
Vê-lo vestido daquele jeito deixava meus hormônios piores que
no nosso começo.
— Eu já saí dela hoje — respondi, moldando meu corpo no
dele. — Até fui forçada a escovar os dentes.
O vi levantar as sobrancelhas, os beijos indo para minha
bochecha.
— Enjoada? — Fiz que sim, deixando as alças da camisola
caírem, do mesmo jeito que meus lábios baixavam até seu pescoço.
— Ouvi dizer que chá de gengibre ajuda. Dolcezza…
— Acho que prefiro outro remédio. — Fui para seu colo, eu
amando todas as calças sociais, e o quão bem conseguia senti-lo
duro mesmo por cima delas. — Vai deixar sua mulher doente?
A risada rouca fazia meu coração bater tão forte quanto seu
toque.
— Sou remédio, agora?
— O melhor — já desafivelava o cinto quando respondi, Nico
fazendo pouco esforço para me parar. As mãos tentaram segurar as
minhas, agarrando o lençol assim que suspirei ao conseguir a
fricção que precisava me esfregando no seu pau. — Você não é
muito bom em fingir que não me quer.
O jeito que as tatuadas me incentivaram ao me puxarem pelos
quadris apenas reforçavam o quanto eu abriria seu zíper.
— Corpo traidor — ele reclamou num suspiro, os lábios
colando no meu pescoço, eu sentindo seu gemido contra minha
pele. — Está pior que eu.
— Não vou negar — sussurrei, minha voz sumindo ao sentir o
calor da sua língua envolver um dos mamilos, Nickolay sugando
forte, me obrigando a agarrar os cabelos pretos.
— Não cuidei direito de ti esses dias, bella, eu sei — veio com
a boca me deixando, da minha, um suspiro frustrado. — Mas estão
nos esperando do lado de fora.
— Eu não ligo. — E joguei a camisola no chão, o sentindo
pulsar contra minha boceta.
— Nem tranquei a porta, Alana.
— Deixa eles abrirem. — O som do zíper abrindo naquele
momento era tão bom quanto o gemido contento que ouvia sair
dele.
— Quer ser pega novamente? — Eu gostava de quando
conseguia lê-lo bem, Nickolay nem mais tentando esconder sua
desistência e afastando minha calcinha. Os dedos apenas
provocaram, arrancando de mim os choros que ele amava ouvir. —
Gosta de mostrar para o mundo como meu pau te faz gozar?
— Se eu culpar os hormônios — comecei, dando meu melhor
olhar inocente. — Você deixa eu abaixar sua calça?
Sim, eu adorava chegar no limite do italiano. Enrolei as pernas
na sua cintura quando ele nos levou para o banheiro da suíte,
Nickolay não se importando em ser silencioso ao bater atrás de nós
a porta. Trancando-a, ele me encostava contra ela enquanto voltava
a sugar meu pescoço, eu me perguntando se o homem começaria a
me foder ali.
— Dio santo[25], Alana — Não começou, Nico me levando para
frente do espelho da pia, meu corpo lembrando bem demais de
todas as vezes que ele me fodeu contra um. — Depois eu que sou a
má influência.
Sorri, nos olhando pelo reflexo, Nickolay abaixando minha
calcinha antes de contornar meu corpo com as mãos tatuadas.
— Você gosta da má influência — provoquei com um meio
sorriso quando os olhos escuros acharam os meus pelo espelho, o
italiano me devolvendo a mesma expressão.
— Eu amo a má influência. — A barba roçou nas minhas
costas, eu vendo a calça social cair até o fim de suas coxas. — Não
acho que vão nos dar mais do que cinco minutos antes de entrarem
para me infernizar.
Agarrei as bordas da pia de mármore, meus olhos nunca
deixando os dele.
— Dá pra fazer muito em cinco minutos. — Finalmente o senti
sem nada entre nós, Nickolay me deixando sem fôlego ao
pressionar-se contra minhas nádegas. — Precisamos treinar,
lembra?
E quase não consegui falar quando senti a cabeça ser
pressionada onde até agora, apenas havia tido seus dedos. Minha
mão fechou ao redor do seu pau, a outra trazendo a dele para
minha boceta. Fechei os olhos, meu coração batendo rápido, eu me
perguntando se gozaria só com a antecipação de uma boa foda.
— Che, bella? — Dava para gozar só ouvindo aquela voz, as
mãos dele agarrando minha cintura quando me debrucei na
bancada. — O que quer?
— Vou ter que implorar outra vez? — Soltei um suspiro
satisfeito quando Nico deslizou para o meio das minhas pernas, eu
pressionando as coxas juntas.
— Não acho que consiga te dar isso agora, é impossível te
foder com calma tendo cinco minutos — a confissão veio com os
dedos apertando minha bunda, meus olhos o achando pelo reflexo
novamente antes de eu perguntar.
— Já fez isso antes? — Não esperei uma resposta antes de
continuar, ele entendendo que minha pergunta não era sobre sua
pressa. — Eu não.
O sorriso que apareceu nos lábios grossos me fez antecipar o
dia que ele tornaria aquele nosso desejo verdade.
— Casei com uma virgem, então? Eu faço ser especial,
dolcezza — a voz rouca sussurrou no meu ouvido, o italiano se
posicionando entre minhas pernas, mas desistindo no último
segundo.
— Dizem que não se deve deixar uma grávida com desejo —
reclamei, fazendo um bico antes de ser posta sentada no mármore,
Nico me deixando saber em silêncio que seu descontrole andava
fora de cogitação.
O fogo que havia no meu corpo aceitava qualquer gota de
água no momento.
— Quer dizer que além de maçãs, tem desejo de mim? —
Deixei minhas unhas arranharem a pele coberta de seus braços, ele
soltando um gemido rouco pelos lábios entreabertos, eu o copiando
ao ser penetrada numa velocidade tortuosamente lenta. — Cazzo
Alana, está pingando. — Arranhei mais forte quando o senti por
inteiro, sua boca colada no meu pescoço, a voz reverberando na
minha pele. — Vai ser sempre assim nos próximos meses? Um
olhar basta pra ficar pronta pro meu pau?
Soltei um suspiro satisfeito quando a mão com a caveira foi
para o meio das minhas pernas, Nico me esfregando no mesmo
ritmo que estocava.
— Não era sempre assim antes? — As palavras quase não
saíram, mas os gemidos que ele arrancava fácil demais ecoavam
pelo banheiro.
— Sshh, quieta — A palma grande tampou minha boca, o
italiano se calando em qualquer pedaço de mim que os lábios
conseguiam tocar. — Quieta Alana, vai se importar... — Era bom vê-
lo mal conseguindo falar, o ritmo mais rápido, Nickolay fazendo tudo
menos me ajudando a ficar em silêncio. — Vai se importar se nos
escutarem dessa vez. Estão na frente da porta.
— Você se importa? — perguntei com a mão ainda abafando
minha voz, ele parecendo desistir de me calar, eu voltando para
seus braços.
Gozar quieta com Nickolay era mais difícil do que não ficar
encharcada ao vê-lo de social, mas eu tentava diminuir os barulhos,
o lábio inferior entre meus dentes. Me sentia muito mais sensível
que o normal em nossas últimas vezes, cada roçar dele me
deixando em chamas.
— Me morde — ele sussurrou entre respirações rápidas, a
testa suada molhando meus cabelos, ele novamente se calando no
meu pescoço.
— Morder você? Onde? — Dedos foram para minha boca,
Nickolay nem mesmo precisando dar a ordem como sempre fazia
para eu chupá-los.
Não que isso estivesse adiantando muito para me fazer menos
barulhenta, os ecos do cômodo tornando até mesmo os gemidos
abafados altos demais. Não, nunca dava para ser quieta, minha
boceta pulsando, eu cravando ainda mais as unhas nele ao me
sentir tão perto.
— Morde, Alana! — ele mandou, os dentes cerrados, eu
obedecendo e congelando ao ser tomada forte pelo orgasmo.
Travava a mandíbula e gozava quietinha, do jeito que ele tinha
mandado eu fazer na primeira vez que me tocou num carro.
Diferente de mim, Nickolay nunca era quieto, ele me provando o
quanto gostava de ser marcado no sexo e gozando assim que
sentiu a mordida. Contraía forte ao redor do seu pau quando senti o
primeiro jato quente, o italiano se calando tarde demais. Com
certeza dava para ouvir o gemido por detrás das portas, com
certeza levaria mais de cinco minutos para eu ficar apresentável —
para ele voltar a ficar.
— Lorenzo vai me matar — ele deixou sair ao me olhar, e mais
sons encheram o ambiente, o italiano estocando uma última vez
antes de nos separar.
Voltei para o chão, meus pés tocando o tapete no instante em
que a camisa dele fez o mesmo.
— Estamos tão atrasados — a reclamação veio, mas não o via
se apressar muito ao me levar para baixo do chuveiro.
— Atrasados pra que?
Nico escolheu ignorar minha pergunta por mais dez minutos.

Lorenzo ignorou nossa demora por mais quinze, ele desistindo


de bater e abrindo a porta do quarto no momento em que Nico
fechava o zíper do meu vestido. Pelo espelho, via os olhos azuis
estreitarem, o mais velho brigando em italiano com meu marido, o
fantasma de braços cruzados, encostado no batente da porta.
— Vou ter que colocar os dois em quarto separados nos dias
em que precisar de você na hora, Nickolay? — Tive que conter um
riso, aproveitando a que talvez fosse a parte mais normal do meu
dia.
— Nem pense em tentar — era a resposta mal-humorada dada
pelo meu marido, ainda abotoando as mangas da camisa.
Com uma saia que passava dos meus joelhos e uma gola alta,
o casaco cobrindo o pouco de pele que o vestido deixava aparecer
nas costas, nunca me senti tão adulta. Quis rir ao pensar aquilo,
arrumando uma mecha de cabelos que insistia em sair do coque
com um grampo: depois de tudo que tinha passado, uma roupa
séria me fazia sentir mais crescida.
Olhei para minha barriga, já notando o vestido mais apertado,
lembrando dele muito mais folgado quando o comprei, meses atrás.
Precisaria de roupas novas, aquela sendo uma das únicas peças
aprovadas para o brunch que estávamos a minutos de atender.
Era a primeira vez que deixava os portões da mansão desde
que cheguei. A cidade praiana que sempre me fugia o nome tinha
cheiro de maresia, o mar dando para ser ouvido da nossa nova
moradia.
Pensar que minha mãe tinha convivido com os homens dessa
casa anos atrás me dava uma sensação estranha. Ela tinha estado
entre as mesmas paredes, andado pela mesma rua que eu, agora,
corria dentro de um carro. O fantasma seguia com os outros
seguranças no Range Rover atrás da nossa, e desejei saber, pela
primeira vez, o quanto lhe doía lembrar dela.
Porque eu nunca havia conhecido Carina, mas só em pensar
que eu já poderia ter passado por aquela mesma calçada, quando
dentro dela, machucava. Hormônios, era culpa dos hormônios, e eu
não deveria sequer considerar me estressar com aquilo agora.
— Nervosa, dolcezza? — Fiz que não com a cabeça,
aceitando a mão tatuada estendida para mim e descendo do carro,
o braço do italiano indo possessivo para minha cintura. — Não
precisa ficar.
Ali estava ele, outra vez como na janta em que fui chamada de
puta. Ali estávamos nós, entrando novamente num restaurante onde
ele me mostraria para sua máfia.
— Não vai me pedir para ficar quietinha? — brinquei, já
sabendo que não arrancaria nenhum sorriso dele agora.
O que eu arranquei, no entanto, surpreendeu.
— Já te pedi para ficar quieta demais, Alana. — Aquilo, eu não
esperava. — Eu confio em ti. Sei que sabe o que pode ou não dizer,
bella. — Ele inclinou os lábios até minha orelha, terminando num
sussurro. — Sabe tudo que preciso ouvir, também.
Lorenzo estava atrás de nós, o fantasma a poucos passos à
frente, e eu queria me jogar no meu marido e agradecer cada sílaba
de confiança. Faria aquilo mais tarde, de seu jeito favorito, e me
certificaria de que sua boca também pudesse vocalizar tudo que
considerava apropriado.
A mesa era redonda, e os homens — até algumas mulheres —
normais. Me perguntei se o formato tinha relação com o que ouvi no
carro, um círculo deixando todos em posições confortavelmente
iguais, por mais que fosse de conhecimento comum Nickolay ser o
chefe.
Aquele encontro tinha as famílias mais influentes da região.
Pelo pouco que havia entendido, era Nickolay querendo ter certeza
que poderia confiar nos sentados, assim como descobrir que
favores conseguiria obter. Os antigos mais próximos de Matarazzo,
que achavam, como todos, que o falecido Don teve a vida encerrada
cedo demais pela irmandade russa.
Esperava que a história continuasse assim.
— Piacere di conoscerla[26], signora Matarazzo. — Italiano era
a língua falada, todos os olhos em mim, eu engolindo todo o
desconforto e colocando um sorriso pequeno nos lábios.
— Il piacere è mio[27] — arrisquei uma das únicas respostas
que sabia dar, sentindo o braço tatuado me deixar, Nico puxando
uma cadeira para mim e se apressando para ocupar seu lugar.
Quis rir ao lembrar dele sempre ficando desconcertado ao me
ouvir falar sua língua, mordendo o interior da bochecha assim que o
ouvi limpar a garganta, a mão com a caveira coçando a barba antes
do italiano sentar-se ao meu lado.
— Espero que todos estejam confortáveis com inglês. — E ao
mesmo tempo que agradecia por estar sendo incluída, ria por dentro
ao saber que aquilo também era Nickolay querendo manter seu
foco.
— A senhora Matarazzo ainda não fala a que deveria ser sua
língua-mãe, estou certo? — Tinha croissant, geleia e cannoli na
mesa, um olhar desconfiado nos olhos do mais velho que
perguntava, e mais atenção em mim do que o que achava
confortável.
— Ela não fala. — Nickolay fechou a cara ao responder, os
olhares indo parar nele, meus ombros relaxando.
Tinha também um garçom se aproximando com o que eu via
serem expressos demais em uma bandeja, um olhar nervoso sendo
dado para Nickolay antes do garoto começar a servir pelo ponto
mais distante de nós.
— Grazie por esperarem. — Eu observava curiosa a seriedade
de quem apoiava os cotovelos na mesa. — Precisei cuidar de
alguns assuntos antes de poder me juntar a todos. — Nickolay era
ótimo em dar desculpas esfarrapadas com a expressão mais neutra
da face da terra.
Precisava aprender a ser igual, pensei.
Aconteceu tão rápido.
— No, non beve caffè[28]. — A mão direita dele se levantou,
impedindo a xícara pequena de chegar até mim.
Eu tinha visto medo no atendente quando ele estava do outro
lado da mesa. O que eu via agora nos olhos castanhos do garoto
que mal deveria ter vinte anos era terror genuíno. Quando o café
quente tocou a camisa preta que Nickolay usava, as órbitas ficaram
do tamanho de dois pratos, meu italiano empurrando ele mesmo, o
garoto, e a bandeja que estava prestes a cair para longe de mim.
Deu para ouvir o barulho das três xícaras restantes se
quebrando, Lorenzo colocando uma mão no meu ombro, me
dizendo em silêncio para eu fazer o mesmo que ele e permanecer
sentada.
— Signore[29]…
— Eu cortava as duas. — Veio em inglês, eu pela primeira vez
preferindo ter sido deixada de fora. — Pelo menos um tiro, Don
DeLucca.
— Alana, olhe para o lado. — A frase foi dita em português,
mas eu não conseguia tirar os olhos do desastre que acontecia na
minha frente. — Não olhe para Nico, ragazza.
Não olhe para Nico. Se eu continuasse olhando, será que
finalmente descobriria como ele acabava sempre com tanto
sangue? Eu não queria, e ao mesmo tempo, desviar da mão que
segurava o garoto pela gola da camisa era impossível. Sentia que
começaria a tremer, o amargo tocando minha língua antes de eu
engolir: eu sempre conseguia, e conseguiria agora não demonstrar
que estava desesperada.
— Io[30]…
— Ajoelhe, moleque! Quem sabe a Morte está em um de seus
bons dias, e leva apenas a mão desastrada que tem. — Com o que
o italiano poderia arrancar uma mão ali? Tinha uma faca de serra,
um passador de manteiga, pratos. Sabia que Nico carregava uma
arma dentro do paletó, e o quão estragada eu estava por tentar
adivinhar com o que o membro seria cortado?
Ele seria cortado?
Talvez fosse melhor seguir o conselho de Lorenzo e desviar os
olhos.
— No. — Era a voz dele, mais grossa do que estava
acostumada a ouvir, o rosto ainda sério, ele respirando fundo antes
de soltar o tecido.
Foi só quando o garoto caiu no chão que percebi ser o aperto
de Nickolay que o mantinha de pé. O garoto realmente ajoelhou, o
medo o fazendo não levantar os olhos do piso de azulejos, Nico
voltando para a mesa como se nada de mais estivesse
acontecendo. Ele alcançou o guardanapo de pano, o branco sendo
sujado de marrom pelo café que ensopava a frente da camisa, os
olhos escuros indo até os meus, para depois vagar por toda a mesa.
— Hoje é um dia de celebração. É Stella, finalmente voltando
para a família, por mais que volte sob outro nome, e com meu
sobrenome. É tudo que seu falecido pai sonhou, e que todos que
estão aqui presentes sabem que fui eu que tornei verdade. — Meu
marido era um mentiroso espetacular, assim como eu soube, ali,
que ele também deveria ser um dos homens mais temidos da
Sicília. — Não terá sangue no dia da mia donna[31]. Um minuto. — E
meu italiano deixou a mesa, sumindo por um corredor, meus olhos
voltando para o caos que era limpo perto de mim.
O garçom sabia quem era Nico. O garçom, que ainda estava
no chão, e era ajudado somente agora por outro atendente,
continuava aterrorizado. Lembrar de Morte era inevitável, as
inúmeras tatuagens de esqueletos fazendo jus ao apelido do novo
Don.
Ao menos ele não tinha arrancado nada, fisicamente falando,
do garoto. Os poucos clientes que se viraram para ver o que
acontecia já não mantinham mais a atenção em nós, a minha indo
para o único homem que eu conhecia na mesa. O fantasma e
Matteo eram infinitamente mais confortáveis que todos os olhos
desconhecidos tentando me decifrar, e sem Nico, eu queria sumir
dali.
— Preciso de um banheiro. — Não teve objeção quando me
levantei, assim como não foi difícil achar o feminino.
Uma ruiva sorridente segurava a porta aberta para mim, eu
sorrindo de volta e entrando, feliz pelo espaço estar vazio. Meu
reflexo me encarava com certo deboche, minha pele não pálida,
mas corada. Talvez estivesse realmente me acostumando com a
morte.
Porque eu sabia que, não a minha, mas a do garçom, esteve
bem próxima de se tornar verdade por causa de um acidente. Os
homens da mesa trataram como algo tão normal. Aquele tinha sido
o normal de Nico?
E eu ri: aquele era o normal de Nico. Aquele era nosso novo
normal. Quanto mais rápido fizesse meu cérebro aceitar aquilo, mais
fácil seria processar o primeiro tiro que visse ser disparado.
Quase joguei água na cara, até lembrar da maquiagem que eu
outra vez usava, resolvendo que retocar o batom era uma escolha
muito mais sábia. Pronto, apresentável, igual antes de entrar, e já
deveriam ter passado minutos o suficiente para meu italiano estar
novamente sentado com os outros homens.
Nickolay não estava de volta na mesa. Ele estava, vi assim
que abri a porta do banheiro, muito mais perto de mim, conversando
com a mesma mulher que quase esbarrei ao entrar.
Ir para o lado dele foi automático, meu corpo só relaxando
quando o braço tatuado voltou para minha cintura. Olhos curiosos
como os que aguentei na mesa pararam em mim, a mulher
parecendo esperar meu marido introduzir quem havia atrapalhado
sua conversa.
— Mia donna, Alana — ele disse, o toque outra vez
possessivo, mas a voz muito mais suave do que antes. — Dolcezza,
essa é Helena.

Alana manteve o rosto neutro ao ver o lado que eu queria


esconder dela. De canto de olho, me certificava que estava tudo
bem, antes de decidir que precisava de um minuto, abandonando o
guardanapo sobre a mesa.
Havia sido um acidente tão bobo, eu levando o garoto para
longe para o café quente não acabar nela, mas apenas em nós. Não
precisava olhar para ter certeza de que todos sentados conosco
esperavam que eu tomasse alguma providência, e desejava ter me
livrado de terminar o dia cortando um dedo com meu discurso.
Os homens com os quais eu lidava agora não eram
conhecidos pela tolerância, Matarazzo propagando a falta dela
durante todo seu tempo como chefe. Seria difícil mudar o que já
estava tão enraizado neles, perto do impossível me safar de
medidas mais drásticas quanto à outras coisas que viriam a
acontecer.
Eu colecionaria tatuagens, prevendo que uma hora me faltaria
pele limpa. Entrei mal-humorado no banheiro, os homens que
estavam nele se apressando para fora, meu rosto e caveira ainda
vivos demais nas memórias dos moradores da cidade. A água no
rosto não me deixava menos nervoso, o sentimento presente
demais desde que deixamos o carro, Alana o escondendo bem
melhor do que eu.
Era tão mais fácil antes dela. Antes delas, eu outra vez
pensando ser uma menina que viria em menos de nove meses. O
que nossa filha acharia ao ver a caveira junto de ódio na mão do
pai? Segurar uma criança com a mão que levava a palavra hate[32]
era tão errado. Tudo que vivíamos andava tão incorreto.
Saí do banheiro, da porta vendo que o lugar antes ocupado por
Alana estava vazio. Dali, também enxergava Lorenzo apontando
para o banheiro feminino. E também via, quase na frente dele, uma
conhecida que sorria de um jeito amigável.
Era confortável ver alguém que realmente tinha sido uma
amiga no meio de tantos que apenas estavam ali pelos benefícios, e
não me impedi de sorrir de volta.
— Quanto tempo, Nickolay. — Helena não parecia ter
envelhecido um dia, os saltos que sempre usava a deixando muito
mais perto da minha altura que minha mulher. — Achei que nunca
mais fosse te ver por aqui depois das notícias do Brasil.
— Assim como é a última pessoa que esperava ver justo
nesse restaurante, Lena.
— Não deveria entrar em mais nenhum depois do ocorrido,
deveria? — Era impossível não ficar desconfortável com a memória,
meus olhos encarando o chão antes de irem arrependidos para os
verdes.
A porta em frente ao banheiro masculino foi aberta, Alana
saindo detrás dela. Helena estava perto o suficiente para eu sentir
seu perfume, e foi inevitável me perguntar se o cheiro de framboesa
escolheria se afastar, assim como foi difícil não lembrar de
Giovanna.
Ver tanto amadurecimento em quem um dia me faria temê-la
mais que o inferno me enchia de orgulho, Alana se aproximando, a
mão de unhas curtas me tocando no antebraço, eu o colocando ao
redor de sua cintura. Ela era a única que eu tinha no peito, e eu
queria exibi-la para o mundo.
Minha.
— Minha mulher, Alana — comecei em italiano, continuando
em inglês ao achar os olhos mel. — Dolcezza, essa é Helena. Uma
antiga amiga.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Amiga? — E continuou em italiano. — É um prazer, Helena.
Engoli seco, coçando a barba: Alana falando italiano deveria
ser ilegal.
— Igualmente. — A atenção voltou para mim. — Você ficou
longe tempo demais, Nico. Até conseguiu arranjar uma esposa. —
Uma curiosidade brilhava nos olhos verdes, Helena dando um
sorriso gentil. — Fiquei sabendo que é a filha do senhor Matarazzo.
Meus sentimentos.
Deu para sentir o desconforto de quem eu segurava.
— Alana ainda não entende muito bem italiano — esclareci,
nos puxando de volta para o inglês.
— Ah. Vai ser difícil se virar na Itália sem falar a língua, Alana.
— E a tensão aumentou.
Talvez fosse sábio nos tirar dali, não querendo testar a
paciência de quem eu precisava que se mantivesse calma.
Alana, com certeza, havia roubado todo meu autocontrole para
ela.
— Já passei por situações piores. — A voz saiu mais firme do
que imaginei que soaria, o rosto se mantendo calmo, uma das mãos
pequenas achando minhas costas por debaixo do meu paletó.
A ruiva sorriu.
— Eu posso imaginar. — Ela pareceu considerar por um
momento, antes de continuar, os olhos fixos nos cor de mel. — A
vida pode ser solitária para quem é novo no país. Se quiser
companhia, pode aparecer por aqui e me procurar.
A confusão estava em nós dois, e então, fez sentido para mim.
Helena tinha cuidado do restaurante dos pais, até o dia em que o
estabelecimento virou cinzas. Não imaginava que ela voltaria a
trabalhar em um, assim como nunca soube se ela tinha ou não
conhecimento de quem fora o responsável por destruir seu antigo.
— Trabalha aqui?
— Eu que ponho ordem, de domingo a domingo — ela contou,
a atenção ainda em Alana. — Mas sempre consigo escapar por
algumas horas, se precisar. Ainda mais se for a vontade do chefe.
Vi um sorriso nos lábios finos, e então, notei a mulher que eu
não queria sentada à nossa mesa se juntando aos meus
convidados.
Ah, cazzo.
— Grazie, Helena. — Mesmo com a calma de Alana, era
melhor não tentar a sorte chamando a ruiva pelo apelido. —
Precisamos voltar agora. Foi um prazer revê-la.
Não quando eu precisaria de toda a sorte possível para
quando voltássemos para o brunch.
— Nico, sempre tão educado. — Helena não escolheu fazer o
mesmo, meu corpo tensionando, minha mulher com certeza
percebendo. — É um prazer, Alana. Sabem onde me encontrar.
Seguimos alguns passos antes da voz dela voltar em
português.
— Ela pareceu íntima. Te chamou de Nico.
“Ela está se jogando em você!”
Não era para a voz de uma morta ecoar na minha cabeça, não
com Alana ao meu lado.
— Ninguém te chamou de Nico aqui, fora ela. — Minha mulher
só estava curiosa, mas lembrar de todo o caos que aconteceu no
passado por uma mensagem foi automático.
Desejei saber quantas vezes Alana precisou se lembrar que
seu marido era diferente do moleque que eu deveria ter matado.
— Primeiro dia, e já estou no inferno — bufei, parando e
virando o corpo para ela. Alana fez um bico, eu percebendo que
tinha soltado a última frase na minha língua-mãe. — Desculpa,
amore mio. Só estava reclamando. Cazzo, não quero te levar de
volta para a mesa. — Encostei os lábios na testa branca, minhas
mãos segurando seus braços. Respirei fundo seu cheiro antes de
deixar sair. — Emília está na mesa. Eu não sei o que ela está
fazendo aqui…
— Vamos — ela deu um passo para trás, os olhos em mim.
— Alana…
— Você não precisa ter medo dela. — As mãos pequenas
fingiram arrumar minha gravata, eu tirando tranquilidade do simples
toque. — Nem de mim, Nickolay.
— Sempre vou ter medo de ti.
— Ótima resposta. — Ganhei um meio sorriso, os olhos
brilhando. — Agora vamos.
Andar de volta para o grupo tendo ela nos braços era mais
fácil, encarar Emília e não querer fazê-la desaparecer, difícil demais.
Não soltei Alana mesmo quando paramos, por mais que sua
proximidade me lembrasse demais das ações de Ferreti.
— Achei que fosse ser convidada para seu brunch de
renascimento, Nico. — A loira ainda estava de pé, e permanecer
com uma expressão neutra nunca passou tão perto do impossível.
— Esse é um encontro entre amigos — menti, aquilo sendo
puramente negócios.
— Hum. — Os olhos azuis correram pelos integrantes da
mesa. — Não lembro de você ser próximo de metade das pessoas
que vejo aqui. — Quem eu tinha nos meus braços outra vez
tensionou: Alana precisava aprender italiano.
Que merda.
— Talvez porque nós não sejamos próximos. Não me conhece,
senhora Ferretti. — O olhar de desdém me fez queimar por dentro,
por mais que deixasse minhas mãos geladas. — E minha mulher
não entende nossa língua, então use seu inglês.
A italiana fingiu perceber Alana pela primeira vez, e eu rezei. O
pedido não era apenas para o controle de quem tinha perto.
— Alana.
— Emília. — Mas para o meu. — O que quer? Meu marido não
está disponível, especialmente pra você.
Aquela voz andava falando tudo que eu mantinha silenciado.
Ouvir o que Alana soltava era errado, e ao mesmo tempo, acalmava
minha alma.
— Vim oferecer ajuda…
— Duvido — o tom era o mesmo usado sempre que ela falava
com o pai.
— Não preciso de sua ajuda, Ferretti. — Também não me
esforcei para ser gentil.
Lorenzo se levantou, todos os presentes, menos nós quatro,
disfarçando não estarem prestando atenção.
— Talvez seja bom ouvir a senhora Ferretti, Don DeLucca. —
Precisava me controlar para não bufar cada vez que ouvia o título
que não queria atrelado a mim.
— Mantovanni, sempre tão educado. Mais pessoas deveriam
ser assim.
Talvez se ela tivesse mantido a boca fechada, eu também o
tivesse feito.
— Concordo. Deveria seguir o exemplo, antes de se convidar
para reuniões.
O sorriso amargo que ganhei escondia uma promessa de
vingança, e eu sabia.
— Acho que minha cadeira nunca vai chegar, vai? — ela não
esperou resposta antes de se distanciar, eu puxando minha mulher
para mais perto, Lorenzo se pondo na nossa frente.
Baixei os olhos para Mantovanni sem nenhuma paciência,
Armando e Matteo aparecendo na entrada do restaurante.
— O que foi isso? — Tinha uma paciência igual à minha no
tom que ele usou.
— Eu que pergunto — disse de dentes cerrados, voltando para
o português. — Quem a convidou?
— Eu convidei.
— E não pensou em me falar?
— Não achei que fosse precisar te alertar sobre isso! — Ao
menos ele não tinha usado Don DeLucca. — Nico, ela queria trégua!
— Essa puttana foi o motivo de quase termos morrido! Como
poderia querer trégua? — me controlava para não gritar, lembrando
que não estávamos sozinhos. — Já me senti mal o suficiente pelo
que houve no passado, me disse para parar de ter dó!
— Ter dó é uma coisa, ser burro é outra — veio de um jeito
seco, o temperamento de Mantovanni chegando um pouco mais
perto do meu. — Vai ter que encontrar a mulher mais vezes, e seria
muito melhor tê-la deixado achando fazer parte de seu círculo mais
próximo.
Dei os ombros, mostrando toda minha vontade de estar
naquele país, comandando uma máfia.
— Bem, tarde demais. — Era mesmo tarde, e me perguntava
se adiantaria de algo tê-la como uma aliada. Não conseguia
acreditar que justo aquela mulher pudesse se tornar uma.
Ao menos, Ferretti havia saído sem grandes escândalos.
Poderia me beneficiar de sua partida de algum jeito, caso mais
alguém sentado ali desgostasse de seu sobrenome.
— Dê um jeito nessa impulsividade, Nickolay. Você não é mais
moleque — Lorenzo disse quando passou por mim, o rosto muito
mais neutro que o meu.
Queria perguntar se ele gostaria de se candidatar para meu
cargo, mas fiquei quieto.
Alana também ficou, e era bom e ruim vê-la se adaptar com
facilidade num meio no qual não a queria. As esposas de dois dos
capos a bajulavam demais, eu sabendo que o sorriso que via ali não
era um de seus verdadeiros, mas passava demais por um sincero.
Era irritante e confortável precisar me preocupar mais com
meu comportamento.
— Finalmente pude conhecer pessoalmente o famoso
DeLucca — era um homem mais próximo da minha idade que falava
na saída, quem eu sabia ser sua esposa conversando animada com
minha mulher.
— Benetti, certo? — ele fez que sim, Mantovanni sumindo
dentro de um dos carros, eu reconhecendo Armando como
motorista do nosso.
Lorenzo não facilitava minha vida.
— Soube que é a pessoa com quem devo falar sobre política.
— O capo levantou as sobrancelhas.
— Tenho meus contatos.
— Ótimo. Acha que consigo um encontro com o governador?
O olhar receoso me deu a resposta antes das palavras.
— Talvez começar ganhando alguns senadores seja mais
prudente. — Mais prudente teria sido fugir, pensei, estando na Itália
fazia dois dias e já tendo sido incomodado por Levina duas vezes.
— Gosto de pensar grande. — O Pakhan queria o cazzo de
um passe livre para as drogas que passavam pelo nosso porto, e eu
queria sumir dali, minha inquietação me fazendo querer estralar
todas as juntas dos dedos. — Mas aceito a sugestão. —
Permanecer parado era angustiante. — Consegue para semana que
vem?
— O lugar importa?
— No. Até amanhã. — Ia para perto de Alana quando vi a
confusão. — O enterro do meu sogro. — Ou, ao menos, o que
sobrou dele, nós tendo trazido apenas cinzas para o país. — Seu
antigo chefe.
— Ah, claro. É amanhã, Rafaella quem costuma me lembrar
das formalidades. Com certeza estarei lá. — Ele pareceu considerar
antes de soltar a última frase. — Prefiro você no poder, Don
DeLucca. Parece mais sensato quanto aos interesses de todos.
Fiz que sim, sumindo com Alana para dentro do carro. Pensar
nas decisões sensatas que eu teria que tomar também incomodava.

Era noite quando enfim ficamos sozinhos. Com a cabeça


afundada no travesseiro, os cabelos ainda molhados, tudo que eu
não queria era lembrar que amanhã seria mais um dia de
obrigações.
Alana, em frente ao espelho de calcinha e uma camiseta curta
demais desfocava minha mente do caos com maestria. Mordiscando
o lábio inferior, os olhos mel estudando a barriga lisa, precisei rir do
que acontecia: nós dois queríamos ver algo ali todo dia.
Odiava estar na máfia com elas.
— Que cara é essa? — resolvi que era também melhor me
distrair daquele último pensamento.
Ela ignorou minha pergunta até virar para mim, as mãos indo
do abdômen para as bordas da camiseta curta, as torcendo.
— Lembra do nosso primeiro encontro? — Fiz que sim. —
Você disse que tinha três prazeres. Qual é o terceiro?
De tudo que ela poderia lembrar.
— Antes de ti, era foder — respondi, a puxando para cima de
mim, Alana deitando-se sobre o meu corpo, a boca a centímetros da
minha.
— E agora?
— Foder você — confessei, me perdendo na curva do seu
pescoço, sentindo o arrepio que percorria o corpo que eu queria
descobrir. — Cansada?
— Depende da oferta. — Ela se pôs sentada, uma mão
traçando as tatuagens do meu peito.
— Ainda preciso te mostrar as melhores partes da cidade. —
Fechei os olhos, aproveitando das sensações que só ela causava.
— Já vejo a melhor parte. — Voltei minha atenção para minha
mulher quando a senti tensionar. — Ninguém fez nada hoje. No
restaurante. — Eu sabia sobre o que Alana se referia. — Ninguém
nem mesmo piscou, e continuou como se…
Como se fosse normal a minha atitude.
— É sempre assim aqui? — Não tinha como contar mentiras.
— Nos restaurantes que somos donos, sim. — Era, na
verdade, bem pior, quando as coisas realmente saíam do controle.
— São os únicos nos quais vamos comer, Alana.
Ela escolher focar no número, e não na outra informação que
eu deixava no ar, me fazia ciente de que precisaria lhe explicar mais
sobre coisas desconfortáveis.
— Nos restaurantes? — Os olhos estavam incrédulos.
— Disse que tínhamos várias propriedades. Bem, Matarazzo
tinha, e agora com ele morto, nós temos — corrigi, me perguntando
se Alana tinha noção do quanto era rica. — Me fez duas perguntas,
e ainda te sinto desconfortável. O que realmente quer me
perguntar?
E ali estava ela, os olhos vagando para longe dos meus, as
mãos torcendo a camiseta, Alana insistindo em destruir o canto dos
lábios com os dentes. Trouxe sua atenção de volta ao envolver uma
bochecha com a palma da mão, meus dedos livrando a pele
sensível de mais mordidas.
— Nico, quem é Helena? — Senti o maxilar travar. Alana
também. — Pela sua cara, eu vou odiar a resposta, não vou?
— Talvez, mas não precisa. — Os olhos mel reviraram.
— Deixa eu adivinhar: foi só uma foda, anos atrás.
Era bom poder responder que aquilo era mentira.
— Nem mesmo um beijo, dolcezza. — Ela relaxando me dava
forças para fazer igual. — Acho que nunca te falei muito sobre meu
primeiro casamento, falei? — A pergunta veio comigo me sentando,
Alana ainda no meu colo, as pernas agarrando minha cintura.
— Você nunca pareceu confortável com as perguntas. —
Lembrei da nossa tarde na praia carioca, ela questionando sobre
minha família morta pela última vez.
— Pode perguntar o que quiser, Alana. — Minha mulher
respirou fundo. — Eu vou te responder.
O nome saiu dos lábios dela com uma incerteza que não
deveria existir.
— Quem é Helena?
Uma incerteza que eu não poderia considerar deixar ali, e
forcei meus olhos a continuarem nos dela.
— Helena foi uma amiga. — Coloquei uma mecha de cabelos
atrás da sua orelha, meus dedos passando pelos brincos de rubi
que sempre estavam no lóbulo. — Uma forma de doer menos. Te
disse que nunca houve nada entre Giovanna e eu. Minha esposa
era difícil. — Quase ri: difícil não se aproximava da realidade do
passado. — Muitas vezes cruel. Helena ajudava meus dias a serem
mais suportáveis, e por um tempo, nós flertamos.
A testa enrugou, os lábios finos pressionando-se juntos.
— Nunca passou disso, bella. — Arrisquei tocá-la nas costelas,
o bico se desfazendo com as cócegas. — E cazzo, nunca vai
passar, Alana. Pra mim, só tem você.
Me esforcei para ser o suficiente o jeito que capturei sua boca,
o beijo a fazendo gemer na minha, meu pau pulsando na boxer. Não
queria me separar do gosto de framboesa com pasta de dente, mas
Alana tinha planos além de ser jogada de volta na cama.
— Ela é… — começou, fugindo dos meus lábios, os olhos
sérios. — Se algum dia disse que Emília era bonita, depois de hoje,
depois de ver Helena… — O medo que havia ali era absurdo. —
Essa mulher é um outro nível de beleza.
— E? — perguntei já contra a pele de seu pescoço, a camiseta
curta deixando a tatuagem à mostra, eu querendo tirar o tecido
branco.
— E eu vou ficar feia, e cheia de estrias quando minha barriga
começar a aparecer, e…
— E acha que ligo? — Ela me forçava a parar. — Realmente,
depois de tudo que passamos, depois de tudo que te falei, acha que
eu ligo se seu corpo mudar? E se eu mudar? Vai deixar de me
amar? — Minha mulher me olhou como se eu falasse um absurdo.
— Já não tenho mais parte de uma orelha — continuei, sério.
Ela revirando os olhos agora era engraçado.
— E daí?
Exato, quis falar.
— Talvez eu me deixe exagerar mais no açúcar, então. —
Arrancar um sorriso dela com provocações era muito mais
gratificante. Apoiava os cotovelos no colchão, meus lábios vagando
por todo seu rosto, descobrindo um pedaço diferente a cada
palavra. — Alana, tu é a mais linda pra mim. Posso passar a vida
afirmando isso pra ti, se precisar. — Senti a risada antes de ouvi-la.
— Che?
— Pra — ela enfatizou, os olhos outra vez alegres. — Eu gosto
quando você fala que nem eu. É bonitinho.
Era minha vez de sorrir, nos virando e a colocando de volta
sobre mim.
— Madonna mia, precisei pensar em muitas coisas
desagradáveis quando te ouvi se apresentar em italiano. — Seu
coração acelerava contra o meu, Alana me enlouquecendo ao
pressionar-se contra mim. — Sono pazzo di te, bella[33]. — Me
deixei gemer quando minha mulher começou a se esfregar no meu
pau, dando um suspiro contento ao conseguir fricção onde
precisava. — Fala de novo qualquer coisa na minha língua pra mim.
— Minhas mãos foram para seus quadris, a incentivando a não
parar. — Faz eu querer foder você até de manhã, consegue isso
com uma palavra.
Alana conseguia aquilo com uma respiração, admitir tal sendo
ridículo e a mais pura verdade.
— Sono pazzo-
— Pazza — a corrigi, antes de começar a copiar os sons que
ela fazia.
— Pazza — ela repetiu, deixando a palavra deslizar pela
língua da mesma forma que a sentia deslizando por mim. Cazzo. —
Di te. Sono pazza di te. O que eu disse? — a pergunta veio num
sussurro, a voz em português tão boa quanto em italiano. — A
melhor safadeza que já ouviu?
Alana inteira era deliciosa demais, e mesmo por cima dos
tecidos, podia sentir sua boceta tão molhada quanto naquela
manhã.
— O que eu sempre fui, desde a primeira vez que te tive em
cima de mim. — Respirei mais uma vez seu cheiro antes de
continuar. — Louco por ti. Temos bastante tempo agora. Quer culpar
seus hormônios outra vez?
O sorriso que ganhei era o que sempre vinha antes das
melhores fodas.
— Si.

— Preciso mesmo ir?


Era óbvio que sim. Vestindo o único vestido preto que viera na
mala, reforcei mentalmente que precisava comprar roupas, eu tendo
opções de menos para nossa nova vida. A peça apertava meus
seios, antes inexistentes e agora eternamente sensíveis, eu ainda
sentindo neles a boca do homem que descia as escadas.
— É seu pai, Lana. — Eu queria rir: Vincenzo Matarazzo nunca
foi meu pai. — É um sinal de respeito.
Nickolay achou meus olhos e deu um sorriso, ele vestindo
inteiro preto, sumindo para dentro de uma das salas. Era a que eu
tinha assumido ser seu escritório, como no Brasil, e já tomava nota
mental para nunca entrar sem bater ali. Eu era a esposa do Don,
mas tudo o que não precisava enquanto carregava nosso filho era
ver mais uma morte.
E um riso escapou dos meus lábios: lá no fundo, eu sabia que
fugir de ver sangue era impossível no meio da máfia.
— Respeito. — Fitei o espelho, meus cabelos presos num
coque apertado, os brincos de diamantes brilhando em mim pela
primeira vez. — Eu nem mesmo falo italiano, que respeito que vou
ter?
Lorenzo era quem cobria meus ombros com um casaco —
também preto — e me perguntei se o próximo passo seria colocar
um chapéu da mesma cor. Eu não tinha trazido nenhum comigo,
mas Barbara, que sorria um sorriso caloroso demais ao passar por
nós, antes de sumir para o fundo da casa, não deve ter tido muitos
problemas em arranjar um. Quem segurava o chapéu preto era
Matteo, e eu só queria revirar os olhos e tomar um café.
— Não precisa se preocupar em ter respeito, ragazza, só
precisa estar lá. — Os olhos azuis me encaravam através do
espelho, as mãos arrumando o acessório na minha cabeça. Era um
daqueles chapéus que mais pareciam uma boina, a rede
quadriculada preta cobrindo meus olhos, pinicando a ponta do meu
nariz. — Tem respeito o suficiente pelo título que carrega. Acha que
alguém desrespeitaria a filha do antigo Don, e esposa do novo?
Dei os ombros: eu sabia que o inteligente era não se atrever,
assim como lembrava bem que haviam me chamado de puta em um
dos jantares no Brasil.
— Matarazzo nunca falou sobre o ocorrido para ninguém na
Itália. A vergonha de ter sido traído justo pelo braço direito foi uma
benção. Quanto ao que houve, foi Demidov quem o matou. Você,
obviamente, não estava presente, e não sabe de mais nada. — Me
virei para ele, minhas mãos abraçando a barriga, a nova mania
responsável por me centrar quando Nico estava longe. — É a
história.
— Não é como se eu fosse querer contar para alguém —
respondi, agradecendo por sermos apenas nós três no hall de
entrada, o fantasma permanecendo do lado de fora.
— Finja estar triste, e não ponha a mão na barriga. É melhor
demorarem para saber do bambino — Lorenzo aconselhou, e eu
suspirei.
Forcei um bico, aquele no momento sendo o máximo de
tristeza que conseguia demonstrar.
— Onde tá o Nico? — voltei a encarar a porta de madeira
trabalhada, entreaberta.
— Está terminando uma ligação, ragazza.
Uma ligação era melhor do que os dias que teria que ficar sem
ele.
— Ele sabe o que tá fazendo, não sabe? — Não tiraria as
mãos da barriga agora, resolvendo deixar guardado todo meu
autocontrole para o funeral.
— Nico viveu bastante tempo dentro da máfia. E uma coisa
que seu marido não é, por mais que eu tenha discordado no café da
manhã de ontem, é burro. — Quando que eu sentiria alguma
elevação ali? Até quando conseguiria me distrair com pensamentos
aleatórios, que não me lembrassem da merda na qual tínhamos
outra vez nos metido? — Ele sabe o que está fazendo, Lana.
— E se ele não souber, nós sabemos — Matteo assegurou, o
segurança arrumando uma das armas dentro do paletó.
Olhei para o escritório, a mão com a caveira aparecendo na
porta de correr, apenas para desistir e fechá-la por completo quando
o celular voltou a tocar. Vi um pouco de arrependimento nos olhos
escuros — como se o culpado fosse ele — Nickolay falando em
italiano sendo um som que sempre me fazia sorrir.
— Ok.

A grama era verde, nos túmulos, apenas lápides. O caixão que


descia estava cheio de cinzas que nem sabíamos se era mesmo de
Matarazzo, Nickolay tendo afirmado com certo prazer que talvez os
restos fossem de um dos guardas do ex-Don.
De pé ao lado do novo, eu mantinha os olhos baixos e tentava
manter a expressão mais triste que conseguia. Com certeza ela
passava muito mais perto de chateação do que tristeza, e eu
precisava fazer xixi pela terceira vez em muito pouco tempo. Eu
nem mesmo tinha uma barriga, de onde vinha a vontade de um
banheiro de meia em meia hora?
— Meus pêsames. — Queria revirar os olhos, mas forcei um
sorriso amarelo, fazendo que sim com a cabeça antes de encarar o
italiano que parava na nossa frente.
— Ele foi um grande homem. — Eles usavam inglês, e eu
preferia que Nico respondesse em sua língua e me poupasse de
ouvir asneiras.
— Don Matarazzo foi. — Que mentira. — Apenas um grande
homem poderia ter como herdeira uma mulher tão magnífica. —
Outra mentira: o fantasma, de grande, só tinha o tamanho.
— DeLucca, podemos conversar sem as donne? — Era o
mesmo homem de ontem, reconheci, sua esposa do outro lado.
— Um minuto, dolcezza.
Mesmo com Nickolay me contando sobre tudo que eu
perguntava, os homens nunca conversavam sobre negócios na
nossa frente, nós realmente funcionando como ótimos enfeites. Os
jantares eram uma fachada, nada nunca sendo discutido à mesa.
Qualquer encontro casual, apenas um prelúdio de um possível
acordo.
Meu italiano caminhava por entre lápides com quem eu sabia
se chamar Benetti, e eu decidi que faria das mulheres minhas
companhias, tendo me saído bem durante as conversas de ontem.
Estava para tornar meu plano real quando, pela segunda vez,
encontrei quem eu não queria ver na minha frente.
— Triste com a morte do papai? — Respirei fundo, pedindo a
todos os deuses um mínimo de paciência para não voar no rabo de
cavalo loiro. — Deve ser difícil perder um pai. — Abri a boca para
responder quando ela continuou. — Perder dois, então...
E as palavras morreram na minha garganta, meus lábios
entreabertos, nenhum som saindo.
— Não sabia? Sinto muito, senhorita Martins...
— O que você disse? — Quando algo finalmente saiu, não
passou de um sussurro. A sensação de ter mergulhado na água fria
era angustiante, minhas mãos procurando qualquer calor, meu fogo
longe demais.
— Ah, desculpe: senhora Matarazzo. — O tom era de
deboche, Emília soltando um sorriso igual. — Ou é DeLucca?
Dava para sentir minhas mãos tremendo, eu pressionando
meus lábios juntos para eles não fazerem o mesmo, para nenhum
som sair. Eu tinha entendido certo, não tinha? Eu tinha, eu sabia
que tinha, e era difícil demais controlar meus olhos.
— Senhoras. — Era a voz de Lorenzo, e eu nem consegui
reclamar ao ver quem lhe acompanhava. Só queria sair dali.
— Eu só estava dando minhas condolências. — O sorriso cruel
permanecia nos lábios vermelhos, os olhos delineados indo dos
meus para onde minhas mãos estavam. — Grávidas ficam mais
sensíveis, não ficam? — Descansando na minha barriga, a única
coisa próxima o suficiente para me dar o mínimo de calma. — Nico
fez certinho dessa vez.
Ferreti foi embora, mas deixou o nervosismo comigo. Estralei
todos os dedos da mão, tentando deixá-las longe do único lugar que
queria tocar no momento, como Mantovanni tinha aconselhado. Eu
mastigava meu lábio inferior, mas as lágrimas que queriam sair não
eram pelo corte que eu sentia ter feito com os dentes.
Eu não podia pensar.
— Alana?
Eu não podia considerar que meu pai estava morto, e teria sido
engraçado, em qualquer outro momento que não aquele, meu
cérebro me corrigir: “seu pai está com a mão no seu ombro”.
Coloquei uma palma na frente da boca, o primeiro soluço
saindo alto demais.
— Eu preciso sair daqui. — A voz tremia como todo meu
corpo, eu apertando minhas pálpebras fechadas e me
desesperando ao não conseguir me lembrar direito do rosto do meu
pai.
Esteban era sim o pai que toda a garota deveria ter. Ele era
doce, presente, e fazia o melhor molho branco de todo o mundo. E
meu cérebro insistia em esquecer os detalhes do seu rosto, por
mais que a imagem estivesse ali.
Eu não tinha nem mesmo uma foto. Tantos anos ao lado dele,
e nem mesmo um adeus antes de…
— Vamos. — Sabia que não era Lorenzo quem me puxava
para seu peito, assim como estava doendo demais para eu me
importar.
— Cadê o Nico? — Ainda assim, deixei sair a pergunta em
meio às lágrimas, meu rosto molhando a camisa de Armando. Era
cruel demais continuar chamando-o de fantasma agora, assim como
tinha sido me dar aquela informação de forma tão gratuita.
— Alana, vamos. — Fui outra vez puxada para frente, e
fungando, tinha certeza de que me mexer para longe dali não era
escolha minha. — Não tem problema chorar. — Como se eu
conseguisse me controlar agora, Armando me guiando por todo o
caminho que não via, até me encostar em algo gelado. Era nosso
carro, e limpando os olhos molhados, eu queria arremessar longe o
chapéu estúpido que usava no funeral.
Eu tinha perdido um pai, e estava no funeral errado.
— Vai parecer que é por ele…
— Eu quero o meu pai! — deixei sair entre soluços, esfregando
o rosto e pensando o quanto deveria ter rímel por toda a minha cara.
Eu não deveria chorar, eu não deveria me estressar daquele jeito, e
eu não deveria querer abraçar justo aquele homem. — Eu quero…
Abri os olhos quando ouvi a porta abrindo, Armando me
forçando a sentar no banco de trás, entrando logo depois. Realizar
que era a primeira vez que ficávamos sozinhos desde o dia do café
fez um bom serviço em ocupar minha mente e me fazer secar.
Meus dedos estavam manchados de preto, e eu não deveria
ter passado maquiagem nenhuma, mas então, parecia precisar viver
montada desde que pisei na Europa. Odiava ter que seguir um
padrão, odiava Emília, e odiava ser aquele italiano o responsável
por minhas lágrimas terem parado.
— O que ela disse? — A voz grossa encheu o carro, o rosto
com a barba por fazer sério, os olhos iguais aos meus perto demais.
Nunca me esqueceria daqueles olhos, por mais que agora eles
estivessem cobertos pela lente castanha, mas estava com a maior
das dificuldades em lembrar dos que passaram anos me criando.
Sentia o gosto metálico na língua cada vez que a passava no
lábio inferior.
— Que perder dois pais era difícil. — Também era difícil repetir
aquilo, ouvir em voz alta tornando a suspeita real demais.
Era apenas uma suspeita, não era? Emília com certeza estava
mentindo, e agora sentada, fazia sentido ela ter insinuado aquilo. A
mulher jogava bem demais com o pouco que deveria ter, e eu caí
como a idiota que era.
Fechei os olhos e abracei minha barriga, ela ainda tão reta, eu
querendo sentir alguma coisa além do coração prestes a estourar no
peito. Não imaginava que Armando fosse conseguir chamar
positivamente minha atenção.
— Quer saber se seu pai está vivo? — Minha expressão disse
tudo, me permitindo ficar quieta. — Eu te dou essa certeza, só me
dê alguns dias. Matarazzo não fez nada com sua família, Alana.
Sempre me certifiquei disso.
— Do mesmo jeito que Thobias nunca fez nada comigo?
Aquilo que eu via era arrependimento genuíno.
— A ficha dele estava limpa — ele confessou, dizendo em
silêncio ter me observado de longe durante os anos. — Eu não
sabia.
Escutar que ele esteve de olho era bom e ruim.
— Você tinha que cuidar do Nico. — Pela primeira vez, desde
que descobri sua verdadeira identidade, falei sem raiva com o
italiano. — Por que não cuidou dele? Ele precisava de um pai, eu
tinha um. Nico queria tanto você, por que você não dá alguma coisa
pra ele agora? Cada vez que você dá algo pra mim, parece que
estou traindo meu marido.
Armando nunca conseguiu responder, a porta do meu lado se
abrindo e silenciando nós dois.
— Che cazzo está acontecendo aqui? — Me joguei no meu
italiano antes mesmo dele se sentar, o cheiro cítrico me acalmando,
por mais que a nicotina estivesse forte.
— Ferreti.
Ele respirou fundo, eu ouvindo todos os seus sons, grudada
em seu peito.
— Nunca quis explodir uma mulher antes. — Os lábios foram
para minha testa, os braços tatuados me mantendo perto. —
Realmente me enche de primeiras vezes.
— Fique no carro, não cace briga com ela. — Vinha de
Armando, meu cérebro não conseguindo mais chamá-lo de
fantasma, as palavras dele fazendo sentido quando vi a expressão
de Nickolay. — Mantenha a postura, ou fique aqui e deixe
Mantovanni resolver o resto.
Nenhuma das suas palavras era mentira, eu não lembrando da
última vez que vi Nico tão bravo. A mandíbula estava marcada, eu
escutando alguns dedos estralarem, imaginando que se ele saísse
do carro, voltaria com ainda mais cheiro de cigarro.
— Cinco minutos, tudo bem? — ele perguntou com a mão
cobrindo minha bochecha, a expressão suavizando até o dedo
passar no meu lábio aberto. — Cinco minutos, pode contar,
dolcezza.
Me forcei a não me agarrar nele quando Nickolay se levantou,
mantendo meus olhos no italiano até a porta fechar.
— Água? — Uma garrafa fechada era posta na minha frente
pela mão que carregava a tatuagem de rosário. — Está suja no
rosto. — E um pacote de lenços foi tirado do bolso de seu paletó,
um deles sendo puxado. — Posso?
Peguei o papel branco, usando o espelho retrovisor para ver
onde precisava limpar.
— Você pode mesmo? — perguntei quando acabei, meus
olhos voltando para os agora confusos dele. — Descobrir se minha
família está bem? Se meu pai tá bem? — O sorriso que eu ganhei
foi confortável e triste, Armando fazendo que sim com a cabeça. —
Obrigada.
Foi a primeira vez, desde nosso café, que retribuí o sorriso.

Amanhecia, mais uma manhã comigo abraçando a privada


antes das sete. Ainda me fazia sorrir lembrar do motivo, eu estando
numa situação igual, mas tão diferente, meses atrás, antes dele.
Antes deles.
Haviam passado duas semanas, e eu ainda precisava comprar
roupas. Não dava para usar outra vez o mesmo vestido, o único que
cabia e era polido o suficiente para uma dama da máfia de respeito.
Que piada. Até Nico já tinha deixado claro que sentia falta das
partes que eu antes mostrava, minha pele coberta demais o
impedindo de beijar o que queria. Ele andava do mesmo jeito que
lembrava estarmos quando chegamos em Vancouver, e dava para
ver um pedaço do tecido descosturando, a costura provavelmente
arrebentada pela pressa da noite passada.
Ok, eu precisava de roupas novas.
— Hoje, à noite, vamos participar de um jantar — Nico avisava,
depois de mais um gole do café que eu queria tomar, chá de maçã
não sendo a melhor bebida para me deixar acordada. — Não acho
que consigo te deixar fora dos primeiros, amore mio.
— Eu não me importo, italiano — afirmei antes de morder o
croissant, a geleia de morango misturada com o sabor amanteigado
me fazendo salivar.
— Mas eu, sim. — O rosto estava sério. — Eles são bem mais
gráficos, aqui — veio como um lamento, Nickolay deixando o jornal
que antes lia sobre a mesa e se levantando. — Quando algo dá
errado, tudo fica vermelho demais.
— Eu consigo, Nico. — O segurei pela manga da camisa,
meus olhos nos dele. — Eu consigo ir e ficar quietinha.
Tinha aprendido a ficar em silêncio, mas foi impossível conter
um gemido com a intensidade que ganhei no beijo.
— Eu sei que consegue — ele disse ao se separar, sumindo
pela porta, eu só agora notando o telefone vibrando em sua mão
esquerda.
Não vi mais Nico por toda a manhã.

Não conseguindo adiar mais roupas novas, andava por uma


das ruas onde poderia achar tudo que precisava. Ainda era
desconfortável ter guardas atrás de mim, eu odiando pessoas me
observando pelas costas, e ficando nervosa com o porquê de ter
tanta segurança.
Mexer com a esposa de um Don era comprar uma guerra, e
Nico parecia ter vários querendo acabar com a paz que tínhamos.
Via alguns vestidos expostos na vitrine, imaginando se eu
conseguiria pedir meu tamanho sozinha, ou dependeria da ajuda de
um dos homens.
Qual vestido era próprio para uma dama da máfia? Suspirei:
aquele meio, tanto no brunch quanto no enterro, parecia mais
recatado que a minha avó. Bom que minha tatuagem nunca teria
como ser mostrada ali, minhas costelas sempre cobertas demais,
aqueles homens não parecendo admitir comportamentos
antigamente considerados masculinos em suas mulheres.
— Alana? — Eu não esperava ter alguém chamando meu
nome a não ser os seguranças, a voz feminina me fazendo virar a
cabeça e achar cabelos ruivos.
A beleza personificada sorria para mim, e eu me obriguei a
sorrir de volta.
— Oi, Helena.

1997

Continuar na Itália era difícil. Continuar na Itália e esconder


tudo que me corroía por dentro, perto do impossível. Graças ao
whisky que tinha no copo, as coisas ficavam um pouco mais
toleráveis.
Nem sempre o álcool ajudava. Um assassino dependente era
um assassino medíocre, e era naquilo que eu estava me
transformando: mediano. Não suficientemente bom, mas aceitável o
suficiente para ser mantido. Eu, afinal, não poderia ser descartado
sem ser morto, e o Don não parecia estar pronto para me dar um
fim.
Matarazzo também era medíocre, mas um medíocre
esperançoso. Queria voltar a conseguir sentir esperança, por mais
que o sentimento não fosse ser algo exatamente bom de se ter no
peito.
Porque, caso voltasse, eu teria esperança de uma só coisa. E
minha esperança destruiria ainda mais quem eu parecia estar
destruindo todos os dias.
Virei o que tinha no copo, o grito que vinha do quarto de
Nickolay me avisando que seria mais uma noite difícil. Ah, merda.
Victor estava prestes a abrir a porta quando eu o parei, o
garoto de quatorze anos com olheiras tão grandes quanto as
minhas. As semanas que antecediam o aniversário da tarde maldita
despertavam algo no menino, e eu me perguntava se meu mais
novo se lembrava nos sonhos do ocorrido na praia.
Meu mais novo, mas Nickolay não era meu mais novo. Queria
mais uma garrafa inteira de whisky, todos os cigarros de um maço, e
Katerina viva. Eu queria mais que tudo Katerina viva, nas minhas
mãos.
Queria fazê-la aprender o significado de inferno.
— Vá dormir, Victor. — Os olhos verdes me disseram que ele
me contrariaria antes dos lábios se partirem.
— Mas…
— Eu cuido dele hoje, Vic. — Não teve resistência, e eu entrei
no quarto.
Nickolay se debatia na cama, o rosto suado, a respiração
rápida, o menino chamando por uma maldita. Tudo que eu mais
queria era ensinar para Katerina que o inferno também poderia
existir contigo vivo, mas tudo que conseguia fazer era acordar o
menino.
Os olhos escuros abriram depois de alguns chacoalhões,
Nickolay acordando assustado.
— Eu fiz de novo, não fiz? — A voz estava envergonhada, as
roupas úmidas, ele se sentando na cama.
— Do que lembra? — O encarei sério, fechando a mão que
carregava o rosário tatuado e me atrevendo a pedir.
Não o deixe se lembrar, Deus. Deixe o inferno ser só meu.
— De nada. — O menino olhou para baixo, o rosto triste.
Respirei aliviado, arrumando o travesseiro e o fazendo voltar a
deitar. Os olhos escuros continuaram cabisbaixos quando pararam
nos meus, meu mais novo — Nickolay era meu mais novo, não
havia nenhum outro — esperando demais de mim.
Todos esperavam demais de mim, havendo dias demais nos
quais eu mal conseguia me manter de pé. Hoje era um dos que eu
conseguia, e dias assim me faziam pensar que deveria passar todos
os que não precisava trabalhar estirado bêbado na cama.
Eu deveria morrer, e deixar os meninos com Lorenzo. Lorenzo
sempre quis filhos, e filhos era algo difícil demais dele ter. O homem
era bom, muito mais inteligente do que eu andava sendo, e sentia
que os meninos gostavam o suficiente dele para eu sumir.
Sim, eu deveria morrer. Mas eu não tinha a capacidade de
morrer agora do jeito que precisava. Se tentasse morrer, acabaria
morto de verdade. Fantasmas não conseguem cuidar do jeito que
eu ainda precisava fazer pelos meus três filhos.
Dois filhos, forcei a correção. Dois filhos, e uma promessa.
— Pai, por que mamãe foi embora? — E eu congelei. — Por
que ela teve que morrer? Eu sinto falta dela todo dia.
Minha mão parou no meio do caminho, nunca chegando aos
cabelos escuros. Todas as vezes que escutava qualquer coisa da
assassina, meu corpo paralisava.
— Quando mamãe estava viva, tudo era melhor. Tudo era...
— Volte a dormir, Nico. — Levantar e sair era a melhor
alternativa. — Vai estar melhor amanhã.
Eu deveria deixá-los com Lorenzo.

A rua ficava perto do mar, mas todo o cheiro que eu sentia


agora era o doce vindo da mulher que me sorria. Helena cheirava a
melancia, a maquiagem deixando apenas algumas sardas à mostra,
ela sendo difícil de passar despercebida.
Eu gostava do cheiro de melancia, mas com Nickolay perto,
minha eterna insegurança preferia sentir apenas o de maresia que
enchia aquela parte da cidade.
— Sozinha por aqui? — ela levantou as sobrancelhas ruivas,
olhando ao nosso redor.
— Não sozinha. — Mas “sozinha”, pensei, Matteo junto dos
outros seguranças me dando um mínimo de privacidade.
Ela logo viu quem deveria estar comigo, apesar da distância.
— Ah, não sozinha, nunca sozinha. — Tinha dó ali, e eu quase
mandei para o inferno minha calma e revirei os olhos: eu não
precisava do dó dela. — Giovanna também nunca andava sozinha.
— Eu, também, não precisava ser comparada com uma morta.
Não deu para controlar o desprazer depois de ouvir o nome de
quem deveria pensar como minha meia irmã — ela era filha de
Matarazzo, afinal, como eu era — e finalmente revirei os olhos e
puxei uma respiração funda.
— Desculpa, foi uma comparação infeliz. — O sorriso mudou
para um sem graça, Helena com cara de arrependida ao ver que
havia falado demais.
Às vezes, eu odiava começos. O da Itália me deixava em
conflito todos os dias, sendo o começo de algo ruim e igualmente
bom. O que crescia em mim era a parte boa, pensar nele — ou nela
— sempre sendo um motivo de felicidade.
Meu sorriso foi sincero.
— É uma vida diferente da dela, a sua — a mulher disse,
tocando meu ombro, mais próxima do que havia me acostumado a
estar da maioria dos canadenses. — Mas pode ser solitária, ainda
mais para uma estrangeira.
— Não por muito tempo — admiti, minha nova mania
aparecendo, eu sentindo o tecido suave do vestido contra a palma
das mãos.
— Pretendem ir embora? — Sempre esquecia, e talvez colocar
as mãos contra a barriga fosse algo óbvio demais para mulheres. —
Ah. — Os olhos verdes cresceram, assim como o sorriso nos lábios
carnudos. — Posso dar os parabéns? Nickolay é um pai
maravilhoso. Ele deve estar no céu com essa notícia.
Helena era uma boa observadora, e desejei saber se todos os
italianos possuíam o mesmo dom.
— Não se preocupe, meus lábios estão costurados: para mim,
somos só nós duas, e não três.
Talvez eu pudesse mesmo confiar nela, por mais que estivesse
com preguiça de fazer novas amizades, eu sentindo falta das
conversas que tinha me acostumado a ter com Anna Flávia.
— Obrigada. — Bem, ela parecia confiável. Ao menos para o
que eu precisava hoje, talvez pudesse me deixar contar com a ruiva.
As peças que eu havia visto até agora, afinal, ou gritavam
puttana, ou me davam claustrofobia.
— Helena, eu preciso de um vestido — falei, lhe dando meu
melhor olhar de pidona. Funcionava com o italiano. — Eu não gosto
de ficar pedindo ajuda pra tudo, mas…
Ela sacudiu a cabeça e levantou uma mão, parando a minha
fala.
— Não se desculpe, eu estava desesperada para achar uma
companheira de compras! — a mulher disse empolgada demais, já
me puxando pela mão. — Hoje é meu único dia de folga em toda a
semana, o restaurante fica movimentado demais quando o inverno
passa, minha paz acaba! Que tipo de vestido precisamos achar?
Algo que me desse metade da sua beleza seria sensacional.
Mas deixei aquilo no pensamento.
— Eu e Nico temos um jantar de negócios hoje de noite. —
Será que isso responderia aquela pergunta? Helena sabia dos
negócios do amigo?
Eu podia falar negócios para ela, não podia?
— Tenho a loja perfeita para comprar algo matador.

O italiano me olhou desconfiado quando o mandei descer, eu


garantindo que estaria pronta a tempo enquanto me arrumava
sozinha. O decote em V passava longe do usado por mim no
primeiro jantar que frequentei com ele, mas sorri ao ver que meus
seios enchiam bem o vestido. Deixei os cabelos soltos do jeito que
sabia que Nickolay gostava, meu marido sempre feliz ao conseguir
brincar com os fios longos.
Nico conseguia ser tão fácil de agradar. Conversando com
Lorenzo no final da escada, ele se mostrou agradado demais
quando me viu, a mão grande passando pelos cabelos, ele
engolindo desconcertado me fazendo sorrir.
O sorriso ficou nos meus lábios enquanto eu descia, nós dois
esquecendo por um segundo que tínhamos plateia quando os dedos
agarraram minha cintura. Mantovanni limpou a garganta, do mesmo
jeito que fez na noite brasileira, Nickolay, daquela vez, não ligando e
devorando minha boca.
— Dio santo, eu vou ter que matar alguém hoje — ele
lamentou quando nos separamos, minha risada, nervosa.
— O quê?
— Seu marido está dizendo que você está adorável, Lana — o
mais velho esclareceu, os olhos escuros ainda me examinando,
parecendo querer absorver todos os detalhes.
Precisava agradecer a Helena mais tarde.
— Se não consigo nos tirar disso, pelo menos posso te fazer
rainha. — As mãos grandes correram pelo meu vestido, fingindo
arrumar o que ele ainda mantinha no meu corpo. — Está mais linda
do que uma, dolcezza.
Se reis fossem como Nickolay, rainhas poderiam ser
consideradas sortudas. Por ele, eu me considerava tal, e entrei com
um sorriso no carro. Outra vez Nico não mais dirigia, novamente eu
ansiava por vê-lo fazendo coisas normais como trocar de marcha.
Nossa normalidade roubada estava tão, tão longe.
O restaurante, no entanto, pareceu perto demais. Dois carros
paravam juntos do nosso, Nickolay saindo e estendendo a mão para
mim. Por mais que ele se transformasse ao redor da nossa máfia, o
calor sempre estava ali quando nos tocávamos. Aquilo bastava. Eu
faria aquilo bastar.
— Quem são todos esses? — perguntei ao pararmos em
frente a uma porta entreaberta, eu conseguindo ver pela fresta uma
mesa muito maior do que imaginava que haveria, completamente
ocupada não fosse por três lugares.
— Amigos de Matarazzo. — Nico pareceu considerar quanto
tempo teria para me responder antes de continuar. — São pessoas
influentes.
— Que agora precisam querer obedecer Nickolay. — Olhei
Lorenzo com receio: precisam querer? — O que não é difícil,
ragazza — ele continuou, minha expressão provavelmente lhe
fazendo a pergunta que deixei silenciada. — A fama de Nico é ainda
bem lembrada, e ele se casou com a única herdeira do pai. O posto
é dele, e até seu por direito, caso queira assumir.
— Então eles podem não nos aceitar? — Não tinha como
continuar quieta, e eu tentei tirar alguma calma dos olhos escuros e
toda a confiança que eu ali via. — E se não nos aceitarem?
— Eles vão, dolcezza. Não se preocupe. — Ouvi o click do
fechar da porta, as mãos grandes de Nico envolvendo meu rosto. —
É a dona de todo esse cazzo. Não tenha medo, Alana, esse tipo
fareja o medo. Nunca o tenha comigo do seu lado.
Respirei fundo, lhe oferecendo meus lábios.
— Eu não tenho — era uma semi-verdade, medos sendo
fáceis de me deixarem quando eu estava acompanhada de seu
toque.
Qualquer medo que restava em mim foi tomado pelos lábios
grossos, Nickolay voltando uma mão para a porta, o outro braço
possessivo na minha cintura. Matteo e Armando permaneciam
distantes, o último sempre usando lentes desde que pisamos em
solo italiano. Me perguntava se não o reconheceriam pelas
tatuagens, me perguntava se alguém se importaria se o
reconhecessem.
— Buonasera[34], signori. — A voz dele me tirou da minha
cabeça.
E como no jantar brasileiro, todos silenciaram ao ver meu
italiano. Como no Brasil, todos os homens levantaram e esperaram
o Don apresentar a esposa para sequer olharem para mim.
Diferente do meu primeiro jantar, não havia nenhum louco se
atrevendo a me chamar de puta, mas mulheres além de Emília, meu
cérebro sussurrando que Helena poderia estar entre elas.
Helena trabalhava num restaurante de Matarazzo — nosso —
mas não era casada com a máfia, me lembrei. Sorte a dela, assim
como também era sorte a minha, o meu mafioso tendo olhos apenas
para mim.
O jantar parecia uma daquelas reuniões que poderiam ser
resolvidas por e-mail, mas eu sabia que o intuito era ver se todos
aceitavam o novo chefe. Nico sabia ler bem demais pessoas, e
tentando manter as mãos longe da minha barriga, eu torcia para a
noite não acabar em vermelho.
As pessoas queriam socializar, e socializar era a última coisa
que eu queria com aquele bando. Infelizmente, não tinha muita
escolha, e ficava quase feliz quando a conversa mudava para o
italiano, nem todos conseguindo manter uma em inglês.
Ao menos, a comida cheirava maravilhosamente espetacular.
Meu marido estava mais do que certo quanto aos restaurantes na
Itália, e eu queria provar um pouco de cada prato novo que ouvia
falar. Nunca tive tanta fome na vida, meu nervosismo, que antes me
fazia esquecer de comer, me transformando agora numa pessoa
que vivia beliscando coisas.
— Espere eu te servir. — Queria perguntar se aquele era outro
costume, o Don servindo sua mulher sendo obrigatório. Aquilo diria
que eu era submissa, como eu ter limpado o sangue de Nickolay
contava a todos que sua mulher o aceitava?
Lembrei bem demais da noite na limosine e fiz que sim, sendo
tomada por um arrepio, tentando ignorar o calor no meio das minhas
pernas. Todo o pouco que vinha dele andava mais do que bastando,
agora eu nem mesmo recebendo algo e querendo arrancar sua
roupa.
Nem mesmo precisaria tirar qualquer coisa, a saia sendo
facilmente levantada, meu marido sempre se bastando em afastar
minha calcinha. Amava meus hormônios na mesma proporção que
precisava desligá-los até o fim da noite.
— Ok — respondi, os olhos dele parecendo reagir a voz rouca
que saiu de mim.
Todos já estavam comendo quando Nickolay começou a me
servir, ele fazendo nossos pratos idênticos, eu me perguntando que
costume estranho era aquele. O italiano inclinou-se para mim, os
lábios perto demais da minha orelha, a voz rouca me enchendo.
— Espere um minuto, dolcezza. — Eu estava faminta, e um
minuto era uma eternidade vezes mil. Lorenzo já estava comendo, e
eu queria explodir o homem, mas fiz que sim com a cabeça
enquanto salivava ao ver o prato cheio de linguini e o melhor molho
vermelho.
Eu realmente precisava contar um minuto? Por que Nickolay
estava comendo e me fazendo ir para o inferno e voltar quinze
vezes? Eu sabia que nas regras deles, as esposas eram tratadas
com o maior dos cuidados, por mais que houvesse infidelidades por
baixo dos panos — então a tortura não fazia sentido.
Não, Nico só me torturava de um jeito, e sempre que eu
implorava, ele me dava o que meu corpo queria. Quando meu
cérebro entendeu o que estava realmente acontecendo, eu queria
fazer meu marido cuspir tudo que ele mastigava. Ele realmente
achava que alguém poderia ter envenenado a comida, e por isso
éramos os últimos a comer?
Queria que fosse apenas mais uma tradição, mantida pelos
acidentes ocorridos num passado muito distante.
— Mangia[35], amore mio. — Graças a Deus.
Talvez Nickolay quisesse, pela primeira vez, me matar. Havia
outros jeitos de matar para nós, os olhos escuros indo para mim
assim que eu soltei um gemido. Era impossível não gemer comendo
aquilo, eu tendo a certeza de que todos naquela mesa não tinham
um coração por mastigarem quietos.
Dei meu melhor sorriso inocente, querendo mesmo responder
que comer quieta era impossível quando a comida em questão era
italiana.
Já esperávamos a sobremesa quando aconteceu.
— Demorou muito para vir alguém consciente tomar a
liderança dessa Famiglia. — Novamente era inglês a língua usada,
meus olhos indo da montanha de cannoli posta sobre a mesa para o
senhor dono do comentário.
— Matarazzo deveria ter sido deposto.
Eu soube que meu marido tensionou sem nem precisar olhá-lo.
Ainda assim o fiz, meus olhos evitando quem falara a última frase,
indo da cobertura de chocolate posta ao lado dos doces para a
mandíbula travada de Nickolay.
Tinha gente que não sabia a hora de parar de falar, era uma
realidade em todos os países. Talvez tivesse sido mais sábio o
homem me chamar de puta.
— Substituído por alguém que conseguisse enxergar o
interesse de todos, não concordam? — Até eu, que mal entendia
aquele meio, compreendia que aquilo era uma coisa bem estúpida
de se falar.
Porque se o antigo Don tivesse sido substituído, Nickolay
provavelmente não estaria no poder. O que seria sim maravilhoso,
caso tivesse acontecido antes dele estar. O comentário de agora fez
a insinuação que eu temi na entrada.
— Está questionando minha posição?
Bastou um olhar. Um. Olhar. Me sentia tão estragada por
aquele comportamento dele mexer comigo de um jeito bom demais.
Eu teria apenas pavor ao ver aquela expressão em qualquer outro.
Em Nico, o olhar de agora precedia nossas melhores fodas.
Só que o jeito que meu italiano parecia querer foder o homem
para quem dava seu olhar não era bom.
— Don DeLucca, eu não…
— Soou como tal. — Nico interrompeu, e eu imaginava se ele
socaria o homem contra a mesa. — Pareceu estar duvidando do
título que herdei. Eu era, afinal, o braço direito do Don. — A mesa
ficou em silêncio, o som dos dedos que levavam hate estralando,
ecoando pela sala. — E então, me casei com sua filha. E nós
sumimos justamente para evitar que a fatalidade que ocorreu com
Matarazzo ocorresse com quem ele dizia ser sua melhor parte.
Ninguém ainda se atrevia a abrir a boca, meus olhos grudados
no rosto que ia da raiva para a neutralidade. Me mexi na cadeira,
minha confiança, inteira de Nickolay, me deixando confortável o
suficiente para ser excitante vê-lo bravo.
— Eu sei que houve rumores, e eu entendo rumores. Posso
até considerar perdoar todos os absurdos que ouvi antes de pisar de
volta na minha terra. — O homem de antes ainda continuava
paralisado, os olhos grandes, todos à mesa indiferentes. — O que
acha disso, Mantovanni? — Veio com Nico se virando para seu pai
de criação. — É estúpido de minha parte? Deveria mostrar minha
alergia a bocas grandes e idiotices?
Lorenzo pareceu considerar antes de responder.
— Todos merecemos uma segunda chance, não merecemos?
Realmente, os homens não sabiam a hora de ficarem quietos,
aquilo sendo verdade entre todas as nacionalidades.
— Até uma terceira — veio de quem começara a situação, a
voz nervosa, eu querendo saber se a resposta tinha sido
involuntária, ou o começo de alguma confissão.
Até eu achava sábio manter um olho no homem depois da
noite de hoje.
— Me engane uma vez, e a culpa é sua. — Nico começou,
pegando um cannoli, molhando na cobertura de chocolate e jogando
no prato do homem que, sem dúvida, estava marcado. — Me
engane duas, e eu te mato. — A pontaria do meu italiano era
impecável. — Às vezes, a primeira basta. — A quietude que se fez,
também.
Os homens se olharam, alguns com medo, alguns achando
aquela a coisa mais normal do mundo. Arriscava pensar que uma
parte até queria que a última frase de meu marido se tornasse
verdade antes do final do jantar.
— Nunca vai chegar na primeira, Don DeLucca. De nenhum de
nós. — Era Benetti quem afirmava, o capo sempre mostrando
querer ficar no lado bom de Nickolay. — Não é mesmo, signori?
O sim foi um consenso.
— Ótimo. — Os olhos escuros só relaxaram quando pararam
nos meus, a mão que levava a caveira achando minha coxa por
debaixo da toalha. — Agora comam logo essa merda.
Era difícil demais mastigar a massa frita sem soltar nenhum
som, assim como passava ao lado do impossível ficar quieta com os
dedos levantando minha saia, pedaço por pedaço, até chegarem na
minha pele. O toque de Nico era quente e me deixava pegando
fogo, eu ignorando as conversas ao meu redor e focando no
indicador que me percorria com suavidade.
Até o doce perdia qualquer graça quando comparado ao
italiano.
Eu estava para alcançar o segundo quando ele me parou, a
mão antes em mim voltando para a mesa, Nico me pedindo silêncio
com um olhar e um meio sorriso.
— O cannoli de chocolate daqui é o melhor da Itália, e minha
mulher está com desejo de sobremesa — ele começou, e era
engraçado como Lorenzo entendia bem demais o menino que criou,
sacudindo a cabeça, sabendo o que seguiria. Eu já imaginava. —
Todos que tiverem terminado, podem sair.
Houve mais uma frase em italiano vinda dele, eu não a
entendendo, mas querendo ouvi-la outra vez. Aquela língua me
deixava tão molhada quanto a de Nickolay quando no meio das
minhas pernas, e o que eu mais queria era o mundo inteiro sumindo,
nos dando privacidade.
Nunca precisei verbalizar meu desejo, todos se levantando
segundos depois, Mantovanni sendo o último a deixar a sala,
sacudindo a cabeça mais uma vez antes de sair.
— O que você disse? — Nickolay foi até a porta, a fechando
antes de se virar para mim.
As calças sociais realmente não conseguiam esconder o
estado que eu o deixava, o rosto dele não mais mascarando o
quanto o homem me queria.
— Que vamos continuar comendo. — Cada palavra causava
um arrepio, meus dentes achando meu lábio inferior quando senti
minha boceta pulsar. — Sozinhos.
Eu amava aquele homem, e toda a antecipação boa que ele
me fazia sentir.
— Nós vamos? — A mão acariciou minha bochecha quando
ele parou ao meu lado, meu rosto a centímetros do monte que havia
na calça.
Travei meus olhos nos dele, deixando a ponta do nariz
contornar toda a extensão coberta. Será que ele conseguia sentir
minha respiração por baixo do tecido?
— Continuar comendo, é? — A mandíbula se marcava agora
por um bom motivo, seu pau pulsando, ele finalmente me deixando
ouvir um gemido quando o agarrei por cima da calça.
— Não dá para sair daqui desse jeito. — A voz dele era linda
sempre que eu lhe dava algum alívio, minha mão o esfregando até
chegar no primeiro botão. — Posso muito bem esperar passar
enquanto desfruto da sobremesa.
— Esperar passar — sussurrei, soltando uma risada.
Abri o zíper assim que me levantei, Nickolay soltando um
suspiro aliviado ao ser liberto. Ele puxou meu rosto para o dele, a
língua tocando o canto dos meus lábios, eu derretendo, do mesmo
jeito que ele parecia fazer ao provar o doce que havia na minha
pele.
— Gosto de chocolate. — A voz rouca era tão boa quanto seu
toque. — Quando está em ti, mais ainda.
Imaginava que as mãos que iam para minha cintura me
colocariam sobre a mesa, eu o parando com a minha, pressionando
seu peito para trás. Os olhos escuros estavam confusos até as
pernas baterem na cadeira, Nickolay sendo obrigado a se sentar,
observando curioso meu olhar de vitória.
Eu também gostava de chocolate.
— Gosta, Don DeLucca? — Trouxe para a beirada da mesa o
pote antes de agarrar os cabelos pretos, sendo minha vez de puxar
os lábios grossos em direção aos meus. Parei a centímetros deles.
— Sabe, chocolate me lembra você. Tem um amargo bom. — Meu
dedo cheio de chocolate foi capturado pelo italiano, Nico o
chupando, os dentes roçando na pele quando afastei a mão. — É
viciante. — Me ajoelhei, meus olhos nos escuros, eu finalmente
abaixando sua boxer. — Quando você chupa, ele vai derretendo aos
poucos contra a língua.
— Alana…
— Você também derrete contra a minha quando eu te chupo.
— Ele engoliu, grudando as mãos nas bordas da cadeira, me
dizendo estar no limite do descontrole.
— Eu quem deveria estar no meio das suas pernas. — Eu
queria seu descontrole, meu marido ultimamente controlado demais
sempre que se enterrava em mim.
— Não sou a dona desse cazzo? — Eu queria seu
descontrole, e usaria de todas as armas que tinha para consegui-lo.
Peguei a calda, derramando por toda a cabeça, o chocolate
transformando Nickolay na única sobremesa que minha boca queria.
— Se eu sou a dona, eu que digo onde você tem que estar.
Meu gemido se juntou com o dele quando meus lábios o
envolveram, Nickolay e chocolate sendo uma combinação deliciosa.
O silêncio era algo esquecido agora, eu sentindo seus olhos em
mim enquanto devorava todo o açúcar.
Via os nós dos dedos brancos sempre que envolvia a cabeça
sensível, os suspiros se transformando em respirações rápidas
todas as vezes que aumentava a velocidade. Minha boca tinha
gosto de chocolate ao leite e ele, a ponta da minha língua provando
seu pré-gozo enquanto minhas mãos o masturbavam.
Gemi mais quando enfim tive suas mãos grandes entrelaçadas
nos meus cabelos, relaxando minha garganta para recebê-lo por
inteiro. Ele amava quando eu o engolia, e eu era viciada nos sons
que ouvia quando o tinha no fundo da minha garganta.
A voz dele era realmente linda, e o melhor dos afrodisíacos.
— Para. — Se ele ao menos parasse de se controlar tanto. —
Para, Alana. — E Nickolay me puxou para cima, o poder agora
sendo dele, eu parando sentada ao lado do pote com chocolate. —
Quando eu gozar, vai ser enterrado na sua boceta, contigo gritando
meu nome para toda a sua máfia.
Era incrível a capacidade que o homem tinha de calar todas as
minhas reclamações. Não vieram palavras dele, diferente da minha
vez, mas Nico não precisava delas para me contar o que iria
acontecer. Em silêncio, antecipava o meu destino, meu coração
batendo forte quando fui forçada a me deitar, minha calcinha sendo
abaixada, o italiano puxando a cadeira e se sentando.
Aquele homem me observava com olhos famintos, e ali na
mesa, ele me tratava como seu prato principal. Fui puxada para a
beirada, minhas pernas postas sobre seus ombros, a saia sendo
levantada. Escutei um gemido preso em sua garganta quando os
dedos traçaram a parte inferior da minha tatuagem, eu soltando um
muito mais vocal ao sentir o líquido pegajoso sendo derramado na
minha boceta.
Era sempre o meu controle que ia embora primeiro nos últimos
dias. Bastou a ponta do nariz tocar meu clitóris para eu imitar suas
ações de antes e agarrar os cabelos escuros, trazendo sua boca
para onde precisava dela. Nickolay realmente gostava de chocolate,
sugando e lambendo cada pedaço que havia lambuzado e me
impedindo de ficar quieta.
Sexo com ele me desnorteava. Já estava perto demais quando
a boca me deixou, meus olhos voltando a abrir apenas para vê-lo
tirando a gravata. Ele pegou a mão que eu só agora notei estar
usando para cobrir a boca, eu a abrindo mais quando notei o que
meu marido estava fazendo.
— Eu disse que quero ouvir. — E Nickolay amarrou meus
pulsos com a seda preta, voltando a me chupar enquanto me
segurava pela gravata.
Fechei as coxas quando senti o primeiro tremor, minha voz
aumentando conforme as sensações ficavam mais fortes, meu
corpo inteiro tremendo comigo gozando contra sua boca. Nico me
prendia contra a mesa com seu braço livre, a língua continuando no
mesmo ritmo até minhas pernas relaxarem. Merda, eu realmente
tinha gritado, e a expressão que ele usava ao se levantar me
contava que aquele não seria o único grito.
O que saía de mim quando ele roçou toda sua extensão pela
minha boceta era já bem próximo de um, o italiano fechando minhas
pernas, o pau deslizando pelo molhado. Os sons que nossos corpos
faziam eram tão bons quanto ele fechando os olhos e sussurrando
cazzo, Nickolay se debruçando sobre mim, suspirando satisfeito ao
me penetrar em uma estocada forte.
— Tão sensível, bella — saiu de seus lábios quando mais um
choro saiu dos meus, ele me beijando antes de voltar a ficar de pé.
— Tão doce. — Eu sempre era privada de palavras quando
mantínhamos aquele ritmo, meus pulsos ainda presos, o homem me
controlando inteira. — Melhor que chocolate.
Não que aquilo fosse novidade. Para Nico, poderia não ser
verdade, mas eu estava certa de que meu controle todo era dele. Eu
lhe dava tudo, minha entrega sempre rendendo ótimas
recompensas. As estocadas eram boas demais, ele finalmente se
rendendo a sua vontade e me fodendo como eu pedia fazia dias.
— Grita. — O pedido veio com ele abraçando minhas pernas
contra as tatuagens de seu peito, eu já conseguindo sentir o começo
de mais um orgasmo. — Grita que é minha, Alana. Grita para todo
mundo ouvir — Eu faria o que ele quisesse, desde que aquilo
continuasse. — Pra ninguém ser louco de sequer considerar olhar
pra você do jeito que eu olho.
Estava quase gozando, e ele sabia, assim como sabia que eu
obedeceria ao que ele mandasse. Abri a boca para cumprir sua
ordem quando dois dedos cheios de chocolate me calaram, o doce
contra minha língua sendo tão bom quanto seu pau me
preenchendo.
Gemi contra os dedos, Nickolay estocando mais rápido
fazendo minha boceta se contrair, eu querendo arranhar suas
tatuagens e precisando me contentar em morder seu indicador. E o
homem gostava da dor física quando vinha de mim, o responsável
pelos sons altos sendo o mafioso, ele jogando a cabeça para trás e
gozando comigo.
Meu coração ainda estava acelerado quando os olhos escuros
voltaram para os meus, Nickolay me deixando, eu exausta mesmo
sem ter feito esforços. Ele me puxou sentada pela gravata, nossos
líquidos escorrendo pelas minhas coxas, molhando a toalha.
A mão tatuada alcançou um guardanapo, Nico me limpando
enquanto eu me perguntava se continuaríamos ali, ou em casa.
— Se transar pra um restaurante inteiro ouvir faz parte do
pacote, ser a dona disso aqui não é tão ruim assim — admiti, meu
corpo ainda perdido nas últimas sensações, o toque suave de agora
me deixando mais mole. — Mas eu não gritei pra todo mundo ouvir,
gritei?
A cara que ele fez obrigou meu coração a palpitar, a resposta
que veio responsável por arregalar meus olhos.
— Teoricamente, essa sala deveria ter isolamento acústico.
— Teoricamente? — minha risada foi nervosa.
— Vamos descobrir quando sairmos dela.
Inacreditável. Eu tinha feito o homem perder completamente a
noção. Ainda estava de boca aberta quando meus pulsos foram
libertos, Nico colocando de volta minha calcinha, a barba roçando
na minha perna antes dele me colocar no chão.
Armando e Lorenzo nos esperavam quase em frente a porta,
eu lembrando da existência do resto do mundo agora que mais
pessoas nos rodeavam.
Mas, andando entre as mesas, todos comiam em silêncio.
Nem parecia que Nickolay tinha me feito gritar para um restaurante
inteiro. Os milagres de salas com isolamento acústico.
— Não tem. — Os mais velhos andavam alguns passos à
nossa frente, dois seguranças atrás, e meu rosto estava pegando
fogo.
— Mas todos estão quietos. — Nico, com certeza, estava
enganado, ou eu que havia entendido errado.
— Acha que alguém vai reclamar, dolcezza? — Ele realmente
tinha perdido a noção, e o pior: tinha levado o pouco que restava da
minha com ele, eu com vergonha, mas aberta a repetir o feito, caso
houvesse a chance. — Acha que alguém se atreve a olhar torto para
o dono, além desses dois na nossa frente?
— Nico, eu... — Diminuí a voz, sussurrando apenas para ele
ouvir, diferente de minutos atrás. — Eu realmente gritei.
Tinha um sorriso bonito demais nos lábios grossos.
— As vantagens de ser um Don.

A Itália era simplesmente estressante, e eu queria estar em


qualquer lugar, menos no país que um dia chamei de casa. Quem
era minha casa agora corria da cama para o banheiro, uma já rotina
matinal, o chá de gengibre feito por Barbara a esperando na mesa
de cabeceira.
Tudo que queria era passar a manhã me certificando de que
tudo estava bem com minha mulher, mas as obrigações me
obrigavam a abotoar a camisa.
— Muito enjoada? — perguntei quando a notei atrás de mim,
os braços finos rodeando minha cintura.
— Nah, o normal. — Os olhos mel acharam os meus pelo
reflexo do espelho. — Você tá acordando cedo.
— Preciso estar no porto em meia hora. — Tudo que eu
gostaria de adiar com ela enrolada em mim. — Quer que eu peça
para te trazerem o café da manhã?
— E se eu tomar um café café? — O pedido vinha
esperançoso. — Aqueles com cafeína, sabe? Que você toma todo
dia?
Alana bufou assim que viu que era o não que viria de mim.
— Mais uma semana, e temos um ultrassom. — Me virei,
tirando uma mecha de cabelos que cobria uma parte do rosto
pequeno, ela tendo dormido com uma das minhas camisetas antes
de eu ter chegado na cama noite passada. — Consegue aguentar
até a médica? — Tão doce, mas sabia que, se Alana quisesse, ela
conseguiria me matar.
O olhar que eu ganhava me confirmava aquilo, eu quase com
medo de continuar.
— É a melhor da Sicília, dolcezza. Se ela disser que pode
tomar um café por dia…
O celular andava tocando nas melhores horas, ultimamente.
— Melhor atender — veio com um bico, Alana voltando para a
cama.
— Não fique brava. — O nome Dimitri brilhava na tela. Cazzo.
— Eu volto com o que quiser que traga. Me mande por mensagem.
Não queria ter saído do quarto. Atendi o telefone já descendo
as escadas, o relógio de parede marcando sete da manhã, eu de pé
desde as cinco.
— DeLucca.
— Levina. — Como alguém conseguia ser tão irritante
somente pelo tom de voz?
— Não estou sendo rápido o suficiente para seu chefe? Eu mal
cheguei nesse cazzo.
— Três semanas não é mal chegar — ele riu. — Na verdade,
três semanas está mais para um mês de enrolação e…
Se ele falasse incompetência, eu atravessaria o telefone.
— Sabe o que se deve fazer quando se quer um trabalho bem-
feito? — Ele me deu silêncio, como se a resposta não fosse óbvia.
— Fazê-lo sozinho.
— Não quer o Pakhan aí, Morte. — Respirei fundo, tentado
demais a jogar o celular contra a parede. O Pakhan era meu irmão,
e ao mesmo tempo, a última pessoa que considerava família. —
Devo falar com seu papà[36], ao invés de com você, da próxima vez?
Era difícil aceitar que quem dividia o mesmo sangue que eu
não se importaria com o meu derramado. Não deveria ser difícil, já
na máfia por tempo demais para aquilo ser novidade. O amor de
Alana realmente me fazia mais inocente.
— O que Alexei precisa tanto com políticos? Liberar os
carregamentos russos não é o suficiente? — Alcançava o maço de
cigarros que disse que pararia de fumar e ainda não o fiz quando
continuei. — Já arrisco comprar a merda de uma briga com metade
da Sicília o fazendo sem nada em troca.
— Seu irmão não te entregar para a polícia canadense é uma
troca justa. Deixar quem ele chama de bastardo e sua família em
paz, também. — Era engraçado como o tom de Dimitri parecia
caçoar até do chefe. — Ao menos, é o que ele acha.
O Zippo tinha ficado na cômoda do quarto. Cazzo.
— Vou ter paz depois de conseguir o que ele quer?
— Isso você só vai ficar sabendo quando o chefe conseguir.
Arrivedechi[37], Morte. — Levina não esperou antes de desligar.
Estava entre subir para pegar o isqueiro e acender o Marlboro
no fogão da cozinha quando uma mão tatuada me deu uma terceira
alternativa.
— Mantovanni vai ficar com sua mulher. — Armando avisava,
eu não querendo, mas acendendo o cigarro com seu isqueiro. —
Acho que sirvo melhor do que ele para os trabalhos de hoje.

A manhã passou sem mensagens dela, burocracia sendo um


porre, eu querendo estar no inferno e não resolvendo problemas.
Armando dirigia e insistia em falar algo, mas minha mente estava a
quilômetros dali, minhas pernas inquietas querendo me livrar do
almoço que teria.
— Não fique distraído.
Inacreditável.
— Quem acha que é para me chamar a atenção? — Mas eu
forcei minhas pernas a pararem de mexer, assim como guardei o
celular de volta no bolso da calça.
— Seu braço direito. — A resposta veio com ele fazendo a
curva, nós mais perto do que eu gostaria de começar a reunião que,
se dependesse de mim, adiaria por toda a semana. — Seu
segurança, a pessoa que vai te manter vivo, o maldito, como quiser
chamar. Só lembre que é mais fácil manter um Don, caçado por
metade da Espanha e boa parte da Itália, vivo, quando ele colabora.
Cruzei os braços, odiando admitir qualquer derrota justo para
ele.
— Quem está com Alana?
— Lorenzo. — Revirei os olhos: aquilo, eu sabia.
— Quem mais?
— Matteo. — Levantei as sobrancelhas, Armando finalmente
perdendo sua nova paciência, tão ausente em seus últimos anos
comigo. — E mais todos os seguranças que não estão no carro
detrás, o que é mais da metade que temos.
— Quem é de confiança?
Paramos na frente do único restaurante espanhol da região.
— Espero que todos.

— Don Morte.
Sol Garcia era uma cópia de seu irmão, Teo Garcia. Nenhum
dos nomes impunha qualquer respeito, os dois soando fracos no
meu meio. Ambos queriam me matar. Teo tinha mais chance quando
vivo.
— Garcia. — Sol, com certeza, queria fazer eu me juntar ao
gêmeo falecido. Ele só estava procurando um motivo, e eu
precisava me lembrar disso todos os segundos.
— Sozinho hoje? — Os olhos castanhos estreitaram quando
me sentei, o homem tão confortável quanto eu estava por dentro.
A morte de Teo foi a gota que me levou para o Brasil. De um
certo modo, tinha que agradecer Sol por ter mandado justo o irmão
inconsequente para o meu país: o morto me fez achar toda a minha
vida de volta.
— Acompanhado o suficiente. — Tinha motivos para mantê-la,
agora. — Mas me viro bem sozinho. Acho que ainda lembra o quão
bem.
— Bem demais. — O garçom serviu água de uma jarra, os
copos transparentes suando com o líquido gelado. Já era quase
maio, a primavera na Itália sendo quente o suficiente para o gelo ser
necessário. — Nem as balas têm coragem de te acertar direito.
Olhei ao nosso redor, o pátio aberto tirando um pouco do meu
conforto. Armando estava no meu campo de visão, tê-lo como meu
segurança sendo reconfortante e irritante ao mesmo tempo. Não
queria depender dele, mas confiar a vida a um assassino melhor do
que eu me acalmava.
— É um almoço de negócios, ou mais um de boas-vindas? —
Com certeza, acalmava Alana. — Minha agenda não está
exatamente livre hoje.
— Então considero uma honra a hora que vamos gastar. — A
mão limpa de tatuagens foi levantada, um atendente se
aproximando, eu inclinando a cabeça, sentindo o cheiro da comida
antes de ver o prato. — Aqui eles servem a melhor Paella da Sicília.
— A Paella daquele restaurante era uma merda, a quantidade que
nos era servida passando do suficiente para uma mesa cheia. —
Compartilhar o prato é uma tradição na sua Famiglia, estou certo?
Preferia o borcht da minha mulher.
— O que quer, Garcia? — Além de me matar, pensei.
O moreno brincou tempo demais com um marisco antes de
colocá-lo na boca, os olhos voltando a subir para os meus.
— Por que abriu os portos para os russos, mas não abre para
seu vizinho?
— Porque os russos não me tiram clientes. — Era mentira,
mas ninguém de fora tinha conhecimento daquela informação, e eu
faria de tudo para que não soubessem.
— Mas tiram meus. — Ele fez o que mastigava descer com a
água, eu não tendo coragem de colocar nada na boca. — E se eu
perco dinheiro por causa de italianos, acho justo vir buscar o que
perdi na Itália.
Odiava Paella, e odiava espanhóis. Teria que aturar os dois, e
abri o guardanapo branco no meu colo.
— Quer recomeçar a guerra que eu botei um ponto final? —
perguntei enquanto mastigava aquilo. Dava para ver na minha cara,
eu sabia, o quanto estava desgostando de toda a situação.
Bem, não precisava esconder meu desprazer.
— Você começou da primeira vez, talvez agora seja o meu
turno. — Sol me lembrou do quanto eu odiava receber ameaças,
minha boca secando com a comida ainda nela. — Quero saber o
que a irmandade russa tem, que nós espanhóis não temos. —
Alcancei a água: talvez fosse mais fácil dizer o que eles não tinham.
Juízo era mesmo algo para poucos. — O novo Pakhan é um
incompetente. O pai nunca quis que ele assumisse. Viveu até o
último minuto procurando o filho perdido, e isso deve ter feito o mais
velho surtar. — Era impossível não lembrar da única vez que vi
Nikolay Demidov. — Porque se achamos você louco, Morte, o novo
chefe é três vezes mais instável.
— É engraçado. — Eu ri: não tinha graça. — Chama o russo
de louco, mas aqui está tu, arriscando manter essa boca aberta
quando pode sair daqui sem a língua.
Se não tivesse vivido no meio, o gesto feito pela mão sem
tatuagens teria passado despercebido. Sol tinha tinta apenas nos
braços, tinha dois seguranças disfarçados atrás dele — eu tinha
quatro — e a mira de uma arma de precisão no meu peito.
Não enxergava mais Armando. Cazzo.
— Basta um sinal.
E eu, esperando que não houvesse sangue naquela quinta.
— O que quer que eu faça? Que eu comece uma guerra com
os russos? — Queria que minha água fosse vinho. — Acha que a
loucura de Alexei vai parar em mim? — Que fosse vinho o que
acabaria manchando meu guardanapo.
Nunca entendi o porquê da cor branca. Guardanapos escuros
devem ser muito mais fáceis de se manter num restaurante que
vende pratos feitos para manchar. A camisa preta que eu usava não
mancharia caso o tiro me acertasse, assim como continuaria preta
caso decidisse fazer Sol se juntar ao irmão.
Se a luz vermelha não saísse do meu peito, eu pintaria da
mesma cor muito mais do que o tecido branco que segurava. Garcia
também usava um colete à prova de balas? O que eu usava era o
suficiente para parar o tiro do rifle? Duvidava ser, mas não seria
meu primeiro tiro no peito.
— Você é um louco competente, Morte. — Também duvidava
da competência do homem sentado à minha frente, e eu contava os
segundos para acabar com sua confiança. — Loucos incompetentes
não sobrevivem as coisas que você sobreviveu.
— Sou difícil de matar. — E era sábio da parte de todos não
considerar comprovar aquilo.
Houve minutos de silêncio antes da boca voltar a abrir, eu
descobrindo ter achado uma voz mais irritante que a de Levina.
— Sabe, eu ouvi dizer que Alexei está noivo. Já era para o
homem estar casado, mas a mulher escapou. Ele virou uma piada
para muita gente. — Levantei as sobrancelhas, esperando uma
continuação. — A mulher está escondida aqui. — Daquilo, eu não
sabia. — Ou pelo menos, é o que dizem os boatos que correm. O
Pakhan tem homens para tudo, mas parece que a donna é mais
competente que todos eles juntos.
De repente, fazia muito mais sentido o interesse do russo no
país.
— E o que me interessa saber que o homem é um
incompetente?
— O que seus homens vão dizer quando souberem que o cara
que a Morte anda lambendo é um inútil? — Ameaças eram mesmo
uma das coisas que eu mais detestava.
Precisar reconhecer o quanto meu pai era um assassino
competente estava entre essas coisas. Eu não ouvi o tiro, mas sabia
que a luz vermelha tinha sumido porque quem a apontava não
estava mais nesse mundo. Fechei os olhos, esvaziando o copo
d’água antes de focar na camisa colorida ridícula que o espanhol
vestia.
Quase não dava para perceber a mira da arma de precisão no
meio daquela estampa pavorosa, mas eu a via brilhar, bem sobre o
coração. Sol ainda permanecia ignorante ao quão perto da morte
estava.
— Como gosta disso? — Limpei a boca com o guardanapo, o
jogando sobre a comida que me negava a terminar. — Tem gosto de
merda. — Demorou pouco para o homem entender o que estava
acontecendo. — Não está mais tão confiante agora, vero?
Demorou tão pouco quanto para vir uma resposta.
— Acha que eu te revelei minha mão inteira? — Sabia que
não, assim como tinha total confiança em quem dividia o mesmo
apelido que eu.
Aquilo sim me fazia querer rir: além de não conseguir odiá-lo
por ser um dos responsáveis por minha mulher ter nascido, confiava
no puttano quanto a me manter vivo. Eu confiava nele.
— Se eu morrer, morre também. — Saiu com toda a calma que
possuía, eu permanecendo sentado enquanto ouvia a cadeira de
Sol se arrastar no chão rústico do restaurante.
— Eu vou explodir todos os navios que tiverem mercadorias
russas. — A expressão era raivosa, eu duvidando que havia outro
atirador de elite em um dos telhados. Por mais que o cão espanhol
tivesse ameaçado, ele parecia apenas latir. — Estando no meu, ou
no seu território.
Só que descobrir se o animal mordia não estava nos meus
planos. Era detestável ter que deixá-lo ir embora respirando, e era
detestável como, em poucas semanas, eu me tornava outra vez
quem o amor de Alana tinha apagado.

No começo do dia, realmente tinha esperança de chegar antes


da janta.
— Descobriram quem informou Garcia — entrávamos no carro
quando escutei de quem foi minha sombra durante todo o dia.
— O matem.
— Nickolay. — Reprovação vinda de Armando me deixava
muito próximo da loucura.
O que talvez fosse bom: eu precisaria de todos os sentimentos
ruins para voltar a ser meu passado. Alana me deixava são demais,
e pessoas sãs não querem explodir outras. Pessoas sãs não
querem exterminar um sobrenome espanhol.
— São seis da tarde. — Ainda assim, nem mesmo um louco
não desejaria voltar para ela no fim de um dia eterno demais.
— Um Don não tem horário. — Um Don parecia não ter vida,
eu querendo saber quem em sã consciência escolheria viver o que
para mim não era uma escolha.
Eu não era para ter almoçado com Garcia naquela manhã,
muito menos ter finalizado a refeição trocando ameaças com o
chefe espanhol. Aquela organização não era para estar sabendo
sobre aliança alguma de minha parte com Alexei, a informação que
me foi dada de graça sobre minha futura “cunhada” tentadora
demais para eu não investigar.
Ao mesmo tempo, confiava desconfiando no dito, e sabia que
qualquer que fosse a pessoa responsável por vazar a informação,
deveria morrer. Eu não esperava ver justo aquele homem de joelhos
ao entrar no galpão.
Puttana vita[38].
— Incrível como traições sempre vem de quem tenta ser
próximo de mim. — A arma já estava na minha mão, mas o que eu
menos queria era puxar o gatilho. — Benetti. Por quê?
— Não fui eu!
Ele não tinha ideia de como as mentiras faziam qualquer
bondade que existia em mim, evaporar.
Cocei a barba, Armando ainda parado na entrada, a arma
prateada já destravada na mão direita. Havia dois homens
mantendo o capo de joelhos, e eu me perguntava quantos
problemas uma bala no meio daquela testa branca traria. Quantas
complicações a falta de uma poderia trazer. Quem me caçaria por
aquela morte, e quem planejaria a minha se eu o deixasse vivo?
— Então o que é isso? — E pela tela do Iphone, mostrei tudo o
que eu sabia: ele e Garcia, o mesmo almoço que eu tive, porém
com um desfecho muito melhor.
Ao menos tinha sido para Pietro Benetti, no dia em que ele
trocou um aperto de mão com o chefe espanhol.
— Por quê? — Eu sabia o motivo. — Quando que o que a
Famiglia te dava deixou de ser o suficiente?
Porque nesse meio, todos sempre queriam mais. E a partir do
momento que alguém via novas oportunidades em um lugar mais
confiável, a troca era feita. Sol Garcia queria me matar, e para o
homem de joelhos, eu não era digno de qualquer confiança, muito
menos lealdade.
Grazie a Dio[39] nem todos pensavam assim, o soldado que o
havia derrubado tendo sido muito bem comprado por mim no
começo da semana.
E eu, achando que a traição viria do puttano que abriu a boca
no último jantar.
— Minha mulher está grávida, Don DeLucca…
— E? — Odiava quando tentavam me ganhar com aquele
emocional, minha situação parecida demais com a do quase morto,
ele trazendo Alana para onde eu a queria manter longe. — Garcia
ameaçou sua mulher? Parece que é tu o homem a ir atrás do
espanhol, e não o contrário.
Reconheci nos olhos o momento que o capo entendeu que não
haveria uma alternativa. Era engraçado — para não pensar em
trágico — ver como alguns deles simplesmente desistiam. Benetti
sabia que não tinha como escapar vivo, assim como lembrava do
detalhe que Matarazzo sempre insistiu em cumprir.
— Acabe comigo agora, Morte. — Era o único que eu não
queria dar continuidade, por mais que o assassino que permanecia
longe já tivesse me avisado ser contra aquela decisão. — Não as
mate. Por favor.
— Eu não mato mulheres. — Lorenzo também havia me
aconselhado a continuar, o medo sendo o melhor jeito de comandar
aquela organização e evitar traidores.
Nem mesmo queria eliminar quem implorava para deixar sua
família viva, meu coração desconfortável só de considerar a
possibilidade contrária: poderia ser eu ali. Alana e as mãos
pequenas que viviam em sua barriga insistiam em me atormentar
agora.
Armando finalmente se aproximou, o cano da arma prateada
prestes a colar na testa quando um dos soldados abriu a boca.
— Deixe o Don matar. — O moleque era novo, talvez dois
anos mais velho que Mattia, eu ver alguém parecido demais com
família sendo tudo que não queria. — Me disseram que é a parte
que o senhor mais gosta.
Olhos cansados pararam nos meus, e eu soube que, caso
hesitasse em puxar minha arma, ele mataria tanto quem estava de
joelhos, quanto os dois que o mantinham assim. Aquele menino era
tão novo, e eu não era um idiota sentimental antes dela. Eu também
vivia dopado antes de minha mulher, e sem sentir, socar uma
pessoa até a morte era muito mais fácil.
Então eu puxei Alana para o mais longe que consegui,
destravei a pistola que carregava comigo, apontei e atirei.
Pietro morreu de olhos abertos. Menos de dez segundos após
reunir coragem para aquele fim, e Garcia não tinha mais qualquer
informante meu. Ao menos, era o que esperava, por mais que
aquela traição pesasse. Foi bom ter escolhido preto para o dia, no
final: sabia que aquele tinha sido menos vermelho do que alguns já
próximos seriam.
— O primeiro homem que considerei um amigo em anos —
menti, eu não o tendo considerado mais do que um meio para
chegar aonde queria. — Não pensem que me tornei um frouxo: hoje
foi um tiro porque eu não tinha nada para arrancar desse pedaço de
merda. Já estou atrasado o suficiente para perder mais tempo com
traidores. — Me agachei, limpando no morto o sangue que havia
espirrado na arma, uma poça pegajosa manchando o chão de
concreto, os olhos abertos me atormentando. — Mas para o
próximo, se houver próximo, eu vou arranjar tempo. Eu vou arranjar
um dia inteiro — falei sério, gostando do medo que vi nos dois vivos.
— Limpem essa merda.
A arma voltou para meu paletó, os passos atrás de mim me
avisando que Armando seguia junto para fora. Já estava escuro, eu
estava com fome, e alguma felicidade voltava: o dia, afinal, tinha
acabado.
A noite, não.
— Don Morte. — Aquele homem eu ainda não havia visto, a
desculpa de férias lhe tomando um mês inteiro, o capo mais próximo
da idade de Lorenzo do que da minha. — Nunca acreditei que
estivesse morto. O grande Nickolay, descuidado o suficiente para ir
num acidente de carro? — A risada rouca encheu meus ouvidos,
Adrianno Carmine me olhando com um certo orgulho. — Impossível.
Quem parava atrás de mim me encarava com menos
sentimento que um estranho, a cena de tantos anos atrás se
repetindo outra e outra vez na minha cabeça. Eu não era fraco para
entrar na família. Puxei o gatilho na sua frente, e ainda estava
inteiro.
— Meu pai foi no mar.
Me perguntava todos os dias quando começariam a desconfiar
do homem que era quase minha sombra, e nunca tirava os óculos
escuros. Todos realmente acreditavam que Armando estava morto?
— Seu pai se tornou descuidado após a morte de sua mãe. —
A resposta veio com ele caminhando comigo em direção ao meu
carro. — Ou da puta que ele comia. Se é que a puta também
morreu.
Eu não podia me mostrar afetado com o ouvido, por mais
geladas que tivessem ficado minhas mãos. Mas estreitar os olhos foi
inevitável, me conformando que parecer que eu queria matá-lo era
melhor do que mostrar algum receio.
Eu queria matá-lo. Ele havia xingado, afinal, a mãe biológica
da minha mulher. Poderia até mesmo matá-lo, e teria um bom
motivo.
— Perdão, Don DeLucca. — Mas ninguém sabia de Carina. —
São apenas rumores, eu não deveria…
— Fale. — Ninguém, a não ser meu braço direito, que vivia
mudo para todos.
Mesmo sem olhar, sabia que os pensamentos de Armando não
estavam muito longe dos meus. O homem, de cabelos raspados,
lentes de contato e óculos escuros sempre grudados no seu rosto,
não fez um som, mas imaginava que por dentro ele estava em
ebulição, como eu ficaria.
Armando controlava muito melhor as emoções do que eu. Pelo
menos, para todos de fora de sua família.
— Um dos homens, era um menino na época, diz ter sido
vizinho de uma garota. Seu pai entrava dia sim dia não no
apartamento. A garota era uma imigrante, com certeza prostituta. —
Se ele soubesse o risco que corria ao continuar falando, teria
prendido a língua. — Eles não eram exatamente quietos, mas quem
vai reclamar do barulho de um assassino?
— Nome.
— É o Rato. — Era quem eu sabia agora trabalhar para
Garcia.
— Então acredita em rumores de espanhóis? — Não
considerava mais o homem italiano.
— Claro que não — veio confiante, o homem me dando um
meio sorriso. — São, como eu disse, apenas rumores.
A insanidade de Matarazzo quanto às coisas, entendia um
quarto dela depois do dia de hoje.
— Desviou do seu caminho para contar rumores ao Don? —
Mais um sorriso, agora largo, um dente dourado aparecendo.
— Ouvi dizer que gostaria de conhecer o prefeito.

Passava das onze da noite quando entrei no carro, me


sentindo drenado, a quinta feira parecendo ter durado um ano
inteiro.
Estávamos a caminho de casa quando soltei a pergunta que
não conseguia mais calar.
— Como consegue ouvir tudo quieto? Realmente a amava? —
Vi os nós dos dedos empalidecendo, Armando agarrando o volante,
eu me perguntando se finalmente brigaríamos. — Eu teria acabado
com ele se sequer ouvisse o nome da minha mulher.
Era a primeira vez que brigar não era meu intuito. Houve uma
breve quietude, o mais velho parecendo considerar ou não
responder.
— Alana foi o maior amor que minha mulher teve. — Os olhos
continuaram na rua de paralelepípedos. — Ninguém sabe quem eu
sou, e eu preciso do silêncio para manter a anonimidade, Nickolay.
Não se engane, eu quero destruir todos que abriram a boca para
falar de Carina. Talvez o faça quando se tornarem descartáveis. —
E uma respiração funda, antes dos mel pararem em mim. — Mas
não concorda comigo que os filhos devem vir em primeiro lugar? —
E outra vez, eu precisava concordar com o defunto.
Eram onze e meia, e o celular vibrando no meu bolso me fez
lembrar do contato que me obriguei a não checar por todo o dia. Ah,
Cazzo.
— O que foi?
— Disse que traria qualquer coisa que Alana pedisse. — Eu
não tinha checado, e ela, com certeza, me pediria algum desejo
impossível de realizar nos cinco minutos que faltavam para chegar
na mansão.
— E o que ela quer?
Em vezes como aquela, gostava de descobrir estar errado. O
dia havia sido eterno, e depois de horas demais neutro, eu olhava
para a tela do celular e sorria.
“Traga você.”

Alana estava dormindo quando entrei, eu decidindo que um


banho antes de me juntar a ela seria a melhor coisa a se fazer. Ao
menos amanhã seriam apenas preocupações que povoariam minha
cabeça, a ausência de compromissos me deixando ficar em casa, o
dia podendo começar bem depois do que o de hoje começou.
A camisola de seda caía bem no corpo da minha mulher, meus
olhos reparando na alça que escorregava quando enfim me deitei. A
abracei por trás, o suspiro satisfeito me confortando, Alana deixando
meu corpo se moldar no dela, meus lábios no seu pescoço.
— Desculpe por ter demorado. — O cheiro dela era meu
melhor calmante, minhas mãos agora limpas indo para baixo da
seda e achando sua barriga.
— Desculpa pelo mau humor matinal. — As mãos pequenas
pararam sobre as minhas, a voz saindo rouca. — Uma vida sem
café é uma vida difícil. — Ela finalmente se virou, e eu finalmente
pude parar de esconder como havia sido meu dia. — O que foi,
Nico?
Estava exausto. E ela via bem demais o que eu deixava
transparente.
— Agora entendo o que queriam dizer. Sobre ter alguém para
quem voltar. — A puxei para um abraço, continuando com o rosto
escondido nos cabelos longos. — Torna mais fácil. Saber que
preciso voltar para as duas torna mais fácil colecionar tatuagens. —
Sabia que minha mulher tinha entendido. — Ainda vai se orgulhar
de mim nessa vida?
— Que pergunta, italiano. — Os braços finos apertaram ao
meu redor, eu não merecendo a resposta que vinha. — É claro que
vou…
— E quando eu tiver que matar alguém que considera
inocente? — Os olhos mel acharam os meus, as mãos brincando
com meus cabelos ainda úmidos, como se quisessem compensar a
falta de palavras. — Existem homens que traem a máfia porque
querem sair dela. Eles são bons, e eu vou ter que matá-los. Eu vou
me tornar esse monstro, Alana. Como vão se orgulhar de um
monstro?
E outra vez, a colocava numa posição onde precisava aceitar
um assassino. Vi a testa enrugar, sempre esperando que ela, enfim,
tivesse entendido o que eu era. A gravidade do que eu fazia.
Eu nunca conseguiria compreender como Alana me deixava
tocá-la sabendo das vidas que eu tirava.
— Nico — ela começou numa voz calma, como se estivesse
treinando explicar coisas complicadas para quem ainda mal era
notada. Minha mulher seria uma mãe fantástica. — Se for pra
proteger a minha família, eu mato também. Está ouvindo? — Mas
eu sempre me perguntava o quão bom seria como pai. — Eu atiro
sem dó, por nós três. Eu nunca vou te ver como esse monstro que
você insiste em dizer que é.
— Mas quando mato, eu não estou protegendo…
— Tá fazendo o quê, então? — Alana me interrompeu, o dedo
de sempre pressionado contra meus lábios. — Virando o chefe, indo
contra tudo que sei que sonhava em nunca mais fazer, só pra
termos uma chance do normal. Acha que isso é o que? Nunca
ninguém me protegeu como você protege. Esse monstro que tem
medo de virar, eu me torno ele sem pensar duas vezes por vocês
dois. — Ela aproximou o rosto do meu, nossos narizes quase
tocando. — Eu te amo, mesmo coberto de sangue.
Respirar aliviado era bom.
— Só isso que me importa. — Não nos neguei mais o beijo
que eu queria, os dedos dela agarrando meus cabelos, o cheiro de
framboesa me deixando sonolento. — Só isso, Alana. I el resto no
me vale um cazzo[40]. — O bocejo impediu mais um beijo, mais um
dia que todos os afazeres me impediam de tirar sua roupa. — Estou
exausto.
Alana não se importar era bom e ruim.
— Pode descansar. — Era outra vez ela quem me envolvia
com os braços, e deixei minha cabeça descansar contra seu peito.
— Quando acordar, eu vou estar aqui pra você.
Era tudo que eu precisava para fechar os olhos e dormir.

Não era como se eu não soubesse onde estava metida.


Olhando para todos os empregados e seguranças ao meu redor, eu
sabia que agora poderia me considerar podre de rica. Eu sabia que
era podre de rica, assim como tinha certeza de que todo o dinheiro
que me cercava era podre.
Mas não era sobre aquilo que eu, exatamente, reclamava.
Não, eu escolhi aceitá-lo, sabendo que Nico seria o único por quem
meu coração conseguiria pedir durante toda a vida. Eu não estava
incomodada em gastar dinheiro de sangue.
Eu estava incomodada em não poder dar um passo para fora
da mansão antes de mil permissões. Dirigir? Não mais. Não deveria
nem considerar andar pela praia particular sem companhia, o
italiano tendo me pegado fazendo aquilo e quase tendo uma
síncope.
Nickolay estava fora com Lorenzo desde a manhã, e morrendo
de calor num sol quente, como era o de São Paulo, eu andava até
minha única alternativa de liberdade.
Se eu começasse com um “você me deve isso”, seria mais
efetivo do que chegar quase chorando? As lágrimas sempre
ganhavam Nico, mas duvidava que as lágrimas dele tivessem
ganhado o seu pai anos atrás.
Resolvi por ser direta.
— Eu preciso sair.
Armando parou de falar com os dois seguranças quando eu
comecei, ele me olhando curioso por detrás dos óculos escuros.
— Para?
— Não ficar louca. — Também decidi que a sinceridade seria
um bom caminho a ser seguido.
Eu, sinceramente, esperava que fosse ser mais difícil.
— Ok. — Ele tirou as chaves do carro do bolso, apontando
para o veículo preto que me levava para todos os lugares sempre
que meu italiano estava ausente. — Está pronta?

Só descobri o quanto precisava de um momento de falsa


normalidade quando o tive. Falsa, porque eu sabia que o que eu
fazia era tudo menos normal: tomava um cappuccino, sentada em
uma mesa no pátio da cafeteria, um croissant e geleia ocupando o
prato de cerâmica. O retrato da normalidade siciliana, não estivesse
do lado de um homem que portava pelo menos três armas, com
mais pelo menos dois seguranças escondidos nas proximidades.
Mas talvez, aquele fosse o retrato da normalidade na Sicília.
Minha bebida estava boa, sendo normal ou não.
— Nico vai me matar se descobri que tomei café — deixei
escapar com um sorriso que deveria ser no mínimo travesso, aquela
sendo a primeira vez que sorria com ele desde a tarde que descobri
quem era Lucca.
— Carina tomou vários, e aí está o resultado. — Armando
apontou para mim com o nariz, num tom de pouco caso. — É só um
cappuccino, Alana. — Ele não tinha mais coragem de me chamar de
bambina.
E eu não deveria reparar nos detalhes dele, mas aproveitar
meus únicos instantes normais. Reparar nele estava tirando a pouca
normalidade que eu teria em toda a semana.
Não esperava que uma frase pudesse me dar tanto, eu não
querendo mais qualquer sentimento normal, trocando fácil minha
normalidade por uma continuação.
— Esse lugar era o favorito dela. — Eu sabia a quem o homem
se referia, e meu coração apertou um pouquinho. — Nunca entendi
se era por ter sido seu primeiro trabalho na Itália, ou se ela
realmente tinha um paladar estragado.
Olhei ao redor, aquela se tornando minha cafeteria favorita de
todo o mundo, meu peito se enchendo de culpa. Era tão injusto o
conflito que eu sentia sempre que pensava nas minhas duas mães.
— O café não é tão ruim. — O aperto que eu sentia, sim.
— Com os quilos de açúcar que põe, ele pode passar perto do
aturável. — Estreitei os olhos, os dele desviando para a rua pouco
movimentada.
— Quer dizer que — comecei, minha voz baixa, eu não
sabendo se deveria ter medo de abrir a boca para aquilo. — Minha
mãe trabalhou aqui?
Eu deveria, sim. Deveria, porque agora, tudo em que minha
mente conseguia pensar era em todas as perguntas que eu queria
fazer. Todas para as quais Nico não tinha uma resposta, mas o
homem sentado ao meu lado talvez tivesse até duas. Não esperava
que fosse ganhar tanto.
— Passei quase um ano tomando cappuccinos aqui, apenas
para poder olhá-la. Eu odeio cappuccinos, e Carina nunca via meus
olhos nela. Ali, ela sempre estava ali. — A mão tatuada apontou
para uma das mesas, vazia. — Todas as vezes que eu a olhava, ela
não notava. Eu sempre notei os olhos castanhos em mim. Carina
era tão óbvia. Ela era sincera demais com o que sentia. Fazia parte
de sua beleza.
— Por que você a beijou? — Saiu antes que eu me desse
conta, ele me respondendo com outra pergunta.
— Por que beijou meu filho?
O certo teria sido me limitar a um “não te interessa”, eu não
querendo lhe dar nada sobre o menino que tinha abandonado. Mas
era difícil demais me calar quando o assunto era Nickolay.
Lembrei da manhã na cozinha dele, da vontade que tive de
descobrir se os lábios que bebericavam do café eram suaves.
— Porque eu precisava saber o gosto que os lábios dele
tinham.
— Hum. Posso dizer que fiz pelo mesmo motivo, então. —
Revirei os olhos, e era irritante me lembrar como ela escrevia que
ainda tinha gosto de café com leite quando eles se beijaram pela
primeira vez. — Odeio cappuccinos, mas tomei um por dia, até meu
último dia com ela — a voz parecia um lamento, e eu comeria todas
as balas de canela do mundo se aquilo me lembrasse Nico.
A foto que veio foi uma surpresa que encheu meus olhos
d’água. Era dos dois, talvez antes de mim, Carina beijando a
bochecha sem barba, os olhos mel a olhando de canto. Armando
dava um sorriso pequeno na foto, o mesmo que me dava agora ao
estender o papel para mim.
— Aqui. Pode pegar — a continuação veio quando hesitei.
— Ela era linda. — Quis rir: sentia como se eu estivesse me
elogiando. A mulher era mesmo assustadoramente parecida
comigo.
— Ela era. — Um suspiro. — Queria que ainda fosse. — A
frase veio junto de uma expressão aliviada, como se o homem
confessasse aquilo pela primeira vez.
Eu não esperava ver as fotos caídas no chão, as alcançando
antes dele, entendendo que a mulher o distraía o suficiente para
aquilo ter passado batido. A primeira era dos três, uma imagem que
eu nunca pensei que poderia ver: Armando, Victor e Nickolay na
praia, e me perguntei quem a havia tirado. A segunda me roubou as
palavras.
Era o homem e Nico, em seus dois ou três anos, a criança
agarrada no pescoço do pai como se ele fosse seu tudo. E Armando
retribuía, porque não tinha como fingir aquele amor que eu via nos
olhos, a cor mel agora sempre coberta por uma castanha. Não tinha
como, e o homem carregava um pedaço do meu na carteira.
Talvez não coubesse a mim falar aquilo, mas ficar quieta era
impossível.
— Você não vê. — Olhei mais uma vez para os dois, antes de
olhar para ele. — Mas eu vejo. Todas as vezes que ele acha que
ninguém tá olhando, e te olha. Eu sempre tô olhando. Eu sempre
vejo o quanto ele busca qualquer aprovação em você, apesar de
tudo. Por que não dá um pouquinho disso pra ele? Eu não quero a
sua aprovação, eu não preciso dela!
O suspiro era o de alguém cansado.
— Eu sei o que estou fazendo, Alana.
Armando me dava vontade de gargalhar, só que de um jeito
ruim.
— Não, não sabe! Se soubesse, iria olhar pra ele assim, e não
pra mim! — Ele coçou a barba, como o meu italiano fazia, e eu me
perguntava se Nico se atentava a todas as similaridades que
copiava do pai. — Por que me olha assim?
— Porque, depois de vinte e quatro anos, eu vejo outra vez o
pedaço que falta em mim. E ver Carina é… — O homem esqueceu
das lentes ao coçar os olhos, os óculos escuros voltando para o
rosto. — Confortável. Vê-la é a coisa mais confortável que tive em
anos.
Armando alcançou o expresso já frio, eu não sabendo o que
responder para aquilo.
— Eu amo a fantasia que tenho contigo. A que somos nós
cinco, a que te dei dois irmãos, uma vida inteira fora da máfia. Uma
fantasia onde ela está viva, onde tudo deu certo. — A xícara branca
voltou vazia para a mesa, os olhos para os meus. — Sei que não é
minha filha, Alana. Por mais que tenhamos o mesmo sangue, ser
um pai é mais que isso. Nickolay é meu filho. E depois daquela
tarde, eu fui um péssimo pai para ele. Mas foram tantas semanas
sonhando com a fantasia que quase consegui tornar realidade, que
quando ela foi tirada... — Era a primeira vez que eu via nele mais
emoção do que estava preparada para receber. — Horas, Alana. Eu
perdi as duas por horas.
Não tinha como continuar olhando para tanto arrependimento e
não chorar, então desviei para qualquer coisa que estivesse
acontecendo na rua à nossa frente.
— Passei anos me perguntando por que não adiantei tudo
para quarta. Por que não fugi com os quatro na quinta de manhã.
Claro que fico feliz que Astrid tenha te dado uma vida boa. — Ele
me copiou, limpando a garganta antes de continuar. — Queria ter
feito o mesmo pelo meu filho. Pelos meus meninos.
A minha boca sempre falava demais quando eu pensava na
vida que Nico teve quando criança.
— Por que você não fez? Era só ter falado a verdade pra ele!
— Eu não poderia gritar, e nós dois sabíamos daquilo. — Deixado
eles com Lorenzo...
— Não, Alana. — Talvez por isso ele tenha me cortado, pela
primeira vez, a voz séria. — Não era. Nunca é assim simples, não
conosco. É por isso que eu olho para ti, e não para Nico. Porque, se
eu der o que ele quer, se eu der o que finalmente consigo, ele vai
ficar mole. Mais mole. — Entendi antes dele continuar. — Um Don
frouxo é um Don morto. Já suaviza o homem o suficiente para eu
fazê-lo também.
Tomei mais um gole do meu cappuccino, resolvendo que me
atentaria ao gosto da espuma do leite e esqueceria das
possibilidades que insistiam em vir para a superfície. Talvez fosse
sábio também não me apegar ao detalhe que quase passou batido.
Nunca sabia ficar quieta.
— Iríamos fugir juntos? — A informação era nova, e desejei
saber se ela traria conforto ao meu italiano, ou o deixaria pior. —
Você não ia deixar os meninos?
— Eu não queria que meus filhos se tornassem moedas de
troca. Peças no jogo estúpido do nosso mundo morrem quando são
jogadas.
— Não queria, mas Nico foi isso a vida inteira.
Ele deu uma risada rouca, a ação fazendo seu rosto se
iluminar junto ao sol. Os raios refletiam no vidro que havia em seu
pulso, eu notando pela primeira vez o relógio, que antes não saía de
Nickolay, agora vivendo sobre o rosário desbotado.
— Desde ti, ele não é mais, Alana. Fez o que eu nunca
consegui fazer. — O rosto ficou sério. — Se tudo tivesse dado certo,
passaríamos uma vida fugindo. E uma vida fugindo...
— Não é uma vida, eu sei. — Revirei os olhos, terminando
também com o que tinha na minha xícara. — Nico é mais parecido
com você do que eu imaginava — admiti a contragosto, ainda
incomodada em ver qualquer traço de coisa boa em quem o tinha
feito mal.
A próxima informação me obrigou a ser tolerante com ele até o
fim do dia.
— Seu pai está bem. — Como acontecia com Nico, eu
acreditava em Armando sem precisar de provas.
— Obrigada.
Já andávamos de volta para o carro quando encontrei o rosto
conhecido no meio do caminho. Era Rafaella Benetti, e a mulher
tinha sido tão simpática e acolhedora quanto Helena em todas as
vezes que nos vimos.
Só que a expressão em seu rosto gritava para eu ficar longe,
os olhos me encarando com um quase ódio. Armando foi para a
minha frente, um braço protetor me colocando para o lado, a mão
com o rosário dentro do casaco.
Ele atiraria se precisasse, não tinha dúvidas.
— Eu falei com ela no brunch. — Só que não fazia sentido ele
precisar atirar justo naquela mulher. Não fazia sentido, e entrei no
carro — E no jantar. — Coloquei o cinto, meu cérebro decidindo que
sim, ficaria nervoso. — O que aconteceu?
Não que fosse adiantar ficar. Às vezes, era apenas um mau
dia: eu tinha maus dias. Tinha péssimos dias, dias em que não
queria ver ninguém na minha frente, e ainda precisava enfrentar o
mundo.
Mas a resposta que ganhei me fez entender que a
possibilidade pensada não era verdadeira.
— A máfia aconteceu.

“A máfia aconteceu” também poderia ser interpretada como


“você não precisa saber disso, Alana”.
Mas eu precisava. Eu precisava saber, e entendia que
Nickolay, outra vez, estava me deixando de fora das piores partes.
Irritante como entendia, irritante ele me beijando de manhã antes de
sair pela porta, eu decidindo manter a boca fechada e não o cobrar.
Naquela terça, Armando saía com ele, Lorenzo sendo minha
babá do dia, mas ocupado demais com ligações para manter os
olhos em mim durante toda a manhã.
Havia queimado uma das páginas do diário de Catarina. A
última escrita, a que tinha uma letra diferente, muito mais simples. A
caneta usada para escrever tinha sido uma vermelha, a mão que
deixava anotado flores roxas e o nome que me forçava a lembrar
todos os dias parecendo pesada.
Eu não tinha certeza de quem havia rabiscado aquilo, mas
sabia quem não o tinha feito. Não sobrava muita gente.
— Ciao, bambina — escutei enquanto fazia algumas
anotações num caderno, o podcast em italiano sendo um ótimo
complemento para as aulas que ocupavam parte das minhas
manhãs. — Posso ajudar? — Era Barbara quem me perguntava.
Em português.
— Todos entendem a minha língua aqui? — soltei surpresa, já
estando havia mais de um mês na casa, e só agora descobrindo o
detalhe que me deixava bem mais confortável.
— Aprendi pelo meu pequeno. — Por um momento, pensei ser
Nico.
— Armando? — Ela fez que sim, as palavras da minha mãe
voltando, ela mencionando como a mais velha tratava o pai do meu
italiano como um filho. — Por que ele sabe? — Era a primeira vez
que fazia uma pergunta sobre o homem.
— O pai de Armando comandava coisas no Brasil. Eu passei
um tempo lá, quando o menino precisou de mim. Fui eu quem
ensinou Nico, junto de Lorenzo. — Os lábios finos sorriram, os olhos
imitando ao mencionar meu marido. — Ele é outro que tenho como
filho.
Barbara era uma daquelas pessoas que você olhava e sabia
ser uma boa. Ela tinha cara de boa, ela usava um tom gentil, e sua
comida, como Nickolay sempre descreveu, era maravilhosa. A vó
que eu poderia me deixar ter, num país ainda estranho demais.
Se eu, ao menos, conseguisse confiar nela.
— Isso está errado, bambina. — A mulher mais velha ajeitou
os óculos que caíam pelo nariz de volta no rosto, apontando para
minha última palavra escrita. — Esse “que” se escreve com “ce”,
“agá” e “e”. — E ela pegou a caneta, riscou, e corrigiu, escrevendo a
palavra correta no pedaço de papel.
Quando eu li a última página, eu sabia que seriam poucas as
pessoas que a poderiam ter escrito. Com certeza, não tinha dedo de
Nickolay ali. Lorenzo também não era o responsável, a letra dele
sendo o oposto, sua carta me dando aquilo. Esses dias considerei
Armando, até vê-lo rabiscando algumas coisas em um guardanapo.
E acabavam-se as minhas alternativas, a última página do
diário espanhol escrita em português, eu não tendo mais ninguém
de opção que falava minha língua. Pelo menos, até agora.
A letra que via ao lado da minha era parecida demais com a
que minha mente guardava.
— Barbara? — Eu não poderia estar tão errada.
A mulher me olhou com um sorriso, com certeza esperando
alguma dúvida gramatical, ou eu perguntando o que teríamos para o
almoço.
Não foi o que veio.
— Quem é Lazar Orlov?

Eu nunca mais conseguia me levantar com o sol, sempre


acordando antes da mulher que dormia nos meus braços. Alana
reclamava, mas nunca abria os olhos, mesmo o enjoo a tirando da
cama depois de mim.
Comparado ao que sempre vi de Vincenzo, minha vida era
infinitamente mais movimentada, eu mal tendo paz para aproveitar
uma xícara de café. Deveria ser alguma época mais conturbada,
aquela. Culpa do começo.
Passei a mão na barriga ainda reta demais, decidindo que
nada me faria perder a consulta que teríamos amanhã. Que
explodam a merda do porto, poderiam queimar toda a Sicília, se
quisessem.
Deveria pensar em um plano para explodir Alexei. Era tão
errado pensar em assassinato tão perto do nosso bebê. Cazzo.
Engoli o expresso, tentando não lembrar de todos que eu
queria não ver, mas teria que aturar durante mais um dia eterno
quando Alana apareceu na cozinha.
— Buon giorno, dolcezza. — Sempre me lembrava de nosso
começo quando a via perto de balcões, eu tendo a debruçado em
vários para compensar o que não fiz naquela nossa primeira manhã
de sábado.
A elevação que nós dois insistimos que já havia ali tinha sido
criada em um, recordei quando a palma da mão se pressionou
contra meu peito. Tinha um bico nos lábios finos.
— Che? — Os olhos mel demoraram alguns segundos me
estudando antes de eu ter qualquer resposta.
— Eu não te vejo direito faz uma semana. — A culpa sempre
vinha.
— Des… — O indicador me impediu de continuar, a mão indo
do me calar para um carinho no meu rosto.
— Só estou aproveitando o meu marido. — Fechei os olhos,
querendo guardar as sensações do que seria meu único bom
momento da manhã. — Me deixa aproveitar quieta por cinco
minutos.
Eu também queria aproveitar, ainda mais seus sons. Um dos
meus favoritos era o arfar que vinha sempre que a tirava do chão
sem aviso. Ainda sem vê-la, colei meus lábios nos dela, Alana
gemendo contra meu gosto de café. As coxas me prendiam com
força, e eu queria que seu cheiro ficasse em mim durante todo o dia.
— Prometo vir para a janta, bella. — Me separar dela era
tortura, e eu repetia que era uma necessária para, um dia, poder ser
diferente. — Aproveite sua terça.
Era Lorenzo quem me esperava na porta da entrada, os olhos
reprovadores.
— O que? — Ele pareceu considerar por um momento falar ou
não.
— Não devia prometer para sua mulher coisas que não sabe
se vai conseguir cumprir, filho.
Preferia que tivesse ficado quieto. Eu, com certeza, não
chegaria antes de Alana estar dormindo, e deveria ter também me
mantido calado.

Nunca mais conseguia me levantar com o sol, e, algum dia


desses, tinha certeza de que dormiria com ele já brilhando. Almoços
duravam tempo demais, eu precisava fingir interesse demais,
conhecer pessoas demais, e tudo que realmente queria demais,
tinha de menos.
Queria Alana, e tinha acabado de passar uma tarde jogando
golfe. Golfe, e eu não sabia jogar aquele cazzo, mas quem me
lambia insistia que “Don DeLucca era um natural”. Odiava
bajulações que não vinham dela, e finalmente, entendia a vontade
de Alana de revirar os olhos para o mundo.
— Onde está Lorenzo? — Nunca era quem eu queria ver que
me esperava, e ter Armando encostado contra o Range Rover preta
me dizia que Mantovanni estava certo no começo da manhã.
— Jantando com sua mulher. — A resposta veio conosco
entrando no carro, eu me perguntando o que teria que aturar para a
janta. — Ele tem muito mais poder sobre o temperamento dela do
que eu.
— Onde vou precisar ir agora?

Era o último lugar que esperava ir.


Por fora, o clube noturno de nome Capriccio parecia como
qualquer outro. Por dentro, eu sabia que era diferente.
— Alana vai me matar. — Eu sabia, o tendo frequentado mais
vezes do que me lembrava antes dela.
— Nome? — Até a hostess era a mesma, e pelos olhos, vi que
ela havia reconhecido o homem parado na sua frente. — Senhor
DeLucca. Verde, como sempre?
Alana me mataria, e com razão. Eu iria, no mínimo, explodir o
clube, caso ela entrasse em um sem mim.
— Não precisamos de pulseiras. — Quem respondeu foi
Armando, meu medo querendo me fazer agarrar todas as
vermelhas. Alana passaria dias me torturando, e depois me mataria,
e eu nem poderia reclamar. — Ela não vai te matar — escutei
enquanto caminhávamos pelo corredor que levava ao bar. — Ela vai
entender.
Queria rir.
— Claramente não conhece sua filha. — Queria, também,
meia garrafa de whisky.
Deveria ter me vestido inteiro de vermelho. O clube estava tão
saturado quanto minha paciência, olhos demais em mim trazendo à
tona desconforto. Seria bom virar uma dose de álcool antes de
encontrar quem quer que precisasse conhecer agora?
— Quando sua mulher não te entendeu, Nickolay? — Armando
nunca a chamava de filha, e eu não sabia se gostava ou não
daquilo. Alana precisava de um pai. Eu precisava de um copo. —
Ela está aqui, contigo, na Itália, nesse meio vermelho...
— Porque não tem opção!
— É claro que tem! — O grito mal era escutado com a música,
os olhos castanhos, finalmente sem os óculos escuros, estreitos. —
Sempre tiveram, os dois. Tu que não quis impor nada, era só tê-la
mandado embora.
— Com certeza é o que queria, estou errado? — Sempre que
Armando sacudia a cabeça e dava um meio sorriso, eu sentia
vontade de assassiná-lo.
Eu era tão estragado, minha melhor escolha sendo a de ir para
o bar. Virava o líquido quando o mais velho parou ao meu lado, ele
tendo agora toda a paciência que lhe faltou quando eu era pequeno.
— Alana sempre te aceitou, Nickolay. Sempre soube que fazia
algo de errado, ela me disse. — Alana precisava de um pai, mas
descobrir que os dois conversavam não me trazia muito conforto. —
Por que ela aceitaria a máfia, e não aceitaria... — Olhamos para o
mesmo ponto, dois homens compartilhando a mesma mulher. —
Isso? É apenas outro ambiente para os mesmos negócios.
Eu já estive na mesma situação, e Alana, soubesse disso, pelo
menos iria gritar. Talvez tentasse me matar com gritos.
— É mais uma coisa que vou impor a ela.
Considerei pedir mais uma dose. Talvez precisasse, sabendo
bem que não haveria apenas homens no cazzo da sala.
— É, eu entendo.
— Entende como? Quando impôs para alguém metade do que
imponho a minha mulher?
Só quando a pergunta saiu dos meus lábios que a situação
inteira voltou para minha mente. Ele, com certeza, havia feito Carina
passar por situações tão incômodas quanto. Eu sabia, eu tinha as
lido.
Armando escolher o silêncio me deu uma maturidade que,
naquele momento, não me sentia muito merecedor de ganhar.

Eu não era mais o mesmo homem que deixou a Itália anos


atrás. Mas, segundo Armando, ninguém deveria saber disso.
Lorenzo também concordava, então ali estava eu, fingindo que tudo
ao meu redor interessava.
Esperava não parecer entediado ao observar quem rodopiava
na barra de pole dance. Eu não era cego: a mulher de cabelos azuis
era, sim, maravilhosa. Dona de um corpo que eu procuraria para
gozar antes da minha mulher, o eu do passado já estaria duro o
suficiente apenas por olhá-la.
Me achariam um frouxo por não estar interessado em manter
os olhos nos seios fartos? Deveria estar duro agora? Seria
inteligente pensar em Alana e tentar? Pensar em Alana ali dentro
era simplesmente errado, e decidi que, caso houvesse alguma
implicância, o cano da minha pistola na testa de quem deveria ter
ficado quieto serviria.
Mas se eu tirasse a arma, eu precisaria atirar. E eu não deveria
atirar dentro do clube de amigos da Famiglia. Ao menos, não
quando podia evitar. Respirei fundo, o ar pesado em perfume e
sexo: odiava começos, e começos pareciam me perseguir.
O único início que queria estava já, provavelmente, dormindo,
enquanto eu jogava fora conversa com quem poderia me colocar em
contato com o governador da Sicília. Adorava como políticos sempre
precisavam da nossa ajuda, e gostaria de, com aquele contato,
estar mais perto do final daquele inferno.
Uma mulher vestida de menos se aproximava de nós com uma
bandeja, pequenas caixas prateadas sobre ela.
— Coca? — Era só o que me faltava.
Fiz que não, a bandeja indo para a mesa de centro em frente
ao sofá que estava, a mulher para meu colo.
— Eu? — ela se ofereceu, e Alana, agora, me mataria com
razão.
Eu mesmo queria fazê-lo, os lábios roçando na pele do meu
pescoço, a mão descendo até minha calça. Casamentos por
contrato ainda eram uma realidade no nosso meio, os negócios
sempre se beneficiando com uniões entre grandes sobrenomes.
Foder fora era natural quando dentro de casa o que se tinha era
guerra. Deveria ter sido natural para mim, também, e talvez por não
ter sido, aproveitei tanto os anos de liberdade.
Liberdade, e a palavra era tão amarga quanto o gosto que
havia na minha boca ao sentir dedos tentando abrir o botão da
minha calça. Eu nunca fui livre, e eu não queria o cazzo de um
boquete de outra mulher que não a minha. A que tentava e foi
afastada fez um bico, eu descobrindo ao olhá-la melhor que já a tive
no mesmo sofá.
A noite seria longa, se não ali, na minha casa. Talvez nos dois
lugares.
— Não quer se divertir, Don DeLucca? — A pergunta veio de
Adrianno, uma ruiva em seu colo, como antes estava a morena no
meu.
Quem havia sido escolhida para mim era insistente, ficando de
joelhos, as mãos voltando para minha calça.
— Me divirto o suficiente com minha mulher. — Era verdade,
por mais que estivesse dias demais longe do meu calor.
— Dá pra sentir. — O toque dela tinha o efeito oposto de
qualquer coisa que vinha de Alana, sendo como água fria.
— Como que vou conseguir cair nas graças do Don, se minhas
mulheres não agradam?
Quando a fivela do cinto abriu, cheguei no meu limite.
— Solte. — Olhei-a sério, segurando com força as mãos
insistentes. — Saia.
Não me sentia bem vendo tanto medo num rosto feminino,
mas deixá-la continuar nunca esteve em jogo. Eu não deveria ter
receio do que poderiam falar, a única que deveria temer com certeza
já dormindo na nossa cama.
— É bem diferente da sua fama. — Levantei as sobrancelhas,
esperando uma continuação. — De fodedor de bocetas e torturador.
Arrumei o cinto, tirando o gosto amargo da boca com o whisky
ao meu lado.
— Me pegue num mau dia, e vai pensar diferente sobre a
última parte. — Terceira dose, e parecia que precisava de mais vinte
para começar a relaxar.
— O DeLucca sobre o qual ouvi falar conversaria comigo no
meio de um boquete, casado ou não. — Adrianno percebeu que
havia falado demais assim que pronunciou as últimas palavras. —
Realmente não estou acertando contigo, estou? Daniella, nos deixe
conversar por um minuto, querida. — Querida. Ao menos, ele as
tratava bem. — Vá fazer o que te pedi no começo da noite.
Armando esperou a mulher sair e fechou a porta, nós sumindo
para todos, todos ao nosso redor ainda sendo visíveis.
Não conhecia Adrianno Carmine antes da noite da morte de
Benetti, por mais que tivesse frequentado bem seu clube. Era um
local para foder, tanto casais quanto solteiros procurando o mesmo
pelas salas do estabelecimento — até mesmo fora delas, como
dava para ver de onde estava.
A sala que ocupávamos agora havia sido minha favorita, por
fora todos vendo seu próprio reflexo, por dentro, eu vendo a todos
por trás dos espelhos. A casa estava movimentada, e me
perguntava se todos encostados naquela parede espelhada sabiam
que eram observados.
Alana gostaria de estar ali dentro comigo? E outra vez, minha
mulher voltava para onde a deveria manter longe, minha mente
devendo se ocupar com outras coisas. Bruxa.
— A festa é apenas para foder, ou tem alguma coisa que eu
possa fazer aqui? — O mais velho apontou para as caixas sobre a
mesa, gozar ou me drogar sendo minhas duas opções.
Fantástico.
— A nossa é a melhor da Itália. É a que o Don gostava antes
de ir para o Brasil, fiquei sabendo. — A mão cheia de anéis apontou
para um homem careca, ele sendo levado pela mão para dentro da
sala ao lado. — E aquele ali, como prometido, é o governador. É
Daniella quem o está levando, ela é rápida, Don. Não precisa fazer
essa cara de sofrimento.
— Vir aqui e não usufruir não é exatamente meu sonho de
noite, depois de um dia exaustivo — confessei, me sentindo mais à
vontade com aquele homem do que com os que insistiam em querer
lamber meu saco.
— Traga sua mulher da próxima vez. — Estreitei os olhos. —
DeLucca, não tem como negar que gostaria. Pode até matar quem
for louco de desrespeitar as regras e tocá-la. — Ele deu um meio
sorriso. — Eu já matei gente aqui por menos.
Considerar a possibilidade era errado, assim como era guardar
uma das caixas no bolso do paletó. Cocei os olhos, pronto para
entrar na sala e me apresentar para quem precisava conhecer — o
quanto o governador se incomodaria por ser interrompido no meio
de uma foda? — quando Alana, pela última vez, ocupou minha
mente.
Imaginar nela o que meus olhos viam ser usado fez o que a
morena tentou sem sucesso, meu pau duro por conta de um simples
pensamento. Já fazia um tempo que não queria tanto algo material.
— Disse que queria cair nas minhas graças, não disse? — Era
minha vez de apontar, Adrianno vendo o casal que havia ganhado
meu interesse. — Quero o mesmo que eles estão usando. Vende
aqui, não vende? Seu negócio é bem completo, pelo que me
lembro.
O sorriso que ganhei foi, enfim, um satisfeito.
— Vão te entregar na saída, Don Morte.

Afundei a cabeça no travesseiro, dez e meia, eu de banho


tomado, nada de Nico. Nada de Nico era o novo normal que eu
detestava, mas não iria me estressar.
Puxei o edredom para cima do corpo, fechando os olhos,
abraçando a barriga pequena demais. Não andava pensando em
nada que me estressava, sempre lembrando não ser mais a única
afetada pelas minhas emoções. Tudo que me irritava, eu trancava
longe, e fazia sem esforços. Compartimentalizar nunca foi tão fácil,
o melhor motivo para me manter calma dentro de mim.
Então eu não pensaria em Nico e seus atrasos. Não pensaria
em como as histórias de Carina que me alegravam vinham de
Armando. Não pensaria na resposta de Barbara. Eu. Não. Pensaria.
Dormir era fácil, pelo menos. Nunca foi tão simples, mesmo
sem ele, bastava fechar os olhos para o sono vir. Amanhã eu
acordaria, e meu italiano estaria me esperando com chá de
gengibre. Ele tinha prometido.
Mas ele também prometeu vir jantar, e eu jantei com Barbara e
seu pai de criação.
O travesseiro que resolvi abraçar ainda tinha cheiro de laranja
e nicotina.
Acordei com o quarto ainda escuro, um cheiro que não era
dele do meu lado. Abri os olhos assustada, apenas para encontrá-lo
me observando — nos observando. A mão esquerda fazia um
carinho na minha barriga, os olhos escuros com certeza notando a
elevação que eu tinha achado naquela manhã.
Era real, e tudo que eu queria era ter mostrado para ele noite
passada. Bem, poderia considerar ser noite ainda, com tudo escuro,
não poderia?
— Te acordei, dolcezza? — A voz veio baixa, seus olhos
achando os meus. — É tão tarde, já passa das três. — Um beijo na
minha testa, e o cheiro que vinha dele realmente estava diferente.
— Eu não consigo dormir direito sem você — não era mentira,
os braços dele ao meu redor tornando meu sono muito mais
profundo.
E era o que eu queria, minha boca na dele, me enrolar em
Nickolay e dormir por doze horas seguidas. Era o que eu
considerava fazer, mas aquele maldito cheiro doce estava me dando
a pior das azias.
— Por que você tá cheirando a perfume barato? — Precisei
me sentar, indo procurar o interruptor da luminária sobre a mesa de
cabeceira. O pote que achei quando a luz acendeu prendeu minha
atenção. — Isso é doce de maçã? Onde você achou doce de maçã
aqui?
Nickolay me copiou, sentando-se ao meu lado, eu percebendo
que ele ainda usava a mesma roupa da manhã.
— Eu mandei fazer. — Levantei as sobrancelhas. — Porque eu
te amo?
Achava engraçado como ele era óbvio. Nico não era assim
óbvio com os homens que comandava, ou ao menos esperava —
para a segurança de nós dois — que não. Porque, com a cara que
eu ganhava, não tinha como o homem negar que havia feito algo
que eu fosse odiar ouvir.
Suspirei: eu estava indo tão bem no serviço de não me
estressar.
— Alana, eu nem tomei banho para não te deixar desconfiada.
— Desconfiada de que?
— Então por favor tome, esse cheiro tá me matando. — E
mesmo com a pouca luz, deu para ver um vermelho nele que não
tinha vindo de mim. — Tem batom no seu pescoço.
— Dolcezza…
Eu ri: ele não queria me deixar desconfiada. Ele tinha me
trazido um presente. Tinha batom e perfume que não era nem meu
nem dele, e eu queria gritar.
— Você tava num puteiro? — Nickolay viu o quão próxima eu
estava daquilo, mesmo assim, resolveu que tentar explicar algo
seria bom.
— Não chamamos bem de puteiro aqui…
Tudo que uma mulher grávida gostaria de ouvir.
— Foda-se como chamam aqui! — Eu não queria a caveira me
tocando agora, desviando com raiva da mão que tentou me segurar.
— Amore mio, essa era uma das coisas que eu falei que
teríamos que passar...
— Eu vou ter que aceitar você se esfregando em putas? É por
isso que eu vou ter que passar? — Preferia ter continuado
dormindo. Preferia nunca saber, preferia que ele tivesse tomado um
banho. — Você nem discutiu comigo antes!
Preferia não estar na Itália, e eu não iria chorar.
— Porque eu não sabia!
— Como você é o chefe dessa merda, e não sabe? — Eu não
iria, e a expressão confusa dele quase me fez dar risada.
— Essa é uma ótima pergunta. — Quase, se ele não tivesse
resolvido continuar a falar. — Seu pai foi junto...
— Ele não é meu pai! — Respirei fundo, o pensamento
voltando: eu estava indo tão bem.
— Dolcezza...
— Não! — Desviei mais uma vez do seu toque, a insistência
dele sendo a gota. — Me deixa respirar em paz!
Escondi o rosto nas mãos, sentindo os olhos úmidos, querendo
afundar nele e só conseguindo ir para o fundo do poço. O cheiro
doce me lembrava Helena, o perfume parecido demais me
recordando de todas as inseguranças que eram mentiras, mas tão
difíceis de serem enfrentadas justo agora.
— Não chora, Alana...
— Eu não consigo não chorar! — solucei, e por mais que fosse
injusto, me afastei uma última vez dos braços tatuados, indo para a
porta sem olhá-lo. — Vai tomar banho, esfrega esse pescoço! —
Não falei mais nada antes de sair, rezando para algum santo fazê-lo
me obedecer ao invés de me seguir.
Era mais fácil me obrigar a ficar calma quando o que me
estressava estava fora de vista. Descendo as escadas, limpava as
lágrimas e voltava a focar no que era importante. Nós ficaríamos
bem, eu sabia que ficaríamos, e era sério que Armando estava na
cozinha?
Que inferno de noite, e por um segundo, considerei a ideia de
não voltar para o quarto até amanhecer e passar a madrugada
ouvindo histórias sobre minha mãe. Ouvir sobre ela me acalmava,
descobrir que Carina amava lasanha tanto quanto eu sendo uma
informação que sempre quis, e o homem que tomava água havia me
dado com um sorriso.
Conversar com Armando era tão simples quando me forçava a
esquecer tudo que ele havia feito. Eu queria me forçar o
esquecimento agora, mas brigas com Nickolay não me deixavam no
melhor estado racional.
— Está acordado pra acobertar seu filho? — perguntei com um
bico, abrindo a geladeira, querendo mesmo devorar o purê de maçã
que estava no andar de cima.
— Quer uma água? — Fechei a porta, derrotada.
— Quero.
O copo de água foi posto na minha frente pouco depois de eu
me sentar, e lembrar de meu pai foi inevitável. Queria o leite com
Quick de morango que Esteban sempre insistia em me dar quando
estava chateada, colo com cafuné.
— Obrigada. — Queria chorar para alguém que não fosse
Nico, mas me contentei em me hidratar.
Focar em como eu odiava água era melhor que continuar
chorando, e eu esvaziei o copo, o devolvendo em silêncio para a
mesa. Armando só começou a falar quando meus olhos vermelhos
pararam nos agora mel dele.
— Alana, eu sei que o meio de Astrid era um bom. Eu te botei
junto a ela por ter certeza disso. — Ele ia defender o filho, e eu não
poderia chorar nem para ele. — Eu sei que tu não sabe o que é o
meio em que vivemos. Nem sempre podemos fazer apenas o que
queremos, principalmente quando se é o chefe.
— Achei que ser o chefe dessa merda significasse o contrário
— confessei irritada, o homem sacudindo a cabeça, um meio sorriso
nos lábios. Odiava italianos, e seus meios sorrisos que sempre me
ganhavam.
— Realmente não sabe como é o meio em que se meteu. —
Eu sabia, quis responder, mas a continuação me impediu. — Me
falou que seu marido era bom, Alana. Eu acredito que ele é, ainda
mais depois do que presenciei hoje. Não vou mentir para ti: Nickolay
nem olhou para o lado, e tenho certeza de que gostaria de jogar no
chão a mulher que sentou no seu colo.
— Não só ele. — Fechei a cara, só a ideia daquilo fazendo
meu sangue ferver. — Pra essas coisas, ele não pode me levar
junto, pode? — Baixei os olhos para minhas unhas, achando uma
lasca no esmalte que tinha me forçado o dia inteiro a ignorar e não
roer. — Eu confio no meu marido. — Meu tom já não era raivoso,
mas triste. — Eu só...
— Só não queria estar vivendo essa situação. — Armando
completou por mim ao ouvir minha voz falhar. — Isso vai...
— Melhorar? — O encarei, esperançosa, melhorar já sendo
uma resposta boa o suficiente.
A que veio foi muito melhor.
— Acabar — Armando respondeu sério, como se realmente
acreditasse naquilo. — Isso vai acabar, Alana. Vamos resolver isso.
— O deixei alcançar a mão que eu apoiava sobre a mesa. — Eu
prometo.
Fiz que sim com a cabeça, pela primeira vez tendo vontade de
abraçá-lo. Será que Nico se importaria muito se o fizesse? Não teria
problema só um abraço, teria? O italiano entenderia, eu sabia que
entenderia.
Mas eu nunca o faria na frente dele, e Nickolay estava parado
no batente da porta. Os cabelos ainda pingando me contavam que
meu pedido tinha sido realizado, meu marido de pijamas segurando
o doce de maçã e uma colher.
Foi Armando quem tirou a mão da minha, mas se Nico notou o
aperto, ele ignorou. Os olhos estavam pedintes nos meus, o homem
esperando alguma atitude minha. O jeito que ele me deixava ficar
brava era irritante, e sempre me ganhava.
— Vamos dormir — falei quando cheguei ao seu lado, pegando
o pote aberto e a colher antes de começar a andar.
Demorou alguns passos para ele me alcançar, eu colocando o
doce na boca, subindo o primeiro degrau da escada. Mesmo no
chão, Nico ainda era mais alto, mesmo não totalmente feliz, eu
toquei meus lábios nos dele.
Maçã com pasta de dente era suficientemente bom, meu
marido encostando a testa na minha e respirando aliviado. Não
tentei me livrar dos braços que rodearam minha cintura, finalmente
sorrindo depois de mais uma colher de açúcar.
— Bella, eu não fiz nada.
Eu poderia lhe dar um pouco de paz, decidi.
— Eu sei.
— Me sinto tão mal por te dar qualquer motivo para se
estressar...
— Eu vou me estressar contigo me dando motivo ou não — o
interrompi, os lábios grossos fechando no meu indicador do jeito que
ele sabia eu gostar. Trapaceiro. — Sou eu. Grávida e cheia de
hormônios. Talvez eu deva comprar aqueles livros antiestresse, os
de colorir, sabe? Vai que ajuda. — Dei os ombros, me virando e
voltando a subir os degraus. — Ah, quando for me estressar —
Levantei o pote que segurava, mais uma colherada indo para minha
boca. — Pode trazer sempre isso aqui.

Eu não tinha escutado o coração no Canadá. Era muito cedo,


menos semanas do que o necessário, todo o possível sendo checar
o saco embrionário e me obrigar a tomar ácido fólico.
Sim, a médica só falava italiano, mal dizendo uma palavra ou
duas em inglês. Mas meu italiano não era mais tão ruim, e, mesmo
deixando Nico conduzir toda a conversa, eu entendia bem até o que
ele escolhia não traduzir.
O som que ouvimos tornava palavras desnecessárias. Era
forte como o aperto que senti na minha mão. Era forte como o
homem que beijava minha testa, os olhos escuros brilhando ao irem
para a tela do ultrassom.
Foi ele quem limpou o gel na minha barriga, a obstetra nos
deixando sozinhos na sala. Nickolay, que permaneceu sério durante
toda a consulta, tinha um dos sorrisos mais lindos que já vi quando
voltou a me olhar.
— Está tudo bem com o nosso bebê. — Respirei aliviada ao
falar aquilo alto. Estava tudo bem.
— Está tudo bem com o nosso bebê — ele repetiu, como se
também precisasse se certificar que não era mentira. — Certeza
que não quer saber o sexo? Não precisa esperar, podemos fazer
exames…
— Curioso, papai? — provoquei, voltando a me sentar na
maca.
— Difícil comprar roupas sem saber. — Levantei as
sobrancelhas.
— Já te vi de rosa, italiano — falei, lembrando do quanto meu
marido era mais colorido no Canadá. — E eu gosto de roupinhas
amarelas com peixinhos. Vermelhas com estrelinhas. Pode ser até
cinza, rosa e azul tá batido demais pra bebês — terminei, tentando
não deixar triste meu sorriso: queria dar de volta todas aquelas
cores para ele.
— Difícil pensar em nomes sem saber. — O homem voltou
para a cadeira ao lado, me ajudando com os sapatos antes de me
descer.
Já estava nos braços tatuados quando dei minha ideia.
— Nós podemos pensar em nomes que dão pros dois.
— Não vejo muitos nomes italianos unissex.
— Andrea? — Ele franziu o nariz.
— Definitivamente masculino, e eu odeio — ele confessou de
um jeito sincero demais, o desprazer nos traços fortes como quando
comia algo que não gostava.
— Bem, quem disse que vai ser um nome italiano? — Saímos
da sala, Nico segurando a porta aberta para mim, os seguranças
que viviam conosco seguindo.
— E se não for italiano, vai ser o que? Brasileiro? — Nickolay
deu uma risada sarcástica antes de continuar. — Russo? Quer botar
Dimitri?
Revirei os olhos, nós chegando no estacionamento. Hoje era
um dos poucos dias que Nickolay escolhia dirigir, e imaginei que ele
queria manter aquele momento tão normal quanto fosse possível.
Aquelas pequenas coisas que ele fazia eram tão grandes para mim,
e se o italiano quisesse, poderia até sugerir Emília e eu consideraria
o nome sorrindo.
— Tem algum nome que você não quer? — resolvi perguntar
quando ele fechou a porta do lado do motorista, a mão que havia
posto em sua coxa o sentindo tensionar.
— Si. — Nico nunca disse quais, mas eu imaginei alguns
nomes que nunca nem pensaria em sugerir. A próxima pergunta fez
o sorriso voltar.
— Tem algum nome que você quer?
— Ainda não pensei em nenhum. — A cabeça encostou no
banco, Nickolay me observando de canto de olho antes de falar. —
Eu gosto de Alana.
Às vezes, era difícil não revirar os olhos com ele.
— Nem vem, italiano. — Ele inclinou a cabeça, eu sentindo
sua respiração em mim. Naquela quinta, ainda não tinha nicotina
nele, o perfume cítrico me fazendo salivar. Me perguntava se meu
próximo desejo seria de laranja, o meu de agora sendo os lábios
que precisava tocar.
A mão tatuada colocou uma mecha que insistia em parar nos
meus olhos atrás da minha orelha, o pulso ainda carente de um
relógio, eu vendo os círculos antes sempre cobertos, e então seus
olhos.
— Sabia que seu nome tem vários significados? Preciosa é um
deles. — A voz rouca que Nico usava fazia meu coração acelerar. —
Bella. — Arfei quando os lábios que me negaram um beijo o fizeram
na curva da minha mandíbula. — Que traz harmonia.
Minha risada saiu mais como um gemido quando a língua dele
provou minha pele, os lábios percorrendo todo o caminho até
finalmente alcançarem minha boca. Os beijos dele eram bons
demais, e o filho da mãe poderia escolher o nome que quisesse,
jogando sujo daquele jeito.
Ainda assim, continuei quando nos separamos.
— Esse último talvez não seja bem verdade.
Foi a vez dele de rir, aquela sendo uma das vezes que eu
pensava que Nickolay existir deveria ser ilegal.
— Esse último é tudo que eu sinto quando te vejo. — A
sinceridade usada na frase acabou com minhas palavras. — Vamos
comprar roupinhas amarelas.
E assim fácil, Nickolay conseguiu carta branca para escolher o
nome que quisesse para nosso bebê.
— Vamos comprar roupinhas amarelas.

Atirar era ainda mais difícil após ouvir o pequeno coração


batendo. Tudo que achei que fosse ser mais simples se tornava
complexo demais cada vez que me deixava pensar. Deveria viver no
automático quando longe dela, atirar no automático, e não pensar
cada vez que colocava o dedo no gatilho. Alana aceitava um
assassino: como nosso filho olharia para um?
A caixa prateada vivia comigo, e as palavras que não traduzi
para Alana, também. Não havia motivo para preocupação, a médica
me reassegurou por vezes demais. O café que ela foi permitida de
beber pelo menos uma vez por semana não lhe faria mal, o filho que
ela perdeu não era nenhum fator que poderia causar um nascimento
prematuro. Ela não sabia de nenhum dos dois.
Deveria pedir uma segunda opinião.
— Tá com cheiro de canela — o nariz pequeno franziu, Alana
tendo acordado bem antes de seu normal naquela manhã.
— Adorava canela até ontem.
— Agora o que tá dentro de mim não gosta mais. — Ela
desviou da minha mão, indo para a cadeira à minha frente. — Quer
reclamar com ele?
— Quer ovos? — Ofereci meu prato quando a vi alcançar a
mesma fruta de sempre. — Maçã não é café da manhã, dolcezza.
Eu sabia o que viria antes dela abrir a boca.
— Quero café. — Alana também já deveria ter certeza da
resposta que ganharia de mim.
— No.
— Coca-Cola. — Levantei, pegando a xícara que era sua
favorita e enchendo com o líquido amarelo claro. — Chocolate
amargo. — Continuei ignorando os pedidos. — Uma dose de vodka
pra aturar todas as negações antes das oito da manhã.
Eu tinha certeza de que ela queria jogar a xícara na minha
cara quando viu o que era.
— Chá de camomila.
Se fez silêncio na mesa até eu voltar a sentar, os olhos mel me
encarando de uma forma que ainda não entendia ser boa ou ruim.
— Divide comigo que eu tomo. — Aquilo era fácil de atender.
— Ok.
Vi minha mulher se levantar, andando até mim com um sorriso
inocente no rosto, a xícara cheia de chá indo parar do meu lado.
Então pegou meu expresso, e juntou as duas bebidas, os olhos
voltando para os meus, me desafiando a fazer alguma coisa.
Sempre haveria surpresa com Alana, e eu me controlei muito
para não rir. Porque se eu risse, ela iria arremessar em mim alguma
coisa, simplesmente sabia. Minha mulher poderia estar irritada,
ainda assim, entendia que aquela seria a melhor parte do meu dia.
Tirei a xícara de perto dela antes que sua mão pudesse
alcançar a alça.
— Alana, a minha paciência contigo é eterna, se ainda não
entendeu. — O pão faria muito menos estrago do que a mistura que
meu orgulho me forçaria a beber. — Está perdendo seu tempo,
quem vai se irritar é você.
Ela com certeza não achava fofinho meu modo de falar agora.
A maçã já mordida foi agarrada, eu por um instante me perguntando
se a fruta pararia em mim. Alana com certeza considerou, antes de
decidir por estreitar os olhos e rumar para a porta.
— Café com camomila é ótimo. — Café com camomila tinha
gosto de mijo. — Posso fazer pra ti daqui a alguns meses! — falei
mais alto, ainda vendo seus cabelos mexendo, Lorenzo aparecendo
e ocupando o lugar que antes era dela.
— Nico, ela vai te matar enquanto você dorme. — E eu
finalmente gargalhei, imaginando a mulher pequena tentando e
conseguindo.
— Seria um jeito inusitado de se ir. — Meu bom humor
continuou, pela primeira vez, mesmo quando Armando se juntou a
nós. — Não é impossível, tenho que confessar. Alana me
surpreende a cada dia. — Ela surpreendia, e tomei mais um gole da
mistura antes de ir para a pia e despejar o líquido ralo abaixo.
Voltava com um novo expresso quando quem geralmente
permanecia quieto comigo resolveu hoje falar.
— É bem paciente com ela.
— Queria que eu não fosse? — Responder na defensiva era
inevitável. Continuar, também. — Tudo que passei com Giovanna, e
eu nem mesmo a amava dessa forma. Aguentaria o dobro quieto
para ver Alana bem, não é esforço algum.
— Não são muitos que acham o mesmo no nosso meio. —
Nosso meio.
Eu tiraria Alana desse meio, nem que fosse a última coisa que
fizesse vivo. Minha mulher era cor demais para um meio vermelho.
— O que ganho dela, poucas dariam — encarei os olhos,
ainda mel naquela manhã, ao falar. — Que mulher continua fazendo
o que ela faz sem medo, sabendo de tudo que eu posso fazer? Olhe
bem meu tamanho contra o dela.
E por um momento, um breve momento, pareceu haver
orgulho ali.
Voltei os olhos para a espuma do café.
— E Alana mantém a mesma boca de quando a conheci. Ela
confia que eu nunca vou reagir. A confiança dela não tem preço
para mim, e o café nem ficou tão ruim. — Uma mentira. — Minha
mulher está grávida. A deixem fazer a birra que quiser.

Ela fazia bem menos birra do que imaginei que faria, Giovanna
grávida me dando um inferno que o comportamento de Alana não
chegava nem perto de criar. Eu também consideraria assassinato,
afinal, se me tirassem o café.
Claro que um assassino consideraria aquilo.
Abri os olhos com o sol batendo no rosto, a noite de ontem
tendo sido exaustiva, eu chegando tarde. Alana ter me esperado
sem nada embaixo dos lençóis me fazia lamentar a demora, a visão
do corpo nu contra o sol fazendo o meu responder bem demais.
— Buon giorno, bella — sussurrei, beijando o pescoço, a
bunda dela roçando sobre a minha cueca.
Cazzo, que delícia. Alana era tudo que eu precisava para
relaxar.
— Uhum. — Não era mútuo naquela manhã, minha mulher
sonolenta demais para deixar os olhos abertos. — Cinco minutos,
italiano. Só mais cinco.
Um banho gelado seria a melhor alternativa, Alana tendo
contado que passou a semana inteira cansada, eu querendo deixá-
la dormindo. Aquela noite seria tranquila, minha mente fazendo
planos para compensar todas as que cheguei mais tarde. Ela
sempre desfazia os bicos que a ausência lhe dava quando minha
cabeça parava no meio de suas pernas.
E com aquele pensamento, desci para a cozinha. Já passavam
das nove, mas ainda não havia ninguém ali — ou não havia mais
ninguém, todos já tendo saído. Abrindo a geladeira, me perguntei
quantas merdas iniciadas pelo velho eu conseguiria salvar.
Eu não sabia, antes de começar a investigar mais a fundo, que
Matarazzo estava sangrando dinheiro. Maus negócios, mercadorias
roubadas, gastos que deveriam ter sido cortados, e os zeros, que
antes eram muitos, ficavam cada vez mais depois da vírgula. Ele era
um incompetente, mas não sabia que a incompetência se estendia
para a única coisa boa que o homem havia deixado.
Menos dinheiro me tirava o cazzo do poder de muitas decisões
que poderiam ser não tomadas. Menos dinheiro me fazia sujar mais
as mãos.
Deveria vender logo a merda daquele avião. Do que me
adiantava um, preso à Itália? Deixei a água escorrer nas batatas:
deveria fazer ovos com bacon. Deveria passar a manhã correndo, a
vontade de me exercitar pequena demais nas últimas semanas.
— Cozinhando? — Não esperava vê-lo ali, o olhar que eu
ganhei curioso demais.
— Não tenho nada pela manhã, e cozinhar me relaxa —
escolhi dar uma resposta sincera, esperando que isso cansasse
quem não deveria mostrar nenhum interesse em mim.
Era irritante como, lá no fundo, aquele interesse era uma das
coisas que eu mais queria.
— Não sabia que cozinhava.
Também era uma das coisas que eu menos andava disposto a
aceitar.
— Nunca esteve presente para saber de muitas coisas —
respondi, o barulho da faca batendo na tábua enchendo o ambiente.
— Não parece muito relaxado. — Respirei fundo, me
acalmando ao pensar em como faria Alana manter acordada o
cazzo de toda a casa durante boa parte da noite. — Com certeza
deve haver algo melhor do que picar batatas.
Não estava funcionando.
— Minha mulher não quer foder, então picar batatas me basta
— retruquei irritado, no segundo em que Barbara entrava pela porta
dos fundos.
— Nico! — A mais velha era uma das duas que tinham
coragem de bater na minha cabeça, a segunda ainda presa nos
lençóis. — A boca!
— Desculpa, Barbara. — Ela também era uma das poucas
pessoas que escutavam tal palavra sair dos meus lábios.
— Você não fala foder para sua mulher! — Ah, se ela
soubesse da metade das coisas que Alana gostava de me ouvir
gemer.
— Eu não falei para minha mulher — respondi com um meio
sorriso, voltando as batatas.
— Bianca não quer entrar contigo na cozinha, menino. — Ah,
então era Bianca o nome da cozinheira que sempre se escondia
comigo perto. — Está me perturbando que o Don está fazendo o
trabalho que não deve, perguntando se chegou o dia da demissão.
Minha fama realmente era a melhor e pior naquela cidade.
Estava para responder que passaria toda a manhã ali quando
Levina brilhou na tela preta. Deveria salvar o contato como puttano
irritante.
— Pode falar para a garota vir fazer o almoço. — “Me encontre
AGORA” não parecia ser negociável, muito menos bom.
Armando me seguiu até a porta, e já escondia uma arma extra
embaixo do casaco quando o parei.
— Lorenzo está viajando, fique com Alana. — Meu pai nunca
foi muito bom em obedecer às ordens de um Don.
— Nickolay, não vai sozinho…
Mas eu tinha a melhor carta para ir só — não que eu quisesse.
— Ela que não vai ficar sozinha, Armando. — Eu nem queria ir,
algo me dizendo que o dia duraria um ano inteiro. — Sei me virar. —
Peguei as chaves de um dos carros, o encontro com o russo me
obrigando a ir sem mais nenhum segurança. — Estou vivo e cheio
de tatuagens para comprovar isso.

Assassino. Eu era realmente um, agora. Minhas mãos ainda


tinham sangue, e talvez tenham sujado de vermelho todas as portas
que abri.
— Nico? — Ouvir a voz dela enquanto via meu reflexo me
trazia enjoo.
Assassino, e em nenhum momento, pensei nos dois — nas
duas — enquanto socava até arrancar os dentes quem ficou
embaixo de mim por minutos.
— Vá deitar, dolcezza — forcei minha voz a sair firme, apesar
do corpo trêmulo. — Só preciso de um banho.
Mas minha voz não parecia firme: parecia exausta. Eu estava
exausto, mas meu coração insistia em me dizer o contrário, batendo
mais rápido do que deveria, meu cérebro acordado, por mais que eu
quisesse me render ao cansaço.
A maçaneta virou, Alana tentando abrir a porta sem sucesso.
— Por que tá trancada? — Tinha preocupação na voz, e eu
considerei destrancar a fechadura.
— Porque tem muito sangue. — Muito sangue ainda era
suavizar minha imagem. Tinha sangue em todos os lugares, e a
preocupação só aumentaria se ela me visse assim.
Queria esquecer meus problemas enterrado nela, queria as
mãos pequenas me envolvendo, dizendo que tudo iria acabar.
Queria ouvir da sua boca, Alana reafirmando que aceitava um
assassino, seus gemidos lavando todo o sangue grudado em mim.
— Nico, eu já vi…
— Me deixa lavar. — A interrompi, já abrindo o registro da
banheira. — Me deixa lavar, Alana. — Tinha muito sangue. Ela não
merecia ver aquilo. — Eu já vou.
Desisti dos botões e puxei a camisa, alguns deles estourando,
fazendo barulho contra os azulejos. Meu peito parecia que iria
explodir, os nós dos dedos abertos ardendo em contato com a água.
Tudo ardia, e eu me enfiei na banheira ainda de roupa, tentando
diminuir o fogo ruim que havia dentro de mim com a água fria.
Não estava funcionando.

Estava claro demais. Silencioso demais.


— Oi, Nico. — Aquela não era a voz de Alana.
— Emília? — O restaurante era o mesmo do brunch, mas
apenas nós dois dividíamos a mesa.
Aquilo estava errado.
— Não é contigo que tenho um almoço.
Uma risada triste veio dela, meus olhos procurando pela minha
mulher. Só tinha Emília.
— Nunca comigo. — Vê-la me fazia pior, mas vê-la com um
sorriso misterioso me fazia gelado. — Sempre com as mais novas.
O que eu nunca tive que elas tanto tem? É sangue que precisa ter
para gostar de mim? — Ela colocou as mãos no ventre, o vestido
branco ficando vermelho. — Eu sangrei por você.
Não.
— Matou o que tínhamos...
— Você matou primeiro não me atendendo! Você matou o
bebê! — Tinha sangue nos dentes retos quando o sorriso aumentou,
a visão não desaparecendo nem de olhos fechados. — Você me
matou, Nico.
Eu não a matei.
Eu não matei ninguém.
Eu não matava mulheres.
— Você me matou! — Eu não matava, mas as duas que tinha
ao meu lado discordavam daquilo. — Você me matou aceitando um
casamento que eu nunca quis! — Tinha sangue nos cabelos de
Giovanna, uma das balas tendo atravessado um dos olhos. — Para
onde eu fujo agora?
A resposta daquela pergunta, eu também queria.

Cuspi água quando acordei, me engasgando com o líquido


tingido de vermelho. O banheiro inteiro estava daquela cor, marcas
das minhas mãos no azulejo branco, minha pele enrugada depois
de tempo demais submersa.
Parecia que tinha tomado a maior das surras, e não a dado.
Mesmo acordando com a água na garganta, sentia a boca seca, a
língua machucada nos cantos pelas mordidas que havia dado sem
perceber. Clareava, e eu precisava limpar aquilo antes de Alana
acordar.
Torci a camisa quando finalmente a tirei, a passando na
parede, minhas costelas doloridas. Achei um roxo entre duas, e me
perguntei se a pontada quando mexia era de alguma quebrada.
Minha cabeça estava prestes a explodir, e eu quis que estourasse.
Eu quis, para não precisar lembrar da noite passada.
De como tudo deu errado.
"Fale o que fez."
Tudo deu tão errado. Mais errado do que o sangue que eu
esfregava no chão. A arma estava dentro da pia, junto da caixa
prateada vazia.
"Um DNA. Matarazzo era bem precavido, mais do que vocês
consideram."
Estava com Levina quando recebi a ligação de Adrianno.
Assim que ouvi o que não queria, sabia que não tinha mais como
ela continuar cheia.
"Alana não é filha do velho, você não tem direito a essa
posição!"
Aquilo na minha mão eram marcas de dentes, e Alana veria.
"E todos vão saber."
Ela veria o que eu realmente era. Alana, enfim, entenderia com
o que se casou.
O celular quase descarregado notificava duas mensagens que
não queria ler.
"Achei que a Morte fosse mais competente. Como
conseguiu ficar vivo até hoje sem minha ajuda? Bacio[41], bello.
D."
A de Adrianno era muito mais direta.
“Venha me visitar para repor o estoque.”
Queria responder que não, e sabia que estaria junto a Carmine
até o fim do dia.
Tinha um peso contra a porta quando a abri, Alana
escorregando, eu me agachando e a pegando no colo. Os olhos
continuaram fechados, a mulher tendo dormido contra a porta sendo
tão errado quanto fora toda a noite passada.
— Por que não está na cama? — perguntei, como se não
estivesse morrendo por dentro.
Ela se aconchegou em mim quando chegamos no colchão, o
cheiro de framboesa se misturando com o sangue que minhas
narinas ainda lembravam. Aquele cheiro me atormentaria por dias,
senão para sempre.
O cheiro de um assassino.
— Pra você não ir embora. — Os olhos pararam em mim, os
dedos passando pela única marca que carregava no rosto. O
arranhão ocupava toda a extensão da minha bochecha direita,
Alana o tocando com os lábios antes das mãos me agarrarem. —
Fica, Nico.
Fiz que sim, não me sentindo merecedor do carinho nos
cabelos. Por mais que tenha passado a noite repetindo as palavras
que ganhava da minha mulher, não tinha como afastar a pergunta
que gritava. Ela continuaria me pedindo para ficar, depois de saber
da noite passada?
— Eu fico, dolcezza. — O gosto amargo não saía da minha
boca.
Ela ficaria, depois de descobrir que eu fui responsável pelo fim
de Rafaella Benetti?
Assassino.

Pelo visor da câmera, enxergava o mar. Não sentia mais o


mesmo desgosto pela água salgada, ainda mais depois de Nickolay
ter se esforçado tanto para tirar minha birra.
Saber o quanto minha mãe caminhava comigo na beira da
praia também ajudava, e eu até estava começando a realmente
apreciar o cheiro da maresia. Mar e laranjas me faziam salivar,
assim como a visão de Nickolay se trocando enchia minha boca
d’água todas as manhãs.
Ele levantava cedo demais, e eu tinha me acostumado a abrir
os olhos mais cedo para garantir ao menos ter um de seus beijos
durante o dia. Nico andava com um gosto metálico na boca, um que
o enxaguante bucal não conseguia levar embora, mas eu não me
importava. Com suas olheiras cada vez mais fundas, já era outra
história.
Mas ele sorria, e me falava para aproveitar meu dia. E eu fingia
que acreditava quando ele fingia estar tudo bem, assim como fazia
de conta que nunca li o nome de quem Barbara um dia achou ser
seu tio.
Eu não pensaria em Lazar, mas sim em como o destino havia
sido outra vez bom, e colocado uma quase amiga no meu caminho.
Helena era confortável de se conversar, mesmo com todas as
nossas diferenças. Então, pelo visor da câmera, eu enxergava o
mar, enquanto a ruiva caminhava atrás de mim, nós separadas da
praia pela calçada.
Cliquei quando a mulher que pisava na água virou as costas,
sorrindo com o resultado.
— Tome cuidado — veio de Helena quando lhe mostrei a foto,
nós duas virando a rua, os seguranças, como sempre, atrás de nós.
— Tem gente que não gosta de ser fotografada, especialmente na
Sicília.
Não tinha pensado naquilo antes.
— Sempre fotografou? — sacudi a cabeça que sim, deixando a
câmera no pescoço e segurando o chapéu ao sentir o vento.
— Sempre foi um passatempo. Nunca me achei boa para
pensar em trabalhar com isso. — Ao menos, até agora, completei
mentalmente.
— Não acho que um trabalho seja necessário para você, estou
errada? — A olhei confusa, por um momento, o fantasma enterrado
meses atrás ressurgindo.
Thobias vivia falando sobre como eu deveria não trabalhar, e
terminar a faculdade apenas para a felicidade dos meus pais. Ele
afirmava ter dinheiro o suficiente para nós dois, e já naquele tempo,
a última coisa que eu queria era não ter uma ocupação. Minha
cabeça continuava igual, eu querendo um trabalho, mesmo com
todos os zeros que sabia que tínhamos na conta.
— Alana, todos sabem quanto dinheiro tem Nickolay. Esse
homem nunca realmente “precisou” fazer alguma coisa na vida. —
Aquela era a maior das mentiras.
Mas também era verdade, de um certo modo. Sabia, já no
Brasil, o quão rico era o meu, agora, marido. Não que eu não
tivesse dinheiro, mas o nível que dava para ver ao entrar na mansão
era, claramente, diferente.
Me impressionava lembrar de tudo que fizemos sozinhos no
Canadá. Nickolay nunca reclamou, parecendo aproveitar cada
pequena coisa, levando o lixo para fora de boca fechada. Ele
poderia ser um assassino, mas meu italiano era, sim, bom demais
para a vida que, outra vez, o achou.
— Juntando a fortuna dele com a sua herdada, me surpreende
não ter gente fazendo compras para você. — Os olhos verdes
estavam em mim, esperando uma resposta.
— Acho que gostamos de ser independentes — dei os ombros,
não mentindo.
— Deve ter razão. Nico sempre fazia tudo que uma babá
poderia dar conta, com Nicolas. Me impressionava ele ser tão
presente. — Ela pareceu considerar ou não continuar. — Nickolay e
eu paramos de falar antes de tudo acontecer. Quando soube do
acidente — Assassinato, corrigi na minha cabeça — Ele já era outra
pessoa. É engraçado como a gente acha que não vai entrar numa
vida, e julga os outros por entrarem, e aí algo acontece, e…
— E você entra — completei. — É, eu sei. — Helena também
deveria saber, visto que a mulher entendia bem de quem era o
estabelecimento que lhe dava um salário. — Você sempre trabalhou
como gerente em restaurantes?
— Meus pais tinham um.
— Não tem mais? — Tinha um sorriso triste quando voltei a
olhá-la.
— Não. — E mais uma vez, ela pareceu considerar ou não
continuar. — Eles faleceram.
— Sinto muito. — Entendia ela não querer falar sobre isso.
Também não gostava de falar sobre quem eu já não mais tinha
na minha vida, e como se ela soubesse, foi justamente sobre o
tópico sua próxima pergunta.
— Seus pais adotivos são vivos? — Nada saiu da minha boca,
e voltei a atenção para a câmera. Mamãe teria adorado ver as fotos
que andava tirando. — É um tópico que você não pode falar? — Era
um tópico que eu não queria precisar nem pensar, e agora, amava
ser tão transparente.
A ruiva enganchou o braço no meu, o sorriso caloroso.
— Esqueça que eu perguntei isso: o que acha de um gelato de
pistache? — Helena, naquele dia, não estava acertando. — Não tem
nenhum melhor em todo mundo do que o da sorveteria da esquina!
— Eu não sou muito fã de sorvete. — Que mentira, minha
boca salivando, eu me esforçando para lembrar do nome que lia
para voltar sozinha e experimentar todos os sabores. Não estava
pronta para dividir sorvetes com uma amiga. — Mas sou de café —
contei animada, aquela sendo minha chance na semana, Armando,
que andava junto dos outros dois seguranças, nunca me parando
quando eu pedia cappuccinos.
— E você pode tomar café? — Os olhos pararam desconfiados
nos meus. — Eu não quero seu marido tentando me matar por
causa de um cappuccino.
Minha mãe tomou a gravidez inteira, e aqui estou eu! E eu
quase deixei aquilo sair em voz alta.
— Um café não vai me fazer mal.

Não faria, eu sabia que não. Meu marido não tinha a mesma
opinião, e era por isso que eu tomava café e mergulhava no
Listerine, depois de escovar três vezes os dentes sempre que me
dava aquele pequeno prazer.
Não deu para fazer isso naquela sexta, Nickolay estando,
surpreendentemente, sentado no sofá da sala quando cheguei.
— Buonasera, italiano! — Talvez ele não fosse notar.
Mesmo se notasse, passar reto por quem andava tão ausente
estava fora de cogitação.
— Tomou café. — Meus lábios nos dele não ajudavam
exatamente meu caso, a língua que acariciava a minha me fazendo
culpada. — O que falamos sobre café?
— Falamos que a médica disse que posso tomar um pouco, se
eu quiser. — Mordisquei seu lábio inferior, Nico relaxando a
expressão sempre que ganhava meus carinhos. — Quer que sua
filha nasça com cara de café? — perguntei, beijando seu queixo, as
mãos tatuadas me mantendo no seu colo.
— Tome seus cafés comigo — veio numa voz séria, por mais
que sentisse meu italiano bem mais relaxado.
— Pra você me pedir pra experimentar, e tomar mais da
metade do meu cappuccino com cara de nojo? Eu passo. — Ignorei
os olhos escuros estreitando, decidindo que o melhor era me perder
outra vez nos lábios grossos.
Era pouco mais de um ano que tínhamos de convivência, o
suficiente para eu saber de muitas coisas de Nickolay. Eu sabia que
ele gostava quando minha mão fechava nos seus cabelos, assim
como tinha conhecimento de como sentar no seu colo bastava para
deixá-lo duro. Sempre funcionava, ainda mais quando não tínhamos
audiência. Mesmo cansado, aquele era nosso escape bom.
Respirei fundo e forcei mais um sorriso: eu estava imaginando
coisas.
— Bem, se o que agora tá me fazendo querer laranjas for
menina, e nascer com a beleza do pai mais a tentação do café —
ele me encarava curioso. — Que Deus te ajude a aguentar todos os
homens que vamos ter batendo na porta.
Sabia que aquela provocação o faria fechar a cara.
— Nenhum homem vai tocar na minha filha. — Eu rir não
ajudou.
Estava prestes a retrucar quando a mão tatuada coçou o nariz,
vermelho tingindo a caveira. Eu estava imaginando coisas, eu só
poderia estar.
— Um minuto, dolcezza. — Saí do seu colo, o vendo sumir
pela porta de um dos banheiros.
Queria estar imaginando coisas, mas eu não era idiota. Não
era idiota, e era irritante como Nickolay, às vezes, parecia achar o
contrário.
Ainda assim, não falei nada durante o jantar, aquela noite
sendo dividida apenas com ele, nós sozinhos numa sala gigante.
Meu banho foi sozinha, Nico em casa, mas demorando demais para
chegar no quarto, e então na cama.
— Nico, tá tudo bem? — Eu queria fazer outra pergunta, mas
achei mais sábio deixá-lo me falar. Ele sabia que podia me falar
tudo.
Por que Nico não falava?
O sobrenome Orlov e todos os seus integrantes voltaram à
minha cabeça, eu mesma respondendo que aquilo, com certeza, era
carma.
Minhas mãos apertavam os ombros largos, meus lábios outra
vez no corte que ainda curava na sua bochecha. O machucado era
parecido com o que um dia ganhei de Emília, eu sabendo que aquilo
havia sido feito por uma unha.
O italiano desviou do beijo como se meu toque machucasse.
— Estou exausto, Alana. — Ele estava irritado. — Hoje,
principalmente.
— E ontem também. — Doía quando ele me afastava, mas eu
tentava não me importar. — E anteontem. Noites atrás, você dormiu
no banheiro...
— Cazzo, não posso ficar cansado? — Arfei, surpresa com o
tom raivoso escolhido.
O rosto dele mostrou arrependimento no segundo que me
ouviu, as mãos tatuadas me puxando para seu peito.
— Desculpa — escutei a voz, abafada nos meus cabelos,
pedir. — Desculpa, Alana. Só estou com coisas demais na cabeça.
— Tá pegando meu mau humor? — tentei brincar, por mais
que o momento não tivesse graça. — Quer que eu te ajude a
relaxar? — perguntei, outra vez no seu colo como mais cedo, a
calça de pijama o deixando muito mais acessível.
Foi a primeira vez que Nico negou sexo, minha mão dentro da
cueca me rendendo apenas um suspiro frustrado. Eu não estava
imaginando coisas.
— Você tá realmente cansado. — Fechei os olhos, me
forçando a ficar calma. — Nico…
E como se ele soubesse o que eu perguntaria, o italiano me
deitou na cama, se aconchegando em mim.
— Fica.

Os chás de camomila que Nico insistia em me fazer beber


antes de dormir eram maravilhosos. Gostava de ser mimada pelo
italiano, e o quentinho combinado com a massagem que meus pés
ainda nem precisavam sempre me faziam pegar no sono.
É claro que eu não falava para o homem das vezes que o
excesso de água me fazia acordar no meio da noite para usar o
banheiro. Não falaria, ainda mais porque quase sempre eu acordava
nas piores partes de seus pesadelos.
Já tinha uma semana inteira que eles aconteciam. Todas as
noites.
As palavras que saíam dos lábios grossos eram sempre
doídas demais, as de hoje não sendo diferentes. Ele não me
abraçava, as noites sonhando agora o fazendo se virar para o outro
lado e me negar seus braços.
Voltava do banheiro com uma toalha pequena, a testa do
italiano molhada, eu agradecendo baixo por não haver nenhuma
febre. Aquilo melhoraria se eu o abraçasse? O de hoje parecia
infinitamente pior do que o da madrugada que ele chorou o nome da
mãe.
Coloquei o pano na mesa de cabeceira e me deitei ao seu
lado, meus braços sendo mais aceitos do que esperava, Nico os
prendendo com os dele. As mãos tatuadas que me seguravam
tremiam, eu tentando lhe passar alguma paz com meu toque, e
falhando.
— Eu fico, cuore mio. — Não era comigo que ele estava
sonhando.
Não, não haveria paz naquela noite. Eu sabia o dia que os
pesadelos haviam escolhido. Sabia antes de escutar o nome vindo
da voz trêmula.
— Eu fico, Kolya.
Por mais que quisesse deixá-lo descansar, não tinha como
abandoná-lo naquele pesadelo.
— Nico? — Cutuquei seu braço, os olhos finalmente abrindo,
confusos.
Aliviados.
Ele me puxou para o peito, o coração acelerado, uma mão
buscando a minha barriga.
Meu marido não falava, mas eu sabia que ele estava a ponto
de quebrar. Eu sabia que tinha algo acontecendo, e tinha medo de
abrir a boca e pedir o que ele não conseguiria me dar. Talvez manter
aquilo para si fosse a única coisa que o estivesse impedindo de
desabar, as palavras de Armando ainda ecoando na minha mente.
Um Don frouxo é um Don morto.
Ainda assim, respirei fundo, chamando sua atenção mais uma
vez. Eu queria suavizar o que pudesse do meu marido.
— Nico — O que está acontecendo?
Ele esperou a continuação, e eu decidi pedir por algo que
Nickolay pudesse me dar.
— Tem laranja na geladeira?

Ela não se mexia.


— Está tudo bem, Kolya. — Se estava tudo bem, por que ela
não se mexia? — Ela só está dormindo.
— Mas...
— Nós temos que ir.
Mamãe me puxou pela manga da camiseta mais uma vez. Não
era certo deixar a tia Carina no chão.
— Anna está chorando! — Não era certo deixar a bebê que eu
tinha acabado de conhecer chorando. Por que a tia Carina não
levantava para fazer Anna parar?
— Vão vir cuidar dela, meu amor. — E ela me puxou outra vez,
a bolsa cheia das maçãs que eu não podia pegar em um dos
ombros.
Eu não podia, mas eu peguei.
— Mama, não...
— Nickolay, agora!
Eu peguei nas maçãs.
— Não! — Era errado deixar a tia no chão, e mamãe não era
aquela pessoa. Minha mãe era boa.
Mas o tapa no rosto fez eu ficar quieto, minha bochecha
latejando, eu já sentindo as lágrimas vindo.
Eu iria chorar. Só que mamãe estava chorando primeiro.
Uma semana e meia da noite que eu queria esquecer, e ainda
tinha uma marca no cazzo da minha bochecha.
— Pare de se culpar. — Eu deveria parar. Eu, também, deveria
me culpar.
Dimitri descobriu pelo dentista. O homem tinha um dente. Uma
“garantia”, como o maldito havia chamado ao arrancar e substituir
com um falso. Dava para realizar um teste de DNA com aquilo, e
Matarazzo era próximo de Benetti. Ninguém sabia, o velho tendo
nos feito de idiotas uma última vez.
O detalhe quase amenizava minha culpa, mas uma mulher
grávida e sem vida aos meus pés era demais. Isso me tornava tudo
que Alana desprezava, tudo que eu jurei nunca me tornar.
— Você não puxou o gatilho, filho.
Isso me tornava ele. Eu era, finalmente, um maldito executor.
— Ver calado não é a mesma coisa? — acendia irritado outro
cigarro, aquele vício, mais uma vez, não sendo suficiente.
— Não viu calado, Nico. — Lorenzo era o único que não nos
acompanhava nos cigarros, até Matteo com o Marlboro na boca. —
Fez quem atirou se mijar nas calças antes de apagar.
— Deveria tê-lo matado. Eu não deixei ninguém atirar. — Eu,
também, não falei para a soltarem.
— O nosso mundo não é bonito. — Nenhuma palavra servia
de consolo naquele dia, o sol queimando de um jeito que só me
irritava mais. — Sempre soube. — Ainda mais palavras vindas dele.
— O que aconteceu com o não tocar mulheres e crianças? —
cuspi irritado, aquele tendo sido um valor muito ouvido e reforçado
dentro de casa.
Talvez não totalmente seguido por quem os impunha, e
conviver com Armando era insuportável.
— Eu a mandaria para longe. — Passei uma mão pelos
cabelos, o clima quente de um quase verão me fazendo suar
sempre que vestia preto. — Daria um jeito de negociar...
— Nickolay, negociar como? — Armando não andava mais tão
paciente com as merdas que eu falava. — Matou o marido dela!
— Eu não tive escolha!
Alana sempre aparecia nos melhores momentos.
— O que está acontecendo? — Ela usava um vestido amarelo,
a peça larga mal marcando os seios.
Queria ir até ela e ajustá-lo na barriga que já aparecia, e o
cigarro que tinha na mão fez eu me afastar alguns passos,
encostando no carro.
— Não é nada, dolcezza. — Já estava atrasado, e incomodou
ver o sorriso triste que ganhei com a distância. — Vou voltar tarde.
— Apaguei o que fumava no chão, minha mão indo para a porta do
Range Rover. — Amanhã eu passo contigo, bella.
E ali estava eu, novamente, numa vida de mentiras.

Havia duas coisas que eu não queria naquela semana: uma


delas era levar Alana para qualquer evento com a máfia. A outra era
deixá-la sozinha. Naquela noite, o jantar acontecendo na mansão
me impedia do segundo e obrigava o primeiro.
Mantovanni insistia que eu deveria parar de me preocupar, e
apresentar logo a barriga da minha mulher para todos. Rafaella
Benetti estava morta, mas duvidava que a informação tivesse
morrido junto da mulher. O mais velho tinha a mesma opinião, por
mais que não a dividisse comigo. Saber que Emília nos daria sua
presença na noite de hoje me fazia querer pegar Alana e passar a
vida fugindo.
Deveria matar Ferreti, e pensar que talvez agora eu
conseguisse me nauseava.
Alana olhando irritada para o espelho era adorável.
— Isso tá… — Um suspiro frustrado, minha mulher puxando o
tecido que cobria os seios.
— Maravilhoso. — Ela revirou os olhos.
— Apertado.
Fui para seu lado, segurando as mãos que pareciam querer
rasgar o vestido. Alana vestindo preto sempre me deixava duro, mas
o vermelho que tinha escolhido para a noite de hoje conseguia ser
ainda melhor.
Ela inteira vestia vermelho, e eu tentava não pensar que aquilo
era minha mulher se vestindo para a guerra que talvez estivesse por
vir.
— Está bellissima. As duas estão. — A barriga pequena
também marcava com a peça, aquela noite sendo a escolhida para
anunciar o herdeiro que viria. — Tudo fica bom em ti, dolcezza —
falei, beijando o pescoço, meus olhos nos cor de mel pelo reflexo.
— Essas mentiras que você me conta, eu gosto. — A bunda
dela se esfregando em mim não era algo sábio para evitar atrasos.
— Quem disse que te conto mentiras? — E ela sabia, os lábios
vermelho-escuros sorrindo para mim de um jeito inocente. — Ou
talvez eu esteja mesmo mentindo. Se tudo ficasse tão bom quanto
digo, não ia passar minha vida querendo te deixar nua.
Alana não tinha nada de inocente. Não quando minhas mãos
estavam nela, os lábios se partindo sem palavras quando apalpei
seus seios.
— Ah... — Ela também me tirava a coerência quando derretia
com meu toque, os olhos se fechando.
Não conseguia fechar os meus, a visão dela sendo boa demais
para eu me privar. Ainda observando a boca vermelha e todos os
sons que fazia, senti suas mãos agarrarem meu pau por cima da
calça, meus dentes fazendo mais pressão na pele fina da sua nuca.
Eu amava o cheiro dela, assim como amava o jeito que me tocava.
— A gente não tem tempo, italiano. — Não soava como uma
reclamação, eu não sendo impedido de levantar o vestido apertado.
Alana sorriu quando pulsei contra sua palma, a calcinha
rendada da cor do seu batom, aparecendo. Havia passado quase
quinze dias desde a morte que queria ter evitado, eu tendo ficado
todo esse tempo vestido demais perto dela.
Nunca iria tocá-la dopado. Só que me privar da sua boceta
estava sendo uma tortura mútua. Iria fodê-la com todo o descontrole
que andava lutando para manter trancado se continuássemos a nos
esfregar daquele jeito, e foda-se o jantar.
— Quem manda sempre tem. — Minha voz saiu crua, meus
dedos ainda brincando com as bordas do vestido apertado. —
Lembra da noite em que ficou brava comigo? — sussurrei no seu
ouvido, deixando meu indicador passar sobre a renda.
Eu não estava dopado hoje.
— E é assim que você pretende tirar minha roupa?
— Eu não pretendo tirar nada. — Gememos juntos quando
senti a calcinha molhada, já imaginando a visão que seria fodê-la
contra aquele espelho.
— Eu vou entrar em cinco minutos, nem que para isso precise
derrubar a porta! — Mantovanni aparecia sempre nas piores horas.
Grunhi, abaixando o vestido a contragosto, os lábios finos
formando um bico.
— Te compenso mais tarde, bella. — Tirar as mãos dela era
uma tortura diária.
Arrumava a gravata quando voltei a ouvir sua voz, Alana
sentada na cama.
— Nico, você tá nervoso? — olhava para as unhas, elas nunca
mais indo parar na sua boca, mas sempre feitas.
Minha mulher era linda de unhas pintadas, elas mais
compridas me marcando de um jeito delicioso. Eu também não via a
hora de tê-las curtas e roídas. Não tinha como negar que a noite de
hoje estava sendo meu inferno, mesmo com ela perto. E o cazzo do
evento nem havia começado.
— Alana, eu não queria te colocar nesse meio hoje. — O
espelho mostrava bem minha cara de derrota, eu podendo mantê-la
por alguns segundos tendo somente ela de plateia. — Mas eu não
posso te deixar de fora.
— Aconteceu alguma coisa. — Não era uma pergunta.
Foi impossível conter uma risada amarga: aconteceu tanta
coisa nos últimos dias. E agora, estava descendo para um jantar
que, semanas atrás, seria apenas para anunciar o herdeiro que
vinha. Convidar a todos era inevitável, Ferreti fazendo questão de
aparecer me deixando inquieto, o sobrenome longe do meu desde a
noite do cannoli.
— Emília aconteceu. Vamos ter que aturar sua presença hoje.
— A expressão mudou para uma incomodada no segundo que o
nome saiu dos meus lábios, Alana deixando claro toda sua
paciência com aquela mulher. — Ela só está querendo ser vista —
tentei soar despreocupado, querendo acreditar que minhas palavras
eram verdadeiras. — Deve estar incomodada comigo negando sua
ajuda. Como se ela pudesse realmente querer ajudar —
resmunguei, terminando de endireitar a gravata.
A mulher só queria aparecer. Uma última tentativa de me
deixar louco, talvez. Emília Ferreti só queria incomodar, eu repetia.
Ela não sabia de nada.
Mas se soubesse, seria tarde demais para fazê-la
desaparecer?
— Já faz dois meses. — Passei a mão pelos cabelos, indo até
Alana. Ela abriu as pernas e eu me encaixei entre suas coxas,
querendo ficar ali até o final da noite. Irritante aquela não ser uma
alternativa. — É por causa dela que você tá nervoso?
Era um dos motivos.
— Só estou com muito na cabeça, dolcezza — confessei o que
não deixava de ser verdade, nos distraindo com os lábios dela. —
Se qualquer coisa acontecer e for demais, apenas feche os olhos.
— Falar aquilo me deixava com um gosto amargo na boca. — Ok?
Alana nunca mais me dava o trabalho do começo.
— Ok.

Em muitos dos dias, eu queria o trabalho do começo. Nosso


começo, no Brasil, era confortável para mim. No começo, quando
vivíamos na ignorância de toda a nossa real história, seria muito
mais fácil pegar todo o meu dinheiro, e fugir com ela.
Queria ter ido para a Tailândia. Talvez devesse ter grudado em
minha mulher e ido, ao invés de ceder ao rosto triste e deixá-la se
despedir da mãe. Alana não contestaria naquela manhã, não se eu
tivesse dito que aquela seria nossa única alternativa. Viveríamos em
paz, eu para sempre no calor dela, e o medo de ser caçado e morto
seria perto do inexistente.
Ao menos para ela. Eu poderia viver com aquele medo por nós
dois.
Mantive uma expressão neutra ao entrar na sala que reunia a
Famiglia de Matarazzo — a minha Famiglia. Emília era a única
mulher não acompanhada, o jeito que sorria sendo desconfortável
de se ver.
— Finalmente chegou a noite de mostrar seu herdeiro para o
mundo, Don DeLucca — a loira disse com certo divertimento
quando nos aproximamos, vestindo a mesma cor que quem estava
nos meus braços.
Alana a vestia muito melhor.
— Ferreti.
— Devo dar os parabéns, senhora Matarazzo? — Me colocar
na frente de Alana foi automático quando a mulher mais velha deu
um passo para frente, um sorriso amargo tomando conta dos lábios
marrons. — Com medo de mim, Don Morte?
— Não tenho medo dos meus homens, Emília. E acho que se
escolheu sentar conosco hoje, posso te tratar como um deles.
Eu queria que houvesse medo quando a encarei. Diferente do
que queria, o olhar que via nos azuis me deixava aflito. Emília sabia
de algo. Com o azar que vivia em mim, ela sabia do que traria sua
morte, por mais que Rafaella e Ferreti não tivessem sido próximas
quando a primeira era viva.
— E quando você não me tratou como um, Nickolay? — Tinha
satisfação demais naquele rosto quando a frase foi dita, e eu me
forçava a não telefonar para Levina e implorar por sua ajuda.
Nunca nenhuma ajuda vinda do russo mantinha todos vivos.
Só que de nada adiantaria ajuda para matá-la depois da mulher
destilar o que eu esperava ser apenas uma suspeita. Porque, de
algum jeito, Emília sabia sobre a certeza que matou Rafaella. Não
ter desconfiado de justo quem me fodeu no Brasil mostrava o quão
bem andava ocupando o lugar de Matarazzo.
O velho desconfiava de todos, e era isso que eu deveria
começar a fazer.
— Ele está falando para tomar cuidado, Emília. — Alana fez
questão de especificar, e eu já fazia questão de nos tirar dali. — Não
morra pela boca.
Não provoque, Alana. E minhas mãos ficavam outra vez
geladas, manter o rosto neutro um esforço desconfortável.
— Sempre tomo cuidado, senhora Matarazzo. — A risada que
veio foi puro deboche. — Fiquei viva nos últimos dias graças a
muito, muito cuidado. — A mão de unhas longas tocou meu braço,
Emília escolhendo se aproximar mais antes de sussurrar em meu
ouvido. — Nem as mulheres estão mais à salvo hoje em dia, não é
mesmo?
A deixei se afastar antes de me virar para Alana, achando uma
curiosidade que não deveria estar ali nos olhos mel.
— O que ela quis dizer com isso, Nico? — Alana não sabia, e
contar como eu exterminei aquele sobrenome era a última coisa que
gostaria de fazer, tendo ela grávida ou não. — Se disser que eu não
preciso me preocupar…
— Mas não precisa — falei sério, querendo acabar com o
assunto por agora. — Depois, Alana.
Sempre iria preferir nosso começo, o suspiro frustrado e a
conformação não combinando com minha mulher.
Odiava receber sorrisos tristes dela, e me forcei a olhar ao
nosso redor. Lembrava de estar em eventos assim no passado,
tanto com Giovanna quanto sozinho, nenhuma das vezes
confortável. O desconforto permanecia, mesmo com Alana grudada
em mim, seu cheiro de framboesa não me acalmando quando tudo
parecia gritar erro.
As pessoas que se aproximavam de sua barriga para nos
parabenizar gritavam erro. Lorenzo, atendendo o celular e decidindo
sumir de vista gritava erro. Não havia acertos, a sala enorme
parecia pequena demais, e minha mão queria alcançar o que,
naquela noite, eu não guardava no bolso da calça.
Deveria querer tocar nela, apenas.
Por vinte minutos, tentei manter conversas inúteis, qualquer
um que tivesse considerado tocar Alana se afastando sempre que
meus olhos estreitavam. Ninguém precisava tocá-la para desejar
felicidades, assim como mais da metade dos que a faziam queriam
dizer outra coisa, a outra parte provavelmente desejando estar muito
longe dali.
Eu estava paranoico, mas que Don era completamente são?
Alana precisava de um banheiro assim que terminou a taça cheia de
água, e era ridículo me sentir nervoso dentro de minha própria casa.
Não tirei os olhos dela, a porta fechando me fazendo, enfim, pegar o
celular.
“Emília Ferreti sabe.”
E eu apertei enviar.

No nosso mundo, três palavras tinham o poder de decidir o


destino de uma pessoa. Até menos que três.
Quando digitei, eu sabia. Quando apertei enviar, tinha total
conhecimento de tudo que poderia acontecer.
O problema era eu ter enviado tarde demais. Porque nem os
russos conseguiam ser tão rápidos, a não ser que invadissem o
cazzo da mansão. Eu conseguia pensar em jeitos demais de fazê-la
sumir após o jantar. Eu, aparentemente, não tinha tanto tempo. Eu,
também, parecia não ter mais uma consciência.
Estávamos sentados quando considerei simplesmente atirar. A
cocaína havia ficado no porta-luvas do meu carro, mas tinha sim
uma arma comigo. Nos últimos dias, pistolas só desgrudavam do
meu corpo quando Alana as tirava.
Nunca iria esquecer que tudo começou com um bocejo.
— Cansada, senhora Matarazzo? — veio do homem à nossa
direita, Alana corando com a boca ainda aberta, eu enrugando a
testa com o sobrenome falado.
— É DeLucca — corrigi sem muita paciência, uma risada
seguindo minha resposta. — Quer adicionar algo, Ferreti?
O silêncio teria me poupado de minutos de nervosismo.
Porque foram cinco longos minutos considerando tirar a arma, cada
segundo uma nova maneira de justificar um tiro no meio da testa da
mulher. Eu era um monstro por querer matar alguém que já dividiu a
cama comigo, assim como ela era a pior das pessoas por querer
acabar com a minha família.
— Realmente, é DeLucca. — A risada cessou, mas o sorriso
continuou nos seus lábios, minhas mãos escolhendo tocar o metal
da pistola ao invés do garfo. — Matarazzo nunca combinou muito
com você, Alana.
Até o garfo daria conta, se eu precisasse usar algo. Respirei
fundo, empurrando para longe qualquer pensamento relacionado a
minha mulher, e como ela me olharia após me ver matando uma. O
homem que ela viu morrer a deixou distante por tantos dias, e
sentindo o gelado na ponta dos dedos, me perguntava quantas
semanas a vida de Emília poderia me tomar.
Qual seria minha justificativa para a máfia ao puxar o gatilho?
— Tem alguma coisa que gostaria de dividir com a mesa,
Emília? — Madonna mia, por que Alana nunca conseguia ficar
quieta quando precisava?
— Deveria experimentar logo o fettuccine — Ferreti sugeriu
depois de engolir o que mastigava. — Está de matar.
Precisei conter uma risada amarga, o celular vibrando no meu
bolso facilitando minha vida, pela primeira vez. A mensagem curta
me aliviou, ao mesmo tempo que me deixou completamente alerta.
“Considere feito.”
Merda, e eu tirei o dedo do gatilho, colocando a mão de volta
sobre a coxa coberta de vermelho. Alana não parecia perceber
nada, e eu não sabia se agradecia, ou me desesperava.
— Espera — sussurrei em seu ouvido antes de me afastar,
fingindo ser um gesto carinhoso trazer as duas mãos dela para
meus lábios. — Não toque em nada antes de eu falar para tocar —
continuei baixo em português, o gosto dela contra minha língua. —
Se for demais, olhe para baixo. — Ver desconforto nos olhos mel
sempre me deixava igual.
Mas não fazendo ideia do que aconteceria, eu estaria com o
aperto no peito até com Alana ignorante a situação. Considere feito,
como? Alguém entraria atirando? Olhei para Lorenzo, o homem
reconhecendo haver algo de errado em segundos. Armando estava
do lado de fora, e me concentrei para ver se era possível ouvir algo
fora do esperado. Seria ele quem atiraria? Talvez eu veria um ponto
vermelho na mulher, antes do tiro calá-la para sempre.
Quando escutei a tosse, esperava o sangue vir. A única coisa
que veio foi um dos empregados da noite servindo os convidados
que escolheram vinho branco.
— Tudo bem, Emília? — era Mantovanni quem perguntava, a
pior parte de mim querendo que a mulher morresse engasgada.
— Nada que um gole de vinho não resolva. — Emília pegou o
dela, virando um gole grande antes de respirar aliviada.
Queria virar o tinto que havia no meu copo, e disfarcei minha
irritação com Ferreti a direcionando para quem servia álcool a minha
mulher.
— Ela está grávida, não enxerga? — Os olhos da atendente
que servia arregalaram, o vinho derramando sobre o prato de Alana.
— Nico, é só um pouco de vinho. — Ela não se referia ao que
foi servido, mas ao que parou fora do copo, eu sabia. Imaginava as
memórias que vieram, eu levantando uma das mãos, pronto para
falar para trazer outro prato e outro empregado quando o sangue,
enfim, veio.
Ele não veio de Emília.
— Água. — Mas sim de Rocco, que sujou todo o prato ao
tossir.
Não.
— Não toque em nada! — Prender as mãos pequenas foi puro
reflexo. — Colocou alguma coisa na boca? — Nunca uma negação
dela me causou tanto alívio.
Por um minuto, todos na mesa ficaram em silêncio, o homem
cuspindo sangue antes de cair. Sua mulher não o segurou, o capo
indo para o chão, todos se afastando.
Então sua mulher tossiu. E o homem ao lado de Emília.
— Chamem uma ambulância! — Não demorou para o caos se
instaurar na sala de jantar, as mãos pequenas que eu ainda
segurava trêmulas, Alana tentando conseguir minha atenção
enquanto eu tentava descobrir em que comida estava o cazzo do
veneno.
Porque era aquilo que estava acontecendo. Os russos eram
mesmo insanos.
— Nico...
— Feche os olhos. — O último jantar com tanto vermelho havia
sido, pelo que me contavam, no tempo de Armando, e eu, pela
primeira vez desde reencontrá-lo, o quis perto. — Não olhe, cuore
mio. — Mais alguém para protegê-la me deixaria pensar com muito
mais clareza.
Quando eu entendi, minha vontade era de matar todos que
estavam na cozinha. Era o vinho, derramado na minha frente. O
vinho, servido para minha mulher.
— O vinho te tocou? — Tirei o celular do bolso, pronto para
discar para emergência. Foda-se as regras, foda-se as perguntas
que viriam.
Alana se libertou da mão que segurava as dela e me parou.
— Não, Nico. — Eu iria assassinar Dimitri, havia decidido. —
Eu tenho certeza. — Iria quebrar cada osso daquele corpo de
merda.
— Não bebam o vinho!
Apenas quando voltei a olhar para a mesa que notei dois pares
de olhos azuis nos meus. Tinha vinho branco tanto no copo de
Lorenzo quanto no de Emília. Respirei aliviado ao ver que apenas
um tinha sido bebido.
O alívio durou até vê-la se engasgar.
Às vezes, Alana me entendia melhor do que eu. Não
imaginava que ver uma conhecida de anos morrer fosse ser difícil.
Eu era um assassino, eu considerei matá-la a noite inteira. Então
por que cazzo o apoio que minha mulher me dava, ao segurar
minhas mãos, parecia ser o que estava me impedindo de cair junto
com Ferreti?
— Ela parou de respirar!
Puxei meu conforto para perto, minhas mãos querendo
escondê-la de tudo aquilo, o coração dela batendo tão rápido quanto
o meu. Tudo de que eu queria poupá-la aconteceu, e aquela seria a
última vez que Alana chegaria perto da máfia.
Eu gostava das mentiras que me contava tanto quanto amava
o cheiro que me envolvia.
— Ela tá morta? — Contra meu peito, minha mão impedia
Alana de enxergar qualquer coisa que não fosse eu, e assassinaria
Levina com prazer.
Os olhos azuis continuavam abertos, o branco tendo ganhado
uma cor avermelhada. Mas Emília não tossia mais. Imóvel no chão,
o vermelho que ela vestia parecia ter subido, a cor semelhante
demais a todo o sangue que manchava seu pescoço.
— Si.
Havia cinco mortos na minha sala de jantar, e se soubesse que
russos eram tão insanos, eu mesmo teria feito o serviço.
Foi muito mais tarde, quando abri e li a mensagem completa, e
não só o que meu visor mostrava, que descobri estar errado. Matar
Levina não seria uma tarefa.
“Considere feito. Consigo alguém para resolver isso
amanhã.”
Matar Levina teria sido menos preocupante do que descobri-lo
ausente de culpa na tragédia da noite.

1995

— Quer segurar Anna?


A pergunta era como um tapa.
Não, aquilo estava errado. Eu não sentia tapas. Nunca senti os
dela, nem os brincalhões, ou os que a mão pequena havia tentado
dar cada vez que a dona terminava brava. Eu deixava Carina brava
demais, e me perguntava, todos os dias, como ela ainda me deixava
entrar no apartamento.
Eu não sentia seus tapas: aquela pergunta era como um tiro
no peito. Tiros no peito queimavam, e te faziam, por alguns
segundos, querer morrer. Talvez a pergunta, então, fosse pior que
um tiro no peito.
Ela tinha emagrecido tanto, desde a última vez que a vi. Eu
não esperava que minha mulher estivesse tão magra quanto da
primeira vez que a vi sem roupa, mas mal havia ganhado peso
durante a gravidez. A chamava de magrela, e o apelido também já
havia me rendido bons tapas.
Carina estava imóvel nos meus braços, e meu desespero me
fazia negociar com um Deus que nunca iria me ouvir. Se minha
mulher respondesse, eu a deixaria bater o quanto quisesse. Deveria
ser choque. Deveria ser: eu estava dormente. Me senti dormente
desde que li a carta, desde que corri para a praia. Meu filho estava
tremendo na beira do mar, e eu mal consegui esquentá-lo.
Sem o meu sol, sentia que nunca mais esquentaria nada,
assim como nada mais na vida me faria quente.
— Armando, quer segurar…
— Não! — Eu a ouvia chorar pela primeira vez, e com Carina
morta nos meus braços, tinha certeza de que nunca esqueceria o
som. O choro de Anna combinado com a visão de sua mãe de olhos
abertos era a coisa mais triste que havia presenciado até hoje. —
Tire ela daqui!
Eu não conseguia chorar. Não conseguia sentir nada senão
derrota, e se pegasse minha filha no colo, tudo daria errado.
Fugiria com os três sem pensar. Nos achariam. Pegariam
Nickolay e matariam o resto. Barbara, como se conseguisse ouvir
meus pensamentos, fez com quem segurava o último pedaço dela
sumir para dentro do quarto que tantas vezes dividimos. Era a última
vez que eu entrava ali, sabia disso, assim como era a primeira e,
provavelmente última, vez que ouvia minha filha.
— Filho… — Era patético me livrar da mão que segurava meu
ombro, puxando para mais perto quem ainda estava quente.
Carina ainda tinha o cheiro único dela, e pensar que nunca
mais o sentiria era como derramar ácido no peito. Realizar que ela
estava morta estava me matando.
— Por que ela? Por que Katerina não me matou? —
perguntava o que ninguém tinha resposta. Nenhuma mão no ombro
me ajudaria, assim como não existia nenhuma palavra para me
consolar. — Vá ficar com os meninos. — Minha voz saía patética, eu
me sentia patético. — Por favor.
Tão perto.
— Deveria segurá-la, filho. — A mão voltava para meu ombro,
as minhas nunca saindo dela. — Nunca vai conseguir deixá-la ir se
não fizer isso.
Eu nunca conseguiria deixar nenhuma das duas ir, Barbara
não entendia? Estava no inferno, mesmo vivo. Talvez fosse aquilo
que um assassino merecesse, mas não parecia justo envolver
inocentes na minha tortura. As duas que partiam eram tão inocentes
quanto os meninos que me esperavam em casa.
— E nunca vou conseguir deixá-la ir se a segurar. Então o que
faço? — Tudo que mais queria era a resposta vinda dos lábios
pálidos. — Me mato a mandando embora, ou mato a todos, fugindo
com ela e os meninos? Como eu fujo com três crianças? Duas que
não vão parar de chorar! Nico vai pedir pela mãe, e eu vou
traumatizar o moleque contando a verdade sobre essa puta
assassina!
E minha visão, pela primeira vez em tanto tempo, ficou
embaçada por lágrimas.
Cazzo, Carina. Só tu para me dar tantas primeiras vezes.
— Pelo menos aqui, eles têm Lorenzo — funguei, limpando os
olhos. — Têm tu.
— Armando...
— Deixa eu me despedir delas, Barbara. — Afastei uma última
vez a mão que tentava me passar calor. — Hoje eu perdi minha
mulher e minha filha. Vá para o quarto, me dê um minuto.
Ouvi o click da porta se fechando, o choro do bebê ficando
abafado. Era difícil processar que aquela seria a última vez que a
teria nos braços, meu tempo ali acabando.
Já tinha tudo planejado. A praia estava limpa, o corpo que não
podia estar ali, desaparecido. Sabia o que deveria fazer com o bebê
que chorava, Lorenzo tendo me dado a melhor das ideias quando
me desesperei. Tudo daria certo.
Para os outros.
— Ela vai ter uma vida boa, amore mio — a assegurei,
esperando que, de algum jeito, Carina entendesse. — Longe do
sangue, do jeito que sonhamos em dar. Eu tenho a pessoa perfeita
para isso, então não se preocupe. Não precisa se preocupar com
mais nada, bella. Só descanse. — Fechei seus olhos, fazendo o
mesmo ao encostar a testa na dela. — Todo o descanso que te
prometi, eu vou te dar. Eu vou cuidar das crianças, magrela. Eu vou
cuidar dos três.
A abracei pela última vez, querendo que seu cheiro ficasse
para sempre na minha memória.
Foi quando abri os olhos que vi. Tinha uma luva pequena
demais embaixo da mesa.

— Eu me sinto péssima por ficar feliz com isso — confessei,


ao fim de mais um funeral. Parecia que nossa vida andava cheia
deles, e ficar muito tempo de pé estava se mostrando cansativo
demais.
Encostando no carro, respirei fundo o cheiro do meu italiano,
depois de sentir flores de cemitério por mais minutos do que
gostaria. Nunca gostei de aromas florais, e quem crescia dentro de
mim parecia odiar mais do que eu, me fazendo sentir enjoo durante
toda a cerimônia.
Ou talvez fosse o medo, finalmente de volta, o sentimento por
tanto tempo ausente. Eu teria bebido o vinho. Se Nico não tivesse
reparado que era álcool, eu teria, no mínimo, dado um gole. E pelo
que vi, um gole teria bastado.
Mesmo se tivesse escolhido não beber, o líquido poderia ter
caído em mim, e talvez fosse o suficiente. Nunca precisei pesquisar
como venenos funcionavam, afinal. Quis rir: nos dias de hoje, todas
as pesquisas que queria fazer no Google com certeza chamariam a
atenção da polícia.
Ele estava tão apavorado quanto eu, sabia mesmo sem meu
marido verbalizar. Os berros com os outros o denunciavam
bastante. Quem nos serviu desapareceu, e Nickolay, no final do
jantar vermelho, gritava ao telefone.
— Eu também — ele admitiu quando encostou o corpo no
meu, a tarde chuvosa nos fazendo dividir um guarda-chuva.
Havia passado menos de um dia, e os mortos já estavam
enterrados. Não imaginava que fosse tão rápido, mas também, não
me lembrava de velórios ou perdas no Brasil. Fechei os olhos, um
sorriso fraco nos lábios: sentia falta da paz da minha vida antiga.
Minha vida antes da merda que havia feito ao dizer sim para
Thobias. Por mais que abraçasse toda a minha calma agora, eu
queria uma muito maior para nós três.
Como teria sido viver uma vida normal com Nico? Conhecê-lo
com dezoito, dar para ele todas as minhas primeiras vezes? Tê-lo
sem traumas, nós dois dividindo almoços de domingo com uma
família.
Eu gostava de sonhar, por mais que não me fizesse bem.
— O que ela ia falar, Nico? — fiz a pergunta que havia me
tirado o sono na noite passada.
Imaginava a resposta que viria.
— Eu acho que... — Mas Nico não parecia tão certo ao
aproximar mais seus lábios de mim, sussurrando a continuação na
minha orelha. — Ela falaria de ti, dolcezza. Desconfio que Emília
sabia, mas nunca vamos ter certeza.
— Sabia como?
Meu coração acelerou, como sempre fazia com a respiração
dele tão perto. Era outra coisa que queria escapar dos meus lábios,
e se o vinho não tivesse sido servido para mim, teria perguntado se
havia dedo dele.
Parecia que me tornava cada dia mais óbvia.
— Não fui eu, Alana. — A testa encostou na minha, os olhos
escuros, sinceros. — Nunca colocaria minha família em risco desse
jeito.
Ele se afastou quando nossas três sombras se aproximaram,
Lorenzo com um humor que competia com o meu — e o de Nico —
desde a noite passada. Com razão: ele quase bebeu do vinho ruim,
e ninguém sabia quem tinha tentado matar uma máfia inteira. Ou, ao
menos, os apreciadores de um sauvignon blanc.
— Acha que foi seu irmão? — Nickolay fez que não, os pingos
que caíam no guarda-chuva ficando mais pesados, os sons deles
batendo contra o metal do carro, fortes. — Então quem?
— É o que estou tentando descobrir. — O beijo veio na testa,
meu italiano se afastando e abrindo a porta do carro. — Talvez seja
a hora de chamar Levina para mais um café.
— Ou uma vodka. — Lorenzo não deixou passar, mas não
havia nenhum divertimento em seu rosto naquela tarde. — Já
fizemos nossa parte aqui.
Nunca havia divertimento algum, e com as mãos na barriga,
olhando para fora enquanto deixávamos o cemitério, me perguntava
quando conseguiríamos sorrir novamente.

Precisava admitir que as pessoas se esforçavam para me ver


sorrir.
— Uma vez eu estava acampando. E tinha esse cara do norte
que virou para mim e disse: é do sul, deve ser mafioso. — Entre
uma garfada e outra, a última pessoa que imaginava poder contar
uma piada o fazia. — E eu disse: nem todo sulista é mafioso, assim
como nem todo sulista gosta de pizza.
— Pizzas são famosas no sul, dolcezza — Nickolay explicou
ao me ver confusa, tomando mais um gole do líquido âmbar.
— Passou uma hora, ele volta: me convença que não é
mafioso. Sempre fui paciente, então disse outra vez que não era, e
que todo meu dinheiro vinha de jardinagem e boas ervas. — Boas
ervas, claro. — Achei que o tinha convencido quando expliquei que
boas ervas eram difíceis de se achar no sul, e que todo sulista
gostava de um orégano.
Os olhos escuros de Nico pararam em mim quando mexi os
ombros, tentando conter uma risada. Maconha cheirava muito mais
forte que orégano, e aquela analogia era tão ridícula que se tornava
engraçada.
— Dia seguinte, il figlio di puttana[42] acorda e me chama: ei,
mafioso! — Aquilo nem era engraçado, mas precisei colocar a mão
na frente da boca. — Ma che cazzo de uomi[43], nunca mais ia me
dar paz! Na quarta vez que perguntou, eu sabia o que tinha que
fazer. — Armando pausou, olhando para todos da mesa, Lorenzo já
sacudindo a cabeça. — E ele nunca mais abriu a boca para
ninguém.
E meus ombros sacudiram uma, duas vezes, morder o lábio
inferior não adiantando. Eu não sabia o que tinha de tão engraçado
ali: se não fosse uma piada, aquilo era Armando contando como
matou um cara que o irritou. Só que não rir não era uma opção para
o meu cérebro. Gargalhei até a barriga doer, meus olhos molhados
quando finalmente consegui respirar sem voltar a ter uma crise de
riso.
Eu estava tão estragada por achar graça daquilo.
— Nico, conseguiram te superar! — Quem provocou foi
Mantovanni, o mais velho sempre caçoando das piadas que meu
marido dividia.
— Não ri das minhas piadas desse jeito, dolcezza. — A
reclamação foi ignorada com sucesso por todos.
— Ele já contou a das lâmpadas? — Matteo perguntou, eu
fazendo que sim.
— E a da semelhança entre a boceta e a máfia também.
— Eu não te contei isso! — O tom inconformado me fez rir
mais um pouco.
— Eu ouvi da sua máfia, e você deu risada! Mesma coisa!
Nickolay revirou os olhos, voltando a prestar mais atenção na
sua comida do que em nós.
— Completamente diferente.
Era uma pequena vitória ele ter ouvido Armando quieto, e eu
imaginava que havia sido um esforço não querer matar o homem.
Talvez fosse um esforço diário, visto as memórias que meu italiano
deveria ter cada vez que olhava para quem chamou boa parte da
vida de pai.
Eu gostava dos esforços de Nico. Naquele domingo,
almoçávamos nós cinco no mesmo restaurante em que, meses
atrás, tivemos o primeiro brunch italiano. Era como se ele tivesse
lido meus pensamentos e me dado uma situação normal no meio do
caos. Um almoço no pátio aberto era normal o suficiente para mim.
Queria fazer o mesmo por ele. Os pesadelos continuavam,
assim como os círculos pretos estavam cada vez mais visíveis.
Nickolay estava dormindo mal, e entre uma garfada e outra,
bocejava. O último o fez pedir mais uma dose de whisky — não
deveria pedir café? — o garfo esquecido sobre o guardanapo
enquanto meu marido virava metade do copo.
Talvez ele não pedisse café para evitar me tentar, mas preferia
morrer de vontade a sentir o cheiro amadeirado de agora.
— Che? — A pergunta veio quando, pela primeira vez em
muito tempo, me afastei de um dos seus beijos.
— Está fedendo a whisky, Nico — foi Lorenzo que o censurou,
meu marido enrugando a testa antes de procurar meus olhos.
— O que está na sua barriga não gosta mais de whisky?
— Ah, o que tá na minha barriga não é exatamente culpado
dessa vez — deixei escapar, querendo voltar e responder apenas
sim. — Eu só não gosto do cheiro, italiano.
— Nunca reclamou antes. — Era uma verdade.
Será que se eu lhe desse uma verdade minha, ele finalmente
me contaria por que a mão estava trêmula? Falaria sobre seus
pesadelos, pediria ajuda, voltaria a comer mais, ao invés de sempre
deixar comida no prato?
Não havia passado um mês do dia em que o mafioso deixou
um banheiro cheio de sangue. Nickolay estava tão exausto quando
abriu a porta que apagou assim que caiu na cama, suas tentativas
de tirar todo o vermelho dos azulejos, falhas.
Eu sabia que meu marido tinha usado droga, por mais que o
homem tivesse se esforçado para esconder. Os olhos vermelhos, a
dor de cabeça que não passava, todos os copos d’água que ele
bebeu.
— Eu meio que odeio whisky. — Talvez ele parasse de usar se
eu falasse o motivo de saber reconhecer os sintomas. — Thobias
bebia. — Thobias, também, cheirava coca. Ele, com certeza, estava
cheirado quando matou Gabriela. — Bastante. — Mas antes de tirar
a única válvula de escape que parecia estar funcionando para meu
marido, eu precisava descobrir o que o ajudaria a parar de precisar
de algo tão forte. — E quando ele bebia...
— Nunca me disse isso, Alana. — O olhar culpado que ganhei
me faria ficar quieta sobre a cocaína até eu morrer. — Tu. — Ele
gesticulou para um dos garçons, o homem se apressando para
nosso lado. — Leve todos os copos. Traga café.
— Mas o senhor…
— Agora. — Não houve mais palavras do garçom, Matteo
controlando o riso ao ver a cara de Armando ao ter o copo removido
da mão.
Não dava para negar que ninguém estava acima do meu
marido no restaurante, e eu imaginava que todos tinham ordens de
não trazer café para nossa mesa. O desespero ao ter o líquido preto
requisitado foi palpável, e ao mesmo tempo que eu queria rir, sentia
dó do atendente, ainda mais quando Nico quase o infartou ao
segurá-lo pelo braço.
— Parem de servir whisky nesse restaurante enquanto
estivermos aqui. — O homem fez que sim antes de sumir com a
bandeja.
Aqueles detalhes que o italiano fazia questão de dar me
derretiam por dentro, me fazendo superar qualquer enjoo. O puxei
para minha boca pela gola da camisa, franzindo o nariz e lhe dando
o beijo que eu antes havia negado. Amava os suspiros contentos
que ganhava dele, e decidi me esforçar e nem reclamar do café que
ele tiraria de mim assim que as xícaras chegassem.
— Obrigada.
O almoço foi normal até a saída do restaurante, Nickolay
parando para cumprimentar um conhecido comigo enquanto os
outros três iam para o carro. De longe, vi minha companheira de já
tantos passeios, acenando antes de chamar seu nome.
— Helena! — A ruiva sorriu sem graça, parecendo nervosa
antes de sumir por uma porta. Nickolay, que prestava sempre
atenção em tudo, se despediu do casal com o qual conversava e se
afastou comigo, mantendo-se quieto até chegarmos na saída. — Ela
deve estar ocupada…
— Estão conversando? — A voz não era mais gentil como
antes.
— Ah, eu a vi algumas vezes. — Por que ver Helena parecia
ser um problema? — Quando eu saí, foi ela que me ajudou a
comprar o vestido que você gostou. Lembra dele, não lembra? —
Dei um sorriso que não foi retribuído, Nickolay parecendo bravo.
Bravo comigo.
— O que falou para ela? — o italiano bufou, a cara fechada. —
Por que não me disse que estavam saindo?
— Porque você pareceu ok com nós duas conversando
quando eu a conheci! — E meu dedo, que ficou por tanto tempo
longe da minha boca, voltou para ela, meus dentes achando uma
das peles soltas.
Bem, havia tido, ao menos, metade de um dia normal.
— Ela não quer ser sua amiga, Alana! — Ouvir aquilo
incomodou tanto quanto o olhar preocupado que vinha de Armando.
— Cazzo.
Respirei fundo, pensando em tudo que tinha dividido com a
mulher mais velha: não havia nada que não pudesse ter falado.
Todas as frases que trocamos, eu trocaria com qualquer outra das
mulheres que dividiram uma mesa comigo na Itália. Helena não era
minha amiga, e realizando aquilo, percebi que sentia falta de ter
uma.
Nickolay coçou os olhos, antes de cobri-los com os óculos
escuros, alcançando um cigarro que nunca foi aceso.
— Helena tinha um restaurante, ela e a família. — Fiz que sim,
a mulher tendo dividido a informação comigo. — Ela te contou o que
aconteceu com o restaurante?
Respirei fundo: não em palavras mais diretas, mas a frase dita
naquele dia havia deixado subentendido.
“É engraçado como a gente acha que não vai entrar numa
vida, e julga os outros por entrarem.”
— E aí algo acontece — sussurrei, já imaginando o que vinha.
— Os pais estavam metidos com Matarazzo. Um dia, as coisas
deram errado. O restaurante pegou fogo com os donos dentro. —
Ele pareceu incerto sobre continuar ou não. O sim foi uma pequena
vitória para mim. — Foi semanas depois de eu cortar contato com
ela. Giovanna achou uma das nossas conversas, ela disse que iria
embora com meu filho se aquilo não parasse.
— Mas vocês não tinham nada...
— Não ter nada nunca a impediu de fazer da minha vida um
inferno. O acidente não teve relação com Giovanna. Mas imagino
que, para Helena, possa parecer diferente. — O italiano passou a
mão pelos cabelos, a que tinha a caveira voltando a me tocar, me
puxando para perto. — Tenho dó de Helena, mas não confio nela.
Por favor, não a veja mais. — O pedido vinha com desconforto, eu
vendo um pouco de arrependimento por trás das lentes escuras.
— Me conte as coisas que eu preciso saber, Nico. — Minhas
mãos seguraram seu rosto, e essa era a hora que eu deveria estar
em cima dele.
Mas resolvi que daria mais uma chance do homem me contar,
antes de apelar para a única outra carta que tinha.
— Tem mais alguma coisa que eu preciso saber?
Ele tirou o cigarro apagado dos lábios e tocou a testa na
minha, me beijando na bochecha antes de nos separar.
— No.

Mas tinha, e eu sabia. Por mais que Nickolay achasse que eu


continuava ignorante ao que ele me mostrava sem falar, tinha
certeza do que havia naquela maldita caixinha prateada que já tinha
pegado com ele três vezes. Eu não perguntava, ele fingia que não
havia sido pego.
Por mais estressante que fosse a máfia, por maior que fosse o
perigo que corríamos diariamente, meu marido usando a mesma
coisa que eu havia jogado pelo ralo da pia no Canadá não era algo
que eu assistiria quieta. Nico se afundando em drogas não era
aceitável, por mais que, lá no fundo, eu soubesse o porquê de ele
estar fazendo aquilo.
O italiano tinha passado o dia fora com Lorenzo, com certeza
indo jogar golfe ou o que fosse agora que os grandes sobrenomes
sicilianos da política queriam fazer. Era a primeira vez que gostava
— realmente gostava — de passar o dia com meu pai biológico.
Porque o mais velho devia isso a Nico. Ele tinha que dar um jeito.
— Armando? — Ele estava do lado de fora, os óculos no rosto,
o homem aproveitando o sol do meio-dia quando o chamei.
— Si? — Tinha curiosidade na voz, e foi triste pensar que eu a
mataria com um assunto ruim.
Só tinham coisas ruins, ultimamente.
— Disse que eu poderia pedir qualquer coisa pra você. —
Coloquei as mãos na barriga, tentando tirar forças do que criamos
juntos. Respirei fundo, reunindo a coragem para falar daquele
assunto justo com quem Nico mostrava desgostar.
Bem, ele teria que me desculpar. Eu não via outra pessoa
capaz de ajudar meu marido que não o homem parado na minha
frente.
— Precisamos conversar sobre seu filho.

Como minha vida deu tão errado?


Pensar nisso enquanto a olhava era a coisa mais errada que
fazia. Alana e nossa barriga eram as maiores vitórias que havia para
mim, a visão de agora muito longe de qualquer erro.
Ainda era primavera, mas estava quente. Ao menos, minha
mulher suava e olhava com desejo demais para a piscina, Alana
tendo se transformado numa fonte eterna de calor desde que entrou
no segundo trimestre.
Não precisava de muito para eu realizar qualquer desejo que
minha mulher tivesse. Bastou ela me dizer que queria mostrar o
maiô comportado, achado em um de seus passeios, e estávamos
todos na piscina da mansão. Bem, ela estava na piscina da mansão,
eu e Lorenzo derretendo debaixo do sol, o cazzo da reunião que
não poderia adiar me fazendo vestir preto ao invés de entrar na
água fria.
— Onde está Matteo? — perguntei, o copo de água gelada
suando junto comigo.
Debaixo do guarda-sol, deixava o whisky para tomar com as
visitas que chegariam em breve, apreciando a peça de banho que
agarrava o corpo da minha mulher. A cor amarela caía bem nela, e
me deixava ansiando pelo dia que poderia voltar a usá-la.
— Fora com seu pai.
Eu não usava amarelo na máfia. A ausência de cores alegres
era meu lembrete constante de que precisava fazer as coisas darem
certo. Ou eu acertava, ou passaria a vida em preto e branco.
Acertar, no momento, queria dizer criar alianças políticas para
favorecer Alexei. Esperava que o maldito se cansasse logo de me
infernizar. Não tinha sentido eu estar ali, quando poderia ser
qualquer outro. Quando poderia ser Lorenzo, muito mais
competente que seu irmão caçula.
— Meu pai está aqui. — Os olhos azuis, que eu sempre achei
tanto que quisessem o maldito título, agora, me censuravam. —
Che? Estou falando alguma mentira? Quer abdicar da posição? Ser
pai de um Don é difícil demais pra você?
— Pra você — o mais velho riu. — Está pegando todas as
manias da sua mulher.
Ao menos, Alana me dava boas manias. Estava prestes a
responder aquilo quando um grito veio da piscina. Mas, diferente do
grito dado na piscina brasileira, o de agora chamava meu nome.
— Nico! — As mãos pequenas estavam na barriga, os olhos
arregalados, e Alana sobre a boia vermelha assim seria engraçado.
— Nickolay!
Seria engraçado, se ela não estivesse berrando. Os gritos dela
sempre faziam meu coração disparar, e ao mesmo tempo em que
eu não entendia o que havia de errado, sabia que havia algo.
— O que foi? — levantei rápido, indo para a borda da piscina,
já me livrando dos sapatos. Ela parou de falar, a boca aberta num
“O”, antes dos olhos ficarem ainda maiores. — Alana, o que foi?
Então ela sorriu.
— Eu… — E mostrou, novamente, para o mundo inteiro, o
quanto era desastrada.
De fora, imaginava que a cena era sim uma engraçada. Um
Don, responsável por tantas mortes e temido por metade da Sicília,
pulando de social na piscina porque sua mulher resolveu escorregar
da boia e afundar.
— Porcodio! — A água estava mais gelada do que imaginava,
e mergulhar de roupas era tanto desconfortável quanto fazia eu me
sentir ridículo.
Talvez ela também achasse a visão ridícula. Alana ria,
flutuando ao lado do plástico, uma mão na boia, a outra sobre sua
barriga. Cheguei em segundos ao seu lado, mas ela não parecia
precisar de ajuda nenhuma.
Ela nem mesmo a havia pedido. Talvez a estivesse protegendo
demais, como Lorenzo — que também ria do que observava, ainda
sentado — vivia me falando. Mas como não proteger minha família?
Alana não era burra, eu sabia que não, mas a mulher era inocente
demais para nosso meio. Era esse o motivo de eu mantê-la no
escuro para tantas das coisas.
Eu a queria inocente. A vida já havia lhe tirado demais.
— Dolcezza, quer me matar do coração? — Com certeza
estava tentando, a mão pequena agarrando uma das minhas, a
colocando contra a barriga coberta.
— Aqui. — Fazia tempo demais que não dava um sorriso tão
sincero. — Consegue sentir?
A máfia estava me tirando tantas coisas, que era impossível
não ficar feliz por ter conseguido estar presente justo naquele
momento. Compreendi antes dos olhos mel pararem nos meus o
que ela queria me mostrar, assim como sabia que não havia
concentração que fosse me fazer sentir o que ela experimentaria
sozinha por mais algumas semanas.
Eu não precisava sentir nada se mexer para aquilo me encher
de alegria.
— É a primeira vez que eu percebo isso. É tão leve, mas eu
sei que é ela.
— Ela? — Encostei as duas palmas na barriga, meu sorriso
tão grande quanto o dela. — Estamos os dois achando ser uma
menina, agora?
— Você fala tanto “ela” que eu tô quase colocando Ella na
minha lista mental… — A boca nunca terminou a frase, eu não
ligando para a plateia e achando seus lábios.
Alana se importava tanto quanto eu, as mãos me segurando
forte, as pernas rodeando minha cintura. Ela tinha gosto do suco de
laranja que tomou por toda a tarde, o cheiro de cloro em nós dois
quase mascarando o cigarro que eu havia fumado mais cedo. Fui
até a borda da piscina com minha mulher nos braços, a colocando
sentada antes de parar no meio das suas coxas.
— É forte. É forte como a mãe. — E as abracei, meu rosto
contra a barriga, eu nos permitindo ter aquele momento. Foda-se a
máfia, e todos os horários que odiava cumprir. — Sinto tanto orgulho
das duas — falei ao levantar a cabeça, achando olhos brilhantes. —
E Ella é um nome maravilhoso.
— Acha, é? — Ela levantou uma sobrancelha, correndo as
mãos pelos meus cabelos do jeito que eu gostava. — Já faz tempo.
Puxei uma respiração, agradecendo toda a água fria quando a
senti puxar meus fios. Soltei um gemido baixo, Alana, com tão
pouco, me fazendo querer lhe dar tudo. Minha mulher afastou as
mãos quando estreitei os olhos, mas o meio sorriso continuou.
— Eu sei que faz, bella. — Eu sabia, mas jamais a tocaria
depois de noites ruins. Claro que nunca lhe daria o motivo das
minhas negações, Alana fazendo tempestades sempre que a tratava
como um cristal.
— Eu disse — ela fez um bico. — Disse que ia parar de querer
tirar minha roupa quando meu corpo mudasse.
Um grito surpreso escapou dos seus lábios quando a puxei de
volta para a água, as costas desnudas encostando no azulejo da
piscina.
— Isso sou eu não te querendo? — Coloquei sua mão no meu
pau, Alana o apertando ao soltar um suspiro sendo tentador demais.
— Eu posso não tirar sua roupa sempre, mas eu sempre quero
você. Eu sempre estou duro pra você. — Aproximei os lábios de seu
ouvido, o arrepio percorrendo sua pele não passando despercebido.
— E se Lorenzo não estivesse vendo, iria te foder agora. — Era
tudo que eu queria, minhas mãos contornando seu corpo até a
polpa da sua bunda.
Cazzo, os sons que ela fazia me deixavam sem pensar.
— Debruçada em algum lugar, do jeito que gosta.
A porta da frente se abrindo avisava que eu faria a reunião
ensopado.
— Você faz muito bem pros meus hormônios.

Era mais uma noite que chegava tarde, mais uma que limpava
a sujeira no banheiro da entrada. Fazer isso era bem mais
automático depois da quinta vez, naquela quarta, o vermelho vindo
apenas de ameaças.
O maiô amarelo mantinha minhas piores obrigações bem mais
coloridas, eu prometendo tirá-lo dois dias atrás, e nunca o fazendo.
Lavava as mãos me sentindo derrotado, pensando em quanto
tempo mais demoraria para Alana começar a desistir de mim.
Havia dias nos quais dormia no banheiro, madrugadas onde eu
resolvia que apagar no escritório fingindo trabalhar era o melhor a
ser feito. Eu ligava para Adrianno numa frequência maior que a
esperada, não me sentindo no direito de ter qualquer conforto nas
noites que chegava dopado.
Sempre me sentia no direito de tocá-la quando passava um dia
sóbrio, sem tirar nenhuma vida. Chutando meus sapatos, colocando
a arma sobre a cômoda, entrei ainda vestido embaixo do lençol e
abracei Alana por trás. Hoje não tinha nem morte nem coca no
sangue, eu não me sentindo um puttano fechando os olhos ao lado
dela e da barriga que crescia. Não esperava um suspiro, as mãos
indo até meus cabelos num carinho.
— Acordada? — perguntei contra a pele de seu pescoço,
minha língua provando seu gosto, framboesa sendo o melhor
perfume.
— Agora eu tô — veio numa voz preguiçosa, Alana me
arrancando um suspiro ao pressionar a bunda contra meu pau.
Fazia mais de um mês da primeira noite que precisei cheirar
para matar um homem. O poder que sentia ter depois das gramas
de pó branco era o suficiente para aguentar todos os pensamentos
que acompanhavam as vidas que tirava. O problema era o que
vinha depois dele.
Os sintomas físicos eram ruins o suficiente. Os emocionais
estavam perto de me derrubar, cada dia passado sem a droga
ficando mais difícil. Quando Emília morreu, havia alcançado a
cocaína após trancar Alana no quarto, precisando consumir meu
vício para poder passar pela noite. Usar mesmo sem necessidade
mostrava bem minha dependência.
Não a tocar nos dias de fraqueza era um castigo que impunha
a nós dois, Alana pagando novamente pelos meus erros. Ela não
merecia as vezes que me afastava, e eu a compensaria hoje: aquela
noite era dela.
Já fazia tanto tempo, vinte dias sendo uma eternidade. Minhas
mãos foram da barriga para seus seios, o tecido contra minha pele
estimulando bem minha imaginação. Alana me deixava duro em
segundos, e eu precisava esquecer de tudo que havia fora do nosso
quarto para continuar assim.
Minha mulher fazia um trabalho espetacular em ocupar todo
meu cérebro quando perto.
— Cansada? — sorri ao ouvi-la arfar, meus dedos torcendo os
bicos por cima do sutiã, Alana fazendo que não. — Sensível?
— De um jeito bom — ela respondeu numa voz preguiçosa,
virando a cabeça e me oferecendo seus lábios.
Deveria viver com Alana ao meu lado, os efeitos do toque da
minha mulher sendo melhores do que qualquer outra coisa que
poderia consumir. Devorei sua boca, parando de provocá-la e
abrindo minha calça. Soltei um suspiro satisfeito quando a mão
pequena abaixou minha cueca, a renda agora roçando no meu pau,
me fazendo puxar o lençol para baixo.
— Cazzo, Alana. — Aquilo que minha mulher vestia era uma
versão melhorada da primeira foto que recebi dela. Me obriguei a
parar e observar direito a lingerie, o conjunto rendado perfeito no
seu corpo. — Onde achou isso?
A virei de costas, a observando de cima, os seios enchendo
bem demais o sutiã.
— Fiz umas compras por aí. — Ela levantou os lábios de um
jeito que fazia eu querer mandar qualquer controle para o inferno e
me enterrar nela. — Gostou?
Vi o instante que o arrepio percorreu seu corpo, meu indicador
traçando as bordas da calcinha até eu deixá-lo deslizar para dentro.
Alana também o deixou entrar, e descobri-la tão molhada me fez,
pela primeira vez, mandar qualquer preliminar para o inferno.
Bastou afastar a calcinha. Sua boceta pulsou ao meu redor
quando a cabeça entrou, o tecido raspando no meu pau apenas me
estimulando mais. Minha mulher nunca era silenciosa, os sons
vindos de sua boca sempre maravilhosos, por mais que cada choro
me deixasse próximo demais de gozar.
— Isso responde sua pergunta? — foi minha vez de gemer ao
deslizar mais, e pela primeira vez, gostei de fechar os olhos e
lembrar das piores cenas da noite.
— Vamos acordar a casa inteira… — Ela nunca terminou de
falar, meu dedão achando seu clitóris a deixando entregue em
minhas mãos.
— No me frega un cazzo[44], eu tranquei a porta. — Expirei
forte ao me sentir por inteiro nela, ficar parado perto do impossível.
Alana não ficava, cada movimento circular a fazendo pulsar, meu
controle quase extinto. — Abre para mim, bella. — Mas ela fez o
oposto ao me ouvir, as mãos agarrando o lençol, um som rouco
saindo dos lábios finos.
Já fazia tempo demais, e eu não aguentaria um minuto com
minha mulher me apertando daquele jeito. Alana reclamou quando a
deixei, mas os olhos mel ficaram curiosos quando abri a gaveta da
mesa de cabeceira.
— Também fiz umas compras. Quer ver? — Os lábios
formaram um “O” como na tarde da piscina, ela entendendo o que
eu tinha nas mãos antes de colocá-la de quatro. — Isso vai ter que
sair. — Enganchei os dedos na renda, abaixando a calcinha, ela
torcendo o lençol com a bunda para cima sendo uma visão
deliciosa.
Escutei-a arfar quando o lubrificante tocou sua pele, o líquido
escorrendo pelas nádegas, o arrepio percorrendo outra vez todo o
corpo.
— Lembra do que disse quando eu voltei? — Os dedos
apertaram mais o lençol quando pressionei o plug de metal, a
deixando sentir o gelado a penetrando devagar. — Que, um dia,
seria meu pau aqui? — Ela fez que sim, pressionando-se contra o
brinquedo antes de eu puxá-la para o meu peito.
— Nico, por favor — escutei quando parei com a pressão,
Alana procurando meus lábios, o corpo procurando algum alívio. —
Não para agora...
— Eu não vou, mas precisa relaxar. Não morda — pedi,
beijando a curva da sua mandíbula. — Tocatti[45]— sussurrei no seu
ouvido, colocando uma das mãos pequenas no meio de suas
pernas. — Se toca, abre a boca e geme pra mim.
Nós realmente acordaríamos a casa inteira. Amava Alana e
todas as vezes que ela seguia minhas ordens, um gemido longo
enchendo o quarto quando voltei a pressionar o plug, o lubrificante o
ajudando a chegar até o final.
— Così bella — afirmei, a cabeça dela apoiada no meu peito,
minha mulher não se esforçando para ser silenciosa. Substituí a
mão dela pela minha, meu pau deslizando pela pele melada de
lubrificante. — É demais se eu te foder agora?
Alana sacudir a cabeça, me dizendo que não era, bastou, o
choro que saiu dos lábios abertos quando me enterrei nela sendo o
melhor dos estimulantes. As mãos voltaram a apoiar no lençol e eu
fechei meus olhos, minha boca copiando a dela com cada estocada.
— Cazzo, que boceta gostosa — deixei escapar, o cheiro dela
com o prazer que me dava me obrigando a ir mais rápido.
— Ah, D-deus…
— Meu nome, Alana — rosnei ao puxá-la de volta para mim,
agarrando os seios cobertos pela renda branca. — Não é Deus que
está te fodendo.
Ela obedeceu bem demais, tremendo no meu pau após mais
uma estocada e me fazendo aumentar o ritmo. Pulsei dentro dela,
jorrando em sua boceta com Alana ainda gozando, meus dentes
achando seu ombro e me deixando ouvir apenas meu nome vindo
da voz que mais amava.
Caí com ela de volta nos travesseiros, sorrindo com a mão que
tentou cobrir minha bochecha. Abri os olhos, ela parecendo estar
esperando aquilo para começar a falar, seu sorriso, diferente do
meu, parecendo triste.
— O que foi? — Franzi a testa, uma bola se formando na
garganta. — Te machuquei? — Ela fazer que não era um alívio.
Pena que alívios, na minha vida, duravam pouco demais.
— O que foi, Nico? — Ela respirou fundo antes de continuar. —
Eu te conheço bem demais pra não ver que tem algo errado.
Fugi dos seus olhos, e era minha vez de fazer que não com a
cabeça, o motivo agora sendo um longe do prazer de segundos
atrás.
— Só hoje. Só essa noite, Alana. — Achei seus lábios antes de
continuar. — Eu preciso disso.
Ela pareceu considerar o pedido por um momento antes de
decidir pelo sim, uma mão empurrando meu peito.
— Eu também preciso. — A confissão veio junto dela, Alana
indo para cima de mim. — Do meu jeito.
E assim, minha mulher me contava que não conseguia mais
ignorar minhas omissões.
— Do jeito que quiser.

Acordei antes dela, o relógio do celular marcando dez e meia.


Era a primeira noite em muitas passada sem pesadelos, foder até a
exaustão funcionando bem demais para exorcizá-los. Sempre
funcionava, a mulher que dormia ao meu lado sendo a responsável
por um descanso calmo.
Tinha um roxo no ombro branco que não deveria estar ali. Não
deveria, e vê-lo me dava enjoo. Identificar as cores, tão perto da
cicatriz que havia de outra mordida, me obrigava a procurar outros
hematomas, e reforçava mentalmente que nunca consideraria
dormir ao seu lado nas minhas noites ruins.
Não era como se eu estivesse um mês sem tirar a roupa da
minha mulher por não ter desejo. Pelo contrário, quanto pior a noite,
mais queria me enterrar nela e esquecer dos meus problemas.
Quanto pior a noite, menos cocaína sobrava e mais dopado eu
chegava, também.
Era por isso que eu dormia longe. Se não houvesse uma
gravidez, se Alana não fosse tão quebrada quanto eu, usaria de
nosso escape todos os dias.
Mas ela era, e minha mulher junto da barriga que crescia eram
as duas coisas que mais precisava proteger. As únicas que
importavam.
Talvez devesse ter introduzido algemas, ao invés do plug. Me
prender seria muito mais inteligente, e a faria menos desconfiada.
Tarde demais, concluí descendo as escadas. Alana já havia
entendido que algo estava errado, e agora, meu novo trabalho seria
desconversar de suas perguntas.
Substituir o chá de gengibre diário por um cappuccino, sem ela
nem ter me pedido, falaria muito sobre minha vontade de continuar
quieto, e foi o que fiz. Saía da cozinha com a xícara grande quando
cruzei com Armando, nos olhos, uma curiosidade parecida com a de
Alana na noite passada.
— Está tudo ok? — A pergunta veio num tom desconfiado, o
mais velho me encarando como se quisesse descobrir alguma
coisa.
— Não dormi bem. — Ele olhou para o que eu segurava, e
então, os olhos voltaram para os meus.
— Hum. — Armando não disse mais nada antes de sumir para
a cozinha.
Alana ainda dormia quando entrei no quarto, o cappuccino indo
para cima da mesa de cabeceira, o hematoma no ombro caçoando
de mim. A barriga descoberta, que ficava cada vez mais redonda,
sempre me fazia sorrir.
Mas apenas sorrir não era mais o suficiente.
Estava tudo tão certo no Canadá. Como minha vida deu tão
errado?

A porta estava entreaberta. A porta nunca estava nem


destrancada, assim como sempre havia dois seguranças nas
redondezas. Algo gritava erro na minha mente, e eu me apressei
para dentro.
Queria nunca ter entrado. Ou talvez, nunca ter saído.
Giovanna estava num chão vermelho demais, eu odiando ter uma
cozinha tão branca. Que mafioso tinha uma cozinha branca? A
cozinha do pai da minha esposa era branca, e os empregados
tinham sempre trabalho demais. Casas claras não combinavam com
a máfia.
Mas eu não era da máfia. Me contei aquela mentira até
minutos atrás, até sair do carro e dar de cara com todo o sangue
que sujava os azulejos. Deveria ter escolhido a cozinha azul escura,
e deveria ter ficado em casa.
Giovanna tinha um olho faltando, reparei ao virá-la. Foi rápido
entender o que estava acontecendo. Não era normal querer rir ao
ver um olho faltando, mas era normal tremer e querer vomitar. A
combinação dos dois primeiros me contava que eu estava em
choque.
Foi o choque que me fez perder minutos demais com uma
morta?
Deveria ter chamado uma ambulância. Mas não tinha mais
vida no único olho aberto, e me levantei sem tirar o celular do bolso.
Tinha vida em algum lugar da casa, precisava ter.
— Nicolas? — Não ter resposta era desesperador. — Nicolas!
— Ver a porta dos fundos aberta, também.
Por cinco segundos, meu cérebro se negou a processar o que
meus olhos estavam registrando. E então, eu corri.
Nunca deveria ter voltado. Deveria ter pegado Nicolas e fugido.
Deveria ter chegado dez minutos, meia hora antes.
Porque, quem esteve na minha casa, saiu não fazia muito
tempo. Porque meu filho, mesmo sangrando tanto, ainda estava
vivo. Porque eu soube, assim que o peguei no colo, que uma
ambulância não chegaria rápido o suficiente. Nicolas estava
molhado de água e sangue, meus olhos vendo ele e vermelho.
Meu peito apertou, as batidas descompensadas. Eu queria
vomitar. Eu iria, se não desligasse e começasse a pensar de um
jeito racional.
— Papà?
Mas que pai conseguia pensar de forma coerente com o filho
morrendo nos braços?
— Vai ficar tudo bem — menti, segurar as lágrimas sendo tão
difícil quanto parar de tremer. — Vai ficar tudo bem, cuore mio. —
Eu sabia que não iria, nem para mim, nem para ele, e meu coração
parecia estar batendo por nós dois.
— Está frio — não passou de um sussurro, e eu respirei fundo.
O cheiro de sangue com água salgada e ele ficaria para
sempre na minha memória. Aquele era um dos dias mais quentes
do verão, mas o suor que havia na testa e molhava os cabelos loiros
não era pelo calor. Fazia mais de trinta graus, e Nicolas reclamava
de frio. Caí de joelhos, nós voltando para a areia, eu tirando minha
camisa.
— Aqui. — O tecido branco manchava rápido demais, e pensar
que aquilo era o melhor que poderia fazer por ele me dava a pior
sensação de inutilidade. — Melhor?
Nicolas me encarava, mas não parecia ter foco nos olhos
verdes. Uma mão levantou, provando minha suposição verdadeira
ao tatear o ar, e de fundo, eu ouvia o mar e o barulho de uma sirene.
Levei a palma até meu rosto, sabendo que aquela era a última vez
que sentiria os dedos tateando minha pele.
— Não chora — escutei quando soltei um soluço: aquele era
um pedido que eu podia realizar, e eu forcei as lágrimas para longe.
— Fica, papà.
As últimas duas coisas que Nicolas me pediu, eu pude lhe dar.

Acordei com a boca seca, o coração palpitando, e a maior dor


de cabeça do mês — que facilmente, era e esperava ser a maior do
ano. Queria que pudesse culpar apenas os sonhos, Nicolas
aparecendo nos meus braços uma frequente naquela semana.
Era a primeira vez que quem dormia ao meu lado havia
levantado primeiro, o lado dela frio quando a procurei com a minha
mão. A mansão era uma das mais seguras da cidade, ainda assim,
não a achar me deixava aflito. Alana aparecer minutos depois com
uma bandeja cheia de comidas que não combinavam entre si
traziam uma memória agridoce do Brasil.
Dizer que não estava com fome não era uma opção, e nós
dividimos chá de maçã, croissant com um patê que eu não fazia
ideia do que era, e mais uma tentativa de borcht. Eu amava aquela
mulher, e ignorei o gosto metálico na boca, comendo com um
sorriso.
— Por que não me acordou? — perguntei entre colheradas, e
daquela vez, nem estava tão ruim. — Que horas são?
— Já são mais de onze. — Ela concordava, não me tirando a
tigela, mas mergulhando um croissant feliz na sua.
Realmente era tarde, o sábado daquela semana sendo meu
dia livre do inferno. Precisava de um banho, precisava de um
remédio, minha mão que segurava a colher, tremendo. Precisava de
cocaína. Eu era patético, e o pior mentiroso quando disse que a
única droga que precisava estava ao meu lado.
Mas não podia consumir Alana e matar alguém.
— Deveria ter me acordado antes. — Ela abaixou os olhos,
observar a sopa sendo mais interessante. — Che?
— Você chegou tarde. Quando dormiu, ficou se mexendo por
horas. — E mesmo sem falar diretamente, ela me deixou saber que
sabia. — Não parecia um sono bom, queria te deixar descansar
mais.
— No próximo, me acorde — pedi, tocando seu queixo, a
fazendo me olhar. — É o único dia que tenho inteiro contigo.
— É o único dia que posso te dar descanso, Nico. — Tinha um
sorriso triste, antes dela mudar o assunto para algo considerado
mais feliz. — Mas já que está tão disposto, o que acha do quarto ao
nosso lado?
— Eu o acho… — Franzi a testa: o que era para eu responder
para aquilo? — Vazio?
— Por enquanto. — A mão foi para a barriga, marcada pela
seda branca. — Barbara me disse que não foi esse o quarto de
Stella. Eu não queria colocar nosso bebê no mesmo. — Ela franziu
a testa, eu odiando Alana ter desistido antes de mim de sair daquele
país. — Lá no fundo, eu sei que vamos passar juntos os primeiros
meses. Você acha que é mais sábio colocar o berço no nosso
quarto?
O mais sábio seria fugir, me controlei para não responder.
Alana chegava perto do quinto mês, eu chegava no segundo de
vícios, não tínhamos nada comprado para o bebê que não fosse a
maldita chupeta de Levina. Tomei mais uma colherada de sopa.
Achava engraçado como era ela quem não tinha resistência
alguma em preparar o quarto na Itália. Pensar em entrar numa loja
de bebês me dava arrepios, tudo que perdi anos atrás presente
demais comigo ali.
— Você não se importa, né? — O toque dela me chamou a
atenção, os olhos mel esperando uma resposta, ela continuando
quando achou que eu não tivesse entendido. — De dividir a cama
com mais alguém? Ou de deixar o berço no quarto?
Fugir com as duas se tornava mais tentador a cada dia.
— Mai[46], dolcezza.
Eu não levava mais Lorenzo ou Armando para meus negócios,
deixando bem óbvio que algo andava errado. Talvez aquele fosse o
jeito que meu cérebro encontrou para pedir ajuda. Eu precisava de
ajuda, meu subconsciente sabia, e deixar os mais velhos
desconfiados das merdas que andava fazendo poderia soar como
um grito de socorro.
Mas Armando não ligava. E Lorenzo, que me considerava
importante o suficiente para se importar, não podia simplesmente
me despachar para outro país agora. Não via muitas soluções, e
sentia que estava passando do fundo do poço.
— Alana, estou de volta. — Naquela noite, precisava me
certificar de que as duas estavam bem. Precisava por meus lábios
em qualquer parte dela, antes de descer e apagar no escritório.
— Não quer descansar comigo? — A pergunta veio com ela
segurando a manga da minha camisa, os dedos tocando o sangue
seco.
Puxar o braço para longe foi automático, mesmo no escuro, os
olhos mel mostrando dor.
— Só preciso de um banho, Alana. — Também tinha dor na
minha voz, e eu saí derrotado da cama. — Continue dormindo, ok?
Não prometi que voltaria, minhas mentiras tendo limites. Cocei
o nariz, ainda me sentindo acordado demais, indo no automático
para o cômodo que mais odiava naquela casa.
Lembrava de tê-lo visto tantas vezes pela tela do Iphone,
Matarazzo quando telefonava sempre no cazzo do sofá onde eu me
sentava agora. Eram três e sete da manhã, e eu larguei o celular do
meu lado, aberta na última foto dela. Alana sorria com as mãos na
barriga, o mesmo conjunto que me fez marcar seu ombro, a figlia di
puttana sendo o único conforto da madrugada.
Esperava terminar a noite com apenas meus demônios de
companhia.
— Nico? — Nunca nada acontecia do jeito que eu esperava.
Esfreguei o nariz, querendo que Mantovanni fosse embora, o
velho quase me cegando ao acender a luz antes de parar na minha
frente. Eu sabia o que ele ia ver, sabia o que meus olhos mostrariam
quando deixei a mão puxar meu queixo para cima. Ele viu tantas
vezes, sempre sacudindo a cabeça como fazia agora.
— Ah, Nickolay. — Os dedos apertaram forte minha pele, o
homem enrugando a testa antes de me soltar. — Como que você
voltou para isso, filho?
E eu ri, o som tão amargo quanto o gosto que tinha na boca.
— Como eu faço isso sem estar dopado? — lamentei, me
livrando da sua mão e encostando no sofá. — Da primeira vez, eu
tentei pensar nela. Tentei pensar em alguém lhe fazendo mal. Puxar
o gatilho foi quase fácil.
As memórias da noite de hoje ainda eram frescas demais, e
eu, finalmente, começava a sentir os nós dos dedos latejando. Eles
estavam abertos, minhas mãos arregaçadas, e agradeci Alana não
ter percebido isso antes de eu deixar o quarto.
Por mais que a mulher fosse entender de manhã. De manhã
estaria melhor, me enganei.
— Eu mantenho a ordem nessa Famiglia pelo medo. Os
homens, eles querem ver Morte tirando vidas. Morte tira vidas bem
demais, Morte não usa balas. — Morte era um monstro que vivia
drogado para não sentir.
Agora, havia noites nas quais cocaína não estava mais sendo
o suficiente.
— Não tinha gatilho para puxar hoje. E eu não ia... —
Esfreguei os olhos, a foto dela ainda brilhando na tela do celular, ver
Alana enquanto eu falava sobre como era um viciado ridículo sendo
mais um inferno. — Não ia conseguir ir até o fim sem isso. É só
coca...
— Nunca é só coca! — O grito competia com os de minha
mulher no quesito volume, Lorenzo mostrando o fim de sua não
mais tão eterna paciência. — Começa com coca, e de repente, você
está secando as veias com heroína! Que cazzo, Nico...
— E o que faço então? — levantei, olhando para baixo ao
chegar na frente de quem me dava bronca como se fosse meu pai.
— Como que eu soco até matar um homem que não me fez nada?
Lorenzo, como sempre, me enfrentava. A coragem que ele
tinha se igualava a de Alana, eu já tendo reagido e o socado antes,
o homem mandando a memória para o inferno e ficando.
— Você é o Don dessa máfia, Nickolay. O que Matarazzo
fazia? Quem matava por ele? — A pergunta era séria, a sugestão,
incômoda. Eu não era fraco, meu cérebro repetia, eu não era fraco,
e conseguia carregar minhas tatuagens. — Pare de ser orgulhoso.
Até mesmo as novas. Para as coisas relacionadas a mim, eu
não precisava da ajuda dele.
— Acha que estou sendo orgulhoso por não pedir para
Armando matar no meu lugar?
— Não acho: eu tenho certeza, moleque. — Os olhos azuis
não saíam dos meus, e eu me perguntava o quanto minhas pupilas
estavam dilatadas. O homem notou em segundos.
Quando Alana notaria?
— Porque Armando não precisa desse cazzo para apagar um
homem! — Ele empurrou meu peito, e eu imaginava o quanto disso
era coragem. Talvez fosse desespero. Eu estaria desesperado, se
fosse meu filho. — E você, você não deveria estar sujando as mãos,
mas sim se comportando como o pai da sua donna se comportava!
— Matarazzo não era o pai dela! — gritei de volta, fechando os
punhos na camisa limpa de Mantovanni, a porta se abrindo no
segundo seguinte.
— O que tá acontecendo? — E outra vez, minha mulher via o
monstro que havia em mim.
— Volta pro quarto, Alana — quem eu ainda segurava
mandou, o olhar de Lorenzo nunca me deixando.
— Nico? — suspirei, soltando o tecido e voltando para o sofá,
abaixando a cabeça como um derrotado.
— Eu já vou, dolcezza. — Fechei os olhos quando mãos
delicadas seguraram meu rosto, o toque de Alana quente e
confortável.
Ela não merecia ver aquilo. O pai do filho que carregava, outra
vez pintado de vermelho, dopado e a ponto de quebrar. Me sentia o
maior dos mentirosos: mal conseguia me manter inteiro, como
protegeria minha família?
— Você tá sangrando. — Algo molhado passava pelo meu
rosto, Alana limpando o que não deveria.
— Não é meu...
— É sim.
Foi quando senti a pressão, o nariz escorrendo, o cheiro
metálico dominando meu olfato. Cazzo, e pressionei forte as
narinas, respirando pela boca, meus olhos encontrando os dela.
Ela sabia. Alana sabia antes de me olhar. Talvez antes de
entrar, o lenço úmido que carregava sendo prova daquilo.
— Tá tudo bem — ela me assegurava ao sentar-se ao meu
lado. Meu peito apertou ao não achar nenhuma reprovação em seu
rosto, minha mulher me dando o contrário ao limpar o sangue. — Tá
tudo bem, Nico. A gente vai ficar bem.
— Não era para aceitar isso. — Peguei o lenço, voltando a
encarar o chão. — Não era nem para ver isso.
O abraço que ganhava dela, Alana sujando a peça branca que
vestia de vermelho, era errado. Ela deveria gritar.
— Eu vi desde a primeira vez, Nico. — Deveria me tratar com
a aspereza que eu merecia, e não contar com calma que nunca
consegui esconder aquilo dela. — Desde a vez que você me deu o
pacote no Canadá. — Alana me obrigou a olhá-la, e era irritante
querer chorar agora. Eu nunca queria chorar, o amor dela me
fazendo fraco. — Acha que não te enxergo?
— Não disse nada...
— Porque estava esperando você conseguir falar. — Ela não
precisava mais chorar por mim, mas as lágrimas caíam do mesmo
jeito. — Eu não sabia que aqui ia ficar tão ruim.
Caíam de nós dois, e fungar com o nariz sangrando fazia parte
do inferno que eu merecia. O amor de Alana realmente doía, me
fazendo sangrar sempre que não me sentia merecedor dele. Aquele
mesmo amor também fazia eu sentir que conseguiria encarar tudo.
Era tão contraditório.
Era maravilhoso e assustador, como era a mulher que puxei
para meus braços.
— Usei três vezes no Canadá. Mais de dez aqui. — Ela me
abraçava de volta, deixando meu sangue sujar a pele branca.
Aquele cazzo não parava de escorrer, a última coisa que precisava
sendo chamar o médico para consertar o nariz de um viciado. —
Não está brava? — A mão nos meus cabelos era confortável, e quis
me manter agarrado nela quando Alana nos separou. —
Decepcionada?
O sorriso de agora era fraco, e ela sacudiu a cabeça,
parecendo desconfortável.
— Tem que prometer que também não vai ficar comigo.
Eu não esperava ver Armando entrando, o homem batendo a
porta atrás dele, um humor que competia com o meu.
— Saia. — Quase a segurei, não me sentindo pronto para
encará-lo bravo depois de tantos anos.
Mas Alana foi para o lado de Lorenzo antes que eu tivesse
qualquer reação, e era a vez da mão cheia de tatuagens desbotadas
agarrarem meu queixo. Os olhos eram tão iguais aos da minha
mulher, mas aquele par não tinha nem a sombra da gentileza que
via nela.
Por um momento, achei que fosse apanhar. Ele me olhava
assim antes de um tapa, com aquela raiva, que eu imaginava viver
em ebulição no seu peito. A bolsa de gelo pressionada em cima do
lenço que eu segurava poderia ser muito bem um soco, os cor de
mel encarando as pupilas que ainda deveriam ocupar boa parte das
minhas írises.
A respiração funda com certeza foi para ele reunir qualquer
calma, a mão que segurava meu queixo deixando o aperto mais
forte.
— Não vai mais matar, Nickolay. — E eu entendi: Armando
sabia antes de entrar ali. Todos sabiam, e aquilo era o mais próximo
de uma intervenção que conseguiriam fazer. — Eu te disse que não
conseguia entrar para esse mundo!
Doeu lembrar da vez que vi suas tatuagens, tantos anos atrás,
e as desejei no meu corpo. Eu as tinha, eu tinha mais tinta que esse
figlio di puttana, e ele ainda olhava para mim como se o filho não
fosse digno delas.
— Eu disse tantas vezes para ti, Nickolay! Que cazzo! — Não
reagiria na frente dela, a frase um mantra na minha cabeça. — Por
que tu nunca me escutou depois daquela tarde? Por que nunca me
escuta, pirralho inconsequente?
Eu não esperava que a parte que reagiria seria a dela. Deveria
ter esperado, e não ficado surpreso ao ver Lorenzo a segurando,
Matteo aparecendo e se pondo entre minha mulher e eu.
— Não foi isso que eu pedi! Por que não pode tratar seu filho
como um ser humano, uma vez na vida? Como consegue…
— Quieta! — Foi o que bastou para ir para cima dele, e eu
esperava encontrar um homem muito mais fraco.
O soco que ganhei iria deixar uma marca, a bochecha cortada
por dentro me fazendo provar ainda mais sangue. Olhar para ela me
fez não reagir, as mãos pequenas cobrindo a boca, Lorenzo
continuando a mantê-la no lugar. Tinha sangue na camisola que
Alana usava, e eu não lutei quando Armando me empurrou de volta
para o sofá.
— Fique. Aí. — Não eram necessárias ameaças para eu ficar
sentado: vê-la tão aflita bastava. — Eu sei que Nickolay é bom. Ele
sempre foi, continuar sendo não é novidade. Agora eu, eu não sou.
— Uma mão apalpou minha camisa, e então os bolsos da minha
calça. — Eu consigo puxar o gatilho sem essa merda, e não vou me
sentir um puttano maldito depois. — Armando pegou meu cigarro,
jogando o maço no chão ao ver que eram apenas Marlboros. — Eu
só tenho um fantasma que me acompanha, e ela não se importa
com as vidas que tiro. Cadê o cazzo do pó, moleque?
Alcancei o saco que mantinha na lateral do sapato, o pacote
quase vazio arrancado da minha mão. Armando realmente parecia
querer me dar uma surra, e pela primeira vez, me senti merecedor.
Era um drogado casado com sua filha. Eu mataria o homem, se
fosse a minha.
Mataria. Me chamarem de bom era ridículo, e Armando
esfregava o pacote na minha cara.
— Essa merda, Nickolay, nenhum chefe usa essa merda! — A
cocaína foi para seu bolso, a mão que levava a tatuagem de rosário
voltando a pressionar o gelo contra meu rosto. — Sua mãe teria
vergonha de te ver assim. Seu filho também. — Respirei fundo: ele
só podia estar testando meus limites.
Só que Alana, chorando, me fazia aguentar tudo quieto. O
limite de Lorenzo já tinha sido cruzado, o homem segurando o braço
de Matteo e deixando minha mulher correr para o sofá. Armando
não tinha coragem de tocá-la, e as mãos dela seguravam o gelo de
uma maneira muito mais confortável.
— Tu não vai mais matar. Ouviu? — As mãos pequenas
contrastavam demais com a sempre áspera, os olhos dele outra vez
nos meus. — Eu não ligo se me odeia, eu não me importo se fizer
birra. Eu vou contigo para onde for, Nickolay. Quem mata sou eu. —
A voz era irredutível. — Entendeu?
A última coisa que queria era aquele homem me achando um
fraco. Bufei, constatando que eu já havia demonstrado o suficiente
de fraqueza para ele achar o contrário. As novas tatuagens feitas
nas costas queimavam, eu não duvidando de ter arrancado as
cascas que ainda formavam quando caí no sofá.
— Fala que sim, Nico. — Quem pedia era a única pessoa que
podia fazê-lo, Alana empurrando a mão de Armando e virando meu
rosto para o dela. — Eu não quero perder você, italiano. Então fala
que vai deixar Armando te ajudar com isso.
Havia coisas que eu nunca conseguiria esquecer. Situações
que marcaram, diálogos que voltavam outra e outra vez. Depois de
verem seu pior lado, quem viu a escuridão não vai mais conseguir
ver o seu melhor. Matarazzo vivia me falando aquilo quando vivo.
Alana provou errada a frase. Ela havia visto meu pior, e ainda
me tocava com delicadeza. A mulher enxergava o monstro em mim,
e ainda conseguia ver alguma luz. Era ela, e quem crescia na
barriga que eu enxergava, que me faziam querer lhe dar razão. Eu
poderia ser bom, nem que fosse apenas para minha mulher.
E eu fiz que sim.

1995

Aquele apartamento era pequeno demais. Escuro demais.


Aquele apartamento era meu favorito em todo o mundo, e eu
deixei a mulher se aconchegar no meu peito, os dedos correndo
pelas tatuagens que havia ali. Eu tinha muitas tatuagens, tinha ainda
mais mortes nas mãos, e Carina fazia de conta que a tinta era
apenas um enfeite gostoso de se olhar.
De todos os dedos que passaram no leão que cobria boa parte
das minhas costelas, os dela foram os únicos carinhosos. Ela
traçava a juba e fazia perguntas sobre minha família. Franzia a testa
quando lhe contava sobre meu pai, e beijava meu queixo todas as
vezes que dizia algo sobre minha mãe.
Ela segurava meu rosto e me jurava amor, e eu queria fazer o
mesmo na frente de toda a Itália. Carina merecia todo o amor do
mundo, e eu me considerava sortudo pela mulher se contentar com
o amor que eu lhe dava na cama. Não achava ser mútua a sorte.
Que pessoa normal se apaixonava por um assassino e se
considerava sortuda?
Carina não era normal, e eu adorei os tapas nos braços
quando provoquei-a dizendo que meu primeiro amor tinha vindo do
Brasil, mas não era ela. Minha mulher me chamava de ridículo, indo
nua para cima de mim, nunca sabendo quando parar de me
atormentar. Estava tão viciado nas suas provocações quanto estava
na sua boceta. A filha da mãe tentando me domar, me negando o
que eu queria e nos mantendo numa conversa, só me deixava mais
duro.
Ela provocava, e eu deixava, me permitindo imaginar uma vida
em que acordar com Carina ao meu lado fosse aceitável. A mulher
não conseguia fritar um ovo direito, mas cuidaria dos meninos tão
bem quanto Kata. Talvez até melhor.
— Meu pai não teria ficado exatamente contente se tivesse
casado com ela — admiti, aproveitando as sensações que as unhas
traçando minha virilha causavam. — Mas meu pai já estava morto
na época, então não é como se isso fosse importar.
— Por que ele não teria ficado feliz? — Ela levantou uma
sobrancelha, recolhendo as unhas.
— Ela não era italiana.
— Eu também não sou! — Mais um tapa no braço, e eu a
derrubei de volta no colchão, a cama de solteiro me obrigando a ir
para cima dela.
— Mas tu é adorável — afirmei, Carina arfando quando mordi
seu ombro. — Também é brava como uma italiana quando quer.
— Alguém precisa brigar com você — ela brincou, agarrando
meus cabelos.
Devolvi na mesma moeda, agarrando a grade da cabeceira e
me enterrando nela. As mãos só me puxaram com mais força,
aquele sendo o melhor incentivo para eu começar um ritmo longe de
gentil.
— Essa Astrid parece ser uma boa pessoa — escutei entre
gemidos.
— Tu é melhor. — Dio santo, aquela mulher não conseguia
ficar quieta. O que tinha nela que sempre me trazia de volta? —
Astrid é uma boa pessoa. — Ela iria abrir a boca outra vez se eu
não respondesse. — Foi meu primeiro amor.
— Você foi meu primeiro amor. — Uma mão empurrou meu
peito, a cama estreita demais para eu não ir para o chão.
Mas não era a queda que me fazia estreitar os olhos.
— Eu sou seu único amor. — A puxei para baixo, Carina por
cima sempre sendo a visão que acabava comigo. Vi que havia algo
de errado quando os olhos castanhos desviaram dos meus, o canto
de seu lábio inferior sendo torturado pelos dentes. — Que olhar é
esse, magrela? Quem eu vou ter que matar?
— Armando, por Deus! — E mais um tapa. Eu a deixava fazer
demais o que queria.
Mas ela poderia fazer o que quisesse, desde que apenas
fizesse comigo.
— Ninguém te toca além de mim, Carina — rosnei quando a
deitei no chão, prendendo seus pulsos sobre a cabeça, ignorando
as reclamações sobre estar frio. — Repete que só eu te toco. — Ela
recebia bem demais meu pau, o jeito que me molhava sempre me
desconcentrando. — Juro que se outro homem te tocar, corto fora
as mãos dele. — Bem demais, e sempre ficava mais apertada
quando eu falava coisas que, no meu mundo, eram normais. — Não
se preocupe, eu te mando elas junto de rosas. Brancas vão
combinar, certo?
Os olhos arregalaram, seu coração acelerando embaixo do
meu.
— Você é ma-lu-co! — O nervosismo que via nela também me
desconcentrava. Tinha mais alguém, eu tinha quase certeza.
— Nunca disse que não era. — Eu iria conseguir aquela
informação e colocar somente meu nome em seus lábios, nem que
para isso passasse a noite inteira dentro dela. — O quão forte vou
ter que te foder para me dizer quem é o outro?
Eu também iria matar o outro, se aquilo não fosse mais uma
provocação de Carina e o homem realmente existisse.
— Você quer mesmo saber?
— Carina, por Dio...
— É seu filho. — E eu revirei os olhos: pura provocação, sabia.
Nickolay tinha uma paixonite de moleque pela minha mulher, e
sempre que me lembrava, sorria com o bom gosto do meu menino.
— Ou filha.
— Nico é menino, magrela.
— Eu sei. — Ela olhou para o lado, o coração acelerando
mais, parecendo que iria explodir quando voltou a me encarar. — Eu
tô grávida.
Talvez eu não tivesse entendido direito.
— Che?
— Eu tô grávida, mandão. — Puxei o ar, ainda processando a
informação. — Eu tô grávida, então desculpa, mas você não é mais
meu único amor. — Embaixo de mim, Carina me encarava nervosa,
as sobrancelhas arqueadas, o lábio voltando para os dentes. — E
se não se comportar, eu pego um gato e te coloco na posição
número 3.
— Como isso aconteceu?
— Realmente preciso explicar? — Sua boceta me apertou e eu
nos virei, a colocando sentada em cima de mim. Era inverno, aquela
noite mais fria que o normal, e em silêncio, contei os meses que
deveriam faltar para ter meu filho nos braços.
Seria verão. Seria verão, e a mão dela arranhava outra vez
meu peito, Carina me cavalgando até jogar a cabeça para trás. Ela
gemendo meu nome e se contraindo no meu pau sempre me levava
ao limite. Realmente não estávamos sendo cuidadosos, minha
mulher não parando até eu deitá-la ao meu lado.
O chão era confortável com ela.
— Vamos fugir. — Qualquer lugar era. — Nós três e meus
meninos, vamos embora. — Eu sabia que falava loucuras, mas a
última coisa que estava disposto era renunciar o bebê que crescia
nela. Carina me encarava desacreditada, os olhos grandes. — Que
cara é essa? Não posso deixar meus moleques para trás.
— E eu nunca pediria isso pra ti! Mas... — Mas o que eu
estava sugerindo passava bem perto do impossível. — Armando,
não dá pra fugir. Você é casado...
— Kata não liga, bella. — Só que não era impossível, e um
plano se formava na minha cabeça. Eu poderia deixar Katerina. Se
fizesse tudo certo, tinha uma boa chance de funcionar. — Nós não
temos nada. Nunca tivemos, eu já te disse.
Ela me deu um sorriso bonito demais, fazendo eu me
perguntar se, caso tivéssemos uma filha, seus sorrisos me
ganhariam tão fácil como acontecia com Carina. Até se fosse um
menino, meus dois não precisando de muito para eu fazer suas
vontades. Talvez fosse mesmo mole com as crianças, como Kata
vivia afirmando.
— E se eu disser sim? — A pergunta veio baixa, como se a
mulher não estivesse acreditando no que se deixava planejar. —
Para onde vamos, se eu disser sim?
Eu também não estava, minha resposta vindo rápida.
— Canadá.
— Lá é frio! — Revirei os olhos.
— Lá é seguro. Conheço gente. Consigo esconder todos nós.
— E voltei para cima dela, mordiscando seu pescoço, tentando
conquistar um sim para um plano que, se eu fosse inteligente, não
passaria de um sonho. — Te daria uma casa no lago, como a que
me disse que tinha naquele filme que gostou. As crianças e nós
dois, uma cidade pequena, viver podendo te beijar na rua. O que
acha?
Carina me deixou ver que bastaria eu pedir. Se eu planejasse,
ela diria sim. Ela fugiria comigo.
— Eu acho que é um sonho maravilhoso.
E entrelaçando minhas mãos nas suas pequenas, devorei seus
lábios e me deixei sonhar.

Acordei com cheiro de couro e o sol na cara, e me perguntei se


teria dormido outra vez no escritório. Não, eu tinha me deitado com
ela, não tinha? Tomei o chá que Alana me obrigou a beber e me
deitei no seu colo, minha mulher ainda limpando o sangue que havia
na minha cara. O gelo que ela passava com cuidado na maçã do
rosto direita amenizava a dor que começava a aparecer, meu rosto
pulsando do soco que me fez sentar minutos atrás.
Sim, eu tinha dormido no sofá, mas minha cabeça não
descansava no colo dela, não mais. Ou a gravidez a deixou com as
pernas inquietas, tudo parecendo chacoalhar demais. Inspirei, o
cheiro de framboesa não vindo, nicotina e o maldito couro contra o
sol tomando conta do ambiente.
— Oi, bela adormecida! — Três palavras, e eu não queria mais
abrir os olhos. — Segunda vez que perde toda a diversão com uma
naninha.
— Ele vai te matar, e eu não vou impedir. — Foi a segunda voz
que me fez abrir os olhos, e eu encarei o céu azul antes de enfrentar
os dois homens que menos queria ver hoje.
— Que merda está acontecendo? — Minha cabeça iria
explodir, e eu procurei o maço que sempre estava no meu bolso.
Parecia passar das onze, e no conversível, suava debaixo do sol,
ainda com as mesmas roupas de ontem.
Era até bom estarem só os três, o retrovisor mostrando minha
cara de derrota. Os cigarros deveriam mascarar bem, mas deveria
estar fedendo.
— Eu que te pergunto, Morte dois. — Levina usava o eterno
tom irônico, mas não parecia estar exatamente brincando daquela
vez. — Que merda você estava fazendo? Além de toda a coca que
botou nariz pra dentro, claro. Dizem que a do Adrianno é boa, mas
usar dia sim outro também? — Ele levantou as sobrancelhas, a
curva brusca me fazendo bater com a cabeça na porta.
Figlio di puttana.
— Se for tão boa assim, talvez tenha que dar uma provada. —
E mais uma curva, eu tentando caçar algum motivo bom o suficiente
para o que estava acontecendo.
— Onde está…
— Minha mulher? — Dimitri interrompeu, achando meus olhos
pelo retrovisor. — Adivinhei, não adivinhei? Sempre a principesa,
você não cansa de ser cadela dela? Alana pra cá, Alana pra lá, que
pereza[47]!
Eu iria matá-lo, se a dor de cabeça que sentia não me matasse
antes.
— Levina…
Andava previsível demais, era a única explicação. O russo me
empurrou para o banco quando fiz menção de agarrar seu pescoço,
o carro desgovernado por um instante antes do homem voltar a
estabilizá-lo. Bater a cabeça definitivamente não estava ajudando
minha dor, assim como os gritos dele a tornavam maior.
— Senta aí ou a gente bate essa merda a oitenta por hora, e
você tá sem cinto, seu fodido! — No carro, o único que parecia ter
paciência o suficiente era Armando. Eu deveria estar sonhando, ou
parado em alguma realidade alternativa. — Sabe, Nickolay, eu
respeitava você, eu tinha até medo de você! Pode não parecer, mas
eu tinha, lá no Brasil e da última vez que te vi no Canadá.
— E o que te fez ficar burro?
Dimitri riu com gosto, meu pai ainda em silêncio, focado em
limpar sua arma, o metal desmontado em seu colo. Eu nem mesmo
tinha uma arma, e as partes abertas do meu punho tinham ganhado
um amarelo que nunca era bom ver. Aquela merda iria infeccionar.
— É o que eu te pergunto. Tive que dobrar o calmante na
porra do seu chá pra te fazer apagar. Alana sabia, antes que ache
que não teve dedo da sua dolcezza nisso. — Ele sacudiu mais uma
vez a cabeça. — Mas depois da madrugada que teve, deve no
mínimo desconfiar dos dedinhos da ragazza. Vai passar alguns dias
tendo babás.
E era minha vez de rir.
— Eu estava fazendo o cazzo do meu trabalho…
— Um trabalho bem porco. Alexei não gosta de trabalho porco.
— Armando abriu a boca pela primeira vez, me dando bronca como
se eu fosse um moleque, as mãos montando a arma. — Então,
vamos passar uma semana limpando seu trabalho porco, e tu vai
ficar quietinho e ajudar como puder.
Depois de ontem, depois de todos verem meu lado viciado —
depois dele ver — era muito mais difícil responder Armando.
— Bem, não dá pra culpar o moleque. Vocês queriam que ele
ocupasse o lugar do antigo Don, e ele tá se saindo um perfeito
Matarazzo com essa coleção de bostas. — Bufei: nada mais irritante
do que os dois falando como se eu não estivesse ali.
Mas eu estava, e o mais velho prestava mais atenção em mim
do que gostaria.
— Alana está bem — veio no momento em que procurei a
distração que me restava, descobrindo vazios todos os meus
bolsos. — E seu celular está e vai ficar comigo. Encare como uma
contenção de merdas: a última coisa que preciso é tu, de ressaca de
coca, atendendo quem não deve.
Dimitri rindo me impediu de responder.
— Ah espera, pereza é espanhol, não é mesmo? — Respirei
fundo: eu não iria aguentar um dia com aqueles dois.
Encostei no banco, o resto da viagem sendo passado ao som
de AC/DC. E outra vez, estava numa estrada para o inferno.

Parar num hotel de estrada não era bem o que eu imaginava


que aconteceria. Dimitri me jogou uma mochila, o russo parecendo
quase normal vestindo camiseta, jeans e boné. Não fosse a cicatriz
que atravessava quase todo o lado direito do seu rosto e as
tatuagens tão chamativas quanto as minhas, ele poderia até passar
despercebido.
Nenhuma explicação veio antes de Levina sumir, Armando
pegando uma mala de mão e trancando o carro. Era um dos carros
de Matarazzo, eu sabia, e me dava certo prazer pensar que um dos
russos que ele detestava o tinha dirigido. Ao menos alguma coisa
boa no meio do inferno.
— Fique aí. — E o mais velho rumou para o que deveria ser a
recepção.
Já era noite, me sentia inquieto e Alana estava longe demais.
Eu sempre a tinha nos dias limpos. Não ter nenhum conforto no fim
de um, dividindo um quarto justo com ele, seria uma provação.
Porque Armando abrindo a porta número 5, entrando e
esperando eu copiá-lo me dizia que dividiríamos o mesmo ambiente.
Ao menos, havia duas camas.
Sorri quando abri a mochila e achei a barra de chocolate sobre
as mudas de roupa. Aquele mimo era tão Alana, um post it com um
coração e a letra dela atrás fazendo meu peito apertar.
“Volta.”
Me arrependi de todas as vezes que cedi ao meu vício nos
últimos dias assim que li. Não acreditava que perderia justo aquela
semana com ela. Mas Alana não merecia ver meu corpo
desintoxicando. Seria uma semana de mau humor e paranoias, e eu
ficava quase feliz por ser Armando quem as aturaria.
Ele fumava na janela quando voltei do banho, ignorando a
placa que proibia cigarros nos quartos. Assim que me viu, um maço
foi arremessado em minha direção, o homem exalando fumaça.
— Camel é nojento. — Claro que ele continuaria fumando a
pior marca.
— Camel e café ruim é o que vamos ter por, pelo menos, cinco
dias. — Revirei os olhos, achando um saco pardo sobre a mesa.
Cheirava a hambúrguer e batata frita, e minha boca salivou. —
Dimitri deixou aqui antes de sumir. Ele vai voltar na sexta, depois de
sumir com todos que andam falando demais.
— Eu matei todos que estavam falando demais.
Como acontecia com Levina, odiava quando risadas vinham de
Armando.
— E isso só fez as pessoas falarem mais, moleque. Coma,
antes que comece a passar mal. — Não dava para negar que
estava com fome depois do meu estômago roncar pela segunda
vez, e obedecer Armando fazia eu me sentir como uma criança
novamente. Eu não gostava de me sentir como uma criança perto
dele, decidi na primeira mordida, querendo ter recebido aquele
cuidado anos atrás.
— Por que veio cuidar de um viciado? Alana pediu?
Ele terminou o cigarro antes de me dar uma resposta,
fechando a janela.
— Sim, ela pediu. — E se levantou, indo até o pacote e
pegando uma batata frita. — Pediu faz uns dias, quando me contou
sobre o que andava te vendo fazer. — Realmente me sentia uma
criança ao lado de Armando, meu lado infantil querendo arrancar a
fritura da sua mão.
— Ela não viu nada.
Os olhos iguais aos dela pararam nos meus, a cabeça
sacudindo.
— Banheiros cheios de sangue, olhos vermelhos, o jeito que
parou de comer. Viu o suficiente para juntar as peças. Deixa sua
mulher no escuro, e eu entendo, e faria igual no seu lugar. Eu fiz
igual. Mas como Carina, Alana não é idiota, Nickolay. — Suspirei:
sabia que não era. Eu sabia, também, que ele não pararia mais de
falar. — Como afundou tanto? Nunca usei essas merdas.
Eu não tinha maturidade para ser julgado por ele, assim como
não aguentaria dois dias sem socá-lo.
— Provavelmente porque nunca ninguém importante morreu
nos seus braços para te puxar tão para baixo. — E eu queria um
cigarro. Talvez o Camel até combinasse com o hambúrguer.
— Morrer, não. — Só quando achei seus olhos que processei o
que havia falado. — Carina já estava morta quando cheguei. Deve
ter uma diferença.
Ao menos, houve silêncio, eu terminando a janta e um cigarro
em paz. Armando não me deu a chave para sair, e eu fiquei tentado
a pular a janela para poder fumar no meio do ar fresco de uma noite
de verão. Viciados não ganhavam liberdade quando eram pegos, e
eu preferia estar dividindo o quarto com Lorenzo. Ou Dimitri.
Estava deitado, os olhos no teto, quando escutei a pergunta.
— É seu primeiro dia em quantos sem?
Queria ligar para Alana. Os braços dela ao meu redor.
— Doze. — Queria só uma carreira de pó.
A distância era realmente melhor.
— Ela te viu tendo pesadelos. Tinha nos dias que não usava,
certo? — Fiz que sim, mesmo sem saber se Armando conseguia
enxergar no escuro minha cabeça se mexendo.
Era noite de lua cheia, e com as cortinas abertas, o quarto
ficava iluminado o suficiente para que sim. Ela te viu tendo
pesadelos.
— Conversam? — Pensar nos dois conversando nem era mais
incômodo. Quando me incomodava, me forçava a lembrar de Alana
chorando pelo pai morto. Esteban estava praticamente morto para a
filha, ela não podendo entrar em contato, talvez, pelo resto da vida.
— Às vezes. Eu conto sobre Carina. Ela me conta sobre ti. —
A última parte foi dita mais devagar, como se o homem estivesse
receoso em me revelar aquele fato. Ele estava, descobri quando
continuou. — Não brigue com a menina por isso, Nickolay.
E fiz outra vez que não com a cabeça.
— Eu vou perder nosso ultrassom — lamentei, coçando os
olhos, mais secos que o normal.
— Ela vai entender.
— Ela não deveria precisar entender. — Estiquei o braço e
alcancei a garrafa de água que havia na mesa de cabeceira. Queria
um whisky. — Não deveria precisar estar aqui.
Não conseguiria whiskys tão cedo.
— Tu também não.
Mas, deitado na cama sem nenhum dos meus vícios perto,
decidi que poderia ao menos conseguir informações.
— O que sabe sobre Lazar? — De onde eu estava, tinha luz o
suficiente para ver a surpresa nos olhos mel. — Ele é minha família
de sangue?
— Ele deve ser. — Armando nem mesmo tentou negar, mas os
anos procurando pelo nome foram tão frutíferos quanto meus
últimos meses. Ao menos, eu achava que ele tinha procurado. — E
essa é a única informação que eu tenho. Como sabe, se sua mulher
arrancou a página?
Eles realmente andavam conversando. Sabia que tinha sido
ela.
— Barbara sempre teve a mão pesada na hora de escrever. —
Porque só podia ser Barbara, por mais que a mulher tivesse negado
e desconversado quando lhe perguntei. — Alana só arrancou a
página escrita, não a de trás.
Alana era, sim, inteligente, mas deixava a desejar sempre que
agia sem pensar.
Como eu.
— Está bravo?
— Não. — Fui sincero. — De algum jeito, ela imaginou que
isso me faria entender que minha mãe foi a responsável por tudo.
As flores roxas eram venenosas, não eram? — O jeito que Armando
me olhou tornou desnecessária qualquer afirmação. — Eu aceito
essa proteção dela. Não vou estressar minha mulher agora, deixe-a
pensando que não faço ideia da página. Um dia, ela me fala. — Só
recebi silêncio, ele parecendo querer conversar sobre aquilo tanto
quanto a filha queria. — Como Barbara soube?
Bem, eu queria falar sobre aquilo. Mas, como acontecia na
maioria das vezes na minha vida, as respostas que vinham não
eram exatamente satisfatórias.
— O nome estava escrito num papel.
E houve mais silêncio, meus dedos inquietos, eu estralando
todos antes de abrir a boca.
— Só isso?
— Só isso.
A informação era digna de risada. Aquela ser nossa maior
conversa desde que minha mãe morreu, também.
— Procura alguém que pode nem existir por causa de um
papel — caçoei, voltando a encarar o teto.
— Cada um se agarra no que tem.
Suspirei: queria me agarrar em Alana. O máximo que
conseguiria era me agarrar na barra de chocolate, e arremessei um
dos travesseiros no homem na cama ao lado.
— Pare de dar cappuccinos para minha mulher. Alana sempre
chega com gosto de café com leite quando está contigo.
— É descafeinado, e a deixam feliz. — O travesseiro voltou
com tanta delicadeza quanto foi. — O que te deixa feliz, no final. Vá
dormir, amanhã acordamos às seis.
Grunhi: já eram onze e vinte, e parecia que um caminhão tinha
passado por cima de mim.
— O que temos para fazer às seis?

Estava ensopado quando acordei, uma mão chacoalhando


meu ombro. A Alana que povoou os sonhos daquela noite não era
uma que eu queria, e pela primeira vez desde que reencontrei
Armando, fiquei feliz com sua presença.
No meu sonho, ela sangrava nos meus braços. No meu sonho,
ela morria e eu ia para cima do homem que atirou. Parei a
centímetros de seu rosto, e apenas porque a mão era forte. Se
tivesse continuado em casa, teria sido Alana, e não Armando. Eu a
teria socado por causa de um pesadelo.
— Preciso de um banho. — Mas a mão que levava o rosário
continuou me segurando.
— Não precisa não, moleque.
Calei minhas reclamações, comendo sem muita vontade o café
da manhã de beira de estrada. Eu não sabia exatamente onde
estávamos, muito menos aonde iríamos, aparentemente sem um
carro.
— Onde está Dimitri?
— Resolvendo alguns assuntos — Armando disse depois de
mais um gole de café.
Ao menos era cafeína, pensei ao tomar mais do meu.
— E nós vamos resolver o quê? — Ele me olhou com um meio
sorriso. — Me resolver?
— Uhum. — E me passou mais uma torrada. — Vai precisar da
energia.

Acabar num ringue de boxe com quem foi meu pai fez um bom
trabalho em me surpreender. Era quase engraçado. Depois de tudo
que passei, algo tão simples para alguns foi justo o que conseguiu
me desestabilizar.
Todos os anos que passei aprendendo a lutar: krav maga,
judô, como socar e onde para levar um homem para baixo comigo.
Em todos os minutos, pensava no meu pai. Em todas as brigas
ganhas, desejava saber o quão orgulhoso ele estaria, se houvesse
algo além da vida que eu achava ele ter perdido.
Armando não parecia orgulhoso. Os olhos mel me encaravam
com irritação e desgosto cada vez que viam sangue em mim.
E aquilo doía. Agoniava tanto quanto não conseguir focar o
suficiente para derrubá-lo, e acabar no chão com ele me
imobilizando. Odiava boxe, e queria arrancar as luvas e lutar de
verdade.
— Por que estamos fazendo essa merda? — Já passavam das
onze quando perguntei, meu corpo exausto e pedindo por nicotina.
O short que eu usava parecia largo, as tatuagens novas coçavam.
— Era muito mais fácil me trancar num quarto e deixar eu me
debater em paz, como seu amigo fez.
Armando se levantou, me trazendo junto com ele. Eu tinha
perdido peso, tomaria a surra da minha vida caso isso fosse uma
luta real, e com certeza precisaria fazer retoques nos desenhos, eu
os arranhando sem me importar com as cascas que saíam ao coçar.
Mas o que mais me irritava era meu eterno monólogo. Eu
perguntava algo, e Armando me levava para o chão. E então me
levantava, e o silêncio reinava até minha próxima frase. Não ter
respostas me agoniava, e talvez a raiva que vinha dessa agonia foi
o que, depois de mais de dez derrubadas, conseguiu fazê-lo cair.
Será que se perguntasse qualquer coisa agora, viria alguma
resposta? Em cima dele, meu antebraço contra seu pescoço, eu
esquecia o acordo de permanecer no boxe e cortava sua respiração,
tentado a fazê-lo apagar.
Armando não me impedir foi o que me fez parar. Levantei
sozinho, jogando o capacete no chão, as luvas seguindo. Eu tinha
tantas perguntas, mas me virei para fazer justo a que não conseguia
mais calar.
— Por que a mandou embora? Por que escolheu me salvar
naquela tarde? — Eu não precisava falar que tarde era, e eu não
esperava ganhar uma resposta.
— Porque tu é meu filho!
Limpei o suor que escorria da testa, procurando por algo que
não existia nos bolsos do short.
— Não, Alana é sua filha! Ela é, e tu deixou bem claro por
anos…
— Alana nunca foi minha filha! — O homem gritar aquilo fez eu
finalmente me virar, o equipamento de Armando parando no chão
junto com o meu. — Eu nem a segurei antes de mandá-la para o
Brasil. Eu mal a vi.
Dei uma risada nervosa: não queria mais escutar nada. Não
queria empatizar com quem eu amava quando morto, e odiava
tendo agora vivo. O suor me incomodava, a dor de cabeça me
incomodava, Armando me incomodava.
Mas ele não parou de falar.
— Talvez devesse ter visto a bebê, me despedido. Fugido com
os três que me restaram, cumprido o plano que fiz com ela. — Ele
também sorria de um jeito amargo, os olhos não seguindo, as
informações, machucando.
O homem se encostou na rede do ringue, os braços
descansando no fio grosso, a expressão derrotada, por mais que
tivesse me vencido.
— Eu fodi com tudo, eu sei que fodi. Mas vê-la morta, no
chão... — Uma mão coçou os olhos, como se a lembrança
trouxesse as lágrimas que nós dois detestávamos derrubar. — Ela
morreu sorrindo. Era tão Carina, ela sempre estava sorrindo, mesmo
quando contava para mim sobre a vida fodida que tinha no Brasil. —
Puxei uma respiração, a imagem da mulher de olhos abertos vindo,
Carina deitada no chão. — Deveria ter ido embora quando ela foi,
mas eu jurava que ia conseguir. Eu não queria ir. Eu tentei tanto.
Eu me enganava serem apenas sonhos. Assombrações que
matavam alguém parecida demais com minha mulher. Nunca eram
apenas sonhos.
— Alana nunca foi minha filha. Ela foi um sonho lindo que tive
com a mulher que amei. E do qual eu precisei acordar quando sua
mãe se foi. Quando elas se foram.
— Quando eu sobrei. — Era injusto falar aquilo agora, mas
não me impedi.
Armando apenas sacudiu a cabeça, agarrando uma das
garrafas d’água e me jogando a outra.
— Melhor, moleque? — Esvaziamos as duas em segundos.
— Não. — Ele deveria imaginar que não. — Até quando vai me
fazer perder o tempo que poderia estar com ela?
— Até eu ver que não está procurando a porra da coca no seu
bolso. — Estava para responder quando notei onde estavam minhas
mãos. — Até a noite que dormir sem suar e se debater, até acordar
sem quase me levar para o chão. — Estralei o pescoço: quantos
Camels ainda tinham no maço? — Até essa ressaca de droga
passar. Pronto para continuar?

Foi na quarta manhã que acordei com alguém esmurrando a


porta. Era a primeira noite que tinha conseguido não sonhar com
nada, era irritante precisar dar crédito para Armando. Por já três dias
seguidos, ele não me dava muitos minutos de paz, o velho sendo
irritantemente bom em lutas corporais apesar da idade.
Ele não estava na cama ao lado.
— Bom diiiiiaaa, Morte dois! — E Levina, para minha
infelicidade, estava do lado de fora. — Tá na hora de acordaaaaar!
— Como o russo conseguia ser tão irritante?
Abri a porta com vontade de socá-lo, e quase o fiz quando ele
invadiu meu quarto.
— Papai foi resolver algumas coisinhas hoje — ele falou ao se
deitar na cama de Armando, os sapatos sujando o edredom.
— Algumas coisinhas, sou criança agora? — Não que me
importasse. Me importava mais o chocolate que ele tentou alcançar.
— Se tocar nisso, eu te mato.
— Presente da dolcezza, aposto. — Ele jogou o saco que
segurava para mim. — O café tá no carro. Hoje eu sou seu parceiro
de lutinhas, acha que consegue não me matar, italiano? Eu não sou
o melhor para luta corporal.
— Vou adorar tentar te manter vivo. — Mais um dia de
sanduíches e cafeína mediana. Dei uma mordida, encarando o
espelho antes de continuar. — A noiva de Alexei está na Itália?
Levina ficou claramente surpreso com a pergunta. Ele,
também, pensou demais antes de responder.
— Não mais. — Meu rosto parecia melhor do que três dias
atrás, por mais que levasse um hematoma ou outro. E o homem
russo tinha respostas, e não queria me dar.
— Por que Alexei me quer aqui, Levina? Ele é o primeiro filho,
então não precisa me colocar na Itália para tentar me matar: a
posição de chefe é dele. Também duvido que seja por razões
políticas. Achava que pudesse ter alguma relação com a coitada
que está fugindo do meu irmão, e acaba de matar a última coisa que
desconfiava. Por que eu estou aqui?
Tinha incômodo no russo, a expressão denunciou antes dele
conseguir esconder. Ele sabia. Ele não ia me falar, nem se eu
estivesse para matá-lo.
Não era política.
— Porque Alexei quer.
Segunda-feira chegou depois de uma semana passada em
velocidade lenta. Armando era agradável demais, não odiá-lo como
no começo sendo detestável. Incomodava admitir aqueles terem
sido dias que adoraria ter vivido aos meus quinze. Incomodava ele
parecer estar se aproveitando da semana tanto quanto eu.
Mas nós dois disfarçávamos bem, e no carro, era só a voz de
Levina cantando que perturbava. Alana não era exatamente afinada,
mas Dimitri conseguia fazê-la a melhor das cantoras.
Não lembrava que podia sentir tanta falta de alguém vivo até
passar os últimos dias sem nada dela além de um chocolate. A
barra permaneceu intocada, e eu saía do carro e me perguntava —
perguntava também a Lorenzo — porque minha mulher não estava
junto no portão.
— Sua mulher está dormindo. É tarde, Nico. — Ele nunca me
chamava de filho na frente do amigo, e dez e meia não era tarde. —
Está melhor, moleque?
— Ganhei um novo apelido, é isso? — reclamei, Armando nos
deixando entrar sozinhos. — Estou bem. Só preciso ver minha
mulher — confessei, tocando a ponta do pacote de Milka, o doce
substituindo bem o que queria alcançar e não tinha mais.
— Lana está no quarto, filho. — Não esperei mais para subir.
O fim da escada dava de frente para nosso quarto, a porta
fechada, Alana talvez realmente dormindo. Ela andava dormindo
mais cedo que seu normal, eu sabia, e com a mão na maçaneta, me
perguntava se deveria acordá-la, ou me contentar em tê-la nos
braços.
Estava para abrir a porta e decidir ao deitar quando o amarelo
chamou minha atenção. A porta ao lado da nossa, que vivia
fechada, entreaberta mostrava um papel de parede mais colorido do
que eu me lembrava haver. E então, descobri com o que minha
mulher se ocupou nos últimos dias.
Os móveis eram brancos, todo o quarto tendo sido decorado
com cores claras e tonalidades de amarelo e laranja. Era feliz e
quente, como queria que nossa vida fosse, como tudo ao lado de
Alana era. Como o coelho que tinha na pata de pelúcia um balão
amarrado. O balão era dourado, e em letras brancas, uma única
palavra.
— Hope[48]. — Era a mesma mão que levava a palavra hate[49]
que eu passava sobre as letras, e sem nenhuma outra explicação,
entendi o que era aquilo.
— É só uma ideia. — E a voz dela enchia o quarto, Alana
encostada no batente da porta, uma mão sobre a barriga. — Sei que
não é italiano…
Não tinha como não sorrir para essa visão, eu a alcançando
em poucos passos, devorando a boca que havia me feito tanta falta.
— É perfeito. — Ela também sorria, mesmo com tudo que
acontecia em nossas vidas. — Eu quero esse nome.
— Não vai me perguntar se é menina?
— Está saudável? — O sorriso só aumentou, Alana sacudindo
a cabeça que sim.
— Mesmo com o cappuccino que eu tomo vez ou outra. — Os
dedos finos passaram pelos roxos que eu carregava no rosto, e me
perguntei se minha mulher sabia de detalhes de como passei meus
dias. — Ela é forte como o pai. — Se ela falaria algo ao ver
hematomas parecidos no rosto de Armando. — Estou feliz que
minha casa voltou. A gente ama você, italiano.
Os machucados passaram batido, Alana muito mais focada em
matar a saudade que sentia de nós. A barriga já era perceptível no
nosso meio, minhas mãos a envolvendo. Hope. Nossa esperança.
— Essas coisas que me dá deixam outras tão mais leves de se
lembrar. — A beijei na testa, nós dois nos virando e encarando o
quarto amarelo. — Obrigado.
— Obrigada também.
— Por?
E ela copiou o que tantos meses atrás eu lhe disse.
— Existir.

Os dias passavam rápido demais, e ao mesmo tempo,


demoravam uma eternidade. Meus enjoos desapareceram, trazendo
a vontade de comer as coisas mais estranhas. Se algum dia minha
mãe reclamou que eu não comia, hoje ela ficaria orgulhosa de ver a
filha devorar batata frita com sorvete e calda de morango. O
milkshake era de chocolate com abacaxi, e nem doía mais tanto
pensar na mulher que abandonei.
Tudo doía bem menos com meus dois amores ao meu lado.
Um deles sempre estava comigo, e o outro, quase todos os dias, me
acordava tendo alguma conversa muito séria com a minha barriga.
— Acha que sua mãe vai te dar chocolate com carne, ou
descascar e comer um limão como ontem? — Revirei os olhos,
soltando o ar.
— Isso tudo é por causa da pipoca torrada?
— Hope, não escute sua mãe: a pipoca estava quase toda
preta. — Chocolate com carne era exagero, e Nickolay já estava
vestido demais.
— Você prefere que eu tenha desejo de pipoca queimada, ou
que eu queira lamber sabão? — Com certeza atrasado, e ele me
diria aquilo assim que parasse minhas mãos.
Nickolay e Armando voltaram diferentes de onde quer que
fosse que tivessem passado a semana. O homem não ficou bravo
por ter sido minha a ideia de tirá-lo de casa, e lá no fundo, achava
que até tinha aproveitado o tempo com o pai. Eu puxava seus
cabelos, e ficava feliz ao ver mais vida do que vermelho nos olhos
de agora.
— O que acha de usar o seu vício bom? — Eu queria que ele
respondesse que achava uma ideia maravilhosa.
— Preciso ir, dolcezza. — Fiz um bico. — Já estou bem
atrasado.
— Não tava atrasado pra falar com a barriga — brinquei,
agarrando mais os fios pretos. — Acho que deveria aproveitar mais
a sua mulher enquanto… — E minha voz falhou, Nickolay inclinando
mais a cabeça e cobrindo com a boca meu seio. — Nico… — arfei,
a respiração quente me acordando bem demais, mesmo por cima
do tecido.
A risada rouca dele, os lábios indo achar os meus, as mãos
contornando meu corpo: aquele filho da mãe era um conjunto que
me desconcentrava. Estava pronta para o que ele quisesse quando
o senti se afastar.
— Eu te compenso de noite, bella. Prometo. — Estreitei os
olhos.
— Sumiu um dia inteiro da última vez que me prometeu isso.
— Por isso estou te prometendo a noite, e não o dia. — Ele
andava espertinho demais.
— E o que vamos fazer de noite?
— Temos um…
— Jantar? — Nico fez que não, as mãos arrumando a camisa
que eu queria tirar.
— Podemos dizer que é uma festa — ele explicou, a barra de
chocolate que agora vivia em um dos seus bolsos me fazendo sorrir.
— Não é formal, é apenas uma festa. Mas precisamos ir, antes que
tente me convencer que nosso quarto é festa o suficiente. — Revirei
os olhos: ele me conhecia bem demais.
O italiano se aproximou, os lábios perto do meu ouvido antes
de continuar.
— Compre algo que me deixe duro só de te olhar vestindo. —
Aquelas pornografias ditas antes das nove da manhã não me
ajudavam, e eu queria que carne com chocolate fosse o suficiente
para acabar com meu desejo. — Não vai ser difícil de achar.
Queria comprar um vestido novo, e o melhor que tinha para ir
comigo era… Matteo. O que, por mais que gostasse da companhia
calma do segurança, era a mesma coisa que nada para compras
femininas. Queria uma amiga, e a única que fiz, Nickolay achou ser
melhor não procurar mais.
Precisava sair de casa, mas aquilo também era difícil. Fazer
amizade com as mulheres do meio era difícil, nossas vidas e
comportamentos diferentes demais. Da última vez que tentei, me
perguntaram como que eu tinha coragem de dormir do lado de Nico,
aquilo me dizendo muito sobre sua fama antes de eu aparecer.
Mas o poder dele ia todo para mim quando estávamos
sozinhos, e bastava eu saber daquilo. Optei por responder que não
tive muita escolha e que o sexo era bom. Lá no fundo, era verdade:
me apaixonar por ele não foi escolha minha, e o italiano na cama —
e fora dela — era o sonho de consumo de toda mulher.
Talvez devesse tentar mais uma vez, porque andar nas ruas de
paralelepípedos com dois seguranças na frente, dois atrás, era
chato para caralho. Eu até estava xingando outra vez, e se falasse
dos monólogos na minha cabeça para Anna Flávia, ela diria ter
razão no apelido irritante pelo qual me chamava.
Maluquinha. Sentia falta dela. Minha cunhada e Mila, bolo,
queijo e vinho. Um mundo com as duas, Hope e eu: aquele seria o
mundo perfeito. Acariciei minha barriga, não tão aparente com o
vestido largo que usava.
— Você basta, meu amor. — Meus monólogos nem sempre se
mantinham apenas nos pensamentos. — Eu espero que você não
entenda isso por muito muito tempo, mas nós vamos achar juntas
um vestido pro papai tirar.
Não era errado falar aquilo para quem ainda estava na minha
barriga, era? Lembrar do último ator cancelado me fez rir, e me
perguntei se eu poderia ser cancelada por levar minha barriga para
comprar roupa. Deveria ser cancelada pelo alívio que senti ao
realizar que Ferreti estava morta.
Parava na frente de uma vitrine quando ouvi o barulho de
mensagem do celular.
“Escolha vermelho. Quero um como o do jantar da
limusine."
Nico conseguia ser mandão quando queria. Ele, também, não
queria que eu me vestisse como uma senhora da máfia, o que me
deixava duas vezes mais curiosa para saber o tipo de festa que
iríamos.
Sorri, entrando na loja enquanto os seguranças esperavam do
lado de fora. Meu italiano já quase avançado me fazia mais difícil de
ser deixada de fora, assim como me deixava comprar sozinha o que
gostaria que, no final da noite, meu marido rasgasse. Talvez tirar,
vendo o preço que estava pagando naquilo, fosse uma melhor
opção.
As ruas daquela parte da cidade eram estreitas, o centro de
paralelepípedos pequeno. Dava para ver a cruz de uma igreja de
onde eu estava, e uma cafeteria, a loja tendo uma saída em cada
lado. Um cappuccino, depois de mais de uma semana sem, não
faria mal, e cappuccinos italianos eram realmente maravilhosos.
Eu só iria pegar um gole do meu vício do outro lado da rua,
não era como se fosse andar a pé de volta para casa. Então usei a
saída que não estava guardada pelos seguranças e, segurando feliz
a sacola que guardava um dos vestidos mais lindos que já tinha
comprado, fui buscar minha microdose de cafeína.
Eu não esperava ter uma multidão de gente bloqueando a rua
depois de ter minha bebida nas mãos. Suspirei, resolvendo que
puxar uma das cadeiras seria mais sábio do que tentar atravessar
aquele mutirão.
— Tanto trabalho pra conseguir um copo plástico pra gente ter
que sentar de novo, barriguinha — lamentei, dando o primeiro gole
antes de colocar o cappuccino sobre a mesa, a sacola no chão.
Esperava que fosse passar os próximos minutos sozinha.
— Se incomoda? — era uma mulher mais velha que
perguntava, a mão de unhas curtas e naturais apoiada na cadeira
ao meu lado.
Fiz que não com a cabeça, colocando a mão na barriga e
tomando mais um gole da bebida. Estava quente, o dia ensolarado
me fazendo suar com o líquido quase pelando, mas era um preço
pequeno a se pagar pelo café. Tinha certeza de que todos os que
andei tomando eram descafeinados, meu pai biológico sendo tão
irritante quanto meu marido no quesito cafeína.
— O que está acontecendo? — Os olhos estavam escondidos
por um óculos de sol grande, e eu queria não ter esquecido o meu
sobre a cômoda.
— É uma procissão — ela explicou, eu só agora vendo que
eram fiéis que carregavam uma santa. — Hoje é dia de Santa
Catarina. Cidades católicas pequenas tem muito disso. É religiosa?
— Sacudi a cabeça, não conseguindo deixar de lembrar da santa
que dominava parte do peito de meu marido. — Menino ou menina?
Sorri, duas coisas que adorava acontecendo: eu me sentindo
independente ao entender italiano, e eu falando de Hope.
— Menina.
— O pai está feliz? — E meu sorriso só aumentou.
— Feliz é pouco.
Poderia discorrer uma tarde inteira sobre a felicidade de
Nickolay e os comportamentos que eu mais amava: as conversas
com a barriga, a música que ele colocava e me obrigava a ouvir
porque “era bom para o bebê”. Até o cuidado com o que eu comia,
por mais que fosse irritante, também era um carinho.
Ele voltou dizendo que a menina teria dois avôs, e até aquilo
me derretia, Nickolay aceitando bem mais a presença de quem
antes eu chamava de fantasma. Algo parecia ter mudado, meu
marido muito mais relaxado na presença daquele pai — por mais
que eu ainda tivesse dificuldade em chamá-lo assim.
Observava as pessoas seguindo para a igreja quando um
pingente foi posto na frente dos meus olhos. Não tinha problema em
tocá-lo, tinha? Porque Nico e a paranoia que existia nele desde a
noite do jantar me deixavam também um pouco louca, e eu hesitei
alguns segundos antes de levantar minha mão.
— Caso algum dia esteja em apuros. — A corrente que levava
o medalhão foi enrolada no meu pulso, a prata contra o sol
brilhando. — É a santa dessa procissão.
— É lindo! — exclamei ao aproximar o rosto, examinando o
que me foi entregue por um momento. A procissão parecia estar
chegando no seu fim, e eu me virei para a mulher, no intuito de
devolver o que parecia ser uma joia. — Mas eu não posso aceitar…
Não tinha mais ninguém do meu lado. Em contrapartida, havia
quatro homens correndo até mim, o mais conhecido com uma
expressão que era uma mistura de alívio com “eu gostaria de te
matar só um pouquinho”.
— Alana, quer nos infartar? — Hope escolheu justo àquela
hora para se mexer, e eu me deixei acreditar que ela dava as
risadas que eu me controlava para não soltar. — Nickolay arrancaria
minha cabeça se eu perdesse você!
A corrente com o pingente ainda estava na minha mão, eu
olhando ao redor, mas não achando sinal da mulher com quem
falava.
— O que é isso? — Ela deve ter virado a esquina, pensei, e
virei a cabeça para encarar Matteo.
— Uma lembrança da procissão. — Eu acho. Mas o eu acho
ficou no meu pensamento.
Religião não fazia exatamente parte da minha vida, eu não
acreditando no poder de santos católicos. Coloquei a corrente na
minha bolsa, alcançando o cappuccino. Com a vida que andava
levando, não faria mal levar aquela pequena proteção.

Pelo espelho do banheiro, observava o decote do vestido. Eu,


pela primeira vez na vida, tinha peitos, o decote em V escolhido
sendo bem mais preenchido do que foi no Brasil. O tecido vermelho
apertava logo abaixo dos seios, caindo sobre a barriga, a
mascarando. A sandália vermelho-escura combinava com a cor do
vestido, assim como os brincos que Nico havia me dado de Natal.
— Acho que fiz um bom trabalho, não acha? — Falar com a
barriga havia se tornado frequente desde que ela ganhara um nome.
— Agora, seja uma boa menina e passe a noite dormindo.
Quando abri a porta, a primeira coisa que notei foi a barra de
chocolate descansando na mesa de cabeceira. Quando ele iria
parar com aquilo e comer o doce? Eu poderia dar quantas barras
Nico quisesse, e eu perdi completamente a linha de pensamento
quando olhei para a entrada do closet.
Imaginava que isso acontecesse com Nickolay. Ele mostrava
bem demais o quanto se desconcertava sempre que eu me
arrumava. Por mais que o italiano afirmasse outra e outra vez que
gostava de me olhar de qualquer jeito, nos dias de esmalte, perfume
e lingerie rendada, ele perdia a fala. As palavras iam embora, sua
boca se ocupando com coisas bem mais prazerosas do que formar
frases.
Olhar para ele, depois de tanto tempo de social, vestindo jeans
e camiseta branca, a combinação que já havia contado ser minha
favorita, me deixava naquele estado. Ele tinha acabado de colocar a
camiseta quando os olhos pararam em mim, e nós dois, com
certeza, estávamos considerando mandar a festa para o inferno e
fazer a nossa própria.
— Madonna mia. — Nickolay cobriu a boca com a mão, os
olhos gostando muito do que viam.
Outras partes pareciam gostar tanto quanto.
— Digo o mesmo. — Me aproximei, ele ainda apreciando o
vestido enquanto eu apreciava seu jeans. — Você me provoca
demais, Nickolay.
— Eu não fiz nada… — As palavras morreram quando puxei
sua boca para a minha, minhas mãos presas nos cabelos pretos, os
dedos grandes contornando meu decote.
O italiano sabia que se qualquer coisa saísse do lugar, a única
festa que teríamos seria em casa.
— Vamos, antes que me faça mudar os planos.
Matteo dirigia, ele e meu marido trocando algumas piadas,
Armando e mais seguranças no carro de trás. Me sentia mal por tê-
los sempre grudados em nós, os homens parecendo não poderem
descansar enquanto eu e Nico não o fizéssemos.
Paramos na frente de um clube noturno, o letreiro com a
palavra Capriccio brilhando em vermelho. A escrita era fina, e eu me
perguntei por que precisávamos frequentar uma balada. Nickolay
ser chato com meus cafés e me colocar dentro de uma festa
daquelas não parecia fazer muito sentido.
— Eu preciso falar com alguns contatos. — Nico explicou ao
estender a mão para mim, me tirando do carro e agarrando minha
cintura. — Fechar alguns negócios. Não vai sair do meu lado,
ouviu?
— Ah, mas meu sonho era dançar eletrônico com uma barriga
de cinco meses! — A brincadeira me rendeu uma estreitada de
olhos.
Como esperava, não paramos na fila, nós andando até a
recepcionista. Só percebi que a arma sempre tão escondida era
exposta demais em sua cintura quando a hostess arregalou os
olhos.
— Senhor, não pode entrar com…
— Estou na lista de Carmine. — Não foram feitas mais
perguntas. — O nome é DeLucca. — Os olhos arregalaram mais, a
mulher parecendo próxima de pedir desculpas. — E nós queremos
duas vermelhas. Na verdade, me dê três.
E nos foi entregue pulseiras de plástico daquela cor, Nickolay
envolvendo meus dois pulsos e colocando sua própria.
— Aproveitem.
E a porta frontal foi aberta.
Eu não duvidava que era uma balada chique, a frente do local
e toda a fila deixando claro que o lugar era um de pessoas com
dinheiro. Baladas assim em São Paulo eram sempre um inferno,
mas na Itália, deveria ser diferente. Não era como se Nico fosse me
levar para algum lugar onde eu fosse morrer espremida.
Então, chegamos no final do corredor.
— O que estamos fazendo aqui? — Não estava cheio o lugar.
Não, tinha uma fila do lado de fora, mas a casa estava longe de
lotada, ao menos para os padrões paulistanos.
— Eu tenho que fechar negócios, bella. — Eram poucas as
pessoas que dançavam na pista. Algumas, até, estavam ocupadas
com coisas que eu gostaria de ter me ocupado antes de sair de
casa. — É esse o puteiro.
Eu quase ri.
— Isso não é um puteiro, Nickolay.
— Não. — A mão não saía da minha cintura, os olhos parando
nos meus. — Não é.

A primeira vez que parei naquela pista tinha sido semanas


depois de perder minha primeira família. Eu não fiz nada. Não sentia
nada, e parar num clube de swing com uma prostituta tinha sido
minha tentativa patética de sentir, por pelo menos um momento,
prazer.
Falhei miseravelmente, e só voltei para o lugar após sair do
hospital. Após o tiro, após aprender que conseguia sentir uma quase
calma me dopando com drogas. Depois da primeira noite que passei
fodendo, após anos de celibato, virei um frequentador assíduo do
lugar. Eu não tinha problema em pagar mulheres para vir comigo, e
passado um tempo, percebi que nem mesmo precisava pagar.
As que faziam por trabalho eram muito mais fáceis de lidar, e
uma boa parte do dinheiro ia para aquele divertimento. Coca e
putas, ambas de Carmine realmente boas, eu nunca me importando
em dividir as mulheres.
Se alguém fizesse menção de tocar em Alana, eu arrancaria
as mãos atrevidas sem pensar.
— Isso não é um puteiro. — Ela apertou meu braço com mais
força, por um momento parecendo desconfortável, e eu me
perguntei se tinha fodido com a noite não a avisando sobre o local
antes de fazê-la entrar.
— Não, não é. — A observei olhando para a pista, o cenho
franzido, como se tentasse entender o que estava acontecendo. —
Preciso fechar alguns negócios, e não gostaria de vir sozinho e te
estressar outra vez. — Virei seu rosto para o meu, os olhos mel
incertos demais. — Disse que não fiz nada naquela noite, dolcezza.
A música que vibrava nas caixas de som seguia as batidas do
meu coração, e por um instante, minhas mãos ameaçaram gelar.
— Eu sei que não. — O sorriso que veio foi nervoso. — Mas
você quer fazer? — ela perguntou, a mão livre começando a estralar
os dedos, eu tentando entender por que justo quem gostava tanto
de foder com plateia estava desconfortável com a oportunidade. —
Nico, eu não quero dividir. — E estava explicado.
Rir não era a melhor resposta, mas foi a única coisa que
consegui fazer ao ouvir aquele absurdo. Sabia que mulheres me
tocando era algo que consumia muito a paciência de Alana, assim
como sempre haveria consequências se alguém a tocasse comigo
ao seu lado. Ela ser possessiva comigo era algo que me deixava
duro todas as vezes.
Segurei seu rosto, as bochechas completamente cobertas por
minhas mãos, eu tocando minha testa na dela antes de falar.
— Eu nunca vou te dividir, por isso que pedimos a vermelha.
— Ver alívio imediato ali só aumentou minha vontade de levá-la para
alguma das salas. — Por isso que te quis inteira de vermelho,
Alana. Acha que alguém te tocando está em negociação?
— Acha que alguém te tocando está? — ela retrucou,
estreitando os olhos, nos lábios o menor dos sorrisos me falando
que estava tudo bem.
— Eu arrancaria as mãos de quem tentasse — revelei, muito
confortável em dividir os absurdos que se passavam na minha
cabeça com Alana antes de mordiscar seus lábios, voltando os
olhos para a pista.
Só quando parei para raciocinar sobre o que tinha dito percebi
que não era das coisas a mais agradável de se afirmar. Também
percebi que a faria sem pensar duas vezes, matar pela máfia sendo
difícil, matar por ela, automático. De canto de olho, vi que Alana
observava o mesmo casal que eu, e me perguntei se ela fazia ideia
de que a sala rodeada por espelhos já tinha sido minha favorita.
— Acho que alguém anda brincando muito de máfia. — Os cor
de mel voltaram para mim, Alana parecendo quase sem jeito ao ter
sido pega observando o que o casal fazia. — Só para deixar claro:
se alguma tentar te tocar, puxo sua arma e atiro.
Era incrível como eu não duvidava disso.
— Sabe como me deixar com medo. — Eu era doente por
aquilo me fazer ainda mais duro, a vergonha de antes tendo sumido
e minha mulher agarrando meu pau por cima do jeans.
— Eu tento. — E ali estava novamente o sorriso inocente que
me matava todas as vezes.
— É apenas uma visita rápida, dolcezza. — Me esfreguei na
mão, descendo os lábios até seu ouvido. — A não ser que queira
demorar. Não precisamos dividir para usufruir do lugar, Alana.
Mesmo no escuro, vi os bicos dos seios enrijecidos, o tecido
fino deixando claro que eu não era o único a considerar
possibilidades.
— Pense. — E nos guiei até onde estariam os homens com
quem iria conversar.

Negócios sempre demoravam mais tempo do que eu estava


disposto a gastar, principalmente tendo Alana ao meu lado.
Falávamos sobre novos acordos enquanto minha mulher ouvia tudo
quieta, o corpo grudado no meu, os carinhos que ganhava me
fazendo querer sua presença em todos os próximos.
Meia hora foram minutos demais, eu não vendo a hora de
puxá-la para longe dos sofás e para dentro de um lugar muito mais
privado. A esperava em frente a um dos banheiros femininos, a
primeira parte da noite comigo sozinho, quando Carmine se
aproximou.
— Fiquei sabendo que não posso mais oferecer meus serviços
para o Don. — O comentário foi feito com o homem me mostrando
uma chave, o chaveiro que a prendia feito de diamantes. — Talvez
eu possa oferecer outra coisa. — E ele apontou para o cubo de
vidro que ficava elevado no meio da pista. — É a chave da sala que
sempre quis provar. Sei que dariam um bom show para o público da
casa, você e sua mulher. — O homem entregou a chave junto de
uma sacola. — Podem usar máscaras se não quiserem ser vistos.
Levantei as sobrancelhas, olhando a preta que mal cobriria
meu rosto.
— Acho difícil uma máscara conseguir esconder quem eu sou.
— Era verdade, minhas tatuagens conhecidas por boa parte dos
frequentadores, caso o público se mantivesse o mesmo de três anos
atrás.
— Sua mulher parecia entediada. — Alana estava longe
daquilo, mas o deixei continuar. — Casamentos podem ficar chatos,
eu sei que podem. Às vezes, inovar é bom. — A última frase me
convenceu a oferecer a possibilidade para ela. — Se não podem
tocar sua mulher, deixe que vejam quem é só sua.
E o homem se perdeu na multidão, muito maior do que
minutos atrás.
— Sozinhos outra vez — escutei quando a porta se abriu,
Alana voltando para meus braços.
— Na medida do possível. — O quanto ela gostaria da
sugestão que eu estava prestes a dar, e o quanto ela poderia querer
me bater?
— Já usou alguma sala desse clube? — Fazer que sim me
rendeu um olhar curioso. — E aquela história sobre nunca ter fodido
fora de camas?
— Eles têm camas aqui. — Talvez não fosse das sugestões, a
mais sábia de se fazer para Alana grávida. — E sofás, que se parar
para pensar, são como camas. — Assim como talvez fosse a melhor
que eu pudesse lhe dar. — Disse que te compensaria a noite, vero?
Eu gostava quando os olhos mel brilhavam com aquela
curiosidade. Fui para trás dela, deixando Alana ter uma boa visão do
que acontecia na pista antes de continuar a falar no seu ouvido.
— Eu sei que gosta do perigo, sei que te deixa encharcada.
Meu pau lembra bem demais de todas as vezes que quase foi pega.
— Beijei seu pescoço, pressionando minha ereção nas costas
descobertas, o vestido expondo toda a pele que sentia falta de ver
quando saíamos.
— Mas aqui eu não seria pega — ela sussurrou, jogando a
cabeça para o lado e derretendo com meus lábios, eu sentindo o
gemido enquanto beijava a pele fina.
— Não, não seria. — Senti-la com a música eletrônica de
fundo era melhor que qualquer noite que tivera no clube. — Quer,
Alana? Quer que te vejam gozando no meu pau por uma porta
entreaberta? — Ela virou o rosto, levantando uma sobrancelha. —
Por uma porta aberta? — E dei um meio sorriso, me atrevendo
finalmente a sugerir o lugar do qual éramos os únicos com acesso.
— Talvez por aquele vidro?
Minha caveira apontava para o centro da pista, o outro braço a
mantendo contra meu peito. Conseguia sentir seu coração com
minha mulher tão perto, o dela acelerando ao ouvir minha sugestão
não passando despercebido.
— Eu te transformei num safado. — Foi o comentário que veio,
a voz soando nervosa.
— É seguro, dolcezza. — Eu sabia que era, o vidro sendo à
prova de balas. — Ninguém pode nos tocar, mas todos vão ver eu te
fodendo. — Achei que um sim fosse vir, até senti-la tensionar. —
Não quer?
O rosto pequeno se virou para o meu, Alana me olhando
incerta.
— Você quer isso, Nico? — Quando achei seus olhos
delineados, sabia que se viesse de mim um sim, ela aceitaria.
— No. — Alana andava aceitando demais.
Suspirei, segurando o braço de um homem que passava, lhe
entregando chave e máscaras enquanto apontava para a sala que
todos queriam e poucos tinham acesso. Carmine teria que viver com
um cliente normal usando sua favorita, eu querendo fazer minha
mulher ter certeza de que não, eu não queria nada que a deixasse
desconfortável.
Por mais que fodê-la na frente de todos fosse algo que, na
minha mente, me daria um prazer único, também era contraditório.
A marcaria como minha, mas todos a olhariam do jeito que apenas
eu tinha o direito de ver. Meu nariz voltou para seu pescoço, o
perfume de framboesa me invadindo: Alana era minha, e bastava eu
saber daquilo.
— Sei que estou diferente, bella. — A virei para mim, a visão
dela vestindo inteiro vermelho enchendo meus olhos. — Sei que tu
queria diferente, sei que merece melhor, sei que está brava porque
te deixo de fora. — Ela franziu a testa vezes demais desde que
pisamos no clube. — Não desista de mim, Alana.
Estava prestes a sugerir irmos embora quando fui calado, o
beijo tentando me passar toda a segurança que eu esperava ter lhe
dado.
— Eu nunca vou desistir de você, Nickolay — ela dizia, os
olhos grudados nos meus. — Mai, italiano.
Italiano vindo da minha mulher sempre rendia os melhores
beijos, a mão dela voltando a me agarrar sobre a calça quando
minha língua invadiu sua boca. Alana provocava bem demais,
puxando meus cabelos, trazendo meu ouvido para perto dos lábios.
— Tem algum lugar aqui que seja mais privado? — ela
perguntou, subindo e descendo os dedos pelo meu jeans, meus
olhos achando a sala que sempre foi minha favorita.
— Está vendo esses espelhos? — A virei para o que via, a
porta da qual eu tinha a senha mostrando o lugar estar desocupado.
— Estão ao redor de toda a sala. — E sem mais palavras, coloquei
o código, nos levando para dentro e nos trancando ali.
A sala era pequena, mais iluminada que a pista do clube, o
colchão vermelho redondo de couro sendo o único móvel que a
ocupava. Engraçado como o lugar em si não havia prendido nada
da atenção de nenhum dos seus ocupantes, a minha nunca
deixando Alana. A dela não estava em mim.
Gostava de observar Alana. As reações que minha mulher
mostrava eram tão cruas, eu sempre me perdendo com tanto
sentimento.
As de agora não eram diferentes. Os olhos iam de um casal
que se beijava para uma mulher que apoiava as mãos no que do
lado de fora era espelho, no nosso lado, vidro. Ela era fodida do jeito
que eu sabia ser o favorito da minha, Alana respirando fundo e
molhando os lábios.
Cazzo, olhá-la reagindo àquilo era quase tão bom quanto fazê-
la ficar assim. Ela estava aproveitando o show e eu estava
aproveitando Alana, e imaginava já que teríamos uma foda que
nenhum dos dois esqueceria, caso ela aceitasse.
Fazia tempo que eu não ficava tão duro. Os seios subiam e
desciam com as respirações fundas, os bicos outra vez se
mostrando no tecido, as mãos pequenas agarrando a barra da saia
que ia até o meio da coxa. A atenção foi para os dois homens que
compartilhavam a mesma morena quando voltei para trás dela, o
lábio inferior sendo torturado pelos dentes.
— Se eu colocar minha mão dentro da sua calcinha, vou te
achar pingando? — Ela tentou se virar, o rosto ganhando cor, Alana
parecendo sem jeito ao ser pega. Dava para sentir o coração
acelerado, uma das minhas mãos agarrando de leve seus cabelos,
meus lábios na curva de seu pescoço. — Eu vou, vero?
Meu próprio acelerou quando a vi pressionar as coxas juntas.
Vê-la tão excitada era desnorteante, meu pau apertado contra o
jeans, minha mão livre desaparecendo por baixo da saia. A toquei
por cima da calcinha, Alana arfando, os olhos ainda na mesma
mulher.
— Tão molhada — gemi, meu pau contra ela, minha vontade
sendo a de debruçá-la no colchão e copiar o que faziam ao nosso
redor. — Acha que consegue gozar antes dela, bella? — Cada
respiração me fazia querer enterrar o rosto nos seus seios, do jeito
que via um dos homens fazendo com quem tinha nossa atenção. —
Acha que meus dedos conseguem ser melhores que dois paus?
Sorri quando a vi fazer que sim: minha mulher gostava de
desafios, mas aquele não parecia ser um difícil de se ganhar. Não,
Alana vivia em ebulição desde março, o menor dos toques a
deixando pronta demais. Desci dos cabelos para um dos bicos dos
seios e o circulei por cima do tecido, puxando uma respiração ao ser
recompensado com meu nome.
Ela segurou a mão que estava no meio de suas coxas e se
mexeu outra e outra vez contra meus dedos, meu pau pulsando ao
vê-la buscar seu prazer em mim enquanto observávamos uma boa
foda. Belisquei o bico que apenas segurava quando a vi perto, a
respiração curta se transformando num gemido rouco delicioso, a
boceta molhando minha mão. O conjunto quase me levou com ela,
eu me sentindo próximo demais de gozar sem nem um toque.
Respirávamos pesado, a experiência de tê-la gozando naquela
sala sendo intensa para os dois. Os olhos voltaram para os meus
quando a deitei no estofado de couro, ela me observando de lábios
entreabertos enquanto abria as pernas, os tornozelos apoiados nas
bordas fazendo a calcinha vermelha visível.
Cocei a barba, todo meu foco indo embora: amava vermelho
na minha mulher, Alana a vestindo sendo tão afrodisíaco quanto o
que acontecia ao nosso redor.
— Qualquer parte sua é melhor, italiano. — Ver o tecido
encharcado era tão excitante quanto tudo que acontecia ao nosso
redor. — Acho que gozei primeiro. —Saiu com Alana levantando as
sobrancelhas, a figlia di puttana tentando me deixar louco com suas
provocações.
— Acho que só uma vez é muito pouco. — Era muito menos
do que eu queria: precisava fazê-la gozar até que a única coisa que
conseguisse sair dos seus lábios fosse meu nome. — Ninguém está
nos vendo aqui, mas nós podemos fingir, Alana — E outra vez, a
curiosidade nela.
— Fingir o que? — Ajoelhei entre suas coxas, achando o
tecido fino e o puxando para mim. Voltei a ficar de pé, a calcinha
indo para o meu bolso, as pernas se mantendo abertas.
Que visão.
— Que os casais fodendo contra o espelho nos enxergam. —
Eram semanas demais lhe dando o morno, e eu a queria gemendo
meu nome no meio daquela multidão. — Que todos ao nosso redor
estão nos vendo. Não tire o vestido — avisei quando as mãos
pequenas estavam prestes a expor os mamilos rosados. — Eu não
quero que te vejam sem roupa — continuei numa voz rouca, usar
aquela sala com ela sendo melhor do que qualquer coisa que já
havia consumido. — Você nua é só minha.
Alana obedecer e fechar suas pernas só me dava mais tesão.
Eu não era o único com demandas.
— Abaixa a calça e tira a camiseta, porque eu quero ver. —
Ela sabia mandar bem demais em mim, os olhos parecendo me
devorar ao ver as tatuagens do meu peito. — Quero que todos
vejam quem é só meu pra tocar.
Só dela. Cazzo, e eu abri meu zíper, abaixando o jeans e a
boxer até minhas coxas, fechando a mão direita no meu pau,
bombeando devagar enquanto me mostrava para minha donna.
— É isso que quer? — Alana gostava de ver, e realizar aquilo
me fazia querer comprar o clube e usar a sala todos os dias
possíveis. — Ver como eu fico duro para ti? — O pré-gozo me fazia
deslizar por toda a extensão, e quando deixei o nome dela sair, a
mão pequena indo para baixo da saia me obrigou a parar. — Cazzo,
Alana. Isso é...
Demais, ela era demais, e eu precisava senti-la gozando mais
uma vez antes de copiá-la.
— De quatro. — Minha mulher obedecer sem questionar só
fazia meu autocontrole ficar menor. Ela empinou a bunda quando
deixei a cabeça do meu pau roçar no seu clitóris, o corpo me
implorando o que precisava. — É isso que sempre quis, vero?
E conosco observando o mesmo casal, deslizei até o final de
sua boceta, nós dois gemendo com a sensação. A saia roçava na
minha virilha, um pedaço da tatuagem com meu nome à mostra, e
eu comecei a estocar no mesmo ritmo que observávamos contra o
vidro.
— Uma plateia vendo meu pau se enterrar em ti. É assim que
quer mostrar pra todos que é minha? — A mulher que apoiava as
mãos no vidro parecia olhar para dentro, Alana impulsionando para
trás cada vez que a penetrava, o sim que saiu de seus lábios
deliciosamente rouco. — Isso, bella — devolvi numa voz igual. —
Abre pra mim, e deixa eles verem como só eu te fodo.
Mal tinha começado e ela já estava ofegante, cada gemido um
incentivo para ir mais rápido. Nossa atenção ia junta pelos atos ao
redor de nós, um homem tatuado fodendo uma boca carnuda do
mesmo jeito que eu já tinha feito com ela.
— Isso te lembra da banheira, não lembra? — Sim, ela ia
gozar, sua boceta me apertando, meus dedos agarrando o tecido
vermelho, a puxando com mais força. — Me engoliu inteiro, me
chupou até o fim. — Me recordar daquele boquete me deixava tão
perto quanto minha mulher mostrava estar. — Até eu encher sua
boca malcriada. Acha que ela vai fazer igual?
A resposta de Alana foi o som que eu mais gostava de ouvir
sair de seus lábios. Ela gozou conosco vendo o homem sendo
chupado, ele enchendo a boca da mulher enquanto a minha
encharcava meu pau. Os gemidos que ouvia com ela gozando eram
deliciosos, a boceta tremendo ao meu redor me fazendo ir mais
rápido.
— Minha, Alana. — Sentia o aperto nas bolas, minhas mãos
quase rasgando o vestido. — Fala que é só minha! — rosnei, ela
obedecendo sendo meu limite.
Me enterrei mais uma vez antes de fechar os olhos, gemendo
ao jogar a cabeça para trás. Meu corpo tremia, meu pau pulsando, a
preenchendo com jatos fortes. Respirava pesado, minha mulher
ainda de quatro quando abri os olhos, os lábios entreabertos, eu
deixando sua boceta a contragosto.
— Ah, che bella sborrata[50]. — A puxei para o meu peito,
devorando seu pescoço, seu ombro, sua boca. — Te ouvir gemer
meu nome é tão bom quanto sua boceta me apertando — sussurrei
contra seus lábios, os sentindo sorrir contra os meus.
— Nico?
— Che?
— Acho que eu preciso de um lenço. — Levantei as
sobrancelhas, ainda entorpecido com minha droga particular. — A
não ser que você queira a sua porra escorrendo pelas minhas
coxas.
Expirei forte, não resistindo e voltando para dentro dela.
— Cazzo, Alana. Nunca vou conseguir sair daqui contigo me
falando essas coisas.

A noite terminou conosco no nosso quarto, Alana dormindo


nos meus braços com um sorriso satisfeito. Mantive o mesmo
sorriso até tê-la de olhos fechados, a mensagem que brilhou no
visor do celular fazendo eu me separar dela, fechando a porta do
quarto atrás de mim.
— Já tinham saído fazia algum tempo. Eu peguei o atirador.
— E? — Armando coçou a barba, não parecendo querer
continuar.
Sim, nós já estávamos longe quando aconteceu, e por aquilo
me senti sortudo. Não me sentia sortudo por nada além, ainda mais
quando lembrava ter considerado entrar no cubo de vidro. O atirador
foi paciente, limpando copos durante toda a noite antes de disparar
e quase fugir.
O homem que se apropriou de nossas máscaras e chave teve
o azar de também portar uma caveira em uma das mãos, a
tatuagem ficando curiosamente mais comum naquela parte da Itália
depois de mim. A mulher vestia vermelho, a roupa parecida com a
da minha. Os dois morreram com tiros certeiros na cabeça.
E ninguém desconfiou que algo poderia acontecer até eles
abrirem a porta da sala. O atirador, claramente, acertou em cheio,
mas errou o alvo. Os tiros eram para mim e para minha mulher — e
filha.
Eu realmente não esqueceria aquela foda. Mas ela não ficaria
na minha memória de um jeito bom.
— Garcia quem mandou o atirador, Nico.

Eu tive o melhor sexo da minha vida noite passada: era


inegável. Quando pensava que não poderia ficar melhor, Nickolay
dava um jeito de me provar errada. Eu gostava quando ele me
provava estar errada daquela forma, e viveria uma vida de erros se
fosse para ser corrigida pelo italiano seminu.
Se apenas erros não fossem uma coisa que viesse
acompanhada de gritos. Sabia que tinha algo de errado quando abri
os olhos, ao sentir o lado dele já frio, a voz rouca quase berrando do
outro lado da porta. Abracei minha barriga, desejando saber o que
estava acabando com nossa paz agora.
A paz nunca durava. Por mais que uma vida eternamente feliz
fosse utopia, uma vida pacífica, ao menos para Hope, era tudo o
que eu desejava. Admitir aquilo ser uma coisa impossível de se
alcançar no meio da máfia era algo que ainda não estava pronta
para fazer.
Estava quente, o verão da Itália tornando necessário um café
da manhã gelado para sobreviver. Vestida para o dia, tomei o suco
de laranja com gosto, e Nico ficaria orgulhoso com a salada de
frutas que havia no meu prato. Eu nem colocaria leite condensado, e
nem insistiria para ele me dar um pouco do seu café.
Eu, também, me enganava que ele tomaria café da manhã
comigo, o homem, por mais tarde que tivéssemos ido dormir, com
certeza de pé desde antes das seis. Quem entrou na cozinha foi
Armando.
— Ele está bravo — comentei, a ausência de Nico me tentando
a passar um café.
— Ele precisa estar. — Levantei as sobrancelhas. O mais velho
puxou uma cadeira antes de continuar. — Estão questionando a
capacidade de Nickolay. — Ele tinha um café nas mãos, e outra vez,
odiava Armando. — Para comandar a Famiglia.
As framboesas não tinham mais um gosto doce, só o azedo da
fruta tomando conta da minha boca. Ontem estava tudo bem. Nós
fomos dormir bem.
— O quanto isso pode ser um problema? — E então, estava
tudo ruim de novo.
— Não precisa se preocupar com isso, Alana. — E, de novo,
eu era mantida de fora.
Eu era mantida de fora desde a primeira vez que nos sentamos
juntos, ainda no Canadá. Nickolay me escondia coisas, e por mais
que entendesse sua preocupação, era irritante ser mantida de fora
de algo que se fazia parte. Eu fazia parte daquilo.
— É claro que eu preciso! — Eu fazia, e era minha vez de
gritar. Aquele era o dia que passaríamos nos preocupando conosco,
e mesmo sem ele me falar, já entendia que nossos planos tinham
sido cancelados. Duvidava que, se ficasse quieta, fosse descobrir
por que passaria sozinha em casa o dia que tanto esperei passar
com ele. — Eu tô cansada de nunca precisar me preocupar com
nada, eu não sou criança!
— Mas está com uma! — Armando gritar de volta era algo
inesperado. — E Nico se preocupa, todo mundo se preocupa! Como
acha que seu marido vai se sentir se algo te acontecer agora?
Também era um detalhe que só me deixava mais irritada, e
logo, nossos gritos atrairiam toda a casa para a cozinha.
— Do mesmo jeito que me sinto sempre que algo acontece
com ele! Ou vocês acham que é só ele que se preocupa? Só ele
que tem medo, só Nickolay que fica pensando nas merdas que
podem acontecer com a gente? — A noite passada tinha sido tão
boa. Era injusto aquele começo de dia. — Parem de me tratar que
nem um cristal, e me contem o que tá acontecendo!
A resposta que iria ganhar morreu nos lábios de Armando, os
olhos iguais aos meus presos na porta.
— Eu usei coca e matei dois homens — escutei antes de me
virar, as olheiras que percebia nele me contando que sono era algo
que faltava.
Nico parecia estar virado, eu ficando cansada só de vê-lo tão
acabado.
— Estão questionando se eles precisavam ter morrido. Estão
questionando o porquê de eu ser tão neutro com mercadorias
russas que passam e até ficam por aqui. E estão questionando se tu
é mesmo filha de Matarazzo, ou se isso foi armado para eu tomar o
poder.
E minha mandíbula travou. Tentei respirar fundo, e será que
era possível controlar as batidas do coração? Porque estavam
desconfortavelmente rápidas, e eu não queria batidas rápidas. Eu
não queria as pontas dos dedos gelados, a vontade de chorar,
precisar me forçar a não tremer, mas espetar com o garfo mais um
pedaço de fruta.
Não foram as palavras, mas o tom que ele usou. Cada pessoa
tinha seus gatilhos, e naquele café da manhã, descobri que o tom
da voz de Nickolay poderia ser um meu. Era a mesma voz que ele
usou quando me disse que precisaríamos fugir, e eu queria vomitar.
Eu me levantei da cadeira, andei até meu marido e o abracei.
Não saí de casa por dias.

Não saí de casa por dias, mas Nickolay, sempre que fora do
telefone, não deixava o meu lado. Aquele era um pequeno conforto,
assim como me acalmava o ouvir bem menos nervoso nos dias que
seguiram.
Já era quase agosto, e doía pensar que mais um aniversário
dele passaria sem meu italiano ter o que tanto merecia: paz. A gente
nunca parecia alcançar aquilo, por mais que ele falasse outra e
outra vez que eu e Hope éramos sua paz inteira.
— Bom dia, cuore mio. — Eu ainda estava de olhos fechados
quando ouvi, meus lábios levantando automaticamente. — Hoje eu
vou levar as duas para passear. — Não era comigo que Nickolay
falava, a primeira parte do meu dia sendo o ouvir falar com minha
barriga. — Acha que sua mãe vai querer te dar sorvete, ou vai tentar
me comprar para tomar café?
— E se for sorvete de café? — Não aguentei mais ficar quieta,
e o achei dando um sorriso que tinha sumido por tempo demais.
Meu marido sorria com os olhos, mas ultimamente, apenas seus
lábios faziam aquilo.
— Acho que estou em minoria aqui. — Ele assumiu o
movimento que nós dois sentimos como um sim, e eu desejei saber
o que tinha mudado. — Também acho que preciso te dar um pouco
do normal, dolcezza.
— Impossível. — Me estiquei até seus lábios, o beijo que
roubei passando longe de qualquer comum. — Tudo que você me
dá é extraordinário. — Nada com Nico merecia o adjetivo comum.
Eu gostava quando meu marido revirava os olhos.

Ao lado dele, o cheiro da maresia era agradável. Já tinha


falado aquilo umas três vezes, Nickolay todas as vezes sacudindo a
cabeça e me perguntando o que eu tinha tanto contra o mar. Eu
também não sabia, e mesmo com todas as histórias de Armando,
não havia nada que me fizesse entender meu desgosto.
Minha mãe adorava o mar. Minha mãe amava mar, café com
leite, framboesas, ele. Era bom poder não me sentir mais tão
culpada em saber das histórias dela, e muitas vezes, durante a
noite, Nico me encorajava a contá-las.
Por mais que Lorenzo fosse para quem os olhos do meu
marido suavizavam, eles não pareciam mais tão duros quando
paravam em Armando.
— Feliz com seu gelato de café? — escutei enquanto deixava
mais uma colherada de sorvete derreter na boca, afastando o cone
quando ele tentou roubar um pouco do meu.
— O melhor café com leite que tomei aqui na Itália! — Vi o
sorriso com minha empolgação, o braço dele voltando a rodear
minha cintura.
— Só escuto heresias dos seus lábios. — Os dele devoravam
o sorvete de chocolate de uma forma quase indecente.
— Você gosta das heresias que eu falo, italiano. — Se fosse
eu comendo o sorvete daquele jeito, ele com certeza falaria para
parar de tentá-lo a me debruçar na mureta mais próxima.
Mas agora, ele realmente não podia mais me debruçar, nossa
barriga já bem notável pelo vestido fino de verão.
— Que sorriso é esse?
— Nunca me levou para essa parte da cidade. — Escolhi a
resposta mais segura.
Eu não sabia que respostas seguras não existiam para aquele
quarteirão.
— Estava sem coragem de vir. — Nico limpou a garganta antes
de continuar. — Essa sorveteria que fomos era a favorita de Nicolas.
— Não tinha resposta boa, mas a mão que ele apoiava no canto da
minha barriga conseguia lhe dar um sorriso, nossa filha escolhendo
aquele momento para ser notada. — Parece ser a de Hope também.
— Sua filha gosta de comida boa. — Foram minhas últimas
palavras antes de pararmos.
A casa à nossa frente parecia saída de uma revista. Com um
jardim enorme e árvores que seriam a festa das crianças — e o
terror das mães, talvez — a propriedade serviria para nós e todas as
barrigas que eu gostaria de ter com ele.
Eu sabia, antes de Nico abrir a boca, que as paredes de tijolos,
para mim tão quentes, haviam sido, na verdade, frias demais.
— Essa casa era a minha. — Veio quando terminou seu
sorvete, a mão livre agora apontando para a árvore maior. — O
balanço de Nicolas é aquele. — Amarelo. Como tudo que
compramos nas últimas semanas. — Se importa se formos dar uma
volta no mar, dolcezza?
Quase nunca via os olhos escuros tão pedintes.
— Eu adoraria.
Não passamos por dentro, mas seguimos reto pelo caminho de
flores que havia rente a uma das paredes laterais. A parte de trás da
casa dava para a praia, o mar com poucas ondas, o cheiro de água
e sal mais forte.
— Acha que seria feliz aqui? — Eu sabia que ele não se referia
a casa, mas a nossa situação.
— Tipo, pra sempre?
— Tipo para sempre. — Uma gota de sorvete derretido
escorria pelo cone, e eu me forcei a ser sincera.
— Não. — Respirei fundo, colocando mais açúcar na boca
antes de continuar. — Não, eu não seria, mas eu iria me esforçar
pela gente. Você seria?
Nickolay também foi sincero.
— No.
A mão que estava antes na minha cintura agarrou minha livre,
a pele gelada me denunciando seu nervosismo. Andamos alguns
passos em silêncio, os tênis brancos que usava sujando com a areia
fina, Nico nos levando até a beira do mar.
— Foi aqui. — Ele não precisava falar mais nada para eu saber
sobre o que meu marido se referia. — Foi aqui que o perdi, foi aqui
que joguei as cinzas. Eu vou vender a propriedade, e… — Tinha dor
ali, mais dor do que gostaria de ver. Certas dores nunca sumiam por
completo, os olhos tristes colados no mar. — Eu só queria dizer
adeus.
Ele não iria chorar, Nico lutando como podia contra as lágrimas
que queriam sair. Eu sempre as deixava sair por ele, e me perguntei
se seus esforços seriam para cumprir algum desejo do filho. Nicolas
não ficaria triste se o pai chorasse para aliviar o peso que deveria
ter no coração, mas não me achava no direito de lhe falar aquilo.
— Nós vamos cuidar do seu pai, Nicolas. — Aquilo, eu podia
falar. Apertei forte a mão gelada, lhe dando todo o conforto que
conseguia. — Nada de ruim vai acontecer enquanto eu estiver com
ele. Eu juro.
E, como se o menino realmente estivesse nos observando e
ouvindo, uma concha amarela chegou em nossos pés pela maré.
Me abaixei para pegá-la, entregando-a para quem precisava tanto
de um sinal, o sorriso vindo mesmo com os olhos brilhantes.
— Quer um minuto? — Ele hesitou antes de fazer que sim, e
me observou andar até a areia fofa antes de se virar para o mar.
Terminei meu sorvete antes de tê-lo de volta, os olhos escuros
mais secos, a concha tendo ido parar em um dos bolsos da calça.
— Eu vou falar com Demidov, nem que eu tenha que ir para a
Rússia, ou seja lá onde ele estiver. Isso vai acabar. Hope pode
nascer aqui, mas ela vai crescer muito longe da Itália, Alana — ele
falou segurando meu rosto, a expressão decidida. — Eu prometo.
— E eu acredito. — O segurei de volta, Nickolay outra vez me
fazendo falar o que, um ano atrás, achei que nunca mais
conseguiria dizer para ninguém. — Eu confio em você, Nico.

Havia sido a tarde de sábado que sempre sonhei em ter com


minha família. Andar sem muito rumo, açúcar e roupinhas
conseguiram botar e manter o sorriso no rosto de nós dois. E a
felicidade, pelo menos a minha, era visível, e bem apreciada pelos
outros moradores da mansão.
— Mais contente, bambina? — Era a primeira vez que ele me
chamava de bambina desde nosso café no Canadá.
Fiz que sim, me perguntando se o mais velho se referia a Nico
ter me contado o que o afligia naquele café da manhã, dias atrás.
Se ele falava sobre o passeio normal, uma das únicas normalidades
tidas na Itália.
Ele não me deixou dar outra resposta.
— Quer tomar um café? — Era o primeiro dia que Nickolay
estava fora depois de muitos ao meu lado, e precisava admitir que
até estava sentindo falta das conversas que tinha com Armando.
— O que quer saber do seu filho agora? — retruquei, já
andando em direção a porta. — Você só vem com esses convitinhos
quando quer saber do menino, acha que não reparei? — Parei com
a mão na maçaneta, inclinando a cabeça para o mais velho. — Ah,
e se me der outro descafeinado, eu vou gritar! Fica o aviso.
Ele sacudiu a cabeça, colocando os óculos escuros antes de
seguir atrás de mim.
— Não entendo como o moleque ainda não ficou maluco te
tendo como mulher. — O moleque. Ele tinha dito “meu moleque” um
dia desses, e meu coração passou perto de derreter.
Com todo o calor que andava fazendo, não era difícil.
— Ridículo.
E sorri: seria mais um dia de paz, eu sabia. Mães sempre
sabiam, havia escutado tantas vezes, e tinha já tempo que eu não
me sentia tão calma. Seria um dia de paz, e Armando jogou a chave
do carro que usaríamos para um dos seguranças que costumava
dirigir.
Eu não conhecia bem aquele homem, mas conhecia de vista
sua família. A mulher e o filho já haviam aparecido ali, e Barbara
realmente tratava todos muito bem. Ela os tratou bem, porque talvez
Barbara, mesmo sem ser mãe biológica de ninguém, tinha o sentido
que eu afirmava mentalmente todas as mães possuírem: o de saber
se alguém era bom.
— Não te ensinaram a respeitar os mais velhos? — Era por
isso que Barbara nunca tratou bem Katerina, pelo que me foi dito?
Porque ela sabia que Katerina era ruim?
Katerina era ruim, não era?
— Não te ensinaram a respeitar a mulher do Don? — E eu
estava criando todo um diálogo na minha cabeça para tentar me
distrair, era a única explicação.
Porque eu estava no chão, eu fui para o chão logo depois da
palavra ridículo sair dos meus lábios. As minhas duas mãos
estavam com as palmas arranhadas, e eu estava no chão de pedra,
o carro tendo explodido assim que o segurança virou a ignição. O
carro estava queimando. Quem estava dentro do carro, também.
Armando me virou, os olhos preocupados me lembrando o porquê
do meu cérebro estar querendo me distrair.
O vestido que eu usava era creme, e a máfia estava me
fazendo odiar cores claras, minhas mãos abertas sujando de
vermelho o tecido. Eu pressionava minha barriga, meu coração
acelerando cada vez mais ao não sentir nada. Hope estava se
mexendo até eu cair, e agora, tudo que me dava era um silêncio
ensurdecedor.
— Armando, eu preciso… — De Nickolay. Da minha mãe.
Saber como o meu bebê está.
— De um hospital.

— Eu sou um chefe de merda.


Estava jogando golfe quando recebi a notícia. Golfe, eu
detestava golfe, detestava todos os homens que jogavam comigo,
detestava a Itália. Era oficial: eu odiava meu país.
Mas a Itália não era meu país. Talvez gostasse da Rússia, se
tivesse ficado por lá. Pela primeira vez, detestei minha mãe ter nos
levado embora. Meu pai biológico poderia ter sido um monstro, mas
crescer traumatizado cuidado por alguém que tinha seus próprios
fantasmas não tinha sido muito melhor.
Poderia ter fugido sozinha e nos deixado na máfia russa. A
italiana, afinal, não era tão melhor.
— Estou fazendo tudo que posso para resolver, filho. — Eu era
um chefe de merda, porque só chefes de merda eram atacados
dentro da própria casa. Eu não sabia liderar, eu não queria liderar.
Eu queria fugir. Eu queria pegar Alana e Hope, e desaparecer
no mundo. Eu estava próximo demais daquilo, tinha até considerado
passagens, passaportes. Sumir e não falar para ninguém. Ela fugiria
comigo.
Fugir de Demidov era impossível, e o russo me deixou aquilo
bem claro. O russo também deixou bem claro o quanto não se
importava com qualquer segurança que não fosse a minha, por mais
que aquilo fosse muito burro de sua parte.
Alguém entrou na minha casa e plantou uma bomba no carro
que sempre era usado por Alana.
— Eles não queriam matá-la, Nico. — Mas a afirmação, para
mim, não parecia verdadeira.
— Ela poderia ter ligado o carro, sabe como Alana é! — Se
queriam apenas me assustar, que tivessem matado meus
seguranças. Que tivessem apontado uma arma para a minha
cabeça. — Ela poderia ter explodido com a minha filha. — Falar
aquilo em voz alta aumentava mais meu desespero. — Eu
queimaria a Itália inteira se isso acontecesse. Eu vou queimar a
Itália inteira se isso acontecer.
— Nada disso vai acontecer. Se…
— Se mandar eu me acalmar, começo o incêndio agora. —
Ouvi um suspiro do outro lado da linha. — Preciso desligar. — Não
esperei resposta antes de finalizar a ligação, o celular indo para o
bolso, eu parando o carro de qualquer jeito no estacionamento do
hospital.
Maldito dia para dirigir, e sem me importar em estar ocupando
duas vagas, corri para dentro. Armando estava com minha mulher, e
as duas estavam bem. Repeti aquilo outra e outra vez enquanto
corria pelos corredores. Do jeito que tinha sorte, deveria estar me
preparando para o pior, ao invés de me enganar.
Pensar no pior era mais sábio. Me enganar, infinitamente mais
fácil. Pelo vidro, eu via minha mulher soluçando, as mãos com
curativos cobrindo a boca, lágrimas saindo dos olhos fechados.
Encostei as costas na porta, agradecendo por Armando estar com
ela.
Ao menos havia alguém para lhe passar um pouco de força,
porque eu sabia que desabaria com minha mulher assim que
entrasse.
Eu queimaria a Itália inteira. Eu queimaria tudo, e depois de
cinco minutos escutando apenas soluços, já não tinha mais nada no
peito para quebrar, minha mão virando a maçaneta.
Todos os olhos pararam em mim, os de Alana inchados do jeito
que eu odiava ver. Mas havia felicidade neles. Ela se afundar em
soluços e lágrimas e ainda ter felicidade não fazia sentido, e me
perguntei se eu poderia estar sonhando. Estar no meio de um
pesadelo, talvez.
O coração forte que escutava batendo, naquele momento, era
o melhor som que existia. Os dois pares de olhos cor de mel
pareciam concordar, e eu, desde que recebi a notícia no meio da
partida, pude respirar sem a tonelada que havia sentado no meu
peito.
— É o pai? — Fiz que sim, puxando o ar ao chegar nelas,
Armando se afastando, eu trazendo Alana para meus braços. —
Está tudo bem com as duas: não existe nenhuma fratura, sinais de
descolamento da placenta ou perda de líquido amniótico. Mas quero
que fiquem atentos a sangramentos, contrações, ou qualquer dor
anormal. — O sorriso era gentil. — Se sente mais calma com seu
marido, Alana?
Ela afirmar com a cabeça, se agarrando em mim do jeito que
me agarrava nela, me dava um mínimo sentimento de utilidade.
Ainda assim, nunca me senti tão inútil.

Alana estava bem.


Eu não estava.
Armando tinha se transformado na minha sombra, e eu sabia
bem o porquê. Minha mulher era tão óbvia, não percebendo todas
as vezes que encarava demais meus olhos. Sabia por que ela
implicava quando eu não comia, por que perguntava como andavam
meus sonhos. Eu não estava bem, e era visível a preocupação nela
com o marido que poderia voltar a usar coca.
Eu queria que essa fosse minha maior preocupação. Que me
internar numa clínica de reabilitação e ser obrigado a ficar longe
delas resolvesse todos os meus problemas. Andava com a barra de
chocolate e o post-it sempre comigo, sabendo que não, eu não
usaria nada.
Não tinha mais tempo para perder com vícios que não fosse
ela. A explosão me fez entender bem demais minhas alternativas.
Eu entendi até mesmo antes do acidente, o ocorrido em Capriccio
abrindo meus olhos.
Fui para o restaurante sozinho, a conversa que tive com
Nicolas na praia ainda fresca na minha mente.
“Essa é a família que eu não consegui te dar, cuore mio. Ia ser
tão feliz com ela, Alana é a melhor mulher que eu conheço.
Desculpe conseguir isso para ti com tanto atraso.”
Sol estava sentado, acompanhado dos mesmos seguranças da
primeira vez, o espaço público demais para ele ou eu tentarmos
qualquer coisa.
— Eu disse que explodiria tudo se continuasse a me foder, não
disse, Morte?
Tomando um copo de vinho, o homem não parecia ameaçador.
Nem mesmo tinha a expressão de alguém perigoso. Descobri, dias
atrás, que Demidov era igual. Talvez os que não aparentem,
realmente, sejam os piores.
— Te dei a chance de parar de ser uma putinha dos russos.
Agora, eu quero a sua cabeça — veio antes mesmo de eu puxar a
cadeira.
Já imaginava que era minha vida que seria pedida.
— A cabeça da Morte é difícil demais de se conseguir. Com a
fama que tem, acha que vai acontecer o quê comigo, segurando a
cabeça do ceifador?
Me sentei, tentando não parecer derrotado, mas determinado.
Eu conseguiria resolver a situação na qual tinha nos metido.
— É só isso? — Se minha cabeça fosse o necessário para a
paz dela, era ainda um preço baixo a se pagar.
— Eu tenho dinheiro para explodir o que quiser — o espanhol
falou com um sorriso calmo, girando o líquido semitransparente no
copo. Aquele vinho era uma merda, e eu deveria matar esse
stronzo. — O que eu não tenho é reputação. Anda difícil conseguir
uma. — E Garcia tomou o vinho, eu desejando que a bebida tivesse
o mesmo veneno que a garrafa do branco da noite do jantar
sangrento.
— Eu tenho uma proposta para ti.
“Eu não vou repetir meus erros. Eu não vou deixar ninguém
ameaçar nossa família. Mas talvez…”
Naquela tarde, falando com Nicolas à beira mar, eu parei no
talvez, sacudi a cabeça, e voltei para o meu mundo. Eu ofereceria
minha cabeça de bom grado para manter minha família a salvo. O
teria feito por meu filho, e o faria por elas.
Talvez tenha que me esperar só mais um pouco, Kolya. Talvez
eu não demore mais tanto assim para chegar.

Nunca gostei do meu aniversário. A data, durante quase todos


os anos antes dela, me lembrou demais o quanto eu preferia não ter
nascido. Era difícil preferir não ter nascido, mas era mais difícil ainda
não ter quem se queria ao redor.
Eu tinha todos que queria ao meu redor naquele ano, e ao abrir
os olhos, decidi que passaria pelo menos um aniversário normal.
Um dia agarrado nela e na nossa barriga, normal.
Só que seis de agosto, se dependesse de Alana, nunca seria
um dia normal. Começava por ser o único dia da semana que ela
decidia acordar antes de mim, meu alarme tendo sido desligado, o
relógio do celular marcando oito e meia.
Alana tinha nascido em seis de agosto, e por mais que ela
afirmasse aquele não ser seu aniversário — “meu aniversário é em
novembro, eu sou de escorpião!” — o dia se tornava mais especial
por ter trazido minha mulher.
Vesti um roupão e desci, o cheiro de bolo dominando a parte
de baixo da casa. Bolo queimado, e não tinha como não entrar na
cozinha sorrindo: não havia nada mais Alana do que o aroma de
comida que passou do ponto. Minha mulher com um avental e uma
barriga que vivia no caminho dela e das coisas, colocando uma
forma sobre o fogão e revirando os olhos, era adorável.
Ela pulou quando a abracei por trás, Alana me mostrando toda
sua falta de atenção com o mundo. Como a mulher focava apenas
em preparar uma receita, e ainda assim a queimava? Queria passar
um dia dentro da sua cabeça para tentar descobrir. Provavelmente
me apaixonaria mais.
— Você quase nos infartou, italiano! — escutei antes dela se
virar, o nariz pequeno sujo de farinha. — É, é, eu tô uma bagunça,
eu sei — ouvi quando a limpei, ela desamarrando o avental e
olhando para o bolo.
— Está bem passado, dolcezza. — E ganhei meu primeiro
presente: um tapa no braço. — Eu gosto de bem passado!
— Se não se comportar, juro que te faço borcht todos os dias
da próxima semana!
— Eu comeria feliz todas as vezes. — Adorava fazê-la revirar
os olhos, o ato sempre sendo minha pequena vitória.
— Achei que fosse conseguir te deixar dormindo até depois
das dez — ela lamentou, fazendo um bico ao olhar mais uma vez
para o bolo de aparência duvidosa.
— Se tivesse ficado do meu lado, talvez.
— Vou anotar isso para o do ano que vem. — Escondi meu
rosto na curva de seu pescoço, apertando os olhos, o cheiro dela
sendo meu segundo presente. — Feliz aniversário, italiano — veio
junto das mãos bagunçando meus cabelos.
— Todos os dias contigo são felizes. — Não precisava ver para
saber que ela tinha revirado os olhos outra vez. — Vou ganhar meu
presente agora?
Eu não esperava que a resposta fosse sim, não tendo notado a
caixa sobre a bancada. Alana me entregou nervosa, e eu fiquei sem
palavras quando a abri. O relógio era uma versão atualizada do que
usei por tantos anos, o acessório ainda não reposto desde que eu
dera meu único de volta ao seu dono original.
— É lindo, dolcezza. — O tirei da caixa, pronto para colocá-lo
no pulso quando meus dedos sentiram o arranhado na parte de trás.
Sempre, e precisei fechar os olhos novamente, o peito,
finalmente, apertando.
— Obrigado, Alana. — Sempre, a palavra verdadeira: eu a
amaria para todo o meu sempre.
— Esse não é o único presente que eu tenho pra você — ela
sussurrou, os lábios perto dos meus, sua respiração cheirando a
laranja e açúcar. — É difícil dar algo material pra quem pode
comprar tudo. — E assim fácil, minha mulher tinha toda minha
atenção. — Pensei em tantas coisas.
— Alana…
— Você quer seu outro agora? — A mão pequena agarrou meu
pau por cima do roupão, e eu já imaginava diversos jeitos de
usufruir meu presente. — Ou tá muito cedo, italiano?
Ganhá-la era melhor do que qualquer outra coisa.
— Agora — saiu numa voz rouca, minha mulher molhando os
lábios.
Alana arfou quando a peguei no colo, eu ignorando o bolo e a
pontada de fome que sentia enquanto nos levava escada acima.
Desde minha decisão, eu vivia faminto só por ela, e esperava que a
fome da minha mulher durasse até nosso último dia.
Ela sorria no meio dos lençóis brancos e eu descobria que a
figlia di puttana estava cozinhando sem calcinha, levantando seu
vestido e não tendo impedimentos para colocar minha boca na sua
boceta. Os gemidos que vinham só me deixavam mais duro, minha
língua querendo provar cada pedaço dela.
— Esse não é o seu presente, apressado — o sussurro veio
com as mãos dela agarrando meus cabelos, as minhas a segurando
pelo quadril contra minha língua.
— Não tem presente melhor, Alana — falei entre lambidas,
muito focado em fazê-la gozar até escutar sua próxima frase.
— Eu vou ter que discordar. Lembra do que você me
perguntou no clube? Se eu preferia seus dedos ou dois paus? — E
com duas perguntas, ela tinha toda a minha atenção. — Eu
reconsiderei: não sei o que responder pra isso.
Enruguei a testa, encarando os olhos cor de mel.
— Che?
— É difícil escolher quando não se tem uma base. — Eu
tentando entender aquilo a deixou livre demais, minha mulher
saindo da cama e indo até nosso closet. — Achei um outro
brinquedinho que você comprou. Comprou quando foi sozinho? — E
lembrei do que havia deixado no fundo de uma sacola preta, Alana
voltando para o quarto com o objeto nas mãos. — Ou depois que a
gente visitou juntos?
Me deixar sem palavras era a especialidade dela. Alana nua, o
vestido tendo se juntado às outras roupas no closet, me trazendo
um strap-on[51] fez eu desaprender a pensar. Ela ajoelhou no
colchão e abriu meu roupão, molhando os lábios ao me ver duro por
baixo da cueca.
— Você vai me matar, Alana. — As mãos pequenas abaixaram
a boxer, os lábios envolvendo meu pau, os olhos presos nos meus.
— Vai me matar, mas juro que morro feliz depois disso.
Fui empurrado para a cama, arfando ao ser engolido inteiro,
minhas mãos presas nos cabelos castanhos. Ela sempre usava
calma quando queria me provocar, mas até a calma era demais
sabendo o que viria. Seria uma primeira vez com ela, e primeiras
vezes como aquela eram boas demais com Alana.
— Chega, bella — avisei para quem quase nunca me
obedecia, ganhando um meio sorriso ao puxar os fios que a mão
com a caveira segurava. — Eu quero o meu presente.
Agora era ela quem arfava, a vez dela de ser deitada, eu
alcançando o lubrificante na gaveta. Vesti a cinta abandonada no
lençol, meu pau ficando por baixo do de silicone, a antecipação que
havia nos olhos mel ao me ver com aquilo sendo deliciosa.
— Acha que consegue? — perguntei antes de me enterrar
nela, Alana agarrando o lençol ao me sentir fundo. — Acha que
consegue me aguentar até o final? — E eu deslizei para fora,
começando um ritmo preguiçoso. — Sua boceta sempre me recebe
tão bem. — Me inclinei sobre ela, chegando perto de seu ouvido
antes de sussurrar. — Vai ser igual quando eu foder seu cu?
Dava para cheirar o quanto ela estava excitada. Dava para
ouvir cada vez que eu a preenchia, Alana pingando, os seios
enrijecidos. Travei a mandíbula ao vê-la fechar os olhos e beliscar
os mamilos, minha mulher parecendo ter saído de um pornô de
qualidade.
Alana gozando era sempre algo maravilhoso de ser apreciado.
Ouvindo meu nome saindo outra e outra vez dos lábios junto com os
melhores choros, não ir com ela era quase impossível.
— Aguenta gozar outra vez? — Ainda de olhos fechados, ela
fez que sim, uma reclamação seguindo quando a deixei. — Sem
pressa, bella. Eu vou te foder devagar... — Arfei ao esfregar toda
minha extensão nela, Alana tremendo quando estoquei contra seu
clitóris. — Vou usar toda a calma que tu não tem, apressada.
Me ajoelhei no meio das suas pernas, colocando um
travesseiro embaixo do seu quadril, a puxando para perto pelas
coxas.
— Eu não quero calma...
— É meu presente — a cortei, lambuzando meu pau com o
lubrificante. — Eu escolho como vou desfrutar dele.
As mãos torceram mais o lençol ao sentir a cabeça entrando, e
precisei de toda a calma que tinha para não me enterrar por inteiro
nela. Alana tensionou, ficando ainda mais apertada, ficar parado
sendo uma tortura deliciosa.
— Relaxa, Alana. — Dos dois, era eu o ofegante, lutando para
achar minha voz.
Ela gemeu alto quando esfreguei seu clitóris, minha mulher nos
tirando as palavras ao investir contra meu pau. Alana parecia querer
aquilo tanto quanto eu, sempre querendo queimar minha calma.
— Relaxa, ou eu não vou conseguir te foder como quero. —
Era verdade, minha mão livre indo para um dos seios, meu nome
saindo da boca dela quando belisquei o bico. — Faz como na noite
em que usamos o plug. — Toquei os lábios finos com o indicador,
eles se partindo e envolvendo meu dedo. — Finge que é meu pau e
chupa.
Ela me obedecer no sexo era algo que me enchia de tesão.
— Boa garota… — mal consegui falar, Alana querendo o
comando para ela e rebolando contra mim.
Os gemidos satisfeitos que ganhava faziam aquele ritmo
devagar parecer rápido demais. O pau de silicone fazia o trabalho
da minha mão, ela parando de chupar meus dedos me deixando
livre para agarrar suas coxas, expirando forte ao me enterrar mais
no seu cu.
Cazzo, Alana iria me matar, sabia que iria. Só que aquela
morte eu queria, e morreria quantas vezes Alana quisesse. A mão
apressada pegou o consolo, a pressão aumentando ainda mais com
ela sendo preenchida na boceta. Meus dedos afundaram na pele
branca, os choros que vinham dela me deixando com um controle
pequeno demais.
O desejo que tinha nos cor de mel se misturou com
curiosidade quando parei de mexer, me debruçando sobre ela antes
de nos virar.
— Quer dizer que... — ela ofegou quando me sentiu mais
fundo, as unhas achando meu peito, as marcas vermelhas sendo
deliciosas de ganhar enterrado nela. — Que gosta de ser mandado?
— Só por ti — não neguei o óbvio, nós dois gemendo quando
ela se endireitou, apoiando as mãos nas minhas tatuagens. —
Sempre por ti, Alana.
Os olhos fecharam quando meus dedos voltaram par ao meio
das suas pernas, a cabeça pendendo com as primeiras investidas. A
falta de pudores da minha mulher no sexo era maravilhoso, meu
nome saindo dos seus lábios melhor que qualquer elogio. Ela
beliscava os seios e me cavalgava do jeito que eu disse que a
foderia, até os gemidos que soltava deliciosamente preguiçosos.
— Cazzo, bella... — Me esforcei para gravar aquela imagem.
Nada poderia ser ruim vendo aquela cena, nada poderia ser ruim
com meu pau sendo apertado daquele jeito. Alana era apertada e
quente em todos os lugares, e eu jamais queria me esquecer da
sensação de estar dentro dela. — Que visão.
Gozei enterrado no seu cu, minha mulher seguindo, os
espasmos aumentando ainda mais o prazer que sentia. Ela tremia,
os olhos fechados, as unhas arranhando minhas tatuagens. Seu
nome escrito junto das linhas vermelhas eram os desenhos mais
bonitos que tinha na pele.
— Dois dedos, ou dois paus? — perguntei quando ela caiu ao
meu lado, um sorriso satisfeito nos lábios.
— Acho que preciso experimentar os dedos de novo pra
decidir.

Saíamos do segundo banho do dia, o relógio marcando dez


para a uma da tarde, nós, oficialmente, meia hora atrasados para o
almoço. O aroma do shampoo dela ainda tomava conta do banheiro,
os cabelos molhados enrolados na toalha branca. Ela ainda estava
com as bochechas coradas, e pelo espelho, conseguia vê-la
examinando a barriga.
— Bellissima — saiu quando parei atrás dela, a caveira
parando abaixo do seu umbigo.
A senti se mexer e respirei fundo, querendo cravar aquela
imagem na minha memória. Eu ainda teria outros dias, tantas outras
ocasiões para observá-las. Era difícil pensar que não seriam
suficientes meus momentos com elas.
Alana nunca seria o suficiente, e eu sempre me forçava a
lembrar do que ela havia me feito prometer, ainda no Canadá.
— O que foi, italiano? — Os olhos cor de mel acharam os
meus pelo reflexo, a curiosidade tomando conta deles.
Os meus não conseguiam sair de nós dois.
— Eu quero me lembrar disso. — E coloquei a outra palma na
parte de baixo, segurando a barriga de seis meses nas mãos, a
expressão de Alana mudando para uma relaxada.
Ela mencionou a barriga ter começado a pesar dias atrás, e
dar qualquer alívio para minha mulher me deixava mais leve.
Minha. Era difícil manter aquela possessividade, eu não
querendo pensar nela com outro, e ao mesmo tempo, desejando
que quem se dizia minha fosse feliz. Alana poderia ser feliz sem
mim, não poderia? Claro que sim. Quem eu segurava próxima era a
mulher mais resiliente que conhecia.
— Sempre posso te dar de novo esse momento. — Fiz que
sim, nos enganando com uma história bonita. — Falamos pelo
menos dois, não falamos?
— Falamos, dolcezza. — E eu esperava que ela realizasse
nosso sonho, por mais que ele fosse se tornar apenas dela. — Pelo
menos dois — murmurei contra a pele branca, fechando os olhos e
aproveitando os momentos que ainda eram meus.
Nossos.
Aproveitaria meu aniversário como eu quisesse, meus planos
não incluindo qualquer almoço.
— Assim a gente vai se atrasar mais. — Mas não houve
oposição quando a deitei na cama, a toalha caindo no meio do
caminho, os cabelos úmidos em mim.
— Liga? — perguntei, a puxando para cima das minhas coxas.
Aquela visão era uma que eu teria sempre que fechasse os
olhos. Alana, nua e com os cabelos caindo sobre os seios, as mãos
na barriga, era meu paraíso particular.
— Não.
Pedi para servirem o almoço na cama.

O tempo passava rápido demais com ela. Do meu aniversário,


já estávamos no final de outubro, os meses passados na maior das
calmas. Nem parecia a vida na qual havia me metido.
Seria a vida delas. Fechei os olhos, abotoando as mangas da
camisa. Talvez não fosse conseguir dar todo o descanso que
prometi, mas toda a calma que ela precisasse, ela teria. Ou ao
menos, assim, eu me enganava.
— Realmente precisa ir? — Forcei um sorriso, andando até a
cama, Alana e nossa barriga ainda debaixo das cobertas.
— É só uma visita rápida, amore mio. — Beijei sua testa, e
então seus lábios, respirando seu cheiro. Framboesa sempre
acalmava, e eu nem mentia: a visita, realmente, seria rápida.
Ao menos, eu esperava que fosse. Rápido.
— Prometo voltar antes de sentir minha falta.
— Mentiroso. — Eu era, e por um instante, achei que ela
soubesse o quanto mentia. — Eu já tô sentindo.
Mas não tinha como minha mulher desconfiar. Não tinha como
ninguém desconfiar daquela última loucura, e eu peguei seu rosto
em minhas mãos e observei os olhos cor de mel, precisando
absorver todos os detalhes possíveis.
— Ti amo, Alana. — Talvez ela nunca fosse me perdoar por
isso. — Chame Armando para o que precisar, ok?
— Posso chamar ele pra te prender aqui?
Me separar dela deixou um pedaço de mim. Só descendo as
escadas que realizei: eu havia deixado um pedaço de mim com ela.
Alana teria Hope. E Hope precisaria bastar.

1993

— Seu expresso, senhor. — Agarrei a manga da camisa do


garçom quando ele se afastou, os olhos do homem crescendo.
Bufei quando o vi se encolher.
— Eu não quero te matar, moleque. — Um suspiro aliviado.
Minha fama realmente havia tomado conta da cidade. — Quem é
aquela garota?
— Chama Carina, senhor.
Carina.
— Quero que ela me sirva. Fale para me surpreender e trazer
o que mais gosta de tomar. — Estreitei os olhos quando notei que
ganharia uma pergunta. — Seja inteligente, moleque. Aprenda a
quem pode dizer não. — Minha fama havia tomado conta, e eu
desejei saber se a garota que segurava a bandeja contra o peito e
sorria para o dono também já havia ouvido de mim.
— O que tem a garota, Armando? — Lorenzo nunca conseguia
ouvir minhas vontades quieto.
Ocupando uma das mesas que ficavam na calçada da
cafeteria da esquina, acendi um cigarro, meus olhos ainda na
garota. Carina. Era a primeira vez que a via na região, era a primeira
vez que me sentava para tomar café ruim. Aquele expresso era o
pior do bairro, e tinha o evitado com sucesso até aquela manhã.
— Prefiro ganhar meu café de mulheres bonitas. — Era
mentira, e meu amigo de anos sabia reconhecer bem demais as
merdas que eu nos contava.
— Do mesmo jeito que preferia aprender português com
Astrid? — Sacudi a cabeça, virando o que tinha na xícara em um
gole. Queimado. Que bom italiano não sabia tirar um café da
máquina? — Sua esposa não é bonita o suficiente para você?
Eu teria socado qualquer outro que tivesse ousado trazer
Katerina para a mesa.
— Só perdoo porque vem de ti, cretino. — Traguei para tirar o
gosto amargo da boca, observando com interesse os olhos da
garota crescerem, ela olhando rápido para nossa direção antes de
sacudir a cabeça.
Ah, menina. Não existia opção, e era o que o dono do lugar
falaria para ela assim que ouvisse sua negativa.
— Obrigado, ó temido Morte. — Soltei a fumaça, fechando os
olhos contra os raios de sol.
Até que estava sendo um bom dia.
— Tu não vale uma porra.
Mantovanni riu, o barulho da xícara batendo no pires
acompanhando. Duvidava que meu amigo tivesse gostado da merda
que serviam como café, mas me dar razão era uma das coisas que
ele menos gostava de fazer. Todos te obedecem demais, Morte.
Precisa de alguém que te desafie. Eu não precisava de mais
desafios na vida.
— Conseguiu descobrir algo sobre o que pedi?
— Nada. — Grunhi, bagunçando os cabelos. Odiava precisar
acreditar na palavra de alguém sem provas, e aquilo já acontecia
fazia anos demais. — Ela é um fantasma, Armando. Todos eles são.
— Katerina mente. — Tinha certeza. — Ela estava
desesperada fugindo de Demidov, blefou com a lenda do nosso
meio, e eu acreditei. É a única explicação.
— Bem, a mulher conseguiu escapar do russo com duas
crianças. Não acho das coisas, a mais fácil. — Escapar daquele
homem sendo uma pessoa normal era quase impossível. Mas
sempre havia exceções, e Katerina poderia ser uma. Ela ser uma
exceção a faria bem mais mortal. — Você mesmo disse que, se
quisesse, ela poderia te matar. Você provou, Armando. Você tentou.
— Eu deveria tê-la matado naquela noite. Deveria matá-la
enquanto dorme. — Mas agora, não conseguia mais dar um fim na
mulher. Eles viriam atrás de toda minha família se eu o fizesse, e
duvidava que aquele grupo poupasse crianças.
E a vida que eu tinha era confortável. Sair com quem bem
quisesse e ter uma casa para onde voltar era confortável, e mais do
que eu imaginava conseguir na vida da máfia. Acabaria num
casamento de fachada, as opções bem limitadas no nosso meio,
então considerava sorte ter a liberdade que tinha com Kata.
A mulher poderia ser uma mentirosa, mas o conforto que
dividíamos junto das crianças era bom. Não reclamaria disso, desde
que ela continuasse a manter a boca dela fechada.
— Até parece que gosta dela. Ficando mole, Morte?
— Ela gosta dos meninos e os meninos gostam da mãe. — E
eu gostava sim dos meninos. Eram boas crianças.
Eram as únicas que eu teria.
— Ao menos, a mulher não vai me dar trabalho querendo fugir.
— Era o que eu esperava. Kata tinha o mais próximo do normal que
conseguiria ficando ao meu lado. — Continue procurando, ok?
O sorriso que ele deu era o de alguém que sabia demais.
— O que foi agora?
— Sua garota está vindo. — Bufei, Mantovanni nunca
cansando de provocar. Sorte do maldito que vivia no meu lado bom.
Ela trazia uma xícara vermelha com um sorriso, diferente das
brancas que via com os outros clientes, e o detalhe me prendeu. Era
o detalhe que não me fez desgrudar os olhos dela, tinha certeza. A
garota, que colocava um cappuccino — por Deus, não tinha outra
coisa para me dar? — na mesa e fugia dos meus olhos, não fazia
nem meu tipo. Se eu falasse aquilo para meu amigo, iria apenas lhe
dar mais munição: e desde quando tem um tipo, Armando? Odiava
alguém me conhecer tão bem. Meu tipo tinha uma boceta, era o que
o cretino sempre enchia a boca para dizer.
Eu tinha bem claro meus objetivos. Meu pai foi um filho da puta
a vida inteira, mas ele me ensinou a focar no que eu queria. E eu
queria aqueles lábios, que a garota torturava mordendo, no meu
pau. Iria segurar sua mão, perguntar onde poderia encontrá-la após
o trabalho, e aproveitar minha noite. Era difícil vir um não, talvez
pela minha fama, talvez por eu saber que elas gostavam do que
viam.
Não falei nada, quanto mais a toquei, antes de Carina voltar
para trás do balcão. Ela sorriu para o dono do café, e eu fechei os
punhos.
Fazia tempo que não queria socar tanto alguém. Eu não
socava, sempre tomando cuidado para não aparecer com
machucados que poderiam gerar perguntas na frente dos meninos.
Punhos abertos geravam perguntas e deixavam óbvio o que havia
acontecido, mas o calor que senti no peito me faria abri-los sem
pensar.
A garota nem mesmo me olhou, e aquele sorriso era meu.
Olhei para a espuma do leite, eu detestando misturar meu café com
qualquer coisa. Então Carina gostava de cappuccinos. Eu sabia
onde comprar o melhor da nossa cidade, e talvez a convidasse para
dividir comigo.
Enruguei a testa: eu não a convidaria para nada, e eu odiava
cappuccinos. Também odiava as risadas de Lorenzo.
— Armando, Armando... — ele balançava a cabeça,
novamente me olhando como se soubesse demais. O homem
sempre achava que sabia mais do que eu, parecendo um irmão
mais velho irritante, eu querendo ter seus dois anos a mais para
calar sua boca. — Amor à primeira vista?
Naquela tarde, realmente queria calar sua boca, e Carina
ocupou minha visão por mais cinco segundos antes de eu me forçar
a desviar.
Tomei um gole do líquido, pelando a língua com a temperatura
quente. Eu teria ido até o dono com a xícara em qualquer outro dia.
Mas era a garota quem tinha me servido, então me perguntar se ela
gostava de seu café assim quente, bastou.
— Pare de graça. — Carina deveria ter gosto de café com leite,
e talvez eu tivesse acabado de me foder. — Ela só é boa de se
olhar.

Era dia trinta e um de outubro, e eu amava o Dia das Bruxas.


Por mais que uma festa a fantasia tivesse me trazido o inferno da
minha vida, se eu nunca tivesse participado de uma, não teria a
barriga imensa que o espelho me mostrava, nem o italiano
responsável por ela.
Eu tinha aprendido a aceitar que, na vida, por não ter palavra
melhor, merdas aconteciam. As coisas ruins faziam parte de viver,
assim como as felizes. Nickolay precisava resolver o que quer que
fosse naquela terça, depois de eu passar a segunda inteira tendo
contrações.
Contrações falsas, disse a médica, e eu queria dar na cara
dela. Se aquilo era uma contração falsa, não queria imaginar como
seria uma verdadeira, e Nickolay estava longe demais. Mas as
contrações doloridas tinham ido com ele, então estava tudo bem.
Estava tudo bem, eu me enganava.
Sorri ao ver que meu marido tinha levado o casaco certo, a
jaqueta de couro que ele andava usando no frio tendo desaparecido,
o pingente no bolso de dentro. A corrente com a santa prateada
parecia uma proteção boba, mas toda proteção que podia oferecer
para ele, eu lhe dava. Só queria Nickolay de volta no final do dia —
se possível, antes.
Hope parecia querer outra coisa. Hope queria comer o meu
juízo, e sair da minha barriga como um pequeno Alien. Eu vi o pé
chutando no começo da manhã, Nico dando o sorriso que sempre
me derretia antes de beijar minha barriga inteira. Ele seria o melhor
pai do mundo, e eu não estava aguentando andar até a cozinha.
Me senti ridícula ao precisar parar no meio do caminho. Meu
Deus, estava andando que nem uma pata, e se me sentasse, não
levantaria mais.
— Quem é essa mulher, Alana? — ouvi de uma voz
preocupada, Armando descendo as escadas segurando as fotos
que revelei na semana anterior. — Essa que fotografou na praia?
O jeito que o olhei pareceu responder por mim. Eu não fazia
ideia, e mesmo se fizesse, não dava a mínima para aquilo agora.
— Está bem, bambina? — Era óbvio que eu não estava bem.
Uma cabeça maior que a mão de Nickolay sairia pela minha boceta
até, provavelmente, o final da semana. Dava para ficar bem
sabendo daquilo?
— Ótima. — Mas eu não iria admitir o meu desespero. Não
sem ele, e não para ele.
E eu dei mais um passo, uma pontada me fazendo parar e
fechar os olhos.
— Precisa de ajuda? — Eu queria socar Armando, mas querer
socar pessoas quando se tinha dor era normal, não era?
Quando se tinha dor e se era uma bomba de hormônios
ambulante, socar deveria ser até aceitável por toda a sociedade.
— O que você acha? — rosnei, porque eu podia, me
debruçando sobre minha barriga, e que merda era aquela? A
contração de agora não era falsa, e eu queria gritar!
Mas respirei pelo nariz, e soltei pela boca. Devagar. Como a
médica me orientou a fazer, por mais que eu quisesse socar as
orientações no cu dela.
— Que… — Que sim, era óbvio que eu precisava, mas se eu
escutasse aquilo, arremessaria o vaso de flores nele. Isso se eu não
caísse e rolasse de dor antes. — Não?
Não dava mais para me enganar, e eu queria chorar todas as
lágrimas que andava segurando. As contrações tinham ficado
consideravelmente irritantes comigo ainda na cama, e agora de pé,
sabia que continuar em casa era impossível.
— Eu não vou ter esse bebê hoje, Armando. — Mas tudo
indicava que, ao menos no hospital outra vez eu iria parar. — Já são
duas e meia da tarde, eu tô com uma azia do cacete, e eu não vou
ter esse bebê hoje.
Eu poderia, pelo menos, me enganar que Hope não era
apressada como a mãe.
— Não vou, porque o Nico foi sabe Deus pra onde agora, ele
disse que não ia demorar, e aqui estou eu, sozinha de novo e
urrando de dor!
Eu poderia me enganar, porque a bolsa ainda nem tinha
estourado. Não precisava me preocupar antes disso, precisava?
Tudo que eu li sobre bebês e partos tinha evaporado do meu
cérebro, mas eu lembrava que quando a bolsa rompia, não tinha
mais como escapar.
— Você ouviu, Hope? Fica aí dentro mais um dia! — E a bolsa
estava ali, intacta. A barriga tinha descido, eu sabia que tinha, dava
até para respirar de novo com ela mais baixa. — Eu li sobre essas
contrações do capeta, e elas são de mentira! — Mas eu só iria para
a merda do hospital quando sentisse o líquido escorrendo. — Elas
são de mentiraaAAH!
Puta que pariu, e daquela vez, eu realmente dobrei em cima da
barriga, Armando indo para o meu lado e me fazendo segurar nele.
E aquilo estava errado: não era para Armando estar ali.
— Isso não parece de mentira. — Era para Nico estar.
— Eu só tô cansada! — E eu xinguei quando fui pega no colo:
não era para ele fazer isso! Não era, e nunca me senti tão inútil.
Onde estava o meu marido?
Ao menos, ele só me levou até o sofá.
— Pode xingar o quanto quiser, prometi ao moleque que tu
ficaria bem — escutei depois de mais um rosário de palavrões, e
talvez eu devesse falar para o homem buscar a mala, pronta em
cima da cama.
Mas era tão errado pensar em sequer pegá-la sem ele, e eu
me atentei em outra coisa. Deveria focar na mala.
— Como assim prometeu pro moleque? — Eu deveria focar na
mala, e não em como algo parecia estar errado. — Nico fica te
fazendo prometer coisas quando ele tá longe? — O sentimento de
erro duplicou ao vê-lo fazer que sim com a cabeça. — Desde
quando?
— Desde que quase mataram os dois naquele maldito clube.
— O tom dele era de irritação, Armando continuando para si num
sussurro que eu, infelizmente, escutei muito bem. — Disse para o
moleque não pisar lá, quando que alguém me ouve aqui?
Eu sempre focava no que não devia.
— O quê? — E nos olhos iguais aos meus, eu vi: ele achou
que eu sabia.
— Cazzo. — O homem coçou a barba, como o meu fazia
quando nervoso. — Isso já faz meses, Alana. Se preocupe com
outras coisas agora…
Eu ri.
— Como que eu vou me preocupar com outra coisa, se você
acabou de me contar que tentaram me matar mais de uma vez e eu
não tava nem sabendo? — Mas talvez, tenha rido demais. Talvez
tenha gritado demais. — Ah, não. Isso não tá acontecendo comigo.
Se fosse outro dia, eu teria certeza de que o que senti escorrer
e molhar minha calça era xixi. Só que eu ainda queria fazer xixi, a
pressão eterna na minha bexiga me fazendo ir ao banheiro mais
vezes que o normal.
— Alana?
Não dava mais para adiar, e uma voz lá no fundo afirmava que
eu faria aquilo sozinha.
— Acho que acabei de arranjar uma preocupação nova. — E
eu senti as lágrimas surgindo, por mais que tentasse lutar contra
elas.
— Vai dar tudo certo, bambina…
— Cadê o Nico? — Nada ia dar certo sem ele! Como eu ia
cuidar de uma criança sem o italiano?
— Vamos achar o moleque… — Como ele concordava em ter
uma comigo, só para depois sumir??
— Eu quero ele agora! — chorei, como o bebê que estava para
nascer. Eu estava choramingando como Hope faria, como que
poderia cuidar com sucesso dela se eu parecia a menina? — Não
tem como achar ele? Lorenzo disse uma vez que vocês colocaram
um rastreador no meu marido, como se ele fosse um animal. Usa
isso!
Num dia que era para dar tudo certo, tudo parecia estar dando
errado.
— Che? — Até o maldito jeito de ficar confuso me lembrava
Nickolay e eu queria sair berrando. Bem, eu estava, já, gritando bem
alto. — Alana, não tem rastreador nenhum. Era eu atrás dele. Desde
que o acidente aconteceu, desde que mataram seu filho, eu nunca
mais tirei os olhos de Nickolay.
— E por que você não tá do lado dele agora? Eu quero Nico
aqui, ele prometeu que ia estar aqui, ele prometeu! — funguei,
xingando mentalmente: eu, agora, estava literalmente chorando. —
Diz que ele não fez de novo! Diz que ele não me deixou outra vez!
— praticamente implorei, agarrando a manga da camisa e torcendo
o tecido.
Eu iria morrer, eu iria morrer e eu nem podia mais poder
morrer. Eu não podia, porque o que disse como uma reclamação —
Nico estava longe, ele havia me deixado hoje, só por agora, me
enganava — deixou o rosto do homem que eu segurava branco.
— O que disse?
Só que Nickolay estava estranho desde a tarde que o carro
explodiu. O homem passou mais dias comigo do que fora de casa,
eu conseguindo contar nos dedos os que ele passou inteiro distante.
Eu não reclamei disso, claro que nunca reclamaria de sua presença.
Mas a vida na Itália havia me ensinado que era incomum ele
ficar tão junto. Meu italiano não desgrudava de mim, fazendo tudo
que não conseguimos nos primeiros meses ali. Eu queria que aquilo
fosse coisa da minha mente paranoica, que fosse a dor me fazendo
delirar.
— Nico foi embora, não foi? — Só que eu negava, e os olhos
tristes de ontem voltavam para minha memória. — Ele foi, eu sei
que ele foi, e eu nem sei por quê! — Todas as vezes que ele
pareceu aproveitar demais. Todas as vezes que ele parecia tratar
como última. — E agora eu vou ter que criar a minha filha sozinha…
Eu não conseguia acreditar.
— Nós vamos achar Nickolay — Armando afirmou, mas eu não
imaginava como. — Nós vamos achar o meu filho, Alana.
Eu não imaginava como, e a próxima contração que senti
parecia que ia me rasgar ao meio. Não, aquilo não estava
acontecendo.
Ele não tinha ido embora.
— Estou aqui para as duas, ouviu? — E eu agarrei mais forte a
manga, pedindo com os olhos pelo que precisava. Armando discava
um número quando voltou a falar. — Nós vamos achar Nickolay. —
E xingou ao ouvir a caixa postal. — Mas agora, nós também vamos
achar um hospital, ok?
Eu não queria achar um hospital com ele.
— Ok.
E não estava tudo bem.

Três horas. Eu estava com aquela maldita dor por três malditas
horas, e só tinha a mão com o rosário para apertar. Nunca quis tanto
ver uma caveira na vida, meus olhos sempre na porta, esperando.
Ele iria entrar.
Ele iria atender o telefone.
Nico estava vivo.
Alguém ia chegar com a merda da minha epidural.
— Carina demorou um dia inteiro — escutei com ele espiando
porta afora, tentando ficar confortável vestindo apenas o avental do
hospital na frente daquele homem.
Por mais que ele fosse o pai do meu marido, por mais que ele
fosse o meu pai biológico, o único que me deixava calma sem
roupas estava em algum lugar que ninguém sabia. Nickolay foi
embora sabe-se lá para onde, eu estava sentindo a maior dor da
minha vida, e me sobrou Armando.
— Ao menos, foi o que Lorenzo disse. Eu não fiquei com ela,
eu estava… — Longe, ele estava no aniversário de Nico, e aqui
estava eu, seguindo demais o destino da minha mãe.
Tirando o fato de que eu não sabia onde meu marido estava.
Por que não chamei por Barbara?
— Não é muito animador ouvir isso! — E eu agarrei o encosto
da cadeira, querendo chorar enquanto mais uma contração me
dobrava.
— Alana, não acha melhor…
— Não, eu não acho! — O melhor estava muito longe, e eu
senti que iria vomitar.
— Cama, agora. — Ele não me deixou responder antes de me
levar, e nem tentei contrariá-lo. A cada segundo que passava, eu
parecia ser mais dominada pela derrota.
Deveria ter desconfiado quando comecei a pensar que minha
vida estava perfeita demais. Deveria ter desconfiado, e agora, eu
chorava sem ele no hospital.
— Onde ele tá, Armando? — Era desnecessário responder:
ninguém sabia onde Nico estava. Ninguém sabia, e eu não
conseguia entender, por mais que tentasse, porque ele foi embora
sabendo que Hope estava para vir. Por que ele foi embora sem nem
ver a filha?
Ele tinha mesmo ido embora?
Eu só conseguia pensar no pior. Se ele decidiu não ficar mais,
era porque nunca mais voltaria.
E respirar outra vez era difícil, eu puxando um ar que não
vinha, e isso, definitivamente, não era uma cólica menstrual piorada.
Não, isso era uma cólica do inferno vezes um milhão, e era um
demônio que queria sair de mim, porque tudo por dentro parecia
estar pegando fogo.
— Ele disse que ficaria do meu lado — choraminguei,
enterrando o rosto no travesseiro. — Ele disse que ficaria do meu
lado e me contaria piadas ruins!
Mentiroso do caralho.
— Quer uma bem ruim? É a pior que eu tenho. — Era tão
irritante Armando ter que servir.
— É alguma bem ruim de máfia? — Era triste, e doído, e
deixava um gosto amargo na boca, num dia que queria uma dor
doce.
Fiz que sim quando veio uma resposta positiva dele.
— Aproveite, porque não vou contar mais como essas depois
que a bambina sair. — Ao menos, a fala havia me arrancado um
sorriso.
Quando ela sair.
Quando ela sair, sem o pai ao lado, e eu não deveria mais
pensar naquilo.
— O Don chama seu braço direito para fazer um serviço.
Entrega um pote para ele e fala: vá bater uma no banheiro, encha o
pote e traga para eu ver.
— Esse foi o pior começo que eu já ouvi! — reclamei, a cara
ainda no travesseiro, o cheiro de limpeza incômodo, eu querendo
laranja e nicotina.
— Eu disse que era ruim, como gosta. — Revirei os olhos. —
O braço direito não fazia ideia do porquê daquilo, mas ninguém
desobedece ao Don. Então ele vai, bate uma, e traz o pote de volta.
O Don diz: ótimo, agora faça outra vez. E dá para o braço direito um
pote limpo. Então o cara vai lá, bate uma, e traz o pote com metade
do que tinha no primeiro.
— Nossa, você guardou essa pro melhor momento, hein? —
Mas eu sorria.
— O Don vê o pote, balança a cabeça: muito bom, filho, agora
faça só mais uma vez. E dá um pote novo ao homem. Ele vai, bate
mais uma e volta com o pote quase vazio. — Olhei para ele quando
a pausa foi maior, um meio sorriso parecido demais com o do meu
marido fazendo meu peito apertar. — Então o Don finalmente fala:
ok Pietro, quero que leve minha filha para o aeroporto.
Não entender a piada fez um ótimo trabalho em me tirar uma
parte da dor.
— E porque diabos ele tinha que… — Parei no meio da frase,
compreendendo que o homem fictício não teria mais forças para
ficar duro depois de gozar três vezes. — Pra não foder com a filha
do velho. Essa foi a piada mais péssima que eu já ouvi!
Eu deveria ser apaixonada por piadas ruins, porque em um
momento as lágrimas que queriam sair eram de dor. Agora, elas
escorriam pelo meu rosto comigo dando risada. Filho da mãe, eu
não queria rir com ele, mas o homem estava fazendo um bom
trabalho em ser o pior contador de piadas do mundo.
Filho da mãe, e a próxima contração parecia querer quebrar
meu quadril, levando toda a graça embora.
— Acha um médico! — Não era possível sobreviver àquela
merda, não era! — Acha a porra da minha epidural, pelo amor de
Deus!
— A doutora disse que…
— ACHA ELA AGORA! — Se eu não estivesse morrendo, teria
sido engraçado vê-lo sair tão rápido do quarto.
Eu estava suando, dava para sentir os fios grudando na minha
testa, as gotas escorrendo pelo meu rosto. Eu estava suando, e
nem mesmo tinha começado a fazer força. Parecia que tinha uma
brasa queimando dentro de mim, cada vez mais quente, e eu só
queria que o italiano estivesse aqui do meu lado. Porque, depois da
última contração, era óbvio: a única pessoa que podia pensar em
matá-lo era eu. Só eu tinha direito de acabar com a vida do filho da
mãe, e eu não aguentava mais nem respirar.
Merda, aquilo foi um erro, foi um erro e eu não queria que
Hope saísse nunca da minha barriga. Se eu negociasse com ela,
será que ela ficaria para sempre? Eu não ia conseguir fazer aquilo
sozinha, eu não ia, e isso tudo estava sendo o maior erro da minha
vida!
Não dava mais para pensar com aquela dor, mas graças à
Deus pelas pessoas que entraram com Armando, meu sorriso
ficando tão grande que eu conseguia senti-lo.
Os sorrisos nunca se mantinham por muito tempo.
— Parece que chegamos tarde demais para a epidural, você
dilatou rápido, mamãe! — O quê?
— Isso é brincadeira, não é? — Eu queria não entender
italiano agora. — Fala que é brincadeira!
A ignorância poderia sim ser a maior das bênçãos. Saber que
eu ia passar por um parto que ia dilacerar o meu corpo e a minha
alma sem a porra de uma anestesia me fazia querer chorar. Eu já
queria chorar agora, e nem mesmo havia começado.
Só que havia começado.
— Acha que está pronta para começar a empurrar?
E no meio de toda a dor que eu sentia, vinha ainda um banho
de água fria, que em nada ajudava a apagar o incêndio que parecia
ter dentro de mim. Como eu cancelava aquilo?
Agarrar a mão de Armando e cravar as unhas nela parecia um
bom começo.
— Acha o meu marido! — Eu não queria me posicionar na
cama, eu não queria fazer força, eu não queria a mão errada. —
Acha o meu marido! Acha ele, por favor, por favor…
Eu não podia nem mais morrer em paz, mas por que eles não
me matavam logo? Nunca mais teria nenhum filho, Hope não teria
irmãos, e meu cérebro masoquista me torturou outra vez: ela, talvez,
nem tivesse mais um pai.
— Precisa empurrar! — Eu precisava de Nickolay! — Precisa
fazer força, Alana!
— Onde ele tá? — Eu também precisava de um analgésico.
Precisava apagar. Precisava de algo que não fosse dor. — Eu não
consigo fazer isso sem ele, eu não consigo…
— Consegue sim. Sabe por que eu sei disso? — Eu só sabia
fazer que não. — Porque Nickolay me disse que tu é a mulher mais
corajosa que ele já conheceu na vida. E Nico não mente. Nico
nunca mentiu, mesmo quando suas verdades lhe rendiam
problemas. Eu acredito no moleque. — E outra vez, as lágrimas se
misturaram com o suor, eu sentindo o salgado na minha boca. — E
acredito que consegue, e acredito que Nico vai chegar. Mas agora, a
sua filha precisa que faça força, ok? — E eu puxei o ar, e fiz que
sim.
E de repente, não tinha mais nada para ocupar meu cérebro:
era tudo dor. Minha mãe — Astrid — disse, anos atrás quando
perguntei, que era como se o mundo inteiro desaparecesse, só
restando você e a dor. Ela não mentiu sobre aquilo, e eu mal
escutava alguém me encorajando a fazer força. Eu estava fazendo
força, e também estava quase desmaiando — como eu ainda não
tinha desmaiado de dor? Quem conseguia lembrar de qualquer
exercício de respiração numa hora dessas?
Pareceu uma eternidade até o choro finalmente vir, minhas
costas voltando para o colchão: eu consegui. Eu consegui, e por um
momento, eu só queria chorar, fechando os olhos e imaginando que
a mão que tirava o suor do meu rosto era a dele.
Mas a fantasia não durou muito, as írises que via, iguais às
minhas. Eu conseguia. Nico disse que eu conseguia, e a confiança
dele em mim teria que bastar agora. Teria que bastar, porque eu
precisava bastar para ela.
— Pronta para conhecer sua filha?
Um dia, eu li que as crianças pareciam mais com os pais
quando nasciam, e isso era um traço evolutivo. Os bebês tinham
que parecer com os pais, num passado bem distante, para
continuarem vivos. Tendo minha filha nos braços pela primeira vez,
descobri que aquilo era verdade conosco. Hope não tinha só os
olhos de Nico: ela era Nickolay inteira. Dos cabelos pretos ao jeito
que fazia manha até minhas mãos estarem nela, nossa menina
tinha tudo do pai.
A segurei, nós duas nos conhecendo enquanto eu aprendia
que o que sentia com ela na minha barriga não era metade do amor
que sentia agora. Era desesperador e maravilhoso, e eu descobri
em segundos que, por mais que não tivesse Nickolay ao meu lado,
eu ia viver. Eu ia viver por ele, mas principalmente, por ela.
Respirei fundo, Hope pegando meu peito, os olhos grandes e
escuros nos meus. Ela mamava me encarando, e eu estava
apaixonada por aquele nosso conjunto perfeito. Ela era perfeita, e
eu, no final, era mais parecida com minha mãe do que imaginava:
poderia nunca mais ter o meu italiano, mas seus olhos seriam meu
amor para sempre.
E aquilo bastaria.

Sol Garcia tinha uma propriedade na Sicília. Dirigindo para


uma cidade que ficava consideravelmente perto da que deixei minha
mulher, a viagem de carro durou menos de duas horas. Enrolei
muito mais tempo do que isso dentro do carro, gastando o resto dos
minutos que tinha colocando o celular no modo avião e vendo os
vídeos gravados de Alana e nossa barriga.
O plano era o mais simples que poderia haver. O plano,
também, era impossível de ser executado caso eu a visse. Caso
visse Alana com nossa filha nos braços, eu pegaria as duas e
sumiria no mundo. Soube disso no dia anterior, nós dois parando no
hospital me fazendo reconsiderar tudo. Alana me ganhava com seus
olhos, saindo quase vitoriosa numa batalha que ela nem sabia que
lutava.
Alana já tinha me feito escolher quem sairia vitorioso. Meses
atrás.
Parado na frente do portão de ferro, eu abria, depois de tantas
semanas guardada no meu bolso, a barra de chocolate. Eu amava
chocolate ao leite, e minha mulher colocava um gosto doce na
minha boca até mesmo nos meus últimos instantes.
Porque aqueles eram, sem dúvida, os finais. Não via nenhuma
saída, provavelmente porque não havia uma, Demidov deixando
claro que não interferiria na minha escolha, se fosse aquela mesmo
a tomada. Para alguém que me queria vivo, ele pareceu desistir
rápido demais de mim.
Alana era mesmo a única que sempre continuava, e era por ela
que tomava aquela decisão. Então eu terminei o chocolate com
framboesas desidratadas, e com ela na minha boca, toquei o
interfone.
— Quer dizer que a morte veio me encontrar? — A voz saiu do
aparelho, a pergunta sendo feita para causar incômodo, o que
acontecia sendo o contrário dela.
Quem ia encontrar a morte era eu, e ciente daquilo, entrei.
Deu para ver o espanhol antes mesmo de passar pelo portão,
ele junto de homens demais perto do penhasco no qual a
propriedade havia sido construída. Será que era para onde meu
corpo seria jogado depois de tirarem minha cabeça? Garcia
realmente queria minha cabeça, ou aquilo tinha sido mais um de
seus exageros?
Me matar ele queria, tinha certeza. O homem vestia um sorriso
calmo, e por mais que tenha relacionado seu nome com fraqueza,
eu via força ali. Controle. Eu via Matarazzo, alguém que estava no
poder e gostava.
— Aceita uma bebida, Morte? — Veio quando parei na sua
frente, um copo já sendo cheio, minha escolha, inexistente. Um dos
seguranças me revistava, minha jaqueta sendo jogada no chão ao
meu lado, e fiquei aliviado pelo post-it dela estar no bolso da calça.
— Dê outra vez sua palavra. — O riso que veio me causou um
arrepio. — Fale que não vai tocá-la.
— Você não vai saber se eu tocar. — Ele mostrou os dentes
amarelados, rolando um cigarro que eu deveria ter fumado pelos
dedos. — Veio sozinho, não veio? Ninguém nem sabe que você
está aqui.
— Vai ter a fama que quer, e Alana vai ter liberdade. Ponha
quem quiser no meu lugar, eu já te dei todos os meios para isso. —
E o copo de whisky foi posto na minha mão.
— Você deu, não deu?
Olhei para o líquido alaranjado, sabendo o que me esperava.
Claro que ele não me daria o fácil. Tocar a bebida nos lábios foi o
bastante para sentir a ardência, meu nariz franzindo, eu me
forçando a virar tudo num gole.
Tinha rezado para ser veneno. Para aquilo acabar rápido, para
eu não foder com tudo. Ele queria minha cabeça, e eu tinha vindo
entregá-la. Por que Garcia não se contentava em tomar o que agora
era dele?
Caí de joelhos, lacrimejando e tossindo antes de puxar uma
respiração que queimava. Meu peito parecia estar pegando fogo, o
ar parecia não entrar, e prestes a morrer, eu aprendia que respirar
era realmente difícil depois de virar álcool com extrato de pimenta.
Minha visão embaçou e eu pensei que poderia, ao menos,
apagar. Ou descobrir uma asma, e não conseguir mais respirar.
Morrer de uma vez.
Só que, se realmente existisse uma outra vida, assassinos
como eu deveriam pagar na pele pelas mortes. De canto de olho,
via um dos seguranças se aproximar com uma corda, me fazendo
entender que, se eu morresse — e eu iria morrer — seria do meu
jeito.
Do jeito da Morte.
Talvez nem doesse tanto, respirar já sendo tortura o suficiente
no momento. Agora, me arrependia de todo o teatro feito no
passado para completar um serviço: não bastava socar até arrancar
informações, e então socar até matar? Para o eu de vinte e quatro
anos não bastava, e o eu de trinta finalmente iria sentir na pele o
que tantos homens passaram nas minhas mãos.
— Vou te contar um segredinho, Morte — escutei ao ver os
sapatos de couro, Sol levantando meu rosto ao me puxar pelos
cabelos. — Eu não vou tocar na sua mulher, como prometi. — As
palavras me fizeram nem lutar contra a corda que amarrava minhas
mãos juntas, e desejei saber se o homem também mandaria eu
rezar enquanto me socava.
Sol não parecia ser alguém que socava pessoas, a pele que eu
via suave demais para um executor. Não, alguém fazia isso por ele.
Alguém fazia, porque o soco que levei mal me fez virar a cabeça. As
palavras que seguiram o soco tiveram muito mais efeito.
— Mas isso não quer dizer que ela está a salvo. O que acha
que vai acontecer quando vazar a informação de que Stella nunca
foi filha legítima do velho? — Eu não conseguia levantar. — E que
você sempre, sempre soube? — Eu não conseguia, e realmente não
era Garcia o responsável pela força física, o homem ao meu lado
me forçando de volta para o chão, meus joelhos se chocando contra
o concreto.
As palavras estavam presas na minha garganta, e a forma que
me debati me rendeu um soco que com certeza quebrou meu nariz,
a dor tombando minha cabeça, sangue manchando o chão claro.
Tudo que era claro na máfia era ridículo, tão ridículo quanto eu,
outra vez, parecia ser. Armando e Lorenzo cuidariam das duas,
precisava acreditar naquilo. Não havia outra opção senão acreditar.
— E quando descobrirem que você matou o velho? — Tinha
um prazer que parecia demais com o meu de antigamente nos olhos
do espanhol, e era difícil pensar agora que não, não havia saída. Eu
não tinha nenhuma arma comigo, e o nó era forte o suficiente para
não conseguir desamarrar a corda.
As palavras não saíam, mas todos ali ouviram o grunhido de
dor quando as agulhas vieram. Figlio di puttana, eu queria matar
esse homem. Eu queria, e se conseguisse a chance de escapar dali
com vida, nunca mais a deixaria de fora das minhas decisões.
Nunca mais deixaria Lorenzo de fora. Não falar nada para ele e
Armando não parecia orgulho quando tracei o plano, mas ajoelhado
e me fodendo, eu me sentia um orgulhoso de merda.
Eu não tinha competência para traçar um plano que daria
certo, a calmaria que recebi após o acordo me fazendo acreditar
demais que aquilo era o melhor a se fazer. Ele realmente não a
tocaria, mas dependeria dos meus dois pais para que Alana e nossa
filha continuassem à salvo.
E eles não ficariam para sempre ao lado dela. Eu já não estava
mais, e agulhas sendo cravadas debaixo das unhas realmente era
doloroso. Todos os que fiz passarem por isso tinham motivo para os
gritos, e a combinação que eu usava para matar parecia causar um
incêndio no corpo.
Realmente merecia meu apelido, e o inferno viria me buscar
pela minha criação. O sol das quatro e meia ainda brilhava no céu, e
eu esperava os próximos socos. Talvez não viessem no rosto. Ele
queria, afinal, minha cabeça para mostrar.
— Não para ela. — Adiantaria eu pedir para Alana ser poupada
de ver aquilo? Como poderia impedir que ela visse? — Não a deixe
ver.
Tinha um sorriso doentio que transformava demais o rosto,
antes tão calmo. Eu não confiava mais em palavra alguma, o acordo
que tinha vindo finalizar entrando nas coisas que mais me
arrependia de ter feito na vida. Vir para minha morte. Sair de casa
no dia da de Nicolas. Não ter olhado para a minha mãe, quando a
dela chegou. A morte me perseguiu a vida inteira, eu querendo ser
pego por ela até Alana.
Não queria mais morrer. Não queria, e ser perseguido com
muito mais afinco depois de Alana era desesperador. A morte
parecia levar todos ao meu redor cada vez que eu escapava, então
minha melhor saída era parar de lutar e me render. A única opção
que eu tinha era esperar que minha vida fosse o suficiente para a
dela ser poupada.
— Reze, Don Morte.
Eu não lutaria, e abaixei a cabeça. Eu, também, não pediria
por mim, mas por elas. Poder deixar algo de bom com a mulher que
amava, poder ter lhe dado uma vida, a dela de volta, teria que
bastar para as duas. Para mim, tudo que bastava era sua
segurança.
Então senti o soco na costela, e desejei que Alana fosse feliz
depois de mim. Que Hope crescesse bem. Que minha mulher
conseguisse achar felicidade em alguém, que eu não fosse um
fantasma eterno em sua vida.
Quando ouvi o tiro, esperava sentir a dor aguda da bala. Eu
não senti. Nem com o que seguiu. Ou com o próximo. O quarto me
fez levantar a cabeça e ver o sorriso sumir de Garcia. Não, se o
homem estava se fodendo, eu não iria morrer ali, e as agulhas
longas enfiadas nos meus dedos tinham duas pontas: a que
perfuravam as minhas unhas, e as que eu usaria para acabar com
ele.
Meu corpo latejava, mas eu conseguia. Eu consegui já pior, e
quem ocupava minha mente me fazia sentir como um puttano
invencível. Alana iria me matar, daquela vez tinha certeza, mas eu
chegaria nela para isso. Eu mataria Garcia para isso, e nem pensei
de onde vinham os tiros, ou quem os disparava.
O espanhol não esperava a rasteira, sendo surpreendido ao
cair no chão, talvez na mesma proporção que eu me surpreendi ao
conseguir fincar as agulhas em seu rosto. Quem era idiota o
suficiente para deixar a vítima com pontas para serem usadas? Só
eu conseguia aquilo e saía vivo. Ele tentar era quase desrespeito, e
as que ficaram na sua pele, o espanhol em choque com a que havia
lhe perfurado um olho, fazia o sangue escorrer pelas minhas mãos.
O sangue que jorraria da sua garganta nos mancharia muito
mais. Juntando os dedos da mão esquerda, usava os da direita para
segurar as três agulhas que restavam juntas, esperando que elas
fossem afiadas o suficiente para cortar.
Elas eram, e a adrenalina fazia meu corpo obedecer tão bem
quanto a autoridade que Alana tinha sobre ele. Sol Garcia tinha o
pescoço rasgado e a morte chegando, eu, algumas unhas a menos
e outra chance. O sangue me manchou — o vermelho sempre
manchava — e pela primeira vez, eu não me importei em matar. Eu
não tatuaria aquela morte.
Eu não tatuaria aquela morte, e não seria por conta do cano
que senti na minha nuca. Não, seria porque eu não dava mais a
mínima para quem tivesse que matar para manter as duas vivas. Eu
não precisava de droga, de balas, de alguém atirando por mim. Eu
só precisava delas.
Respirei três vezes, o peito já queimando de forma muito mais
branda, pronto para derrubar quem estivesse atrás de mim quando
a arma foi abaixada.
— Não poderia ter agido antes? — Eu conhecia aquela voz. —
Não foi esse o combinado.
— Eu queria ver. — Aquela, também. — Eu queria ter certeza
de que a puta realmente não liga para nenhum deles. — Uma mão
nada gentil agarrou meus cabelos, puxando meu rosto para o lado,
meus olhos achando os azuis do meu irmão mais velho.
Não, aquele homem não era meu irmão. Era apenas Demidov.
— Você é um Don de merda. Mas como assassino, preciso
concordar com Levina — ele me encarava com certa surpresa, o
homem inteiro de preto, como na única vez que o vi. Alexei parecia
tão igual, e ao mesmo tempo, era o oposto do homem de branco
que me libertou na praia mexicana. — Quanto cobra pelos seus
serviços? Família tem desconto?
Eu teria que matá-lo também? Porque sentia que, se
precisasse, daria um jeito de matar.
— Como comprar homens: com dinheiro. Agora, como
descobrir se eles vão te trocar por quem pagar mais? — Lorenzo
aparecendo no meu campo de visão me falava que não precisaria,
Levina seguindo atrás dele e atirando na cabeça de dois seguranças
que restavam de pé. — Os deixando vivos.
— Vai querer… — Arfei quando os dedos apertaram mais forte.
Sempre queria socar quem se sentia no direito de me puxar pelos
cabelos, Alana sendo a primeira em anos a fazê-lo e me arrancar
um sorriso. — Me matar também? — De Alexei, eu queria arrancar
os dentes, ele sendo o maior culpado por minha família estar
naquela situação.
— Sempre o favorito. Ela te levou, ela morreu sorrindo por
você. — Os olhos claros ficaram em mim por mais alguns segundos
antes de eu ser solto, minha pergunta ignorada. — É seu favorito
também, não é? — ele falava com Lorenzo, a visão de quem agora
chamava de pai sem qualquer esforço me deixando respirar um
pouco mais aliviado. — O da vaca de Varsóvia também. Como será
que é ser perfeito?
Meu ar foi embora outra vez quando as agulhas que restavam
foram arrancadas de mim. Figlio di puttana, e era contraditório
demais chamar meu irmão daquilo.
— Esse nariz vai ficar feio. Posso arrumar para você,
irmãozinho. O que acha? — foi a última coisa que ouvi antes dele
agarrar meu queixo, a mão sem gentileza alguma colocando o osso
de volta no lugar. Mal escutei as últimas palavras, a dor aparecendo
com a adrenalina baixando, tudo ficando escuro. — Bem melhor.
Mas mesmo vendo tudo preto, havia muito mais luz do que
quando passei pelo portão.

— Não toque nelas, Kolya. Não toque, ouviu? — Os olhos de


duas cores estavam sérios. Eu amava os olhos de mamãe, mas eles
andavam sérios demais nas últimas semanas.
Nos últimos meses.
— Por que eu preciso usar luva no verão?
— Porque você está com febre. — Ela levantou um dedo
quando eu abri a boca. — Não discuta. — E eu bufei, cruzando os
braços. — Não vai me convencer com as suas manhas hoje,
Nickolay.
A sacola marrom foi para o chão quando paramos na frente de
uma porta. Mamãe batia e batia, e eu conseguia ouvir alguém
cantando do lado de dentro. Reconhecer a voz que também já havia
cantado para mim foi automático, e eu fiquei triste quando notei que
não havia trazido nada.
Mas Carina, como eu, amava maçãs. Ela amava, e tinha um
saco cheio delas no chão. E eu pensei: uma só não faria falta.

Já devia ter me acostumado a acordar em carros depois do


caos. Em um ano, aquela era a terceira vez. A jaqueta de couro me
cobria, meu nariz latejava, o cheiro de sangue em mim.
— Resolveu acordar, moleque inconsequente? — Pelo menos
não era quem me chamava de bela adormecida. Levantei a cabeça,
vendo pela janela ser noite do lado de fora, o carro parado, o par de
olhos azuis que eu gostava me observando. — Tem noção do
quanto eu quis te matar quando descobri sobre seu plano estúpido?
Você, um Don, o dono desse cazzo todo, ia se entregar para aquele
merda? O que tem na cabeça?
Dor, queria responder. Minha cabeça parecia que estava para
explodir, os gritos não ajudando.
— Pai…
— Não tente se safar me chamando de pai agora. — Lorenzo
estreitou os olhos, bufando antes de continuar. — Teria morrido se
Alexei não tivesse resolvido cancelar sua péssima decisão.
— Por que ele fez isso? — A tarde voltava aos poucos para
minha mente, meu celular ainda jogado no banco de trás comigo, a
tela quando iluminada mostrando Alana abraçando nossa barriga.
Era o meu carro, e nós estávamos parados num estacionamento
que não conseguia reconhecer, mais luz que o necessário para um
rosto que pulsava. — Eu pedi ajuda, e Alexei negou. Não faz sentido
ter me salvado.
— Não faz sentido muita coisa, Nickolay. — Grunhi quando me
sentei, a dor nas costelas aparecendo com o movimento. Talvez
devesse passar num hospital, antes de ir para casa. Cazzo,
precisava chegar em casa antes que Alana me matasse, agora que
estava vivo. — Sua burrice com mais de trinta anos nas costas é
uma que nunca vou entender. Por que você nunca recorre a mim
para ajuda, Nico?
Porque não é meu pai, responderia meses atrás. Mas o
homem era. Ele havia sido, e mesmo com o amigo ao lado, ainda se
comportava comigo como tal.
A bronca que eu ganhava era um ótimo exemplo da
paternidade de Mantovanni.
— Porque tu faz demais. Porque eu achei que conseguia fazer
isso sozinho, sem precisar envolver mais ninguém. — Encarei meus
dedos, minhas mãos, cheias de curativos, ainda queimando. Perder
unhas era realmente incômodo. — Porque se soubesse, nunca me
deixaria ir. Eu nunca deixaria meu filho ir, mas iria no lugar dele. E
não tinha ninguém que serviria para ir em meu lugar.
Ele sacudiu a cabeça, deixando claro o quanto não concordava
com minhas últimas decisões. Lorenzo me encarou mais alguns
segundos antes de abrir a porta do carro, saindo e fazendo o
mesmo com a minha pelo lado de fora.
Nós estávamos no estacionamento de um hospital, percebi
quando fiquei de pé. Que inferno, ele não me deixaria mais tomar
nenhuma decisão sozinho.
— Eu não preciso de mais cuidados, eu preciso delas —
reclamei, mas fechei a porta.
E uma risada veio.
— Sempre Alana. — Claro que era sempre Alana. Sempre
Alana, e agora também, minha filha que estava para nascer.
Lorenzo pareceu considerar me falar algo no percurso até a
porta automática, decidindo pelo sim assim que a atravessamos.
— Parabéns, papai.

Pelos corredores do hospital, eu corria. Talvez uma mistura de


mancar com correr, alguns funcionários tentando me parar, achando
eu ser o paciente. Alguém deveria sim cuidar do meu nariz, mas
ninguém faria nada até eu chegar nelas.
Alana iria me matar, e com razão. Ela até poderia, se
realmente quisesse: não faria nada para impedi-la. Por mais que
estivesse feliz por poder aparecer vivo, por poder ter a chance de
segurar Hope, o aperto que sentia no peito por ter perdido aquele
momento incomodava.
Se incomodava em mim, em quem passou sozinha por aquilo
deveria ser muito pior.
Eu parti no dia do nascimento de nossa filha, dizendo que
voltaria em poucas horas, e a cada passo, rezava para ela não ter
percebido o que realmente acontecia. Que minha mulher não saiba
até me ver, pedia. Ela ter dado à luz sabendo era cruel demais, eu
parando para pensar naquilo pela primeira vez.
Nos últimos meses, me parei todas as vezes que começava a
pensar sobre meu destino. Eu não voltaria do que fora planejado, e
Alana tinha me feito prometer. Ela me fez prometer antes de
deixarmos o Canadá, e eu cumpri no automático. Quando a vi no
hospital, quando, após a explosão, achei que haveria apenas uma
para me preocupar, sabia o que deveria ser feito.
E foi por isso que fiz o que fiz. Por isso que o dono de metade
da Sicília se entregou para um merda. Eu tinha Hope na cabeça.
Armando esperava fora do quarto, os braços cruzados, toda a
reprovação de sempre nos seus olhos. Não me importava o que ele
achava, e o homem não me parou quando alcancei a maçaneta.
As luzes estavam apagadas, o silêncio tomando conta do
quarto. Alana tinha os olhos fechados, e o embrulho que havia
próximo a cama parecia dormir também. Meu coração acelerou
quando escolhi me aproximar do berço, me lembrando de tantos
anos atrás, da tarde em que minha vida inteira mudou por causa de
um ser tão pequeno.
Sorri quando olhos escuros se abriram, brilhando no meio da
pouca luz que havia no quarto.
— Ciao, dolcezza. — Nem a tinha tocado, mas bastou um
olhar para eu saber: morreria por ela. Morreria de bom grado pelas
duas, e cada detalhe que via me reafirmava aquela certeza. — Tem
os olhos grandes da sua mãe. Ela já te disse isso? Deve ter dito,
nesses últimos meses, tu deve ter aprendido que uma coisa que sua
mãe não é, é quieta. Ela fala, e fala, e mesmo que seja o tópico
mais chato de todo o mundo, se sua mãe gostar, vai ser o monólogo
mais interessante que se pode passar uma tarde ouvindo. Eu já fiz
isso, e tu também vai fazer, acredite. — E, como se tivesse se
enchido da minha conversa, a boquinha tremeu.
Entendi o que iria acontecer antes de começar, e considerei
pegá-la no colo mesmo no estado em que estava. Antes de eu me
decidir, os lábios abriram, mostrando que a menina tinha uma
capacidade pulmonar bem parecida com a da minha mulher. Não,
minhas conversas não deveriam ser tão boas quanto as de quem
lhe dava comida.
— Traz ela pra mim. — Mas meu humor parecia,
definitivamente, melhor.
A voz de Alana nunca soou tão séria, os olhos mel encarando
a parede sem nenhuma gentileza enquanto a mão ia para um dos
interruptores ao lado da cama, acendendo uma meia luz. Quatro
palavras, e meu nervosismo se igualou ao de horas antes, comigo
de joelhos na propriedade do espanhol.
Lorenzo talvez tivesse razão: eu era um estúpido. Porque
Garcia não merecia medo algum meu, agora Alana…
— Estou cheio de…
— Eu não me importo. — Eu ainda estava cheio de sangue, e
Alana conseguiria me matar quando quisesse. Ela, sim, merecia ser
temida.
— Não consigo pegar…
— Eu não pedi pra você pegar, eu pedi pra você trazer Hope
pra mim. — E eu notei haver rodas no berço, estas estando
travadas. Claro, e tentei falar mais uma vez.
Fui interrompido antes mesmo de começar.
— Eu me perguntei por horas o que tinha acontecido. — Os
lábios permaneciam retos, a cor branca do hospital muito
interessante. — O que estava acontecendo. Eu não tive nenhuma
explicação, e agora, eu realmente não quero saber, Nickolay: o que
eu quero é a minha filha. Você consegue trazer ela pra mim, ou eu
vou ter que chamar Armando outra vez?
A frase foi cortante e verdadeira, eu querendo perguntar todos
os detalhes para quem não parecia querer me dar nenhum. Hope
gritava, e não esperei mais para destravar e empurrar o berço do
hospital até ao lado da cama na qual minha mulher estava deitada.
Ela não me olhou durante a bronca — aquilo havia sido uma? — os
olhos na parede, e então na filha, nossa menina soluçando antes de
parar em seu peito.
— Não me toca. — Veio quando tentei ajudá-la, Alana
irredutível na braveza, parecendo tão exausta quanto eu.
— Sei que está brava, dolcezza…
— Não vem com dolcezza pra cima de mim, Nickolay. Eu não
quero xingar na frente de Hope, e eu consegui isso até agora. — A
voz tremeu, e as mãos pareciam estar se controlando para não
seguirem. — E Deus sabe como foi, e está sendo, difícil. Você nos
deixou sozinhas. Você me deixou sozinha. — Descobrir que Alana
tinha entendido doía mais do que os machucados que carregava. —
Você me deixou sozinha no dia que eu… — E uma única lágrima
escorreu pela bochecha, sendo limpa com irritação pelo dorso da
mão livre.
Só me mantive parado pelo pedido de antes. Eu não me sentia
no direito de tocá-la depois de deixar as duas.
Mas Alana não me olhar estava me matando.
— No dia que eu mais precisava de ti. Você me deixou, e foi a
mão dele que eu apertei. Foi Armando quem me deu Hope, foi ele
quem dirigiu até o hospital, foi tudo ele, quando era pra ter sido
você! — veio num quase grito, Alana mordendo o lábio e respirando
fundo, os olhos voltando para os grandes que não saíam dela.
Por um minuto, enquanto eu absorvia as últimas informações,
o som de Hope sugando foi o único barulho do quarto. Era quase
engraçado a constatação que meu cérebro insistia em fazer: eu
havia tirado algo de Armando, e Armando havia ficado com algo
meu. Era carma. Era merecido, por mais que aquilo não envolvesse
apenas a mim, mas outra vez, Alana.
Será que minha falta de sorte, agora que havia pagado aquilo,
finalmente acabaria?
Ainda olhava para Hope quando escutei o arfar, minha mulher
tendo decidido reparar em mim. Não tinha como não dar um sorriso
aliviado ao encontrar os cor de mel, tê-los preocupados nos meus
uma pequena vitória.
Ao menos, ela não parecia mais querer me matar.
— É, não estou com a melhor das aparências, eu sei —
brinquei, a situação não tendo graça nenhuma, mas a frase
arrancando uma risada seca de nós dois.
— Tira o sapato e senta logo aqui. — Ela revirou os olhos e
sacudiu a cabeça, Hope reclamando de um jeito adorável antes de
Alana trocá-la de seio. — A cama é grande o suficiente pra nós três,
não é mesmo, meu amor? — E, pela primeira vez, o meu amor não
era para mim, e eu nem passei perto de ligar.
Chutei os sapatos e fui para o lado das duas que tinham todo
meu coração. Veio mais uma reclamação assim que toquei os
cabelos pretos e curtos, nossa filha fazendo os melhores sons.
— Ela faz manha que nem o pai. — Aquela cabeça era tão
pequena contra minha mão! — Também é faminta igual, como dá
pra ver. É a terceira vez que ela acorda pedindo meu peito. — Os
dedos de Alana traçaram os meus, e respirei aliviado. — Quando eu
vou parar de te ver tão machucado, Nico?
— Vai curar. — Levei a mão pequena para meus lábios,
aproveitando o momento ao lado das duas. — Tudo vai curar. Me
disse isso, uma vez.
— E curou?
— Mais do que algum dia achei ser possível, dolcezza. Já
posso te chamar de dolcezza? — O toque dos lábios dela nos meus
era a vitória mais doce que tinha.
E outra vez, um minuto com apenas os sons de quem nós
fizemos. Ela era nós dois, e a olhando nos braços de Alana, meu
peito apertou. Ele finalmente apertava por algo bom.
— Alana, tudo que eu queria era ter estado presente. Nunca
vou ter esse momento, e isso vai me incomodar até o fim da minha
vida. Mas disse que se eu precisasse escolher, era para ser sempre
ela. Sabia que não me deixaria ir, e eu sabia que precisava partir
para a segurança das duas. Não ia conseguir partir se a visse. — Eu
não ia, e agora, tinha certeza. — Então, eu escolhi Hope, porque era
o certo a se fazer. Eu escolhi a nossa filha, como me pediu para
escolher, dolcezza.
Esperava alguma resposta, Alana outra vez perdida na
pequena que escolhia parar de mamar, os olhos grandes cada vez
menores.
— Hope, esse é o seu pai. — E então, o embrulho foi passado
para os meus braços, nossa filha tão quente quanto minha mulher
era. — Ele é o melhor homem do mundo, então com esse, você não
precisa chorar, ok?
E como se a pequena entendesse, foi feito um mínimo barulho
antes de tudo que vir dela ser calma. Horas atrás, imaginava que
nunca teria isso. Ao lado das mulheres da minha vida, parecia que
nunca mais conseguiria parar de sorrir.
— Veio só um, mas a gente fez direitinho, não fez? — Fiz que
sim com a cabeça, as palavras não vindo.
Palavras não eram necessárias, nós três na cama até os raios
de sol clarearem o quarto. Hope dormia nos meus braços, e a luz
que vinha de fora nunca foi tão bem-vinda, trazendo o começo de
um dia que, até horas atrás, não imaginava que iria viver.

Era quase fim do dia primeiro de novembro, Hope já tendo


vinte e quatro horas de vida, eu com nenhuma de sono desde tê-la
em meus braços pela primeira vez.
Mas não estava reclamando daquilo. Provavelmente nunca
reclamaria. O que me incomodava era o silêncio dele, Armando ou
de pé ao lado do quarto, ou sentado em uma das fileiras de cadeiras
próximas. Nenhuma das posições parecia confortável, ainda mais
após passar um dia inteiro revezando entre as duas.
Por que ele não ia embora? Por que não ia, ao menos,
descansar no carro? Os olhos, iguais aos da minha mulher, olhavam
para mim com toda a reprovação que via quando era mais novo. Se
Nicolas fosse um assassino, se Nicolas tivesse feito as merdas que
fiz na vida, eu olharia assim para ele? Sentia que nada faria meus
sentimentos mudarem, tendo certeza de que Hope sempre teria
amor quando procurasse meus olhos.
Eu não conseguia mais guardar aquilo só para mim.
Me sentei na cadeira ao seu lado: era realmente
desconfortável. Armando deixou os olhos em mim por um segundo
antes de voltar a encarar o que passava na televisão, apenas nós
dois na área de espera.
Ridículo como sempre me sentia um moleque ao lado dele.
Ridículo como, depois de anos, tudo finalmente fazia sentido.
— Ficou com ela no dia que eu não pude. — Eu poderia me
sentir um, mas não me comportaria como moleque. — Se não fosse
por ti…
— Ia se entregar, Nico? Nickolay… — E ele sacudiu a cabeça,
a testa enrugando, o homem parecendo considerar as palavras que
usaria para acabar comigo.
Talvez eu acabar comigo mesmo fosse o mais sábio a se fazer.
— Fui eu quem matou Carina — admiti, soltando uma
respiração que nem sabia que segurava. As palavras foram
suficientes para os olhos não desgrudarem mais de mim. — Eu
sempre colhia uma flor para ela, e naquela manhã, cheguei de mãos
vazias. Minha… — Não consegui falar mãe, pela primeira vez,
pensando no que seria menos doloroso para ele ouvir. — Katerina
deixou a bolsa no chão. — Era uma bolsa parda de pano, e até isso
o meu cérebro, por anos, esqueceu.
Queria nunca ter lembrado. Porque lembrar e não compartilhar
o que poderia pôr um fim na agonia que Armando deveria sentir era
cruel demais. Alana falava que eu era bom, e naquela situação, eu
queria mostrar que minha mulher estava certa.
— Estava vestindo luvas. Katerina deve ter imaginado que eu
poderia querer pegar as maçãs, porque eu amava maçãs — contei,
encarando a parede. — E eu dei uma para Carina, porque ela
também...
— Amava maçãs. — Nunca estaria pronto para encarar o que
ganharia dele depois disso, e me dei mais alguns segundos de
ignorância.
— Eu não sabia. Eu esqueci. Eu sinto muito... — Eu sentia,
muito. — Pai.
Se nunca tivesse pegado a fruta, tudo teria dado certo. Se
nunca tivesse entregado a maçã, anos de traumas, de todos os
lados, teriam não existido. Era incrível, e tão triste, no meu caso,
como uma ação, como algo tão pequeno, conseguiu mudar a vida
de tantas pessoas.
Como teria sido crescer sendo irmão dela? Nós não teríamos
Hope, e Alana não teria as feridas de um monstro. Eu continuaria a
ter apenas Armando como pai, Armando não teria se afundado em
bebidas. Nossa família teria sido feliz, e Nicolas nunca teria sido
meu filho. Eu teria visto todos os meus sobrinhos nascerem. Os
filhos da minha mulher, quando viessem, seriam considerados meus
sobrinhos.
Armando, se pudesse voltar no tempo, voltaria? Ele mudaria
aquele pequeno detalhe? Eu me arrependia tanto de ter sido o
causador de tudo, ao mesmo tempo, uma vida sem meus dois
amores doía demais de se considerar.
Não esperava a compreensão que veio, a vida sempre me
surpreendendo.
— Eu sempre soube, Nico. Por causa das luvas — o homem
explicou, e eu tentava achar nos olhos a raiva que esperei ver desde
minha primeira palavra. — As ações de Katerina nunca fizeram
sentido, então essa explicação era a que mais encaixava.
Não tinha raiva. Nem mesmo a decepção que antes estava ali,
continuava.
— E eu rezei, durante todos esses anos, para nunca se
lembrar. Eu nunca te culpei por isso, moleque, então nunca mais
diga que foi culpa sua. Não a matou, ouviu? Se alguém tem culpa
disso, é… — A dificuldade em falar sobre ela reafirmava a resposta
que ganhava. Sua mãe matou a mulher que eu amava. E ele
sempre soube. — É quem deixou uma criança, que amava maçãs,
perto de um saco de maçãs envenenadas. O que matou a mulher
que eu amava poderia ter te matado, poderia ter matado a sua
mulher. Ela poderia ter matado meus filhos, e por isso, eu nunca vou
perdoar quem tu chama de mãe.
Fiz que sim, nós dois voltando os olhos para a televisão à
nossa frente, nenhum a assistindo. Uma das pessoas que mais
deveria me odiar, me isentar de qualquer culpa, fazia eu me sentir
muito mais leve.
— Agora, se pensar em se entregar outra vez, eu nunca vou te
perdoar. — Aquela continuação, eu não esperava. Os olhos ainda
estavam fixos na tela, mas os meus estavam fixos nele. — Eu te
criei desde que tinha meses. Victor sempre foi mais desapegado,
ele tinha receio, e eu entendo. Um pai violento pode ser difícil de se
lembrar, eu sei. Eu tive um, e estava me tornando um tão ruim
quanto para os dois. — Armando coçou a barba antes de me
encarar.
O que eu vi nele fazia eu querer desviar os olhos para qualquer
outro lugar, e me obriguei a continuar o encarando.
— Victor e Alana também são meus filhos, Nickolay. Mas tu...
— Armando não estava decepcionado comigo, e eu nunca achei
que fosse ser difícil ver aquilo.
Porque eu me via nele. Meu pai tinha o mesmo olhar que eu,
todas as vezes que pensava em Nicolas. Falhar doía, e o homem
me mostrava sua dor sem filtros pela primeira vez.
— Quando te segurei nos braços, tu roubou um pedaço de
mim. Depois do acidente, eu não conseguia ir embora desse
pedaço. Era o único que tinha me restado. Quando descobri por
Alana, por uma suposição da menina, que estava prestes a perder
esse pedaço... — A mão receosa que apertou meu ombro fez meu
peito queimar. — Lorenzo me disse o quanto deveria me orgulhar de
ti. E eu sei que isso não vale de nada, mas eu me orgulho. Eu me
orgulho do homem que se tornou. Não faça isso de novo enquanto
eu estiver vivo. — E os olhos, sempre tão duros, me deram tudo que
busquei durante todos os anos de frieza. — Eu vou no seu lugar,
filho.

A última vez que havia passado um dia inteiro num quarto, não
havia sido por um bom motivo. O que me fazia levantar vez ou outra
da cama agora era o melhor motivo que existia no mundo.
Nickolay parecia concordar, e levantava mais vezes que eu
para trazer Hope até meus braços.
Deixamos o hospital dois dias atrás, e eu o peguei duas vezes
conversando com Armando. Eu fingia não ver e sorria escondido, e
se ele visse, afirmaria que o motivo da pequena felicidade estava
nos meus braços — Hope quase não saía deles, afinal. Quem
mamava pela décima vez no dia gostava do colo do pai tanto quanto
amava meu peito, mas chorava cada vez que o avô chegava perto.
Bem, ela fazia isso como o avô mal-humorado, como o
apelidei, Lorenzo sendo o vovô legal. Me perguntei algumas vezes
se deveria incluir Matteo na família postiça, assim como desejei
saber se Hope faria manha no colo do meu pai.
Mas não iria pensar na minha família brasileira, sempre
forçando tudo que me deixava triste para longe. Minha menina
sentia demais quando eu não estava bem, e eu ficava feliz com
aquele nosso laço.
A mãe triste também tinha menos leite, e minha bebê, que
finalmente pegava no sono nos meus braços, era uma fominha
eterna. A colocava de volta no berço quando, de canto de olho, vi
quem abria a porta encostada.
— Se entrar aqui com esse café, eu te mato, italiano. — Nico
sabiamente virou o líquido e abandonou a xícara do lado de fora
antes de vir para nosso lado.
O quarto de Hope era amarelo, lindo, e talvez nunca fosse
usado. Ou ao menos naquele primeiro ano, fosse ignorado por nós.
O berço tinha sido movido para o nosso assim que chegamos,
nossa filha passando todos os momentos, desde que veio ao
mundo, tendo companhia. Tinha certeza de que estava a deixando
mal-acostumada, e ao mesmo tempo, não conseguia deixá-la só.
Depois lidaria com aquele problema. Agora, tinha outro que
ocupava muito mais a minha mente.
— Ainda vai querer me matar se contar que achei seu doce de
leite? — A informação conseguiu colocar um sorriso no meu rosto.
— Acho que posso te deixar vivo até o pote acabar. — E
aproveitei um segundo dos lábios grossos nos meus, o gosto de
cafeína os deixando ainda melhores, antes de cobrir a fominha. —
Não deveria comer café como anda fazendo.
— Se eu não comer café, a fominha vai gritar durante a noite e
eu mal vou ouvir. — Revirei os olhos.
— Mas eu vou!
— E eu te disse que te daria todo o descanso que precisasse,
dolcezza. — Precisei cobrir a boca para abafar o susto quando ele
me pegou no colo sem aviso, levando nós dois para a cama. — Já
te dei bastante preocupação. Deixa eu te dar calma.
Calma tendo Nickolay na cama era impossível, e, apesar do
nosso cansaço, achava bom manter aquilo. Meu coração batia
rápido pela primeira vez desde que segurei nossa filha, meus olhos
fixados nos escuros do italiano.
— Acho que estou pronta pra saber o que aconteceu, Nico.

Foi a primeira vez que Nico me contou tudo, em todos os


detalhes. Mesmo os que me machucariam ele falou, o
acontecimento da Capriccio sendo explicado de forma crua. Poderia
ter sido nós, e ao olhar para quem ameaçava acordar, mas voltava a
dormir, senti o estômago ficar gelado.
Por mais que gostaria de não ter sido mantida no escuro,
entendia os motivos dele o fazer. Claro que quase o matei quando
Nickolay revelou ter mantido todos os outros na mesma situação, e
acreditei o responsável pela sua salvação ser Lorenzo.
Havia sido Alexei. O russo, segundo Mantovanni, entrou em
contato e prometeu sua ajuda, desde que aceitassem seus termos.
O irmão mais velho intervir apenas quando meu marido estava
prestes a perder a vida parecia cruel, mas até eu entendi que existia
algo do qual não sabíamos.
Se Lorenzo sabia, ele escolhia manter a boca fechada. Ele se
fingia de desinformado, e Nickolay fingia acreditar na falta de
informação.
Stella não ser filha de Vincenzo era uma desconfiança que
nunca poderia ser provada, mas meu italiano tinha informações que
comprovavam Matarazzo ter sido pai apenas de Giovanna. Havia a
prematuridade de um mês que o médico da época afirmou não
existir, assim como características físicas da criança que batiam
muito mais com o já falecido ex-noivo de quem Catarina fugia. A
inocente que morreu no meio daquela bagunça nunca teve DNA
italiano, e a ideia de Nico de me livrar de uma máfia apenas para
entrar em outra — depois dele já morto — me fazia querer socá-lo.
Eu o fiz, no braço, forte o suficiente para meu marido se encolher.
Nickolay me segurava em seus braços e prometia o mundo, eu
revirando os olhos e retrucando que tudo que precisava era ele
parando de tomar decisões idiotas. Havia algo faltando ali, a peça
que explicaria a ajuda sádica de Demidov. Não queria acreditar ter
sido pura crueldade, não entrando na minha cabeça como um irmão
poderia deixar o outro quase morrer apenas por prazer. O rosto de
Nico ainda estava inchado, o nariz e todo seu redor com
hematomas, eu sempre tendo que brigar com ele para o homem
tomar mais cuidado com os machucados das mãos. Via as unhas
que faltavam, e só conseguia imaginar o quanto perdê-las deveria
ter doído.
Quando vocalizei minha preocupação, ele respondeu que
pensar que nunca conheceria Hope havia sido muito mais doloroso.
Nickolay sabia bem como me calar, e às vezes, ele nem precisava
colar os lábios nos meus para aquilo.
Foi meu estômago roncando que nos levou para longe da
fominha pela primeira vez, e eu me sentia ridícula ao ficar nervosa
descendo escadas.
— Dolcezza, a mansão é segura. Eu não a deixaria sozinha se
não tivesse certeza disso. — Ainda assim, olhar Hope pela câmera
da babá eletrônica era o que me deixava calma.
Eram quase nove da noite, e estava esperando encontrar a
cozinha vazia. Armando nela era uma surpresa que eu achei ser
boa, visto como os ares não estavam mais pesados entre ele e meu
italiano. Até me atrevi a sorrir para o homem.
Ele não sorriu de volta.
— O que é isso? — Eu tirava os restos do jantar da geladeira
quando a pergunta veio. Não era para mim, mas o que ele segurava
na mão me fez respondê-la.
— É um santo da procissão que teve na cidade. — Armando
me olhou como se eu fosse louca. — Eu ganhei de uma moça! Qual
o problema, tem uma bomba no colar ou algo assim? E onde achou
o colar? Eu deixei no casaco do Nico…
— Quem te deu isso, Alana? — Era meu italiano que
perguntava, ele escolhendo focar no santinho prateado ao invés de
reclamar que minha fome me fazia comer a comida fria direto do
pote.
Dei os ombros: uma mulher, eu já tinha respondido, e eu
comeria aquilo tudo, tinha certeza. Não me incomodei em esquentar,
me sentando com o recipiente de vidro. Parecia ser a única feliz ali,
os dois trocando palavras em italiano, eu as entendendo bem
melhor que no começo da minha vida na Itália.
— O que é uma coincidência? — soltei entre colheradas de
espaguete cortado com cheddar e bacon, uma heresia que Barbara
havia preparado depois de eu muito pedir.
Armando aflito não era algo animador.
— É apenas parecida — Nico afirmou, examinando de perto a
corrente. — Não tem como ser a mesma.
O choro vindo da babá eletrônica chamou a atenção dos três, o
visor do aparelho sobre a mesa mostrando Hope e sua
incapacidade de ficar sozinha.
— Eu vou. — Levantei uma sobrancelha. — Estão com a pior
aparência que já vi, a bambina vai viver com minha péssima voz por
alguns minutos. — Armando não esperou uma resposta, se
apressando para cima, o choro de Hope que ouvíamos pelo
dispositivo indo com ele.
— O que foi isso? — perguntei depois de engolir mais uma
colherada de macarrão, forçando uma a contragosto boca adentro
de Nickolay. — Eu não peguei tudo, mas Armando disse que essa
corrente era dele, não disse? — Não fazia muito sentido. — Eu não
peguei dele, Nico. — Era daquilo que ele estava me acusando?
— É só parecida, dolcezza — veio quando eu fiz um bico. —
Armando não acha que pegou, mas essa é uma corrente que sumiu
há muito tempo. Era da mãe dele.
— Como uma estranha poderia ter me dado isso? —
Realmente, não fazia sentido, mas então, o que fazia para meu
cérebro privado de sono?
— Por isso que disse: é só parecida, Alana. — E eu comi mais
macarrão.
— Como ele perdeu? — E Nico deu os ombros. Coloquei mais
uma colher cheia de queijo na boca antes de desistir de ficar
sentada. — Eu consigo ouvir ela chorando, eu vou ficar louca se
continuar parada aqui.
Gostava quando o italiano nem pensava em contestar minhas
neuras.
— Eu também. — Ele mesmo encheu a boca antes de seguir
comigo para fora da cozinha, os gritos de Hope cada vez mais altos.
Fiquei com um pouco de dó do homem mais velho: ele tentava,
mas a fominha realmente não tinha o colocado na lista de pessoas
que gostava de ter por perto. Bocejei e subi o último degrau,
Nickolay alguns passos à minha frente, minha mente cansada
ouvindo mais vozes do que deveria haver no quarto. Hope não
falava, afinal. Mas minha cabeça insistia em ouvir a voz de uma
mulher mais velha.
E meu cansaço me fez esbarrar em meu marido, que havia
paralisado em frente à porta. Por que Nico não se mexia? Era só
pegar a fominha e me dar.
Quando dei um passo para o lado, por um momento, eu
também fiquei parada. Então, corri para o berço, agarrando minha
filha e voltando para trás do meu marido.
A mansão era segura, meu italiano tinha falado enquanto
descíamos para a cozinha. A mansão era segura, mas tinha uma
estranha no nosso quarto.
Nenhum de nós se mexia, e Hope berrava.
— Mãe? — Quem falou foi Nickolay.

1989

Matarazzo tinha um plano, e por causa desse plano, eu estava


revirando Madrid.
A notícia que corria era que a esposa de Demidov tinha
escapado com os dois mais novos, e o russo estava sedento. Meu
chefe — chefe, que piada, eu deixando o homem acreditar que tinha
poder sobre mim — nunca teve um bom relacionamento com os
russos, e aquela era a oportunidade perfeita.
Meu chefe nunca teve um bom relacionamento com ninguém,
e aquela ideia era uma das coisas mais idiotas que eu já havia
escutado na vida. Não que tivesse escutado muito com vinte anos,
só que mesmo quando tivesse cinquenta, era difícil ganhar daquela
estupidez. Quando que negociar as crianças com aquele russo
insano poderia dar em algo bom? Do jeito que o Pakhan se
comportava, era capaz dele liquidar toda a Família só por termos os
meninos.
Mas Matarazzo tinha um plano, e eu revirava Madrid sem muita
vontade de achar quem buscava. A foto que tinha era de uma
mulher de olhos azuis, grávida e segurando um menino tão
encapuzado quanto ela.
A foto não me ajudava em nada.
Eu nunca acharia aqueles três.
Como que justo a mulher de Demidov conseguia se esconder
tão bem? Era a fama que o russo carregava que a fazia se
empenhar tanto em não ser achada? O homem não era exatamente
gentil, e eu imaginava que ninguém estaria livre dos maus tratos.
Odiava casamentos por contrato, odiava casamentos no geral. A
ideia de ficar preso a alguém por toda a vida e ser eternamente feliz
era irreal, e estava um frio do cacete nas ruas espanholas. O Natal
estava chegando, e eu estava perdendo a minha curta paciência.
No final, quem me achou foi a mulher. Era por acaso que tinha
entrado naquele bar, mas não era por acaso que Katerina estava ali.
Claro que eu só entenderia a falta de coincidência mais tarde.
— DeLucca, certo? — saiu de lábios muito mais carnudos que
os da foto, e eu apenas a reconheci pelo anel que usava em sua
mão esquerda. O anel estava no dedo errado, e a mulher virou uma
dose de vodka como se fosse água.
Russos. Mas essa falava inglês.
— Quem quer saber? — Rodei o whisky que tinha no copo, a
copiando antes de colar os olhos nos dela.
Não eram azuis.
— Katerina. Ouvi dizer que está me procurando. — Franzi a
testa: ela parecia mais esperta do que eu esperava da mulher de
Demidov.
Talvez porque fosse óbvio que quem falava comigo não era a
mulher do Pakhan. Ela nem mesmo tinha sotaque russo, mas eu a
deixaria jogar o joguinho dela. Meu cérebro até me enganou:
poderia ser uma boa foda no final da noite. Deus sabia o quanto
andava precisando de uma nos últimos dias.
— Eu estou. — Coloquei o copo no balcão de madeira,
levantando do banco. — Pronta para ir?
Ela me olhou desconfiada, mas respondeu que sim, e eu
traçava um plano na minha cabeça. Sairíamos do bar, e eu a
prensaria contra a parede. Seria apenas um beijo, e minhas mãos
apenas vagariam pelo seu corpo porque homens gostam de sentir.
Não para procurar com o que a puta talvez quisesse me matar.
Meu plano foi posto em prática, duas coisas dando errado para
ela: a mulher mordeu meu lábio a ponto de sangrar, e eu achei uma
faca escondida na sua coxa. Ela morder meu lábio me fez
pressionar a lâmina contra seu pescoço, e agora, nós dois
sangrávamos.
— Qual seu nome? — Ela não iria falar, os olhos coloridos me
contavam aquilo em silêncio.
— Katerina Demidov. — Suspirei, apertando um pouco mais a
faca. — Eu não teria esse anel se fosse outra, teria? — A voz veio
abafada, o coração batendo forte. O meu também batia, ninguém na
ruela fria além de nós dois.
Eu poderia matá-la sem testemunhas. Eu iria matá-la, se ela
não me contasse quem era. E eu nunca havia matado uma mulher.
Lembrei de Astrid, a garota que viveu na minha cama por três
meses nunca me perguntando o que eu exatamente fazia, mas
fazendo apenas um pedido.
"Seja lá o que for, me prometa que as mulheres estão fora
disso."
— Katerina Demidov tem olhos azuis, e cabelos muito mais
escuros que os seus. — Uma gota de sangue escorreu pelo
pescoço, sumindo dentro da blusa que a mulher usava. — Como
conseguiu esse anel? É uma cópia barata?
— Katerina me pagou com ele. — Pagou? — Se continuar a
pressionar a lâmina, nunca vai achar os meninos.
— Consigo achar o que quero, farsante. — Mas recuei.
Talvez devesse tê-la matado. Odiava ser um assassino com
uma consciência, eu sabendo que precisava desligar para ser
realmente bom.
— Qual é o seu nome? — tentei mais uma vez, por mais que,
sem ameaças, a vida tinha me ensinado que respostas nunca
vinham.
— Não aqui. Lá em cima. — Estreitei os olhos. — Eu não vou
matar a minha única ajuda.
Guardei a faca no casaco.
— Lá em cima onde?
— Lá em cima, no quarto que fica ao lado do seu. — Ela só
poderia estar brincando.
Ela não estava, e, subindo até o terceiro andar, quem não era
Katerina tirava uma chave do bolso da calça. A mulher não parecia
ter muito mais que minha idade, e eu estava hospedado ali já fazia
vinte dias.
— Quando chegou?
— Um dia depois de você. — E ela destrancou a porta, o
quarto pequeno mostrando um menino em seus seis anos vendo TV
enquanto, ao seu lado, um bebê dormia na cama.
— Como deixa um bebê de meses sozinho com um garotinho?
— Olhos verdes grandes pararam em mim, o menino correndo para
se esconder atrás da cama assim que me viu.
— Melhor do que obrigar o garoto a ver o que fez comigo na
ruela. — Não consegui achar um bom argumento para responder
aquilo. — Meu nome é Sofia Orlov. Katerina Orlov era minha irmã
mais velha. Nós estávamos fugindo quando Demidov atirou. — Mas
não havia muita dor nos olhos de cores diferentes.
Eu queria apertá-la contra a parede até a verdade sair.
— Mentirosa, acha que não sei nada sobre quem procuro? —
Eu não o faria na frente das crianças, a mulher sendo realmente
esperta. — Katerina Orlov perdeu a única irmã que tinha quando
nova. — E uma risada amarga veio.
— Afogada no lago, quando o gelo partiu. Ela tinha seis anos,
estava brincando, e crack! O gelo, mais grosso que você, quebrou e
engoliu a menina, no meio de um janeiro escaldante de inverno
russo. — A ironia era palpável, a mulher gesticulando enquanto
contava.
Que dramática. Se criasse os meninos, eles não iriam ser
homens, mas poços de drama.
— Quem nós chamávamos de pai nunca foi o melhor para
controlar as finanças. Um dia, não houve dinheiro o suficiente para a
família pagar uma dívida. — A mulher franziu o nariz, tirando as
botas e sentando-se na cama. — Katerina foi prometida para
Demidov assim que nasceu, e isso a tornava intocável. Isso também
deixava eu sobrando.
— Então a deixou morrer? — Ela arremessou o controle da
televisão em mim, a pontaria boa demais, a força de alguém que
estava acostumada a arremessar coisas muito mais letais.
— Nós iríamos fugir. Mas eu falhei. — E os olhos de duas
cores foram para o chão. — E agora, eu estou fodida e com duas
crianças para cuidar.
Considerei falar que era só devolvê-las ao chefe russo. Era só
tê-las deixado na neve, era só ter corrido. Nós as devolveríamos, ou
ao menos, aquele era o plano do homem que era obrigado a chamar
de Don.
Só que devolvê-los não era algo que ela parecia estar muito
aberta a fazer, e lá no fundo, eu entendia. Eu sabia o que era ser
criado por um monstro, e Demidov, pelo que as lendas contavam,
era o chefe de todos eles.
Demidov não era a única lenda — lenda, o homem era real
demais para ser uma — que seria mencionada na noite.
— Como escapou de seja lá quem foi que te comprou? —
Ganhei mais uma risada amarga, Sofia sacudindo a cabeça.
— Eu fui paga para Eles. — E foi minha vez de rir.
Mas eu ri com gosto, e a próxima coisa que voou em minha
direção foi o cinzeiro. Coloquei o braço na frente do rosto a tempo, o
objeto pesado o suficiente para causar um bom estrago, tivesse me
acertado no nariz.
— Mentira! Eles não existem, Eles é a lenda para fazer quem
precisa ter medo. Para fazer quem precisa procurar que nem um
idiota, e para atirador de elite usar o nome e te cobrar um preço
absurdo! — Eu esperava que aquela criança não entendesse inglês,
mas os olhos arregalando ainda mais me disseram que, pelo menos
do tom, ele teve medo.
O bebê parecia concordar.
— Cacete — lamentei quando ouvi o choro, a mulher na minha
frente parecendo querer ouvir tanto quanto eu as reclamações do
recém-nascido.
Ainda assim, ela pegou o embrulho, um pouco desajeitada, o
choro ficando ainda mais alto. Como eu não ouvi aquilo nos últimos
dias?
— Eles existem. E Eles matam todos os farsantes que se
passam por Eles. Por nós. — Um suspiro, a mulher balançando o
embrulho para cima e para baixo. — Eles também matam quem
falha em trabalhos. Eles vão me matar, e levar as crianças. — A voz
tremeu, e eu odiava ser amolecido com lágrimas. Quem estava na
minha frente parecia odiar tanto quanto eu chorar. — Ninguém
merece uma vida com Eles.
Mas as lágrimas caíram dos dois, e o menino que estava
escondido do outro lado da cama parecia que seguiria o mesmo
rumo.
— Me dê o bebê. — Foi automático, eu tendo próximo a zero
de experiência com crianças, mas sabendo que ela chorando só
faria o choro agudo ficar mais alto.
Sofia pareceu hesitante, antes do menino atrás de nós seguir o
exemplo dos dois, fungando enquanto escondia o rosto nas mãos. O
embrulho foi parar nos meus braços, meus olhos na mulher que se
ajoelhava na frente do menino. Ela falava algo em russo enquanto
passava a mão nos cabelos loiros, e eu finalmente dei atenção para
quem agora gritava usando toda sua capacidade pulmonar.
Os olhos eram tão pretos quanto os cabelos, o rosto vermelho
de chorar. Afrouxei a manta, os braços antes presos se libertando, o
choro inconformado parecendo acalmar um pouco. Bebês, nunca
sabia o que os fazia gritar como se estivessem morrendo, mas
conseguia empatizar com o pequeno: eu também odiava ser preso.
— Melhor, certo? — E os gritos pararam, o pequeno fungando
algumas vezes antes da atenção parar em mim. A mão parou na
minha barba quando aproximei meu rosto do dele, então descendo
para o colar com a santa que eu nunca tirava. Aquele era o mais
novo de Demidov, o que levava seu nome.
Dos lábios rosados saiu algo que poderia muito bem interpretar
como um sim, ele muito entretido com o que puxava, o choro
esquecido. Com os olhos grudados nos meus, Nickolay Demidov
brincava com o colar que havia sido da minha mãe. E então, ele
sorriu.
E eu sorri de volta. E algo dentro de mim começou a sussurrar
que faria de tudo para aquele menino não voltar para os braços de
um bicho-papão. Ele não passaria pelo que eu passei. Nico não
seria criado por um monstro. Nem ele, nem seu irmão.

A primeira coisa que meu cérebro processou foi que ela estava
mais velha.
Claro que estaria, haviam passado vinte e cinco anos desde a
última vez que a vi. Vinte e cinco anos, e devem ter se passado pelo
menos vinte e cinco segundos. Alana pegou Hope. Armando
apertou mais o gatilho. Eu falei.
— Mãe?
A certeza saiu como uma pergunta. Claro que era minha mãe.
Em vinte e cinco anos, nunca vi olhos como os dela. Heterocromia
não era algo comum, o castanho e o verde claro sendo a floresta
que eu tinha amado ver todas as manhãs de uma parte da minha
infância. E eu via outra vez, agora.
Eu não queria ver. Porque vê-la viva doía mais do que
descobrir a morte falsa de meu pai, e só conseguia lembrar da foto
que carregava na minha carteira. Nós três e o mar, pelos olhos de
Armando, a imagem perto da de Alana e Nicolas, perto da família
que ela não tinha o direito de estar.
Hope fungava atrás de mim, ninguém além dela tendo
coragem de fazer qualquer som. Katerina estava de joelhos, a arma
pressionada na nuca, e por um segundo, desejei que a pistola
disparasse. Alana, e sua mania de ficar insistindo que eu era bom.
O que desejava agora passava longe de qualquer bondade.
Ou talvez passasse perto. A raiva que via nos olhos do mais
velho fazia a morte rápida ser uma boa escolha.
— Não atira, Armando. — Vi os olhos coloridos suavizarem,
entendendo de forma errada minhas palavras. — Deixa ela explicar.
Pode fazer o que quiser depois, eu só quero saber o porquê.
O que enxergava como verdade fazia meu cérebro entrar em
pane, e me forcei a não olhar para o teto. Katerina estar viva
implicava em mais coisas do que eu estava pronto para pensar,
minha vida, agora, uma mentira completa.
Armando sabia. Lorenzo sabia. Victor também sabia? Ele não
parecia saber que nossa mãe permanecia viva, e lembrando de
minutos atrás, entendi que foi ela quem deu a corrente para minha
mulher.
Alana sabia?
— Conhece essa mulher? — Me senti a pior pessoa ao
perguntar aquilo numa voz grosseira.
Não foi Alana quem respondeu.
— Ela não sabe quem eu sou, Kolya. — A voz era igual à que
eu me lembrava, o detalhe secando a minha garganta. — Eu só a vi
uma vez. — Mas era mentira: Alana poderia lembrar de apenas uma
vez, só que Katerina tinha visto minha mulher pelo menos duas.
E o choro da cena que voltava para minha cabeça se igualava
com o que vinha da minha filha.
Armando não foi gentil quando a mulher tentou se mexer, e em
segundos, ela estava com a cara pressionada no chão, o barulho
repentino fazendo Hope chorar ainda mais alto.
Semanas atrás, eu as trancaria num quarto. Agora, minha
família não sairia da minha vista, e eu as mantive atrás de mim.
— Eu não vou machucar ninguém, filho…
— Ele não é seu filho! — Se algum dia achei ter visto meu pai
bravo, o homem de agora mostrava que a braveza do passado era
uma suave.
— E ele é seu?
Por um instante, achei que ele torceria o pescoço que
segurava. Realizar que eu não o impediria era assustador. Alana
falaria que eu tinha direito de estar magoado, enquanto eu sabia
que havia sim uma parte dentro do meu peito que só queria que
tudo queimasse, por mais que a mantivesse no fundo.
Eu deveria querer abraçá-la.
— Eu disse que, se algum dia conseguisse fugir, era para
nunca mais voltar! — Armando rosnou, e me lembrei de todas as
vezes em que os dois se comportaram como um casal normal na
minha frente. Era um contraste gritante. — Que cazzo está fazendo
aqui, assassina?
— Armando, para! — era Alana quem se metia, a voz
assustada, todo o estresse que eu não queria que minha mulher
vivesse a alcançando. — Eu também quero saber do porquê, deixa
ela contar antes de fazer merda!
Minha risada não tinha graça, e chamou a atenção de todos.
— Fui eu, Alana. — Ela ainda não sabia do detalhe, eu o tendo
finalmente lembrado minutos antes de descobrir que era pai. Um
bebê realmente nos deixava exaustos, porque não tinha mais forças
para esconder, a informação saindo como algo corriqueiro. —
Lembra que havia maçãs, não lembra? Eu dei uma para sua mãe.
Fui eu, não foi ela. Então…
O rosto preocupado se transformou, e me lembrei com atraso
do que geralmente seguia aquela expressão.
— Segura a sua filha. — Hope parou nos meus braços antes
que eu tivesse reação, meu cérebro lembrando de como minha
mulher reagiu durante as primeiras conversas com o pai biológico,
ainda no Canadá.
Alana era realmente parecida com o pai: ela tinha os mesmos
olhos, a mesma cor de cabelo. Ela também tinha o mesmo
temperamento quando brava.
— Você deixou veneno pra uma criança pegar? Que tipo de
mãe é VOCÊ? — Armando deixava Katerina livre no próximo
segundo, nos seus braços agora uma mulher que aparentava ser
muito mais perigosa. — Você sabe de tudo que seu filho já se
culpa? — Muito mais, e ela tentava, com todas as forças que tinha,
alcançar quem meu cérebro insistia em chamar de mãe. — Sabe
como a vida dele foi ruim por causa de um descuido estúpido?
— Alana, é maluca? — Quase ri: o homem, com certeza, ainda
não havia entendido a filha e suas explosões de raiva. — O que
acha que está fazendo?
— Defendendo o meu marido, já que ninguém aqui parece
fazer isso!
Não sentia que precisava de defesa, mas precisava admitir que
minha mulher era dona das melhores respostas. Ela, também, não
me culpava, e depois daquilo, os motivos de Katerina perdiam cada
vez mais a importância para mim.
— O Nico já se dói com tanta coisa, e agora vai ter que se
machucar com mais isso! Vocês dois deveriam ou ter continuado
fantasmas, ou ter se esforçado mais pra gente continuar na
ignorância!
Ela também chorava, e minha mulher chorando era tão ruim
quanto o embrulho que berrava nos meus braços. As duas pareciam
arrancar partes de mim com suas lágrimas.
As duas eram as únicas que me importavam.
— Dolcezza, vem. Não vale a pena — copiei as palavras que
disse quando era Armando no lugar da mulher mais velha, já me
perguntando o que faria se ela decidisse continuar brigando.
Alana surpreendeu a nós dois, parando de lutar contra o aperto
do pai e voltando para o meu lado, a filha de volta em seus braços,
os meus às mantendo perto. Minha calma tinha cheiro de
framboesa, e eu as protegeria do mundo, para sempre.
A mulher mais velha ainda massageava o pescoço quando se
levantou, pigarreando antes de voltar a me olhar. Era triste como eu
não queria aqueles olhos em mim.
— Não sou só eu quem precisa de respostas, mãe. —
Pronunciar a palavra deixava um gosto amargo na boca.
Katerina respirou fundo, Hope gritou mais alto, e eu considerei
duas vezes deixar a mulher mais velha sozinha com Armando. Ele
poderia me contar toda a verdade depois. Poderia até mentir, e
naquele instante, eu realmente não me importava. O que era uma
mentira a mais?
Ela ter esperado meus olhos estarem em seus coloridos para
começar a falar foi irritante, e gastou um pouco mais da minha
paciência.
— As maçãs eram para os homens da mansão. Todos tinham
esse vício ridículo nessa fruta sem graça. Matarazzo sempre comia
uma depois do almoço, e se ele morresse, ninguém viria atrás de
nós. De Catarina e eu. — E então, os olhos foram para Armando. —
Eu sabia que vocês fugiriam. Naquela manhã, meu plano era deixar
as maçãs, pegar Catarina e sumir. Mas Kolya estava com febre, e a
escola o mandou de volta para casa. Eu o deixaria com Carina, e
sumiria.
— Só que eu peguei uma maçã, e fodi com todo o plano. — E
Hope chorava, do mesmo jeito que Alana havia gritado assim que o
barulho da mulher caindo a assustou, anos atrás.
Uma maçã. Um detalhe tão pequeno, que mudou a vida de
todos naquele quarto. Uma maçã que, ao olhar para minha filha, eu
não conseguia mais me sentir mal por ter pegado.
— E Catarina? — Foi Armando quem quebrou o silêncio. —
Ela te amava!
— Eu também a amava! — A voz tremeu, os coloridos
encarando o chão. — Mas a mulher desistiu depois de saber de
tudo, e eu decidi que amava mais a minha liberdade. — Katerina
não deveria ter direito de chorar, mas as lágrimas caíam. — Quando
vi, ela estava dando um pedaço para a filha…
— Me fez segurar Stella sabendo que a criança ia morrer? — a
interrompi, meu cérebro se negando a acreditar naquela parte. —
Eu achei que tinha matado a menina!
— E eu achei que ela fosse viver! Eu achei que tudo daria
certo, que fugiria com Catarina e finalmente poderia respirar! E de
repente, Carina estava morta, você estava na praia comigo, e o
homem que nos tiraria de lá dizia que não levaria o filho do russo!
Então eu coloquei Stella no seu colo e falei para não olhar mais para
mim…
— Porque ia me deixar!
— Porque eu precisava atirar! Porque eu não queria que visse
que sua mãe era uma assassina! — Ela escondeu o rosto nas
mãos, os ombros tremendo, e eu preferia que Katerina tivesse
ficado morta. Era egoísmo meu preferir que a mulher tivesse
morrido? — Eu achei que fosse dar certo, e mesmo quando estava
dando tudo errado, eu não queria te deixar na praia! Mas depois de
seis anos presa na Itália, ter a chance de sair dali sozinha…
— Presa na Itália — repeti amargo, as reais palavras na minha
mente: presa com os filhos. — Se não queria viver presa, talvez não
devesse ter me tido. — Sabia que minha fala era injusta, as
mulheres dos chefes nunca tendo qualquer escolha sobre dar ou
não herdeiros.
Katerina levantou o rosto, parecendo considerar por alguns
instantes antes de decidir falar a última coisa que faltava eu saber.
Aquela última peça, eu não estava esperando.
— Eu nunca tive você, Nickolay. Eu nunca tive ninguém. — O
rosto molhado foi limpo na manga do casaco, a mulher fungando
antes de procurar meus olhos. — Você só se lembra de mim, mas
eu não sou a sua mãe.
— Che?
Ele não é seu filho! Mais uma surpresa vinha, e meu cérebro
exausto queria rir.
— Katerina Orlov morreu na Rússia, tentando fugir com vocês.
Foi rápido, um tiro na cabeça. Quando ela caiu, deveria tê-los
deixado na neve, mas eu não consegui. Armando nos achou, e
concordou com o que eu pedi: ganharia minha liberdade, e nenhum
de nós três jamais pisaria na Rússia novamente. — O sorriso triste
combinava com o que senti ganhando a nova informação. — Mas eu
não era livre para fazer o que quisesse, e uma liberdade com
limitações estava me matando aos poucos. Cuidar de vocês era
mais difícil do que a vida que levava antes. Naquela manhã, eu
deveria ter assumido meu papel de péssima mãe, ter te deixado
sozinho em casa e partido.
Poucos dias depois de descobrirmos Hope, Alana me contou
sobre como havia ficado magoada com a mãe. Ela também me
contou que, por mais magoada que estivesse, não conseguiu se
despedir dela com palavras ríspidas.
Talvez eu não conseguisse me despedir com palavra alguma.
Peguei Hope para mim, nossa menina parando de soluçar assim
que a mãozinha achou a corrente que vivia no meu pescoço. Eu
queria ficar sozinho com as duas para poder desabar, e Alana
sempre me entendia bem demais. Os lábios finos estavam prestes a
se abrir quando a russa — ela era russa? — voltou a falar.
— Não tem como voltar no tempo e devolver o que tirei dos
três. Mas eu posso te dar o que busca, Kolya. — Katerina, e aquele
provavelmente não era seu nome, deu um sorriso fraco. Tentava
imaginar se conseguiria dar qualquer coisa boa para a mulher antes
dela ir para sempre. — Demidov sabe que estou aqui. — Porque
antes dela me dar aquela certeza em palavras, seus olhos me
passaram que o momento que dividíamos era nosso último. — Com
certeza o carro estacionando é dele — ela continuou, ao afastar a
cortina e olhar janela afora. — Sei que quer me matar, Armando.
Mas eu estou me entregando para que seus filhos sejam livres,
então escolha. Você quer vingança, ou quer dar algo bom para
esses dois?
Livres. Alexei procurava ela. Era por causa dela que eu havia
levado o sobrenome Orlov no passaporte canadense. Por causa
dela que eu estava correndo riscos na Itália. A irmandade queria a
mulher que roubou os filhos do Pakhan, e achavam que ela viria
para mim, por mim.
E ela veio.
— Por quê? Esse sacrifício, por quê?
— Porque viver fugindo é cansativo. — Katerina soltou o ar,
como se estivesse soltando um peso carregado por anos. — Quis
tanto minha liberdade, mas desde que fugi da Itália, nunca me senti
tão presa. Se eu for desistir, ao menos posso desistir em grande
estilo. Vamos? — continuou ao virar-se para Armando, o homem
sacudindo a cabeça antes de guardar a arma e pegá-la pelo braço.
Ao passar, os olhos coloridos foram para Hope, e então para
mim.
— Pode parar de procurar o responsável pelo acidente no seu
jantar. — Congelei quando os dedos longos tocaram meu braço,
meu coração acelerando de forma desconfortável no peito. —
Nunca gostei de vinho branco, nem de loiras que falam demais. O
veneno estava nas taças, e a da sua mulher estava limpa. Lorenzo
sentou no lugar errado, como sempre.
Tirei coragem da mão de Alana, o calor espalmado nas minhas
costas sendo o suficiente para eu abrir a boca.
— Obrigado. — Eu não tinha mais nada para dizer.
Mas, para quem se entregava por mim, pareceu ser o
suficiente.
— Ela é linda. As duas são. Tchau, Kolya.
E eles saíram, a porta se fechando. Tinha uma preocupação
que não precisava existir nos olhos mel, e eu pensei: nossas
preocupações, depois de hoje, poderiam ser muito mais simples.
Não me importaria em me preocupar sobre cores de quarto.
Sobre a chuva que caía, se Alana ficaria ou não irritada comigo
dando informações para uma turista. Preocupações que conseguia
resolver sem me matar no processo, eu abraçava, do mesmo jeito
que colocava os braços ao redor das que eram meu mundo.
— Nós vamos embora, dolcezza. — As palavras ainda
pareciam irreais. — Nós vamos para casa.

Armando desapareceu por dias, antes de chegar com a prova


que me incriminava. No chão de concreto do jardim da frente, a foto
queimava enquanto ele garantia que voltar para o Canadá era
seguro. Nunca gostei tanto do nome Kolya, e Orlov apenas
carregava o peso da liberdade.
Passaram-se vinte dias até tudo estar pronto, e apesar do
inverno, o sol continuava forte.
Como o choro de Hope. Alana me expulsava do quarto,
falando que era a vez dela de tentar apaziguar o que quer que
tivesse irritado a pequena. Ela me mataria se eu sugerisse mais
uma vez usarmos uma chupeta, mas nós dois desconfiávamos que
precisaríamos nos render a uma durante a cada vez mais próxima
viagem de avião.
Queria um cigarro. Ele estava encostado no carro que sempre
usava fumando um quando saí.
— Se veio aqui fora para me mandar parar outra vez, nós
vamos para o chão como na semana do boxe — veio antes de um
trago.
— Por Dio, no. — Encostei-me ao seu lado, as mãos dentro do
casaco. — Eu estou exausto.
Armando sorriu.
— Cansa, não cansa? — E mais um trago. — Tu dava um
pouco de trabalho.
Eu também sorri, e era engraçado como, meses atrás, minha
vontade era de matá-lo. Também deveria querer matar quem eu
chamei por tantos anos de mãe, mas a liberdade que ela nos deu
fazia minha mágoa muito mais leve.
Tinha, afinal, duas escolhas: viver me remoendo, ou deixar ir.
Deixar ir era, supreendentemente, fácil com minha família ao lado.
— Se arrepende? — A pergunta vaga foi ignorada com
sucesso.
— Ainda dá. — Ou talvez aquilo era Armando respondendo
que sim, antes de puxar o maço do bolso. — Cigarro?
Figlio di puttana. Eu queria um cigarro.
— Alana me mata se tocar nisso e chegar perto da fominha.
— Fominha. — Ele balançou a cabeça, Armando sendo o
único a não usar o apelido. — Ela é que nem tu. Vivia com fome
quando bebê. — Mais um trago, e por um segundo, considerei pedir
apenas um. — Diferente do que Hope acha, meu colo era bom para
ti.
Eu não pediria um cigarro, mas me distrairia com outra coisa.
— Quem é Lazar Orlov?
Armando riu com gosto.
— Katerina jurou não saber. Para ser sincero, eu também não
quero mais saber desse nome. Prefiro morrer na ignorância, ao
invés de ter certeza de que passei anos procurando por um homem
que não existe. — Os olhos foram para o sol, se fechando ao
responder minha pergunta de antes. — Mas não me arrependo de
tê-lo procurado, me arrependo é de não ter conseguido ser melhor.
Antes de ver os dois juntos, me arrependia de não ter fugido com os
três.
Levantei as sobrancelhas.
— Acho que não seria muito provável tu e a ragazza como um
casal, se tivesse criado os dois juntos. E não gosto de imaginar os
dois sem a chorona.
Chorona, Hope andava merecendo aquele apelido muito mais
do que merecia fominha. Ela se esforçava para ser coroada como
rainha do drama, e eu me rendia a todas as suas manhas. Lembrar
da cena feita no Canadá ao ter descoberto o verdadeiro pai de
Alana me fez gargalhar: a pequena tinha a quem puxar, e a paz
deveria tornar o caos do passado engraçado para meu cérebro.
Armando me olhou como se eu tivesse perdido o final da
minha sanidade.
— Eu pensei que estava fodendo a minha irmã quando achei
os diários.
— É, fiquei sabendo. — E então, cruzou os braços, o filtro
sendo apagado no chão pelo sapato. — Também fiquei sabendo
que Lorenzo vai assumir seu lugar enquanto passa um tempo na
Tailândia.
Tailândia. Finalmente iríamos para a Tailândia — ou, ao
menos, era o que eu queria que os outros pensassem.
— Ele decidiu ficar, ao menos até achar outra pessoa para
liderar. Mas eu duvido que ele deixe a Itália, o homem gosta daqui.
Acho que fui trabalho o suficiente por uma vida para o velho. —
Uma vida sem meu pai seria estranha. Mas talvez Hope tivesse um
dos avôs em sua vida. — Vai ficar também?
— A fominha não faz questão da minha presença. — O homem
finalmente usou o apelido, parecendo magoado com o fato dele ser
o único com quem Hope sempre chorava.
— Ela só tem que se acostumar que não são todos que vão
sorrir de volta. — Armando me olhou como se eu tivesse falado um
absurdo.
— Eu sorrio de volta!
— Tu conversa com ela como se a menina tivesse vinte anos,
e não vinte dias!
— Fazia isso contigo, e tu adorava, moleque!
Revirei os olhos, e me forcei a não sorrir.
— Alana perguntou se quer almoçar conosco. — Por um
instante, ele pareceu que iria aceitar.
— Melhor irem os três. — Mas as chaves saindo do bolso me
falou outra coisa. — São seus últimos dias na Itália, aproveitem — o
homem disse, destrancando o Mercedes.
— Quero aproveitá-las longe daqui.
— Só mais um tempo. — A mão cheia de tatuagens apertou
meu ombro, o homem me dando um meio sorriso antes de entrar.
O carro ligou e eu me desencostei da lataria vermelha escura,
pensando em todo o café que deveria tomar enquanto longe de
Alana. Estava me virando para entrar quando o vidro da janela
baixou.
— Eu me arrependo de muitas coisas, Nico. — E os olhos mel
que me encaravam eram, outra vez, os mesmos do pai que sempre
amei lembrar. — Mas nunca vou me arrepender de ti, filho.

Presente

Fazia anos que não pisava ali. O cemitério que dava para o
mar era estranhamente calmante, e foi minha casa por diversas
noites regadas de álcool. Madrugadas passadas naquele chão,
abraçado a lápide, o cano prateado da arma que sempre estava
comigo sendo tão tentador. Carina sempre me tentou, e era uma
promessa que me mantinha longe dela.
Eu não trazia álcool hoje. Eu, depois de tantas reclamações,
trazia boas notícias.
— Tu ia querer me matar se eu fizesse o que planejei todos
esses anos, não ia? — Dei um meio sorriso, sacudindo a cabeça: se
eu puxasse o gatilho e houvesse outra vida, Carina me acharia até
no inferno e passaria uma eternidade me atormentando. — Tu ia,
mas eu já estaria morto. Eu estive morto, por muito tempo.
A foto parecia mais desbotada, mas ainda estava ali, a lápide
cuidada por Barbara durante meu tempo longe, o sobrenome que
Carina levava sendo o da mulher que eu chamava de mãe. Mesmo
depois de vinte e cinco anos, meu peito ainda apertava ao pisar na
casa que era só dela. Mas respirar já não era mais um trabalho tão
difícil. Não era, eu, finalmente, podendo contar que havia realizado o
que jurei na última vez que a tive nos braços.
— Senti sua falta, amore mio. — Me ajoelhei e toquei seu
rosto, tentando imaginá-la mais velha. Ela já teria cabelos brancos
como eu tinha? Os arrancaria, como vi meu filho fazendo um dia
desses, com o fio prateado que insistia em aparecer perto da sua
testa?
Eu tinha tanto para falar, se fosse falar tudo. Tinha tanto que
poderia passar uma vida inteira lhe contando histórias — ou ao
menos, o que restava da minha. Carina odiava minhas enrolações,
sendo uma eterna impaciente.
Como a filha.
— As crianças estão bem — me mantive no que realmente
importava. — Victor cresceu e formou uma família maravilhosa. E
Nico...
Nickolay teve uma vida difícil, por mais que eu tivesse me
esforçado. Mas ele estava vivo, e continuava com o mesmo sorriso
bondoso com todos que amava. Ele amava, e tinha alguém que o
amava de volta na mesma intensidade. O homem viveria tudo que
eu nunca tive a chance de viver, e aquilo me confortava o suficiente.
— Ele cuidou de Anna. Ele ainda cuida dela, e cuida tão bem!
Meu menino é o homem que iríamos querer que nossa menina
escolhesse, então não se preocupe. Estão todos bem. — Respirei
fundo, falar aquilo para minha mulher parecendo tirar um peso dos
meus ombros. — Eu também estou bem.
Tirei a arma do casaco, removendo a bala que tinha o nome
dela e a enterrando na grama.
— Acho que vou descansar um pouco agora, magrela.

O ar do Canadá era realmente diferente. Ou aquilo era meu


cérebro, exausto depois de mais de dez horas de voo com um
recém-nascido. A fominha colocava todos os dramas do pai no
chinelo, e eu agradecia pelo último uso do jatinho particular.
Mesmo sem ninguém ao redor além de nós e a equipe, nos
rendemos a chupeta. Ela e Hope foram melhores amigas por quase
duas horas inteiras, e então, o bico amarelo, que não lhe dava
comida, virou seu inimigo mortal.
Devia ser por causa das montanhas, pensei, encarando-as ao
sair do aeroporto. A fominha tinha um mês e quinze dias, e dentro
do bebê conforto, parecia um pacotinho com o casaco que usava.
Os olhos grandes observavam curiosos os arredores, a novidade a
deixando quieta.
Nickolay procurava o rosto conhecido que prometeu nos
buscar enquanto os dedos passavam sobre a base do nariz. Havia
ficado um calombo ali, e era a primeira vez que o via incomodado
com um detalhe físico.
— Pare de ser vaidoso, moleque — Armando resmungou,
puxando uma das duas malas que havíamos trazido da Itália. — Já
perdeu metade da orelha, o que é o cazzo de um nariz torto?
Meu marido cruzou os braços, se limitando a xingar em italiano
quando o homem mais velho se adiantou alguns passos à frente.
Bem, não xingar na frente da fominha era uma meta antiga, a nova
se limitando a não xingar em inglês. Ela poderia aprender um
palavrão ou outro numa língua diferente.
— Se a primeira palavra dela for cazzo, Nickolay, que Deus te
ajude. — A risada dele era muito mais gostosa no Canadá.
— Ele tem ajudado bastante, dolcezza. — O braço tatuado
abandonou o nariz e me puxou para perto, meu marido empurrando
a mala restante, a malinha de Hope no ombro.
As unhas que faltavam haviam começado a crescer, mas os
dedos machucados ainda levavam curativos. Dava para ver
cicatrizes novas nas mãos grandes, mas saber que as próximas —
se houvessem mais — seriam feitas por normalidades, me enchia
de conforto.
Com Nico parecia ser igual, o homem não ligando para
nenhum dos machucados. Bem, nenhum, tirando o nariz. Mas eu
não iria perguntar sobre aquilo agora, e a cabeça loira-escura que
aparecia no meio da multidão quase me fez correr.
— De todos que poderiam ter trazido junto de vocês,
escolheram o ranzinza? — Victor reclamou, o sorriso denunciando
que seus sentimentos eram contrários às palavras. Os olhos
suavizaram ao acharem a sobrinha, a alegria parecendo aumentar
ao finalmente verem o irmão. — Bom te ter de volta, moleque.

Na parte da frente do carro, Nickolay e Victor conversavam


animados, eu entendendo a maior parte da conversa quando
prestava atenção. Desde que comecei a me forçar a ver o lado
positivo das coisas, via a Itália como a melhor oportunidade que tive
para não ser mais deixada de fora da conversa daqueles dois.
Armando decidir vir conosco era um conforto conflitante, meu
marido estando feliz por ter sido escolhido, e ao mesmo tempo
culpado por Lorenzo ter escolhido ficar. Nenhum de nós chamava o
mais velho de pai, mas longe de Mantovanni, Nico era chamado de
filho. Sempre que ouvia a palavra, me perguntava se algum dia teria
coragem de falar com minha família novamente.
Oi mãe, aqui é sua filha. Aquela que você nunca acreditou
estar morta, que tal um pão de queijo? Na minha cabeça, o diálogo
soava totalmente aceitável. Quando saía dela, tudo ficava mais
complicado.
Talvez começar ligando para Mila fosse uma boa ideia.
— O que acha que o velho vai fazer em Vancouver? — Victor
quem perguntava, nossa viagem para casa já quase chegando ao
fim. — Arranjar uma madrasta pra gente, talvez?
Nickolay olhar para o irmão como se ele tivesse dito uma
heresia me fez gargalhar com gosto.
— Ria agora. Quero ver essa mesma risada quando tiver que
receber sua sogra em casa. — E eu obedeci a ordem, e ri mais.
Nickolay soltou um longo suspiro, como se eu fosse a difícil
naquela situação, checando a filha pelo retrovisor antes de trazer o
tópico que havia sido esquecido.
— No final, acho que nunca vamos saber quem é Lazar Orlov.
— Armando não descobriu mais nada? — Nico fez que não, a
mão voltando para a base do nariz.
— Tudo que sabia, já te disse por telefone. — E como se
percebesse sua nova mania, forçou a caveira para a coxa, os dedos
estralando, os olhos indo para a neve já alta do lado de fora. — Não
sabe mesmo de nada?
— Sei que o nome verdadeiro dela é Sofia — veio quando
entramos na cidade. — Ou era. Sabe o que aconteceu com ela? —
Nico fez que não.
Olhei para Hope, nossa filha adorando os passeios de carro,
apagada desde que a caminhonete começou a andar.
— Quando eu perguntei pra Barbara, ela me disse que o nome
estava num pedaço de papel — falei, nossa casa ficando cada vez
mais próxima. — O nome tinha sido escrito por Catarina. Era a
mesma letra.
Nickolay levantou uma sobrancelha, achando meus olhos pelo
retrovisor.
— E?
— E isso é tudo que todos sabem sobre Lazar Orlov, e
provavelmente é tudo que vamos morrer tendo certeza. —
Mordisquei o lábio inferior, tendo considerado tantas vezes aquela
suposição. Poderia não ser verdade, mas quanto mais eu pensava
na história inteira, mais fazia sentido. — Quando falei com Barbara
sobre isso, também falei sobre Catarina. E tem uma coisa que só
Barbara sabia: Catarina achava que estava grávida outra vez.
— E como isso tem relação com Lazar, dolcezza? — Nickolay
me olhou como se eu estivesse louca.
E talvez eu estivesse. Talvez fosse o cansaço que vivia em
mim desde que Hope veio ao mundo falando. Mas na minha cabeça,
fazia sentido.
— Barbara disse que achou outros nomes escritos, meses
depois, enquanto limpava o quarto. Era uma lista que tinha sido
amassada, uma página arrancada do diário. Alguns dos nomes
também terminavam com Orlov. — E paramos em frente ao quintal
que tanto me fez falta, dois pares de olhos me encarando,
desacreditados.
— Impossível, Alana.
— Elas iam fugir juntas, Victor. — Dei os ombros. — Catarina
estava escolhendo nomes. Ao menos, é o que eu acho. É
impossível ter certeza, mas não acha um pouco difícil Armando ter
procurado por anos e nunca ter achado nada?
Meu cunhado desligou o carro, o único som sendo o de Hope e
sua chupeta, as duas outra vez amigas. Eu desejava que minha filha
estivesse sonhando com coisas boas, e os dois à frente desejavam,
talvez, não pensar mais sobre o passado.
— Estão entregues. Anna Flávia disse que vai passar a
semana contigo, já foi muito que consegui deixá-la de fora hoje. —
Sorri, eu, apesar do cansaço, ansiosa para ver a amiga que tanto
me fazia falta. — Nós colocamos um berço no quarto que era pra
ser dela. Nico disse que a fominha dorme na cama na maioria das
vezes, mas se quiserem um pouco de privacidade…
— Pode retribuir nossas noites como babás a hora que quiser
— veio de Nickolay, eu vendo seu meio sorriso antes dele abrir a
porta.
Era como se nunca tivéssemos deixado o lugar. Nove meses
fora, e as fotos da entrada continuavam as mesmas. Nicolas, Victor
e nossos sobrinhos nos recebiam sorrindo, e eu sorria de volta,
pensando em todos os porta-retratos que queria adicionar. Era um
pensamento tão normal, e já estava apaixonada por aquela
normalidade, assim como amava quem tinha, e quem me segurava,
nos braços.
Nico beijou minha testa antes de voltar para fora, o italiano
trazendo a última mala, Hope finalmente abrindo os olhos escuros,
encarando os arredores novos.
— Bem-vinda à sua casa, fominha.

Tinha macarrão com queijo no forno e pão fresco em cima da


mesa, a geladeira cheia sendo cortesia de Anna Flávia. Hope teve
sua janta, e agora, eu e meu italiano desfrutávamos da nossa.
Ele comia feliz demais o que chamava de heresia, e sorria para
o bolo de maçã e canela que devoraríamos de sobremesa. Nós
éramos tão normais.
Tão normais, que eu até podia reparar nas normalidades e me
preocupar com elas, ao invés de ficar nervosa com a fominha
sozinha no andar de cima.
— Ok, qual é o problema com o seu nariz? — perguntei
quando o vi pela décima oitava vez com a mão no calombo. Sim, eu
havia contado, e esse era nosso nível de preocupação no momento.
Nickolay enrugou a testa, soltando um longo suspiro antes de,
finalmente, me responder.
— Meu nariz era a única coisa que tinha de parecido com ele.
— Só que ele reclamou sorrindo no final. — Eu sei, é bobo. Depois
de tudo que passamos, estou irritado com um nariz.
Sacudi a cabeça: não era bobo. Não era, e eu entendia.
— Sabe — comecei, pegando mais um pedaço de bolo, o chá
me esquentando tanto quanto olhar para ele. — Quando eu era
pequena, eu achava a mesma coisa. Dizia que a ponta do meu nariz
era igual a de mamãe. Papai dizia que eu era teimosa igual ela. —
Aquela memória também me esquentou. — Você sorri igual ao seu
pai, Nico. Quando olham para Hope, vocês dois sorriem igual.
E veio um suspiro satisfeito, a mão que antes lamentava indo
parar em cima da minha.
— É estranho, não é? — Franzi a testa. — É diferente da
primeira vez. Da praia no México, quando disse que me sentia livre
— ele explicou, e o sorriso, que não deixava seus lábios, era de
puro alívio. — Estou realmente livre. Nós estamos, dolcezza. O que
fazemos agora?
O que fazemos agora?
O choro de Hope escolheu por nós, eu amando aquela
pequena obrigação. Os olhos escuros acharam os meus, o sorriso
mais lindo tomando conta dos lábios que eu nunca cansaria de
beijar.
— O que a gente quiser fazer, italiano.
E nós subimos, os dedos que antes levavam hate, a palavra
agora coberta por hope, apagando a luz.

Nickolay estava nervoso.


Ele poderia negar o quanto quisesse: eu sabia quando meu
marido estava nervoso. E, segurando uma garrafa aberta, o italiano
de pernas inquietas, coçando a barba a cada meio minuto, estava
me deixando tão nervosa quanto.
— Mais vinho? — Ele serviu antes da minha resposta vir, os
olhos ficando no copo cheio de rosé que descansava sobre a mesa
alta.
Nickolay estava nervoso, e eu ia acabar virando aquele copo
inteiro de uma vez.
Mas meu marido não tinha por que estar nervoso. Não era
como se aquilo tivesse sido um investimento ruim, ou que
tivéssemos gastado todas as nossas reservas — ou fossemos
gastar. Dinheiro continuava não sendo um problema, e eu conseguia
ver nos olhos escuros — e nos verdes do irmão, seu sócio —
felicidade.
— É bom, vero? — A pergunta seguiu de Nickolay fazendo o
que eu tinha considerado.
Tive que abafar um riso: que merda que o italiano tinha
aprontado agora para virar um copo de vinho, cheio até a borda?
Ele nunca enchia o copo nem até metade — porque era
deselegante, e Nickolay queria morrer quando eu virava vinho numa
xícara, ao invés de usar uma taça — e ele nunca, nem quando
comprou a vinícola com Victor e me avisou dois dias depois,
pareceu tão ansioso.
— O fazendeiro que nos vendeu as uvas garantiu que…
— Fala logo, italiano — o cortei, o homem desviando os olhos
para o copo vazio, então para o teto de madeira, parando na aliança
que rodava no anelar esquerdo.
E, por um momento, meu estômago gelou, eu sendo a
responsável agora por encher a taça. Por que a atenção foi para o
anel?
Meu cérebro insistia em gritar que havia chegado o dia. Aquele
que eu sempre temi chegar, no qual o italiano finalmente se dava
conta da sua capacidade de achar melhor. Por mais que meu
coração sussurrasse “fica”, meu lado racional sabia que Nico
conseguia muito mais do que uma mulher que cozinhava miojo com
cheddar e cream cheese e chamava de macarronada.
Estava já com a taça na mão, prestes a perguntar o que ele
tinha para falar de tão sério para aquele comportamento quando
Nickolay limpou a garganta, os olhos nos meus ao abrir a boca.
— Alana, quer casar? — Esse homem deveria ter colocado
“infartar a mulher” como missão de vida.
Eu também poderia colocar essa missão entre nossas
normalidades. Não deixar Hope comer terra, comprar uma nova
cortina para o banheiro e treinar o coração do meu marido soava,
tão, tão normal. Virei a taça — porque era minha vez — antes de
sacudir a cabeça e falar.
— De novo, italiano? — Coloquei a taça vazia na mesa,
Nickolay se aproximando com a combinação que eu mais gostava
de ver nele. Jeans e camiseta branca era um combo que, no
italiano, deveria ser considerado tão ilegal quanto ele sussurrando
safadezas no meu ouvido.
Mas não eram safadezas que ele estava prestes a sussurrar
quando me puxou pela cintura, as mãos contornando minha bunda
enquanto os lábios tentavam comprar meu sim.
— Uma festa, com vinhos e um bolo. — Ele não precisava
comprar nada: tudo que Nico queria, eu dava de graça e sorrindo. —
Café, música, boa comida. Agora que estamos livres, eu pensei que
poderíamos…
— Casar de verdade? — Só que vê-lo querer algo que ele já
tinha era engraçado. — Isso já é de verdade pra mim. Você quer
casar, Nico? Você me quer de branco na frente de todo mundo que
conhece? — O homem, que sempre sabia o que falar, tentar
começar mais de três vezes uma resposta e nada sair, me fazia
entendê-lo bem demais. — Você quer. — Nickolay estava corado
nas bochechas, a mão voltando para a barba, ele limpando
novamente a garganta.
— Pode usar qualquer cor, dolcezza. Podemos casar na igreja,
ou com um ministro, ou pode ser apenas uma festa, aqui na
vinícola. Convidar a cidade toda, ou apenas todos que queremos
próximos. — A atenção voltou para a garrafa, agora vazia, o rosé
permanecendo no copo enquanto a chuva que caía do lado de fora
aumentava. Tempestades de verão naquela cidade eram tão raras
quanto vê-lo sem saber o que dizer. — Nós podemos chamar sua
família.
Tão raras quanto eu sem ter uma resposta.
— Se quiser — o homem emendou, enrugando a testa quando
não obteve nada de mim. — Não quer?
Fazia nove meses desde meu último dia na Itália. Desde que
voltamos para nosso lar no Canadá, meus dias eram ocupados por
choros e fraldas. Macarrão com queijo e muffins, minha comida
queimada. Os primeiros passos de Hope, a primeira palavra — que
não foi cazzo — todas as vezes que Nickolay me fazia rir. Foram
nove meses que eu só deixei minha cabeça se ocupar com
pequenas coisas.
Falar com minha família não era uma pequena coisa.
— Um casamento, com minha família.
Falar com minha família, sendo que, legalmente, eu estava
morta, era a maior coisa que existia na minha mente. E minha
mente estava se negando a pensar em como fazer isso, por mais
que, sempre que Hope balbuciava qualquer coisa próxima de uma
palavra, eu ponderasse se Astrid seria um nome difícil demais de
falar. Ou se minha mãe gostaria de ver a neve comigo e com Anna
Flávia, toda vez que eu fazia um chocolate quente e ia pra fora no
branco. Meus irmãos se dariam bem com Victor? Até ontem, eu me
perguntava se meu pai teria gostado de me levar até Nico, no
casamento que eu vivia criando na minha mente.
Hoje, Nico me dava o começo da possibilidade.
Só que eles não entenderiam, a voz dentro da minha cabeça
insistia em repetir. Eles iam fazer todas as perguntas que eu não
poderia responder, e eu me sentiria a pessoa mais ingrata da
família.
— Bella, nós podemos fazer isso juntos, se quiser. Passo todos
os minutos necessários explicando para todos os Martins como a
culpa de tudo é apenas minha.
Eles não entenderiam, mas Nico ficaria do meu lado, e tentaria
comigo.
— Italiano? — Porque Nico prometeu que sempre ficaria.
— Si?
E eu coloquei minhas mãos nas bochechas cobertas pela
barba, os olhos escuros me encarando curiosos. Nico era tão
quente quanto o sorriso que me dava, e sorrindo de volta, decidi que
era minha vez de pedir.
— Casa comigo.

Arrumar um casamento dava mais trabalho do que imaginava


— e ele nem seria grande. Era engraçado — e fofo — como
Nickolay estava mais empolgado do que eu ao precisar decidir
sobre flores, escolher comidas e provar o menu.
Provando o vestido um dia antes do casamento, aprendi que
talvez ele não tivesse sido o único empolgado com a última parte.
Estava apertado.
Se não tivesse escutado Anna Flávia e comprado o primeiro
branco que achei online, com certeza estaria chorando agora. Eu já
queria chorar, mesmo tendo uma costureira trabalhando na solução,
afinal.
Não era como se eu não quisesse me casar, ou não me
importasse com o casamento. Queria falar que era dele na frente de
todos tanto quanto o italiano me mostrava precisar. Eu só estava…
nervosa.
Só que daquela vez, a culpa nem do italiano era.
Os convites foram o primeiro detalhe a ser decidido, e o que
mais me empolguei para escolher. O papel grosso branco tinha as
letras em ouro rosa, os nomes dos meus pais ficando lindos naquela
cor. Nico mentia todos os dias que eu era a mulher mais corajosa
que ele conhecia, assim como uma vez por semana, me perguntava
se eu não gostaria de usar o número que nunca fora discado. Eu
deveria ter ligado, ao invés de ter enviado um convite por carta.
Deveria ter chamado Mila, mandado convites para todos com
meu nome verdadeiro, e por que Nickolay me deixou fazer aquilo?
Um convite, com um nome que nem meu era! Era óbvio que eles
pensariam ser um erro: eu também jogaria fora, ao invés de mandar
o RSVP.
Naquela sexta, um dia — uma noite — antes do casamento,
parecia tarde demais para ligar. Não me importava em entrar com
Armando, repeti mais algumas vezes em pensamento, Hope muito
entretida com meus cabelos, eu me esforçando muito para deixar o
sorriso no rosto.
— Eu amo casamentos — Flávia disse, estirada no tapete
felpudo da sala, a lareira crepitando.
— Eu já sou casada, Fla. — Era outubro, e decidi que não
contaria as horas para a festa, mas os dias para o aniversário da
fominha. Ela tinha uma fantasia maravilhosa de abóbora, e eu
poderia fazer hoje mesmo uma sessão de fotos com minha
bochechuda vestida de amarelo e laranja.
— E mais que casamentos, eu amo despedidas de solteira. —
Eu não contaria as horas e ficaria feliz. Eu não deixaria minha
burrice interferir na felicidade dele.
Faltavam dezesseis dias para Hope completar um ano, e eu,
teimosa e covarde, deveria ter ligado.
— Flavia…
— E você nunca teve uma, Lana! — Queria perguntar se ela
teve, a história da mulher não sendo muito diferente da minha. — Eu
não acredito que a babá cancelou no último minuto.
— Não tem problema. — E meus cabelos pararam de ser
interessantes, a fominha honrando seu apelido e pedindo pela
mamadeira. — De verdade. Acho que eu já tive a minha cota de
festas na vida — confessei, me levantando com Hope e indo para a
cozinha.
— Você tem vinte e cinco anos! — Flávia reclamava, ainda no
tapete, Ella entretida com o desenho que passava na televisão. —
Eu tenho trinta e sete e ainda me sinto longe de completar metade
dessa cota. Do jeito que as coisas andam, vou precisar esperar Ella
ficar mais velha e ir com ela gastar as noites de festa que ainda
preciso viver.
— Boa sorte! — E eu quase respondi para ela ir com o mais
velho, Mattia tendo se transformado nos últimos meses, a faculdade
o deixando perto demais de como eu era antes do meu italiano.
Hope pegando a mamadeira e tomando enquanto andava me
mostrava como o tempo passava rápido. Era também uma das
coisas mais fofas que eu via nos meus dias e noites, e me fazia
derreter com todas as manhas que vinham quando a fórmula
acabava.
— Bem, eu sou a noiva, não sou? — voltei com um saco de
Doritos e uma garrafa de vinho, os copos de Coca-Cola já vazios. —
E como noiva, eu declaro que nossa noite com as pequenas vai ser
a melhor despedida de solteira que eu poderia ter! — E eu soei
realmente empolgada, até vir meu bocejo.
— Ao menos, temos Patrulha Canina — Anna Flávia lamentou,
antes de esconder o rosto com uma almofada e abafar um grito.
Hope realmente gostava de um drama, e a visão dela se
sentando — mais para caindo de bunda no chão — e rindo da tia
me fez pegar o celular sobre a mesa e gravar.
“Minha despedida de solteira está assim animada.”
A resposta veio rápido.
“Seu NOIVO não consegue falar agora, mas minha
sobrinha, depois de Ella, é a coisa mais adorável que já vi.”
Claro que eu discordava de Victor. A fominha tendo imitado o
pai, gesticulando como o italiano fazia ao pedir a mamadeira, era
insuperável na fofura. Sorri: aquela despedida de solteira também
estava insuperável, e era tudo que eu queria um dia antes do meu
casamento.
Foi cantarolando a música tema do desenho que eu abri a
garrafa, provando um gole do vinho que, na minha boca, parecia ter
notas de maçã. Nickolay se orgulharia de mim se eu falasse sobre
notas sentidas no vinho, por mais que, para mim, aquilo era minha
fome falando mais alto. Estava quase fazendo o mesmo com o
salgadinho — aquele harmonizava perfeitamente com o cabernet
sauvignon escolhido, e meu marido balançaria a cabeça caso
ouvisse aquilo — quando escutei a campainha.
— Graças a Deus pela pizza! — E os olhos de Ella cresceram,
a pequena entendendo desde cedo o que era bom. Hope gostava
muito mais da mamadeira, e indo até a porta, achava engraçado
como a menina detestava com louvor sua papinha de maçã.
Astrid também não gostava de maçãs. Astrid, também, me
encarava do lado de fora da porta. Não era a pizza que minha mãe
segurava, e por um momento, achei que estava sonhando. O sonho
de uma bêbada, que tomou todas na despedida de solteira e era
confortada pelo seu subconsciente.
— Eu trouxe pão de queijo. — Ela estendeu o saco que
carregava, e eu o escutei cair quando me joguei nela, do mesmo
jeito que Hope fazia comigo quando queria a mãe.
Astrid me olhou como se eu fosse a maior das loucas quando
perguntei se ela me odiava, e eu me esforcei para parar de chorar
antes de voltar a me virar para a sala. A mulher mais velha sorria,
avisando que queria saber sobre tudo, e eu vi os olhos castanhos-
escuros crescerem ao perceber quem caminhava em nossa direção.
Hope era rápida demais para seus onze meses e quinze dias,
a mamadeira esquecida no chão com ela vindo me pedir colo, eu
por um momento esquecendo quem estava atrás de mim. No meu
colo, a fominha se agarrava na minha roupa, escondendo o rosto no
meu peito ao ver que eu não era a única na entrada da casa.
— Meu bebê tem um bebê. — Fiz que sim, minha pequena
parecendo querer entrar de volta no meu corpo me fazendo dar
risada.
— Essa deve ter puxado a timidez do pai, por mais que só eu
conheça esse lado modesto do italiano — falei em português, a
cabecinha outra vez levantando, como sempre fazia quando não
entendia o que a mãe falava. — O nome dela é Hope. — E achei os
olhos grandes da pequena, mudando para o inglês. — Hope, essa é
a sua avó. Você consegue falar vovó?
— Ovó? — Ela sorriu quando eu sorri, e a mulher estranha
fazer o mesmo a fez voltar para a toca do meu peito.
— Isso, fominha! — encorajei, me virando para minha mãe. —
Ela vai ficar menos tímida, só precisa aprender quem é você.
O pacote de pães de queijo congelados retornou para as mãos
da minha mãe, e, do mesmo jeito que Hope e ela precisavam se
conhecer, eu e Astrid voltávamos a nos reconhecer aos poucos.
— Fominha?
— Ela pedia meu peito de meia em meia hora nos primeiros
meses. Foram meses difíceis, né meu amor? — Beijei a cabeça, as
mãozinhas grudadas na minha blusa, o cheiro de Hope de shampoo
doce sendo tão gostoso quanto o cítrico do pai. — Mas a gente te
ama mesmo contigo sendo um saquinho sem fundo.
— Você fazia igual com a mamadeira. — A frase me fez sorrir
ainda mais, amando ouvir todas as nossas similaridades.
Eu estava arrumada demais para quem passaria a noite em
casa, e já sonhava em tirar a roupa apertada e livrar os seios do
sutiã. Não havia mais ninguém atrás da minha mãe e eu fechei a
porta, Astrid não desgrudando os olhos de nós duas, do mesmo jeito
que sabia que seria difícil Hope desgrudar de mim.
— Papai também veio? — perguntei esperançosa, mesmo
sabendo que ali, agora, era apenas Astrid. Ela fazer que sim era
melhor que a pizza que eu via chegando pela janela. — Será que
ele não quer conhecer Hope antes do casamento?
Minha mãe mordeu o canto do lábio, eu me vendo nela, antes
de responder.
— Ele foi falar com outra pessoa primeiro.

Fazia tempo que eu não dormia tanto. Talvez uns bons onze
meses, e despertar sem escutar Hope era estranho. Ainda de olhos
fechados, lembrei da noite passada e sorri, a ação sendo uma que a
cada dia ficava mais frequente na minha vida. Era bom viver
sorrindo, e era bom saber que contava com duas babás no andar de
baixo.
Era bom também o que eu sentia debaixo das cobertas. O sol
brilhava por entre as árvores do lado de fora, o clima ajudando a
fazer o dia ainda mais perfeito. Os lábios que percorriam o interior
das minhas coxas me faziam agarrar o lençol, tornando o começo
daquela manhã impecável.
— Eu gosto desse sonho — sussurrei, mordendo o lábio ao
sentir a primeira lambida. Os sonhos da noite passada eu também
tinha amado, Nickolay no meio das minhas pernas fazendo muito
mais barulho do que agora.
— Eu também. — A voz rouca reverberou na minha boceta e
eu precisei cobrir a boca com as palmas das mãos, não confiando
na minha capacidade de manter o silêncio sem ajuda.
Nickolay descobriu a cabeça, os olhos fixando nos meus
enquanto o italiano me chupava com vontade. Os raios de sol me
impediam de enxergar direito seu rosto, os dedos que levavam
Hope achando meu seio por debaixo da camisola. Deu para sentir o
sorriso quando me pressionei mais contra sua língua, e eu suspirei
frustrada quando ele subiu até minha boca. O beijo me dava gosto
do café que ainda precisava tomar, me fazendo imaginar que a noite
dos meninos havia sido bem mais agitada.
Não tinha nada para reclamar da minha, as duas taças de
vinho junto das conversas que viraram a noite tendo feito minha
despedida perfeita — foram minhas últimas, por um tempo, descobri
quando já era madrugada. Tudo nas últimas vinte e quatro horas
andava merecendo aquele adjetivo, até mesmo as provocações do
italiano. Nico mordiscava meu pescoço e tampava minha boca, suas
tatuagens contra o sol.
— Resolveu aproveitar as babás e chupar sua noiva antes do
casamento? — Usar da língua-mãe do meu marido era minha
cartada para ele parar de nos provocar.
— Sua boca em italiano é deliciosa — ele gemeu baixo, a boca
indo para meu seio, os dentes roçando no bico assim que minha
mão achou seu pau. — Fala que estou te deixando com vontade de
foder.
Como se não fosse óbvio que estava. Aquela era a frase que o
homem, sem dúvida, mais gostava de ouvir sair da minha boca
naquelas horas, e eu agarrei seus cabelos escuros, puxando o rosto
para cima.
— Você… — Os olhos do italiano também eram escuros, e
perceber um muito mais escuro do que o outro me fez arfar. — Tá
com um olho roxo no dia do casamento!
A despedida dos homens realmente foi mais agitada, e eu,
lembrando das palavras da minha mãe, me perguntei se queria
saber o quão agitada ela tinha realmente sido. “Seu pai foi falar com
outra pessoa primeiro” combinava demais com aquele olho roxo.
Nickolay tirou todas as minhas palavras ao se enterrar em mim,
o filho da mãe com certeza imaginando que algo sobre o
machucado sairia da minha boca. Daquele jeito, eu gostava de ser
calada.
— Pode beijar pra sarar, dolcezza. — Estreitei os olhos, mas o
italiano acabou com minha expressão brava ao prender meus
pulsos com uma das mãos, os pressionando contra a cama. Ele me
mantinha quieta com estocadas rápidas e curtas, a palma contra
minha boca sendo de ótima ajuda. — Foi um acidente. Tu não
pergunta do acidente, e eu não pergunto o que fez para estar com
essa cara de culpada.
E foi minha vez de dar um sorriso safado, que ele com certeza
sentiu, Nico se enterrando por completo em mim antes de me
colocar por cima.
— Eu não estou com cara de culpada — o contrariei enquanto
jogava a camisola no chão, as mãos tatuadas encaixando nos meus
seios antes de descerem para meus quadris, incentivando um ritmo
longe de calmo. — E isso é injusto!
— Posso compensar essa injustiça, bella. — E ele subiu os
lábios até meu ouvido. — Só lembre de gozar quietinha.
Era injusto o quão mais forte que eu Nico era, assim como me
enchia de tesão o jeito que, para ele, era fácil demais me colocar na
posição que bem queria. Num instante estava sentada nele, no
outro, olhava nosso reflexo no meu espelho favorito. Meus dedos
outra vez torciam o lençol, meus joelhos e cotovelos no colchão
enquanto o italiano me fodia do jeito que eu amava.
Filho da mãe, eu ia gozar em segundos, e pela mão cobrindo
minha boca, ele sabia. Mordi os dedos contra meus lábios,
respirando mais rápido a cada estocada. Nickolay também se calou
na minha pele, seus grossos chupando meu pescoço, eu longe
demais de me importar com a marca que ficaria.
Escutar ele sussurrar um quietinha no meu ouvido foi o que
bastou, a voz rouca sendo meu melhor gatilho. Cravei os dentes
nele, minha boceta contraindo, Nickolay não diminuindo o ritmo. Era
quase impossível ficar quieta, era impossível não ficar hipnotizada
com ele prestes a me seguir.
Ainda recuperava meu fôlego quando ele saiu de mim, o
italiano apertando os olhos enquanto gozava na minha coxa.
Sacudi a cabeça: tarde demais para nós nos lembrarmos de
fazer aquilo. Deitando com ele na cama, sujando o lençol, me
perguntei se minha cara de culpa ainda estava igual, ou tinha
aumentado.
— Vou chegar com um olho roxo mais vezes. — Se estava
maior, Nico resolveu ignorar.
— Ridículo — provoquei, os raios de sol o fazendo cobrir os
olhos com o antebraço, o sorriso voltando para os lábios. — O que
cê tá pensando?
— Se é hoje que vai decidir que fez uma loucura, e finalmente
fugir de mim. — E eu revirei os olhos, achando o relógio digital que
marcava nove e vinte. Fui presa num abraço quando tentei me
levantar, meu marido resolvendo me esmagar e indo para cima de
mim.
— Você vai nos atrasar com seus absurdos, italiano.
— É a noiva, tem carta branca para atrasar quantas horas
quiser. — Hope choramingando no andar de baixo me salvou, Nico
saindo da cama depois de um último beijo. — A fominha precisa
aprender a ficar sem um de nós por mais tempo — ele já colocava a
calça quando reclamou.
E eu sacudi a cabeça: nenhum dos dois estava exatamente
preocupado em fazer a fominha ficar longe de nós por mais tempo
que o necessário, Hope sendo nosso grudinho bom. Mas com Nico
vestindo a camiseta, pensei que talvez fosse esperto, depois de
ontem, acostumar a grudinho a ficar, pelo menos, com os tios.
Ou nós simplesmente daríamos conta de dois.
Ainda estava nua na cama quando os lábios grossos se
aproximaram para um último beijo, os olhos de Nickolay brilhando
contra o sol. Ele sorria, e Hope, eu via todos os dias, tinha o mesmo
sorriso do pai.
— Te espero no final do altar, dolcezza. — Nico fechou a porta,
me deixando sozinha com meus pensamentos.
Mas eu, outra vez, não estava sozinha, e segui para o
banheiro. Abri o registro, o chuveiro esquentando, eu molhando os
cabelos e pegando o shampoo que tinha o cheiro que o italiano
amava.
Menos de três anos, e lembrava de estar tão perdida debaixo
da água morna. O enjoo era pelas ressacas, os arrepios, pelas
batidas que ouvia. Olhava para trás com medo, a morte em lugares
onde ela não deveria existir. Respirei fundo, minhas mãos voltando
para a barriga, como fiz por meses antes de ter minha filha nos
braços.
Hoje, a única morte que existia era o antigo apelido do homem
que me trouxe de volta à vida. O italiano, que me dava outra vez um
pedacinho dele, me fazia ter a resposta do que um dia me perguntei.
Lembrava que estava na frente da faculdade que nunca
terminei quando a pergunta veio à minha cabeça. Uma vida sem
fantasmas era sempre tentadora de se imaginar. Uma vida sem
fantasmas era, também, tão difícil de se conseguir. As dores faziam
parte do caminho, uma existência apenas feliz sendo uma utopia.
Meu marido fazia todas as minhas dores crônicas menores
com seus beijos. Por mais difícil que meus fantasmas fossem, eu
sabia que enfrentaria todos eles outra e outra vez para ter uma vida
com Nickolay. Mesmo quando acordava do pior pesadelo, tê-lo ao
meu lado era o suficiente para me dar calma.
Por mais vermelho que tivesse em nosso passado, o colorido,
no final, venceu. Nico foi o responsável por trazer toda a minha cor
de volta, e ele pintava o meu mundo com as dele cada dia mais um
pouquinho. Alcançando a toalha, vi o novo positivo em cima da pia e
sorri.
Eu não mudaria nada.

Nem estava tão feio. Não, estava aceitável, o meu rosto tendo
vivido dias muito piores. O roxo que contornava o inferior do direito
não era nada perto da minha orelha esquerda, ou dos dias — meses
— que fiquei sem algumas das unhas.
Normal o suficiente, decidi ao terminar o nó da gravata. O
último terno que havia usado, ainda estava na Itália, eu tendo me
apaixonado por me vestir de forma mais normal do mesmo jeito que
me apaixonava pela minha vida simples a cada dia.
Simples. Era uma mentira usar aquela palavra para uma vida
com ela: Alana passava tão longe do simples. Ainda assim,
simplicidade era algo que ela vivia querendo implementar na nossa
vida. Minha mulher dizia que o vestido que tinha escolhido era
simples, e eu não conseguia — nunca consegui — ver algo nela
merecedor do adjetivo.
Não, Alana não era simples, e vê-la vestida de noiva passaria
longe do simples. Ver pelo reflexo Esteban encostado no batente da
porta era infinitamente mais trivial.
— Oi, filho. — E eu quase ri: filho. Eram muitas as pessoas me
chamando daquilo nos tempos de agora.
Sorria para todos que usavam o título, mas só dois eu
chamava de pai.
— Senhor Martins. — Ele estava vestido, os cabelos
arrumados para trás, a postura impecável, bem diferente da noite
passada. — Nunca vou conseguir me desculpar o suficiente: eu
sinto muito — falei ao me virar.
Me desculpava, mas era eu quem levava o olho roxo. Ver
aquilo deveria deixá-lo bem mais suave com o homem que lhe
roubou a única filha — ou ao menos, era o que esperava acontecer.
— Aposto que sente. — O mais velho cruzou os braços, o
terno claro contrastando com o meu escuro. — Astrid quer te
assassinar. — Levantei as sobrancelhas, a informação confirmando
minhas dúvidas sobre as intenções da mulher, ela nem ao menos
me olhando na cara quando cheguei naquela manhã. — Consegui
assustar você?
— Se ela for como Alana, tenho certeza de que vai conseguir.
— Cocei a barba, não querendo que aquela similaridade fosse
verdadeira. — Posso pedir para ela esperar até o final do
casamento?
— Ninguém vai te matar, moleque. — Quem interrompeu foi
Armando, Lorenzo e ele entrando logo atrás do pai da minha noiva.
Noiva. Finalmente usava aquela palavra de um jeito bom.
— Que porra é essa no seu olho? — Sacudi a cabeça antes de
virar a cara.
Realmente tinha sido o único sóbrio da noite. Estava para
responder quando escutei o choro se aproximando, a mulher que
aparentemente queria a minha cabeça entrando com a pequena que
parecia igualmente brava. Hope tinha a mesma tenacidade de
Alana, assim como copiava sua paciência.
— Ela não para de chorar, eu acho que Hope não me entende.
Meu amor, não precisa ter medo da vovó! — Dava para reconhecer
a frustração de Armando em Astrid, ele tendo demorado alguns
bons meses para conseguir ficar com a fominha sem ela abrir um
berreiro. — Flávia disse para eu trazer a pequena para você, já que
minha filha, como toda boa noiva, está atrasada.
Era engraçado como nossa filha parecia só ficar à vontade
com poucas pessoas. Lembrava com um pouco de tristeza o quanto
Nicolas não era seletivo, semanas atrás tendo comentado com
Alana sobre a memória. Perguntava se o que eu tinha dado não era
o bastante para o menino querer o colo de todos, minha mulher
pedindo para eu parar com minhas besteiras.
As crianças eram diferentes, e ela me fez entender bem
demais suas palavras. Aprendia tudo que Alana falava quando em
cima de mim, e tinha até brincado que poderíamos tentar mais um.
Ela respondeu que a desculpa de Hope estar ficando mimada era a
melhor que poderia achar para ocuparmos o berço do segundo
quarto.
Mas nós ainda não estávamos tentando, por menos
cuidadosos que algumas vezes insistíssemos em ser.
— Vem, dolcezza. — Hope ainda soluçava quando parou nos
meus braços, as mãozinhas amassando minha camisa. Alana não
ligaria, e eu com certeza não liguei para a pequena destruindo o que
antes era liso.
Os olhos claros de Lorenzo eram ótimos em julgar, e já
escutava a bronca que viria quando ficasse sozinho. Deixa a
ragazza fazer o que bem entende, eu não fazia isso contigo, e me
sentia um pouco culpado por aquilo ser a verdade, Alana sendo
muito mais firme do que eu.
Até Armando se rendia às manhas de Hope, e agora que se
davam bem, o velho a ganhava sempre com a fruta favorita do
momento quando vinha visitar.
— O que foi, cuore mio? — Minha filha deu um suspiro sofrido,
o rosto molhado já escondido no meu peito. — Está com vergonha?
Alana era, definitivamente, mais firme. Ainda assim, era por
Alana que a fominha sempre chamava.
— Mama? — A voz veio abafada, e eu já procurava o que
sempre trazia comigo nos últimos meses.
— O papai serve? — arrisquei, os olhos iguais aos meus me
encarando, vermelhos. A cabecinha fez que não, os cabelos da cor
dos meus balançando. Escutei uma risada abafada, e continuei em
italiano. — Se falar que ela é dramática como o pai, te mato.
— Vai matar o irmão agora, moleque? — Victor riu, entrando
com seu mais velho. Mattia estava com a pior cara de todos nós, e
por mais que houvesse ameaças e um olho roxo, eu abraçava
sorrindo aquela minha normalidade.
— E se o papai tiver o senhor coelho? — O coelho de pelúcia
sempre arrancava um sorriso dela, e não foi diferente naquela
manhã. — Papai serve agora? — Ela fazer que sim conseguiu
arrancar uma risada da maioria no quarto, Hope abraçando seu
brinquedo, um suspiro satisfeito ao se encostar com ele em mim. —
Ela comeu? — Astrid já saía, o rosto derrotado, quando perguntei.
Ela levantar a papinha que segurava me deu certeza do
desgosto da neta.
— Ah, maçã. — De canto de olho, o avô ranzinza deu os
ombros, murmurando um “ela que insistiu”. — Hope detesta maçã.
Não sei como, Alana me obrigou a gostar durante os cinco primeiros
meses disso. E se nós tentássemos a que gosta, hum? — perguntei,
obtendo zero resposta.
Tinha que admitir que, por mais que a fominha estivesse
treinando para ser a rainha do drama, ela dava muito menos
trabalho do que minha vida antiga. Não podia nem mais reclamar
sobre demoras para dormir, Hope decidindo desde o mês passado
que apagaria sempre depois de um bom choro ou uma boa refeição.
— Igual ao pai — veio de Armando, o homem arrumando os
cabelos não mais raspados em frente ao espelho, os olhos mel
achando os meus por um segundo.
— Alana também não era muito diferente — era Astrid quem
dizia, voltando para a sala com o carrinho. — Tinha dias que ela
chorava e chorava, e ninguém sabia o que fazer. Eram as coisas
mais peculiares que a faziam parar. — Ela sorriu para Armando ao
continuar. — O bichinho dela era um gatinho.
Colocando Hope no carrinho, vi a tempo o sorriso que o
homem tentou conter. Armando voltou a sua eterna cara irritada, e
talvez a pequena que eu cobria estava na fase de gostar do difícil,
visto seu novo favorito.
— Pronto para casar?
— Se minha noiva não tiver fugido — respondi Lorenzo,
esfregando os círculos úmidos na camisa branca. Aquilo grudando
era, sem dúvida, purê de maçã, e nós dois éramos os últimos dentro
do cômodo.
Ah, Hope.
— Ela não fugiu, vero? — Esfreguei mais, e a possibilidade,
irritantemente, não deixava a minha cabeça: ela poderia desistir. Ela
poderia ver a família, e repensar o que fazia comigo longe de todos
que amava, agora que era livre.
Alana era livre, do mesmo jeito que eu era. Alana era livre, e se
ela escolhesse ficar, agora que poderia ir embora, eu nunca mais
duvidaria da minha sorte. Por cima da camisa, tateei o pingente que
estava sempre comigo, nossa promessa cravada atrás da santa.
Fica.
— Não sei por que insiste nessas besteiras, filho. — Ele só
usava aquela palavra quando estávamos sozinhos, e eu me
perguntava se era em respeito ao amigo.
— Pai, Alana sempre soube que poderia escolher partir. — Eu
também só a usava quando Armando estava longe.
— E o que você faria se ela fosse embora? — Franzi a testa:
não era óbvio?
— A deixaria ir — suspirei, arrumando uma última vez a
gravata. — Eu iria para onde ela fosse por Hope, mas eu a deixaria
ir se ela pedisse.
Tinha brilho demais nos olhos azuis, a mão limpa de tatuagens
apertando meu ombro.
— Todos os seus pais se orgulham de você, filho. — E ele,
finalmente, sorriu. — Vou te contar um segredo: sua mulher
implorou para eu não te deixar fugir.
Puxei uma respiração, meu sorriso, largo.
— Che?
— Ela vai ficar, Nico. Tira esse olhar nervoso da cara, porque
Alana já me disse que se você quiser, ela fica para sempre.

Anos atrás, eu me casei. Quem arrumou minha gravata havia


sido meu falecido sogro, a cerimônia sendo uma de sorrisos falsos e
obrigações. Não tinha amor em um contrato, e eu dizia que aceitava
sabendo o que me esperava, pelo que achava que seria para
sempre.
O meu sempre de agora só me trazia calor. Na vinícola que
comprei com meu irmão, no segundo domingo de outubro, eu
esperava debaixo do sol já não mais tão quente do outono quem
faltava aparecer. Do altar improvisado, via Hope dormindo no
carrinho, o sorriso me dizendo que a pequena sonhava com uma
vida boa abraçada ao seu coelho. A grama da parte de trás havia
sido tomada por cadeiras, a cerimônia íntima enchendo o jardim do
mesmo jeito que a mulher que aparecia, agarrada no braço do pai,
enchia meus olhos.
Figlia di puttana, por que tão linda? E tinha uma bola na minha
garganta, meu coração apertando por, finalmente, um bom motivo.
Não tinha como aquele vestido ser simples nela, e os lábios
vermelhos que sorriam para mim continuavam tão tentadores
quanto na nossa primeira noite. Minha mulher andava segurando o
pai e branco, as unhas curtas, as flores do buquê combinando com
as pequenas presas junto ao coque, e a falta de palavras era um
consenso.
Alana veio, e me sentia idiota pela dúvida ter sequer passado
pela minha cabeça. Os lábios finos poderiam ser mais quietos, mas
ela sempre me falou em ações o que não conseguia em palavras.
Alana confiava em mim antes de dizer confiar, assim como contou
sobre seus sentimentos com gestos, só depois me deixando escutar
o primeiro eu te amo.
— Não vai falar que eu tô bonita, italiano? — As palavras
fizeram eu dar uma risada nervosa, Esteban entregando a filha para
duas mãos tatuadas que tremiam.
— Bellissima. — Ela apertou forte as dela contra o braço que
agarrava, o sorriso me fazendo querer roubar o beijo que só deveria
ser dado no final.
Eu tinha um olho roxo e até horas atrás, suspeitava que o
casamento poderia ter sido a pior ideia da minha vida. Qual era
mesmo a frase que Lorenzo insistia em usar para me perturbar?
Para que mexer no que está quieto, sim.
Havia testado minha sorte uma última vez e perturbado nossa
quietude com um desejo que achava ser só meu. Minha mulher
gostava de me provar errado, e ao seu lado, eu tentava prestar
atenção no que era falado. Alana me confessou querer aquilo tanto
quanto eu, e meus olhos acabavam sempre voltando para qualquer
parte dela durante a cerimônia curta. Eu estudava os olhos cor de
mel — fixos no ministro — quando escutei alguém atrás de mim
limpar a garganta.
— Os votos, Nico — Lorenzo sussurrou, me cutucando nas
costas.
E eu senti meu rosto quente, do mesmo jeito que senti da
primeira vez que ele nos pegou fora do quarto. Eu, prestes a
apresentar Alana para todos como minha noiva, e perdendo a
capacidade de raciocinar ao vê-la descendo as escadas, ela
matando meu cérebro com um vestido e um sorriso.
Sentia que ela matava um pouco do meu lado racional a cada
dia. Eu, com certeza, encarava os olhos brilhantes por mais tempo
do que deveria, e já conseguia ouvir o próximo limpar de garganta
pela minha demora.
Bem, meu lado racional talvez estivesse querendo adiar a
morte que poderia vir com aquele meu começo.
— Alana não sabe cozinhar, é péssima em qualquer esporte e
fala mais do que deveria — contei olhando para os convidados, de
canto de olho vendo os cor de mel estreitarem. — Ela também é
esforçada em tudo que faz, tem uma coragem enorme e consegue
te dar paz com apenas um olhar. — E eles suavizaram, os meus
quase voltando para ela. — Alana vive tropeçando, por mais que eu
fale para tomar cuidado. Então comecei a reparar no jeito que ela
anda, e..
Puxei o ar ao me virar: era impossível ficar longe por muito
tempo naquele dia. Tinha outra vez uma bola na minha garganta, e
outra vez, era um bom sentimento que fazia ela estar ali.
— Tu anda olhando para cima. — Ainda era estranho as
lágrimas querendo vir por felicidade, ainda era Alana quem as
derrubava primeiro. — Do meu lado, tu nunca olhou para baixo.
Nunca vai precisar olhar para baixo me tendo ao lado, Alana. Nem
tu, nem nossos filhos. Então diz que passa uma vida comigo, e eu
prometo nunca te deixar cair, dolcezza. — O sorriso dela me dava
uma resposta antes das palavras. — Por mais que tu olhe para
cima.
E palavras não foram necessárias, Alana roubando o beijo que
eu tinha me controlado para não dar e provando as minhas serem
verdadeiras. Eu também fiz todos verem que as minhas promessas
não eram vazias e a segurei, minha mulher e saltos altos não sendo
a melhor das combinações para equilíbrio.
— Nico, eu… — Ela estava nervosa, mas eu não via nenhum
motivo para tal depois de ganhar seu sim. — Eu amo você. — Não,
definitivamente não havia motivo para eu ficar nervoso. — Eu
sempre vou amar você.
Ainda assim, escutei os dedos estralando, o lábio inferior
sendo mordido antes dela soltá-lo e continuar.
— Mas eu esqueci de escrever os meus votos! Eu esqueci, e
eu tô me sentindo a pior pessoa do mundo por causa disso, mas eu
juro que tem uma explicação, e ela é boa, pelo menos eu acho que
é. — Só que, apesar do nervosismo, tinha um sorriso ali.
Estava prestes a responder que um eu te amo era mais que o
suficiente para mim, eu preferindo escutar outras coisas da boca
dela do que frases bonitas. Alana se aproximou, talvez querendo
que apenas eu a ouvisse, esquecendo que o microfone estava na
mão dela.
— E você lembra daquela vez que eu falei das cem camisinhas
em dois meses? — Fiz que sim, rindo: ela tinha sussurrado no
microfone. Ela estava tão vermelha quanto o batom que usava. —
Eu tô fazendo outra vez, mas antes de você pelo amor de Deus
calar a minha boca, Nico...
A noite de mais de um ano atrás veio para minha memória,
Alana nervosa depois de ter me perguntado se eu queria realizar
com ela um dos meus maiores desejos.
— Eu tô grávida.
E nós nos calamos.

Dançando com a mulher que insistia em pisar nos meus pés,


com gosto de baunilha na boca, meus olhos ainda não conseguiam
sair de quem me deu mais uma primeira vez.
Um dia, nós conversamos sobre primeiras vezes, e Alana me
contou, com Hope dormindo em seus braços, sobre todas as
primeiras vezes que ela queria ter me dado. A primeira vez de hoje
era só dela, e eu lembrei do acordo que fizemos.
As primeiras vezes ruins, nós podemos esquecer. Esquece, e
finge que é comigo. O que acha?
Eu achava que minha mulher tinha as melhores ideias, e a
rodando mais uma vez em nossa pista de dança improvisada,
prestei atenção no riso leve que saía dela. As memórias que
criávamos ali tornaria aquele o melhor dos meus trabalhos, minha
família me rodeando até mesmo quando longe.
Ela me encarava quando voltei minha atenção para os cor de
mel, e eu já imaginava o que viria. Alana tinha, afinal, me contando
— e contado para todos ao nosso redor — o motivo de sua cara de
culpada pela manhã.
Queria que todas as culpas fossem assim boas.
— Nico, o que aconteceu com o seu olho? — Só que, daquela
vez, eu não carregava culpa nenhuma pelo hematoma.
— Seu pai foi falar com Armando — comecei, me lembrando
da noite. Eu provavelmente era o único que a tinha por completo na
mente. — Eles chegaram bêbados, me falando que um soco
resolveria tudo. Mas Armando não deixava Esteban me bater,
Matteo ria no chão e Lorenzo sacudia a cabeça. Victor, no estado
mais embriagado que já vi, disse que tinha a solução perfeita para
todos voltarem a beber e pararem com aquela discussão estúpida.
— E te socou — ela tentou adivinhar.
Fiz que não.
— E chamou Mattia.
— E ele te socou? — Fiz que não outra vez.
— E ele disse que todos deveriam aproveitar a noite, e então
nós entramos no bar. — Eu realmente era o único sóbrio da
despedida, não tendo mais bebido sem Alana ao meu lado desde a
Itália. — E Mattia deu em cima de uma mulher casada, de todas as
mulheres que ele poderia ter escolhido no cazzo do lugar.
— E o marido dela te socou? — foi a última tentativa.
— A mulher dela ia socar meu sobrinho — Depois do moleque
ter falado algo que eu o fiz jurar nunca mais repetir para uma
mulher. — E eu me coloquei no caminho.
Dava para ver o riso que queria sair.
— Uma mulher te socou. — Ela tampou a boca, nós dois
parados entre os outros que dançavam.
— Uma mulher me socou — repeti, revirando os olhos. —
Feliz?
Alana levantou a cabeça, me dando seu melhor sorriso.
— Muito. — Os braços pararam ao redor do meu pescoço. —
Você tá? Foi como sempre sonhou?
— Nunca sonhei com isso antes de ti, dolcezza. — Não tinha
como não provar dos lábios, Alana também com gosto de baunilha.
Ela ter insistido no sabor bolo de aniversário para o nosso de
casamento me trazia apenas lembranças boas. Bolo de confete era,
realmente, colorido e doce, como eu lembraria para sempre daquele
dia.
— Italiano mentiroso.
— E tu, sonhou? Antes de mim? — Estreitei os olhos quando a
vi fazer que sim.
— Nico, quase toda garota sonha em casar! — Alana
começou, com o sorriso que eu queria que para sempre ficasse
nela. — Mas eu nunca sonhei com um vestido, ou com as flores que
decorariam as mesas e o corredor. Eu sonhava com alguém que me
entendesse, que me aceitasse com todas as minhas falhas. —
Estava prestes a responder o que a faria revirar os olhos: para mim,
ela só tinha acertos. Ela continuou quando me viu abrir a boca. —
Eu sonhava contigo, italiano.
Minha mulher sempre me calava dos melhores jeitos.
— Eu também sonhava com você, dolcezza. — E deixei meu
nariz traçar o caminho até a curva do pescoço branco, me
embriagando com o cheiro dela, o champagne esquecido pelos dois
na noite. — Talvez com as flores, também — fui sincero, a risada
dela suave. — Pelo menos as sobremesas.
— Formiga. — Também ri quando escutei seu grito abafado, eu
a pegando sem aviso no colo, as pernas dela em volta da minha
cintura.
A saia do vestido nos rodeava, o vermelho de agora apenas
nos lábios que era viciado em beijar.
— Ama a formiga. — Minha mulher fez que sim antes das
palavras virem.
Minha insegurança me fez perguntar para Alana, antes de nos
separarem na noite de nossa despedida, porque ela ficava. A
resposta dela, diferente de tudo que vinha da mulher, passou longe
da complexa.
Porque, por mais que nossa vida tenha sido complicada, te
amar é simples.
— Eu amo — ela afirmou, os lábios tocando os meus.
Eram as coisas mais simples que me faziam quebrar. Eram
também as mais simples que me faziam inteiro outra vez. Hope
sorria, rodeada pela nossa família, e eu fazia o mesmo, rodeado por
ela. Amar a mulher mais complexa que eu conhecia era mesmo
simples.
— Em pensar que tudo isso começou por causa de um café. —
Não tinha sido exatamente um café, mas aquela era a história bonita
que decidimos contar para Hope, e todos que viessem depois dela.
Toquei meus lábios nos dela uma última vez antes de soltá-la.
— Grazie pelo café — café era meu segundo gosto favorito. —
Dolcezza.

Grazie para você que chegou até aqui! Espero que tenha
valido a pena ter se perdido nas mais de mil páginas dessa trilogia.
Meu Nico continua cadelando as minhas ideias, e me dando
todo o apoio para chegar até aqui. Sonso, você não sabe que está
nos meus agradecimentos, mas um dia eu vou deixar você ler todos
os livros e você vai saber, eu prometo.
Wedla, que virou minha marida literária: tá na hora de ter
vergonha nessa tua cara, não tá não? Tá na hora de gostar do
Armando também, porque se depois de tudo isso eu ainda não tiver
te convencido, o próximo passo vai ser escrever um livro dele pra
você betar, sua safada. E eu não tô afim.
Carol, estou guardando umas marmitas como agradecimento
por ter aceitado defender a minha cristalzinho da beta má (a marida
citada acima). E se eu agradecer aqui, eu vou ter que agradecer lá
em cima também, porque a Wedla é ciumenta, então vou me limitar
a: te pago uns salgados (eu pago pra ti também, Wed).
Um obrigada especial a todas que mandaram mensagens
positivas e apoiaram meu trabalho até aqui. As palavras de vocês
foram essenciais nos dias mais difíceis, e me fazem estar apenas
começando.
Até a próxima história!
Um beijo,

[1] Puto
[2] Meu amor
[3] Bela
[4] Caralho
[5] Menino
[6] Garoto
[7] Mulher
[8] Família
[9] Que merda
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[11] Cretino
[12] Filho da puta
[13] Não me importa
[14] Mas por que caralho
[15] O que está acontecendo
[16] Obrigado
[17] Gosto tanto de ti, bela
[18] Macarrão
[19] Sorvete
[20] Pare de ser boba
[21] Água ou champanhe, senhora?
[22] Maldito
[23] Mulheres
[24] Bom dia
[25] Santo Deus
[26] É um prazer conhecê-la
[27] O prazer é meu
[28] Não, não bebe café
[29] Senhor
[30] Eu
[31] Minha mulher
[32] Ódio
[33] Eu sou louco por ti
[34] Boa noite
[35] Coma
[36] Papai
[37] Até logo
[38] Vida filha da puta
[39] Graças a Deus
[40] E o resto não me importa
[41] Beijo
[42] O filho da puta
[43] Mas que caralho de homem
[44] Não dou a mínima
[45] Se toque
[46] Nunca
[47] Preguiça, em espanhol
[48] Esperança, em inglês
[49] Ódio, em inglês
[50] Que bela gozada
[51] Cinta peniana, em inglês.

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