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— Temos tudo sob controle — Lara me imita debochadamente, rindo de uma
forma preocupante enquanto recolhe os papéis esquecidos e esparramados
sobre a mesa após o fim da reunião. — Isso é um desastre, Vladimir.
— Era a minha única alternativa — justifico, mas minha cunhada é
inteligente demais para fingir que não me conhece. Eu só estava sendo o
egocêntrico de sempre.
— E o que você vai fazer agora? Tem alguma ideia de onde encontrar
essa mulher? Porque eu acho que já tentamos de tudo.
Suspiro. Fazia muito tempo que um investimento não me causava
tantos problemas.
— Estou indo conversar com o irmão dela novamente. Andrei tentou
dialogar com ele de maneira diplomática, mas sem resultados, o homem
continua irredutível. E Roman... Não é do tipo que conversa.
Lara concorda com a cabeça, um sorriso orgulhoso nascendo em seus
lábios à menção dos meus irmãos.
— E o que você tem para oferecer agora, que ainda não tenham
oferecido antes?
— Nada. Na verdade, minhas ideias esgotaram — confesso. — Mas
posso garantir que não existe nada que não se compre com dinheiro, e isso
nós temos aos montes.
— Mais dinheiro? Isso não vai adiantar. Camillo Fajardo já recusou
todas as nossas ofertas e algumas foram bem exorbitantes.
— Não, Lara. Eu quero dizer, muito, muito dinheiro. Claro que não
será uma oferta verdadeira, apenas um blefe, um teste para descobrir o quanto
Camillo Fajardo está disposto a manter sua irmã longe das nossas mãos.
— Você é o presidente — diz por fim. Termina de juntar o material e
caminha para a saída. — Antes que eu me esqueça, preciso que fique com
Iago na próxima segunda-feira.
— Não — respondo. Ultimamente, meu sobrinho tem requisitado toda
a atenção e alguém decidiu que temos uma conexão adversa. Não me encaixo
no papel de tio carinhoso, além de ser um péssimo exemplo.
— Por favor — suplica. — Vou passar a tarde toda na construção e sua
mãe estará ocupada demais selecionando a equipe que vai trabalhar no
casamento.
— O que meu irmão fez para merecer essa punição? Você, no meio de
todos aqueles homens… — comento, já pensando em como Ivan vai ter um
ataque. Infelizmente, a falta de ciúme não é uma de suas virtudes. — Eu não
tenho nada com a vida de vocês, claro. Não precisa responder se não quiser.
— Exatamente, é disso que estou falando. — Lara revira os olhos de
uma maneira quase elegante. — Ele disse que eu não deveria frequentar o
terreno, que a região é perigosa, que vai ficar preocupado e tudo mais.
— E você vai fazer exatamente o oposto do que ele disse para mostrar o
quanto odeia toda essa proteção descabida. — Levanto-me da poltrona e
abotoo o paletó. — Vocês vão acabar discutindo.
— Ótimo, sexo de reconciliação é o melhor — ela reflete em voz alta,
para o meu desespero, segundos antes de arregalar os olhos. — Efeito
Tatiana! Me desculpe. Meu Deus, não acredito que eu disse isso! Estou
passando tempo demais com a sua mãe, daqui a pouco vou ficar obcecada
com netos e pintar o cabelo de branco. Quer saber? Vamos mudar de assunto.
Já decidiu quem vai acompanhar você ao jantar no hotel do Palliermo?
Merda, tinha me esquecido completamente disso. Não estava nos meus
planos perder tempo com festas.
— O italiano? Não preciso de acompanhante, é apenas uma
socialização. Roman pode cuidar disso no meu lugar, ele adora uma farra.
— Roman já disse que não quer saber de italianos e Andrei já tem
compromisso com a namorada. — Saímos da sala de reuniões para o meu
escritório. O último andar é composto por esses dois cômodos para que eu
consiga ficar sozinho na maior parte do tempo. — Talvez você possa levar a
neta do senhor Kokorin. Eu, particularmente, não tenho uma opinião formada
sobre ela. Outro dia, a menina teve um pequeno ataque de histeria porque
tinha discutido com a balconista de uma loja de conveniência, ou coisa
parecida. Sua mãe tem certeza de que estão tramando um golpe do baú para
cima de você.
Claro que sim.
— Eles podem tentar, mas a única maneira de obterem sucesso em um
golpe de qualquer natureza contra mim é se eu permitir que o façam. Sobre
minha mãe, ela deve estar adorando. Qualquer coisa desde que a gente case e
gere filhos e mais filhos.
— Eu que o diga — resmunga, com certeza referindo-se à insistência
de Tatiana para que arrume logo um irmão ou irmã para Iago.
Mas Elena Kokorina ainda é uma incógnita desde sua chegada à
empresa. Parece-me a típica ninfeta de família rica; aquela com trejeitos
infantis, que se transforma na personificação da luxúria quando rendida entre
quatro paredes. Por pior que esse julgamento soe, são ótimas para passar o
tempo, mas perigosas com o coração partido. Só espero não estar enganado.
Ótimas para passar o tempo, e eu preciso de um descanso. Será que
vale a pena arriscar um envolvimento exclusivamente físico com a neta de
um investidor? Provavelmente não.
— Faça o convite amanhã, diga para estar pronta no sábado.
Descemos juntos no elevador, mas minha cunhada para no andar dos
escritórios presidenciais — um abaixo do meu — para se encontrar com o
noivo impaciente. Vou direto para o estacionamento, passo as coordenadas ao
motorista e ganhamos as ruas de Moscou, meu território preferido. Onde me
sinto verdadeiramente em casa.
***
***
Como previsto, o andar presidencial está milimetricamente organizado. A
placa com o meu nome cintila em cima da mesa e todos os meus objetos de
trabalho estão posicionados em seus respectivos lugares. Ligo o computador,
acomodo-me na grande cadeira de couro escuro e retiro todos os papéis da
pasta.
Em cima do primeiro documento encontro o nome de Serena Fajardo.
Outra vez.
— Serena, quem é você? — questiono sozinho, relendo as curvas de
todas as letras, que se tornaram familiares depois de tantos dias procurando
pela mulher por trás do nome.
O arquivo tem mais do mesmo, informações sem profundidade que,
juntas, constroem uma linha temporal. Nascida em Morella, na Espanha, uma
belíssima cidade murada no topo de uma colina. Os pais morreram em um
acidente de trabalho, mas a causa da morte é imprecisa. Qual trabalho? Onde?
Como isso aconteceu? Por que não conseguimos acessar essas informações?
Tantas perguntas sem respostas…
Serena já ficou internada uma vez, por um longo período, após a morte
de seus pais. Há relatos e mais relatos de empregos em diversas lojas, hotéis e
até clubes noturnos conceituados, sempre por poucas semanas e em diferentes
cargos, mas nenhuma pista sobre o seu paradeiro atual.
Um grande e maravilhoso acúmulo de nada.
Jogo a pilha de investigações em cima de outra exatamente igual e
submerjo nas minhas obrigações diárias. Há muito para ser feito em nossas
filiais e a expansão na Itália está paralisada desde quando Roman, meu irmão
imprudente, arrumou briga com Donatelo Giamatteo. Mesmo com a falência,
o sobrenome Giamatteo continua muito conhecido no país e agora outros
investidores receiam negociar conosco.
Palliermo é nossa última esperança.
A volta de Ivan também acarretou complicações desagradáveis em
Nova Iorque. Seu exilio durou cinco anos e, nesse meio tempo, não
precisávamos nos preocupar com o andamento dos negócios no território
americano.
Um caos atrás do outro.
Participo de uma teleconferência de duas horas. Depois, de uma reunião
particular com sócios locais. Durante o almoço, Lara encaixa outra reunião e
acabamos presos durante mais três horas com um grupo de japoneses que
absorvem o restante do meu ânimo.
— Com licença, presidente. — Lara entra na minha sala no fim da tarde
com o rosto tenso. Atrás dela, Elena Kokorina, equilibrada em sapatos com
saltos altíssimos e vermelhos, não disfarça a alegria por visitar o andar
restrito. — Sua mãe mandou avisar que enviou algumas sugestões de roupas
para o hotel, também me pediu para trazer Elena até você para que possam
conversar sobre… a noite.
O que a minha cunhada realmente quer explicar é que Tatiana espera
que eu convide Elena Kokorina para passar a noite comigo no quarto do
hotel. Tudo faz parte do seu plano maquiavélico de casar todos os filhos. Mas
essa é uma possibilidade cada vez mais distante considerando meu nível de
estresse e a forma como a jovem saltita parecendo uma gazela feliz.
É uma mulher bela, com formas esguias e pernas longas. Um
interessante decote proporciona o vislumbre comedido de seus seios e das
clavículas, e a ponta dos cabelos extremamente amarelos alcança a base dos
quadris.
— Elena — digo informalmente. Agora que a merda está feita, o
melhor é controlar o estrago antes que cresça. Apoio a cabeça no encosto da
cadeira e fito seus olhos radiantes e muito azuis. — Espero que esteja
preparada para o jantar.
— Muito! — declara, batendo palmas vividamente, aparentando ser
muito mais jovem do que realmente é. A saia justa na altura nos joelhos seria
mais atraente se confeccionada com outra cor que não o amarelo vibrante
com listras marrons, mas ela tem o seu charme. — Mal posso esperar. Meu
avô está exultante, diz que espera uma visita sua antes do jantar.
— Isso não será possível — corto-a, impondo limites. Elena é um
enorme ponto de interrogação, ainda não consigo ter certeza se possui a
mesma perspicácia do avô; porém, mesmo que eu venha a propor uma união,
ainda preciso conhecer seus defeitos e qualidades, e isso não vai ser possível
se avançarmos rápido demais. Meu principal compromisso é, e sempre será,
com a empresa. — Já que vamos nos encontrar no hotel — completo.
— Não vai me buscar para irmos juntos? — Elena cruza os braços na
frente do corpo, seu cabelo volumoso balançando em decorrência das pernas
inquietas.
— Não — respondo. Não tenho paciência e nem tempo para jogos de
convívio. — Como eu disse, estarei hospedado no hotel, não faz sentido me
locomover até a sua casa. Se quiser, posso mandar o motorista.
— Elena — Lara intervém. — Como eu disse, os interesses de
Vladimir nesse jantar são estritamente profissionais, essas formalidades não
são necessárias.
— Claro! — exclama com a voz aguda; os lábios tensos não ocultam
sua insatisfação. — Eu entendo. De qualquer forma, será uma honra
acompanhar o chefe em um jantar tão importante.
— Bom, nos vemos de noite então.
Pego tudo o que vou precisar. Despeço-me das duas e escapo o mais
depressa possível. Roman é o cara das festas e do flerte, eu sou pragmático e
direto. Se algum dia Elena vier a dividir a cama comigo, seja esta noite ou
não, será dentro dos meus termos.
***
Palliermo pode ser apenas um rapaz, mas seus projetos são ambiciosos.
Construir um hotel dourado, chamativo e moderno no centro da capital
histórica foi uma estratégia brilhante.
Assim que atravesso o grande portal ornado com flores de ouro, sou
recebido por duas recepcionistas que me reconhecem de imediato.
De certa forma, meu olhar já se habituou à ostentação. Ao analisar o
interior do prédio, uma pessoa comum ficaria deslumbrada com os detalhes
entalhados nas paredes ou com o gigantesco lustre de cristais no meio da
recepção. De fato, meu lado empreendedor visualiza os lucros e os pontos
positivos desse hotel, mas isso não me faz perder o fôlego.
— Aqui está o seu cartão, senhor Volkiov. Seus aposentos estão
esperando pelo senhor.
— Não quero ser incomodado, dispense todos os serviços de quarto,
ligações ou visitas.
— Sim, senhor. — Ela me entrega o cartão magnético, executa uma
reverência atípica e se retira junto com outra mulher.
Claro que Tatiana teria reservado a melhor suíte, praticamente uma
casa.
No quarto, dois conjuntos de vestimentas adequadas para o evento
repousam cuidadosamente sobre a cama. Ao menos a decoração dentro das
instalações não reproduz o amarelo cintilante da área externa.
Trabalho por mais duas horas, sozinho, em silêncio. Poucas sensações
me dão mais prazer do que a combinação entre os três: trabalho, solidão e
silêncio. Quando o horário do jantar se aproxima, resolvo tomar banho para
me arrumar, prevendo que a noite vai ser longa, chata e cansativa.
Saio do banheiro sem a cautela que procuro ter na mansão. Puxo a
toalha da cintura e coloco ao redor do pescoço enquanto analiso as duas
gravatas, mas escuto um sinal semelhante ao que a porta emite quando
passamos o cartão para entrar no apartamento.
Estranho.
Caminho devagar pelo corredor que me guia de volta para a porta
principal. Para minha surpresa, uma mulher vestida com o uniforme do hotel
está parada no meio da sala, segurando um conjunto de lençóis limpos
debaixo do braço direito, enquanto revira produtos de limpeza dentro do seu
carrinho de materiais com a mão livre.
— Me duele tanto recordar, me duele tanto el corazón — cantarola
baixinho, movimentando os quadris curvilíneos no ritmo da melodia.
É um belo movimento.
Por ímpeto, levo os dedos até a tolha para impedir um incidente
constrangedor, mas é nesse momento que ela ergue a cabeça e recua ao se dar
conta da minha presença. Em momento algum desvia o olhar, mas o
assombro em seu rosto lívido demonstra a surpresa de vislumbrar meu corpo
completamente despido.
A forma como seus olhos curiosos vasculham a extensão do meu torso
é intrigante. Ela abre os lábios, visivelmente chocada. Processa devagar o
contexto e balbucia uma frase ininteligível antes de finalmente dizer:
— Eu estou impressionada. — Sobressaltando-se, emite um ruído com
a garganta. — Ferrada! Eu quis dizer que estou ferrada! — Desnorteada,
recua e acaba esbarrando na mesa de centro. Vários objetos caem no chão,
mas o tapete felpudo os protege da queda. —¡Mierda!
Ela joga os tecidos sobre o sofá, abaixa-se e começa a reorganizar sua
bagunça. A touca, que completa o conjunto padrão com o logotipo dourado
do hotel estampado na frente, escorrega à medida que seus movimentos se
tornam mais frenéticos, e um longo cabelo negro desliza sobre suas costas,
brilhantes e chamativos.
Não há um crachá de identificação em seu uniforme.
— Quem é você? — Retiro a toalha dos ombros devagar. O
constrangimento me agrada, pois vem acompanhado de um interesse que ela
não consegue disfarçar.
Rodeio meu corpo com o tecido, faço um nó na lateral e apoio as duas
mãos na cintura. Ajoelhada no chão, a mulher desconhecida me encara de
baixo com seus globos oculares grandes moldados por longos cílios escuros;
é uma porra bem sensual, não posso negar. Sua beleza exótica é chamativa,
sobretudo enquanto umedece os lábios com a língua.
Capto o subir e descer de sua garganta ao engolir a saliva, um indício
do nervosismo. Ela faz uma careta para si, como se estivesse em uma espécie
de conflito interior. São várias expressões em poucos segundos, antes de
disparar, cheia de energia:
— No sé hablar em ruso. — Utiliza um idioma familiar, soa como
alguma língua latina. Fica de pé, abraça os panos amarrotados, dando de
ombros como se não me compreendesse.
Mas que cara de pau!
— Você não pode fingir que não endente, estava falando em russo há
menos de dois minutos — protesto. Ela revira os olhos e bufa. Não acredito
na sua falta de discernimento. — Qual é o seu nome?
— Eu tenho uma ideia! — sugere com os dedos indicadores apontados
para o alto, gesticulando como um maestro na frente da orquestra. — Você
esquece essa história de nome, eu esqueço que vi você peladão, vou embora e
todo mundo fica feliz.
Meus lábios acabam me traindo e formam um sorriso humorado. Essa
menina é louca? Se o seu objetivo era escapar da indagação, só serviu para
aguçar meu interesse.
— Seu nome — exijo — ou eu vou chamar a gerência. Você escolhe.
SERENA
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Azul.
Admiro a coloração anil do céu, o cruzamento entre o azul escuro da
noite com o laranja-avermelhado do pôr do sol, formando uma degrade azul-
arroxeado contagiante. Essa sempre foi a minha cor preferida.
No entanto, são as luzes do Kremlin que iluminam a cidade, capturando
a atenção dos turistas. Eu poderia passar horas e mais horas assistindo o
passar dos minutos nas ruas da capital, observando as pessoas e seus
comportamentos. Gosto de ver a vida acontecendo. Houve um tempo em que
sonhei poder viver disso, de ajudar os outros, de conhecer o mundo através
das suas histórias. Se fazer algo útil para o mundo.
Mas coisas como sonhos e planos não são para mim. O que importa é o
hoje, e ele tem sido bem ordinário, para dizer o mínimo. Então sigo em frente
e uso o metrô para concluir o restante do meu percurso até chegar em casa.
Conseguir uma vaga em qualquer apartamento familiar nos limites do
distrito central é quase um milagre em qualquer época do ano. A localização
é a única justificativa para o valor absurdo que a síndica recolhe das
moradoras no início de cada mês, porque o tamanho de cada imóvel é bem
pequeno, até mesmo para os padrões russos.
O prédio tem três modestos andares que nunca devem ter sido
reformados desde sua edificação. Enquanto subo as escadas, a velha Ksenya
espia pela janela de seu apartamento se continuo sozinha. Finjo que não
perceber seu rosto curioso vigiando-me, apesar da vontade de lhe mostrar o
dedo do meio, e subo para o meu apartamento,
— Malévola! — grito assim que tranco a porta, preparando-me para um
ataque repentino. Jogo o molho de chaves em cima da mesa, já que a cozinha
é a recepção da casa, e chuto meus sapatos para um canto. — Cadê você, meu
amor?
Acendo a luz dos três pequenos cômodos que compõem a minha casa,
sem contar o banheiro. Os móveis já estavam aqui quando cheguei, por isso
apenas os objetos de decoração foram acrescentados aos poucos. De todos os
locais que morei desde a morte dos meus pais, esse é de longe o mais
adequado.
A casa no velho distrito nunca valeu grande coisa. Quando Camillo me
explicou que a casa estava no nome dele, desde antes de nossos pais
morrerem, juntei minhas coisas e parti em busca de independência. Não
suportava continuar naquele lugar, de qualquer forma, com os amigos de
Camillo entrando e saindo o dia inteiro, olhando-me como se fosse um
pedaço de carne.
Conviver com o medo de que um deles tentasse alguma coisa só não
era pior do que suportar aquelas lembranças.
No quarto, jogo-me em cima da cama, exausta. Poucas sensações são
tão prazerosas quanto a de relaxar após um dia de trabalho, mas um
amontoado preto e peludo cai em cima de mim, miando e ronronando com
seus olhos díspares cheios de julgamento.
— Não foi dessa vez, continue tentando. — Recebo um miado rouco
como resposta. Malévola é minha única amiga, e seu nome diz muito sobre o
nosso relacionamento.
Digamos que o temperamento dela é tão ruim quanto o meu.
— Conheci um gato hoje! — conto para ela. Minha gatinha endiabrada
é a única ouvinte que me suporta. — Não adianta me julgar. Ele estava
pelado, isso conta pontos a meu favor, não?
Malévola vira o rosto, balançando a ponta do rabo.
— Vladimir — saboreio o belo nome. — Ele deve ser podre de rico,
estava na suíte presidencial. A mais cara, em um hotel cinco estrelas que, por
acaso, é meu atual ambiente de trabalho. Misericórdia, onde eu estava com a
cabeça?
Malévola ronrona e abaixa o corpo para que eu acaricie seus pelos.
Não gosto da solidão, ela nunca foi minha aliada. Espero conseguir
arrumar minha vida em algum momento, desfrutar das experiências que o
mundo tem para oferecer, como a de me apaixonar por alguém, entregar o
meu corpo — embora as duas não dependam uma da outra para mim. Ando
tão desesperada que daqui a pouco vou atacar um pobre coitado no meio da
rua.
Era bem mais fácil controlar meus sentimentos naquele tempo. Eu não
precisava estar tão atenta a mim mesma, porque havia alguém para me dar
apoio, segurar a minha mão e dizer que tudo ficaria bem.
Suspirando, levanto-me, abro a gaveta da cômoda e retiro algumas
blusas até encontrar a velha fotografia de nós dois. Por causa daquele
Vladimir, acabei recordando de uma época que me confunde. Na foto,
estamos abraçados em um banco de ferro fundido no meio do Jardim de
Alexandre.
Eu, muito jovem e descabelada com meus dezessete anos, e aquele
homem robusto e atencioso que me ajudou no pior momento.
— Desculpe, Serena, mi doce Corazón. — Leio um trecho do que está
grafado no verso, passando os dedos sobre a letra cursiva escrita com o
próprio punho do meu salvador. Logo abaixo, completo: — De Nicolai. —
Malévola se aproxima devagar, senta-se na minha frente e faz a sua mágica:
fica ali, olhando, confortando-me. — Eu sei querida, faz muito tempo.
VLADIMIR
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O pergolado da minha mãe acaba sendo minha melhor opção. Ele oferece
uma visão completa de todo o jardim, inclusive da enorme tenda que vai
abrigar nossos convidados.
Hoje em dia a mansão não precisa de reformas ou alterações, mas o
pergolado foi a primeira decoração externa exigida pela minha mãe quando
compraram a propriedade. A pequena casinha de jardim se transformou em
um refúgio depois de perder o marido, mas sempre o considerei o melhor
lugar para pensar sozinho.
Na primavera, as flores silvestres colorem os canteiros com pétalas
vermelhas, amarelas, azuis e brancas. Mas é o grande labirinto de arbustos
que mais chama atenção agora que a folhagem alcançou um tom de verde-
amarelado que cintila sob a luz do sol.
— Oi, tio. — Iago surge de um pequeno caminho que passa por baixo
de uma raiz de árvore. Ainda não está vestido com os trajes matrimoniais,
mas suas roupas casuais estão sujas de terra. — Você tá trabalhando? Posso
ajudar? Minha mãe foi procurar o meu pai, mas eu acho que os dois estão
fugindo da vovó.
Sentando-se ao meu lado, ele estica o pescoço para verificar as folhas
em minhas mãos. Retiro algumas pétalas pequenas e amarelas grudadas em
seus cabelos ralos e bagunçados, e Iago nem parece perceber meu toque.
Toda a concentração foi tragada pelo interesse em meu trabalho.
— Aposto que sim, sua avó está muito feliz agora que seus pais estão
se casando. E, respondendo à sua pergunta, estou procurando o nome de uma
pessoa.
Meu sobrinho revira os olhos e, para alguém tão pequeno, acho incrível
como fica parecido com Roman ao fazer isso.
— A mesma de sempre? — reclama, entediado.
Iago me desarma de um jeito bom, e agradeço por estarmos escondidos.
Depois de passar a última segunda-feira no escritório junto comigo, enquanto
Lara avaliava o terreno do clube na companhia de Ivan, ele passou a rever seu
interesse nas minhas supostas missões investigativas. Agora, fui rebaixado
para um agente secreto fracassado que passa o dia dentro de um escritório
sem graça.
Iago é basicamente uma versão mirim de Roman e seu temperamento
ácido, somado com a impulsividade do pai, a ética de Andrei e meu
complexo de praticidade. Mesmo não acreditando em destino, me conforta
que faça parte da nossa família, pois é um Volkiov melhor do que nós quatro
juntos.
— Serena Fajardo — confirmo. Até o pequeno está cansado de ouvir o
nome dela. — Pode ficar com esses, se quiser. — Separo algumas fichas e
entrego para ele, mas Iago faz uma careta e descarta os papéis sobre os
estofados florais.
— Não, obrigado. Eu tô bem de boa — diz com maturidade,
contradizendo a oferta de ajuda. Volto minha atenção para o trabalho, mas
seu silêncio não dura muito. — Olha, a moça do bolso machucado. — Ergue
o pescoço fino para enxergar alguém entre os empregados que estão
organizando as mesas.
— Do que você está falando? — pergunto distraidamente, passando os
olhos por fichas e mais fichas.
— Aquela mulher que estava brigando com um moço na frente da
empresa, tio. — Meu sobrinho fica de pé sobre as almofadas para ficar mais
alto, apoiando a mão no meu ombro. — Você é um agente secreto bem ruim
mesmo, não lembra de nada.
Pauso minha busca por um momento para dar atenção ao senhor
exigente. Assim que ergo meu rosto, uma rajada de vento assopra todas as
folhas para o alto e Iago se desequilibra, caindo em cima do meu colo com
uma folha na mão.
O susto de ver meu sobrinho caindo me paralisa. O ser humano é uma
criatura tão frágil que uma brisa singela é o bastante para roubar seu fôlego
para sempre. Por isso fiquei tão incomodado quando reconheci Corazón —
talvez Serena Fajardo — na frente da minha limusine, por isso não gosto de
me responsabilizar por Iago. Pessoas quebráveis se despedaçam nas mãos de
criaturas cruéis.
Iago sorri com os olhos azuis arregalados, o cabelo loiro todo
desarrumado balança suavemente. Acabo de perder dez anos de vida e tudo o
que me oferece é uma gargalhada. Como se nada tivesse acontecido, ele gira
o pescoço e aponta o dedinho magricela na direção da tenda.
Mais precisamente, para ela.
Outra vez.
Corazón.
— Aquela moça é a mesma que você e sua mãe encontraram na frente
do prédio? A que estava brigando com um homem?
Tento imaginar a cena, mas uma preocupação agressiva preenche meu
corpo e faço algum esforço para não deixar transparecer. Faz tanto, tanto
sentido. Se ela for Serena, talvez o homem em questão fosse Camillo Fajardo,
ou um de seus cobradores.
Céus, ela está tentando resolver a dívida do irmão! Essa menina não
tem um pingo de amor à própria vida?
— Sim, minha mãe tentou ajudar, mas ela estava com pressa. — Iago
deita a cabeça sobre as minhas pernas, mas continuo preso na mulher ao
longe, toda sorrisos.
— Já faz alguns dias, como pode ter tanta certeza, Iago?
— Ela tem aquele olhar triste. — A voz aguda de Iago suspende meu
raciocínio pelo simples fato de não fazer nenhum sentido.
— Triste? Como assim triste? — Olho para ela, rindo de algo que a
colega de trabalho diz. Meu sobrinho não responde; ao invés disso, estende a
folha amassada em suas mãozinhas pequenas.
— Olha, tio. Serena Fajardo.
SERENA
MINHA MÃE COSTUMAVA dizer que nasci com uma predisposição para o
caos. "Você gosta de consertar pessoas quebradas", repetia sempre que eu
lhe apresentava um novo amigo que era maltratado na escola pelos demais
alunos, ou quando chegava em casa com algum animal abandonado.
Talvez tenha sido essa particularidade que atraiu minha atenção para
Nicolai.
Dadas as condições em que nos conhecemos, era de se esperar que
aquele homem à beira do desespero parecesse quebrado aos meus olhos. Eu
mesma não reconhecia quantos fragmentos constituam a minha própria
existência. Mas as nossas feridas não deixam de doer só porque alguém
possui um machucado maior; a gente só se torna mais sensível aos problemas
alheios porque os nossos são complicados demais para serem solucionados.
O grande problema é que aquele ditado sobre aprender com os erros
não se aplica a mim. Se eu quebrar a cara uma vez, as chances de repetir a
burrada são grandes! Grandes pra caralho.
Vladimir é como um composto explosivo em estado de inércia, apenas
aguardando a substância necessária para entrar em combustão. E eu, como a
idiota incorrigível que sou, não consigo ter juízo o bastante para manter
distância.
Consigo reconhecer o olhar cobiçoso no rosto de um homem quando
está interessado fisicamente por mim, e Vladimir não se esforça para
esconder. Não é o tipo de pessoa com paciência para joguetes, mas é
cauteloso o suficiente para não agir sem pensar nas consequências. É o
presidente de um império, afinal.
Mas não é o seu poder ou a sua beleza que chamam a minha atenção.
Vladimir está quebrado e é irreal que eu capte sua angústia com tanta
facilidade.
— Você está bem, meu anjo? — A matriarca da família aparece ao meu
lado. Faltam poucas horas para os convidados começarem a chegar e a
mulher não parou um segundo sequer. Seus olhões são brilhantes e
confundem muito bem a verdadeira idade. É difícil acreditar que seja mãe de
quatro homens adultos. E que homens! — Você estava fazendo umas caretas,
está sentindo alguma dor? Precisa se deitar por um momento? Eu posso
arrumar um quarto se quiser. Temos quartos maravilhosos.
— Perfeitamente bem, senhora Volkiova. — Paro de amassar o arranjo
de flores que gentilmente nomeei como Lord Vlad número um e Lord Vlad
número dois, e abro meu melhor sorriso, torcendo para que ela não perceba o
estrago feito nos dois enfeites de mesa. — Não poderia estar melhor. — Rio
de nervoso, acrescentando: — Sabe como é, os pássaros cantam, as
borboletas voam, o sol brilha. Bem!
Bem doida, isso sim!
A mulher arqueia uma sobrancelha, analisando-me de cima a baixo. De
perto, identifico vários detalhes que contribuíram para a genética do herdeiro
mais velho: ambos possuem o maxilar quadrado e a expressão marcante nas
sobrancelhas grossas. Seu cabelo branco não parece um efeito colateral do
passar dos anos; a cor é moderna, um platinado que harmoniza as poucas
linhas de expressão no canto dos olhos. Ela é mais do que bonita, é única,
com certeza chama atenção do público masculino por onde quer que passe.
— Solteira? — indagada de supetão, arreganhando os dentes como se
cogitasse me comer viva.
— Sim? — respondo meio incerta, o diálogo fazendo zero sentido.
— É tão difícil, sabe? — divaga, abanando a mão no ar. Ao nosso
redor, outras funcionárias escutam a conversa, algumas seguram o riso. —
Casar um filho.
— Eu imagino que sim, deve ser complicado desapegar.
— Desapegar? Não, não. O difícil é fazer com que eles se casem! Tão
bonitos, mas tão idiotas! Você não os achou bonitos? Já viu meus três filhos
solteiros mais de perto?
— Você nem imagina! — disparo em um ataque de idiotice súbita. Já
vi mais do que ela pode imaginar. Quase tudo. Droga, não tem como corrigir
a gafe, vida que segue. Pigarreio para disfarçar, orando a todos os santos que
alguém me chame na cozinha. — Quer dizer, claro. Sua família é incrível.
Encaro o chão, com medo que a minha cara de pau nos coloque em
uma situação constrangedora.
Embora não tenha reencontrado Vladimir depois do nosso embate em
seu escritório mais cedo, meus olhos não desistiram de procurar. O maldito é
tão confuso que parte de mim deseja conhecer mais das suas facetas, mas a
outra parte só pensa em estapear aquele sorriso debochado junto com o nariz
perfeito, enquanto uma terceira parte poderia facilmente jogar os princípios
morais no fogo e se pendurar em seus ombros.
— Mesmo? — A senhora Volkiova, uma das mulheres mais conhecidas
na alta sociedade russa, gira sobre os saltos e volta a perscrutar minha
aparência com a sobrancelha arqueada no alto da testa. — Você pretende se
casar algum dia? Ter filhos? Teria filhos com um deles?
É o quê?
— Mãe, se continuar fazendo isso, as funcionárias vão começar a nos
processar por assédio. — O filho mais novo passa por mim com o semblante
preocupado e as mãos escondidas nos bolsos do paletó. Gente rica é assim,
veste terno dentro de casa e salto alto no jardim. Deus me livre dessa sorte!
— Já recebi três reclamações da gerência do restaurante.
— Andrei, não estou fazendo nada demais. Apenas um teste de
qualidade. Só estou tentando entender o que há de errado com vocês aos
olhos de outras mulheres. — Os dois se abraçam na minha frente, o rapaz
deixa um beijo na testa da mãe.
Francamente, me pergunto quantas pessoas precisaram nascer feias só
para essa família existir. E não estou falando somente de beleza física, há
uma vibração na forma como se comportam, como lidam com a vida, que
transforma a atmosfera em algo bonito de ver.
— Acha que existe alguma coisa errada conosco? — ele pergunta,
fazendo jus ao apelido que as cozinheiras lhe deram. O sorriso dele é
encantador, charmoso e extremamente sedutor.
Mesmo sendo o mais novo dos irmãos, tem praticamente a mesma
altura de Vladimir. O corpo é mais esguio, mas nem por isso menos atraente,
e o rosto tem os mesmos traços fortes do mais velho. Tanta gentileza e
amabilidade desencadeiam um arrepio estranho na minha espinha, e me sinto
exposta por seu olhar afável e analítico.
Ele parece me ler.
— Definitivamente — confirmo, minha língua sempre proclamando
independência em situações de apreensão. A doida só joga as verdades no
modo automático. — Digo… nenhum problema, senhor Volkiov. Vocês são
perfeitos. — Andrei solta um sorrisinho que, meu Deus, deveria ser proibido.
— Não! Não foi isso que eu quis dizer…
— Não somos perfeitos? — Ele se diverte, caçoando da atrapalhação.
Preparo-me para despejar mais uma enxurrada de baboseiras, mas o bom
moço me salva ao continuar falando: — É uma brincadeira, não precisa se
explicar. Ninguém é perfeito e nós com certeza também não somos.
— Vocês chegam bem perto — emendo, mais tranquila com a gentileza
em seu tom de voz.
— Não precisa mentir, querida. — Tatiana desdenha, revirando os
olhos. Apoia o rosto sobre os dedos cheios de anéis dourados e unhas longas.
— Vladimir nunca arrumou nenhuma namorada, um homem de trinta e dois
anos de idade deveria ter alguns casos, você não acha?
— Nenhuma? — Gargalho, duvidando. Esse homem não cansa de me
surpreender. — Que desperdício! Eu até suspeitaria da sexualidade dele se…
— Paro no meio da frase bem a tempo de evitar uma catástrofe, mas os dois
aguardam cheios de curiosidade e não posso simplesmente sair
correndo. Pensa rápido, Serena! — Se não estivesse acompanhado daquela
moça tão peculiar no jantar beneficente do senhor Palliermo. Eu estou
trabalhando no hotel dourado durante os finais de semana e coincidentemente
seu filho mais velho esteve lá no evento passado.
E o prêmio de melhor mentirosa vai para Serena Fajardo. Puta mierda,
preciso manter distância dessa família.
— Interessante — Tatiana murmura com o dedo indicador a bater sobre
o queixo, pensativa. — Você viu alguma coisa? Os dois pareciam um casal?
Eles se beijaram?
Socorro, Deus. Me ajuda aqui.
— Você não precisa responder se não quiser. — Andrei se coloca à
frente, as expressões oscilando entre confuso e humorado.
A resposta de sua mãe chega acompanhada de um tapa em seu braço:
— Não estamos em um tribunal, Andrei! Que inferno! É só uma
pergunta inocente.
— Não se beijaram — respondo, sem nada do entusiasmo de antes. Ele
não beijou aquela mulher mesquinha, mas imaginar a cena causa uma repulsa
física dentro de mim. — Eles não se beijaram em nenhum momento — repito
mais séria. — Tenho que voltar ao trabalho, se me dão licença.
— Espera — ela chama. — Qual é mesmo o seu nome?
Abro a boca para responder, mas sou tomada por um instinto de traição.
Vladimir disse que descobriria e quero ver como se sai após ter agido como
idiota. Não devo nada para ele e, mesmo assim, sinto como se fosse quebrar
um pacto se revelasse para alguém sem que tenha a chance de desvendar por
si mesmo.
— Você assustou a menina, mãe — repreende o ser abençoado que é o
irmão mais novo de Vladimir. Esse menino vai direto para o céu quando
morrer. — Pode ir, querida, não se preocupe.
Agradeço desajeitadamente com a cabeça e saio depressa rumo à lateral
do casarão, ziguezagueando entre mesas redondas ornadas com tulipas. Atrás
da mansão, há uma casa menor para nos arrumarmos, e algumas meninas já
estão com uniformes novos quando chego.
Por algum motivo, não haverá garçons servindo o buffet principal.
Troco minhas roupas pelo uniforme de saia e blazer brancos. Estou
quase finalizando minha maquiagem quando Raissa surge ao meu lado com
uma expressão traquina.
— Vai estar livre na sexta que vem?
— Estou sempre livre para ganhar dinheiro. O que vai ser, mais um
casamento?
— Credo, mulher, você só pensa em trabalho. Estou falando de
diversão! Música, vodca e homens gostosos. Ganhei três ingressos de um
cliente para uma boate chiquérrima na semana que vem. Vai ser divertido! Já
ouviu falar em open bar? Significa diversão gratuita.
Finjo ponderar. Diversão para mim é pagar todas as contas no final do
mês, sobretudo agora que consegui uma dívida que vai me levar direto para a
cova.
Pensando bem, talvez este seja meu último mês de vida. Só tenho mais
três semanas para arrumar o dinheiro de Maksim e nem cheguei perto de
conseguir alguns trocados para garantir a comida do mês. Talvez meu
corpinho lindo não tenha outra chance de sensualizar na pista — coisa que eu
obviamente não sei fazer. Mas nunca é tarde para aprender, certo?
— Vou pensar — respondo por fim, deixando a possibilidade em
aberto. Raissa bufa, prevendo minha recusa em potencial. — Vou pensar de
verdade.
***
***
***
LEIO PELA CENTÉSIMA vez a mensagem daquela diaba, agora em voz alta
para que meus irmãos — Roman e Andrei, já que Ivan continua em sua lua
de mel — compreendam o nível do meu desespero.
— “Fodeu, Vladimir, e não foi no bom sentido, infelizmente. Não
posso vender a casa, mas aceitarei de bom grado os trinta mil dólares que me
ofereceu. Esteja ciente de que só poderei pagar em trinta mil parcelas de um
dólar. Mas isso não será um problema, já que somos amigos, certo?
Obrigada.”
Ignoro as risadinhas dos dois. Eles não conseguem levar a sério toda a
insanidade de Serena. Já perdi a conta de quantas vezes reli essas mesmas
palavras só para ter certeza de que não se tratava de uma alucinação.
— É só isso? — Andrei força um timbre profissional, mas evita me
encarar. Desde o casamento, todos me olham como se eu fosse um rato de
laboratório submetido a um estudo vigilante de alto risco. — Ela não
explicou os motivos ou deu uma justificativa plausível?
— Nada. Hoje pela manhã fui conferir as mensagens no e-mail da
empresa e encontrei essa barbárie. — Empurro bruscamente o notebook para
frente e por pouco não o derrubo no chão. — Tentei ligar no número que ela
usou para marcar a reunião, mas é de um estabelecimento que oferece
serviços telefônicos. Depois, entrei em contato com o buffet, mas disseram
que ela não tem celular e não arquivam o endereço dos funcionários
temporários. Isso é ridículo!
Levanto-me, pelo simples motivo de não conseguir ficar parado. Minha
mente não suporta a estática e todos os meus poros parecem ligados na alta
voltagem desde o nosso último encontro dentro desta mesma sala de
reuniões.
É como voltar no tempo, na época em que assumi a presidência pela
primeira vez. O medo de fracassar, a tristeza por vestir uma personalidade
que ainda não fazia parte de mim. Achei que já tinha superado, que o
concreto da liderança já havia se fundido com a minha pele, mas as
provocações de Serena, suas brincadeiras leves e absurdas sobre beijos e
vampiros, se tornaram dilemas com os quais não consigo lidar sem enxergar
um mar de retrocessos.
Sem me sentir culpado por me desviar das obrigações com a minha
vida.
A empresa é tudo o que tenho sido nos últimos oito anos!
— Essa mulher sabe como se esconder — Roman comenta, sem
agregar muito para a resolução do problema.
Atravesso toda a sala até parar diante das janelas transparentes, fixando
meu olhar sobre a paisagem urbana e colorida de Moscou. Realmente, Serena
é mestre na arte do desaparecimento. Da próxima vez que nos encontrarmos,
eu me certificarei de amarrar todas as partes daquele pequeno corpo dentro de
um quarto trancado e só libertar depois que resolvermos cada porcaria de
dilema causado por seu temperamento irresponsável!
A imagem tremeluz na minha cabeça na forma de um fetiche. Merda.
Do jeito que é maluca, seria perigoso que gostasse da ideia e ainda pedisse
por mais.
— Não entendo, ela estava decidida a vender… — reflito em voz alta,
obrigando-me a manter a concentração no que importa: nossos negócios.
Meus olhos vagueiam até os ponteiros de uma das torres do Kremlin, que
denunciam a chegada das dezesseis horas. — Ofereci o adiantamento do
dinheiro justamente por causa disso.
E porque fui tomado por um medo desigual após sua explicação sobre
os perigos ocasionados pelo mau-caratismo de Camillo Fajardo, mas
confessar algo tão íntimo não faz parte do meu perfil. Mesmo com meus
irmãos, evito demonstrar a maioria das minhas fraquezas. Não sei como fazer
isso sem acreditar que estou perdendo o controle.
No começo, os atributos físicos de Serena capturaram minha atenção da
forma natural como geralmente os homens são atraídos por mulheres que se
enquadram nas preferências de cada um. Serena é linda, sensual em escalas
assustadoras, mas seu sorriso, a boca voluptuosa, a curva pecaminosa na
cintura e a mania inconsciente de mordiscar o lábio inferior desmantelam
todas as minhas barreiras.
Mas seu olhar, algumas vezes, por breves segundos, vacila. A atração
que existe entre nós é mais do que física, é interna, profunda... e profana.
Quando nossos olhos entram em sintonia, é como se eu estivesse diante de
um quadro muito antigo, pintado em uma época tão longínqua que nos faz
divagar a respeito das histórias que se escondem por trás da obra. Um
enigma.
— Você contou que ela estava sendo chantageada e que precisava de
dinheiro — pondera Andrei. Deixo meus dilemas pessoais para outro
momento. — Mas precisamos trabalhar com a possibilidade de ser tudo
mentira.
— Não era mentira — defendo-a, voltando para a mesa. Puxo a cadeira
presidencial e me jogo. Retiro a gravata sobre a cabeça, desejando estar em
qualquer outro lugar. — Tem alguma coisa acontecendo, pois Camillo
também precisava de dinheiro e se recusou a colaborar. Agora, de repente,
a Cora… — Limpo garganta com um pigarro. Droga de apelido! — A
senhorita Fajardo também resolve negar nossa proposta? Isso é muito
suspeito.
— E o que vamos fazer com relação ao dinheiro? — Andrei,
concentrado em seu notebook, faz anotações ágeis da pauta. — Vai depositar
mesmo sem garantias?
Nego sem enunciar as palavras.
Meu irmão mais novo para de digitar, encarando-me com a astúcia do
advogado inclemente que não mede esforços para expurgar qualquer ameaça.
Roman o acompanha na expressão de reprovação ao meu posicionamento.
Ele dedilha sobre a mesa em um indício claro de impaciência, enquanto tenta
me intimidar com o nariz empinado e os olhos verdes cintilando em um
desafio mudo.
Roman é do tipo que enxerga em qualquer escolha ruim um inimigo a
ser combatido.
— Não faz merda. — Ele abre o zíper da jaqueta de couro, revelando
uma camisa de botões por baixo. É quase adequado demais, considerando seu
estilo desleixado em noventa e nove por cento do tempo. — Se não transferir
o dinheiro, eu transfiro.
— Você não vai se meter, Roman — eu o confronto, incomodado com
seu instinto de proteção invasivo. Serena é meu problema.
— Presidente — ironiza, sorrindo com os lábios tortos — não estou
pedindo autorização. Você coloca essa empresa acima de qualquer coisa, o
que garante que não vai fazer o mesmo desta vez?
— A empresa é o centro dessa conversa!
Eles não entendem, nunca precisaram fazer sacrifícios. Meus irmãos
choraram a morte de Nicolai enquanto eu era humilhado por cada maldito
marginal com quem nosso pai mantinha negócios.
Não sabem.
Não entendem!
— Vladimir, se você acredita mesmo em tudo o que ela disse, pode ser
que esse dinheiro salve a vida dela — Andrei intervém com sua sensatez, mas
mesmo ele deixa escapar um pouco de nervosismo na voz.
A expressão de Serena sorrindo salta à frente dos meus olhos, cheia de
vivacidade e contrária a tudo o que me representa. Ela se infiltrou no meu
sistema nervoso como um vírus, se alojou em um esconderijo secreto ao qual
não tenho acesso, que está trancado. Pulou a janela.
Ou talvez eu a tenha trancado lá dentro.
Não me convide para entrar se não tem a chave para destrancar a
porta, foram suas palavras.
— Não vamos transferir porcaria nenhuma por enquanto. — Saia da
minha cabeça. — Ela disse que tinha um prazo, menos de quinze dias agora.
Tem que haver outra maneira.
— Podemos tentar conseguir alguma informação através dos dados
bancários — Andrei sugere. — Ou acionarmos a polícia, o que seria a
escolha mais inteligente na minha opinião.
— Era o que eu pretendia fazer a princípio — explico, pois nesse ponto
concordo com Andrei. — Mas depois de tudo o que ela disse sobre como era
a vida naquele distrito, a ideia de que isso acabasse a colocando em um
perigo maior, eu…
— Presidente Vladimir Nicolaevitch Volkiov hesitando? Essa é nova.
— Roman retira um cigarro do bolso frontal da calça e coloca na boca, mas
não o acende. — Conta pra gente, qual era o seu plano? Enviar a grana e
esperar que ela se resolvesse sozinha? São traficantes, perigosos,
fazem qualquer coisa por dinheiro. E os riscos, não calculou isso?
— Mas é claro que eu pretendia ajudar, Roman. Cuidado com as
porcarias que você fala. — Sem me alterar ou demonstrar desconforto, sorrio
para meu irmão a fim de acalmar sua adrenalina. Roman acha que ativar o
modo ofensivo funciona comigo, mas eu me adapto a qualquer diálogo
dependendo do resultado que preciso alcançar, e, nesse momento, um irmão
irritado não faz parte dos meus planos. — Meu erro foi confiar que pudesse
existir o mínimo de racionalidade na cabeça dela. Mas Serena já provou que
não pode ser calculada. Pensei em resolver uma coisa por vez, já que ela foi
enfática ao concordar com a venda. Planejava oferecer proteção e todo o resto
no dia da negociação, já que ela não queria envolver a polícia.
Não é uma mentira completa. Na minha cabeça, Serena jamais se
encontraria pessoalmente com filho da puta nenhum. Mas a pequena
impulsiva nasceu com tendências ampliadas para se meter em confusão e me
colocar à beira da insanidade.
— Da próxima vez, seja mais claro — diz nosso advogado sem
preâmbulos. Recolhe seus pertences, guardando as anotações em uma maleta
antes de se encaminhar para a saída. — Ela não faz parte do nosso mundo,
não podemos esperar que entenda suas intenções como acontece conosco.
No âmbito profissional, Andrei não decepciona. Eu sei que não faz isso
pela empresa, é apenas da sua natureza ser bom, no entanto, ainda não me
acostumei com a ideia de que o menino alegre e boêmio que vivia enfurnado
em festas com nossa cunhada na adolescência — já que Lara sempre foi sua
melhor amiga — seja muitas vezes a voz da razão por trás da Corporação
Volkiov.
Ele está certo, sempre está.
Tenho me deixado enfeitiçar por Serena, mesmo sabendo que ela
jamais entenderia um homem como eu.
— Com licença, senhores. — Elena para na entrada da sala de reuniões,
impedindo a passagem de Andrei. Segura um tablet com as duas mãos e não
entra até receber a autorização de Roman, que faz um sinal com o indicador
para se aproximar. — Vocês precisam dar uma olhada nisso.
Nossos olhares se encontram e, diferente das outras vezes, Elena
demora um bom tempo antes de desviar o rosto para o chão. Por um segundo,
penso ter visto algo mais do que respeito ou medo em seus olhos perolados,
mas não tenho certeza do que poderia significar.
Andrei pega o aparelho e volta para sua posição, acomodando-o sobre a
mesa para que possamos conferir o que está acontecendo de tão urgente para
Elena interromper uma reunião sem avisar.
Trata-se de um vídeo, uma reportagem sobre a suposta falta de
planejamento na construção do clube, os impactos negativos após tantos
meses de obras ininterruptas para os residentes nos arredores, que dão
entrevistas de cunho depreciativo. É um trabalho sensacionalista com
objetivos evidentes de nos atingir e tirar o mérito do nosso projeto.
Quando o vídeo termina, meu peito sofre com o impacto. Não o
coração, mas meus pulmões, como se alguém os privasse do oxigênio. É
assim que funciona quando a gente acende um pavio às cegas: a explosão
chega em algum momento.
Começo a fazer conexões, pesar os possíveis estragos, listar as pessoas
certas a serem contatadas. O pior de tudo é que os responsáveis pelo
programa conseguiram manter os exageros dentro da realidade. Não
poderemos negar as acusações, somente amenizar a veracidade das
informações fornecidas.
Listar os danos.
Preciso limpar essa sujeira.
Fazer ligações.
Enviar relatórios.
Reunir nossa equipe de advogados.
Tanto trabalho e o rosto de Serena é a única maldita coisa que me
desperta o mínimo de disposição, sua voz sussurrada com o sotaque latino ao
pronunciar a palavra Lord, melódica e sensual.
Lord Vlad…
Lord…
— Presidente, o senhor está bem? — Elena coloca a mão nas minhas
costas, inclinando-se sobre mim para analisar meu rosto de perto. Os cabelos
dourados e vibrantes recaem em cima da tela e o ângulo fornece uma visão
perfeita dos dois primeiros botões abertos em seu terninho verde-limão. Ela
faz parecer natural. — Ficou branco de repente.
— Sim, eu… — Olho ao redor, meus irmãos estão atônitos, tão
preocupados quanto eu. — Andrei?
— Já estou entrando em contato com a emissora responsável. —
Levando o celular ao ouvido, ele sai rumo à minha sala pessoal e, em poucos
segundos, podemos ouvir os murmúrios da conversa acalorada.
Lord Vlad…
— Era só o que faltava! — pragueja Roman. — Em plena sexta-feira,
essa bosta fedendo.
— Todo dia é sexta-feira para você. — Fecho os olhos e massageio as
têmporas, só então percebendo que a mão de Elena continua apoiada no meu
ombro. — Obrigado, senhorita Kokorina, pode se retirar agora.
Ao som da minha voz, Elena se desvencilha como se tivesse sido
atingida por um raio. Pode ser encenação de uma mente ardilosa, como
também pode se tratar apenas de uma jovem ingênua e mimada que não está
acostumada ainda a sobreviver nesse universo de máscaras e dinheiro. Não
acho que a segunda opção esteja correta.
Prefiro nunca subestimar as pessoas que estão ao meu redor, o golpe da
traição costuma ser o mais forte.
— Na verdade… — diz timidamente, contorcendo os dedos na frente
do corpo. — Se me permitirem, tenho um recado do meu avô.
Interessante.
E previsível também. Nos momentos de crise, descobrimos quem são
nossos amigos e quais são os abutres aproveitadores.
— Elena — Andrei chama, retornando com a feição abismada. — É
verdade?
— O que aconteceu? — Roman indaga, rude.
— O senhor Kokorin… — começa o caçula, mas Elena dá um passo à
frente para tomar a palavra.
— Meu avô assumirá tudo. A responsabilidade pelos contratempos
envolvendo o clube vai recair em cima do sobrenome da minha família. —
Diferente dos trejeitos anteriores, cada palavra é agora entoada com firmeza e
maturidade. Ensaiada. Começo a entender. — A nota será expedida pela
manhã se estiverem de acordo.
— Por que ele faria uma coisa dessas? — Andrei chega mais perto para
oferecer uma espécie de condolência.
Ninguém responde, afinal, é um questionamento retórico. Teremos uma
dívida com a família Kokorin e está bem evidente o que esperam em troca.
Acham que podem mesmo fazer esse tipo de movimento sem que seja eu a
comandar o jogo.
Tolos.
— Diga ao seu avô que aceitamos o sacrifício dele — decido, mas as
palavras têm um sabor amargo que não deveria existir. Que porra está
acontecendo comigo?
— Vladimir! — Roman me repreende.
Repreendo-o de volta com um olhar enviesado, que é retribuído com
outro mais furioso e descrente.
— Todos para fora, quero todos para fora agora. — Para que não
possam insistir, encerro a reunião e fico de pé.
Não podemos nos dar ao luxo de negar. Sempre foi o meu plano de
qualquer forma, é só uma questão de juntar o útil ao agradável. Se pretendem
usar essa estratégia para chegar até mim, posso muito bem fazer o caminho
contrário e me aproveitar da situação. Simples assim…
Mas por que dói tanto? Inferno!
Nicolai me disse várias vezes que a vida é como um botão, basta
um clique impensado e as comportas despejam anos de trabalhos, sonhos e
esforços direto para o limbo.
Eu costumo apertar muitos botões.
Lord Vlad.
Volto para a minha sala, cansado de escutar a voz de Serena na cabeça.
Pelo canto dos olhos, vejo Elena sair sorrateiramente, acompanhada de
Andrei. Fico parado no meio da sala. As cortinas fechadas deixam o ambiente
menos acolhedor, assim como os tons pastéis e frios presentes na decoração.
Ao contrário de quando meu pai trabalhava aqui, agora o escritório
presidencial é um reflexo da minha própria personalidade estragada.
Não pensei duas vezes antes de aceitar. Mal pensei uma vez!
— Sabe a lixeira que se enfiou, não é? — Roman balança a cabeça,
brincando com o cigarro apagado entre os dedos. — Eles estão de olho em
um casamento.
Eu sei.
— Não vamos falar sobre isso. — Respiro fundo, passando a mão na
cabeça. — Isso não é um problema, nunca foi. Você sabe que poderia
acontecer eventualmente. — Espero convencer a mim mesmo com essas
palavras, mas a sensação estrangulada na minha garganta continua se
intensificando.
— Certo, não vou me meter, foda-se. — Roman não obedece ao meu
pedido, o que não é nenhuma surpresa. Continua perambulando pela sala,
visivelmente preocupado. — Vai voltar para casa hoje?
— Não. — Encosto da minha própria mesa, cruzando os braços. — Eu
não suportaria mais um confronto.
— Nossa mãe deve estar com as covas prontas no jardim. — Ele
gargalha baixinho, guardando o cigarro no bolso da frente da jaqueta preta.
— Você não dorme em casa desde o casamento, e Andrei praticamente se
mudou para a casa da namorada, que não quer mais saber da nossa família.
Você não vai conseguir a evitar para sempre. Em algum momento, vai ter que
explicar que confusão foi aquela durante a festa.
— Uma coisa de cada vez, Roman — resmungo, apesar de saber que
está certo.
— Faz quanto tempo que não pega uma mulher, Vladimir? — pergunta
aleatoriamente. — Você precisa sair um pouco, fazer um sexo selvagem,
encher a cara! Vamos?
— O quê? Agora? — Olho para minha mesa, tentado a sentar ali pelo
resto da noite e acompanhar como as notícias se espalham. — Com tanto
serviço para resolver, não posso me dar ao luxo desse tipo de coisa.
— Mulheres, esse é o único luxo que importa. Virar padre não vai
ajudar a empresa, principalmente agora que arrumou uma noiva em potencial.
Puta que pariu! Dona Tatiana vai surtar quando descobrir.
Realmente, minha mãe vai fazer de tudo para antecipar o momento.
Porra! Talvez seja bom beber e me enterrar em uma desconhecida para retirar
aquela espanhola à força do meu sistema nervoso antes que afete o meu
cérebro mais ainda.
— Tudo bem. — Ouço-me dizer, surpreso comigo mesmo por essa
decisão.
— Ótimo, te espero às onze na frente do seu hotel. Envia o endereço
para o meu celular.
***
Vestido com uma roupa mais casual, acompanho meu irmão boate adentro.
Ternos não condizem com o ambiente, então optei por calça jeans e camisa
polo preta para não chamar muita atenção. O plano é beber um pouco,
encontrar uma acompanhante suportável — o que significa ser muito boa de
conversa ou muito gostosa, de preferência as duas coisas juntas para que as
insinuações sedutoras de Serena sejam erradicadas da minha memória — e
evitar os paparazzi, mas com Roman trajado como se fosse a personificação
perfeita de um delinquente, é impossível não sermos notados.
Péssima ideia!
Algumas pessoas nos cumprimentam assim que entramos, mulheres na
maioria. Guardo vagas lembranças de uma ou outra conhecida de ocasiões
passadas, mas a maioria são rostos novos, possibilidades inéditas. O interior
da boate não é diferente de nenhuma outra que já tenhamos visitado, com
muita gente dançando e se esfregando sob luzes coloridas e frenéticas ao som
de músicas eletrônicas.
Roman se nega a subir para a área vip com o pretexto de que a
verdadeira diversão só acontece no aglomerado, mas aceita ficar em uma
mesa mais reservada nos arredores da pista de dança.
Durante a primeira hora, bebemos e conversamos sobre coisas banais,
como a falência confirmada dos irmãos Giamatteo na Itália, e o andamento
das investigações sobre o paradeiro de Tasha — uma busca mantida
sobretudo por Ivan e nossa mãe, já que os dois são incapazes de superar
alguns traumas.
Algumas vezes, meus olhos recaem sobre alguma mulher que passa por
nós, analisando corpos e comportamentos, e começo a ficar preocupado
quando percebo que estou comparando-as com Serena. Nenhuma parece boa
ou atrevida o suficiente, nenhuma tem o seu jeitinho natural de balançar os
quadris como estava fazendo na primeira vez em que nos encontramos.
Só posso estar ficando louco, até mesmo a imagino no meio da
multidão mais de uma vez. Nesse ritmo, estarei fadado a um hospício antes
que a transação seja concluída.
Alucinar é o último passo antes sucumbir e admitir minha derrota.
Mas, porra! Continuo vendo-a sem parar. O corpo com as curvas tão
perfeitas, o longo cabelo preto caindo em ondas sobre os ombros até a metade
das costas. Sem falar na boca que me faz fantasiar com as mais criativas
utilidades.
— Não pode ser — resmungo ao constatar que a mulher mais sensual
no meio da pista é ela de fato, não uma alucinação. Eu mal bebi, pois terei
que dirigir todo o caminho de volta, então não pode ser um efeito colateral da
vodca também. — Só pode ser brincadeira!
Roman acompanha meu olhar, também abrindo a boca como um
babaca. Mesmo longe, o nível da sua embriaguez é tão evidente que eu me
levanto quando ela se desequilibra e um homem a ampara. Os dois gargalham
um para o outro, mas o maldito não a liberta; começa a se aproximar com o
pretexto de dançarem.
Seu vestido mais parece um pedaço mínimo de tecido vermelho, curto e
justo como uma segunda pele. É sexy para um caralho, e minha briga interna
consiste em decidir se é mais prazeroso admirar o contorno entre seus quadris
e a cintura, ou desejar que tenha trazido um casaco para esconder tanta pele
exposta assim que eu colocar minhas mãos nela.
Dou o primeiro passo, convicto de que é meu dever interromper essa
palhaçada, mas Serena escolhe esse momento para olhar na minha direção. O
magnetismo é surreal. Ela estreita os olhos enquanto empurra o sujeito — que
sai sem causar confusão — e tenta correr na minha direção.
Tenta, pois o zigue-zague se estende por um longo período até que
alcance a mesa. Sento-me e arqueio uma sobrancelha enquanto ela inclina
para me olhar bem de perto. Seu cheiro doce invade minhas narinas, junto
com um odor clássico de vodca. Tenho que fazer um esforço enorme para me
distanciar do rosto corado. Ela olha para Roman, estudando nossos rostos.
Está muito, muito bêbada.
— ¡La puta mierda! — exclama, endireitando o corpo. — São vocês
mesmo, Lord Vlad e o irmão tatuado. Achei que eu já estava bêbada demais!
— Ela dispara a rir, desequilibrando-se outra vez, e puxa uma cadeira para se
sentar perto de mim. — Devem estar se perguntando como entrei aqui. Mas
eu tenho uma coisa que eu ganhei de uma amiga que dormiu com o dono
dessa boate — sussurra como se fosse um segredo. — Um convite.
Fecho os olhos para não enfiar essa maluca dentro do primeiro táxi que
encontrarmos. Bêbada não chega nem perto de definir quão profunda é a sua
situação alcoólica. A porcaria de uma bêbada enfiada em um microvestido
vermelho, que deixa as pernas chamativas em evidência, assim como o
decote profundo nos seios suados. O que porra ela está pensando, afinal?
Vai ser impossível continuar com o plano de exterminá-la da minha
mente depois dessa noite. Parece até uma brincadeira de péssimo gosto do
destino que nossos encontros sejam sempre provações ao meu bom-senso.
— Você não está sozinha, está? — Roman interroga, espelhando minha
preocupação.
— Vim com a minha amiga, mas ela está presa dentro do banheiro. —
No ritmo da música, Serena agita o corpo enquanto conversa. — Um homem
arrastou ela, foi uma confusão, bem cena de filme!
— Arrastou? Como assim Serena? — pergunto, nauseado com a
imagem que me vem à mente.
— Do jeito bom, Lord Vlad, do jeito caliente. — Revira os olhos
embriagados, pega nossa garrafa sobre a mesa e bebe um gole, fazendo uma
careta em seguida. — Isso é horrível, ¡Dios mio! — Bêbada Serena fica mais
inquieta e seu sotaque mais acentuado. — Aquele e-mail que você mandou
partiu o meu coração. — diz, referindo-se à mensagem que enviei negando o
empréstimo naquelas condições arbitrárias. Seus olhos fecham e abrem
devagar a cada piscada, sonolentos e frágeis.
— O seu e-mail quase nos matou, isso sim! — Roman reclama. A idade
mental dos dois é incrivelmente próxima. — Lord Vlad aqui ficou bem puto.
Ótimo, mais munição para o arsenal de imaturidade contínua. Daqui em
diante, nada mais me surpreende. Roman nunca mais vai me deixar em paz.
— Seu irmão disse que me odiava e que nunca me beijaria — mente,
bebendo mais uma vez com a feição chorosa. — Odeio beber, que negócio
ruim.
Puxo a garrafa e coloco perto de mim, ela faz uma careta de desgosto.
— Primeiro, se não gosta, por que está bebendo? — censuro-a. — E,
segundo, nunca escrevi nada sobre não beijar você e muito menos sobre odiá-
la.
— Então você quer me beijar, Vladimir? Isso seria a terceira ou quarta
realização da minha lista. — Serena passa a ponta da unha comprida e
vermelha sobre os lábios igualmente vibrantes no mesmo tom, provocando
uma reação instantânea no meu corpo.
Quero sim, como o inferno! Essa mulher endiabrada acha que pode
queimar um demônio no fogo.
— Do que ela está falando? — Roman pergunta para mim, como se
interpretar Serena fosse uma tarefa fácil, mas ela logo se coloca a explicar.
— Já que você se recusou a me emprestar o seu rico dinheirinho — diz,
cruzando os braços sobre a mesa e exaltando o aclive em seu decote generoso
—, eu decidi colocar em prática a minha lista de coisas que preciso fazer
antes de morrer. Tomar um porre, curtir uma ressaca louca, beijar algumas
bocas e perder a virgindade são as metas de hoje.
Ah, não…
Puta que pariu.
Merda!
Não sei se fico mais chocado com a possibilidade de que já tenha
beijado mais de um homem — imaginá-la fazendo isso com apenas um é
perturbador o bastante — ou com o fator virgindade.
Virgem!
— Não precisa fazer essa cara, como se eu tivesse uma
doença, Romanzito. — Serena leva a mão até o rosto de Roman e dá dois
tapinhas, caindo na gargalhada. — Seu irmão não quer a minha virgindade!
Nem me beijar ele quer, fica fugindo.
Ah, Serena, praguejo sozinho, não sabe em que buraco está se
metendo.
— Virgem e bêbada são características que não podem coexistir no
mesmo ser humano. Quem é virgem aos vinte e cinco anos? — Indignado,
Roman vira todo o conteúdo do seu copo, ficando de pé logo depois. — Boa
sorte, não quero me envolver com drama nenhum. — Para Serena, completa:
— Virgens são sinônimo de problema, bebê.
Ele foge para outra área da boate e Serena fica olhando com o cenho
franzido. Até sua confusão é atraente de um jeito fofo. Virando-se para mim,
inclina a cabeça e seus cabelos se acomodam sobre o ombro direito.
— Como ele sabe sobre o bebê? — pergunta, genuinamente surpresa;
nem me atrevo a tentar compreender do que está falando.
— Quão pior essa conversa pode ficar, Corazón? Um pouquinho mais e
eu te arrasto para fora daqui.
— Arrastar do jeito bom? — provoca, mordendo o lábio e me
transportando para o mar de tentações dentro do qual estou tentado a
mergulhar. — Adoro quando me chama assim, seu sotaque é sexy.
Amaldiçoo sua impertinência quando cambaleia para o lado, com as
pernas levemente abertas, e arrasta mais a cadeira, encaixando-se entre os
meus joelhos.
— Serena, você é virgem? — indago para ter certeza, mas já não
consigo mais disfarçar o quanto a desejo e minha voz soa como um grunhido
brutal.
Se antes eu tinha dúvidas sobre sua capacidade de cuidar de si mesma,
agora eu estou curioso para descobrir como sobreviveu sozinha por tantos
anos.
Amanhã, quando a ressaca passar, teremos uma conversa muito séria
sobre suas ações. Confiar na bondade alheia não é seguro e nem consigo
pensar no que poderia acontecer com ela nessas condições!
Aquela ideia de trancá-la dentro de um quarto parece cada vez mais
tentadora.
— Você é surdo? — reclama, enrolando a língua. Tenta ficar de pé e
falha; nunca vai conseguir sair daqui sem ajuda. — Sou virgem, mas vai ser
por pouco tempo…
— Quantos imbecis você beijou hoje? — Trinco os dentes para fazer
essa pergunta, segurando suas pernas bem juntinhas para que não consiga
fugir.
— Não tenho certeza… — Começa a contar os dedos e uma raiva
desapiedada eclode em meu peito, um instinto possessivo e egoísta que não
suporta perder o que deseja para outra pessoa. — Estava esperando eu ficar
beeeem bêbada, sabe? Mas as bebidas aqui são fracotes. — Gargalhando
como se tivesse contado uma piada muito engraçada, ela se apoia em mim
para se levantar. Ajudo-a, erguendo-me também, e seguro os dois lados da
sua cintura para que não caia.
— Mais bêbada que isso e vai precisar de atendimento médico. E nem
pense em fazer piadinhas sobre médicos bonitos! — aviso, irritado,
antecipando o que o brilho safado em seus olhos quer dizer. — Vamos
embora, vou levar você.
— Não quero ir embora agora — teima. Solta-se de mim e recua um
passo trôpego. — Aquela casa me dá medo.
— Não vamos para a sua casa, Corazón. — Suspiro, listando todos os
tópicos absurdos que deixa escapar para usar contra ela no dia seguinte. —
Olha, não quero ter essa conversa agora, mas hoje meu dia foi um pesadelo.
Não vou tirar os olhos de você, porque vai desaparecer de novo. Vai ficar
comigo.
Os olhos dela arregalam e o sorriso vai quase até as orelhas. Já sei a que
conclusão acaba de chegar.
— Preciso avisar a Raissa que vamos dormir juntos! É rápido… —
Vencido, concordo sem corrigir a frase ambígua. Ela vai, toda desajeitada,
rumo a um dos toilettes femininos.
Foi mais fácil do que eu esperava, mas não me surpreende. Se tem uma
coisa que eu aprendi, foi que Serena toma decisões rápidas e lida bem com
elas. Enquanto espero, envio uma mensagem para Roman avisando que
estamos indo.
Porém, é como dizem, nunca devemos comemorar antes da hora. Cinco
minutos depois, vejo-me empurrando pessoas para chegar até uma Serena
sorridente e desavergonhada no auge de uma conversa cheia de proximidade
com um rapaz cujo rosto fico cego demais para descrever.
— Serena — chamo, colocando a mão em sua cintura e puxando o
corpo para mim. Sem hesitar, ela aproveita a oportunidade para se equilibrar,
entrelaçando nossos braços. — Algum problema?
— Nenhum! — responde com um grito que se sobressai à música,
rindo com ares travessos. — Estou muito bem. Pode voltar para sua mesa. —
Não me movo, contrariado e fervendo com sua audácia. Revirando seus
grandes e belíssimos olhos nebulosos, ela movimenta a ponta dos dedos na
direção contrária. — Passa, Vladimir.
Oi?
Ela não está me mandando passear como um cachorro, está?
— E você, quem é? — pergunta o pedaço de merda com um tom de
superioridade que infla o homem egocêntrico que habita em mim, mas me
recuso a encarar o sujeito.
Não vale a minha atenção.
— Lord Vlad é meu amigo — responde Serena, colocando ênfase na
última palavra. — Meu amigão. Esse moço gentil estava se oferecendo para
me levar para casa.
Filha de uma…
— Eu vou levar você embora. — Ergo seu queixo com menos
delicadeza.
— Ei… — O sujeito segura meu ombro. Sua sorte é o autocontrole
inumano que me ajuda a não começar uma briga, ou eu já teria acertado um
belíssimo soco bem no meio do seu nariz.
— Sabe quem eu sou? — Ouço minha voz, o tom debochado e
superior, carregado com o desprezo de quem enxerga as pessoas de cima. —
Não, você não sabe. Essa briga aqui não vai valer a pena para você —
aconselho com calma, embora atento a qualquer investida surpresa, ainda
mais com Serena em meus braços. — Ela está comigo, entendeu? E vai
embora comigo. Não me importa quem é você ou seu nome. Foda-se. Se
insistir, vai ficar um bom tempo sem frequentar boates.
Jogo o ombro, desfazendo seu contato. Deixo o homem assimilar
minhas palavras sozinho. Faço o que deveria ter feito assim que reconheci
Serena: a arrasto para fora.
Não de um jeito bom, como seria caso não estivesse tão bêbada.
— Nossa — Serena arqueja. Eu daria qualquer coisa por uma mordaça,
qualquer merda que a impedisse de continuar falando. — Você nervoso é
ainda mais gostoso!
Irritado… não, enfurecido é uma palavra melhor. Tenho lutado comigo
mesmo há dias para não me deixar envolver, evitado jogá-la em cima da
primeira mesa em busca de uma satisfação mútua. E, de repente,
completamente do nada, Serena torna a aparecer na minha vida e despertar
outro redemoinho de sentimentos e desejos.
Foda-se, foda-se!
Não sou a porra do presidente aqui, não é pela empresa que estou tão
irritado. Eu me conheço, entendo o que está acontecendo. Posso escolher a
negação, mas agora só penso que preciso de mais.
Ela precisa.
Mais.
Um pouco antes da saída, tomado por um ímpeto desajustado, conduzo
Serena até uma das pilastras que sustenta o segundo andar. As luzes coloridas
da boate oscilam do amarelo ao verde, depois para o vermelho, e em todo
momento ganho novas imagens dessa mulher pintada sob as mais variadas
tonalidades.
Não existe casa, terreno, clube, dívida; nada, só nós dois, a minha fúria
e a loucura dela.
— Eu realmente deveria beijar você, Corazón, como castigo por ser tão
negligente. Merda, eu deveria dar a porra do melhor beijo que você já
experimentou na sua vida.
Aperto um pouco mais seus braços quando ela começa a mordiscar os
malditos lábios carmesins com uma expressão de desejo descarado. Essa
mulher é tentadora demais para seu próprio bem, e a falta de filtros só amplia
meu interesse. Jamais imaginei que existisse inocência no despudor, muito
menos que fosse tão provocante.
— Eu deveria encaixar a minha perna entre as suas enquanto dou o que
está implorando, e seria bom, Corazón, seria realmente gostoso. Eu deveria,
porque amanhã, quando você acordasse, as lembranças da sua vitória seriam
apagadas pelo álcool, e você teria que conviver com o fato de ter
experimentado do melhor, sem saber como foi a sensação de verdade.
— Você se dá muito pouco valor, Lord Vlad. — Serena gira os braços,
agarra meus cotovelos e me puxa para dentro das sombras. — Mesmo sem ter
experimentado ainda, tenho certeza de que nunca, em hipótese alguma, nem
em mil anos ou em outras vidas, eu esqueceria como é ser beijada por você.
Sou uma doida, louca, pirada das ideias, mas as coisas que desejo ficam
guardadas no meu coração, não na minha mente. — O timbre embriagado
não é suficiente para camuflar seus sentimentos. Há sinceridade e lascívia,
mas também uma fragilidade oculta por sua máscara de independência.
Eu sou o monstro desejando a princesa cujos lábios foram envenenados
para me consumir, e ela cheira à destruição.
À minha destruição.
Serena chega mais perto, encosta o corpo no meu e deposita um beijo
na minha bochecha devagar. Escondidos dos olhos de curiosos, impeço que
realize movimentos circulares com os quadris encaixados nos meus, impeço a
porra toda por sua própria segurança.
É como me submeter por livre e espontânea vontade à uma tortura das
mais dolorosas. Todos os meus filamentos egoístas clamam para se unir aos
dela e reclamar o direito de marcar o meu nome em sua vida para sempre.
— Corazón, isso não vai ficar assim — prometo, imobilizando seu
corpo preguiçoso. — Mas você está bêbada, sinto muito.
Bloqueio sua voz, suas palavras, seu corpo, seus protestos. Fecho-me
para as sensações, os odores e, principalmente, para a minha imaginação que
consegue recriar com uma perfeição assombrosa como devem ser seus
gemidos se estivesse nua junto comigo na cama. De mãos dadas, saímos da
boate direto para o estacionamento.
Abro a porta para Serena, que não para de sorrir um segundo, como se
tivesse ganhado um presente. Estou fazendo tudo errado, mas não consigo
parar. Ela sabe, sabe que eventualmente vai acontecer, que já me conquistou.
Minha cabeça não cansa de recriar cenários, de calcular os danos, de me
alertar sobre consequências e futuras intervenções.
Não consigo desligar essa parte de mim. Serena é uma decisão minha,
uma péssima decisão. Um colapso, um dano no sistema.
Guio o carro pelas ruas, seguido de volta para o hotel, mas o silêncio
me sufoca. O medo também, a culpa. Como posso estar planejando tomá-la
quando acabei de praticamente aceitar um matrimônio com outra mulher?
— Talvez eu me case com alguém — solto no meio do caminho,
afogado com a perturbação mental, os dilemas profissionais em conflito com
minhas atitudes.
Veja como sou um cretino e fuja, Corazón.
— É natural, a maioria das pessoas se casa um dia. — No banco do
passageiro, Serena fecha os olhos, prestes a dormir. Suas pernas expostas
brilham com pontos cintilantes de glitter.
Aperto o volante até os nós dos meus dedos ficarem brancos. Se eu e
Roman não tivéssemos aparecido naquela boate, ela estaria dormindo no
carro de algum outro homem desconhecido, um porco aproveitador.
Maldição! É muita coisa para encarar ao mesmo tempo.
— Estou dizendo que isso não será um romance — esclareço, sentindo-
me um tanto patético, já que ela nunca me pediu nada além de um beijo. —
Não deve criar expectativas. Estou dando a você uma chance de voltar
enquanto é tempo.
Ela resmunga, aconchegada no banco.
— Não crie expectativas também, Lord Vlad, não quero partir o seu
coração — murmura com a língua enrolada.
— Meu coração é bem forte — brinco sombriamente,
— Sim — sussurra, quase consumida pelo sono. — Eu sou mesmo bem
forte.
Piso no freio por impulso e o carro diminui a velocidade até pararmos
no meio da rua. Serena, com os olhos fechados, talvez não se lembre amanhã,
mas é verdade.
Ela entrou mesmo.
A vida é como um botão, Vladimir.
Por que estou me lembrando disso agora? Por que Serena parece estar à
beira de algo? Por que eu disse para ela não criar expectativas, quando sou o
único que está ganancioso por mais?
Nicolai me fodeu, acabou com tudo, cuspiu no nome da minha família.
Sua morte me ensinou a ser alguém que conquista aquilo que deseja, que
manipula e ludibria sem se importar com sentimentos. A única emoção que
me guia é a da ambição pelo poder fornecido por números e posses, o mesmo
que classifica pessoas como troféus, e quantos mais a gente acomoda na
estante do ego, mais distantes ficamos da humanidade.
Sou uma pessoa que não sabe perder. Era esse homem que eu queria
manter afastado de Serena, o monstro. Porque no segundo em que eu
admitisse que a desejava, não desistiria até tomar tudo. Cada pedacinho dela.
Eu a quero com tanta vontade que não restará nada no final.
— Desculpe, Corazón, eu sou um mentiroso. — Acaricio sua face
dormente, coloco o cabelo atrás da orelha e passo o dedo polegar sobre os
lábios que me pertencerão em breve. — Você não tem mais volta — digo no
silêncio da noite, mas seu sono tenro já levou para longe a loucura, o sorriso e
a energia.
SERENA
***
***
***
NA PRIMEIRA VEZ que alguém apontou uma arma para a minha cabeça, eu
era um rapaz pouco mais jovem que Andrei.
Nicolai havia morrido, o corpo putrefazia muitos metros abaixo da
terra, mas eu continuava escutando sua voz pelos corredores da mansão; em
cada espelho era o seu reflexo que me encarava de volta. As últimas palavras
que me disse antes de morrer supliciavam meus dias e descobri da maneira
mais difícil que assombrações são feitas de lembranças ruins — elas nos
atormentam mais do que demônios saídos do inferno.
O primeiro cobrador apareceu uma semana após o enterro. Minha mãe
havia se trancafiado no quarto e não permitia que nenhum dos filhos entrasse.
Ivan ainda estava na faculdade, enquanto Andrei era praticamente uma
criança e Roman não ficava atrás. Eu estava sozinho com a empresa em
decadência e a descoberta de que o aclamado Nicolai Volkiov mantinha uma
vida dupla, tanto nos negócios como na vida pessoal
Nem podia brigar com ele para descontar a minha raiva, porque meu
pai estava morto.
Lembro-me de sentir medo, lembro-me de implorar.
Foi a primeira vez que abaixei a minha cabeça, e também a última.
Os olhos de Maksim brilham no escuro, lembrando uma pantera
enquanto se camufla na noite com promessas de sangue e morte, mas nada
cintila mais do que a arma em suas mãos, refletindo a iluminação dos faróis.
Há certa beleza na imagem de uma pessoa desesperada, uma forma diferente
de arte, eu diria.
E Maksim é um homem agonizando no mais profundo desespero.
— Então, finalmente nos conhecemos — diz em tom de deboche,
aproveitando-se da vantagem por saber quem eu sou. Os homens ao nosso
redor soltam risadinhas cúmplices.
Analiso a situação e não encontro nenhum cenário em que eu não
consiga aquilo que vim buscar. Nas duas direções, seus soldados aguardam,
balançando barras de ferro e brincando de simular um tiroteio com suas
armas de fogo.
O braço estendido de Maksim continua imóvel, sua mira alinhada com
o centro da minha testa.
— Devo dizer que estou surpreso, não pensei que apareceria tão rápido
— diz diante do meu silêncio. Sua silhueta balança quando ele troca o peso
dos pés.
Ainda não respondo, preciso desestabilizá-lo um pouco mais antes de
mostrar as minhas cartas. Paro a poucos metros de distância, desdenhando
com um vacilar de ombros, e ofereço toda a minha atenção a nossos
expectadores.
Giro sobre os calcanhares sem sair do lugar, dando uma volta completa
e me demorando de costas sem o respeito que as pessoas geralmente tributam
aos grandes líderes. Um simples movimento que grita como não tenho medo
do seu arsenal.
As risadinhas cessam.
— O que foi? — Maksim pergunta um pouco mais alto, começando a
se afetar com o meu descaso. — O gato comeu a sua língua?
É a minha deixa para instaurar o caos.
Demonstro um interesse repentino, como se somente agora notasse a
sua presença, ou me importasse com ela.
— Sempre me perguntei — comento, desviando do tópico mais
importante e arrastando meus pés um pouco mais para frente, bem devagar
para não despertar nele ou em seus homens o instinto da proteção — por que
as pessoas usam expressões horríveis como essa para sugerirem coisas
simples. Quer dizer, alguma vez algum gato já comeu a língua de alguém
para justificar essa metáfora?
Um rapaz ruivo, cuja face se esconde atrás de um emaranhado de barba
acobreada, inclina sobre o companheiro ao seu lado e murmura:
— Do que ele está falando?
O restante parece ainda mais confuso. Maksim deixa de me encarar
para analisar a dispersão de seus seguidores.
— Qual o seu problema? — grita para mim.
— Respondendo à sua pergunta — explico cinicamente — gatos não
comem a língua de ninguém, embora eu tenha ouvido histórias de punições
medievais que incluíam arrancar a língua dos traidores para atirar aos felinos
da rua. — Ele franze o cenho e comprime os lábios, preso em minha manobra
de desvirtuar sua sensação de supremacia. — Não soa como uma ideia
inspiradora? Temo que eu tenha nascido no século errado.
Chego três passos mais perto, ninguém esboça a intenção de me parar.
Maksim ganha novas formas, o rosto se torna nítido, revelando um nariz
ligeiramente anguloso e maçãs do rosto magras, escondidas debaixo de
inúmeras tatuagens.
Gostaria de saber se o casaco preto com o capuz cheio de plumagens é
o mesmo que usava quando invadiu o apartamento de Serena. Se as luvas
eram a única coisa entre a sua mão e o rosto dela quando desferiu aquele
golpe.
— É melhor parar com essa brincadeira. — Uma cortina de fumaça
sobe a cada palavra que ele diz. — Eu sei por que está aqui!
— Sabe mesmo? — Gargalho genuinamente. Não me lembrava do
quanto a sensação de manipular um indivíduo ordinário pode ser aprazível.
— Eu particularmente gosto muito de metáforas. Meu sobrinho tem uma
afeição peculiar por figuras de linguagem, ele é muito literal.
— Sabe o que mais é literal? — indaga entredentes. — Um tiro no
meio da sua cara.
— Não, Maksim, ameaças não são literais. — Encaro o espaço entre
nós. Consegui me aproximar sem ser impedido por ninguém enquanto se
perturbavam com meus devaneios inocentes.
Três passos nos separam. Seus homens despertam do transe causado
pelo nosso espetáculo de interlocução e voltam a empunhar seus instrumentos
— as pistolas e barras em algum momento sucumbiram, pendendo
molemente em suas mãos entretidas.
Qualquer pessoa me chamaria de louco, mas o tempo e sacrifícios
dedicados em nome do empreendimento que Nicolai construiu me ensinaram
que as pessoas se curvam diante do poder somente quando nós mesmos
assumimos a existência dele. Não demonstrar medo, não demonstrar
preocupação, não demonstrar nada, simplesmente, são as características de
quem está acima das ameaças.
Esses homens não têm a coragem dos poderosos para atentar contra a
minha vida. Não quando tenho o seu líder nas minhas mãos. Não quando eu
sou o rei que corta a língua dos traidores para banquetear os gatos pedintes.
— Presumo que a belíssima irmã de Camillo tenha passado o meu
recado — provoca sem se afastar. Respeito a coragem dele. — Você se
enfiou no buraco errado, senhor Volkiov. Neste distrito, quem manda sou eu.
Você e seu clube não são bem-vindos.
A edificação se ergue no cenário atrás de Maksim, majestosa e
imponente. Uma sombra inacabada de concreto, e início dos meus pesadelos.
Eu até me arrependeria do projeto se não tivesse sido por meio dele que
Serena acabara em meus braços. Se Ivan jamais tivesse me sugerido a ideia
de construir um clube familiar em uma área desfavorecida, minha querida
Corazón estaria enfrentando esses problemas sozinha. Ela não teria ninguém
para pedir ajuda além de si mesma.
O clube pode ser importante, mas não é por ele que estou aqui.
— Sim — desdenho, menosprezando-o com um revirar de olhos. —
Esse clube se tornou uma chateação, mas continua sendo um ótimo
investimento, e não pretendo abrir mão dele até que isso se mostre favorável
para a minha empresa. Mas, adivinhe? Estou aqui apenas para devolver a
agressão que a minha… — Procuro a palavra certa, só uma parece adequada:
— Mulher sofreu.
Vários espectadores gargalham, balançando os corpos magros. Maksim,
para não ser considerado fraco, acompanha o grupo, mas eu enxergo através
da sua risada.
— E o que faz você pensar que conseguiria sequer encostar em mim?
— murmura, a voz baixa e revoltada.
— A minha expectativa é que você se ofereça de bom grado — explico
igualmente baixo. Com o canto dos olhos, percebo pescoços esticando-se
para escutar nossa conversa. — E que ordene a seus cachorrinhos raivosos
que fiquem calados enquanto quebro a sua cara.
Atordoado com minha sentença, Maksim engatilha a arma, puxando a
mão para trás. Seus olhos injetados de raiva só comprovam a minha teoria de
que esse homem está no limite de um colapso, desesperado para resolver
algum problema qualquer que Camillo Fajardo tenha causado — a única
parte que ainda não consegui desvendar.
Dou um passo adiante, seguido de outro, e mais outro. A mão dele
treme quando encosto a minha cabeça no cano gelado da arma.
— Ouvi dizer que está em busca de Camillo Fajardo — experimento. À
menção desse nome, percebo a garganta de Maksim subir e descer, engolindo
a saliva em seco.
— Se você acha que pode me comprar, fique sabendo que não estou
interessado em um acordo. — Ele força a arma contra a minha pele e eu
perco a paciência.
Agarro a mão que ele usa para envolver o cabo do revólver, aperto seus
dedos para que sinta ainda mais a textura e a tentação de pressionar o gatilho.
— Se não vai me matar, é melhor abaixar essa merda. Não pretendo
fazer qualquer tipo de acordo com você. A essa altura, meu irmão já deve
estar entrando em contado com alguns dos vários distritos que estão em busca
do seu pescoço, e ouso dizer que ficarão muito felizes quando souberem onde
Camillo está se escondendo, afinal, ele é uma ponte que leva direto até você,
não?
A expressão dele muda.
— Que merda você fez? — sussurra. Seu semblante esmorece e
murmúrios se espalham entre os homens irritadiços que nos assistem
atentamente. Maksim repete, um pouco mais desesperado: — O que você
fez, porra!?
— Não devia ter ido atrás dela, não devia mesmo. — É a minha
resposta.
Meu veredito.
— Vão matá-lo — diz, colocando as duas mãos na cabeça. — Se você
entregar Camillo…
— Não me importo com o que acontece com Camillo. — Cruzo os
braços, triunfante, e inicio um lento caminhar ao redor da figura estática de
Maksim. — Essa é a única maneira de tirar você do meu caminho.
— Não tenho medo de você — sibila, suas mãos fechadas em punho.
— Pois deveria ter. Eu tenho Serena, tenho Camillo, tenho Luna, tenho
a casa. Você não tem nada, Maksim. — Retiro minhas luvas; sem me
importar em mantê-las comigo, deixo que caiam no chão silenciosamente. —
É questão de dias até que meu clube volte a ser construído. É melhor se
acostumar com a ideia.
— Luna? — Maksim olha para trás, Annia ainda nos vigia da janela,
pálida como um fantasma em uma casa mal-assombrada. — Camillo nunca
vai entregar a casa, muito menos a menina.
É verdade, Maksim não faz ideia de que o terreno nunca pertenceu à
Camillo. Ele ainda acredita que tem alguma chance de vitória aqui.
— Não vai ser preciso. — Dobro as mangas da minha jaqueta, um
braço por vez, erguendo o tecido grosso do couro na altura dos cotovelos. —
Sugiro que retire seus capangas daqui o quanto antes, a polícia vai chegar a
qualquer momento para buscar a sobrinha de Serena. — Ele abre a boca para
protestar, mas continuo falando: — Não, eu não denunciei o seu esquema.
Mas acredito que faça parte do protocolo deles revistar a moradia se
identificarem que a mãe da criança denunciada faz uso de entorpecentes.
Suponho que você tenha os seus contatos para se livrar desse pequeno
inconveniente.
— Isso não vai acontecer! — enfrenta-me, erguendo o queixo com um
resquício de dignidade.
Então eu o acerto.
O soco é forte, ecoa na forma de uma corrente elétrica por todo o meu
corpo. Junto com o barulho do meu punho chocando-se com o maxilar dele,
ressoa a junção de todas as armas sendo empunhadas e preparadas para a
minha aniquilação.
Maksim cambaleia para trás, mas não cai.
Eu o quero no chão, exatamente como Serena ficou.
— Mande que recuem — ordeno, abrindo e fechando meus dedos
dormentes por efeito do golpe. — Agora.
Relutante, Maksim limpa a boca com o dorso da mão enluvada,
deixando um rastro de sangue em toda a extensão da bochecha esquerda.
Seus comparsas diminuem o círculo, todos falando ao mesmo tempo, alguns
em outros idiomas.
— Vai entregar Camillo? — pergunta, ainda esperançoso de que eu
esteja disposto a negociar.
— Não trabalho assim, Maksim. Não vim atrás de um acordo, entende?
Manterei seus inimigos por perto enquanto você continuar me incomodando.
Eles provavelmente já sabem agora que Camillo é um caminho até você, mas
os únicos com o paradeiro dele somos eu e meus irmãos.
Omito a informação de que não temos uma localização exata. Sabemos
que ele seguiu para Madrid quando saiu do país, e Serena levantou a hipótese
certa vez de que ele poderia ter traçado seu destino até Morella. Somando
isso com os endereços que levantamos sobre as antigas moradias de Serena
quando estávamos em busca de seu paradeiro real, é praticamente certo que
algum deles nos leve até Camillo.
Mas deduzir e mentir são as coisas que eu faço de melhor.
A mão sinuosa de Maksim sobe, realizando um giro no ar com o dedo
indicador. Alguns homens pestanejam, mas em poucos segundos voltam a se
distanciar.
— Annia… — Seu rosto se contorce. — Você sabe que ela vai morrer
na prisão? — A mudança de assunto só não é mais prazerosa por causa do
teor direto de suas palavras. Ouvir a certeza em voz alta é muito diferente do
que supor a possibilidade em silêncio. — É claro que você sabe, como sabe
que esse sangue vai estar nas suas mãos também.
Pela primeira vez, perco as palavras. Eu posso lidar com isso, penso.
— Conto com você para garantir que não encontrem a sua mercadoria.
Também não tenho interesse em ter o nome da minha empresa vinculado com
um terreno contaminado com a sua merda.
— Você é um demônio, igual ao seu pai.
Estreito os olhos, controlando minhas emoções para não entregar que
ele cutucou um ponto sensível. Reprimo a vontade de indagar o que, diabos,
ele sabe sobre Nicolai. Ao invés disso, digo:
— É o que dizem, mas faz bem para o meu ego pensar que sou ainda
pior.
A porta de um carro bate, o semblante de Maksim demonstra sua
preocupação. O primeiro veículo liga, piscando os faróis, até evadir pela noite
hostil de Moscou. Desmoralizar Maksim é apenas um bônus no meu plano
perfeito.
— Só para você saber, não encostei um dedo nela.
— Nesse caso, tenho certeza de que você vai garantir que a minha
retaliação alcance a pessoa certa — declaro.
Ele testa um sorriso danoso, a última coisa que eu vejo antes de acertar
seu rosto mais uma vez, agora mais forte, mais definitivo. A exaustão começa
a transcorrer pelas minhas veias, não um cansaço pelo dia de hoje, mas pela
vida. Exausto de ser assim, e de gostar. Porque, quando minha mão estrala no
rosto de Maksim pela terceira vez — seu corpo cai sobre um joelho
pateticamente — eu só consigo apreciar.
— Garanta que a criança seja levada — determino. — O que acontecer
com a mulher não é da minha conta. E nunca mais, nunca mais, use Serena
para me atingir.
Ele ri enquanto seus soldados nos encaram com desprezo. Um líder de
joelhos, exibindo seus dentes vermelhos com o sangue acumulado… Eu diria
que também existe beleza nessa cena. Alguém deveria eternizá-la em um
quadro.
— Isso ainda não acabou, presidente.
— Conto com isso — respondo, virando na direção do meu carro.
***
***
***
***
***
***
Por um segundo, temo que Serena tenha partido, mas a encontro sentada na
cozinha com dois pratos de ovos mexidos sobre o balcão. Está usando com
um sobretudo cinzento sobre um vestido longo de tom rose.
Ela é linda em escalas que não podem ser medidas, a simplicidade e a
coragem são acréscimos que tornam minha obsessão compreensível.
Depois de remoer a forma como a tratei no banheiro, minha única
alternativa é encarar a realidade. Não posso fugir para sempre e preciso
encarar os fatos sobre a possibilidade de oferecer para Serena mais do que eu
já ofereci a qualquer pessoa em minha vida.
— Está melhor? — pergunta, sem me olhar, pressentindo a minha
presença. Remexe os ovos com um garfo, indicando um assento de frente
para ela, e me acomodo um tanto relutante.
— Não vamos agir como se nada tivesse acontecido — digo. Acomodo
os braços sobre o mármore que reveste o balcão. Nossos rostos se refletem na
superfície espelhada, um mais lastimável que o outro.
— Tecnicamente, nada aconteceu. Você impediu que eu tivesse um
orgasmo épico — brinca, com seu jeito descontraído, bondosa demais para
me repreender. Serena bate o garfo no prato, comprime os lábios e pergunta:
— Vamos terminar?
Demoro alguns segundos para processar a questão.
— O quê?
— Você precisa me dizer, estou me jogando no escuro, na cara e na
coragem, na burrice e nas grandes chances de sair perdendo nessa história
toda, e ficaria muito agradecida se dissesse se pretende terminar com o nosso,
bem, seja lá o que nós temos.
Sempre direta; é difícil de lembrar o tempo todo que poucas coisas
abalam essa mulher.
— Foi um erro — explico. Não estou habituado a admitir minhas
falhas, não sou esse homem que se arrepende dos erros cometidos.
— O que foi um erro? — Ela estreita os olhos, apertando o garfo
perigosamente.
— A gente não deveria ter transado, você merecia mais. Não quero que
saia machucada e é exatamente isso o que está acontecendo.
— Então estou "saindo" — ela afirma, fazendo aspas com os dedos no
ar. — É isso que está dizendo? É mesmo um término?
— O quê? Não, não. Você não está prestando atenção. — Levanto-me,
dou a volta para me sentar ao lado dela e seu perfume inebria meus sentidos,
remetendo à noite passada, quando se entregou sem medo para mim. Antes
de eu estragar tudo. — Não me arrependo, eu faria de novo, quantas vezes
fosse preciso. E é esse o problema: tirei de você algo importante e continuo
fazendo isso sem parar porque te quero demais e sou muito egoísta para
deixar você ir.
Serena aquiesce e suas pernas balançam para frente e para trás,
pendendo no banco alto. Se eu me inclinasse um pouco, poderia beijar seus
lábios e é torturante me obrigar a ficar parado.
— Você precisa parar com isso — conclui, a voz aveludada e soberana
enchendo meu peito de fascínio. — Eu posso ser meio doida, mas não sou
burra. Se aconteceu, foi porque eu deixei, não porque você quis. Se eu não
quisesse, você jamais teria entrado em buraco nenhum desse corpinho aqui, e
ainda faltam dois se minhas contas estão corretas.
— Aquilo no banheiro… — digo. Ela não me ajuda a manter o foco
declarando esse tipo de coisa — Eu perdi o controle, fui irresponsável.
Andrei me ligou, disse algumas merdas e eu me desesperei.
— Não foi ruim, só… triste. — Ela morde o lábio, coloca uma mecha
de cabelo atrás da orelha. — Senti como se estivesse me afogando em uma
escuridão sem fim e, de repente, percebi que na verdade era você. Eu gosto
de você, Vladimir, e também não me arrependo, também faria de novo mil
vezes. Não me importo.
— Pare de tentar justificar as minhas merdas, Serena! — Arrasto a
cadeira para trás, preciso de espaço. Caminho pela cozinha, gesticulando para
que ela entenda, talvez com a voz mais alterada que o normal. — Eu quero
você, entendeu? Eu quero tanto que estava comendo você como um filho da
puta irresponsável. Quero tanto que não me importei com a porcaria da
camisinha. Eu quero tanto, Serena, que sinto como se precisasse destruir o
mundo só para garantir que você fique ao meu lado, e sabe o que é pior? Eu
faria isso sem o menor remorso.
— Está dizendo isso porque não colocou camisinha? — Serena fica de
pé, colocando as mãos na cintura.
— Estou dizendo isso porque eu não me importei com a porra da
camisinha e nem com todo o resto! Seu irmão, Luna, sua cunhada, o fato de
estar afogando você nesse relacionamento sem futuro só porque eu sou esse,
esse…
— Monstro? — ironiza.
— Presidente — repreendo-a. — Com responsabilidades e
compromissos que não incluíam você. Mas não tenho o altruísmo necessário
para não te escolher.
— Sabe de uma coisa? Quando um não quer, dois não transam! —
grita, apontando o indicador como se pudesse furar os meus olhos. — Você
acha que me tem sob controle, mas quem me controla sou eu! Poderia ser na
cama, no chão ou no inferno, com ou sem camisinha, de cabeça para baixo ou
pulando de uma perna só. Não dramatiza a minha transa, porque de drama já
basta a minha vida.
Ela só pode estar de brincadeira. Não achei que pudesse me apaixonar
de novo, mas aconteceu.
Agora.
Aqui.
Nesse momento.
Serena não existe.
— Eu vou ter que ir a um jantar com outra mulher — confesso, munido
de toda a sinceridade que consigo. Talvez assim ela entenda.
Serena arregala os olhos, mas não recua ou demonstra qualquer fagulha
de decepção. Ela remói a informação, inclina a cabeça para o lado e bate o pé
nervosamente no chão.
— É uma namorada? — indaga, dando de ombros como se isso não
fosse uma catástrofe completa. Ela consegue mesmo me enfrentar.
— Não. — Sorrio.
— Você vai dormir com ela?
— Não.
— Vai transar com ela?
— Não, Serena, eu só quero fazer isso com você. O problema não é
esse. A família dela espera que a gente se case. Querem um acordo
matrimonial.
— E você vai aceitar isso?
— Eu quero você — garanto.
— Mas?
— Mas eu não posso permitir que a empresa sofra um desfalque dessa
magnitude. Vou precisar…
Fazer coisas.
— Existe a mínima chance de você me escolher? — Serena ergue os
dois braços para trás do pescoço.
— Como eu disse, ainda não sei como deixar você, como não escolher
você. Eu te quero demais, Corazón. Talvez seja meu lado presidente egoísta
falando, talvez o monstro, ou talvez seja apenas eu, Vladimir Volkiov. Mas
todos os meus lados querem você.
— Então é melhor decidir o que é mais importante, porque eu não vou
ser amante de ninguém. O que você quer, ou o que você precisa, são coisas
que só você pode escolher. — Puxando o laço do vestido, o tecido desliza
pelo corpo de Serena, exibindo novamente seu corpo vestido com apenas
uma calcinha branca e uma bota de salto. — Eu disse que sempre caminharia
metade do caminho.
— O que está fazendo? — Fecho os olhos, mas é tarde demais, a
imagem já está impregnada na minha cabeça.
— Eu quero você, Vladimir. Não sou chefe de nada, e nem quero, Deus
me livre de um fardo assim. Pegar o chefe já é mais do que suficiente. Não
preciso escolher entre você ou qualquer coisa. Enquanto toma a sua decisão,
a minha já foi tomada. — Serena me abraça, segura a minha mão e guia sobre
o próprio corpo, conduzindo meus dedos ao longo da cintura até a região
entre as suas pernas. — Até voltar desse jantar e fazer a sua escolha,
voltaremos a ser amigos, porque eu sou louca demais e posso cair em
tentação, então livrai-nos do mal e não quero ser feita de trouxa. E, agora,
você vai terminar o que começou, e vai fazer ser bom dessa vez.
Introduzo um dedo nela, sem contrapor sua oferta de sermos amigos.
Amizade é a última coisa que eu espero ter com Serena.
— Vai ser bom — prometo em seu ouvido. Serena sorri, infestada de
luxúria.
— Não tenho dúvidas — murmura, abrindo os botões da minha roupa.
— Desculpa — sussurro no outro ouvido, deixando um beijo no lugar
para selar o meu pedido. Ela pousa o dedo indicador na minha boca, sorrindo
como um anjo que sobrepuja a desordem.
— Não se machuque mais, Lord Vlad.
Dessa vez, a gente se afoga junto e, por mais que as águas continuem
escuras e turbulentas, a mão de Serena entrelaçada na minha me faz olhar o
fundo do mar com outros olhos.
SERENA
— QUE TIPO DE sexo mutante vocês dois fizeram para voltarem com uma
filha desse tamanho? — Roman pergunta assim que ultrapassamos a soleira
da mansão.
— O tipo “guarde seus comentários inapropriados para você” —
responde Vladimir com Luna acomodada em seus braços fortes e protetores;
não me passa despercebido a falta de negativa. — Onde estão todos?
Roman balança os ombros despreocupadamente.
— Andrei e Ivan continuam na empresa, Lara também teve que ir,
porque aquilo sem você beira o apocalipse e, sem ela, se tornaria uma
catástrofe completa. — Ele está sentado no chão diante da mesa de centro
localizada no meio do salão de entrada. Há vários papéis quadriculados com
desenhos arquitetônicos esparramados ao seu redor e dois computadores
ligados, um sobre o sofá e outro ao seu lado, em cima do tapete branco e
felpudo. A camisa desarrumada deixa à mostra aquela tatuagem com o lobo
em fúria, e a gravata desfeita esparrama em seus ombros. — Eu já tive minha
cota de terno para uma vida inteira ontem, por isso estou trabalhando em
casa.
— Então você trabalha de verdade — comento por impulso. O
pensamento escorrega sem que eu perceba, mas Roman gargalha alto ao fim
da minha constatação.
— Claro que eu trabalho, bebê. — Ele pisca um olho galante. — Ou
você acha que essa empresa teria tanto sucesso sem o melhor e mais gostoso
engenheiro de Moscou?
— Da Rússia — Vladimir corrige; há certo orgulho e prepotência em
seu tom. — Você é o melhor do país.
Luna, observando a falação, solta uma sequência de resmungos sérios
como se quisesse participar da conversa. Os dois irmãos olham um para o
outro e sorriem. Vladimir parece sempre direcionar uma atenção curiosa para
minha sobrinha, quase contemplativa. Durante todo o caminho, notei seu
olhar preocupado desviando para o espelho retrovisor, zelando por Luna na
cadeirinha que custou uma pequena fortuna já que Vladimir não possui
nenhum discernimento sobre limites de preço.
— Ela disse que me acha lindo, ouviram? A filha mutante de vocês
sabe das coisas. — Roman se levanta, fechando os botões inferiores da roupa.
Os braços, expostos por causa das mangas dobradas na altura dos cotovelos,
são marcados por músculos e desenhos sobrepostos difíceis de identificar. —
Qual o seu nome, gracinha? — Ele acaricia a bochecha de Luna com a ponta
do indicador, mas não recebe nenhuma reação além dos olhões negros da
pequena perscrutando seu rosto.
— Ela se chama Luna — Vladimir responde enquanto confere qualquer
coisa nos materiais de trabalho do irmão.
— É minha sobrinha — explico, ao perceber que Vladimir não vai
mesmo se prontificar a tanto. — Filha do Camillo.
— Não que isso signifique muito — Vladimir murmura, ríspido.
Não contesto, pois compartilho da mesma opinião. Camillo nunca
conseguiu se cuidar ou me dar o apoio de que precisava. Ainda não entendo
as circunstâncias em que Luna foi gerada, mas tenho certeza de que, se ele
realmente se importasse com a segurança dela, não teria deixado a filha
naquelas condições para desaparecer no mundo.
— Sinto muito que as coisas tenham que ser assim, Serena — Roman
diz. Acho que é a primeira vez utilizando meu nome ao invés de algum
apelido esperto. — Estamos em dívida com você.
— Ela está melhor agora — afirmo com um sorriso amarelo. Suspeito
que não esteja se referindo somente à situação com Luna, mas sim ao meu
relacionamento estranho com seu irmão. Chego mais perto de Vladimir, que
tenta se inclinar o máximo possível para analisar o material de trabalho do
irmão, ao mesmo tempo em que se equilibra com a bebezinha repuxando a
gola da sua camisa como se fosse muito divertida.
— O que são essas coisas? — Vladimir indaga, as expressões faciais
transmutando de brandas para preocupadas.
A boca de Roman se retorce em uma careta ao focar na bagunça
esparramada por toda a sala. Desde a minha chegada, pude perceber que os
únicos que realmente usam os escritórios residenciais para trabalhar são
Vladimir e Ivan — o segundo com menor frequência, já que dedica noventa e
nove por cento do seu tempo livre para agradar a esposa ou brincar com o
filho.
— Bem — diz, sua mão correndo para o cabelo acastanhado, os fios
muitos tons mais claros que os de Vladimir ou Andrei —, eu estava curioso
sobre o que nossa mãe tanto procura naquele almoxarifado e resolvi me
aventurar pelas velharias do coroa. Encontrei essas plantas escondidas em um
baú mofado.
— São da empresa? — Vladimir endireita o corpo, a linha de sua
mandíbula muito comprimida. Qualquer coisa que remeta à empresa faz com
que assuma uma postura rígida.
— São horríveis, uma completa porcaria. Quem desenvolveu essas
plantas deveria estar na cadeia. Estão timbradas com o logotipo da
Corporação Volkiov, mas eu nunca me deparei com um projeto tão ruim.
Acredito que sejam de oito ou nove anos atrás, quando nosso pai ainda lidava
com tudo sozinho. — Ele pega um bloco e mostra para Vladimir; eu me vejo
deslocada no meio do assunto. — Olha essa lista de materiais, uma
construção assim seria o mesmo que assassinato em massa.
Uma sombra rasga o rosto de Vladimir a tal ponto que até Roman fica
momentaneamente sem fala. Seus olhos cintilam como se tivessem o poder
de incendiar o documento. Ele se perde em um pensamento desesperador;
reconheço o tormento, sempre identifico o poço de escuridão porque já estive
lá dentro.
Luna resmunga, completamente alheia ao homem severo que a sustenta
com braços fortes e destemidos. Ela boceja com sua boca minúscula, a cabeça
pende para frente e pousa no ombro de Vladimir.
Tão rápido quanto veio, a reação dele escorre para longe e Vladimir
retoma o controle das próprias expressões, escondendo seja lá qual tipo de
gatilho o fez recorrer ao monstro.
— Era isso o que nossa mãe estava procurando? — pergunta, a palma
da mão acariciando as costas de Luna e suas iniciativas de carinho com ela
são como punhos fechados ao redor da minha saúde emocional.
Quero tanto que ele me escolha. É um sentimento de dependência
grande e profundo demais para ser negado. Burra e burra! Já tinha ouvido
falar que o amor deixa as pessoas um pouco idiotas, mas eu devo estar
batendo algum tipo de recorde. Se existe uma marca histórica para ser
humano mais trouxa no guinness book, então conquistei o primeiro lugar há
tempos.
— Não, não. Quando perguntei, ela disse que queria encontrar uma
fotografia velha e que eu cuidasse da minha vida, arrumasse filhos e o resto
vocês já sabem.
— O que pretende encontrar revirando essas coisas?
— Na verdade, não sei bem. — Roman volta para perto da mesa,
sentando-se no chão, no mesmo lugar em que estava acomodado antes de
chegarmos. Ele pousa o olhar nos itens listados nas folhas em sua mão e um
vinco se forma em sua testa enquanto a expressão indignada aprofunda nos
traços masculinos e incisivos. — Tenho a sensação de já ter visto esse projeto
em algum lugar e acho que acabei ficando um pouco obcecado.
— Avise-me se descobrir alguma coisa — Vladimir solicita, como se
houvesse realmente algo para ser encontrado.
Ele estica a mão e segura a minha, começa a nos guiar para os fundos
da mansão, onde, suponho, pretenda encontrar sua mãe para apresentar Luna.
Porém, antes que tenhamos a chance de ultrapassar o arco de madeira do
corredor principal, a voz de Roman se materializa novamente, fazendo
Vladimir cessar os passos.
— Você conferiu o e-mail que mencionei?
Do que eles estão falando?
Os dois irmãos se entreolham, conversando em silêncio e me excluindo
totalmente de qualquer que seja o assunto. Roman e Vladimir são muito
diferentes fisicamente, apesar de ambos serem fortes e exalarem
sensualidade, mas os dois estão envoltos por uma atmosfera perigosa e cheia
de mistérios.
Se Vladimir se intitula um monstro, o próprio demônio sedento pelo
poder absoluto, imagino que tipo de criatura seria Roman e quais são os seus
desejos.
— Sim. — É tudo o que Vladimir responde, e essa única palavra mais
se parece com um rosnado.
Sem se intimidar, Roman estampa um sorriso cínico e abusado no
rosto; seu canino esquerdo aponta sobre o lábio e os olhos brilham com uma
diversão sem prestígio.
Misericórdia, é muito sex appeal reunido em um lugar só.
— Interessante — ironiza, espreguiçando os braços para trás da cabeça
—, porque ontem eu me lembro de ter ouvido um rumor na empresa sobre
você passar a semana fora. Achei que fosse acabar com essa merda. A gente
não precisa do dinheiro deles de qualquer forma.
Finjo não prestar atenção, mas fica evidente que estão falando sobre o
compromisso de Vladimir com sua pretendente. Imaginar a cena de ele se
casando com outra mulher faz minha garganta arder. Mesmo lutando para ser
forte, o amor germinando no meu coração já criou raízes profundas demais.
Eu gostaria de entender por que o destino foi tão cruel conosco se
nunca existiu um futuro para nós.
Os dedos de Vladimir roçam na minha bochecha e sobressalto ao ser
retirada dos pensamentos de pesar. É uma sensação mágica, o simples toque
do homem que amo assopra o medo do amanhã para longe, e aquele órgão
idiota e vermelho no meio do meu peito começa a pulsar mais rápido.
— Eu vou acomodar Serena e Luna agora. — A iluminação diurna
filtrada pelas cortinas da mansão transforma o azul oceânico dos olhos de
Vladimir em uma turquesa fosca; e, enquanto conversa com o irmão, ele não
desfaz nosso contato visual um segundo sequer, como se as palavras fossem
dedicadas apenas para mim e mais ninguém. — Andrei me adiantou algumas
coisas, mas também fui pego de surpresa com essa viagem. Eu vou resolver
tudo o mais rápido possível.
— O senhor quem manda, presidente. — Roman não se preocupa em
disfarçar o descontentamento.
Vladimir desfaz o toque ao ter seu cabelo puxado por Luna. Arqueia
uma sobrancelha para a menina, como se ela tivesse habilidade para
interpretar expressões faciais, e se coloca a andar corredor adentro,
sussurrando alguma advertência bem-humorada sobre a importância de
manter sua aparência sempre alinhada.
— Serena — Roman diz com o volume da voz várias escalas mais
baixas. Meus pés se prendem ao chão enquanto assisto Vladimir desaparecer
por uma curva. — Você está bem?
— Por que a pergunta? — Cruzo os braços e encosto na madeira que
ornamenta a passagem; minhas articulações doem pela viagem e por toda a
experiência vivida com Vladimir.
— Meu irmão sabe como ser um canalha quando quer, é coisa de
família. — Ele puxa um dos computadores para mais perto e se curva para
voltar ao trabalho, enquanto continuo parada administrando sua tentativa de
consolo. — Estou tentando acreditar que ele não vai ferrar com tudo, bebê.
Vladimir leva a empresa realmente a sério, aquela merda é a vida dele e você
caiu de paraquedas bem no meio do campo minado.
— Nosso relacionamento tem prazo de validade — digo com um
humor forçado e áspero. Roman tem se mostrado um bom ouvinte durante a
minha estadia, talvez por sermos parecidos em nossa propensão de falar o que
pensamos. — E já estou acostumada a me ferrar sozinha.
— Não é da minha conta o relacionamento bizarro de vocês dois, sabe?
Eu não me envolvo com ninguém justamente por causa disso, o drama é uma
merda. Mas se tem uma coisa em que eu e Vladimir somos exatamente
iguais, é que a gente não sabe a hora certa de recuar.
— Agradeço a sua preocupação, mas sei me cuidar.
Um riso nasalado deixa as narinas de Roman, seus ombros estremecem
e a cabeça gira da esquerda para direita em uma negação abatida.
— Não é bem com você que estou preocupado…
Passos reverberam pelo corredor, o som de um sapato pesado assalta o
chão, sobrepujando a centelha de gentileza que Roman estava tentando
oferecer. Olhamos a tempo de ver sua mãe em polvorosa com Luna
desajeitada em seus braços cobertos por joias. O cabelo solto cobre seus
ombros como um cobertor prateado e o macacão esvoaçante e esmeraldino
comprova minhas suspeitas de que Tatiana está sempre vestida para arrasar.
— Veja isso! — Tatiana grita com a voz estridente. Luna sobressalta e
se desmancha em uma gargalhada sonora que atravessa meu coração com
uma dor muito maior do que qualquer outra que já senti na vida. É a primeira
vez que escuto o som da sua risada. — É um bebê! Uma criança, Roman.
Não lembro quando foi a última vez que tive uma dessa em meus braços.
Ela passa por mim e corre em direção ao filho, balançando Luna de um
lado para o outro, exibindo a pequena como se fosse um troféu.
No meio dessas pessoas amáveis e barulhentas, se torna mais evidente a
precariedade da minha vida. Tenho pouco para oferecer a essa criança, menos
do que eu gostaria, menos do que ela merece, e não apenas em termos
financeiros. Duvido que Vladimir nos abandone sem qualquer ajuda, ele é
detalhista, controlador e metódico demais para fazer uma coisa dessas; além
do terreno, que deve me render uma boa quantia. Mas… e o resto?
O conforto dessa família talvez tenha afetado o meu cérebro, que já não
funciona muito bem. Talvez a segurança de Vladimir em suas decisões tenha
impedido que eu pensasse com clareza a respeito da minha capacidade de
assumir responsabilidades pela vida de outro ser humano.
Adotar uma criança, assumir Luna como minha filha, significa que a
minha vida vai estar ligada à dela para sempre. Minha vida, a mesma que
tentei eliminar no passado após a morte dos meus pais.
É seguro?
Eu sou a melhor escolha para cuidar dela?
E se algum dia eu falhar? E se eu falhar com ela? E se eu desistir outra
vez?
— Corazón. — A palma de Vladimir encontra minhas costas e sua
chegada repentina me assusta, fazendo meu corpo recuar por impulso; essa
reação involuntária não passa despercebida por seus olhos astutos. — O que
aconteceu?
— Eu só… — Estava quase tendo o princípio de um ataque de
ansiedade. — Acho que preciso descansar um pouco.
Esfrego as mãos uma na outra. Elas deslizam com o suor frio
acumulado e minha respiração condensa nos pulmões, preenchendo-me com
a certeza de que preciso mesmo de uma consulta se quero manter o
equilíbrio. Já adiei o inevitável por tempo demais e Vladimir não é
exatamente o homem ideal para minha sanidade.
Aliás, duvido que seja ideal para a sanidade de qualquer mulher,
misericórdia!
— Exatamente, precisamos comprar móveis novos — Tatiana conversa
com Roman, que parece colocar ideias na cabeça da mãe. — E roupas,
vestidinhos com muitos babados, um berço grande e espaçoso.
— Quem sabe uma conta bancária para pouparmos dinheiro para os
estudos? — Roman sugere e, apesar do semblante de quem conta uma piada,
Tatiana continua concordando.
Agora entendo o receio de Lara em contar sobre suas suspeitas de
gravidez.
— É uma boa ideia — sussurra Vladimir, empurrando minha ansiedade
um pouquinho mais para a borda de uma montanha muito alta que engana
com ecos de esperanças traiçoeiras.
Fecho os olhos para que os últimos resquícios do medo se dissipem da
minha cabeça. Assuma o controle, Serena, sua idiota. Permanecer ao lado de
Vladimir, mesmo com tudo me dizendo o contrário — inclusive ele mesmo
—, foi a minha escolha final.
A porta da mansão se abre, revelando a chegada dos membros
remanescentes da família. Lara e Ivan, ambos vestidos com roupas formais,
entram abraçados e congelam no lugar como se a cena diante dos seus olhos
não fosse condizente com qualquer dedução — e não é mesmo. O pequeno
Iago, cujo cabelo se encontra impossivelmente comprido e bagunçado para o
alto, franze as sobrancelhas louras, fazendo jus à confusão dos pais.
— Lara, querida! — cantarola a matriarca, avançando sobre a nora e
empurrando Luna em sua direção. — Segure, segure — repete. Lara a segura
com receio e as bochechas da minha pequena adquirem uma coloração
avermelhada com todo o movimento. — Veja, Ivan, como a sua mulher fica
linda segurando um bebê!
É automático: Lara olha na minha direção e sorri. Nem passa pela sua
cabeça a forma como a minha língua contorce para espalhar seu segredo aos
quatro ventos, pobrezinha.
A família se amontoa sobre Luna, cada um com uma ideia diferente
sobre coisas que precisam ser providenciadas. Iago se enfia no meio do
aglomerado e acaba sentado no sofá com Luna em seus braços.
Eles conversam sobre tudo ao mesmo tempo e, depois de Ivan explicar
que a empresa se tornou um verdadeiro pandemônio, Vladimir relata um
pouco sobre as condições do abrigo — Lara demonstra um interesse
particular sobre isso, perguntando detalhes sobre funcionários e
documentações.
Enquanto os assisto, uma movimentação no degrau mais baixo da
escada chama a minha atenção.
Andrei, com as mãos escondidas nos bolsos da calça branca, assiste ao
desenrolar da cena. Não se aproxima como o resto da família, apenas fica
parado, a expressão indecifrável e um pouco sombria, talvez
assustadoramente triste. Como se fosse atraído pelo peso da minha
curiosidade, gira o pescoço e nossos olhares se encontram, mas o irmão mais
novo de Vladimir não se atém. Ele desvia o rosto e sobe as escadas em
silêncio.
***
"Ainda bem que tenho dez dedos em perfeito estado de funcionamento e estou
fazendo bom uso deles. Mas obrigada pela intenção, Lord Vlad."
Safado!
Antes que eu tenha tempo para enviar uma proposta envolvendo fotos
íntimas, o universo interfere — ainda bem, porque se eu não tenho limites,
pelo menos o meu anjo da guarda tem um pouco — e o som de um galho
quebrando nas imediações tira minha atenção de Vladimir e nossos
complexos, levando meus olhos a encontrarem um Andrei claramente
constrangido cortando caminho pela lateral da mansão para entrar pelos
fundos.
Ele não tem tempo para disfarçar ou fingir que não me viu, a distância é
curta demais. Olhando para os lados, Andrei se coloca a caminhar na minha
direção, seu cabelo ondulando junto com o vento; a camisa amarrotada é só
um lembrete de que continua não dormindo em casa.
— Não queria assustar você — diz, inquieto, sondando Luna no chão
em seu tesouro de musiquinhas irritantes.
— Não me assustei, só estava distraída — explico, mostrando o celular.
Andrei, apesar de ser o mais jovem, é tão alto quanto Vladimir e seu
rosto tem os mesmos traços robustos do irmão mais velho. Exceto pela cor
dos olhos, ele poderia muito bem ser uma versão mais jovem do presidente.
É bonito, extremamente gracioso com sua voz rouca, mas o ponto
marcante em Andrei é o sorriso que parece abraçar o mundo inteiro.
Ultimamente, contudo, só o vejo sorrindo de verdade quando está com Lara.
Os dois agem como se fossem irmão, melhores amigos. É uma relação de
confiança diferente e bonita.
Procuro qualquer coisa esperta para dizer a fim de tornar a conversa
mais leve, mas Andrei se agacha perto de Luna, os lábios comprimidos e
sérios.
— Eu posso… eu posso segurar ela?
Há tanta melancolia no tom da sua voz que que meu coração reclama.
Devagar, aquiesço e Andrei se inclina sobre a pequena, segurando-a nos
braços como se tivesse nascido para fazer isso a vida toda. Assim que a tem
acomodada sobre o antebraço, pousa a mão aberta nas costas da minha
sobrinha.
Algo acontece. Luna busca a ponta do nariz de Andrei, apertando de
leve como costuma fazer sempre quando alguém a carrega, e a expressão dele
desmorona. Os lábios tremem e ele vira de costas, mas não rápido o
suficiente para esconder a lágrima que escapa de um de seus olhos.
— Desculpe — sussurra, seus ombros tensos. Não entendo muito bem
pelo que está se desculpando, mas, se antes eu já achava suas atitudes
estranhas, agora estou repensando seriamente em que tipo de confusão está
enfiado para se sentir tão triste. — Nunca tinha segurado uma assim.
Lembro-me de já ter escutado a família conversando sobre o sonho que
Andrei cultiva de construir uma família grande. Ele seria um pai excelente,
não tenho dúvidas. Porém, como a intrusa aqui sou eu, evitei me aprofundar
no assunto. Ele gosta de crianças, o que para mim já é estranheza o suficiente.
Não que isso seja um defeito, claro. Só não entendo como pode querer
uma coleção delas. Luna já tem tirado o meu sono, imagina duas Lunas?
— Está se saindo melhor do que eu — tranquilizo-o com a verdade. —
Acho que nunca vou me acostumar.
Andrei me encara. O contorno dos seus olhos é grande, expressivo e
marcante, e está agora tingido com uma quase imperceptível tonalidade
rosácea. É incômodo ser examinada por ele, como se fosse capaz de enxergar
coisas que as outras pessoas não conseguem. O olhar de um advogado.
Do melhor advogado do país, como diria Vladimir.
— Annia não vai sair da prisão — diz de repente, começando a
caminhar com Luna em um semicírculo. Se eu pudesse escolher, não
teríamos essa conversa agora, pois a simples menção às minhas
responsabilidades com Luna faz as minhas mãos perderem o calor. — Pelo
menos não pelos próximos três ou quatro anos. É você quem ela vai chamar
de mãe.
Desconfortável com seu tom definitivo e direto, volto a encarar o
celular em minhas mãos, para a mensagem íntima de Vladimir.
Mãe.
Sim, já me conformei com essa certeza desde o dia em que a buscamos
no abrigo.
— Suponho que sim. — Tento parecer descontraída, mas está mais do
que provado que Andrei tem alguma ressalva com relação à minha presença.
Então minhas opções são: fingir demência ou ir direto ao ponto. — Você não
parece gostar muito dessa história toda. Eu entendo se achar que nossa
estadia aqui seja um incômodo…
Suas duas sobrancelhas juntam sobre os olhos, incompreensão
estampada em sua face enquanto tenta processar a pergunta.
— Foi isso o que pareceu? Não, não mesmo. É só… — Atrapalhado,
Andrei se aproxima e se senta ao meu lado, sustentando Luna em seu colo.
As mãozinhas gordinhas logo encontram entretenimento nos botões da
camisa. — Eu sou advogado, ser um pouco intrometido faz parte de quem eu
sou. Com você e sua sobrinha envolvidas nessa confusão, ainda não consegui
enxergar um cenário que seja benéfico para vocês duas. — Andrei acaricia os
cabelos lisinhos, finos e muito pretos de Luna. — Porque confia tanto nele?
Vocês se conhecem há tão pouco tempo.
Porque eu sou louca?
— Essa é uma boa pergunta. A genética de vocês facilita bastante, claro
— brinco. Inclino a cabeça para trás e explico da maneira mais sem sentido
possível, afinal de contas, nada em nós dois tem qualquer coerência. — Os
defeitos dele são muito atraentes.
— Os defeitos? — Andrei gargalha alto. Meu corpo relaxa com o clima
entre nós mais brando e ele vira de lado para me encarar.
— Vamos, não me olha com essa cara como se quisesse me internar —
pestanejo, acompanhando sua risada. — Seu irmão tem um monte de
defeitos: ele é mandão, controlador, exagerado ao extremo, um pouco
dramático, possessivo, mentiroso, manipulador, egocêntrico… Céus, o ego
dele é gigante! Eu devia correr para longe e fingir que nunca nem vi esse
projeto ambulante de arrogância? Sim, claro, com certeza. Mas, e depois? —
sussurro a última parte.
E depois?
— Como assim? — pergunta, ecoando meu pensamento.
— O gosto da desistência é mais amargo do que o da derrota —
explico, insolente e com o queixo erguido. — E dentre essas duas
possibilidades, há uma com a qual não consigo lidar.
Uma que eu não sei controlar sozinha.
Desistir.
Agora o sorriso dele cresce, verdadeiro e fraternal. Andrei empertiga o
corpo, assumindo uma postura mais formal, mas sem cortar o enlevo da
conversa.
— Vejo que sabe se cuidar — diz, cúmplice. Andrei conversa com
Luna, entregando um avião de borracha que berra quando a gente aperta.
Cruzes. — Na verdade, estou surpreso. Não imaginei que existisse alguém
que conseguisse lidar com Vladimir.
— Lidar com o seu irmão? Deus me livre, seria meu sonho. Na maior
parte do tempo a gente só resolve as coisas na base do… Não importa.
Vladimir está lá, eu estou aqui. Não há nada que possamos fazer.
Não queria parecer dependente, não queria o olhar de pena, porque eu
odeio esse olhar, mas Andrei é educado demais para não demonstrar empatia.
Esse menino pode ser bem perigoso para corações ingênuos se quiser, sua
sagacidade e sofisticação o transformam em uma armadilha, porque, no
fundo, vai sempre acabar se aproximando e roubando nossos segredos sem
que a gente perceba.
— Me empresta seu celular? — Pede. Entrego-o, intrigada com
qualquer que seja sua intenção, e Andrei digita alguma coisa antes de se
arrastar alguns centímetros mais para perto. — O que está fazendo?
— Lembra aquilo que eu falei sobre ser advogado? A gente desenvolve
uma certa habilidade para saber o que mais afeta as pessoas. — Andrei ergue
o aparelho, inclina para o lado, encostando o ombro no meu. O som do clique
vem antes que eu tenha tempo para desviar meus olhos do seu rosto.
— E o que afeta o poderoso chefão? — desdenho, brincando com uma
mecha do meu cabelo, que está todo bagunçado por causa do vento.
Seus dedos ágeis voltam a passear pela tela, fazendo com que Luna
fique muito animada com a possibilidade de atacar mais uma coisa que faz
barulho, mas pego-o antes que a pequena cause algum estrago que eu não
tenha condições de pagar. Confirmo minhas suspeitas de que Vladimir acaba
de receber uma mensagem um tanto inusitada.
— Isso não é obvio? Vocês duas. — Muito seguro do que está falando
e fazendo, Andrei retira seu celular do bolso e espera, espera e espera. Cerca
de vinte segundos depois, ele começa a tocar e vibrar com o nome de
Vladimir destacado no visor. — Está vendo? Previsível.
A sensação é boa, não vou negar, como uma massagem na autoestima e
um leve sabor de vingança. O celular para e recomeça. Andrei fica rindo o
tempo todo, a hesitação que tinha de se aproximar finalmente vencida.
Eles nunca percebem o quanto eu os olho. O quanto eu
os enxergo. Seria bom ter uma família assim. Seria bom para a minha
Luazinha ter uma família assim.
Ela foi salva por eles daquela vida de misérias.
A gente não atende o telefone.
***
***
Sou levado para os armazéns nos fundos da minha casa. O lugar está cheio,
mais que o normal, com montes de barris e caixas de madeira. Há poucas
pessoas. Doze. Não… onze. Onde foram parar os outros?
Maksim dá ordens para que me deixem em um cômodo pequeno,
fechado e claustrofóbico. Dez minutos se passam. Depois mais dez. Eu os
escuto conversando do outro lado, mas não entendo as palavras.
O quarto começa a rodar, balançar, como um navio em alto mar. Não é
a primeira vez que acabo preso aqui dentro; houve algumas situações em que
desejei, inclusive, nunca sair.
A porta se escancara, o metal choca contra a parede e o som estridente
atravessa a minha cabeça como uma perfuração. Cada pequeno ruído parece
se amplificar em largas escalas. Maksim entra acompanhado de dois de seus
homens, eles possuem armas em punhos e uma expressão de piedade nos
rostos. São meus amigos, hermanos.
— Eu deveria matar você. — Maksim coloca as duas mãos dentro dos
bolsos; à meia-luz, suas tatuagens parecem manchas incoerentes de tinta
escura. — Madrid, Morella, Roma, Florença. Férias invejáveis, de fato. —
Ele balança a cabeça, passa as mãos nos cabelos. Faz um sinal para que os
homens nos deixem sozinhos.
— Pensei que se encontrasse uma maneira de provar os crimes de
Nicolai Volkiov, nós poderíamos ir embora. Em Morella, visitei lugares,
casas. As pessoas lá são menos extremistas… — justifico desesperadamente,
sentindo-me muito menor e incompetente ao expor meu completo fracasso.
A expressão de ódio esmorece.
— Você sempre foi um sonhador, Camillo. Alguém como eu só
consegue sair dessa vida de uma maneira: no caixão. Está usando de novo?
— pergunta sentando-se em uma cadeira de frente para mim. Não respondo, é
uma questão retórica. — Só vai sair quando estiver limpo dessa merda.
Não fode.
— Me voy a morir. — Desespero-me. — Não dá para parar assim. Se
me trancar aqui dentro, eu vou morrer!
— Você vai sair disso — determina, retirando uma seringa de dentro do
bolso, a agulha ainda escondida pela capa protetora. É uma dose pequena,
mas, ainda assim, eu a desejo como nunca desejei mais nada na vida. —
Devagar. Vai ficar aqui dentro enquanto eu resolvo a bagunça que você fez.
Amanhã o senhor Kokorin tem uma festinha com Vladimir. Ele pediu para
que continuássemos incitando a vizinhança contra ele. Mas agora os planos
são outros.
— Como assim? — indago, toda essa sua passividade me deixa alerta.
— Serena. Você precisa trazê-la para o nosso lado, Camillo. Ou tudo
terá sido em vão. Você precisa convencê-la a nos ajudar. O senhor Kokorin
disse que se tivéssemos as plantas do prédio, seria tudo muito mais rápido.
Ele está prestes a pedir a neta do velho em casamento e, depois que
provarmos o lixo que são e o presidente for preso, ela herdará metade de
tudo.
— Não — nego, a ideia é perturbadora demais.
— Depois do que Vladimir fez, eu perdi forças, Camillo. Ele ferrou
com o meu distrito!
Nos bastidores do submundo, o que se conta é que Vladimir Volkiov
extinguiu o legado de Nicolai; um algoz para o demônio, e seu ódio foi tão
grande que sua capacidade de manipulação e destruição passou a ser temida.
Maksim é irredutível, não adianta discutir.
A ideia não é péssima, somente assustadora. Mas Serena em breve
saberá o que aquela família tirou de nós, é um destino que não pode ser
evitado.
Maksim se ajoelha e puxa meu braço. Ele não me olha enquanto amarra
o elástico. Não me olha enquanto bate na seringa, preparando o líquido. Ele
também não me olha quando perfura a minha pele e eu sou tomado pelo
alívio mais incrível de todos os tempos.
A química corre pela minha corrente sanguínea, a adrenalina é
imediata.
Maksim joga a seringa para o outro lado do quarto e, em um piscar de
olhos, empurra-me sobre a cama, seus lábios colidindo contra os meus com
agressividade, ressuscitando lembranças de todos os motivos que nos
trouxeram para essa situação.
O pobre menino órfão precisando de ajuda e com uma incomparável
necessidade de vingança conhece o grandioso líder de uma facção criminosa.
Duas pessoas de mundos diferentes que se apaixonaram apesar das
circunstâncias.
Enquanto a anestesia do prazer se intensifica em um turbilhão de cores
e sentidos, eu recordo das suas palavras quando a gente se rendeu pela
primeira vez.
"Maldições são bonitas, Camillo. A rosa na redoma é linda. E quando
eu olho para você, sei que não deveria, que é perigoso, mas estou enfeitiçado
demais".
A rosa na redoma é uma maldição, mas nunca consegui entender qual
de nós dois ela representa.
VLADIMIR
***
Ele inspira, seu nariz trilha um caminho pelo meu pescoço e a mão aberta
ampara meu rosto para que eu mantenha a cabeça inclinada.
— Você vai se atrasar — comento, embora não me importe nem um
pouco.
— Sou o presidente — responde, sem abandonar a minha pele,
projetando-se sobre o meu corpo enquanto me apoia contra a porta fechada
da limusine. Limusine! Esse deve ser o auge da minha vida: estar prensada
contra um carro chique por um ricaço gostoso. Meu Lord Vlad. — Eu faço os
horários, esqueceu?
— Esquecer que você é o presidente? — arfo. Ele deixa que os dentes
alcancem meu maxilar, mordiscando com força assim que chega no queixo
antes de me roubar um beijo cheio de ganância. — Impossível.
Sei que ele não gosta quando o chamo assim — presidente — apesar de
eu achar incrivelmente sedutor. Nunca vou me cansar do seu lado sombrio,
poderoso e autoritário, por isso não tenho medo de provocá-lo, de fazer com
que seu humor oscile entre o romântico perfeito e carinhoso e um completo
filho da puta mandão, ainda mais quando o último caso consegue me fazer
sentir coisas em partes do corpo que eu nem sabia que existiam.
— Já disse para não falar essa merda — grunhe. Enfia os dedos na
minha nuca, puxando a raiz do meu cabelo para trás em busca dos meus
olhos.
Estamos em um embate de desejos há mais de vinte minutos, com
certeza. Andrei foi direto para a empresa depois que saímos do presídio, e
Vladimir me trouxe para casa. Desde então, ele não deixou de me beijar e
perguntar se estou bem.
— Eu gosto — digo. — Acho muito calliente, el presidente — digo em
espanhol, rebelando-me um pouco em seu território de poderes.
— Preciso aprender essa sua língua esperta — reclama nada feliz,
desconfiado até da própria sombra. — Corazón.
Ainda é cedo, pouco antes do meio-dia. A mansão cria uma sombra
agigantada, protegendo todo o jardim que está florido agora que a primavera
se consolidou. Há funcionários cuidando da limpeza e das folhagens do
pequeno labirinto de arbustos, e Vladimir os olha com frequência como se
reprovasse a presença deles.
A segurança também foi reforçada, há mais guarda-costas com
Vladimir quando saímos e novos vigilantes nos limites da propriedade.
Vladimir pediu para que eu, Lara e a mãe não saíssemos sozinhas, porque
teme uma retaliação de Efrem Kokorin ou algum movimento de Maksim.
Agora que descobrimos sobre estarem trabalhando juntos, temo que
Vladimir ficará ainda mais protetor.
Ele disfarça bem, e nunca vai admitir que precisa de ajuda, mas toda
essa situação me preocupa: sua saúde, seus traumas sobre Nicolai... Guardar
tudo isso deve ser devastador.
Se está preocupado ou com raiva do que Annia confidenciou, não deixa
transparecer.
— Por que mudou de ideia sobre Annia? — pergunto quando recobro a
consciência que ele havia roubado com um beijo invasivo e devasso.
— Aquilo que Annia disse na prisão, sobre as coisas que acontecem no
distrito… — Nega com a cabeça, o brilho da ira cintilando em seus olhos. —
O que poderia ter acontecido com a sua vida, eu… apenas foi demais para
mim.
— Entendo — murmuro, envolvendo suas costas com os braços
enfiados por dentro do seu paletó aberto. — Isso não incomoda você? Nossas
diferenças? O lugar de onde eu vim?
— Financeiramente, você quer dizer? — Ele desdenha com os ombros,
a pergunta o diverte. — Pode ser horrível o que vou falar, mas a essa altura
acho que você já me conhece bem o suficiente para não se chocar. Eu tenho
dinheiro, Corazón. Muito dinheiro. Não pense que estou me gabando ou algo
parecido, mas tenho certeza de que qualquer mulher com quem me
envolvesse, por mais rica que fosse, continuaria tendo menos dinheiro do que
eu. Então a diferença seria apenas pela empresa. Lara é provavelmente a
única que possui tanto capital acumulado quanto nós, pelo menos em
Moscou, mesmo a família tendo perdido muito por causa do pai ela.
Vladimir nos gira, trocando nossas posições e apoiando-se contra a
lataria preta e reluzente do veículo. Não encontro nada do seu habitual
egocentrismo, é um desabafo e uma verdade.
— Aceitar isso faz parte do meu cargo como presidente. Então, se você
quer saber se me incomoda ter mais dinheiro do que a maior parte das
pessoas no país… bem, não exatamente, não posso fazer nada com relação a
isso. Eu sou o que sou, e tenho o que tenho. Se quer saber se me incomoda
estar ao seu lado simplesmente por ser quem você é, e ter o que você tem,
então não. Jamais, Corazón.
— Confuso — reflito. — Porém, justo.
— Sou prático, não vou criar um grande drama sobre algo que já tenho.
Sei como multiplicar dinheiro, Corázon, mas multiplicar você é impossível.
— Deus nos livre, homem! Imagina milhares de Serenas Fajardo no
mundo? Apocalipse na certa. Terceira guerra mundial. Isso sem mencionar
que eu teria que prender você em um calabouço, porque todas elas iam querer
o meu… namorado? — Franzo o cenho, dizer isso é constrangedor.
— Namorado? — Ele testa, fazendo uma careta. Seus dedos sobem e
descem nas laterais do meu corpo, um carinho inconscientemente que me
preenche de felicidade e outras coisinhas mais. — Isso parece tão… pouco?
— Sim — concordo, inebriada. Sua mão é tão grande, forte e calorosa.
Mas… o quê? — Não, calma! Você disse pouco?
— Bem pouco, Corazón — atiça, mordiscando o meu queixo. — Quase
nada. — Puxa o cantinho do meu lábio inferior com os dentes, deixando a
língua resvalar sobre a pele eriçada e sensível, e minha mente se liquefaz. A
coragem para contrapor sua pressa com o nosso relacionamento coloca o rabo
entre as pernas e fica rindo da minha cara.
— Já disse que você é um monstro vampiro bem esperto e gostoso
hoje?
Vladimir gargalha. Quando faz isso, seus olhos ficam brilhantes,
ressaltando os pigmentos lilases que tanto amo.
— Fica bem até eu voltar? — pergunta, meio segurando a risada. Lá
vem ele com sua maratona de pedidos e perguntas repetitivas. Aposto que vai
me pedir para não fazer nenhuma loucura. — Tenta não fazer nenhuma
loucura, tudo bem?
Eu disse.
— Eu e Lara vamos ao médico daqui a pouco, lembra? Vou cuidar do
nosso probleminha.
Problemão, diz a minha consciência.
Vladimir faz outra careta.
Eu devia bater nele, de verdade. Parece que baixou o espírito da mãe
nele depois que Luna entrou em nossas vidas e, toda vez que a hipótese de eu
engravidar — dele, obviamente — surge, faz com que se anime como um
coelho feliz de dentes afiados e sugador de sangue.
Eu, grávida?
Do Vladimir?
Nunquinha… certo? Eu não quero isso… quero? Um bebezinho, um
barrigão?
Não… certo?
Mierda de hombre.
Acerto um tapa em seu braço e fujo dos seus encantamentos.
— Vai trabalhar, vai. Pare de colocar essas ideias na minha cabeça.
— Que ideias? — pergunta, genuinamente confuso, esfregando o braço
e rindo ao mesmo tempo.
Eu sou um fracasso, não consigo ficar brava com ele por dois segundos.
Ciente de que vamos nos engalfinhar em mais vinte minutos de amassos —
uma hipótese tentadora —, fujo rumo aos degraus da mansão e jogo um beijo
por sobre os ombros. Vladimir afirma com a cabeça, refinado e sedutor.
Então, finalmente, vai embora assim que entro na mansão.
Rapidamente, começo a me arrumar para a consulta. O encontro com
Annia ainda está fresco na minha cabeça, então mantenho a calma e procuro
pensar em outras coisas para que isso não me deixe ansiosa demais.
Lara envia uma mensagem um tempo depois, dizendo que está a
caminho da clínica. Pego minha bolsa e vou para a saída. Tatiana saiu com
Luna e Iago. Ivan está na empresa desde antes do café da manhã, e Roman
desapareceu assim que Vladimir levantou a hipótese de abrirem uma sucursal
na Itália, há dois dias.
Abro a porta da saída e sou surpreendida por um segurança.
Reconheço-o da portaria, um dos funcionários novos. Em seu crachá de
identificação, há seu sobrenome: Ivanenko.
— Senhorita Fajardo — diz com uma mesura. O uniforme escuro se
destaca em sua pele extremamente branca manchada com muitas pequenas
sardas de coloração laranja. — Há uma pessoa na residência que deseja falar
com você. Disse que é seu irmão.
— Meu irmão? — repito. — Deve haver algum engano.
Camillo é louco, mas não tanto quanto eu. Ele não viria aqui.
O senhor Ivanenko me entrega seu comunicador, mas hesito antes de
pegar o aparelho.
— Aqui, ele insistiu em falar com a senhorita. Mas podemos chamar o
senhor Volkiov se assim desejar.
Seria uma boa ideia…
Mas já estou com o aparelho a caminho do ouvido, certa de que só pode
ser um equívoco. Camillo está desaparecido, ou nas mãos de Maksim.
— Me deixe entrar, mi hermana — suplica através do comunicador, a
voz que já me trouxe conforto e tormento muitas vezes ao longo da
vida. — Déjame entrar.
SERENA
***
***
***
De frente para a mansão, sem muita dificuldade, forço o controle para dentro
de mim outra vez. O sabor é amargo e ácido e, quando atinge o fundo do meu
estômago, se transforma em náusea e repulsa. De alguma forma, sou o
presidente outra vez, o irmão mais velho, o herdeiro não apenas de
patrimônios, mas de fardos, de mentiras e, principalmente, de péssimas
escolhas.
E agora estou a caminho de mais uma.
Atrás de mim, a chuva continua cantando com sua voz fantasmagórica,
molhando o jardim com lágrimas doces e os lamentos do vento. Pensei que,
depois de tanto tempo, nada mais conseguisse me abalar dessa forma, que
meu organismo fosse imune a sentimentos tão humanos, mas estava
enganado.
Confiro minhas roupas uma última vez, torcendo para que o banho
tenha sido suficiente para disfarçar meu estado passageiro de impotência, mas
o desespero que me levou para longe é o mesmo que me trouxe de volta. O
medo de machucar Serena dorme ao lado do medo de perder a minha família.
Esfrego os olhos, minha visão fatigada pela noite de sono perdida deixa
meus movimentos reativos lentos, como se eu assistisse ao mundo pelas
lentes de uma filmadora antiga, em preto e branco e sem qualquer som.
Abraço a maçaneta redonda com o punho fechado, mas um ruído agudo
e baixo me faz hesitar antes de abrir a porta de onde emergem as vozes
abafadas dos meus irmãos. Procuro a origem do barulho e encontro Malévola
sentada à minha frente, um vulto escuro no meio das sombras, seus dois olhos
julgadores de cores diferentes encarando-me como se enxergassem mais do
que deveriam.
Abaixo-me, apoiado sobre um joelho, e estico a mão até alcançar a
parte de trás de suas orelhas pretas. O som dos trovões e da chuva não parece
incomodá-la, mas poucas coisas incomodam Malévola de qualquer forma. Ao
receber o toque, ela começa a ronronar baixinho.
— Eu sinto muito, querida — digo, e é verdade. — Gostaria que as
coisas fossem diferentes. — Malévola empertiga a coluna, esticando o rabo
comprido e peludo para cima. — Que eu não precisasse descobrir a verdade
dessa forma. Mas o destino não anda colaborando com nós dois.
Como se compreendesse as minhas intenções, ela retesa o corpo todo e
corre para longe, desaparecendo debaixo do carro que deixei estacionado de
qualquer jeito na frente da escadaria principal.
Sem perder mais tempo, volto para a porta e a abro sem esperar uma
segunda hesitação. Minha família não presta atenção à minha chegada, Ivan e
Andrei estão submersos em uma conversa acalorada, cada um acomodado em
uma poltrona altiva sem estampas ou cores. Minha mãe anda de um lado para
o outro com um lenço na mão, perto de duas grandes malas pousadas aos pés
da escada que leva para o segundo andar.
Eles parecem devastados, e a culpa é completamente minha.
Meus olhos varrem o cômodo por conta própria, ainda acostumados ao
magnetismo que me leva a procurar Serena quando estamos no mesmo
ambiente, mas, assim que a encontro, sinto o sangue congelar nas veias.
Ela e Roman estão em um canto, ele com o braço apoiado em seus
ombros, gesticulando alguma coisa com as mãos, e ela com sua cachoeira de
cabelos escuros caindo sobre o corpo.
Assuma o controle!
A fotografia de Serena com meu pai queima no bolso interno do paletó,
um energizante cruel para que eu não esqueça as palavras de Elena sobre a
índole de Maksim e Camillo. Preferiria morrer mil mortes diferentes do que
arrancar de Serena a verdade, e eu me odeio por saber que não me
arrependerei quando o estrago estiver feito. Não vou me arrepender.
Ao invés de afastar os dois, como manda o meu coração, me aproximo
devagar, calmamente, para que minha presença seja notada. As conversas
esmorecem e morrem. Minha mãe solta um gritinho e Serena arqueja,
desvencilhando-se do meu irmão para se aproximar.
— Não parem só porque eu cheguei — digo, os olhinhos dela
arregalam com o meu tom. — Afinal de contas, Serena tem mesmo um dom
único para conquistar os homens da família.
— O que você quer dizer com isso? — A voz dela me atinge quase
fisicamente. Dói não poder me aproximar demais, dói perceber como eu amo
timbre agudo que, mesmo diante da angústia, continua firme. Dói, porque eu
amo.
Desvio o rosto antes que perceba como estou lutando para manter a
compostura agora que estamos diante um do outro, mas um segundo é
suficiente para que a imagem fique registrada na primeira camada dos meus
olhos. Seus pés, pequenos e delicados, estão descalços sobre o carpete, e o
corpo se esconde dentro de um conjunto de moletom azul e simples demais
em comparação com as minhas roupas formais. Os cabelos estão soltos,
pesados e negros como cascatas de sombras. Fecho minhas mãos em punho,
afundando as unhas na carne para afastar o impulso de tocar os fios.
A expressão em seu rosto é de mágoa. Um dia antes e eu já a teria em
meus braços, confortando seus medos e prometendo o universo com estrelas
e todas as ilhas do oceano.
— Ora, ora — diz Roman com o olhar dissimulado e astuto na minha
direção. Sua jaqueta está jogada sobre o encosto da poltrona de Andrei, e uma
gravata aberta contorna seus ombros em cima da camisa branca. — Se não é
o filho pródigo!
— Vamos para o escritório — ordeno, desviando de Serena, mas ela
segura meu braço e uma descarga de realidade emerge daquele ponto,
espalhando-se pelo meu corpo de um jeito perigoso.
Não.
O amor e o ódio se confrontam e, num impulso, seguro seu rosto com
firmeza, minhas palmas encaixadas em sua mandíbula puxando o corpo para
perto sem esforço, e ela se deixa comandar. Porque sou eu, porque
ela confia em mim; e não deveria.
Inclino-me sobre Serena e roubo um beijo; não com carinho e devoção,
mas com fome e hostilidade, ignorando minha família. Eu sinto em cada uma
de suas células que ela odeia, sobretudo quando abre a boca e eu a invado
com a língua, sem pudor ou amabilidade.
Os lábios dela têm sabor de desespero, mas quando se fundem com a
minha amargura, se transformam em decepção.
Ela sabe que a foto está comigo?
Espero que me empurre um milímetro ao menos, que hesite em receber
abertamente um pouquinho do meu destrato, que devolva a minha indignação
com ódio, assim eu me afastaria. Mas é Serena, não existe um desafio que
não esteja disposta a suportar.
— Vlad? — ofega, sem entender minha reação. — ¿Que passa? —
pergunta em espanhol; ela não consegue controlar os idiomas quando está
nervosa, e esse é um dos pequenos detalhes em sua personalidade que
apunhalam aquele ponto sensível do meu coração, onde vivem os sentimentos
fracos.
— Eu não posso lidar com você agora — respondo, atordoado, contra
sua boca rosada, igualmente atingido pela minha própria afronta.
— Nós precisamos conversar — sussurra. Espalma as mãos sobre o
meu peito com delicadeza e acabo fechando os olhos para não me deixar
levar pela onda de saudade e prazer que seu carinho desencadeia.
Assuma o controle!
— Você fica, Serena! — decido, empurrando suas mãos para baixo.
Serena arqueia as duas sobrancelhas, prende o cantinho dos lábios com
os dentes e fecha as mãos nas laterais do corpo, reprovando cada ordem. As
pontinhas de suas orelhas, visíveis embaixo dos cabelos bagunçados, estão
tingidas de vermelho — suponho que seja por causa do esforço para não
gritar comigo todas as ofensas que devem estar presas na sua língua agora.
Não entendo por que está se contendo, mas está.
— Você bateu com a cabeça, ou o quê? — Minha mãe interfere,
empurrando Serena para o lado enquanto me olha com um desprezo clássico
de superioridade. — Oh, céus! Deve ser algum tipo de maldição! Será que
todos os meus filhos ficam burros quando se apaixonam? Andrei vai embora
e você agindo como uma pedra arrogante de gelo. Não desconte na sua
mulher.
Tatiana passa a beirada do lenço bordado nas maçãs do rosto, mesmo
que não haja uma lágrima sequer em seus olhos.
— Estávamos esperando por você. — Ivan se junta a nós, solidário com
o assalto de nossa mãe. Suas íris vacilam entre mim e Serena, cheias de
dúvidas silenciosas sobre a minha reação brusca. — Mãe, temos muita coisa
para resolver, por favor, não vamos piorar a situação.
— Piorar a situação é o que eu vou fazer se não me contarem o que está
acontecendo! — protesta, jogando os cabelos prateados para trás com um
floreio teatral.
— Eu sinto muito, mãe — minto na esperança de que isso a acalme.
Olho de esguelha para Serena, que continua quieta demais. Isso me
incomoda, não saber o que está se passando dentro da sua cabeça é
assustador, pois sei como há sempre um pensamento astuto germinando lá
dentro. — Problemas com a empresa, precisamos resolver isso agora, então
fique calma.
— É bom que sintam muito mesmo. Você e seus irmãos devem sentir
muito por testarem o meu pobre e velho coração todos os dias com tanta
tolice. Espero que meus netos e netas puxem às suas belíssimas mães, ou a
mim, é claro. Quatro de vocês é mais do que o mundo pode suportar.
— Mais do que seria justo com o restante dos homens do mundo,
absolutamente! — Serena brinca, levando Roman a uma gargalhada.
Falar a primeira coisa que vem à mente é outro indício de que está
nervosa.
E outra particularidade que aprendi a amar.
Ela se afasta sem insistir sobre falar comigo, na verdade sequer me olha
mais uma vez, e, ao mesmo tempo em que desejo confrontá-la na frente de
todos para que explique sua história com meu pai, tenho vontade de
desaparecer para que isso nunca aconteça.
— Vamos logo com isso — pede Andrei rispidamente, passando direto
rumo ao escritório; Ivan vai em seguida.
Mas meus pés estão fincados no chão, imobilizados por um conflito
pungente que anseia por uma fagulha de Serena. Ela olha por cima dos
ombros para confirmar se estamos isolados o suficiente da minha mãe, que
voltou para perto das malas de Andrei — claramente na esperança de que
peguem fogo.
— Está com você, não é? — pergunta Serena, virando-se para mim, um
leve tremor percorrendo seus lábios. — Iago disse que você esteve aqui
ontem, mas que foi embora em seguida, e quando acordei não consegui
encontrar.
Então ela sabe.
Ela realmente sabe.
Mas não me dou ao trabalho de responder algo que nós dois já temos
certeza. Viro de costas, de repente muito necessitado em colocar a maior
distância possível entre nós, e sigo ao encontro dos meus irmãos.
Apesar de tudo, não consigo sentir remorso. Não consigo
sentir nada que não seja um sentimento abominável de perda, e que não se
relaciona apenas com a empresa ou a iminente partida de Andrei.
É com Serena que estão os meus pensamentos, os bons e os ruins. A
cada segundo perdido nessa confirmação pessoal sobre como sou um ser
humano horrendo — nenhuma novidade até então —, tenho a impressão de
que meus membros estão sendo arrancados devagar, quando na verdade é
apenas a ausência de Serena se espalhando à medida que luto com o meu
organismo para aguentar as lacunas deixadas por tudo o que ainda sinto por
ela.
Nossa paixão foi rápida e desesperadora. Espero que o caminho reverso
aconteça com a mesma velocidade. Por favor, por favor.
À medida que me esgueiro dentro da mansão, todos os móveis e
cômodos se destacam com lembranças vívidas e nem um pouco bem-vindas.
Alguns detalhes remetem a um Nicolai diferente, um homem que era
amado por se camuflar com mentiras: a poltrona intacta de pés escuros na
entrada e pequenos objetos distribuídos no meio da decoração — uma taça
solitária na cristaleira, um Romanée-Conti sobre o pequeno pedestal de ferro
em cima do aparador de vidro, esperando um grande evento para ser
brindado, a tapeçaria com a flor e os leões no escritório…
Porém, mais sufocantes do que as memórias de Nicolai, são as que
envolvem Serena e foram gravadas com faca no meu coração, como o dia que
se aninhou em meus braços no meio do salão de entrada e me golpeou com a
absoluta certeza de que não existiria encaixe mais perfeito na história da
humanidade; nossas discussões em todos os cantos que sempre resultaram em
nós dois suados contra a boca um do outro; seu sorriso inocente e, ao mesmo
tempo, desavergonhado em todas as nossas manhãs.
Assim que fecho a porta do escritório, Roman se coloca
estrategicamente perto de Ivan, que já segura uma garrafa. Andrei permanece
impassível, sentado em uma cadeira com estampas de flores e as mãos
pousadas sobre os joelhos.
— Você precisava falar daquele jeito com ela? — Roman provoca.
— Como eu falo com a Serena não é exatamente um problema seu —
respondo, incapaz de controlar todos os meus sentimentos de uma só vez.
Ignoro sua risadinha e paro diante de Andrei. — Então você vai embora —
digo, surpreendendo-me com o quanto minha voz parece rouca e fatigada. —
Está nos deixando?
— Não vou abandonar a empresa, se essa é a sua preocupação. —
Andrei levanta e coloca as duas mãos na cintura, por cima do blazer branco.
— Mas estou curioso. Achou que poderia esconder isso de nós para sempre?
Trinco os dentes e espero. Preciso de informações. O que sabem? O
quanto sabem?
— Entramos em contato com algumas emissoras e agências
jornalísticas para descobrir aquelas que haviam negociado com Efrem
Kokorin — Ivan explica, antecipando minhas dúvidas. Ele serve um copo
com vodca, e estende para mim. — Tivemos acesso à notícia a respeito do
desabamento.
Meus dedos se fecham ao redor do copo. Engulo a vontade de me
justificar, de fazer com que entendam, de explicar os meus motivos. Eu me
sinto exposto, dissecado, e manter a expressão indiferente se transforma em
um martírio.
— Como você pôde esconder isso de nós, Vladimir? — Andrei abre os
braços, a mandíbula tensionada faz com que suas palavras se assemelhem a
grunhidos. — Somos seus irmãos!
Incapaz de encarar qualquer um deles, viro o conteúdo do copo e me
concentro na acidez deslizando pela minha garganta, certo de que após essa
conversa eu precisarei de muito mais do que isso.
— Eu fiz o que precisava ser feito! — declaro firmemente.
Eles podem me odiar, não importa, não importa.
— Você cometeu um crime! — Andrei grita, evidenciando as sombras
escuras embaixo de seus olhos vermelhos e reluzentes. Ivan chega mais perto,
tentando acalmar nosso irmão. — Como acha que estou me sentindo agora,
presidente? Esconder algo assim por tanto tempo é… horrível. Acredita
mesmo que vamos conseguir conter esse escândalo? Você pode ser preso!
— Maksim entregou cópias das plantas para todos eles — Roman
explica. — Eu sinto muito, Vlad, não vai dar para silenciar a imprensa para
sempre.
Plantas, projetos, desabamento. Eles não deveriam saber nada sobre
isso. Minha mente parece não conseguir processar essa informação, como se
fosse um sonho, como se alguém tivesse chacoalhado o mundo e as peças não
encaixassem mais.
Tudo o que eu fiz foi em vão?
Não. Tudo bem, assuma o controle.
— Por que eles têm essas plantas? — Andrei questiona, mas Roman se
prontifica a responder novamente, livrando-me do fardo de explicar.
— Camillo pegou.
— Camillo? — repete Andrei, sem ideia de que esse é apenas o começo
da história. — Camillo Fajardo? Como isso é possível?
Roman olha de esguelha para mim antes de começar a explicar o que
contei antes, sobre os projetos que estavam arquivados no almoxarifado,
sobre Serena ter recebido Camillo em nossa casa, e também todo o
envolvimento de Maksim nos planos amadores de Efrem.
— Por que Serena faria uma coisa dessas? — reflete Andrei, como se
estivesse lendo os meus pensamentos. No canto, Ivan solta uma sequência de
xingamentos.
— É o irmão dela. — Roman se joga na cadeira presidencial, seu copo
está cheio. — Você se negaria a me receber na sua casa?
— Se você fosse um criminoso, sim — diz Andrei, agora olhando para
mim.
Assuma o controle.
— É por isso que está indo embora? — Vou até a mesa, pego a garrafa
aberta e me sirvo até o líquido alcançar a borda. Sento-me na ponta da mesa,
saboreando o líquido. Forço um sorriso antes de continuar. — Não consegue
viver com um criminoso?
Sua expressão continua inalterada. Ele não concorda, mas também não
nega.
— Você não pode assumir isso deliberadamente, Vladimir! — Ivan
protesta. — Precisa explicar o que aconteceu. Como nunca ouvimos nada
sobre esse projeto?
Explicar?
— É bem simples, na verdade. Nicolai Volkiov era um cretino. —
Termino de beber a bato a copo na madeira da mesa. Dizer as palavras é
menos prazeroso do que idealizei, principalmente por causa da fotografia
escondida dentro da minha roupa. — O prédio desabou, pessoas morreram e
ele encobriu o caso. Quando eu assumi o cargo, precisei fazer uma escolha:
continuar com a farsa esquematizada por ele, ou levar o caso à justiça. Vocês
já sabem o que escolhi e aqui estamos.
— Eu acho — diz Roman, colocando as pernas sobre a mesa. Em
algum momento ele desistiu do copo e agora empunha a garrafa, balançando-
a de um lado para o outro — que não podem mais me acusar de ser o irmão
problemático. Você e Ivan podem dar as mãos. Eu sou um santo!
— Não consegue ficar sério um minuto? — Ivan reclama, mas
Roman não responde.
— Vocês não entendem… — suspiro, nada acostumado a dar
satisfações, ainda mais de um assunto que sempre fiz de tudo para evitar.
— Não, você não entende! — Andrei para na minha frente, sua
respiração é profunda e irregular. Ele segura meu rosto com força. — Acha
que é por isso que estou indo embora? Você acha que pode suportar tudo,
Vladimir, que tem o poder de controlar as pessoas e de resolver problemas,
independente de quão graves sejam. Nós somos a sua família, eu sou o seu
advogado, mas não posso mais apoiar as suas escolhas e continuar vivendo
com você como se isso fosse normal.
Seria tão fácil desabar, mas as palavras intolerantes vêm, tão naturais
como uma respiração.
— Sim, você está certo — digo, torcendo para acabar depressa. — As
escolhas que faço, na maioria das vezes, são cruéis e isso faz de mim uma
pessoa terrível, mas não são escolhas inconscientes. Eu conheço as
consequências e não me importo em lidar com os danos. Se essa é uma
tentativa de me fazer enxergar os meus erros, desista, Andrei. Não estou aqui
pedindo ajuda, eu aguento lidar com o seu ódio.
— Ah, claro! — grunhe perto do meu rosto. — Isso faria você se sentir
melhor, não é mesmo? Receber todo o ódio que você acha que merece?
A porta abre bruscamente e meu irmão recua pelo menos três passos.
Olhamos na direção da entrada, e Serena nos analisa de volta com Luna em
seus braços e um celular preso na mão.
Assim como eu, a presença de Luna também faz Andrei relaxar. Ela
não merece fazer parte de um ambiente repulsivo, nem deveria estar aqui, na
verdade. Nenhuma das duas.
— Uau, homens brigando — diz Serena com uma falsa alegria. — Se é
para fazerem coisas másculas e desnecessárias, poderiam tirar as roupas,
assim seria mais interessante. E sexy.
— Sinto muito, cunhada, meus irmãos são verdadeiros trogloditas
descontrolados que querem resolver as coisas na base da força ao invés de
conversarem como homens adultos. — Roman ergue a garrafa, simulando um
brinde à sua declaração sem sentido.
— Disse o homem com um hematoma no rosto — Ivan rebate.
— Você já tentou matar seu sogro, Ivan, não tem moral nenhuma para
falar de mim.
Ivan abre a boca para rebater, mas desiste com um revirar de olhos.
— O que você quer? — pergunto para Serena.
Ela finge não ouvir.
— Desculpem interromper, sua mãe pediu para eu trazer o seu celular,
Ivan. Lara quer falar com você.
— Ela ainda está na empresa? — Andrei se vira para Ivan, mas ele já
está saindo do escritório com o aparelho no ouvido.
Serena o observa com as sobrancelhas franzidas.
— Ela não devia estar trabalhando tanto nessas condições — resmunga
sozinha, sem se incomodar com as mãos de Luna embaraças em seus cabelos.
— Condições? Que condições, bebê? — pergunta Roman, o humor de
antes dissipado em preocupação.
— Oi? — Serena desconversa, puxando Luna junto ao corpo, mas é
tarde para disfarçar e ela já tem nossa total atenção.
— Você disse que Lara não devia estar trabalhando nessas condições, o
que significa? — insiste Andrei com mais gentileza.
— Não tenho ideia do que você está falando. — Ela nega com a cabeça
exageradamente.
— Serena, se é algo grave você precisa nos contar — digo. Ela fecha os
olhos e prende os lábios com os dentes.
— Eu sabia que era uma péssima ideia! — reclama para Luna, como se
ela fosse sua consciência. — Não conte segredos para mim quando crescer,
querida. — Roman e Andrei se entreolham, sorrindo. Ela conseguiu acabar
com o clima adverso com meia dúzia de palavras. — Lara está grávida —
sussurra olhando para trás —, seu irmão ainda não sabe. Por favor, vocês não
podem contar, ela quer fazer uma surpresa, mas com todos os problemas com
a empresa…
Roman joga a cabeça para trás, gargalhando.
— Claro que não sabe. Se ela não contar, ele só vai perceber quando o
bebê estiver nascendo! — diz, e Andrei, agora sorrindo amplamente,
concorda.
Os dois começam a conversar sobre Lara e suas alterações de humor,
mas Serena, parada no meio do cômodo, abraçando a minha — nossa — filha
é uma visão perturbadora em níveis catastróficos. O gosto do beijo dela ainda
reina na minha boca, e me obrigo a pensar em Nicolai para não perder o
controle e puxá-la para mim novamente.
A palavra grávida sendo proferida na voz de Serena ecoa na minha
cabeça e, mesmo estando profundamente feliz por meu irmão e Lara, lá no
fundo sinto um pouco de inveja. Não por desejar viver a mesma experiência,
mas pela descomplicação ter sido possível em suas vidas.
— Estou indo até a empresa — Ivan anuncia, surgindo no batente da
porta. Seu terno foi substituído por um casaco comprido e quente. — Lara
não está passando muito bem. — Ele coça a barba, preocupado. — Eu sei que
é um péssimo momento, mas preciso que você diga para Lara não trabalhar
por alguns dias, Vlad. Eu poderia pedir, mas ela nunca vai obedecer a não ser
que seja uma ordem do chefe. E não conte que eu pedi isso de maneira
nenhuma.
Concordo em silêncio, torcendo para que Roman mantenha a boca
fechada, e tão logo ele vai embora.
— Nossa Larinha, grávida! — murmura Roman, parecendo um pai bem
idoso. — Puta merda! Ela deveria estar andando? Nós deveríamos interná-la?
Contratar médicos para morar em casa?
— Sim! — Serena apoia com um alívio cômico enquanto Andrei
discorda veemente.
— Você — Roman acusa com o indicador apontado para Serena. —
Nem pense em seguir esse caminho, está ouvindo? Duas de vocês grávidas é
demais para o meu coração.
Andrei, estranhamente quieto, vai se servir com um pouco da garrafa
quase vazia abandonada por Roman, e eu continuo no transe causado por
Serena.
Olhar para ela faz com que a minha mente e meu coração entrem em
curto circuito; não sei o que enxergar. Eu, que sempre soube como resolver
os problemas das formas mais pragmáticas e eficientes possíveis, me vejo
diante de um enigma sem solução.
Não, não. A quem estou tentando enganar? Eu sei como resolver,
apenas gostaria que não fosse preciso.
Sem me intrometer no assunto ou demonstrar atenção sobre qualquer
outra coisa, vou até as duas e pego Luna, sentindo a textura das mãos
lisinhas. Ela não protesta e nem reclama, continua sendo uma menininha
silenciosa apesar de as feições apáticas terem abandonado seu rosto redondo.
Alguém achou que seria uma boa ideia vesti-la com um macacão de
coelhinho, e duas orelhas compridas pendem nas laterais da touca.
— Ei, pequeno coelho branco, onde está o seu relógio? — brinco,
muito embora ela não compreenda a referência à Carroll.
Serena, visivelmente tensa, cede a um suspiro longo e me olha — me
olha de verdade, com cautela e um pouco de coragem. Não estamos bem, e
ela sabe o principal motivo, além de me conhecer o bastante para lembrar de
se precaver.
— Ela puxou ao pai — diz, tentando agir naturalmente. É estranho,
distante. — O novo pai, e não o velho. Ele também não é muito chegado a
relógios, eu acho, porque não voltou para casa e só apareceu um dia depois.
Luna vira os olhinhos para Serena, movida pelo som da sua voz.
Mencionar Camillo reverte o fluxo de ressentimentos, que tornam a me
fustigar com desconfianças e o sentimento de traição. Quando dou por mim,
as palavras já escaparam.
— Ela não tem um velho pai. Seu irmão é um delinquente, nunca se
importou com ela e nunca foi o pai dela! Ele vai estar atrás das grades em
breve, exatamente como a velha mãe.
A luz amarelada do escritório não impede que eu note o rubor
desaparecendo das suas bochechas. A palidez destaca lábios e cílios,
transformando Serena em uma pintura de traços pungentes.
— Vocês ainda não contaram? — pergunta para os meus irmãos.
— Contaram o quê? — questiono, virando-me para eles.
Andrei e Roman se encaram, ambos com receio de contar o que está
acontecendo. Meu irmão mais novo quase nunca deixa transparecer suas
fraquezas, dissimular as próprias emoções é uma habilidade que desenvolveu
por causa da profissão, mas agora ele parece livre de máscaras e o resultado
não é nada bonito.
Meu irmão está mais magro, mesmo que seja tão alto quanto qualquer
um de nós quatro, e o sorriso outrora contagiante já não emite o mesmo
brilho.
Segurar Luna ao mesmo tempo em que presto atenção nos meus irmãos
e batalho contra meu corpo para continuar de costas para Serena parecem
tarefas impossíveis de serem realizadas ao mesmo tempo. Posso sentir o olhar
dela penetrando a minha coluna.
Em uma outra realidade, na qual Vladimir Volkiov jamais tenha se
tornado presidente de qualquer empresa ou aprendido a colocar o orgulho
acima do medo e a desconfiança acima da capacidade de amar, talvez as
coisas fossem diferentes. Talvez a minha mente não estivesse fazendo
cálculos sobre o que dizer ou como me comportar para que ela apenas
confesse ou desista da ideia de continuar ao meu lado.
— Você queria saber por que estou indo embora? — diz Andrei. —
Bem, desde quando me formei, a empresa tem sido tudo na minha vida, na
minha carreira, e você o meu espelho. Eu queria ser mais como você,
entende? Inteligente e honrado. — As frases no passado não me passam
despercebidas. Andrei gira o copo em cima da mesa, fazendo a bebida cair
pelas bordas. — Mas percebi que não quero mais seguir os seus
passos. Você não deveria seguir esses passos, Vladimir, e não vou assistir
enquanto faz isso sozinho.
— Ninguém deveria ser como eu — concordo, trocando o peso do
corpo de uma perna para a outra enquanto embalo Luna, uma prática que vem
se tornando natural sempre que a tenho comigo.
Ela segura minha orelha com uma mão rechonchuda, e usa a outrapara
acariciar meu rosto com dedos babados.
Andrei sorri para a cena, não mais que um mostrar de dentes sem
significado, vazio de alegria.
— Seu plano foi um sucesso, Vladimir — declara. — Annia prestou
depoimento essa manhã; a seu favor, a propósito. — Ele pausa, pensativo,
depois inspira audivelmente, tomando fôlego para concluir, ao passo que eu
quase não tenho certeza de estar respirando. — Ela está morta, foi assassina
na prisão.
— O quê? — murmuro, automaticamente olhando para Luna.
Annia está morta.
Morta.
Quais foram as minhas palavras quando coloquei ela lá dentro?
Ah… Não me importo. Eu disse que não me importava!
— Eu fiz a denúncia — Andrei lembra, rouquenho, fechando sua
explicação definitivamente.
É demais para ele.
Lembro disso, Andrei sugeriu que não fosse eu para me poupar. Não
deveria ter permitido. Eu suporto, sempre suportei. Eu tinha que ter protegido
meu irmão.
Eu disse mesmo que não me importava?
Parece muito errado receber essa notícia com Luna tão perto, mesmo
que ela não entenda. É errado, tenho certeza de que não existe nada certo
nessa situação toda. A pequena balbucia alguns resmungos, piscando seus
olhões escuros de cílios compridos.
Continua piorando, o caos continua aumentando. Por que continua
piorando?
— Vlad — Serena me chama, mas o som vem de longe, embora ela
esteja na minha frente. Ela continua aqui, por que continua aqui? — Eu
seguro Luna, está bem? — oferece, estendendo as mãos.
Luna estica os bracinhos de volta, inclinando-se na direção de Serena, e
eu a entrego mecanicamente, sendo golpeado pela solidão imediata.
Assuma o controle.
— Saia — peço.
— Não precisa se culpar — sussurra, tentando me tocar.
Eu desvio, inseguro sobre o que sentir, o que dizer, como se de repente
estivesse muito mais consciente da minha capacidade de arruinar as pessoas.
— Minha empresa está em colapso — reflito, o sarcasmo e indiferença
carregam as palavras com mais ênfase do que eu gostaria. — Meu irmão está
indo embora por minha causa. Annia está morta, e a qualquer momento meu
nome pode ser destruído por um erro cometido pelo meu pai. E
você… você… — suspiro — por quê?
— Não faz isso — pede, contraindo os ombros.
— Saia, por favor. Saia, Serena! — ordeno, várias escalas mais altas.
— Não vou ter essa conversa com a minha filha nos seus braços!
Serena pondera, indignada com o meu volume de voz.
— Realmente — diz igualmente alto. — Não seria adequado se
a nossa filha assistisse o quanto o pai dela pode ser um babaca!
Depois, vira de costas e vai embora, deixando-me sozinho para digerir
seu arroubo.
Nossa, ela disse.
— Babaca? — Roman repete. — Como ela consegue xingar e ser fofa
ao mesmo tempo?
Fecho os olhos e me jogo na primeira cadeira que encontro, escondendo
o rosto com o antebraço e fingindo que não escutei o elogio velado do meu
irmão. Já tenho muito para processar em um espaço de tempo curto demais.
No escuro, com as pálpebras fechadas e o silêncio ao redor, escuto que
a chuva continua caindo do lado de fora da mansão. Não há brado dos trovões
retumbando no céu, nem o grito do vento. Eles estão dentro de mim agora,
sufocando, matando-me, tirando o controle das minhas mãos.
Eu gostaria de chorar, mas não lembro como fazer isso.
— Annia estava protegida, como isso foi acontecer? — pergunto,
escondido em um transe vazio dentro do breu.
— Pensei que não se importasse — diz Roman, que, diferente dos
outros dois, não pesa as palavras.
Então eu disse mesmo que não me importava.
— Acho que, só porque não me arrependo, não significa que não me
importe — concluo. — Não sei o que é pior, não me arrepender ou não me
importar.
Eles não respondem.
— Ainda estão investigando — Andrei volta a falar. — Mas aconteceu
entre a troca de turnos.
— O que você quer fazer? — Roman questiona, impelindo-me a abrir
os olhos e encarar o teto branco antes de procurar por eles.
Meus irmãos mais novos estão sentados também. Andrei se livrou da
gravata e Roman acabou com a bebida sem sofrer praticamente nenhuma
alteração alcoólica — é preciso bem mais do que isso para deixá-lo
embriagado.
O que eu quero?
Serena é a primeira resposta que minha mente viciada entrega.
Eu a quero e não quero, é confuso escolher dentre tantos sentimentos
antagônicos qual o certo para relacionar a Serena nesse momento. Continuo
desejando seu calor, os sorrisos e olhares furtivos, mas dentro de mim está
frio. O riso se calou e meu coração tenta sobreviver cegamente numa espécie
de inverno rigoroso e mudo.
Mas, além dela, as coisas que desejo são impossíveis de dizer em voz
alta. Eu quero que essa sensação acabe. Que Maksim pague pelos seus
crimes. Que Camillo desapareça do mundo. Que Efrem Kokorin seja ainda
mais humilhado e escorraçado.
Eu queria que Serena nunca tivesse conhecido meu pai, que essa foto
não existisse. Que o amor fosse suficiente para me fazer esquecer.
Mas nem sempre o amor cura, ele nem sempre basta. Principalmente
para alguém que não o merece.
— Eu quero entender — explico, juntando as peças no meu mapa
mental composto por Maksim, Annia, Camillo, Serena, Nicolai e Efrem. —
Por que esperaram tanto tempo para matá-la?
— Não devem ter desconfiado que ela fosse capaz de trair Maksim —
sugere Andrei profissionalmente. — Não foi uma queima de arquivo. De
alguma forma, devem ter descoberto que ela estava nos ajudando, só não sei
como…
Por não saberem de tudo, eles têm o direito de não suspeitar. Mas eu só
precisava dessa confirmação para ter certeza de que hoje estou perdendo mais
do que o respeito da minha família ou o orgulho da empresa.
Eu estou perdendo Serena.
— Camillo esteve aqui no mesmo dia em que Annia aceitou depor —
digo, ficando de pé. — Serena contou sobre a adoção de Luna.
— Vladimir, vamos com calma — Andrei orienta, acompanhando meu
movimento e se levantando também. Coloca as duas mãos para frente, como
se tentasse acalmar um animal selvagem. — Não sabemos se isso é verdade.
— Então está na hora de descobrir.
Foda-se o controle.
Saio para o corredor, sob os protestos de Roman me pedindo para ter
paciência. O trajeto até o hall é um borrão sem cores e só paro quando
encontro Serena sentada naquela maldita poltrona que meu pai tanto amava.
Minha mãe está com Luna, cantarolando uma canção familiar.
— Mãe, leve Luna para cima — peço. — Preciso falar com a Serena.
— O que você vai fazer? — resiste, desconfiada. — Não acho que seja
uma boa ideia, está com cara de quem vai fazer uma idiotice das grandes.
— Está tudo bem, Tatiana. É melhor levar Luna para o quarto. —
Serena faz um sinal de positivo com o polegar. — De idiotices grandes eu
entendo bem.
Andrei e Roman nos alcançam e minha mãe relaxa com a presença dos
dois. Ela sobe as escadas, levando minha filha depois de lançar um olhar
ameaçador para nós quatro.
Finalmente sozinhos, me dou conta de que não tenho para onde fugir ou
como adiar o inevitável. Que poupar Serena nunca foi uma opção. Eu não sei
respirar se o ar não estiver contaminado com um pouco de tormento.
— O que você disse ao seu irmão sobre Annia e a adoção de Luna?
— pergunto sem preâmbulos.
Serena analisa meu rosto clinicamente. Constato, com bastante tristeza,
que ela consegue ficar linda e ameaçadora mesmo vestida como se fosse um
bichinho de pelúcia, sem sapatos.
Isso não me ajuda muito.
— Eu juro que estou tentando entender, mas você está sendo tão
ridículo que meu cérebro fica mandando eu bater em você e não consigo
raciocinar direito.
Já sabia que não seria uma discussão fácil, mas o rancor está rastejando
pelas minhas veias, mordiscando o caminho de artérias na direção do meu
coração.
Dói.
Arde.
E quero colocar isso para fora.
— Por que continua mentindo, Serena? O que mais está escondendo?
— Transtornado, retiro a fotografia do bolso e estendo para que ela olhe, para
que veja a si mesma abraçada com o homem que destruiu a minha vida. —
Não vai se defender disso?
Como esperado, isso a atinge.
Serena abraça o próprio corpo, sem desviar a atenção da imagem
pendurada em meus dedos. A tristeza dela termina de arruinar os poucos
escombros que ainda sustentavam o meu bom senso.
— Me defender? — debocha. A mágoa na pergunta abre uma cova no
meio do meu estômago. — Não tenho do que me defender, não sabia que
estava sendo acusada de alguma coisa, para começo de conversa.
Eu serei cruel.
— Então você confessa que mentiu? Que conhecia meu pai e mesmo
assim não disse nada?
— Mentir é uma palavra um pouco forte. Acho que "preservar a
verdade" é um termo mais adequado. — Ela estende a palma da mão, os
dedos trêmulos parecem pequenos e frágeis perto da determinação que usa
para falar comigo. — Isso me pertence. Devolva.
Sorrio, treinado a demonstrar o contrário do que estou sentindo.
— Não vai acontecer — aviso, embevecido com o humor peçonhento
cujo veneno se já me tornei imune.
Eu gostaria de sentir mais.
De me importar mais.
De me arrepender mais.
Ao invés disso, continuo destruindo, e destruindo, e destruindo.
Exaustivo.
— Por essa eu não esperava. — Roman inclina ao meu lado para ver a
foto, depois solta um assobio. Talvez todo aquele álcool tenha surtido um
pequeno efeito, afinal. — Alguém pode desenhar? Porque eu acho que nem
explicando eu vou entender.
Sentando-se no sofá, mais perto de Serena do que de mim, Roman
deixa implícito quem ele vai apoiar. Andrei assiste à discussão de longe, mas
seus olhos de águia não falham; ele vai intervir se houver necessidade.
Espero que não haja.
— Seu irmão entrou na nossa casa e roubou uma coisa muito, muito
importante — informo para ver sua reação.
— Oh, mierda — xinga. — E você acha que eu estou envolvida? Em
que universo isso faz qualquer droga de sentido?
Coloco minhas pernas em movimento, obrigando-me a não olhar
Serena por muito tempo — tão linda, tão desejável e sendo machucada pelas
minhas palavras —, e dou a volta na sala. Ela tem esse temperamento
determinado e desafiador contra o qual nunca consegui lutar.
— Quando nos conhecemos, eu não sabia o seu nome e você se recusou
a dizer por semanas. Além de ter entrado no meu quarto de hotel sem usar
nada que comprovasse a sua identidade, um crachá, nada. Depois continuou
aparecendo, se enfiando na frente do meu carro, no casamento do meu irmão.
Até Luna! — percebo, tardiamente. — Se não fosse por você, eu não teria me
apaixonado por ela, não teria entrado com o pedido de adoção. Todas as
evidências estão contra você, concorda? E agora, coincidentemente, seu
irmão entra na minha casa e rouba a única coisa capaz de arruinar os nossos
negócios.
Coloco as mãos nas costas e espero, voltando para a posição original,
de frente para Serena, enquanto ela abre e fecha a boca algumas vezes.
— Colocando dessa forma, devo admitir que entendo como chegou a
essa conclusão, mas…
— Elena disse — continuo, impedindo que se defenda com mais
justificativas falsas — que a inimizade do seu irmão com a minha família é
antiga, muito antiga. — Ergo a fotografia outra vez, meu coração protesta,
explodindo dentro do meu peito como se quisesse sair do corpo. — E
podemos ver que sua relação com meu pai também.
— Então é isso? — Diminuindo a distância entre nós, Serena se
posiciona perigosamente perto. — Parece que você já tirou todas as
conclusões sozinho, e que a palavra da sua quase ex-noiva, que tentou
derrubar a sua empresa com um plano maligno, vale mais do que a minha.
Coerência mandou lembranças, Lord Vlad!
— Você não quer jogar esse jogo de forças contra mim, Serena. Sabe
que vou vencer. — Toco seu rosto, ciente de que nada a faria se afastar, que
seu orgulho é quase tão elevado quanto o meu. Mas ela vai ceder. Ela vai. —
Além do mais — puxo sua nuca, conduzindo a minha boca rumo ao lóbulo da
orelha escondida no meio dos cabelos sedosos, e sussurro para que apenas ela
ouça: — pelo menos Elena não tinha um caso com o meu pai.
Serena arqueja, espalma as mãos contra o meu peito e se desvencilha,
empurrando-me.
Agora não temos mais volta.
O brilho em seus olhos começa a apagar. Procuro meu reflexo dentro
deles para confirmar se a imagem é tão repulsiva quanto imaginei em meus
sonhos insanos. Mas não encontro nada mais do que vazio.
Vazio e silêncio.
— Como pode dizer isso sabendo que você foi o único homem que eu
já tive? — vocifera com o indicador apontado para mim. — Está me
afastando. Não faz isso, não me afaste, seu idiota!
Sim, fique longe.
Descarto o argumento, pois já tentei usar isso para me convencer antes,
e não adiantou.
— Não muda o fato de que ele pode ter desejado você — acrescento de
forma natural. Cada palavra é uma fenda maior, separando-nos por um
imenso abismo. — Ou ter se aproveitando de outras maneiras.
— Ouça o que está dizendo! — Serena insiste, desesperada. Roman se
levanta devagar, mas eu o alerto para não se intrometer. — Eu era uma
adolescente, Vladimir.
— Uma podridão a mais para eu acrescentar na lista de crimes de
Nicolai Volkiov.
A mão dela se abre no alto. Eu poderia desviar se quisesse, mas espero
o golpe e aproveito a dor quando atinge o meu rosto com fervor. Eu gosto da
sensação de ser ferido por ela, que seja o meu pequeno caos.
Qual o meu problema?
— Nicolai foi a melhor pessoa que passou pela minha vida! E eu sinto
muito que não tenha conhecido seu pai de verdade, mas você deveria
agradecer profundamente se algum dia conseguir se tornar metade do homem
que ele foi.
— Não o defenda! — ordeno com um meio grunhido que reverbera por
todos os filamentos dos meus músculos.
— Não me diga o que fazer! — grita, jogando uma almofada contra
mim, mas acaba acertando uma Malévola molhada, que entrou
misteriosamente por um de seus milhões de acessos felinos. Ela mia alto e
corre para o meio das minhas pernas. — Traidora!
— Não brigue com o gato, Serena.
— Não defenda a minha gata, é uma traidora, e você é um ladrão de
gatas usando o papai como desculpa porque não consegue lidar com o
fracasso!
— Ladrão de gatas? Ela não sabe brigar — Roman observa. — Onde
estão todos aqueles palavrões em espanhol?
— Vocês dois precisam parar com isso! — Andrei entra na minha
frente, forçando-me a ficar mais longe.
Ele tenta me dizer muitas coisas com o olhar. Se acalme. Pare com
isso. Que merda está acontecendo? Mas eu também não entendo, e, agora
que já me alimentei da destruição, meu organismo exige por mais migalhas.
— Vocês querem saber a verdade? — pergunto para Andrei, a
adrenalina impedindo-me de parar. As palavras saem vomitadas para fora da
minha garganta, soltas por causa da jaula que os demônios de Nicolai
deixaram aberta. — Toda a verdade? Quer um motivo a mais para ir embora,
Andrei? — Gargalho. O que eles vão achar disso? — Nicolai tinha uma vida
dupla. A empresa era só uma fachada para lavar o dinheiro que conquistava
com casas de jogos clandestinas.
— Alguém cala a boca dele, pelo amor de Deus — Roman pede,
gritando também. Suas mãos estão nos ombros de Serena, que me encara com
olhos arregalados… de medo? De surpresa? Decepção?
Provavelmente um pouco de tudo.
— Sim, é isso mesmo — prossigo. Andrei me solta. — Ele morreu sem
se importar com as pessoas que viriam atrás da própria família por causa das
dívidas e dos inimigos que ele deixou de herança. Eu lidei com isso, Andrei!
Salvei a empresa, protegi vocês! Eu! Fiz escolhas ruins, e não me arrependo,
porque enquanto eu estava lutando para apagar a sujeira do nosso pai com
uma mira na cabeça, vocês estavam seguros! E faria tudo de novo sem pensar
duas vezes.
— Tem como isso ficar pior? — Roman tira a gravata dos ombros e
joga no chão, esfregando as têmporas com os dedos indicadores.
Tem.
— Ele tinha uma amante, ou qualquer coisa do tipo. — Aponto para
Serena.
— Nós não tínhamos um caso! — contesta com o rubor se
concentrando em suas bochechas. — Nicolai era meu amigo. E eu o amava
muito, sim, mas nós éramos amigos!
— Naquela noite, quando eu contei sobre o meu pai, você sabia? — Ela
confirma. — Por que não disse nada, então?
— Eu tive medo.
— Medo de mim? — ironizo. A sensação de ser temido não me enche
de satisfação como em outras ocasiões.
— Não, não tenho medo de você. Mesmo agora, enquanto age como
um cretino egoísta, continuo não tendo medo. — Serena agarra outra
almofada e joga. — Mas não posso amar por nós dois, Vladimir! — grita. —
Não posso confiar por nós dois! Ninguém vai perdoar você se não perdoar a
si mesmo primeiro. Seu pai é a parte boa da minha vida, e eu tive medo que
isso fosse contaminado pelo seu ódio. Nicolai Volkiov me salvou, eu devo a
minha vida a ele!
Cada palavra apunhala meu coração, abrindo buracos por onde escorre
o pouco de humanidade que Serena havia me ensinado a ter. Nicolai era um
maldito monstro. Por que infernos ela tem que amar os monstros?
Eu me sinto cada vez mais vazio, e é na solidão que a gente encontra
companhia na perversidade.
— Eu já entendi essa parte, a carta de despedida dele deixou isso bem
claro, Corazón — cito o apelido dado por ele. — Era divertido quando eu
chamava você assim?
Corazón.
— Pare com isso — pede, baixo e melancólico, e, se antes eu achava
que estava doendo, agora é um milhão de vezes pior. — Eu sei o que está
fazendo, essa coisa de afastar as pessoas. Então vou ajudar você, Vladimir.
Não vou mais lutar, nem insistir. Estou desistindo por nós dois, mas quero
que diga com todas as letras, vamos fazer isso direto: você quer que eu vá
embora?
Não.
Não.
Não.
Por Deus, não.
— Sim — afirmo.
A primeira lágrima cai.
Brilhante como uma gota de cristal.
Solitária como a última estrela no céu.
Devastadora como o apocalipse.
É a primeira vez que vejo Serena chorar.
— Ah, droga. — Ela tropeça para trás e Roman corre para amparar,
mas Serena não parece se dar conta do que está fazendo. — Não, não. Isso
não pode estar acontecendo. — Ela encosta a ponta do indicador na
bochecha, capturando a trilha úmida deixada pela lágrima. Encara as próprias
mãos trêmulas com horror.
As lágrimas me assustam, dissera uma vez.
— Você disse que me destruiria, Vladimir. Eu deveria ter escutado.
Parabéns por tentar o seu melhor e conseguir aquilo que sempre quis: ser
odiado por todos.
Isso, sim. Me odeie também.
— Você me odeia? — digo, movido pelo desespero. Todo o ódio,
mentiras, medos, fantasmas e demônios escapando e uma só vez. — Ainda
tenho dois irmãos disponíveis.
— Eu posso socar ele? Me deixem socar ele, por favor!
Roman desvia de Serena, mas ela é mais rápida e o agarra pelos
ombros, ficando na ponta dos pés.
— Você tem razão — diz maldosamente, lembrando-me que foi isso o
que me fez apaixonar por ela. A coragem. — Mas eu também sei brincar de
ser cruel, Lord Vlad.
A brasa em suas órbitas inflama, incendiando o caminho que conduz
nossos olhares um para o outro.
Ela encaixa o corpo no de Roman, próximo demais, íntimo demais,
rodeando o pescoço dele com os braços antes de entregar os lábios para o
meu irmão. Eu assisto, com um horror crescente e letárgico, enquanto ela
prova aquilo que me disse tanto tempo atrás: Serena não é feita de açúcar,
monstros não a assustam e ela não é a princesa esperando ser salva na torre
mais alta.
Não.
Serena é o cavaleiro que derrota o dragão.
Roman se recupera rápido do choque e eu percebo, nauseado, que não
vai recuar, não depois do que acabei de dizer. Ele pressiona as costas de
Serena, acabando com qualquer ponto onde seus corpos não encostassem
antes, e, com a mão livre, segura sua nuca, aprofundando a maldita língua
dentro da boca dela.
Eu avanço — sem ideia do que fazer, deixando-me guiar pelo
instinto —, mas os braços de Andrei me seguram no lugar.
— Não posso deixar você continuar com essa merda toda, Vladimir! —
rosna no meu ouvido, enquanto Serena encerra com sua vingança. — Não
estraga mais as coisas, ou os danos serão grandes demais para serem
consertados.
— Como se sente?! — diz Serena, batendo os dentes em um riso
descontrolado. — ¿Cómo te sientes, Vladimir? Quem vai salvar você agora?
Eu estou desistindo. — Ela estica os dois braços e puxa as mangas, exibindo
os pulsos magros. — Você está gravado nos meus ossos, visceralmente,
profundamente, e vai doer todos os dias, tanto! Mas eu vou sobreviver. Eu
vou sobreviver a você, está me ouvindo? Diga alguma coisa.
Me peça para ficar.
É como se o tempo ao lado dela estivesse se transformando em água e
meus dedos não conseguissem conter tudo dentro das palmas fechadas, como
se os dias que passamos juntos escorressem entre as fendas, deixando-me
com a garganta seca de sede.
Por mais que tenham sido poucas semanas, pareceram anos e
pareceram segundos, como um infinito que não foi suficiente, se é que isso
faz sentido.
Eu não faço sentido nenhum agora.
Frente ao meu silêncio, Serena se vira e sobe os degraus correndo.
Nem parece que há poucos dias estávamos declarando nosso amor à
quem quisesse ouvir. Mas eu estava enganado sobre a velocidade que o amor
acaba: ele não acaba.
— Você não acredita em nada do que disse a ela — Roman diz. Sua
voz me faz querer socá-lo. Já está tudo desmoronando, não seria nada
demais. — Não acredita mesmo que esteja envolvida com os planos do
irmão.
— Roman — digo, sentando-me com a cabeça abaixada. — Eu não
acho que consiga falar com você por algum tempo.
— Vladimir, você não pode estar falando sério. Está destruindo a sua
chance de ser feliz por causa de um erro que nem é seu! — insiste.
Eu vou socá-lo.
— Roman — Andrei chama. — É melhor você ir agora.
Alguma coisa se choca contra a parede. Uma estatueta, talvez. Ou
alguma garrafa. Depois ouço os passos de Roman se distanciando, até
sobrarmos eu e Andrei. Daqui a pouco ele vai embora, e então não restará
ninguém.
— Se acalma, converse com ela. Serena não pode ir embora, Vladimir.
— Sim, ela vai — diz minha mãe.
Levanto o olhar. Ela ainda está com Luna, mas substituiu o macacão de
coelho por outro mais confortável. Sem avisar, coloca minha filha no meu
colo e, por um segundo, meu coração dispara, como se eu também fosse
capaz de destruí-la, como se ela fosse se transformar em pó só por entrar em
contato comigo.
Mas é o contrário, Luna me acalma com seu jeito manso e o cheiro de
talco.
O impulso me fez agir e, agora que a adrenalina se foi, me sinto
perdido.
Não posso me arrepender.
— Mãe…
— Sabe quantas vezes seu pai me colocou para fora de casa, meu filho?
Uma, e Deus sabe que eu mereci. Aliás, você teve a quem puxar. — Minha
mãe vai balançando os braços à medida que anda de um lado para o outro. —
De qualquer forma, só voltei para ele com a condição de que comprasse a
mansão mais opulenta da cidade, porque meus belíssimos pés não pisariam
outra vez na casa onde fui despejada. É melhor preparar o seu bolso.
— Não acho que estamos em um bom momento para gastar com
mansões — Andrei observa.
— Oh! — Minha mãe abaixa e pega a fotografia de Serena no chão,
mas, ao invés de ficar surpresa, ela solta uma gargalha que faz Luna rir
também. — Eu estava procurando isso há dias, e estava o tempo todo com
ela.
Serena desce os degraus antes que eu tenha a chance de perguntar como
minha mãe sabia sobre essa foto. Ela também trocou as roupas e o conjunto
de dormir deu lugar a botas e um casaco grosso com capuz largo.
Ela não pode estar pensando em ir embora agora, agora!
— Tatiana, eu juro que… — Serena começa a dizer, mas é
interrompida pela minha mãe.
— Eu sei, minha querida. Eu sou Tatiana Pavlovna Volkiova, meu
marido seria um idiota se me trocasse por outra mulher. Não que ele não
fosse idiota por outros motivos. É um lance de família, como você já deve ter
percebido. Bom, Andrei era a minha única esperança, mas também não tive
essa sorte.
— Serena — chamo, obrigando minha voz a soar calma. — Você não
está pensando em sair agora, está?
— Você disse que não me queria mais aqui. Não vou continuar
morando em uma casa onde não sou bem-vinda, nem mesmo por uma noite a
mais.
— Eu avisei — minha mãe cantarola.
— Eu não usei essas palavras — argumento. — É perigoso, está
chovendo.
Andrei pega Luna assim que me levanto e ela deita a cabecinha em seu
ombro esquerdo. Serena, com uma bolsa pequena pendurada ao lado do
corpo, sorri.
— Eu estava pensando — diz para mim, a naturalidade da conversa me
deixa momentaneamente confuso — que pelo menos essa foi a nossa
primeira briga que não acabou em sexo. E isso nem é uma indireta.
Mesmo sendo uma brincadeira, tem uma nuance de despedida presente
nas entrelinhas. Eu vou sobreviver a você, foram as suas palavras. É um
alívio ter essa certeza de que pelo menos um de nós dois sabe como seguir
em frente.
Porque eu ainda não sei, e falar sobre sexo é a última coisa que preciso
agora.
— Eu não faço bem para você — digo, mais para me convencer do que
para ela.
Nós somos estranhos.
— Não fazemos bem um para o outro, Vladimir.
Serena respira fundo e vai abraçar minha mãe e Luna.
Fico observando para ver se ela vai chorar outra vez, mas seus olhos
nem sequer umedecem. Ela vai embora, levando nossos planos, sonhos e uma
parte de mim que só ela conhecia, que apenas Serena aceitava, aquela parte
que não era presidente, nem monstro, nem o filho de Nicolai Volkiov.
A minha melhor parte.
Ela poderia exigir Luna se quisesse, porque eu não afastaria as duas em
nenhuma hipótese. Mas Serena não faz isso. Apenas se despede da nossa
filha, prometendo voltar em breve, e eu me lembro de Annia na prisão, aos
prantos.
De alguma forma, a concessão de Serena é muito mais dolorosa de
assistir.
— Serena — chamo ao fim de todas as despedidas e lamentos por parte
da minha mãe, que consegue chorar por todo mundo. Depois de levar nosso
relacionamento ao pó, preciso ser sincero sobre uma coisa: — Você está nos
meus ossos também.
— Bom, isso é bom — aprova. — Vai doer em você também.
Já está doendo.
— Eu também estou indo — Andrei anuncia, arrancando de Tatiana um
lamento e mais lágrimas. — Posso te dar uma carona, se quiser. Para onde
você vai, Serena?
— Eu vou para o distrito — diz, e Andrei para antes de pegar a bolsa
dela.
— O quê? — impeço a saída dos dois. — Não, nem pensar!
— Lembro muito bem de ter terminado o nosso relacionamento há
quinze minutos. Perdeu o direito de me pedir qualquer coisa. Além disso,
acrescente isso à sua lista de provas contra mim, se quiser.
Estou pronto para darmos início a uma briga ainda pior do que a
anterior, mas várias batidas na porta de entrada calam a discussão. Olhamos
uns para os outros, como se alguém pudesse responder quem poderia ser.
Andrei assume a dianteira e abre um lado da porta dupla, deixando que
um de nossos seguranças entre na mansão. Atrás dele, três policiais e um
oficial aguardam com guarda-chuvas pretos fechados pendurados nos braços.
— Desculpe, senhor — diz o segurança, não me recordo do seu nome.
— Nós tentamos anunciar a chegada dos oficiais, mas ninguém respondeu à
ligação e eles tinham um mandato. Eu sinto muito.
— Boa noite, senhor Volkiov — diz o homem que parece ser o
representante do pequeno grupo. — Precisamos que nos acompanhe até a
delegacia.
SERENA
***
Nicolai está sorrindo. Não é algo que faça com muita frequência. Ele tem um
sorriso bonito, igual ao de Vladimir. Os dois são lindos, mesmo que Nicolai
seja mais maduro e robusto, mas é Vladimir o dono do meu coração.
Eu dei tudo a Vladimir, transformando-o no desbravador dos meus
sentimentos e do meu corpo. Não é fácil amá-lo, ele não está acostumado
com o amor. Nenhum de nós dois está, eu acho.
Vladimir não está aqui. Para onde ele foi?
É inverno, está frio. As árvores no Jardim de Alexandre estão nuas,
despidas de suas folhagens. O jardim é mesmo belíssimo nessa época do ano,
quando o céu já não vibra com as cores quentes do verão e nem com as
tintas coloridas da primavera. É reconfortante. Eu gosto.
Nicolai me mostra uma câmera fotográfica antiga, parece animado
com o objeto. Ele abre a boca, pronto para dizer as últimas palavras — não
entendo como, mas sei que serão as últimas, e eu as conheço muito bem.
Desculpe-me, Serena, mi doce Corazón.
Desculpe-me.
Mas, ao tentar dizê-las, Nicolai se engasga, tossindo. Tento ajudar,
mas não o alcanço. Está longe agora, afastando-se, tossindo sem parar. Ele
quer me dizer alguma coisa.
O que é? O que pode ser?
— Fogo!
Acordo tossindo. Minha garganta arde, impregnada com o sabor de
fuligem, e um cheiro forte de fumaça invade minhas narinas, intensificando a
dificuldade para respirar.
Fico de pé, perturbada com o sonho confuso e o cheiro ressequido de
queimado. Apoio a mão na parede até que o acesso de tosse acabe. Meu
celular vibra no bolso e eu o alcanço depressa enquanto saio para o corredor
em direção à cozinha.
Tem alguma coisa pegando fogo…
Há muitas ligações e uma dezena de mensagens, a maioria de Vladimir.
Abro a primeira, enviada pouco tempo depois que adormeci.
Aquele diabinho que mora dentro de mim cutuca meu coração com o
garfo, fazendo as batidas descompassarem um pouquinho. Passo para a
próxima, meus dedos deslizam sobre a tela, tremendo.
"Serena, Ivan e Lara estão em casa esperando você. Por favor, volte."
Ele não cita a si mesmo, o que me faz supor que ainda não foi liberado
da delegacia. Não tenho certeza de como me sinto com relação ao homem
que amo estar sendo acusado por um crime que está vinculado ao meu
passado. E agora não é o momento ideal para pensar sobre isso!
Ouço gritos raivosos vindos do quintal e paro, apavorada com a
perspectiva de ser encontrada. São muitas vozes e o cheio de fumaça vai se
tornando cada vez mais intenso. O que está acontecendo?
Pulo algumas mensagens, estagnada contra a parede para que ninguém
me veja, e seleciono a próxima aleatoriamente, enviada há pouco mais de
meia hora.
Mandão.
Por fim, abro a última, recém-chegada, e a primeira palavra volta a
agredir meu peito com força.
"Corazón, atenda o telefone. Eu sei que não quer falar comigo, ou me ver.
Pode me odiar o quanto quiser. Mas atenda o maldito telefone! Mande uma
mensagem, qualquer coisa!"
O ar está denso, os gritos vindos dos fundos chegam aos meus ouvidos,
mais apavorados do que ameaçadores. Arrasto-me para mais perto da porta
da cozinha, ainda em conflito se devo ou não retornar a ligação, quando vejo
o fogo através das janelas.
Fogo.
Muito fogo.
Os galpões estão em chamas, duas grandes fogueiras espiralando até o
céu, e a fumaça negra se funde com a noite. As nuvens carregadas e
vermelhas foram ocultadas pela fumaça; a chuva enfim desistiu de lavar a
cidade, deixando para trás somente a promessa de dias frios que não
combinam com as labaredas.
Uma dezena de homens corre de um lado para o outro, gritando ordens
e mirando debilmente com uma mangueira na direção das chamas.
— Ah, Camillo, o que você fez? — choramingo, apertando o celular
contra o peito.
Deu ruim, claro que deu ruim!
Preciso ligar para a polícia, ou para o corpo de bombeiros… Não, eles
já devem estar a caminho. Deus tem telefone? Preciso do
número. Misericórdia! Olha o tamanho desse incêndio! Surpreende-me não
estar ouvindo ainda o barulho dos helicópteros da imprensa, ou das sirenes.
A alternativa mais inteligente é sair daqui o mais rápido possível, então
começo a correr — tentar, pelo menos, pois as minhas pernas mal se
sustentam. Quando estou quase chegando na porta da frente, porém, vejo
Camillo encolhido no canto da sala, pálido e ensopado de suor.
— Camillo! CAMILLO! — chamo, debruçando-me sobre seu corpo
fremente, sofrendo com espasmos musculares. — Não, não, não. O que você
fez?
Algumas seringas estão jogadas ao seu lado. Ele usou todas? Isso é
humanamente possível? Não sei qual de nós dois está tremendo mais. Meu
irmão bate os dentes, seus lábios estão roxos e o peito sobe e desce de uma
forma agonizante, emitindo um chiado agudo.
Isso não pode estar acontecendo.
Grito por ajuda, ou acho que grito, porque não consigo escutar a minha
própria voz. Sei que repito o nome dele diversas vezes enquanto estico o
corpo no chão, de lado, para que não se engasgue. Não tenho ideia do que
estou fazendo, mas geralmente é isso o que as pessoas fazem nos filmes.
— Frio — geme, revirando os olhos.
Abro meu casaco e tento cobrir Camillo, mas ele tem um corpo grande,
muito maior do que o meu, fazendo com que os pés descalços continuem
exposto, assim como os braços marcados e vermelhos.
— Eu vou… — gaguejo, suprimindo um soluço. Camillo estava errado,
não tenho tanto poder assim, não sei o que fazer, alguém me ajude. — Vou
buscar mais cobertores…
— Não! — Camillo segura meu pulso, rosnando com os dentes
trincados e olhos arregalados, a pele adquirindo um doentio tom cinzento —
Você sabe, porra! Ela não gosta quando está calor…
Ele volta a se debater no chão, delirando e grunhindo. Uso toda a minha
força para fixar seu corpo no lugar, tentando evitar que se machuque, mas,
mesmo magro e doente, meu irmão continua sendo muito mais forte
fisicamente.
— Quem? Quem não gosta, Camillo? — pergunto, tentando chamar sua
atenção para a consciência. Seus espasmos aumentam, eu volto a gritar por
ajuda; alguém, qualquer pessoa. Mas sua condição piora em uma
velocidade impiedosa, dolorosa, desumana. — No puedes morír, hermano.
Meu corpo é puxado de repente. Minhas costas batem dolorosamente
contra a única cadeira remanescente no cômodo, arrancando outra onda de
tosse que tento controlar o mais rápido possível.
Maksim tenta socorrer Camillo. Ele parece saber o que está fazendo,
porque meu irmão parou de se debater.
A porta da frente está escancarada — Maksim provavelmente a
arrombou — e o barulho de sirenes começa a soar em algum ponto da cidade.
— O que ele tomou?! — Maksim grita, estático, com as mãos afastadas
de Camillo.
— Eu não sei… Não sei… — Levanto-me, horrorizada com o ódio
transfigurado no rosto de Maksim. Ele nunca pareceu tão perigoso, tão
descontrolado.
— O que você fez? — sibila, olhando de mim para o corpo inerte do
meu irmão.
Camillo não se move. Ele não se mexe. Ele não…
Oh, Deus.
Antes que eu consiga assimilar quais partes do meu corpo e da minha
alma doem mais, antes que o choque dissipe e eu liberte a vontade de chorar,
a arma brilhante na mão de Maksim — de onde ele tirou isso? — me obriga a
reagir.
Você se coloca em perigos demais. Por que, Corazón?, ressoa a voz de
Vladimir na minha cabeça, repetindo um questionamento que já me fizera
tantas vezes.
Jogo-me na direção da saída ao mesmo tempo em que o disparo
retumba dentro da casa, atingindo a porta. Desço os degraus todos de uma só
vez. Meia dúzia moradores estão na rua; alguns me olham com espanto,
outros filmam o incêndio com os celulares suspensos.
Camillo era como uma redoma prendendo a sanidade de Maksim.
Pego a chave do carro dentro do bolso da minha calça, rezando para
não deixá-las caírem ou eu mesma tropeçar no meio do desespero. O segundo
disparo acerta a lataria do carro assim que me acomodo no banco e giro a
chave na ignição.
Os moradores estão dispersando depressa agora, tão apavorados quanto
eu, e a última coisa que vejo antes de dar partida é Maksim correndo para um
carro poucos metros atrás do meu.
Piso no acelerador e sinto o carro se mover, ganhando velocidade, e tão
logo estou saindo do distrito, fazendo curvas fechadas e desviando de outros
veículos mais lentos.
Maksim continua me perseguindo.
Isso não pode estar acontecendo.
Minha melhor chance é seguir na direção da região central, onde o
número de pessoas e policiais é maior mesmo no auge da madrugada. Isso vai
obrigá-lo a desistir. O percurso é longo, mas aumento a velocidade. Mais
rápido, mais rápido.
Outro tiro atinge o carro e não posso evitar um grito de surpresa.
Pensa, Serena, pensa!
Posso seguir caminho até chegar à Bolshoy Krasnokholmsky, atravessar
o rio Moscou por um acesso mais movimentado e, talvez, conseguir distrair
Maksim; mas um bloqueio na ponte que procede o monastério
de Novospasskiy se abre à minha direita, como uma luz — deve ter sido
colocado por causa da chuva.
Sem tempo para pensar em opções melhores, giro o volante e entro no
acesso, desviando de um cone de sinalização esquecido no meio da pista.
Olho pelo retrovisor bem a tempo de ver o carro de Maksim passar direto,
sem chance para fazer a curva atrás de mim. Ao olhar para frente, solto a
respiração e contemplo as estrelas em seus mundinhos perfeitos de caos.
Comemoro.
Por um segundo, eu comemoro.
Então, vem o impacto.
O carro gira sobre a mureta de proteção da ponte. O som do metal
chocando-se contra o concreto é muito alto e assustador, mas nem se compara
com o choque que me assola ao perceber que estou caindo.
A velocidade, a pista molhada pela chuva, os avisos sinalizando o
bloqueio da ponte…
Eu vou morrer.
Aperto o volante com força e fecho os olhos pouco antes do carro
atingir a água do rio Moscou, muitos metros abaixo. Era para ser igual nos
filmes e eu ver toda minha vida passando diante dos olhos. Mas tudo o que
vejo é Vladimir.
Talvez isso signifique que ele se tornou a minha vida em algum
momento, ou grande parte dela.
Vladimir.
O que eu disse antes de ir embora?
Ah, sim…
Minhas últimas palavras para ele foram "sinto muito". Eu deveria ter
dito algo mais legal, como "eu te amo".
VLADIMIR
NUNCA TIVE MUITA empatia com repórteres, isso é fato. Nas últimas doze
horas, contudo, aprendi que posso muito bem odiar cada um deles — não que
signifique grande merda no momento, considerando que estou com ódio de
qualquer coisa que respire, incluindo eu mesmo.
O carro estaciona na frente da casa de Serena e somos rapidamente
cercados por um monte deles. Abutres malditos, como Ivan costuma dizer.
Confiro o celular mais uma vez, mas Serena não respondeu nenhuma
das minhas mensagens nem retornou às ligações, impedindo qualquer
tentativa de contato. Para meu completo desespero, há mais ou menos três
horas o número dela ficou indisponível e o medo só fez crescer no meu peito
desde então, junto com a culpa.
Eu passei dos limites… em tudo.
E, por causa disso, Serena foi embora.
Um inquérito foi aberto para dar início às investigações contra a
empresa. De acordo com Andrei, não temos nenhuma chance de subverter as
provas à favor da Corporação — e ele não faria isso mesmo que fosse
possível, por ter princípios muito mais dignos que os meus —, então
precisamos nos preparar para uma causa perdida. No entanto, existe uma
maneira para que eu não seja acusado de encobrir os crimes de Nicolai, e isso
envolve declarar publicamente que nos opomos à gestão anterior e oferecer
nosso apoio às famílias prejudicadas o mais rápido possível.
Famílias essas que nunca conheci.
Eu sei que todas as partes do meu irmão não concordam com essa
manobra. Se eu fosse qualquer outro empresário em apuros, ele ficaria
satisfeito em me ver atrás das grades, mas Andrei jamais viraria as costas
para a família. De acordo com ele, desde que eu assuma e conserte meus
erros, posso contar com seu apoio.
Consertar os erros. Está aí uma coisa que nunca aprendi a fazer.
— Nada ainda? — Andrei pergunta, também preocupado com o sumiço
de Serena e visivelmente cansado.
Guardo o celular e nego, olhando para fora enquanto alguns policiais
obrigam repórteres protegidos com máscaras cirúrgicas a se afastarem,
delimitando a passagem deles com uma fita amarela.
— Talvez ela esteja lá dentro — digo, mas a possibilidade faz com que
a frase saia como um grunhido.
— Espero que não. — Andrei abre a porta do carro assim que a
passagem é liberada.
Eu o sigo, ignorando a algazarra de perguntas; muitas são sobre a
minha visitinha à delegacia, outras se referem ao vazamento das plantas e do
edifício que desabou — agora toda a verdade está exposta, não adianta mais
tentar conter a imprensa. Há três carros do corpo de bombeiros na frente da
propriedade e um helicóptero sobrevoa o bairro de um lado para o outro,
contornando a fumaça escura que continua espiralado rumo ao céu mesmo
que o incêndio tenha sido controlado.
— Ivan está a caminho — Andrei diz, guardando o celular no bolso
enquanto entramos na casa. A porta foi arrancada do batente.
Um bombeiro vem ao nosso encontro com as mãos esticadas,
impedindo nossa passagem. Ele usa capacete e uma máscara de respiração do
rosto.
— Desculpe, senhores. A aproximação de civis no foco do incêndio
está proibida por enquanto. Havia muitos entorpecentes e outras drogas
escondidas nos galpões e a fumaça não é segura, mesmo que o fogo tenha
sido controlado.
— Sargento. — Andrei assume a frente da conversa, faz um
cumprimento respeitoso antes de continuar. — Esse é meu irmão, Vladimir
Volkiov. Fomos chamados para conferir os danos causados na estrutura do
nosso edifício.
A postura do homem muda imediatamente, reconhecendo nosso
sobrenome.
— Poderia nos explicar o que aconteceu aqui? — peço o mais
controlado possível à medida que assimilo o estado degradante no interior da
casa.
— Ainda não temos informações oficiais, mas, aparentemente, a
residência estava sendo usada como esconderijo de uma gangue local para o
armazenamento de mercadorias ilícitas. — O sargento do corpo de bombeiros
nos guia para os fundos da casa enquanto prossegue com as explicações. Não
mencionamos nada sobre já sabermos de tudo isso. — Seis pessoas foram
detidas e todas alegaram que um homem chamado Camillo Fajardo iniciou o
incêndio intencionalmente. Os policiais confirmaram que ele morava na
residência, embora ela pertença à irmã.
Meu irmão nega minimamente com a cabeça, alertando para não insistir
no assunto por enquanto ou podemos comprometer Serena de alguma forma.
Mas a preocupação presa nos meus pulmões continua se expandindo.
Recebemos duas máscaras pequenas para nos aproximarmos dos
galpões, que foram reduzidos a cinzas muito rápido; segundo os peritos, por
causa da madeira velha e dos muitos materiais inflamáveis escondidos lá
dentro.
Os danos ao clube foram menores, pelo menos vistos nesse ângulo.
Precisaremos que Roman avalie melhor pelo lado de dentro, mesmo que eu
deteste a ideia de me reunir com ele pela próxima década.
Depois do que pareceram horas — e de enviar mais uma dúzia de
mensagens para Serena — retornamos para dentro da casa bem a tempo de
encontrar Ivan sendo escoltado por outro oficial.
— Como está Lara? — Andrei pergunta antes de qualquer coisa, mas
Ivan abre um sorriso maior do que qualquer outro que eu já tenha visto.
É um daqueles sorrisos que fazem inveja.
— Eu vou ser pai! — anuncia, depois corrige. — De novo. Lara está
grávida de um filho meu.
— De quem mais seria? — Andrei gargalhada, abraçando Ivan.
Mesmo em meio aos sucessivos desastres, a alegria do meu irmão nos
contagia. Pelo menos agora que nós todos já sabemos, poderemos cuidar de
Lara como ela merece.
— Descobriu isso sozinho? — pergunto, abraçando e parabenizando
Ivan, que faz uma careta.
— Todos já sabiam então? — confirmo, sem explicar que Serena
deixou escapar. Dizer o nome dela vai além das minhas capacidades por
enquanto. — Ela fez uma surpresa junto com Iago, que acabou virando uma
reunião de negócios porque aquela mulher só pensa em trabalhar. Talvez eu
precise a prender em casa pelos próximos sete meses. Mas conversamos
sobre isso depois. — Ele faz sinal em direção a saída. — Alguma notícia da
Serena?
— Nada ainda — responde Andrei. — Ela disse que viria para o
distrito, então pensamos que pudesse estar aqui, mas nenhuma notícia por
enquanto. O celular está desligado…
O restante das palavras de Andrei é calado por um policial que passa
por nós com um casaco pendurado nas mãos e uma bolsa dentro de um saco
plástico transparente.
São dela.
— Ei, ei! Onde encontrou isso? — questiono, entrando na frente do
homem, sem me importar com a falta de respeito. Ele me encara com o
semblante rígido, mas responde mesmo assim.
— Estava ao lado do corpo, senhor. A bolsa nós encontramos na
cozinha.
— Corpo? — pergunto, alarmado, avançando para perto do policial.
Andrei coloca um braço na minha frente antes que eu segure o homem e o
obrigue a falar.
— O corpo de Camillo Fajardo foi encontrado na sala com sinais de
overdose — explica. — Ele foi levado pela perícia para ser examinado.
Ela esteve aqui.
— A dona dessas peças, vocês a encontraram? — Ivan é quem faz a
pergunta. Eu estou paralisado, pensando no que pode ter acontecido.
Será que ela sabe sobre a morte de Camillo? É possível que tenha visto
o incêndio? Que tenha se machucado?
Por favor, Deus, ela não pode ter se machucado.
— Sinto muito, não temos essas informações ainda. Não encontramos
ninguém na casa além dos homens que foram detidos.
Andrei começa a interrogar o policial com sua boa e velha lábia de
advogado. Às vezes é assombroso assistir meu irmão, sempre doce e
bondoso, em ação. Se Andrei quisesse e gostasse do poder tanto quanto eu,
ele seria imbatível.
O sentimento de impotência me causa uma angústia surreal. Não saber
onde Serena está e o que está fazendo agora parece desestruturar toda a
minha mente. Não poder ter certeza da sua segurança me deixa ainda mais
irritado e decepcionado comigo mesmo.
Eu causei isso. Eu a afastei, humilhei e julguei. Mandei Serena embora,
porra! Que merda de homem faz uma coisa dessas?
Um burburinho na entrada chama nossa atenção. Roman está
estacionando a moto na frente da pequena escada, discutindo com policiais
como se fosse o dono da rua enquanto retira o capacete. Depois de alguns
gritos, eles abrem passagem ao mesmo tempo em que nos aproximamos.
Não consigo esquecer aquela cena, o beijo, Serena em seus braços. Mas
todo tipo de vingança não parece suficiente ainda. Precisa ser algo à altura.
Roman não é idiota, ele sabe que não vai ficar impune por muito tempo.
— Você entende que não adianta brigar com ele, certo? — Andrei
sussurra. — É do Roman que estamos falando, aquele beijo não significou
nada, Vladimir.
É claro que sei, bem lá no fundo eu entendo por que Roman a beijou de
volta — primeiro, por ser um imbecil, e, segundo, porque ele faria qualquer
coisa por Serena naquele momento de desespero. Ela estava se quebrando
bem na frente dos nossos olhos, eu a estava despedaçando, e Roman jamais
negaria qualquer tipo de apoio que pudesse mantê-la inteira.
Isso não diminui a minha raiva.
Mas meus olhos encontram os dele e toda a preocupação com o beijo
evapora, dando lugar a outra coisa, um sentimento devastador, sem nome,
sem forma. Não preciso de nenhuma palavra para entender que algo
aconteceu.
— Onde ela está? — pergunto. Roman comprime os lábios. Ele desvia
o rosto pálido, deixando o cabelo deslizar sobre a testa.
— Eu sinto muito, Vlad. Serena, ela… — Roman engole seco, a
sombra da tristeza que engloba meu irmão começa a se arrastar na minha
direção. — Encontraram o carro dentro do rio, só conseguiram retirar agora e
entraram em contato através da placa.
Escuto sua voz, mas não entendo. Não quero entender.
— O que você está tentando dizer? — Ivan faz a pergunta no meu
lugar.
Roman aperta o punho no capacete, mas nada me prepararia para o que
diz em seguida:
— Algumas testemunhas viram quando ela ignorou um bloqueio na
ponte perto de Novospasskiy. O carro foi flagrado em alta velocidade pelos
sensores de trânsito antes de cair no rio. — Fecho os olhos, não querendo
escutar. Não pode ser verdade. Não ela, por favor. — Serena tentou se matar,
irmão.
Não.
Não.
O que foi que eu fiz?
A risada de Serena me acerta em cheio, uma lembrança reluzindo no
meio da desesperança, junto com declarações de amor sussurradas no meio
da noite. Minha Serena, pequena, machucada, desesperada. Eu deveria ter
protegido a mulher que amo, deveria ter sido a sua força.
Eu deveria… ah, céus.
Corazón, o que foi que eu fiz?
***
***
***
Serena aguarda até que eu diga alguma coisa, mas minha única reação é
encarar seus lindos lábios franzidos e a maneira como ela consegue arquear
as sobrancelhas quando fica ansiosa.
— Como pode ver, nunca houve nada minimamente romântico entre
seu pai e eu, Vladimir. Sendo bem sincera, é claro que ele era bonitão,
charmoso e tinha aqueles ombros largos, mas ele foi como um segundo pai
para mim, nada mais que isso.
Absorvido pelo choque, outras evidências se somam à sua afirmação. É
por isso que Maksim conhecia meu pai e usou isso contra mim na primeira
vez em que nos encontramos, e foi isso o que Elena quis dizer quando
mencionou a forma como havia encontrado Serena na época em que eu ainda
não sabia quem ela era.
— Então ele matou os seus pais, Serena — pontuo com muito cuidado.
Não quero perturbá-la.
Uma brisa suave, vinda da janela aberta, faz seus cabelos dançarem
enquanto ela pensa com o indicador pousado em cima do queixo. As
vestimentas largas do hospital deixam à mostra todo o colo ao redor das
clavículas e, tal como o médico havia afirmado, há alguns mapas lilases
marcados na pele.
Gostaria de beijá-los.
— Talvez — conclui, despreocupadamente. — Isso pode ser uma
verdade, e eu me sinto devastada que ele tenha morrido levando esse
arrependimento.
Não aguentando continuar sentado, levanto-me e caminho pelo quarto
cheio com aparelhos que apitam. Um televisor desligado está acoplado em
uma parede e, ao lado da cama, há uma espécie de balcão.
— Você consegue se ouvir falando? — pergunto. Dessa vez não
consigo disfarçar um pouquinho de rispidez. Ela reage, sorrindo, porque é
doida. — Como ainda pode defendê-lo?
Serena joga as pernas para fora da cama, expondo os pés descalços. A
camisola hospitalar está franzida na altura das coxas e ela não faz questão
nenhuma de esconder, de modo que uma parte do meu cérebro começa a
falhar.
— Estão mortos, Vladimir. — Cruzando os braços, seus seios se
avolumam e um pedacinho da tatuagem foge pela gola da roupa. — De que
adianta odiar um cadáver? Eu não posso trazer meus pais de volta e muito
menos o seu, mas amei todos eles incondicionalmente e não é agora que isso
vai mudar.
Cristo! Por que ela tem que ser tão teimosa?
Mantenho uma distância segura e tento explicar com calma.
— Seus pais morreram. Tudo o que você passou até hoje, foi por causa
de Nicolai e da minha decisão em acobertar o caso. Se vocês tivessem tido
suporte da empresa, talvez você não tivesse… Talvez seu irmão estivesse
vivo.
— Talvez, é verdade. — Interrompe. Vindo até mim, bate o dedo
indicador no meu peito. — Ou talvez, com a falência e um escândalo daquele
tamanho, a Corporação Volkiov tivesse acabado. — Espalmando as mãos
sobre o meu coração, trilha um caminho até o meu rosto. — Ou ainda, quem
sabe, eu tivesse depressão de qualquer forma e, sem o suporte que seu pai me
ofereceu, ninguém conseguisse me impedir de cometer suicídio. Eu não tentei
me matar porque eles morreram, Vladimir, mas porque a minha mente e a
minha alma estavam doentes. Não temos como mudar o passado, mas isso
que estamos fazendo um com o outro agora, as coisas que me disse ontem,
não podemos culpar ninguém além de nós mesmos, e é com isso que estou
preocupada! Você me fez amar você — acusa, sussurrando.
Imito sua pose e também embalo suas bochechas com as minhas mãos,
afagando as maçãs do rosto com o polegar. Ela é tão pequena, teimosa e
doce. Mas ao mesmo tempo consegue ser intensa e forte, olhando-me sem ter
medo, sem julgar os meus defeitos.
Sou mesmo um idiota por ter estragado tudo.
— Precisa parar de ser tão boa, Corazón.
Serena sorri, orgulhosa, arrebitando o nariz como um… ratinho.
E lá vamos nós com as comparações ridículas.
— Olha, eu concordo, gente boa só se fode. É a lei natural da vida.
Mas, apesar de eu claramente me ferrar pra caramba, você precisa entender
que não sou nada boa, Lord Vlad. Ninguém é completamente bom ou
completamente mal, ou o mundo seria um tédio. — Ela diz tudo muito
rápido, quase não consigo acompanhar. — Além disso, não foi pelo seu lado
bom que eu me apaixonei.
Virando-se, Serena dá um passo para longe, na direção da cama. Um
único passo, pouquíssimos centímetros, e meu corpo age por conta própria,
puxando-a de volta.
— Eu perdi você? — murmuro no seu ouvido, suas costas encaixadas
no meu corpo. A respiração acelerada e morna chega até o meu braço que a
mantém presa.
A resposta demora… Muito.
— Sim, presidente — decreta, rodando até ficarmos um de frente para o
outro. Os rostos próximos, as bocas fazendo promessas veladas, é muita
agonia. — Você me perdeu.
Ignoro seu tom desdenhoso, curvando até nossas testas se tocarem. Ela
poderia recusar o contato se quisesse, mas Serena apenas fecha os olhos e se
deixa consolar em nosso estranho abraço. Destruí a confiança que tinha em
mim quando me deixei levar pela cegueira do ódio, e agora não me restam
alternativas a não ser lutar contra as consequências.
— Não devia ter mandado você embora, não foi justo. Me perdoe,
Corazón, por favor, me perdoe — imploro, apertando-a com mais força.
— Não é tão simples — diz e, mesmo sem olhar seu rosto, consigo
sentir o sorriso. — A culpa não é totalmente sua, eu também estraguei as
coisas. Tive a chance de dizer a verdade sobre o seu pai e me acovardei.
Ainda beijei seu irmão. Mesmo você merecendo, foi errado. Eu faria de
novo? Com certeza, mas foi errado.
A lembrança ameaça ressurgir na minha cabeça, assim como o desejo
de acertar Roman com um soco. Eu o amo, mas continua sendo um maldito.
Além disso, soquei Andrei por bem menos…
— É verdade. Você foi bem cruel ao fazer isso.
Ela nem finge se importar.
— Eu já não tenho a mente lá muito certa das ideias, e você me
quebrou, Vladimir. Há menos de um dia, me expulsou da sua vida, escolheu
ser cruel comigo e ainda gostou bastante de incorporar o todo poderoso do
andar de baixo.
— Corazón, eu estava errado…
— Ah, sério? Conta uma novidade. É disso que eu estou falando… —
Serena ironiza, erguendo o nariz em sinal de afronta. Segura meu queixo,
seduzindo como sabe que apenas ela consegue fazer comigo, e passa os dedos
sobre os meus lábios, fazendo promessas que não pretende cumprir,
hipnotizada nessa ligação que nos conecta. — Quer saber? Não consigo
pensar direito com você tão perto.
Dessa vez, ao tentar se afastar, eu permito. Serena vai para a cama, se
senta com os pés pendurados, balançando-os para frente e para trás como
uma criança.
Ela é mesmo fofa.
E sexy.
Ao mesmo tempo.
E grávida, tem um bebê meu dentro dessa coisinha abusada.
— Eu vou conquistar você de volta — comunico, decidido. — Então
não faça isso de novo. Quando eu soube que tinha tentado se…
Não tenho coragem para dizer o restante, até por imaginar que não seja
adequado abordar o assunto assim, tão recente. Porém, pela expressão de
surpresa, eu diria que compreendeu muito bem.
— O quê? Você acha que eu tentei me matar por sua causa?
— A ponte… — explico, igualmente confuso. — Que você se jogou
com o carro. Você… Não fez de propósito?
— Gosto muito da minha vida, e vou gostar mais ainda agora que você
vai me pagar uma pensão bem gorda. Ninguém mandou dar o golpe da
barriga ao contrário.
Assumo meu lugar na cadeira, apoiando os cotovelos nos joelhos e os
punhos no queixo. Assim posso enxergar Serena sem a cascata ondular se
cabelos escuros escondendo seu rosto.
Se ela não tentou se matar, só há uma explicação para ter avançado
contra a ponte. E seja quem for o culpado, não vai sair impune.
— Me conte o que aconteceu.
***
ONDE O DIABO não pode ir, ele envia uma mulher, já dizia minha sogra,
que Deus a tenha…Ou não, existe contradição demais nessa linha de
raciocínio.
Nesse caso, pelo menos, ela tinha razão e merece os créditos.
À medida que avanço pelo saguão da empresa, cabeças e olhares viram
na minha direção, cochichos têm início e alguns mais espertos abrem
caminho sorrateiramente. Aqui é o território deles, meus queridos filhos; o
lugar onde governam como se nada no mundo fosse capaz de atingi-los, e é
por esse motivo que Vladimir tem se escondido no escritório, convicto de que
vai conseguir resolver todos os seus problemas se fundindo com as paredes
do edifício.
Acontece que paciência não é uma virtude que eu admire ou cultive.
Não. Deus me livre ser paciente com aqueles quatro! Só funcionam na base
da ignorância; cópias perfeitas do meu falecido marido. Não bastava morrer e
me deixar sozinha para criar nossos filhos, ele ainda tinha que colocar seus
variados defeitos em cada um deles.
Retiro os óculos escuros e dou uma boa olhada nas recepcionistas, que
se entreolham, as feições admiradas. Bonitinhas, com as sobrancelhas loiras e
os típicos olhos claros de grande maioria das russas. O que estraga são as
alianças nos dedos.
Uma pena, meus filhos ainda não aprenderam mesmo a escolher
funcionárias.
Sem perder mais do meu precioso tempo, me dirijo aos elevadores e
seleciono o andar da presidência a tempo de ver, através das portas se
fechando, a apreensão no rosto das mulheres. As pobrezinhas devem estar se
perguntando se é sábio anunciar ou não a minha chegada. Bem, não que fosse
fazer qualquer diferença.
Minhas noras estão super grávidas! Finalmente minhas preces foram
ouvidas e começaram a acertar o alvo. Mal posso acreditar que serei avó de
dois novos bebezinhos ao mesmo tempo. Tudo estaria perfeito, se não fosse
meu filho mais velho fazendo aquilo que os russos fazem de melhor:
esconder os sentimentos e fingir cara de paisagem. Ultimamente, só o vejo
em coletivas. Voltar pra casa que é bom, nada.
Assim que chego ao meu destino no último andar, percebo que há uma
reunião em andamento. Vladimir não está em sua mesa como de costume e
vozes irrompem do anexo em uma conversa acalorada sobre as vítimas do
acidente que, por sua vez, tem recebido toda a atenção da imprensa nos
últimos dias. Sair de casa se tornou uma verdadeira missão especial, dado o
número de repórteres e curiosos sempre à espreita.
Antes de fazer a minha entrada, dedico alguns segundos analisando a
sala familiar que tanto me faz lembrar daqueles dois, mas tão logo as
lembranças chegam, as mando para o limbo outra vez. Não é mais sobre
mim, e sim sobre o filho de péssimo temperamento que ainda não enfiou
Serena dentro de um cartório.
Eu, que deveria estar pulando de felicidade, estou quase arrastando os
dois para um casamento de surpresa. Quais as chances de dizerem não no
altar? Não entendo por qual motivo meu filho amado e teimoso decidiu ser
paciente sobre isso, sendo que nunca soube como esperar qualquer coisa que
desejasse por mais de dez minutos antes de derrubar o mundo para conseguir.
Isso Vladimir puxou de mim, então entendo muito bem.
Meu reflexo se forma na porta de vidro à medida que me aproximo, o
terno bordô se destacando em um tom mais claro por causa da iluminação,
mas pouco consigo distinguir do meu penteado, muito preso no alto da
cabeça, ou dos saltos pretos.
Eles não percebem a minha chegada assim que entro. Vladimir
conversa pelo telefone e, a julgar pela irritação em sua voz, fica fácil saber de
quem se trata.
— Não, Corazón. Não saia do maldito prédio. Não, eu sei muito bem
que não mando em você… Droga! Não importa, Serena, os seguranças vão…
— Frustrado, encara a tela do celular, que indica o fim da ligação.
— Mãe? — Roman pergunta, fazendo com que os outros também me
olhem. Colocando-se de pé, ameaça me abraçar, mas dispenso o agrado,
desdenhando com a mão.
— Guarde esse abraço para quem acredita na sua lábia barata, Roman.
Preciso conversar com vocês e, já que que nunca consigo me reunir com os
quatro na mansão, agora que Andrei foi embora… — Lanço meu olhar mais
enfurecido para o caçula, que fez a sua escolha de morar com aquela cria de
serpente. — E já que Vladimir não voltou mais para casa, não me deixaram
opções.
Ocupo meu lugar à direta de Vladimir, onde Lara normalmente se senta
quando não há uma gravidez e um marido superprotetor mantendo-a em casa.
Era aqui que eu costumava acompanhar reuniões maçantes ao lado de
Nicolai, e estar de volta é ao mesmo tempo nostálgico e muito irritante.
Eu era boa nisso tudo — ser boa é apenas inerente em qualquer coisa
que me comprometa a fazer —, não significa que gostava.
— Já encontrou quem tentou matar a sua mulher e seu filho? —
pergunto, indo direto ao ponto mais importante com munição pesada.
Lide com isso agora, querido.
Vladimir, que reage muito bem quando pressionado, trinca a
mandíbula; um rosnado emerge em seu peito, por baixo do terno pomposo e a
gravata vermelha. A rebeldia e aura de poder e controle combinam com ele,
mesmo que pareça ter enfiado o cérebro na bunda desde aquela noite, quando
revelou tudo o que pensava a respeito de Nicolai e Serena.
Serena, que é quase um anjo por aturar — e amar! — esse dissimulado.
Em seu lugar, eu teria me enfiado no primeiro avião para a Austrália e
desaparecido por algumas semanas até que seus ossos fossem consumidos
pelo arrependimento… Qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência.
Pelo menos ela está fazendo um bom trabalho em não voltar para a
mansão e ainda exigir a companhia de Luna agora que o irmão se foi,
deixando-o remoer a própria estupidez sozinho.
— Maksim está se escondendo — explica com a calma velada,
enfiando os dedos em seus cabelos pretos tão semelhantes aos de Nicolai; é a
única característica em que ambos se parecem. — Mas já temos cada maldito
canto dessa cidade sendo revirado atrás dele, sem contar cos policiais e com
uma ajuda extra que Dimitrio enviou a pedido de Ivan. Ele não vai fugir por
muito tempo.
— Maksim não vai escapar — Andrei decreta distraidamente, naquele
tom de justiceiro que geralmente só utiliza para falar sobre seus casos
jurídicos. — Não conseguiremos uma acusação para o que aconteceu com
Annia, mas há muitas testemunhas que presenciaram seu ataque de fúria
contra Serena. É só questão de ser encontrado.
Com minha visão periférica, vejo Vladimir bufar, renegando a situação
hipotética versada pelo irmão. Posso imaginar que tipo de retaliação espera
conquistar, e nenhuma condiz com as expectativas lícitas de Andrei.
Dou uma boa conferida nos quatro. Todos exaustos, ombros
cabisbaixos e roupas amarrotadas. Ivan é o mais composto, com o cabelo
castanho bem penteado e a barba de cortes limpos, mas enxergo em seus
olhos o desejo de se enfiar dentro de casa vinte e quatro horas do dia para
realizar todos os desejos da mulher.
Andrei se isolou, não consigo entender o que seus brilhantes olhos
caramelados revelam, e os cachos negros pendem sobre as orelhas. Uma
cópia mais jovem, cética e honrosa do presidente. Já Roman…Suspiro,
tomada pela sensação de derrota. Ele continua em sua bagunça organizada de
fúria e rebeldia, destoando dos irmãos com os destacados olhos verdes. As
mangas dobradas na altura dos antebraços deixam à mostra suas tatuagens, e
a camisa se ajusta ao corpo, evidenciando a boa forma.
Meus filhos são belíssimos, um orgulho sem precedentes, é verdade.
Mas, algumas vezes, é tão difícil fazer com que entendam.
Eu só quero que sejam felizes.
Casem.
Tenham filhos.
E, depois, tenham mais filhos.
Não é uma equação tão difícil assim!
— Ótimo, porque ela não vai estar segura enquanto aquele criminoso
estiver à solta. — Dedilhando sobre a mesa, minhas unhas emitem estalos
compassados ao bater contra a madeira.
— Como se já não tivesse meia dúzia de seguranças vigiando o
apartamento — ruge Vladimir, parecendo uma fera enjaulada.
Parece que a ausência de Serena tem surtido mais efeito do que eu
imaginava. Depois que o médico insistiu que ela desistisse da ideia de
permanecer no hospital, Vladimir a instalou na suíte do hotel dourado — que
é agora propriedade da Corporação Volkiov — e cercou o lugar.
Entendo que estejam enfrentando muitas merdas, mas a grande maioria
poderia ter sido evitada se não fossem as tendências heroicas de Vladimir em
esconder o quanto conhecia dos antigos negócios do meu marido. E é por isso
que, agora, precisam me escutar, para que não continuem empilhando tolices
em seus mundinhos de suposições.
— Estou aqui para conversarmos a respeito do pai de vocês…
— Nós temos muito para conversar, mãe — Vladimir me interrompe,
esquivando-se como sempre acontece quando tocamos no assunto. — Mas
precisamos cuidar dessa situação primeiro. — Ele aponta para um papel à sua
frente. — A lista com os nomes das pessoas que morreram foi divulgada pela
imprensa antes que nós pudéssemos identificar todas as vítimas. Como sabe,
os pais de Serena estão inclusos, mas isso não é tudo…
— Ah, para o inferno com seus problemas! — Abro a minha bolsa e
retiro a fotografia de Nicolai e Serena, que guardei com muito cuidado, e a
bato contra a mesa. Eles se encolhem rapidinho. — Vamos esclarecer
algumas coisas, e vocês vão escutar com muita atenção o que tenho para
contar.
— Já entendemos essa parte — diz Roman, com uma caneta
rodopiando entre os dedos. Vladimir fulmina o retrato como se desejasse que
fosse consumido por chamas. — O velho se sentiu culpado e ajudou a
menina.
— Sim, sim. Seu pai sempre teve esse lado que sonhava em salvar o
mundo. Na primeira e única vez que vi essa fotografia, ele estava escrevendo
a mensagem atrás dela. Não tive tempo para pressioná-lo quanto a história
por trás da jovem ao seu lado, porque faleceu dias depois e esse registro
desapareceu. Imaginei que estivesse no almoxarifado, junto com todas as
coisas dele. Mas me enganei.
Vladimir balança a cabeça minimamente, compreendendo o cenário,
criando imagens em sua mente enquanto assimila os fatos.
— Sabia no que ele estava envolvido? — Vladimir não consegue
esconder o tom acusatório. — Com as casas de jogos e todas as dívidas com
aqueles criminosos?
Acerto um tapa em sua têmpora. Vladimir arregala os olhos, pego
desprevenido.
— Olha bem para a minha cara, meu filho. Acha que, se eu soubesse
que seu pai ainda mantinha aqueles negócios, teria compactado com a ideia?
Que teria deixado você lidar com tudo sozinho? Não seja idiota.
— O que quer dizer com "ainda"? — Andrei faz a pergunta
astutamente.
E lá vamos nós… Inspiro profundamente antes de começar as
explicações. Esclarecer toda essa confusão não estava na minha lista de
prioridades. Ao menos, não nessa vida. Se Nicolai estivesse vivo, eu
certamente o mataria agora.
É bom que esteja sofrendo aí do céu, seu cretino.
Levantando-me, dou a volta pela ponta esquerda da mesa e escolho
uma das garrafas dispostas em cima do aparador encostado na parede interna.
Sirvo meio copo e bebo, ciente dos olhares atentos às minhas costas. Não é
que precise de coragem nem nada assim, mas eles vão fazer o maior drama
e… bem, tiveram a quem puxar.
— Para entenderem o que vou contar, vocês precisam saber como a
empresa foi criada.
— Conhecemos a história, mãe — Roman reclama, entediado. — A
crise nos anos oitenta…
— Ora, fique quieto e me deixe falar! Seu irmão tem esses… traumas
para resolver ou vai perder a mulher dele! — Cutuco Vladimir um pouquinho
mais. O homem precisa reagir, e se não for na base do seu gigantesco ego, é
possível que o tempo passe e sua chance se perca.
Nem ferrando que vou viver longe dos meus netos — no plural, porque,
conhecendo aqueles dois, impossível pararem no primeiro.
— Não vou perder Serena — garante, grunhindo. — Deviam se
preocupar mais com suas próprias vidas. Com a Serena eu me viro.
Roman, o endiabrado, não perde tempo e coloca mais lenha na
fogueira, deixando arrastar uma risada debochada que não passa despercebida
por Vladimir.
— Tem alguma coisa a dizer sobre a minha mulher, Roman? —
pergunta, cruzando as mãos na frente do rosto.
Ao invés de interferir, volto a me servir de mais vodca. É bom que
queimem um pouco dessa testosterona reprimida. O excesso de
masculinidade tende a afetar o cérebro.
— Até quando vai continuar com esse ciúme ridículo? — Roman
devolve, cruzando os grandes braços na frente do peito largo. — Já me
desculpei, não já? Umas cinquenta vezes! Só quis ajudar, e você estava sendo
um filho da puta.
— Obrigada, querido — cantarolo, erguendo o pequeno copo. Ele
resmunga um pedido de desculpas, sem tirar os olhos do irmão.
— Beijou a minha mulher, Roman. Na minha frente. Vai precisar de
mais do que um pedido de desculpas para me fazer esquecer.
— Ela me beijou, é diferente. — Roman, exasperado, apela para os
irmãos. — Poderiam me ajudar a colocar algum juízo na cabeça desse
maldito?
Ivan nega solidariamente.
— Sinto muito, estou com o Vlad nessa. Tenho a minha esposa,
Roman. Se fizesse uma merda dessas com a Lara… — O semblante de Ivan
se torna sombrio, a voz sempre alegre e otimista se transforma em uma
partitura sanguinolenta. — Só de imaginar, já quero bater em você.
E eu só queria contar uma história, é pedir demais?
— Já chega! — decreto. Essa briga deve durar décadas para ser
esquecida. — É por isso que vivem presos nessa empresa, não conseguem
manter uma conversa. Roman, pare de beijar suas cunhadas e arrume seus
próprios filhos.
— Ninguém falou nada sobre filhos. Está desviando do assunto em
benefício próprio, dona Tatiana — Andrei comenta, distraído com uma folha
diante de si, vendo através das minhas intenções. Estraga prazeres.
— Cunhada, mãe. No singular — Ivan corrige, irritado.
Vladimir, parecendo prestes a explodir, quase derruba a cadeira ao se
colocar de pé.
— Isso é um desastre! — brada, firme e autoritário. — Podemos, por
favor, focar no que realmente importa? Temos uma reunião em dez minutos!
Mãe, seja o que tiver para contar, faça agora antes que eu me arrependa. Nada
do que disser pode mudar o fato de que o odeio, e vou continuar odiando.
Nicolai.
Está falando de Nicolai. Pergunto-me o que meu querido marido
acharia dessas palavras se pudesse escutar o filho nesse momento, tão
acometido por mágoas e remorsos. Isso o destruiria, tenho certeza; nada no
mundo era mais importante para ele do que proteger nossos meninos.
Aguardo até que voltem a respirar sem parecerem touros perdidos no
pasto. Assim que se sentam, em silêncio, prendo o fôlego.
— Muito bem, do começo. Como sabem, meu casamento com Nicolai
surgiu como consequência de um acordo — inicio pelas bordas, virando-me
para observá-los. — Naquela época, odiei a ideia. Ninguém quer ser vendida
como uma vaca leiteira, mas não era algo assim tão incomum. O problema é
que a família do seu pai era conhecida pelo envolvimento com muitas
organizações criminosas. Foi assim que ele herdou todas aquelas casas de
jogos, Vladimir.
— Ah, porra — Ivan xinga, incrédulo, arrastando-se na cadeira para
me encarar de frente. Espero que esse não seja o linguajar que costumam usar
durante as reuniões oficiais.
— A Corporação Volkiov era apenas uma camuflagem para lavar o
dinheiro — continuo, puxando os detalhes da memória. — Foi assim que ela
surgiu, pouco antes de eu ser apresentada ao pai de vocês.
Ivan se junta a mim em busca de uma bebida, mas acaba levando a
garrafa para a mesa, junto com copos para todos.
Não me agrada que descubram dessa forma, mas o plano era que nunca
precisassem saber. Agora que aconteceu, não adianta mais tentar manter
segredo. E, com meus netos a caminho, só espero que isso acabe de uma vez
e Vladimir possa entender que a prioridade deve ser, sempre, a criança que
ele ajudou a gerar.
Andrei me analisa meticulosamente antes de perguntar, ríspido:
— Nunca passou pela cabeça de vocês, quem sabe, assim, só talvez,
contar para os próprios filhos?
Volto para eles, que já têm copos em mãos e olhos curiosos em mim,
como crianças perdidas. Roman, por sua vez, parece tranquilo, com os braços
atrás da cabeça e um leve sorriso de escárnio. Tão lindo, cuida tanto das
cunhadas, seria um ótimo marido…
Não, Tatiana. Esse não é o ponto agora.
— Não foi assim que aconteceu. — Recupero-me das divagações. A
fotografia de Nicolai, ainda em cima da mesa, parece me enxergar. — Isso foi
antes de vocês. Seu pai… — Hesito, é uma grande revelação. — Não era o
único herdeiro da família. Ele tinha um irmão, Valentim. Depois que eu
fiquei grávida de você, Vladimir, seu pai tomou a decisão de se afastar dos
negócios da família, não queria que crescessem no meio daquela realidade.
Então ele e o irmão chegaram a um acordo: Valentim ficaria com as casas de
jogos e Nicolai se desvincularia de tudo junto com a corporação.
Silêncio absoluto.
Os quatro olham uns para os outros, naquela conversa sem palavras que
pertence a irmãos que realmente se amam. Mas eu sei decifrá-los, ler os
pensamentos desconexos, o leve girar de engrenagens em seus cérebros,
entendendo a profundidade de um passado desconhecido.
Reviver o nome e a memória de Valentim é estranho, faz tantos anos…
— O que deu errado? — Vladimir, que estivera pensativo durante o
meu relato, começa a juntar as peças.
Estão chocados; duvidosos, eu diria.
— Funcionou por muito tempo. Construímos nossa vida longe de tudo,
a empresa se tornou grande. Mas… Valentim acabou morrendo, há oito anos.
A perda do irmão deixou seu pai devastado.
Deixou nós dois devastados.
— Mãe, por acaso não está inventando tudo isso, não é? — Andrei,
cético, expõe o que os outros estão pensando.
— Essa é a verdade. Seu pai foi tragado de volta para aquele negócio
quando soube que Valentim tinha deixado tudo desgovernado. Ele tentou
acabar com as dívidas, mas… Houve complicações que nem eu entendia.
— O desabamento — Vladimir pontua, massageando a base superior
do nariz com os olhos apertados. — E, ao que tudo indica, o irmão de Serena,
junto com Maksim e seus capangas, também contribuíram para ferrar ainda
mais aquele esquema.
Vladimir, agora de pé, expira pesadamente, e posso imaginar que tipo
de imagem constrói em sua mente. Ele guarda tudo, esconde o que está
sentido e sei que não vai nos mostrar o que oculta debaixo da casca de
presidente.
— Vladimir — chamo, dirigindo-me especificamente ao meu
primogênito. — É comum que essa sua natureza molde os grandes líderes em
nosso país. Sorrisos fáceis e gentilezas não movem montanhas, é preciso que
se tornem as montanhas e se movam com as próprias pernas se quiserem que
a realidade seja transformada. Muitas vezes, no entanto, tanta altitude gerada
pela experiência da superioridade faz com que destruam coisas boas pelo
caminho, por não enxergarem mais o que de bom reside lá embaixo. —
Pouso minha mão sobre a dele. — Tive medo que acontecesse com você.
Meu filho encara nossas mãos unidas, o cenho franzido remete ao
pequeno bebê que um dia segurei no colo, pequeno e indefeso. Por ele,
sempre pelos meus filhos, eu pude continuar vivendo.
— Aconteceu — sussurra. — Veja o que fiz com ela.
Sorrio ante à franqueza, sabendo que esse é um momento raro.
— Não, meu querido — tranquilizo. — Eu estava enganada,
completamente enganada. Serena não está embaixo, está no alto. Então você
pode parar de olhar para os próprios pés com medo de nos machucar. Deixe o
peso da montanha para trás e roube a mulher que ama de volta.
— Eu preciso conquistá-la — reflete, acomodando-se pela centésima
vez na grande cadeira presidencial.
O quê?
— Não foi nada disso que falei. Escute, eu disse roubar mesmo, sabe?
Vá até aquele apartamento e case de qualquer maneira. Casar primeiro,
conquistar depois, entendeu?
— Aproveite e seja preso — Andrei ironiza. — Vai ser ótimo para a
reputação. Ouça, mãe, Serena contou que Camillo esteve atrás de um antigo
sócio de Nicolai. — Ele raciocina rápido, juntando mais evidências ao grande
mapa de desencontros e coincidências. — Poderia ser esse Valentim?
Antes que eu consiga evitar, uma imagem de Valentim vem à minha
mente. Os olhos claros, diferentes do irmão, o sorriso pontiagudo e a
personalidade sempre no limite, como se a margem do fim do mundo fosse
sua morada. Nicolai, não; seu lugar era onde eu estivesse. Os dois morreram
praticamente no mesmo ano e ainda hoje não consigo recordar de ambos sem
que alguma revolta inflame. Idiotas.
— Talvez — defino, situando-me no tempo presente. — A morte dele
ou mesmo seu vínculo com Nicolai não são de conhecimento público.
Então… sim, é possível.
— Ele não era… — diz Vladimir, mas o restante da pergunta não
vinga, encoberta por um esgar de desprezo.
Essas informações sobre o passado do pai não devem estar sendo bem
recebidas.
— Tudo o que estão expondo na mídia sobre ele são inverdades muito
severas. Aquele prédio… é impossível que tenha compactuado com as obras.
Dito isso, os quatro se calam, olhando ao mesmo tempo para a folha
que antes estava nas mãos de Andrei.
— Nós temos uma desconfiança — Andrei empurra o papel para mim.
O corpo de Vladimir fica tenso ao meu lado, cada músculo transformado em
pedra. Há vários nomes marcados na frente, incluindo dois com o mesmo
sobrenome de Serena. Mas não é para eles que Andrei aponta. — Na última
linha, veja.
— Aleksei Kokorin — leio, sem entender o que está acontecendo. —
Por que um Kokorin estava naquele edifício?
— É isso que estamos prestes a descobrir. Elena está a caminho. Vamos
colocar um ponto final em toda essa história, de uma vez por todas. —
Vladimir confere o celular, irritando-se com a mensagem recebida.
Aproveito a deixa para me levantar. Já disse tudo o que precisava e
precisarão de tempo para assimilar.
— Façam isso. E, Vladimir, ninguém ameaça a minha família. Se
Maksim e Efrem estão juntos, se ambos tiverem alguma mínima relação com
minha nora grávida caindo de uma ponte… — A ameaça fica no ar. Mas eu
sei que Vladimir não deixaria isso passar em branco, sobretudo ao constatar
brilho predatório em suas órbitas azuis.
Primeiro, porque ele nos protege. Como tem feito desde a morte de
Nicolai.
E segundo, porque gosta de reprimir seus inimigos.
Algumas características são impossíveis de mudar, e o gosto pelo poder
está intricado nas entranhas de Vladimir. É por isso que não vai existir outra
mulher capaz de amá-lo como Serena. Só alguém com tanto poder quanto ele
suportaria a intensidade dos seus sentimentos.
Vladimir não ama como os outros.
Algumas pessoas mudam por amor, mas há aquelas cujo amor
transforma a si mesmo, tornando-se algo maior, mais forte, um sentimento
que expõe o conjunto de qualidades enterradas dentro de cada par, escondidas
de todo o resto. É assim que acontece quando o amor nasce das adversidades
e sobrevive às negações do destino: continua sendo amor, mas é mais do que
isso também.
E, com isso em mente, eu finalmente coloco a cereja em cima do bolo.
Não posso perder a oportunidade.
— Diga como se sente.
— Eu errei — admite sombriamente, enquanto me preparo para partir.
— Ela pediu um tempo, e terá a droga do tempo.
— Ah, faça-me um favor! Quem precisa de tempo é relógio, Vladimir.
Serena é jovem, bonita e tem um corpo que faria qualquer homem ficar de
joelhos. Então corra atrás do prejuízo antes que outro tome o seu lugar!
As risadinhas dos irmãos se fazem ouvir enquanto Vladimir tranca
todas as suas feições. Não sei qual é mais ciumento, mas a notícia boa é
posso sempre usar isso a meu favor.
Digo, a favor de suas lindas futuras esposas.
— Ela está carregando meu filho dentro da barriga — rosna, cerrando a
mandíbula.
— Meu filho, não se iluda. Uma mulher grávida, sozinha e carente,
com todos aqueles hormônios… Não me surpreenderia se arrumasse uma
distração vez ou outra, de preferência uma distração com muitos músculos
nos lugares certos.
— Ela não seria louca… — Vladimir rosna, fechando as mãos sobre a
mesa. A consciência do que acaba de dizer não tarda e logo ele já está de pé,
disparando para fora do escritório. — Maldita coisinha abusada — xinga,
desaparecendo com o celular a caminho do ouvido.
— Mãe, você me assusta — diz Roman, sorrindo sombriamente,
recebendo a concordância de Andrei e Ivan.
— Vá se acostumando. — Sigo o meu caminho para a saída. — Sua
hora ainda vai chegar.
VLADIMIR
***
O desejo de matar alguém, ou mesmo torcer pela morte de uma pessoa, por
qualquer motivo que seja, faz parte do ser humano. Na verdade, eu diria que é
bem normal e o instinto de sobrevivência será sempre a justificativa mais
coerente para explicar esse fenômeno. Mas são poucos aqueles com coragem
suficiente para assumir.
Houve algumas pessoas ao longo da minha vida cuja morte almejei
com grande satisfação. O primeiro deles, um sujeito robusto com sotaque
francês que veio cobrar uma dívida de Nicolai por causa de um investimento
fracassado em Danilovsky, no distrito administrativo sul. Foram as palavras
dele, ameaçando minha família, que despertaram o pensamento de "eu
gostaria que ele morresse".
É claro que, entre desejar, imaginar ou sonhar com a morte de alguém
e, de fato, executar essa ideia, existe um imenso abismo.
Com o tempo, descobri que havia outros meios para alcançar meus
objetivos sem precisar sujar as minhas mãos dessa forma. Bastava conversar
com as pessoas certas, cobrando favores nos momentos certos, e
eventualmente a lei do retorno seria concretizada — não pelo cosmos ou por
uma energia sobrenatural, tampouco por uma sentença de fogo, mas por mim
mesmo. Eu seria o carma de todos eles, aterrorizando, acuando e subjugando
suas vidas à miséria que mereciam.
Abro a case preta, apoiada sobre as minhas pernas, e encaro a Smith e
Wesson de cano longo e brilhante; mais uma herança do meu pai. Parei de
carregá-la comigo mais ou menos na mesma época em que parei de me
preocupar com inimigos à espreita, quando eles é que passaram a se
preocupar comigo em suas sombras.
Olhando para a arma, percebo os motivos que me levaram a guardá-la:
é um instrumento de hierarquização, que classifica o ser humano entre
aqueles com mais ou menos controle sobre a vida, como se fôssemos todos
discípulos do anjo da morte ou peças em seu grotesco tabuleiro de xadrez. Eu
gostava do pensamento absurdo e distorcido de que, ao mantê-la sem jamais
utilizá-la, estava indo contra as expectativas, como se isso fizesse de mim
uma pessoa menos pior do que os homens que eu odiava.
Não queria ser como eles.
Hoje, no entanto, não me ocorre outro pensamento além de matar
Maksim, enterrar uma bala no meio da sua testa e assistir enquanto é
erradicado do planeta. A justificativa sobre instintos não se enquadra, é
puramente emocional. Ele machucou a pessoa que amo, quase causou a morte
da minha mulher e do nosso filho dentro dela; nada mais natural do que
receber o mesmo tratamento.
O celular no meu bolso começa a vibrar, tirando a minha atenção da
arma. No visor, o nome de Andrei pisca insistentemente.
— Sim? — atendo, retirando o revólver antes de fechar a pequena mala
preta e descartá-la no banco do passageiro.
— Os seguranças estão com ele dentro da casa. Estou a caminho com
a polícia, chegamos em dez minutos. Não estrague as coisas. — Meu irmão
não espera por uma resposta e encerra a ligação.
Gostaria de ter explicado que não sei mais como fazer isso. Serena
arrancou todo discernimento da minha cabeça. Por mais que as catástrofes se
assomem ao redor, meus impulsos foram todos reprogramados para se
preocuparem apenas com ela e nossos filhos.
E, nesse momento, o que precisam é de proteção.
Proteção e vingança.
Guardo a arma na parte de trás do meu cinto, escondendo o volume
com meu sobretudo, e desço do carro, cumprimentando os seguranças
parados em frente à pequena escada de quatro degraus que antecede a porta
da casa.
É uma residência familiar simples, com pintura gasta e janelas
fechadas. Aparentemente, Efrem Kokorin cobriu os custos do lugar pelos
próximos dois meses, o que já nos rende provas para uma acusação sólida a
nosso favor. Elena tem certeza de que o avô orquestrou aquele desabamento
para assassinar seu irmão, mas ela acreditava que Nicolai fazia parte do
esquema. Nós dois ainda não estamos convencidos de que meu pai seja
inocente, mas de uma coisa tenho certeza: Efrem vai pagar por seus crimes,
assim como Maksim.
Entrando na casa, deparo-me com um ambiente organizado, com
móveis de madeira e um pequeno porta-sapatos vazio ao lado da porta —
ninguém teve tempo para se preocupar com boas maneiras. O próximo
cômodo é uma sala aconchegante, com sofá para três pessoas e uma tapeçaria
com losangos vermelhos e verdes fixada à parede logo atrás.
Continuo em frente, passando por duas portas fechadas até à cozinha,
onde encontro o motivo da minha busca.
Maksim está sentado em uma cadeira, as mãos amarradas na frente do
corpo, enquanto outros dois dos meus seguranças o vigiam de perto.
Arrastaram mesa e cadeiras para um canto, e os copos usados sobre o balcão
me dão uma pista sobre há quanto tempo ele tem se escondido aqui.
— Retirem as cordas e nos deixem sozinhos — ordeno para meus
homens, que me olham, hesitando.
— Mas, senhor… — Um deles tenta argumentar, olhando para Maksim
com desconfiança e, eu diria, um pouco de medo também. O homem tem a
sua fama, afinal.
Puxo uma cadeira e a coloco diante dele, sentando-me em seguida.
— Agora — repito, encarando Maksim, que mantém a cabeça abaixada
e ombros tensos.
Os dois obedecem, libertando o maldito e desaparecendo em seguida,
mas sei que continuam por perto, talvez no cômodo ao lado, pois é para isso
que são pagos.
— Veio me levar para o inferno? — pergunta Maksim, erguendo o
rosto. Apesar das palavras, não encontro nenhum tom de afronta ou repulsa
na forma como faz o questionamento. Os olhos, vazios e afundados no
crânio, praticamente não parecem me enxergar.
Não sei o que esperava, mas definitivamente não era isso.
— Com medo do diabo, Maksim? — digo, mantendo as expressões
igualmente neutras.
Ele não diz mais nada. Desvia os olhos para o chão outra vez,
destoando do líder que encontrei meses atrás, no meio do distrito, cercado por
homens que matariam e morreriam em seu nome. Não restou ninguém,
certifiquei-me disso naquele dia, sabendo que sua queda seria inevitável.
O aquecimento no interior da casa está desligado, permitindo que o frio
se espalhe através dos corredores. A cada respiração, uma pequena nuvem se
forma na frente dos lábios ressecados e lilases de Maksim, e suas roupas
pouco fazem para protegê-lo do tempo tirânico. O casaco aberto revela uma
blusa branca e surrada, enfiada no cós da calça jeans; nos pés, botas simples
que não alcançam as panturrilhas.
Em sua têmpora, há uma protuberância inchada e avermelhada,
cortando a tatuagem de uma rosa presa em uma redoma de vidro. Não é um
ferimento recente e está visivelmente infeccionado.
— Deveria — sussurra, referindo-se à própria pergunta e olhando para
os punhos marcados pelas cordas. — Eu a teria matado.
Fecho as mãos em punho, controlando o desejo de extirpar sua
capacidade de abrir a boca para falar de Serena, de pensar na existência dela.
Esse homem é um dos principais culpados por todas as desgraças que
recaíram sobre as nossas vidas.
Não tenho muito tempo antes que meu irmão chegue. Serena me pediu
para pensar em nossos filhos antes de fazer alguma besteira. Mas e nossa
Luna? Esse infeliz a manteve como moeda de troca dentro daquela casa
imunda, colocando sua vida inocente em risco. Como? Como não querer
fazer justiça com minhas próprias mãos?
— Você é um homem esperto — reflito, soando calmo. Os muitos anos
à frente da presidência me ensinaram como o ódio é paciente, e as punições
são mais prazerosas quando saboreadas lentamente. — Respeito isso,
Maksim. Manteve sua identidade oculta por todos esses anos, soube escolher
aliados influentes, como Efrem Kokorin, além de ter ajudado a destruir o
império de Nicolai Volkiov. São feitos impressionantes.
— Onde está querendo chegar? — rosna, rompendo um pouco da apatia
e me enfrentando com olhos injetados e vermelhos.
Devo-lhe créditos por não tentar fugir e nem olhar na direção da saída,
mas não consigo afastar o som do choro de Serena naquele hospital após
presenciar a morte do irmão e ainda ser atacada por esse miserável.
— Estou em um impasse, talvez possa me ajudar. — Levo minha mão
até as costas e puxo a arma, envolvendo os dedos no cabo de madeira e
encaixando o indicador no gatilho gelado. — Em oito minutos a polícia estará
aqui, talvez menos, e estou pensando o que vou dizer a eles quando
chegarem. Meu irmão tem planos para você, sabe? Andrei tem certeza de que
o seu testemunho contra Efrem Kokorin vai nos ajudar a limpar o nome da
empresa. E, se nossas suspeitas estiverem corretas, é ele a verdadeira mente
por trás daquele desabamento. — Enquanto gesticulo, Maksim se endireita na
cadeira, tornando-se consciente da ameaça escondida nas entrelinhas. —
Sinceramente, não me importo. Nicolai não era um santo, e eu tampouco sou
um. Por outro lado, ouça bem, você tentou matar a minha mulher grávida
mesmo depois do nosso último encontro. Ora, fui legal com você, não fui?
Avisei para nunca mais fazer nada contra ela, não avisei? Entende agora o
meu impasse? O que faria se estivesse no meu lugar, Maksim?
Na cozinha apertada, as feições de Maksim endurecem, o maxilar se
torna rijo e seus olhos fecham em fendas estreitas. Dizer que isso não me
agrada seria mentira, a rendição tem a sua beleza e sei como apreciar.
— Se me matar, será preso — argumenta. Maksim franze a testa,
repuxando os dois piercings nas pontas das sobrancelhas.
Não enxergo sombras de medo no homem diante de mim, pouco
consigo interpretar das suas reações — uma perna balançando aqui, uma
respiração mais profunda ali, nada muito conclusivo. Está amedrontado?
Ansioso? Preciso que mostre o mesmo pavor que Serena sentiu, que tema
pela própria vida assim como ela, que alguém pague pela vida miserável que
minha pequena destrambelhada teve.
E esse alguém só pode ser ele. Maksim precisa pagar, ele merece…
— Já deve ter ouvido falar em legítima defesa — explico, deixando
explícito de que tenho um plano em mente. É assim que funciona a minha
mente, sempre dez passos à frente. — Tenho testemunhas, contatos, dinheiro.
Para qualquer efeito, basta dizer que você me atacou e eu precisei reagir.
Nada.
Sua falta de reações é irritante! Não me basta tanta passividade.
Estamos ficando sem tempo, então levanto e me aproximo, com a arma
pendendo, pesada em meu punho cerrado.
— Homens como nós não foram feitos para o amor — declara,
desdenhando com um arquear de ombros desleixado, mas mantém o rosto
erguido, evitando olhar para o objeto na minha mão. Aí está ele. Olá,
medo. — Vocês estão certos, ajudei a derrubar a rede de contatos que seu pai
gerenciava, afundei o meu nome, eliminei alguns caras bem influentes…
Escuto sua declaração a respeito de Nicolai, um compilado menos
detalhado de tudo o que minha mãe já havia revelado: ele tinha um sócio que
morreu — desapareceu, é a palavra que utiliza, e presumo que se refira ao
irmão que, até então, não sabíamos da existência — e restou a ele gerenciar
toda a rede de apostas clandestinas; menciona brevemente o desabamento e
como Nicolai utilizou dos poucos recursos que lhe restavam para esconder o
ocorrido; por fim, a última parte de sua confissão termina de esclarecer
minhas ressalvas com Efrem Kokorin.
— Ele me procurou quando as obras daquela merda de clube
começaram — conta, impassível. Não é o primeiro assassino com quem
preciso conversar, mas a forma corriqueira com que fala sobre tirar vidas,
como se fosse uma banalidade, é revoltante. Toda vez que esse sujeito
respira, sinto-me mais tentado a socar seu rosto até que todo o ódio que sinto
dentro de mim desde quando Serena caiu daquela ponte se torne uma
memória ruim. — O senhor Kokorin sabia tudo sobre a minha desavença com
a sua corporação e propôs uma parceria para desmoralizar o projeto,
incitando a população contra a empresa.
Controle-se, Lord Vlad.
— Então esse tempo todo foram vocês dois? — Enjoado, tento me
apegar a tudo o que Serena me fez sentir antes de sair do hotel, à sua voz
doce e, ao mesmo tempo, determinada, ao jeito como crispa as narinas
quando quer me bater, em todos os anos de vida que me roubou com sua
personalidade inconsequente.
— Já amou alguém tão desesperadamente que destruiria o mundo por
essa pessoa, presidente? — Acima da voz de Maksim, escuto o barulho de
sirenes e meu pulso acelera, aumentando a sensibilidade dos meus sentidos.
Respiração… Consigo escutar a respiração dele, o som que emite ao
engolir a saliva. O cheiro do pavor, agora evidente, exala pelos poros de
Maksim. Minha língua se afoga no sabor amargo dos meus conflitos sobre
ceder às emoções ordinárias da besta que me proclama ou livrar-me das
correntes pesadas que se arrastam aos meus pés.
— Amor… — sussurro, saboreando a palavra e tudo o que representa
para mim. O cheiro de Serena ainda está impregnado no meu corpo, a
sensação de provar sua boca e a necessidade de marcar cada centímetro da
pele macia com minhas mãos, dentes e língua é intensa e descontrolada. Ela
está acabando com a minha cabeça, maldição! — Não me faça rir, Maksim.
— O amor trouxe você até aqui, com uma arma. Use-a — incita. —
Você sabe porque está aqui, Vladimir. Use a maldita arma. Faça valer a sua
fama. — Lá fora, começo a ouvir as vozes dos policiais, carros estacionando
e ordens sendo professadas. Isso tudo afeta Maksim mais do que eu, que
passa a falar mais rápido e desesperado. — Camillo me pediu ajuda para tirar
a irmã do distrito, e eu faria qualquer coisa por ele; qualquer merda de coisa!
Ela era jovem demais, não sabia nada da vida e andava muito estranha, foi
fácil.
— Não fale dela! — grito, erguendo a arma na altura dos seus olhos. —
Se aproveitaram da fragilidade dela. Serena estava doente, sozinha,
deprimida.
Maksim fulmina o cano da arma.
— Se ela continuasse no distrito, acabaria como as outras. — Maksim
continua me testando. — Os caras morreriam para comer ela, mas Camillo
tinha um coração mole demais. Sua mulher teria sido uma ótima prostituta,
presidente…
Meu punho sobe e desce, esmagando o cabo do revólver contra o rosto
de Maksim duas vezes. O som do metal ao atingir sua cabeça é visceral, mas
o grunhido que ele solta junto com uma risada histérica é ainda melhor.
Gosto das sensações que seu desespero me causa.
Miro em sua cabeça novamente. A essa altura, já não tenho mais um
álibi, seria assassinato a sangue frio. Quem entrasse primeiro, encontraria
nada mais do os restos de sangue grudados na parede e o corpo já sem vida
de Maksim.
Minha mão treme.
Maksim não fecha os olhos. Encara-me profundamente, engasgando-se
com um sofrimento enclausurado. Está em agonia. É normal, depois de
alguns anos infligindo dor nas pessoas, paramos de entender como é a
sensação quando acontece com a gente.
— Faça, por favor, faça… — implora.
Olho em seus olhos, tentado a puxar o gatilho, deixando-me levar pela
onda de indiferença e impiedade que ratos medíocres como ele
merecem. Maksim merece. Sinto meus pés afundando no poço lamacento de
escuridão de onde eu não deveria ter saído. Reconheço os tijolos ao redor da
minha alma; é a minha casa, construída com inclemência e desumanidade.
Você tem dois filhos agora, lembro-me de Serena dizer.
Suor acumula entre as juntas dos meus dedos. O golpe que acertei em
Maksim abriu a ferida em seu rosto e o sangue começa a encharcar sua
camisa.
Lord Vlad, continua a voz de Serena, soando alegre e descontraída em
minha cabeça, eu amo você.
Aperto mais e mais a arma, tanto que meus ossos latejam com o esforço
para manter a empunhadura fechada. Meu reflexo está estampado em suas íris
frívolas, golpeando-me com a pior versão do homem cruel que consigo ser
em busca daquilo que precisava encontrar na ruína de Maksim.
Vingança.
O mal que deu origem a toda essa situação foi Camillo, deixando-se
levar pelo ódio, sedento por destruir e revidar. Ele não queria justiça em
nome dos pais, só precisava vencer sua própria batalha ilusória de destruição.
A mesma sede de vingança levou Maksim a se tornar esse homem vazio e
confuso.
Tantas vidas perdidas, tantas tristezas e arrependimentos enquanto o
universo brincava às nossas custas. Não posso permitir que acabe assim.
Não com mais vingança.
Recuso-me.
Por Serena. Por ela, eu prometi voltar. Prometi que a reconquistaria!
Andrei entra na cozinha, mas para ao ver a cena de Maksim rendido e
eu sobre ele como um juiz do céu e do inferno. Há mais pessoas, policiais,
mas não ouso desviar meus olhos de Maksim. Quero ver sua expressão e
gravar nas cavernas da minha mente que posso ser melhor do que isso.
Por todas as vezes em que não pude fazer a coisa certa, que não pude
ser bom, eu serei. Por ela, por Serena, eu serei bom.
— Não posso matar algo que já está morto — determino. Meu braço
desce lentamente enquanto minha visão se torna vertiginosa.
Dentro do peito, meu coração lidera uma percussão de tambores,
ribombando sonoramente, forte, alto, calando sons externos. Andrei para na
minha frente, os lábios formando frases nervosas, das quais identifico
instruções soltas: "saia, saia agora". De repente, sinto-me leve, livre de um
peso antigo. A arma desliza da minha mão, alguém a retirou. Quem? Andrei
está se afastando com o objeto.
Ele conversa com Maksim, meu irmãozinho caçula já não precisa mais
da minha proteção. Suas palavras provocam um verdadeiro terror no homem,
que começa a se debater para não ser algemado.
Meus irmãos são homens agora.
Dou as costas para a cena, ignorando as perguntas sobre meu bem-
estar, e saio da casa o mais rápido possível. Não é tão simples enfrentar a
decisão de não atirar em Maksim. Ainda desejo sua morte, por tudo o que fez,
pelas vidas que arruinou, por respirar o mesmo ar que a minha família e por
saber que daqui dez ou vinte ou trinta anos meus filhos serão adultos em um
mundo que pessoas como ele existem.
Agora eu entendo o que meu pai queria dizer sobre apertar um botão e
quebrá-lo em seguida. Algumas decisões não podem ser revertidas, e mostrar
para Serena que posso ser digno do seu amor é a minha decisão agora. Não
vou voltar atrás.
Encosto na lateral da casa e respiro. Ou tento; não é fácil. O oxigênio
não quer se manter nos meus pulmões.
Quatro viaturas estão estacionadas no meio da rua, mas ainda há poucos
curiosos e nenhuma câmera. O sol lá em cima não tem qualquer poder contra
o frio. Em plena primavera, era de se esperar que as temperaturas fossem
mais amenas, mas continua congelando. Eu estou congelando.
De repente, sou puxado para o lado e os braços de Andrei me apertam.
Demoro muito, muito tempo para retribuir seu gesto, chocado e surpreso.
Meu irmão é um pouco mais magro, mas temos a mesma altura, e a lateral
das nossas cabeças encosta uma na outra.
— Não tentou me impedir — afirmo, encontrando a minha voz assim
que nos desvencilhamos do abraço.
Andrei segura meu rosto severamente, obrigando-me a enfrentar seus
olhos cujas cores nunca consegui nomear: não são verdes ou azuis, tampouco
marrons; não são escuros também e nem claros demais. Parece uma mistura
entre o cinza e o dourado, manchados com um pouco de ferrugem, e me
fazem pensar nas folhas durante o outono.
— Você não é um monstro, Vladimir! Eu sei que pensa isso de si
mesmo, mas existem pessoas muito piores do que você à solta, e Maksim é
um deles. Eu sabia que não faria isso, você é meu irmão!
Andrei está errado, tem que estar. Eu sei o que sou, sei o que desejo…
— Eu queria muito ter feito…
— Sei que sim, todos nós o queríamos morto. — Andrei sorri para
mim, não com humor, mas carinhoso, fraterno. — Serena é sua mulher, faz
parte da nossa família, acha que não nos preocupamos? Mas a questão agora
é que fez a coisa certa, irmão. Vá, eu cuido das coisas aqui. Acabou,
entendeu? Acabou.
Acabou.
SERENA
***
***
***
E desligo o celular.
Pronto.
Fico por ali mais algum tempo, recompondo-me antes de voltar para
casa. Luna vai passar a noite com Tatiana na mansão e ficarei sozinha
novamente.
Por todo o caminho de volta, os seguranças recebem chamadas e eu sei
que é Vladimir se certificando que está tudo bem. Quase fico com pena, mas
quero dizer pessoalmente que estou disposta a tentar, que estou pronta para
me arriscar ao seu lado.
Espero estar pronta.
— Volte — sussurro no interior do carro em movimento, encarando as
belíssimas estrelas que prosperaram em meio ao caos.
Ao entrar no apartamento, no entanto, sou surpreendida por Vladimir
descabelado, andando de um lado para o outro. O casaco está jogado de
qualquer jeito no chão, perto de uma poltrona com pés de madeira, e os
primeiros botões da sua camisa estão abertos.
— Que merda é essa, Serena?! — grita, apontando o dedo para a tela do
celular que está preenchida com a minha fotografia.
— Vladimir? — pergunto, espantada com sua chegada.
Ele está possesso! Pior que isso, Vladimir está puto da vida. Preciso
saber se é puto do jeito bom ou puto do jeito ruim.
— Não faça essa carinha inocente! — continua gritando, sempre
dramático.
Arrisco alguns passos para dentro, não me importando com a porta
aberta. Escolho uma abordagem mais segura, não quero que a gente brigue
logo agora que desejo tanto dizer para ele o quanto o amo.
— Eu estava… eu…
— Quero mudar — diz por cima de mim, alto. Espero que tenha
isolamento acústico no prédio, se não daqui a pouco teremos um helicóptero
televisivo sobrevoando o edifício. — Quero ser um homem melhor, mas não
posso fazer isso em um dia ou um mês! Você estava certa antes, esse sou eu!
Egoísta, controlador, ciumento, e quando o assunto é você, fico ainda
pior, Corazón. Você me deixa completamente fora de mim com essa
insegurança, porra!
— Não coloque a culpa toda em cima de mim! — protesto, irritada com
o seu tom e por tirar conclusões sozinho. — Se estou insegura é porque você
fez isso comigo, porque passamos por muitas coisas que…
— Ah, claro! — debocha, maldoso. — Vai culpar o destino também
por sua falta de bom senso? — Assim que as palavras saem, ele fecha os
olhos e pragueja: — Merda! Merda, Serena!
Sem me tocar, vai para a saída e bate a porta, fazendo estremecer as
paredes e janelas.
Não.
Não era isso o que eu queria.
Não era para ser assim.
Eu me enganei, não estava sozinha antes. Isso sim é estar sozinha. Ele
se foi outra vez.
Arrastando os pés até a mesa de jantar, sinto minha garganta se
fechando, os pulmões faltando ar. É como naquele dia, está se repetindo e eu
não tive a chance de me confessar. Encaro minhas mãos escorregadias e
geladas, estão trêmulas.
— Inspire — sussurro, obedecendo ao comando.
O que eu faço? Ligo? Vou atrás dele?
Como uma luz afastando a névoa na minha mente, os olhos de Nicolai
encontram os meus. Nossa fotografia está sobre a mesa, desbotada como
sempre, exatamente como a deixei antes de sair, com nós dois abraçados na
primavera. Sou arrebatada por um maremoto de sentimentos conflitantes
quando viro o verso e releio uma, duas, três vezes aquela frase de despedida.
Estou cansada de me despedir das pessoas que amo.
— Eu perdoo você, Nicolai, é claro que perdoo você — digo,
desesperada, minha voz sozinha cortando o silêncio. — Então me ajude um
pouco, o que acha? Diga o que devo fazer, porque não sei mais. Por
favor, por favor…
Jogo minha bolsa em cima da mesa, sem perceber que estava aberta. O
conteúdo inteiro espalha sobre a madeira, algumas coisas caem no chão,
fazendo a maior bagunça. Não penso em recolher nada agora, quem se
importa? Mas algo chama a minha atenção.
O caderninho preto com a minha lista de coisas para fazer antes de
morrer está caído, por um acaso aberto na primeira página. Tinha me
esquecido dele. Abaixo para pegá-lo e percebo que na primeira linha, acima
do primeiro item — o já realizado sonho de perder a virgindade — há uma
frase que não estava lá antes, que não foi escrita por mim e que faz todo o
meu corpo tremer.
São quatro palavras na bonita caligrafia de Vladimir, e o amor presente
nelas é tão grande, tão intenso e poderoso que minhas pernas se movem
sozinhas em direção à saída. Eu posso fazer o caminho mais uma vez, uma
última vez.
Quando abro a porta, arfante, meu coração estourando dentro do peito,
esbarro em Vladimir parado na porta.
É ele!
Vladimir!
Aqui, na minha frente. Não foi embora.
Ferozmente, ele segura minha mão na frente do copo e enfia um anel
brilhante e de aspecto caro no meu dedo anelar.
Misericórdia que o homem ficou louco de vez. Já não era sem tempo!
— O que está fazendo? — questiono, horrorizada. — Isso é o que eu
estou pensando?
— Serena, eu tentei do jeito certo, comprei flores, presentes, fui
paciente! — Certo, ele ainda está puto. — Agora vai ser do meu jeito. Eu
pretendia ser romântico, dizer coisas bonitas e entregar essa merda em uma
caixinha. Mas que ilusão! Se as coisas com nós dois têm que ser sempre na
base da insanidade, então que seja!
— ¡Dios mío! Você enlouqueceu? — continuo, encarando minha mão,
embasbacada, apaixonada.
— Sim! Eu estou louco! — grunhe, entrando no apartamento. —
Completamente fora de mim, não está vendo? Eu cansei, Serena. Cansei!
Vou levar você agora, então pegue suas coisas! — Vladimir aponta para o
quarto, os olhos infames desafiando-me a não me opor de maneira nenhuma.
— Vlad…
— Não, não! Não quero escutar — nega, olhando à nossa volta como se
procurasse alguma coisa. — Quer saber? Deixe tudo para trás e eu mando
alguém buscar depois; compramos tudo de novo, não importa.
— Mas… — digo, erguendo o caderno para dizer que estar ao seu lado
é tudo o que mais desejo, o único sonho que eu tive de verdade. É claro que
eu quero ir com ele, é claro que estou feliz. Oh, céus, esse é o momento mais
feliz da minha vida!
— Sem "mas", Serena — Vladimir me corta, grosso, sem deixar
brechas para contestação. — Dane-se o destino, o universo, não ligo para essa
merda. Olhe para mim, eu amo você. Cometi um erro terrível, é verdade, e
não sei como corrigir isso agora. Mas vou conseguir, em algum momento
entre hoje e o resto das nossas vidas. Vou corrigir e compensar você. Todos
os dias, de todas as formas inimagináveis.
Dessa vez, não consigo segurar e, na verdade, nem quero. O alívio é tão
grande que enche meus olhos com lágrimas, que transbordam em uma
torrente sem fim. É um choro profundo, mas que não machuca. Alívio e amor
em estado líquido, e tudo só piora quando Vladimir corre e me toma em seus
braços carinhosamente.
Bipolar é pouco!
— Meu amor, não, não. Não chore, me desculpa por ter gritado… —
murmura, beijando meus olhos. — Ei, ei, ei, o que foi? Não diga que não me
quer, por favor, não faça isso comigo.
— Bateu a cabeça? Pensei que tinha desistido de mim — choro,
pulando em seu pescoço e soluçando como uma perfeita grávida
descontrolada.
— Corazón — chama, rindo, segurando meu rosto protetoramente. Eu
já disse que amo esse homem? Eu amo. — O sol vai parar de brilhar durante
o dia e as flores morrerão na primavera antes que eu desista de você.
É assim, comigo desaguando igual uma cachoeira e ele rindo do
sofrimento alheio, que mostro para ele o caderno, especificando o item
número zero com o indicador.
— Você prometeu realizar todos os itens da minha lista de desejos. —
Soluço. — E não posso realizar esse aqui sem você. Sim. Eu te amo, Lord
Vlad. Com ou sem a benção do destino, eu amo você.
— Amo você também, minha linda, maravilhosa, louca e
impulsiva, Corazón. Todos os seus sonhos são meus. — Admirado, Vladimir
acaba com dúvidas e transforma nossas confissões em ações e toques.
Fecho os olhos para receber sua boca, e, no interior das minhas
pálpebras, as palavras escritas por Vladimir dançam no meio da escuridão
onde reside nossa morada caótica e perfeita.
Casar com Vladimir Volkiov.
VLADIMIR
— Você não fez isso! — grita, olhando para baixo, sua voz sobressaindo ao
barulho do helicóptero em nossos abafadores, enquanto o cabelo agita ao
redor do rosto espantado. — ¡Dios mio! ¡Usted se volvió loco! — continua
com o espanhol energético que faz meu corpo reagir de imediato. Mesmo
sem entender uma palavra, tenho certeza de que está me chamando de maluco
ou coisa pior.
— Achei que isso já estava mais do que óbvio, Corazón — respondo
segundo minha dedução, admirando a paisagem que agora nos pertence.
Assistir esse cenário com Serena é diferente, especial de uma maneira única.
— Isso é… — Ela espalma as mãos no vidro, assombrada e, ao mesmo
tempo, maravilhada com a beleza paradisíaca das árvores. — Uma ilha!
Comprou uma ilha, puta merda!
— Nossa ilha — corrijo, só para aumentar seu espanto. Ela abre a boca,
negando enquanto o helicóptero desce na estação de pouso nos fundos da
imensa mansão suntuosa no topo do monte irregular.
Precisamos vir para a Grécia com o jato da empresa, e de lá o
helicóptero fez nosso embarque direto para a ilha. Não é muito grande em
termos territoriais, mas extensa o suficiente para receber novas instalações
em um futuro próximo, além das já existentes que receberão o apoio
necessário para crescerem.
Depois de pensar muito no que minha mãe disse sobre mostrar para
Serena que eu estava disposto a viver ao lado dela em um novo lar —
considerando a estupidez colossal ao despejá-la da mansão —, escolhi fazer
isso da maneira mais impactante possível.
Não sei fazer as coisas pela metade.
No extremo norte da ilha, as rochas se elevam em uma montanha
arborizada que saúda a grande construção em seu cume. Há um ancoradouro
particular invadindo a baía, mesmo que outro maior tenha sido construído na
pequena vila ao sul. O antigo proprietário utilizava os recursos apenas por
lazer, o que fez com que a economia local ficasse parada no tempo em
comparação com as centenas de ilhas espalhadas pelos demais arquipélagos.
— ¡La puta madre! — Serena continua após descermos, abaixando
para fugir do vento causado pelas hélices ainda ligadas sobre nós. — Por que
fez isso? — questiona, vindo para os meus braços. Dois seguranças fazem
nossa escolta rumo à escada de pedras naturais encrustadas em um declive
que desponta no primeiro pavimento da mansão.
Parece uma criança feliz, e não deixo de pensar em Roman e seu
apelido tosco. Um bebê, inocente em praticamente tudo sobre o mundo, tendo
que se desdobrar sozinha para sobreviver. Mas isso agora acabou, Serena vai
ter a vida que merece, não apenas em termos materiais.
— Porque eu posso — respondo, meio brincando, embora não seja uma
resposta muito distante da realidade.
Implicar com Serena e chocá-la com meu dinheiro é divertidíssimo. Ela
sempre fica impressionada e nunca me oferece um olhar acusatório ou de
julgamento, embora não economize em adjetivos espirituosos com sua
boquinha astuta.
— Quanta modéstia, senhor milionário — ironiza, apoiando-se em mim
enquanto descemos juntos.
— Vai dizer que não gostou?
Serena se posiciona na minha frente, com as costas contra meu peito, e
toma uma respiração carregada, observando a vastidão norte da ilha que se
perde de vista no ângulo em que estamos. Mas a mansão é um espetáculo à
parte, com muros brancos destacados contra o verde escuro da vegetação
selvagem.
É maior do que nossa residência na Rússia. O jardim se propaga na área
plana ao redor da piscina, que conta com uma pequena cascata artificial em
sua composição. Há também uma fonte rústica próxima ao portão de saída,
com um casal de mármore e bronze se admirando amorosamente enquanto a
água chove sobre seus corpos talhados.
É romântico, muito diferente do que estamos acostumados, mas a
mistura clássica da arquitetura com alguns melhoramentos mais tecnológicos
e modernos — como as janelas panorâmicas ou as paredes clínicas de vidro
entre alguns cômodos — transformam a atmosfera em algo que combina com
a lógica russa; prática, moderna e, ainda assim, carregada de história.
— É lindo — Serena concorda, virando o pescoço com um sorriso
tenro após circundarmos toda região externa. — Mas, querido, isso é uma
ilha. Uma ilha inteira! — sussurra, exasperada, o sorriso congelado no rosto.
Tão linda.
— Eu compraria o mundo para você, se estivesse a venda — digo,
sincero, escancarando o meu amor sem mais jogos, brincadeiras ou
desafios. Argh! Estou derrotado aos pés dessa mulher e isso nem me
incomoda. — Venha, vamos entrar.
Exploramos o interior do nosso ostensivo refúgio e Serena não disfarça
nem um pouco o quanto acha tudo magnífico como em um palácio. São três
andares, sem contar a torre onde fica o quarto principal, que deixo para
mostrar por último.
— Vai poder decorar como achar melhor. — Passamos pela antessala,
cruzando o portal sob a escadaria bifurcada que sobe majestosa para o andar
superior. — Esse será nosso paraíso particular. Aviões de pequeno porte e
helicópteros não podem sobrevoar a região sem autorização, e todos os
funcionários moram em uma pequena vila de nativos perto da praia. Não
mais do que cem pessoas por enquanto.
Serena não responde, está atônita. Caminha dentro da galeria fantasiosa
que fica bem no meio da residência, entre vasos imensos de plantas silvestres,
deixando as mãos resvalarem na mobília antiga. Entendo que esteja chocada,
e até um pouco assustada, e amo ser eu a trazer essas sensações novas à sua
vida. Estou acostumado ao luxo, o exagero faz parte da minha essência, e não
aceito oferecer menos do que isso para a minha família.
— Vamos nos casar aqui — aviso, um tanto presunçoso para que não
ouse dizer o contrário. Não discutimos o assunto desde quando exigi que se
casasse comigo, e nem pretendo.
Vamos nos casar. Fim!
Cruzo os braços, apoiando-me em uma coluna que transpassa todos os
andares até o teto. Serena percebe minha pose autoritária, e é claro que vem
toda altiva na minha direção com o olhar provocador e os quadris se lançando
para os lados, transmutada em seu modo diabinha insolente.
— Na ilha? — pergunta, laçando meu pescoço com os braços. É tarde,
o sol começa a adormecer, banhando as vidraças com uma coloração bonita
de laranja e amarelo.
— Sim. — Retribuo seu gesto, abraçando a cintura delgada que quase
desaparece entre os meus braços. Por pior que soe, a constatação da sua
fragilidade física faz cócegas no homem possessivo que habita em mim e que
deseja consumi-la vorazmente o tempo inteiro. Ao invés de fazer isso, desvio
para o romantismo, por enquanto, e digo: — Meu irmão se casou na mansão
a pedido da minha cunhada. Era onde se sentia protegida e amada, e não
queria uma exposição tão grande se locomovendo até uma igreja. Quero que
o nosso casamento seja livre de todas as lembranças ruins. Em um lugar só
nosso, onde construiremos nossas próprias memórias.
— Amo você, Lord Vlad — diz, escorando a cabeça sobre meu coração
disparado. — Não pensei que pudesse me surpreender mais, mas conseguiu
superar as minhas expectativas. Preciso parar de subestimar meu noivo-
quase-marido podre de rico.
Noivo.
Marido.
Porra, ela não tem mesmo noção de perigo! Ou melhor, até tem, mas
adora.
— Bem, essa foi nossa última extravagância por algum tempo, ou Ivan
é bem capaz de entrar em colapso nervoso. — Juntos, rimos da possibilidade
e começo a conduzir Serena para a torre. Haverá tempo para conhecermos a
ilha e o que mais ela quiser, mas agora preciso confiscar toda sua atenção em
nosso quarto até que o cansaço supere a luxúria. — Pense nisso como um
investimento, se isso fizer com que se sinta melhor. Essa ilha estava
esquecida por anos, sem injeção financeira externa ou qualquer outro atrativo
para movimentar a economia local. A mansão precisa de reformas, é claro,
mas a terra é fértil, o terreno é bom, e em breve poderemos expandir a rede de
hotéis que Roman comprou logo ali, na Itália. Quem sabe criando um resort?
Explorar o mercado turístico, sem prejudicar o meio ambiente da Ilha, vai ser
ótimo para a corporação.
— Não é à toa que você é o presidente. Tenho tanto orgulho de
você, Lord Vlad. — Espero a sensação de repúdio se alastrar ao ouvir sua voz
me chamando assim, presidente, mas não acontece. Sempre associei o
sucesso como presidente ao meu lado ruim, mas Serena também mudou isso.
— Desculpe ter dito que não era um homem tão bom quanto seu pai. Você é
incrível.
Pai.
Esse elogio me pega desprevenido. Utilizar o nome de Nicolai como
exemplo de bondade é quase tão absurdo quanto fazer o mesmo com o meu
nome, mas sua fala é tão sincera e amorosa que começo a desejar ser esse
sujeito que Serena acredita existir em mim. Ela continua sendo uma caixinha
de surpresas que nunca esgota, sobretudo no que diz respeito ao seu jeito
prático de lidar com a vida.
— Esqueça isso, não vamos falar sobre nada que tenha separado você
de mim — digo, preciso, não querendo entrar em qualquer assunto que não
envolva Serena e o nosso futuro juntos.
Subimos a escada espiralada até chegarmos às portas duplas, douradas
e ornadas com flores esculpidas em relevo sobre a madeira pesada. Ao
entrarmos, Serena novamente despeja seu extenso repertório de palavras
chulas em espanhol a respeito do majestoso espaço; meu preferido, sem
sombra de dúvidas.
É circular, com uma abóbada de vidro sobre o teto, que pode ser aberta
ou fechada por um mecanismo eletrônico. Há uma sacada que apresenta a
praia particular na lateral da encosta e o aroma salgado do oceano desliza
para dentro do quarto. O chão foi revestido com uma tapeçaria que lembra
muito a do hotel, confeccionada em um vermelho bem escuro, com requintes
de arabescos em forma de flores.
Ao menos aqui, a familiaridade russa me agrada mais, e, pelo olhar
lacrimoso de Serena para os detalhes, presumo que também tenha aprovado.
Ela retira as botas e corre para a cama, jogando-se de costas, com os
braços abertos.
— Isso parece um sonho! — Suspira. — Por favor, se for um sonho,
não quero acordar nunquinha! — avisa, apontando o dedo para mim, como se
eu tivesse o poder de decidir isso.
Jogada sobre lençóis perolados, com a luz opaca do anoitecer
suavizando seus contornos, Serena rola pelo imenso colchão até ficar
ajoelhada na ponta. Os cabelos despenteados junto com o rosto corado pela
alegria deixam-na com aspecto feroz, o que é uma merda, porque sei que sua
cabecinha engenhosa está imaginando as coisas que faremos nesse quarto em
breve.
Ela é tão transparente para essas coisas, ainda mais quando começa a
arfar só com a expectativa. Sua reação exótica faz meus pés ganharem vida e
tão logo estou diante dela, olhando-a por cima.
— Descanse, Corazón — oriento, mas o brilho em seus olhos mostra
que minha rouquidão não passou despercebida. É impossível não ficar atraído
quando começa com seu jeitinho sem vergonha. — Tome um banho e durma
um pouco, ainda tenho mais uma surpresa assim que a noite chegar e espero
que esteja com as energias recarregadas.
— Oh! Misterioso… — Ela segura o cós da minha calça, brincando
com a fivela do cinto. — Vai finalmente revelar que é um vampiro e sugar
todo o meu corpo?
Boa escolha de palavras.
— Não é uma ideia ruim. Você bem que gostaria, não é? — Agarro seu
rosto, no espaço entre o pescoço e a mandíbula, e Serena sorri jocosamente.
Eu sempre me perco, não tem salvação.
— Espero que isso seja uma promessa, Lord Vlad.
— É um aviso, Corazón. — Curvo-me, provando sua boca com um
roçar suave. — Ficaremos sozinhos nessa ilha por uma semana. Acha que eu
trouxe você só porque sou um homem romântico e atencioso?
— Você é um amor… — ironiza, impiedosa, trincando os dentes para
esconder que odeia a lentidão. Sua fome me enlouquece.
— E você é minha — afirmo, ciente do efeito que essas palavras
ocasionam em seu corpo. Sabemos que isso tem um limite insignificante
quando estamos escondidos dos olhos do mundo. — Toda minha, sem
ninguém para atrapalhar por uma semana inteira.
***
— Ela não gosta quando está calor — digo para minha mãe, que bufa
dramaticamente no outro lado da linha.
— Não tem nada melhor para fazer Vladimir? — reclama. Estamos
conversando há menos de dez minutos e ela já tentou desligar cinco vezes.
— Sei muito bem do que a minha neta precisa. Já disse para não se
preocupar. Graças a Deus sua mulher já está grávida, ou eu estaria ainda
mais frustrada com você. — Alguém diz alguma coisa no fundo, parece a voz
de Roman. Minha mãe troca poucas palavras com quem quer que seja antes
de voltar para o telefone. — Querido, por acaso você não gosta de sexo?
Existem médicos especializados se estiver com problemas de…
— Boa noite, mãe! — Adianto-me, antes que essa conversa piore.
Minha mãe é a mestra da lábia quando quer nos irritar.
— Não ligue! — ordena, desligando em seguida.
— Algum problema? — A voz de Serena soa no quarto escuro. As
cortinas estão fechadas, mas a noite nos assiste do alto, atrás do côncavo
transparente no teto. Iluminada pela lua e pelas estrelas, Serena se levanta,
bocejando e se espreguiçando em uma camisola branca que não esconde a
nudez por baixo do tecido translúcido.
— Minha mãe ligou — conto, descartando o celular sobre a mesinha ao
lado da poltrona em que me sentei para apreciar minha mulher dormindo
tranquilamente. — Está tudo bem, mas Luna estava um pouco inquieta e eu
disse para minha mãe que pode ser por causa dos aquecedores.
Levanto-me da minha posição e me acomodo perto de Serena, só então
consigo enxergar seu olhar tristonho, cabisbaixo, as mãos fechadas nos
lençóis amarrotados.
— Entendo… — murmura, abatida. Tento imaginar o que pode ter
causado essa reação, mas nada óbvio me ocorre e odeio a impotência quando
Serena está envolvida.
— Algum problema? — indago, aninhando Serena entre as minhas
pernas.
— Ela não gosta quando está calor… — Repete as minhas palavras. —
Camillo disse isso antes de… — Não termina de falar, não precisa. — Essa
foram as últimas palavras do meu irmão. Agora entendo, estava falando sobre
ela, nossa Luna.
Cretino, penso, constatando que continuo bem insensível para alguns
assuntos. Mas talvez não seja apropriado admitir isso assim, e muito menos
agora.
— Sente falta dele? — questiono, pesando minhas palavras com
sabedoria, sem deixar que as emoções aflorem e Serena acabe se chateando
por minha causa.
— Não tenho certeza. Acho que tinha esperanças de que melhorasse,
sabe? Que se recuperasse. — Encostando a cabeça entre meu pescoço e a
clavícula, Serena dobra as pernas, abraçando os joelhos. — Acha que sou tola
por pensar assim?
Tento me colocar em seu lugar. É o irmão dela, o pior tipo, mas ainda
assim… Eu morreria por meus irmãos. Mataria por eles, assim como fariam o
mesmo por mim. Mesmo odiando tudo o que Camillo causou, não ouso
atentar contra os sentimentos fraternos.
— Era seu irmão. — É tudo o que consigo dizer para confortá-la. Um
fato que justifica a tristeza da sua perda, sem mostrar como considero a
memória de Camillo tóxica para minha mulher, que já passou por tanta coisa
graças às escolhas dele. — Vem, está na hora do seu presente — informo,
beijando seu rosto antes de levantar e obrigá-la a fazer o mesmo.
— O que é? — sonda, curiosa, deixando o assunto anterior se esvair
junto com a melancolia.
— Surpresa! — De mãos dadas, levo Serena na direção da sacada,
abrindo as cortinas e a porta de vidro.
— O que tem aí? — insiste, ficando na ponta dos pés para bisbilhotar
sobre os meus ombros.
— Você faz muitas perguntas, Corazón.
— Talvez porque meu noivo tenha uma mania irritante de não
responder nada do que eu pergunto. — Serena passa na frente, mas a sigo de
perto para não perder nada das suas reações. Ela contempla primeiro as
estrelas, muito visíveis e brilhantes no céu e no espelho oceânico embaixo.
Só depois percebe o objeto cromado na borda do parapeito de pedras. — Isso
é… um telescópio?
Serena é esperta, não precisa de mais do que isso para tirar suas
próprias conclusões. E eu amo. Porra! Amo demais a sua perspicácia, a
forma como seu rosto escancara todas as emoções em questão de segundos,
indo da incredulidade à indignação, da vontade de me bater à de me beijar.
— Comprou uma estrela! — exclama, toda linda com o nariz vermelho
e um sorriso tenso.
O frio nem se compara ao que estamos acostumados em nosso país,
mas os ventos marítimos são gelados e Serena se arrepia, exposta demais em
seus trajes indecentes e muito aprazíveis.
Pensei por dias em uma maneira única de presentear Serena com algo
significativo. A ilha, mesmo sendo magnânima financeiramente falando, é
parte de um negócio. Eu penso assim, não há o que ser feito; meu cérebro
está condicionado a funcionar segundo a lógica empresarial, e investir em
uma ilha fora da Rússia, principalmente depois de todos os escândalos,
pareceu a escolha mais inteligente. Além do mais, não temos como morar
aqui o tempo todo. Nosso lar é em Moscou.
Mas eu queria algo especial. Uma coisa apenas nossa, tão louco quanto
nós e esse relacionamento cheio de insanidades maravilhosas.
A sacada forma uma meia-lua na frente do quarto, com típicas
espreguiçadeiras em junco acolchoadas e mesinhas com tampos de vidro e
pés de madeira.
— Foi bem mais fácil do que eu imaginava, para falar a verdade —
confirmo, pegando as três pastas bonitas ao lado do telescópio. Entrego as
duas primeiras a Serena. — Essa se chama Luna, uma anã-vermelha, e aqui,
uma gigante-azul, para o nosso filho.
Serena olha as duas pastas. Atordoada, busca palavras, abrindo a boca e
fechando sem parar, mas acaba gargalhando nervosamente. Na primeira, está
o pequeno globo vermelho que representa nossa filha, e Serena leva um longo
momento lendo o nome completo — que já leva o meu patronímico e o
sobrenome dos Volkiov.
— Não é oficial de verdade — explico, para quebrar o silêncio. — Os
nomes científicos continuam sendo os mesmos, então a compra é
emblemática. É possível as encontrar no céu com as indicações de latitude e
longitude do certificado.
— Isso é tão incrível, Lord Vlad. Oh, céus! Se eu já não amasse você,
passaria a amar agora mesmo! — Serena guarda a estrela de Luna e vai para a
próxima, mas hesita, como eu já havia previsto. Certeza de que vai surtar…
— Você escolheu o nome do nosso bebê sem me consultar? ¡Dios
mio! Vladimir, colocou o nome do nosso filho, que não foi escolhido com o
meu consentimento, em uma estrela?
— Leia, Serena!
— Não! E se for algo horrível como… Nikita? — Ela me devolve a
pasta. — Ou, ou... Galina? Meu Deus, Vladimir, me diga que o nome do
nosso filho não soa como um mugido, ou um cacarejo, e nem com o nome de
nenhum animal em espanhol! — Ela geme, fazendo uma careta, com a mão
em cima da barriga. — Desculpe, bebê, a mamãe promete que isso não vai
acontecer.
Serena é meu teste de paciência particular! Só pode.
— Vai mesmo destruir todas as minhas tentativas de ser romântico? —
digo, irritado. É uma doidinha linda, mas entender sua mente nunca funciona.
Eu mesmo retiro o conteúdo, mostrando primeiro a massa azul, vibrante
e forte no meio do cosmo galáctico. Depois, entrego-lhe o certificado,
mostrando o nome destacado, e Serena escancara a boca de surpresa.
— Nicolai? — lê, evocando lágrimas a seus olhos. Serena chorando é
uma visão para a qual nunca estou preparado. — Mas… Você não… — Por
espontânea vontade, Serena me abraça, o gesto demonstrando o que as
palavras não foram capazes.
— Eu amei meu pai, Serena — sussurro com a boca apoiada contra a
sua cabeça. — Durante a minha infância, ele era o meu herói. Com ele
aprendi sobre o amor, mas também sobre como os efeitos do ódio e da
opressão são mais imediatos e duradouros. Mas ele amou você, protegeu e
cuidou. Devo isso a vocês, e quero que seja um recomeço para nossa família.
— Obrigada, eu amei, amei demais. — Ela funga de olhos fechados.
Beijo sua testa, mas frações não são suficientes e busco por seus lábios,
roubando sua boca úmida em uma junção celestial de línguas e respirações
entrecortadas. Ao final, pergunta: — Vladimir? E se não for um menino? —
Agora é ela a implicar comigo.
— Será! — decido, simplesmente.
— Certo. E se não for? — pressiona, mordendo meu queixo.
— Então teremos que continuar tentando até que ele venha. Há muitas
estrelas no céu esperando para serem nomeadas. Mas não vamos desviar do
foco aqui, ainda não acabamos. — Aponto para o telescópio, já posicionado
na frente de uma cadeira larga. Sento-me primeiro, depois coloco Serena em
meu colo e a ajudo a olhar através da pequena lente que já está posicionada
na direção certa. — Essas são estrelas binárias, consegue ver?
Serena curva para frente, arrebitando os quadris para trás, empinando
em cima do meu colo. Não é uma provocação direta, mas o corpo perfeito tão
perto, tão encaixado, tão delicioso, quase me faz pular o restante das
declarações para voltar a preencher seu corpo.
— São duas? — pergunta, impressionada com o par de pontinhos
brilhantes que já gravei na minha mente depois de admirá-los por horas.
Seu fascínio é tamanho que nem percebe minhas mãos aliciando-lhe a
cintura curva, as coxas meio abertas. A resposta à sua pergunta só chega
depressa porque ensaiei inúmeras vezes para ter certeza de que tudo seria
perfeito.
Ledo engano. A mulher consegue me desestabilizar até quando não tem
intenção.
— Sim — rosno, incapaz de me controlar. Serena percebe que a pose
em que estamos não me favorece nem um pouco. Ou melhor, favorece mais
do que deveria, considerando meus planos preliminares. — Elas compõem
seu próprio sistema estelar, duas estrelas solitárias, ligadas por uma órbita
própria. — O corpo quase desnudo de Serena reage ao som da minha voz, e
ela abandona o telescópio para se dedicar inteiramente a mim. — A estrela
primária se chama Corazón, orbitada pela segunda. É assim que me sinto ao
seu redor: existindo porque você existe. — Conduzo minha boca para perto
do seu ouvido, enquanto minhas mãos fazem o caminho da perdição, rumo
aos seios entumecidos tanto pelo frio como pela expectativa da promessa que
o meu corpo faz ao dela. — Assim somos nós, criando nosso universo
particular.
— Você é lindo, louco e completamente apaixonante, Lord Vlad. —
Meu nome é pouco menos que um gemido. — Obrigada por ser tão incrível.
— Agora… — Empunho seu pescoço com brusquidão, forçando-a a se
contorcer em uma posição muito sugestiva e erótica. — Gostaria muito de
ganhar o meu presente também.
Inquieta, Serena faz de tudo para manter o mínimo de controle. Mas é
tarde para nós dois, principalmente quando a ouço dizer:
— Como ganhar o que já é seu?
Levanto-me e a levo comigo. Serena grita com o arrebatamento
repentino, mas segura meu pescoço enquanto a carrego de volta para a cama e
a derrubo sobre os lençóis, afastando seus tornozelos antes de mergulhar
minha boca na umidade pulsante do seu prazer.
— O que vai… — A voz dela se desfaz em um lamento jubiloso.
Serena não tarda a obedecer aos meus silenciosos comandos corporais,
arqueando as costas para que eu desfrute do seu sabor, elevando todos os
meus sentidos a um patamar desconhecido antes dela. O toque dos nossos
corpos exigentes dispara uma corrente de sentimentos bons direto para o meu
coração, enquanto meus ouvidos brindam ao som das suas súplicas afogadas
no mais absoluto prazer. Perco-me no gosto da pele nua como um homem à
deriva faria depois de muitos dias sem saciar a sede da água doce; e o
cheiro… céus! O perfume libidinoso do meu corpo se misturando com o dela,
viciante como uma droga.
— Te amo mucho, Lord Vlad — geme, enfiando os dedos cuidadosos
entre os meus cabelos, forçando os quadris gananciosos em busca de alívio
para a fome que a faz implorar usando meu nome.
Meu nome.
Ensandecido de desejo, não deixo que se perca ainda, apesar do
lamento penoso que emite quando minha boca sobe para a barriga,
resvalando sobre o peito arfante. Nosso desespero entra em sintonia e Serena
pragueja, puxando meu rosto agressivamente para o seu e beijando-me com
fervor.
Ela se arrasta embaixo de mim, facilitando o nosso encaixe magistral.
Desejei poucas coisas com tanto afinco como anseio despejar o nome dela
enquanto proporcionamos o ápice um ao outro.
— Também amo você, Corazón.
Unidos tanto na carne quanto na alma, sustentamos nossos olhares e
reverenciamos o sentimento que se converte em harmonia enquanto nos
movimentamos sempre de encontro ao outro. Aprofundo-me em Serena com
cada vez mais força conforme seu clamor aumenta, e suas unhas arranham
minhas costas a cada investida feroz.
Rápido.
Profundo.
Caótico.
Não importa se o nosso amor estava escrito nas estrelas, eu lutaria
contra o universo se preciso fosse, desde que a tivesse exatamente onde está
agora. Ela prometeu se tornar a minha morada e conseguiu mais do que isso.
Entre acasos e destinos, Serena apareceu na minha vida e mostrou que
não preciso viver na escuridão sozinho. Que ela não é luz para erradicar
minhas trevas, mas que vai sempre me enxergar no meio do breu, assim como
eu sempre a encontrarei nas profundezas mais silenciosas e vazias, porque
juntos somos o próprio caos, que, em uma sucessão agonizante de desastres,
torna-se único, indestrutível e eterno.
SERENA
ACHO QUE DESSA vez passei dos limites. Não sei, alguma coisa nos
enfurecidos olhos azuis do meu marido diz isso; o rosto vermelho, junto com
a mandíbula enrijecida, também. Ora, o homem todo está prestes a explodir, é
claro que passei dos limites!
Algumas vezes, Vladimir é tão romântico e perfeito que quase me
esqueço da fera escondida por baixo da capa de marido dramático e
superprotetor.
— O que você disse? — grunhe, rangendo os dentes. — Desde quando
essa merda está acontecendo?
Olhando de esguelha, vejo Bóris, nosso psicólogo, entretido com a
discussão ao invés de conduzir a terapia de casal como era de se esperar. O
velho nem disfarça o quanto está pouco se importando com o nosso
confronto.
Talvez não tenha sido uma boa ideia dizer que os colaboradores ricaços
e bonitões — nessas exatas palavras — do abrigo não economizam elogios ao
trabalho que eu e Lara estamos realizando. A ideia era o deixar orgulhoso,
mas mirei errado e acertei em cheio no ciúme.
— Desde sempre — respondo com calma, por mais que a vontade seja
mandá-lo à merda. Hipócrita! — Não sei se você sabe, mas merecemos todos
os elogios! O abrigo tem sido muito enaltecido pela imprensa e o objetivo é
que a ajuda continue chegando cada vez mais. A proximidade com nossos
colaboradores é muito benéfica para ambos os lados, pois assim eles podem
averiguar onde o dinheiro que injetam está sendo investido.
Mas Vladimir ainda não se convence. Hoje ele acordou virado do
avesso, cruzes! Tudo isso só porque dormiu no sofá?
— A Corporação Volkiov faz muitas doações todos os meses, Serena, e
nem por isso fico marcando reuniões privadas com as diretoras de cada
instituição — argumenta, retesando o corpo e jogando um braço para o alto
na tentativa de extravasar a frustração. — Já posso imaginar que tipo de
investimento eles estão interessados em fazer.
— ¡Dios mio! Você é tão homem das cavernas às vezes! — reclamo,
indignada com seu exagero, e apelo para minha carta na manga. — Sou uma
mulher grávida, Vladimir. Olha o tamanho dessa barriga, acha mesmo que
algum homem vai se interessar por mim assim?
Falar sobre a gravidez e, principalmente, sobre a incrível, protuberante
e pesada barriga onde nosso Nicolai segue sem manifestar nenhuma intenção
de sair sempre funciona para acalmar o monstro. Vladimir abre um sorriso
admirado e bastante prepotente no mesmo instante.
— Que argumento ridículo — diz, tocando o topo redondo por cima do
vestido. — Você está linda e gostosa, mais do que nunca.
Meus olhos quase param na nuca. Só espero que esse tesão estranho
pela minha barriga grávida acabe assim que nosso bebê nascer, porque não
estou nem um pouco animada para passar por isso outra vez tão cedo.
Talvez nunca!
— Ridículo ou não, querido, é um fato consolidado que você, sendo um
presidente assediado constantemente pelas cocoricós de plantão, está
exagerando. — Vladimir começa a falar junto comigo, tentando anular meu
contra-ataque, então solicito a ajuda do psicólogo que está sendo pago para se
divertir às nossas custas. — Está vendo? Ele não consegue admitir quando
está errado!
Bóris, o psicólogo da família, um senhor que deve ter nascido mais ou
menos há uns duzentos anos, com seus cabelos brancos concentrados em
cima das orelhas e nenhum no alto da cabeça lisa, empurra os óculos para
cima, fazendo com que seus olhos se agigantem atrás das lentes garrafais.
O consultório é exatamente como eu me lembrava da época em que
Nicolai pagou meu tratamento. Espaçoso, porém escuro demais e nem um
pouco convencional; inclusive, a mobília mórbida e o cheiro forte de tabaco
poderiam tranquilamente ser características de que um psicopata do século
passado faz uso desse aposento.
— Eu admitiria que estou errado se estivesse errado! — brada meu
presidente, que está mais do que perfeito em um finíssimo terno escuro e
misterioso. Não julgo nosso sobrinho por ter confundido o tio com um agente
secreto, ele se parece mesmo com um quando se veste assim.
Um agente secreto misterioso e sexy! Céus, eu podia fantasiar com isso
à noite.
De dia também!
Agora, inclusive.
— Vocês discutem assim com que frequência? — pergunta Bóris de
modo enfadonho, acabando com a minha linha de raciocínio. — Como é a
comunicação de vocês?
— Ótima! — Vladimir se adianta, irritado com essa situação.
— A gente transa — intervenho, sendo mais específica.
— Como eu disse, ótima! — diz meu marido, sorrindo perversamente.
Está bem, não discordo.
Bóris resmunga alguma coisa que soa como "idiotas", abaixa a cabeça e
anota uma palavra em seu bloco de notas — tenho a impressão de que
também escreveu "idiotas" no papel. Os óculos voltam a escorregar para a
ponta do nariz e dessa vez ele não arruma, apenas nos olha sobre as hastes
douradas.
— Pretendem se separar? — pergunta, direto, fazendo-me gargalhar.
Será que ficou doido?
Vladimir grunhe, pronto para ter uma síncope.
— Que absurdo! — responde irritado, como se Bóris tivesse sugerido
que ele desse um tiro no próprio pé. Meu marido é lindo demais, ¡puta
mierda! — Jamais, nunca, em hipótese alguma. Serena, vamos embora, esse
homem não tem ideia do que diz.
Lindo e louco.
— Vlad, meu amor, ele só fez uma pergunta, não mandou que a gente
se separasse. — Tento acalmar meu homem, mas a vontade de gargalhar é
maior e ele fica mais emburrado.
— O que os dois tontos precisam entender é que a terapia de casal serve
para fortalecer a relação! — Bóris explica, bufando. — Para encontrar um
significado, entendem?
— Como eu disse, isso é uma perda de tempo — Vladimir resmunga,
olhando impacientemente o relógio em seu pulso. — O significado é que eu
amo essa mulher, todas as células do meu corpo amam essa mulher, mesmo
que ela teste a minha paciência em noventa e nove por cento do tempo! Acha
mesmo que, se eu não a amasse, estaria aqui?
— E por que estão aqui, afinal de contas? — Bóris se queixa,
apontando para a saída pela quinta vez desde que chegamos.
A consulta foi ideia minha, porque talvez isso nos ajudasse a apaziguar
toda essa onda de poderes se chocando o tempo todo. Não quero que nenhum
de nós dois mude, mas que Vladimir entenda que não precisa mais se esforçar
tanto para compensar seus erros comigo, que isso não continue sendo um
fardo para o nosso amor que é tão lindo.
Mas Vladimir, impaciente, começa a tagarelar com sua pose autoritária
que amo.
— Bem, se o senhor tiver alguma ideia de como fazer com que a minha
mulher pare de ser tão inconsequente e imprudente, para que eu não precise
me preocupar o tempo inteiro, isso seria interessante.
— Não sou imprudente! — protesto, cruzando os braços em cima da
barriga.
Meu marido gargalha, debochando.
— Querida, você saiu sem os seguranças três vezes só essa semana,
brigou com o pai de uma criança que apareceu no abrigo pedindo ajuda e
ficou presa no meio da estrada porque esqueceu de abastecer. Isso sem
mencionar a sua mania de nunca carregar o seu celular que me deixa
ensandecido.
Bóris solta um pigarro solidário. Traidor!
— Detesto os seguranças, você sabe disso. Chamam muita atenção e
não preciso deles quando estou no abrigo — explico, mas sei que não
convenceria nem uma criança. Tudo bem, ele tem um ponto nessa. — E
você? O que me diz da última vez em que discutimos e você voltou para a
empresa como se nada tivesse acontecido?
Esfregando os olhos com força, Vladimir pragueja e respira fundo,
invocando um pouco de discernimento antes de continuar, dessa vez mais
controlado.
— Você me trancou para fora do quarto só porque estava em uma
reunião com Elena Kokorina, e nós dois sabemos que ela me odeia. O que
esperava que eu fizesse, Serena? É por você e Luna que eu volto para casa
mais cedo. Se não posso estar com as minhas meninas, então vou trabalhar.
Ah, tão lindo esse homem, meu Deus. Como pode dizer algo
maravilhoso assim e, ao mesmo tempo, que me estressa tanto?
— Eu estou grávida — comunico, caso não esteja evidente o bastante.
— Você deveria se ajoelhar e implorar.
— Ficar ajoelhado era o meu plano, Corazón, mas a única implorando
seria você. — Seu olhar vibra, perigoso e cheio de malícia.
Misericórdia!
Quero.
Digo, quanta arrogância!
Quero mesmo.
Prepotente!
— Está vendo, doutor? Tudo para ele gira em torno de sexo! — acuso,
fingindo uma indignação que não existe. Até eu me surpreendo com a minha
cara de pau às vezes.
— E para você, não? — Vladimir questiona.
Outro ponto para ele, droga!
— Já chega! — Bóris bate as mãos em cima da mesa; os óculos caem
do seu rosto e ficam pendurados no pescoço por duas cordinhas marrons. —
Eu tenho mais o que fazer, vocês não precisam de terapia, e sim de um
quarto. Andem, sumam das minhas vistas. E diga para aquela velha bruxa que
eu estou aposentado! Aposentado!
Suponho que a bruxa velha em questão seja a minha sogra, que de
velha não tem nada.
— Ótimo, finalmente concordamos em alguma coisa! — Vladimir sorri
para o homem de maneira cúmplice, e Bóris esconde um risinho antes de
fechar a cara e nos despejar outra vez.
Ainda tento insistir, minha ideia era ótima, mas parece que nossa
terapia íntima funciona melhor. É claro que nós dois ainda precisaremos nos
encontrar outras vezes com o psicólogo — não necessariamente Bóris, já que
ele nos odeia —, pois faz parte do meu tratamento que a família esteja
presente.
Depois da morte de Camillo e Annia, tive algumas crises mais suaves.
É sempre assim, basta abrir uma fresta na porta que trancá-la de novo se torna
um martírio. Mas estou conseguindo, aos poucos; já faz bastante tempo que
não acontece e Vladimir tem me ajudado muito com meus medos.
Já no carro, de volta para casa, Vladimir tenta esconder a expressão de
quem ganhou uma guerra e está sentado no trono. A terapia pode ter sido uma
péssima ideia, mas ao menos agora temos o aval de um doutor para
continuarmos solucionando nossos embates da maneira que a gente mais
gosta.
Na cama.
***
***
VLADIMIR
FIM
Meu Deus, há tantas pessoas a quem desejo agradecer neste momento
que tenho medo de acabar esquecendo algum nome importante. Caso eu o
faça, peço que me perdoem, mas farei o meu melhor para expressar o quanto
sou grata por todo o apoio e carinho recebidos durante o processo de escrita
deste livro.
Agradeço primeiramente à Deus, porque ter me dado a força necessária
para passar por todas as provações, dificuldades, desencontros e desventuras
durante os meses em que estive escrevendo Entre Acasos e Destinos. Houve
momentos em que a vontade de desistir foi grande, confesso, mas o amor pela
Família Volkiov e por todos que partilham desse sentimento junto comigo foi
mais forte, e isso me deixa imensamente feliz.
Vladimir foi meu grande desafio, e só quem esteve pertinho sabe!
Eu quero agradecer principalmente às minhas leitoras da plataforma
Wattpad, que estiveram ao meu lado por meses, aguardando pacientemente
por novos capítulos, enviando mensagens nos momentos difíceis. Vocês
fizeram esse livro acontecer, obrigada! Também deixo um agradecimento
mais do que especial para todas as meninas do grupo do WhatsApp que me
acolheram não apenas como autora, mas como amiga também. Amo vocês!
Agradeço sobretudo a meu marido e filhos, que me apoiam na ausência,
nas noites em claro e no constante mau humor pela falta de sono e excesso de
cafeína no organismo. São minha força maior, minha constante inspiração e
cada passo meu é pensando em vocês.
E por último, mas não menos importante, um super obrigada a todas as
minhas amigas autoras, que sempre estiveram presentes, conversando e me
apoiando, dizendo que eu conseguiria, em especial minha “best” Sara Fidelis,
e meu bonde: Cassia Carducci, Clyra Alves e Natalia Saj.
A palavra que fica é: gratidão! Hoje e sempre.
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