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Entre Acasos e Destinos


(Série Entre Amores: Família Volkiov – Livro 02)

Todos os direitos reservados.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, lugares e acontecimentos descritos são


produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência. Este livro ou qualquer parte dele
não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização
expressa, por escrito, da autora, exceto pelo uso de citações breves em
resenhas ou avaliações críticas.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei n° 9.610/98 e


punido pelo artigo 184 do código penal.

1° Edição | Criado no Brasil.


Para minhas leitoras, que fizeram este livro acontecer.
"O que acontece com o amor quando o destino resolve jogar contra a
sorte?"

VLADIMIR VOLKIOV se considera um monstro: exausto e


assombrado por verdades envolvendo a morte de seu pai, permitiu que o
trabalho consumisse sua vida aos poucos, e agora tudo o que importa é
garantir que nunca descubram sobre seu pior segredo.
No entanto, um empreendimento em um distrito desfavorecido de
Moscou ameaça tudo o que ele sacrificou para reconstruir, e sua única
esperança é descobrir o paradeiro da proprietária misteriosa que impede seus
planos, e junto com ela, sentimentos e revelações que podem reviver tudo
aquilo que se empenhou tanto para enterrar.
SERENA FAJARDO ainda se lembra do dia em que quase desistiu de
tudo. Ir embora do distrito e se apegar à lembrança da pessoa que a puxou
para longe da escuridão foram escolhas que salvaram a sua vida fadada ao
desastre. Porém, quando seu irmão reaparece deixando uma dívida com um
grupo de criminosos no distrito, não lhe restam alternativas a não ser aceitar a
ajuda de um homem impiedoso e que acaba por envolvê-la em uma trama na
qual o destino e o acaso se perdem no meio de muito caos.
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
VLADIMIR

DEZ PARES DE olhos estudam meus movimentos na sala de reuniões.


Anseiam por um deslize, uma frase equivocada ou ambígua. Quando se está
no topo da cadeia alimentar, é comum que apareçam algumas presas
esfomeadas tentando se alimentar daquilo que as mantêm subjugadas na base
da pirâmide.
Eles querem a liderança.
O líder.
Encaro seus rostos marcados por profundas linhas de expressão, os
olhos cansados e desbotados pela idade, os cabelos brancos sobrevivendo em
cabeças calvas. Homens experientes, inteligentes, gigantes que já
percorreram caminhos árduos nesse extenso universo financeiro. Não deve
ser fácil passar por cima do ego e aceitar que um empresário, vários anos
mais jovem, determine o eixo econômico de toda uma capital.
A mesa ocupa a maior parte do espaço, extensa o suficiente para
acomodar mais de trinta investidores, sócios e clientes. Ela me preenche com
lembranças de negociações vencidas, debates exaustivos que jamais
culminaram em resultados desfavoráveis aos interesses da empresa.
Afinal de contas, eu não falho.
Nunca.
Ao menos, não até hoje, quando, pela primeira vez desde que tomei a
decisão de assumir a presidência, reconheço o medo do fracasso como uma
possibilidade tangível. Um fracasso que tem nome e sobrenome.
Serena. Fajardo.
Com as mãos acomodadas atrás das costas, caminho em direção às
paredes de vidro. Agora que o inverno se foi, as ruas, que antes estavam
sempre tingidas com camadas sinuosas de branco, parecem reluzir com a
vivacidade da primavera e das poças d’água acumuladas nos cantos das ruas.
Porém, nem isso é suficiente para alterar o humor dos transeuntes rígidos que
perambulam lá embaixo, reforçando o estereótipo exagerado sobre a nossa
personalidade rígida.
Ao longe, a arquitetura pontiaguda da Torre do Salvador, localizada no
lado oriental do Kremlin, cintila em tons de amarelo por causa do brilho
diurno. Visto desta distância, quase não é possível perceber o artefato circular
que demarca o passar das horas com ponteiros dourados e números romanos,
no entanto, depois de tanto tempo admirando essa mesma paisagem todos os
dias, sou capaz de enxergar os detalhes com uma precisão doentia.
Escuto a porta se abrir atrás de nós, precedendo o barulho característico
de saltos femininos. Um burburinho tem início, algum dos homens mais
idosos tosse. Lara, minha querida cunhada, tem o costume de desconcentrar
nossos clientes, independente de quão idosos sejam; um detalhe que não
agrada muito o meu irmão.
— Bom dia, senhores — cumprimenta com o tom profissional, sem dar
atenção para ninguém em específico. Atravessa a sala até parar ao meu lado,
fingindo contemplar o cenário tal como eu. — Senhor presidente, aqui estão
os relatórios com todas as despesas dos últimos seis meses. — Estende-me
três envelopes. Em seguida, olha para trás e sussurra: — Estamos um pouco
ferrados.
— Estou ciente — respondo em tom comedido. Respiro fundo e volto
para a mesa.
Controlar os ânimos de empreendedores veteranos, com muitos anos de
carreira a mais do que eu, é a pior parte do processo, especialmente quando o
motivo do desagrado envolve dinheiro. O dinheiro deles.
Lara ocupa seu lugar à minha direita, disponível para uma potencial
intervenção. Como secretária presidencial, faz parte do seu cargo estar
presente, mas a verdade é que estaríamos perdidos se não fosse por ela e suas
sucessivas reuniões para acalmar esse grupo impaciente.
Quando Lara começou a trabalhar conosco, não tive dúvidas de que
desempenharia o cargo com exímio talento, mas não calculei o quanto eu e
meus irmãos ficaríamos dependentes das suas habilidades. Ivan conseguiu se
transformar de irmão impulsivo para o mais sortudo dos quatro. Depois de
tantas reviravoltas em sua vida, ele finalmente conquistou a felicidade
merecida ao lado da futura esposa e do filho.
É uma mulher forte que suportou mais do que qualquer ser humano
deveria. Mais do que eu e meus segredos soterrados, inclusive.
— Obrigado pela presença de todos — começo, sem permitir que nada
na minha voz entregue qualquer resquício de insegurança. — Aqui estão
nossas margens de investimento, considerando tempo e valores aplicados na
construção do clube. Como sabem, as obras tiveram início há exatos oito
meses, tempo suficiente para um avanço considerável na edificação das
instalações.
— Com o seu perdão, senhor presidente — interrompe o velho e
rabugento senhor Lúkin, um visionário que entende tudo sobre a indústria
manufatureira. — Mas, em oito meses, apenas cinquenta por cento da obra
foi concluída. Sua secretária já disponibilizou esses dados por correio
eletrônico há duas semanas, e nada mudou. A construção do clube continua
vagarosa.
— Estamos em desvantagem aqui — reclama o velho Efrem Kokorin,
nosso principal aliado no setor da construção civil e sócio mais antigo da
Corporação. Retira um lenço do paletó e passa no alto da cabeça calva. — Se
essa situação não for contornada, os lucros dentro do tempo estimado serão
ínfimos. Como investidores, isso afeta diretamente o nosso dinheiro. Lucros,
você sabe como funciona!
Eu sei, penso. Tenho bebido dessa fonte envenenada por tempo demais
para negar o meu vício. Somos homens de negócios, o dinheiro é a nossa
força motriz. No entanto, por mais que as coisas não estejam indo bem, não
posso permitir que usem isso para engrandecer a si mesmos. Há uma
hierarquia, e eu estou no ponto mais alto dela.
— Muito bem observado. — Arrasto a cadeira para trás. Essa reunião
vai durar menos do que o planejado. Coloco as mãos espalmadas sobre a
mesa. — Acho pertinente acrescentarmos um detalhe indispensável às nossas
reflexões. A Corporação Volkiov não precisa do dinheiro de vocês.
— Vladimir… — Lara me repreende, um tanto chocada.
Não vou recuar, porque esse é o meu trabalho. Mentir e manipular são
estratégias necessárias quando há um objetivo a ser alcançado. Por diversas
vezes, fui chamado de monstro, o demônio impiedoso que lidera as empresas
da Corporação. Bem, não estão errados. Eu sou. Gosto de ser, sou muito bom
em não ser bom.
Nicolai ficaria orgulhoso.
— Não alcançamos o primeiro lugar em crescimento de capital sendo
condolentes — prossigo, cansado de dar voltas que não me levarão a lugar
nenhum. — Estamos no cume da pirâmide empresarial, um indício evidente
de que poderíamos construir o clube sem colaboração externa. Os senhores
estão resguardados por um contrato de seguro e restituição no caso de
ultrapassarmos o limite mínimo dos valores combinados. Então, sejamos
sinceros: vocês precisam de nós, por isso continuam aqui.
Acontece: eles abaixam os olhos, intimidados, constrangidos.
Não precisam saber que, sem a injeção financeira que ofereceram ao
longo do projeto, os resultados teriam sido catastróficos; também não
comento o fato de que, caso optem por encerrar a sociedade, isso causaria um
rombo incalculável em nossos cofres.
— Queremos apenas entender — pede Lúkin com a voz abrandada. —
Afinal, o que está impedindo a conclusão das obras?
— Serei franco. — Começo a caminhar ao redor da mesa. Lara esconde
um sorrisinho dissimulado; ganhamos mais algumas semanas até que percam
a paciência outra vez. — Há dez meses, quando meu irmão, Ivan Volkiov,
apresentou a proposta, calculamos todas as variáveis. Cada possibilidade de
erro. Tudo.
— Um clube desse porte precisa de planejamento e estratégias de
intervenção — Lara interfere, capturando a atenção de todos enquanto
organizo as ideias. — Como já discutimos em oportunidades anteriores, o
principal ganho não será o acúmulo financeiro, mas a visibilidade, o prestígio
social. O terreno está localizado no distrito mais desfavorecido
economicamente de Moscou, uma região perigosa e marginalizada.
— Claro! — diz um dos clientes com seu sotaque oriental, batendo a
mão na mesa. — Credibilidade, apoio aos necessitados, geração de emprego!
— O que não contávamos — prossigo, após dar uma volta completa
entorno do grupo — era que algum dos proprietários se recusaria a vender o
imóvel no lote selecionado.
— Ainda tem uma residência no local? — questiona Efrem Kokorin.
Uma nota de decepção forçada se perde no sorriso que corta seu rosto por não
mais do que um segundo, uma reação incomum se comparado aos demais
investidores.
— Exatamente, mas o problema é que não conseguimos localizar a
proprietária. O irmão dela, que vive na casa, se recusa a colaborar — explica
Lara.
— Serena Fajardo — digo em voz alta esse maldito nome que tem
rondado minhas noites de insônia. — Impossível de ser rastreada, trabalha em
empregos aleatórios e não possui endereço fixo. Ao menos nenhum que
tenhamos identificado ainda.
— Devemos nos preocupar? — insiste Efrem, fazendo anotações em
seu celular.
— Temos tudo sob controle — minto outra vez. Blefar é uma estratégia
que só funciona em casos extremos ou se você tiver um caráter questionável.
Tenho clareza de qual caso me encaixo. — Essa situação será resolvida
dentro de sessenta dias. Após esse período, os senhores poderão rescindir os
contratos ou perseverar na sociedade.
Acomodo-me na extremidade da mesa novamente, cruzando as mãos na
frente do rosto, os cotovelos apoiados sobre o tampo da mesa. Eles olham uns
para os outros, desconfortáveis e resignados.
É isso, eu não falho.
Por meia hora, escuto pacientemente as sugestões de cada um deles. É
assim que funciona: primeiro assumo o controle e os faço lembrar quem é o
chefe; depois, ouço amigavelmente suas considerações e necessidades para
que se sintam úteis. No fim das contas, o que todos esperam é pertencer ou
não ao grupo dos poderosos e compor a elite financeira ao lado dos grandes.
Ao meu lado.

***
— Temos tudo sob controle — Lara me imita debochadamente, rindo de uma
forma preocupante enquanto recolhe os papéis esquecidos e esparramados
sobre a mesa após o fim da reunião. — Isso é um desastre, Vladimir.
— Era a minha única alternativa — justifico, mas minha cunhada é
inteligente demais para fingir que não me conhece. Eu só estava sendo o
egocêntrico de sempre.
— E o que você vai fazer agora? Tem alguma ideia de onde encontrar
essa mulher? Porque eu acho que já tentamos de tudo.
Suspiro. Fazia muito tempo que um investimento não me causava
tantos problemas.
— Estou indo conversar com o irmão dela novamente. Andrei tentou
dialogar com ele de maneira diplomática, mas sem resultados, o homem
continua irredutível. E Roman... Não é do tipo que conversa.
Lara concorda com a cabeça, um sorriso orgulhoso nascendo em seus
lábios à menção dos meus irmãos.
— E o que você tem para oferecer agora, que ainda não tenham
oferecido antes?
— Nada. Na verdade, minhas ideias esgotaram — confesso. — Mas
posso garantir que não existe nada que não se compre com dinheiro, e isso
nós temos aos montes.
— Mais dinheiro? Isso não vai adiantar. Camillo Fajardo já recusou
todas as nossas ofertas e algumas foram bem exorbitantes.
— Não, Lara. Eu quero dizer, muito, muito dinheiro. Claro que não
será uma oferta verdadeira, apenas um blefe, um teste para descobrir o quanto
Camillo Fajardo está disposto a manter sua irmã longe das nossas mãos.
— Você é o presidente — diz por fim. Termina de juntar o material e
caminha para a saída. — Antes que eu me esqueça, preciso que fique com
Iago na próxima segunda-feira.
— Não — respondo. Ultimamente, meu sobrinho tem requisitado toda
a atenção e alguém decidiu que temos uma conexão adversa. Não me encaixo
no papel de tio carinhoso, além de ser um péssimo exemplo.
— Por favor — suplica. — Vou passar a tarde toda na construção e sua
mãe estará ocupada demais selecionando a equipe que vai trabalhar no
casamento.
— O que meu irmão fez para merecer essa punição? Você, no meio de
todos aqueles homens… — comento, já pensando em como Ivan vai ter um
ataque. Infelizmente, a falta de ciúme não é uma de suas virtudes. — Eu não
tenho nada com a vida de vocês, claro. Não precisa responder se não quiser.
— Exatamente, é disso que estou falando. — Lara revira os olhos de
uma maneira quase elegante. — Ele disse que eu não deveria frequentar o
terreno, que a região é perigosa, que vai ficar preocupado e tudo mais.
— E você vai fazer exatamente o oposto do que ele disse para mostrar o
quanto odeia toda essa proteção descabida. — Levanto-me da poltrona e
abotoo o paletó. — Vocês vão acabar discutindo.
— Ótimo, sexo de reconciliação é o melhor — ela reflete em voz alta,
para o meu desespero, segundos antes de arregalar os olhos. — Efeito
Tatiana! Me desculpe. Meu Deus, não acredito que eu disse isso! Estou
passando tempo demais com a sua mãe, daqui a pouco vou ficar obcecada
com netos e pintar o cabelo de branco. Quer saber? Vamos mudar de assunto.
Já decidiu quem vai acompanhar você ao jantar no hotel do Palliermo?
Merda, tinha me esquecido completamente disso. Não estava nos meus
planos perder tempo com festas.
— O italiano? Não preciso de acompanhante, é apenas uma
socialização. Roman pode cuidar disso no meu lugar, ele adora uma farra.
— Roman já disse que não quer saber de italianos e Andrei já tem
compromisso com a namorada. — Saímos da sala de reuniões para o meu
escritório. O último andar é composto por esses dois cômodos para que eu
consiga ficar sozinho na maior parte do tempo. — Talvez você possa levar a
neta do senhor Kokorin. Eu, particularmente, não tenho uma opinião formada
sobre ela. Outro dia, a menina teve um pequeno ataque de histeria porque
tinha discutido com a balconista de uma loja de conveniência, ou coisa
parecida. Sua mãe tem certeza de que estão tramando um golpe do baú para
cima de você.
Claro que sim.
— Eles podem tentar, mas a única maneira de obterem sucesso em um
golpe de qualquer natureza contra mim é se eu permitir que o façam. Sobre
minha mãe, ela deve estar adorando. Qualquer coisa desde que a gente case e
gere filhos e mais filhos.
— Eu que o diga — resmunga, com certeza referindo-se à insistência
de Tatiana para que arrume logo um irmão ou irmã para Iago.
Mas Elena Kokorina ainda é uma incógnita desde sua chegada à
empresa. Parece-me a típica ninfeta de família rica; aquela com trejeitos
infantis, que se transforma na personificação da luxúria quando rendida entre
quatro paredes. Por pior que esse julgamento soe, são ótimas para passar o
tempo, mas perigosas com o coração partido. Só espero não estar enganado.
Ótimas para passar o tempo, e eu preciso de um descanso. Será que
vale a pena arriscar um envolvimento exclusivamente físico com a neta de
um investidor? Provavelmente não.
— Faça o convite amanhã, diga para estar pronta no sábado.
Descemos juntos no elevador, mas minha cunhada para no andar dos
escritórios presidenciais — um abaixo do meu — para se encontrar com o
noivo impaciente. Vou direto para o estacionamento, passo as coordenadas ao
motorista e ganhamos as ruas de Moscou, meu território preferido. Onde me
sinto verdadeiramente em casa.
***

Alguns moradores acompanham o carro com o olhar, aflitos ou curiosos.


Ainda se sentem coagidos, descrentes dos benefícios. Compreendo a
resistência, não é todo dia que um empresário multimilionário oferece
investimento local.
Em pouco tempo, avisto a construção que avança em passos lentos,
cerceando a incólume moradia que se mantém firme.
A casa em si não é grande, deve conter no máximo quatro ou cinco
pequenos cômodos, mas o terreno é tão amplo que levantaram dois depósitos
para entulhos nos fundos, o que prejudica um terço da planta arquitetônica do
clube e compromete o aspecto visual dos arredores.
O motorista estaciona a poucos metros de distância da casa, e uma cena
incomum chama a minha atenção.
Nas escadarias, dois homens conversam com Camillo Fajardo, o irmão
da proprietária; parecem discutir. Uma mulher loira e muito magra balança
uma criança de um lado para o outro na frente da porta, mas a menininha,
cujos cabelos são extremamente pretos e as roupas gastas e quentes, assiste à
cena em silêncio. Já vi as duas outras vezes na casa, não tenho certeza da
relação delas com Camillo, mas é perturbador que consigam criar uma
criança nessas condições.
Abaixo um pouco a janela, pego algumas palavras no meio dos gritos,
mas apenas uma é suficiente para mudar toda a minha perspectiva.
Dinheiro.
Não é preciso muita inteligência para deduzir do que se trata o
confronto. Dívidas. Camillo Fajardo está devendo até os dentes. Depois de
meses, essa informação chega no momento certo, tão por acaso como um
presente do universo.
Faço um sinal para o motorista avançar devagar. Os dois capangas
percebem a nossa aproximação, empurram Camillo pela última vez e gritam
um alerta em outra língua, provavelmente espanhol. Assim que desaparecem
na primeira esquina, desço do carro.
A mulher abraça o bebê contra o peito, os braços esqueléticos rodeando
o pequeno corpo. Tenho o vislumbre de dois olhos muito escuros encarando-
me com a curiosidade infantil renovada, uma bebezinha calma e observadora.
Então, a mãe corre para dentro da casa, levando a filha consigo.
— Você tem uma dívida e mesmo assim se recusa a vender a casa —
digo com calma assim que a porta se fecha e ficamos a sós. Coloco as mãos
dentro dos bolsos da calça.
— Isso não é da sua conta! — grita, apontando o dedo indicador para o
carro. — É melhor você entrar nessa merda e ir embora. Eu já disse que a
casa não está à venda!
Não me deixo intimidar por seu tom exaltado.
— Eu poderia desistir se estivesse negociando com a verdadeira
proprietária.
— Não vou chamar a minha irmã aqui, ela não vai se envolver com
pessoas como você!
— Qual é o seu preço? — pergunto sem pressa, apenas pelo prazer de
assisti-lo enquanto perde o controle.
— Eu já disse que a casa não está à venda — rebate com o tom
ameaçador. Vira o pescoço e suas tatuagens esticam, fazendo com que o rosto
de Michael Jackson desenhado entre o ombro esquerdo e a mandíbula pareça
ter saído direto do clipe com os zumbis dançantes.
— Não estou falando da casa, mas de você. Qual é o seu preço, senhor
Fajardo? Não em rublos, mas em dólares! Meio milhão? Um? Dois milhões?
Dez? — blefo. — Por uma informação, seria como ganhar na loteria.
— Acha que tenho cara de otário? — debocha.
— Bem, todo mundo tem um preço. — Levanto os ombros com
desleixo.
— Todo mundo tem um preço? — Gargalha, jogando as mãos para o
alto, sem dar crédito às minhas palavras. — Mira, talvez eu tenha um preço,
talvez eu precise da porra do seu dinheiro de mierda, é verdade. Mas a minha
irmã, não.
Duvido muito.
— Isso ela pode decidir por si mesma, você não acha?
— Não! — Abanando as mãos na frente do corpo, Camillo ganha
distância entre nós. — Serena tem que continuar a vida dela sem se envolver
com essa porcaria de casa.
Um clique desperta na minha cabeça, uma suposição que faz todo
sentido. Ele não quer a irmã aqui, repudia qualquer alternativa que envolva
Serena e essa casa…
Como não percebi isso antes?
— Seria possível — suponho com cautela — que sua irmã não saiba
sobre essa casa pertencer a ela?
Camillo vacila por um segundo apenas, mas se recupera rápido. Uma
pessoa inexperiente jamais perceberia.
— Nossa, ele sabe somar dois mais dois — disfarça. — Mira, mesmo
que você encontre Serena e conte que essa casa é dela, não vai conseguir
comprar.
— O que te faz ter essa certeza?
— Você já olhou ao redor, senhor? O que está vendo? — Cospe no
chão, balançando a cabeça em sinal negativo. — Fique com os seus,
presidente. Eu vejo a porra de um distrito fodido. Você acha que as pessoas
precisam do seu clube, que elas querem isso? — Camillo me dá as costas,
subindo os degraus que precedem a entrada da casa. — Serena é a droga
de una loca que se mete em confusão toda vez que abre a boca para respirar,
mas ela conseguiu sair. Você não tem o direito de arrastar a minha irmã para
essa bomba que estão criando.
— E como vai ser quando vierem cobrar a sua dívida? — insisto,
embora seja uma tentativa vazia. Ele não vai cooperar, está mais
descontrolado do que antes.
— A lo hecho, pecho — murmura.
— O que isso significa? Não entendo seu idioma.
— Que cada um é responsável por arcar com as consequências das
próprias escolhas. Eu fiz uma escolha, ela também. E você também.
— O que você quer dizer com isso? — pergunto, mas ele comprime os
lábios em uma linha rígida, negando-se a continuar. — Não quer a sua irmã
de volta. Mas eu quero, e vou continuar procurando — declaro.
— Boa sorte com isso — zomba.
— Obrigado pelo seu tempo, se mudar de ideia…
— Não vou.
Abandono Camillo sem lhe conceder outro olhar. Meu tempo está se
esgotando e encontrar Serena Fajardo é a única coisa que importa no
momento. Ao menos minha visita serviu para descobrir que ela não está
fugindo de mim, apenas não tomou consciência de que preciso dela. Eu
preciso saber onde está essa mulher.
E, então, descobrir qual é o preço dela.
SERENA

EU ESTOU MUITO ferrada!


Tudo bem, isso acontece quase todos os dias. Estar é um eufemismo
simplório para amenizar o óbvio. Eu sou ferrada! Mas, excepcionalmente
hoje, parece que o universo resolveu colaborar ainda menos com a minha
existência.
Seria pedir demais que, pelo menos uma vez na vida, as merdas não
acontecessem todas de uma vez? Não quero parecer ingrata ou coisa parecida,
sei que existem pessoas pelo mundo afora em situações muito piores que a
minha, mas isso não muda o fato de que continuo afundando no poço.
Ah, droga! Não devo pensar de forma tão pessimista. Duas demissões
em menos de quinze dias? Posso lidar com isso, eu consigo! Serão dois dias
livres a mais na semana, talvez eu arrume um emprego mais promissor, com
diárias melhores. Quem sabe? Talvez exista uma razão, um objetivo que
ainda não consigo enxergar por trás desta maré de azar que perdura por
longos vinte e cinco anos.
O pobre senhor Bunowski abre e fecha a boca diversas vezes, buscando
por palavras adequadas que não existem para esse tipo de situação; a folha
treme entre seus dedos por causa do Parkinson. Fui sua primeira funcionária,
coitadinho. Depois de trabalhar em todos os sábados e domingos dos últimos
três meses na loja de conveniências, o homem ainda não encontrou uma
forma amigável de explicar por que resolveu me colocar no olho da rua.
— Está tudo bem — digo, após minutos constrangedores. Ele estica o
papel e, como previsto, é uma belíssima dispensa.
Adeus mundo dos assalariados, olá mundo dos desempregados, pobres
e fodidos!
Poderia ser pior o cacete. Estou lindamente ferrada aqui!
— Sinto muito, Serena — lamenta, os olhinhos desviando dos meus.
Não duvido do seu pesar. — Espero que entenda, você é uma ótima
funcionária, mas, depois daquele episódio, não tenho muita escolha, entende?
As pessoas estão comentando.
O episódio em questão aconteceu na semana anterior, um evento que
prefiro esquecer, envolvendo uma cliente intrometida e curiosa demais para o
seu próprio bem, e um riquíssimo terno — que deve custar meus dois
pulmões no mercado negro — sendo estragado por um copo de mors feito
com mirtilos, depois que o joguei na cabeça da infeliz.
Certo, ao menos eu mereço essa demissão.
— Foi um prazer trabalhar para o senhor. — Entrego o documento
assinado, retiro o avental por cima da cabeça e o coloco sobre o balcão. A
estampa de um piroshki sorridente me encara do tecido, a pior logomarca que
já vi na vida. — Sinto muito pelo que aconteceu no outro dia, não devia ter
perdido a cabeça.
— Você é muito estourada, Serena — repreende-me, ajeitando os
óculos na ponta do nariz, e me olha através do vão que se forma acima da
haste dourada. Alguns poucos cabelos acinzentados escapam pelas beiradas
da sua touca desbotada. — Um dia ainda vai se meter em confusão.
— Mais? — brinco. — Confusão é o meu nome do meio, não tem
problema não. O senhor sabe que aquela madame mereceu o banho que eu
dei nela.
— Claro que sim! — Ele me dá palmadinhas no ombro. Passa os olhos
pelo pequeno comércio e sua feição esmorece. — Essa gente rica é perigosa,
menina.
— Perigosa sou eu com fome, senhor Bunowski. Com fome, pobre e
desempregada então, nem se fala!
Nós dois rimos, mas, no fundo, a verdade é mais cruel e menos
engraçada. O mundo pertence aos poderosos, o resto só nada contra a
corrente e torce para não se afogar. Abro os braços para abraçar meu ex-
chefe, mas o homem é duro como pedra e nem se move, então só reviro os
olhos e aceno com a mão. Russos…
— Juízo — resmunga, acenando um dedo trêmulo para o meu rosto.
Retira um envelope lacrado da gaveta ao lado do caixa e entrega meu último
pagamento.
— Nunca ouvi falar — cantarolo. Pego o dinheiro e viro de costas,
seguindo para a saída.
Há dois meses, quando entrei nessa loja humilde pela primeira vez, não
imaginava que enfrentaria tantos obstáculos. Trabalhar sete dias por semana
em três empregos diferentes nunca foi o meu sonho de vida, mas era isso ou
morar debaixo da Krymsky, ou da Ponte do Metrô Luzhniki, ambas muito
frias e terrivelmente inadequadas para moradia a longo prazo.
Como todos os problemas que enfrento na vida, dessa vez também não
olho para trás. O sino antiquado se despede com um último badalar quando
abro a porta e, assim que ela se fecha atrás de mim, não ouço mais ruído
algum.
Já é passado, hora de seguir em frente e arrumar um novo emprego, por
pior que sejam as circunstâncias.
Abraço meu corpo em busca de mais calor. A primavera em Moscou é
menos rigorosa do que o inverno, mas não se isenta do frio por períodos mais
longos como acontece no verão. Ainda assim, é de longe minha estação
preferida, especialmente agora que o degelo se foi e as pessoas começam a se
despir dos casacos pesados.
Preciso ocupar meus finais de semana, e os únicos lugares que
disponibilizam vagas nesses dias envolvem longos períodos atrás de balcões
em clubes noturnos. Geralmente prefiro não arriscar, mas meu emprego no
restaurante da Raissa não vai ser o bastante para arcar com as despesas do
próximo mês.
O melhor lugar para encontrar empregos esporádicos é no centro da
capital, o berço dos turistas e nascente da economia. Serão trinta minutos de
caminhada com um belíssimo par de botas estupidamente equipado com
saltos de quinze centímetros que deslizam no asfalto úmido. Cair com a cara
no chão é um risco que consigo aguentar.
Faço um nó no meu longo cabelo preto antes que a situação fique ainda
pior por causa da brisa que nunca abandona Moscou.
Para uma estrangeira, é sempre dez vezes mais complicado conquistar a
confiança dos empregadores, que exigem diplomas e outras habilidades das
quais não disponho. Mas tenho conseguido sobreviver assim desde a morte
dos meus pais.
Visualizo o Kremlin muito tempo antes de alcançar o Jardim de
Alexandre, com seus portões ornados com símbolos das forças armadas
russas. Em um ponto mais distante, algumas crianças brincam nas bordas da
fonte de Zurab Tsereteli, com os jatos de água a jorrar sobre os quatro
cavalos de bronze empinados sobre as patas traseiras.
Gostaria de ter tempo para apreciar a cerimônia de troca da guarda no
Túmulo do Soldado Desconhecido, o solene memorial da Segunda Guerra
Mundial. Se existe alguma beleza no sofrimento, o resultado dessa mistura
incomum e controversa pode ser representado pelos dois soldados que trocam
o posto de hora em hora, ao lado da chama ardente que zela pelo monumento
histórico.
Hoje, no entanto, as minhas necessidades gritam muito mais alto do que
o lazer. Aliás, não lembro qual foi a última vez que saí de casa para me
divertir.
— Puta mierda, é por isso que continuo virgem.
Só me dou conta de que falei em voz alta porque uma mulher tampa os
ouvidos da filha e me lança um olhar zangado, balançando a cabeça
negativamente. Ela se afastando enquanto resmunga algumas indignações.
É isso! Pobre, desempregada, virgem, louca e, se continuar nesse ritmo,
em breve presa por atentado ao pudor.
Desvio dos limites do jardim e prossigo com o plano inicial de procurar
emprego. No alto, prédios magnânimos são cortados pelo vento, refletindo os
raios solares como grandes colunas de luz. Depois de duas horas e quatro
tentativas fracassadas em hotéis de temporada, paro em frente à vitrine de um
café com design vitoriano, um ponto rosáceo no meio da rigidez acinzentada
das instalações centrais.
Há uma variedade surpreendente de vatruchkas expostas que reviram o
meu estômago, tentando o paladar de uma mulher desprovida de dinheiro
com a promessa daquele sabor característico de queijo e leite condensado.
Nesse exato momento, quando a baba meio que escorre pelo canto da
minha boca, o sino do estabelecimento ressoa acima dos barulhos urbanos e
uma jovem surge, apressada com um pequeno garotinho no colo.
— Ah, sinto muito, estamos fechando — comunica, afobada,
equilibrando a criança em um braço enquanto tenta trancar a porta com o
outro.
Perco alguns segundos admirando sua aparência. É algo único, do tipo
que a gente só vê pela televisão. Apesar de a receita ser a mesma para os
padrões russos — loira, magra e pequena como uma boneca de porcelana —
seus olhos são tão claros como bolas de vidro, e as maçãs do rosto,
proeminentes e angulosas, conferem-lhe uma identidade quase élfica. A
criança, por outro lado, não poderia ser mais diferente, com os cabelinhos
ondulados e escuros, provavelmente herdados do pai.
— Está se sentindo bem?
Bem mal.
— Sim — minto, meio atrapalhada. — Estou procurando por uma vaga
de emprego. — Jogo a informação no ar, vai que acerta.
A jovem finalmente termina de fechar todo o estabelecimento,
certamente para almoçar, e balança o filho de um lado para o outro enquanto
me analisa, conseguindo franzir o nariz de um jeito muito elegante, mesmo
vestida com um avental cheio de babados.
— Bem, não estou contratando no momento — comenta. — Mas ouvi
dizer que aquele hotel dourado, o Palliermo, está em busca de pessoas para
trabalharem em um jantar beneficente.
— Ah, madrecita de Dios, isso seria ótimo! — comemoro, não
acreditando na sorte muito incomum.
Apontando para frente, um sorriso acompanha suas instruções.
— É só você seguir a rua principal, qualquer pessoa vai saber te indicar
o caminho até o prédio dourado. É um hotel cinco estrelas. — Memorizo a
informação, acenando com a cabeça e agradecendo inúmeras vezes enquanto
mergulho na algazarra de transeuntes apressados e muitos turistas fazendo
compras.
O barulho da cidade viva é uma constante: motoristas impacientes
atacando as buzinas dos carros, músicas internacionais entoando na frente de
lojas para atrair clientes, a conversa interminável dos civis. Vou seguindo na
direção que a moça indicou. Acabamos não nos apresentando, mas talvez eu
volte em outro momento para agradecer. E, quem sabe, me deliciar com duas
ou dez vatruchkas.
Fico atenta a cartazes ou comércios com potencial para contratar mais
funcionários e, por isso, não percebo a tempo quando, de repente, uma pessoa
agarra o meu braço com muita força.
Vou morrer, penso. Puta que pariu, vou morrer virgem!
Nem pensar, não me sacrifiquei em rotinas exaustivas de trabalho para
ser assassinada no centro de Moscou. Uso toda a minha força para girar o
corpo com o punho fechado. Acerto a cabeça do infeliz e minha mão dói
como o inferno.
— ¡Chica loca! — resmunga o sujeito, esfregando a região dolorida
enquanto eu me sinto uma idiota.
— Camillo? — arquejo, reconhecendo a voz do meu irmão. —¿Es
usted, hermano? Quer me matar do coração?
Faz tanto tempo que não o vejo…
É incrível como o cérebro da gente processa as informações visuais
muito mais rápido do que estamos preparados. Ele parece muitos quilos mais
magro, o pulso fino como o meu, a pele abaixo dos olhos vários tons mais
escuros. A roupa, um conjunto de jeans e casaco de couro preto, tem marcas
gastas de sujeira; não deve ver água há dias.
Lembro-me do irmão mais velho, que um dia foi forte, alto e charmoso,
com os cabelos pretos que herdamos dos nossos pais e o sorriso fácil. Mas
aquele menino se foi há muito tempo, deixando essa desordem de vícios e
desumanidade no lugar.
Se Camillo veio atrás de mim, só pode significar uma coisa: mais
problemas, com certeza! Não está ruim o bastante? Calma que pode piorar.
Murphy era um cretino e eu odeio a sua teoria.
— Niña, escuta… — Camillo mistura as línguas no meio do
nervosismo. Olha para os lados freneticamente, sem enxergar um destino
enquanto me puxa pelo braço. — Estou indo embora de Moscou, preciso
encontrar Valentim…
— Do que você está falando? — Tento me desvencilhar do seu aperto
sem criar uma comoção. — Eu pensei que estivesse em Morella, na Espanha.
Em casa! Seu mentiroso, bastardo, vou matar você e jogar seu corpo em um
rio cheio de piranhas!
— ¡Mierda, Serena, escúchame! — grita. Caminhamos depressa,
esbarrando em pessoas que praguejam insultos e reclamações. Não é
novidade nenhuma que as pessoas ignorem um homem estranho arrastando
uma mulher pelo meio da rua, provavelmente supondo que somos um casal.
— Eu preciso de dinheiro.
— Você precisa de dinheiro, Camillo? — debocho, puxando o braço
sem me importar com os curiosos e impedindo que continue arrastando-me
como bem entende. — Adivinha? Eu preciso de dinheiro também!
— Serena, eu vou explicar, tudo bem? — Ele coça os olhos vermelhos,
mordendo o lábio rachado ao ponto de marcar a pele fina. — Mas agora
preciso ir embora. Preciso resolver uma coisa e, bem, tem uns caras atrás de
mim, da pesada. Gente perigosa.
Ah, maldito.
— Para quem você está devendo, Camillo? — Cruzo os braços, um
nome engatilhado na cabeça. Só existe uma pessoa com quem meu irmão
viciado pode ter contraído uma dívida.
— Maksim — sussurra, comprovando minhas suspeitas.
— Maksim Loskov? Sério? — Coloco a mão na testa, massageando
minhas têmporas para raciocinar melhor e afastar a dor aguda causada pelo
choque de reencontrá-lo nessas condições. — E a casa? Você herdou a casa
de nuestros padres. Já vendeu? Ouvi dizer que estão construindo um clube
refinado por aqueles lados.
— Não posso vender a casa, ficou maluca de vez? — Ele olha para trás,
desconfiado e um pouco instável. Passa a mão no nariz diversas vezes,
inspira como se estivesse resfriado, mas eu conheço os sintomas. — Se eu
vender, o distrito inteiro vai me querer morto. Além disso… — Pestaneja
sobre alguma coisa, negando com a cabeça em seguida, como se tentasse
afastar o pensamento. — Serena, presta atenção, você não pode voltar,
entendeu? As coisas vão ficar feias em breve e eu preciso fazer uma viagem.
Não pode voltar e eu não posso continuar lá, pelo menos não por um tempo.
— Por Dios, você usou drogas? Precisa de ajuda, Camillo, está
delirando. Eu não quero voltar para aquele inferno, não existe nada que me
importe naquele lugar.
— Se eu sumir, eles podem vir atrás de você — resmunga sozinho no
meio de uma alucinação.
— De mim? Isso não faz o menor sentido, Camillo, não estou
entendendo nada. O Loskov não sai do distrito, você sabe muito bem.
— Ele não pode sair e a culpa é toda minha, merda! — fala, mas não
para mim. Está em conflito, suas palavras são frenéticas e desconexas. — Só
me promete que vai ficar longe da casa, certo? Não importa o que digam,
você tem que ficar longe.
— Para onde você vai? — questiono, segurando-o pela manga da
camisa, mas Camillo é mais forte e se afasta sem esforço.
Começa a recuar devagar, seus lábios formando uma palavra emudecia
pelo turbilhão dos meus pensamentos. Perdónname. Perdoá-lo pelo quê?
Então, sai correndo, empurrando pedestres para se afastar mais depressa, e
desaparece na primeira esquina.
Ergo as mãos e encaro minhas palmas vazias, onde antes estava o
envelope com meu pagamento.
Perdónname.
O desgraçado levou todo o meu dinheiro. Ele me roubou e eu continuo
tão ferrada quanto antes. O que eu deveria fazer? Chamar a polícia e dizer
que fui roubada pelo meu irmão? Assim fica difícil manter o otimismo!
Alguém lá em cima podia colaborar.
Giro sobre os calcanhares com os olhos formigando. Não vou chorar,
ainda mais por causa do meu irmão ingrato. Não vou chorar, não vou.
Respiro fundo, fecho os olhos e faço uma prece silenciosa. É só a
porcaria de um dia ruim. Vai melhorar, tem que melhorar. O ritmo das
batidas do meu coração começa a estabilizar. Tem que melhorar, é o meu
mantra.
Respira.
Abro novamente as pálpebras e me dou conta que continuo parada
diante de um belo edifício que destoa dos demais por causa da estética
futurista mesclada com o design clássico das estruturas históricas.
Pessoas entram e saem do prédio com roupas formais e sofisticadas,
algumas me encaram com desconfiança. No topo da escadaria frontal, um
letreiro ostenta o nome da empresa.
Volkiov.
— Você precisa de ajuda? — Uma mulher refinada, cujos cabelos não
alcançam os ombros, para ao meu lado de mãos dadas com uma criança, um
menino que aparenta ter cerca de oito ou nove anos, vestido com uma camisa
social de mangas longas.
Olho de um para o outro. Talvez tenham presenciado a discussão com
meu irmão. É a segunda pessoa que me oferece ajuda hoje, a prova de que
nem tudo está perdido.
Dentre todas as coisas ruins, são as boas que devem fazer a diferença.
— Não, eu… — Coloco os pensamentos em ordem, daqui a pouco
mandam me internar. Eu estou quase me internando, imagina as outras
pessoas? — Estava procurando o hotel dourado. Sabe me indicar o caminho?
Ela franze o cenho, sua mão livre fechada sobre o coração.
— Claro, é só seguir em frente por três quadras e depois virar à direita.
Não tem como errar. — A mulher não parece convencida, o que me é
estranho. Não estou acostumada com pessoas preocupando-se comigo,
sobretudo desconhecidos. — Tem certeza de que está tudo bem? Aquele
rapaz machucou você?
— Machucou o meu bolso! — brinco sem entrar em detalhes. Tem uma
criança presente que não precisa escutar palavreados grosseiros, e apenas eles
conseguiriam narrar o ocorrido. — E o meu orgulho.
— Se precisar de ajuda… — insiste, empática e atenciosa.
Difícil. Reviso minha lista mental com o resumo básico: pobre, falida,
desempregada, louca e virgem. Não exatamente nessa ordem. Sem contar o
aluguel atrasado.
Um dia como outro qualquer na vida de Serena Fajardo.
— Está tudo bem — respondo, sorrindo, pois é assim que aprendi a
enfrentar as situações ruins. — Obrigada pela atenção.
Deixo tudo para trás, me despeço dos dois e sigo o meu caminho. Adio
a lamentação e as preocupações para quando minha cabeça estiver
devidamente apoiada sobre um travesseiro macio. Não se trata de ignorar os
problemas, mas de conviver com eles.
O importante é não me entregar nunca mais.
Vai piorar?
Vai piorar.
Então, bem… Murphy que me aguarde.
VLADIMIR

CONVIDAR ELENA KOKORINA para um evento social foi provavelmente


uma das piores ideias que já me ocorreram na vida. O trabalho excessivo e o
estresse constante acabam sempre se tornando os principais impulsores da
minha falta de bom senso. É isso o que acontece com os homens quando
pensam com a cabeça errada.
Minha mãe costuma dizer que estou desperdiçando a minha vida por
causa da empresa, que meus interesses pessoais ficaram subjugados pela
responsabilidade de gerenciar um cargo tão exaustivo. O que ela não sabe é
que, apesar de assumir a presidência nunca ter estado nos meus planos, eu
sou bom nisso. Posso não ter chegado até aqui por meios nobres, mas sou
fodidamente bom!
Organização e planejamento prévio são os princípios básicos para
evitar surpresas e impedir que meus propósitos se distanciem da expectativa
final. No entanto, continuo sendo um homem que tem suas necessidades, e
nessa característica habitam as minhas fraquezas.
Desde o começo, entendi as verdadeiras intenções de Efrem Kokorin
quando se juntou ao meu grupo de associados e solicitou uma vaga para a
única herdeira na minha empresa. Reconheço um abutre a quilômetros, mas
aprecio seus esforços e o fato de acreditar possuir capacidade suficiente para
me manipular.
Por outro lado, no entanto, é chegada a hora de analisar minhas opções
e conciliar um casamento a favor da empresa.
Elena não é a melhor pretendente, mas não deixa de ser uma
possibilidade interessante considerando o forte investimento que sua família
vem aplicando no projeto do clube. Conheço seus planos. Não confio neles,
mas isso não quer dizer muita coisa, afinal, não confio em praticamente
ninguém além dos meus irmãos.
O problema é que posso ter me precipitado. Levar a menina para um
jantar com tamanho reconhecimento público é como assumir, no mínimo,
uma relação afetiva, e essa nunca foi minha intenção.
Três batidas na porta do meu quarto afastam quaisquer pensamentos
sobre casamentos ou interesseiros. Do outro lado das grandes janelas
retangulares ao lado da cama, as estrelas começam a se despedir junto com a
bruma noturna. Só há uma pessoa além de mim na mansão cujo despertar se
antecipa ao de todos os outros.
Passo o paletó por cima dos ombros e caminho até a porta. Destranco-a
e puxo a maçaneta, revelando meu pequeno sobrinho ainda vestido com suas
roupas de dormir cor-de-rosa. Ele coça os olhos azuis com o dorso da mão,
boceja longamente e depois desvia do meu corpo, entrando sem permissão
como tem feito desde o dia em que descobriu meu horário de saída para o
trabalho.
— Bom dia, tio — murmura, cambaleando até a minha cama.
— Iago, você deveria continuar dormindo no seu quarto — sugiro, por
mais inútil que seja. Essa criança tem sérios problemas com diálogos
imprecisos. Até que eu impeça com todas as palavras suas visitas matinais,
ele continuará com o hábito, e é claro que não tenho essa coragem toda. —
Ou no quarto dos seus pais.
— A vovó Tatiana disse que eu não posso incomodar meus pais de jeito
nenhum durante a noite, se não eles não podem fazer bebês. — Típico da
minha mãe, sempre querendo mais netos do que um dia seremos capazes de
produzir. — E eu gosto de vir aqui antes das suas missões.
— Iago, eu já expliquei e vou explicar outra vez. Eu não sou um agente
secreto. — Fecho os botões da minha roupa enquanto ele se aconchega nos
cobertores felpudos.
Ter uma criança em casa mudou totalmente a minha perspectiva com
relação a responsabilidades. Não me vejo como alguém que poderia ser um
bom pai, simplesmente por saber que sou um péssimo ser humano, mas isso
não me impede de amar meu sobrinho ou me preocupar com sua segurança.
De vez em quando, me pego pensando em crianças que não tiveram a
mesma sorte de Iago, como aquela menininha criada na casa que queremos
comprar. Não entendo como podem recusar nossas ofertas, sendo que o
dinheiro poderia mudar suas vidas. Mudar a vida dela!
Iago foi adotado há menos de um ano em uma situação delicada por
meu irmão e sua noiva. Embora pareça ter feito parte da nossa família desde
sempre, é um menino com inteligência avançada para coisas pontuais que
sejam do seu interesse, mas que tem dificuldades em interpretar pessoas e
situações às vezes. Por causa de um mal-entendido no dia em que fui buscá-
lo no orfanato, ele passou a acreditar que faço parte de alguma organização
secreta de agentes especiais.
Um dia a maturidade vai levar essa ideia embora, mas continuo
esforçando-me para que aceite o quanto antes o fato de eu ser apenas um
empresário que se esforça exageradamente para garantir que nosso
patrimônio continue crescendo.
— A minha mãe disse que vou ficar com você na segunda-feira, é
verdade?
Não, penso. Minha cunhada tem se mostrado uma verdadeira
manipuladora, isso sim. Uma coisa é negar o pedido dela, outra
completamente diferente é colocar na cabeça do meu sobrinho que não aceitei
cuidar dele durante uma simples tarde.
— Sim, você vai comigo para a empresa. —Fraco. Suspiro, fixando
meus olhos no amontoado de pelos que Iago se tornou, somente o topo de
cabelos loiros e desordenados visível.
Em silêncio, Iago balança a cabeça, satisfeito.
Recolho meus objetos de trabalho e os papéis contendo as escassas
informações sobre Serena Fajardo e sua família. Minha vida está girando ao
redor dessa mulher desde que iniciamos as construções do clube, mas o
tempo não tem sido muito generoso comigo.
Dez minutos se passam sem que Iago profira uma de suas pérolas.
Aproximo-me da cama para conferir se sucumbiu ao sono, mas seus olhos
continuam abertos e o semblante distante. Isso não é típico de sua natureza
falante. Sento-me ao seu lado e o menino, que tem sido a maior alegria dessa
casa, oferece um ingênuo sorriso preocupado.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto, prezando por uma conversa
mais direta para que ele não se confunda. Somos parecidos no quesito da
objetividade.
— Por que as pessoas ficam malvadas? — indaga, seus traços infantis
não fazendo jus à profundidade da pergunta, e perco momentaneamente o
raciocínio.
— Algum motivo específico para essa questão? — Apoio os cotovelos
nos joelhos; não sei como ainda me impressiono com sua maturidade
precoce.
— Ontem, depois da escola, minha mãe me levou na empresa porque o
meu pai ia almoçar com a gente. Só que tinha uma moça na frente do prédio
brigando com um homem meio estranho. Acho que a minha mãe ficou um
pouco preocupada, lembrando das coisas que aconteceram com ela.
— Entendo — digo. Orgulho e condolência oscilam dentro de mim,
pois Iago é um menino sempre atento aos sentimentos da mãe. Ele teve êxito
em perceber que ela precisava de ajuda quando Ivan e todos nós falhamos.
Mas, como explicar para essa criatura tão imaculada que a maldade é uma
particularidade natural ao ser humano? Como explicar algo que me define tão
bem? — E quem era a mulher? — desvio o rumo da conversa.
— Ela não falou o nome, estava com o bolso machucado e foi embora.
Bolso machucado? Certo, essa é a minha deixa para fugir. A coerência
do meu sobrinho é quase tão ruim quanto a de Roman.
Faço um carinho desengonçado em sua cabeça antes de me levantar. O
Sol já começa a colorir as nuvens com tons alaranjados e preciso chegar mais
cedo na empresa para antecipar algumas reuniões. Apesar de Lara ter incluído
o jantar beneficente do Palliermo na minha agenda, não estava considerando
comparecer de verdade. Agora todos os meus compromissos ficaram
comprometidos. Droga.
Despeço-me sem delongas do menino que já começa a adormecer na
minha cama. Algum dia terei que perguntar para os pais dele o que
pretendem fazer sobre isso, mas duvido que tenham um plano em mente.
Desço as escadas sem fazer barulho, o silêncio na mansão é solitário e
as sombras projetadas através das cortinas se movimentam no canto das
paredes com oscilações sombrias. Passo na frente do antigo escritório do meu
pai e vacilo por um segundo. Assim como eu, Nicolai também costumava sair
de casa sem se despedir da família.

***
Como previsto, o andar presidencial está milimetricamente organizado. A
placa com o meu nome cintila em cima da mesa e todos os meus objetos de
trabalho estão posicionados em seus respectivos lugares. Ligo o computador,
acomodo-me na grande cadeira de couro escuro e retiro todos os papéis da
pasta.
Em cima do primeiro documento encontro o nome de Serena Fajardo.
Outra vez.
— Serena, quem é você? — questiono sozinho, relendo as curvas de
todas as letras, que se tornaram familiares depois de tantos dias procurando
pela mulher por trás do nome.
O arquivo tem mais do mesmo, informações sem profundidade que,
juntas, constroem uma linha temporal. Nascida em Morella, na Espanha, uma
belíssima cidade murada no topo de uma colina. Os pais morreram em um
acidente de trabalho, mas a causa da morte é imprecisa. Qual trabalho? Onde?
Como isso aconteceu? Por que não conseguimos acessar essas informações?
Tantas perguntas sem respostas…
Serena já ficou internada uma vez, por um longo período, após a morte
de seus pais. Há relatos e mais relatos de empregos em diversas lojas, hotéis e
até clubes noturnos conceituados, sempre por poucas semanas e em diferentes
cargos, mas nenhuma pista sobre o seu paradeiro atual.
Um grande e maravilhoso acúmulo de nada.
Jogo a pilha de investigações em cima de outra exatamente igual e
submerjo nas minhas obrigações diárias. Há muito para ser feito em nossas
filiais e a expansão na Itália está paralisada desde quando Roman, meu irmão
imprudente, arrumou briga com Donatelo Giamatteo. Mesmo com a falência,
o sobrenome Giamatteo continua muito conhecido no país e agora outros
investidores receiam negociar conosco.
Palliermo é nossa última esperança.
A volta de Ivan também acarretou complicações desagradáveis em
Nova Iorque. Seu exilio durou cinco anos e, nesse meio tempo, não
precisávamos nos preocupar com o andamento dos negócios no território
americano.
Um caos atrás do outro.
Participo de uma teleconferência de duas horas. Depois, de uma reunião
particular com sócios locais. Durante o almoço, Lara encaixa outra reunião e
acabamos presos durante mais três horas com um grupo de japoneses que
absorvem o restante do meu ânimo.
— Com licença, presidente. — Lara entra na minha sala no fim da tarde
com o rosto tenso. Atrás dela, Elena Kokorina, equilibrada em sapatos com
saltos altíssimos e vermelhos, não disfarça a alegria por visitar o andar
restrito. — Sua mãe mandou avisar que enviou algumas sugestões de roupas
para o hotel, também me pediu para trazer Elena até você para que possam
conversar sobre… a noite.
O que a minha cunhada realmente quer explicar é que Tatiana espera
que eu convide Elena Kokorina para passar a noite comigo no quarto do
hotel. Tudo faz parte do seu plano maquiavélico de casar todos os filhos. Mas
essa é uma possibilidade cada vez mais distante considerando meu nível de
estresse e a forma como a jovem saltita parecendo uma gazela feliz.
É uma mulher bela, com formas esguias e pernas longas. Um
interessante decote proporciona o vislumbre comedido de seus seios e das
clavículas, e a ponta dos cabelos extremamente amarelos alcança a base dos
quadris.
— Elena — digo informalmente. Agora que a merda está feita, o
melhor é controlar o estrago antes que cresça. Apoio a cabeça no encosto da
cadeira e fito seus olhos radiantes e muito azuis. — Espero que esteja
preparada para o jantar.
— Muito! — declara, batendo palmas vividamente, aparentando ser
muito mais jovem do que realmente é. A saia justa na altura nos joelhos seria
mais atraente se confeccionada com outra cor que não o amarelo vibrante
com listras marrons, mas ela tem o seu charme. — Mal posso esperar. Meu
avô está exultante, diz que espera uma visita sua antes do jantar.
— Isso não será possível — corto-a, impondo limites. Elena é um
enorme ponto de interrogação, ainda não consigo ter certeza se possui a
mesma perspicácia do avô; porém, mesmo que eu venha a propor uma união,
ainda preciso conhecer seus defeitos e qualidades, e isso não vai ser possível
se avançarmos rápido demais. Meu principal compromisso é, e sempre será,
com a empresa. — Já que vamos nos encontrar no hotel — completo.
— Não vai me buscar para irmos juntos? — Elena cruza os braços na
frente do corpo, seu cabelo volumoso balançando em decorrência das pernas
inquietas.
— Não — respondo. Não tenho paciência e nem tempo para jogos de
convívio. — Como eu disse, estarei hospedado no hotel, não faz sentido me
locomover até a sua casa. Se quiser, posso mandar o motorista.
— Elena — Lara intervém. — Como eu disse, os interesses de
Vladimir nesse jantar são estritamente profissionais, essas formalidades não
são necessárias.
— Claro! — exclama com a voz aguda; os lábios tensos não ocultam
sua insatisfação. — Eu entendo. De qualquer forma, será uma honra
acompanhar o chefe em um jantar tão importante.
— Bom, nos vemos de noite então.
Pego tudo o que vou precisar. Despeço-me das duas e escapo o mais
depressa possível. Roman é o cara das festas e do flerte, eu sou pragmático e
direto. Se algum dia Elena vier a dividir a cama comigo, seja esta noite ou
não, será dentro dos meus termos.
***

Palliermo pode ser apenas um rapaz, mas seus projetos são ambiciosos.
Construir um hotel dourado, chamativo e moderno no centro da capital
histórica foi uma estratégia brilhante.
Assim que atravesso o grande portal ornado com flores de ouro, sou
recebido por duas recepcionistas que me reconhecem de imediato.
De certa forma, meu olhar já se habituou à ostentação. Ao analisar o
interior do prédio, uma pessoa comum ficaria deslumbrada com os detalhes
entalhados nas paredes ou com o gigantesco lustre de cristais no meio da
recepção. De fato, meu lado empreendedor visualiza os lucros e os pontos
positivos desse hotel, mas isso não me faz perder o fôlego.
— Aqui está o seu cartão, senhor Volkiov. Seus aposentos estão
esperando pelo senhor.
— Não quero ser incomodado, dispense todos os serviços de quarto,
ligações ou visitas.
— Sim, senhor. — Ela me entrega o cartão magnético, executa uma
reverência atípica e se retira junto com outra mulher.
Claro que Tatiana teria reservado a melhor suíte, praticamente uma
casa.
No quarto, dois conjuntos de vestimentas adequadas para o evento
repousam cuidadosamente sobre a cama. Ao menos a decoração dentro das
instalações não reproduz o amarelo cintilante da área externa.
Trabalho por mais duas horas, sozinho, em silêncio. Poucas sensações
me dão mais prazer do que a combinação entre os três: trabalho, solidão e
silêncio. Quando o horário do jantar se aproxima, resolvo tomar banho para
me arrumar, prevendo que a noite vai ser longa, chata e cansativa.
Saio do banheiro sem a cautela que procuro ter na mansão. Puxo a
toalha da cintura e coloco ao redor do pescoço enquanto analiso as duas
gravatas, mas escuto um sinal semelhante ao que a porta emite quando
passamos o cartão para entrar no apartamento.
Estranho.
Caminho devagar pelo corredor que me guia de volta para a porta
principal. Para minha surpresa, uma mulher vestida com o uniforme do hotel
está parada no meio da sala, segurando um conjunto de lençóis limpos
debaixo do braço direito, enquanto revira produtos de limpeza dentro do seu
carrinho de materiais com a mão livre.
— Me duele tanto recordar, me duele tanto el corazón — cantarola
baixinho, movimentando os quadris curvilíneos no ritmo da melodia.
É um belo movimento.
Por ímpeto, levo os dedos até a tolha para impedir um incidente
constrangedor, mas é nesse momento que ela ergue a cabeça e recua ao se dar
conta da minha presença. Em momento algum desvia o olhar, mas o
assombro em seu rosto lívido demonstra a surpresa de vislumbrar meu corpo
completamente despido.
A forma como seus olhos curiosos vasculham a extensão do meu torso
é intrigante. Ela abre os lábios, visivelmente chocada. Processa devagar o
contexto e balbucia uma frase ininteligível antes de finalmente dizer:
— Eu estou impressionada. — Sobressaltando-se, emite um ruído com
a garganta. — Ferrada! Eu quis dizer que estou ferrada! — Desnorteada,
recua e acaba esbarrando na mesa de centro. Vários objetos caem no chão,
mas o tapete felpudo os protege da queda. —¡Mierda!
Ela joga os tecidos sobre o sofá, abaixa-se e começa a reorganizar sua
bagunça. A touca, que completa o conjunto padrão com o logotipo dourado
do hotel estampado na frente, escorrega à medida que seus movimentos se
tornam mais frenéticos, e um longo cabelo negro desliza sobre suas costas,
brilhantes e chamativos.
Não há um crachá de identificação em seu uniforme.
— Quem é você? — Retiro a toalha dos ombros devagar. O
constrangimento me agrada, pois vem acompanhado de um interesse que ela
não consegue disfarçar.
Rodeio meu corpo com o tecido, faço um nó na lateral e apoio as duas
mãos na cintura. Ajoelhada no chão, a mulher desconhecida me encara de
baixo com seus globos oculares grandes moldados por longos cílios escuros;
é uma porra bem sensual, não posso negar. Sua beleza exótica é chamativa,
sobretudo enquanto umedece os lábios com a língua.
Capto o subir e descer de sua garganta ao engolir a saliva, um indício
do nervosismo. Ela faz uma careta para si, como se estivesse em uma espécie
de conflito interior. São várias expressões em poucos segundos, antes de
disparar, cheia de energia:
— No sé hablar em ruso. — Utiliza um idioma familiar, soa como
alguma língua latina. Fica de pé, abraça os panos amarrotados, dando de
ombros como se não me compreendesse.
Mas que cara de pau!
— Você não pode fingir que não endente, estava falando em russo há
menos de dois minutos — protesto. Ela revira os olhos e bufa. Não acredito
na sua falta de discernimento. — Qual é o seu nome?
— Eu tenho uma ideia! — sugere com os dedos indicadores apontados
para o alto, gesticulando como um maestro na frente da orquestra. — Você
esquece essa história de nome, eu esqueço que vi você peladão, vou embora e
todo mundo fica feliz.
Meus lábios acabam me traindo e formam um sorriso humorado. Essa
menina é louca? Se o seu objetivo era escapar da indagação, só serviu para
aguçar meu interesse.
— Seu nome — exijo — ou eu vou chamar a gerência. Você escolhe.
SERENA

DIZEM QUE O cérebro da gente revive as memórias mais especiais da nossa


vida quando estamos prestes a morrer, mas tenho certeza de que meu coração
se encontra a caminho de uma parada cardíaca e tudo em que consigo pensar
é no quanto odeio toalhas. O mundo seria um lugar mais feliz se elas apenas
não existissem.
Céus! O homem aparece assim, do nada, no auge da liberdade como se
fosse o próprio Adão no jardim do Éden... Fica difícil raciocinar sobre
qualquer outra coisa quando se tem o fruto proibido balançando na nossa
frente!
Posso ser virgem, mas de santa não tenho nem a raiz do cabelo. Não é
como se desconhecesse a aparência de um homem nu, porém, os poucos que
tive o desprazer de analisar tão de perto sequer podem ser comparados com o
sujeito desconhecido na minha frente.
Mas, como tudo na vida possui um lado bom e outro ruim, esse mesmo
indivíduo, que faria muita inveja em Michelangelo e sua escultura máscula e
igualmente despida (porém bem menos dotada) de El David momentos antes
de enfrentar o poderoso Golias, se tornará o causador da minha nova
demissão.
Agora sim, acho que bati o recorde.
Para piorar, a tentativa de esconder os membros inferiores — todos os
três — com a toalha, foi uma estratégia ineficaz; ele continua a manifestar o
mesmo impacto visual causado pela primeira impressão.
Minha mente faz um giro de trezentos e oitenta graus, revendo os
últimos eventos que culminaram em tamanha situação improvável. Por obra
do destino, havia realmente uma seleção em andamento para a contratação de
funcionários temporários no hotel dourado. Mas, além da vaga como
garçonete no jantar beneficente promovido pelo dono do hotel, consegui
substituir uma camareira que faltara o trabalho por motivo de doença.
O problema é que alegria de pobre dura pouco, e quando eu nasci
alguém decidiu que a minha vida seria como um eterno acidente entre dois
veículos dirigidos pelo cúmulo da pobreza e o cúmulo do azar,
respectivamente. Uma catástrofe completa!
Quer saber?
Que se dane!
Um homem pelado, maravilhoso e todo trabalhado na testosterona, é de
longe o menor dos meus problemas, por mais que esse emprego tenha servido
para reerguer as minhas esperanças.
— Então, vai se fingir de muda agora? — pergunta com os braços
cruzados na frente do tronco, os músculos flexionados exaltando sua boa
forma.
Russos e o mau humor de sempre.
— Tudo bem, já entendi. — Coloco os lençóis de volta no meu
carrinho de equipamentos; demoro mais que o necessário, para ganhar tempo.
— Só não me sinto confortável, levando em consideração que você vai me
denunciar para a gerência.
— Bem, você acabou de me ver completamente sem roupas, o mínimo
a se fazer para consertar essa situação é me dizer o seu nome.
Na minha linha de raciocínio, só ficaríamos quites de verdade se ele me
visse da mesma forma, o que soa como uma ótima ideia. ¡Dios mío! Eu vou
para o inferno! Sou uma péssima virgem, a convenção das virgens puras e
ingênuas — se é que isso existe — teria vergonha de mim. Nem nesse quesito
consigo manter a dignidade.
O bonitão pigarreia para chamar a minha atenção. Inclina o rosto para o
lado, um divertimento reluzindo dentro de suas íris azuladas. Merda, será que
falei em voz alta?
— Eu disse alguma coisa? — indago, é melhor confirmar.
— O quê? — Faz uma careta, coça o cabelo molhado com uma das
mãos grandes.
— Nos últimos dez segundos, eu falei alguma coisa? Por que isso seria
realmente constrangedor e eu tenho esse costume chato de falar em voz alta
tudo o que estou pensando, principalmente quando fico nervosa. — Gesticulo
com as mãos para conferir mais credibilidade à minha confissão.
— Isso significa que está tendo pensamentos constrangedores agora?
Ah, madrecita de las das virgenes en apuros, seria demais pedir por um
pouco de vergonha na cara? Ele ainda não entendeu que eu nasci sem filtro?
— Você já se olhou no espelho? — ironizo, outra vez traída pela minha
língua gigantesca. — Porque, assim, estranho seria se eu não os tivesse. Não
me leve a mal, mas sou completamente contra o nascimento de pessoas
bonitas assim. — Aponto o indicador somente para o rosto dele, pois
considerar o conjunto completo seria covardia. — Vocês gastam o estoque
divino de beleza e tornam as discussões sobre padrões de beleza totalmente
injustas e desreguladas.
— Deve ser um grande problema para você, já que também se enquadra
nessa categoria — emenda, cheio de charme.
Ele está flertando comigo ou eu estou bem louca?
Louca, absolutamente.
— Qual? — gargalho, só pode ser piada. — Minha categoria é só uma:
a de pobre. O resto não importa.
O monumento em forma de homem estreita os olhos, analisando-me,
estudando-me, enxergando-me. Não sou idiota de fingir inocência diante do
que vejo lá dentro, a maneira como se detém na minha boca e desce ao longo
do corpo. Existe uma coisa chamada autoestima que tenho aos montes, e que
só é refreada por causa da pobreza.
Há um cheiro característico pairando no ambiente. Espuma de barbear,
talvez, ou colônia masculina com notas de âmbar e canela que combinam
com a atmosfera.
É a primeira vez que entro em um quarto de hotel cinco estrelas,
sobretudo um tão renomado, mas chamar esse imóvel de quarto é, no
mínimo, um eufemismo ou algum tipo de blasfêmia.
Atrás do hóspede desconhecido, as janelas foram ocultadas por longas
cortinas cinzentas que reprimem o belíssimo entardecer da capital. A
decoração é moderna e minimalista; todo o piso foi revestido com um carpete
de veludo carminado e arabescos florais se distribuem ao longo de todo o
chão. Em contrapartida, candelabros com velas artificiais foram dispostos em
pontos estratégicos, deixando a iluminação mais sombria e sedutora.
— Continua se esquivando da minha pergunta — constata. Sua voz
rouca reverbera dento do meu estômago, os olhos nunca me libertam. Ele faz
um movimento amplo com os braços, indicando o aposento. — Por que você
não começa a fazer o seu trabalho enquanto discutimos a situação?
— Ou eu poderia apenas me retirar. — Ele nega com a cabeça,
decidido e um pouquinho ameaçador. — Tudo bem, eu me rendo. Só preciso
repor as roupas de cama no armário do quarto e as toalhas de banho.
Pego todo o material pela terceira vez, mas o indivíduo não se move.
Fica me observando de longe, atento a cada movimento que executo. O
silêncio nunca foi meu aliado, em circunstâncias extremas é preferível dizer
coisas sem sentido do que sucumbir ao passar mudo do tempo.
Caminho até o pequeno corredor, empurro a porta do quarto e me
deparo com um aposento cinco vezes maior do que meu apartamento inteiro.
Dois conjuntos de terno estão esticados em cima da cama, uma gravata
diferente para cada um se estende ao lado.
— Qual você prefere? — Outra vez aparece do nada. Pior do que
fantasma esse sujeito! Evito olhar para ele com medo de que meus olhos
migrem para baixo, na região protegida pela toalha de algodão importado. —
A preta ou a cinza?
— A preta, com certeza — opino, rezando para ele não notar o meu
rubor. — Com o conjunto preto de preferência, você vai ficar parecendo um
agente secreto.
Por algum motivo, ele começa a rir outra vez. Deve me achar muito
engraçada, ou estúpida, ainda mais vestida com esse uniforme cafona e mais
brilhante do que as joias da coroa britânica.
Abro as duas portas do armário e realizo meu serviço. No banheiro,
acomodo duas toalhas macias em um compartimento próprio, mas não deixo
de apreciar os espelhos embaçados por efeito do banho recém-tomado.
— Por que não quer dizer o seu nome? — pondera assim que retorno,
mas seu tom e postura estão menos opressores do que antes.
Passo por ele e finjo não ver como vira o pescoço para me acompanhar,
os olhos em chamas, um sorriso másculo e predatório no rosto, gostando
desse jogo tanto quanto eu.
— Eu estaria assinando a minha sentença, não? Se souber o meu nome,
vai ter o que precisa para me entregar à gerência.
— Não vou submeter uma reclamação — insiste, usando termos
formais. — Mas você é uma funcionária sem identificação que invadiu o meu
quarto, isso seria o suficiente para que eu processasse o hotel.
Misericórdia!
— Está vendo? É disso que eu tenho medo: processo! Estou apenas
fazendo uma substituição, por isso não tenho um crachá. E, se você não
pretende me ferrar, por que quer saber o meu nome?
— Bem, eu… acho que não tenho uma resposta para isso. — Ele se
encolhe; a região das clavículas, logo acima do peitoral delineado, assume
uma coloração rubra. É a primeira vez que um homem fica corado na minha
frente e minha face acaba esquentando também. — Me desculpe, não fui
conveniente.
— Tudo bem, me desculpe por ter entrado sem conferir o aviso na
porta. Me informaram que não haveria ninguém antes das dezesseis horas —
explico com os olhos fixos na estampa do carpete enquanto caminho de volta
para a sala de entrada.
Preciso sair daqui bem depressa.
— Aconteceram algumas coisas e eu precisei vir mais cedo —
esclarece sem deixar de me seguir. — Eu realmente não me sinto confortável
por não saber o seu nome depois de…
— Olha — eu o corto com o tom firme. Apoio os punhos na cintura e
junto forças do além para sustentar o olhar do pecado de gente sobre mim,
mas eu queria mesmo era sustentar outra coisa. — Foi um acidente, você não
teve culpa nenhuma. E, no final das contas, é só anatomia, certo? Uma bela
anatomia, você está de parabéns! — Balanço a cabeça; não era nada disso o
que eu pretendia falar. — Que tal um apelido? — proponho, já que ele não
parece disposto a desistir e eu devo estar quebrando umas vintes regras do
hotel só por continuar conversando com um hóspede pelado, sozinha em seu
quarto.
— Um apelido? — questiona, nada convencido. Pela pouca experiência
que tenho com pessoas ricas, eu diria que não está acostumado a ser
contrariado.
Mas eu não presto mesmo, que diferença faz?
Tive um apelido uma vez, uma palavra carinhosa escolhida por um
grande amigo, mas que na boca deste homem deve soar como uma
profanação. Há muitos anos ninguém me chama dessa forma, seria
maravilhoso aproveitar a oportunidade para descobrir como é a pronúncia nos
lábios de um homem tão gostoso.
— Conhece alguma palavra em espanhol? — investigo.
— Não, nenhuma. Inclusive, tenho tido alguns problemas com essa
língua. O que isso importa?
— Podemos tentar uma coisa? Que tal me chamar de… Corazón?
— Co… Corazón? — Ele testa com um sotaque desconcertante e
quente, fazendo soar como “Curaxon”. É diferente de quando aquele homem
dizia, afinal, o carinho existente entre nós não exalava a tensão sensual que
rodeia esse homem. — O que isso significa?
— Você não vai querer saber! — Um riso nervoso me escapa. Por
causa disso que continuo perdendo empregos. Destravo as rodas do meu
carrinho e começo a sair antes que algum superior descubra que estou aqui.
— Um grande amigo costumava me chamar assim, é só um apelido
carinhoso.
— Costumava? Não chama mais? — Ele se curva sobre o sofá e seu
corpo desaparece atrás do encosto, mas os braços flexionados projetam os
músculos rígidos.
Não lembro de ter conversado tão abertamente com alguém assim
antes, mas a voz dele, o timbre grave e rouquenho, me hipnotiza. Não saber
sua identidade e a certeza de que desconhece tudo sobre mim me deixa mais
confortável.
— Ele morreu — explico sem me aprofundar.
— Sinto muito.
— Já faz muito tempo. — Dou de ombros, procurando as chaves no
bolso da calça dourada, mas essas portas multimilionárias não precisam de
coisas antiquadas como fechaduras. Basta apertar um botão.
A vida é como um botão, ele dizia. Irônico.
— Obrigado pela conversa. Foi… interessante.
— Você precisa de um apelido também — sugiro, no fundo ainda não
desejo encerrar o encontro inesperado. Estico o dedo e aciono a porta, que se
abre após emitir um ruído eletrônico.
— Corazón — chama. Um arrepio percorre toda a extensão do meu
corpo, sobe a partir do dedo até alcançar o ponto mais alto da minha coluna;
essas ideias ruins um dia ainda me levam para o túmulo! — Eu me chamo
Vladimir.
Vladimir.
— É um bom nome — brinco, anestesiada pelo choque de sensações.
— Mas ainda vai precisar de um apelido.
Finalmente, saio do quarto e fecho a porta sem espiar através da fresta.
Posso ter experimentado muitas loucuras nada habituais ao longo da minha
vida, do tipo que humoristas ao redor do mundo adorariam encenar em cima
de um palco, mas nada comparado a hoje.
Presenteio-me com alguns minutos para acalmar as palpitações no meu
coração.
O dia ainda nem acabou e eu acho que já perdi uns dez anos de vida.
Empurro toda a bugiganga até o elevador de empregados, feliz por
terminar todos os afazeres dentro do prazo estipulado. O primeiro turno não
foi tão difícil, já que a maioria dos quartos mal havia sido tocado. Ao chegar
no meu destino, vou direto até o depósito para guardar o equipamento e
despejo os lençóis usados no alçapão da lavanderia.
— Ragazza! — Meu patrão temporário aparece com alguns papéis, e
meus olhos instantaneamente reviram para cima. Leonel Palliermo foi minha
salvação ao aceitar a candidatura de uma simples desempregada sem grandes
referências, mas seu comportamento invasivo conflita com minha paciência
limitada. — Já terminou o expediente? Uau! Se continuar assim, terei que
manter você definitivamente ao meu lado.
Sua escolha de palavras me incomoda, mas ainda não descobri se existe
alguma ingenuidade por trás do cabelo vermelho e moderno, dos olhos
escuros e do falso sotaque — ele claramente não cresceu na Itália, por mais
que sua árvore genealógica tenha raízes no país do vinho.
— Obrigada, senhor Palliermo.
— Sei que está passando por alguns problemas. — Ele se aproxima,
segurando a ponta do meu cabelo com sua mão boba. Era só o que me
faltava. — E ficarei muito feliz em ajudar.
— Já está ajudando mais do que o necessário. — Desvio com o meu
melhor sorriso. Não vou correr o risco de perder uma noite proveitosa de
trabalho por suspeitar que meu patrão seja um imbecil bonito.
— Você chegou aqui tão desesperada — continua, vomitando seu flerte
barato. — Fiquei comovido.
Sei bem que tipo de comoção ele sentiu, e em quais partes do corpo.
Por que é tão difícil ter um único dia normal na minha vida? Sem belíssimos
homens pelados e gentis aparecendo do nada, ou babacas idiotas que se
aproveitam de mulheres em situações de fragilidade? Aliás, dispenso somente
a segunda opção, pois Vladimir mostrou o seu valor com aqueles trejeitos
cheios de classe.
— Bem, obrigada! — cantarolo com os dentes cerrados. Esse riquinho
metido a galante não vai estragar o meu humor. — Estou indo agora! Volto
na hora do jantar.

***

Azul.
Admiro a coloração anil do céu, o cruzamento entre o azul escuro da
noite com o laranja-avermelhado do pôr do sol, formando uma degrade azul-
arroxeado contagiante. Essa sempre foi a minha cor preferida.
No entanto, são as luzes do Kremlin que iluminam a cidade, capturando
a atenção dos turistas. Eu poderia passar horas e mais horas assistindo o
passar dos minutos nas ruas da capital, observando as pessoas e seus
comportamentos. Gosto de ver a vida acontecendo. Houve um tempo em que
sonhei poder viver disso, de ajudar os outros, de conhecer o mundo através
das suas histórias. Se fazer algo útil para o mundo.
Mas coisas como sonhos e planos não são para mim. O que importa é o
hoje, e ele tem sido bem ordinário, para dizer o mínimo. Então sigo em frente
e uso o metrô para concluir o restante do meu percurso até chegar em casa.
Conseguir uma vaga em qualquer apartamento familiar nos limites do
distrito central é quase um milagre em qualquer época do ano. A localização
é a única justificativa para o valor absurdo que a síndica recolhe das
moradoras no início de cada mês, porque o tamanho de cada imóvel é bem
pequeno, até mesmo para os padrões russos.
O prédio tem três modestos andares que nunca devem ter sido
reformados desde sua edificação. Enquanto subo as escadas, a velha Ksenya
espia pela janela de seu apartamento se continuo sozinha. Finjo que não
perceber seu rosto curioso vigiando-me, apesar da vontade de lhe mostrar o
dedo do meio, e subo para o meu apartamento,
— Malévola! — grito assim que tranco a porta, preparando-me para um
ataque repentino. Jogo o molho de chaves em cima da mesa, já que a cozinha
é a recepção da casa, e chuto meus sapatos para um canto. — Cadê você, meu
amor?
Acendo a luz dos três pequenos cômodos que compõem a minha casa,
sem contar o banheiro. Os móveis já estavam aqui quando cheguei, por isso
apenas os objetos de decoração foram acrescentados aos poucos. De todos os
locais que morei desde a morte dos meus pais, esse é de longe o mais
adequado.
A casa no velho distrito nunca valeu grande coisa. Quando Camillo me
explicou que a casa estava no nome dele, desde antes de nossos pais
morrerem, juntei minhas coisas e parti em busca de independência. Não
suportava continuar naquele lugar, de qualquer forma, com os amigos de
Camillo entrando e saindo o dia inteiro, olhando-me como se fosse um
pedaço de carne.
Conviver com o medo de que um deles tentasse alguma coisa só não
era pior do que suportar aquelas lembranças.
No quarto, jogo-me em cima da cama, exausta. Poucas sensações são
tão prazerosas quanto a de relaxar após um dia de trabalho, mas um
amontoado preto e peludo cai em cima de mim, miando e ronronando com
seus olhos díspares cheios de julgamento.
— Não foi dessa vez, continue tentando. — Recebo um miado rouco
como resposta. Malévola é minha única amiga, e seu nome diz muito sobre o
nosso relacionamento.
Digamos que o temperamento dela é tão ruim quanto o meu.
— Conheci um gato hoje! — conto para ela. Minha gatinha endiabrada
é a única ouvinte que me suporta. — Não adianta me julgar. Ele estava
pelado, isso conta pontos a meu favor, não?
Malévola vira o rosto, balançando a ponta do rabo.
— Vladimir — saboreio o belo nome. — Ele deve ser podre de rico,
estava na suíte presidencial. A mais cara, em um hotel cinco estrelas que, por
acaso, é meu atual ambiente de trabalho. Misericórdia, onde eu estava com a
cabeça?
Malévola ronrona e abaixa o corpo para que eu acaricie seus pelos.
Não gosto da solidão, ela nunca foi minha aliada. Espero conseguir
arrumar minha vida em algum momento, desfrutar das experiências que o
mundo tem para oferecer, como a de me apaixonar por alguém, entregar o
meu corpo — embora as duas não dependam uma da outra para mim. Ando
tão desesperada que daqui a pouco vou atacar um pobre coitado no meio da
rua.
Era bem mais fácil controlar meus sentimentos naquele tempo. Eu não
precisava estar tão atenta a mim mesma, porque havia alguém para me dar
apoio, segurar a minha mão e dizer que tudo ficaria bem.
Suspirando, levanto-me, abro a gaveta da cômoda e retiro algumas
blusas até encontrar a velha fotografia de nós dois. Por causa daquele
Vladimir, acabei recordando de uma época que me confunde. Na foto,
estamos abraçados em um banco de ferro fundido no meio do Jardim de
Alexandre.
Eu, muito jovem e descabelada com meus dezessete anos, e aquele
homem robusto e atencioso que me ajudou no pior momento.
— Desculpe, Serena, mi doce Corazón. — Leio um trecho do que está
grafado no verso, passando os dedos sobre a letra cursiva escrita com o
próprio punho do meu salvador. Logo abaixo, completo: — De Nicolai. —
Malévola se aproxima devagar, senta-se na minha frente e faz a sua mágica:
fica ali, olhando, confortando-me. — Eu sei querida, faz muito tempo.
VLADIMIR

CONFIRO AS HORAS no relógio de pulso, minha paciência se esvaindo


cada vez mais à medida que o ponteiro dos segundos completa seu percurso
rumo ao número doze. Pontualidade é uma virtude, mas, como qualquer
qualidade, se restringe a um número limitado de pessoas. Elena Kokorina
definitivamente não faz parte desse número.
Nos confins do hotel dourado de Leonel Palliermo, o primeiro concerto
de Brandemburgo reverbera através de corredores e ornamentos lustrosos,
com hóspedes e convidados a exibir suas roupas clássicas e igualmente
chamativas como se estivéssemos em um baile retrógrado do século passado.
A pior parte de cumprir com as obrigações de um presidente é me
submeter a tais formalidades desagradáveis e seus protocolos de etiqueta.
Do sofá na recepção, consigo escutar o barulho das câmeras
fotográficas impacientes na entrada, capturando a imagem ideal de todos os
convidados que chegam através das imensas escadarias principescas.
Aproveito o tempo vago para conferir nossas ações, a cotação do dólar
e do euro, os impactos da economia no rublo russo. Retiro meu celular do
paletó, porém, quando estou no meio das pesquisas, minha mente volta a ser
preenchida com a lembrança do que aconteceu mais cedo.
Aquela funcionária realizou uma proeza que pouquíssimas pessoas
conseguiram até hoje. Ela me desarmou. E eu gostei.
Corazón…
Pesquiso por um tradutor online, mas hesito antes de digitar, sentindo-
me muito imaturo. Baixei a minha guarda com uma desconhecida, e erros
amadores como esse são inadmissíveis para um homem que carrega a
identidade do sobrenome Volkiov nas costas.
Mas ela não sabia quem eu era, ou sabia? Droga.
Deixei-me levar por seu riso fácil, a espontaneidade ingênua, as feições
engraçadas e autênticas. Sem mencionar a beleza incomum, os olhos
marcantes, expressivos e grandes no rosto desenhado com linhas finas, a
forma como seus lábios faziam convites inocentes e eróticos ao mesmo
tempo. Acredito que nem se deu conta das próprias insinuações.
Minha blindagem é protegida com cadeados e bolas de ferro que me
prendem à cadeira que um dia pertenceu ao meu pai, e meu prazer pessoal
jamais poderá se dissociar do que é melhor para a empresa.
Mas a curiosidade é inofensiva, não? Que mal há em sanar uma
dúvida?
Digito as letras e a resposta vem imediatamente, junto com uma
emoção diferente, divertida e leve.
Coração? Ah, a espertinha me passou a perna, aposto que está rindo
agora por me fazer chamá-la usando um apelido tão íntimo. Não deve mesmo
saber quem eu sou, ou jamais se atreveria. As pessoas não me desafiam
descaradamente assim. Fui feito de bobo com uma coisa tão pequena...
— Você está rindo. — Elena se inclina sobre mim para bisbilhotar a
tela do celular. Não percebi que estava sorrindo, mas ela conseguiu matar
qualquer resquício de divertimento.
Guardo o aparelho e fico de pé. Acabei aderindo ao visual de “agente
secreto”, e prefiro não pensar muito no que esta escolha representa. Elena
exibe todo o glamour de uma jovem no auge dos seus vinte e poucos anos.
Seus cabelos trançados com flores azuis lembram uma bonita cascata, mas
quando combinados com o vestido rodado e cheio de pedrarias vermelhas que
está usando, transformam o conjunto em uma escolha berrante.
— Você está atrasada — pontuo. Estico o cotovelo e ela entrelaça seu
braço no meu.
A parte de trás do vestido de Elena possui uma cauda — céus! — e
suas pernas ficam à mostra na frente. Os olhares estupefatos das mulheres
mais maduras não abalam minha acompanhante, tampouco os furtivos
olhares masculinos. É um ponto positivo. Seja lá a mulher que estiver ao meu
lado, o ideal é que não se deixe abalar por convenções.
— As pessoas estão nos olhando — cochicha melodicamente,
apertando-se contra mim enquanto nos aprofundamos no salão. O contorno
na lateral dos seus seios se molda na curva do meu braço tão naturalmente
que me pergunto se é de propósito. — Acho que formamos uma bela equipe.
Elena diz a verdade, estão nos observando e suspeito que amanhã
estamparemos a primeira página de algumas revistas eletrônicas de fofoca.
— Como vai ser? — murmura baixinho, acenando para um grupo de
senhores que conversa em uma das extremidades do salão, próximos às
sacadas, onde a festa continua.
— O quê? — indago, igualmente baixo.
— Como vamos nos apresentar? Eu sei que me convidou por educação
e em respeito ao meu avô, mas você é o presidente! — A última palavra sai
um pouco esganiçada, eufórica. — Não quero que passe vergonha.
De esguelha, analiso Elena. O teatro de menina inocente é perigoso,
mas muito difícil de ser identificado. Posso não ter certeza do seu caráter,
mas não a julgo caso esteja dando início ao jogo de poderes assim, tão
depressa; é somente algo com o qual não gostaria de lidar hoje.
— Falaremos a verdade. Que você é minha acompanhante e está
estagiando na minha empresa.
— Claro! — Ela solta uma risadinha, morde o lábio rosado e desvia o
olhar. — Vovô ficou muito feliz quando soube que tinha me convidado. Ele
anda preocupado por causa do clube, mas eu o tranquilizei. A Corporação
Volkiov é tão acolhedora que sinto como se fôssemos da mesma família.
É muito diferente, penso. Minha relação com os funcionários é regrada,
misturar trabalho com relacionamentos nunca termina bem. Mas meu lado
interesseiro assume o controle e Elena é minha melhor aposta com o velho
Kokorin. Ao menos até encontrar Serena Fajardo e entregar o dinheiro que
for em troca daquele lote, terei que suportar as investidas — e decidir se levo
isso adiante.
— Claro, quase da família. — Paro de andar, deslizo o polegar em sua
maçã do rosto. O gesto a pega de surpresa e seus olhos brilham de felicidade.
É preciso tão pouco para agradar esta menina. Pouco demais.
Continuamos com as formalidades, passando por grupos que nos
assaltam com perguntas indiscretas e piadas sobre dinheiro. Entre uma volta e
outra, uma cena captura a minha atenção: Leonel, parcialmente escondido por
um grande vaso de flores silvestres, conversa com uma funcionária. Embora
sua atitude me pareça muito suspeita e inadequada, é na mulher que meus
olhos se fixam.
É ela.
— Presidente! — exclama Leonel ao nos perceber por perto. Abre os
braços e vem na nossa direção, cumprimentando Elena com dois beijos no
rosto. — Che bella donna!
Minha acompanhante abre um sorriso radiante ao escutar o elogio na
língua italiana, porém, enquanto os dois se cumprimentam, meu interesse
maior focaliza na expressão de outra pessoa.
Corazón morde os lábios tingidos com um vermelho tão vivaz que me
remetem à coloração do sangue, segurando a risada. Nossos olhos se cruzam
e ela indica Palliermo com o maxilar, depois revira os olhos e aponta o dedo
indicador para dentro da garganta, como se estivesse com ânsia.
Maldição, não me faça rir agora!
— Esta é Elena Kokorina, minha acompanhante. — Ignoro a
brincadeira e forço um diálogo com o anfitrião. — Elena, este é Palliermo.
— Palliermo! — exclama com um gritinho agudo. — Meu avô falou
muito sobre você. O jantar está incrível. Eu e Vladimir estamos nos
divertindo muito!
Mentirosa, gosto disso.
Sorrateiramente, no entanto, Corazón esconde a risada outra vez e tenta
sair despercebida, mas sem sucesso. Leonel vira de repente e segura seu
pulso. Ela faz uma careta, juntando as sobrancelhas. Não esconde a
insatisfação e, por algum motivo, a cena também não me agrada nem um
pouco.
— Bambina, pense no que eu falei — diz para ela.
— Eu conheço você de algum lugar? — Elena se intromete entre os
dois, tamborilando o dedo indicador no queixo e fazendo um beicinho
inocente. A forma como olha para a moça tem um tipo de interesse sombrio.
— Já nos vimos antes? Acho que lembro de você de algum lugar, não?
— Isso é impossível — responde, puxando o braço para se livrar do
toque de Leonel. Seu rosto empalidece pelo menos três tons e outra vez
procura a minha atenção antes de se virar. — Se me derem licença.
— Não liguem — Leonel intervém — ela ainda está se adaptando.
— Funcionária nova? — investigo, sem transparecer interesse demais.
Eu poderia perguntar o nome dela, ele deve saber, mas, além de inadequado,
seria ridículo. Não é como se fosse algo importante.
— Pode-se dizer que sim. — Leonel sorri com malícia, minando a
minha vontade de negociar com ele.
Mas que pensamento é esse? Estou aqui pela empresa.
Elena não desvia os olhos enquanto a astuta desconhecida foge, mas
seu interesse só dura tempo o suficiente para a moça desaparecer na multidão.

***

Elena aluga a minha cabeça, contando uma história sobre seu


desentendimento com uma atendente que teria, nas palavras dela, roubado
seu dinheiro e a agredido com um copo de suco. Imaginar a cena quase torna
a noite suportável.
O problema é que a minha mente foi parar em algum lugar no espaço e
mais de uma vez tenho a atenção capturada por garçonetes que vêm nos
servir apenas para constatar se não é ela.
Acabamos em uma mesa junto com rostos conhecidos. Um banqueiro
que diz ter sido amigo de Andrei na faculdade, alguns velhos que babam
gracejos sobre investimentos, além do próprio italiano imbecil, que fica
muito feliz quando menciono o interesse em negociar com ele em breve.
É quando o pior acontece. O assunto que mais evito, o principal motivo
que me faz detestar este tipo de convenção, vem à tona: o presidente. Não eu,
mas o verdadeiro. O idolatrado e poderoso Nicolai Volkiov.
A esta altura da noite, um tiro seria menos doloroso.
— Eu me lembro do seu pai. Nicolai Volkiov era um touro! — brada
um empresário da Romênia. Ergue o copo e bate a mão livre sobre sua
enorme barriga redonda.
— Acho que nunca me contou como seu pai faleceu. — Elena arrasta
sua cadeira para mais perto, piscando intimamente.
— Não gosto muito de falar sobre isso — explico, sem me prolongar.
Se eu a levasse de uma vez para o quarto, poderíamos dar a noite por
encerrada. Acho que prefiro-a com a boca fechada.
— Bom, já faz tanto tempo, não é? — continua. — Quantos anos você
tinha? Vinte e quatro? Vinte e seis? Praticamente um menino. Deve ter sido
horrível.
— Coração fraco! — esclarece outro senhor, suspirando com veneração
à memória.
— Coração fraco, com certeza! — concordo. O sarcasmo não passa
despercebido e trato logo de consertar. — Ataque cardíaco, foi uma
fatalidade.
Viro um copo cheio de vodca, a bebida dos bons apreciadores russos. É
um ótimo escape para suportar mais alguns minutos dessa conversa de merda.
— Meu avô fala muito bem do seu pai, os dois eram grandes amigos.
— Virando-se para os outros, Elena faz suspense com as palavras. — Ele
sempre conta sobre os projetos que construíram juntos depois que meu irmão
faleceu e ele precisou assumir a dianteira nos nossos negócios.
Já chega.
— Com licença, preciso de um pouco de ar. — Levanto-me da mesa,
cansado desse jantar. Já foi o suficiente, eu definitivamente não quero Elena
no meu quarto hoje. Preciso esvaziar a cabeça e então poderei me despedir de
todos sem correr o risco de parecer um bicho selvagem. — Fique aqui —
ordeno com uma sentença que não abre margens para contestação.
Minha fama é justa, eu a aceito. O presidente impiedoso, o demônio de
terno e gravata. Os sorrisos vêm quando necessário, mas a frigidez acaba se
tornando um mal necessário para alguém na minha posição. É assim que são
talhados os líderes na Rússia. Para ser o melhor, precisei aprender a como ser
o pior de todos eles.
Toda essa merda com o clube está me afetando mais do que deveria.
Encontro a saída para uma pequena sacada silenciosa e solitária, a vista
revelando um jardim carregado com flores vermelhas e amarelas que não
reconheço por causa da distância. Aproximo-me da beirada e aprecio a
pequena altura. Não é tão grande, mas suficiente para um estrago.
Sozinho, consigo pensar com mais clareza.
As emoções enfraquecem o homem, os sentimentos nos destroem. Por
isso, cultivo somente aquilo que consigo segurar entre os dedos; até mesmo
as melodias se transformam em instrumentos de enganação, palavras podem
ser profetizadas para confundir um coração vulnerável. Blindo-me contra
tudo o que tende a desvirtuar os interesses da empresa, e minha melhor
defesa consiste em atacar e eliminar as ameaças antes que se manifestem.
O problema é que existe um alvo pintado no meio do meu peito, um
grande e grotesco círculo tingido em tons de vermelho e branco, tornando a
minha destruição um efeito colateral inevitável. É isso o que acontece com
quem esconde segredos sombrios.
Escuto o barulho de passos aproximando-se, mas continuo com os
olhos fixos no sorriso lunar centralizado no obscuro céu sem estrelas, com
esperança de que a pessoa perceba a minha vontade de continuar sozinho.
— Sinistro — diz a voz inconfundível da estranha mulher que me
desconcertou mais cedo. Seu russo soa mais arrastado, melódico.
Desta vez, no entanto, não me deixo levar pelo fato de sermos
desconhecidos. Mesmo que ela supostamente não saiba o meu sobrenome,
continuo sendo o presidente da empresa mais influente da Rússia.
Por mais que eu esteja acostumado a fazer o que quiser com a minha
vida e não me importe que espalhem boatos a meu respeito, prefiro não
envolver outras pessoas em polêmicas desnecessárias, sobretudo
considerando o meu atual — e péssimo — estado de espírito.
Se eu desejasse tê-la em minha cama, a história seria outra.
— Você está me seguindo? — pergunto, sem lhe dirigir a atenção.
Rodopio a taça de vinho na frente do rosto, sentindo o odor frutado e cítrico
de limão fundido com o suco da uva.
— Sim, para falar a verdade. — Ela se aproxima mais, sem a empatia
necessária para respeitar meu espaço. — Eu vi quando veio nessa direção
com cara de quem poderia jogar alguém daqui de cima.
Corazón, ou seja lá qual for o nome dessa intrometida, coloca os braços
sobre a mureta de proteção, inclina-se para frente, apoiando-se com a barriga
para olhar o chão muitos metros abaixo. O movimento me deixa tenso, um
deslize é suficiente para desencadear uma tragédia.
— Poderia não fazer isso? — peço com os olhos fechados, suprimindo
a vontade de segurar sua cintura para impedir que continue pendurando-se
como uma criança irresponsável. Sua risada ecoa no espaço entre nós. — É
perigoso.
— Você está diferente — murmura. — Não estou julgando, meu bom
humor também não sobreviveria mais de uma hora ao lado daquela sua
mulher.
Suspiro, virando de lado para olhar diretamente para ela, que volta a
colocar os pés no chão.
— Agora, além de invadir a privacidade dos clientes, você também
resolveu insultar a minha acompanhante?
— Desculpe. — Ela pisca algumas vezes, franze o cenho, confusa com
minha mudança de atitude. — Eu só pensei que…
— Que tinha o direito de falar comigo? Só porque me viu pelado?
Muitas mulheres já me viram assim e pode ter certeza de que não mantenho
amizade com nenhuma delas.
Espero que seja o suficiente para pôr um fim aos nossos diálogos
inoportunos.
— Sorte delas então! — debocha. O batom vermelho ressalta a beleza
de seus lábios, capturam a minha atenção enquanto se movimentam para
formar cada palavra. Ela tem uma boca desenhada para testar os homens. —
O que você tem de bonito, tem também de arrogante! Acho que me enganei a
seu respeito.
— Era para ser um insulto? — Dou um passo para mais perto. Nossa
diferença de tamanho é gritante, mas o poder exalando de sua postura
confiante impacta as minhas barreiras.
— É um insulto! Definitivamente é um insulto. — Com o queixo
erguido, ela me enfrenta.
— Invade meu quarto, insulta minha acompanhante, me engana com
esse seu vocabulário espanhol esperto. — Arregalando os olhos, curva o
pescoço para trás cada vez mais à medida que me aproximo. —
Sim, Corazón, já descobri o que significa essa palavra.
— Vai me entregar para a gerência? — Ela morde o lábio e uma mecha
do cabelo pende na frente do rosto, enquanto o restante se esconde debaixo
da touca que faz parte do uniforme.
— Eu deveria. — Mas não vou, emendo em pensamentos, porque estou
adorando esta brincadeira.
Ela inspira profundamente, o peito sobe e desce em descompasse e seu
olhar me fulmina. Mas há outra coisa, um fervor desafiante. Somos apenas
nós outra vez, salvos do olhar de terceiros. Um resquício de sanidade me
alerta sobre os perigos de me deixar levar, mas uma partezinha egocêntrica da
minha mente deseja mostrar que ainda tem o controle, que não foi tapeada.
Meu lado malvado grita por um desfecho que me consagre vencedor.
Mas do que, exatamente?
— Viu só? Você é um cara legal. — Ela continua tentando amenizar o
clima. Seu corpo é contraditório: ao mesmo tempo que reage à minha
proximidade, também me alerta para as reações que ela causa em mim,
repelindo a ambos como polos iguais de um imã.
— Então quer que eu acredite que você não sabe quem eu sou? — Mais
alguns passos e estou diante dela. A proximidade com o corpo feminino,
somada com sua impertinência, enchem minha cabeça com péssimas ideias, e
a menina recua até perceber que não lhe resta mais saída alguma.
Parece que sou muito pior quando ninguém está olhando, e isso é
ótimo. Aquele Vladimir fraco, que chorou por noites a fio pela morte do pai,
pela culpa e revolta, não tem espaço neste mundo, e não é uma coisinha
abusada e intrometida que vai me colocar à prova.
— O idiota do Palliermo chamou você de presidente — arrisca, tensa,
tentando ver alguma coisa, ou alguém, sobre os meus ombros. — E está
hospedado na suíte mais cara desse hotel. Então, eu diria que, talvez, seja
mais um desses caras ricos que pessoas inteligentes devem manter distância,
o que faz de mim uma idiota — brinca. — Quer saber? É melhor eu voltar
para dentro, não deveria ter vindo. Só pensei em oferecer um ombro amigo,
tenho essa mania de me intrometer onde não fui chamada e sempre acabo me
ferrando.
— Talvez seja isso o que você deseja — insinuo sugestivamente,
apoiando as mãos na mureta e capturando seu corpo dentro do meu cativeiro
de braços. — Se ferrar um pouco.
Sou tomado pela vontade insana de prosseguir, de acuar, de levar
minha mão até sua nuca e assistir enquanto se desmancha com o meu toque.
Ela tem alguma coisa…
Os grandes olhos me avaliam, cílios escuros deslizam sensualmente
toda vez que pisca de forma lenta, cheia de cautela.
Eu deveria parar com essa merda!
— Seria maravilhoso, quem sou eu para mentir? — confessa. Nenhuma
parte do meu corpo toca o dela sem a certeza de que não estou ultrapassando
um limite, mas o calor de nossos corpos se confunde, minha mente cria
imagens tentadoras de como seria delicioso me apossar de toda essa rebeldia.
Talvez seja minha necessidade de controle, não há explicação plausível. —
Mas não sou uma interesseira — sussurra — e realmente quis ter certeza de
que não tinha me entregado para o meu chefe naquela hora.
— Então veio atrás de mim por causa do seu coração benevolente, para
oferecer ajuda, mesmo sem saber quem eu sou, e para se certificar de que não
contei sobre o nosso segredinho? — Ridículo, aposto que nem ela sabe por
que veio.
— Bem, de boas intenções o inferno está cheio, não? — provoca, ou
talvez esteja apenas brincado e o único a enxergar um desafio em seus
trejeitos seja eu. — Além do mais, eu posso acidentalmente ter jogado um
copo de mors na sua namorada, lá no meu antigo emprego, então pode
adicionar isso também nessa sua lista.
O quê?
Faço a conexão sobre o que Elena me contou antes. A coincidência é
absurda e me pego sorrindo.
— Você é tão… — Não completo a frase, não consigo. Quais são as
chances?
Ela passa a língua sobre a boca, deixando os lábios brilhantes, e,
mesmo sem prová-los, tenho completa certeza da maciez, do sabor doce.
Minha mente digladia com o resto do corpo. O homem mais rico e influente
do país brincando de poder com uma espanhola sem freios, eu não devo
mesmo estar em meu juízo perfeito.
— Isso é tão injusto — reclama assim que acabo com os poucos
centímetros que nos mantinham afastados um do outro, aproximando nossas
cinturas, encaixando-me em suas curvas. — Ter que fazer a coisa certa é uma
droga! — reflete voz alta consigo mesma, deixando-me ainda mais perdido.
— Me desculpa — choraminga, contorcendo o corpo em deleite com a
promessa das minhas carícias.
Desculpar… pelo quê?
A resposta vem em seguida. Uma joelha forte e certeira entre as pernas.
Utilizo todo o meu autocontrole para não gemer alto demais e minha cabeça
pende para frente enquanto me curvo, apoiando a testa na mureta de proteção.
Eu mereci essa, mas… puta que pariu, que dor infernal!
— ¡Lo siento mucho! — Ela me consola em espanhol, a língua do meu
azar, afagando as minhas costas. A mulher é doida; me bate e depois tenta
ajudar. — Eu juro que não queria fazer isso. Mas eu sou muito,
muito, muito boa em arrumar confusão e você está claramente nervoso com
alguma coisa, e isso é um chamariz para confusão. Ah, ¡mierda! — Continua
dando tapinhas no meu ombro, fazendo uma expressão de dor, ciente do que
estou sentindo no momento. — Desculpa por bater no seu… amigo.
Já chega.
— Corazón — chamo com o resto da minha dignidade. Ela para no
mesmo instante e, mesmo sem olhar, sinto que está sorrindo. — Só vai
embora de uma vez.
Antes que alguém nos veja ou que eu faça outra besteira.
Foram muitos deslizes para um dia só. Depois de hoje, só desejo
esquecer e me concentrar no que realmente importa. Tive minha cota de
espanholas para uma vida inteira! Além do mais, no que depender de mim,
não nos veremos outra vez.
Ela ainda abaixa para verificar o estrago, mas desiste assim que solto
um grunhido inapropriado. O som dos seus passos distanciando-se, contudo,
me trazem um desconforto estranho.
Mas é melhor assim. Essa loucura toda não pode fazer parte do meu mundo.
SERENA

— ISSO NÃO VAI funcionar, você não pode continuar me julgando! —


protesto para a presunçosa gata de pelos negros que me encara no ápice do
seu desdém, como se eu tivesse cometido algum crime. — Já faz mais de
uma semana, precisa superar. Eu sei que fui uma idiota, mas isso não é
novidade, devia ter se acostumado há muito tempo.
Malévola abre a grande boca, exibindo suas presas afiadas no meio de
um bocejo felino. Os olhos ímpares me acompanham, cheios de monotonia,
enquanto jogo peças de roupas sobre a cama em busca de um casaco quente
para trabalhar.
As tempestades primaveris findaram nas primeiras semanas da estação,
mas o clima russo continua sendo imprevisível e rígido. A janela do meu
quarto se debate por causa do vento assobiando no lado de fora e a chuva
intensa forma uma cachoeira na vidraça. Tudo o que eu mais queria era me
enfiar outra vez debaixo das cobertas e recuperar o sono perdido.
— Além disso, só considerei o beijar por um mísero segundo —
continuo o monólogo. Escolho um sobretudo preto e o coloco na frente do
corpo, depois analiso o resultado no espelho. — Biologicamente, seria
impossível não me sentir atraída. O cara é maravilhoso, elegante, com aquela
voz, aquele temperamento arrogante e misterioso, aquele tudo. A gente não
controla como nosso corpo vai reagir em uma situação daquelas. — Minha
gatinha vira-se de costas, ignorando meu falatório, mas isso não me impede
de continuar. — Além disso, eu não beijo um homem há séculos.
E ele deve ter um beijo maravilhoso.
Mas não! Meu alarme de imbecilidade à vista tinha que disparar justo
naquele instante e todos os conhecimentos que adquiri sobre autopreservação
pulsaram no fundo da minha mente. Não se tratava apenas de fazer a coisa
certa, mas de não me submeter aos caprichos de alguém que claramente não
tinha os sentimentos sob controle.
Aquele Vladimir é uma bomba-relógio e os segundos são mais
intolerantes quando contados na regressiva. Posso estar sendo prepotente,
mas no momento em que ele se levantou da mesa e fugiu com a expressão
devastada em busca de um lugar vazio, eu escutei o som; a melodia que a
vida compõe para as pessoas que dissimulam as próprias emoções é tirânica.
Já me deparei com aquelas mesmas notas musicais vezes o suficiente para
reconhecer quando entoada, e essa é uma habilidade que nunca trouxe
qualquer benefício para a minha vida.
— No fim das contas, foi melhor assim. Só mais um evento
constrangedor para a coleção.
Malévola levanta a cabeça, ergue o rosto peludo e pisca algumas vezes.
O azul do seu olho direito é claro e uniforme, mas o esquerdo faz lembrar
uma pedra de âmbar amarela e condensada; ambos não alteram a expressão
de desinteresse. Por mais que não entenda uma palavra do que eu digo, ela
percebe minhas nuances de humor.
— Além disso, consegui uma vaga fixa para trabalhar nos finais de
semana no hotel, e esse emprego vai fazer toda diferença na minha geladeira
e na sua vasilha de ração.
Agora sim ela parece interessada: solta um miado longo e manhoso.
Morta de fome!
Visto uma touca felpuda, finalizo com um belo batom vermelho e faço
carinho na cabeça da ingrata. Quando encontrei a figura dentro de uma caixa
de papelão no meio da rua, não imaginava que se tornaria minha melhor
amiga, ou que eu seria esse tipo de pessoa que conversa com os animais feito
uma doida.
Ao lado da cama, em cima da escrivaninha, a fotografia de Nicolai me
sorri. O cenário já desbotado do jardim contrasta com nossas roupas
inverneiras e quentes, mas o sorriso no rosto de ambos era cândido. Não
existe na imagem nenhum indício que denunciasse os eventos seguintes ao
nosso último passeio, nenhuma pista gritante para que o desfecho da nossa
amizade pudesse ser evitado.
Que ele me deixaria para trás.
— Você é outro idiota — digo para o retrato, que possui marcas de
dobras no meio. — Não pense que está perdoado só porque saiu da gaveta. —
Coloco minha bolsa no ombro e pego o guarda-chuva pendurado atrás da
porta. — Tantas maneiras de me chutar da sua vida, escolheu uma foto
antiga, um pedido de desculpas genérico e uma morte básica para completar.
Agora eu me tornei a tia solteirona e pirada da cabeça que conversa com
gatos e fotografias de pessoas mortas.
Vou direto para o inferno por fazer piada com essas coisas, mas é isso
ou aceitar que o vazio deixado por Nicolai ainda machuca.
A gente se conheceu logo após o falecimento dos meus pais, quando
um empresário muito rico comprou o prédio em que os dois trabalhavam e
começou uma obra sem verificar se a estrutura aguentaria o projeto. Metade
do teto desabou bem em cima dos escritórios e muita gente ficou ferida.
Minha mãe não teve chances, ela estava debaixo do contrapiso quando
tudo aconteceu, mas meu pai ainda ficou internado por três dias até os
médicos constatarem o óbito.
Com apenas dezessete anos, perder os pais em um acidente cujos
culpados nunca foram divulgados pela polícia e muito menos pela mídia
gerou em mim uma revolta nociva. Naquela época, aprendi uma importante
lição.
O dinheiro é como um medidor de força e, quanto mais se tem, maior
pode ser a capacidade de destruição nas mãos da pessoa errada.

***

Ao chegar nas ruas curvilíneas que antecedem o metrô, com o guarda-chuva


equilibrado contra o vento, me concentro para não cair dentro de uma poça.
Só uma coisa na Rússia é mais irritante do que o temperamento de certas
pessoas: o tempo.
No filme Dançando na Chuva, quando Don Lockwood faz sua icônica
dança de sapateado... na chuva, há quem associe a cena em questão à uma
metáfora da verdadeira felicidade — após beijar Kathy Selden, junto com a
sensação de sucesso na carreira, ele resolve comemorar dançando no meio de
um temporal. Sim, muito lindo, maravilhoso, mas… Bem, eu não sou essa
pessoa!
A carreira? Só despenca. Beijo? Nem no espelho. Chuva? Detesto. E
nem vou entrar no mérito da dança; um anão de jardim teria mais
coordenação.
Há poucas pessoas transitando para uma manhã de sexta-feira, mas o
horário de maior movimento só começa depois das sete horas, quando as
grandes empresas iniciam o primeiro turno e os pontos turísticos começam a
lotar com estrangeiros.
O buffet costuma subsidiar poucos eventos fora das datas
comemorativas mais famosas (o período entre o dia da Constituição da
Federação Russa, seguindo pelas festas de Ano Novo até chegarmos ao
Svyatki é mais movimentado) mas há sempre uma festa ou casamento que
garante alguns trocados extras pelo resto do ano.
Em meu rodízio de empregos, já trabalhei em todo o tipo de coisa,
desde secretariado à arte oculta das telefonistas de marketing. Começar tão
jovem no mercado de trabalho foi meu principal erro, sobretudo porque
nenhum empregador se compromete a registrar uma menor estrangeira e órfã.
Acabei me habituando às vagas temporárias e, desde então, é só isso
que tenho feito. Bicos e turnos dobrados para ganhar uma miséria.
Chego ao restaurante meia hora antes que os funcionários da cozinha.
Atravesso toda a lateral do edifício e sigo por uma viela que me leva para os
fundos do prédio, onde fica a entrada exclusiva de empregados. Geralmente
sou a primeira a chegar, pois a minha função acontece nos bastidores, mais
precisamente na seleção dos produtos naturais. Tédio somado com muitos
legumes e verduras picados para facilitar a vida de quem realmente entende
de culinária.
Diferente do que acontece nos outros dias, no entanto, há uma pessoa
parada na frente da porta, com os braços cruzados sobre o peito e a face
oculta na gola alta do casaco marrom.
A postura do sujeito faz com que meu corpo entre em alerta e eu paro
de andar. Não dá para ser otimista quando se está em um beco sem saída com
um desconhecido suspeito, ainda mais levando em conta meu histórico.
Minha vida parece um daqueles livros escritos por autoras malvadas
que gostam de torturar os personagens. Um dia, homens bonitos e pelados em
quartos de hotéis; no outro, indivíduos de caráter duvidoso em becos vazios.
Pensa, Serena!
As melhores opções envolvem correr ou gritar, preferencialmente ao
mesmo tempo. Dou um passo para trás, convicta em meus planos de fuga,
mas é nesse momento que ele decide agir.
— Não faz merda, Serena! — grita para ser ouvido por cima do barulho
da chuva. Abre a parte da frente do seu casaco, revelando um lábio com dois
piercings de argola e o nariz envergado para baixo.
Faz muitos anos desde quando abandonei minha antiga casa, mas
alguns rostos a gente nunca esquece. Maksim Loskov é um desses homens
que aparecem nas listas de procurados pela polícia durante o noticiário da
madrugada.
Mas não faz sentido…
Existe uma política interna que somente os moradores da região em que
cresci conhecem: Maksim não sai dos limites do distrito. Nunca. Se ele está
aqui, significa que meu irmão continua desaparecido mesmo após levar o
meu pouco dinheiro sem uma gota de piedade.
Sempre pode piorar.
— Não sei onde meu irmão está — explico de uma vez, escolhendo as
palavras para não falar nenhuma besteira. — E, se você veio atrás de
dinheiro, me procura quando encontrar, porque estou precisando também!
O nervosismo me compele a brincar para amenizar o medo, mas me
congratulo mentalmente pelo tamanho da idiotice. A feição dele se
transforma, franzindo as sobrancelhas em cima dos olhos cerrados, e pé ante
pé se aproxima.
— Cadê ele, Serena? — questiona, sua voz pneumônica saindo no meio
de um arquejo. — Só me diz de uma vez, tudo bem? Encontrar você foi a
porcaria mais estressante que eu já precisei fazer na vida e a minha paciência
já está no limite, entende? Então libera, docinho. Eu saí do distrito para
resolver essa situação e não vou voltar sem o seu irmão ou o corpo de alguém
no porta-malas.
Estico as duas mãos na frente do corpo para manter uma distância
segura entre nós, considerando que a minha percepção espacial — que é uma
vergonha por natureza — pode não funcionar muito bem devido ao
nervosismo.
— Maksim — o chamo pelo primeiro nome —, vamos só conversar,
tudo bem? Nada de corpos no porta-malas! Meu Deus, nem de filme de terror
eu gosto.
— Olha bem para a minha cara, Serena. Acha que eu pareço otário?
Onde está a porra do seu irmão? Aquele pedaço de lixo roubou a minha grana
e desapareceu no mapa.
Jogando o braço para trás, ele retira uma arma das profundezas do
inferno, só pode. Aperto o cabo do guarda-chuva, convicta de que a minha
morte vai acontecer no pior cenário possível. Se eu soubesse que morreria
assim, teria me jogado no pescoço daquele ricaço problemático e mandado
para o espaço as minhas convicções morais.
— Camillo roubou você? Ele perdeu o juízo? — Coloco a mão sobre o
peito, fazendo ares de descrença e resmungando para ganhar tempo. Se eu
correr agora, serei eliminada em dois passos, e ainda sou muito virgem para
morrer.
— Não se faz de louca pra cima de mim! — grita, ergue a arma com o
cano apontado na minha direção. — Você sabe como essa porra funciona, seu
irmão sabia também. Se não me paga no dinheiro, eu cobro com a vida de
merda que ele tem.
— E se ele fugir, vocês vão atrás da família — completo a baboseira
criminosa que ele defeca pela boca. — É o que você veio fazer? Vai me
matar aqui? — O silêncio dele comprova minha teoria, então recorro a
medidas desesperadas. — Eu posso pagar! Eu consigo esse dinheiro, se me
der um tempo…
— O tempo dele já acabou, docinho.
— E o meu tempo? Cadê os direitos iguais? — Mal escuto as próprias
palavras, só vou soltando o que me vem à mente na esperança de convencê-lo
com ladainhas. — E aquela conversa sobre existir honra no mundo do crime?
É só baboseira?
— Serena, não brinca com o perigo, menina — previne. — Seu irmão
deu fim em trinta mil dólares que estavam guardados no galpão da casa dele,
você não tem de onde tirar tanta grana.
— Trinta mil dólares? — Rio histericamente, quase desejando morrer
de verdade. É muito dinheiro. Claro que Camillo ia arrumar uma dívida em
moeda estrangeira. — Eu consigo — minto.
Misericórdia, eu vou mesmo morrer!
— Consegue? — interroga, desconfiado. Dá uma olhada para cima,
pensando nas possibilidades, depois aponta o indicador na minha direção e
diz: — Você tem trinta dias.
É impossível, nem se eu nascesse de novo seria capaz de levantar uma
quantia tão exorbitante. Sobretudo em dólares! Os poucos rublos escondidos
na minha gaveta de calcinhas nem chegam perto.
— Mil dólares por dia, fácil! — cantarolo, movendo a mão livre para
cima como uma criança feliz.
SÃO TRINTA MIL DÓLARES!
— Você tem um minuto para sumir da minha vista antes que eu mude
de ideia! — Maksim coça os olhos com a arma ainda em punho, e me
dispensa fazendo um sinal de desdém com a palma da mão.
Não espero um segundo, saio correndo de volta para a rua principal. À
medida que minhas pernas se movimentam, a adrenalina vai passando e meu
corpo começa a fraquejar. Viro esquinas sem rumo, com medo de olhar para
trás e descobrir que um capanga grandalhão veio terminar o serviço.
Esbarro em algumas pessoas, alguém tenta me segurar, perguntando se
estou bem, porém, quanto mais eu me afasto, mais o medo se expande. Ao
atravessar outra rua, um grito feminino me faz parar junto com o barulho de
uma freada abrupta.
Tremendo, olho ao redor e várias pessoas se amontam, movimentando a
boca sem que meu cérebro processe as palavras. Uma limusine está parada a
centímetros do meu corpo e o motorista balança os braços para fora da janela.
Minha cabeça gira, apoio as mãos no capô e sou tomada por uma
vontade insana de vomitar. A ânsia vem duas vezes, mas nada acontece. Só
faltava isso para completar o dia, despejar todo o meu café da manhã em um
carro que custa mais do que meus rins, pulmões e os dois olhos.
O guarda-chuva se foi no meio do desespero. Felizmente, o temporal
também extinguiu ao nível de uma garoa suave.
— Corazón? — chama o sujeito ao meu lado, que reconheço de
imediato. Vladimir entra no meu campo de visão com o braço esticado em
cima da cabeça, seu semblante oscila entre descrença e preocupação. — O
que está fazendo aqui? Por que entrou na frente do carro daquele jeito? — Ele
olha para os lados, procurando pela origem do meu acesso de pânico, mas o
restaurante ficou perdido várias ruas atrás, assim como Maksim Loskov.
— Vladimir? — balbucio e, mesmo com os lábios batendo de nervoso,
tento sorrir. — Essa limusine é sua? Me desculpa, eu não estava olhando e…
— Entra no carro — ordena, coloca a mão nas minhas costas.
— Eu tenho que trabalhar. — Nossos espectadores começam a se
dispersar, alguns carros desviam de nós pelas laterais. Já estou atrasada e,
agora mais do que nunca, preciso me agarrar a qualquer oportunidade de
juntar dinheiro.
Se no final de trinta dias eu não tiver descoberto como fazer dinheiro
nascer em árvores, a única alternativa será fugir para outra cidade. Outro país,
talvez.
— Escuta. — Vladimir curva o corpo para me encarar, a profundidade
oceânica dos seus olhos refletindo a histeria presente nos meus. Minhas mãos
tremem sem descanso e, mesmo com todos os esforços psicológicos, não
consigo assumir o controle. — Você precisa se acalmar, entra no carro.
— Tem certeza? Pode ser que eu vomite aí dentro.
— Só entra logo — insiste, revirando os olhos sem o mínimo de
paciência, e me empurra com mais empenho.
Sugerir que o interior da limusine talvez seja maior do que meu quarto
é uma hipérbole que muito se aproxima da realidade. Uma música familiar e
instrumental ressoa, bem baixinho, no interior do veículo, e há vários
assentos revestidos com couro branco. Um laptop aberto em cima de um
suporte especial me faz supor que Vladimir estava trabalhando.
— Vou molhar o banco — lamento enquanto me locomovo com as
costas arqueadas e o com teto acariciando a parte de trás da minha cabeça.
— Molhe e vomite o quanto quiser, apenas sente de uma vez, pelo
amor de Deus!
— Mandão — resmungo, mas obedeço antes que outra catástrofe
aconteça.
Sento-me perto da janela e inspiro devagar. A imagem daquela arma
pisca no interior das minhas pálpebras sempre que fecho meus olhos. Já
passei por dias ruins, por temporadas escassas nas quais optava por dormir
para não lidar com a realidade, mas nada se compara com uma ameaça direta
à minha vida.
No calor do momento, minha espontaneidade desenfreada me ajudou a
convencer Maksim, mas não sou imune ao medo. Não sou imune a nada.
— Vai me contar o que aconteceu? — diz alguns minutos depois. O
carro sacoleja levemente, guiando-nos pelas ruas.
Aos poucos, tomo consciência do seu olhar sobre mim, intenso, sólido e
pontiagudo, e o espaço se torna menor, mais quente.
— Preciso voltar, meu emprego fica perto do terminal — digo, já mais
calma. Narrar minha quase morte está fora de cogitação, não vai acontecer
nunquinha.
Vladimir aperta um botão e informa meu destino para o motorista,
cruza as pernas e entrelaça os dedos das duas mãos. Seu cabelo preto reluz,
todo penteado para trás, e uma fina camada de barba escurece as laterais do
rosto quadrado
— Por que estava correndo no meio da rua? — questiona com a
mandíbula tensa. —Poderia ter sido atropelada.
— Eu… — Nego com a cabeça, ciente de que a explicação toda é
surreal demais para um homem como ele entender. — Meu irmão se meteu
em problemas e agora preciso resolver, acabei de receber a notícia e isso me
deixou um pouco abalada.
— Problemas? Precisa de ajuda? — Qualquer coisa na voz dele, na
maneira como sua garganta faz aquele movimento de subir e descer, expõe
seu esforço para não me pressionar demais.
— Preciso de trinta mil dólares — informo, abraçando meu próprio
corpo enquanto nos aproximamos outra vez do restaurante. — Ou de feijões
mágicos. Uma galinha dos ovos de ouro cairia muito bem!
— Claro, não é da minha conta. — Vladimir não leva a sério; acho que
não acredita e nem posso julgá-lo.
O homem não tem nada com isso, coitado.
— Não foi isso o que quis dizer — murmuro. Ignorando todo o
turbilhão de acontecimentos, repito mentalmente que tudo vai terminar bem e
aproveito a curta companhia de Vladimir para me distrair dos pensamentos de
“eu vou morrer”. — Então, estou curiosa para o nosso próximo encontro —
brinco, mudando de assunto. — Acho que nunca vamos superar o primeiro,
mas esse quase atropelamento também não fica atrás.
Você estava no lugar certo, na hora certa.
Vladimir não deixa escapar nem uma risadinha. Olha-me intensamente,
seu perfume cítrico pairando no interior do veículo, uma perdição desumana
e injusta com pobres mulheres sedentas como eu. Imagino-me presa por seus
braços fortes, fazendo todas as coisas mais indizíveis das quais estive me
privando nos últimos anos.
— Você tem que cuidar mais de si mesma. Se pendurar na beirada de
prédios, correr às pressas no meio da rua, esse tipo de coisa é perigoso — ele
me repreende, trincando o maxilar como se desejasse falar muitas outras
coisas.
No hotel, levando em conta as circunstâncias, é óbvio que Vladimir só
queria descontar o estresse e eu estava por lá dando bobeira, mesmo querendo
dar outra coisa. Não significa que tenha existido um interesse real da parte
dele.
— Sobre o outro dia… — começo, porque sou dessas que nasceu para
falar baboseira e criar climas constrangedores, mas Vladimir me interrompe.
— Está tudo bem. Eu peço desculpas pelo meu comportamento, não
deveria ter feito aquilo.
— Não? Quero dizer, é… não mesmo. — A curva que ele tem no meio
dos lábios é uma distração difícil de ignorar, por isso continuo falando para
não encarar demais. — E desculpe a minha reação. Sabe? Ele não merecia
aquilo.
— Ele? — Vladimir inclina a cabeça, sem entender.
Eu disse ele?
— Você! — corrijo. — Misericórdia! Eu quis dizer você! Não ele, o
seu… — Alguém me para. — Mierda.
— Soa como um insulto — comenta, mais leve e natural. Meu sorriso
vem sem esforço. — Mierda — testa, fazendo-me gargalhar com sua
pronúncia rudimentar, que transforma a palavra em algo como “mirdá”.
— É um palavrão em espanhol, mas bem leve, não se preocupe.
— Você nasceu na Espanha? — Cerrando os olhos, Vladimir muda de
postura e assume uma expressão séria outra vez, bem naquele estilo perigoso
que atiça uma parte bem sedenta do meu corpo a querer coisas ainda mais
perigosas…com ele.
O carro começa a diminuir a velocidade e identifico o buffet no outro
lado da rua, a viela agora cheia de pessoas chegando para o trabalho.
— Sim, minha família se mudou para cá quando eu tinha dez anos —
explico, arrumando a bolsa no ombro para descer o mais rápido possível. Não
gosto do seu olhar predatório e de como isso afeta a minha mente estúpida e
criativa.
— Espera, eu queria perguntar uma coisa, mas pode soar um pouco
estranho…
— Mais estranho do que eu quase ser atropelada pelo seu carro? —
Arqueio uma sobrancelha e sigo para a porta, abrindo-a. — Pelo menos dessa
vez você estava vestido.
Ele faz de conta que nem ouviu e prossegue:
— Bem, eu estou procurando uma pessoa. Uma mulher.
— Claro, cabrón. — Reviro os olhos. Era só o que me faltava.
— Não é isso. — Vladimir bufa, constrangido, coçando a nuca. — Por
causa dessa mulher, meu último investimento está comprometido.
Descobrimos que ela veio da Espanha, então, me ocorreu que talvez…
O celular de Vladimir começa a tocar uma música barulhenta, bateria e
guitarra batalham no meio da sonância, junto com pessoas gritando palavras
em inglês. Ele arregala os olhos, atordoado, e analisa a tela do aparelho com
cara de pouquíssimos amigos.
— Meu irmão… — reclama baixinho. — Só um minuto — pede,
apontando o indicador para cima. Desço do carro e fico esperando enquanto
ele conversa. — Roman, andou fuçando no meu celular? Que merda de
música é essa? Heavy Metal?! Já falei para não mexer nas minhas coisas. —
Há um longo silêncio enquanto ele escuta a pessoa do outro lado. — Acabei
de sair da reunião. Sim, tive que dormir na empresa…
Ele continua falando e me sinto desconfortável por escutar. Mesmo as
pessoas com muito dinheiro acabam se sacrificando algumas vezes. O dia
nem começou e ele já participou de uma reunião, sequer foi para casa. Parece
tão solitário.
No outro lado da rua, avisto minha chefe caminhando devagar para a
viela do restaurante e sou invadida pelo pânico. Será que ele continua lá? Não
pode ser! Aceno para Vladimir, ignorando o sinal que ele faz com a mão, e
corro depressa. Meu coração vibra dento do peito e o pavor quase retorna.
— Raissa! — chamo. Ela olha sobre os ombros e me sorri com os
olhos, já que todo o resto está escondido por trás das roupas quentes e do
cachecol azul. Porém, além de nós, não há nem sinal de Maksim. —
Desculpe pelo atraso, eu tive alguns… imprevistos.
— Não tem problema, Serena, hoje vai ser tranquilo. Mas eu queria te
perguntar se estará livre na sexta.
Começamos a andar uma ao lado da outra. Raissa, uma russa quase
duas cabeças mais alta do que eu e um longo cabelo louro, enfia a mão dentro
da bolsa e revira o conteúdo até encontrar seu celular. Penso em voltar e me
despedir apropriadamente daquela explosão de testosterona, mas viro-me
bem a tempo de ver a traseira do carro de Vladimir dando partida.
Acabei não agradecendo direito pela ajuda também.
Será que nos veremos de novo? O que ele queria perguntar?
— Sim — informo minha chefe. — Infelizmente, tive que sair do meu
outro emprego, e no hotel o trabalho é somente aos sábados e domingos. Por
quê?
— Bem, recebemos uma encomenda de última hora de uma cliente
muito especial. É para o casamento de um dos filhos e precisamos de mais
garçonetes. São muito exigentes, querem apenas mulheres. O que acha?
VLADIMIR

— VLADIMIR, VOCÊ ESTÁ ouvindo? — Andrei balança a mão na frente


do meu rosto, quebrando o transe de pensamentos que tem se tornado cada
vez mais frequente.
Forço minha vista contra a luz da manhã que invade o escritório
residencial, iluminando os traços delicados e calmos do meu irmão mais
jovem. Andrei é nosso advogado e, ainda hoje, tenho certa dificuldade em
assimilar o menininho bondoso e altruísta que fora na infância ao tubarão que
defende nossa empresa.
— Claro. — Recomponho-me, limpando a garganta com uma boa dose
de vodca que dispuseram sobre a mesa. — Você estava falando sobre o… —
Droga, não tenho ideia. — Clube?
Ivan, sentado à minha frente, inclina-se para analisar meu rosto de
perto. Mesmo sendo o segundo filho mais velho, sua aparência no dia de hoje
é juvenil, com a barba muito bem cortada e os cabelos castanhos penteados
para trás — às vésperas do casamento com a mulher de sua vida, não poderia
ser diferente. Porém, ao se entreolhar com Andrei, sentado ao seu lado, não
obtém nenhum sucesso em esconder a surpresa.
— Está se sentindo bem? — Ivan indaga cautelosamente. — Parece um
pouco desatento hoje.
— Minha nossa! — exclama Roman, deitado na poltrona reclinável no
meio do nosso escritório. Ocultando os olhos esverdeados com o antebraço
tatuado, seu aspecto é de um homem recém-vencido por uma noite de muitos
exageros alcoólicos. — Isso é um indício do apocalipse? Devemos acionar as
forças armadas? Mulheres e crianças primeiro?
— Para alguém nas suas condições, deveria se preocupar mais consigo
mesmo — retruco, sem paciência para brincadeiras sagazes.
— Carinhoso como sempre, irmão — ironiza.
— Eu disse que dois investidores rescindiram os contratos e entraram
com pedidos de ressarcimento. — Andrei, visivelmente fatigado em
decorrência dos últimos meses, tendo que lidar com todos os percalços
jurídicos acarretados pelos imprevistos com o projeto do clube, entrega-me
duas pastas vermelhas. Na frente de cada uma, destaca-se a grande letra
inicial do nosso sobrenome, entalhada com relevo dourado.
Era o que eu temia. Se os sócios começam a sair do projeto, significa
que nosso prestígio já não é suficiente para controlá-los. Aos olhos dos
urubus de terno que rastreiam carcaças em decomposição dentro da limitada
esfera corporativa, nos tornaremos uma empresa agonizando em decorrência
da fraqueza. O buraco deixado por esses dois associados é como uma ferida
infeccionada, e só vai piorar se não tratarmos o problema com cuidado.
Péssima hora para me perder em questões insignificantes. Desde o
início da semana, quando reencontrei aquela mulher no meio da rua, não
consigo parar de pensar no tamanho da minha tolice. Quase perguntei se o
nome dela, por acaso, não seria Serena Fajardo! Onde eu estava com a fodida
cabeça?
É alguma coisa no jeito dela, na autenticidade ao manifestar seus
pensamentos, sem barreiras, sem máscaras, com uma evidente falta de
autopreservação que despertou em mim algum instinto benevolente que não
faz parte da minha personalidade.
Isso sem falar na beleza exótica e o sotaque melódico. Mesmo
conseguindo pronunciar um russo perfeito, o final de algumas palavras soa
cantante, mais veloz e… droga! Estou fazendo de novo. Apenas pare de
pensar na mulher!
— Não foi uma boa ideia começarmos a construção antes de
adquirirmos o terreno — pondera o caçula. Recosta-se na cadeira e cruza os
braços, focalizando seus olhos caramelos no tapete de tecelagem persa que dá
vida ao cômodo com padrões de linhas vermelhas.
— Só para constar, as obras estão indo muito bem — murmura Roman,
gemendo enquanto massageia as têmporas. — Se o terreno daquela casa não
fosse tão grande, poderíamos reformular a planta original. O problema real
são os dois galpões no fundo da propriedade. Precisamos que venham abaixo
antes do próximo mês, ou terei que suspender os trabalhos. A sorte de vocês é
que eu sou um ótimo engenheiro.
Roman é realmente o melhor, ninguém pode discordar. Um
irresponsável impaciente que não consegue ficar mais do que duas horas
preso em uma reunião sem começar uma briga com alguém? Correto. Mas,
como chefe de operações e nosso engenheiro-chefe, não poderia haver outro
mais eficiente. É ele quem faz a empresa se movimentar, as engrenagens da
corporação.
Algumas vezes me pergunto se Nicolai teria cometido tantos erros se
tivesse alguém como Roman ao seu lado.
— Além disso — continua Andrei, concentrado em suas anotações
enquanto balança um copo de vodca com gelo na mão livre; isso é novidade,
ele não costuma beber em serviço — Camillo Fajardo saiu do país há
algumas semanas, com destino à Madri, o que limita ainda mais nossas
chances de localizar a irmã dele.
— E a mulher com a criança? — pergunto, relembrando dos olhinhos
pretos e muito redondos da filha de Camillo, que também têm rodeado a
minha mente.
As condições de vida naquela residência não são apenas precárias, mas
perigosas também. Não seria sábio arrancar a mulher da casa com um bebê de
colo sem termos certeza de que conseguiriam se manter — e a resposta é
bastante óbvia, a meu ver.
— Continuam na casa. — Andrei comprime os lábios. A julgar pela
expressão séria e as narinas infladas, desconfio que também não aprove a
maneira como cuidam da menina. — Mas a mãe se recusa a conversar
conosco e, se a denunciássemos, ela perderia a guarda da filha.
Porque é uma viciada, dizem os olhos do meu irmão, cheios de muito
pesar e preocupação. Andrei não faria algo como separar as duas
levianamente. Mas não me importo a mínima se essa for nossa única
alternativa quando conseguirmos o terreno.
Na verdade, ficaria muito feliz de arrancar a criança das garras daqueles
dois irresponsáveis, e meu irmão deve saber disso.
— Camillo provavelmente está fugindo. — Sirvo meu copo vazio com
uma garrafa pela metade que divide espaço entre nossas anotações. Os três já
estão cientes dos eventos ocorridos no meu último encontro com Camillo,
incluindo a dívida e as chances de Serena Fajardo não saber sobre nossa
oferta.
— Que tipo de pessoa recusa dinheiro em uma situação dessas? — Ivan
me olha com a expressão confusa, mas quem responde é Roman.
— O tipo que tem medo de morrer. — Ele se senta devagar e passa a
mão sobre o cabelo, expondo uma pequena parte das suas tatuagens ao erguer
as mangas do casaco de couro preto, cheio de metais. A vestimenta contrasta
com a camisa social branca que usa por baixo, mas tudo em Roman é sempre
desequilibrado. — O submundo criminoso daquelas pessoas tem suas
próprias regras, irmão. Os moradores foram contra as obras desde o começo,
então faz sentido que estejam com medo de se envolver com a gente.
— Meu palpite é que ele não queira envolver a irmã em seus assuntos
— gesticulo, expondo um pouco das suposições mais marcantes que surgiram
em meus devaneios sobre como salvar esse investimento. — Tem algo
acontecendo naquela casa, naquele distrito, e nós precisamos descobrir o que
é.
— Ótimo! — Roman comemora, joga os braços para cima. — Podemos
encerrar essa reunião? Tenho que me recuperar antes do casamento.
Ivan sorri, como acontece todas as vezes quando alguém pronuncia essa
palavra. Casamento. A felicidade dele é tão imensa que se estende até nós,
uma realização também nos pertence. Aprendemos a proteger Lara e cuidar
dela, que se tornou um membro precioso da nossa família, e talvez algum dia
consigamos nos redimir pelas falhas do passado.
É muito gratificante que um dos meus irmãos tenha a chance de
experimentar esse nível de amor, embora eu não tenha a menor ideia de como
ele funciona, quando ou de que maneira surge. Talvez as paixões sejam
seletivas, talvez pessoas capazes de sacrificar o próprio coração não sejam
dignas de experimentar tais sensações; pessoas como eu.
— Também preciso me preparar — diz o noivo orgulhoso, erguendo
seu copo. — Só você para me fazer trabalhar no dia do meu casamento!
— É disso que estou falando! — Roman se intromete, agora com a
camisa aberta e o começo da tatuagem de dois lobos batalhando totalmente
exposta no peito. — Hoje é o casamento do seu irmão, nós merecemos uma
folga. Não é como se essa Serena Fajardo fosse aparecer debaixo dos nossos
narizes. Além disso, temos que aproveitar para fugir antes que… — Um
vendaval de saltos altos e tecidos dourados e esvoaçantes irrompe pela sala,
agitando suas pulseiras de ouro e pedras esmeraldinas enquanto equilibra um
amontoado de documentos nos braços. — Tarde demais.
— Ivan! — grita minha mãe; no rosto, uma máscara de reprovação
moldada abaixo dos cabelos platinados. — Onde está a sua noiva? Não a
encontro em lugar nenhum! — Tatiana joga as folhas em cima da mesa,
depois volta a rodopiar pelo escritório com a mão sobre o peito. — Ela não
pode ter desistido, pode? Vocês estão bem? Será possível que eu perdi a
minha grande chance de casar um filho? — O turbilhão de suposições
equivocadas deixa seu rosto lívido. — Lara se apaixonou por um homem
lindo e esperto, Ivan, como pôde deixar isso acontecer?
— Mãe! — Ivan a repreende, meio grunhindo. — Muito obrigado,
agora eu quero matar um homem que nem existe!
— Lara disse que ia até à mansão pela manhã — Andrei explica,
censurando-os com seu tom apaziguador e definitivo. Os dois são como
irmãos, a sombra um do outro. — Queria mostrar para o Iago a casa em que
cresceu, explicar um pouco mais sobre tudo o que passou.
— Ela tem feito isso aos poucos — complementa Ivan, outra vez
transbordando satisfação por sua família. — Queremos que Iago conheça a
história completa, que não existam segredos entre nós.
— Bem, se esse é o caso, então tudo bem. — Nossa mãe se recupera
instantaneamente do colapso nervoso. — Os funcionários estão começando a
montar as estruturas no jardim. Eu precisei contratar um buffet de última hora
porque aquele que vocês escolheram só trabalha com funcionários
masculinos!
— Que horror! — Roman zomba, ganhando um olhar severo de Tatiana
que desaparece com seu sorriso brincalhão em dois segundos.
— Infelizmente, não pude me desfazer do primeiro — lamenta, como
se isso fosse uma calamidade. — De qualquer forma, trouxe a relação que
você pediu, há uma cópia também com o chefe da segurança. — Ela aponta
para minha mesa, despertando o interesse dos meus irmãos, que esticam os
pescoços para espionar.
— São fichas com os nomes e qualificações de todos os funcionários
enviados pelas firmas que contratamos para o casamento — esclareço. —
Para o caso de algum repórter ou penetra curioso tentar invadir.
— Você conferiu todos os nomes? — Andrei a questiona,
impressionado.
— São mais de duzentas e cinquenta fichas! Eu sou uma idosa, não
posso esforçar a minha visão de gente velha. — Tatiana curva o corpo,
apoiando a mão no encosto do sofá em que Roman repousa, como se
pronunciar a palavra idosa evocasse sintomas relacionados com à velhice.
Mas minha mãe ainda é jovem, no auge dos cinquenta e um anos; na verdade,
aparenta ter muito menos e sua saúde é melhor do que a de nós quatro juntos.
— Já prestei um excelente serviço planejando o casamento e contratando
noivas em potencial, então tratem de seguir o exemplo do irmão de vocês e se
casem… Logo!
— Ivan, vendo pelo lado positivo, foi o mais esperto de todos. —
Roman desiste de dormir, suspira e fica de pé. — Depois de hoje, você estará
oficialmente fora da lista de filhos solteiros. Já entendi o seu objetivo:
liberdade!
— Não sou solteiro — murmura Andrei para ninguém em particular, o
desânimo presente na voz; a namorada continua se recusando a interagir com
a família após ter sido hostilizada por nossa mãe em um jantar, meses atrás.
Não lhe tiro a razão, mas odeio que meu irmão esteja sofrendo por isso.
Com a mesma comoção da entrada, Tatiana nos olha um por um, abre
um sorriso orgulhoso e depois vai embora, murmurando planos para colocar
um fim em nosso desempenho matrimonial fracassado.

***

Hoje é um dia feliz, repito comigo mesmo.


Lara e Ivan irão se casar, amam-se acima de tudo. Andrei será o
responsável por levá-la até o altar, exorcizando os últimos arrependimentos
que ainda podiam existir na história dela com meu irmão.
Tanto sofrimento sendo superado deveria me contagiar, mas no final
acaba sendo apenas isso. A felicidade de outra pessoa. A completude de outra
pessoa. A vitória de outra pessoa. Todas essas possibilidades são como
quadros expostos em uma galeria de arte, cujas pinceladas eu jamais
conseguirei realizar com as minhas próprias mãos.
Sozinho na minha zona de conforto, entre documentos, números e
gráficos, começo verificando a anulação de contrato encaminhado por dois
dos nossos principais investidores no projeto do clube. É como assistir a uma
peça de dominó caindo em câmera lenta, criando a expectativa sobre como a
próxima peça será afetada, e a próxima depois dessa, até que mais nenhuma
permaneça incólume. Assim que a notícia se espalhar, perderemos o controle
e todos os esforços terão sido em vão.
Falhar.
Por que essa palavra me assusta tanto?
Fracassar é uma ideia tão inadmissível quanto uma chama acesa no
vácuo. Recuso-me a cometer os mesmos erros de Nicolai, por mais que, para
isso, eu precise utilizar de estratégias desonrosas. Muitos me tomam como
um homem impiedoso e cruel, mas não me importo. Não mais. Desde que os
objetivos sejam alcançados, serei o melhor dos homens maus. Um que não
fraqueja, que não soluciona os problemas, mas os elimina.
Nicolai fez uma escolha que se transformou em uma sentença. Foi a sua
punição. Custou vidas. Mais de quinze pessoas morreram por causa de uma
decisão prepotente, um serviço mal executado, um projeto de merda.
E ninguém ficou sabendo.
Meu pai, tão respeitado e estimado, enterrou um obstáculo dentro da
terra sem saber que aquela semente criaria raízes, que cresceria devagar da
mesma forma que uma erva-daninha.
O presidente de uma empresa é o tipo de homem que nunca deve
hesitar, nunca deve temer a escuridão que o cargo exige, que deve assumir as
responsabilidades, seja como vilão, seja como herói. Mas Nicolai nunca foi
um, nem outro. Um homem que esconde a culpa pela morte de seres
humanos, deixando famílias desalentadas, não é nada. Um homem que trai a
mãe dos seus filhos com uma jovem qualquer não é nada.
Nada.
Basta ter tido que acobertar as falhas dele. Eu não falho, não me
entrego. Não serei como ele…
Duas batidas na porta me resgatam das lembranças atrozes. Fecho as
mãos em punho, controlando a respiração enquanto meus olhos encontram
novamente um foco.
— Pode entrar — aviso severamente, a voz rouca e pesada.
— Com licença — diz uma voz feminina ligeiramente familiar. —
Pediram para trazer um pouco de chá…
Giro na cadeira para conferir a aparência da pessoa. Um conjunto de
bule e xícaras de porcelana, equilibrado sobre uma bandeja de prata, flutua
através da fresta que se abre na porta. Mãos pequenas com longas unhas
vermelhas sustentam os objetos, até que a funcionária entra no meu campo de
visão e... puta que pariu, é ela!
Não pode ser verdade!
Corazón tem uma aparência exótica, com seus cabelos negros e
volumosos, os olhos grandes, redondos e emoldurados por cílios compridos.
Mas os lábios, tingidos com um vermelho vibrante, capturam a minha
atenção antes de qualquer outra das suas características.
É uma miragem. Só pode ser, do tipo que a gente vê quando vagueia
por muito tempo no deserto do exílio, quando nossa mente tende a recriar
imagens de coisas que desejamos em segredo.
Ela não me vê a princípio, concentrada na tarefa de não derrubar a
bandeja e, assim, distraída e inconsciente da minha presença, parece
vulnerável demais, alheia ao que poderia estar acontecendo ao seu redor,
como no dia em que quase foi atropelada.
— Tatiana enviou você — deduzo em voz alta, ansioso para que me
perceba no cômodo.
— Na verdade, ela pediu para outra menina, mas a coitada estava
morrendo de vergonha — responde, erguendo a cabeça. A bandeja vacila no
ar, mas não cai. — Vladimir? O que você está fazendo aqui? — sussurra
exasperada. Coloca todos os objetos sobre a mesa e corre para fechar a porta.
Ou a mente dela funciona de uma maneira muito acelerada, sem filtrar
os pensamentos das ações, ou ela é realmente louca — a segunda opção me
parece mais provável.
— A pergunta correta é: o que você está fazendo na minha casa? — A
questão é retórica. Vi quando entrou em um restaurante em nosso último e
inusitado encontro, então suponho que faça parte do quadro de funcionários
de alguma das empresas contratadas pela minha mãe.
— Sua casa? É sacanagem com a minha cara? Você mora aqui? — Ela
roda sobre um conjunto de saltos pretos e a gravata-borboleta branca pende,
um pouco frouxa, na gola de seu uniforme.
— Que eu saiba, sim, desde quando nasci. — Dou a volta na mesa e
paro na frente dela, com os braços cruzados. — Parece que nos encontramos
novamente — constato o óbvio. — Outra coincidência interessante.
O escritório é tão grande quanto qualquer sala da nossa empresa matriz,
mas os móveis são mais rústicos, sem personalidade, impessoais. Mesmo
assim, ela consegue se encaixar no cenário, combinando com os tons neutros
das estantes e a tapeçaria avermelhada das paredes. Combina muito,
inclusive. Mais do que considero saudável para a minha mente.
— Não acredito em coincidências. — Dando de ombros, ela coloca as
mãos para trás, aguardando instruções. É visível que se recuperou da surpresa
muito mais rápido do que eu e já consegue agir com naturalidade.
Ela é tão… interessante.
— E no que você acredita, Corazón? — pergunto, baixando o volume
da voz, ansioso por estender a conversa pelo maior tempo possível.
Ela pensa por um momento e faz uma expressão engraçadinha enquanto
isso, dedilhando o indicador sobre o lábio e enrugando o nariz arrebitado para
cima.
— Que tudo acontece por uma razão. Isso me ajuda a encontrar o lado
bom das coisas, das pessoas. — Olha para a porta fechada, a respiração se
tornando densa. Consigo ler suas expressões, intenções. É tão transparente
que quase escuto as engrenagens dos seus pensamentos girando pesadamente
dentro da cabecinha.
Corazón é uma moça bem esperta, posso ver. Não está tentando
esconder suas emoções sobre o fato de estarmos sozinhos, pelo contrário. É
hipnotizador admirar como balança uma das pernas, revelando o nervosismo
junto com um pouco de euforia.
— E o que você faz quando não encontra um lado bom? — Dou um
passo mais perto, meu corpo desguarnecido pela instabilidade, agindo por
conta própria.
— Sempre encontro. — Sem pudores, encara a minha boca. — Quer
dizer, é difícil às vezes, mas minha taxa de sucesso é de noventa e nove por
cento. A sua namorada se enquadra nos outros um por cento, sinto muito.
Não tenho ideia do que ela está falando. Mas essa mulher me intriga e
eu continuo cedendo.
— Não tenho namorada — explico debilmente.
Outro passo.
— Então vocês só fazem isso de vez em quando? É um daqueles
relacionamentos abertos? — pergunta do nada, interrompendo meu fluxo de
diálogos internos.
Relacionamento aberto? Que merda é essa?
— Comece do começo, sim? — Indeciso entre dar risada ou parar de
cercá-la antes que essa situação se torne um transtorno, já que ela está
trabalhando para nós, ignoro as duas opções pelo simples prazer de medir
suas reações.
— Sabe? Aquela que estava com você no jantar. Sua acompanhante,
vocês não são namorados? — continua. Uma bonita coloração rosácea se
espalha em seu pescoço e na ponta das orelhas.
— Não, eu e Elena somos apenas… bem, não importa. — Nada, na
verdade, mas seria constrangedor confessar que meus interesses naquela
jovem são principalmente profissionais e egoístas. Necessitado por desvendar
seus limites, diminuo a distância entre nossos corpos para não mais que dois
palmos, e fico satisfeito ao ver que não recua. — E porque está me
perguntando isso? — sussurro.
Corazón morde o lábio carmesim. No interior do escritório fechado,
nenhum ruído externo consegue interferir. A racionalidade tenta enevoar
meus pensamentos com desconfianças sobre sua identidade e nossos
encontros absurdos, mas a companhia dela é tão aprazível que ficaria
decepcionado caso nosso reencontro se desse em uma situação comum.
— Não quero problemas — murmura, percorrendo meu corpo de cima
a baixo com olhos cobiçosos. — Mas os problemas geralmente me querem.
Isso aqui — indica nós dois — tem cara de problema.
Problema é a definição perfeita!
Sua garganta faz um movimento de subir e descer, engolindo a saliva.
Munida de muito mais bom senso do que eu, ela toma a iniciativa de se
afastar — não é uma fuga propriamente dita, mas um deslizar suave para
longe. Enquanto finge prestar atenção nos muitos objetos acumulados no
escritório, encosto na mesa, privilegiando-me de um ótimo ângulo para
analisar o conjunto desordenado que a constitui.
O corpo chama atenção mesmo com as curvas amenizadas pelo
uniforme neutro e sem cortes, mas existe um mistério sensual envolto na
expectativa de não saber sua identidade, sua história de vida. De não ter o
controle sobre quem quer que seja.
Sua atenção é capturada pela porta fechada, sendo então desviada para
mim e de volta para a saída. Está pensando em fugir?
Nada disso, Corazón.
— Como estão os preparativos para o casamento? — pergunto,
mantendo o tom de voz mais profissional. Ela franze o cenho, mas não
comenta sobre a mudança de assunto. Como funcionária, sabe que não pode
simplesmente me ignorar.
— Sua casa é incrível — responde. — Mas o fluxo de pessoas me deixa
apavorada e eu só consigo pensar em todos aqueles objetos caros e no perigo
de acabar esbarrando em algum deles e precisar vender os meus órgãos no
mercado negro para pagar um vaso de plantas ou uma xícara com dois
séculos de idade.
Seu exagero me pega desprevenido e acabo gargalhando.
— Minha mãe detesta velharias, antiguidades e essas coisas —
tranquilizo-a. — Não precisa se preocupar com isso. Tudo minimamente
velho fica no almoxarifado.
Ela ergue uma sobrancelha, faz um barulhinho com o nariz,
debochando do que acabo de dizer. Debochando! Não vejo vantagem em usar
da nossa fortuna para me engrandecer perante pessoas inofensivas, esse poder
de fogo prefiro reservar para o campo de batalha corporativo.
Próxima das cortinas fechadas, a fraca luz solar que consegue
atravessar o tecido cinzento ilumina seu rosto de traços delicados e lábios
convidativos, cheios e de aparência macia.
— É natural, pessoas como eu não nasceram para conviver com pessoas
como você. — Colocando as mãos na cintura, ela demarca mais
profundamente a curva que desce para os quadris e caminha para perto de
mim, parando na ponta oposta da mesa. — Não estou me diminuindo e muito
menos julgando vocês. É assim que as coisas são e tudo bem, sabe? — A
placa sobre a mesa ganhar seu olhar. Ela estica o dedo indicador e passa
sobre as letras, acariciando o contorno do meu nome antes de ler com
ultrajante surpresa: — ¡Dios mío! Presidente? Está trabalhando no dia do
casamento do seu irmão? — Seu rosto se ilumina enquanto me encara,
acometida por algum pensamento. — Você dorme na empresa, participa de
reuniões de madrugada, está sempre trabalhando quando nos encontramos, ou
se preparando para o trabalho. Acho que já tenho um apelido para você.
— Oh, isso está ficando interessante. E qual seria, Corazón? — flerto
descaradamente, atraído pela leveza e espontaneidade.
Porém, quando me inclino para frente, a porta do escritório é aberta e
Roman aparece, usando apenas uma bermuda de dormir. Os cabelos
bagunçados e molhados entregam o banho recém-tomado e, mesmo com o
corpo coberto por tatuagens, um hematoma se destaca no lado direito do
abdômen.
Meu irmão estagna antes de cruzar completamente a soleira da porta.
Com a mão ainda na maçaneta, sorri maliciosamente, vagueando seus olhos
verdes entre nós dois.
— Estou interrompendo alguma coisa? — Capto o segundo exato em
que a maldade o preenche, e todo meu corpo fica tenso com a certeza de que
desaprovo quaisquer que sejam suas conclusões.
— O senhor Volkiov estava me passando algumas instruções. —
Corazón se apressa ao perceber que não respondo. — Isso é um lobo? —
Boquiaberta, ela vai inclinando a cabeça para o lado, tentando entender a arte
marcada no torso do meu irmão intrometido. — Aliás, vocês não usam
roupas? Isso é coisa de família?
— Senhor Volkiov? — Ele se diverte, o sorriso ainda mais amplo. —
Sou um senhor Volkiov também, querida. Que história é essa sobre roupas?
Fiquei curioso. E você pode tocar no meu lobo se quiser. Qual o seu nome?
A sugestão de tocar o peito desnudo de Roman traz de volta o rubor ao
pescoço dela. Porém, para variar, suas ações vão contra a timidez e a ouço
arquejar antes de abrir a boca para responder.
Nem pensar, que traiçoeira!
— Não é da sua conta — interfiro. Atrás de mim, ela puxa a respiração,
com certeza chocada. Não entendo como pode ser tão inocente e despudorada
ao mesmo tempo! Contudo, dessa vez não vai me contestar, já sabe quem
somos e preza pelo emprego. — Meia volta, Roman.
— Você está falando sério? — Gargalha o idiota, mas o sorriso
esmorece devagar à medida que não correspondo com o mesmo humor. — É
sério! — Ele sabe ser um filho da puta quando quer. — Sabe, presidente,
você já devia ter aprendido que eu detesto quando me dão ordens — implica,
alongando o pescoço sem para de analisá-la.
— E eu detesto quando não seguem ordens, Roman, principalmente as
minhas — informo, buscando paciência no além. Amo meus irmãos, mas
Roman consegue testar meus limites. — O que você quer?
— Acho melhor eu voltar ao trabalho — Corazón sugere, tentando
passar por mim na direção da saída, mas bloqueio sua passagem com o braço
sem nem mesmo olhá-la. — Ou talvez não? — murmura.
— Você continua aqui — ordeno, esperando uma resposta atravessada
que não vem. — Meu irmão tem mais o que fazer.
Roman flexiona os braços para trás, demorando-se entre os
movimentos. Conhecendo-o, aposto que está pensando se vale a pena
continuar me irritando só para se divertir. No final das contas, entretanto,
apenas pisca para a pequena funcionária, dá meia volta e vai embora,
acenando de costas com a mão para cima.
— Não acredito que ia dizer o seu nome para ele! — digo, reprovador,
voltando-me para ela.
Estou sendo é ridículo! Sei que sim, principalmente para alguém na
minha posição. Mas não quero que meu irmão descubra seu nome quando
nem mesmo eu o conheço ainda.
Corazón, teimosa, cruza os braços e contém uma risada sem muita
discrição.
— Bem, o nome é meu e eu digo para quem eu quiser — rebate,
atiçando meu ego. Que mulher difícil!
— Diga para mim — exijo, rouco. Retornamos à linha de partida, às
provocações com olhares e gestos.
— Você é sempre tão mandão assim? — instiga sem se intimidar. No
hotel, seus cabelos longos se soltaram do penteado e a lembrança me faz
imaginá-los daquela forma. Lindos. — Pois agora eu preciso trabalhar! —
teima.
— Sim, sou muito mandão assim. — Uso as mesmas palavras, tocando
seu queixo suavemente com o meu polegar. — Corazón, mesmo que não me
diga agora, até o final do casamento saberei o seu nome.
Espelhando minha própria expressão de triunfo, o desafio a deixa
fremente.
— Boa sorte com isso, Lord Vlad.
Encaramos um ao outro de uma distância nada segura. Meu paletó, de
repente, parece quente demais, desnecessário. Não estou acostumado com as
provocações, geralmente não preciso me esforçar muito. Mas esse certame e
o embate barulhento das nossas expressões, me cativam de uma maneira
inédita. Não é mais sobre um nome, é sobre rendição.
E Vladimir Volkiov não aceita um desafio para perder.
VLADIMIR

— É ESSE O meu apelido? — indago, sem desbloquear a passagem.


Não importa o quanto alguém se esforce para manter o bom senso
diante dos poderes concedidos por um suposto patamar privilegiado, em
algum momento as pessoas começam a abaixar suas cabeças; foi assim que
eu me acostumei com obediência e sujeição. Mas com ela, não acontece, e
isso é o que mais me intriga.
Ela é a personificação de tudo o que escondo dentro de mim, do que
tenho evitado.
— O que nós estamos fazendo? — sussurra. — Não deveria estar aqui,
posso ser demitida. Você precisa superar essa obsessão com o meu nome,
principalmente nos meus ambientes de trabalho.
— Obsessão? — debocho, surpreso com a audácia. A única obcecada
em não perder o emprego é ela. Nossa diferença de alturas faz com que
precise virar o pescoço para trás na tentativa de me enfrentar, e mesmo tal
detalhe sutil incentiva meus instintos rudimentares de liderança. — Você está
sendo infantil, não estaríamos nessa situação se tivesse falado seu nome para
começo de conversa.
— Eu tinha os meus motivos — pestaneja, colocando as duas mãos na
cintura, com os punhos fechados. O olhar novamente na minha boca,
desejosa, sem muitos pudores.
Não tenho certeza se faz isso sem perceber ou por não se importar em
demonstrar o que pensa; talvez um pouco de cada. Puxo o nó da gravata,
minha respiração irregular acompanhando a instabilidade dos meus
pensamentos. Corazón é perigosa, como um belíssimo e raro frasco de
veneno.
Olhando de esguelha para a saída, ela revira os olhos, mas não cede à
pressão.
— O que te impede, Corazón? — murmuro, feroz. Paciência não é
minha melhor virtude. — Por acaso está gostando dessa brincadeira? Acha
divertido me provocar?
Seguro seu queixo, colocando um pouco de força no polegar para que
seus lábios se abram em um biquinho ridiculamente inocente e delicioso. Seu
riso de escárnio, porém, não vai de encontro com a reação que eu esperava.
Ela não sente medo nenhum, no máximo uma apreensão leve.
— Esse seu jeito arrogante costuma funcionar com as mulheres? —
Estendendo a palma da mão, ela impede que eu responda e se afasta para trás,
saindo do meu toque. À medida que seu nervosismo cresce, suas palavras se
tornam mais frenéticas. — É óbvio que sim. Só a sua existência já é um
grande funcionamento! — Rindo, fecha os olhos e balança a cabeça, fazendo
uma série de caretas como se brigasse consigo mesma. Fascinante, é a
palavra que me vem à mente. — Essa conversa está me confundindo, e já
tenho coisas demais para lidar. É melhor encerrarmos esse assunto agora.
Não importa quem eu sou e quanto menos souber, melhor. Não somos nada
um para o outro e…
— Talvez possamos ser — digo sem pensar direito e recebo dela um
olhar desconfiado, então limpo a minha garganta e escolho melhor as
palavras. — Amigos, por que não?
A expressão dela esmorece. Capto o segundo exato em que se rende.
Abraçando o corpo, ela demonstra um pouco de fragilidade e não
consigo evitar a sensação de vitória inflando meu ego. Os cantos da sua boca
suavizam e o sorriso perde um pouco do brilho, deixando-me mais intrigado.
— Não tenho muitos amigos — confessa, constrangida, brincando com
a borda da camisa. — No geral, as pessoas tendem a se afastar de mim, não o
contrário. Quer dizer, tem a Malévola, mas ela não gosta muito de conversar.
— Malévola? — O nome me faz rir. Conversar com ela é fácil.
Reconheço a sensação que me preencheu na primeira vez que nos
encontramos, perturbadora e confortante ao mesmo tempo.
— Minha gata — explica, mais relaxada. Continuamos muito perto,
com ela encostada na parte de trás de uma poltrona, e eu na frente, ainda
impedindo a passagem como um idiota. Vez ou outra, seus olhos viajam até a
porta que Roman deixou aberta. — Eu a encontrei dentro de uma caixa de
papelão no meio da rua. Como moro sozinha, achei que seria uma boa ideia.
— Então mora sozinha? — Foco na única informação que me interessa.
— Você gosta de fazer perguntas demais — reclama, rolando os olhos
para cima.
— E você não gosta de responder. Ainda não disse o seu nome.
Atrevida e bem à vontade para uma funcionária — não que eu esteja
julgando, já que poderia muito bem receber uma denúncia por abuso de poder
— Corazón se desfaz em um sorriso diabólico.
— Achei que você fosse descobrir com seus poderes mágicos, já que
ficou com ciúmes do seu irmão descobrir primeiro. — Desencostando da
cadeira, ela me dá as costas e começa a andar pela sala distraidamente,
passando os olhos por toda a estante de livros enquanto os meus descem
direto para a suntuosa curva em seus quadris.
— Não foi ciúme, Roman é um mulherengo — explico, preservando
meu orgulho. — Sobre seu nome, tenho uma lista com a identidade de todos
os funcionários que estão trabalhando no casamento de Ivan.
— São muitos funcionários — pontua sem me olhar, passa o dedo
indicador sobre um exemplar de Orgulho e Preconceito, soltando uma
risadinha de algum pensamento que não compartilha. — Você é o irmão mais
velho, Ivan é o noivo bonitão. Roman é o tatuado musculoso e Andrei é o
advogado que as meninas da cozinha estavam chamando de Senhor Perfeito
Para Casar, e de Senhor Sorriso Perfeito. — Não tenho certeza se aprovo os
adjetivos, mas permaneço em silêncio enquanto ela prossegue com o seu
monólogo. — Vai ler centenas de fichas de contrato só para descobrir o meu
nome, Lord Vlad? Seu desespero é assim tão grande?
Automaticamente, seu atrevimento ardiloso cutuca meu bom senso.
Nunca me envolvi com funcionárias ou mulheres com o seu padrão de vida
— não por me achar superior, mas para evitar rumores e dores de cabeça,
além de ter sempre um leque considerável de escolhas mais cômodas na alta
classe. Mas ela atiça um desejo egoísta de me apossar e controlar tanta
petulância.
— Você é tão indiscreta — vocifero em voz alta para despertar outra
vez sua indignação. Não movo um centímetro sequer, com medo de que
acabe cometendo a besteira de puxar seu corpo para constatar se realmente se
encaixa bem no meu como parece.
Corazón abandona os companheiros literários e se vira com a
fisionomia divertida. Caminha até a bandeja de chá esquecida sobre a mesa e
serve um pouco na xícara; pega um cubo de açúcar e tempera a bebida.
— Todo bien — diz naquele maldito sotaque latino, por cima do som
da colher batendo nas bordas da porcelana. — Direi o meu nome, e talvez
possamos apertar as mãos, nos tornarmos amigos e tudo mais. Meu irmão
costumava dizer que sou una chica loca e, no fundo, ele sempre esteve certo.
Aquele babaca mau pagador! Tenho certeza de que voltou para Morella.
O quê?
— Morella?
Sinto náuseas.
Minha cabeça gira de volta à conversa conturbada que tive com
Camillo Fajardo há três semanas. Ele disse que Serena era exatamente “a
droga de uma chica loca”. Ele também deve muito dinheiro, é um mau
pagador. Um irmão endividado que fugiu de volta para a Espanha. Morella é
a cidade natal de Serena Fajardo.
Não pode ser apenas coincidência. Porra, não pode mesmo!
No dia em que nos encontramos na rua, ela me disse que estava
resolvendo problemas do irmão. É ela, só pode ser. Por algum motivo, essa
maluca conseguiu fazer com que eu desconfiasse dos meus próprios instintos;
devia tê-la pressionado naquela ocasião.
— Tudo bem? — indaga, o rosto encarando o meu, seus olhos
castanhos cheios de preocupação. — Ficou pálido de repente.
— Você — começo, desconcertado, metade de mim desfazendo-se em
revolta — tem que sair agora. Já chega dessa brincadeira! — Meu tom soa
mais rude que o necessário, petulante e autoritário.
O nome dos meus pesadelos reverbera nas paredes da minha cabeça,
ganhando finalmente um rosto. E é um fodido rosto que eu estava fantasiando
saborear há menos de dez segundos.
Puta que pariu. Se minhas suspeitas se confirmarem, se for realmente
verdade… Como não desconfiei antes? Tão óbvio!
O olhar dela vacila, confusa com a mudança abrupta na atmosfera.
Arriscaria dizer que exibe certo desapontamento, frustração por minha
retomada de controle. Estive rastejando atrás de uma sombra por nove meses
e, de repente, ela surge diante de mim com seus flertes e sorriso desregrado.
— Só vai de uma vez — ordeno, liberando o caminho para que parta o
quanto antes. — Devem estar precisando dos seus serviços em algum lugar.
Somos funcionária e chefe novamente.
— Era o que eu estava tentando fazer — declara, mantendo-se
inabalável. Adoraria descobrir de onde arranca valentia para não recuar. Ela
caminha devagar em direção à porta, mas para antes de atravessar o arco de
madeira e olha sobre o ombro, seu corpo equilibrado sobre os saltos
fechados. — Não tenho muitos amigos, porque aprendi a não deixar as
pessoas entrarem. Depois que entram, a porta fica aberta e podem fugir a
qualquer momento. Isso que você faz, se afastar e se esconder atrás do
prestígio de homem rico, é uma porta fechada. Não me convide para entrar se
não tem a chave para destrancar a porta. Todo mundo precisa de uma rota de
fuga.
Ela me dá as costas e bate a porta com força ao sair. É por isso que tem
tanto medo de perder o maldito emprego, em situações normais já estaria no
olho da rua.
Merda, desde quando eu permito que uma funcionária tenha esse tipo
de reação? Deveria ordenar que voltasse agora mesmo, que pedisse desculpas
pela falta de respeito, que explicasse como nos fez de bobos por tanto tempo!
Serena Fajardo.
Exalo pesadamente, arranco o paletó e o jogo sobre a poltrona
acinzentada perto das estantes. Com dois passos largos, retorno para a minha
mesa e abro a primeira gaveta. O aglomerado de fichas técnicas zomba de
mim enquanto agarro uma garrafa de vodca e sirvo um copo generoso. O bule
fumegante e a xícara cheia só fazem aumentar minha raiva.
São muitos documentos, porém, há um único nome que me interessa
agora. Tudo faz tanto sentido que chega a ser cômico.
Viro a bebida de uma vez, o líquido queima minha garganta. Não sou
eu. Assuma o controle! Recolho os papéis e acomodo-os debaixo do braço,
saindo às pressas do escritório em busca de um lugar tranquilo para analisá-
los.
Qualquer lugar que não esteja impregnado com o cheiro dela.

***

O pergolado da minha mãe acaba sendo minha melhor opção. Ele oferece
uma visão completa de todo o jardim, inclusive da enorme tenda que vai
abrigar nossos convidados.
Hoje em dia a mansão não precisa de reformas ou alterações, mas o
pergolado foi a primeira decoração externa exigida pela minha mãe quando
compraram a propriedade. A pequena casinha de jardim se transformou em
um refúgio depois de perder o marido, mas sempre o considerei o melhor
lugar para pensar sozinho.
Na primavera, as flores silvestres colorem os canteiros com pétalas
vermelhas, amarelas, azuis e brancas. Mas é o grande labirinto de arbustos
que mais chama atenção agora que a folhagem alcançou um tom de verde-
amarelado que cintila sob a luz do sol.
— Oi, tio. — Iago surge de um pequeno caminho que passa por baixo
de uma raiz de árvore. Ainda não está vestido com os trajes matrimoniais,
mas suas roupas casuais estão sujas de terra. — Você tá trabalhando? Posso
ajudar? Minha mãe foi procurar o meu pai, mas eu acho que os dois estão
fugindo da vovó.
Sentando-se ao meu lado, ele estica o pescoço para verificar as folhas
em minhas mãos. Retiro algumas pétalas pequenas e amarelas grudadas em
seus cabelos ralos e bagunçados, e Iago nem parece perceber meu toque.
Toda a concentração foi tragada pelo interesse em meu trabalho.
— Aposto que sim, sua avó está muito feliz agora que seus pais estão
se casando. E, respondendo à sua pergunta, estou procurando o nome de uma
pessoa.
Meu sobrinho revira os olhos e, para alguém tão pequeno, acho incrível
como fica parecido com Roman ao fazer isso.
— A mesma de sempre? — reclama, entediado.
Iago me desarma de um jeito bom, e agradeço por estarmos escondidos.
Depois de passar a última segunda-feira no escritório junto comigo, enquanto
Lara avaliava o terreno do clube na companhia de Ivan, ele passou a rever seu
interesse nas minhas supostas missões investigativas. Agora, fui rebaixado
para um agente secreto fracassado que passa o dia dentro de um escritório
sem graça.
Iago é basicamente uma versão mirim de Roman e seu temperamento
ácido, somado com a impulsividade do pai, a ética de Andrei e meu
complexo de praticidade. Mesmo não acreditando em destino, me conforta
que faça parte da nossa família, pois é um Volkiov melhor do que nós quatro
juntos.
— Serena Fajardo — confirmo. Até o pequeno está cansado de ouvir o
nome dela. — Pode ficar com esses, se quiser. — Separo algumas fichas e
entrego para ele, mas Iago faz uma careta e descarta os papéis sobre os
estofados florais.
— Não, obrigado. Eu tô bem de boa — diz com maturidade,
contradizendo a oferta de ajuda. Volto minha atenção para o trabalho, mas
seu silêncio não dura muito. — Olha, a moça do bolso machucado. — Ergue
o pescoço fino para enxergar alguém entre os empregados que estão
organizando as mesas.
— Do que você está falando? — pergunto distraidamente, passando os
olhos por fichas e mais fichas.
— Aquela mulher que estava brigando com um moço na frente da
empresa, tio. — Meu sobrinho fica de pé sobre as almofadas para ficar mais
alto, apoiando a mão no meu ombro. — Você é um agente secreto bem ruim
mesmo, não lembra de nada.
Pauso minha busca por um momento para dar atenção ao senhor
exigente. Assim que ergo meu rosto, uma rajada de vento assopra todas as
folhas para o alto e Iago se desequilibra, caindo em cima do meu colo com
uma folha na mão.
O susto de ver meu sobrinho caindo me paralisa. O ser humano é uma
criatura tão frágil que uma brisa singela é o bastante para roubar seu fôlego
para sempre. Por isso fiquei tão incomodado quando reconheci Corazón —
talvez Serena Fajardo — na frente da minha limusine, por isso não gosto de
me responsabilizar por Iago. Pessoas quebráveis se despedaçam nas mãos de
criaturas cruéis.
Iago sorri com os olhos azuis arregalados, o cabelo loiro todo
desarrumado balança suavemente. Acabo de perder dez anos de vida e tudo o
que me oferece é uma gargalhada. Como se nada tivesse acontecido, ele gira
o pescoço e aponta o dedinho magricela na direção da tenda.
Mais precisamente, para ela.
Outra vez.
Corazón.
— Aquela moça é a mesma que você e sua mãe encontraram na frente
do prédio? A que estava brigando com um homem?
Tento imaginar a cena, mas uma preocupação agressiva preenche meu
corpo e faço algum esforço para não deixar transparecer. Faz tanto, tanto
sentido. Se ela for Serena, talvez o homem em questão fosse Camillo Fajardo,
ou um de seus cobradores.
Céus, ela está tentando resolver a dívida do irmão! Essa menina não
tem um pingo de amor à própria vida?
— Sim, minha mãe tentou ajudar, mas ela estava com pressa. — Iago
deita a cabeça sobre as minhas pernas, mas continuo preso na mulher ao
longe, toda sorrisos.
— Já faz alguns dias, como pode ter tanta certeza, Iago?
— Ela tem aquele olhar triste. — A voz aguda de Iago suspende meu
raciocínio pelo simples fato de não fazer nenhum sentido.
— Triste? Como assim triste? — Olho para ela, rindo de algo que a
colega de trabalho diz. Meu sobrinho não responde; ao invés disso, estende a
folha amassada em suas mãozinhas pequenas.
— Olha, tio. Serena Fajardo.
SERENA

MINHA MÃE COSTUMAVA dizer que nasci com uma predisposição para o
caos. "Você gosta de consertar pessoas quebradas", repetia sempre que eu
lhe apresentava um novo amigo que era maltratado na escola pelos demais
alunos, ou quando chegava em casa com algum animal abandonado.
Talvez tenha sido essa particularidade que atraiu minha atenção para
Nicolai.
Dadas as condições em que nos conhecemos, era de se esperar que
aquele homem à beira do desespero parecesse quebrado aos meus olhos. Eu
mesma não reconhecia quantos fragmentos constituam a minha própria
existência. Mas as nossas feridas não deixam de doer só porque alguém
possui um machucado maior; a gente só se torna mais sensível aos problemas
alheios porque os nossos são complicados demais para serem solucionados.
O grande problema é que aquele ditado sobre aprender com os erros
não se aplica a mim. Se eu quebrar a cara uma vez, as chances de repetir a
burrada são grandes! Grandes pra caralho.
Vladimir é como um composto explosivo em estado de inércia, apenas
aguardando a substância necessária para entrar em combustão. E eu, como a
idiota incorrigível que sou, não consigo ter juízo o bastante para manter
distância.
Consigo reconhecer o olhar cobiçoso no rosto de um homem quando
está interessado fisicamente por mim, e Vladimir não se esforça para
esconder. Não é o tipo de pessoa com paciência para joguetes, mas é
cauteloso o suficiente para não agir sem pensar nas consequências. É o
presidente de um império, afinal.
Mas não é o seu poder ou a sua beleza que chamam a minha atenção.
Vladimir está quebrado e é irreal que eu capte sua angústia com tanta
facilidade.
— Você está bem, meu anjo? — A matriarca da família aparece ao meu
lado. Faltam poucas horas para os convidados começarem a chegar e a
mulher não parou um segundo sequer. Seus olhões são brilhantes e
confundem muito bem a verdadeira idade. É difícil acreditar que seja mãe de
quatro homens adultos. E que homens! — Você estava fazendo umas caretas,
está sentindo alguma dor? Precisa se deitar por um momento? Eu posso
arrumar um quarto se quiser. Temos quartos maravilhosos.
— Perfeitamente bem, senhora Volkiova. — Paro de amassar o arranjo
de flores que gentilmente nomeei como Lord Vlad número um e Lord Vlad
número dois, e abro meu melhor sorriso, torcendo para que ela não perceba o
estrago feito nos dois enfeites de mesa. — Não poderia estar melhor. — Rio
de nervoso, acrescentando: — Sabe como é, os pássaros cantam, as
borboletas voam, o sol brilha. Bem!
Bem doida, isso sim!
A mulher arqueia uma sobrancelha, analisando-me de cima a baixo. De
perto, identifico vários detalhes que contribuíram para a genética do herdeiro
mais velho: ambos possuem o maxilar quadrado e a expressão marcante nas
sobrancelhas grossas. Seu cabelo branco não parece um efeito colateral do
passar dos anos; a cor é moderna, um platinado que harmoniza as poucas
linhas de expressão no canto dos olhos. Ela é mais do que bonita, é única,
com certeza chama atenção do público masculino por onde quer que passe.
— Solteira? — indagada de supetão, arreganhando os dentes como se
cogitasse me comer viva.
— Sim? — respondo meio incerta, o diálogo fazendo zero sentido.
— É tão difícil, sabe? — divaga, abanando a mão no ar. Ao nosso
redor, outras funcionárias escutam a conversa, algumas seguram o riso. —
Casar um filho.
— Eu imagino que sim, deve ser complicado desapegar.
— Desapegar? Não, não. O difícil é fazer com que eles se casem! Tão
bonitos, mas tão idiotas! Você não os achou bonitos? Já viu meus três filhos
solteiros mais de perto?
— Você nem imagina! — disparo em um ataque de idiotice súbita. Já
vi mais do que ela pode imaginar. Quase tudo. Droga, não tem como corrigir
a gafe, vida que segue. Pigarreio para disfarçar, orando a todos os santos que
alguém me chame na cozinha. — Quer dizer, claro. Sua família é incrível.
Encaro o chão, com medo que a minha cara de pau nos coloque em
uma situação constrangedora.
Embora não tenha reencontrado Vladimir depois do nosso embate em
seu escritório mais cedo, meus olhos não desistiram de procurar. O maldito é
tão confuso que parte de mim deseja conhecer mais das suas facetas, mas a
outra parte só pensa em estapear aquele sorriso debochado junto com o nariz
perfeito, enquanto uma terceira parte poderia facilmente jogar os princípios
morais no fogo e se pendurar em seus ombros.
— Mesmo? — A senhora Volkiova, uma das mulheres mais conhecidas
na alta sociedade russa, gira sobre os saltos e volta a perscrutar minha
aparência com a sobrancelha arqueada no alto da testa. — Você pretende se
casar algum dia? Ter filhos? Teria filhos com um deles?
É o quê?
— Mãe, se continuar fazendo isso, as funcionárias vão começar a nos
processar por assédio. — O filho mais novo passa por mim com o semblante
preocupado e as mãos escondidas nos bolsos do paletó. Gente rica é assim,
veste terno dentro de casa e salto alto no jardim. Deus me livre dessa sorte!
— Já recebi três reclamações da gerência do restaurante.
— Andrei, não estou fazendo nada demais. Apenas um teste de
qualidade. Só estou tentando entender o que há de errado com vocês aos
olhos de outras mulheres. — Os dois se abraçam na minha frente, o rapaz
deixa um beijo na testa da mãe.
Francamente, me pergunto quantas pessoas precisaram nascer feias só
para essa família existir. E não estou falando somente de beleza física, há
uma vibração na forma como se comportam, como lidam com a vida, que
transforma a atmosfera em algo bonito de ver.
— Acha que existe alguma coisa errada conosco? — ele pergunta,
fazendo jus ao apelido que as cozinheiras lhe deram. O sorriso dele é
encantador, charmoso e extremamente sedutor.
Mesmo sendo o mais novo dos irmãos, tem praticamente a mesma
altura de Vladimir. O corpo é mais esguio, mas nem por isso menos atraente,
e o rosto tem os mesmos traços fortes do mais velho. Tanta gentileza e
amabilidade desencadeiam um arrepio estranho na minha espinha, e me sinto
exposta por seu olhar afável e analítico.
Ele parece me ler.
— Definitivamente — confirmo, minha língua sempre proclamando
independência em situações de apreensão. A doida só joga as verdades no
modo automático. — Digo… nenhum problema, senhor Volkiov. Vocês são
perfeitos. — Andrei solta um sorrisinho que, meu Deus, deveria ser proibido.
— Não! Não foi isso que eu quis dizer…
— Não somos perfeitos? — Ele se diverte, caçoando da atrapalhação.
Preparo-me para despejar mais uma enxurrada de baboseiras, mas o bom
moço me salva ao continuar falando: — É uma brincadeira, não precisa se
explicar. Ninguém é perfeito e nós com certeza também não somos.
— Vocês chegam bem perto — emendo, mais tranquila com a gentileza
em seu tom de voz.
— Não precisa mentir, querida. — Tatiana desdenha, revirando os
olhos. Apoia o rosto sobre os dedos cheios de anéis dourados e unhas longas.
— Vladimir nunca arrumou nenhuma namorada, um homem de trinta e dois
anos de idade deveria ter alguns casos, você não acha?
— Nenhuma? — Gargalho, duvidando. Esse homem não cansa de me
surpreender. — Que desperdício! Eu até suspeitaria da sexualidade dele se…
— Paro no meio da frase bem a tempo de evitar uma catástrofe, mas os dois
aguardam cheios de curiosidade e não posso simplesmente sair
correndo. Pensa rápido, Serena! — Se não estivesse acompanhado daquela
moça tão peculiar no jantar beneficente do senhor Palliermo. Eu estou
trabalhando no hotel dourado durante os finais de semana e coincidentemente
seu filho mais velho esteve lá no evento passado.
E o prêmio de melhor mentirosa vai para Serena Fajardo. Puta mierda,
preciso manter distância dessa família.
— Interessante — Tatiana murmura com o dedo indicador a bater sobre
o queixo, pensativa. — Você viu alguma coisa? Os dois pareciam um casal?
Eles se beijaram?
Socorro, Deus. Me ajuda aqui.
— Você não precisa responder se não quiser. — Andrei se coloca à
frente, as expressões oscilando entre confuso e humorado.
A resposta de sua mãe chega acompanhada de um tapa em seu braço:
— Não estamos em um tribunal, Andrei! Que inferno! É só uma
pergunta inocente.
— Não se beijaram — respondo, sem nada do entusiasmo de antes. Ele
não beijou aquela mulher mesquinha, mas imaginar a cena causa uma repulsa
física dentro de mim. — Eles não se beijaram em nenhum momento — repito
mais séria. — Tenho que voltar ao trabalho, se me dão licença.
— Espera — ela chama. — Qual é mesmo o seu nome?
Abro a boca para responder, mas sou tomada por um instinto de traição.
Vladimir disse que descobriria e quero ver como se sai após ter agido como
idiota. Não devo nada para ele e, mesmo assim, sinto como se fosse quebrar
um pacto se revelasse para alguém sem que tenha a chance de desvendar por
si mesmo.
— Você assustou a menina, mãe — repreende o ser abençoado que é o
irmão mais novo de Vladimir. Esse menino vai direto para o céu quando
morrer. — Pode ir, querida, não se preocupe.
Agradeço desajeitadamente com a cabeça e saio depressa rumo à lateral
do casarão, ziguezagueando entre mesas redondas ornadas com tulipas. Atrás
da mansão, há uma casa menor para nos arrumarmos, e algumas meninas já
estão com uniformes novos quando chego.
Por algum motivo, não haverá garçons servindo o buffet principal.
Troco minhas roupas pelo uniforme de saia e blazer brancos. Estou
quase finalizando minha maquiagem quando Raissa surge ao meu lado com
uma expressão traquina.
— Vai estar livre na sexta que vem?
— Estou sempre livre para ganhar dinheiro. O que vai ser, mais um
casamento?
— Credo, mulher, você só pensa em trabalho. Estou falando de
diversão! Música, vodca e homens gostosos. Ganhei três ingressos de um
cliente para uma boate chiquérrima na semana que vem. Vai ser divertido! Já
ouviu falar em open bar? Significa diversão gratuita.
Finjo ponderar. Diversão para mim é pagar todas as contas no final do
mês, sobretudo agora que consegui uma dívida que vai me levar direto para a
cova.
Pensando bem, talvez este seja meu último mês de vida. Só tenho mais
três semanas para arrumar o dinheiro de Maksim e nem cheguei perto de
conseguir alguns trocados para garantir a comida do mês. Talvez meu
corpinho lindo não tenha outra chance de sensualizar na pista — coisa que eu
obviamente não sei fazer. Mas nunca é tarde para aprender, certo?
— Vou pensar — respondo por fim, deixando a possibilidade em
aberto. Raissa bufa, prevendo minha recusa em potencial. — Vou pensar de
verdade.

***

Consigo ver pouco do casamento; há muitos convidados e uma quantidade


absurda de repórteres acampados no portão. Não há nada do tradicional
matrimônio russo. Hoje em dia, são poucas as famílias que seguem as etapas
clássicas, o que para mim é uma pena, pois normalmente as festanças
durariam três ou quatro dias.
Mas não deixa de ser a cerimônia mais emocionante que já participei.
Há um pouco do estilo retrô dos anos oitenta no vestido da noiva, com um
grande decote ovalado nas costas e mangas longas nos braços. Mesmo à
distância, noto como o olhar do noivo sobre ela é deslumbrante, com uma
veneração quase divina.
Andrei é o homem a levá-la até o altar, algo inusitado. Eles desfilam no
caminho de pedras, cerceados por convidados e fotógrafos. O ponto mais
emocionante do percurso é quando alcançam o topo da pequena ponte. Faz-se
um silêncio angelical enquanto conversam um com o outro sem que ninguém
seja capaz de escutar. Na ponta extrema, Ivan se estica e troca o peso do
corpo entre uma perna e outra, apreensivo com a pausa inesperada, mas não
demora muito e voltam a caminhar.
Assisto tudo de longe, alheia ao mundo. Há uma pequena comoção no
final que a distância me impede de compreender, mas envolve algum
discurso de Ivan logo antes do beijo.
E que beijo, diga-se de passagem! Se Vladimir tiver metade da pegada
que seu irmão demonstra na frente da plateia, está cometendo um pecado
gravíssimo por privar as mulheres do mundo do seu comprometimento com
as bocas alheias.
Céus, preciso arrumar uma língua para fazer par com a minha. E logo!
Talvez seja uma boa ideia dar início a uma lista de “coisas para fazer antes
de morrer”, só por precaução. É isso mesmo o que farei! Beijar e transar
devem ficar no topo, sobretudo porque morrer virgem deve ser algum tipo de
sacrilégio. Quem morre virgem vai para o inferno, não para o céu! Vinte dias
para fazer tudo o que não tive capacidade de fazer a vida toda não parece
promissor. Se existe alguém capaz de falhar em morrer com dignidade, esse
alguém sou eu.

***

A tenda da família fica no centro e, de modo estratégico, os demais


convidados foram alocados ao redor.
A tenta para a qual fui designada fica mais distante, e poderia muito
bem ser confundida com um daqueles clubes de golfe que abrem às seis da
manhã para receber os ricaços da terceira idade. Não que eu esteja
reclamando, bem melhor aqui do que no núcleo da festa, com a família em
polvorosa e Lord Vlad distraindo meus pensamentos puros.
Organizo-me para servir a primeira remessa de bebidas quando Raissa
intercepta meu trabalho com um olhar carregado com significados ocultos. A
princípio, a única coisa que me vem à mente é que serei demitida, mas afasto
a hipótese assim que ela vibra, enroscando as mãos sobre as minhas.
— Serena! Você vai ficar com a mesa dos noivos! — Ela me solta e
entrega uma bandeja, equilibra sete taças e começa a encher cada uma delas
com vinho. — Você sabe como funciona, esteja sempre disponível, mas não
próxima demais.
— Espera, como assim? Por quê? — Olho de relance para a mesa, meu
olhar encontra o de Vladimir e um arrepio desliza pela extensão da minha
coluna. É como se ele pudesse ver através de mim, meus segredos, minha
alma.
— O presidente pediu — explica, gemendo de maneira pervertida ao
mencionar o título do sujeito. — Ele disse "aquela funcionária espanhola,
quero que fique responsável pela nossa mesa". Dá-lhe, fogo espanhol! — Ela
faz um movimento de flamenco desajeitado, como se batesse castanholas
imaginárias uma na outra.
Diga o nome de qualquer país e os estrangeiros conseguirão sintetizar a
nação em uma única palavra. Espanha está para touro e flamenco assim como
Japão está para sushi e Brasil para futebol e samba.
Por cima dos ombros de Raissa, Vladimir mantém a atenção sobre nós.
É um homem silencioso e recluso, pouco conversa com seus familiares.
No fundo da mente, um resquício de sanidade me alerta para não
transparecer como sua decisão mexe comigo. Vladimir é um homem bonito,
imponente, e, apesar de problemático, considerando o imenso abismo social
entre nós, possuo dois olhos em perfeito estado funcional e não gosto de
esconder as coisas que sinto.
A vida é como um botão, Nicolai costumava dizer.
Tenho pensado muito nele nos últimos dias, gostaria de entender o
porquê.
— Acorda, mulher! Estão esperando por você, vai!
Respiro fundo, afirmo com a cabeça e endireito minha coluna, andando
com firmeza até o espaço mais animado da festa. A mesa principal é maior e
circular, reservada exclusivamente para os membros da família Volkiov. De
tempos em tempos, as pessoas se aproximam para dizer banalidades e logo
retornam para a pista de dança ou seus próprios lugares.
Não dou para Vladimir a satisfação de procurar seu olhar outra vez, por
maior que seja a ânsia de me perder naquela imensidão azul. O maldito
conhece meu ponto fraco, sabe que prezo pelo meu emprego e tenho certeza
de que usará isso contra mim se quiser. Ou talvez, como presidente, não
arrisque sua reputação na frente de tantas pessoas.
As possibilidades são infinitas e imprevisíveis, e tudo o que eu espero é
não surtar até o fim do dia.
Acomodo cada uma das taças na frente de todos os membros,
relembrando as posições de cada um de acordo com os nomes memorizados.
Lara é a noiva, agora casada com Ivan Volkiov, o segundo filho mais velho
depois de Vladimir; estão sentados no meio, recebendo atenção maior
enquanto ostentam a felicidade do mundo nos ombros. Do lado direito, um
menino com semblante sério brinca de girar uma colher de sobremesa entre
os dedos; seu olhar sobre mim é idêntico ao do tio, deixando-me
desconcertada.
Tenho a impressão de já ter visto seu rostinho solene de cabelos loiros
em algum lugar.
Tatiana Volkiova, brilhante em seu vestido dourado, mantém uma
discussão séria com a nora sobre a lua de mel, enquanto Roman se dedica a
qualquer coisa no seu celular. Andrei, ao lado, divaga com os pensamentos
distantes e olhar desfocado. Se o mundo acabasse agora, talvez ele não
percebesse.
Tento ignorar Vladimir o máximo possível, principalmente quando
inclino para servi-lo e seu olhar queima nas minhas bochechas. Resisto
bravamente.
Assumo uma distância segura ao constatar que estão servidos e com os
pratos ainda cheios. Sinto o gosto do meu batom sobre a língua por causa da
minha mania de morder o lábio quando estou nervosa. Ele está me encarando,
tenho certeza!
Em determinado momento, a mulher que esteve lhe acompanhando
durante o jantar no hotel também aparece para congratular os noivos; junto
dela, um senhor simpático e calvo. Felizmente, não preciso chegar perto da
mesa, já é bastante incômodo assistir enquanto ela abraça Vladimir como se
fossem íntimos.
Depois que os dois voltam para a festa, o peso do olhar dele retorna
mais forte do que nunca.
Não vou olhar, não vou olhar, não vou… ah, que se dane!
Cautelosamente, espio Vladimir e, como esperado, ele me olha de volta,
cruzando os braços em cima do grande peitoral e da gravata listrada de preto,
cinza e branco.
Misericórdia, não existe maneira saudável de receber um olhar dessa
criatura sensual e não sentir múltiplos efeitos no hemisfério sul. Preciso sair
daqui urgentemente, antes que uma desgraça aconteça. Vladimir é uma
doença crônica que afeta diretamente o meu miocárdio.
— Conheço você de algum lugar. — A voz da noiva me intercepta
antes que eu consiga me afastar. Ela aponta o dedo indicador na minha
direção como se não fosse a protagonista do próprio casamento.
Era só o que me faltava.
Vladimir inclina em sua cadeira e sussurra algo no ouvido do sobrinho,
que assente. Não sei se gosto da situação, estão todos olhando para mim com
interesses renovados.
— É a moça daquele dia, mãe, aquela que estava brigando com um
homem esquisito na frente da empresa — ele explica com a voz de criança,
fazendo-me recordar dos dois e da Corporação Volkiov na frente da qual eu e
Camillo brigamos.
— Isso mesmo! — Lara bate uma mão contra a outra. — Meu filho tem
uma memória de elefante!
— O quê? — O menino franze o cenho, inclina a cabecinha para o lado.
— Não, mãe, nunca vi nenhum elefante não.
— Querido, é só uma expressão, modo de dizer. Significa que sua
memória é muito boa.
— Brigando com um homem? — Ivan se mexe na cadeira, o braço
apoiado nas costas de sua esposa. Por educação, volto a caminhar para mais
perto, torcendo para que um terremoto nos interrompa. — Aconteceu alguma
coisa? Nunca ouvi sobre isso.
— Na verdade, eu estava voltando para casa — Lara explica,
acalmando seu marido e aumentando a minha taquicardia. — Nós vimos
quando ela foi abordada, pareceu um roubo.
— Um roubo no centro de Moscou? — Andrei também entra na
conversa e tenho a impressão de que outras pessoas nos escutam também,
mas disfarçam com a discrição dos curiosos. — Não chamaram a polícia?
— Era o meu irmão — intervenho com poucas palavras. Se me
obrigarem a falar mais do que isso, a vergonha não vai caber na festa.
— Você estava quase chorando — Iago insiste, não sei se por inocência
ou coagido pelo tio. Imagino Vladimir como um diabinho perverso em seu
ombro, conspirando contra mim.
— Quase, sim. Mas não chorei, tive que ser forte para seguir em frente
e agora está tudo bem. — Nem tão bem assim, reflito, sem coragem para me
abrir demais.
— Que besteira, a gente pode chorar sempre que der vontade. Mesmo
sendo menino ou menina, não tem problema — diz a criança com muita
maturidade. Seria fofo se não estivesse me ferrando com a ajuda do tio.
— Seu irmão roubou você? — Tatiana, escandalizada, coloca a mão na
frente da boca. — Pobrezinha, deve ter sido horrível. Pode contar conosco se
precisar, meu filho aqui é advogado, o melhor e mais lindo do país.
E lá vai ela novamente fazendo propaganda — verídica e válida, isso
ninguém pode negar — dos filhos. Meu interesse é um pouco mais
ganancioso. Vladimir é um homem inalcançável, mas fantasiar não paga nada
e eu ando aceitando tudo o que é de graça.
Por falar em Vladimir, o bonito faz uma troca de olhares com Roman
que não me passa despercebida. Conversam sem falar em voz alta e se
entendem dessa forma. Eu costumava ter uma conexão semelhante com
Camillo, mas os vícios levaram isso também.
Será que esqueceram do casamento? Os russos geralmente são
reservados. Não estou acostumada com pessoas tão expansivas desde quando
ainda morava na Espanha.
— Na verdade, eu gostaria de saber mais sobre isso. Não é todo dia que
temos a oportunidade de ouvir uma grande história — Vladimir diz de
repente, fingindo que não me conhece, com um brilho diabólico no sorriso.
É instantâneo, todas as cabeças viram sincronicamente, assombradas
como se o próprio Lúcifer tivesse aparecido do nada. A meu ver, ele esteve
ali o tempo todo, partilhando de seus pratos.
Onde ele pretende chegar com isso? Quer me amedrontar? Humilhar?
Não… é um desafio, um teste para se sobressair, acreditando que não
posso me impor. Afinal, que doida eu seria se armasse um barraco bem
agora.
Mas, se ele pensa que vai me fazer recuar, está muito enganado,
desafiando a pessoa errada. Conheço cada pequena curva do caminho
perigoso que ele tenta percorrer. Se for para perder um emprego, prefiro que
seja sempre em grande estilo.
— Estranho — digo, lentamente, espelhando o mesmo sorriso
devastador que ele, digladiando contra o seu olhar congelante. — Não parecia
interessado na minha história quando nos encontramos mais cedo, nem
mesmo enquanto praticamente implorava para saber o meu nome.
O maldito não move uma única linha de expressão, mas a mãe dele
começa a tossir metade do seu vinho sobre o vestido da noiva. Andrei,
atordoado, bate nas costas de Tatiana enquanto Ivan e Lara parecem estátuas
de mármore, brancos e petrificados.
Vladimir arrasta a cadeira para trás, fica de pé em toda sua glória de
terno, músculos e pecado, e apoia as duas palmas sobre a mesa, fulminando-
me. Já vejo a luz no fim do túnel e ouço o canto dos anjos. É agora! Adeus,
mundo cruel.
— Eu sei o seu nome, Corazón — diz com um grunhido, deixando o
sotaque impossivelmente mais provocativo. — Sei muito mais do que você
imagina.
— O que vem agora? — Imito seu movimento e me inclino sobre a
mesa, aproximando nossos rostos. A merda já foi feita, o melhor é manter a
cabeça erguida e ver o quão atraente Vladimir consegue ficar quando está
nervoso no nível máximo. — Quer uma estrelinha? — sussurro.
Um dos irmãos gargalha, mas não olho para conferir qual dos três.
Vladimir balança a cabeça negativamente, um poder inominado estendendo-
se entre nossas respirações ofegantes. Quando diz as palavras seguintes,
entendo que dessa vez a vitória não é minha.
— Serena Fajardo — declara, e meu nome nunca soou tão perverso na
boca de um homem.
Para minha surpresa, por qualquer motivo absurdo que vai contra a
lógica, os irmãos arfam, espantados.
— Não fode, Vladimir! — Roman dispara antes de se voltar para mim.
— A porra do seu nome é Serena Fajardo?
— Ele te chamou de Corazón? — Tatiana contribui para o caos, tirando
suas próprias conclusões. Acho que ela, ao contrário do filho, entende o
espanhol muito bem.
— Mas é a mesma? — Andrei também se une à algazarra, mais formal
e compenetrado. — A nossa Serena?
Epa!
— Não sou de ninguém não! — protesto, sem entender nada, escutando
meu sangue pulsar no pescoço. — Seja lá quem pensam que sou, a culpa não
foi minha!
— Claro que algo assim ia acontecer no nosso casamento — Lara
reclama, limpando o vestido branco com um guardanapo.
Desorientada e morrendo de vergonha, não consigo dizer nada
eloquente o bastante para remediar o estrago. Vladimir rodeia a mesa,
bufando, irritado e com os ombros tensos. Sua sombra paira sobre mim.
— Venha comigo — ordena, chocando novamente seus familiares. No
fundo, meu desejo é esse mesmo, sair dessa festa o mais rápido possível e
chorar três vidas pelo emprego perdido. Eu sou uma idiota.
Ele me arrasta pelo cotovelo, os dedos firmes fechados no meu braço
enquanto nos guia de volta para a mansão, dando um espetáculo e tanto aos
convidados. Preciso andar aos pulinhos atrás dele para manter seu ritmo, e
logo estamos entrando na garagem.
Vladimir me empurra para o fundo, perto de uma coleção de motos
esportivas. Como já arrisquei muito a minha vida por hoje, mordo a língua
para não o irritar ainda mais. Ele soca um botão na parede e as portas
começam a fechar lentamente, ocultando-nos do mundo externo e nos
privando da luz.
Perco o ar ao sentir seus braços prensando-me contra a parede. A sede
de poder em Vladimir é tão grande que me coagir é sua primeira estratégia.
Como não sou nada boba, não luto contra sua vontade. Já perdi o emprego, o
que vier é lucro.
Posso sentir sua respiração pesada, idêntica à minha, nossas bocas
quase se tocando. Continuo confusa sobre o que aconteceu lá fora, mas
Vladimir rouba toda a minha atenção. Mesmo submergidos no breu, a
distância mínima me permite ver seu semblante contrariado, o maxilar
comprimido e a boca retesada em uma linha tênue, lutando contra o desejo
lascivo de me atacar.
Atacar.
A máscara de presidente se foi. Em seu lugar, ficou o homem que exala
perigo por todos os poros da pele, atraindo-me como um rato para o queijo na
ratoeira.
As sensações da cobiça febril se somam no meu estômago, aumentando
a adrenalina. Vladimir é uma ameaça às minhas fantasias imaturas, que não
podem em hipótese nenhuma se transformarem em esperança.
O terno preto quase se camufla completamente no escuro, enquanto eu
estou toda visível, à mercê em meu uniforme claro. A tensão entre nós faísca,
seus pensamentos desejosos espelham os meus. Há uma vontade latente,
pulsando, vibrando onde nossos corpos se tocam.
— Desculpe ter falado aquilo na frente da sua família. — Faço a
coitada. Em situações assim, meus neurônios morrem. A parte funcional do
meu cérebro é preenchida com imagens fictícias de um beijo.
O corpo de Vladimir chacoalha com seu riso imoral, aspirando minha
pele, passeando com a ponta do nariz pelas minhas bochechas até chegar na
orelha.
— Não pode me desafiar e depois vir com um pedido de desculpas
como se isso resolvesse as suas loucuras — rosna com os dentes cerrados no
meu ouvido. A respiração profunda demonstra segurança e equilíbrio, mas as
ações são eufóricas. — Eu não perco o controle tão fácil como pensa.
Mas eu sim, penso, clamando por mais e oferecendo o dobro. Vladimir
retira os grampos que prendem meu cabelo, deixando os fios livres sobre
meus ombros. Por causa do gel, estão duros e secos, mas as pontas caem em
ondas. Ele não avança, só me provoca, rindo a cada suspiro que me rouba.
Acho que joguei pedra na cruz, só pode! Matei alguém na outra vida, roubei
doce de crianças pobres.
Por fim, agarro a última ponta de bom senso sobrevivente no naufrágio
que se tornou o meu cérebro e forço seu peito rígido para trás.
— Para el infierno com su control. — Ouço minhas palavras em
espanhol, ciente de que não consegue entender nada. Para alguém que não
sabe sair dos limites, a incompreensão deve doer. — Foi você quem
começou!
Vladimir mede todas as minhas reações. Sua mão esquerda segura
firme a minha cintura, enquanto usa a outra para se apoiar na parede. Longe
dos familiares e amigos, é como se fosse outra pessoa, mais desesperado,
mais perdido. Alguém que consigo alcançar, que está se afogando em caos.
E, se estou mesmo predisposta ao caos, talvez esteja predisposta a
Vladimir.
— O que você tem, Corazón? O que você tem que me deixa assim?
Uma batalha está sendo travada em sua mente; consigo sentir o clamor
da sua hesitação digladiando com a atração inegável de prosseguir e vencer
nosso jogo de necessidades reprimidas.
Porém, a escolha chega mais rápida e frustrante do que eu gostaria.
Sem avisar, ele me solta e minhas pernas fracas por pouco não cedem
ao chão. Vladimir se afasta, passando as mãos nos cabelos e resmungando
alguns xingamentos para si mesmo.
— Temos muito para conversar, Serena. — Levanta a mão direita e um
cartão balança entre o dedo indicador e o médio; ele o estende para mim. Há
o nome de Vladimir em letras maiúsculas na parte de trás, junto com suas
funções e o endereço da empresa. É um cartão de visitas bem elegante. — Eu
sei quase tudo sobre você, Serena Fajardo. O que ainda não sei, você me
contará em breve.
Colada à parede, extasiada por seus avanços e a quebra de expectativas,
com o corpo quente e coração acelerado, seguro o cartão sem muita firmeza.
— O que eu deveria fazer com o seu cartão, exatamente? — pergunto,
amaldiçoando minha respiração entrecortada.
Vladimir percebe como me deixou, porque sorri daquele jeito
endiabrado e prepotente antes de responder:
— Ligar no começo da próxima semana para marcarmos uma reunião.
Queremos comprar a sua casa, senhorita Fajardo. Me deve nove meses de
vida, esse é o tempo que tenho procurado por você.
SERENA

AS PALAVRAS DE Vladimir, dizendo que esperava comprar a minha casa,


assombraram-me durante todo o final de semana.
Ele se aproveitou do meu choque para escapar dos meus vários
questionamentos e retornou para a festa. Minha chefe, assim que ficou
sabendo do ocorrido na mesa dos noivos, foi obrigada a me dispensar, e não
tive escolha a não ser voltar para casa.
Agora, enquanto subo os degraus do edifício onde Vladimir trabalha,
deveria me preocupar com a interminável lista de infortúnios que só crescem
na minha vida: a dívida de trinta mil dólares, um irmão degenerado que
escondeu de mim a verdade sobre a casa dos nossos pais, uma ameaça de
morte com contagem regressiva em andamento, minha constante falta de
dinheiro e a virgindade que segue firme por falta de oportunidade; mas, ao
invés disso, só consigo pensar no quanto os olhos de Vladimir escurecem
quando se rende ao desejo e quais sabores seus lábios escondem.
Há uma mistura exótica da contemporaneidade do prédio que combina
com os detalhes sutis da cor acinzentada do concreto. Muitos metros acima,
as vidraçarias são como espelhos que refletem pessoas e construções, como
olhos que tudo veem. Ninguém se aventura nesta montanha de cimento sem o
aviso prévio de que um gigante vive no topo e que ele ruge como um leão
faminto exibindo sua enorme juba de rei.
As estações calorentas são as minhas preferidas, pois gosto de sentir o
banho morno dos raios solares e de deixar os cabelos livres das toucas
térmicas. O vestido preto e sem mangas se molda ao meu corpo até os
joelhos; não limita meus movimentos e é formal o suficiente para uma
reunião. Meus saltos vermelhos — exagerados e desconfortáveis, há de se
destacar — são as únicas peças com alguma cor, e marcam o meu caminho
com um som abafado assim que entro no saguão.
— Serena Fajardo? — Antes que eu alcance a recepção, Andrei
Volkiov me intercepta e perco momentaneamente a linha de raciocínio. Não
que ele desperte em mim as mesmas sensações que Vladimir, mas o homem é
bonito de morrer, além de possuir uma sutileza em seu sorriso muito
aconchegante; talvez tenha relação com sua personalidade profissional, na
maioria das vezes advogados são pessoas habilidosas na arte de transmitir
confiança. — Ainda não acredito que depois de tanto tempo te procurando,
você simplesmente apareceu dentro da nossa casa.
— Chamar aquele castelo de casa é o cúmulo da humildade. — Estico a
mão, entretanto, ao invés de devolver o cumprimento, ele conduz meus dedos
até seus lábios e deposita um beijo. Misericórdia! — Eu mesma, em carne e
osso! Tenho uma reunião com Vladimir e já estou atrasada.
Andrei indica o caminho como um perfeito cavalheiro. Como pode ser
tão diferente do irmão mais velho?
Caminhamos um ao lado do outro. Observo melhor o mais jovem dos
irmãos Volkiov e chego a uma conclusão: os quatro não ficariam feios nem
se tentassem. O terno tem um caimento espetacular em seus ombros e o
cheiro dele preenche todo o elevador assim que entramos, com notas de
canela e qualquer coisa cítrica. Seus cabelos, diferente dos demais, tem
pequenos cachinhos muito escuros cobrindo sua testa e orelhas.
Mas são os olhos dourados que me deixam desconcertada, pois me
fitam com muita curiosidade. Será que falei alguma besteira?
— Não sabia que eram tão próximos — comenta, fazendo parecer
natural.
— Não somos. Para falar a verdade, nos encontramos quatro vezes, e
sempre acabamos discutindo por algum motivo. — Os andares passam sem
parar nenhuma vez. Desconfio que ele não saiba como seu jeito de analisar as
pessoas é invasivo e confuso, pois o menino é simplesmente um anjo. — Por
que diz isso?
— Você o chamou de Vladimir — explica, todo doce.
Ah! Sabia que tinha falado merda.
Repreendo-me mentalmente com todos os palavrões espanhóis e russos
inventados pela humanidade. Por sorte, Andrei é educado demais para invadir
meu espaço com perguntas sobre o dia do casamento, quando eu e seu irmão
quase nos atracamos no meio da festa.
Só de lembrar já sinto meu corpo todo se coçando de constrangimento.
— Você deve ter escutado errado. — Dou de ombros com a melhor
cara de paisagem, mas minha boca grande não se dá por satisfeita e continuo
com a vergonha alheia: — Tenho certeza que o chamei de senhor presidente.
Andrei solta uma gargalhada gostosa, jogando a cabeça para trás, algo
que considero ultrajante. Como advogado, ele precisava entender que fazer
isso é quase um crime — tem que ser, não é possível. Sorrindo ele já é um
atentado contra os corações femininos, gargalhando se torna uma arma de
execução em massa.
— Está argumentando com um advogado? — Ele parece mais feliz do
que da última vez que nos vimos. Travo os dentes para não falar mais
nenhuma idiotice e me limito a negar. — Estamos chegando, vou descer no
andar dos escritórios, pode subir até o da presidência. Boa sorte!
— Vou precisar?
— Bem, você disse que está atrasada, isso já é suficiente para merecer
ao menos a minha piedade. — Paramos e as portas voltam a se abrir. Andrei
coloca a mão entre as duas para nos segurar por um momento. — Vladimir é
uma boa pessoa, mas os problemas com o clube e a pressão dos investidores
acabaram abalando os nossos negócios, e meu irmão respira por essa
empresa. É a vida dele. Pode parecer superficial…
— Não é superficial — interrompo-o. — A vida nunca é superficial,
não importa por quais motivos uma pessoa escolha viver. — A sombra de um
pensamento lastimoso cruza as linhas expressivas de Andrei. — Eu realmente
não sabia sobre a casa, sabe? Nem que estavam me procurando. E eu juro que
não fazia ideia de quem eram vocês quando aceitei trabalhar no casamento do
seu irmão. No fundo, bem lá no fundo, não sou tão maluca como pareceu
naquele dia. Ou talvez eu seja, mas não faço por maldade, é mais forte do eu.
Peça desculpas à sua mãe por mim, ela deve me odiar por ter estragado a
cerimônia.
— Serena — ele diz, sem minúcias formais, e afasta a mão que impede
o elevador de seguir seu percurso. — Você não estragou o casamento. E,
acredite, minha mãe definitivamente não odeia você.
Antes que eu tenha a chance de falar qualquer outra coisa, o elevador se
fecha e volta a subir. Em poucos segundos, meus saltos afundam no carpete
acinzentado que recobre o chão no ponto mais alto do edifício. As cortinas
fechadas atrás da enorme mesa presidencial escurecem o ambiente e tornam a
atmosfera mais pesada.
O andar é composto por dois cômodos divididos por paredes de vidro
negro, as portas abertas revelam uma sala de reuniões no lado direito. Todos
os detalhes se perdem assim que Vladimir ergue o queixo e me paralisa com
seu olhar penetrante. É hoje que eu caio morta na frente desse homem.
— Foque na reunião, sua idiota — sussurro bem baixinho para que ele
não escute. Depois me aproximo, falando mais alto: — Desculpe pelo atraso.
Parada na frente da mesa, com a bolsa balançando no meu ombro
direito e a certeza de que a gente não consegue disfarçar o interesse um no
outro, admiro Vladimir em seu habitat natural.
Estamos vários metros acima do chão, outra vez sem olhares de
terceiros para nos limitar, ou julgar. Se Vladimir é mesmo tão controlado
como tenta parecer, por que fingiu que me beijaria para, simplesmente,
entregar a droga de um cartão?
Talvez ele goste de jogar com o poder, de atrair suas vítimas para
dentro de uma armadilha inescapável feita com músculos fortes, perfume
inebriante e olhos intensamente sedutores.
Puta que pariu, que armadilha deliciosa, socorro!
Foco, Serena.
— Meia hora! — Irritado, estica o braço para conferir o relógio em seu
pulso. — Cancelei duas reuniões por sua causa.
Vladimir se levanta, balançando a cabeça negativamente. A atmosfera
empresarial apaga a parte leve e rara da sua personalidade, realçando sua
grandeza.
— Já pedi desculpas, senhor presidente. — E lá se vai a compostura…
Um sorriso cortante se desenha em seu rosto, fazendo-me lembrar uma
serpente. Sem encostar nenhum dedo em mim, ele nos conduz para a sala
anexa. Sigo em silêncio, o coração acelerado. É um novo Vladimir, mais
misterioso, mais fechado; e eu não tenho nem vergonha na cara o suficiente
para sentir medo.
Ele para no arco que divide os dois ambientes, de modo que resta
apenas um espaço estreito entre seu corpo e o batente da porta. É um desafio
silencioso que aceito com prazer. Sem abaixar meu rosto, caminho com a
menor velocidade possível e, assim que seu calor tateia o lado esquerdo do
meu corpo, ouço sua voz baixa e rouca:
— Você fica linda de preto.
Ai, caramba. Estou pagando meus pecados, é isso. Esse homem quer
me enlouquecer!
Pena que já sou boa nessa coisa de ser doida sozinha.
— Bem, se quer saber, estou de luto pelo beijo que você assassinou no
outro dia. Eu realmente acreditei que ia me beijar e, de repente, nada.
— Não costumo beijar clientes — murmura, fazendo aquela coisa de
segurar a minha mandíbula, mas nem pensar que vou cair nessa outra vez.
— Bom para você! — retruco, cutucando o peito dele com o dedo
indicador. — Eu basicamente costumo não beijar, então imagina o nível da
minha frustração.
Seus dedos pressionam o meu maxilar com mais intensidade. O mundo
está literalmente acabando e eu aqui, brincando de me apaixonar por um
homem que deixou bem claro as suas prioridades.
Não que eu já esteja apaixonada por ele, longe de mim, quer dizer, mal
nos conhecemos, isso é organicamente impossível. Deve ser desejo de virgem
frustrada. Ou curiosidade, já que temos todo esse caos queimando dentro nós.
Não sei. Não adianta nomear algo que precisa ser sentido primeiro.
— Senhorita Fajardo. — Limpa a garganta, assumindo a postura de
chefe fodão, e se afasta. — Nossa sala é equipada com câmeras de segurança
audiovisuais, então sugiro um pouco mais de cautela.
— Câmeras? — Sento-me em uma das várias cadeiras vazias, de costas
para a janela panorâmica que ocupa toda a parede. — Que interessante. Quer
dizer que ninguém nunca deu uns amassos aqui? Achei que homens como
você teriam esse tipo de fetiche… — Gemo assim que termino de falar. Não
basta passar dos limites, preciso perceber só quando é tarde demais. — Pode
fazer de conta que não ouviu essa última parte?
— Eu e o departamento de segurança inteiro — responde, rude, como
se fosse uma ordem. Remanejo meu cabelo para esconder a vermelhidão
concentrada nas minhas bochechas, e Vladimir se senta na extremidade da
mesa reservada para o posto mais alto. — Respondendo à sua pergunta, pode
ter acontecido com algum dos meus irmãos. Mas, além de impróprio,
misturar negócios com interesses pessoais não faz parte do currículo da
minha empresa.
Recebo a indireta, mas não deixo por isso mesmo.
— Então, por que me chamou de linda?
De esguelha, analisa a pequena câmera circular em um dos cantos,
apreensivo que escutem a nossa conversa. Não estamos sozinhos, não de
verdade, e me entristece que não vá se libertar como das outras vezes. Sua
meticulosidade deve ser apreciada pelos outros, mas a mim só causa tristeza.
Um pássaro preso dentro de uma gaiola só parece feliz porque as grades
são tudo o que ele conhece.
— Protocolo, um elogio educado — responde, recuando em suas
investidas. — Então, melhor irmos direto ao assunto.
Paro de forçar, prezando pela minha integridade. Algumas vezes
superestimo as habilidades que possuo para decifrar pessoas, e Vladimir é
mais do que um mistério ou alguém interessante, mais do que uma alma
querendo ser consertada.
Ele gosta de ser assim, de mostrar que as feridas aumentam a sua força.
Com profissionalismo, explica como surgiu a ideia de construir um
clube no meu antigo distrito. De acordo com seu relato, as coisas começaram
a dar errado logo no começo, quando visitaram Camillo pela primeira vez e
descobriram que a proprietária — no caso, eu — não vivia na casa. O terreno
da minha família faz parte da planta que desenvolveram e, por causa disso,
precisaram paralisar a construção.
— Quando meus pais morreram, Camillo disse que a casa tinha sido
passada para o nome dele, que eu não tinha direito — esclareço. É uma
lembrança triste que não gosto de reviver. — Passei por alguns problemas,
não queria saber da casa ou qualquer coisa que fosse. Só aceitei e segui em
frente. Nossa relação é complicada, ele também estava vivendo algo difícil,
se envolvendo com pessoas ruins e eu tinha medo de… não suportaria aquilo
chovendo em mim, então nos afastamos. O distrito é um lugar perigoso para
uma menina sozinha de dezessete anos, ter a chance de sair era tudo o que eu
precisava.
— Seja específica. — Inclinando para frente, Vladimir abaixa o rosto
para me incentivar, o cabelo preto e brilhoso de gel reluz com a claridade.
A sala de reuniões parece menor de repente e me torno mais consciente
de Vladimir e seus olhos muito azuis franzidos enquanto escuta. Se já não o
conhecesse o suficiente, diria que está preocupado.
— Meus pais morreram em um acidente, sobramos eu e Camillo. Meu
irmão não é uma boa pessoa, Vladimir, mas nesse mundo existe alguém que
seja perfeito? Que nunca cometa erros? — O silêncio confirma minha tese,
prossigo: — Ele escolheu trabalhar para um grupo criminoso local em troca
de proteção, caso contrário iríamos parar em algum abrigo para jovens órfãos,
ou coisa pior. Somos estrangeiros, não sei o que teria acontecido com a gente
se ele não tivesse feito isso.
—Corazón, eu não imaginava. — O apelido, dito naturalmente assim,
faz cócegas no meu coração. Vladimir arrasta a sua cadeira, abandonando o
posto só para ficar mais perto de mim. — Seu irmão nunca quis explicar. Nas
primeiras visitas, chegou a ser agressivo.
— Mais vinte dias e seu problema teria se resolvido de qualquer
maneira — resmungo mais para mim do que para a continuidade da nossa
conversa.
— Como assim? — pergunta, assustadoramente manso. Não me engana
nem um pouco. O olhar desconfiado, intenso e penetrante, causa uma pane
geral no meu sistema nervoso. Não é à toa que o homem está no topo do
mundo, com essa capacidade absurda de fazer as pessoas perderem a
inteligência.
— Bem, tem esse cara…
— Namorado — afirma com os olhos semiabertos, a mansidão dando
espaço para um timbre intimidador.
— O quê? — gargalho, mas meu riso morre à medida que seu
semblante fica mais severo. Que humor do cão! — Não é nada disso, cabrón.
Camillo roubou uma grana alta daquele idiota do Maksim Loskov, e agora
está fugindo para não ser morto. Naquele dia em que a sua cunhada nos viu
aqui, na frente da empresa, Camillo veio atrás de mim porque precisava de
dinheiro.
— Ele roubou você — diz, lembrando do que eu já havia explicado no
casamento.
— Esse é o menor dos meus problemas. Maksim é um marginal,
conseguiu me encontrar e ameaçou me matar caso não conseguisse pagar a
dívida do Camillo até o final do mês. São trinta mil dólares e eu tenho um
total de vinte mil rublos russos na gaveta de calcinhas que, se convertidos,
devem dar mais ou menos trezentos dólares, de acordo com o
senhor Google, na economia atual.
Respiro fundo ao final da breve explicação. Vladimir, controlado e
clínico, balança a cabeça como se existisse algum indício de normalidade na
história. Ele deixa seu posto e retorna para a ponta da mesa, sentando-se na
cadeira executiva. Depois, retira o telefone do gancho com calma e começa a
digitar um número.
— O que foi? — Soa a voz de um homem no outro lado da linha
através do viva-voz; o timbre se assemelha ao do segundo irmão mais jovem,
Roman, se me lembro bem.
— Preciso que acione a polícia.
— ¡Puta madre! — Salto sobre a mesa, algumas canetas e pastas
escorregam e despencam no chão. Bato a mão na base do telefone e ela voa
para longe, pousando ao lado de um sofá com estofado azul-marinho. —
Perdeu a cabeça?
Ele xinga alto, sobressaltando-se, incrédulo com a bagunça e com a
minha loucura.
Espero que não tenha quebrado nada caro.
— Você acabou de contar que foi ameaçada de morte, além de
chantageada e roubada! — Saio de cima da mesa com dificuldade, arrumando
a barra do vestido desajeitadamente. Vladimir vem na minha direção,
esquivando-se das cadeiras, e todo meu corpo entra em alerta com sua
expressão. — Chamar a polícia é o que você deveria ter feito desde o
começo, mas está claro que não tem nenhum instinto de autopreservação!
— Sei me cuidar muito bem! — protesto, reprimindo a vontade de
bater nele quando abre seu sorriso de superioridade.
— Não sabe, Corazón. — Vladimir faz seu encanto, chega mais perto
para me acuar. Obrigo minhas pernas bambas a aguentarem firme o peso do
corpo enquanto seus olhos paradisíacos contemplam meus lábios. — Você
complica coisas simples. Foi naquele dia, não foi? Quando entrou na frente
do meu carro. Se eu soubesse que tinha sido ameaçada quando nos
reencontramos, não teria deixado você partir.
— Por que se importa? — sussurro, a temperatura aumentando dentro e
fora do meu corpo. — Achei que eu fosse apenas uma cliente.
Flagro seu olhar outra vez na minha boca e percebo que estou
mordendo os lábios. Não tenho limites, não possuo controle da minha vida,
não sei como é viver presa dentro do meu próprio corpo, mas Vladimir
desencadeia um desespero claustrofóbico que parte dos meus pulmões e
obstrui todas as vias aéreas. É como o medo da morte misturado com o desejo
da vida.
Bagunçado.
— Eu falei sério sobre sermos amigos, Serena.
— Agora me chama de Serena? — digo com os dentes cerrados. Não
quero parecer mais pirada que o normal, mas não consigo entender o que ele
pretende com essa besteira sobre amizade. — Sou trouxa, tenho o coração
mole e passei dez vezes na fila do azar, mas você, senhor Lord-Vlad-todo-
poderoso-gostosão, é um hipócrita.
Amigos é o cacete!
Vladimir arqueia uma sobrancelha, cruzando os braços protuberantes
na frente do peito largo, a cabeça levemente inclinada para o lado enquanto
ele tenta conter uma risada por causa da minha ira. Depois eu agrido o
cidadão e ainda saio como errada.
— Por que está me chamando de Lord Vlad, afinal?
— Lorde Vlad — traduzo, mas ele continua sem entender. — Que tipo
de russo você é? Nunca ouviu falar de Vlad, O Empalador? BramStoker se
inspirou na crueldade dele para escrever Drácula.
— Quer dizer que me acha cruel? — Seu rosto ilumina, gostando da
comparação.
— Não — Reviro os olhos. Vladimir possui um complexo óbvio de
personalidade, se acha muito malvadão. — Você não come, não bebe, não
dorme, também não gosta de se relacionar muito bem com as pessoas. —
Falta descobrir se também come virgens inocentes. — É a personificação
perfeita de um vampiro.
Divertido, Vladimir franze o cenho e solta uma risadinha ao mesmo
tempo em que seu celular começa a tocar. A melodia é instrumental, com
pianos sobrepondo-se a violoncelos, notas graves dançando com agudas e o
tom oscilando no ar entre nós. Moscou continua frenética na paisagem
estampada através das janelas.
— Sim? — atende, encerrando a música. — Não, Elena, está tudo bem.
Diga para Roman que não precisa ligar para a polícia. — A voz estridente de
uma mulher gritando ecoa ininteligível do telefone. — Depois eu explico.
Não, você não precisa vir! Nem o meu irmão.
— Acho que está na hora de eu ir embora — digo assim que encerra a
ligação. É melhor não continuarmos com essa brincadeira de gato e rato,
principalmente quando nós dois somos tão bons em ambos os papéis.
Vladimir me encara como se estivesse diante de um dilema
complicado.
— De quanto é o valor exato que precisa para quitar a dívida do idiota?
Vou providenciar que o dinheiro seja entregue. Assim, você fica longe dessa
gente e de problemas, se é que isso é possível, enquanto nós cuidamos da
documentação.
— Vladimir…
— Não adianta negar! — Aponta o dedo indicador, provando seu
ponto. — Eu juro que minha paciência não vai aguentar. Colabora pelo
menos dessa vez.
— Acha que estou em posição de negar dinheiro? — gargalho. — Mas
são trinta mil dólares! Sabe? Isso é muito dinheiro. Tipo, uns dois milhões de
rublos?
— Corazón — murmura, mais suave. Espalma uma das mãos sobre a
mesa, curvando-se até igualar nossas alturas, e, com a mão livre, coloca uma
mecha do meu cabelo atrás da orelha, deixando o polegar deslizar
rapidamente sobre a minha maçã do rosto. — Sinto muito, por tudo. Essa
coisa entre nós surgiu antes de eu saber quem você era. Agora a minha
prioridade é a negociação do terreno, mas, ainda assim, eu quero ajudar.
Deixe-me ajudar você.
Falando assim, Vladimir se parece mais com o homem que conheci há
três semanas no hotel. Sua sinceridade é admirável, apesar de contundente.
Não nega que a atração entre nós é mútua, mas não deixa brechas para a
esperança.
— Não existe negociação aqui. Pode ficar com o terreno, a casa. Odeio
aquele lugar, não faz diferença. Traga os papéis e assinarei o que você quiser.
— Obrigado — suspira, aliviado. O desespero evaporando sobre seus
ombros cansados torna sua contagem de nove meses mais sólida e menos
exagerada. Não deve ter sido um período muito agradável. — Vou me reunir
com meus irmãos, explicar o caso, e ajudaremos no que for possível. Então
espere enquanto descubro o que for possível sobre esse sujeito a quem seu
irmão deve dinheiro, e, qualquer coisa que precisar, entre em contato. Ligue
para mim, entendeu?
Esse homem gosta mesmo de mandar.
— Obrigada, senhor presidente — digo, provocando seu jeito
autoritário.
— Não me chame assim — pede, fazendo uma careta que não combina
em nada com seu lado prepotente e arrogante.
— E por que não?
— Não sei explicar — diz, franzindo o cenho. O terno bagunçado junto
com a gravata frouxa são despojos da nossa reunião frenética. — Só não
gosto de escutar você me chamando assim.
Há um abismo entre nós que Vladimir pretende preencher com suas
habilidades evasivas. Nenhuma mulher aceitaria ser apenas sua amiga depois
de checar o material sem embalagem, mas não me surpreende que não queira
dar seguimento em nossos flertes, afinal de contas, ele mesmo disse que faço
parte de um investimento, uma transação, e misturar as coisas seria
complicado para alguém em sua posição.
Estico a mão como um robô, qualquer movimento brusco e posso
acabar atacando o pobre homem como uma desesperada.
— Obrigada, Vladimir — repito, eliminando os rótulos. Ele ampara
minha mão, demorando no aperto firme e quente. Ao soltar, quase resmungo
com o vazio deixado pela ausência do seu toque.
— É melhor você ir agora — concorda.
Saímos juntos da sala de reuniões, retornando para o escritório. A
última despedida é mecânica e desengonçada, com nós dois tentando
disfarçar o quanto nos afetamos. Pelo menos, o objetivo foi alcançado e
agora, talvez, eu consiga me livrar da ameaça que Maksim Loskov representa
à minha vida.
Depois de finalmente sair da empresa, com o coração disparado e mãos
geladas, entro no primeiro táxi que para no acostamento, sem condições
mentais para enfrentar o caminho de volta para casa andando.
Casa…
Uma ideia surge como o sussurro do diabo. Dou as instruções ao
motorista, afastando a voz do meu irmão me instruindo avidamente para não
fazer o que pretendo.

***

Meus saltos engastalham entre as frestas dos paralelepípedos na rua e presto


atenção a cada passo para não dar de cara com o chão. O distrito é
praticamente o mesmo das minhas memórias: casinhas decadentes e muros
pichados com imagens obscenas e frases pejorativas.
O clube pode ser visto de qualquer ângulo, entretanto, à medida que me
aproximo, tomo consciência da sua imensidão. As obras estão bem avançadas
e o edifício se destaca no meio da decadência. A casinha dos meus pais quase
desaparece no meio de tanta sujeira de concreto.
A árvore onde meu pai amarrou duas cordas e um pneu velho para
servir de balanço já não existe mais. A tinta descascada dá indícios de ter sido
verde um dia, e nas janelas o vidro é inexistente. Meu peito reclama diante
das memórias que esse lugar desperta, mas repito comigo mesma que está
tudo bem. Faz muitos anos, não sou mais aquela menina.
Subo a pequena escada frontal devagar, com o estômago revirando. De
todas as péssimas ideias, essa talvez seja a pior.
Pensei que nunca mais voltaria.
Testo a maçaneta e a porta abre com um rangido. O cheiro de nicotina
parece impregnado em cada parede, móvel e objeto. Não há realmente nada
que remeta aos dias felizes, quando eu e Camillo nos fantasiávamos de
piratas em busca de um tesouro imaginário.
Não restou nada, ele destruiu tudo, não apenas coisas materiais, mas
lembranças preciosas. Camillo é meu único parente, mas também o único que
continua me puxando de volta para o abismo.
A casa de cinco cômodos se tornou um túmulo de sentimentos tristes.
Escuto um som vindo do quarto que pertencia aos meus pais, baixo e
melódico como um soluço. Olho ao redor por reflexo, de repente
amedrontada com a possibilidade de haver mais alguém na casa. Prendo a
respiração para escutar melhor, parando na frente do quarto.
Empurro a porta devagar com a palma da mão. À medida que a
claridade desanuvia minha visão e meus olhos recaem sobre o ambiente,
compreendo que nunca estive mais ferrada como agora.
Merda, Camillo, o que você fez?
No meio do quarto, um bebê de cabelos escuros e pele alva me encara
com curiosidade infantil, os dedinhos seguram um pano amarrado no bico
azul claro que mantém firme na boca. É uma menininha, pequena e
completamente discrepante se comparada com o cenário horroroso e imundo
ao seu redor.
Seu pequeno corpo tremula quando solta outro soluço, os olhos escuros
estudando meu rosto. Recuo um passo por impulso. Criaturas tão pequenas e
delicadas me assustam. Frágeis demais, dependentes demais, são muitos
instintos de preservação requeridos por uma criança; quase não os tenho para
mim, quanto mais para outro ser humano.
O mais assustador, no entanto, é que não preciso ser uma Sherlock
Holmes para deduzir que essa bebezinha é filha do meu irmão. Minha família
tem traços atípicos, fortes na região das sobrancelhas e leves na linha do
nariz, sem mencionar os cabelos pretos e olhos grandes. É como ver uma
versão reduzida de mim dentro de um paradoxo temporal perverso.
— Olá, querida — cumprimento como uma idiota. É óbvio que ainda
não tem idade suficiente para compreender. Meus conhecimentos sobre como
interagir com bebês são equivalentes aos de como resolver problemas
matemáticos envolvendo mecânica quântica; ou seja, inexistentes.
Entro no cômodo, aliviada com o odor distinto de talco e pomada.
Comparado com o restante da casa, é o único aposento sem indício de bitucas
de cigarro, mesmo que o carpete bolorento e o acúmulo de mofo nas paredes
estejam bem longe do ideal. Somente uma cama de solteiro, duas almofadas e
alguns animais de pelúcia preenchem o quarto, e minha garganta se fecha
com o medo de imaginar tudo o que já pode ter passado junto com um pai
irresponsável e insensível como Camillo.
— Quem é você?
Viro-me, sobressaltada com a voz de uma mulher. Por reflexo, entro na
frente da menina, como se pudesse proteger qualquer pessoa enquanto
praticamente vomito meu coração. Dois olhos perdidos em crateras escuras
no centro de um crânio magro vacilam assim que recaem sobre meu rosto.
A desconhecida coloca os cabelos loiros atrás das orelhas, evidenciando
ainda mais sua magreza. Porém, o que realmente chama a minha atenção, é o
revólver que carrega na mão esquerda. Por mais que não dê indícios de
querer utilizar aquela coisa contra mim — o cano está apontado para o chão,
e seus dedos não alcançam o gatilho — continua sendo uma arma! Se anjos
da guarda existem, o meu gosta de viver perigosamente.
— Essa casa é minha — explico, mantendo uma distância segura com o
braço esticado na frente do corpo.
— Serena — afirma, surpreendendo-me. Cruza os braços, sem
abandonar o utensílio peculiar. A saliência débil em seus cotovelos me faz
pensar que é impossível não chegar à conclusão de que está doente. — Irmã
do meu Camillo, certo?
— Não é a melhor definição, mas já me chamaram de coisa pior. Eu
conheço você?
— Meu nome é Annia. — Ela encosta na madeira da porta, uma longa
camiseta puída cobre seu corpo até metade das coxas pálidas. — Somos
cunhadas. Ou éramos, não sei mais. Seu irmão é um filho da puta, me deixou
aqui e fugiu das merdas. Disse que voltava, mas já se passaram três semanas.
— Fazendo um sinal com o queixo, indica a criança ainda em silêncio atrás
de mim. — Ela se chama Luna.
Luna…
— El nombre de mi madre — sussurro, na minha língua nativa.
Camillo escolheu o nome da nossa mãe para colocar na única coisa boa fez
nessa vida. É mesmo filha daquele cretino. — Luna Fajardo. — Sorrio,
voltando a apreciar minha sobrinha, incerta de como proceder, das palavras
certas para usar.
Eu tenho uma sobrinha! Céus, o que devo fazer?
— Pode pegar no colo, se quiser — oferece.
Só pode estar bem doida das ideias para me sugerir uma coisa dessas.
Eu devia andar na rua com uma placa bem grande de perigo grudada no meio
da testa. Com a má sorte que tenho, deixaria a menina cair antes de descobrir
como segurá-la corretamente.
— Passo! — recuso rápido demais. Annia sorri com seus dentes
amarelados. Mesmo diante de uma potencial usuária de drogas, consigo me
comportar como se fosse a única sob o efeito de alguma substância
alucinógena. — Não tenho muita experiência com essa coisa complexa de
segurar bebezinhos com os meus dois braços. Talvez daqui muitos anos,
quando descobrirem como costurar tentáculos nos seres humanos.
— Camillo falava muito sobre você e seu jeito de ser. — Ela passa por
mim para erguer a pequena Luna. Não vejo como seus braços enfermiços
podem ser melhores que os meus. — É uma menina forte, nossa Lua. Camillo
disse que é isso o que significa o nome dela: Lua.
Com Luna no colo, uma sensação nauseante irrompe na minha cabeça
ao perceber que a mãe não se deu ao trabalho de esconder a arma. A pequena
estica os bracinhos gorduchos, o brilho cromado do objeto mortal seduz sua
curiosidade inocente.
— Você não acha perigoso? Esse negócio pode disparar por engano…
— Escuto minhas palavras cautelosas. Ela pode não gostar que eu me
intrometa no modo como cria a própria filha.
Por mais que minha real vontade seja chamar a polícia, escolho não
agir por impulso e dar início a uma tragédia.
— Não está carregada — explica, como se fosse suficiente para tornar a
cena menos imprópria. Annia começa a se balançar de um lado para o outro
enquanto Luna deita a cabecinha no ombro ossudo da mãe. — Camillo
deixou isso antes de partir, para uma emergência.
— Meu irmão nunca me contou que tinha uma filha — comento para
manter o diálogo e diminuir o constrangimento, minha mente zunindo com a
vontade repentina de levar Luna para longe. Deveria fazer isso. — Ela é
linda.
— É um bebê silencioso. — Sorri mais uma vez. — Eu sei o que deve
estar pensando, que sou uma péssima mãe, que minha filha merece coisa
melhor. Seu olhar diz isso. Mas minha Luna foi tudo o que restou. Maksim
nunca vai nos deixar partir depois do que seu irmão fez.
— Eu vou pagar a dívida — tranquilizo-a. Seu medo me intoxica. Esse
lugar é perigoso para a minha alma. Odeio estar aqui. — Vender a casa…
— Não pode vender a casa! — sussurra desesperada, apertando a
menina no colo. O cano do revólver apoiado nas costas pequeninas traz a bile
à minha garganta. — Se fizer isso, estamos condenadas! Por favor, você não
entende!
Ela dispara porta afora, seguindo o corredor até a cozinha. É tudo muito
rápido e confuso e meu mundo desaba ao olhar através das janelas para o
quintal, onde os dois armazéns se destacam com as luzes acesas contra a
escuridão noturna. Sombras se movimentam nas portas abertas, as vozes de
homens gritando ordens uns para os outros e risadas embriagadas chegam
baixas até a casa, abafadas pela distância.
— Aqui é o depósito do bando — Annia confessa, com lágrimas nos
olhos dilatados e vermelhos. Luna não se parece nem um pouco com a mãe,
calma e pálida, silenciosa como uma bonequinha. — Maksim proibiu seu
irmão de vender a casa, isso prejudicaria demais os negócios, e você sabe
como ele é respeitado no distrito. Por favor, eles não sabem que a casa não é
do Camillo — sussurra, implorando.
Encosto no balcão da cozinha. Não há lâmpadas nesse cômodo da casa,
o que nos deixa submersas na meia-luz da lua e da própria claridade que vem
dos barracões. Inspiro e expiro, sincronizando o tempo de cada respiração
enquanto Annia continua explicando sobre as toneladas de drogas escondidas
no terreno, sobre o risco à vida das duas caso essa informação caia nas mãos
da polícia, e todo o transtorno causado pelas obras da Corporação Volkiov.
Maksim não pode sair do distrito, consequentemente, não tem como
transportar toda a mercadoria para outro lugar sem levantar suspeitas. E,
enquanto Camillo não aparecer, Luna é a única garantia de que meu irmão
não vai vender o terreno.
Em dado momento, Annia cede às lágrimas e eu me vejo dividida entre
a piedade e o temor pela minha recém-descoberta sobrinha em seus braços.
Preciso de tempo para entender as duas e descobrir como livrar esse bebê da
vida precária a qual foi submetida pelos pais relapsos.
Esfrego as mãos escorregadias uma na outra. Merda. Preciso de um
pouco de ar.
— Vou consertar isso, Annia. Eu só… — Suspiro, meu coração
estourando nos ouvidos, alto, pulsante. — Não vou vender a casa, tudo bem?
Fique tranquila.
Coloco a mão no ombro de Annia em sinal de apoio e, nesse momento,
Luna cobre meu pulso com os dedinhos gelados. Está frio aqui dentro, ela
deve estar congelando. Desfaço o contato depressa para abafar o impulso de
levá-la. Volto para o corredor, pisando em penas de pombos e vidros
quebrados, saio para a pequena varanda frontal e sento-me nos degraus
mofados de madeira, cercados por flores mortas e folhas secas. Nem a
primavera foi suficiente para trazer as cores de volta para essa casa.
Minha casa.
Enquanto o oxigênio volta a entrar regulamente nos meus pulmões, a
realidade me atinge com a força de um golpe duro vindo direto dos punhos
do destino. Será que Vladimir vai me dar esse dinheiro depois que eu negar a
venda? É claro que não. Ele foi claro quando disse o quando esse
investimento é importante para seus negócios.
De qualquer forma, minha esperança não durou tempo suficiente para
fazer falta. Eu estava na merda quando acordei, continuo na merda agora. A
vida continua, forte e voraz, não espera a gente se recuperar das quedas.
Forço um sorriso antes de voltar para dentro, esmagando o desejo absurdo de
chorar.
Não vou, não aqui, não agora e definitivamente não nesta casa.
Estou de volta, fui tragada outra vez para dentro dessas mesmas paredes
opressoras e sombrias, mas tenho a chance de salvar ao invés de ser salva. De
curar quem precisa e talvez retribuir o bem que um dia Nicolai me ofereceu.
Voltei para o local onde tentei morrer pela primeira vez.
A vida é como um botão, Corazón.
E ele nunca esteve tão certo.
VLADIMIR

LEIO PELA CENTÉSIMA vez a mensagem daquela diaba, agora em voz alta
para que meus irmãos — Roman e Andrei, já que Ivan continua em sua lua
de mel — compreendam o nível do meu desespero.
— “Fodeu, Vladimir, e não foi no bom sentido, infelizmente. Não
posso vender a casa, mas aceitarei de bom grado os trinta mil dólares que me
ofereceu. Esteja ciente de que só poderei pagar em trinta mil parcelas de um
dólar. Mas isso não será um problema, já que somos amigos, certo?
Obrigada.”
Ignoro as risadinhas dos dois. Eles não conseguem levar a sério toda a
insanidade de Serena. Já perdi a conta de quantas vezes reli essas mesmas
palavras só para ter certeza de que não se tratava de uma alucinação.
— É só isso? — Andrei força um timbre profissional, mas evita me
encarar. Desde o casamento, todos me olham como se eu fosse um rato de
laboratório submetido a um estudo vigilante de alto risco. — Ela não
explicou os motivos ou deu uma justificativa plausível?
— Nada. Hoje pela manhã fui conferir as mensagens no e-mail da
empresa e encontrei essa barbárie. — Empurro bruscamente o notebook para
frente e por pouco não o derrubo no chão. — Tentei ligar no número que ela
usou para marcar a reunião, mas é de um estabelecimento que oferece
serviços telefônicos. Depois, entrei em contato com o buffet, mas disseram
que ela não tem celular e não arquivam o endereço dos funcionários
temporários. Isso é ridículo!
Levanto-me, pelo simples motivo de não conseguir ficar parado. Minha
mente não suporta a estática e todos os meus poros parecem ligados na alta
voltagem desde o nosso último encontro dentro desta mesma sala de
reuniões.
É como voltar no tempo, na época em que assumi a presidência pela
primeira vez. O medo de fracassar, a tristeza por vestir uma personalidade
que ainda não fazia parte de mim. Achei que já tinha superado, que o
concreto da liderança já havia se fundido com a minha pele, mas as
provocações de Serena, suas brincadeiras leves e absurdas sobre beijos e
vampiros, se tornaram dilemas com os quais não consigo lidar sem enxergar
um mar de retrocessos.
Sem me sentir culpado por me desviar das obrigações com a minha
vida.
A empresa é tudo o que tenho sido nos últimos oito anos!
— Essa mulher sabe como se esconder — Roman comenta, sem
agregar muito para a resolução do problema.
Atravesso toda a sala até parar diante das janelas transparentes, fixando
meu olhar sobre a paisagem urbana e colorida de Moscou. Realmente, Serena
é mestre na arte do desaparecimento. Da próxima vez que nos encontrarmos,
eu me certificarei de amarrar todas as partes daquele pequeno corpo dentro de
um quarto trancado e só libertar depois que resolvermos cada porcaria de
dilema causado por seu temperamento irresponsável!
A imagem tremeluz na minha cabeça na forma de um fetiche. Merda.
Do jeito que é maluca, seria perigoso que gostasse da ideia e ainda pedisse
por mais.
— Não entendo, ela estava decidida a vender… — reflito em voz alta,
obrigando-me a manter a concentração no que importa: nossos negócios.
Meus olhos vagueiam até os ponteiros de uma das torres do Kremlin, que
denunciam a chegada das dezesseis horas. — Ofereci o adiantamento do
dinheiro justamente por causa disso.
E porque fui tomado por um medo desigual após sua explicação sobre
os perigos ocasionados pelo mau-caratismo de Camillo Fajardo, mas
confessar algo tão íntimo não faz parte do meu perfil. Mesmo com meus
irmãos, evito demonstrar a maioria das minhas fraquezas. Não sei como fazer
isso sem acreditar que estou perdendo o controle.
No começo, os atributos físicos de Serena capturaram minha atenção da
forma natural como geralmente os homens são atraídos por mulheres que se
enquadram nas preferências de cada um. Serena é linda, sensual em escalas
assustadoras, mas seu sorriso, a boca voluptuosa, a curva pecaminosa na
cintura e a mania inconsciente de mordiscar o lábio inferior desmantelam
todas as minhas barreiras.
Mas seu olhar, algumas vezes, por breves segundos, vacila. A atração
que existe entre nós é mais do que física, é interna, profunda... e profana.
Quando nossos olhos entram em sintonia, é como se eu estivesse diante de
um quadro muito antigo, pintado em uma época tão longínqua que nos faz
divagar a respeito das histórias que se escondem por trás da obra. Um
enigma.
— Você contou que ela estava sendo chantageada e que precisava de
dinheiro — pondera Andrei. Deixo meus dilemas pessoais para outro
momento. — Mas precisamos trabalhar com a possibilidade de ser tudo
mentira.
— Não era mentira — defendo-a, voltando para a mesa. Puxo a cadeira
presidencial e me jogo. Retiro a gravata sobre a cabeça, desejando estar em
qualquer outro lugar. — Tem alguma coisa acontecendo, pois Camillo
também precisava de dinheiro e se recusou a colaborar. Agora, de repente,
a Cora… — Limpo garganta com um pigarro. Droga de apelido! — A
senhorita Fajardo também resolve negar nossa proposta? Isso é muito
suspeito.
— E o que vamos fazer com relação ao dinheiro? — Andrei,
concentrado em seu notebook, faz anotações ágeis da pauta. — Vai depositar
mesmo sem garantias?
Nego sem enunciar as palavras.
Meu irmão mais novo para de digitar, encarando-me com a astúcia do
advogado inclemente que não mede esforços para expurgar qualquer ameaça.
Roman o acompanha na expressão de reprovação ao meu posicionamento.
Ele dedilha sobre a mesa em um indício claro de impaciência, enquanto tenta
me intimidar com o nariz empinado e os olhos verdes cintilando em um
desafio mudo.
Roman é do tipo que enxerga em qualquer escolha ruim um inimigo a
ser combatido.
— Não faz merda. — Ele abre o zíper da jaqueta de couro, revelando
uma camisa de botões por baixo. É quase adequado demais, considerando seu
estilo desleixado em noventa e nove por cento do tempo. — Se não transferir
o dinheiro, eu transfiro.
— Você não vai se meter, Roman — eu o confronto, incomodado com
seu instinto de proteção invasivo. Serena é meu problema.
— Presidente — ironiza, sorrindo com os lábios tortos — não estou
pedindo autorização. Você coloca essa empresa acima de qualquer coisa, o
que garante que não vai fazer o mesmo desta vez?
— A empresa é o centro dessa conversa!
Eles não entendem, nunca precisaram fazer sacrifícios. Meus irmãos
choraram a morte de Nicolai enquanto eu era humilhado por cada maldito
marginal com quem nosso pai mantinha negócios.
Não sabem.
Não entendem!
— Vladimir, se você acredita mesmo em tudo o que ela disse, pode ser
que esse dinheiro salve a vida dela — Andrei intervém com sua sensatez, mas
mesmo ele deixa escapar um pouco de nervosismo na voz.
A expressão de Serena sorrindo salta à frente dos meus olhos, cheia de
vivacidade e contrária a tudo o que me representa. Ela se infiltrou no meu
sistema nervoso como um vírus, se alojou em um esconderijo secreto ao qual
não tenho acesso, que está trancado. Pulou a janela.
Ou talvez eu a tenha trancado lá dentro.
Não me convide para entrar se não tem a chave para destrancar a
porta, foram suas palavras.
— Não vamos transferir porcaria nenhuma por enquanto. — Saia da
minha cabeça. — Ela disse que tinha um prazo, menos de quinze dias agora.
Tem que haver outra maneira.
— Podemos tentar conseguir alguma informação através dos dados
bancários — Andrei sugere. — Ou acionarmos a polícia, o que seria a
escolha mais inteligente na minha opinião.
— Era o que eu pretendia fazer a princípio — explico, pois nesse ponto
concordo com Andrei. — Mas depois de tudo o que ela disse sobre como era
a vida naquele distrito, a ideia de que isso acabasse a colocando em um
perigo maior, eu…
— Presidente Vladimir Nicolaevitch Volkiov hesitando? Essa é nova.
— Roman retira um cigarro do bolso frontal da calça e coloca na boca, mas
não o acende. — Conta pra gente, qual era o seu plano? Enviar a grana e
esperar que ela se resolvesse sozinha? São traficantes, perigosos,
fazem qualquer coisa por dinheiro. E os riscos, não calculou isso?
— Mas é claro que eu pretendia ajudar, Roman. Cuidado com as
porcarias que você fala. — Sem me alterar ou demonstrar desconforto, sorrio
para meu irmão a fim de acalmar sua adrenalina. Roman acha que ativar o
modo ofensivo funciona comigo, mas eu me adapto a qualquer diálogo
dependendo do resultado que preciso alcançar, e, nesse momento, um irmão
irritado não faz parte dos meus planos. — Meu erro foi confiar que pudesse
existir o mínimo de racionalidade na cabeça dela. Mas Serena já provou que
não pode ser calculada. Pensei em resolver uma coisa por vez, já que ela foi
enfática ao concordar com a venda. Planejava oferecer proteção e todo o resto
no dia da negociação, já que ela não queria envolver a polícia.
Não é uma mentira completa. Na minha cabeça, Serena jamais se
encontraria pessoalmente com filho da puta nenhum. Mas a pequena
impulsiva nasceu com tendências ampliadas para se meter em confusão e me
colocar à beira da insanidade.
— Da próxima vez, seja mais claro — diz nosso advogado sem
preâmbulos. Recolhe seus pertences, guardando as anotações em uma maleta
antes de se encaminhar para a saída. — Ela não faz parte do nosso mundo,
não podemos esperar que entenda suas intenções como acontece conosco.
No âmbito profissional, Andrei não decepciona. Eu sei que não faz isso
pela empresa, é apenas da sua natureza ser bom, no entanto, ainda não me
acostumei com a ideia de que o menino alegre e boêmio que vivia enfurnado
em festas com nossa cunhada na adolescência — já que Lara sempre foi sua
melhor amiga — seja muitas vezes a voz da razão por trás da Corporação
Volkiov.
Ele está certo, sempre está.
Tenho me deixado enfeitiçar por Serena, mesmo sabendo que ela
jamais entenderia um homem como eu.
— Com licença, senhores. — Elena para na entrada da sala de reuniões,
impedindo a passagem de Andrei. Segura um tablet com as duas mãos e não
entra até receber a autorização de Roman, que faz um sinal com o indicador
para se aproximar. — Vocês precisam dar uma olhada nisso.
Nossos olhares se encontram e, diferente das outras vezes, Elena
demora um bom tempo antes de desviar o rosto para o chão. Por um segundo,
penso ter visto algo mais do que respeito ou medo em seus olhos perolados,
mas não tenho certeza do que poderia significar.
Andrei pega o aparelho e volta para sua posição, acomodando-o sobre a
mesa para que possamos conferir o que está acontecendo de tão urgente para
Elena interromper uma reunião sem avisar.
Trata-se de um vídeo, uma reportagem sobre a suposta falta de
planejamento na construção do clube, os impactos negativos após tantos
meses de obras ininterruptas para os residentes nos arredores, que dão
entrevistas de cunho depreciativo. É um trabalho sensacionalista com
objetivos evidentes de nos atingir e tirar o mérito do nosso projeto.
Quando o vídeo termina, meu peito sofre com o impacto. Não o
coração, mas meus pulmões, como se alguém os privasse do oxigênio. É
assim que funciona quando a gente acende um pavio às cegas: a explosão
chega em algum momento.
Começo a fazer conexões, pesar os possíveis estragos, listar as pessoas
certas a serem contatadas. O pior de tudo é que os responsáveis pelo
programa conseguiram manter os exageros dentro da realidade. Não
poderemos negar as acusações, somente amenizar a veracidade das
informações fornecidas.
Listar os danos.
Preciso limpar essa sujeira.
Fazer ligações.
Enviar relatórios.
Reunir nossa equipe de advogados.
Tanto trabalho e o rosto de Serena é a única maldita coisa que me
desperta o mínimo de disposição, sua voz sussurrada com o sotaque latino ao
pronunciar a palavra Lord, melódica e sensual.
Lord Vlad…
Lord…
— Presidente, o senhor está bem? — Elena coloca a mão nas minhas
costas, inclinando-se sobre mim para analisar meu rosto de perto. Os cabelos
dourados e vibrantes recaem em cima da tela e o ângulo fornece uma visão
perfeita dos dois primeiros botões abertos em seu terninho verde-limão. Ela
faz parecer natural. — Ficou branco de repente.
— Sim, eu… — Olho ao redor, meus irmãos estão atônitos, tão
preocupados quanto eu. — Andrei?
— Já estou entrando em contato com a emissora responsável. —
Levando o celular ao ouvido, ele sai rumo à minha sala pessoal e, em poucos
segundos, podemos ouvir os murmúrios da conversa acalorada.
Lord Vlad…
— Era só o que faltava! — pragueja Roman. — Em plena sexta-feira,
essa bosta fedendo.
— Todo dia é sexta-feira para você. — Fecho os olhos e massageio as
têmporas, só então percebendo que a mão de Elena continua apoiada no meu
ombro. — Obrigado, senhorita Kokorina, pode se retirar agora.
Ao som da minha voz, Elena se desvencilha como se tivesse sido
atingida por um raio. Pode ser encenação de uma mente ardilosa, como
também pode se tratar apenas de uma jovem ingênua e mimada que não está
acostumada ainda a sobreviver nesse universo de máscaras e dinheiro. Não
acho que a segunda opção esteja correta.
Prefiro nunca subestimar as pessoas que estão ao meu redor, o golpe da
traição costuma ser o mais forte.
— Na verdade… — diz timidamente, contorcendo os dedos na frente
do corpo. — Se me permitirem, tenho um recado do meu avô.
Interessante.
E previsível também. Nos momentos de crise, descobrimos quem são
nossos amigos e quais são os abutres aproveitadores.
— Elena — Andrei chama, retornando com a feição abismada. — É
verdade?
— O que aconteceu? — Roman indaga, rude.
— O senhor Kokorin… — começa o caçula, mas Elena dá um passo à
frente para tomar a palavra.
— Meu avô assumirá tudo. A responsabilidade pelos contratempos
envolvendo o clube vai recair em cima do sobrenome da minha família. —
Diferente dos trejeitos anteriores, cada palavra é agora entoada com firmeza e
maturidade. Ensaiada. Começo a entender. — A nota será expedida pela
manhã se estiverem de acordo.
— Por que ele faria uma coisa dessas? — Andrei chega mais perto para
oferecer uma espécie de condolência.
Ninguém responde, afinal, é um questionamento retórico. Teremos uma
dívida com a família Kokorin e está bem evidente o que esperam em troca.
Acham que podem mesmo fazer esse tipo de movimento sem que seja eu a
comandar o jogo.
Tolos.
— Diga ao seu avô que aceitamos o sacrifício dele — decido, mas as
palavras têm um sabor amargo que não deveria existir. Que porra está
acontecendo comigo?
— Vladimir! — Roman me repreende.
Repreendo-o de volta com um olhar enviesado, que é retribuído com
outro mais furioso e descrente.
— Todos para fora, quero todos para fora agora. — Para que não
possam insistir, encerro a reunião e fico de pé.
Não podemos nos dar ao luxo de negar. Sempre foi o meu plano de
qualquer forma, é só uma questão de juntar o útil ao agradável. Se pretendem
usar essa estratégia para chegar até mim, posso muito bem fazer o caminho
contrário e me aproveitar da situação. Simples assim…
Mas por que dói tanto? Inferno!
Nicolai me disse várias vezes que a vida é como um botão, basta
um clique impensado e as comportas despejam anos de trabalhos, sonhos e
esforços direto para o limbo.
Eu costumo apertar muitos botões.
Lord Vlad.
Volto para a minha sala, cansado de escutar a voz de Serena na cabeça.
Pelo canto dos olhos, vejo Elena sair sorrateiramente, acompanhada de
Andrei. Fico parado no meio da sala. As cortinas fechadas deixam o ambiente
menos acolhedor, assim como os tons pastéis e frios presentes na decoração.
Ao contrário de quando meu pai trabalhava aqui, agora o escritório
presidencial é um reflexo da minha própria personalidade estragada.
Não pensei duas vezes antes de aceitar. Mal pensei uma vez!
— Sabe a lixeira que se enfiou, não é? — Roman balança a cabeça,
brincando com o cigarro apagado entre os dedos. — Eles estão de olho em
um casamento.
Eu sei.
— Não vamos falar sobre isso. — Respiro fundo, passando a mão na
cabeça. — Isso não é um problema, nunca foi. Você sabe que poderia
acontecer eventualmente. — Espero convencer a mim mesmo com essas
palavras, mas a sensação estrangulada na minha garganta continua se
intensificando.
— Certo, não vou me meter, foda-se. — Roman não obedece ao meu
pedido, o que não é nenhuma surpresa. Continua perambulando pela sala,
visivelmente preocupado. — Vai voltar para casa hoje?
— Não. — Encosto da minha própria mesa, cruzando os braços. — Eu
não suportaria mais um confronto.
— Nossa mãe deve estar com as covas prontas no jardim. — Ele
gargalha baixinho, guardando o cigarro no bolso da frente da jaqueta preta.
— Você não dorme em casa desde o casamento, e Andrei praticamente se
mudou para a casa da namorada, que não quer mais saber da nossa família.
Você não vai conseguir a evitar para sempre. Em algum momento, vai ter que
explicar que confusão foi aquela durante a festa.
— Uma coisa de cada vez, Roman — resmungo, apesar de saber que
está certo.
— Faz quanto tempo que não pega uma mulher, Vladimir? — pergunta
aleatoriamente. — Você precisa sair um pouco, fazer um sexo selvagem,
encher a cara! Vamos?
— O quê? Agora? — Olho para minha mesa, tentado a sentar ali pelo
resto da noite e acompanhar como as notícias se espalham. — Com tanto
serviço para resolver, não posso me dar ao luxo desse tipo de coisa.
— Mulheres, esse é o único luxo que importa. Virar padre não vai
ajudar a empresa, principalmente agora que arrumou uma noiva em potencial.
Puta que pariu! Dona Tatiana vai surtar quando descobrir.
Realmente, minha mãe vai fazer de tudo para antecipar o momento.
Porra! Talvez seja bom beber e me enterrar em uma desconhecida para retirar
aquela espanhola à força do meu sistema nervoso antes que afete o meu
cérebro mais ainda.
— Tudo bem. — Ouço-me dizer, surpreso comigo mesmo por essa
decisão.
— Ótimo, te espero às onze na frente do seu hotel. Envia o endereço
para o meu celular.

***

Vestido com uma roupa mais casual, acompanho meu irmão boate adentro.
Ternos não condizem com o ambiente, então optei por calça jeans e camisa
polo preta para não chamar muita atenção. O plano é beber um pouco,
encontrar uma acompanhante suportável — o que significa ser muito boa de
conversa ou muito gostosa, de preferência as duas coisas juntas para que as
insinuações sedutoras de Serena sejam erradicadas da minha memória — e
evitar os paparazzi, mas com Roman trajado como se fosse a personificação
perfeita de um delinquente, é impossível não sermos notados.
Péssima ideia!
Algumas pessoas nos cumprimentam assim que entramos, mulheres na
maioria. Guardo vagas lembranças de uma ou outra conhecida de ocasiões
passadas, mas a maioria são rostos novos, possibilidades inéditas. O interior
da boate não é diferente de nenhuma outra que já tenhamos visitado, com
muita gente dançando e se esfregando sob luzes coloridas e frenéticas ao som
de músicas eletrônicas.
Roman se nega a subir para a área vip com o pretexto de que a
verdadeira diversão só acontece no aglomerado, mas aceita ficar em uma
mesa mais reservada nos arredores da pista de dança.
Durante a primeira hora, bebemos e conversamos sobre coisas banais,
como a falência confirmada dos irmãos Giamatteo na Itália, e o andamento
das investigações sobre o paradeiro de Tasha — uma busca mantida
sobretudo por Ivan e nossa mãe, já que os dois são incapazes de superar
alguns traumas.
Algumas vezes, meus olhos recaem sobre alguma mulher que passa por
nós, analisando corpos e comportamentos, e começo a ficar preocupado
quando percebo que estou comparando-as com Serena. Nenhuma parece boa
ou atrevida o suficiente, nenhuma tem o seu jeitinho natural de balançar os
quadris como estava fazendo na primeira vez em que nos encontramos.
Só posso estar ficando louco, até mesmo a imagino no meio da
multidão mais de uma vez. Nesse ritmo, estarei fadado a um hospício antes
que a transação seja concluída.
Alucinar é o último passo antes sucumbir e admitir minha derrota.
Mas, porra! Continuo vendo-a sem parar. O corpo com as curvas tão
perfeitas, o longo cabelo preto caindo em ondas sobre os ombros até a metade
das costas. Sem falar na boca que me faz fantasiar com as mais criativas
utilidades.
— Não pode ser — resmungo ao constatar que a mulher mais sensual
no meio da pista é ela de fato, não uma alucinação. Eu mal bebi, pois terei
que dirigir todo o caminho de volta, então não pode ser um efeito colateral da
vodca também. — Só pode ser brincadeira!
Roman acompanha meu olhar, também abrindo a boca como um
babaca. Mesmo longe, o nível da sua embriaguez é tão evidente que eu me
levanto quando ela se desequilibra e um homem a ampara. Os dois gargalham
um para o outro, mas o maldito não a liberta; começa a se aproximar com o
pretexto de dançarem.
Seu vestido mais parece um pedaço mínimo de tecido vermelho, curto e
justo como uma segunda pele. É sexy para um caralho, e minha briga interna
consiste em decidir se é mais prazeroso admirar o contorno entre seus quadris
e a cintura, ou desejar que tenha trazido um casaco para esconder tanta pele
exposta assim que eu colocar minhas mãos nela.
Dou o primeiro passo, convicto de que é meu dever interromper essa
palhaçada, mas Serena escolhe esse momento para olhar na minha direção. O
magnetismo é surreal. Ela estreita os olhos enquanto empurra o sujeito — que
sai sem causar confusão — e tenta correr na minha direção.
Tenta, pois o zigue-zague se estende por um longo período até que
alcance a mesa. Sento-me e arqueio uma sobrancelha enquanto ela inclina
para me olhar bem de perto. Seu cheiro doce invade minhas narinas, junto
com um odor clássico de vodca. Tenho que fazer um esforço enorme para me
distanciar do rosto corado. Ela olha para Roman, estudando nossos rostos.
Está muito, muito bêbada.
— ¡La puta mierda! — exclama, endireitando o corpo. — São vocês
mesmo, Lord Vlad e o irmão tatuado. Achei que eu já estava bêbada demais!
— Ela dispara a rir, desequilibrando-se outra vez, e puxa uma cadeira para se
sentar perto de mim. — Devem estar se perguntando como entrei aqui. Mas
eu tenho uma coisa que eu ganhei de uma amiga que dormiu com o dono
dessa boate — sussurra como se fosse um segredo. — Um convite.
Fecho os olhos para não enfiar essa maluca dentro do primeiro táxi que
encontrarmos. Bêbada não chega nem perto de definir quão profunda é a sua
situação alcoólica. A porcaria de uma bêbada enfiada em um microvestido
vermelho, que deixa as pernas chamativas em evidência, assim como o
decote profundo nos seios suados. O que porra ela está pensando, afinal?
Vai ser impossível continuar com o plano de exterminá-la da minha
mente depois dessa noite. Parece até uma brincadeira de péssimo gosto do
destino que nossos encontros sejam sempre provações ao meu bom-senso.
— Você não está sozinha, está? — Roman interroga, espelhando minha
preocupação.
— Vim com a minha amiga, mas ela está presa dentro do banheiro. —
No ritmo da música, Serena agita o corpo enquanto conversa. — Um homem
arrastou ela, foi uma confusão, bem cena de filme!
— Arrastou? Como assim Serena? — pergunto, nauseado com a
imagem que me vem à mente.
— Do jeito bom, Lord Vlad, do jeito caliente. — Revira os olhos
embriagados, pega nossa garrafa sobre a mesa e bebe um gole, fazendo uma
careta em seguida. — Isso é horrível, ¡Dios mio! — Bêbada Serena fica mais
inquieta e seu sotaque mais acentuado. — Aquele e-mail que você mandou
partiu o meu coração. — diz, referindo-se à mensagem que enviei negando o
empréstimo naquelas condições arbitrárias. Seus olhos fecham e abrem
devagar a cada piscada, sonolentos e frágeis.
— O seu e-mail quase nos matou, isso sim! — Roman reclama. A idade
mental dos dois é incrivelmente próxima. — Lord Vlad aqui ficou bem puto.
Ótimo, mais munição para o arsenal de imaturidade contínua. Daqui em
diante, nada mais me surpreende. Roman nunca mais vai me deixar em paz.
— Seu irmão disse que me odiava e que nunca me beijaria — mente,
bebendo mais uma vez com a feição chorosa. — Odeio beber, que negócio
ruim.
Puxo a garrafa e coloco perto de mim, ela faz uma careta de desgosto.
— Primeiro, se não gosta, por que está bebendo? — censuro-a. — E,
segundo, nunca escrevi nada sobre não beijar você e muito menos sobre odiá-
la.
— Então você quer me beijar, Vladimir? Isso seria a terceira ou quarta
realização da minha lista. — Serena passa a ponta da unha comprida e
vermelha sobre os lábios igualmente vibrantes no mesmo tom, provocando
uma reação instantânea no meu corpo.
Quero sim, como o inferno! Essa mulher endiabrada acha que pode
queimar um demônio no fogo.
— Do que ela está falando? — Roman pergunta para mim, como se
interpretar Serena fosse uma tarefa fácil, mas ela logo se coloca a explicar.
— Já que você se recusou a me emprestar o seu rico dinheirinho — diz,
cruzando os braços sobre a mesa e exaltando o aclive em seu decote generoso
—, eu decidi colocar em prática a minha lista de coisas que preciso fazer
antes de morrer. Tomar um porre, curtir uma ressaca louca, beijar algumas
bocas e perder a virgindade são as metas de hoje.
Ah, não…
Puta que pariu.
Merda!
Não sei se fico mais chocado com a possibilidade de que já tenha
beijado mais de um homem — imaginá-la fazendo isso com apenas um é
perturbador o bastante — ou com o fator virgindade.
Virgem!
— Não precisa fazer essa cara, como se eu tivesse uma
doença, Romanzito. — Serena leva a mão até o rosto de Roman e dá dois
tapinhas, caindo na gargalhada. — Seu irmão não quer a minha virgindade!
Nem me beijar ele quer, fica fugindo.
Ah, Serena, praguejo sozinho, não sabe em que buraco está se
metendo.
— Virgem e bêbada são características que não podem coexistir no
mesmo ser humano. Quem é virgem aos vinte e cinco anos? — Indignado,
Roman vira todo o conteúdo do seu copo, ficando de pé logo depois. — Boa
sorte, não quero me envolver com drama nenhum. — Para Serena, completa:
— Virgens são sinônimo de problema, bebê.
Ele foge para outra área da boate e Serena fica olhando com o cenho
franzido. Até sua confusão é atraente de um jeito fofo. Virando-se para mim,
inclina a cabeça e seus cabelos se acomodam sobre o ombro direito.
— Como ele sabe sobre o bebê? — pergunta, genuinamente surpresa;
nem me atrevo a tentar compreender do que está falando.
— Quão pior essa conversa pode ficar, Corazón? Um pouquinho mais e
eu te arrasto para fora daqui.
— Arrastar do jeito bom? — provoca, mordendo o lábio e me
transportando para o mar de tentações dentro do qual estou tentado a
mergulhar. — Adoro quando me chama assim, seu sotaque é sexy.
Amaldiçoo sua impertinência quando cambaleia para o lado, com as
pernas levemente abertas, e arrasta mais a cadeira, encaixando-se entre os
meus joelhos.
— Serena, você é virgem? — indago para ter certeza, mas já não
consigo mais disfarçar o quanto a desejo e minha voz soa como um grunhido
brutal.
Se antes eu tinha dúvidas sobre sua capacidade de cuidar de si mesma,
agora eu estou curioso para descobrir como sobreviveu sozinha por tantos
anos.
Amanhã, quando a ressaca passar, teremos uma conversa muito séria
sobre suas ações. Confiar na bondade alheia não é seguro e nem consigo
pensar no que poderia acontecer com ela nessas condições!
Aquela ideia de trancá-la dentro de um quarto parece cada vez mais
tentadora.
— Você é surdo? — reclama, enrolando a língua. Tenta ficar de pé e
falha; nunca vai conseguir sair daqui sem ajuda. — Sou virgem, mas vai ser
por pouco tempo…
— Quantos imbecis você beijou hoje? — Trinco os dentes para fazer
essa pergunta, segurando suas pernas bem juntinhas para que não consiga
fugir.
— Não tenho certeza… — Começa a contar os dedos e uma raiva
desapiedada eclode em meu peito, um instinto possessivo e egoísta que não
suporta perder o que deseja para outra pessoa. — Estava esperando eu ficar
beeeem bêbada, sabe? Mas as bebidas aqui são fracotes. — Gargalhando
como se tivesse contado uma piada muito engraçada, ela se apoia em mim
para se levantar. Ajudo-a, erguendo-me também, e seguro os dois lados da
sua cintura para que não caia.
— Mais bêbada que isso e vai precisar de atendimento médico. E nem
pense em fazer piadinhas sobre médicos bonitos! — aviso, irritado,
antecipando o que o brilho safado em seus olhos quer dizer. — Vamos
embora, vou levar você.
— Não quero ir embora agora — teima. Solta-se de mim e recua um
passo trôpego. — Aquela casa me dá medo.
— Não vamos para a sua casa, Corazón. — Suspiro, listando todos os
tópicos absurdos que deixa escapar para usar contra ela no dia seguinte. —
Olha, não quero ter essa conversa agora, mas hoje meu dia foi um pesadelo.
Não vou tirar os olhos de você, porque vai desaparecer de novo. Vai ficar
comigo.
Os olhos dela arregalam e o sorriso vai quase até as orelhas. Já sei a que
conclusão acaba de chegar.
— Preciso avisar a Raissa que vamos dormir juntos! É rápido… —
Vencido, concordo sem corrigir a frase ambígua. Ela vai, toda desajeitada,
rumo a um dos toilettes femininos.
Foi mais fácil do que eu esperava, mas não me surpreende. Se tem uma
coisa que eu aprendi, foi que Serena toma decisões rápidas e lida bem com
elas. Enquanto espero, envio uma mensagem para Roman avisando que
estamos indo.
Porém, é como dizem, nunca devemos comemorar antes da hora. Cinco
minutos depois, vejo-me empurrando pessoas para chegar até uma Serena
sorridente e desavergonhada no auge de uma conversa cheia de proximidade
com um rapaz cujo rosto fico cego demais para descrever.
— Serena — chamo, colocando a mão em sua cintura e puxando o
corpo para mim. Sem hesitar, ela aproveita a oportunidade para se equilibrar,
entrelaçando nossos braços. — Algum problema?
— Nenhum! — responde com um grito que se sobressai à música,
rindo com ares travessos. — Estou muito bem. Pode voltar para sua mesa. —
Não me movo, contrariado e fervendo com sua audácia. Revirando seus
grandes e belíssimos olhos nebulosos, ela movimenta a ponta dos dedos na
direção contrária. — Passa, Vladimir.
Oi?
Ela não está me mandando passear como um cachorro, está?
— E você, quem é? — pergunta o pedaço de merda com um tom de
superioridade que infla o homem egocêntrico que habita em mim, mas me
recuso a encarar o sujeito.
Não vale a minha atenção.
— Lord Vlad é meu amigo — responde Serena, colocando ênfase na
última palavra. — Meu amigão. Esse moço gentil estava se oferecendo para
me levar para casa.
Filha de uma…
— Eu vou levar você embora. — Ergo seu queixo com menos
delicadeza.
— Ei… — O sujeito segura meu ombro. Sua sorte é o autocontrole
inumano que me ajuda a não começar uma briga, ou eu já teria acertado um
belíssimo soco bem no meio do seu nariz.
— Sabe quem eu sou? — Ouço minha voz, o tom debochado e
superior, carregado com o desprezo de quem enxerga as pessoas de cima. —
Não, você não sabe. Essa briga aqui não vai valer a pena para você —
aconselho com calma, embora atento a qualquer investida surpresa, ainda
mais com Serena em meus braços. — Ela está comigo, entendeu? E vai
embora comigo. Não me importa quem é você ou seu nome. Foda-se. Se
insistir, vai ficar um bom tempo sem frequentar boates.
Jogo o ombro, desfazendo seu contato. Deixo o homem assimilar
minhas palavras sozinho. Faço o que deveria ter feito assim que reconheci
Serena: a arrasto para fora.
Não de um jeito bom, como seria caso não estivesse tão bêbada.
— Nossa — Serena arqueja. Eu daria qualquer coisa por uma mordaça,
qualquer merda que a impedisse de continuar falando. — Você nervoso é
ainda mais gostoso!
Irritado… não, enfurecido é uma palavra melhor. Tenho lutado comigo
mesmo há dias para não me deixar envolver, evitado jogá-la em cima da
primeira mesa em busca de uma satisfação mútua. E, de repente,
completamente do nada, Serena torna a aparecer na minha vida e despertar
outro redemoinho de sentimentos e desejos.
Foda-se, foda-se!
Não sou a porra do presidente aqui, não é pela empresa que estou tão
irritado. Eu me conheço, entendo o que está acontecendo. Posso escolher a
negação, mas agora só penso que preciso de mais.
Ela precisa.
Mais.
Um pouco antes da saída, tomado por um ímpeto desajustado, conduzo
Serena até uma das pilastras que sustenta o segundo andar. As luzes coloridas
da boate oscilam do amarelo ao verde, depois para o vermelho, e em todo
momento ganho novas imagens dessa mulher pintada sob as mais variadas
tonalidades.
Não existe casa, terreno, clube, dívida; nada, só nós dois, a minha fúria
e a loucura dela.
— Eu realmente deveria beijar você, Corazón, como castigo por ser tão
negligente. Merda, eu deveria dar a porra do melhor beijo que você já
experimentou na sua vida.
Aperto um pouco mais seus braços quando ela começa a mordiscar os
malditos lábios carmesins com uma expressão de desejo descarado. Essa
mulher é tentadora demais para seu próprio bem, e a falta de filtros só amplia
meu interesse. Jamais imaginei que existisse inocência no despudor, muito
menos que fosse tão provocante.
— Eu deveria encaixar a minha perna entre as suas enquanto dou o que
está implorando, e seria bom, Corazón, seria realmente gostoso. Eu deveria,
porque amanhã, quando você acordasse, as lembranças da sua vitória seriam
apagadas pelo álcool, e você teria que conviver com o fato de ter
experimentado do melhor, sem saber como foi a sensação de verdade.
— Você se dá muito pouco valor, Lord Vlad. — Serena gira os braços,
agarra meus cotovelos e me puxa para dentro das sombras. — Mesmo sem ter
experimentado ainda, tenho certeza de que nunca, em hipótese alguma, nem
em mil anos ou em outras vidas, eu esqueceria como é ser beijada por você.
Sou uma doida, louca, pirada das ideias, mas as coisas que desejo ficam
guardadas no meu coração, não na minha mente. — O timbre embriagado
não é suficiente para camuflar seus sentimentos. Há sinceridade e lascívia,
mas também uma fragilidade oculta por sua máscara de independência.
Eu sou o monstro desejando a princesa cujos lábios foram envenenados
para me consumir, e ela cheira à destruição.
À minha destruição.
Serena chega mais perto, encosta o corpo no meu e deposita um beijo
na minha bochecha devagar. Escondidos dos olhos de curiosos, impeço que
realize movimentos circulares com os quadris encaixados nos meus, impeço a
porra toda por sua própria segurança.
É como me submeter por livre e espontânea vontade à uma tortura das
mais dolorosas. Todos os meus filamentos egoístas clamam para se unir aos
dela e reclamar o direito de marcar o meu nome em sua vida para sempre.
— Corazón, isso não vai ficar assim — prometo, imobilizando seu
corpo preguiçoso. — Mas você está bêbada, sinto muito.
Bloqueio sua voz, suas palavras, seu corpo, seus protestos. Fecho-me
para as sensações, os odores e, principalmente, para a minha imaginação que
consegue recriar com uma perfeição assombrosa como devem ser seus
gemidos se estivesse nua junto comigo na cama. De mãos dadas, saímos da
boate direto para o estacionamento.
Abro a porta para Serena, que não para de sorrir um segundo, como se
tivesse ganhado um presente. Estou fazendo tudo errado, mas não consigo
parar. Ela sabe, sabe que eventualmente vai acontecer, que já me conquistou.
Minha cabeça não cansa de recriar cenários, de calcular os danos, de me
alertar sobre consequências e futuras intervenções.
Não consigo desligar essa parte de mim. Serena é uma decisão minha,
uma péssima decisão. Um colapso, um dano no sistema.
Guio o carro pelas ruas, seguido de volta para o hotel, mas o silêncio
me sufoca. O medo também, a culpa. Como posso estar planejando tomá-la
quando acabei de praticamente aceitar um matrimônio com outra mulher?
— Talvez eu me case com alguém — solto no meio do caminho,
afogado com a perturbação mental, os dilemas profissionais em conflito com
minhas atitudes.
Veja como sou um cretino e fuja, Corazón.
— É natural, a maioria das pessoas se casa um dia. — No banco do
passageiro, Serena fecha os olhos, prestes a dormir. Suas pernas expostas
brilham com pontos cintilantes de glitter.
Aperto o volante até os nós dos meus dedos ficarem brancos. Se eu e
Roman não tivéssemos aparecido naquela boate, ela estaria dormindo no
carro de algum outro homem desconhecido, um porco aproveitador.
Maldição! É muita coisa para encarar ao mesmo tempo.
— Estou dizendo que isso não será um romance — esclareço, sentindo-
me um tanto patético, já que ela nunca me pediu nada além de um beijo. —
Não deve criar expectativas. Estou dando a você uma chance de voltar
enquanto é tempo.
Ela resmunga, aconchegada no banco.
— Não crie expectativas também, Lord Vlad, não quero partir o seu
coração — murmura com a língua enrolada.
— Meu coração é bem forte — brinco sombriamente,
— Sim — sussurra, quase consumida pelo sono. — Eu sou mesmo bem
forte.
Piso no freio por impulso e o carro diminui a velocidade até pararmos
no meio da rua. Serena, com os olhos fechados, talvez não se lembre amanhã,
mas é verdade.
Ela entrou mesmo.
A vida é como um botão, Vladimir.
Por que estou me lembrando disso agora? Por que Serena parece estar à
beira de algo? Por que eu disse para ela não criar expectativas, quando sou o
único que está ganancioso por mais?
Nicolai me fodeu, acabou com tudo, cuspiu no nome da minha família.
Sua morte me ensinou a ser alguém que conquista aquilo que deseja, que
manipula e ludibria sem se importar com sentimentos. A única emoção que
me guia é a da ambição pelo poder fornecido por números e posses, o mesmo
que classifica pessoas como troféus, e quantos mais a gente acomoda na
estante do ego, mais distantes ficamos da humanidade.
Sou uma pessoa que não sabe perder. Era esse homem que eu queria
manter afastado de Serena, o monstro. Porque no segundo em que eu
admitisse que a desejava, não desistiria até tomar tudo. Cada pedacinho dela.
Eu a quero com tanta vontade que não restará nada no final.
— Desculpe, Corazón, eu sou um mentiroso. — Acaricio sua face
dormente, coloco o cabelo atrás da orelha e passo o dedo polegar sobre os
lábios que me pertencerão em breve. — Você não tem mais volta — digo no
silêncio da noite, mas seu sono tenro já levou para longe a loucura, o sorriso e
a energia.
SERENA

ALGUÉM NO CÉU vai ser demitido hoje, porque eu já tinha passagem


expressa para o andar de baixo. Não que eu esteja reclamando, longe de mim!
O paraíso é maravilhoso, parece até a suíte presidencial do hotel em que
trabalho.
Meus olhos começam a se acostumar com a claridade. A cor branca
predomina no lado de fora das minhas pálpebras, causando um grande
incômodo. Abaixo do meu corpo, há um desordenado felpudo e macio de
cobertores e lençóis, como se eu repousasse em cima de nuvens — se fosse
possível deitar sobre elas, tenho certeza de que seriam tão confortáveis
quanto esta cama principesca.
Bem, uma coisa é certa: não devem existir camas no céu. Nesse caso,
ou enlouqueci de vez e estou presa em um delírio, ou consegui passar a noite
com algum qualquer bem milionário.
Será que…
Levanto as camadas de cobertores e verifico minhas roupas. O vestido
continua intacto, embora amassado e com várias manchas de origem
duvidosa. Espero não ter vomitado na cara de ninguém. Meus saltos foram
depositados perto da cama, organizados simetricamente um ao lado do outro.
O mais importante, contudo, é que minhas peças íntimas permanecem em
seus devidos lugares.
Que pena, não foi dessa vez…
Misericórdia!
— Doida! ¡Chica loca! — repreendo-me, balançando a cabeça para
afastar esse tipo de pensamento.
Tenho sorte por ainda estar vida. Poderia ter sido sequestrada por
aproveitadores. Por mais que aquela boate fosse frequentada apenas pela elite
da sociedade, não posso me esquecer que existe muito bandido que fica podre
de rico vendendo órgãos saudáveis como os meus no mercado negro. Que
merda eu tenho na cabeça?
Preciso ser internada, é um fato. Só continuo viva porque a dona morte
ligou o botão do foda-se para mim.
Alguma coisa deu bem errado na noite passada, e começou no
momento em que resolvi sair daquela casa. Estava sufocada com todas as
lembranças do antes. Mas as coisas só saíram do controle quando coloquei o
primeiro gole de uma maravilhosa bebida com sabor de morango na minha
boca, seguida por uma de limão, outra de abacaxi, até o falecimento do meu
paladar.
Copos demais, maturidade de menos, simples assim.
O último evento de que me lembro são flashes da minha amiga Raissa
discutindo — ou seria flertando? — com um homem musculoso, negro de
traços angulosos, lindo de morrer dentro de uma camisa social acinzentada.
Eu já estava muito bêbada para entender o contexto e tudo o que mais queria
era manter distância de pessoas se dando bem em seus relacionamentos
amorosos.
Minha inveja é tamanha que eu acabaria atraindo sete anos de azar para
a vida dos dois apaixonados. Amargura de tia solteira é pior do que maldição
de mãe.
Sou tomada por uma súbita vontade de vomitar. Sento-me depressa e
minha cabeça viaja para outra galáxia, depois retorna na velocidade da luz.
Péssimas ideias costumam acarretar péssimas ressacas, é assim que surgem
os apocalipses zumbis e todas as catástrofes biológicas. Um bocado de vodca
russa e qualquer pessoa se transforma em morto-vivo.
Na Rússia, beba como os russos, é o que dizem. Babacas!
Levanto-me devagar, sem fazer movimentos bruscos. As cortinas
translúcidas balançam suavemente na frente de duas portas de vidro abertas,
emoldurando o céu matutino com a claridade alaranjada do amanhecer.
Caminho até o banheiro e constato que estou realmente no quarto mais
caro do Hotel Palliermo — apelidado por muitos de Hotel Dourado. Meu
local de trabalho. Fala sério! É como se o universo conspirasse para eu ser
demitida. Hoje, meu turno começa às dez, ou seja, tenho que descobrir como,
e com quem, eu vim parar nesse quarto antes que alguém me descubra.
Jogo uma porção de água gelada no rosto para me refrescar do enjoo e
começo a gargalhar da minha cara de defunta refletida no espelho. Meu plano
era só sair um pouco, esquecer os problemas, fingir que tudo não está
desmoronando. Queria não me afligir o tempo todo, ainda mais agora que
tenho uma sobrinha para me preocupar e cuja vida está em perigo tanto
quanto a minha.
É cansativo ser forte.
Depois que Vladimir enviou um e-mail recusando-se a me emprestar os
trinta mil dólares, fui envolvida pela vulnerabilidade, fraca demais para
responder, como não acontecia há anos.
Eu fraquejei. Vladimir me causou isso. Fragilidade.
Apoio-me na pia para não cair e me lembro de mais alguns fragmentos
de ontem. Acho que ofereci a minha virgindade como uma ninfomaníaca a
pelo menos dois ou três homens. Só Deus para saber o motivo de não terem
aceitado, devem pensando que eu era louca — e com razão.
Se cada ser humano nasce com um estoque limitado de sorte, gastei o
restinho que eu tinha para que nada traumático acontecesse durante meu
lapso alcoólico.
Coloco a cabeça dentro da pia e a água gelada escorre sobre meu couro
cabeludo. O banheiro é tão refinado que funciona a base de sensor e não
quero nem imaginar quanto isso custa.
Um choque de suposições invade minhas memórias. Sonhei com
Vladimir, sua voz prometendo me punir vagava no meio de luzes frenéticas e
coloridas, promessas de um beijo que nunca chegou a acontecer.
Sobressalto-me com duas batidas na porta. Graças ao susto, bato a
cabeça na torneira cromada, perco o equilíbrio e meus pés deslizam na água
acumulada no chão. É o tempo de eu piscar uma vez e, no instante seguinte,
vem o impacto do meu corpo contra o piso de porcelanato — acho chique!
É isso, daqui em diante estou fadada à uma vida miserável de azares
consecutivos. Nenhuma novidade até então.
Se concentra, Serena.
Meu organismo ainda não expulsou completamente a embriaguez.
E se for um psicopata?
Fico em silêncio, encolhida no chão, esperando mais algum ruído que
denuncie quem está do outro lado. Procuro por algum utensílio que me ajude
caso precise, mas o tudo que encontro são sais de banho ao redor da banheira
de hidromassagem, algumas toalhas penduradas na parede e — para aumentar
a minha taquicardia — duas camisas sociais masculinas penduradas em
cabides de madeira. Seja quem for, tem bom gosto.
Em que merda eu me meti dessa vez?
— Estou ouvindo sua cabecinha queimando, Corazón.
Ah, para! Não pode ser.
Atordoada, levanto-me rapidamente e sinto meu coração acelerado
quase subindo pela garganta. O alívio se mistura com a gratidão enquanto
giro a chave com as mãos trêmulas, meus olhos ardendo. Não vou chorar, não
vou.
Abro a porta pouco a pouco, com medo de ser traída pela minha própria
mente.
Mas não, é ele. Vladimir Volkiov e sua constante expressão
preocupada. Há um mundo nas costas desse homem. É doloroso de ver que
tudo nele está programado para ferir ao primeiro sinal de perigo.
Inspiro profundamente e levo minhas mãos aos olhos, reprimindo
lágrimas, temores, fantasmas. Não tinha percebido como estava com medo
até agora.
— Está tudo bem — sussurra, puxando minha cabeça. Encosto a testa
em seu torso e ele não se importa com as gotas de água que escorrem do meu
cabelo encharcado. — Está tudo bem agora.
— Quero chorar — confesso, apertando meus olhos com mais força. —
Estou tão aliviada por ser você, eu gosto muito dos meus rins.
— Rins? — Vladimir ri contidamente. — O que vou fazer com você,
Serena? O que você tem que me deixa assim? — Ele apoia o queixo no alto
da minha cabeça. É a segunda vez que faz esse questionamento, mas não
tenho a resposta.
Seja o que for que eu causo nele, ele me causa em dobro.
Ficamos assim por alguns segundos enquanto me acalmo. Aos poucos,
crio coragem para separar nossos corpos e enfrentar a vergonha. Seguro a
parte ensopada da sua camisa e olho para cima.
— Desculpe — resmungo. — Mais uma vez eu trouxe problemas para
você. Como acabamos nessa situação?
— Você não se lembra de nada? — Sorrindo como quem esconde um
segredo, ele pega uma das toalhas disponíveis no banheiro e coloca em cima
da minha cabeça. Sinto-me como uma criança de dois anos. — Exatamente
como eu desconfiava, mas achei que não acordaria assim tão cedo.
— Tenho que trabalhar — explico, recuando. Seus cabelos escuros
estão soltos e ondulados nas pontas, sem a camada abundante e costumeira de
gel. — Meu organismo meio que se acostumou com meus horários de
trabalho, mesmo depois de uma bebedeira.
Cruzando os braços, Vladimir me analisa, pensativo com sua pose de
homem culto. Meus neurônios em pane se contorcem com tanta beleza e
poder reunidos em uma pessoa só, e já não tenho mais tanta certeza se meus
sonhos envolvendo nós dois foram invenções da minha mente.
— Você tem esse hábito de não cuidar de si mesma que me deixa… —
Ele bufa, fecha os olhos e se repreende com uma negação muda. Em seguida,
decreta, sempre mandão: — Tome um banho, temos muito o que conversar.
Reviro os olhos e o empurro porta afora. Agora que o perigo se foi, vou
aproveitar a estranha oportunidade. Não existem duas pessoas destinadas a se
encontrarem em situações bizarras mais do que nós dois.
Quando submerjo na água quente da banheira, várias frações da minha
performance na boate resolvem aparecer. Lembro-me de dançar muito, de ser
arrastada até o lado de fora, do olhar raivoso de Vladimir. Sexy para um
caralho! Como eu pude esquecer?
Do que mais eu não me lembro? Será que nos beijamos? Não acredito,
eu me lembraria… acho.
A curiosidade fala mais alto, então termino de me lavar e saio depressa.
Encontro uma escova de dentes nova no armário e a utilizo enquanto me
enxugo. Depois, visto uma das camisas penduradas, rezando para que
pertençam a ele. Ela cobre mais do que o vestido sujo — não que eu queira
cobrir nada, mas duvido que a reação de Vladimir seria favorável se eu
aparecesse na sala vestindo um belíssimo nada.
Que ideia tentadora, afasta de mim!
Descabelada, passo os dedos nos fios durante o percurso até a sala e
encontro Vladimir sentado em um sofá com os olhos fixos em seu celular.
Está preocupado, percebo pelas rugas entre as sobrancelhas.
— Você me beijou? — pergunto, estabelecendo a prioridade que me
importa.
— Não, Serena. Por muito pouco, não beijei você. — Ele abandona o
celular ao seu lado, junto com vários jornais e alguns documentos, e indica
uma poltrona distante que não me atrai. — Vamos conversar.
Contrariada, sento-me e cruzo as pernas. Meu movimento não passa
despercebido e ele também não faz questão de disfarçar. Gosto que não
existam meios termos para Vladimir, que seja um homem que não teme
demonstrar aquilo que quer consumir. Só precisamos acelerar esse processo.
— Tenho ideias melhores — sugiro. Não custa tentar.
— Eu também, mas não posso ignorar o que você fez ontem à noite.
Serena, e se eu e Roman não estivéssemos naquela boate? Você estava
declarando aos quatro ventos que queria perder a virgindade.
Ah, a vergonha... Não basta ser virgem, tem que ser burra também. Isso
é carma! Praga, feitiçaria! Mesmo com o rosto em chamas, mantenho a
cabeça erguida. Não é como se alguém tivesse morrido, só a minha dignidade
mesmo.
— Tudo bem, segredo revelado. Sou virgem e quero deixar de ser.
Onde está o crime?
— Não me testa, Corazón! Você é virgem! — grunhe, seu tom soando
ofensivo. — Qual era o seu plano? Você poderia ter sido… Eu nem consigo
dizer! Você faz essas coisas, se coloca em risco, não tem medo de nada. Por
que, Serena?
— Por que isso importa? — rebato, desviando do assunto.
Não quero falar sobre isso.
— Importa a partir do momento que me deixa assim, porra! —
Frustrado, ele joga o corpo para trás e encosta no sofá. — Aquela mensagem
cancelando nosso negócio, o que foi aquilo?
— É… complicado.
— Não, Serena, esse tipo de resposta não serve! — Vladimir bate a
mão com um estalo alto na própria perna. — Alguém ameaçou você? Preciso
entender para saber como agir. De uma forma ou de outra, não vamos desistir
do seu terreno, é tarde demais.
Implícito em sua declaração, há um aviso. Sua empresa conquista o que
deseja, não importando os meios ou os prejudicados. Porém, há muito em
jogo, e a sentença de uma vida não pode ser decretada pela ganância de outra.
— Meu irmão tem uma filha que vive na casa junto com a mãe —
conto, esperando uma reação de surpresa que não vem. — Você já sabia?
Vladimir confirma com a cabeça, e seu semblante angustiado me leva a
pensar que, talvez, ele se preocupe um pouco com a minha sobrinha.
— Você foi ao terreno? Entrou no distrito?
Sua calma é bem assustadora.
— Na verdade, durante a última semana fiquei lá quase todos os dias. A
casa estava precária, imunda, totalmente inabitável, e a mãe dela não é a
melhor das mães, para não dizer coisa pior.
— É perigoso! — Ele não chega a gritar, mas sua voz aumenta
exponencialmente.
— É minha sobrinha. Diga que não teria feito o mesmo? Você tem um
sobrinho, não tem? O que seria capaz de fazer por ele?
— É diferente, Serena! — Ele está puto, o rosto vermelho de nervoso.
— Eu tenho recursos, cautela, discernimento. Você foi ameaçada!
— A única diferença é que você é rico — pestanejo. — Não se trata
apenas de condições financeiras, tem mais uma coisa que você não sabe.
— E tem como ficar pior? — Ele ri, desgostoso.
— Não subestime a lei de Murphy, querido, eu e ele somos velhos
amigos. — Em momento algum hesito antes de contar a verdade, e a
confiança que deposito nele me surpreende muito. Estou acostumada a me
cuidar sozinha, não a dividir o peso. — A Corporação Volkiov quer comprar
um terreno usado para armazenar todo o tipo de drogas, medicamentos
ilícitos e alguns produtos clandestinos. Camillo emprestou nossos armazéns
para o tráfico. É por isso que ele foi tão inabalável sobre a venda.
Uma sombra cobre as feições de Vladimir, a aberração da presidência.
Seus muitos anos de conhecimento e experiência não falham; se antes a
construção do clube havia sido paralisada, agora o nome de todo o império
foi ameaçado. Mesmo sem entender muito sobre a realidade de um líder, eu
me compadeço da expressão devastada que toma conta das linhas faciais de
Vladimir.
— Eu conheço você há pouco mais de quatro semanas — reflete com o
olhar perdido em um ponto aleatório do chão. Pega de surpresa com o fato de
ele não surtar sobre seus negócios, continuo escutando com atenção. —
Nesse meio tempo, você entrou por engano no quarto de um homem nu, se
inclinou no parapeito de um prédio, foi ameaça de morte por um criminoso
armado, pulou na frente do meu carro em movimento, passou a frequentar
sozinha um dos distritos mais perigosos da cidade, se embebeu em uma boate
e ofereceu sexo a desconhecidos. Como se tudo isso não bastasse, está me
dizendo que tem praticamente vivido em uma casa utilizada por marginais
para esconder drogas?
Ele tem bons argumentos.
— Bem, colocando dessa forma, eu fico parecendo uma imbecil. Em
minha defesa, o quarto invadido era o seu, uma pessoa que não oferece risco
nenhum. Não tenho medo de altura e também não tinha conhecimento das
questões envolvendo as falcatruas do meu irmão, sou inocente dessas
acusações. Sobre querer transar, essa é uma necessidade humana básica,
mesmo que eu tenha sido movida pelo medo de morrer virgem.
— Eu ofereço muitos riscos, Serena — adverte, sorrindo
maliciosamente. — Mas ter medo de morrer virgem é ridículo.
— Para você é fácil falar, tenho certeza de que transa bastante. Já
eu, tenho vivido por quase vinte e quatro anos na base da minha imaginação
fértil.
Vladimir me amaldiçoa por dizer essas infâmias. Não quer perder o
controle da situação.
— Corazón, não vamos entrar no mérito do sexo por enquanto, tudo
bem? — Ofegando, faz ameaças com a voz rouca, o olhar perigoso e seus
músculos tensos. — Já é difícil o bastante não trancar você dentro daquele
quarto e só soltar quando aprender a cuidar mais de si mesma.
Engulo em seco. Se queria desviar do assunto, só ofereceu mais
munição para as engrenagens libertinas que movem a minha mente. Dios mio,
eu sou uma depravada, e Vladimir piora o que há de mais desequilibrado em
mim.
— É agora que a gente se beija? — Descruzo as pernas, admirando sem
ressalvas sua postura selvagem.
Estamos presos dentro de um beco sem saída, não há o que ser feito.
Somos tão igualmente ferrados que a atração se transforma em obrigação;
dois aventureiros viciados na adrenalina que é gerada no cerne do medo e da
morte, e um representa a maior ameaça à vida do outro.
Em duelos que oferecem poder como prêmio, os predadores tendem a
mostrar suas garras, e as minhas estão sempre afiadas.
— É agora que você aceita permanecer aqui por livre e espontânea
vontade enquanto eu aciono as autoridades para lidarmos com a situação —
decide, autoritário. — Não há motivos para complicarmos algo tão simples.
— Você está pulando várias etapas, presidente! — reclamo, pensando
em minha pequena Luazinha presa naquela casa. Não vamos envolver a
polícia, não vou permitir.
— Já disse para não me chamar assim, Corazón — diz com a voz
cortante.
Nossa conversa tem ares de briga e de sedução ao mesmo tempo. Meu
corpo se torna cada vez mais pesado, respirar é um processo doloroso. Para
Vladimir, as coisas seguem o mesmo percurso, seu peito sobe e desce com
abundância e o raspar de seus dentes trincados espelha os meu.
— Por que me trouxe aqui? — pressiono. — Você não quer apenas
conversar sobre negócios.
— Precisamos conversar sobre negócios para que eu possa finalmente
falar a respeito do que realmente quero de você — confessa, fazendo meu
corpo queimar, sedento, faminto.
Ele não tem meias-palavras.
Nunca quis tanto sentir os lábios de um homem como os dele, ouvir os
sons que escapam da sua garganta enquanto provamos sabores e descobrimos
pontos sensíveis em nossas peles.
— Pois tudo o que eu mais quero agora é falar sobre isso que causamos
no outro. Esse relacionamento estranho que…
— Não existe um relacionamento — interrompe-me sem nenhuma
gentileza. Está tentando me amedrontar agora. — Eles são frágeis,
destrutivos. Pessoas se enganam com muita facilidade, gostam do sofrimento.
Você pode não lembrar, mas eu lhe disse ontem que não temos futuro. Eu sou
o presidente da empresa, existem tramites que limitam a minha vida afetiva.
Estou sendo sincero porque não me dou ao luxo de assumir compromissos.
Não faço promessas que não posso cumprir e odeio iludir as pessoas.
Implícito em suas palavras, compreendo. Vladimir não gosta de iludir
as mulheres com quem se envolve, seu destino já foi determinado. O
presidente precisa de uma mulher à altura ao seu lado. As demais não são
exclusivas, mas passageiras.
— Eu sou uma pessoa bem antiquada, na verdade — digo sem me
abalar com tanta sinceridade. — Acho que não conseguiria me envolver com
mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Por enquanto, estou interessada em
você, Lord Vlad, e a partir do momento que a gente se envolvesse, eu me
fecharia para todo o resto. Não por respeito a você, mas por ser quem eu sou.
— Primeiro, está sendo precipitada. — Ele fecha o computador sobre a
mesa com força. Mesmo sem me encarar, sua postura entrega seu esforço
para não gritar. — Não estou propondo uma relação aberta, de maneira
nenhuma, entendeu? Isso nem mesmo passou pela minha cabeça.
— Mas você disse que tem obrigações com a empresa que te impedem
de assumir um relacionamento. Eu sei como somar dois mais dois, Vladimir.
Já entendi que pretende se casar com uma mulher que tenha o padrão social
equivalente ao seu. A questão aqui é que eu não tenho essa esperança toda,
então não precisa se preocupar!
— O problema sou eu, Serena, não você. Estava tentando manter as
coisas profissionais entre nós, mas não sou homem de fugir. — Sufocado,
Vladimir abre os primeiros botões da sua roupa. Seus olhos azuis estão
escuros, dilatados, fazem lembrar os perigos das noites em histórias
sobrenaturais. Um vampiro. — É como se existisse um monstro no lugar do
que Vladimir Volkiov poderia ter sido, e você não está preparada para lidar
com ele.
— É um monstro lindo, Lord Vlad, e não estou nem um pouco disposta
a recuar com seus avisos. — Pela primeira vez, as camadas de reclusão se
desfazem e Vladimir sorri, espontâneo e sincero. Retribuo com minha dose
de leveza. — Pode existir um monstro dentro de você, eu não me importo. Os
melhores castelos são protegidos pelas feras mais perigosas. — Dou de
ombros, brincando com as palavras.
— É uma forma de interpretação — pondera na defensiva — Exceto
que, nos contos de fadas, são as aberrações que tentam afastar a princesa do
final feliz. Tudo o que eu estou dizendo é para o seu bem. Você disse que não
vai recuar, então esteja ciente de que este sou eu avançando.
— Eu gostaria de ser essa pessoa que se desculpa, mas não vou pedir
perdão por ser quem eu sou. — Agarro as beiradas da camisa, meu corpo
cada vez mais quente, mais subordinado ao perigo. — Finais nem sempre são
felizes, Vladimir. Não sou feita de açúcar para derreter na chuva, não sou
princesa, não estou em busca de um final feliz, e não tenho medo de você.
Nem um pouco, entendeu? — Do outro lado da sala, com as pernas abertas e
o colarinho desabotoado, ele me sorri como se aprovasse, como se esse
tempo todo estivesse me testando. Ou, talvez, condicionando-me para um
desfecho estabelecido muito antes da minha sujeição. Manipulador. — Não
preciso de proteção.
— Ainda não — zomba. — Mas vai precisar eventualmente.
A vibração em suas palavras e o modo como o volume de sua voz
despenca para um timbre mais grave, transforma a frase em uma promessa. O
aviso foi dado, eu vejo o risco no azul dos seus olhos, mas eles me
hipnotizam, convidam-me para inclinar na beira do precipício. Vladimir
levanta um braço e faz um movimento mínimo com a ponta dos dedos,
solicitando a minha aproximação.
— Venha buscar o que você tanto deseja, Corazón.
Levanto-me antes que mude de ideia, vai saber! Meus pés acariciam o
tapete felpudo, e a claridade refletida sobre os móveis aumenta a escala de
brilho na sala em vários tons, como se estivéssemos presos dentro de uma
bolha de luz.
Os sentimentos são tão intensos que preciso nomeá-los com novas
definições — há uma paz compacta pesando dentro de mim, junto com uma
certeza sólida de que estou exatamente onde deveria; é a representação mais
devota do fascínio, da paixão.
Um passo, seguido de outro. Vladimir, imóvel, aguarda a minha
chegada, assim como uma aranha vigia até que as presas se engastalhem em
suas teias mortais. Nunca imaginei que fosse possível cobiçar pessoas, que,
tal como a fome e a sede, a necessidade de outro ser humano pudesse se
tornar orgânica.
Suas palavras defendem que preciso temer a ameaça que reside dentro
dele, quando, na verdade, sou eu a portadora do maior perigo: me apaixonar
por alguém que promete nas entrelinhas nunca retribuir qualquer fagulha
desse sentimento.
Inferno… não!
Não sou a única ambicionando por algo. Paro de andar quando alcanço
a metade do curto caminho. É difícil em níveis apocalípticos, pois cada
centímetro do meu corpo se encontra sob o domínio da sua expectativa. Esse
negócio de amor próprio é complicado, a gente gira de um lado para o outro
como uma esfera balançando entre dois extremos e uma simples inclinação
pode colocar tudo a perder.
Mesmo as relações sem futuro precisam de harmonia para serem
perfeitas durante o maior tempo possível.
Ele é poderoso, afiado. Pode ser ferro fundido, mas eu sou brasa.
Eu sou o fogo.
Apoiando os cotovelos sobre os joelhos, Vladimir demonstra toda
insatisfação por não ser atendido de imediato. Talvez eu coloque tudo a
perder e lamente mais tarde na solidão daquela casa triste, enquanto abraço
meu travesseiro. Sem beijo, sem monstro. É bem a minha cara. Mas eu
prefiro arriscar.
— Eu percorrerei até você somente a distância que puder caminhar para
mim, Vladimir. Nunca mais, nunca menos. — Imitando seu movimento, ergo
um dos meus braços e o convido, pedindo com ações e palavras: — Venha
buscar o que você tanto deseja, Lord Vlad.
Paro de respirar quando ele se levanta e investe na minha direção, um
conjunto ordenado de sensualidade e determinação. Desespero acima de
qualquer outra coisa, rendição. Eu queria poder memorizar como nossos
corpos conseguem a proeza de se encaixarem, sendo ele tão mais alto do que
eu, queria poder perceber quantas camadas de luxúria tremulam ao nosso
redor.
Eu queria o mundo, porém, quando nossos lábios se unem, sinto a treva
dele se fundindo com a minha penumbra. Dois seres condenados a enxergar
na escuridão.
Tento devolver tudo com a mesma intensidade, a sincronia dos nossos
lábios é frenética, nem um pouco delicada. Afogo-me no seu mar de
confusões, perco a capacidade de raciocinar, de existir. É ele quem comanda
nosso beijo, exigindo mais de mim, cada vez mais.
Mesmo sendo trouxa, por sorte não nasci tapada também, e logo
minhas mãos começam a mapear seu corpo, explorando regiões sensíveis,
interpretando saliências. Tem mais músculo do que homem, disso eu tenho
certeza! Que metamorfose de testosterona é essa?
Obrigada, amém.
Vladimir solta um risadinha, amparando minha boca com a dele. Ávido
na tarefa de também desvendar todos os milímetros da minha pele, desliza os
dedos ao longo da minha cintura, acaricia a ponta da camisa e, antes que eu
tenha qualquer chance para me preparar mentalmente, encosta a palma gelada
na minha barriga.
Arquejo. É melhor do que meus sonhos mais perversos. Ele sabe o que
fazer, os pontos certos a tocar. Conhece as artimanhas que despertam prazer.
Comparada à Vladimir, minhas habilidades de sedução são tão ínfimas que
não vale a pena competir.
Eu me rendo.
Isso nem deveria ser chamado de beijo! Não quero pensar na parada
cardíaca que terei quando dermos um passo adiante e tornarmos tudo mais
íntimo. Quando ele me destruir. Pois é! A essa altura do campeonato, não
ligo mais se me tornarei um montinho de estilhaços, porque o sorriso na cara
de pau vai ser bem lindo.
— Você pensa demais — diz ao interromper o que deveria se tornar
uma das sete maravilhas do mundo, no lugar do Machu Picchu ou da Muralha
da China. Agora, suas duas mãos se encontram imóveis na região mais
inferior das minhas costas, ainda dentro da camisa erguida. Vladimir torna a
me puxar, mas, ao invés de migrar novamente para minha boca, ele se
aproxima do meu ouvido e sussurra: — Respira, Corazón.
Isso é bom, oxigênio! Meus pulmões agradecem.
— Isso foi… — Busco por palavras, mas nenhuma parece digna o
suficiente.
— Intenso? — Vladimir ergue meu rosto, unindo nossos lábios mais
uma vez, como se nossas vidas dependessem disso. — Corazón, você é um
perigo.
— É o que dizem por aí — concordo, atordoada.
— Essa conversa — balbucia no meio dos nossos movimentos
frenéticos de línguas e mãos — está longe de acabar.
— Ainda bem que não estou com pressa, e você?
Retomando o controle, Vladimir segura meus ombros e nos afasta
alguns centímetros. Engole em seco como se a minha pergunta fosse muito
complexa. Ele olha para o sofá, todos os papéis, seu celular e o computador
ainda ligados. A questão agora, no momento presente, com nossa rendição
entrelaçada ao domínio, é quem ele vai deixar agir: o presidente, o monstro
ou o homem.
— Não, eu não tenho pressa — decide. — Mas…
Mas nada!
— Lord Vlad… — Projeto minha língua sobre seus lábios, desafiando
sua personalidade egocêntrica que não vai aceitar perder. — O que acha de
não falar mais nada? Só faz isso e me beija.
Ele faz. E ele beija.
VLADIMIR

DESESPERO, CAOS E ruína. Serena é uma compilação de todos os meus


medos, uma metamorfose desequilibrada que me desvirtua dos caminhos
seguros direto para o abismo. Mas sucumbir não poderia ser mais prazeroso,
destruir não poderia ser mais assustador.
Por mais rústico e errado, não consigo suprimir meus instintos de
domínio, os mesmos que me impelem a requerer o controle. Enquanto ela
perambula pelo grande salão do hotel, arrumando mesas e preparando o café
da manhã para os clientes, meus olhos traem as obrigações pendentes e
insistem em vigiar cada um de seus movimentos.
Já passei por todo tipo de preocupação, das mais comuns às mais
perigosas, das tristes horas que sucedem a morte de um ente querido à revolta
por ter o peso de obrigações e fardos jogados em cima das minhas costas sem
que eu os quisesse; mas nada se compara com sensação de passar a noite
inteira imaginando desfechos alternativos e nojentos para a última
madrugada.
Não é problema meu que sua vida seja uma desordem quase cômica,
não tenho o direito de repreendê-la quando minhas intenções são tão impuras,
sei disso, mas não consigo arrancá-la da minha cabeça.
Eu pulei do precipício, olhei para o fundo do poço e gargalhei das
trevas. Os lábios dela, tão quentes e receptivos, seus olhos suplicantes e a
audácia de quem não teme as formas escondidas nas sombras, acenderam a
faísca da decadência que arde em mim. Um de nós está fadado a encontrar o
chão frio e irrevogável no fim da queda.
Serena é um risco, uma aposta de olhos fechados que vai contra todos
os meus princípios. É invasiva, desinibida e sorridente demais para alguém
com tão poucos motivos para ser feliz.
Ela toca as pessoas com muita facilidade enquanto entrega xícaras
fumegantes aos hóspedes no restaurante do hotel dourado. Pousa suas mãos
pequenas em ombros demais, elogia e cumprimenta pessoas demais, agradece
demais. Ela me tira do sério demais.
Serena transborda, ela farta e sobra.
Ela é demais.
Meu celular vibra, somando mais uma chamada à lista de ligações
feitas por minha mãe. Ela não desiste, desconhece tal palavra. Suponho que já
tenha lido alguma reportagem a respeito da Kokorin Enterprises. Eles se
responsabilizaram por todas as falhas na construção do clube, e prometeram
arcar com todos os prejuízos aos moradores.
Como uma mulher de negócios, que esteve à frente da Corporação
Volkiov ao lado do marido, Tatiana sabe muito bem o que essa manobra
significa.
No meu notebook, pesquiso pela matéria mais recente em um jornal de
grande alcance e encontro a notícia em destaque no alto da página, com uma
imagem minha e da extravagante Elena em nosso último jantar nesse mesmo
hotel.
— O Império Volkiov está prestes a conseguir mais uma rainha? —
Serena se inclina ao meu lado, lendo o título em voz alta enquanto segura a
risada. Ainda me surpreendo com a distância que seus cílios conseguem
alcançar das sobrancelhas, fazendo com que suas piscadas pareçam esconder
um segredo. — O que é isso? Um site de fofocas? Não sabia que você se
importava com essas coisas.
— Não me importo. — Algo na voz dela, no timbre, em como sempre
morde os lábios quando percebe que soltou um dos seus comentários
inconvenientes, me diverte. — E você, tem o costume de bisbilhotar o que os
clientes estão fazendo no desjejum?
— Desjejum? — gargalha, chamando atenção de vários curiosos
desocupados. — Em que século você nasceu exatamente, Lord Vlad? Estou
cada dia mais convencida de que você é um vampiro de verdade. E, só para
constar, eu bisbilhoto apenas os clientes gostosos. Sabe como é, sou muito
exigente.
É melhor que esteja brincando, penso, embora não duvide de nada do
que ela diz. Reprimo a vontade súbita de olhar ao redor e analisar os lobos
famintos sedentos por carne fresca.
— Está se sentindo bem? — Mudo de assunto e ergo minha xícara.
Serena faz uma careta, xingando-me com o olhar, mas me serve.
— Tirando a dor de cabeça e a vontade de cair dentro de uma cova
quente e silenciosa pelo próximo milênio, estou bem. Por sorte, minha manhã
foi ótima. Revigorante.
Peste.
Foi ótima de fato, mesmo que o único a impor limites tenha sido eu.
Não é fácil ir com calma quando a outra parte acelera a trezentos por hora.
Ela é uma virgem cheia de vontades, um detalhe pequeno dentro de um
conjunto maior de características frágeis.
Entendo sobre máscaras, sobre esconder e mentir, mas ninguém é tão
destemido a ponto de nunca sentir medo. Ele é o principal instinto de
sobrevivência e aqueles que não o sentem é porque já desistiram de lutar.
Serena não me parece do tipo que desiste, mas suas atitudes imprudentes
dizem o contrário.
De repente, Serena me cutuca e aponta para a entrada do restaurante.
— São seus irmãos, não são?
Sim, os dois idiotas. Eles correm os olhos, conversando aos cochichos.
Parecem preocupados. De um lado, Andrei vestido com um terno preto e
amassado, a gola da camisa por baixo ainda desarrumada, como se tivesse
saído às pressas; do outro, Roman, com a mesma roupa que vestia na última
vez que nos vimos, dentro da boate — o antro do meu deslize mais recente.
Roman é o primeiro a me reconhecer, desviando sua atenção para
Serena de imediato. À medida que se aproxima, puxando Andrei pelos
cotovelos, seu sorriso torto aumenta.
— Então você está vivo! — diz Andrei como se fosse um absurdo. Não
me dou ao trabalho de levantar e os dois logo se acomodam ao meu lado. —
Não apareceu na empresa hoje, pensamos que pudesse estar morto! O prédio
parece o estopim da terceira guerra mundial, lotado de repórteres em busca de
um pronunciamento oficial.
Para minha surpresa, Serena se afasta profissionalmente até a próxima
mesa e começa a conversar com um casal. É uma boa funcionária, tem
carisma para lidar com as pessoas. Mas a teimosia... puta que pariu! Mulher
teimosa dos infernos. Nem para me beijar se rendeu, não se dobrou aos meus
comandos. Muito pelo contrário, fez de mim o perdedor em nossa batalha.
— Podia pelo menos fingir que está prestando atenção — repreende
meu irmão mais novo, invertendo nossos papéis.
Roman massageia as têmporas e resmunga, seu cheiro de perfume
misturado com fumaça de cigarro quase ofuscam o odor de álcool barato.
Não quero imaginar em que tipo de ambiente ele se enfiou depois que nos
separamos.
— Eu precisava resolver um assunto importante.
— O que poderia ser mais importante do que Tatiana no meio de uma
crise dos nervos? — Andrei cruza os braços, encarando-me com seus olhos
castanho-amarelados. Ele é o único que herdou o tom exato das íris de
Nicolai. — Ela precisa ser estudada, internada, qualquer coisa! Desde o
casamento, nossa mãe tem resmungado pelos cantos, e passa a maior parte do
tempo presa naquele almoxarifado revirando caixas antigas. E agora que a
imprensa resolveu criar teorias sobre a sua suposta relação amorosa com
Elena Kokorina, ela está prestes a entrar em colapso. Vladimir, você precisa
voltar para casa.
Ótimo, minha vida já não estava complicada o suficiente.
— Tatiana é a menor das minhas preocupações, não posso lidar com
isso no momento — reclamo com os olhos fechados. É mais fácil manter a
concentração sem Serena desfilando na minha frente. — Alguém está
tentando nos ferrar, com certeza esses jornais estão embolsados por algum
dos nossos concorrentes frustrados. Pelo menos, enquanto estiverem
concentrados na minha vida pessoal, mais tempo teremos para terminar as
obras sem outros imprevistos.
— E como você pretende fazer isso, Vladimir? — Roman pergunta,
irritado. — Não é como se dormir com a proprietária do terreno fosse
melhorar alguma coisa. A propósito, Andrei me deve mil rublos. Apostamos
e eu disse que você tinha passado a noite com uma mulher.
— Então você perdeu — Serena intervém, surgindo sabe-se lá de onde.
— Não dormimos juntos, infelizmente.
Ela agita a garrafa aparentemente vazia na frente do corpo. Está hilária
com o uniforme dourado e chamativo, além do rosto cansado. Andrei, por
fora do assunto, é o único que manifesta incompreensão; acho que não tinha
reconhecido Serena ainda. Juntando as sobrancelhas, ele me indaga sem
palavras: que porra é essa?
Como explicar uma coisa que nem eu entendo?
— Nesse caso, você continua sendo virgem. Que pena, não existe
chance para nós, bebê. — Roman deita a cabeça na mesa, bate com a testa
devagar, fazendo drama.
Nunca houve chance para ele, obviamente. O rosto de Serena adquire
um tom pálido, os olhos arregalados de surpresa. Acho que esqueci de
mencionar essa parte da história.
— Como ele sabe? — sussurra com a voz esganiçada, acusatória, o
rosto alternando para tonalidades rosáceas.
— Corazón, você anunciou isso para metade de Moscou. — Uso todo o
meu autocontrole para não rir da situação.
— Alguém pode me dizer o que está acontecendo? — Andrei pede. —
Acho que perdi alguma coisa. Qual a relação de vocês?
— Amigos — responde Serena rápido demais, já recuperada do rubor.
Lá vem ela com essa palhaçada outra vez. Estreito os olhos. Isso não é o
bastante, não mais. Os segundos passam, parecem minutos, horas. Ela me
encara, eu devolvo o desafio. — Somos amigos que se beijam — completa,
revirando os olhos.
Melhor.
— Isso sim é o que eu chamo de mudança radical. Acho que ainda
estou bêbado, deve ser um delírio.
— Vladimir… — O timbre na voz de Andrei é de preocupação e
dúvida, um pouco de desconfiança também. Odeio, de todas as formas, em
qualquer sentido, que me chamem com cautela, como se existisse qualquer
fragilidade no meu nome. — Tem certeza do que está fazendo?
É obvio que não tenho certeza de nada. Entretanto, antes que eu consiga
mentir e dizer que mantenho tudo sob a mais perfeita ordem, Serena puxa
uma cadeira e se senta, sorri para o caçula e deposita dois singelos tapinhas
no alto da sua cabeça.
— Você é um bom menino. Mas não coloca pimenta no meu molho! Eu
sou bem grandinha, sei me cuidar.
— Na verdade, ela não sabe se cuidar nem um pouco — corrijo-a, mais
para ver sua expressão irritada do que por dever qualquer esclarecimento ao
meu irmão.
— Tudo bem — admite, presenteando-me com um sorriso falso e
ameaçador. — Posso ter algumas tendências para me colocar em situações de
risco, mas nada assim tão grave. E, só para saberem, nossa amizade é
bastante diplomática. Discutimos alguns pontos de interesse mútuo,
envolvendo o imóvel cheio de drogas que vocês querem comprar e a
inexistente possibilidade de que nosso envolvimento crie raízes. Vladimir me
explicou tudo e eu estou bem, não me importo.
Ela é maravilhosa e eu estou mais do que fodido!
Serena entendeu tudo sem pestanejar. Aceitou-me, mesmo eu sendo um
filho da puta que vai pisar em seu coração ingênuo. Analisando como
defende suas convicções, fico mais tentado a quebrar tanta confiança.
Ah, Corazón… eu quero te destruir.
É como enfrentar um semelhante, uma líder faminta por conquistar
meus territórios. Uma batalha de gigantes. Ela diz não se importar, eu quero
provar o contrário.
Roman ergue a cabeça, assimilando as palavras de Serena. Retira os
óculos escuros, revelando um olho preguiçoso que acentua o verde
esmeraldino de suas órbitas. Somos fodidos, mas ele ganha no quesito
confusão.
Explico a profundidade dos problemas, fazendo um panorama entre a
dívida de Camillo e a pequena Luna Fajardo — que sempre me despertou
preocupação, dadas suas condições de vida. Coloco meus irmãos à par de
como a quadrilha de Maksim tem usado os armazéns no fundo do terreno
para esconder drogas e mercadorias roubadas, além de adiantar como isso
impacta o depoimento do senhor Kokorin assumindo toda a responsabilidade.
Agora o nome dele como investidor prioritário também se encontra
ameaçado, já que assumiu a responsabilidade por todo o planejamento
estrutural do clube, incluindo a sondagem preliminar do terreno e o contexto
social dos arredores, o que torna nossa dívida ainda maior.
A minha dívida.
Eles escutam a história sem interromper, apesar dos cenhos franzidos e
do sutil balançar negativo de cabeças, reprovando as decisões de Serena.
— Aquele clube era uma obra de arte — Roman balbucia, fazendo um
floreio com as mãos. — Meu melhor trabalho.
— Você projetou a estrutura? — Serena se aproxima dele e seus olhos
brilham, negros e impressionados.
Trinco os dentes, meu corpo enrijece. Sinto a minha garganta fechada,
como se uma bolha de ar não conseguisse concluir seu percurso até os
pulmões, a queimação venenosa no peito: ciúmes.
Não do tipo que um homem apaixonado sente por uma mulher, mas
aquele meu lado desonesto e competitivo rugindo. É horrível de tantos modos
que mantenho a expressão vaga, despretensiosa. Já basta ceder aos seus
encantos, agir como um babaca possessivo seria baixo demais, mesmo para
mim.
— Sua surpresa me ofende — reclama meu irmão, indignado,
colocando a mão sobre o peito. Pergunto-me se somos todos assim,
dramáticos, uma veia herdada de dona Tatiana. — Eu não apenas orquestrei
toda a planta da obra, como tenho gerenciado a construção e monitorado os
funcionários. Sou muito mais do que um rostinho bonito.
— Podemos focar no que realmente importa aqui? — Andrei reclama.
A falta de paciência não combina com ele. — Resolvemos o problema
temporariamente, mas aquela reportagem sobre os moradores descontentes
com a construção no clube ainda existe e pode estourar outra vez.
— E o que você sugere? — Roman debocha. — Se a polícia se
envolver, o escândalo vai ser maior. Além disso, não temos o apoio da
população local.
Pelo canto dos olhos, capto Serena dedilhando a mesa com as unhas
pintadas de vermelho. Ansiedade, reconheço, e começo a contar para ver
quantos segundos ela vai aguentar sem se intrometer. Não dura muito e logo
sua voz fina e irrequieta desliza no meio de nós.
— Não podem chamar a polícia. — Ela abaixa a cabeça, um gesto
humilde e vulnerável que a deixa com aspecto frágil. Fecho os punhos com
força para não puxar seu corpo de encontro ao meu. — Eles me matariam, e
Luna é apenas um bebê. Por muito tempo eu não tive ninguém, e agora…
— Serena, não somos tão egoístas assim — Andrei a tranquiliza com
sua empatia se somando a todas as outras qualidades inerentes à ele: bondade,
calma, altruísmo, tudo que falta em mim. — Mas são criminosos, perigosos.
Merecem ser presos, entende? É o certo.
— Certo? — sussurra, mas não encontro desdém ou deboche no que
diz, somente um equilíbrio inesperado. — Vocês alguma vez perguntaram se
eles queriam um clube? Quando uma pessoa nasce na riqueza, quanto tempo
demora até que o cheiro da fortuna invada seus sentidos?
— Nos ajude a entender. — Para meu espanto, é Roman quem faz o
pedido. Meu orgulho e prepotência nunca permitiriam. — Explique.
Com os olhos, ela me procura, como se existisse em mim alguma
segurança, um apoio. Não sei distinguir o que encontra, mas é suficiente para
que siga em frente.
— São pessoas pobres, o certo e o errado não fazem diferença quando
você precisa escolher qual dos seus filhos vai comer a porção maior de
comida. Eu acho que entendo a ideia por trás do clube, a intenção. Mas entre
sustentar a família até o mês seguinte ou se divertir por um dia na piscina,
poucas pessoas pensariam duas vezes.
— O clube não é apenas para recreação ou divertimento. A economia
local seria alterada, pretendemos contratar apenas funcionários da região. —
Andrei inclina a cabeça e, apesar da sua justificativa ser o foco do nosso
projeto, parece pouco diante da realidade apresentada por Serena.
— Os criminosos têm ajudado aquelas pessoas por décadas. Vocês
estão competindo com anos e mais anos de proteção. Um clube continua
sendo um monte organizado de tijolos e cimento, não é suficiente para vencer
o medo, ou a fome. Eu vi de perto aquela construção, a sujeira, o transtorno,
as máquinas inativas. Imagino o aborrecimento, a poeira, o barulho
ininterrupto. Para pessoas que não podem pagar por um atendimento
hospitalar decente, esses meses devem ter sido como um sussurro da morte.
Pisco uma, duas, três vezes, envergonhado demais para tomar a palavra,
egocêntrico o bastante para não admitir que a culpa é minha, que eu ignorei o
óbvio.
— Esclarecedor. — Roman assobia. — Mas, da mesma forma como
você não planejava ser tragada para essa negociação, nós também não
pretendíamos salvar ninguém. Somos homens de negócios, não heróis.
— Heróis ou não, somos todos humanos. Também sou egoísta, também
tenho defeitos, mas se pretendem denunciar Maksim e sua quadrilha, não
poderei fazer parte disso. — Ela arrasta a cadeira, como se o assunto tivesse
chegado ao fim, mas seguro seu braço com o máximo de brandura.
— Se matarem você, seu irmão vai herdar aquela casa, e duvido que
fique vivo por muito mais tempo depois disso. Quando ele também estiver
morto, então sua sobrinha vai ser a única coisa entre nós e o terreno, assim
como a única garantia para Maksim. — O esquema vai se formando
matematicamente na minha cabeça à medida que falo com paciência. — Faz
sentido para você que Camillo tenha deixado a própria filha para trás?
Um bebê, ela é apenas um bebê e ele a deixou.
Um silencio brutal toma conta da mesa e até os talheres tilintando e as
conversas de outras pessoas parecem emudecer à medida que compreendem.
Quando ela me contou a história completa, pouco antes do nosso beijo, eu
não quis estragar o clima. Queria sentir o seu sabor antes de dar início ao
caos.
Egoísta, sussurra a minha consciência de dentro da cela localizada no
meu coração, exatamente como ele.
— Meu tempo está acabando — murmura Serena, procurando-me, seu
carinho deslizando entre as palavras. — Eu venderia a casa hoje mesmo se
pudesse, mas meu irmão continua desaparecido, minha sobrinha vive sozinha
em um quarto com dois móveis e gastei todas as minhas economias em
mantimentos para tornar aquele lugar habitável.
— Corazón… — digo, mas nenhum acalento satisfatório alcança a
minha língua.
— Odeio aquela casa — solta, o rosto ganhando uma nova nuance entre
o vermelho e o branco. — Eu colocaria fogo nela, daria para vocês sem
cobrar nada em troca, para falar a verdade. Mas isso não importa, porque não
é sobre mim ou sobre a empresa de vocês. É sobre distinguir se vale a pena
arriscar, se vale a pena arriscar por dinheiro. — Ela ri, colocando a mão sobre
a minha, e noto que ainda estou segurando seu braço com mais força que o
pretendido. Amenizo meu toque, mas não o afasto. — Bom! Acho que esse é
o máximo de seriedade que consigo manter dentro de um mesmo diálogo.
Parece que me saí bem, não é mesmo?
As palavras de Serena, tão precisas e cheias de sensatez, aumentam o
meu fascínio, pois chegam sem aviso, com precisão e eloquência. Com
sinceridade. E trazem dúvidas, murmúrios… O que ela tem contra a casa de
seus pais, afinal?
— Gostei de você — Roman reflete. — Estava mesmo entediado,
desde quando Lara entrou para nossa família que não temos tanta agitação.
Está comparando Lara com Serena, como se as duas ocupassem uma
mesma posição hierárquica familiar estranha. Como se ambas fossem suas
cunhadas.
— Até onde eu sei, você precisa de trinta mil dólares para pagar a
dívida de Camillo. — Andrei, mais concentrado, retoma a discussão. —
Vamos lidar com um problema de cada vez, tudo bem? Precisamos retirar sua
sobrinha daquela casa o mais rápido possível, e cuidaremos da sua dívida
para que não precise chegar perto de Maksim Loskov. — Serena abre a boca
para negar, mas Andrei não permite e continua focado. — Vamos ajudar
você.
— Enquanto isso, nosso Lord Vlad aqui vai marcar uma entrevista e
participar de alguns jantares — Roman me cutuca sarcasticamente.
Acompanhado de Elena Kokorina, completo o que seu olhar sugere.
Serena inclina a cabeça e sorri para me tranquilizar. Ela sabe, com sua
perspicácia feminina ou qualquer instinto poderoso, que se envolveu em um
relacionamento fracassado. Mas, se o seu corpo queima como o meu quando
estamos perto um do outro, seu aceite é compreensível.
Se eu não consigo abdicar da escolha de me envolver, então meu desejo
é que se oriente a partir da mesma premissa.
— Preciso trabalhar antes que o senhor italiano venha encher a minha
paciência! — De pé, Serena faz o impensado e se inclina na minha direção
inconscientemente.
Pego de surpresa, eu hesito, mas o arrependimento vem em seguida
quando a vejo ruborizar pela recusa. Ela tenta recuar, mas, antes que se afaste
demais, eu a puxo de volta e tomo seus lábios. Serena não sabe que
demonstrar afeto em público, ainda mais na frente dos meus irmãos, não faz
parte da minha rotina, mas não quero que tire conclusões estúpidas.
Nosso beijo traz a sensação da morte, da promessa de caminhar sobre
estradas de ouro no paraíso. Com a mesma velocidade, a emoção esvai assim
que ela me deixa, os olhos iluminados pela felicidade. É tão fácil arrancar um
sorriso dela.
— Me espere depois do expediente — aviso.
— Não vai me impedir de ir para o Distrito — teima, adiantando
minhas intenções. — A não ser que esteja planejando…
— Não vou impedir. — Estava demorando para voltar ao assunto da
virgindade. É outro problema que preciso solucionar em breve, mas ainda não
defini o quanto estou disposto a quebrá-la, se posso ir tão longe. Se tenho o
direito, sequer. — Mas vou acompanhar você. Se vamos fazer esse negócio
funcionar, preciso saber com o que estou lidando e…
Quero ver a sobrinha de Serena de perto. Continuo preocupado com o
fato de ter passado tanto tempo aos cuidados de pais viciados e, agora que
Serena conseguiu se aproximar, é a nossa chance de intervir.
— Justo! — diz, por fim, dando as costas e seguindo para fora do
restaurante.
Quase esqueci que meus irmãos nos assistiam, e me arrependo por não
conter minhas vontades assim que o silêncio me faz sentir seus olhares. Mas,
não fazem mais nenhum comentário.
— Afinal de contas, como me encontraram aqui? — pergunto aos dois,
que se preparam para sair também.
— Como você acha? — Roman diz, dando de ombros. — Lara, a bruxa
discípula da bruxa maior, dona Tatiana. Quem imaginava que aquela ratinha
assustada se transformaria na secretária malvada que sabe tudo sobre todo
mundo?
Rindo, eles se vão. Sozinho, permito-me sorrir também.
Essa é a minha família.

***

Horas mais tarde, quando o sol começa a se dissipar no horizonte, trazendo o


prenúncio de uma noite gelada, Serena expira dentro do carro parado na
frente da fatídica casinha.
— Péssima ideia — resmunga, formando uma fumaça branca na frente
dos lábios. — Quem teve essa ideia? Eu não fui! E olha que sou mestre nessa
coisa de péssimas ideias.
— Nervosa? — brinco, mas minha atenção se destina única e
completamente à forma como seu tórax sobe e desce e nos seus lábios
trêmulos. — Não vou demorar, só o suficiente para dar uma olhada —
tranquilizo-a.
— Entrar e sair? — pergunta.
— Entrar e sair — confirmo.
Serena solta o cinto de segurança desajeitadamente. As luvas e o casaco
que arrumou emprestados com alguma funcionária no hotel não parecem
adequados, são volumosos e escuros demais, com uma paleta monótona de
preto, cinza e marrom — não combinam com ela; cores vibrantes, quentes e
abrasadoras, seriam perfeitas, como o vermelho ou o amarelo.
Ela me rouba um beijo rápido, encostando os lábios sem se mover.
Não quero partir o seu coração, foi o que dissera no fim de sua
embriaguez, consumida pelos delírios do álcool, as palavras moles e, ainda
assim, autênticas, ameaçadoras.
Abro a porta, acompanhado por ela. Caminhamos juntos até a casa.
Diferente das outras vezes em que estive aqui para conversar com Camillo, a
curta escada de quatro degraus se encontra livre do acúmulo de lixo, folhas e
terra. Limpo, como se seres humanos pudessem mesmo viver lá dentro.
Ela vai na frente, abrindo a porta sem se anunciar, mas não retira os
sapatos na entrada, como geralmente acontece nas moradias mais
tradicionais. O que presumo ser a sala de estar é menor do que qualquer
cômodo na mansão.
Os carpetes foram arrancados por mãos inábeis, deixando marcas
grossas nos locais onde as emendas se encontravam. Mas está limpo e cheira
a cloro com desinfetante, bem diferente de como me descreveu quando esteve
aqui pela primeira vez desde seu retorno.
Uma mulher magra e insalubre espiona nossa chegada, os olhos
vacilantes e emoldurados por olheiras sombrias. Uma brisa teria força o
suficiente para partir seu corpo esquelético ao meio.
Não é admissível que ela seja a responsável por uma criança, quanto
mais um bebê, certo? A resposta vem em logo em seguida.
— Vladimir, essa é Annia.
Porra.
— Eu conheço você — diz a mulher rispidamente. — Senhor Volkiov.
— Tudo bem por aqui? Onde está Luna? — Serena ignora a tensão.
Annia balança a perna nervosamente, olhando por cima dos ombros. Os
olhos estão dilatados, cabelos ralos ladeiam o rosto apático. Está drogada, é
evidente.
— No quarto. — Ela funga, coça o nariz e se retira.
Não gosto dela. Serena pode ser forte e independente, mas a
ingenuidade é a principal substância que move sua determinação. Essa
mulher não tem a mínima condição para continuar com essa criança!
Sigo Serena para mais dentro da casa, virando em um corredor com três
portas descascadas e sem trancas. Entramos na primeira e a realidade acerta
um soco no meu estômago.
Nós encaramos o pequeno projeto de ser humano, os braços gordinhos
e os pés descalços. Há uma quantidade considerável de cabelos pretos
esfiapados no alto da cabecinha, mas os olhos perfeitamente circulares são
tão escuros que quase não consigo distinguir as pupilas das íris. Ela é muito
bonitinha, uma frágil obra de arte que foi esculpida por mãos celestes.
Os questionamentos vêm e vão na minha cabeça com a facilidade das
tempestades que perturbam a calmaria no meio do oceano, sem tempo para
serem percebidas. Se fosse eu no lugar de Serena, também não arriscaria a
segurança de uma existência tão delicada.
Não podemos deixar essa menina aqui, isso está claro.
— Ela é tão… — Busco a palavra certa, mas nada soa apropriado.
— Assustadora, eu sei — concorda Serena, menos cautelosa com o
linguajar. É engraçado observar como as duas se parecem fisicamente, o
mesmo nariz fino e arrebitado, as bochechas marcadas por maçãs rosadas, os
longos cílios que ameaçam marcar as bochechas com sombras da sua
extensão. — Ela não é como as outras crianças. Acredita que quase não
chora? E sempre dorme a noite inteirinha, mesmo que o mundo esteja
acabando. Isso não está certo!
— Logo a gente percebe que são iguais só na aparência mesmo —
zombo, arrancando de Serena uma de suas risadas gratuitas.
— Sim, eu fui uma criança horrível e minha sobrinha é um querubim
— divaga com uma nota de orgulho. — Mas continua assustadora para mim.
Dentro do berço improvisado, Luna olha nós dois calmamente, as
pálpebras preguiçosas e entediadas. Não vejo nada de errado em um bebê
silencioso, mas há erros em seu semblante solitário. Muitos erros nas paredes
mofadas e na evidente enfermidade de sua mãe.
Ela precisa de um médico, roupas, uma casa decente e alimentação
equilibrada. Quando Serena me confidenciou que os problemas eram severos,
minha mente prática não fez cálculos coerentes com essa realidade decadente.
O que eu devo fazer?
Agir sem me importar com as consequências é um princípio básico da
presidência e da minha essência — ou deveria ser. Agora, como em um passe
de mágica, minhas convicções caem todas por terra. Não se trata de
insegurança, eu simplesmente não faço a menor ideia de como resolver essa
situação sem machucar ninguém, mas quero fazer algo pelas duas.
— Lua — diz, esticando o dedo para tocar a bebê no rosto. — É o que
significa o nome dela. Luna Fajardo, minha luazinha. Eu até diria para você a
pegar no colo, mas também não tenho coragem.
— Eu não conseguiria — confesso, inebriado e leve. Leve como não
lembrava ser capaz. — É seguro a deixar aqui? Com…
— Com a mãe dela? — Serena ri, mas o amargor sobressai na ironia.
— Não, nem um pouco. — Abaixando na altura do berço, Luna agarra os
pelos no casaco de Serena e arregala os olhos, surpreendida com a textura.
Ela mesma é uma bolinha com vários macacões sobrepostos. — Eu pensei
em fazer algo a respeito, mas todas as minhas ideias envolviam sequestros e
meu lindo traseiro sendo jogado na prisão. Meu lindo traseiro virgem, à
propósito. Inclusive, estou aberta a opiniões.
Gargalho, dando as costas para sairmos logo. A ideia de sequestrar essa
criança dança na minha cabeça como uma súplica, e traseiros virgens não são
coisas com as quais eu deva fantasiar agora. É muito para processar e o dia já
foi caótico demais para acrescentarmos outra catástrofe na lista de problemas.
Adiar, adiar e adiar. É só o que tenho feito nos últimos nove meses. Até
quando?
Vejo o balcão de uma cozinha pela fresta de uma das portas e empurro
devagar. É comum, como qualquer outra, com armários de metal enferrujado
e uma pia cheia de copos usados. Mas o que faz a minha cabeça latejar não
está dentro, e sim do lado de fora, para além das janelas escancaradas.
As luzes dos armazéns nos fundos da propriedade, grandes e decrépitos,
estão acesas. Formas e sombras se movimentam dentro e fora delas. Pessoas,
dez ou onze, quem sabe mais? Criminosos, marginais, assassinos.
E ela tem vivido aqui. No meio do perigo.
Medo, indignação e raiva crescem no centro do meu peito. Ela é
impossível, por que faz essas coisas? Será que não tem medo da morte,
merda?
— Serena! — chamo, mais alto do que gostaria, do que deveria. Ela
aparece com o rosto empalidecido, e a cegueira me impede de manter o
controle quando agarro seu braço e nos guio para fora. Para longe. — Eles
ficam lá dia e noite?
Passamos pela porta da entrada e me sinto duplamente ensandecido por
não poder pegar Luna também. Tropeçando nos degraus na volta para o
carro, Serena não luta e não tira o sorrisinho da cara, divertindo-se com o
meu descontrole.
Maldita. Vamos ver como se livra da minha raiva.
No meio da rua, eu a beijo. Não calmo, não lento. Mas irado, frustrado,
tudo de mais exasperador que pode acometer um homem. Nem nossas roupas
quentes são empecilhos para puxar seu corpo mais perto, de apertar com mais
força sua cintura de encontro à minha.
A todo o tempo, ela ri, sem deixar de acompanhar meu ataque. Rindo e
beijando, enquanto eu sou um poço de indignação. Ela ri do meu medo!
Medo, caralho.
— Adoro como você escolhe sempre me punir com beijos. Posso me
acostumar com isso — suspira, o cabelo desgrenhado na frente do rosto, o
fôlego perdido.
— Nem pense, Corazón. Nem pense! — alerto, pressionando sua nuca
fina e esguia.
A porta da casa se fecha com um baque forte.
— Para sua sorte, não vou dormir aqui hoje — diz, indo para seu lado
do carro. — Tenho que ir para casa, minha Malévola está sozinha e preciso
tomar banho, já que não entro no banheiro da casa. Geralmente, faço isso
antes de vir, mas como você queria me acompanhar…
Nem ferrando que ela vai dormir aqui outra vez. Nem que eu compre
uma mansão de segurança máxima e a enfie com Luna lá dentro. Serena não
volta a dormir neste lugar.
Com a cabeça girando e doendo, destravo as portas e volto para o carro.
Começo a dirigir sem falar, os pensamentos frenéticos demais. Margeio os
muros altos do clube, contemplando a imponência da construção abandonada
à sorte.
Serena fala o mínimo. Ainda bem. Eu não saberia o que fazer se
insinuasse suas pretensões sobre transar, pois é só isso o que eu precisava
para encerrar o dia de hoje.
Sexo.
Que belo monstro frouxo me tornei, o tipo que espera o momento
certo. Inferno, estou perdendo a porra da batalha. Perdido, rendido. Sigo as
instruções do caminho, brigando comigo mesmo sobre a ideia de acabar com
isso, de colocar tudo a perder e tomar seu corpo para mim.
E me casar com Elena Kokorina logo em seguida.
Não.
Isso não…
— Não acredito que esqueci a luz acesa! — ela diz ao chegarmos. —
Por acaso estaria interessado em me emprestar dinheiro para pagar a conta de
energia?
Analiso onde estamos, o sol há muito esquecido e a noite em sua glória.
A casa de dois andares e muitas janelas é simpática, mesmo com a tinta
descascando e as grades semelhantes às de uma catedral gótica. A última
janela no canto esquerdo brilha suavemente com uma luz isolada.
— Serena, tenta não fazer nada estúpido. Pelo menos até amanhã. —
Eu mesmo desconecto seu cinto dessa vez e, por mais frustrante que tenha
sido ver aqueles homens perigosos que tanto ameaçam nossos planos, nossas
vidas, eu reivindico sua boca.
Devagarinho… para compensar a explosão de mais cedo.
— Lord Vlad — sussurra, entrelaçando os braços no meu pescoço sem
o menor constrangimento pelas pessoas que podem nos assistir do lado de
fora. Ela faz aquilo, morde o lábio. — Eu não causo problemas, são os
problemas que me causam. Todo mundo tem problemas.
Sim, e o meu se chama Serena Fajardo!
— É melhor ir agora antes que eu desista e leve você comigo. — É uma
brincadeira com muita verdade camuflada, mas outra ameaça vazia, pois ela
quer. Deseja ser levada por mim. — Corazón, estou falando sério. Não faça
nada estúpido, aquilo é perigoso. Me prometa que vai se comportar, amanhã
busco você no hotel.
— Eu prometo fazer a minha parte.
Ela beija a minha bochecha e sai do carro, vai embora desfilando sem
olhar para trás. Cruza o portão velho, cujo rangido alcança meus ouvidos, e
desaparece.
Ligo o veículo depois de algum tempo parado com a mente vazia e
dirijo para longe. No céu, sou assistido pela lua durante todo o caminho até a
mansão e ela me parece quase… melancólica.
Eu, que sempre gostei da quietude e da solidão, que nunca me permiti
sentir, estou agora sorrindo por fora, gritando por dentro. Mas há uma coisa
que se agita na superfície dos meus sentimentos, uma sensação morna há
muito esquecida.
Serena ganhou novamente — embora eu não queira aceitar, ela ganhou.
Eu deveria dar meia volta, insistir na venda da casa, acabar com nosso
envolvimento e deixar o resto para a polícia lidar.
Eu deveria, mas, lá no alto, há um satélite me vigiando.
Uma lua.
Luazinha.
SERENA

CUANDO LA LIMOSNA es mucho, el santo sospecha.


Já experimentei infelicidades o bastante para nunca me acostumar com
os dias afortunados — em um segundo, tudo pode se desfazer — e o amargor
da perda é mais fácil de engolir quando a gente guarda o sabor na memória.
Assim que o portão se fecha atrás de mim, aguço os ouvidos para saber
quanto tempo Vladimir pretende continuar parado do lado de fora, remoendo,
assim como eu, tudo o que vivemos hoje. Nós nos beijamos! Céus, ele não
hesitou em momento nenhum, sequer demonstrou qualquer arrependimento.
E eu o testei!
A chegada dos irmãos ao restaurante me pegou de surpresa e pensei em
fugir. Aliás, eu fugi por breves minutos. Tempo o suficiente para lembrar que
nunca concordei em me relacionar com ele com base em quaisquer termos de
confidencialidade. Compreendo sua posição como presidente, a demanda
pública que essa posição requer. Aceito que nosso envolvimento tenha data
de validade, que talvez não nos adequemos às expectativas um do outro. Mas
não vou me esconder como se estivesse cometendo algum crime ou
assediando um mocinho indefeso. Não até que me peça com todas as
palavras.
Ao me inclinar sobre ele em busca de um beijo, vestida com o uniforme
escandaloso do hotel dourado, Vladimir somente piscou uma vez antes de me
puxar de encontro aos seus lábios. Ou ele foi contaminado com a minha
loucura através da saliva, ou não percebeu mesmo que cada uma das suas
escolhas ao longo do dia contradisse a personalidade malvada que tanto
defende possuir.
Ouço o barulho do carro indo embora, o som baixo e limpo do motor
distanciando-se cada vez mais, até se misturar com os ruídos da cidade. Subo
as escadas devagar, lançando um olhar preocupado para o apartamento da
minha vizinha, mas as luzes apagadas e o silêncio indicam que não deve estar
em casa; caso contrário, já estaria espiando a minha chegada por uma fresta
na janela.
Empurro a porta com o pé enquanto retiro o grande casaco que peguei
emprestado com uma colega de trabalho. Depois de alguns malabarismos
entre trancar a porta e me desfazer das botas, consigo entrar no apartamento.
O sorriso congelado no meu rosto é quase irritante, mas não consigo
evitar. Seus olhos contemplativos, desejosos e repletos de promessas parecem
tatuados na minha mente, seu perfume impregnado por todo o meu corpo
como se fosse natural eu estar marcada com seu cheiro.
Um calafrio percorre a minha espinha. Se não fosse o meu trabalho, ele
teria seguido em frente? Ele estaria disposto a um passo tão longo, tão
depressa?
Espero que sim!
— Malévola! — Jogo as chaves em cima do balcão da cozinha, o
sobretudo jazendo sobre o sofá.
É bom estar em casa, minha casa, e não um lugar como aquele, que
evoca fragmentos de um tempo que só desejo esquecer, onde volto a ser
aquela menina que desistiu, que não teve forças para suportar o peso do
mundo. Todos aqueles cômodos me observam com sorrisos de concreto,
insinuando no meu ouvido que se lembram, que foram testemunhas daquilo.
Se não fosse por Luna, eu já teria me desfeito da casa com um prazer
imenso, sem me importar com ameaças ou criminosos armados até os dentes.
Volto para a entrada e sigo na direção do meu quarto. A porta
entreaberta deixa escapar um filete de luz. Droga, como se eu já não fosse
satisfatoriamente pobre. Deslizo a porta para dentro e, junto com o susto,
vem a maldita lembrança de que eu sempre, sempre, sempre confiro as
lâmpadas antes de sair de casa.
Sempre.
Mas quando importa — quando realmente importa —, os detalhes me
passam despercebidos, eu os deixo passar na frente dos meus olhos sem
processar coisas óbvias. Quando é algo que pode determinar se a minha vida
vale a pena.
Por que você faz essas coisas, Corazón?
Fico zonza antes de sentir a pancada no rosto. A dor desponta em uma
parte muito específica do meu nariz. Estrelas rodam dentro da minha visão,
pontos brilhantes e barulhentos que cegam, como se as luzes berrassem
ofensas sem emitir som algum.
Eu devia ter desconfiado no instante em que Malévola não apareceu
para me receber, na forma cuidadosa como a porta do meu quarto estava
afastada poucos centímetros do batente, com distância suficiente para
esconder um ser humano.
Um invasor, ou dois, ou três.
Não tenho certeza.
A dor do meu corpo caindo no chão rouba o oxigênio dos meus
pulmões, seguida por um golpe — soco ou chute, eu nunca saberei distinguir
— no meio das costelas. Curvo-me, trincando os dentes. Dessa vez, vou
abraçar a dona morte com foice e tudo, está decidido. Virgem ou não, já
captei a mensagem de que alguém não me quer viva nesse mundo. Até para
uma pessoa como eu, que tem os níveis do azar fora de regulagem, a situação
passou dos limites.
Eu sabia, estava tudo bom demais para ser verdade. Depois de beijar o
homem mais gostoso e sensual que existe no mundo, é claro que algo como
ter meu apartamento invadido e ganhar alguns hematomas seriam a próxima
etapa.
O filho da puta saído de alguma vala moribunda do inferno coloca o
peso da mão sobre a minha cabeça, forçando meu rosto a encarar o chão. Eu
posso ter gritado um pouco, no meio de um transe automático e incontrolável,
mas agora é só silêncio, mudo e frígido. São nesses momentos que a gente
consegue escutar as notas fúnebres do perigo.
— Basta — diz uma voz familiar que me causa náuseas. A última vez
que nos encontramos, havia uma arma em suas mãos.
O sujeito obedece e me liberta. Meus olhos desajustados se enchem de
lágrimas, mas nenhuma delas alcança as bochechas, apenas ficam ali, velando
o desmoronamento iminente da minha alma. Dói no sentido mais amplo e
objetivo da palavra.
Respiro sem qualquer coordenação, minhas palmas apoiadas contra o
chão gelado. Que jeito idiota de morrer!
— O que está fazendo aqui, Maksim? — Forço as palavras para fora e
elas arranham o interior da minha garganta como lâminas cegas. Ergo o
corpo, minha vista se adequa devagar enquanto uma pequena poça de sangue
cresce no local onde eu estivera caída segundos antes.
Levo os dedos ao rosto e o leve roçar no meu nariz desencadeia uma
descarga elétrica de sofrimento. O tremor percorre meus músculos, viaja pela
corrente sanguínea e tranca o desespero dentro de uma jaula no meio do meu
cérebro. Preciso manter o controle, entrar em pânico só vai antecipar
experiências ainda mais indesejadas.
Não desmorone, não agora.
Talvez tenha quebrado meu lindo nariz. Não sabia o quanto gostava do
meu narizinho até ele estar esmagado na minha cara. Adeus, nariz, você foi
um grande amigo. Um riso nervoso evade dos meus lábios, faz minha boca
tremular e se encher com o sabor ferroso do sangue coagulado. Respira,
Serena, reflito, balançando a cabeça.
Respira sem pirar!
Respira, Corazón. Não… Lá vem a consciência do demônio me
desconcentrar outra vez! Tanta voz bonita no mundo, e logo a encarnação dos
meus pecados e desejos mais sórdidos tinha que se tornar aquela que sussurra
bons conselhos nos meus momentos de dificuldade. Ainda que essa frase
tenha procedido nosso primeiro beijo, só faz aumentar a minha vontade de
nunca ter saído daquele carro, daqueles braços e, principalmente, daqueles
lábios viciantes.
O que Vladimir faria se estivesse aqui?
O que o monstro faria?
— Serena, você é mesmo mais burra do que seu irmão disse. Levando o
senhor ricaço para dentro da minha casa, se esfregando nele no meio
da minha rua e planejando atrapalhar os meus negócios no meu distrito.
Porra, mulher, você quer morrer?
Você quer morrer? Nicolai me perguntou a mesma coisa quando nos
encontramos pela primeira vez, desesperado e com os olhos vermelhos.
Naquele dia, eu estava sozinha em casa. Camillo havia se entregado de vez ao
crime e todos os meus esforços para descobrir quem eram os responsáveis
pela morte dos meus pais foram vãos. Respondi ao questionamento de
Nicolai e foi naquele momento nossa história teve início — quando eu lhe
disse que não, eu queria viver.
E ainda quero para caralho! Viver é bom demais, ¡Dios mio!
Eu quero viver.
— Aquela casa não é sua, Maksim. — Fico de joelhos e finalmente o
vejo, a personificação estereotipada da verdadeira crueldade. — Eu tenho o
dinheiro para pagar você, meu prazo ainda não acabou.
As argolas em cada uma das suas orelhas são escuras, lembram a cor e
textura de carvão, mas brilham e refletem a luz como se fossem de granito.
As tatuagens contam histórias, enxergo através delas; a lágrima vermelho-
sangue destacada no olho esquerdo, os lábios de uma mulher abaixo da
mandíbula, uma palavra de alerta no limite entre a testa e o cabelo — danger.
Um homem forjado no desespero.
Pergunto-me se é isso o que as pessoas se tornam quando abandonam
todos os sonhos. Se é assim que a gente se destrói de dentro para fora, até
sobrar apenas uma casca dura e cruel.
Está decidido: se eu sair dessa casa com vida, minha prioridade será
descobrir qual é o meu grande sonho, aquele pelo qual moverei montanhas,
céus e estrelas. Deve existir algo do tipo para mim, não deve? Não é um
requisito básico que as pessoas tenham sonhos? Que façam valer cada
segundo em busca daquilo que as completa, que as façam felizes?
Maksim deve ter sido um homem bonito um dia, talvez ainda o seja
para um grupo seleto de mulheres, mas a profundidade dessa alma se
encontra tão contaminada que me impede de encontrar beleza em seus traços,
nas linhas severas sob os olhos, nas cicatrizes finas e emaranhadas nas
orelhas. Eu o olho e só enxergo medo e ódio.
— Sei que você tem o dinheiro. — Sentado com as costas apoiadas na
cabeceira da minha cama, Maksim brinca com uma pequena faca cujo cabo
de madeira exibe belos entalhes de arabescos. — Eu sei cada merda que você
fez no último mês. Seu irmão ainda é um coelho assustado escondido dentro
da toca e a primeira coisa que ele fará assim que ficar sem dinheiro vai ser
correr para os braços da doce irmãzinha. Você, querida, é minha armadilha
para pegar o desgraçado.
— Mas você disse que, se eu pagasse a dívida, deixaria meu irmão em
paz — protesto, tentando me erguer, mas o homem atrás de mim segura um
dos meus ombros. — Mentiroso — repudio, quase indignada.
Ele sorri e os lábios se repuxam nas laterais dos piercings, enquanto
suas roupas de frio sobrepostas farmalham com seus movimentos para se
levantar. Cinco passos trazem Maksim para mais perto e, assim que ele se
abaixa, as feições sombrias e distorcidas ressuscitam na minha mente
lembranças de criaturas amaldiçoadas em livros de histórias sobrenaturais.
Do tipo que a gente deve ter medo.
— Vai precisar colocar gelo.
— É o que? — Pirou de vez! — Quebra o meu nariz e agora vem dar
uma de santo?
— Primeiro — trinca a mandíbula —, não encostei um dedo em você.
Eu não machuco, Serena, para isso tenho meus soldados. Sabe o que acontece
quando preciso agir ao invés de dar ordens? Bem… pessoas morrem. —
Maksim se aproxima e, assim de perto, reconheço que uma de suas tatuagens,
na têmpora direita, é uma rosa vermelha presa dentro de uma redoma. —
Segundo, não está quebrado, por isso disse que vai precisar da porra de um
gelo. E terceiro, eu não minto. Nunca prometi liberdade ao Camillo, apenas
que não o mataria quando retornasse. Camillo e eu temos negócios
inacabados.
— E que negócios são esses? — Reviro os olhos. — Quão tedioso é o
mundo do crime para você querer meu irmão idiota de volta com tanto
desespero? Até eu perco a paciência com o Camillo, devia ficar feliz por se
livrar dele.
— Bem, você fala demais, não é mesmo? — Maksim produz um ruído
com a garganta, a sombra de uma risada. — Seu irmão me prometeu a casa
no distrito, mas fugiu antes cumprir o combinado. O clube dos sonhos não vai
acontecer, pode dizer isso para o seu namorado.
Puta que pariu.
Gargalho e meu rosto reclama com a dor da contração dos músculos
faciais. Não sei o que é mais engraçado: Maksim deduzindo que alguém
como eu namoraria um alguém como Vladimir Volkiov, vulgo empresário
podre de rico e com o ego do tamanho do universo, ou a nova informação
sobre Camillo não ter contado que aquela casinha assombrada é minha. Ele
enganou Maksim esse tempo todo, fez promessas que não poderia cumprir.
Colocou a própria cabeça em risco, tudo isso por quê? Não faz sentido…
Suas últimas palavras antes de desaparecer foram para me alertar sobre
os perigos que rondavam o distrito, o fato de que Maksim não estava nada
feliz com o clube sendo construído bem no meio do seu território. Ele me fez
prometer, avisou para manter distância.
E eu, obviamente, não dei ouvidos. Aproveitei a primeira oportunidade
para me atirar aos lobos.
Você se coloca em perigo demais. Por que, Corazón? Ah, pelo amor de
Deus, isso não é hora para ficar lembrando do todo poderoso. Sai da minha
cabeça homem!
— Você gosta muito de se escutar falando — implico para ganhar
tempo. Ele franze a testa e ergue a mão, mas o sinal é para o capanga que nos
observa. Assim que nenhum golpe chega, eu emendo: — Mas ainda não
entendi o que veio fazer no meu apartamento.
— Eu confiava no seu irmão — sussurra, exibindo uma feição tão
desalentada que eu quase reconheço o ser humano escondido sob a pele. —
Tínhamos grandes planos. Camillo pode ser um babaca egoísta, mas eu
preciso dele.
— E eu aqui achando que era a pessoa mais azarada do planeta. —
Engulo a saliva para conter mais uma risada. Espero estar em choque
traumático ou coisa do tipo, pois não consigo mais controlar os nervos e nem
a minha falação desenfreada. — Preciso mesmo é de paz, sabe? E de comida!
Eu poderia comer uma panela inteira de okroshka! Ou, quem sabe, um prato
farto de solyanka, com bastante vitela ou presunto. Mas duvido que
conseguirei comer qualquer coisa sólida com esse nariz quebrado.
— Eu já disse que não está quebrado — grunhe, exasperado,
encarando-me como se eu fosse uma equação matemática bem complicada.
— Não acredito em você, está doendo muito — explico. A pessoa atrás
de nós se aproxima e eu me encolho. Covarde, tomara que prenda as bolas no
zíper da calça! — Tudo bem, tudo bem. Se não pretendem me matar, o que
acha de ir direto ao ponto? O que você quer, Maksim?
Apesar do esforço para manter a compostura, não vou suportar mais
disso por muito tempo.
— Escuta com muita atenção. — Apoiado na ponta dos pés e com os
joelhos curvados, Maksim se arrasta e diminui a distância entre nós. Recuo a
cabeça alguns milímetros por reflexo. — É a segunda vez que eu me arrisco
saindo do distrito por causa de você, e não vou tolerar uma terceira. Acabou
essa história de levar o grã-fino na minha casa, entendeu? Eu o quero bem
longe. E se eu desconfiar que está acobertando seu irmão na venda da casa…
Uma ameaça calada por promessas silenciosas, uma sentença carregada
com o temor de um futuro incerto e perigoso. A dinâmica de palavras que
Maksim utiliza para me aterrorizar é quase bonita; desesperadas e
incompletas, mas bastante sólidas.
Entre um piscar de olhos e outro, respiro devagar. Tudo parece
acontecer em câmera lenta — a cabeça de Maksim se inclina e ele aponta a
saída com o queixo. A sombra do seu parceiro, ou empregado ou sei lá que
desgraça é esse sujeito, desaparece à medida que ele vai embora na direção da
sala e nos abandona ao bater a porta da entrada.
— Não sei onde Camillo está. — Enfrento seu olhar, praticamente
obrigando minhas pálpebras a revelarem o máximo dos meus olhos. Se eu
fraquejar agora, talvez não consiga reagir quando forem embora. Mesmo
assim, aproveito para abordar o assunto que me interessa mais do que
qualquer negociação: — Minha sobrinha vive lá com a mãe. Eu não sabia que
Camillo tinha uma filha.
— O bebê é minha moeda.
— Moeda…?
— Moeda de troca.
A ânsia recobre minha língua com um sabor ácido e toda a minha
expressão confiante desaba como um castelo de cartas assoprado pelo vento.
Abaixo a cabeça, escondendo o mundo por trás da minha cascata de cabelos
escuros.
— Ela é um bebê — murmuro comigo mesma, aterrorizada com a falta
de limites para sua crueldade.
Maksim começa a andar pelo quarto. Escuto seus passos ao redor da
cama, depois perto da cômoda e de volta para mim. Seus sapatos aparecem na
minha linha de visão, pisando sobre meu sangue quase seco reduzido a uma
mancha escura e circular.
— Era para ser simples. Ofereci oportunidades ao seu irmão, desde o
começo treinei Camillo para ser o melhor soldado, meu braço direito. Ele me
contou sobre a triste história dos órfãos abandonados à própria sorte, dos pais
mortos por culpa de um burguês filho da puta e egoísta. Seu irmão queria
vingança, e eu lhe dei vingança. Depois, ele me pediu proteção, e eu dei
proteção. Mas Camillo queria mais, mais e mais, como um sanguessuga
viciado em tirar proveito das pessoas. A irmã poderia tentar a vida fora do
distrito? Sim, eu podia lidar com isso, mesmo sendo parente de um dos meus
homens. Dinheiro para sustentar os vícios? Mas é claro, eu também podia
oferecer aos montes. Mas o que eu ganhei em troca? — Maksim grita entre
os dentes. Eu me reteso, antecipando um impacto que não chega a ser
desferido. Ele responde ao próprio questionamento com uma palavra
destilada em desgosto: — Traição.
Tento acompanhar sua fala frenética e nervosa, mas o medo começa a
criar raízes. Quanto tempo faz que estamos presos neste quarto? Dez, vinte
minutos? Se ele resolvesse me matar agora, quantos dias demoraria até que
encontrassem meu corpo?
— Deve ser péssimo ser traído — respondo no automático. — Eu
nunca fui traída, mas também nunca tive um namorado, então seria inviável
ser traída antes mesmo de namorar. Não que seu relacionamento com o meu
irmão tenha qualquer semelhança com um compromisso amoroso, claro. Ou
tem? Aliás, ignora essa última parte. Só estou comentando qualquer coisa que
me vem à mente para não surtar.
— Já chega — diz mais calmo, sua respiração tornando-se um mero
indício do controle forçado. Olho para o alto; o novo ângulo me oferece a
visão de Maksim acima de mim e não consigo pensar nele de outra forma que
não um rei pronto para decepar cabeças. Acaricio meu pescoço por instinto.
— O recado está dado. Quero o empresário bem longe.
— E Luna? Minha sobrinha não tem condições de ficar naquela casa,
no meio dos seus bandidos. Annia usa drogas todos os dias… — Como o
capanga já não se encontra mais no aposento, me dou conta de que posso
levantar. Da próxima vez que um homem me colocar de joelhos, espero que
seja no bom sentido. Minhas articulações reclamam, mas consigo me afastar
de Maksim o suficiente para raciocinar melhor. — Você disse que ela é uma
moeda de troca. Espera trocar a liberdade dela pelo terreno? — sondo.
— Não — diz simplesmente, virando de costas. — Supondo que seu
irmão tenha algum sentimento pela criança, é minha única garantia de que o
terei de volta.
— E depois, vai matá-lo ou apenas quebrar o nariz como fez comigo?
Há uma pausa. A respiração de Maksim se torna densa, o único peso na
atmosfera entre nós. O longo silêncio me faz entender que a resposta não
chegará. Ele coloca as mãos no bolso do casaco e analisa meu rosto outra
vez. Não existe compaixão ou arrependimento em seu semblante, no entanto,
a forma como junta as sobrancelhas diante do meu rosto, iluminado pela
lâmpada no centro do quarto, indica a extensão do estrago.
— Não quebrei o seu nariz. — diz, irritado no nível máximo, ainda
tentando me convencer. — E ainda não sei o que vai acontecer com o seu
irmão. Mas sou o líder daquela merda e você vai ficar com a porra da boca
fechada — sugere com os dentes trincados e a mandíbula severa. — Caso
contrário, terei que mandar você para o céu.
Maravilha, outro obcecado com essa coisa de liderança e o diabo à
quatro! Nem desconfia que meu lugar na pós-morte é um pouquinho mais
quente. Será que estou fadada a só chamar atenção de homens que são chefes
de qualquer porcaria? Já basta Vladimir com aquele complexo de monstro.
Ele não se despede e nem pede desculpas. Coloca o grande capuz sobre
a touca de lã vermelha e caminha rumo à saída.
— Já vai tarde! — declaro por impulso. — Digo, volte sempre.
À sombra do corredor, Maksim exibe o que poderia ser classificado
como um sorriso antes de partir. Ainda escuto a porta da entrada abrir e bater,
depois o chacoalhar do portão de ferro, tilintando com as correntes enquanto
eles saem para a rua.
Só então eu me permito desabar.
Meu corpo perde as forças. Escorrego para o chão, minha caixa torácica
descontrolando-se com os batimentos cardíacos. É horrível, como no dia em
que corri pelas ruas até encontrar com Vladimir — ou ser quase atropelada
por seu carro.
As lágrimas não chegam, contudo. É só desespero condensado, um
ataque dos nervos. A calmaria solitária que precede uma catástrofe natural.
Algo toca a ponta dos meus dedos, macio e úmido. O ronronar baixinho
de Malévola chega aos meus ouvidos, assim como seu miado tristonho. Ela
me consola com seu jeito distante de cheirar e se esfregar em busca de
carinho.
— Não podemos ficar aqui — decido.
A vida não para só porque a morte nos ronda, mas o que fazer quando a
gente precisa de forças e nos resta tão pouco?
Uma pergunta complexa para quem tem medo de buscar ajuda. Ainda
bem que eu não sou essa pessoa! Ora, quando se está na merda, os caminhos
são simples. Ou eu continuo afundando e lamentando, ou estico a mão e
espero que alguém me puxe para cima.
Mesmo tremendo, com o rosto dormente e as costelas pulsando,
impulsiono os braços e me ergo, levando Malévola comigo. Quando não nos
restam mais forças, nada melhor do que pedir um pouco emprestado para
quem tem de sobra.

***

Péssima ideia, péssima ideia, péssima ideia.


Ando de um lado para o outro na frente dos portões ornamentados com
flores de ferro retorcido que guarnecem a incrível propriedade da família
Volkiov.
— O que aconteceu com o meu rosto? — ensaio com a mão estendida
como se fosse cumprimentar uma pessoa invisível. — Sabe como é, esses
mosquitos! Alguém deveria fazer alguma coisa a respeito.
Malévola mia, incomodada dentro da sua caixinha de transporte cor-de-
rosa. Há dez minutos, estamos nesse vai e vem de explicações, e cada
justificativa soa menos crível que a anterior. Ninguém vai acreditar a menos
que eu diga a verdade.
Atravessar a cidade com Malévola miando sem parar foi mais fácil do
que disfarçar o rosto sujo de sangue e inchado como uma bola de tênis.
Recebi vários olhares complacentes, e uma senhora chegou a me oferecer
esmola — eu posso ter pensado um pouco antes de recusar.
A dor no meu nariz atingiu um ponto crucial entre a sofreguidão e a
anestesia da adrenalina assim que recebeu a primeira rajada de vento. Junto
com o impacto, veio o choque de realidade: ninguém vai querer transar
comigo agora que estou parecendo o Sméagol depois de cair dentro do vulcão
atrás do precioso.
Logo eu, que só queria perder a minha preciosa.
— Eu não presto — falo para ninguém em particular, as palavras
transformando-se em pequenas nuvens de fumaça que evaporam na noite.
Dois faróis despontam na esquina e começam a se aproximar. Assumo
minha melhor pose de paisagem enquanto o veículo passa. Mas, para meu
horror, o carro desacelera até estacionar bem diante de mim. Uma mulher
desce. Reconheço imediatamente Lara, a noiva cujo vestido de casamento eu
arruinei indiretamente.
Alguém me arruma um buraco que eu quero pular!
O noivo bonitão aparece logo em seguida e eu assisto enquanto os dois
se beijam cheios de paixão, segredando palavras carinhosas nos lábios um do
outro. Quase grito para arrumarem um quarto, mas isso estragaria meus
planos de passar despercebida.
Olho para os lados e cogito sair andando, mas não vim caminhando até
tão longe para desistir. Além disso, se eu voltar para meu apartamento
agora…
Não acho que consiga.
— Se nós entrarmos com o carro, saberão que chegamos e vai estragar
toda a surpresa — Lara diz, arrumando a gola da camisa de Ivan.
— Com carro ou sem carro, tenho certeza de que não esperam a nossa
chegada antes da hora — reclama o homem como uma criança contrariada.
Os dois são fofos!
Devo chamá-los pelo primeiro nome? Ou espero eles entrarem e depois
peço que algum segurança mande chamar o presidente?
— Eu conheço você. — Lara tem os olhos sobre mim. Bom, acho que
fui pega. — Meu Deus, o que aconteceu?
Oh, gente de memória boa! Não têm nada mais interessante para
memorizar, como nomes de artistas famosos e outras pessoas ricas mundo
afora?
— Serena Fajardo, certo? — Ivan solta a cintura da esposa, vem na
minha direção e descumpre metade das regras de etiqueta ao segurar meu
rosto e erguer contra a luz. — Você precisa de um médico! Vladimir já viu
isso?
— Eu vim justamente procurar por ele. Tem uma pessoa bem infeliz
com o projeto milionário de vocês — brinco, mas ninguém ri. — Se puderem
avisar que estou aqui.
— Serena. — Lara apoia uma mão no ombro do marido e com a outra
esfrega as laterais do pescoço exposto mesmo no frio. — Quem bateu em
você? — questiona com o timbre choroso.
— É… uma longa história.
O portão range e começa a deslizar para dentro. Ivan me solta e estende
a mão na direção da mansão, que brilha majestosamente ao longe, iluminada
pela lua.
Lua…
— Vamos entrar, queremos ouvir essa sua longa história — ordena,
parecido com o irmão mais velho e sua mania de mandar nos outros.
— Não quero incomodar — digo, mas os dois já começam a caminhar e
só me resta acompanhar seus passos.
Eles não questionam mais nada, nem mesmo por que tenho um animal
junto comigo, e só posso deduzir que prefiram ouvir os detalhes junto do
presidente.
Cruzamos o caminho de pedras em silêncio, os dois na frente. Ivan vai
conversando com a esposa, mas escuto poucas palavras. O jardim durante a
noite consegue superar a beleza diurna, com os postes de luz rodeados por
pequenos insetos voadores.
No alto da escadaria principal, antes de abrir a porta, Ivan explica:
— Era para ser uma surpresa, nós voltamos mais cedo e queríamos
impressionar. Mas você, sim, vai causar um verdadeiro alvoroço.
Quase peço desculpas por estragar outro grande momento, não bastava
a confusão no casamento dos dois. Lara abre a porta e entramos juntos.
Tatiana Volkiova se destaca como uma chama acesa no meio da sala
decorada com móveis brancos. As pontas do seu robe de seda descansam
sobre um belo tapete peludo enquanto lê um livro. Andrei, com o notebook
apoiado sobre uma mesa de trabalho móvel, abre a boca ao nos reconhecer.
Eles olham uns para os outros, as testas franzidas e o pavor tornando-se
mais expressivo.
— Alguém já avisou o Vladimir? — É a primeira coisa que Tatiana
pergunta, preocupada, encarando meu rosto machucado com espanto. Ela fica
de pé, o robe esvoaçando como labaredas.
— O que aconteceu com você? — Andrei circunda uma elegante
poltrona de couro branco, as mãos fixas nas costas como se isso o ajudasse a
ponderar melhor. Consigo imaginá-lo dentro de um tribunal, caminhando
com a mesma pose e combatendo acusações sem vacilar o tom cortante da
voz. Ele me faz lembrar de um dragão escondido nos desenhos das asas de
uma borboleta. — Não vai ser agradável, mas meu irmão precisa saber que
está aqui.
Misericórdia, estão apavorados.
Claro que isso não ia dar certo.
— Não precisam se incomodar — contradigo-me, acovardada pela
expectativa do que Vladimir vai achar dessa situação. — A ajuda de vocês já
foi o bastante. Se eu puder ficar por apenas uma noite…
Roman surge, vindo do corredor que leva às cozinhas, jogando uma
maçã para o alto. Ela despenca e rola pelo chão assim que ele nota o número
de pessoas presentes. A dinâmica de seu olhar recai primeiro sobre Ivan e
Lara, recém-chegados de viagem, depois para a roupa espalhafatosa da mãe e
por último se volta na minha direção.
Inclina a cabeça, os olhos verdes escurecendo tenebrosamente.
— Vladimir já sabe que alguém quebrou o seu nariz?
— Não está quebrado — comento. — Foi o que disseram. Não
precisam mais chamar o seu irmão. Mudei de ideia!
Ele sorri com os lábios tortos, se aproxima e toca a pele entre os meus
olhos. Gemo com a dor inesperada e Roman amplia seu sorriso.
— Realmente, não está quebrado. Mas, bebê, você por acaso não foi
advertida sobre quem é Vladimir Volkiov? — A calma de Roman arranca de
mim um temor inominado. — Mesmo tentado a não contar imediatamente só
para ver quais novas facetas meu irmão esconde, tenho muito amor pela vida.
Além do mais, já cometemos esse erro uma vez, não vai acontecer de novo.
— Ele olha para sua cunhada abraçada ao irmão, e Ivan acena com a cabeça,
concordando.
Eu sigo plena boiando na margarina. Povo doido, eu hein!
Em que momento isso se tornou uma reunião?
Coloco a caixinha de Malévola no chão, perto do sofá, mas não a
liberto ainda. Vai que a louca ainda quebra um vaso de planta milenar?
Andrei retira o celular do bolso e disca um número, leva o aparelho ao
ouvido e uma música invade a sala.
A música de outro celular tocando.
Eu me viro e vejo Vladimir parado na porta da entrada, a mão de
encontro com o bolso do paletó em busca do próprio telefone. Ao redor do
pescoço, um cachecol quadriculado em tons de azul, preto e branco…
Ah… não.
Não é Vladimir.
Nem o presidente.
É o monstro.
E é tudo o que eu mais precisava.
— Duas horas, Corazón? — diz com a voz rouca, ignorando a família
como se só enxergasse a mim. — Eu peço para você ficar longe de
problemas, e é assim que você cumpre sua parte do combinado?
Mordo o lábio. Vladimir enxerga, eu sinto que consegue ver a minha
alma, meus segredos e as minhas fraquezas. Ele abre os braços sem se
importar com a família que nos expecta. Um homem em conflito que não
sabe mais filtrar o que deseja do que seu cargo requer.
É um desafio.
Aceite-me se tiver coragem.
Abrace-me se quiser a minha ajuda.
Confesse o que trouxe você até a minha casa.
Renda-se.
Eu aceito o que vim buscar. A força de um monstro.
VLADIMIR

SERENA SE ACONCHEGA em meus braços e o mundo emudece. A


sensação de rodear seu pequeno corpo conjura a percepção irrevogável de
que uma peça há muito perdida encontrou o encaixe perfeito. Ela preenche a
imensa cratera desabitada que existe nas profundezas escuras da minha alma.
Inspiro e pressiono meu corpo mais e mais perto do dela, como se isso
fosse suficiente para mostrar toda a minha indignação e revolta, alívio, raiva e
carinho — tudo ao mesmo tempo, em intensidades excessivas. Minhas mãos
se enroscam nos cabelos quebradiços e um estudo mais minucioso me revela
o sangue seco entre os fios.
Sorrio.
Alguém vai sofrer.
Por algum acaso — ou a simples porcaria de um destino sádico —, nos
encontramos outra vez sem premeditação. Depois de tantos dias evitando
voltar para casa, justamente hoje fui tomado pela vontade inexplicável de
retornar, como se eu precisasse estar aqui e não em qualquer outro lugar do
mundo.
Há desespero e medo nos olhos da minha família, um pouco de cautela
também. Eu quase consigo escutar os pensamentos de surpresa, o choque por
trás das minhas ações. Ninguém espera que o presidente abra os braços para
confortar outro ser humano, mas Serena desperta em mim a displicência que
vive às margens do meu egoísmo excessivo, o mesmo que sussurra que eu
posso fazer a porra do que quiser sem me preocupar com terceiros.
— Eu não tinha outro lugar para ir — ela diz com a voz abafada, suas
mãos apertando o tecido do meu casaco. — Lord Vlad.
— O que aconteceu? — Procuro a resposta nos meus irmãos, mas
minhas palavras pairam friamente na sala da mansão.
— Ela acabou de chegar, também não sabemos direito — Lara
responde, amparada por Ivan. — Voltamos mais cedo, pretendíamos fazer
uma surpresa, estava morrendo de saudades do Iago e, por acaso,
encontramos com ela na frente da mansão. Foi muita sorte que tenhamos
chegado ao mesmo tempo.
Serena empurra meu peito muito levemente, vira-se e encosta no meu
corpo, como se precisasse desse mínimo contato para provar que continuo
perto o suficiente.
— Desculpe estragar a surpresa de vocês, e pela confusão no casamento
também, e por todos os problemas que ainda vou causar no futuro.
— Não se preocupe com isso agora, Serena. É melhor nós chamarmos
um médico para examinar você. — Lara manifesta sua apreensão. —
Ficamos felizes em ajudar.
— Sejam bem-vindos de volta, meus queridos. — Minha mãe,
estendendo os braços para contornar o pescoço de Lara e Ivan em um abraço
desajeitado, quase consegue parecer uma pessoa normal. — Iago está
cochilando no quarto de vocês, mas quero ouvir todos os detalhes depois,
inclusive os sórdidos. Não poderiam ter voltado em hora melhor. Realmente,
uma coincidência agradável voltarem ao mesmo tempo que nossa pequena,
jovem, belíssima e, se não me falha a memória, solteira mulher em apuros.
Mas não podemos colocar a conversa em dia enquanto ela fica aqui parada
fingindo que não está sentindo dor, certo?
— O que aconteceu, Corazón? — Induzo seu corpo a se virar para
mim. Seguro as laterais do rosto dela e ergo sua cabeça para olhar mais de
perto.
Paro de respirar. Literalmente. Aquela criatura murmurando no meu
peito começa a rugir. A primeira coisa que eu vi assim que coloquei os pés
dentro de casa foi o machucado horrendo em seu rosto, mas só agora posso
enxergar a gravidade.
Alguém vai sofrer o inferno.
— Não está quebrado — ela diz, ensaiando um sorriso que não alcança
os olhos.
Foda-se que não esteja quebrado, isso não torna meu ódio menos pior.
Tem a porcaria de um hematoma em seu nariz, os olhos levemente fechados
por causa do inchaço. Também encontro mais sangue em suas roupas, no
cabelo e alguns poucos resquícios na região do maxilar; ela provavelmente
limpou a pior parte antes de sair de casa.
— Andrei, chame um médico — peço, sem deixar de procurar por mais
indícios da agressão que ela sofreu.
Meu irmão se afasta com o celular já no ouvido e um minuto depois
escutamos partes da conversa. Aguardamos em silêncio enquanto ele explica
a situação da melhor maneira possível.
— Quem? — pergunto. Mesmo com todo o esforço para soar calmo,
uma rouquidão escapa da minha garganta como um grunhido.
— Estavam no meu apartamento — explica, abaixando o olhar para o
chão. — Eu deveria ter desconfiado quando vi a luz acesa.
Havia mais de uma pessoa. Um dos meus irmãos pragueja, Lara e Ivan
sentam-se abraçados em um dos sofás. Puxo Serena para a poltrona que
costumava ser a favorita de Nicolai, talvez o móvel mais antigo da casa. Ela
se acomoda, pequena e magra, as mãos pousadas nos joelhos.
— Quem, Corazón? — insisto, mesmo que a resposta já tenha chegado
às minhas conclusões.
— Maksim e um dos capangas dele. — Serena inspira e faz uma careta,
levando a mão para acariciar as costelas. Abaixo-me na frente dela com uma
noção distante de Roman andando de um lado para o outro. — Ele soube que
estivemos na casa, que eu levei você para dentro e não ficou muito feliz.
Então a culpa é minha.
Levo o polegar e o indicador às têmporas para desacelerar todos os
meus pensamentos sobre retaliação. Nunca antes senti uma vontade tão
insana de machucar uma pessoa, de invocar a maldade que existe no âmago
do meu ser em busca de todas as emoções negativas.
— E o que exatamente ele disse? — indago com pressa, sedento por
informações que me ajudem a formar um mapa sobre como agir.
— Quer Camillo de volta, meu irmão prometeu a casa para Maksim.
Ele não sabe que o terreno na verdade é meu, mas parecia mais interessado
no paradeiro de Camillo que em qualquer outra coisa. Para sair do distrito
outra vez, ele deve estar realmente perturbado.
— Como assim? Maksim não costuma sair do território?
— Ele nunca sai. Possui inimigos demais em outras regiões que
desejam sua cabeça e já tentaram exterminá-lo mais de uma vez. Além, claro,
de ser também um procurado constante da polícia local. — Ela balança a mão
no ar despreocupadamente. — Ou seja, vários inúteis perseguindo outro.
Minha mente, acostumada com a dinâmica de cruzar informações para
alcançar um objetivo final, começa a trabalhar. Posso usar isso ao nosso
favor.
— Ele mandou um recado, disse que era para você ficar longe, que o
clube não vai acontecer. Também nos chamou de namorados, o doido!
— E o que exatamente vocês são, querida? — Tatiana desliza até nós,
circunda a poltrona de Serena e passa as mãos em seus ombros.
— Amigos — responde com um sorriso mais alegre, divertindo-se às
minhas custas. Mas eu vejo através do fingimento e já sei que esse é o seu
mecanismo de defesa.
— Amigos que se beijam — provoca Roman.
— Não importa — corto, irritado por desviarmos do assunto. Pensei
que já tivessem superado a mania de se intrometer na minha vida. — Já dei
indícios o suficiente de que estamos juntos, não gosto de ser questionado
como se não soubesse o que estou fazendo!
— Estamos juntos? — Serena arregala os olhos o máximo que
consegue antes de ser arrebatada pela dor novamente. Andrei gargalha,
acompanhado pelos risos debochados de Roman e Lara. — Alguém volta a
fita porque eu perdi uma cena. Você não pode dizer essas coisas um dia
depois de me convencer a não criar expectativas.
— É tão difícil — diz minha mãe com o timbre agudo e distante, como
se estivesse falando sozinha — ser mãe de quatro filhos lindos e idiotas. Eu
queria saber onde eu errei. Expectativa é o pau que me falta, Vladimir!
— Mãe, temos coisas mais importantes para resolver do que o meu
envolvimento com Serena! — reclamo, a cabeça rodando.
— Gostei da sua mãe — Serena comenta aleatoriamente. — Também
estou na falta, amiga.
Onde eu fui me enfiar?
Merda, não consigo pensar direito enquanto o rosto dela vai adquirindo
mais camadas de vermelho e lilás, mesmo que a conversa se torne cada vez
mais absurda. O único sentimento que identifico é o de revolta — alguém
machucou a única mulher que, de alguma forma, desequilibrou meu senso de
prioridades. Meu cérebro não processa nenhum comando que não envolva
Serena e uma resolução para os problemas que vem enfrentando por minha
culpa.
Se não fosse por mim, pela empresa…
— Tudo bem, voltemos ao assunto. Tem mais uma coisa… — ela diz
com a voz um pouco mais baixa. Até minha mãe se cala para ouvir melhor.
— Pelo que pude entender, tudo gira ao redor do meu irmão há muito tempo.
Maksim disse que estava me vigiando na esperança de emboscar Camillo
caso tentasse contato. Ele se desesperou quando fomos na casa porque supôs
que eu estivesse intermediando a venda entre você e o meu irmão. E que a
minha Luazinha é a garantia de que Camillo vai voltar mais cedo ou mais
tarde.
O rostinho sério e calmo de Luna dança na minha cabeça, os olhos
negros como um céu sem estrelas. Outra pessoa tragada pelo maremoto de
problemas que venho causando, mas que nas mãos de Maksim não passa de
uma peça a ser usada como trunfo.
Preciso de mais detalhes antes que o médico chegue, antes de fazer meu
primeiro movimento. Antes de mostrar a Maksim Loskov que se envolveu
nos negócios da pessoa errada. Serena é inocente demais para entender a
verdade por trás de cada atitude de Maksim, mas deixar marcas físicas em seu
corpo foi a forma que ele encontrou de registrar um aviso.
Um aviso para mim de que ele pode machucar quem quiser, e que
Serena se tornou o meu ponto fraco no segundo em que a beijei.
— Quem seria essa Luazinha, exatamente? — Lara pergunta,
preocupada.
— Minha sobrinha, ainda é um bebê. Eu não sabia que Camillo tinha
uma filha até uma semana atrás, mais ou menos. Aquele idiota não sabe
cuidar nem de si mesmo, quem dirá uma criança. Seu nome é Luna.
— Pobrezinha — lamenta minha cunhada, segurando as mãos de Ivan.
Depois se dirige a mim e meus irmãos: — Vocês precisam pensar em algo
para resolver essa situação.
Eu irei, e será ainda esta noite.
— E o que ele disse sobre a dívida? — Forço a pergunta para fora de
mim.
— Pouco, na verdade. — Serena encosta o corpo para trás com a mão
nas costelas. Para atingir esse ponto do seu corpo, suponho que tenham a
derrubado no chão. Desvio o rosto e me levanto para que não perceba meu
ódio crescente. — Ele quer receber o dinheiro, mas deixou claro que a
obsessão com meu irmão envolve mais do que a dívida. É por isso que me
deu um prazo para arrumar a quantia, eu devia ter suspeitado, já que Maksim
não é conhecido por seu coração bondoso. Foi tudo parte do plano dele na
esperança de que Camillo aparecesse.
O som de um veículo se aproximando chama nossa atenção, e Andrei
prontamente corre para receber o médico.
Faço uma lista mental de tudo o que foi exposto, fazendo conexões,
trilhando como proceder — algo que cause danos e que atinja Maksim no
ponto mais doloroso, assim como fez comigo. Se ele gosta de mandar
ameaças, vai descobrir que eu prefiro cumpri-las sem aviso.
— Fica calmo, irmão — murmura Roman próximo do meu ouvido. —
Se continuar com essa cara, vai assustar o médico.
Roman tem uma expressão que espelha a minha raiva, mas há algum
divertimento em seus lábios. Mesmo repudiando meus demônios, aprendi a
conviver com eles, a como tirar proveito da maldade. Mas Roman é diferente,
ele gosta de ser a personificação da anarquia.
Andrei recebe o senhor franzino vestido com um jaleco branco. Uma
maleta de couro balança em sua mão esquerda e ele nos cumprimenta com
um aceno vago e os olhos fixos em Serena. Reconheço como sendo o mesmo
médico que cuidou de Lara meses atrás.
— Não está quebrado, doutor! — Ela se apressa a dizer. — Certo?
Quer dizer, é o que todos ficam me dizendo, mas prefiro um veredito
profissional.
— Preciso de um aposento mais confortável para examinar a paciente
— resmunga o médico para minha mãe, que começa a explicar um pouco do
ocorrido e como acabamos nesse impasse.
— Lord Vlad — Serena chama, fazendo meu organismo resfriar. De pé
diante de mim, ela parece ainda menor com os machucados lhe subjugando a
aparência. — O que você vai fazer?
De um lado, Lara e Ivan conversam aos sussurros um com o outro,
enquanto Andrei e Roman fingem não prestar atenção em cada movimento
meu. Abaixo o volume da voz e diminuo a distância entre mim e Serena.
— Por que acha que vou fazer alguma coisa? — Esquivo-me da
questão com outra pergunta e apoio as mãos em seus cotovelos.
Ao invés de responder, Serena acaricia meu rosto com a palma suave,
dedilhando as linhas dos meus lábios e o contorno dos olhos. Encosta a ponta
do indicador no meu nariz e depois desce até alcançar a garganta, sempre
devagar e zelosa.
Seu toque é um misto de informações, mais reais e tangíveis do que
qualquer explicação. Há conforto e medo, ajuda e desamparo, apoio e
condenação. Serena tem todas essas ramificações que me confundem — e
não estou acostumado com a confusão.
— Não pode me convencer a ficar parado — esclareço, temeroso de
que tanto afeto seja para me fazer recuar. Mas ela solta uma risada,
envolvendo meu pescoço.
— Eu jamais tentaria fazer uma coisa dessas — diz no meu ouvido. Sua
respiração me arranca um suspiro involuntário. — Confio em você.
Ela não sabe o que está dizendo. Se fizesse a mínima ideia do que
planejo, nunca me diria tais palavras. Mas isso não me impede de admirar
esta mulher rara por existir em um mundo tão mascarado.
Eu sei que ela esconde segredos, que de vez em quando deixa
transparecer uma tristeza traiçoeira, mas Serena não tem medo de correr
riscos e mergulhar nas profundezas da minha verdadeira natureza.
Caminhando para longe de mim, percebo seu corpo curvado diante da
dor. Ela não reclamou nenhuma vez, não derramou uma lágrima. Somos tão
parecidos e diferentes ao mesmo tempo que chega a ser assustador, e isso me
deixa mais crítico com relação a mim mesmo. A força de Serena me
desconcerta porque a dor causada pelo esforço que fazemos para manter a
cabeça erguida é familiar.
— Eu e Lara vamos acompanhar a consulta — diz minha mãe,
contornando a cintura de Serena para ajudá-la a caminhar. — Vou preparar o
quarto.
— Ela fica no meu quarto — informo, ciente da onda de olhares
surpresos. Depois de hoje, não adianta fingir.
— E de qual quarto você pensou que eu estivesse falando? — Tatiana
gargalha, indicando o caminho para o médico. Lara segue os três de perto. —
Como se eu fosse deixar ela ficar em outro quarto.
Acompanho com os olhos o pequeno grupo subir e desaparecer no alto
do segundo andar, o barulho das vozes diminuindo até se tornar um sussurro.
Depois que a distância se torna ainda maior, o silêncio se infiltra para firmar
parceria com meus pensamentos sobre ataques.
Sem Serena na minha linha de visão, não preciso mais amenizar os
níveis de perturbação que me corroem. Curvo meu corpo, pousando os
cotovelos sobre o encosto do sofá, escondendo o rosto entre as mãos. Eu
posso ver — imaginar — a cena, a dor que ela sentiu e o medo ao perceber
que havia pessoas em seu apartamento; a forma como sua visão deve ter
desfocado quando… o punho alcançou aquele delicado ponto que ela tem
entre os olhos.
— Não adianta se torturar, Vladimir, você não tinha como saber — diz
Andrei com sua estabilidade de advogado.
— O que pretende fazer agora? — pergunta Ivan.
O que eu pretendo fazer agora?
Regulando a respiração, levanto o rosto. Meus três irmãos são partes de
mim, pequenos fragmentos que compuseram a minha criação, os reais
motivos pelos quais resolvi esconder a verdade sobre Nicolai e as coisas com
que estava envolvido.
Eles não mereciam um golpe tão profundo. E minha mãe… nunca tive
coragem para perguntar se ela sabia que o marido era na verdade a cabeça por
trás das inúmeras casas de jogos clandestinos que existiam em Moscou. Que,
após a morte dele, assumi a responsabilidade de manter seu nome imaculado,
enquanto ia me despedaçando naquele mundo odioso de crime e sangue.
Semana após semana, eu me reunia com seus antigos associados.
Batalhei muito para fechar todas aquelas casas, mas uma parte de mim foi se
fechando também. O lado negro do mundo financeiro nos destrói em silêncio,
sobretudo quando tentamos lutar contra ele.
Eu podia lidar com aquilo, a maldade, a mentira. Conseguia suportar
que a personalidade de Nicolai fosse ausente de caráter, mas nada no mundo
me faria aceitar a traição.
Além de se envolver com outra mulher, Nicolai desistiu de nós.
Tudo o que eu fiz e suportei sozinho foi para garantir que os três não
fossem machucados. É por causa dos meus esforços que agora posso olhar
para eles com a certeza de que se tornaram a melhor parte da minha vida, que
jamais irão me julgar ou abandonar mesmo inclinado a decisões cruéis.
— Ele vai fazer um estrago — explica Roman. Segue na direção da
mesa decorada com as mais belas garrafas de vodcas e vinhos, servindo um
pouco em um copo da cristaleira. — Eu faria um brinde, mas são longos e
chatos.
— É culpa minha. — Suspiro, retiro o cachecol do pescoço e o jogo
sobre um dos sofás. — O clube…
— O clube é nosso, Vladimir — Andrei me corta, ríspido. — A escolha
do terreno e a elaboração do projeto, nós quatro aprovamos. Não se faça de
mártir agora.
— É culpa da empresa — esclareço, igualmente direto. — Não, eu vou
resolver.
— Conta uma novidade — diz Ivan, jogado no sofá com os braços
abertos. Deve estar cansado da viagem, com saudade do filho e, mesmo
assim, continua aqui ao meu lado. — É claro que você vai resolver, você é
Vladimir Volkiov. A questão aqui é como pretende fazer isso. Nós sabemos
que o plano já está montado na sua cabeça, então conta de uma vez se
devemos ou não nos preocupar.
Como vou precisar da ajuda deles, começo a explicar por partes —
apesar de tudo, a maneira mais sólida e rápida envolve muitas manobras
insensíveis.
— Vou denunciar Annia para a polícia — comunico sem rodeios,
aproximando-me da mesa de bebidas. Meu organismo clama por um pouco
de ânimo.
Roman não se altera, continua bebericando em seu copo; os cabelos
despenteados escondem parte dos olhos verdes impassíveis. É o mais
diferente esteticamente, mas a personalidade carrega muito de nossa mãe —
principalmente no que diz respeito ao temperamento irascível e limitado.
Ivan franze o cenho, provavelmente pesando os impactos dessa atitude;
entretanto, não temo qualquer indício de oposição vinda dele, pois meu irmão
já passou pela experiência de recorrer às péssimas decisões para consertar
erros que causaram males a alguém importante.
Mas Andrei, como advogado, interpreta muito mais rápido os motivos
por trás do meu plano.
— Você vai ter coragem de fazer isso? — O caçula tem a dignidade de
me encarar sem esconder o repúdio. — Separar uma criança da própria mãe?
— Sim — confirmo e, mesmo forçando uma falsa empatia, não consigo
esconder um sorriso de satisfação. — E farei sem nenhum remorso.
— Vladimir, existe outra maneira….
— Existe, sempre existe. — Sirvo um copo de vodca e, assim que o
líquido alcança a borda, Roman toma a garrafa para si. — Nós poderíamos
oferecer ajuda. Se Annia aceitasse se internar em uma clínica de reabilitação,
talvez em um ou dois anos a vida das duas começasse a melhorar. Depois
disso, seria razoavelmente fácil arrumar um emprego, mas…
— Mas ele não quer — completa Roman, analisando o álcool a
balançar dentro do vidro. — Porque ela não merece. Eles não merecem a
compaixão do senhor presidente. Estou certo, Lord Vlad?
— Essa opção deixa muitas brechas. — Aproximo a bebida dos lábios e
inalo o odor do líquido quente, antecipando seu sabor. Nenhum dos três me
olha enquanto eu engulo a vodca e bato o copo na mesa. — Então, a solução
será enviar a mãe para a prisão, assim ela vai perder a guarda da filha muito
mais rápido. E Serena, como parente mais próxima enquanto Camillo
continua desaparecido, se tornará sua tutora legal.
— À custa de um sacrifício — Andrei resmunga, balançando a cabeça
negativamente.
Viro de costas e caminho até o primeiro degrau da escada; nenhum
deles tenta me impedir. Quando paro no arco entre os dois cômodos, ofereço
a mais sutil justificativa. Uma que reafirma por quais tipos de sentimentos eu
me deixo influenciar.
— À custa de uma vingança. Luna, Annia e Camillo são apenas peças
na disputa de poder que Maksim está tentando jogar. Para alcançar a vitória, é
preciso derrubar todos eles.
Um por um.
— Isso resolve o problema com a criança — reflete Ivan com o mesmo
timbre que utiliza quando fala de Iago. — Mas depois que a mãe for presa,
ela será enviada para um lar temporário, talvez um orfanato.
— O golpe é baixo, Ivan, eu sei disso. Apesar de tudo, ainda me lembro
do dia em que busquei Iago naquele lugar. Mas vocês não viram a mulher de
Camillo, as condições em que as duas vivem. Aquela criança é… — gaguejo,
perturbado com os breves minutos que tive para conhecer a pequena — triste.
Não me importo se Annia vai ser presa, continua sendo a maneira mais rápida
para tirar Luna Fajardo das garras de Maksim.
E eu quero tirá-la dele.
— Claro. — Roman ergue o copo na direção de Andrei. — Além disso,
temos o melhor advogado. Para de chorar como se não pudesse resolver a
situação com um estralar de dedos, Andrei. Eu gosto desse plano. Mas o que
você pretende fazer sobre Maksim?
— Eu vou me encontrar com ele. — Os três praguejam e encosto-me do
corrimão com o pé apoiado no primeiro degrau. — Quando uma ferida
infecciona, não adianta tratar os sintomas, a gente precisa combater a
infecção. Maksim já atrapalhou nossos negócios por tempo demais. Ele acha
que tem o poder, então eu só preciso mostrar que a vantagem é minha.
— O que o impede de colocar uma bala no meio da sua testa? —
continua Andrei, incrédulo.
— As três coisas que Maksim mais deseja no momento estarão em meu
poder. Annia sabe demais. Tenho certeza de que foi ela quem contou para ele
sobre Serena e eu termos visitado a casa. Maksim não vai gostar de uma
informante tão valiosa nas mãos da polícia, e vai gostar menos ainda quando
souber que serei eu o responsável pela denúncia.
— E como ele vai descobrir isso? — Ivan me encara, o cabelo muito
mais claro que o meu parece quase amarelo sob o lustre aceso.
— Eu vou contar, é claro. — Sorrio. Explicar em voz alta me permite
visualizar os desdobramentos com mais confiança. — O inimigo do meu
inimigo é meu amigo. Se ele tentar impedir, então eu entregarei Camillo
Fajardo nas mãos de quem mais estiver atrás do pescoço de Maksim.
Livre de seu copo, Roman bate uma única palma solitária, que
reverbera através das paredes silenciosas da mansão. Ivan se levanta, caminha
devagar e aperta meu ombro em sinal de apoio.
— Cuidado, irmão. É assim que criamos fantasmas, e alguns nunca vão
embora. — Depois, segue rumo ao andar superior, dizendo que precisa
conferir como está Iago.
Eu sei, penso.
Nem o médico, Serena ou minha mãe aparecem, então presumo que
seja melhor preparar algumas coisas antes de sair. Já expliquei o suficiente,
mais detalhes só serviriam para dividir nossas opiniões, e não quero que isso
aconteça. Eu preciso deles.
— Estarei preparado quando precisar de ajuda, presidente — oferece
Roman, desdenhando do meu posto na empresa como sempre costuma fazer.
Ele segue os passos de Ivan e logo restamos apenas eu e Andrei na sala
principal.
— Vladimir — Andrei me chama vários minutos após nossos irmãos
terem partido, os olhos semicerrados e rendidos. Ele retira uma chave do
bolso da calça e começa a andar para a saída. — Eu vou fazer a denúncia,
então você precisa ser rápido. Assim que as autoridades forem informadas,
chegarão no Distrito em questão de minutos.
— Por que você faria uma coisa dessas?
— Porque você não pode continuar carregando as merdas sozinho. Eu
sou advogado, sei o que acontece com pessoas que sabem demais quando vão
para a prisão.
E isso só me torna uma pessoa pior.
Balanço a cabeça em concordância, aceitando a oferta. Não muda o fato
de que serei o responsável caso Maksim resolva queimar arquivos. Se Andrei
tomar a dianteira, talvez Annia tenha uma chance.
Talvez.
Eu não me importo.
Finalmente, vou para o escritório privado. Por uma hora, fico trancado,
preparando alguns detalhes importantes, levantando informações básicas
sobre esses inimigos de Maksim e revendo as notícias que recolhemos sobre
o paradeiro de Camillo quando ainda não havíamos encontrado Serena.
Ele continua em Morella. É uma cidade compacta o suficiente para que
o encontremos com um pouco mais de esforço. Espero que não tenha as
habilidades não intencionais da irmã para desaparecer como um indigente.
A última coisa que faço antes de sair é contemplar a grande tapeçaria
que Nicolai ganhou de um homem a quem chamava de Valentim. Um dos
poucos itens que minha mãe manteve no lugar após a morte do marido —
todo o resto foi recolhido e guardado em um almoxarifado nos fundos da
mansão. Na ilustração tecida com fios vermelhos, dourados e pretos, dois
leões dormem aos pés de uma rosa negra.
Puxo o tecido para o lado e ele desliza como uma cortina, revelando
meu cofre pessoal. Pagar a dívida de Camillo — por Serena — vai findar de
uma vez com a falsa sensação de supremacia que Maksim acredita dominar.
Coloco o valor em uma bolsa e saio outra vez na direção da sala, subindo a
escadaria para conferir como está Serena agora que o médico já se foi. Depois
disso, na última parte do plano, precisarei da ajuda de Roman.
Para minha surpresa, no entanto, ao me aproximar do meu quarto,
encontro Roman parado na porta com o olhar perdido do lado de dentro. À
medida que chego mais perto, vejo que Serena dorme tranquilamente no
interior do cômodo.
— Espero não ter que me preocupar com isso, Roman. Já tenho muita
porcaria para limpar esta noite. — Coloco a mala com o dinheiro no chão e
estudo meu irmão.
Eu o conheço. Conheço todos eles com tanto afinco que imediatamente
abandono a fagulha de ciúme que ameaçou se acender. O homem galante e
conquistador não se encontra, somente o frio e indestrutível Roman Volkiov,
aquele que não dispensa uma briga.
— Ela me lembra alguém — comenta, dando de ombros, os óculos
escuros balançando no alto da cabeça.
— Não consigo imaginar outra louca sem autopreservação perdida no
mundo.
— Não. — Roman sorri. — Não pela loucura, mas… — Ele nega com
a cabeça, afastando-se da porta. — Bem, águas passadas. O médico disse que
ela vai ficar bem, passou alguns comprimidos e orientou repouso por alguns
dias. Lara e Ivan estão com Iago.
— E nossa mãe?
— Da última vez que a vi, ela estava procurando por você, então é
melhor ir enquanto é tempo.
— Eu preciso de um favor, Roman.
Os olhos dele brilham no corredor escuro.
— Por que acha que estou aqui? Admirar sua bela virgem dormindo é
muito bom, claro, mas eu gosto mesmo da ação!
Preciso perguntar a Ivan como ele suporta as brincadeiras de Roman
com relação a Lara sem causar uma tragédia. Não posso me deixar levar, é só
provocação.
— Essas pessoas que estão atrás de Maksim — explico — são minha
melhor aposta. Você acha que consegue entrar em contato com eles e
descobrir se têm interesse no paradeiro de Camillo Fajardo?
— Nenhum caçador dispensa uma boa isca. E eu não dispenso uma boa
confusão. Todo mundo feliz. — Ele coloca os óculos nos olhos, puxa um
cigarro do bolso e leva aos lábios. — Me tira uma dúvida? Se chegar ao
extremo e você tiver que entregar Camillo para se livrar de Maksim, o que
vai escolher?
Engulo em seco, preferindo não pensar nisso por enquanto. Se Maksim
está jurado de morte, considerando seu interesse imbatível em reencontrar
Camillo, qualquer inimigo poderia usar o irmão de Serena para atraí-lo.
— Ela poderia estar morta — respondo. Nas entrelinhas, implícito,
minha explicação é muito clara.
Qualquer coisa para proteger Serena.
Olho o relógio em meu pulso e entro no quarto. Os passos de Roman
enquanto se afasta vão desaparecendo do lado de fora. Troco meu casaco
felpudo por um sobretudo de couro marrom escuro e as luvas brancas de
inverno são substituídas por pretas.
Antes de partir, paro diante da cama. Minha cama. Serena repousa
tranquilamente com um curativo sobre o nariz, os dois olhos ganharam novas
camadas de marrom e violeta. Os ombros expostos denunciam que a vestiram
com alguma camisola leve, a alça vermelha se destacando sobre a pele clara.
Ela é linda, extremamente delicada enquanto dorme. A ruína do
presidente. Agora minha família tem uma vaga ideia do quanto posso ser
confuso, de que uma pequena parte adormecida dentro de mim possui
fraquezas.
O pior de tudo é que isso não me preocupa. Foi fácil abraçar Serena,
beijá-la na frente de todos. Foi fácil assumir meu interesse e nosso
envolvimento.
Fácil demais.
— Lorde Vlad? — A voz mole e arrastada de Serena me tira das
reflexões, seus olhos piscam cheios de preguiça.
— Estou indo, Corazón. — Acaricio seus cabelos, que estão úmidos e
um pouco gelados.
— Aquele médico me drogou. — A língua enrola. — Ele achou que eu
tivesse batido a… cabeça. Mas eu falei que meu problema era de nascença.
Nem dopada ela consegue se controlar nas brincadeiras.
— Eram remédios para dor — explico, contendo um sorriso. —
Amanhã você vai estar melhor.
— Você está com aquela cara — resmunga, fechando os olhos.
— Qual?
— Do monstro.
Ela me enxerga demais.
— Você não gosta? — investigo, fazendo carícias em seu rosto de leve.
— Gosto, eu gosto de tudo em você, Lord Vlad. — Serena luta contra o
sono. — Pena que seu quarto é normal.
— O quê? — Rio involuntariamente. Não dá para prever que tipo de
coisa ela vai dizer. — E como deveria ser o meu quarto?
— Para começar, com um caixão. — Ela mesma gargalha dessa vez, o
riso soando nasalado por causa do curativo e dos ferimentos. — Com
algumas grades e correntes penduradas. Correntes são sexys. Você gosta de
correntes, Lord Vlad?
Resolvo provocá-la para ver se dessa vez ela vai se lembrar pela
manhã.
— Muito, Corazón. — sussurro, ela abre os olhos moles. — E quando
você estiver melhor, podemos pensar em maneiras diferentes de utilizá-las,
sim?
— Espero que eu não esteja delirando. Posso ficar viciada em remédio
para dor se isso for uma alucinação.
Serena pisca uma, duas vezes. O sono vai ganhando forças e sua
respiração desacelera. Enquanto ela paira no limiar entre a dormência e o
despertar, beijo sua bochecha com cuidado.
— Volto antes que você perceba — digo em seu ouvido.
— Pega eles, Lord Vlad — pede, antes de suas palavras se tornarem
sussurros ininteligíveis.
É o que pretendo.
Ao sair do quarto, encosto a porta para que Roman não volte a fazer
gracinhas. Pego o dinheiro esquecido no chão e faço todo o caminho até a
porta da saída no primeiro andar. Assim que minha mão toca a maçaneta, um
som agudo soa na sala escura — minha mãe deve ter apagado as luzes
enquanto procurava por mim.
Um gato preto se senta com o rabo balançando de encontro ao chão, e
me olha, olha e olha. Cada olho exibe uma cor diferente. A íris amarela brilha
como uma lâmpada, enquanto a azul poderia ser confundida com uma órbita
fantasmagórica.
— Malévola? — pergunto como um idiota. Ela mia. Se eu não estiver
ficando louco, poderia jurar que seu miado soa triste. — Vai ficar tudo bem.
Passo a mão sobre os pelos negros e ela ronrona, aprovando a promessa
antes de seguir na direção das escadas, talvez sabendo que sua dona repousa
lá em cima.
Saindo da mansão, dispenso os seguranças e entro em meu próprio
carro.

***

Estaciono na frente da casa, a poucos metros de onde beijei Serena, e aperto a


buzina para acordar alguns moradores.
Avisem Maksim que estou aqui, desejo em silêncio.
Saio do carro e encaro os dois lados da rua escura. Meu celular pende
na mão com a mensagem recém-recebida de Andrei informando que já
registrou a denúncia contra Annia.
A construção do clube não passa de uma imensa sombra, majestosa e
assustadora. Os ponteiros do relógio passam e continuo encostado na lataria
do carro, com uma perna apoiada na porta e o dinheiro indefeso no chão.
O primeiro carro aparece em um extremo da rua poucos minutos depois
da minha chegada. Estaciona com os faróis ligados na potência mais alta.
Pisca para me confundir. Outro motor ruge, acelerando na minha direção. À
medida que mais carros se juntam, eu me sinto mais satisfeito por mobilizar
um pequeno comboio.
Conto um total de seis veículos. Maksim pode estar em qualquer um
deles.
Uma luz acende dentro da casa, espero que a movimentação não acorde
Luna. Annia aponta a cabeça em uma fresta na cortina que Serena deve ter
instalado, pois não existia antes.
Alguns homens começam a descer, segurando armas; ao menos dois
carregam barras de ferro. Maksim quer provar seu poderio. Éramos estranhos
um para o outro até Serena me trazer aqui, e agora as máscaras estão caindo.
As minhas e as dele.
Ninguém diz nada. Coloco as mãos nos bolsos e espero. Espero por
movimentos que não vêm. Só querem me assustar, mas poucas coisas são
capazes de amedrontar monstros. Eles me enxergam como um tolo indefeso
invadindo um ninho de vespas.
Alguém finalmente surge entre eles, um homem pouco mais alto do que
eu, a cabeça oculta por um gorro. Atrás dele, os carros iluminam seus
contornos, mas me permitem perceber o grande e brilhante revólver na mão
esquerda que ele aponta na minha direção.
Está na hora do show, e o palco é meu.
— Olá, Maksim — cumprimento, torcendo para não sorrir com a cena.
— Estava esperando por você.
VLADIMIR

NA PRIMEIRA VEZ que alguém apontou uma arma para a minha cabeça, eu
era um rapaz pouco mais jovem que Andrei.
Nicolai havia morrido, o corpo putrefazia muitos metros abaixo da
terra, mas eu continuava escutando sua voz pelos corredores da mansão; em
cada espelho era o seu reflexo que me encarava de volta. As últimas palavras
que me disse antes de morrer supliciavam meus dias e descobri da maneira
mais difícil que assombrações são feitas de lembranças ruins — elas nos
atormentam mais do que demônios saídos do inferno.
O primeiro cobrador apareceu uma semana após o enterro. Minha mãe
havia se trancafiado no quarto e não permitia que nenhum dos filhos entrasse.
Ivan ainda estava na faculdade, enquanto Andrei era praticamente uma
criança e Roman não ficava atrás. Eu estava sozinho com a empresa em
decadência e a descoberta de que o aclamado Nicolai Volkiov mantinha uma
vida dupla, tanto nos negócios como na vida pessoal
Nem podia brigar com ele para descontar a minha raiva, porque meu
pai estava morto.
Lembro-me de sentir medo, lembro-me de implorar.
Foi a primeira vez que abaixei a minha cabeça, e também a última.
Os olhos de Maksim brilham no escuro, lembrando uma pantera
enquanto se camufla na noite com promessas de sangue e morte, mas nada
cintila mais do que a arma em suas mãos, refletindo a iluminação dos faróis.
Há certa beleza na imagem de uma pessoa desesperada, uma forma diferente
de arte, eu diria.
E Maksim é um homem agonizando no mais profundo desespero.
— Então, finalmente nos conhecemos — diz em tom de deboche,
aproveitando-se da vantagem por saber quem eu sou. Os homens ao nosso
redor soltam risadinhas cúmplices.
Analiso a situação e não encontro nenhum cenário em que eu não
consiga aquilo que vim buscar. Nas duas direções, seus soldados aguardam,
balançando barras de ferro e brincando de simular um tiroteio com suas
armas de fogo.
O braço estendido de Maksim continua imóvel, sua mira alinhada com
o centro da minha testa.
— Devo dizer que estou surpreso, não pensei que apareceria tão rápido
— diz diante do meu silêncio. Sua silhueta balança quando ele troca o peso
dos pés.
Ainda não respondo, preciso desestabilizá-lo um pouco mais antes de
mostrar as minhas cartas. Paro a poucos metros de distância, desdenhando
com um vacilar de ombros, e ofereço toda a minha atenção a nossos
expectadores.
Giro sobre os calcanhares sem sair do lugar, dando uma volta completa
e me demorando de costas sem o respeito que as pessoas geralmente tributam
aos grandes líderes. Um simples movimento que grita como não tenho medo
do seu arsenal.
As risadinhas cessam.
— O que foi? — Maksim pergunta um pouco mais alto, começando a
se afetar com o meu descaso. — O gato comeu a sua língua?
É a minha deixa para instaurar o caos.
Demonstro um interesse repentino, como se somente agora notasse a
sua presença, ou me importasse com ela.
— Sempre me perguntei — comento, desviando do tópico mais
importante e arrastando meus pés um pouco mais para frente, bem devagar
para não despertar nele ou em seus homens o instinto da proteção — por que
as pessoas usam expressões horríveis como essa para sugerirem coisas
simples. Quer dizer, alguma vez algum gato já comeu a língua de alguém
para justificar essa metáfora?
Um rapaz ruivo, cuja face se esconde atrás de um emaranhado de barba
acobreada, inclina sobre o companheiro ao seu lado e murmura:
— Do que ele está falando?
O restante parece ainda mais confuso. Maksim deixa de me encarar
para analisar a dispersão de seus seguidores.
— Qual o seu problema? — grita para mim.
— Respondendo à sua pergunta — explico cinicamente — gatos não
comem a língua de ninguém, embora eu tenha ouvido histórias de punições
medievais que incluíam arrancar a língua dos traidores para atirar aos felinos
da rua. — Ele franze o cenho e comprime os lábios, preso em minha manobra
de desvirtuar sua sensação de supremacia. — Não soa como uma ideia
inspiradora? Temo que eu tenha nascido no século errado.
Chego três passos mais perto, ninguém esboça a intenção de me parar.
Maksim ganha novas formas, o rosto se torna nítido, revelando um nariz
ligeiramente anguloso e maçãs do rosto magras, escondidas debaixo de
inúmeras tatuagens.
Gostaria de saber se o casaco preto com o capuz cheio de plumagens é
o mesmo que usava quando invadiu o apartamento de Serena. Se as luvas
eram a única coisa entre a sua mão e o rosto dela quando desferiu aquele
golpe.
— É melhor parar com essa brincadeira. — Uma cortina de fumaça
sobe a cada palavra que ele diz. — Eu sei por que está aqui!
— Sabe mesmo? — Gargalho genuinamente. Não me lembrava do
quanto a sensação de manipular um indivíduo ordinário pode ser aprazível.
— Eu particularmente gosto muito de metáforas. Meu sobrinho tem uma
afeição peculiar por figuras de linguagem, ele é muito literal.
— Sabe o que mais é literal? — indaga entredentes. — Um tiro no
meio da sua cara.
— Não, Maksim, ameaças não são literais. — Encaro o espaço entre
nós. Consegui me aproximar sem ser impedido por ninguém enquanto se
perturbavam com meus devaneios inocentes.
Três passos nos separam. Seus homens despertam do transe causado
pelo nosso espetáculo de interlocução e voltam a empunhar seus instrumentos
— as pistolas e barras em algum momento sucumbiram, pendendo
molemente em suas mãos entretidas.
Qualquer pessoa me chamaria de louco, mas o tempo e sacrifícios
dedicados em nome do empreendimento que Nicolai construiu me ensinaram
que as pessoas se curvam diante do poder somente quando nós mesmos
assumimos a existência dele. Não demonstrar medo, não demonstrar
preocupação, não demonstrar nada, simplesmente, são as características de
quem está acima das ameaças.
Esses homens não têm a coragem dos poderosos para atentar contra a
minha vida. Não quando tenho o seu líder nas minhas mãos. Não quando eu
sou o rei que corta a língua dos traidores para banquetear os gatos pedintes.
— Presumo que a belíssima irmã de Camillo tenha passado o meu
recado — provoca sem se afastar. Respeito a coragem dele. — Você se
enfiou no buraco errado, senhor Volkiov. Neste distrito, quem manda sou eu.
Você e seu clube não são bem-vindos.
A edificação se ergue no cenário atrás de Maksim, majestosa e
imponente. Uma sombra inacabada de concreto, e início dos meus pesadelos.
Eu até me arrependeria do projeto se não tivesse sido por meio dele que
Serena acabara em meus braços. Se Ivan jamais tivesse me sugerido a ideia
de construir um clube familiar em uma área desfavorecida, minha querida
Corazón estaria enfrentando esses problemas sozinha. Ela não teria ninguém
para pedir ajuda além de si mesma.
O clube pode ser importante, mas não é por ele que estou aqui.
— Sim — desdenho, menosprezando-o com um revirar de olhos. —
Esse clube se tornou uma chateação, mas continua sendo um ótimo
investimento, e não pretendo abrir mão dele até que isso se mostre favorável
para a minha empresa. Mas, adivinhe? Estou aqui apenas para devolver a
agressão que a minha… — Procuro a palavra certa, só uma parece adequada:
— Mulher sofreu.
Vários espectadores gargalham, balançando os corpos magros. Maksim,
para não ser considerado fraco, acompanha o grupo, mas eu enxergo através
da sua risada.
— E o que faz você pensar que conseguiria sequer encostar em mim?
— murmura, a voz baixa e revoltada.
— A minha expectativa é que você se ofereça de bom grado — explico
igualmente baixo. Com o canto dos olhos, percebo pescoços esticando-se
para escutar nossa conversa. — E que ordene a seus cachorrinhos raivosos
que fiquem calados enquanto quebro a sua cara.
Atordoado com minha sentença, Maksim engatilha a arma, puxando a
mão para trás. Seus olhos injetados de raiva só comprovam a minha teoria de
que esse homem está no limite de um colapso, desesperado para resolver
algum problema qualquer que Camillo Fajardo tenha causado — a única
parte que ainda não consegui desvendar.
Dou um passo adiante, seguido de outro, e mais outro. A mão dele
treme quando encosto a minha cabeça no cano gelado da arma.
— Ouvi dizer que está em busca de Camillo Fajardo — experimento. À
menção desse nome, percebo a garganta de Maksim subir e descer, engolindo
a saliva em seco.
— Se você acha que pode me comprar, fique sabendo que não estou
interessado em um acordo. — Ele força a arma contra a minha pele e eu
perco a paciência.
Agarro a mão que ele usa para envolver o cabo do revólver, aperto seus
dedos para que sinta ainda mais a textura e a tentação de pressionar o gatilho.
— Se não vai me matar, é melhor abaixar essa merda. Não pretendo
fazer qualquer tipo de acordo com você. A essa altura, meu irmão já deve
estar entrando em contado com alguns dos vários distritos que estão em busca
do seu pescoço, e ouso dizer que ficarão muito felizes quando souberem onde
Camillo está se escondendo, afinal, ele é uma ponte que leva direto até você,
não?
A expressão dele muda.
— Que merda você fez? — sussurra. Seu semblante esmorece e
murmúrios se espalham entre os homens irritadiços que nos assistem
atentamente. Maksim repete, um pouco mais desesperado: — O que você
fez, porra!?
— Não devia ter ido atrás dela, não devia mesmo. — É a minha
resposta.
Meu veredito.
— Vão matá-lo — diz, colocando as duas mãos na cabeça. — Se você
entregar Camillo…
— Não me importo com o que acontece com Camillo. — Cruzo os
braços, triunfante, e inicio um lento caminhar ao redor da figura estática de
Maksim. — Essa é a única maneira de tirar você do meu caminho.
— Não tenho medo de você — sibila, suas mãos fechadas em punho.
— Pois deveria ter. Eu tenho Serena, tenho Camillo, tenho Luna, tenho
a casa. Você não tem nada, Maksim. — Retiro minhas luvas; sem me
importar em mantê-las comigo, deixo que caiam no chão silenciosamente. —
É questão de dias até que meu clube volte a ser construído. É melhor se
acostumar com a ideia.
— Luna? — Maksim olha para trás, Annia ainda nos vigia da janela,
pálida como um fantasma em uma casa mal-assombrada. — Camillo nunca
vai entregar a casa, muito menos a menina.
É verdade, Maksim não faz ideia de que o terreno nunca pertenceu à
Camillo. Ele ainda acredita que tem alguma chance de vitória aqui.
— Não vai ser preciso. — Dobro as mangas da minha jaqueta, um
braço por vez, erguendo o tecido grosso do couro na altura dos cotovelos. —
Sugiro que retire seus capangas daqui o quanto antes, a polícia vai chegar a
qualquer momento para buscar a sobrinha de Serena. — Ele abre a boca para
protestar, mas continuo falando: — Não, eu não denunciei o seu esquema.
Mas acredito que faça parte do protocolo deles revistar a moradia se
identificarem que a mãe da criança denunciada faz uso de entorpecentes.
Suponho que você tenha os seus contatos para se livrar desse pequeno
inconveniente.
— Isso não vai acontecer! — enfrenta-me, erguendo o queixo com um
resquício de dignidade.
Então eu o acerto.
O soco é forte, ecoa na forma de uma corrente elétrica por todo o meu
corpo. Junto com o barulho do meu punho chocando-se com o maxilar dele,
ressoa a junção de todas as armas sendo empunhadas e preparadas para a
minha aniquilação.
Maksim cambaleia para trás, mas não cai.
Eu o quero no chão, exatamente como Serena ficou.
— Mande que recuem — ordeno, abrindo e fechando meus dedos
dormentes por efeito do golpe. — Agora.
Relutante, Maksim limpa a boca com o dorso da mão enluvada,
deixando um rastro de sangue em toda a extensão da bochecha esquerda.
Seus comparsas diminuem o círculo, todos falando ao mesmo tempo, alguns
em outros idiomas.
— Vai entregar Camillo? — pergunta, ainda esperançoso de que eu
esteja disposto a negociar.
— Não trabalho assim, Maksim. Não vim atrás de um acordo, entende?
Manterei seus inimigos por perto enquanto você continuar me incomodando.
Eles provavelmente já sabem agora que Camillo é um caminho até você, mas
os únicos com o paradeiro dele somos eu e meus irmãos.
Omito a informação de que não temos uma localização exata. Sabemos
que ele seguiu para Madrid quando saiu do país, e Serena levantou a hipótese
certa vez de que ele poderia ter traçado seu destino até Morella. Somando
isso com os endereços que levantamos sobre as antigas moradias de Serena
quando estávamos em busca de seu paradeiro real, é praticamente certo que
algum deles nos leve até Camillo.
Mas deduzir e mentir são as coisas que eu faço de melhor.
A mão sinuosa de Maksim sobe, realizando um giro no ar com o dedo
indicador. Alguns homens pestanejam, mas em poucos segundos voltam a se
distanciar.
— Annia… — Seu rosto se contorce. — Você sabe que ela vai morrer
na prisão? — A mudança de assunto só não é mais prazerosa por causa do
teor direto de suas palavras. Ouvir a certeza em voz alta é muito diferente do
que supor a possibilidade em silêncio. — É claro que você sabe, como sabe
que esse sangue vai estar nas suas mãos também.
Pela primeira vez, perco as palavras. Eu posso lidar com isso, penso.
— Conto com você para garantir que não encontrem a sua mercadoria.
Também não tenho interesse em ter o nome da minha empresa vinculado com
um terreno contaminado com a sua merda.
— Você é um demônio, igual ao seu pai.
Estreito os olhos, controlando minhas emoções para não entregar que
ele cutucou um ponto sensível. Reprimo a vontade de indagar o que, diabos,
ele sabe sobre Nicolai. Ao invés disso, digo:
— É o que dizem, mas faz bem para o meu ego pensar que sou ainda
pior.
A porta de um carro bate, o semblante de Maksim demonstra sua
preocupação. O primeiro veículo liga, piscando os faróis, até evadir pela noite
hostil de Moscou. Desmoralizar Maksim é apenas um bônus no meu plano
perfeito.
— Só para você saber, não encostei um dedo nela.
— Nesse caso, tenho certeza de que você vai garantir que a minha
retaliação alcance a pessoa certa — declaro.
Ele testa um sorriso danoso, a última coisa que eu vejo antes de acertar
seu rosto mais uma vez, agora mais forte, mais definitivo. A exaustão começa
a transcorrer pelas minhas veias, não um cansaço pelo dia de hoje, mas pela
vida. Exausto de ser assim, e de gostar. Porque, quando minha mão estrala no
rosto de Maksim pela terceira vez — seu corpo cai sobre um joelho
pateticamente — eu só consigo apreciar.
— Garanta que a criança seja levada — determino. — O que acontecer
com a mulher não é da minha conta. E nunca mais, nunca mais, use Serena
para me atingir.
Ele ri enquanto seus soldados nos encaram com desprezo. Um líder de
joelhos, exibindo seus dentes vermelhos com o sangue acumulado… Eu diria
que também existe beleza nessa cena. Alguém deveria eternizá-la em um
quadro.
— Isso ainda não acabou, presidente.
— Conto com isso — respondo, virando na direção do meu carro.

***

O Sol começa a colorir o céu com a paleta do amanhecer. Identifico a cor


vermelha no horizonte, seguida pela gradação do laranja ao amarelo. A
partida da noite parece manchar as nuvens de azul, deixando um rastro de
seus segredos mais violentos.
Eu fiz de novo.
Sentado no pergolado que meu pai mandou construir exclusivamente
para minha mãe, assisto o tempo passar. É um belo adorno no meio do nosso
jardim, uma pequena construção de madeira, com cobertura e várias
almofadas confortáveis para um momento de descanso ao lado da natureza.
Há muitas histórias que não nos foram contadas, tudo o que sabemos é
que esse é o lugar favorito de Tatiana em toda a mansão. Nunca parei para
pensar se possuo algo assim.
Um lugar favorito.
Flexiono minhas mãos machucadas. Fazia muito tempo que não
abraçava o pior de mim. Embora seja um organismo inseparável de quem
sou, dificilmente me permito agir munido de toda a revolta. De toda a
maldade.
Não muito distante, o labirinto de arbustos farfalha com o vento. Duas
estátuas guardam a entrada com suas asas de mármore, sombreadas pela
estrutura da mansão — a composição da sombra sobre as auréolas me faz
pensar em anjos caídos, tristes por estarem condenados a guardar o mesmo
lugar pela eternidade.
— Você sabe imitar um médico? — Sobressalto-me com a voz de
Serena, que caminha com Malévola nos braços, encontrando dificuldade para
vencer o circuito de pedras.
É uma coisinha pequena enrolada no meu cobertor, os pés protegidos
por meias grossas que reconheço como minhas também. Seus cabelos negros
estão soltos e volumosos, um tanto despenteados e muito sensuais. No rosto,
há um curativo sobre o nariz, escondendo grande parte do hematoma e do
inchaço.
Ela olha direto para a mão que usei para socar Maksim, os nós dos
meus dedos descarnados.
— Agora estamos combinando: você com a sua mão, eu com o meu
segundo nariz.
Soltando uma risadinha, permite que a gata preta escape e pouse sem
nenhum ruído sobre o assento acolchoado, antes de ela mesma se sentar ao
meu lado. Ela geme ao inclinar o corpo para apoiar a cabeça no meu ombro.
De fato, não me arrependo de ter ido até Maksim, mas Serena não faz
ideia do que fiz e talvez me odeie quando descobrir.
— Por que está acordada assim cedo? — pergunto, apreciando sua
proximidade.
Como é possível expor o ápice do meu pior e, horas depois, sentir que o
mundo faz tanto sentido só por ter a chance de sentir a textura dos seus
cabelos roçando na lateral do meu rosto?
— É mais forte do que eu — explica, aconchegando-se cada vez mais
perto até jogar as pernas sobre as minhas e me envolver em seu ninho de
tecidos felpudos. — Já estou acostumada.
— E o que você queria com um médico? Está doendo muito? — Meu
corpo entra em alerta, preparo-me para levantar, mas Serena apalpa meu rosto
e tranquiliza meus temores.
— Sim, está doendo pra caralho! — reclama com seu típico palavreado
sem filtros. — Sinto como se as minhas costelas estivessem me cutucando em
busca de liberdade. Acho que poderia fazer um belíssimo Adão com elas, não
me fariam falta alguma.
Fica difícil acompanhar seu rápido raciocínio quando ainda nem
consegui dormir.
— Na história original, é Adão quem cede uma costela para Eva, não?
— comento, cada vez mais ciente do contorno das suas pernas cruzadas sobre
mim.
Está vestida com uma calça de moletom que, suponho, deva me
pertencer, assim como todo o resto, inclusive ela mesma. Imagino várias das
minhas roupas reviradas no quarto, e tudo parece certo na imagem que se
forma. O mundo faz muito mais sentido, eu faço sentido, até a merda com
Maksim faz sentido.
Serena me confunde, mas também me ajusta. Como isso funciona?
— Bom, a costela é minha e eu prefiro fazer alguém cujas ferramentas
atendam às minhas necessidades.
Incapaz de impedir que a risada escape, começo a rir com seu
desespero para perder essa virgindade — algo que já está em meus planos
mais breves. Eu o faria agora se ela não estivesse tão machucada e eu tão
fodido.
Serena precisa que seja bom, e eu não acho que conseguiria ser bom no
momento.
— Provavelmente estamos cometendo algum pecado — brinco,
erguendo a mão e acariciando seu queixo com muito cuidado.
— Heresia, com certeza.
— Ainda não explicou sobre a primeira pergunta que me fez. — Tento
manter a conversa constante para não me desesperar com dúvidas sobre como
será sua reação quando souber que condenei sua cunhada e entreguei o nome
do seu irmão para criminosos dispostos a matá-lo.
— Bem, hoje eu deveria trabalhar, então preciso convencer o idiota do
senhor Palliermo de que não me encontro em condições.
— Mas você realmente não se encontra em condições — pondero.
— Bem, ele obviamente não vai acreditar se eu disser.
— Nesse caso, podemos pedir para que o médico verdadeiro encaminhe
um atestado para o hotel.
— Faria isso? Embora, devo dizer, perderíamos toda a magia da
mentira.
Tão linda!
— Ou podemos pedir para que o Roman faça a ligação, tenho certeza
de que ele adoraria e você teria a sua magia concretizada. — Ela abre um
sorriso amplo e lindo, que faz valer a pena a ideia absurda. — Você não gosta
de Leonel Palliermo, algum motivo em específico?
— Ah, sim! — Serena revira os olhos. — Ele é um homem de muitos
dedos, está sempre procurando um lugar para colocar aquela mão nojenta.
Céus.
Puta merda.
Ser um babaca ou agir como um homem maduro e sensato?
Babaca ou maduro?
Já utilizei demais das minhas tendências extremistas por uma vida
inteira; se tomar outra iniciativa hoje, corro o risco de cometer um crime.
Mais um, considerando que todo o meu encontro com Maksim foi
incrivelmente errado.
Tudo bem.
Homem maduro agora.
Babaca depois.
Depois, repito em pensamentos.
— Serena — chamo, fechando os olhos. É certo, essa mulher vai me
levar para o caixão. — Você tem consciência de que está me relatando, com a
maior naturalidade, que Leonel Palliermo se aproveita da posição de
proprietário do hotel para assediar funcionárias? Para assediar você?
Serena faz uma careta.
Ótimo, só percebeu isso agora.
Meu Deus, eu vou morrer.
— Ainda não tinha julgado por essa perspectiva — conclui,
concordando comigo.
— Você não tem mesmo nenhum instinto de preservação — reclamo,
minha mente revirando-se com mais um plano maquiavélico de ruir com tudo
o que ele construiu.
Preciso me conter, desacelerar.
— Agora fiquei com vontade de ir trabalhar só para chutar as bolas
dele! — raciocina, determinada.
— Por favor — peço, desesperado. Abraço seu corpo, bebendo-a como
um antídoto contra meu mundo de agonia. — Não vá a nenhum lugar hoje.
Eu não sei o que… Não sei quais outros estragos eu faria.
— Foi assim tão ruim? — pergunta, remanejando o corpo para se sentar
no meu colo, as pernas abertas de cada lado da minha cintura. Então ela se
lembra.
Confirmo em silêncio, sincero.
Ela vai me odiar.
Disse a mim mesmo que não me importava. Repeti inúmeras vezes que
faria qualquer coisa. Que merda de insegurança é essa agora?
Você é um demônio, ressoa a lembrança com as palavras exatas de
Maksim, igual ao seu pai.
— Quer chorar? — sussurra no meu ouvido.
— Eu não choro.
— Eu também não choro, Lord Vlad — declara, segura de si. — Mas,
se eu chorasse, com certeza choraria por você agora. Eu pedi pelo monstro,
mas não sabia que ele machucava você também. Me desculpe por isso, me
desculpe.
O conceito de certo e errado não parecem definidos o suficiente para
que eu consiga entender como me sinto, mas Serena tem o dom de fazer com
que eu me encontre na confusão. É um lugar maravilhoso para se estar junto
com ela, mesmo depois de tudo o que fiz durante a noite.
Malévola pula para o chão. Caminha com o rabo estendido para cima e
senta na beira do pergolado. Seu miado corta o amanhecer, um som longo e
baixo. Extremamente melancólico.
Como um choro.
SERENA

DEPOIS DE TANTOS anos, alguém lá em cima finalmente começou a olhar


por mim. Já não era sem tempo! Não que levar um soco no meio do nariz seja
um indício de boa sorte, obviamente, mas o homem cujos braços me
envolvem com ternura e proteção se destaca como sinal inquestionável de
que as coisas estão mudando para melhor.
Vladimir entrou na minha vida com promessas de destruição, invadiu-
me sem se importar com as consequências simplesmente porque podia. Ele
pode a porcaria do que quiser e sabe disso. Fui avisada sobre não alimentar
esperanças de que nossa relação se torne uma coisa mais íntima e, por mais
que ele tenha assumido que estamos juntos — de uma forma completamente
distorcida e inominável — preciso policiar o estrago que isso vai causar aos
meus sentimentos.
Juntos…. O que é estar junto de alguém para Vladimir Volkiov?
Enquanto subimos a escadaria da mansão, abraçados
desengonçadamente por causa do imenso cobertor ao meu redor, sou
consumida pela culpa.
Eu sabia.
Quando saí do meu apartamento em busca de ajuda e parei na frente da
casa dele, eu sabia que Vladimir reagiria como um leão protegendo seu
território. Sabia que a extensão do seu poder não se limitava a barreiras de
tijolos e cimento, muito menos àquelas embebidas pelo dinheiro.
O que eu não imaginava, porém, era que o monstro do qual Vladimir
tanto se orgulha é, na verdade, a condensação de todos os esforços
necessários para sustentar o peso de ser quem ele é: o presidente, o líder do
maior império financeiro da Rússia.
No alto da escadaria, olho para trás. O jardim é grandioso como se
fizesse parte de um palácio real, com fontes e esculturas de anjos. Sou mesmo
uma descarada por não me importar com a nossa diferença social, com o fato
de eu ser uma Rapunzel ferrada na vida e ele um belíssimo cavaleiro às
avessas.
— Algum problema? — pergunta, sua voz soando exausta e rouquenha.
As vestes que usa são diferentes das habituais; o terno foi substituído
por uma jaqueta de couro marrom, e o sapato, comumente preto e lustroso, é
agora uma bota escura com solado bruto e pesado. Se não estivesse vendo
com meus próprios olhos, não conseguiria formular essa imagem na mente.
Tudo bem que esse homem deve ficar lindo até plantando bananeira vestido
de Papai Noel, mas existe aquele sussurro no fundo da minha mente que
deseja consertar qualquer coisa dentro dele. Que não gosta de ver os
ferimentos em suas mãos ou o desalinho angustioso em seu olhar.
Ele ergue uma sobrancelha, a luz avermelhada do amanhecer saturando
a matiz profunda de seus olhos. Neste exato momento, a cor azul se torna
mais do que a minha preferida: é o tom do que sinto por Vladimir.
— Estava pensando… — digo, mas paro no meio da frase, percebendo
que não consigo colocar em palavras tudo o que ronda minha mente desde
quando nos encontramos pela primeira vez naquele quarto de hotel. Desvio
para um tópico menos comprometedor e completo: — Que você deveria
comprar uma fantasia sexy de Papai Noel, já pensou nisso?
A gargalhada de Vladimir mistura incredulidade e exasperação, um
pouco de desespero também. Ele joga a cabeça para trás, o corpo em
espasmos por causa da risada. Quando volta a me olhar, o rosto todo está
iluminado com uma fina camada de felicidade, uma alegria tão genuína que
se torna triste por não lhe ser natural.
Eu quero mais, penso.
Meu corpo age por conta própria, um mecanismo programado para
reagir a qualquer estimulo ofertado por ele. Estico as pernas, ficando na ponta
dos pés, e penduro os braços em seus ombros. Em um átimo, ele me tem nos
braços, todo o divertimento se transformando em urgência, em necessidade
do outro.
Vladimir arqueja ao se dar conta da minha investida e imediatamente
gira nossos corpos, uma de suas mãos apoiando-se na minha nuca e a outra
nas costelas. As malditas costelas machucadas! A dor é fodidamente
insuportável, mas trinco os dentes para impedir que um gemido sôfrego me
escape dos lábios.
Sinto sua respiração, o peito arfante enquanto estreita os olhos para a
marca no alto do meu nariz. O cobertor escorrega até o chão e minha pele se
arrepia com a brisa que ultrapassa as roupas, fazendo-me lembrar como todas
as peças que estou vestindo pertencem a ele.
Percebo sua insegurança, o medo de que a necessidade desesperada me
cause desconforto se nos beijarmos. No pergolado, fomos cuidadosos e
lentos, ações sobrepuseram palavras; os sentimentos predominantes estavam
todos voltados para a dúvida de que as medidas tomadas por ele durante a
madrugada foram corretas.
Mas agora…
Agora…
— Foda-se — diz antes de puxar o meu cabelo para trás e devorar
meus lábios.
Não é doce, nem romântico ou calmo. É um beijo platônico cujo
principal objetivo envolve a satisfação dele, não a minha. Seu conflito interno
pulsa nas investidas da sua língua e todos os meus membros se entregam,
completamente rendidos como os sobreviventes de um exército perdedor no
fim da guerra.
Mesmo não querendo falar imediatamente a respeito de tudo o que
estamos enfrentando, sinto que busca em nossa conexão física respostas que
justifiquem as sucessivas atitudes contraditórias.
Vladimir tem um dom ímpar de confundir as pessoas, acredito que essa
seja uma característica inerente aos grandes líderes. Ao mesmo tempo que
arranca de mim qualquer expectativa com relação ao futuro, usa desse tipo de
artimanha para deixar claro que estamos juntos. Que eu, de uma maneira
subjugada, enrosquei-me em seu cativeiro despretensioso e me tornei uma de
suas inúmeras responsabilidades.
O controle de Vladimir só vai até esse singelo limite, quando pode
escolher ou não se perder em mim.
Gemo um pouco mais alto quando, juntos, recuamos de encontro à
parede ao lado da porta dupla na entrada da casa. É um misto de dor por
causa dos hematomas com o sabor da boca dele enquanto explora cada
centímetro da minha; a mistura do desespero que move seus instintos com o
calor que aumenta no meio do meu estômago quando enfia uma das pernas
entre as minhas coxas e me suspende alguns centímetros.
Pode ser que esteja mesmo quebrado, que o caos reine nos territórios
abandonados do seu coração e que eu não passe de mais um peão em seu
tabuleiro do poder, mas… ¡puta mierda!
Não ligo! Não dou a mínima mesmo. Zero preocupações. Tudo o que
importa é viver esse momento, essa paixão. Ah… Sim, é isso mesmo.
Paixão.
Eu estou apaixonada por Vladimir Volkiov.
Qualquer pessoa que chegar pelo jardim vai conseguir enxergar nosso
espetáculo gratuito, a forma como pressiona os quadris contra os meus e
minhas mãos afundam no couro da sua jaqueta.
— O que você tem — diz, interrompendo-se para mordicar o lóbulo da
minha orelha — que me deixa assim?
Esse se tornou o seu dilema favorito dos últimos tempos.
— Não tenho ideia, Lord Vlad — respondo com os olhos fechados,
aproveitando a sensação dos seus dedos repuxando a raiz dos meus cabelos, a
ardência prazerosa e sádica no couro cabeludo. — Mas, se agir assim toda
vez que eu fizer você gargalhar, teremos sérios problemas.
— Acho que já temos sérios problemas. — Ele sela sua boca na minha
uma última vez, prolongando o contato por tempo o suficiente para eu saber
que saciou dessa vontade repentina e mútua.
É ele quem desfaz nosso contato, afastando-se primeiro. Eu demoro uns
segundos a mais para voltar ao normal, sobretudo com o coração alucinado
dentro do peito e as laterais do corpo latejando com a dor dos movimentos
bruscos. Vladimir gosta de me ver assim — rendida e perdida —, pois seus
olhos reluzem como bolas de cristal enquanto assistem ao meu esforço para
recuperar o equilíbrio e me mover sem cair no chão.
— Obrigado — diz, abaixando-se para recolher o cobertor esquecido.
— Pelo beijo? — Sorrio, aconchegando-me no braço que ele estende e
disfarçando a dor com um sorriso.
Eu é que não vou estragar o momento. A dor que se dane!
Vladimir abre a porta da mansão e, diferente de quando despertei
poucas horas atrás, o interior da residência está preenchido com um
inconfundível aroma de queijo que me faz pensar em sêrnikis frescos.
— Por entender — murmura como se fosse um segredo. — Por me
procurar, por… — Ele suspira. — Tem algumas coisas que você precisa
saber. Pode ser que não aprove, mas eu não quero…
— Precisamos conversar, eu aguento — digo, igualmente temerosa
sobre o que fez com Maksim.
Ele nega com a cabeça, discutindo sozinho com quaisquer que sejam
seus demônios mentais.
— Vou guardar isso. — Vladimir indica o cobertor, depois as mãos. —
E cuidar dessa bagunça. Minha mãe deve estar na sala de refeições, pode
esperar com ela. Coma alguma coisa. Preciso fazer algumas ligações e depois
conversaremos — decide.
Ele me indica o caminho, depois vai na direção das escadas e sobe com
a cabeça baixa. Respiro fundo em busca de forças para não desabar e evito
listar a sucessão de merdas acontecendo ao mesmo tempo — entre elas, me
apaixonar por um bilionário com complexo de controle e poder.
Atravesso a sala, desviando de sofás e poltronas que se distribuem
receptivamente no espaço. Armários com cristaleiras que devem custar uma
pequena fortuna descansam nos extremos das paredes e, embaixo da escada
que leva até o segundo andar, há uma mesa com vários tipos diferentes de
bebidas — desde a famigerada vodca até vinhos de origens e tamanhos
distintos.
Ao passar pela soleira do corredor principal, deparo-me com Lara
curvada sobre o próprio corpo, com uma das mãos fixas na parede que parece
ser a única coisa impedindo-a de desmaiar.
Está pálida como se tivesse visto um fantasma.
— Você está bem? — pergunto estupidamente. É óbvio que a mulher
está querendo vomitar as tripas! Ao ouvir minha voz, ela se sobressalta e
levanta a cabeça. — Me diz o que fazer, não sei agir sob pressão!
— Serena? — diz, aliviada. Passa a palma da mão na testa para limpar
um pouco do suor acumulado. — Graças a Deus não é a Tatiana.
Lara estende a mão, o robe de cetim dourado cobrindo todo o seu
corpo. Ao oferecer meu ombro para que ela se apoie, tomo consciência das
semelhanças entre nós: embora seja um pouco mais baixa, suponho que
tenhamos praticamente a mesma idade. Sua aparência é muito frágil, no
entanto, o tipo de pessoa que desperta na gente a vontade de a proteger dos
males que existem no mundo.
— Devo chamar um médico? Seu marido? Tatiana? Vladimir está lá
em cima — ofereço, preocupada com a temperatura gelada de suas mãos.
— Não precisa chamar ninguém — diz, mil vezes mais calma do que
eu. — Eu só preciso comer alguma coisa. Se chamar qualquer um deles,
nosso domingo será arruinado. Os Volkiov conseguem transformar qualquer
copo de água em um dilúvio de quarenta dias.
Desconfiada, ajudo Lara até chegarmos na mesa já preparada com uma
diversidade irracional de alimentos, desde uma suculenta Medovík com várias
camadas de massa folhada, até panquecas e cereais cozidos.
Espero-a escolher o próprio assento e me acomodo ao seu lado,
servindo um pouco de chá para nós duas.
— Sabe guardar segredos? — pergunta.
Misericórdia!
— Nem um pouco — confesso com meu semblante sério. — Na
verdade, acho que todas as minhas amizades na infância terminaram por
causa disso. Seja o que for, não me conte em hipótese alguma!
— Acho que estou grávida.
Ah, merda!
— Você não fez isso! — reclamo indignada.
— Eu precisava contar para alguém! Meu melhor amigo é irmão do
meu marido e eu não posso pedir para ele guardar um segredo como esse por
vários motivos diferentes. Roman está fora de cogitação, ele usaria isso para
me chantagear no trabalho, e Vladimir… bem, é o Vladimir, transformaria o
caso em uma reunião.
Tantas características e personalidades diferentes, e ela consegue
entender e conhecer todos eles. Ainda assim, está grávida! Bebês já me
parecem delicados o bastante, mas uma mulher com um bebê crescendo
dentro dela é mais assustador ainda.
— Você não deveria estar deitada, de repouso ou coisa parecida? —
sugiro, colocando várias sêrnikis de queijo no prato dela. — Sabe o que eu
acho? Que uma pessoa grávida precisa de descanso absoluto, de preferência
no hospital com a supervisão contínua de vários especialistas.
— Serena, é só uma suspeita. Eu passei mal algumas vezes, começou
no dia do casamento e pensei que fosse por causa da ansiedade. Não tive
coragem para conversar com o Ivan a respeito, porque ainda quero ter
certeza. Meu marido é perfeito, meu próprio coração encarnado em um ser
humano, eu o amo tanto que chega a doer. Mas, como qualquer Volkiov, ele
é um pouco… impulsivo, intenso e exagerado. Se eu disser que estou
suspeitando de uma gravidez, em uma hora ou menos ele var ter montado um
quarto completo para o suposto filho e aberto uma conta poupança para a
faculdade da criança.
— Mas se você não está se sentindo bem, é melhor que saibam o
quanto antes — insisto, desesperada com a expectativa de guardar esse
segredo por muito tempo.
Ela não faz menção de esperar pela dona da casa antes de começar a
comer. Eu enfrento um dilema de dois segundos sobre etiqueta até lembrar
que não faço a menor ideia sobre como funcionam as refeições na casa dessa
gente podre de rica. Começo a me servir de uma coisinha ou outra.
— Depois que confirmar, o que pretende fazer? — indago,
mordiscando sorrateiramente um pedaço da torta.
— Ivan não é minha maior preocupação, mas sim Iago. Você já
conversou com o meu filho? — pergunta como se isso explicasse tudo. Nego,
pensando na minha Luna sozinha com Annia. Será que ela se lembrou de
alimentar a filha hoje? — Digamos que Iago é um pouco literal demais. Ele
tem problemas com metáforas e figuras de linguagem de modo geral. Aquela
história da sementinha não vai funcionar.
— Mesmo assim, me contar isso não foi uma boa ideia — resmungo,
enquanto como o amontoado de comida que apareceu no meu prato de
repente.
Um grupo de vozes antecede a entrada de Vladimir, que está de volta
ao seu personagem favorito de homem de negócios com seu terno escuro. Um
par de luvas pretas que esconde suas mãos faz meu coração diminuir devagar.
Ele não quer que a família perceba.
Junto com ele, chegam também dois de seus irmãos. Roman e Ivan são
realmente atraentes e, assim como Vladimir, não perdem em nada no quesito
beleza. Ou Deus estava bem feliz quando resolveu inventar essa família ou o
pai deles era uma divindade! ¡Madrecita!
Eles se distribuem pela mesa sem se importar com a minha presença,
ou fingem não notar para que eu não fique constrangida. Roman é o único
que me olha descaradamente, solta uma gargalhada.
— Você está péssima, bebê! — diz.
Penso em comentar que ele também não parece estar em seus melhores
dias. Há olheiras sob seus olhos e uma roxidão na lateral da têmpora que,
tenho certeza, não estava lá na noite anterior.
Lara troca um olhar comigo ao som da palavra bebê que faz minha
língua coçar. Droga, é muita responsabilidade para a minha língua tagarela!
— Meu irmão disse que precisa de ajuda para ludibriar o Palliermo —
Roman continua. — Se tem uma coisa que eu gosto é ver italianos se
ferrando.
— Roman — Lara chama com uma voz severa. — Afinal de contas,
qual o seu problema com italianos?
Ele estreita os olhos, seu semblante transfigurando-se de sorridente e
brincalhão para algo muito, muito obscuro. Dura apenas um segundo, mas é
suficiente para aguçar a minha curiosidade.
Aí tem!
— Não é como se eu odiasse todos os italianos que existem no mundo,
apenas não tive sorte com os que conheci. Leonel Palliermo é um belo
exemplo. Já tinha ouvido rumores sobre a canalhice dele.
— Do que estão falando? — Ivan pergunta, inclinando-se para beijar o
rosto de Lara. Ele é atento a ela, os olhos acompanhando qualquer mínimo
movimento.
— Serena disse que Leonel tem o costume de assediar as funcionárias
— Vladimir explica, sem tocar na comida.
Não usei essas palavras, mas duvido que Vladimir tenha interpretado de
outra forma.
— Você tem um talento incrível para se envolver com gente que não
presta, bebê. — Roman aponta o garfo na minha direção e o cabelo dele se
movimenta para o lado, revelando que o machucado ocupa quase toda a
lateral do rosto.
— O que aconteceu com você? — pergunto, ele troca um olhar com
Vladimir que me deixa tensa. — Tem alguma relação com Maksim?
— Alguns imprevistos, nada com o que se preocupar.
— Roman está acostumado com esse tipo de coisa, Corazón —
Vladimir me tranquiliza, mas não consigo deixar de teorizar sobre o que
fizeram para retaliar Maksim.
Aquiesço, fingindo que entendo para não fazer outra cena na frente da
família dele. Mas não é tão simples impedir o medo de se alastrar, sobretudo
para alguém como eu. Quando ele chega gargalhando com seu dentes e garras
afiadas, meus pulmões se fecham, o coração dispara, a garganta fica seca.
— Podemos conversar agora? — peço diretamente para ele, necessitada
de esclarecimentos.
Acalme-se.
— Acabei de conversar com Andrei, tenho que resolver algumas coisas
na empresa — ele diz, mas não era esse o nosso combinado.
— Você disse que conversaríamos agora — teimo, incomodada. —
Está fugindo, é evidente. Quer evitar o assunto. Nesse caso, se você for
trabalhar, então eu irei também.
— Serena… — ele alerta.
O restante de nossos expectadores assiste com olhos arregalados.
— Chamou pelo nome é porque está bravo — Roman debocha, mas
Vladimir não lhe dá atenção. Tem os olhos fulminantes sobre mim.
— Tudo bem, eu ainda não tinha parado para refletir sobre a situação
de maneira geral, mas não posso deixar de trabalhar por causa de um idiota
de terno!
— Está me chamando de idiota de terno?
— Não! Não você, meu patrão. Embora você também seja um pouco.
Um lindo idiota de terno, bem sensual e tudo mais. Você me pediu para não ir
a lugar nenhum. Se eu tenho que ficar em casa, então você deve fazer o
mesmo.
— É diferente — declara, arrogante.
Hoje não.
— A mesma distância, lembra? — Faço menção à conversa que
tivemos no dia anterior e que culminou em nosso primeiro beijo. Se estamos
juntos, ele me deve a verdade tanto quanto eu a ele. — Nunca mais, nunca
menos.
Vladimir me olha. Olha, olha e olha.
Depois suspira, vencido.
Isso!
Serena um, Lord Vlad zero!
Seus familiares trocam olhares, descrentes que Vladimir tenha se
rendido. Mas não dizem uma palavra quando ele sai da sala sem dizer mais
nada, pisando forte e bufando igual um touro bravo.
Que temperamento!
— Isso foi… — Roman busca palavras, unindo as sobrancelhas e
arregalando os olhos. — Impressionante.
Sorrio, correndo na direção tomada por Vladimir, e o encontro subindo
as escadas. Estamos percorrendo caminhos delicados, é difícil para ele aceitar
a minha opinião e levar em conta o que eu quero, quando seu único impulso é
resolver os problemas sem se importar com as consequências. E é exatamente
por isso que tenho medo do que ele fez.
SERENA

— NÃO TEM FOTOS do seu pai em lugar nenhum — digo, puxando


assunto na tentativa de deixar o clima mais descontraído, mas só o faz ficar
mais irritado.
Vladimir bate a porta do quarto assim que entramos, sem responder, e
gira a chave na fechadura. Acho que se trata de um assunto proibido, mas
devo admitir que seu semblante sério e raivoso é tão atraente que nem ligo.
— Você fala, fala e fala. E quanto mais continua falando, mais eu tenho
vontade de ocupar a sua boquinha linda com outras coisas — ameaça,
grunhindo e me advertindo com um dedo apontado para o meu rosto.
Quero!
— Não é como se eu fosse negar — respondo, acalorada com o rumo
da conversa.
— Mesmo, Corazón? Não se importa com sua recuperação? —
Vladimir avança sobre mim, rápido e rasteiro como uma serpente,
enroscando-se ao meu redor e me hipnotizando com olhos sedutores e
intimidantes.
— Gostaria de ler os seus pensamentos — sussurro, inebriada com o
calor da respiração dele ao inclinar o rosto na curva meu pescoço.
— Corazón, estou tendo pensamentos horríveis nesse momento. — Ele
movimenta o polegar ao longo da minha mandíbula até pressionar a sinuosa
linha que divide meus lábios.
— Consigo lidar com pensamentos horríveis. Amo quando você me
chama assim.
— Você ama? — Um riso chistoso e masculino acaricia minha
clavícula enquanto segue firme na tarefa de me distrair. — Não devia usar
essa palavra com tanta facilidade.
— Não gosta? — murmuro sem eloquência, a ponta do seu dedo
rodeando o desenho da minha boca. Se o objetivo era afastar a conversa sobre
seu passado, está conseguindo com sucesso.
— Pelo contrário, Corazón, gosto demais. — Sinto quando afasta meus
lábios e introduz o indicador até tocar a extremidade da minha língua. — E é
exatamente esse o problema.
Não tenho a mínima noção sobre o que fazer, sentir, como me
comportar. Só tento conciliar a dor de tê-lo pressionado contra mim com o
prazer do seu dedo sendo introduzido sem piedade. Quer me ver mortinha.
— Você acha que sabe muitas coisas — sussurra. — Mas é ainda muito
jovem e inexperiente. Fala sobre sexo levianamente, se oferece para mim
levianamente e é uma péssima mentirosa.
Concordo com tudo o que ele está falando, sem me atentar às palavras.
Eu concordaria com qualquer coisa que dissesse agora. Resmungo um sim
ininteligível com os olhos fechados e percebo tarde demais que retira o dedo
da minha boca e o pousa em cima das minhas costelas.
Abro os olhos e encaro suas íris escurecidas.
— O que você vai…
A frase morre quando ele aperta — com pouquíssima força, vale dizer
— e arranca de mim um gemido lamurioso. Puta que pariu, espertinho
maldito!
— Pretendia me contar que estava doendo? — questiona, esfregando o
local dolorido. Mordo os lábios, constrangida. — Se não me contar as coisas,
como poderei saber o certo a fazer?
— Você também não está sendo totalmente sincero — interponho.
Dissoluto, Vladimir enrijece os ombros e liberta a fala cruel e
implacável do presidente que não aceita descer de seu posto.
— É sinceridade que você quer? — pergunta. — E se eu disser que a
sua sobrinha foi levada para um abrigo, e que eu estava indo resolver a
situação com a ajuda de Andrei? É sinceridade o suficiente para você,
Corazón?
Escuto as palavras. Elas entram no meu consciente, espalham-se por
toda a corrente sanguínea e rastejam para dentro do meu coração na forma de
sussurros lamentáveis. O que me entristece não é aquilo que está sendo dito,
mas a forma como soa melancólico nos lábios de Vladimir.
A última vez que ouvi esse tom impiedoso na voz de uma pessoa, foi
quando Nicolai me deixou para trás. No lugar da despedida, ele despejou
sobre mim a mesma merda filosófica de sempre.
— A vida é como um botão, Corazón — dissera. — A gente aperta e
aperta, e continua apertando sempre quando as coisas começam a dar
errado. O que a maioria das pessoas não sabe é que chega um momento em
que esse botão quebra, e aqueles erros que cometemos não podem mais ser
consertados.
Eu amava Nicolai, mesmo com sua conversa cheia de mistérios e
metáforas. Eu o amava. Acho que nunca tive a chance de dizer, de explicar
que meu carinho e respeito eram maiores do que a gratidão por ter me
salvado naquele dia, por ter chegado a tempo e arcado com as despesas de
todo o meu tratamento.
Por mais que o amor nem sempre baste, gostaria de saber se ele teria
desistido de tirar a própria vida caso eu tivesse confessado meus sentimentos,
se eu tivesse percebido que Nicolai também precisava de ajuda.
Aquele maldito!
Depois de tudo o que vivemos, dos ensinamentos passados e de se
tornar tão precioso para mim quanto foi o meu próprio pai, ele teve a audácia
de se transformar em um botão quebrado.
O meu botão quebrado, e isso é…
Isso é… imperdoável!
Não vou, em hipótese alguma, permitir que outra pessoa faça o mesmo,
que me deixe para trás, principalmente Vladimir.
Minhas costelas ainda ardem, a cabeça se liquefaz em busca de uma
compreensão que não chega. Luna, minha sobrinha, em um abrigo? Como
isso é possível?
— Não entendo — digo. Procuro alguma pista em seu semblante
severo, nas laterais dos olhos estreitos ou na mandíbula rígida, mas ele não
brincaria com uma coisa dessas. — O que você fez, Vladimir?
Como se eu tivesse proferido um xingamento baixo e maldoso, ele tira
suas mãos do meu corpo e tenta recuar um passo, porém, seguro seus pulsos
antes que se afaste e não me deixo intimidar. Ele provavelmente já tirou as
próprias conclusões e não se acha digno da minha compreensão.
— Denunciei Annia para a polícia — explica sem rodeios. — Ela foi
levada e Luna está agora em um abrigo provisório.
Ah…
Meus dedos afrouxam, mas não o suficiente para soltar. Seu medo é
compreensível. Somente uma pessoa que conhece os sentimentos que
mantém uma família unida conseguiria ter empatia o suficiente para temer
minha reação.
Se eu mesma não consigo entender as emoções que me dominam,
seguro tudo dentro do peito para que ele não interprete errado. Sua tentativa é
tão pura e explícita; a vontade de decifrar meu comportamento, o modo como
fixa os olhos nos meus sem piscar.
— Continue — peço cautelosamente.
— Eu não me arrependo — desconversa, vestido com a máscara da
indiferença.
— Continue! — repito um pouco mais alto. Vladimir realiza um
movimento circular com os braços e, em um segundo, inverte nossos papéis,
tornando-me a prisioneira e envolvendo meus pulsos com suas mãos firmes.
— Maksim foi atrás de você por minha causa. — Ele me puxa,
centímetro a centímetro, para mais perto. — Aquele delinquente tentou me
intimidar, Corazón, e esse tipo de coisa é inadmissível. Eu só precisava
mostrar quem tem o poder de verdade, colocá-lo em seu devido lugar.
— E onde, exatamente, entregar a minha sobrinha para a adoção se
encaixa nesse seu plano genial? — Não queria que as palavras soassem
ríspidas, mas soam.
— Luna era uma peça — explica como se fosse a coisa mais normal do
mundo. — E esse foi o único modo de garantir a segurança dela. Você sabe
tanto quanto eu que Annia não tinha condições de continuar cuidado daquela
criança. Andrei já está cuidando do caso, ela não vai ficar muito tempo
no abrigo — corrige a última palavra.
— Claro, e isso me deixa muito mais tranquila — ironizo, mesmo
acalentada por sua preocupação com Luna.
— É assim que as coisas funcionam: ou a gente assume o controle, ou
somos controlados. — Um sorriso glacial corta seu lindo rosto.
Vladimir me puxa e, não havendo mais espaço entre nós, sinto meu
corpo encostar no dele. Lanço um rápido olhar para sua mão despida da luva;
como se existisse um capetinha travesso murmurando péssimas ideias no meu
ouvido, não deixo de imaginar como seria delicioso ter esses longos dedos
roçando na minha pele sem a roupa toda para atrapalhar.
Balanço a cabeça, jogando para longe esse tipo de imagem tentadora.
Se ele pensa que vai conseguir me desconcentrar por causa do seu charme
magnífico, dos músculos saltando por baixo da camisa e do colarinho aberto
expondo o início de um peitoral digno das telinhas de cinema, está
absolutamente certo!
Alguém tenha misericórdia, não lembro nem do que a gente estava
conversando. Controle? Isso mesmo… Estávamos falando sobre controle,
algo que me falta em largas escalas.
— Não faz sentido — pondero. Reclino a cabeça um pouco mais para
que a proximidade entre nossos rostos se intensifique. Compelido pelo meu
desejo, ele se inclina para frente, tocando com o nariz no meu. — Maksim
não permitiria que levassem Luna com tanta facilidade. O que não está me
contando, Lord Vlad?
A resposta demora a chegar e nossas respirações se confundem. Os
sons do exterior podem ter extinguido, porque simplesmente não escuto nada
além do meu próprio coração pulsando no centro do peito. Vladimir solta
meus pulsos e me embala pela cintura. Por mais que estejamos presos em
uma espécie de confronto, não deixamos de nos tocar e mostrar ao outro que
continuamos aqui.
— Camillo — diz. — Depois do que você contou, ficou claro que os
dois têm negócios inacabados. Por algum motivo, seu irmão é a prioridade de
Maksim. — Seus braços tencionam, as mãos espalmadas nas minhas costas
bloqueiam qualquer avanço meu. — Assim como ele ameaçou a minha
prioridade, apenas retribuí o favor e ameacei entregar Camillo para os
inimigos de Maksim caso não cooperasse.
Foi ruim.
A surpresa comanda meu corpo e tento me livrar do abraço, invadida
por uma sensação claustrofóbica que não sentia há tempos, mas ele não
permite.
— Por quê? — É tudo o que consigo falar.
— Era o único modo de manter você em segurança — sussurra com
aquele timbre rouco que costuma roubar o meu oxigênio. — Com a
localização de Camillo, qualquer pessoa pode usar isso para atrair Maksim.
Vladimir é mais perigoso do que eu imaginava. Aquele plano de
aguentar firme quando nossa relação acabar parece uma piada agora. Ele se
arriscou, sacrificou um pouquinho da própria bondade para garantir a minha
segurança, a de Luna.
Esse sujeito atormentado se preocupou mais com nós duas do que eu
mesma.
Já sabia que não seria um desfecho misericordioso quando procurei por
ajuda. Não tenho o direito de contestar ou me surpreender com suas decisões.
— Se você sabe onde meu irmão está, por que nunca me contou? —
Levo minhas mãos à sua camisa, levemente tonta com o excesso de
informações.
— Não temos um endereço exato, apenas algumas possibilidades
levantadas enquanto investigávamos o seu paradeiro. Mas suspeitas e pistas
ainda têm mais valor que nada.
Vladimir começa a me apertar, como se tivesse medo de eu fazer
alguma besteira — uma pessoa normal surtaria, no mínimo. Ainda bem que
passei longe da fila da normalidade e minha maior preocupação no momento
é mostrar que não pretendo fugir até que me mande embora.
Porque, sim, é isso o que ele espera que eu faça.
Estamos sozinhos em seu quarto, dois completos desconhecidos dentro
de um aposento luxuoso muito maior do que o meu apartamento. Nossas
mãos e braços se cruzam, iniciando uma sessão de carícias. Ele vasculha
meus antebraços, pressiona os ombros e volta a descer rumo aos meus
quadris. Eu me interesso pela textura dos seus cabelos e as ondas escuras
desalinham quando afundo minhas mãos entre os fios.
— Me desculpe — murmuro, estico meus pés em busca da sua boca.
— Você não está ouvindo o que estou dizendo? — questiona,
encostando os lábios nos meus sem concretizar o beijo.
— Minha sobrinha é um bebê, Vladimir — justifico, girando a cabeça
de um lado para o outro. A promessa de uma ardência acompanha nossa
conversa enquanto ansiamos por mais. — Uma criança que conheci há pouco
mais de uma semana. Sei que se importa com ela, a conhece há mais tempo
do que eu. O que pensou que eu fosse fazer? Gritar e chorar? Isso não
resolveria a situação. Procurei por você porque sabia que faria o que fosse
preciso, assumi os riscos e aceito as responsabilidades.
— Você queria mesmo o monstro — afirma um tanto surpreso e, eu
diria, impressionado.
Atraído.
— Talvez — admito. — Mas não tenho certeza de que foi a escolha
certa. Não gosto de ver você machucado… e nem triste.
Estamos começando a nos perder, mas sei que estou deixando passar
algo. Tenho uma vaga lembrança da disposição dos móveis, a distância entre
nós e a grande cama cujos lençóis azuis continuam desarrumados. Dormi na
cama dele, respirei o seu perfume durante toda a noite e arriscaria dizer que
foi uma das melhores da minha vida.
Há também um conjunto de poltronas perto das janelas. As cortinas
escuras deixam entrever uma parte do céu, a ponta verde das folhas no alto
das árvores balançando por causa de alguma brisa que passeia no jardim.
— Isso não é nada perto da satisfação de humilhar Maksim na frente
dos subordinados dele.
Congelo, terminando de entender que loucura esse homem fez. Meu
estômago revira com a ânsia de expelir todo aquele maravilhoso café da
manhã. Seria um desperdício. Vladimir foi até o distrito sozinho, confrontou
Maksim sem o menor escrúpulo. É claro que haveria capangas, homens
perigosos que poderiam ter atentado contra a vida dele.
Vladimir poderia estar morto e a culpa seria minha.
— Me solte — ordeno e ele o faz, notando minha fúria e revolta.
Preciso canalizar o medo, não deixar que se infiltre e crie raízes.
Ando dois passos para trás e, antes que ele tenha tempo para raciocinar,
flexiono os dedos e golpeio seu rosto com um tapa estalado que reverbera no
interior do quarto como uma nota de desespero. Minha mão arde, a lateral do
rosto dele se tinge com uma marca rosada e quase imperceptível. Vladimir
fecha os olhos, as mãos com os punhos tremendo.
— Isso não é sobre poder! — Empurro seu peito, irada que não
se importe. — E se você tivesse morrido? Camillo sabe se cuidar, não estou
preocupada com ele. E Annia? Posso aceitar a sua escolha com relação à
denúncia, pensei em fazer o mesmo diversas vezes! Mas você é um
empresário, Vladimir. — Aponto-lhe o dedo indicador, como fez comigo no
início da discussão, para atribuir maior ênfase ao dizer: — Não tem mais o
direito de criticar a minha falta de autopreservação depois de se enfiar em um
buraco recheado com bandidos prontos para transformar você em peneira!
— Eu não corria riscos. — Cruzando os braços sobre o peito, ele não
disfarça o ego ferido. — Ainda não entendeu quem eu sou, Serena. Afinal,
tem alguma noção do dinheiro que a minha família possui? Acha que nunca
precisei lidar com criminosos antes? Esse é o seu problema, a sua inocência
me enerva.
— Como você pode ter tanta certeza? — Imito sua postura sem
demonstrar desespero, cruzando os braços também.
Talvez bater nele tenha sido demais. La puta mierda, bati nele outra
vez. Isso deve ser crime em algum país no mundo.
Com a paciência esgotada, Vladimir joga as mãos para o alto.
— O fato de serem criminosos não significa que são burros também.
Ao contrário de você, que não conseguiu ainda entender onde se meteu, eles
sabem quem eu sou e quais seriam os transtornos se tentassem qualquer coisa
contra mim. — Vladimir vai até a cama e se senta com as pernas abertas,
apoiando os braços no colchão. — Além disso, eu só precisava ter certeza de
que nada mais vai acontecer com você novamente por minha causa.
— Sua causa? Vladimir, você é idiota mesmo ou faz de conta? Sabe o
que eu provavelmente faria se não tivesse conhecido você e meu irmão
aparecesse com uma dívida de trinta mil dólares? Eu afundaria! — Em um
pico de loucura, retiro a minha blusa; a blusa dele que eu sabidamente
surrupiei. O movimento brusco de esticar os braços para o alto desencadeia
uma onda de dor e me contorço para não chorar. Jogo o tecido para o lado. —
Você acha que eles me matariam rapidamente? Não existe misericórdia
naquele lugar. Isso aqui não é nada, Vladimir, nada comparado com o que
aconteceria comigo se você não tivesse aparecido na minha vida.
Imediatamente seu rosto endurece, as linhas que delimitam a mandíbula
e o arco das sobrancelhas retesam e capto a tensão emanando do seu corpo.
Olhando para baixo, enxergo o contorno dos meus seios, a renda branca das
minhas peças íntimas. Um pouco mais para baixo, a mancha em tons de roxo
e verde claro parte das costelas e viaja até a barriga, alcançando meu umbigo.
— Corazón — diz, ou chama, ou roga.
Ele não tira os olhos da minha barriga e, assim que acabo com a nossa
distância, sinto suas mãos quentes pousarem na minha cintura. A pele dele
contra a minha, os olhos contemplativos e, em igual medida, enraivecidos
fazem lembrar como somos loucos juntos.
Não se trata de sermos completos opostos, mas de complementarmos
aquilo que falta no outro. Se Vladimir quer ser o monstro, então aceito me
tornar a escuridão onde ele pode habitar.
— De todas as merdas perigosas que você fez, Corazón, se envolver
comigo pode ter sido a pior. — Vladimir aproxima o rosto da minha barriga,
a respiração cálida faz meu corpo se arrepiar. — Se envolver comigo, aceitar
quem eu sou e ainda me bater? Acho que precisa começar a entender com o
que está lidando.
Espero por um beijo, uma carícia inofensiva, mas é a ponta da língua
dele, tentadora e úmida, que me puxa para o fundo oceânico dos seus olhos.
— Nesse caso — arfo, sentindo a frieza percorrer a pele ao redor do
meu umbigo —, ainda bem que amo o perigo.
— Você ama, Corazón? — Ele ri com o meu uso descuidado do verbo
amar, sem perceber como fica lindo dizendo essa palavra.
Não tenho ideia de onde pretende chegar com a sedução, mas eu é que
não vou jogar água no fogo! Seria como dar um tiro no próprio pé, e
realmente amo os meus pezinhos, assim como todo o resto do corpo. Ah, sim,
amo o meu corpo mais do que nunca agora, porque é nele que as mãos de
Vladimir se deliciam.
Seus dedos arranham o osso pontiagudo do meu quadril, ambas as mãos
me segurando com empenho, possessivas e habilidosas. Vladimir consegue
transformar o ambiente com sua personalidade, a inflexão na voz condensa o
oxigênio e meus pulmões encontram dificuldades para inspirar e expirar na
ordem correta.
— Não respondeu à minha pergunta.
Doido, e por acaso eu pareço em condições de responder qualquer
coisa? Os assuntos se perderam, sufocados por uma necessidade irrefreável.
Mais do que esclarecer as porcarias com o distrito e aquela casa assombrada,
queremos evidenciar um ao outro.
— Quero que seja você — revelo, fazendo referência à minha
virgindade. — Imaginar que algo muito ruim poderia ter acontecido me faz
ter vontade de te estapear outra vez, porque é muito tarde para voltar atrás e
fingir que não me importo. Você me confunde demais, mas quero me
entregar como nunca desejei com nenhum outro. Não que tenham existido
muitos, claro, mas gostaria que soubesse.
Abastecido como se a minha revelação fosse uma fonte miraculosa de
combustível, Vladimir expele um grunhido e abocanha o contorno da minha
pélvis, demarcando o local com uma mordida forte. A mistura resultante da
soma entre a dor e o prazer é agridoce e inédita, alcança o fundo dos meus
olhos e conjura a vontade de chorar à frente de um prazer utópico, viciante
como uma substância ilícita.
Seguro seus ombros para não cair e minhas pernas se rendem,
incapazes de preservar a sustentação. O presidente metido, arrogante e
controlador não disfarça o contentamento ao me dominar com seu feitiço, e
não o recrimino pelo excesso de confiança.
O mundo pertence aos poderosos, não aos humildes.
— Escute com muita atenção o que vou falar agora, Serena, para que
não cause nenhum problema com relação a isso. — Vladimir conduz as duas
palmas abertas pelas minhas coxas; dita todas as regras e eu, nada boba,
permito sem contestações. Ele me acomoda em seu colo, com as pernas para
o lado, ligeiramente abertas. — Nem pense em oferecer para outro aquilo que
já considero meu.
Sim, sim…
Arrogante e eficiente, Vladimir é o acúmulo de todos os pecados que
tenho para pagar, a minha completa perdição. Ele puxa o laço que mantém a
calça de moletom presa na minha cintura, devagar, muito devagar, como um
torturador nato.
Meus olhos são abduzidos pela impertinência, deslumbrados com a
expectativa do seu avanço. Como um profissional na arte de levar mocinhas
inocentes como eu às estrelas, ele projeta a mão inteira dentro da minha
roupa, acariciando o tecido que protege a minha nudez.
São nesses momentos que eu preferiria estar livre como vim ao mundo.
A pessoa que inventou essa coisa de andar vestido não tinha absolutamente
nada para fazer da vida.
De qualquer forma, é maravilho que se aventure no meu território
inexplorado, finalmente!
É bom, muito bom.
Como se caminhasse entre notas musicais espalhadas no meio de uma
partitura, com muitos graves e agudos, Vladimir entra em sincronia com a
minha melodia corporal. Mesmo sem dizer nada, seus olhos nebulosos
analisam meu rosto em busca de permissões.
— Vladimir — murmuro, parada como uma estátua, sem entender
muito bem que tipo de reação ele espera; no momento, só quero que continue,
que siga em frente, que me corrompa sem se importar com o quanto isso pode
me quebrar.
Contanto que me quebre no bom sentido, o que vier é lucro!
Minha completa ignorância deve lhe parecer um banquete. O líder
viciado em poder, com uma pobre coitada totalmente entregue aos seus
caprichos. Mas o que aquece meu coração, no entanto, é a certeza de que ele
não faria nada sem o meu consentimento. Isso me coloca, inevitavelmente, no
controle.
Ele pressiona a região entre as minhas pernas. Contorço-me no colo de
Vladimir e mordo os lábios para que a casa inteira não descubra o que
estamos fazendo.
— Algum outro homem já tocou você dessa forma?
Fico tentada a mentir para que não fique se achando demais — oi,
capetinha —, mas a verdade se projeta antes que eu tenha tempo para pensar
em algo sarcástico e inteligente.
— Não.
Arqueia uma sobrancelha, surpreso. Eu disse que era santa, penso. De
corpo, pelo menos, porque a mente está um brejo. Vladimir, com cuidado e
destreza impressionantes, acomoda meu corpo sobre o colchão, inclinando-se
sobre mim com um interesse particular na terça parte exposta dos meus seios.
Os dedos iniciam movimentos circulares, de um lado para o outro, um
círculo, dois, três; eu poderia gritar um viva para a geometria, que nunca
antes se provou tão eficiente.
— Algum outro já fez você se sentir tão bem? — Apoiado sobre um
cotovelo, Vladimir continua seu trabalho, afastando minhas pernas um pouco
mais para o lado. Perco-me no tom cerúleo brincando em suas íris, a atenção
reverenciosa com que assiste enquanto enlouqueço.
Minhas próprias mãos desfalecem acima da minha cabeça, a dor nas
costelas já anestesiada pela luxúria. Em outro século, talvez minha entrega
fosse confundida com vulgaridade, e me apiedo de todas as mulheres que se
privam de experiências assim por medo do julgamento alheio.
— Nunca, esse foi o máximo de aventura que meu corpo já recebeu de
outra pessoa que não fosse eu mesma, Lord Vlad. — Ele aperta um ponto
mais sensível e seu nome ecoa como um gemido.
— Porra — reclama, a voz soando como um espelho dos meus desejos.
— Em que tipo de caverna estava escondida esse tempo todo?
Uma bem escura.
— Vlad, se continuar fazendo isso…
— Quietinha, Corazón. — Ele assopra minha orelha, um calor
excruciante irradia da fricção que executa lá embaixo.
— Malvado idiota — resmungo, embriagada com a sensação que
começa pulsar em todos os polos do meu corpo.
É muito diferente de fazer isso sozinha, e infinitamente melhor. O mais
assustador, no entanto, é descobrir que Vladimir não precisa mais do que os
dedos para me levar ao limite. Ele sequer me tocou de verdade!
O sexo com esse homem deve ser mortífero. Prevejo minha lápide:
péssima filha, péssima irmã, morreu de tesão.
¡Puta madre!
— Lord Vlad — gemo na tentativa de que acabe com o meu suplício.
— Agora, Corazón — ordena, intensificando, e pressionando, e
matando meus neurônios.
O tsunami de sensações arrasa meu corpo. Vladimir me beija, devora e
se apodera do gemido que eu gritaria por causa da explosão de prazeres,
descobertas e paixões que se eternizam. Ele continua movendo a mão cada
vez mais devagar, sempre me calando com a boca selada na minha, nossas
respirações arfantes e aceleradas totalmente dessincronizadas.
Eu me sinto parte do seu caos, da sua bagunça e é tão… certo.
— Isso é tudo por hoje, Corazón — diz e minha cara de decepção o faz
gargalhar. — Não adianta me olhar assim. — Vladimir deixa um rastro de
beijos que parte da minha bochecha, passa pelo pescoço, desliza no caminho
entre meus seios e finda no lugar onde a mancha causada pelo chute daquele
marginal se destaca mais forte. — Preciso que esteja recuperada para mais.
— Eu me sinto perfeitamente bem — reclamo, virando de lado na cama
para aproveitar um pouquinho mais da sua companhia.
— De nada — diz o maldito convencido. Arqueio uma sobrancelha e
ele dá de ombros. — Acredite, foi mais difícil para mim do que para você.
Ah, claro.
— Quando?
— Quando estiver melhor, eu disse. — Ele volta a rir. — Preciso ir.
Andrei está me esperando e odeio me atrasar.
— Ele vai mesmo resolver tudo? — questiono. Vladimir se levanta e
vai para o banheiro.
— Andrei é o melhor — diz acima do barulho da água, mas meu lado
pirado fica com um pé atrás.
Quando volta, a camisa está alinhada e o cabelo brilhante como se nada
tivesse acontecido. Prefiro nem me olhar no espelho durante alguns séculos.
Não com a cara toda cagada, um hematoma nada atraente no meio do nariz e
o semblante de quem foi atropelada por um caminhão — no caso, pela
transportadora Lord Vlad de entretenimento e turismo.
Que merda eu estou pensando?
— Tudo bem — digo, economizando palavras para não falar besteira.
Vladimir me olha — o olhar predatório substituído por um arrogante, e
tão logo será apenas o presidente.
— Se eu sair por aquela porta, quais as chances de você se enfiar em
algum problema até eu voltar?
— Altas! — respondo. Se é brincadeira ou verdade, nunca saberemos.
Jogo-me para fora da cama, pego seu terno pousado sobre a poltrona e
abro para que coloque os dois braços.
— Serena… — adverte.
— Fica tranquilo, vampirão, não vou me pendurar na sacada da sua
mansão, nem sair correndo na frente de carros ou me encontrar com
criminosos armados. Considerando que você é o maior perigo para o bom
funcionamento da minha sanidade mental, podemos concluir que estarei
duplamente bem.

***

Que ela não tenha assassinado ninguém, amém!


Procuro por Malévola na entrada, mas não encontro ninguém à vista.
Confiro o escritório e a sala de refeições, porém, estão todas igualmente
vazias. Na cozinha, desço pela porta anexa que leva à garagem e, por sorte,
vejo Roman abaixado na frente de uma moto com várias ferramentas
espalhadas pelo chão.
Ele está com as mãos sujas, uma camisa aberta e manchada com graxa
preta. Seus cabelos são lisos, mais claros que os de Vladimir e escondem as
pontas das suas orelhas.
Ao perceber minha chegada, Roman me analisa de cima a baixo com
um sorriso delinquente e descarado que combina com ele. Mas não consigo
retribuir com o mesmo entusiasmo. Vladimir esqueceu de explicar essa parte,
mas tenho certeza que seu irmão também se meteu em problemas depois do
que Maksim fez comigo.
— Isso foi por minha causa? — pergunto, referindo-me ao hematoma
em seu rosto. — Já podemos formar uma banda, eu, você e Vladimir, os
machucados.
— Meu irmão se machucou? — Ele solta uma chave inglesa no chão,
se levanta e coloca as mãos nos quadris, um tanto ofensivo.
Merda, eu e minha boca grande!
— Nada muito grave — explico sem detalhes, dando de ombros para
tornar essa notícia o mais insignificante possível. Repito a pergunta inicial
para não lhe dar a oportunidade de insistir: — Foi por minha causa que se
machucou?
— Não. — Roman vai até a moto e se recosta no assento, retira um
maço de cigarros do bolso da camisa e seleciona um, prendendo-o entre os
lábios antes de acender. — Por causa do seu irmão idiota? Sim. Vladimir já
explicou a situação?
Aceno positivamente, embora tenhamos desviado bastante das
explicações mais profundas, como, por exemplo, o que vai acontecer com
Annia na prisão e por quanto tempo ela ficará presa.
— Já sei que utilizaram Camillo para chantagear Maksim.
— Estou impressionado. — Ele assopra para cima, a claridade vinda
das portas de ferro erguidas na saída faz a fumaça cintilar. — Minha família
toda está, na verdade. Vladimir não costuma agir assim, ele não dá
satisfações sobre o que faz ou deixa de fazer.
Faço uma revisão mental de todos os meus encontros com Vladimir e
percebo que, na grande maioria, sempre foi muito falante. Tudo bem que na
maior parte para me repreender por alguma merda que eu tivesse feito, mas
até quando nos beijamos em meu trabalho ele foi bastante comunicativo.
É como se existissem dois homens, um que não se importa e outro que
faz de tudo para manter a pose de malvadão.
— Seu irmão é um sujeito muito interessante.
— Interessante? — brinca, ironizando. — Se uma mulher me chamasse
de interessante, eu ficaria imensamente decepcionado. Lindo, gostoso, o
melhor sexo de suas vidas, são elogios mais eficazes.
— Seu irmão é incrível, lindo e bem gostoso. Sobre o sexo, ainda não
posso opinar.
— Virgens. — Seus olhos reviram, como se fosse uma ofensa ser
virgem.
Sento-me no último degrau da escada. Roman traga em silêncio,
rodeado por dezenas de carros luxuosos. Sobre seu peito, os dois lobos
tatuados mordem um ao outro; eles parecem tristes.
— Doeu?
— Eles ficaram piores,
Os inimigos de Maksim. Então já adiantaram o assunto sobre o
paradeiro de Camillo. Vladimir estava mesmo determinado a tudo.
— Eu estava falando da tatuagem — explico, incomodada com a trama
e o fato de não conhecer nenhum deles. — Quero fazer uma, algum dia.
Tenho uma lista de coisas que eu pretendo fazer antes de morrer e, agora que
a hora final foi adiada, posso adicionar mais itens.
— Quando quiser — oferece. Deixa o cigarro consumido pela metade
cair no chão, a brasa queimando lentamente.
— Mesmo?
— Considerando o seu histórico com desastres, eu estaria fazendo um
favor para humanidade. — Roman é diferente dos outros, algo em sua
personalidade, talvez. Eu não saberia dizer. — Assim evitamos que se enfie
em alguma espelunca cheia de doenças.
— Em minha defesa, esse título é um tanto quanto injusto. Mas
agradeço por sua piedade com uma pobre virgem burra — ironizo. — Por
que está me ajudando, Roman? Eu até entendo seu irmão, mas você…
Ele pisa no cigarro, a brasa apaga e somente a fumaça espiralando
entrega que um dia existiu.
— Você me lembra uma pessoa — conta e passa a mão nos cabelos, o
excesso de suor fazendo com que fixem para trás.
— Namorada?
— Não, não exatamente. Alguém que conheci há muito tempo em uma
situação complicada. Tentei bancar o herói, mas descobri que esse papel não
serve para mim.
— E qual era o nome dela? — pergunto, mesmo correndo o risco de
receber um xingamento.
Porém, Roman parece estar dentro de um transe, os olhos perdidos
sobre o cigarro destruído ao lado da parafusadeira.
— Lis — conta.
— Lis, só Lis? — Nome estranho. — Estrangeira?
— É tudo o que eu sei sobre ela. — Roman balança a cabeça,
recobrando a consciência de que estou aqui. — Você pergunta demais. —
Cerra os olhos. — O que você tem?
Ótimo, mais um.
— Vladimir costuma perguntar quase a mesma coisa. O que quer dizer?
Começando a recolher sua bagunça de ferramentas, parafusos e brocas,
Roman não volta a me olhar quando responde:
— É muito fácil conversar com você — explica —, como se fosse
natural confessar segredos.
— Sem segredos! — determino, ficando de pé. — Péssima ideia. Nada
de segredos. Já basta a sua cunhada!
— Lara? — Ele joga tudo dentro de uma caixa, franze o cenho. —
Nossa Lara não tem mais segredos, tem? O que aquela espertinha está
aprontando?
— Nada! — Minha garganta treme com um riso nervoso. —
Absolutamente nada, nadinha. Nunca nem ouvi falar! Quem é Lara, afinal de
contas? Essa coisa de me contar segredos é absurda, não existe vantagem
alguma em tal prática. Aliás, por que qualquer pessoa no mundo teria vontade
de confessar seus segredos para os outros?
— Alguns dizem que a confissão leva à redenção — arrisca, mas seu
tom também confirma a falta de concordância nessa justificativa.
— E o que você acha?
— Uma merda do caralho — responde, vindo da minha direção. Ao
passar por mim, ele se inclina minimamente para perto do meu ouvido e
sussurra: — Ou seja, chega de perguntas, bebê.
Dito isso, Roman sobe as escadas correndo.
Sozinha, uma pontada ameaça se instalar no meu peito. Quando as
coisas estão ruins, podem sempre piorar, eu consigo me adaptar, estou
acostumada. Mas nunca vivenciei nada tão bom como com Vladimir,
independente das condições sobre o clube, Luna ou Camillo.
E os segredos… eles são ótimos para ferrar com tudo.
De fato, uma merda do caralho.
VLADIMIR

— ELA FOI TRANSFERIDA para um abrigo especializado em crianças


cujos pais se encontram em situação de cárcere — diz Andrei, que parece não
ter dormido nada na última noite, assim como eu. — Dimitrio ajudou com a
autorização.
Meu corpo reclama com a exaustão ganhando espaço, mas me obrigo a
continuar desperto, escutando todas as informações ágeis de Andrei. Eu
deveria ter imaginado que ele não perderia a chance de intervir o quanto antes
para amenizar o estrago que causei na vida de Luna e Serena.
Andrei sempre foi o melhor Volkiov.
Jogo-me sobre uma das poltronas de espera na sala do meu irmão, e a
vontade de fechar os olhos para dormir faz minhas pálpebras doerem. Dos
quatro escritórios, esse é o que mais reflete a personalidade de seu ocupante:
os móveis são brancos, macios, e a parede de vidro projeta luz sobre todas as
superfícies; Andrei gosta das coisas clínicas, límpidas e transparentes.
— O que você sabe sobre o lugar? — pergunto, preocupado com a
segurança de Luna.
— Bem pouco. É uma instituição pequena, as crianças não costumam
ficar muito tempo, apenas o suficiente para um familiar requerer a custódia
integral ou temporária. Quando isso não acontece, elas são realocadas para
algum orfanato.
Andrei coloca os braços atrás da cabeça, seus olhos estão vermelhos
demais por causa do cansaço; ou será possível que tenha chorado antes da
minha chegada?
Para me chamar na empresa tão depressa, principalmente depois de
tudo o que aconteceu, é porque tem uma opinião formada; não será
complacente.
— O que está incomodando você, Andrei?
O som que emite poderia facilmente ser uma risada, mas eu o conheço
o suficiente para captar o deboche, a descrença.
— Sempre te admirei, Vladimir. A sua determinação, a
responsabilidade com o nosso trabalho. — Fazendo uma pausa, Andrei se
inclina sobre a mesa com os braços pousados sobre a superfície de vidro.
Comprime os lábios, confiante. — Em outros tempos, eu jamais contestaria
suas escolhas, mas não consigo entender o que está pensando. Quero
acreditar que isso não é apenas mais um dos seus jogos de poder.
Demoro a processar. Meus irmãos dificilmente me confrontam, mas
Andrei tem o coração bom demais para ignorar uma pessoa como Serena,
maltratada pela vida e à margem da sorte. Porém, ela deixou de ser um
desafio. Não vi como ou quando isso aconteceu, mas não se trata de um jogo.
Serena é… mais.
— Nós estamos juntos — digo o que já havia admitido para minha
família.
Ainda sinto o cheiro dela, escuto os gemidos ecoados contra minha
boca. Não estava nos planos me envolver emocionalmente, só queria
satisfazer aquele instinto rudimentar e egoísta que sempre vem à tona quando
decido me apropriar de algo.
Mas agora é tudo uma confusão e não sei lidar com esse sentimento.
Estou acostumado com as certezas, a sempre saber para onde o próximo
passo está me levando, mas não pensei duas vezes antes de me arriscar por
ela. Não posso mais voltar agora, eu a quero demais.
— E o que isso significa? Vocês vão casar e ter dez filhos? — ironiza
Andrei. — Porque, pelo que eu me lembre, há poucos dias estava admitindo,
nessa mesma empresa, que não se importava em assumir um compromisso
com Elena Kokorina. O que o avô dela fez para nos proteger não vai passar
sem uma consequência.
— Serena sabe que nossa relação é limitada — explico, tentando me
convencer que isso é o suficiente para nós dois. Mesmo não possuindo uma
solução ainda, sou incapaz de deixar Serena livre. — Ela não entrou nisso às
cegas.
Andrei reprova, sendo o intrometido de sempre. É mais forte do que
ele, eu entendo, mas essa personalidade justiceira às vezes me tira do sério.
Não ter dormido também não me ajuda a manter a calma.
— Ela é sozinha, Vladimir. Não tem ninguém, e você acaba de jogar
uma criança nas costas dela. Serena quase não consegue se sustentar, imagine
agora com um bebê?
O rosto de Luna se forma na minha mente, uma bolinha cor-de-rosa
com cabelos pretos e olhos escuros como o fundo do oceano. Condenei
muitas pessoas essa noite, mas não me arrependo nem por um segundo.
Desde a primeira vez que vi aquela criança, sentia que precisava fazer alguma
coisa. O estopim chegaria mais cedo ou mais tarde, com ou sem Serena.
— O que está feito, está feito. Vou ajudar no que puder — decido. —
Ela vai receber um bom dinheiro pelo terreno, não pretendo deixar nenhuma
das duas desamparadas.
— Como se dinheiro fosse tudo! E quando você se cansar dela? E
quando estiver em cima do altar prometendo amor eterno a outra mulher? —
insiste, movimentando os braços enquanto me metralha com todas essas
questões.
O que deu nele?
— Serena é problema meu! — determino. Fico de pé e caminho para
perto da parede transparente cuja vista compreende toda a parte oeste do
Kremlin e seus arredores.
De costas para Andrei, não consigo ver suas reações, mas capto com o
canto dos olhos quando ele também se levanta e abre uma gaveta em sua
mesa de trabalho. Escuto o barulho de algo sendo arrastado, uma folha
farfalhando, preenchendo o silêncio.
— Você sabe que não vai conseguir nos afastar para sempre — diz em
tom brando, ligeiramente triste. — E não espere que fiquemos calados sobre
Serena, não somos assim. Desde Lara…
— Lara e Serena são casos diferentes — corto, virando-me com as
mãos cruzadas atrás do corpo. — Lara sempre fez parte de nossa família de
alguma forma.
— Erramos com ela — explica, circunda a mesa com uma folha presa
na mão direita. — E espero que não erremos com Serena também. Você pode
continuar mentindo, mas quanto mais tempo ela ficar na nossa casa, mais
vamos nos importar.
Meu irmão está certo, claro. Andrei está sempre certo. Se existe uma
pessoa no mundo de quem eu aceitaria um conselho, esse seria meu jovem
irmão. Entretanto, admitir sua ajuda seria como aceitar que estou perdido
com relação ao que farei em seguida, seja com Serena ou todo o resto.
— Quer falar sobre mentiras? — dispenso a intromissão de Andrei com
outro assunto. — Por que não começa contando o que está acontecendo entre
você e a sua namorada? Ela cortou relações completamente com nossa
família.
— Evgênia não vem ao caso — diz, o tom amigável desaparecendo. —
Olha, você veio para resolvermos o caso da sobrinha de Serena. Dimitrio vai
me ajudar a incluir Annia em um programa de proteção a testemunhas até
definirmos quais órgãos acionar depois que comprarmos o terreno, talvez
assim ela fique protegida por algum tempo. Você tem alguma objeção? —
Não concordo ou discordo, a verdade é que não me importo mesmo com
Annia. — Se é assim que você quer resolver as coisas — diz, negando com a
cabeça —, acho melhor ficar com isso.
— Do que se trata? — pergunto, alcançando os papéis. São exames
clínicos, datados de anos antes.
— Há algumas semanas, você me enviou uma mensagem pedindo que
tentasse levantar a ficha médica de Serena Fajardo, quando ainda não
sabíamos quem ela era. Bem, não é o que esperávamos.
Eu havia me esquecido, foi no dia em que eu e Serena nos encontramos
acidentalmente no quarto de hotel há muitas semanas. Meu irmão pode salvar
quantas pessoas ele quiser, Andrei é sempre o salvador dos fracos e
necessitados. Mas o papel em minhas mãos, os dados, exames, as variações
nas substâncias sanguíneas, não entendo nada disso, exceto o diagnóstico no
final da página.
— Overdose — leio, completamente perdido. — Ela era… viciada?
— Não, Vladimir. — Andrei esboça condolência, por Serena e talvez
por mim também. — Ela tentou se matar.
Ela tentou…
Se matar?
Serena?
Não, não pode ser…
Serena é forte. É meu coração — minha Corazón. Isso não faz nenhum
sentido. Jogo a folha sobre a mesa, nauseado com seu conteúdo incoerente.
— Deve ser outra pessoa — decido, mas o nome e idade no documento
discordam de mim. Meus dedos tremem, contaminados por algum veneno
que residia naquelas informações.
— Você devia falar com ela — sugere Andrei. — Esse hospital é caro,
não atendem por planos, e Serena ficou internada por vários dias.
Ah, eu vou, com certeza vou. Aquela mente engenhosa de Serena vai
ter que me explicar muito bem essa história, porque não me lembro de ter
incluído em sua narrativa alguma coisa a respeito de uma depressão, ou
qualquer que tenham sido seus motivos para tomar uma atitude como essa.
A mulher que estava há poucas horas se contorcendo na minha cama,
rendida, inocente e perfeita, tentou tirar a própria vida um dia. Ela poderia
estar morta agora, e eu nunca teria conhecido seu sorriso, a petulância, sua
ousadia ou a falta de limites.
Entendo a preocupação de Andrei melhor do que antes.
— Obrigado, Andrei.
— Não nos afaste, Vlad. Eu sei que você não gosta de falar sobre isso,
mas, de vez em quando, olho para você e lembro do nosso pai. Eu era um
adolescente quando aconteceu, não tenho tantas lembranças assim, mas me
lembro como ele nos afastou. Você fala como ele, está agindo como ele
também. Não nos afaste — repete.
— Por que está falando nisso agora? — pergunto, tenso. Preparo-me
para ir embora, de repente indisposto e cansado demais para lidar com esse
assunto agora, querendo estar com Serena, conferir se está bem e que aquele
diagnóstico não significa nada.
— Porque você era outra pessoa antes de nosso pai morrer. E é muito
bom ver que, pelo menos perto da Serena, você volta a parecer consigo
mesmo, com o irmão mais velho que me acobertava quando eu fazia alguma
merda. Acredito em recomeços, e você merece um; talvez Serena seja o seu.

***

Procuro por Serena no quarto, na cozinha, garagem e demais aposentos de


lazer, como a sala de jogos e os escritórios com bibliotecas, mas não a
encontro em lugar algum. Aquela sensação de desespero começa a se
comprimir dentro do meu peito, um sentimento de impotência.
Ela tentou se matar.
Serena, a minha Serena sorridente, despreocupada, divertida e
completamente sem filtro. A mesma que não consegue se cuidar sozinha, que
arrisca a própria vida sem se importar com o dia seguinte. Será possível que
ela ainda queira morrer?
O desespero aumenta, o medo arranha as paredes do meu coração com
garras que prometem me destruir. Serena não é mesmo a princesa precisando
ser salva, porque ela já precisou fazer isso sozinha vezes demais.
Como uma pessoa consegue se salvar de si mesma?
Uma vez, Iago disse que Serena tinha um olhar triste. Eu ignorei.
Continuei avançando mais e mais, querendo ver sua destruição, desejando
que se desfizesse em minhas mãos, se rendesse e entregasse o corpo e o
coração. Tudo para me engrandecer.
Monstro.
Quando Nicolai nos deixou, julguei meu pai como covarde por
abandonar todas as pessoas que o amavam, por mentir e esconder o crápula
que existia por trás da fachada de presidente. Ao invés de assumir seus erros,
escolheu desistir de nós.
Lembro da temperatura gelada que revestia a pele dele quando sua mão
escorregou para o lado, emitindo um baque oco ao cair sobre a grama do
jardim. Do barulho tenebroso que o corpo emite ao libertar um último
suspiro.
Pensar em Serena fazendo o mesmo, no rosto sempre vivaz e em suas
tiradas ardilosas não existindo mais, me transporta de volta para aquele dia,
quando me senti pequeno e inútil.
— Quem você está planejando assassinar? — Ivan aparece, vindo da
área sul da mansão por uma bifurcação entre o setor que leva para a academia
e outro que finda nos fundos. — Sua cara está assustadora.
— Onde estão todos?
— Se quer saber onde está sua namorada, eu a vi agora há pouco com
Iago perto na piscina. Acho melhor você se preparar para uma chuva de
perguntas, ele não desgrudou dela desde que acordou.
Meu sobrinho deve estar curioso sobre a origem dos machucados dela e
não quero nem imaginar o que aquela doida inventou.
— Nossa mãe?
— Trancada do almoxarifado outra vez. — Ivan suspira, colocando as
duas mãos na cintura. Com o cabelo baixo, ele parece mais jovem,
revigorado. Não resta nada daquele homem que fugiu para os Estados Unidos
cinco anos atrás para se esconder da própria dor. — Confesso que estou
começando a me preocupar. Ainda nem desfiz as minhas malas e essa família
já está uma bagunça.
— Conseguiu falar com Dimitrio sobre a situação com as drogas no
terreno?
— Mais ou menos. Quando tentei da primeira vez, ele disse que não
queria se envolver e que fossemos todos para o inferno. Então, apelei para a
mulher dele. Dimitrio faz tudo o que ela pede, e já está agindo sobre Luna.
Mas ainda estou esperando um retorno a respeito do terreno. Com sorte,
conseguiremos acionar a polícia sem chamar atenção e nem colocar pessoas
em perigo.
Sem colocar mais pessoas em perigo, corrijo mentalmente.
— Estou contando com isso. — Minha cabeça pulsa com uma dorzinha
incômoda no canto do olho direito, mas a aflição me impede de descansar.
Ivan é o segundo irmão mais velho, aquele com quem dividi muitas
experiência por causa da idade aproximada. Ao contrário de mim, conseguiu
superar os fantasmas e sair das sombras. Ele vem na minha direção, coloca as
duas mãos em meus ombros e os aperta como um gesto de consolo.
Ele lembra muito Nicolai, os olhos castanhos que alternam entre o
marrom-claro e o escuro dependendo da claridade.
— Relaxa um pouco, irmão — aconselha. — Não precisa resolver tudo
em um dia. Serena precisa de você agora, não que fique correndo de um lado
para o outro.
Deixando um pouco do meu orgulho de lado, pergunto:
— Como você sabia que Lara era a pessoa certa?
Deve ser o sono me compelindo a agir com tamanha falta de cautela.
— Você acha que se eu soubesse teria a deixado passar por toda aquela
merda? — pergunta antes de me soltar para seguir seu caminho. — Eu não
sabia, Vladimir. É normal não sabermos.
Ele desaparece na curva do corredor que termina no salão de entrada.
Tento encaixar suas palavras em um cenário hipotético no qual eu e Serena
poderíamos ter uma chance juntos, mas não encontro nada além do meu
próprio desejo oculto, a possessividade rústica de quem se sentiu desafiado.
Nossos encontros foram tão aleatórios que se ela não fosse tão linda,
inconveniente e desatenta, eu poderia desconfiar de suas intenções. Mas
estranhamente, é a única pessoa perto de quem baixo a minha guarda.
Somos criaturas de uma mesma espécie, acostumados a agir sozinhos e
demarcar territórios, mas invadimos os limites do outro a tal ponto que não se
pode mais enxergar onde o meu começa e o dela termina.
Eu sou um condenado e Serena é a minha punição.
Escolho o caminho que me leva até ela. Em outra ocasião poderei
perguntar para Tatiana o que procura em meio aos pertences de Nicolai
depois de tantos anos armazenados naquela sala poeirenta.
Ao sair pelos fundos da mansão, vejo-a sentada em uma
espreguiçadeira na beira da piscina. Seus cabelos estão soltos e frisados, o
olhar aterrorizado enquanto Iago se inclina na beira da piscina para pegar um
botão de rosa boiando na superfície.
— Você sabe nadar? — pergunta, começando a se levantar. — Porque
eu não sei, então é melhor não cair aí dentro.
— Não vou cair — diz Iago, sem responder à pergunta, por mais que
saiba, sim, nadar. — Você é muito preocupada.
— Seu tio vai me matar se acontecer alguma coisa com você! Ele já
acha que sou irresponsável e desastrada.
A cabecinha de Iago inclina, interpretando a fala de Serena. Ótimo,
esses dois são perigosos perto um do outro.
— Você é? — pergunta ele.
— Esse não é o ponto. — Serena balança a mão no ar, desfazendo da
indagação como se não fosse importante. — O ponto é que nenhum de nós
dois sabe nadar, então você devia se manter afastado da água para não cair de
cara na piscina.
— Foi assim que você se machucou? Caiu com a cara na piscina?
— Quem me dera! — Ela ri nervosamente, alheia a minha presença. —
Cai de cara no mundo mesmo, fui jogada de cabeça para baixo.
Isso precisa ser impedido, os olhinhos horrorizados de Iago ao imaginar
a cena me dão pena. Serena vai se acostumar eventualmente, por mais que eu
duvide que seu jeito espalhafatoso se torne menos intenso com o tempo.
— Iago — chamo, entrando no campo de visão dos dois. — Você não
devia estar ajudando a sua avó?
Seus olhões azul-esverdeados me analisam com preguiça, percebendo
minha tentativa de dispensá-lo. Ele pode se complicar um pouco com
algumas coisas, mas é esperto demais para outras, e perceber quando alguém
tenta dissuadi-lo é uma delas.
— Não, obrigado, tio. Meu pai disse que daqui a pouco vamos na casa
da minha mãe, ela ainda quer fazer alguma coisa boa com a mansão. Mas nós
dois precisamos ter uma conversa séria primeiro.
Essa é nova.
Busco alguma pista em Serena, mas ela balança o rosto e esconde uma
risada com a mão na frente da boca. Iago sempre leva as menores questões
muito a sério. Sento-me ao lado dela e ficamos espremidos no espaço
estreito. Quase inconscientemente, enclausuro seu corpo perto do meu.
— Estou ouvindo — digo seriamente, como eu faria com um cliente ou
sócio.
— Bem, infelizmente a vovó Tatiana me disse que você e a Serena
também precisam fazer bebês agora, e não posso mais visitar o seu quarto.
Serena gargalha da minha cara de surpresa. Depois de insistir todos os
dias que suas visitas matinais não eram necessárias, é Iago quem vem dar um
fim a nosso ritual inoportuno.
— Sua família é incrível — Serena diz, deslumbrada com o teor da
conversa.
— Minha mãe é louca — resmungo, a dor na cabeça cada vez mais
forte. Eu preciso mesmo de dormir, mas ainda há tanto para resolver…
— Iago, eu e o seu tio não planejamos fazer bebês nunca, seríamos pais
horríveis.
Um bebê com Serena…
Merda, o que eu estou pensando? O sono, essa maldita dor na cabeça,
as revelações sobre Serena ter tentado suicídio… Essa mulher caiu mesmo do
céu bem em cima da minha cabeça.
— Então eu posso continuar indo ao seu quarto? — questiona, confuso.
— Não — digo depressa, sobretudo porque pretendo manter Serena
aqui por muito, muito tempo. — A partir de hoje, pode dormir na sua própria
cama.
Iago revira os olhos, um pouco contrariado, e corre para longe, na
direção do almoxarifado na outra lateral da mansão, provavelmente para
contar à Tatiana o que falamos sobre bebês.
Ele se tornou seu espião particular.
Finalmente sozinho com Serena, preparo-me para interrogá-la sobre seu
passado, mas perco a coragem quando abre um sorriso enorme. A boca dela é
sexy, o coração no centro do lábio superior me faz fantasiar com a
expectativa de ensina-lhe as artimanhas do prazer.
Eu poderia perguntar agora, fazer com que me confesse a história da
sua vida inteira. Mas não é apenas Serena que precisa de mim ao seu lado, eu
também preciso um pouco dela. Do calor, da certeza de que é real e está aqui,
não em um cova como Nicolai.
Serena é quente e sua pele macia me queima. Então, ao invés de
palavras, eu a beijo com força, invadindo sua boca com a minha língua só
para ouvir o resmungo que sempre deixa escapar da garganta por conta da
surpresa.
É só ela quem consegue me fazer agir antes de pensar.
— Você precisa descansar — diz. Nós dois nos deitamos e eu jogo uma
das pernas sobre ela para que não consiga escapar. Serena puxa uma das
minhas luvas e joga no chão ao nosso lado, depois faz o mesmo com a outra.
— Desculpe. Você não queria ter filhos e por minha culpa vai ter que
cuidar da sua sobrinha — digo, embriagado com o sono e a sensação
adorável de estarmos juntos.
Temo por suas próximas palavras, mas Serena me surpreende com mais
doses de otimismo.
— Está tudo bem, ter um filho não é algo que eu colocaria na minha
listinha de coisas para fazer antes de morrer, mas é assim que as coisas são.
Eu me adapto.
— Você tem mesmo uma lista assim? — Ela confirma. — O que
acontece quando você chega no final da lista? — Por favor, que não seja o
que estou pensando.
— Ainda não cheguei para descobrir.
— Quero ajudar você a realizar todos os itens — decido. Meus olhos
começam a fechar devagar, relaxados com a sensação do seu corpo moldado
no meu. Um guarda-sol sobre nós me deixa entrever uma parte do céu, mas
nos protege o suficiente para não me preocupar com o calor.
— Mesmo? — Serena me rouba um beijo casto, um simples encostar
de lábios que leva o medo para longe.
Ela é real, está aqui e é minha. Talvez seja a única coisa que eu já
desejei na vida. O meu primeiro sonho.
— Mesmo. Apenas diga cada um deles e nós faremos todos.
— Você já sabe o primeiro item, Lord Vlad. Quero ser sua.
— Você já é minha, Corazón — digo, ou espero que eu tenha dito,
porque na frente dos meus olhos o céu azul vai sendo substituído pela
escuridão das minhas pálpebras.
A última coisa que escuto antes de me entregar para o sono é a voz de
Serena falando qualquer coisa sobre uma tatuagem.
VLADIMIR

— NÓS VAMOS EM um motel! — Serena anuncia, saltitando até a mesa


onde minha família faz o desjejum, como se estivesse falando sobre um
parque de diversões ou um passeio ao cinema.
Meus familiares continuam arregalando os olhos toda vez que eu chego
para o café da manhã; não estão acostumados com a minha presença nesse
horário. Serena é a única que age como se tudo fosse sempre normal e lindo.
Ela parece uma personagem literária, daquelas que sorriem demais, perdoam
demais e sonham alto demais.
Hoje, acordou excepcionalmente alegre, sobretudo após descobrir que
passaríamos dois dias fora por causa da viagem até o abrigo onde Luna tem
vivido na última semana. Andrei estima que poderemos trazê-la
definitivamente amanhã, mas poderemos conhecer o lugar ainda hoje e me
sinto ansioso por isso, mas Serena acha que será apenas uma visita. Devido à
distância de quase três horas, concordamos em dormir na região.
Claro que Serena entendeu à sua maneira, e no lugar do pernoite
idealizou uma noite de selvageria.
Não que eu também não tenha planejado o mesmo, mas a verdade é que
ela continua sendo uma sonhadora cheia de vontades e nenhuma experiência.
Acha que sabe muita coisa sobre a vida, mas só quando estiver em meus
braços é que vai começar a aprender como essas coisas funcionam no mundo
real.
Ou melhor, no meu mundo.
— Ótimo — diz Roman, apoiado no encosto da cadeira de Tatiana,
sorrindo como um garoto de programa promíscuo. — Lembre que estarei
disponível quando resolver o seu probleminha com a virgindade.
— Pode deixar, bonitão — responde Serena em tom de brincadeira,
sentando-se ao lado de Lara como tem feito todas as manhãs.
Paro a caminho do meu próprio assento na extremidade da mesa para
analisar meu irmão em busca de qualquer verdade em suas palavras. Embora
me incomode a forma como os dois se aproximaram, Roman não é do tipo
que agiria pelas minhas costas. Ele gosta de provocar e chamar atenção, mas
talvez seja o mais protetor de todos.
É nisso que prefiro acreditar para não agir como um tolo movido pelo
ciúme — algo muito difícil considerando minhas tendências possessivas.
Ocupo meu lugar em silêncio, sem contradizer Serena. Mesmo que não
seja um motel propriamente dito, nossos objetivos serão equivalentes e não
faz parte do meu perfil dar explicações sobre para onde vou ou deixo de ir.
— Bem, já não era sem tempo! — exclama minha mãe, acomodada à
minha direita com uma xícara de café fumegante nas mãos. Seu cabelo dá
indícios de que precisa de uma nova tintura. Até quando ela pretende
continuar platinando os fios só para agradar o neto, que insiste em defender
que avós de verdade possuem cabelos grisalhos ou brancos? — Para duas
pessoas que se esfregam pelos corredores o tempo todo, vocês estavam me
saindo ótimos celibatários.
— Exatamente! — Serena concorda com naturalidade, direcionando
para mim um olhar acusatório como se eu fosse o culpado de um crime. —
Além disso, o médico que o Vladimir contratou veio ontem e já confirmou
que estou liberada para manobras radicais.
— Perguntou ao médico se você podia transar? — Roman questiona.
Serena tem a decência de se constranger por dois longos segundos.
Desde que pude conhecer os seus hábitos melhor, descobri que ela pode
ser muito invasiva e despudorada sobre quase tudo, mas quando envolve uma
declaração direta como a de Roman sobre relações íntimas, seu primeiro
impulso é se fingir de surda.
Serena prefere dizer coisas como "eu quero ser sua", que me soam
mais sedutoras, do que qualquer expressão burlesca e explícita. Doar-se para
mim, clamar para que eu a reivindique, além de imprudente para sua própria
segurança, é um atentado contra meu autocontrole.
— Romanzito, você precisa aprender um pouco sobre romantismo e
feminilidade — Serena aconselha. Inclinando-se sobre a mesa, ela serve
torradas e ovos no próprio prato. — Há uma infinidade de títulos literários
abandonados na biblioteca do escritório que poderiam te ajudar, você
aprenderia muito com Coronel Brandon e Fitzwilliam Darcy.
— Está mesmo tentando usar Jane Austen contra o meu irmão antes das
dez horas da manhã? — Ivan pergunta, entrando na sala de refeições. Deve
ter ido levar Iago para o colégio. Assim como os outros, ele também franze o
cenho ao me ver sentado à mesa.
Lara, até então silenciosa, levanta a cabeça devagar e sorri para o
marido. Os dois se beijam assim que ele se senta no lugar vago ao lado dela.
Serena observa a cena também, mas seu semblante é de preocupação. Ela não
disfarça enquanto encara o beijo dos dois e faz uma careta engraçada de
algum pensamento que cruza sua mente ávida.
— Romantismo? — Roman arqueia a sobrancelha e me olha com um
riso preso nos lábios, depois volta a encarar Serena. — Bebê, no final da
noite ninguém se importa com o romantismo, tudo depende do tamanho do
seu…
— Roman — corto, dessa vez espelhando uma advertência camuflada
em meu tom de voz.
Ele pondera, provavelmente pesando se vale ou não a pena continuar
me provocando. Por incrível que pareça, ele já está vestido para o trabalho e
não exibe qualquer indício de ressaca ou brigas. As merdas continuam
crescendo nos jornais depois que recusei algumas coletivas para focar nos
processos envolvendo a compra da casa e a tutela de Luna. Para viajarmos
hoje e amanhã, precisei dormir na empresa duas noites seguidas, além de
participar de longas reuniões consecutivas, mas Ivan e Roman ainda
precisarão liderar os compromissos do dia no meu lugar.
Não tenho dúvidas sobre a capacidade dos meus irmãos, é apenas…
estranho. Sinto como se faltasse um membro do meu corpo, como um braço
ou uma perna.
Efrem Kokorin e sua neta continuam suspeitosamente quietos, mas
estou atento a qualquer movimento suspeito. Participei de duas coletivas e
um almoço com Elena, e, em ambas as ocasiões, ela se comportou da maneira
profissional o suficiente para apenas fomentar mais especulações.
— O tamanho não é importante, Vladimir, não precisa ficar preocupado
com uma bobagem dessas — diz Tatiana como reação ao meu silêncio. São
nesses momentos que eu me pergunto por que continuamos morando todos na
mesma casa.
— Ah, ver não é o problema… — Serena diz, distraída com seus ovos
fritos.
Ivan coloca algumas torradas no prato de Lara, sem perceber o revirar
de olhos que ela executa, e depois diz:
— Se forem usar camisinha, não levem nenhuma dessa casa. Nossa
mãe já deve ter furado todas as embalagens. A não ser que estejam
planejando mais filhos.
Mais filhos…
Ótimos, agora vão todos querer mandar na minha vida.
— Ivan! — Minha mãe levanta a mão, pousando a palma sobre o peito,
com o mesmo dramalhão ensaiado de todos os dias. — Por que eu nunca
pensei nisso antes?
Serena abaixa a cabeça e morde o lábio inferior, deixando uma marca
rosada no local onde os dentes raspam. Apesar do rosto corado devido ao
rumo da conversa, ela deixa escapar uma risadinha espontânea e jovial.
São nesses momentos que meu peito desmantela, pois me fazem
lembrar que houve uma época em que a dor e o desespero de Serena foram
esculpidos em um ponto tão obscuro e profundo da sua alma que a fez
acreditar na morte como única saída.
Ainda não tive coragem para chegar nesse assunto, na verdade, não
vejo como seria benéfico abordar o tema da sua tentativa de suicídio em um
momento tão conturbado.
— Vladimir? — A voz dela me traz de volta, um tanto ansiosa e
preocupada. — Está tudo bem?
Ao invés de responder, confiro seu prato e noto que já terminou de se
alimentar. Levanto-me da mesa e ela me acompanha, novamente empolgada
com a partida. Roman abre os braços e vem na minha direção, tento desviar
das suas gracinhas, mas ele praticamente se joga sobre mim e me surpreende
ao dizer baixinho:
— É melhor dar uma olhada no seu e-mail quando puder.
Dito isso, ele me solta, rouba uma fatia de queijo da mesa e vai
embora.
Serena franze o cenho, curiosa sobre o que acabou de acontecer. Ivan
desvia o rosto e finge estar muito interessado no cesto de frutas; ele
provavelmente sabe do que se trata. Lara revira o ovo no prato, mas não
come nem um pouco. Minha mãe levanta para se despedir e eu vou na frente
para não escutar sua conversa sobre as diferentes formas de engravidar
Serena.
Pego as duas malas e vou para a cozinha, seguindo direto até a
garagem. Passo instruções aos seguranças que nos acompanharão em outro
veículo e, assim que os dois homens saem, Serena desce as escadas. Está
linda, nenhum indício dos ferimentos de antes no rosto. As costelas
continuam marcadas, mas a mancha se tornou tão suave que quase não dá
para ver.
O vestidinho curto e branco vai contra o bom funcionamento da minha
sanidade, e os saltos não ajudam nesse aspecto. De acordo com ela, foram
presentes da minha mãe, o que explica o motivo de parecerem objetos de
tortura.
— Podemos escolher qualquer um? — pergunta com os olhos
brilhantes. Andando até o meio da garagem, analisa os modelos como uma
criança na loja de brinquedos.
— Bem, tecnicamente, a maioria pertence ao Roman. Alguns, Ivan
adquiriu recentemente por insistência da minha cunhada.
— Da outra vez que estivemos aqui, juntos, eu não pude ver com tanta
atenção. Estava muito distraída achando que você me beijaria. — Ela desliza
as palmas nas latarias coloridas, inclinando-se sutilmente sobre um modelo
conversível azul escuro.
Não faz ideia de como me provoca com as pernas empinadas para trás e
a coluna em declínio na frente. Minha mente traidora é logo preenchida com
a ideia de tê-la nessa posição, sua barriga apoiada no capô gelado do carro
enquanto geme meu nome.
Eu só posso estar ficando louco. E minha loucura se chama Serena
Fajardo.
— Tenho certeza de que vou te compensar por aquele dia — provoco-a,
retirando a chave daquele carro do armário do meu irmão, que sempre fica
aberto já que a segurança aqui é impecável. Balanço o molho ao me
aproximar dela. — Talvez ele não se importe.
— Jura?! — Ela exclama. — Eu posso dirigir?
— Não mesmo! — Gargalho, jogando nossas bagagens nos bancos
traseiros.
— Por favor! — implora, afinando a voz. — Por favor, por favorzinho.
— Nem pensar, tenho muito amor à vida! E essa é a minha resposta
final.

***

Serena estaciona na frente do abrigo, o sorriso em seu rosto compensando o


terror por eu ter aceitado entregar as chaves após nossa parada no meio da
estrada.
É uma coisinha insistente e teimosa, mas suas manobras de
convencimento se tornam eficazes de verdade quando somadas a alguns
beijos e repetidas lamentações sobre como aquilo seria a realização de um
sonho.
Ela sai primeiro, muito mais animada do que quando partimos de casa.
Não conversamos sobre o que vai acontecer no hotel, esse assusto se arrasta
pelo simples fato de ser definitivo.
Seguro sua mão e entramos juntos no pequeno edifício de dois andares.
Mesmo pequeno e humilde, possui um portão eletrônico e muitos enfeites
pedagógicos pendurados no teto da recepção. O primeiro cômodo é uma
salinha colorida com uma parede inteira pintada de azul e vermelho.
— Viemos visitar Luna Fajardo — explico para a secretária simpática e
idosa que nos recebe. Um gosto amargo se espalha na minha boca por não
poder exigir que nos entreguem a criança logo.
A instituição é pequena em comparação com o orfanato onde Iago
costumava viver, mas possui aquela mesma atmosfera de abandono
característica de lugares que lidam com esse tipo de caso.
— Ela está bem? — Serena pergunta enquanto a senhora baixa e
magricela digita lentamente em um computador antigo.
— Vocês podem esperar um momento — responde, tediosa, sem entrar
em detalhes.
Dois minutos depois, outra mulher aparece, essa aparentando mais
responsabilidade com seu emprego do que a anterior. Ela nos recebe em sua
sala, se apresenta, mesmo seu nome desaparecendo do meu cérebro no
mesmo instante. Passa as condições sobre a saúde de Luna, bem como o
processo de requerimento da tutela.
— A sobrinha de vocês passou por alguns exames médicos quando
chegou — explica. — Aparentemente ela tinha algumas vacinas em atraso,
além de um quadro de anemia que já está sendo tratado. Infelizmente, só
poderão vê-la amanhã.
— E por que isso não foi comunicado ao nosso advogado? — pergunto,
um pouco nervoso. Mais uma vez, as coisas começam a dar errado. Não vou
deixar que a história de Iago se repita.
Claro que Luna e Iago são casos diferentes. Meu sobrinho foi escolhido
para se tornar o primeiro neto Volkiov, mas Luna é só um bebê que nada
entende sobre essa situação. É minha culpa que esteja aqui, portanto, se
tornou minha responsabilidade. E está doente, como eu nunca ouvi sobre isso
antes?
— Bem, enquanto as crianças estão aqui, são responsabilidade do
estado — justifica, acostumada com o roteiro. — Ela nasceu dois meses antes
do esperado, de acordo com a ficha médica, o que já implica em uma série de
cuidados que lhe foram negados. Foi uma gestação complicada,
aparentemente. A mãe é usuária de drogas e podemos considerar um milagre
que a criança não tenha nascido com alguma sequela. É uma menininha bem
silenciosa — continua, cada parte da explicação deixando-me mais irritado
com os dois cretinos negligentes que são seus pais. — Ao menos é isso o que
nossas funcionárias andam dizendo. Mas a apatia é um dos sintomas da
anemia. Essa menininha tem sorte em ter vocês dois.
Droga.
Annia não pode ter essa criança de volta, e nem o fodido do Camillo,
que preferiu fugir e abandonar a filha doente com uma mãe viciada. Por mais
que Serena não esteja preparada, é a melhor escolha. Ela disse que vai se
adaptar.
E eu… eu posso ajudar. Não posso?
Conversamos por mais alguns minutos, ela nos explica sobre o
funcionamento do abrigo e o horário que devemos voltar no dia seguinte.
Sem opções, vamos para o hotel que fica a poucas quadras do abrigo.
Um lugar razoavelmente confortável considerando que não existem
estabelecimentos luxuosos assim nessa região da cidade. Faço o check-in,
solicitando o melhor quarto; meus seguranças ficam em outro andar —
infelizmente não posso me dar ao luxo de dispensá-los por enquanto, já que
estamos com os holofotes voltados para nós. Ao entrarmos na suíte, sou
surpreendido por um cômodo aconchegante, vários móveis de tons pastéis em
azul e amarelo distribuídos no amplo espaço, e tapeçarias marrons e douradas
recobrindo as paredes.
Serena leva pelo menos vinte minutos explorando o ambiente enquanto
eu tomo banho. Quando retorno, ela não perde tempo e vai para o chuveiro
também.
Assim como eu, Serena corre atrás do que deseja. Se não quero desistir
de marcar sua vida para sempre — é assim que me sinto tomando sua
virgindade —; ela também não planeja recuar. E não consigo conviver com a
possibilidade de que outro ocupe meu lugar, que tome de Serena essa
lembrança. Se essa é a minha verdadeira vontade ou a do presidente egoísta e
ganancioso, não me importa.
Só preciso dela.
Já estava tudo planejado, nós precisávamos da certeza de que ela havia
se recuperado por completo e agora não existe mais nada que me impeça.
Com apenas a toalha ao redor da cintura, sento-me em uma poltrona no
canto do quarto, observando a fumaça se esvair por debaixo da porta. O som
da água corrente desaparece e minha expectativa aumenta.
Resolvo buscar a mensagem citada por Roman enquanto espero, e a
encontro no celular. Leio e releio, um tanto chocado. Antes que eu tenha
tempo para processar o desastre por trás de frases tão definitivas, escuto a
porta do banheiro se abrir.
Repasso na minha cabeça a mensagem enquanto Serena segura a toalha
enrolada no corpo, um pedaço de pano que esconde muito pouco. Se a nossa
história foi mesmo escrita pelo destino, então ele gosta de jogar dados com a
vida das pessoas.

Sr. Presidente Volkiov, considerando a atual situação nas relações


subjetivamente estabelecidas entre nossas empresas…

As pernas, ainda brilhantes por causa da umidade, vacilam com o peso


de uma para outra. Seus lábios tremem diante da minha sondagem e, lá no
fundo dos olhos, enxergo aquela tristeza, um pedido de socorro calado por
tempo demais. Meus sentidos estão no limite, a porra do meu corpo todo já
está no limite. Os dedos de Serena afrouxam devagar, decididos enquanto
permitem que o tecido deslize e ondule por cada uma das suas curvas.

… consideramos a necessidade de um diálogo direto sobre o firmamento de


uma sociedade que atenda aos interesses de ambos…

Serena já está ofegante quando a toalha alcança o chão. Os cabelos


escorrem sobre seus ombros, impossivelmente mais escuros que o normal.
Gotas d'água escapam dos fios molhados, como se a pressa e a necessidade
de se entregar para mim fossem mais urgentes do que qualquer outra coisa.

… por isso, contamos com a sua presença como acompanhante oficial de


Elena Kokorina…

Eu me levanto da poltrona; desta vez, sou o único a diminuir a distância


entre nós. Serena continua parada no meio do quarto, em silêncio e perdida.
Neste momento, não importa a extensão da sua certeza, ela continua sendo
um livro cujas páginas brancas precisam ser preenchidas com palavras
bonitas.
Rodeio seu corpo, admirando todos os detalhes, desde as duas covinhas
na lombar até o desenho elaborado com traços perfeitos que constituem seus
seios. Quero tocar cada pequeno pedaço de pele, saciar essa fome que tem
crescido mais e mais desde quando nos conhecemos.

… em um jantar para a realização do pronunciamento oficial sobre o retorno


das obras no clube…

— Vladimir — sussurra. Meu nome em seus lábios é cativante como


um feitiço. — Isso está me matando.
Não permito que ela veja meu sorriso, o divertimento caloroso que a
voz me causa. Roman me avisou sobre a mensagem para que eu ponderasse
antes de trazer Serena para mais perto, mas ele não imagina o quanto estou
determinado sobre isso. O que poderia me fazer hesitar era o que faltava para
eu tomar a minha decisão degenerada.
— Você precisa estar preparada, Corazón. — Acaricio seus seios
suavemente, estimulando a sensibilidade com a promessa de retornar para
eles no momento certo.
Parado diante dela, sou abraçado ainda mais pela convicção de que
estamos perdidos em um caminho sem volta.
Eu perdi.
— O que você vai fazer? — murmura quando começo a me abaixar,
depositando um beijo sobre sua barriga no processo.
Apoiado sobre um joelho, viro a cabeça para trás e vejo que Serena me
observa do alto, confusa e perdida, entregue e exposta em sua frágil nudez.
Um dia, prometi que a teria destruída em meus braços. Agora, tudo o que eu
mais gostaria era voltar no tempo para nunca me colocar em seu caminho.
Mesmo odiando a ideia de correr riscos e quebrar seu coração, não
tenho forças para renunciar seu corpo.
Porque aqui, ajoelhado como nunca fiquei por mulher nenhuma, eu
percebo o quanto já estou apaixonado por Serena Fajardo.

…Atenciosamente, Kokorin Enterprises.


SERENA

OS LÁBIOS DE Vladimir encontram a pele sensível no meio das minhas


pernas, suas mãos apoiam a parte traseira das minhas coxas para que eu
continue equilibrada em meio ao choque e prazer que digladiam nas
profundezas do meu corpo.
Ah, madre santísima, é disso que o povo gosta!
Estou nua, completamente exposta e vulnerável. Ainda é dia e o quarto
está iluminado; não existe nenhuma sombra para ocultar nossas expressões,
camuflar o desejo ou abrandar a rendição de um para o outro.
Ele projeta a língua, elevando os joelhos para friccionar contra mim
com intensidade, e minhas mãos fecham em seus cabelos na busca insana
por mais.
Viver na casa de Vladimir nos últimos dias era a única coisa que faltava
para que sucumbíssemos de vez a esse magnetismo irracional que
desconsidera as leis da física e encoraja o desejo de ocuparmos o mesmo
espaço. Estamos presos por uma ligação estranha e insólita,
predominantemente carnal, como se fôssemos feitos da mesma matéria-
prima.
E eu estou enlouquecendo… mais.
Ajoelhado, Vladimir continua sendo o artista perfeito, reescreve o
prazer com curvas, atrito, força e fôlego. Há um desespero presente em seus
lábios, talvez seja o desejo de me destruir. Coitadinho, se ele pudesse ler
meus pensamentos saberia como estou me sentindo inteira agora.
Guiando uma das minhas pernas acima do seu ombro direito, é a força
dele que me impede de cair. Fecho os olhos para absorver a sensação de
perder o controle, de me entregar em sua boca, sem vergonha ou
inseguranças.
Eu quero.
Ele quer.
Nós queremos… Misericórdia! Esse negócio de conjugar verbos nunca
foi tão interessante.
As pontas dos seus dedos apertam a carne nos meus quadris e um
gemido involuntário escapa enquanto ele continua se banqueteando com a
minha excitação crescente. Um acúmulo de prazer começa a se alojar na
minha barriga e minhas forças são drenadas para longe, encantadas com a
habilidade dele em satisfazer sua companheira — no caso, eu! Glória!
No entanto, quando penso que cheguei em um limite e minhas pernas
começam a tremer, Vladimir para abruptamente.
É como desligar um botão, jogar água no gato de rua, tirar o doce da
criança alheia. Meus joelhos cedem e, antes de cair sobre ele, tenho um
vislumbre do seu sorriso vitorioso. Vladimir me ampara, joga o peso do meu
corpo para o lado e me embala em seus braços.
— Você é muito sensível — comenta enquanto se levanta, carregando
meu ser humano arfante e desorbitado consigo. — Tenho que ser cuidadoso
para não me deixar levar com esse seu jeitinho suscetível.
— Por que parou? — Enrosco meus braços ao redor do seu pescoço e
acaricio as linhas da musculatura nas costas esculpidas.
Vladimir tem o hábito de malhar algumas vezes na semana, sempre
antes do sol nascer, em silêncio e sozinho enquanto todos estão dormindo.
— Corazón, não quero transar com você no chão, e nem você vai
querer isso. Pelo menos não na sua primeira vez.
— Na segunda, então? Esperança é meu nome do meio, sabe?
Vladimir gargalha, acomodando-me sobre lençóis lilases e macios. O
tom da cor parece um prenúncio do destino, a aprovação do universo para
isso que estamos prestes a fazer. Somos amantes sem futuro, abençoados no
presente e condenados pelo passado. Nossa relação sem nome é impossível e
caótica, mas combina com a gente.
No fundo, bem lá no fundo, sei o que mais me atrai em Vladimir, e a
verdade não é tão bonita como nas histórias de amor. A sensação destrutiva
existente em sua personalidade é tão cativante para mim como o som do
abismo deve ser para os escaladores de montanhas mortais.
Mortal, é essa palavra que eu usaria para substituir a paixão.
Ele sempre chama a minha atenção por não me cuidar e correr riscos
desnecessários. É verdade, pois tudo em Vladimir grita peligro e eu gosto de
me sentir assim, na fronteira entre a segurança e a completa insensatez.
Seus olhos azuis me contemplam, o sorriso é apenas um complemento à
intensidade do olhar.
— Amo quando você sorri — digo, brincando com a palavra amor só
para assistir ao seu divertimento. Isso se tornou nossa brincadeira interna
favorita.
De pé, Vladimir me decifra com a minúcia de um explorador. A toalha
ao redor da cintura se projeta para frente, escondendo — sem muito sucesso
— os efeitos que causo nele. Não dá para desviar o olhar, minha curiosidade
alcança níveis exorbitantes e me contorço na cama sem nenhum pudor.
— Ama? — Ergue uma sobrancelha, segura o nó que mantém a toalha
no lugar e começa a puxar. — Melhor adicionarmos uma experiência de fato
importante nessa sua lista de coisas amadas.
Ele puxa o tecido para o lado com tanta lentidão que sinto como se
metade dos meus pecados estivessem sendo pagos. Não sei o que fazer ou
dizer; além de desconhecer os rituais preliminares, uma parte obscena em
mim gosta que Vladimir assuma a dianteira da situação e me ensine o
caminho certo.
Perder a virgindade sempre foi um objetivo desde quando meu
tratamento chegou ao fim e pude começar a viver como uma garota comum.
Era mais curiosidade do que desejo. Mas Vladimir me fez sonhar com esse
momento, transformou a curiosidade e o desejo em necessidade.
Eu preciso dele em mim pelo menos uma vez. Hoje, de preferência, se
minhas preces valerem de alguma coisa.
Mordo o lábio para esconder um pouco a surpresa quando ele abandona
a toalha e leva as mãos até o próprio membro. Sinto seu olhar me queimando.
O maldito gosta de me ver entregue, é sua natureza ser o líder, controlar e
subjugar os outros.
O que Vladimir não enxergou ainda é que a minha sujeição não
simboliza uma vitória para ele, e sim a capacidade que eu tenho de aceitar
quem o homem quebrado diante de mim realmente é. Não estamos
competindo.
— Puta madre — murmuro quando ele começa a movimentar a mão
para cima e para baixo. — Digo, é mesmo bem… amável, para não dizer
delicioso. Vou colocar seu amigo na lista de coisas que amo, com certeza.
Revirando os olhos, Vladimir sobe na cama, estica a mão sobre o criado
mudo e retira um preservativo da gaveta. Ou ele veio muito preparado ou
esse lugar é mesmo um motel e eu estava certa o tempo todo.
Assim que termina de se proteger — e me proteger também —, sem me
alertar suas pretensões, ele abocanha um dos meus seios. O encontro da
língua gelada com minha pele cálida causa uma reação de desespero, um bom
e assustador sentimento de fome. Arqueio as costas e tento girar para o lado,
afastar, mesmo que por poucos segundos, para acalmar o formigamento no
local onde seus dentes passeiam, mas Vladimir não deixa. Ele se movimenta
como um gatuno, pressiona uma das minhas pernas com seu joelho e enlaça
minhas costas com o braço, expondo meu corpo em benefício próprio.
Esse homem sabe como usar a boca.
Tenho uma noção distante da claridade se despedindo, o quarto começa
a adquirir uma paleta de cores alaranjadas e opacas, a treva noturna se
aproxima e eu penso que nenhum outro cenário seria mais ideal. A gente
combina com a escuridão.
Com a mão livre, Vladimir empurra minhas pernas para os lados, se
posiciona entre elas e volta sua atenção para a minha boca. A gente se beija,
não existe carinho ou muito romantismo — felizmente, se o tamanho for
mesmo algo importante como Roman disse, Vladimir não precisa se
preocupar. Mas isso eu já sabia desde nosso primeiro encontro.
A única preocupada aqui sou eu!
— Está com medo? — provoca. Sinto o sorriso se formar em seus
lábios.
— Claro! — confesso, um tanto indignada. Ele não deve se olhar muito
no espelho quando está armado. — Talvez eu morra — concluo
exageradamente.
Outra vez ele para, seu corpo sacodindo com os espasmos da risada,
mas a mão esperta aproveita minha distração e corre para me surpreender
novamente ao introduzir a ponta do dedo médio em mim. Congelo, e a
expressão dele muda completamente. Vladimir estava me preparando para o
abate, e eu dancei conforme a sua música.
Olé!
O que eu poderia dizer? Continua que está pouco.
— Você sabe que não temos mais volta, Corazón? — Morde meu lábio
inferior, a seriedade e comprometimento com o meu prazer se enfatizam na
mão realizando círculos e me arrancando gemidos incontroláveis. — Você
sabe que é minha? — indaga, possessivo e inseguro. Vladimir é cauteloso e
eu sou a peste em pessoa, seu carma na Terra.
— Vladimir, eu sou o que você quiser, querido. Não faz pergunta
difícil.
— Diga. Eu preciso que você diga com todas as letras.
— Eu sou sua — concordo, olhando em seus olhos, mas não sou burra
ou ingênua: a minha certeza é a garantia que ele tem de que nenhum de nós
vai se arrepender.
Sem o meu sim, Vladimir jamais avançaria, porque essa é a única coisa
que vai limpar sua consciência quando a gente se separar.
Dói pensar nisso, que um dia não poderei mais sentir o gosto do seu
beijo ou ser dominada por suas inclinações autoritárias, mas eu aguento,
tenho que aguentar para que, no futuro, eu não precise lidar com o
arrependimento de nunca ter me arriscado pelo único homem por quem já me
apaixonei de verdade.
Eu deveria dizer isso a ele?
Alguma coisa em minha expressão deve ter revelado esse sentimento de
insegurança, de medo por me imaginar sem ele, pois Vladimir comprime os
lábios com o semblante cruel e, ainda assim, atraente. Ele me beija, invade a
minha boca com a língua tentando provar algo para si mesmo, e é…
maravilhoso.
Eu sou uma idiota que vai se dar bem só para se dar bem mal logo em
seguida.
— Por favor — sussurra com a boca contra a minha. Poucos milímetros
nos separam, mas eu o sinto, grande e pulsante entre minhas pernas abertas.
— Por favor, não me odeie, Corazón.
Mas o que…
Ele arremete para frente, contra mim, encaixando devagar seu corpo
dentro do meu. Fecho os olhos com força, tentando não me concentrar no
significado desse pedido enquanto a dor e o prazer entram em sintonia.
Estática, memorizo a sensação de ser invadida, ou
melhor, preenchida por Vladimir. É um caminho sem volta para nós dois.
Não consigo evitar um murmúrio sôfrego, embora o deleite sobressaia à
angústia que vem junto com o ardume.
Adeus, querida amiga virgindade, foi um desprazer imenso a sua
companhia.
Lentamente, Vladimir volta a se movimentar. Com cuidado, busca
manter constante contato visual e sua devoção faz meu coração acelerar. É
como ser devorada por uma fera temporariamente amansada, um leão
selvagem fingindo-se de gatinho.
Sempre quando desliza para fora, volta a entrar cada vez mais fundo e
um tanto mais brutal. Vai se tornando mais fácil receber Vladimir à medida
que o número de investidas aumenta, até alcançarmos o encaixe completo e
perfeito.
— Vladimir — digo em meu delírio, minhas unhas arranhando suas
costas. — Isso é incrível. Se eu soubesse que era tão bom, não teria esperado
tanto tempo.
Em um golpe rápido, Vladimir se aprofunda e me surpreende com uma
pontada alucinante de satisfação e agonia. Fica parado me encarando, a pele
brilhante por causa dos nossos esforços.
— Cuidado com o que você fala, Corazón — alerta, prendendo-me
pelos pulsos com os braços ao lado do corpo.
Tudo bem, Vladimir malvado é infinitamente mais gostoso. Rindo na
cara do perigo, chamo-o pelo título que evoca a sombra do monstro, o mesmo
que me pediu para nunca usar com ele:
— Desculpe, senhor presidente.
Seu olhar cintila como uma caverna de cristais. Ira e satisfação dividem
espaço em suas expressões. Acho que alguém aqui gosta de ser desafiado
entre quatro paredes.
Se for para brincar com fogo sem queimar, eu nem brinco.
— Você é impossível! — Ele sai de mim com brusquidão, mas não
tenho tempo para processar ou me arrepender, pois sou virada de costas e, no
segundo seguinte, já o tenho em mim. — Diabinha.
— Feitos um para o outro — concordo, aprovando a provocação.
Guio-me por outros sentidos agora que nosso contado visual foi
cortado. Os gemidos baixos e roucos de Vladimir aumentam gradativamente
a minha vontade de explodir. Ele empurra minha coluna para baixo,
acomodando a minha cabeça na cama e os quadris arqueados. Enquanto me
molda à própria vontade, uma de suas mãos começa a me estimular com
aquela habilidade certeira que só ele possui.
O mundo lá fora continua desmoronando em catástrofes e tragédias,
mas perto de Vladimir isso perde o sentido porque somos sobreviventes. Nós
resolvemos os problemas de frente e é assim que pretendo lidar com a essa
relação também.
A vida é muito curta para perdermos tempo com frustrações. Já basta
ser pobre e doida; se eu parasse toda vez que ganhei uma rasteira do destino,
nunca teria saído do lugar.
Jogo meu corpo para trás, exigente quanto à intensidade. Percebendo
minhas vontades, Vladimir amplifica o ritmo das investidas, feroz, audaz.
Não sei bem como ele consegue fazer tudo, desde me estimular até perscrutar
meu corpo em busca de uma satisfação pessoal, mas Vladimir não é homem
para ser entendido. Ele sabe que é foda, e não sou nem maluca de discordar.
Aquele formigamento gostoso volta a se concentrar no meu estômago,
meus músculos contraem e um gemido longo é tudo o que consigo oferecer
para que ele saiba o quanto estou perto do deleite máximo.
Olho para trás no momento em que sou atingida pela luxúria em seu
estado bruto, a lascívia sem lapidação. Vladimir não é apenas um rostinho
bonito, ele sabe fazer a coisa direito.
E é assim, dissipando-me em seu mundo de sombras, que eu gemo seu
nome repetidas vezes para exteriorizar o ápice da minha devassidão.
Vladimir, como se estivesse à espera do meu clímax, também se liberta em
espasmos, suor e arquejos.
Céus, nem acredito que estou viva para contar a história.
Os segundos passam, nossas respirações começam a acalmar e
Vladimir é o primeiro a se mexer. Ele me puxa para o lado e me beija sem o
fulgor e o desespero. É um agradecimento, um elo final de confiança.
— De nada — digo, minhas palavras soam moles e desproporcionais.
— Agora posso me gabar.
— Então era esse seu plano o tempo todo? — brinca.
— Mas é claro! E pode deixar que eu vou dizer para a sua mãe como
seu amigo é grande e maravilhoso.
— Tenho certeza de que ela está ansiosa pelos detalhes. — Uma careta
procede suas palavras.
Ele não é muito bom em se abrir com a família. Mesmo amando cada
um deles — e prezando pelo bem-estar dos irmãos, Lara, Tatiana e também
Iago —, não tem o costume de contar detalhes do seu dia ou fazer planos de
lazer.
— Como você está se sentindo? — pergunta, um tanto receoso.
— Bem, pronta para o segundo round! Adorei quando me colocou
costas e…
— Você está longe de estar pronta. — Talvez ele esteja certo e eu
precise dormir um pouco. Mas só talvez. — Mas continue dizendo
sacanagens, Corazón, porque na próxima vez vai ser na sua boquinha que eu
vou entrar. — Surpreso e alegre, Vladimir passa o polegar sobre meus lábios,
e eu imagino a cena pensando que seria um ótimo objetivo para a lista de
coisas a se fazer antes de morrer.
Chupar Vladimir Volkiov todinho.
Merda.
Não vou para o céu mesmo…
— Era para eu ficar com medo? — resmungo, exaurida de energias. —
Porque só me deixou mais excitada. Sei como dizer sacanagens em duas
línguas, caso não esteja lembrado.
Vladimir sorri, mas o sorriso não alcança seus olhos, que estão focados
em um ponto vazio da cama. Deixa um beijo na minha bochecha e se levanta.
Tento entender o que está acontecendo através dos sons, pois meus olhos
pesam sem ele por perto e me vejo incapaz de abri-los. Escuto a porta do
banheiro, o som de água corrente e um aroma de flores chega rapidamente ao
quarto. Seus passos retornam e meu corpo é erguido como se fosse feito de
papel.
— O que vai fazer? — resmungo. Aquela história de estar pronta para
outra não passava de ilusão.
— Relaxa, você precisa de um banho.
Entreabrindo meus olhos, visualizo a cama distanciando-se enquanto
ele me carrega para o banheiro. Sobre os lençóis, há uma pequena mancha
vermelha que torna as coisas mais reais.
Perdi a minha virgindade e estou apaixonada. Se alguém me contasse
isso três meses atrás, jamais acreditaria.
Mas aconteceu.
Vladimir Volkiov me aconteceu.

***

Escuto o relinchar de cavalos, ao menos três ou quatro. Junto deles, o som


da chuva. Ergo as mãos para me proteger, mas não estão molhadas. Não é
chuva. Olho para trás. Conheço esse lugar, o organismo vital no centro de
Moscou vinculado com o Museu Histórico do Estado e o Jardim de
Alexandre. É o Manezhnaya na primavera, pois há realmente muitas flores
rosáceas e amareladas nos canteiros da praça.
Nicolai se aproxima e eu sempre me assusto. Toda vez que nos
encontramos, ele parece ter perdido alguns quilos. Mesmo assim, eu o acho
lindo com seus cabelos escuros, o sobretudo misterioso e um charuto preso
entre os dedos — apesar de nunca o ter visto fumando. É um homem maduro,
mais jovem do que meu pai antes de morrer. Acredito que, em outras
circunstâncias, seria o tipo de pessoa com quem eu gostaria de me
relacionar. O tipo que eu me apaixonaria se meu coração não estivesse
bagunçado demais.
Eu o amo, mas não romanticamente. Amo como um protetor, aquele
que segurou o meu fio da vida e puxou para cima.
Nós nos encontramos toda segunda-feira, horas antes da minha sessão
com o psicólogo. Nicolai também se consulta com ele às vezes. Em seu
pescoço, há uma máquina fotográfica um pouco antiga, já o vi carregando-a
antes e, quando questionei do que se tratava, ele disse que havia ganhado do
irmão durante a juventude.
Nicolai se senta ao meu lado no banco da praça. Atrás de nós, a fonte
com os cavalos de Tseretelli estão imóveis, nos assistem com olhos vítreos
enquanto o vento carrega as partículas de água para perto.
— Está tudo bem? — indago, estranhando seu silêncio.
— Aconteceram algumas coisas — confessa tristemente. Somos bons
ouvintes.
— Ainda está tendo problemas na sua empresa? Conseguiu descobrir
quem estava ferrando seus negócios? — Apesar de nunca ter me contado
detalhes sobre sua vida pessoal, Nicolai me confessou que possui uma
empresa. Desconfio que seja bem podre de rico, mas não entendo por que
não quer me contar a verdade.
— Descobri, sim. — Ele começa a mexer em sua câmera, retirando
uma peça que esconde a lente.
— Mesmo? Isso é bom, não é? Agora você pode rebater. — Faço um
movimento patético de basebol que faz Nicolai sorrir.
— Na verdade, eu não farei nada. — Passando o braço sobre meus
ombros, Nicolai encosta a cabeça na minha.
— E por que não?
— Porque um dos homens é irmão de uma pessoa que amo, e que já
machuquei demais. — Erguendo a máquina fotográfica, a gente se prepara
para uma foto. O clarão do flash deixa minha vista momentaneamente
aturdida. — Ela não aguentaria se alguma coisa acontecesse com ele.
— Mas se isso está machucando você… — Tento argumentar, mas
Nicolai não costuma aceitar meus conselhos. Ele é um homem bem teimoso.
— A vida é como um botão, Corazón. A gente aperta e aperta, e
continua apertando sempre quando as coisas começam a dar errado. O que a
maioria das pessoas não sabe, é que chega um momento em que esse botão
quebra, e aqueles erros que cometemos não podem mais ser consertados.
De repente, o mundo começa a escurecer. É horrível e assustador.
Nicolai desaparece, no instante seguinte outro homem toma seu lugar, um
rodeado por labaredas de escuridão. Eu o conheço também, pois estou
apaixonada por ele. É Vladimir.
Meu Lord Vlad.
— Por favor — pede — por favor não me odeie, Corazón.
Odiá-lo? Isso é impossível, preciso dizer a ele, mas as sombras o levam
para longe. É tudo muito rápido e confuso. Nicolai reaparece atrás de mim,
está chorando.
Ele vai embora, eu sei que sim, pois já aconteceu antes e não saberei
nada sobre ele além de que sempre foi meu melhor amigo.
Meu salvador vai caminhando para longe e quero gritar para que
volte, mas quando meus lábios se movimentam, não sai qualquer ruído.
Tento andar e acabo caindo no chão, sem forças. Ele não pode ir embora,
não pode.
Sei o que vai acontecer, agora eu sei e preciso impedir antes que seja
tarde.
Sua vida, seu nome completo, como é a incrível mulher de quem tanto
fala com devoção, ele nunca me contou nada. Nicolai vai se tornar uma
sombra, pois eu nunca disse que o amava, que estaria lá por ele. E talvez…
E talvez…
— Corazón!
Abro os olhos e minha mão trêmula está esticada no ar, tentando
alcançar Nicolai. Mas ele não se encontra em lugar nenhum, foi um sonho.
Um pesadelo. Uma memória louca. Fazia muito tempo que não recordava de
tantos detalhes daquela época.
Vladimir me ajuda a sentar. Preocupado, abraça meu corpo e acaricia
minhas costas enquanto eu me acalmo e meu coração para de se forçar
garganta acima.
— Foi só um pesadelo — explico. Ele aquiesce, mas não deixa de me
confortar. Está vestido com uma cueca.
Uma cueca boxer preta que manda para o espaço Nicolai e a porra toda.
Eu sabia que aquele seria apenas o começo do meu martírio.
— Quer falar a respeito? — pergunta com carinho.
— Da sua cueca? Eu gostei, mas prefiro sem.
— Do pesadelo — corrige, impaciente, todo nervosinho. — Você
estava bem aflita enquanto murmurava alguma coisa.
— Coisas do passado, lembranças que não deveriam voltar.
Vladimir parece remoer alguma especulação. Segura meu rosto entre as
mãos e me puxa para um beijo. Começa manso, romântico e divinamente
aprazível, mas assim que o lençol desliza pelo meu corpo, ele respira fundo e
fecha os olhos.
— Ops — digo sorrindo. Meus dentes prendem o meu lábio inferior e
atraem sua atenção. — Você ainda tem alguns truques para me mostrar, Lord
Vlad. Pelo que me lembro, fez uma ameaça tentadora antes.
— É só o começo, não posso mostrar tudo de uma vez. — Apesar
disso, ele não tira os olhos do meu busto, e seu olhar perdido me faz recordar
das suas palavras no sonho.
— Por que eu odiaria você? — indago.
— O quê?
— Você me pediu antes para não odiar você, Vladimir. Isso nunca vai
acontecer.
Vladimir nega com a cabeça, como se eu fosse muito inocente ou
desconhece sua verdadeira natureza. Talvez esteja certo, mas é um risco que
estou disposta a correr.
— Eu consigo tudo o que eu quero, Corazón,
— O que isso significa?
Ele não me responde de imediato, ao invés disso, volta a me calar com
um beijo.
Droga, eu posso me acostumar com isso.
— Significa que eu consigo tudo o que eu quero e não sei o que fazer,
porque não quero perder você, mas sinto que isso vai acontecer
eventualmente.
Esse assunto me machuca, mas impeço que meu semblante evidencie o
quão profundamente apaixonada já estou. Aceitei Vladimir sob termos
concretos, e ele me garantiu que nunca se relacionaria com mais ninguém
enquanto estivesse comigo.
No momento certo, ele vai se afastar e eu preciso estar preparada.
— Vladimir, você não vai me perder, porque o único recuando aqui é
você. Foi você mesmo quem disse para eu não criar expectativas. Quem está
perdendo você, sou eu.
Sento-me em seu colo, com os joelhos pousados nos dois lados do seu
corpo. Ele é muito maior, as pernas musculosas e os braços imensos, mas
parece pequeno com a feição tristonha.
— Não me sinto assim desde que quando meu pai morreu.
— Você não fala muito sobre ele.
— Não gosto de falar sobre ele. Meu pai cometeu muitos erros,
machucou muitas pessoas. Ninguém sabe, mas eu sei. E o pior de tudo isso é
que estou me tornando uma cópia quase perfeita de quem ele foi um dia,
virando as costas para todos que me importam.
— Você vai me deixar? É isso o que está querendo dizer?
— É esse o meu problema. — Ele me abraça, inspira no meu pescoço.
—Ter você significa abrir mão de coisas que significaram a minha vida por
um longo tempo. O que você fez comigo? O que eu fiz com você?
— Estou bem, Lord Vlad — garanto. — Aceito ser sua durante o tempo
que me quiser, dure o quanto durar. Eu ficarei bem.
Mentirosa.
É muito mais fácil viver na ignorância, porque não sentimos saudade
daquilo que nunca conhecemos.
Agora que descobri a sensação de pertencer de corpo e coração a
Vladimir Volkiov, não serei capaz de seguir em frente sem olhar para trás
uma única vez. E é esse tipo de coisa que pode me destruir de verdade.
A saudade.
A lembrança de como seus olhos índigos parecem com o ponto em que
o oceano se conecta com o céu quando vistos de uma curta distância.
Se o amor fosse um tom de tinta, ele seria azul, pois é nessa cor que eu
mergulho quando Vladimir me engole outra vez e na qual eu gostaria de me
perder pelo resto da vida. A cor dos olhos da pessoa que conquistou meu
coração.
Quando nos conectamos novamente em luxúria e paixão, Vladimir me
aperta com mais força, sobrepujando os quadris como se pudesse me marcar
de dentro para fora, e eu rogo em silêncio para que ele não consiga sentir que
eu menti.
Uma vez, disse era forte e que meu coração não seria facilmente
quebrado, mas quando gemo seu nome uma vez e outra, nos intervalos entre
as suas estocadas, eu quase consigo enxergar as letras saindo dos meus
lábios, aquelas mesmas que costumo usar com leviandade.
É mais do que paixão.
É amor.
E eu não vou ficar bem.
VLADIMIR

— VOCÊ JÁ FEZ isso com várias pessoas ao mesmo tempo? — Serena


pergunta, com uma expressão que poderia significar qualquer coisa, desde
espanto até uma curiosidade apavorante.
Ela rola no colchão, ficando de costas na cama, e minha atenção é
sugada pela milésima vez. Essa mulher simplesmente não consegue ficar em
silêncio um segundo sequer. Qualquer outra pessoa manteria distância
enquanto estou trabalhando, mas Serena é incapaz de guardar os
pensamentos. O problema maior, contudo, é a forma como a camisa franze na
região dos quadris, deixando entrever a minúscula calcinha rendada.
— Acho que você deveria se trocar — digo a contragosto. Minha
concentração foi testada em níveis apocalípticos nas últimas horas. Fixo os
olhos na tela do computador como se a minha vida dependesse disso. — Nós
vamos sair daqui a pouco, assim que Andrei entrar em contato.
— Não é que eu tenha interesse, sabe? — continua, como se eu não
tivesse falado nada. Joga o cabelo para o lado e a torrente negra de fios
esparrama sobre o lençol branco. — Mas eu gostaria de saber como as
pessoas conseguem administrar tantas mãos e bocas ao mesmo tempo. Acho
que ficaria completamente perdida.
— Serena, se está tentando me irritar, você está conseguindo. Não vai
adicionar isso nessa sua lista de coisas insanas a fazer antes de morrer —
aviso. Meu olhar desfoca e os gráficos com pagamentos mensais dos
funcionários da empresa ficam completamente embaralhados. — Nunca, em
nenhuma hipótese. Nem sexo grupal, ménage, ou qualquer merda do tipo.
A maldita gargalha, morde a ponta da caneta e anota alguma maluquice
em uma agenda da corporação onde, segundo ela, ficarão suas metas de vida.
A princípio, tive medo de que essa lista se tratasse de um prenúncio para a
morte, que ela pretendesse atentar contra a própria vida após concluir todos
os itens. Mas, na verdade, Serena continua adicionando tantos objetivos que
eu duvido que consiga completar tudo antes dos noventa anos.
— Calma, Lord Vlad. Um homem é mais do que suficiente para mim.
Considere isso uma pesquisa de exploração. — Ela gira outra vez, segurando
a agenda no alto. A roupa sobe mais um pouco, revelando o início da barriga,
o côncavo ao redor do umbigo. — Além do mais, estamos juntos por
enquanto e não é como se eu estivesse disposta a dividir você com alguém.
Por enquanto…
Abro a boca para dizer que essa não é uma decisão momentânea e que
ela nunca vai se aventurar nesse tipo de coisa, mas volto a fechá-la assim que
o bom senso me alerta sobre como eu seria a merda de um hipócrita, afinal,
acabei de tomar sua primeira vez e estou preso em um trâmite comercial que
me arrasta para outra mulher.
Agora que perdeu a virgindade, Serena ficou ainda mais obcecada com
as possibilidades que o sexo oferece, sobretudo no tocante a posições e locais
exóticos. Tudo isso está acabando com a minha cabeça, porque eu quero ser o
homem a saciar todas as suas curiosidades e confiscar suas primeiras
experiências.
Eu serei.
— Esse é o tipo de assunto que acaba com o meu humor, Corazón —
digo, sem me preocupar em esconder o descontentamento. — Não é como se
eu fosse te deixar ir tão fácil assim.
Não a deixarei ir. Guardo o pensamento que a cada minuto se prova
mais concreto no meu coração. Apaixonar-me não estava nos planos, mas
aconteceu mesmo assim, e a ideia de perder algo que me parece tão vital
nesse momento não é uma hipótese com a qual eu consiga lidar com
maturidade.
Mas Serena tem o direito de saber o que eu fiz, o que eu tirei dela, e
talvez seja isso a nos afastar, porque fui um canalha egoísta que não tem a
dignidade de se arrepender.
Eu faria de novo, quantas vezes fosse preciso, porque essa mulher
entrou na minha corrente sanguínea e me transformou em um dependente.
— Você não tem humor, Vladimir. Vai perder de que jeito? —
provoca, mordendo a caneta outra vez, e a cena me hipnotiza.
— Engraçadinha — ironizo. Desafiar-me parece sua diversão favorita.
— Mas está tudo bem, porque você tem… presença? Seu irmão disse
que os homens não gostam desse tipo de elogio, então podemos concordar
que você tem uma ótima presença e um sexo incrível. Agora posso atestar por
conta própria.
— Você não devia dar ouvidos ao Roman — reclamo. Arrasto a cadeira
um pouco para o lado e meus olhos contemplam seu corpo estendido na
cama, perfeito dos dedos do pé até o último fio de cabelo.
E os lábios… Os lábios dela, as curvas que se formam quando sorri ou
a forma como exalam sensualidade sempre que mordisca o canto da boca
para aplacar uma travessura, incentivam minha vontade de monopolizá-la.
Estar com Serena, dentro dela, sobre ela, beijando e sorvendo seu
corpo, marcando pequenos trechos de pele e gravando na minha mente o
timbre da sua voz ao gemer o meu nome durante o ápice do prazer são
sensações que se fundiram às paredes do meu cérebro. Estão eternizadas na
minha memória.
— Como sabe que foi o Roman quem disse isso?
— É o único idiota o suficiente. — Dou de ombros. Desisto de analisar
os gráficos e fecho o notebook. Não lembro qual foi a última vez que deixei
um trabalho pela metade e, por incrível que pareça, não é o fim do mundo.
Caminho devagar até a beirada da cama. Serena passa os dentes sobre o
lábio inferior, prendendo a fina camada de pele por alguns segundos
enquanto encara descaradamente o meu abdômen.
— Isso é o caminho da perdição, minha fé está sendo testada — pensa
alto demais — Amém! Quer dizer, sobre o que a gente estava falando
mesmo? Lord Vlad, você está me desconcentrando com essa sua — ela indica
a região no meio das minhas pernas — beleza excessiva, misericórdia! Eu me
tornei uma depravada, a culpa é toda sua, sabe disso, né?
— Corazón, o único desconcentrado aqui sou eu, pode ter certeza de
que está sendo muito mais difícil para mim. Mas a gente não pode continuar
aqui, precisamos buscar Luna.
— Buscar? — Suas sobrancelhas franzem.
Merda.
— Visitar. Eu quis dizer, visitar. Minha família quer notícias.
— Sua família é ótima — diz, virando-se de lado com a cabeça apoiada
sobre o braço, sua silhueta ondula no declive entre os quadris e a cintura fina.
— Unidos e sempre dispostos a ajudar um ao outro. Eles poderiam ter me
chutado para fora no primeiro dia. Convenhamos, não é todo mundo que
acolheria uma desconhecida pobretona que é um poço de problemas, mas não
hesitaram. Você tem muita sorte por ter irmãos como os seus.
Serena é sempre tão determinada e alegre que, algumas vezes, esqueço
do quanto sua alma deve ter sido machucada para ela chegar ao extremo e
precisar de atendimento médico, internação.
Eu deveria protegê-la do mundo, mas como posso fazer isso quando
sequer consigo protegê-la de mim?
— Sente falta do Camillo? — Sento-me na beirada da cama e pouso a
mão em seus joelhos. Não consigo mais ficar perto dela sem manter um
constante contato físico.
— Muita. Eu sei que não deveria, mas meu irmão sacrificou muita
coisa por nós. Depois que nossos pais morreram, ele se envolveu com o crime
para nos proteger. Acho que no fundo Camillo nunca superou a forma como
nossos pais se foram.
— Foi um acidente de trabalho, certo? — pergunto, relembrando o
levantamento que fizemos sobre ela.
— Como você sabe?
— Bem, digamos que por nove meses a minha vida girou em torno de
descobrir tudo o que eu podia sobre você. — Inclino sobre ela e roubo um
beijo, um roçar que reativa os sentimentos compartilhados enquanto fazíamos
amor.
Fazer amor deveria ser uma expressão imaculada, mas consegui
deturpar com minha sede de controle e poder. Tomei Serena para mim, eu a
roubei e faria novamente.
Serena sorri e tento retribuir, mas tenho certeza que o meu sorriso é tão
sem alegria quanto o dela. A vida pode ter sido injusta comigo, mas com
Serena ela foi cruel.
— Meus pais eram incríveis — conta de repente, seu rosto perdendo
um pouco da luz ao falar deles. — Os dois tinham recém-aberto um escritório
em uma empresa, nossa vida estava começando a melhorar e já fazíamos
planos para deixar o distrito. — Ela pausa seu discurso, os olhos desfocados
em algum lugar nas profundezas dos seus pensamentos. — Sabe o que é pior?
Sempre achei que o universo nos avisasse quando algo de ruim está perto de
acontecer. Acreditava que as pessoas pressentissem esse tipo de coisa. Mas
não. Enquanto os meus pais morriam, eu estava na aula. Eu estava estudando,
sabe? Só… estudando. Que piada!
Consigo entender sua revolta, pois Nicolai também nunca deixou
indícios, nada que pudesse revelar a pessoa que ele escondia por trás da
fachada de pai e empresário de sucesso.
— Corazón… — Acaricio seu rosto para apartar uma dor que ela
suprime com empenho.
— Não, está tudo bem. — Sentando-se com um pulo, ela dá algumas
batidinhas na bochecha e respira fundo antes de abrir um grande sorriso. —
Já faz muito tempo.
— Quando seus pais morreram… — começo com cautela, conduzindo
Serena para mais perto até que se acomode sobre as minhas pernas. — Deve
ter sido difícil.
— Foi sim, muito. Camillo desapareceu depois do funeral, eu fiquei
sozinha por quase um mês inteiro e, bem, as lembranças são bem traiçoeiras.
Eu os ouvia o tempo todo, passava horas no quarto dos dois. — Ela deita a
cabeça no meu ombro com os olhos fechados e sussurra: — Eu odeio aquela
casa.
Aquiesço. Isso explica muita coisa, inclusive que não posso deixar
Serena sozinha. Droga, como eu sequer cogitei a possibilidade de consumi-la
por pura ganância? Por que eu deixei meu pior lado ir tão longe a ponto de
ameaçar as chances que eu tenho com ela?
Meu mundo de caos está ruindo, e coloquei Serena no meio da
destruição.
Eu preciso contar a verdade. Talvez se eu explicasse sobre o meu pai,
se desabafasse, então quem sabe ela fosse capaz de entender por que eu me
tornei esse tipo de presidente. Serena é a única pessoa com quem consigo
falar sobre qualquer coisa, que me faz parar de pensar antes de cada
movimento, antes de cada frase dita.
— Quando você acha que vamos poder tirar ela do abrigo? —
questiona de repente, mudando o rumo da conversa.
Outra mentira.
Andrei já está com tudo pronto para que possamos levar Luna para
casa, mas Serena surtaria se soubesse. Meu irmão mais novo está
particularmente envolvido com o caso dessa criança, talvez seja uma forma
de ocupar a cabeça para evitar seja lá quais problemas tem enfrentado em sua
vida particular.
— Breve — respondo. Mais uma merda na pilha de motivos para ser
odiado por Serena Fajardo.
O telefone toca sobre o criado-mudo. Serena deixa um beijo no meu
rosto e se ergue como uma pluma seminua na direção do banheiro. Suas
pernas maravilhosas me convidam, mas o aparelho vibrando sobre a mesa
quebra toda a minha concentração.
— Vou me arrumar. — Serena movimenta os lábios, encosta a porta
para me dar privacidade.
Alcanço o aparelho e leio o visor; já não era sem tempo.
— E então? — pergunto assim que a chamada se inicia.
— Vocês poderão trazer a menina — diz Andrei. Há uma música
ambiente ecoando no fundo da ligação. — Já entrei em contato com o abrigo
e vai estar tudo pronto quando chegarem.
— Ótimo. Eu sabia que você conseguiria, Andrei.
No banheiro, escuto Serena cantarolar uma música em espanhol, uma
melodia com palavras rápidas que desconheço, mas que soam sedutoras.
— Serena vai ter que assinar alguns papéis — continua Andrei do
outro lado da linha. — Consegui colocar Annia em um programa de
proteção, assim ganhamos um ou dois meses para nos livrarmos do
problema com a casa.
— Ótimo, pelo menos uma notícia boa — suspiro.
— Vlad, tem mais uma coisa. — Meu irmão se cala, fazendo um
suspense horrível tomar forma na minha mente. — Camillo voltou para a
Rússia, já faz três dias. Roman foi buscar informações sobre ele nos outros
distritos. Eu avisei para esperar você voltar, mas sabe como é, Roman não
sabe o que significa essa palavra.
— Droga! Temos que o encontrar antes que outra pessoa encontre. —
Como os criminosos para quem entregamos seu nome, sua história e a
importância que representa para o líder de um dos distritos mais disputados
de Moscou.
— Você conversou com ela, Vladimir? Roman disse que passaram a
noite no hotel. Serena sabe tudo o que você fez? Elena está exultante na
empresa, disse que vocês vão passar a semana fora e eu não sei o que fazer
com essa merda toda.
Começaram a agir.
Isso é bom.
E mal.
Porque vão nos separar.
A curiosidade e intromissão de Andrei me deixam tenso, incomodado,
mesmo sabendo o quanto isso soa patético. Serena tem esse efeito sobre mim,
eleva a capacidade de sentir ciúmes a outro nível.
— Andrei, há alguma coisa que queria me contar? Nem com a Lara
você foi tão intrometido, e vocês sempre foram como irmãos.
— Eu só não acho justo você…
Desligo a chamada. Andrei que tome conta da mulher dele, porra.
Perturbado com a bola de neve começando a rolar na minha direção, eu
me levanto da cama e sigo para o banheiro. Serena sobressalta quando
escancaro a porta e invado o chuveiro junto com ela.
Vou perder Serena, tenho certeza disso. Posso tentar, e tentar, mas esse
é o meu destino. Não a mereço.
Preciso senti-la, preciso me saciar ao máximo dessa mulher,
minha Corazón louca, doidinha e cheia de perseverança, porque, se ela vai
ficar devastada quando tudo isso passar, então a mim não restará nada.
Eu me transformarei em nada.
A água quente cai sobre os nossos corpos. Retiro as peças de roupa
remanescentes, uma bermuda e cueca que só atrasam a minha chagada àquilo
que preciso para acalmar o desespero.
— Vladimir — Serena chama, o corpo completamente despido, suas
formas perfeitas brilhantes por causa do sabão.
— Preciso sentir você — explico antes de pegar Serena no colo e
prensá-la contra parede.
Começamos de forma lenta, sobretudo porque ela está ainda se
acostumando, o corpo se ajustando ao meu e não quero que se machuque.
Mas Serena é insaciável e logo começa a clamar por mais.
Mais.
— Vlad — chama, arfante, um clamor que rasga meu peito ao meio.
Cada vez mais fundo.
Cada vez mais forte.
Na esperança de que ela se torne cada vez mais minha.
Serena não reluta, ela não me nega. O desejo se projeta em seus lábios
na forma de suspiros que fazem meus olhos arderem. O vapor dança,
espiralando à medida que eu a corrompo com meu egoísmo e possessividade.
No fundo da mente, há um grito de desespero alertando sobre a minha
irresponsabilidade, minha pele desprotegida invadindo seu corpo sem a
menor hombridade. Mas tudo em mim é guerra. Dois exércitos batalhando
pelo bem ou pelo mal da mulher por quem estou apaixonado.
Em seu rosto anestesiado de prazer, encontro uma dúvida devastadora.
Ela não entende meus conflitos, ela não entende que, aos poucos, estou
arruinando-a.
Entro e saio uma vez, forte. Meus quadris se chocam contra ela,
emitindo um estalo por causa da água corrente entre nossos corpos. As pernas
de Serena seguem firmes ao redor da minha cintura e eu mantenho as mãos
presas em suas coxas tão perfeitas e tentadoras.
— ¡Qué hombre! — diz em meu ouvido. Seu idioma é quente,
carregado com um pouco da euforia que só Serena possui.
Ela é tão inocente e determinada ao mesmo tempo, uma contradição
ambulante que amplifica os meus instintos de proteção.
Seu longo cabelo preto gruda em nossos corpos formando um padrão
de imagens tribais e assimétricas. Gotas d'água escorrem nos azulejos atrás
dela e o barulho do chuveiro ligado é uma constância que se mistura com os
gemidos de nós dois.
Aumento a velocidade e minha visão escurece enquanto meu coração
bate mais rápido. Fragmentos das primeiras vezes que nos encontramos
passam pela minha mente. Sua imprudência, a forma como aqueles acasos tão
pouco críveis possibilitaram que a gente se conhecesse.
Mais forte.
As unhas dela cravam nas minhas costas, a cabeça pende sobre meu
ombro e ela ofega mais alto, perdida. Nesse momento, sou feito de impulsos.
Minha mente me lembra os motivos pelos quais Serena não vai me aceitar, e
são muitos.
Camillo, aquele filho da puta. O irmão que Serena ama por mais que
ferre com a vida dela. Porra, eu não me importo se ele morrer, seria um
grande alívio saber que o cretino nunca mais vai lhe causar problemas.
Mais rápido.
Beijo seu pescoço, Serena geme outra frase em espanhol e nesse
momento eu daria qualquer coisa para entender suas palavras.
Estou em dois lugares ao mesmo tempo, nesse banheiro onde eu me
perco em seu corpo, e em uma caverna obscura em meu coração onde se
escondem os meus medos.
Por mais compreensiva que ela tenha sido a respeito do que eu fiz com
seu irmão, como ela reagiria se soubesse que não me arrependo? Que eu
poderia ter evitado esse desfecho?
Meias verdades, foi isso o que eu ofereci para Serena.
Mais forte.
Precipito-me contra ela, arrancando um gemido alto que suprimo com
um beijo ardente. Nossas línguas em contato não encontram sincronia,
somente um desejo absurdo de sentir a outra.
Luna, um bebê, um ser humano que vai estar para sempre sob sua
responsabilidade. Ela me disse e mostrou tantas vezes que cuidar de uma
criança era algo que a aterrorizava. Ainda assim, não me importei.
Mais rápido.
— Vladimir — geme, jogando a cabeça para trás e mordendo o lábio,
indicando a chegada de um orgasmo.
Mas não agora, não ainda. Eu preciso de mais.
Ergo seu corpo e giro com ela em meu colo, desconectado o ponto que
nos une completamente. Serena tenta protestar, mas, antes que consiga dizer
qualquer coisa, volto a invadi-la e sua indignação se transforma em um longo
regozijo.
Serena remexe os quadris para saciar sua vontade de alcançar o limite,
segura meu rosto como se tentasse implorar, e aquele monstro faminto por
controle se deleita.
— Ainda não! — ordeno. Ela franze o cenho pela forma como as
palavras soam bruscas.
Volto a apoiar suas costas na parede lateral. Longe da água, somos
guarnecidos rapidamente pelo frio; o choque térmico faz os pelinhos
dourados no ombro dela se arrepiarem e até isso me parece a coisa mais
bonita do universo.
A voz de Andrei estoura nos meus ouvidos. Você contou para ela?
Não. Eu não contei que acompanharei outra mulher em um jantar de
negócios daqui uma semana.
Volto a arremeter, forte e rápido, e Serena une nossas bocas com
voracidade. Ela é uma diabinha cobrando meus pecados e, mesmo com a
pouca experiência, luta bravamente para acompanhar o ritmo.
Há muita merda a ser considerada nessa loucura, mas talvez a pior de
todas tenha sido movida pela minha ganância. Tomei sua primeira vez
mesmo sabendo que preciso fazer uma escolha: arriscar meses de trabalho e a
reputação da empresa em nome de uma paixão que tem tudo para dar errado,
ou desistir de Serena?
Serena. Minha Serena.
— Vladimir — murmura ofegante, o ar faltando a ambos.
Mais forte, mais rápido.
Eu preciso de mais dela.
Sinto a criatura do medo se arrastar sob a minha pele com um sorriso de
escárnio. Andrei me avisou sobre sua tentativa de suicídio para que eu tivesse
cautela. Para que eu não a quebrasse.
Eu ignorei.
E agora… Agora eu a estou fodendo sem proteção só
porque eu preciso, porque eu quero, e porque nosso tempo corre na
regressiva.
Mais rápido.
Mais…
— Vladimir — chama, empurrando meus ombros levemente, mesmo
que sua força não seja suficiente para me mover nem um centímetro. —
Vladimir, para.
Todo o meu corpo obedece ao seu comando automaticamente, a
realidade caindo sobre a minha cabeça como um raio. Serena desce do meu
colo e se afasta com os braços cruzados sobre os seios. Os olhos fulminantes
me recriminam.
— Qual o seu problema? — sussurra, pegando uma toalha branca e
enrolando-a no corpo.
Em choque, é assim que eu me sinto. Quebrado e descontrolado.
Perdido e vazio.
— Desculpa, Corazón. — Engulo em seco, procurando alguma marca
em seu corpo que indique se passei dos limites. — Eu… machuquei você?
— Olha, essa ideia de transar no banheiro é incrível, uma coisa a menos
na minha lista. — Ela balança a cabeça para os lados. — Mas eu não quero
que seja assim, não quero sentir como se estivéssemos fazendo algo de
errado. Então não, não estava me machucando. Você estava machucando nós
dois, Vladimir. — Ela caminha em direção à saída, deixando formar um
rastro com a água que escorre de seus cabelos encharcados. Antes de sair,
Serena se vira com o semblante triste e devastadoramente decepcionado, e
diz: — A propósito, você está chorando.
Encosto a ponta dos dedos no rosto. A princípio, não percebo nada,
sobretudo porque meu corpo inteiro está molhado pela água do chuveiro
ainda ligado. Mas, então, sinto as lágrimas, uma solitária torrente de gotas
salgadas que evade dos meus olhos de maneira silenciosa.
Eu não me lembro qual foi a última vez que chorei.
Talvez tenha sido quando Nicolai estava em meus braços. Morrendo.
Ou quando minha mãe se trancou no quarto para sofrer pelo luto. Acho que
foi na formatura de Ivan, talvez, porque meu irmão fez aquele longo e injusto
brinde em nome de um cadáver que não merecia.
Eu posso não ter certeza de quando aconteceu, mas tenho certeza de
que nunca doeu tanto como agora.

***

Por um segundo, temo que Serena tenha partido, mas a encontro sentada na
cozinha com dois pratos de ovos mexidos sobre o balcão. Está usando com
um sobretudo cinzento sobre um vestido longo de tom rose.
Ela é linda em escalas que não podem ser medidas, a simplicidade e a
coragem são acréscimos que tornam minha obsessão compreensível.
Depois de remoer a forma como a tratei no banheiro, minha única
alternativa é encarar a realidade. Não posso fugir para sempre e preciso
encarar os fatos sobre a possibilidade de oferecer para Serena mais do que eu
já ofereci a qualquer pessoa em minha vida.
— Está melhor? — pergunta, sem me olhar, pressentindo a minha
presença. Remexe os ovos com um garfo, indicando um assento de frente
para ela, e me acomodo um tanto relutante.
— Não vamos agir como se nada tivesse acontecido — digo. Acomodo
os braços sobre o mármore que reveste o balcão. Nossos rostos se refletem na
superfície espelhada, um mais lastimável que o outro.
— Tecnicamente, nada aconteceu. Você impediu que eu tivesse um
orgasmo épico — brinca, com seu jeito descontraído, bondosa demais para
me repreender. Serena bate o garfo no prato, comprime os lábios e pergunta:
— Vamos terminar?
Demoro alguns segundos para processar a questão.
— O quê?
— Você precisa me dizer, estou me jogando no escuro, na cara e na
coragem, na burrice e nas grandes chances de sair perdendo nessa história
toda, e ficaria muito agradecida se dissesse se pretende terminar com o nosso,
bem, seja lá o que nós temos.
Sempre direta; é difícil de lembrar o tempo todo que poucas coisas
abalam essa mulher.
— Foi um erro — explico. Não estou habituado a admitir minhas
falhas, não sou esse homem que se arrepende dos erros cometidos.
— O que foi um erro? — Ela estreita os olhos, apertando o garfo
perigosamente.
— A gente não deveria ter transado, você merecia mais. Não quero que
saia machucada e é exatamente isso o que está acontecendo.
— Então estou "saindo" — ela afirma, fazendo aspas com os dedos no
ar. — É isso que está dizendo? É mesmo um término?
— O quê? Não, não. Você não está prestando atenção. — Levanto-me,
dou a volta para me sentar ao lado dela e seu perfume inebria meus sentidos,
remetendo à noite passada, quando se entregou sem medo para mim. Antes
de eu estragar tudo. — Não me arrependo, eu faria de novo, quantas vezes
fosse preciso. E é esse o problema: tirei de você algo importante e continuo
fazendo isso sem parar porque te quero demais e sou muito egoísta para
deixar você ir.
Serena aquiesce e suas pernas balançam para frente e para trás,
pendendo no banco alto. Se eu me inclinasse um pouco, poderia beijar seus
lábios e é torturante me obrigar a ficar parado.
— Você precisa parar com isso — conclui, a voz aveludada e soberana
enchendo meu peito de fascínio. — Eu posso ser meio doida, mas não sou
burra. Se aconteceu, foi porque eu deixei, não porque você quis. Se eu não
quisesse, você jamais teria entrado em buraco nenhum desse corpinho aqui, e
ainda faltam dois se minhas contas estão corretas.
— Aquilo no banheiro… — digo. Ela não me ajuda a manter o foco
declarando esse tipo de coisa — Eu perdi o controle, fui irresponsável.
Andrei me ligou, disse algumas merdas e eu me desesperei.
— Não foi ruim, só… triste. — Ela morde o lábio, coloca uma mecha
de cabelo atrás da orelha. — Senti como se estivesse me afogando em uma
escuridão sem fim e, de repente, percebi que na verdade era você. Eu gosto
de você, Vladimir, e também não me arrependo, também faria de novo mil
vezes. Não me importo.
— Pare de tentar justificar as minhas merdas, Serena! — Arrasto a
cadeira para trás, preciso de espaço. Caminho pela cozinha, gesticulando para
que ela entenda, talvez com a voz mais alterada que o normal. — Eu quero
você, entendeu? Eu quero tanto que estava comendo você como um filho da
puta irresponsável. Quero tanto que não me importei com a porcaria da
camisinha. Eu quero tanto, Serena, que sinto como se precisasse destruir o
mundo só para garantir que você fique ao meu lado, e sabe o que é pior? Eu
faria isso sem o menor remorso.
— Está dizendo isso porque não colocou camisinha? — Serena fica de
pé, colocando as mãos na cintura.
— Estou dizendo isso porque eu não me importei com a porra da
camisinha e nem com todo o resto! Seu irmão, Luna, sua cunhada, o fato de
estar afogando você nesse relacionamento sem futuro só porque eu sou esse,
esse…
— Monstro? — ironiza.
— Presidente — repreendo-a. — Com responsabilidades e
compromissos que não incluíam você. Mas não tenho o altruísmo necessário
para não te escolher.
— Sabe de uma coisa? Quando um não quer, dois não transam! —
grita, apontando o indicador como se pudesse furar os meus olhos. — Você
acha que me tem sob controle, mas quem me controla sou eu! Poderia ser na
cama, no chão ou no inferno, com ou sem camisinha, de cabeça para baixo ou
pulando de uma perna só. Não dramatiza a minha transa, porque de drama já
basta a minha vida.
Ela só pode estar de brincadeira. Não achei que pudesse me apaixonar
de novo, mas aconteceu.
Agora.
Aqui.
Nesse momento.
Serena não existe.
— Eu vou ter que ir a um jantar com outra mulher — confesso, munido
de toda a sinceridade que consigo. Talvez assim ela entenda.
Serena arregala os olhos, mas não recua ou demonstra qualquer fagulha
de decepção. Ela remói a informação, inclina a cabeça para o lado e bate o pé
nervosamente no chão.
— É uma namorada? — indaga, dando de ombros como se isso não
fosse uma catástrofe completa. Ela consegue mesmo me enfrentar.
— Não. — Sorrio.
— Você vai dormir com ela?
— Não.
— Vai transar com ela?
— Não, Serena, eu só quero fazer isso com você. O problema não é
esse. A família dela espera que a gente se case. Querem um acordo
matrimonial.
— E você vai aceitar isso?
— Eu quero você — garanto.
— Mas?
— Mas eu não posso permitir que a empresa sofra um desfalque dessa
magnitude. Vou precisar…
Fazer coisas.
— Existe a mínima chance de você me escolher? — Serena ergue os
dois braços para trás do pescoço.
— Como eu disse, ainda não sei como deixar você, como não escolher
você. Eu te quero demais, Corazón. Talvez seja meu lado presidente egoísta
falando, talvez o monstro, ou talvez seja apenas eu, Vladimir Volkiov. Mas
todos os meus lados querem você.
— Então é melhor decidir o que é mais importante, porque eu não vou
ser amante de ninguém. O que você quer, ou o que você precisa, são coisas
que só você pode escolher. — Puxando o laço do vestido, o tecido desliza
pelo corpo de Serena, exibindo novamente seu corpo vestido com apenas
uma calcinha branca e uma bota de salto. — Eu disse que sempre caminharia
metade do caminho.
— O que está fazendo? — Fecho os olhos, mas é tarde demais, a
imagem já está impregnada na minha cabeça.
— Eu quero você, Vladimir. Não sou chefe de nada, e nem quero, Deus
me livre de um fardo assim. Pegar o chefe já é mais do que suficiente. Não
preciso escolher entre você ou qualquer coisa. Enquanto toma a sua decisão,
a minha já foi tomada. — Serena me abraça, segura a minha mão e guia sobre
o próprio corpo, conduzindo meus dedos ao longo da cintura até a região
entre as suas pernas. — Até voltar desse jantar e fazer a sua escolha,
voltaremos a ser amigos, porque eu sou louca demais e posso cair em
tentação, então livrai-nos do mal e não quero ser feita de trouxa. E, agora,
você vai terminar o que começou, e vai fazer ser bom dessa vez.
Introduzo um dedo nela, sem contrapor sua oferta de sermos amigos.
Amizade é a última coisa que eu espero ter com Serena.
— Vai ser bom — prometo em seu ouvido. Serena sorri, infestada de
luxúria.
— Não tenho dúvidas — murmura, abrindo os botões da minha roupa.
— Desculpa — sussurro no outro ouvido, deixando um beijo no lugar
para selar o meu pedido. Ela pousa o dedo indicador na minha boca, sorrindo
como um anjo que sobrepuja a desordem.
— Não se machuque mais, Lord Vlad.
Dessa vez, a gente se afoga junto e, por mais que as águas continuem
escuras e turbulentas, a mão de Serena entrelaçada na minha me faz olhar o
fundo do mar com outros olhos.
SERENA

O CARRO ESTACIONA na porta do abrigo e o clima entre Vladimir e eu


continua denso. Seus dedos apertam o volante com tanta força que deixam as
articulações esbranquiçadas e o maxilar se mantém constantemente rígido. Se
pudesse entender o que se passa em sua mente, talvez assim conseguisse
combater os conflitos que o afligem.
Tique-taque, alerta o meu coração, cada batida gritando como o
ponteiro insistente e enferrujado de um relógio. O passar dos segundos
comprime meus sentimentos por Vladimir, deixa tudo apertado dentro do
peito. Continuo repetindo para mim mesma que eu sou forte, que Vladimir
não passa de um abalo sísmico temporário, do tipo que estremece as paredes
do meu coração, mas passa tão depressa que não sobra tempo para sentir
medo.
Se eu acabar me ferrando, não posso atribuir a ele toda culpa. Apesar
de suas advertências, eu simplesmente não consigo me afastar enquanto é
tempo.
— Serena… — diz, chamando minha atenção para o seu rosto. Meus
olhos são atraídos para aqueles pigmentos em tons lilases que sobressaltam
no céu de azuis claros e escuros. — Tem mais uma coisa que você precisa
saber.
Solto o cinto de segurança e viro o corpo de lado, com um joelho
dobrado sobre o banco. Vladimir umedece os lábios com a língua. Depois do
incidente no banheiro e nossa pequena discussão, está mais cuidadoso, como
se temesse os próprios movimentos e estivesse com medo de si mesmo.
Quando ele começou a chorar enquanto fazíamos amor, eu
simplesmente não consegui suportar.
Lágrimas me assustam.
— Há muitas coisas que eu preciso saber — digo, suspeitando que
Vladimir tem coisas piores para revelar do que seu potencial futuro
casamento com alguma piranha… digo, bela mulher. Coitada da moça, nem
conheço direito e já desconsidero totalmente. — O que é dessa vez?
— Luna — diz, soltando-se do cinto também. — Andrei conseguiu
liberação para que a levemos hoje. Sua sobrinha voltará com a gente para a
mansão.
Ah, tá.
Fico esperando ele dizer que é mentira, uma brincadeira das piores, mas
sua expressão apreensiva diz o contrário do que espero. Não pode ser
verdade, isso não faz sentido.
— Você não está falando sério — afirmo, não querendo acreditar. —
Tudo bem que o seu irmão é o fodão dos tribunais e tudo mais, mas não pode
ser verdade, verdadeira. — Vladimir engole em seco; o maldito não
desmente. — Eu não tenho um berço — explico, com a voz esganiçada.
Trazer a realidade à tona talvez seja suficiente para mudar seu rumo. — Não
tenho nada que uma criança precise. Eu nem mesmo sei o que elas comem!
Preciso organizar o meu apartamento e…
— Corazón — interrompe-me. Segurando minha mão, leva-a até os
lábios, como se cavalheirismo fosse mudar alguma coisa depois de me fazer
alucinar no balcão da cozinha horas atrás. — Vocês duas não vão voltar para
aquele seu apartamento, perdeu o juízo? Você fica na mansão até resolvermos
a situação com o terreno.
Gargalho outra vez.
— Certo, piadista — ironizo, respirando pausadamente para não ter um
colapso nervoso.
— Estou falando sério, Serena — diz, irritado, segurando meu queixo
com uma mão, obrigando nosso contato visual a se manter. — Não desisti de
você ainda, então me dê mais algum tempo para consertar as coisas que
estraguei.
Suas palavras são como adagas fincadas no meio do meu peito; ao
mesmo tempo que me enchem de esperança, elas me levam para mais perto
dos fatos que podem nos afastar para sempre.
— Lord Vlad, seu complexo de superioridade às vezes me assusta,
mesmo isso sendo atraente como o inferno. — Respiro fundo. Não vou
perder o foco, ou meus esforços para manter a dignidade diante dessa
máquina de prepotência chamada Vladimir Volkiov terão sido em vão. — E
por acaso eu vou morar onde com uma criança? Debaixo da ponte é que não
vai ser!
— Eu vou resolver — decide. Continua fazendo tudo a seu modo e
tomando todas as decisões sem me consultar.
— E depois? — digo, com um fiapo de maturidade. — Faz duas
semanas que não vou trabalhar, Vladimir, eu duvido muito que ainda tenha
um emprego. Talvez se eu conversar com a Raissa, ela me aceite no buffet,
mas o Palliermo…
— Sabe muito bem que não pode voltar para o hotel. — Vladimir
rudimentariza a voz, seu lado controlador aflorado. O tom de é calmo e
cortante, muito mais assustador do que qualquer grito ou grunhido.
Gostoso do caramba, assim fica difícil alguém me defender da
devassidão desenfreada.
— Com uma criança para criar, eu posso aguentar umas passadas de
mão, querido! — Arrependo-me assim que termino de brincar.
No primeiro milésimo de segundo, Vladimir deixa transparecer o
choque da minha sentença, mas, no instante seguinte, seu sorriso sádico é tão
macabro que me faz encolher um pouquinho. Tenho certeza de que se
transássemos agora seria uma loucura muito agradável.
O peso do seu olhar faz meu sistema respiratório ficar desregulado,
apagando informações simples de funcionamento. Inspirar e expirar, depois
inspirar outra vez? Arfar e transpirar? Qual é a ordem correta mesmo? Tenho
certeza de que existem gemidos no meio desse processo. Tudo bem
biológico, claro.
Vladimir aperta meu maxilar com um pouco mais de precisão, desliza o
dedo sobre meus lábios e introduz a ponta o suficiente para deixar minha
boca entreaberta. Já percebi que ele tem uma fixação com a minha boca.
— A melhor parte de ter tirado a sua virgindade é que agora eu posso
punir você na cama sempre que disser essas merdas que me deixam puto.
— Gosto de você bem puto — concordo, passando a ponta da língua
em seu indicador —, mesmo que lá no fundo da mente eu saiba que seu único
objetivo é desviar do assunto principal, que era…Qual era mesmo o assunto
principal, Lord Vlad?
Vladimir exala pesadamente com um riso abafado e sedutor.
— Acho que você estava prestes a surtar porque eu não contei sobre a
sua sobrinha — relembra.
— Você é muito babaca — declaro, sem a menor convicção. Sua outra
mão vai direto para minha coxa e pressiona com força a curva entre a minha
virilha. — Nós somos amigos agora, lembra?
— E? — sussurra perto do meu ouvido.
— Idiota — arfo. — Estamos na frente de um abrigo!
— Já disse que faço tudo o que eu quero, Serena. A menos que me
mande parar, vou sempre tomar de você o que preciso. — Ele sobe meu
vestido devagar, o tecido desliza para cima dos joelhos, precipitando sua por
baixo do pano.
— Como se fosse fácil assim dizer não para você. Tá faltando espelho
na sua casa.
Por mais que eu consiga me manter firme em todos os aspectos dessa
relação, Vladimir sempre tem o controle no tocante à nossa intimidade.
Tenho capacidade suficiente para assumir a dianteira, estabelecer um ritmo,
mas eu simplesmente não quero. É muito bom me sentir seduzida, permitir
que ele alimente um pouco a criatura gananciosa que tanto se deleita com a
minha rendição.
Seus dedos afundam sob o tecido da minha roupa íntima e Vladimir
mordisca minha orelha pouco antes de dizer:
— Você tem alguma coisa que me deixa assim, mais necessitado. Você
me desafia, Corazón. — Ele se afasta com um sorriso presunçoso que me faz
querer estapear sua linda cara e depois beijar muito, porque conseguiu
desviar do foco com muita facilidade.
— Não devia ter mentido sobre isso, Vladimir — pestanejo, a raiva
apaziguada. — Já sabia que aconteceria mais cedo ou mais tarde, mas não
pensei que seria tão imediato. Ela é um bebê frágil que precisa de cuidados, e
eu sou essa bomba relógio que estraga as coisas. — Apesar de tudo, Vladimir
ainda deixa transparecer um pouquinho de arrependimento. O olhar se fixa na
rua vazia à nossa frente.
— Eu tive medo de que você entrasse em pânico e fizesse alguma
besteira…
— Que tipo de besteira eu poderia fazer que já não tenha feito? —
pergunto, incomodada.
Ele não tem como saber, tem?
— Não sei. Ir embora e me deixar, talvez. Não sei, Corazón, já disse
que se tratando de você eu nunca entendo. — Vladimir abre a porta e sai do
carro, esperando por mim no lado de fora.
Mais confuso impossível, misericórdia! Não é ele mesmo que está
doido para se casar com outra? Eu hein!
Aguardo um minuto ou dois antes de sair do carro, recuperando a
paciência. Lembro-me do meu apartamento vazio e não me agrada a ideia de
levar Luna para morar naquele lugar depois do que aconteceu, além de eu não
saber por quanto tempo conseguiria continuar pagando o aluguel.
— Encare seus problemas, se não eles te encaram de volta — disse
Nicolai após uma de minhas sessões com o psicólogo. — Nem todos os
fardos foram feitos para uma pessoa suportar sozinha.
Nicolai fez comigo a mesma coisa que Vladimir está tentando fazer:
ajudar sem ser ajudado de volta, mantendo-me no escuro e tomando decisões
por conta própria.
O clima está quente apesar de uma brisa que acaricia a pele exposta dos
meus braços. O abrigo não é muito grande, porém colorido o bastante para
agradar em um primeiro momento. Com as mãos dentro do bolso da calça
social, Vladimir me espera com a cabeça erguida para o horizonte, a luz solar
pincela seu rosto com um brilho paradisíaco. Um demônio vestido de anjo ou
um anjo disfarçado de demônio?
Demônios não eram anjos para começo de conversa?
— Tudo o que disseram ontem sobre Luna — digo, admirando a
silhueta ilegível de Vladimir contra o sol da tarde — prova que fez a coisa
certa, Lord Vlad. Pare de procurar motivos para fazer com que eu odeie você.
Ao fim da minha declaração, Vladimir perde momentaneamente a fala.
Gosto desses momentos raros quando a máscara de líder supremo escorrega
um pouquinho. Vladimir me chama, esticando o braço, mas, ao entrelaçamos
nossas mãos, ele não se contenta e me puxa para um abraço.
— Obrigado por não transformar isso em uma tempestade. Você estaria
no seu direito, sabe? — murmura com a boca encostada na minha testa.
— Não se engane, bonitão, alguma parte de mim está bem brava nesse
momento — digo para amenizar o clima, mesmo que seja verdade. Eu só não
consigo agir como se ele fosse o único culpado.
É para frente que a vida corre.
— Agora vamos pegar nossa… sua sobrinha. Mesmo querendo te levar
de volta para o carro, você não é muito silenciosa e não quero que ninguém
escute você gemendo além de mim.
— Diz o homem que acabou de enfiar a mão debaixo do meu vestido
— ironizo, e ele, obviamente, sorri.
Entramos juntos no abrigo e somos acompanhados por olhares curiosos
de funcionárias vestidas com roupas rosadas. Aliás, olhares esses
direcionados quase exclusivamente ao monumento ao meu lado. Não as
condeno, pois estou fazendo a mesma coisa desde a primeira vez que nos
encontramos. Olhar é de graça, para a alegria geral da nação.
A moça que nos recebe é a mesma do dia anterior, e meu cérebro
desliga completamente para a conversa burocrática que Vladimir inicia sobre
qualquer coisa a respeito de papeladas e outras chatices. Ela nos leva até seu
escritório e fico ligada no automático durante a maior parte da conversa,
acenando com a cabeça vez ou outra quando Vladimir faz alguma pergunta
importante.
Depois de quase uma hora, finalmente começo a colocar minhas
assinaturas na imensa pilha de documentos que, de acordo com Vladimir, me
tornarão guardiã legal de Luna Fajardo.
Não surta, Serena, você consegue, diz a minha consciência.
Leio as informações sobre ela no topo de uma das páginas, o nome que
Camillo escolheu para homenagear nossa mãe.
Luna Fajardo.
Luazinha.
Oito meses.
Eu nem sabia a idade dela!
— Acho que vou vomitar.
— Está tudo bem, senhorita Fajardo? — pergunta a mulher quando
minha mão trêmula para entre o meu nome e o sobrenome. A moça me
analisa cheia de preocupação, mas nada comparado a Vladimir.
— Corazón, vai dar tudo certo — tranquiliza. — Eu vou ajudar vocês
duas. Quer dizer, vai me deixar ajudar, não vai? Porque eu vou fazer isso,
quer você queira ou não.
— Ela vai precisar de um médico, e roupas, e um berço — constato em
voz alta. — É claro que você vai me ajudar, isso também é culpa sua. Tá me
achando com cara de palhaça? — Olho para a senhora, que continua com o
semblante desconfiado; deve achar que somos incompetentes e está
certíssima, porém não digo isso. — Ele me arrumou uma filha sem nem me
engravidar e estava achando que eu ia recusar ajuda, bem doido ele, né?
Vladimir gargalha, a senhorinha sorri e todo mundo ignora o meu
desespero, como sempre.
— Você é uma moça bem peculiar — comenta, mas é para Vladimir
que direciona a próxima frase: — Tenho certeza de que serão ótimos pais
para essa pequena.
Fico esperando-o esclarecer o equívoco, mas Vladimir somente abre
um grande sorriso e me encara, seus traços graciosos suavizam em uma
expressão divertida e eu reviro os olhos antes de voltar a escrever meu nome
em papéis e mais papéis.
Depois de tudo pronto, outra mulher, uma mais jovem e com o cabelo
loiro preso em um rabo de cavalo alto, nos guia para dentro do abrigo,
explicando as repartições dos serviços ofertados às crianças e qualquer outra
coisa que me soa como um zunido de abelha.
— Você a chamou de filha — Vladimir diz baixinho. Continua sorrindo
enquanto eu sou toda nervos e tremores.
— Algum problema? — indago. A pergunta soa mais ríspida do que eu
gostaria, mas o homem está animado como nunca vi nessa vida. Suas
alterações de humor chegam a ser assustadoras. — Se Annia não sair da
prisão e Camillo não voltar, é isso o que eu será, não? Depois de tudo o que
disseram, para falar a verdade, mesmo que tenham a chance de a exigir de
volta, não acho que seja uma alternativa plausível.
— Problema nenhum. — Ele olha para frente. — Eu gosto.
Ele… gosta? Que merda isso deveria significar?
Antes que eu tenha tempo para questionar, entramos em uma salinha
pequena e enfeitada com objetos pendurados no teto. Sou atraída por Luna
imediatamente, a única criança sentada, quietinha e em silêncio total
enquanto outros dois bebês choram copiosamente em berços distintos de
metal.
— Nunca vimos uma menininha tão calma e boazinha — diz a mulher,
separando uma mala de mão com um cobertor dobrado. — Apesar de tudo,
ela já se recuperou bastante, mas colocamos todos os exames junto com os
documentos de tutela e a medição.
Vladimir faz um estalo irritadiço com a língua ao ouvir essas instruções
cruas.
— Não puxou para a minha família — resmungo para aplacar o
nervosismo. Ele pega a mala e pendura no ombro enquanto a mulher vai
buscar meu mais novo bebê. Respira. — Durante a semana em que morei
com Annia, eu já havia percebido que Luna era uma criança assim, mas não
cheguei a suspeitar das suas condições de saúde.
— Bem, ela teve muita sorte — continua tagarelando a moça; se ela
disse seu nome, eu não gravei. — Geralmente esses processos são mais
demorados, e muitas crianças passam toda a recuperação aqui no abrigo antes
de voltarem às próprias famílias. Isso quando não acabam voltando para os
próprios pais problemáticos. Muitas dessas crianças são reincidentes.
Faço uma nota mental para agradecer a Andrei adequadamente depois,
mas, no momento, tudo o que penso é nessa aflição gigantesca por imaginar
qual seria o destino de Luna se toda essa confusão com o clube não tivesse
acontecido.
Vladimir pode ter muitos defeitos, e eu posso estar agindo como uma
tola por me afeiçoar cegamente a ele, mas ninguém pode negar que suas
escolhas são para o bem daqueles que importam.
Annia e Camillo não têm condições de criar essa criança.
Eu também não tenho. Mas talvez… só talvez…
A mulher se aproxima com Luna no colo. Os olhinhos escuros dela
focam em mim e esse é o máximo de reconhecimento que esboça. Suas
bochechas estão mais rosadas e redondas, a apatia gerada pela má
alimentação foi substituída por uma expressão suave que me faz lembrar uma
noite de Lua nova no verão.
Luna vira o rostinho para Vladimir, ergue a cabeça para trás, parecendo
muito menor em comparação ao homem grande e de presença forte ao meu
lado. A funcionária para diante de nós, esperando alguma coisa.
— E então? — Vladimir me olha de soslaio, limpa a garganta e por fim
estica os braços para pegar minha sobrinha no colo. Corajoso! — Oi, Luna —
diz, encarando a neném de nariz arrebitado.
Ela emite um som, pode ser a tentativa de uma palavra. Mas a imagem
de Vladimir segurando uma criança é, no mínimo, um absurdo imenso, do
tipo que faz os úteros das mulheres se retorcerem com a vontade de carregar
um filho dele.
Bato três vezes na madeira da porta. Preciso passar na farmácia para
comprar um remédio. Com a sorte que eu tenho, não duvido nada que acabe
grávida de quíntuplos, sozinha e pobre, só porque não consegui resistir à
oportunidade de experimentar a sensação do corpo de Vladimir dentro do
meu sem nada para atrapalhar.
¡Puta madre!
— Ela gostou de você — observa a mocinha loira, toda cheia de
sorrisos, mas Vladimir nem se dá ao trabalho de responder. Encara Luna
como se estivesse diante de um quebra-cabeça com muitas peças pequenas.
— Acho que está tudo pronto — tenta outra vez, mas só recebe o silêncio
como resposta. Por fim, desiste e diz: — Boa sorte.
— Vamos precisar — agradeço, ela franze o cenho. — Quero dizer,
obrigada. — Eu e Vladimir nos encaramos. O tom do seu cabelo é
absurdamente parecido com o de Luna e, não sei por qual motivo, me pego
fazendo comparações. A mão pequenina pousa na bochecha dele fica parada
enquanto os olhinhos dela brilham. — Também acho que ela gostou de você
— digo abobalhada. — Menina de bom gosto, puxou a mim.
— Claro que ela gostou de mim, ninguém resiste ao charme do
presidente. — Ele parte em direção à saída. Apesar da confiança exagerada,
seu corpo está rígido e os ombros tensos, como se carregar a menina fosse um
teste de equilíbrio.
Acompanho devagar, observando a curiosidade de Luna com relação às
orelhas de Vladimir e a gola de sua camisa. Quando chegamos ao carro, ela já
conseguiu desalinhar toda sua aparência imaculada de homem de negócios.
— Acho que precisamos de uma cadeirinha, não é? — diz, parado
diante da porta do passageiro. — Acho que existe alguma lei sobre isso.
— Acho que se você tivesse me contado antes, poderíamos ter
providenciado isso com antecedência.
— Está vendo? — diz para Luna, que somente balbucia alguma coisa
na língua dos bebês como resposta. — Ela ainda não me perdoou. O que será
que eu preciso fazer para sua tia me perdoar de verdade?
A forma carinhosa como conversa com ela me deixa emocionada. O
homem confuso e quebrado que conseguiu conquistar o meu coração
continua entrando cada vez mais fundo na minha vida e minha língua pulsa
com a vontade de contar que o amo.
Deve estar tão assustado quanto eu, uma criança era a última coisa com
a qual queria lidar nesse momento e continuo lhe trazendo mais problemas.
Mas eu o amo.
E Vladimir não precisa de uma declaração de amor logo agora.
— Me ajude a ficar com ela — peço de repente. Vladimir me olha um
tanto preocupado e nem posso me ofender. — Bem coisa de doida mesmo.
Onde eu estou com a cabeça? Acho que nem consigo a segurar no colo. —
Indico Luna com a mão esticada, minha voz soando um pouco trêmula. —
Nunca segurei criança nenhuma e existe uma grande chance de eu deixá-la
cair no chão. Mas está sozinha. Ela está sozinha exatamente como eu estava.
Camillo a deixou da mesma forma como me deixou. Entende? — Respiro
fundo, aquele desespero que eu conheço bem revolvendo meu coração. Eu
não quero afundar outra vez, não quero começar a me sentir assim. — Ela
está sozinha — repito.
Vladimir me alcança e me captura em um abraço apertado com Luna
entre nós. Fecho meus olhos, registrando a sensação da pele macia de Luna
roçando nas minhas bochechas, o queixo de Vladimir pousado em cima da
minha cabeça segundos antes de se inclinar e encostar os lábios rapidamente
sobre os meus.
— Como você consegue ser assim? — pergunta. Luna olha para ele,
atraída pela voz grave.
— Assim, louca? — Sorrio, a calmaria leva para longe o medo e a
fraqueza.
— Assim, incrível. Assim… — Mas ele não completa, nega com a
cabeça e diz: — Eu vou resolver as merdas com esse maldito clube…
— Eu gosto do seu maldito clube — interrompo, pois Vladimir tem
essa tendência de tomar responsabilidades que não lhe cabem. — Se não
fosse por ele, a gente nunca teria se conhecido, se envolvido de verdade, e
Luna talvez acabasse em um hospital ou coisa pior. De alguma forma, aquele
clube trouxe você e ela para a minha vida.
— Serena, vou ajudar você a ficar com ela. — Vladimir dá um passo
para trás, e depois outro. — E não diga mais que está sozinha. Nenhuma de
vocês duas está.
Ele abre um sorriso que pode significar muitas coisas, mas o principal
sentimento que reconheço em seu olhar é o orgulho. Não de si mesmo, mas
de mim. Porque quando dá as costas para entrar no carro, percebo que deixou
Luna no meu colo.
SERENA

— QUE TIPO DE sexo mutante vocês dois fizeram para voltarem com uma
filha desse tamanho? — Roman pergunta assim que ultrapassamos a soleira
da mansão.
— O tipo “guarde seus comentários inapropriados para você” —
responde Vladimir com Luna acomodada em seus braços fortes e protetores;
não me passa despercebido a falta de negativa. — Onde estão todos?
Roman balança os ombros despreocupadamente.
— Andrei e Ivan continuam na empresa, Lara também teve que ir,
porque aquilo sem você beira o apocalipse e, sem ela, se tornaria uma
catástrofe completa. — Ele está sentado no chão diante da mesa de centro
localizada no meio do salão de entrada. Há vários papéis quadriculados com
desenhos arquitetônicos esparramados ao seu redor e dois computadores
ligados, um sobre o sofá e outro ao seu lado, em cima do tapete branco e
felpudo. A camisa desarrumada deixa à mostra aquela tatuagem com o lobo
em fúria, e a gravata desfeita esparrama em seus ombros. — Eu já tive minha
cota de terno para uma vida inteira ontem, por isso estou trabalhando em
casa.
— Então você trabalha de verdade — comento por impulso. O
pensamento escorrega sem que eu perceba, mas Roman gargalha alto ao fim
da minha constatação.
— Claro que eu trabalho, bebê. — Ele pisca um olho galante. — Ou
você acha que essa empresa teria tanto sucesso sem o melhor e mais gostoso
engenheiro de Moscou?
— Da Rússia — Vladimir corrige; há certo orgulho e prepotência em
seu tom. — Você é o melhor do país.
Luna, observando a falação, solta uma sequência de resmungos sérios
como se quisesse participar da conversa. Os dois irmãos olham um para o
outro e sorriem. Vladimir parece sempre direcionar uma atenção curiosa para
minha sobrinha, quase contemplativa. Durante todo o caminho, notei seu
olhar preocupado desviando para o espelho retrovisor, zelando por Luna na
cadeirinha que custou uma pequena fortuna já que Vladimir não possui
nenhum discernimento sobre limites de preço.
— Ela disse que me acha lindo, ouviram? A filha mutante de vocês
sabe das coisas. — Roman se levanta, fechando os botões inferiores da roupa.
Os braços, expostos por causa das mangas dobradas na altura dos cotovelos,
são marcados por músculos e desenhos sobrepostos difíceis de identificar. —
Qual o seu nome, gracinha? — Ele acaricia a bochecha de Luna com a ponta
do indicador, mas não recebe nenhuma reação além dos olhões negros da
pequena perscrutando seu rosto.
— Ela se chama Luna — Vladimir responde enquanto confere qualquer
coisa nos materiais de trabalho do irmão.
— É minha sobrinha — explico, ao perceber que Vladimir não vai
mesmo se prontificar a tanto. — Filha do Camillo.
— Não que isso signifique muito — Vladimir murmura, ríspido.
Não contesto, pois compartilho da mesma opinião. Camillo nunca
conseguiu se cuidar ou me dar o apoio de que precisava. Ainda não entendo
as circunstâncias em que Luna foi gerada, mas tenho certeza de que, se ele
realmente se importasse com a segurança dela, não teria deixado a filha
naquelas condições para desaparecer no mundo.
— Sinto muito que as coisas tenham que ser assim, Serena — Roman
diz. Acho que é a primeira vez utilizando meu nome ao invés de algum
apelido esperto. — Estamos em dívida com você.
— Ela está melhor agora — afirmo com um sorriso amarelo. Suspeito
que não esteja se referindo somente à situação com Luna, mas sim ao meu
relacionamento estranho com seu irmão. Chego mais perto de Vladimir, que
tenta se inclinar o máximo possível para analisar o material de trabalho do
irmão, ao mesmo tempo em que se equilibra com a bebezinha repuxando a
gola da sua camisa como se fosse muito divertida.
— O que são essas coisas? — Vladimir indaga, as expressões faciais
transmutando de brandas para preocupadas.
A boca de Roman se retorce em uma careta ao focar na bagunça
esparramada por toda a sala. Desde a minha chegada, pude perceber que os
únicos que realmente usam os escritórios residenciais para trabalhar são
Vladimir e Ivan — o segundo com menor frequência, já que dedica noventa e
nove por cento do seu tempo livre para agradar a esposa ou brincar com o
filho.
— Bem — diz, sua mão correndo para o cabelo acastanhado, os fios
muitos tons mais claros que os de Vladimir ou Andrei —, eu estava curioso
sobre o que nossa mãe tanto procura naquele almoxarifado e resolvi me
aventurar pelas velharias do coroa. Encontrei essas plantas escondidas em um
baú mofado.
— São da empresa? — Vladimir endireita o corpo, a linha de sua
mandíbula muito comprimida. Qualquer coisa que remeta à empresa faz com
que assuma uma postura rígida.
— São horríveis, uma completa porcaria. Quem desenvolveu essas
plantas deveria estar na cadeia. Estão timbradas com o logotipo da
Corporação Volkiov, mas eu nunca me deparei com um projeto tão ruim.
Acredito que sejam de oito ou nove anos atrás, quando nosso pai ainda lidava
com tudo sozinho. — Ele pega um bloco e mostra para Vladimir; eu me vejo
deslocada no meio do assunto. — Olha essa lista de materiais, uma
construção assim seria o mesmo que assassinato em massa.
Uma sombra rasga o rosto de Vladimir a tal ponto que até Roman fica
momentaneamente sem fala. Seus olhos cintilam como se tivessem o poder
de incendiar o documento. Ele se perde em um pensamento desesperador;
reconheço o tormento, sempre identifico o poço de escuridão porque já estive
lá dentro.
Luna resmunga, completamente alheia ao homem severo que a sustenta
com braços fortes e destemidos. Ela boceja com sua boca minúscula, a cabeça
pende para frente e pousa no ombro de Vladimir.
Tão rápido quanto veio, a reação dele escorre para longe e Vladimir
retoma o controle das próprias expressões, escondendo seja lá qual tipo de
gatilho o fez recorrer ao monstro.
— Era isso o que nossa mãe estava procurando? — pergunta, a palma
da mão acariciando as costas de Luna e suas iniciativas de carinho com ela
são como punhos fechados ao redor da minha saúde emocional.
Quero tanto que ele me escolha. É um sentimento de dependência
grande e profundo demais para ser negado. Burra e burra! Já tinha ouvido
falar que o amor deixa as pessoas um pouco idiotas, mas eu devo estar
batendo algum tipo de recorde. Se existe uma marca histórica para ser
humano mais trouxa no guinness book, então conquistei o primeiro lugar há
tempos.
— Não, não. Quando perguntei, ela disse que queria encontrar uma
fotografia velha e que eu cuidasse da minha vida, arrumasse filhos e o resto
vocês já sabem.
— O que pretende encontrar revirando essas coisas?
— Na verdade, não sei bem. — Roman volta para perto da mesa,
sentando-se no chão, no mesmo lugar em que estava acomodado antes de
chegarmos. Ele pousa o olhar nos itens listados nas folhas em sua mão e um
vinco se forma em sua testa enquanto a expressão indignada aprofunda nos
traços masculinos e incisivos. — Tenho a sensação de já ter visto esse projeto
em algum lugar e acho que acabei ficando um pouco obcecado.
— Avise-me se descobrir alguma coisa — Vladimir solicita, como se
houvesse realmente algo para ser encontrado.
Ele estica a mão e segura a minha, começa a nos guiar para os fundos
da mansão, onde, suponho, pretenda encontrar sua mãe para apresentar Luna.
Porém, antes que tenhamos a chance de ultrapassar o arco de madeira do
corredor principal, a voz de Roman se materializa novamente, fazendo
Vladimir cessar os passos.
— Você conferiu o e-mail que mencionei?
Do que eles estão falando?
Os dois irmãos se entreolham, conversando em silêncio e me excluindo
totalmente de qualquer que seja o assunto. Roman e Vladimir são muito
diferentes fisicamente, apesar de ambos serem fortes e exalarem
sensualidade, mas os dois estão envoltos por uma atmosfera perigosa e cheia
de mistérios.
Se Vladimir se intitula um monstro, o próprio demônio sedento pelo
poder absoluto, imagino que tipo de criatura seria Roman e quais são os seus
desejos.
— Sim. — É tudo o que Vladimir responde, e essa única palavra mais
se parece com um rosnado.
Sem se intimidar, Roman estampa um sorriso cínico e abusado no
rosto; seu canino esquerdo aponta sobre o lábio e os olhos brilham com uma
diversão sem prestígio.
Misericórdia, é muito sex appeal reunido em um lugar só.
— Interessante — ironiza, espreguiçando os braços para trás da cabeça
—, porque ontem eu me lembro de ter ouvido um rumor na empresa sobre
você passar a semana fora. Achei que fosse acabar com essa merda. A gente
não precisa do dinheiro deles de qualquer forma.
Finjo não prestar atenção, mas fica evidente que estão falando sobre o
compromisso de Vladimir com sua pretendente. Imaginar a cena de ele se
casando com outra mulher faz minha garganta arder. Mesmo lutando para ser
forte, o amor germinando no meu coração já criou raízes profundas demais.
Eu gostaria de entender por que o destino foi tão cruel conosco se
nunca existiu um futuro para nós.
Os dedos de Vladimir roçam na minha bochecha e sobressalto ao ser
retirada dos pensamentos de pesar. É uma sensação mágica, o simples toque
do homem que amo assopra o medo do amanhã para longe, e aquele órgão
idiota e vermelho no meio do meu peito começa a pulsar mais rápido.
— Eu vou acomodar Serena e Luna agora. — A iluminação diurna
filtrada pelas cortinas da mansão transforma o azul oceânico dos olhos de
Vladimir em uma turquesa fosca; e, enquanto conversa com o irmão, ele não
desfaz nosso contato visual um segundo sequer, como se as palavras fossem
dedicadas apenas para mim e mais ninguém. — Andrei me adiantou algumas
coisas, mas também fui pego de surpresa com essa viagem. Eu vou resolver
tudo o mais rápido possível.
— O senhor quem manda, presidente. — Roman não se preocupa em
disfarçar o descontentamento.
Vladimir desfaz o toque ao ter seu cabelo puxado por Luna. Arqueia
uma sobrancelha para a menina, como se ela tivesse habilidade para
interpretar expressões faciais, e se coloca a andar corredor adentro,
sussurrando alguma advertência bem-humorada sobre a importância de
manter sua aparência sempre alinhada.
— Serena — Roman diz com o volume da voz várias escalas mais
baixas. Meus pés se prendem ao chão enquanto assisto Vladimir desaparecer
por uma curva. — Você está bem?
— Por que a pergunta? — Cruzo os braços e encosto na madeira que
ornamenta a passagem; minhas articulações doem pela viagem e por toda a
experiência vivida com Vladimir.
— Meu irmão sabe como ser um canalha quando quer, é coisa de
família. — Ele puxa um dos computadores para mais perto e se curva para
voltar ao trabalho, enquanto continuo parada administrando sua tentativa de
consolo. — Estou tentando acreditar que ele não vai ferrar com tudo, bebê.
Vladimir leva a empresa realmente a sério, aquela merda é a vida dele e você
caiu de paraquedas bem no meio do campo minado.
— Nosso relacionamento tem prazo de validade — digo com um
humor forçado e áspero. Roman tem se mostrado um bom ouvinte durante a
minha estadia, talvez por sermos parecidos em nossa propensão de falar o que
pensamos. — E já estou acostumada a me ferrar sozinha.
— Não é da minha conta o relacionamento bizarro de vocês dois, sabe?
Eu não me envolvo com ninguém justamente por causa disso, o drama é uma
merda. Mas se tem uma coisa em que eu e Vladimir somos exatamente
iguais, é que a gente não sabe a hora certa de recuar.
— Agradeço a sua preocupação, mas sei me cuidar.
Um riso nasalado deixa as narinas de Roman, seus ombros estremecem
e a cabeça gira da esquerda para direita em uma negação abatida.
— Não é bem com você que estou preocupado…
Passos reverberam pelo corredor, o som de um sapato pesado assalta o
chão, sobrepujando a centelha de gentileza que Roman estava tentando
oferecer. Olhamos a tempo de ver sua mãe em polvorosa com Luna
desajeitada em seus braços cobertos por joias. O cabelo solto cobre seus
ombros como um cobertor prateado e o macacão esvoaçante e esmeraldino
comprova minhas suspeitas de que Tatiana está sempre vestida para arrasar.
— Veja isso! — Tatiana grita com a voz estridente. Luna sobressalta e
se desmancha em uma gargalhada sonora que atravessa meu coração com
uma dor muito maior do que qualquer outra que já senti na vida. É a primeira
vez que escuto o som da sua risada. — É um bebê! Uma criança, Roman.
Não lembro quando foi a última vez que tive uma dessa em meus braços.
Ela passa por mim e corre em direção ao filho, balançando Luna de um
lado para o outro, exibindo a pequena como se fosse um troféu.
No meio dessas pessoas amáveis e barulhentas, se torna mais evidente a
precariedade da minha vida. Tenho pouco para oferecer a essa criança, menos
do que eu gostaria, menos do que ela merece, e não apenas em termos
financeiros. Duvido que Vladimir nos abandone sem qualquer ajuda, ele é
detalhista, controlador e metódico demais para fazer uma coisa dessas; além
do terreno, que deve me render uma boa quantia. Mas… e o resto?
O conforto dessa família talvez tenha afetado o meu cérebro, que já não
funciona muito bem. Talvez a segurança de Vladimir em suas decisões tenha
impedido que eu pensasse com clareza a respeito da minha capacidade de
assumir responsabilidades pela vida de outro ser humano.
Adotar uma criança, assumir Luna como minha filha, significa que a
minha vida vai estar ligada à dela para sempre. Minha vida, a mesma que
tentei eliminar no passado após a morte dos meus pais.
É seguro?
Eu sou a melhor escolha para cuidar dela?
E se algum dia eu falhar? E se eu falhar com ela? E se eu desistir outra
vez?
— Corazón. — A palma de Vladimir encontra minhas costas e sua
chegada repentina me assusta, fazendo meu corpo recuar por impulso; essa
reação involuntária não passa despercebida por seus olhos astutos. — O que
aconteceu?
— Eu só… — Estava quase tendo o princípio de um ataque de
ansiedade. — Acho que preciso descansar um pouco.
Esfrego as mãos uma na outra. Elas deslizam com o suor frio
acumulado e minha respiração condensa nos pulmões, preenchendo-me com
a certeza de que preciso mesmo de uma consulta se quero manter o
equilíbrio. Já adiei o inevitável por tempo demais e Vladimir não é
exatamente o homem ideal para minha sanidade.
Aliás, duvido que seja ideal para a sanidade de qualquer mulher,
misericórdia!
— Exatamente, precisamos comprar móveis novos — Tatiana conversa
com Roman, que parece colocar ideias na cabeça da mãe. — E roupas,
vestidinhos com muitos babados, um berço grande e espaçoso.
— Quem sabe uma conta bancária para pouparmos dinheiro para os
estudos? — Roman sugere e, apesar do semblante de quem conta uma piada,
Tatiana continua concordando.
Agora entendo o receio de Lara em contar sobre suas suspeitas de
gravidez.
— É uma boa ideia — sussurra Vladimir, empurrando minha ansiedade
um pouquinho mais para a borda de uma montanha muito alta que engana
com ecos de esperanças traiçoeiras.
Fecho os olhos para que os últimos resquícios do medo se dissipem da
minha cabeça. Assuma o controle, Serena, sua idiota. Permanecer ao lado de
Vladimir, mesmo com tudo me dizendo o contrário — inclusive ele mesmo
—, foi a minha escolha final.
A porta da mansão se abre, revelando a chegada dos membros
remanescentes da família. Lara e Ivan, ambos vestidos com roupas formais,
entram abraçados e congelam no lugar como se a cena diante dos seus olhos
não fosse condizente com qualquer dedução — e não é mesmo. O pequeno
Iago, cujo cabelo se encontra impossivelmente comprido e bagunçado para o
alto, franze as sobrancelhas louras, fazendo jus à confusão dos pais.
— Lara, querida! — cantarola a matriarca, avançando sobre a nora e
empurrando Luna em sua direção. — Segure, segure — repete. Lara a segura
com receio e as bochechas da minha pequena adquirem uma coloração
avermelhada com todo o movimento. — Veja, Ivan, como a sua mulher fica
linda segurando um bebê!
É automático: Lara olha na minha direção e sorri. Nem passa pela sua
cabeça a forma como a minha língua contorce para espalhar seu segredo aos
quatro ventos, pobrezinha.
A família se amontoa sobre Luna, cada um com uma ideia diferente
sobre coisas que precisam ser providenciadas. Iago se enfia no meio do
aglomerado e acaba sentado no sofá com Luna em seus braços.
Eles conversam sobre tudo ao mesmo tempo e, depois de Ivan explicar
que a empresa se tornou um verdadeiro pandemônio, Vladimir relata um
pouco sobre as condições do abrigo — Lara demonstra um interesse
particular sobre isso, perguntando detalhes sobre funcionários e
documentações.
Enquanto os assisto, uma movimentação no degrau mais baixo da
escada chama a minha atenção.
Andrei, com as mãos escondidas nos bolsos da calça branca, assiste ao
desenrolar da cena. Não se aproxima como o resto da família, apenas fica
parado, a expressão indecifrável e um pouco sombria, talvez
assustadoramente triste. Como se fosse atraído pelo peso da minha
curiosidade, gira o pescoço e nossos olhares se encontram, mas o irmão mais
novo de Vladimir não se atém. Ele desvia o rosto e sobe as escadas em
silêncio.

***

Há uma coisa sobre revistas de fofocas que acompanham a vida de pessoas


famosas que ninguém ousa admitir: por mais insossas e fúteis que sejam as
notícias, a gente sempre acaba clicando em algumas delas só para ver se
gente rica tem os mesmos problemas e dilemas que nós, meros mortais.
Mas quando o homem que a gente ama começa a estampar a grande
maioria delas, com especulações sobre sua relação com outra mulher, acessar
essas fofocas perde um pouco do sentido. Não é mais tão divertido.
O passar dos dias tem servido apenas para deixar Vladimir mais
ocupado e mais nervoso. Ele dedica seu pouco e raro tempo livre para ficar
comigo e com Luna — a quem agora só chama de Luazinha. Mas, aos olhos
do mundo, seu compromisso não é comigo.
Eu sei que algo grave o está deixando ansioso e irritado. Brigamos mais
de uma vez sobre sua insistência em tentar resolver tudo sozinho e sua
desculpa é a mesma de sempre, sobre como isso é responsabilidade dele
enquanto presidente, blá, blá, blá, muitos dramas, blá, blá, blá, ele sabe o que
faz, blá, blá, blá, todo poderoso mandão.
Tão lindo, mas tão complicado!
Acordo sozinha na cama — exceto por Malévola emaranhada nos
cobertores como se fosse uma rainha — e na mesma posição torta de quando
me acomodei para esperar o retorno de Vladimir na noite anterior, que partiu
para a empresa junto com os irmãos com o argumento de que precisava
trabalhar.
No entanto, apenas Lara e Ivan voltaram quando a noite cobriu o céu
com uma cortina escura e nublada, nada característica da primavera nessa
época do ano. Vladimir não enviou nenhuma mensagem e Andrei também
não deu sinal de vida para que eu pudesse especular sobre os desdobramentos
no caso de Luna. Roman voltou depois do jantar por tempo suficiente para
tomar um banho e trocar as roupas antes de desaparecer outra vez, ignorando
descaradamente as minhas perguntas sobre o irmão mais velho.
Ao lado da cama, Luna ressona dentro do berço improvisado que
Tatiana providenciou sabe-se lá de onde — o dinheiro e as facilidades que
dele derivam são assustadoras às vezes. O móvel é simples para os padrões
de riqueza da mobília que decora os aposentos da mansão; para os meus
padrões, a história é outra: jamais teria condições para comprar algo
minimamente parecido.
Sinto que as minhas pálpebras continuam pesadas; consequência da
minha imaginação estapafúrdica que me fez revirar na cama até altas horas da
madrugada, torturando-me com a cena de uma megera vestida de noiva
fazendo striptease em cima da mesa de Vladimir.
Pior!
Imaginando ele fazendo striptease até acabar vestido com nada mais do
que uma gravata borboleta no pescoço.
— É óbvio que foi se encontrar com a pretendente milionária para
conversarem sobre essa festa ridícula — sussurro para Malévola, que se
instalou permanente na cama de Vladimir. Está aí outro motivo que me fez
odiar repórteres fofoqueiros: o evento estúpido em que comparecerá em
breve. — Espero que algum cozinheiro cuspa na comida deles, que ele sofra
com problemas de ereção se resolver transar com ela. Não, não! Seria um
desperdício grande demais, mas eu absolutamente desejo que o sexo entre os
dois seja horrível! — Malévola boceja, pisca seus olhos bicolores cheios de
monotonia e afunda a cabeça preta no cobertor peludo. — Não vá se
acostumando com a vida boa, sua espertinha.
Como era de esperar, Luna não acordou durante a noite e continua
dormindo como uma pedra — o que me salvou do constrangimento de
precisar acordar a casa inteira para pedir ajuda no meio da madrugada. Ela é
o sonho de consumo de qualquer pai ou mãe, amém.
Aproveito para tomar um banho rápido com a porta do banheiro
entreaberta para o caso de ela acordar e, quando retorno com uma toalha
enrolada no corpo, quase tenho um ataque do coração ao me deparar com
Vladimir inclinado sobre o berço.
Estanco no meio do quarto, os detalhes me atingindo. Ele não usa mais
as mesmas roupas do dia anterior. O terno preto combinando com a gravata
listrada me remete ao nosso primeiro encontro, quando pediu opinião sobre o
conjunto ideal para usar no evento do hotel. O cabelo brilha com a umidade
de algum banho recém-tomado, e o perfume suave, apesar de delicioso, não
combina com seus ombros rígidos e a expressão inflexível.
Mas o que realmente faz minha garganta arder é a pequena mala
pousada perto da porta.
— Você já está de partida? — pergunto e, apesar do esforço para
disfarçar, todas as notas da decepção acentuam entre as palavras.
— Desculpe não ter voltado ontem, as coisas estão complicadas na
empresa. — Vladimir suspira e se senta no colchão, ignorando a minha
indagação. Incapaz de encarar o homem que amo por muito tempo sem
querer implorar para que não vá embora e nem faça striptease para mulheres
que não sejam eu, começo a vasculhar minhas roupas em busca de algo
decente para vestir. — A última coisa que eu gostaria nesse momento era me
afastar de você, Corazón.
— Você estava sozinho? Passou a noite sozinho no seu escritório, Lord
Vlad?
Retiro a toalha com a pele queimando sob o olhar penetrante de
Vladimir. Ele inspira sonoramente. Espreito seu semblante por cima dos
ombros, e todos os seus traços enrijecem como quem busca por um controle
ameaçado. Visto a primeira camisa de botões que encontro em uma das
gavetas dentro do closet, onde Tatiana enfiou uma quantidade absurda de
roupas femininas, alegando pertencerem à Lara — apesar da etiqueta em
todas as peças.
— Não vou ficar com outra pessoa enquanto estivermos juntos, Serena
— diz entredentes. — Já disse isso uma vez. Só preciso de tempo. A situação
está pior do que eu imaginava…
— Aquela mala cheia de gravatas borboleta me diz o contrário —
teimo, terminando de me vestir. Ando pelo quarto no modo automático, um
pouco puta demais para encarar esse homem que está bagunçando a minha
cabeça. — E você não respondeu à minha pergunta.
— Qual o problema com as minhas gravatas? — pondera, confirmando
minhas suspeitas de que está levando um monte delas. — Elena estava
comigo, sim — admite, levantando-se e tentando se aproximar, mas faço um
sinal com a mão para que mantenha distância.
Vladimir engole em seco, o corpo muito ereto e fugaz, um felino
ameaçado no próprio território, pronto para um ataque. Ele lança um olhar
furtivo para Luna, que segue plena em seu sono matinal, a única coisa que
impede de concluirmos essa discussão na cama.
Se concentra, Serena!
— Você não me deve satisfações — digo com maturidade, mas a
vontade real é de pular em seu pescoço. — Tudo bem, eu entendo. Quer
saber? Esquece, estou sendo ridícula. Nós somos apenas amigos, certo? Que
se beijam, transam e resgatam crianças de abrigos. Ela é sua futura noiva —
ironizo, banhada no veneno. Paciência tem limite e a minha tem sido testada
veemente. — Mãe dos seus filhos, nascida em berço de ouro, a salvadora da
sua empresa, rainha dos pobres empresários injustiçados…
— Sabe muito bem que você não é mais apenas uma amiga, Corazón.
— Vladimir circunda o berço para me alcançar; eu recuo por míseros
segundos antes de sucumbir em seus braços. Um gemido agudo desliza sobre
a minha língua quando dedos firmes enterram nos meus cabelos e puxam a
minha cabeça para trás.
— Maldito controlador! — resmungo, presa em um delicioso cativeiro
de músculos e prepotência. Pressiono a protuberância em seus ombros para
me equilibrar na ponta dos pés enquanto ele aproxima nossos rostos. — E o
que eu sou? — enfrento. — Você sabe dizer? Porque eu com certeza não faço
a menor ideia do que está passando pela sua mente. Isso não é justo.
Vladimir desliza a ponta da língua sobre os meus lábios abertos e
prontos para recebê-lo.
— Você é o meu fracasso, Serena. Aqueles nove meses procurando por
você nem se comparam com a certeza de que falhar é uma iminência. —
Espalmando a mão livre na minha lombar, Vladimir força meus quadris a se
encaixarem nos dele para que eu sinta e ambicione por suas investidas. — A
dúvida é algo novo que já odeio mais do que qualquer sentimento, porque ela
supõe que vou perder não importa qual seja a minha decisão; você, a
empresa…
Finalmente, rouba o meu fôlego ao me beijar. A língua provocadora
invade a minha boca, explorando todos os cantos, sentenciando-me a um
cárcere de sensações paradisíacas e infernais onde nós dois podemos ser
anjos ou demônios.
— Casar por obrigação é algo que eu e meus irmãos sempre cogitamos,
inclusive foi assim que Ivan e Lara se aproximaram — confessa entre um
beijo dominante e outro. — Eu fiz coisas por essa empresa que deixariam
você enojada, Corazón.
— Então me conte, Vladimir — peço. O volume da minha voz faz
Luna se remexer no berço. — Não me deixa no escuro, tente explicar o que
está acontecendo. Como espera que eu lute por você se nem mesmo conheço
o que estou enfrentando?
Vladimir me estuda. As olheiras abaixo de seus olhos comprovam que
esteve acordado a noite inteira e os ombros cabisbaixos parecem sustentar
toneladas de segredos e problemas. O receio em se abrir comigo dança livre
pelo quarto. É deduzível que o presidente de uma corporação multimilionária
não esteja acostumado a compartilhar.
Eu mesma, que nunca fui dona de nada além do meu próprio umbigo e
de uma gata com caráter duvidoso — e que acredita ser ela a dona da nossa
relação —, ainda não consegui contar sobre um passado a que somente
Nicolai teve acesso; não deveria exigir que Vladimir abra mão do seu
trabalho e de tudo o que almeja com o clube quando desconhece com qual
filamento lúgubre a minha alma foi tecida.
— Sinto muito — decreta, vestido com a máscara da indiferença.
— ¡Cabrón! — exclamo, claramente em espanhol ao ter minha boca
invadida outra vez. Ele manipula meu corpo com a sua experiência. — Idiota,
prepotente e covarde — completo para que entenda a ofensa.
— Sim — grunhe, a arrogância em forma de homem. — Eu avisei
sobre quem eu sou, e, mesmo sabendo disso, ainda quis ficar ao meu lado, ser
minha amiga.
Mas é mesmo um cafajeste!
— Continua sem coragem para desistir de mim e está tentado fazer com
que eu tome a iniciativa? — confronto. Ele engole em seco e nega
minimamente com a cabeça. — Bem, Lord Vlad, é melhor tentar com mais
vontade, porque você falhou nisso também!
Indecisa entre enfiar o joelho no meio das pernas dele ou encher seu
lindo rosto canalha de beijos, escolho o mais óbvio: finco minhas unhas em
sua nuca e capturo a boca desse homem complicado, imperfeito e
complexado. Vladimir geme e me congratulo por dissuadi-lo; a mão dele
vagueia para a minha coxa, começando a levantar enquanto projeta para
frente.
E é nesse momento que escutamos um soluço.
A gente se separa na velocidade da luz. Luna está sentada no berço,
desperta e com os olhinhos pretos arregalados na nossa direção.
— Madre santíssima, Vladimir. Ela viu tudo! — sussurro, a raiva e a
paixão sendo drenadas pelo choque da criança flagrando nossa libertinagem.
— Ela não entende, Serena. — Vladimir acha graça da minha reação,
mas demora um bom tempo para chegar perto dela. — Olá, pequena
bisbilhoteira — diz já com o sorriso entregue. Luna olha para Vladimir e,
contrariando as expectativas, estica os bracinhos.
Ao mesmo tempo que Vladimir faz uma manobra com o corpo para
pegar a criança, três batidas na porta ecoam e eu corro, ainda arfante e com o
cérebro rodando, para atender.
Tatiana entra no quarto assim que uma fresta surge. Os cabelos soltos
estão encaracolados nas pontas, brilhantes e prateados até a metade das
costas. Não parece a mãe de três filhos crescidos, tanto pelo corpo muito
delineado e curvilíneo quanto pela personalidade jovial e tempestuosa. A
cintura está marcada com uma calça alta com as barras largas e, como
sempre, ela se equilibra em cima de dois saltos que Deus me livre!
— Estava ouvindo atrás da porta, mãe?
— Imagina, eu? É um ultraje que me tenha em tão baixa estima,
Vladimir. — Ela não pede licença e toma Luna dos braços dele. — Só queria
ver como estava nossa pequenina, não tenho culpa se vocês dois discutem
alto demais. Aliás, precisam decidir se brigam ou se ficam se esfregando!
— Concordo — cantarolo, só para deixar o homem mais louco da vida.
Vladimir, frustrado pelo assalto, procura seu aparelho celular no bolso e
confere as horas.
— Bem, eu já estava de saída. — Ele beija Luna primeiro. O carinho
dele com a menina me surpreende bastante, e sua mãe também deve
compartilhar dessa surpresa, pois acompanha a cena com uma expressão de
choque. — Conversamos quando eu voltar — diz ao passar por mim e exigir
um último roçar de lábios que não nego.
Ao pegar sua mala, a realidade cai sobre mim como uma bomba. Uma
semana sem Vladimir não deveria ser tão assustadora para alguém que viveu
a maior parte da vida por conta própria. Não preciso dele, então por que meu
coração parece próximo de um ataque?
Nunca me disseram que o amor é uma condição física que abre um
buraco na carne e expõe nossas fraquezas.
Vladimir também é o meu fracasso. Estou permitindo que roube mais
do que tenho para oferecer.
Elaboro uma lista mental com todos os xingamentos em todas as
línguas imagináveis que eu tenha um mínimo de conhecimento quando ele
me olha uma última vez, a conversa suprimida pela sua reclusão, e vai
embora, deixando um vazio no lugar.
— Vai deixar que ele vá assim, sem resolver as coisas? Não é uma boa
ideia. — Tatiana balança de um lado para o outro com Luna em seu colo, as
mãos gordinhas enroscam nos vários colares que ela tem em seu pescoço.
— Vladimir é… — Não encontro a palavra perfeita.
— É, não é? Idêntico ao pai dele. Meu marido também tinha essa mania
irritante de tentar encarar os problemas sozinho. — Ela deita Luna na cama e
começa a despir a menina, algo que eu julgaria impossível para uma mulher
com seu status, mas os membros dessa família já provaram que não se
apegam a convenções. — Serena, você gosta do meu filho?
Eu o amo.
Aquiesço, confirmando o óbvio.
— Bem, acabei ouvindo o impasse de vocês completamente sem
querer e gostaria de agradecer você pelo que está fazendo por ele. Fazia
muitos anos que Vladimir não se envolvia assim com alguém. A última
pessoa que conseguiu penetrar um pouquinho naquele coração de pedra foi o
meu neto. Nunca acreditei que ele fosse encontrar uma mulher que aceitasse
tantos defeitos, e Vladimir soma um monte deles, não é mesmo? Mas, você
quer escutar o conselho de uma velha senhora solteirona? Manda aquele
idiota do meu filho enfiar a presidência lá onde o sol não bate. — Ela aponta
para a saída. — Vai, garota! Dê a ele alguma coisa para pensar durante a
semana. Eu e essa preciosidade temos um compromisso com o chuveiro
agora.
Hesito diante da ideia de me arriscar. Principalmente porque eu sinto as
rachaduras se formando toda vez que ele sussurra meu nome. Reconheço os
sinais, as mãos trêmulas e o suor frio, a sutil falta de ar e o medo de que isso
me arraste para o fundo. Mas Vladimir me deve isso, uma explicação,
qualquer coisa que faça valer esse sentimento vulnerável e inexplicável que
amplifica a minha vontade de experimentar o mundo ao lado dele.
Sem pensar uma segunda vez, saio correndo para alcançá-lo. Desço até
o primeiro andar e vou direto para a saída. O carro já deve estar esperando no
lado de fora, então não adianta procurar na garagem.
Escancaro a porta da frente e quase derrubo Roman ao me chocar
contra ele no alto da escada. A gente se desequilibra e só não caímos
escadaria abaixo graças à sua agilidade.
— Vai com calma, mulher! — grita exasperado com o braço
envolvendo a minha cintura. — Quer me matar do coração?
— Preciso alcançar o seu irmão. — Desvencilho-me de Roman sem
enxergar direito o que estou fazendo.
Avisto o carro cruzando devagar a estrada do jardim, lento e nem um
pouco perigoso.
Tudo bem…
É, não tem jeito.
Corto caminho para alcançar o carro antes que ele chegue ao portão que
já se encontra aberto. Pulo por cima de raízes altas próximas ao labirinto e
consigo me enfiar no meio da estrada de pedras. O motorista diminui a
velocidade, vira para trás e comenta qualquer coisa para Vladimir —
provavelmente que tem uma doida atrapalhando a passagem.
Assim que ele desce do carro, começo a falar para que não tenha
chances de me persuadir com o corpo másculo e a voz sedutora.
— Não estou tentando impedir você de partir nem nada assim, só
preciso ter certeza de que, se a gente acabar depois dessa semana, não reste
nenhum arrependimento na nossa história. Nós começamos da maneira
errada, e somos errados em todos os sentidos mais perfeitos, e eu sei que
você sente o mesmo. Então por que essa mulher e esse jantar são assim tão
importantes para você? Conversa comigo ou então me diga com todas as
letras, Lord Vlad. Diga que não me quer. Diga! — Empurro seu peito e a
gente se emaranha em uma disputa corporal para ver quem vai assumir o
controle da situação.
— Você é minha, Serena — vocifera, segurando minha mandíbula com
uma ferocidade voraz que acende a chama ardente do desejo e queima entre
nós como um incêndio descontrolado — Não posso dizer uma coisa dessas.
Ainda não entendeu, não é mesmo? Quando eu digo que consigo tudo aquilo
que eu quero, estou me referindo única e exclusivamente a você!
Ah, por essa eu não esperava.
— Então qual é o problema? — murmuro.
— Passei a noite na empresa, Corazón. Não tive tempo para dormir. —
Ele me abraça, induzindo a minha cabeça a pousar sobre seu coração. Não
recuso as carícias, coerência passou bem longe de nós dois. — Elena estava
comigo, sim, mas não da maneira como está imaginando. A situação é…
delicada. Estamos desviando um dinheiro exorbitante para persuadir as
emissoras locais que continuam atacando nossas obras no distrito. As datas
previstas nos contratos com nossos sócios chagaram ao limite e três
investidores já entraram com pedidos de restituição. Pode parecer confuso,
mas se a Kokorin Enterprises não tivesse assumido os prejuízos, o nosso
valor de ação teria caído para menos da metade. Quando aceitei esse arranjo,
eu e você ainda não estávamos… É complicado, entende?
Para mim parece bem simples.
— Então se você cortar relação com eles…
Vladimir não completa meu raciocínio na mesma hora, renegando os
desfechos inevitáveis para essa situação bizarra em que nos metemos.
— Teriam que decretar falência em breve, porque mantê-los como
sócios depende dos nossos vínculos.
Vínculos matrimoniais.
Merda.
— Estamos ferrados — brinco, mas nenhum de nós dois sorri. A gente
só continua assim, abraçados, entrelaçados e condenados. Aquele lugar
intocado no meio do meu coração treme e não posso deixar que isso me
quebre por prestações. — Pode pelo menos me garantir que não está levando
uma gravata borboleta na sua mala?
— O quê? — Vladimir me empurra alguns centímetros, o cenho
franzido.
— Nada, ignora essa parte. Vamos focar na empresa…
— Se a empresa sucumbir, então tudo pelo qual lutei, todos os
sacrifícios que precisei fazer, as mentiras, tudo terá sido em vão, Serena.
Como você se sentiria se precisasse escolher entre algo que deseja de todo o
coração e aquilo que manteve a sua vontade de viver por anos? O que você
faria? Você, mais do que ninguém, deveria entender do que estou falando.
Rumino suas palavras, tardando a compreendê-las.
— O que você quer dizer com "você mais do que ninguém"?
Ah, meu Deus.
Ele sabe.
Vladimir sabe.
É como se uma lâmina passeasse pelo meu corpo, separando a pele em
duas metades exatamente iguais e expondo tudo o que existe por baixo; as
várias camadas de músculo pulsante e vermelho, a teia de vasos sanguíneos
abastecidos com o sangue que tantas vezes cobicei derramar, o esqueleto
branco, mórbido e sorridente e, ainda mais ao fundo, depois de toda a massa
orgânica, a grande caixa de segredos onde meus medos foram aprisionados e
que agora se encontra escancarada, livre das pesadas correntes que me
protegiam da única coisa capaz de me destruir de verdade.
Eu mesma.
Vladimir invadiu como disse que faria e escancarou a porta, deixando
tudo muito aberto e bagunçado.
— Você sabe? — Seu silêncio confirma aquilo que tenho medo de
admitir até para mim. — Como descobriu? — Isso é óbvio. — Claro, a
investigação que fizeram sobre a minha vida.
O terror e a insegurança seguram minhas mãos, cada uma de um lado.
Estão sorridentes e um suor frio começa a evadir dos meus poros.
— Corazón, não vamos conversar sobre isso assim. Por favor, volta
para dentro. — Não saio do lugar para não piorar as palpitações no meu
peito. É a segunda vez em menos de dois dias. Vladimir diminui a nossa
distância, para a poucos centímetros e leva o celular ao ouvido, enquanto a
gente se encara. Paixão, desejo, ira e revolta se engalfinham na ponte
formada entre nossos olhares. — Roman, Serena está no jardim. Pode vir
aqui até ela resolver voltar para dentro?
— Eu não preciso de uma babá! — reclamo, mas a minha mente
permanece fixa no fato de que ele sabe.
— Você não precisa mesmo — ruge com os braços abertos, andando de
um lado para o outro, bufando como um homem das cavernas. — Mas eu não
conseguiria entrar naquele carro ou fazer qualquer merda direito sabendo que
deixei você aqui, sozinha e ansiosa. — Vladimir olha para a mansão, abaixa e
me abraça, deixando um beijo no meio da minha testa.
Tatiana disse a verdade, a gente não sabe brigar.
O ronco de um motor quebra a paz quase celestial do jardim, mas é
apenas a motocicleta de Roman saindo em disparada garagem afora ao
mesmo tempo em que Vladimir me solta, oferece um último carinho com a
ponta dos dedos na minha mandíbula e volta para o carro que segue para
longe até sair da propriedade.
As roupas pretas de Roman reluzem com o reflexo do sol e o capacete
com estampas flamejantes não deixa entrever seus olhos esverdeados. Ele
manobra pela rua de pedras, conduz a moto na minha direção e vai
diminuindo a velocidade à medida que se aproxima, até estacionar diante de
mim.
Roman olha para as minhas mãos trêmulas e depois para o meu rosto.
Será que todos sabem?
— Sobe, bebê. — Ele me entrega um capacete preto cheio de espinhos
em cima. — Vamos dar uma volta.
SERENA

O ESTÚDIO NÃO tem nada de excepcional, muito pelo contrário. A rua


pouco movimentada fica em um pequeno distrito na área leste de Moscou,
com casinhas enfileiradas e um comércio de conveniências no fim do
quarteirão. Há uma pequena placa sobre a entrada de metal; o nome em inglês
está escrito com lâmpadas cilíndricas de neon, mas todas as letras estão
apagadas.
— Ink Hell — leio em voz alta. Retiro o capacete com alguma
dificuldade e o entrego para Roman. — Nome interessante. Pensei que a ideia
fosse me impedir de entrar em uma espelunca.
— Uma espelunca cheia de doenças — corrige, expondo seu ponto
com o dedo indicador apontado para o alto. — Aqui é só uma espelunca
normal.
— Muito esclarecedor — brinco. Arrumo meu cabelo e amarro a
bagunça toda em um rabo de cavalo. — Desde que ninguém tente arrancar os
meus órgãos e eu consiga uma tatuagem, por mim tudo bem.
— Um pedaço do seu fígado em troca de uma tatuagem, o que acha? É
um preço justo. — Roman gargalha, fazendo graça com a minha cara.
Ele empurra a porta pesada e deixa entrever um corredor escuro que me
faz ficar alerta. Meu corpo ainda sente os efeitos do desespero, da saudade
antecipada por saber que Vladimir não vai estar em casa quando a gente
retornar, e todos os meus sentidos se encontram expostos e sensíveis a
qualquer gatilho.
Uma semana.
Sete dias.
Sabe-se lá Deus quantas horas, minutos, segundos…
Tudo bem, contar não é a melhor solução.
Focada no corredor, o olhar penoso de Vladimir ao confessar que sabe
a respeito da minha tentativa de suicídio tantos anos atrás pisca na minha
mente, ressurgindo em intervalos de tempo tão breves quanto uma respiração.
Seu maior ressentimento com relação a nós era a certeza de que eu seria a
única machucada no final, e conhecer a minha fraqueza talvez seja aquilo que
faltava para ele desistir de mim.
Não é como se eu temesse uma recaída, isso não vai acontecer com
tamanha facilidade e jamais permitiria que esse sentimento tão completo e
prazeroso que sinto por Vladimir se transformasse em um arrependimento.
Mas a perspectiva de ser afastada sem ter a chance de resgatar o homem que
amo do seu martírio aciona aquela parte de mim que nunca se perdoou pelos
erros do passado.
— Não vai me dizer que tem medo de agulha. — Desvio a atenção
daquele breu indistinto para os olhos muito verdes e brilhantes de Roman. As
diferenças entre ele e Vladimir são gritantes, sobretudo na coloração das íris.
Roman já provou que é uma boa pessoa — apesar das suas tentativas
diárias para provar o contrário —, mas nada muda o fato de esse lugar ser
muito suspeito. Eu nunca imaginaria qualquer um dos outros irmãos enfiados
em um estúdio de tatuagem no meio de lugar nenhum.
— Apenas pensando em como você destoa dos seus irmãos —
respondo. — Aposto que eles nem fazem ideia de que frequenta esse tipo de
lugar.
— Não é como se fosse um segredo nem nada assim. — Sorrindo
daquele jeito torto e arrogante, Roman entra primeiro do que eu e quase
desaparece no meio da escuridão. — Mas eu agradeceria se não saísse
espalhando, minha família sabe como ser intrometida quando quer.
— Não prometo nada, minha boca meio que diz algumas coisas por
conta própria — resmungo. É questão de dias para sair jogando as coisas no
ventilador.
Dou um passo adiante, mas, antes de entrar no estúdio, uma sombra no
fim da rua me faz hesitar. Há um homem parado na esquina, o corpo todo
está coberto com um casaco comprido, os cabelos ocultos por uma toca preta
e luvas escondem suas mãos. A distância não me permite distinguir seus
traços, e os óculos dificultam ainda mais na tentativa de reconhecimento.
Mas há algo nele… familiar.
— Algum problema? — Roman surge outra vez na porta, seu olhar
preocupado vasculha a rua dos dois lados, mas, ao desviar minha atenção por
aquele breve período, o homem já desapareceu.
Estou vendo coisas…
— Nenhum, eu só pensei que… — Nego com a cabeça, ele não precisa
me achar mais louca que o normal. — Nada demais, vamos?
Roman franze o cenho, mas não insiste. Meus sentidos estão no limite e
qualquer coisa se transforma em um disparador de sentimentos, ainda mais
agora que Vladimir foi brincar de patrão bonzinho. Não fazem nem duas
horas desde a sua partida e já me sinto devastada, com saudade e cheia de
ciúmes.
Idiota.
Eu admiro a perseverança de Vladimir, um homem que não volta atrás
em suas escolhas. Minha intenção nunca foi impedir que viajasse para longe,
mas que soubesse dos meus sentimentos enquanto eu ainda os tenho sob
controle.
A ganância é um pecado que se alimenta dos excessos, mas o amor,
quando sobra, transborda e faz uma bagunça em todos os cantos da nossa
alma. Não é possível conter um sentimento que foi feito para inundar.
Quando a gente prende uma fera selvagem dentro de uma gaiola apertada, em
algum momento ela vai morrer de desgosto.
Depois de percorrer um curto trajeto sem enxergar um palmo na frente
dos olhos, Roman abre outra porta que nos leva por um longo corredor
iluminado com lâmpadas coloridas. Amarelo, verde e vermelho tingem as
paredes com tons brilhantes, tornando visíveis alguns quadros emoldurados
em desenhos feitos à mão e assinados com nomes diferentes e datas de
produção, provavelmente tatuagens exclusivas.
É tudo muito misterioso e sombrio, exatamente a decoração que eu
esperaria de um esconderijo utilizado por ladrões de órgãos. Faço o sinal da
cruz para já ir afastando todo mal e Roman gargalha ao flagrar minha ação.
Finalmente, depois de imaginar todo tipo de absurdo trágico — pelo menos
agora não corro mais o risco de morrer virgem —, chegamos em uma terceira
porta pela qual ecoa o barulho de música baixa e vozes de pelo menos quatro
ou cinco pessoas diferentes.
Roman entra primeiro, mas eu o acompanho de perto, por via das
dúvidas. Conto um total de quatro desconhecidos esparramados por poltronas
de couro no ambiente decorado com estatuetas exóticas e tecidos coloridos
nas paredes. É tudo muito vibrante e, ao mesmo tempo, macabro,
principalmente o enorme quadro fixado sobre a bancada da recepção, que
ilustra duas caveiras em uma posição sexual que parece particularmente
dolorosa — uma das caveiras tem as duas pernas fixas atrás do próprio
pescoço, enquanto a outra faz o restante do serviço. Faço uma nota mental de
experimentar isso com Vladimir da próxima vez; se houver uma próxima vez.
O grupo fica em silêncio como reação à nossa chegada; uma mulher
com cabelos vermelhos e olhos destacados com muita maquiagem escura, e
três homens, todos cobertos com tatuagens e piercings. Possuem a mesma
aparência das pessoas com quem Camillo tinha o costume de se envolver,
mas o sorriso em seus rostos e a atmosfera familiar contrapõem o meu medo,
dando lugar para a curiosidade.
Que tipo de envolvimento Roman poderia ter com essas pessoas?
O primeiro a falar é um homem que aparenta ter por volta de uns trinta
e poucos anos, com uma barba espessa e longa destacada em seu rosto
maciço.
— Fala, chefia, veio fazer outra tatuagem? — Ele levanta e abre os
braços para cumprimentar Roman com um meio abraço rápido e íntimo.
— Não exatamente, Hugh. Mas trouxe uma pessoa que precisa dos seus
serviços. — Quando fala, tanto o timbre da voz como a postura corporal de
Roman parecem de outra pessoa, alguém mais severo e perigoso; alguém
muito mais parecido com Vladimir, o presidente. Ele me indica com a mão.
— Essa é Serena Fajardo.
— Oi, gata! — diz Hugh, inflando seu enorme peitoral desnudo e
tatuado. Os amigos emitem risadinhas e Roman espalma o próprio rosto,
como se sentisse vergonha pelo amigo. — Posso até fazer uma tatuagem em
você, mas acho que o meu coração é que foi tatuado pela sua beleza.
Hugh segura a minha mão ao som das risadas sonoras dos nossos
espectadores, inclina e deixa um beijo sobre meus dedos ossudos. Apesar da
corpulência desajeitada, seu toque é suave e delicado, e a barba muito bem
cortada, somada aos olhos azuis, transmitem serenidade.
— Preciso acrescentar que ela é minha cunhada. — Roman coloca uma
das mãos no bolso da jaqueta, retira seu celular e arqueia uma das
sobrancelhas. Hugh congela no mesmo instante e recua uns bons passos.
— Não somos cunhados — interfiro. Assim como o irmão, Roman
também não se preocupa em explicar detalhes.
— Alguém precisa avisar isso ao meu irmão, porque ele já me mandou
três mensagens perguntando como você está. — Roman analisa a tela do seu
celular e o guarda no bolso logo em seguida.
— É ela a espanhola? — sussurra Hugh com um pouco de pavor.
Vasculha-me com desconfiança, como uma criancinha de dois metros. —
Mulher do presidente?
— Em carne, osso e gostosura, meu querido — responde Roman,
realizando um floreio com uma das mãos na minha direção.
— Eu perdi alguma coisa? — interrompo. Chego mais perto de Roman,
que me envolve os ombros.
— Todo mundo sabe o que aconteceu no distrito do Maksim depois do
que ele fez com você — um dos outros rapazes explica. Seus cabelos lisos e
longos despontam pelas bordas de uma touca cinzenta. Seus traços asiáticos
são delicados e harmônicos, e os olhos gatunos se assemelham aos de um
felino, astutos e ligeiros.
Parece que o paradeiro de Maksim não é mais segredo entre os
distritos. Ele deve ter ficado puto da vida com a investida de Vladimir contra
sua reputação.
— Cuidar da própria vida ninguém quer, né? — Roman me salva do
constrangimento novamente. Ele tem um senso de percepção apurado e me
tirar da mansão foi a melhor coisa que poderia ter feito para que eu não
tivesse uma crise bem no meio do jardim. — Serena, o Hugh vai te ajudar a
encontrar algo legal. Faça essa tatuagem antes que eu me arrependa. Tenta
não falar demais e ficar em segurança pelos próximos dez minutos, tudo
bem? Meu irmão vai começar a me ligar daqui a pouco e eu não quero ter que
explicar para ele que você caiu dentro de um bueiro ou foi sequestrada por
alienígenas
— Exagerado — acuso, e começo a caminhar pela pequena sala para
observar os desenhos fixados nas paredes. — Parece que você e Vladimir têm
algo em comum, afinal.
— Temos sim, nós dois concordamos que você passou duas vezes na
fila do azar e três vezes na fila do perigo. — Ele saca um cigarro do bolso e o
coloca entre os lábios, sorrindo ironicamente. Respondo com um revirar de
olhos acentuado.
Enquanto passeio em busca da arte perfeita, Roman conversa com seus
amigos sobre coisas aleatórias como o tempo, esportes e outras banalidades.
No meio do diálogo, registro alguns nomes — a mulher se chama Cátia, e o
bonito de ângulos gatunos se identifica como Yan. Em um determinado
momento, Roman desaparece por uma porta de madeira, deixando-me
sozinha com os estranhos.
Mas os sintomas do pânico se extinguiram por completo, substituídos
pela expectativa da nova experiência. Não é mais sobre Vladimir, sobre o
amor, ou meus problemas, mas sobre renovar. Sobre fazer algo pelo simples
prazer de estar viva. A gente não precisa de um motivo para justificar as
escolhas que nascem da liberdade.
Além do mais, lá no fundo da minha mente, me sinto ansiosa pela
reação de Vladimir quando voltar. Tem que ser algo ousado.
— Então, por onde começamos? — pergunto para Hugh, que
sobressalta ao som da minha voz.
Ótimo, agora ele está com medo de mim. Obrigada, Lord Vlad.
Ao seu lado, um rapaz mais jovem finge não prestar atenção enquanto
se concentra em um livro de astronomia. Não deve ter mais do que dezoito ou
dezenove anos, mas o corpo magro é bem definido e saudável, como Camillo
foi um dia. Meu irmão tinha essa idade quando nossos pais morreram, e foi
exatamente nessa mesma época que teve início a sua decadência.
— Primeiro precisa me dizer o que tem em mente, onde pretende
tatuar… — Hugh me convida para sentar perto de sua mesa, em uma poltrona
grande e reclinável. Ele não consegue disfarçar o incômodo por saber que
Vladimir e eu temos uma relação.
Começo a folhear um portfólio com muitas fotografias de belas
modelos tatuadas. Os cochichos dos outros três começam a incomodar e toda
vez que escuto a palavra presidente, meu coração acelera um pouco mais.
— Qual o problema, afinal de contas? — disparo. — O que vocês
sabem sobre Vladimir que não me contaram ainda?
O homenzarrão musculoso engole em seco. Espia por cima do ombro
em busca de Roman, mas nem sinal de seu retorno.
— O boato está correndo por todos os distritos sobre a forma como ele
humilhou Maksim — responde, receoso, sua voz ecoa baixa no espaço entre
nós. — Seu namorado conseguiu desmoralizar o homem na cidade inteira,
estão dizendo que tem os inimigos de Maksim nos bolsos. Roman não gosta
que a gente comente sobre o assunto, mas todo mundo sabe que tem o dedo
dele nessa história também. É normal que as pessoas tenham medo de todo
esse poder.
Poder.
Uma vez Vladimir confessou que sua alma era feita com esse elemento,
mas só agora eu começo a compreender o tamanho do fardo. Ele tem a
capacidade de falir uma empresa multimilionária com apenas um sim, ou um
não; de condenar um dos criminosos mais temidos da região com um simples
estalar de dedos. A diferença entre um empresário influente como outro
qualquer de um homem poderoso se concretiza à medida que ele passa a
determinar a forma como as pessoas devem viver.
Exatamente como achou que estivesse fazendo comigo.
Vendo que Hugh espera uma declaração a respeito do assunto, eu
começo a relaxar e deixo a conversa fluir naturalmente. São apenas pessoas
comuns que não conhecem quem Vladimir esconde por baixo de toda a
muralha de riqueza e títulos.
— Eu sei que devem estar se perguntando como acabei nessa situação,
como uma pobre coitada que não tem onde cair morta foi se envolver com
um homem complicado assim.
— Na verdade, os Volkiov têm empreendimentos em muitos lugares na
cidade, inclusive aqui no nosso distrito, e por isso conhecemos o Roman. —
Hugh coloca os braços atrás da cabeça, inclinando o corpo sobre o pequeno
móvel, que range perante seu peso muito bem distribuído. — Mas com o
presidente, a coisa muda de cenário. O que ele fez por você…
— Bem, não foi só por minha causa — esclareço. Paro de folhear ao
encontrar a arte de um coração cheio de flores, estampado nas costas de uma
mulher muito magra e salpicada com sardas. — Maksim subestimou
Vladimir, e ele só precisou se aproveitar da situação. Sobre mim, a
explicação é muito mais simples. Ele é tão lindo que chega a doer os
olhos, misericórdia! E quando fica bravo, a coisa toda só piora.
A atmosfera fica leve o suficiente para eu conseguir uma inspiração
sobre a tatuagem. Abandono as especulações sobre Maksim ao perceber que
não têm nada a acrescentar que eu já não saiba. Explico minha ideia para
Hugh, que começa a rascunhar o conceito em uma folha enquanto levanto
para me olhar em um espelho e escolher uma parte do corpo.
— Queria algo ousado — comento, exteriorizando a decisão de que
desejo uma coisa que me represente.
— Virilha — sugere Yan.
— Claro, e depois o Roman tatua a sua cara, imbecil. — Hugh ergue
seu olhar do projeto, com a feição horrorizada fulminando o amigo.
— Não tão ousado assim — respondo para Yan, mas a ideia não é tão
ruim. Mesmo que eu não esteja fazendo isso por causa de Vladimir, não nego
que estou ansiosa por sua reação. O que ele pensaria quando me tivesse em
seus braços e descobrisse uma tatuagem secreta bem no meio das minhas
pernas? — Pelo menos não agora, mas vou colocar a ideia na minha lista.
Então meus olhos são atraídos para Cátia, a mulher que se manteve em
silêncio desde que Roman desapareceu estúdio adentro. Sua roupa colante
ostenta um decote profundo, e entre os seios há o desenho de uma serpente.
— Eu quero algo assim — aponto em sua direção, de repente sentindo-
me ainda mais empolgada. — O coração, talvez como se fosse uma semente
florescendo e subindo.
Yan gargalha da feição chocada de Hugh. Ele tem mesmo muito medo
de Vladimir, ou talvez seja dos Volkiov em geral, já que Roman e ele
pareceram próximos.
— Olha — diz cheio de cuidado —, não é melhor perguntar ao Roman
se está tudo bem?
— Qual o problema dos Volkiov que todo mundo os trata como se
tivessem os paus revestidos com diamantes? — repreendo-o, mas
imediatamente me lembro que eles têm dinheiro para isso se quiserem. —
Ah, madre santíssima, vamos logo com isso.
— Pode se preparar no cômodo ao lado, aqui tem alguns tampões e
fitas para cobrir os seios. Se for se sentir constrangida, basta mudar, sabe? —
Tenta uma última persuasão, mas nem me dou ao trabalho de responder.
Faço como ele sugeriu e me direciono para uma salinha, onde retiro a
blusa e me preparo para dar início à sessão. Um formigamento bem-vindo no
alto do meu estômago começa a se espalhar quando retorno. Eles tentam não
olhar demais, mas acabam falhando miseravelmente. Sem a blusa e com dois
paninhos escondendo as auréolas dos meus seios, é como se estivesse
praticante despida.
Assim que estou prestes a me deitar, a porta pela qual Roman havia
desaparecido mais cedo volta a abrir. Ele surge, alheio ao que estamos
fazendo, o olhar novamente perdido em seu celular. Ao erguer o rosto, recua
um passo e a face perde o rubor natural.
— Puta que pariu, você é louca? Quer que meu irmão me mate? Veste
essa roupa agora!
Roman gira sobre os calcanhares para encontrar minha roupa, mas, um
tanto transtornado por não localizar nenhuma pista de seu paradeiro, retira a
própria jaqueta e vem com ela estendida na minha direção.
— Vou fazer uma tatuagem aqui — mostro o côncavo acima da minha
caixa torácica, mas Roman desvia os olhos.
— Péssima ideia, você precisa ser estudada. Quinze minutinhos e já
preparou toda a minha morte. Qual o problema com as borboletinhas atrás da
orelha, florzinhas no calcanhar?
— Sem graça. — Acabo rindo do desespero. — Vamos, Romanzito,
você sabe que não vou voltar atrás. Vai dizer que não gostou do desenho? —
Hugh, visivelmente desconfortável, estende sua arte para Roman, que quase
arranca a mão do amigo junto com a folha.
— Eu gostei, bebê, e meu irmão vai gostar com toda certeza! — Ele
suspira, massageando os olhos ainda sem me encarar. — Talvez eu precise de
uma temporada fora do país quando Vladimir souber que compactuei com
isso, mas tudo bem. Ele está mesmo precisando de um susto. Manda bala.
Mas eu quero a plateia fora, agora. Parem de babar nos peitos da minha
cunhada, seus putos. — Ele chuta o pé de Yan, que corre para outro cômodo
sem se despedir. Cátia e o menino mais jovem saem em seguida, deixando-
nos sozinhos. — E cuidado com essa mão boba — alerta.
Roman se joga sobre o sofá, coloca a jaqueta em cima o rosto e meu
coração se enche de carinho e respeito. Vladimir não me trouxe apenas
problemas, ele me mostrou como é bom ter amigos, como é incrível ter
pessoas que nos apoiam.
— Você é um cara bem legal, Roman.
— Eu sei, bebê. Eu sou foda. A propósito, meu irmão mandou um
recado.
— É mesmo? E o que ele disse? — Tento não transparecer minha
ansiedade, mas é tarde demais para começar a disfarçar meus sentimentos.
— Espere por mim, Corazón — parafraseia com uma vozinha fina. Seu
sotaque ao pronunciar a única palavra em espanhol da frase é pior do que o
do irmão.
Vladimir já me chamou assim tantas vezes que só parece correto em
seus lábios.
— Como se eu tivesse escolha — murmuro.
Deito-me na cadeira reclinável e fecho meus olhos. Vladimir sabe que,
graças a seus próprios esforços, estou presa nessa rede de desventuras. Ele
mesmo se certificou que eu e Luna fôssemos pegas no meio da maré alta.
Ao meu lado, Hugh prepara os materiais e finaliza alguns detalhes para
transferir sua arte para a minha pele.
A promessa de um coração germinando, ziguezagueando em cima do
meu peito com muitos infinitos que culminam em uma flor desabrochada.
Vivo, sensual e infinito.
Exatamente como eu.
Ah… Espere por mim também, Lord Vlad.
***

Na fotografia, Vladimir está com os braços ao redor da finíssima cintura de


Elena Kokorina. Ela ostenta um sorriso iluminado, como se o homem mais
bonito do mundo estivesse ao seu lado — e é exatamente isso o que a
imagem comprova. O dedo indicador dele toca aquela faixa de pele exposta
entre a saia de cintura alta e o cropped florido.
E Vladimir está sorrindo, o maldito.
— Espero que o seu dedo apodreça e caia — leio a mensagem para
Luna e Malévola. As duas estão sentadas no chão, amparadas pela sombra de
um imenso ombrelone com hastes de madeira. — O que vocês acham?
Minha Lua parece mais interessada nos brinquedos espalhados ao seu
redor, coloridos e barulhentos, de tamanhos e formatos diferentes. Tatiana é a
principal responsável pela aquisição desenfreada de presentes.
Nos últimos quatros dias, com Vladimir curtindo sua vida de
celebridade e minha vontade de estrangular seu lindo pescocinho
aumentando, pude reorganizar muitas pendências que foram adiadas por
causa do estado hipnótico que me acomete quando estamos juntos.
Se tem uma coisa para a qual eu não nasci, foi para ficar parada.
Preciso urgentemente de um emprego e Raissa já confirmou que infelizmente
não poderei retornar ao buffet.
Lara finalmente marcou uma consulta para confirmar se está mesmo
grávida ou não, e aproveitei para procurar um médico também antes que
aconteça o mesmo comigo — precisei ir à farmácia comprar os remédios
sozinha da última vez, já que Vladimir também não fez questão de lembrar
desse detalhe.
Eu deveria ficar grávida só para ele aprender! E ainda arrancar uma
pensão bem gorda.
¡La puta mierda! Misericórdia! Não, não e não. Que ideia louca,
ridícula. Nem pensar. Afasta de mim a feitiçaria alheia.
Andrei regularizou a situação com o aluguel no meu apartamento. Fui
informada por intermédio de Ivan que Vladimir havia passado esse pedido ao
irmão mais novo, já que o caçula ainda se mantém distante e praticamente
não conversa comigo. Roman me ajudou a buscar alguns pertences sob o
olhar vigilante e reprovador da proprietária, mas consegui convencê-los a não
cancelar a locação e nem questionar a coitada sobre a invasão de algumas
semanas atrás, já que minha estadia na mansão é temporária. Por enquanto,
Luna é a minha prioridade, e aqui ela está recebendo um tratamento que eu
jamais conseguirei pagar, sem mencionar a questão da segurança.
Com Maksim ligado no cento e vinte do desprezo e meu irmão ainda
desaparecido, voltar para casa sem nenhum apoio seria como um salto para a
morte. Mesmo que o medo ainda se agigante no meu coração toda vez que
preciso cuidar dela sozinha, tem se tornado cada vez mais fácil lidar com a
rotina da minha Luna.
A graciosidade dessa criança tende a afastar o pouco de empatia que eu
ainda sinto — ou sentia — por Camillo. Como ele pôde deixá-la?
Tatiana disponibilizou um aparelho celular, também à pedido de
Vladimir — palavras dela —, para o caso de alguma emergência, mas o
maior risco que corremos é que eu acabe morta de tédio. Ou de ciúmes! Qual
dos dois acontecer primeiro.
— Nós podemos o jogar de cima do telhado — continuo meu discurso,
mas Malévola mia alto, julgando-me com seus olhões coloridos. Distante, a
água da piscina brilha com a luz do sol forte. — É claro que eu não faria uma
coisa dessas, mas imaginar a cena me ajuda a manter o humor.
Desde meu último embate com Vladimir, no mesmo dia em que ganhei
minha primeira tatuagem, não tive nenhum outro episódio que sugerisse uma
crise, mas ainda não consegui agendar uma visita ao consultório do
psicólogo. Além disso, Roman está sempre por perto e Iago passou a visitar o
quarto todas as noites para me fazer companhia; há sempre alguém para
demonstrar apoio, independente da minha relação com o primogênito.
Envio a mensagem sem expectativa de resposta. Vladimir não se deu ao
trabalho de entrar em contato direto nenhuma vez, não seria diferente agora,
certo?
Errado.
O celular vibra na minha mão e eu quase o deixo cair com o susto. Viro
de um lado para o outro até conseguir, finalmente, identificar as palavras
provocativas no meio da tela branca.

"Desejando o mal de algo que planejo usar a seu favor, Corazón?"

Absorvo a informação, um sorriso indomável ganhando forma no meu


rosto. Idiota. Eu deveria ser mais forte e desistir desse homem, mas ninguém
pode saber que acabou sem ter terminado de tentar.
E eu nunca fui mulher de esperar, muito menos de ficar chorando pelos
cantos.
Digito uma resposta para cutucar seu ego pomposo. Também posso
ficar boa nessa coisa de jogar com o poder, embora a experiência dele supere
a minha em muitos níveis.

"Ainda bem que tenho dez dedos em perfeito estado de funcionamento e estou
fazendo bom uso deles. Mas obrigada pela intenção, Lord Vlad."

Fico tentada a bombardear Vladimir com um monte de perguntas sobre


o que está fazendo nesse momento, mas na minha mente eu o imagino em
uma sala de reuniões tediosa, escrevendo rapidamente essas mensagens em
segredo com aquele sorriso sincero e raro que nem se compara com o da
revista eletrônica.
Talvez eu esteja me enganando com a esperança de que a contradição
de Vladimir e sua falta de confiança em nós dois sejam, na verdade,
estratégias para me proteger do suposto monstro. Para me afastar. Mas fingir
que meu amor não existe só porque Vladimir está desempenhando seu
trabalho seria imaturo até mesmo para alguém como eu. Ele não deveria
precisar escolher entre mim e a empresa.
O celular volta a acusar um novo recado.

"Adoraria ver isso."

Safado!
Antes que eu tenha tempo para enviar uma proposta envolvendo fotos
íntimas, o universo interfere — ainda bem, porque se eu não tenho limites,
pelo menos o meu anjo da guarda tem um pouco — e o som de um galho
quebrando nas imediações tira minha atenção de Vladimir e nossos
complexos, levando meus olhos a encontrarem um Andrei claramente
constrangido cortando caminho pela lateral da mansão para entrar pelos
fundos.
Ele não tem tempo para disfarçar ou fingir que não me viu, a distância é
curta demais. Olhando para os lados, Andrei se coloca a caminhar na minha
direção, seu cabelo ondulando junto com o vento; a camisa amarrotada é só
um lembrete de que continua não dormindo em casa.
— Não queria assustar você — diz, inquieto, sondando Luna no chão
em seu tesouro de musiquinhas irritantes.
— Não me assustei, só estava distraída — explico, mostrando o celular.
Andrei, apesar de ser o mais jovem, é tão alto quanto Vladimir e seu
rosto tem os mesmos traços robustos do irmão mais velho. Exceto pela cor
dos olhos, ele poderia muito bem ser uma versão mais jovem do presidente.
É bonito, extremamente gracioso com sua voz rouca, mas o ponto
marcante em Andrei é o sorriso que parece abraçar o mundo inteiro.
Ultimamente, contudo, só o vejo sorrindo de verdade quando está com Lara.
Os dois agem como se fossem irmão, melhores amigos. É uma relação de
confiança diferente e bonita.
Procuro qualquer coisa esperta para dizer a fim de tornar a conversa
mais leve, mas Andrei se agacha perto de Luna, os lábios comprimidos e
sérios.
— Eu posso… eu posso segurar ela?
Há tanta melancolia no tom da sua voz que que meu coração reclama.
Devagar, aquiesço e Andrei se inclina sobre a pequena, segurando-a nos
braços como se tivesse nascido para fazer isso a vida toda. Assim que a tem
acomodada sobre o antebraço, pousa a mão aberta nas costas da minha
sobrinha.
Algo acontece. Luna busca a ponta do nariz de Andrei, apertando de
leve como costuma fazer sempre quando alguém a carrega, e a expressão dele
desmorona. Os lábios tremem e ele vira de costas, mas não rápido o
suficiente para esconder a lágrima que escapa de um de seus olhos.
— Desculpe — sussurra, seus ombros tensos. Não entendo muito bem
pelo que está se desculpando, mas, se antes eu já achava suas atitudes
estranhas, agora estou repensando seriamente em que tipo de confusão está
enfiado para se sentir tão triste. — Nunca tinha segurado uma assim.
Lembro-me de já ter escutado a família conversando sobre o sonho que
Andrei cultiva de construir uma família grande. Ele seria um pai excelente,
não tenho dúvidas. Porém, como a intrusa aqui sou eu, evitei me aprofundar
no assunto. Ele gosta de crianças, o que para mim já é estranheza o suficiente.
Não que isso seja um defeito, claro. Só não entendo como pode querer
uma coleção delas. Luna já tem tirado o meu sono, imagina duas Lunas?
— Está se saindo melhor do que eu — tranquilizo-o com a verdade. —
Acho que nunca vou me acostumar.
Andrei me encara. O contorno dos seus olhos é grande, expressivo e
marcante, e está agora tingido com uma quase imperceptível tonalidade
rosácea. É incômodo ser examinada por ele, como se fosse capaz de enxergar
coisas que as outras pessoas não conseguem. O olhar de um advogado.
Do melhor advogado do país, como diria Vladimir.
— Annia não vai sair da prisão — diz de repente, começando a
caminhar com Luna em um semicírculo. Se eu pudesse escolher, não
teríamos essa conversa agora, pois a simples menção às minhas
responsabilidades com Luna faz as minhas mãos perderem o calor. — Pelo
menos não pelos próximos três ou quatro anos. É você quem ela vai chamar
de mãe.
Desconfortável com seu tom definitivo e direto, volto a encarar o
celular em minhas mãos, para a mensagem íntima de Vladimir.
Mãe.
Sim, já me conformei com essa certeza desde o dia em que a buscamos
no abrigo.
— Suponho que sim. — Tento parecer descontraída, mas está mais do
que provado que Andrei tem alguma ressalva com relação à minha presença.
Então minhas opções são: fingir demência ou ir direto ao ponto. — Você não
parece gostar muito dessa história toda. Eu entendo se achar que nossa
estadia aqui seja um incômodo…
Suas duas sobrancelhas juntam sobre os olhos, incompreensão
estampada em sua face enquanto tenta processar a pergunta.
— Foi isso o que pareceu? Não, não mesmo. É só… — Atrapalhado,
Andrei se aproxima e se senta ao meu lado, sustentando Luna em seu colo.
As mãozinhas gordinhas logo encontram entretenimento nos botões da
camisa. — Eu sou advogado, ser um pouco intrometido faz parte de quem eu
sou. Com você e sua sobrinha envolvidas nessa confusão, ainda não consegui
enxergar um cenário que seja benéfico para vocês duas. — Andrei acaricia os
cabelos lisinhos, finos e muito pretos de Luna. — Porque confia tanto nele?
Vocês se conhecem há tão pouco tempo.
Porque eu sou louca?
— Essa é uma boa pergunta. A genética de vocês facilita bastante, claro
— brinco. Inclino a cabeça para trás e explico da maneira mais sem sentido
possível, afinal de contas, nada em nós dois tem qualquer coerência. — Os
defeitos dele são muito atraentes.
— Os defeitos? — Andrei gargalha alto. Meu corpo relaxa com o clima
entre nós mais brando e ele vira de lado para me encarar.
— Vamos, não me olha com essa cara como se quisesse me internar —
pestanejo, acompanhando sua risada. — Seu irmão tem um monte de
defeitos: ele é mandão, controlador, exagerado ao extremo, um pouco
dramático, possessivo, mentiroso, manipulador, egocêntrico… Céus, o ego
dele é gigante! Eu devia correr para longe e fingir que nunca nem vi esse
projeto ambulante de arrogância? Sim, claro, com certeza. Mas, e depois? —
sussurro a última parte.
E depois?
— Como assim? — pergunta, ecoando meu pensamento.
— O gosto da desistência é mais amargo do que o da derrota —
explico, insolente e com o queixo erguido. — E dentre essas duas
possibilidades, há uma com a qual não consigo lidar.
Uma que eu não sei controlar sozinha.
Desistir.
Agora o sorriso dele cresce, verdadeiro e fraternal. Andrei empertiga o
corpo, assumindo uma postura mais formal, mas sem cortar o enlevo da
conversa.
— Vejo que sabe se cuidar — diz, cúmplice. Andrei conversa com
Luna, entregando um avião de borracha que berra quando a gente aperta.
Cruzes. — Na verdade, estou surpreso. Não imaginei que existisse alguém
que conseguisse lidar com Vladimir.
— Lidar com o seu irmão? Deus me livre, seria meu sonho. Na maior
parte do tempo a gente só resolve as coisas na base do… Não importa.
Vladimir está lá, eu estou aqui. Não há nada que possamos fazer.
Não queria parecer dependente, não queria o olhar de pena, porque eu
odeio esse olhar, mas Andrei é educado demais para não demonstrar empatia.
Esse menino pode ser bem perigoso para corações ingênuos se quiser, sua
sagacidade e sofisticação o transformam em uma armadilha, porque, no
fundo, vai sempre acabar se aproximando e roubando nossos segredos sem
que a gente perceba.
— Me empresta seu celular? — Pede. Entrego-o, intrigada com
qualquer que seja sua intenção, e Andrei digita alguma coisa antes de se
arrastar alguns centímetros mais para perto. — O que está fazendo?
— Lembra aquilo que eu falei sobre ser advogado? A gente desenvolve
uma certa habilidade para saber o que mais afeta as pessoas. — Andrei ergue
o aparelho, inclina para o lado, encostando o ombro no meu. O som do clique
vem antes que eu tenha tempo para desviar meus olhos do seu rosto.
— E o que afeta o poderoso chefão? — desdenho, brincando com uma
mecha do meu cabelo, que está todo bagunçado por causa do vento.
Seus dedos ágeis voltam a passear pela tela, fazendo com que Luna
fique muito animada com a possibilidade de atacar mais uma coisa que faz
barulho, mas pego-o antes que a pequena cause algum estrago que eu não
tenha condições de pagar. Confirmo minhas suspeitas de que Vladimir acaba
de receber uma mensagem um tanto inusitada.
— Isso não é obvio? Vocês duas. — Muito seguro do que está falando
e fazendo, Andrei retira seu celular do bolso e espera, espera e espera. Cerca
de vinte segundos depois, ele começa a tocar e vibrar com o nome de
Vladimir destacado no visor. — Está vendo? Previsível.
A sensação é boa, não vou negar, como uma massagem na autoestima e
um leve sabor de vingança. O celular para e recomeça. Andrei fica rindo o
tempo todo, a hesitação que tinha de se aproximar finalmente vencida.
Eles nunca percebem o quanto eu os olho. O quanto eu
os enxergo. Seria bom ter uma família assim. Seria bom para a minha
Luazinha ter uma família assim.
Ela foi salva por eles daquela vida de misérias.
A gente não atende o telefone.

***

Faço a transição do banheiro para o meu quarto — o quarto de Vladimir —


com uma toalha na cabeça e outra enrolada no corpo. Abro a gaveta e escolho
uma das minhas velhas roupas de dormir. Essas pequenas coisas me ajudam a
não ficar iludida demais com o conforto.
Ilusão é diferente de esperança.
Tiro as duas toalhas, ficando nua e com os cabelos úmidos e
embaraçados grudando na pele. Sozinha.
Luna não está aqui
Nem Tatiana.
Nem Roman ou Andrei.
E nem Vladimir.
— Eles estão lá embaixo — digo para mim mesma, o pulso começando
a acelerar.
Quando eu morava no distrito, após a morte dos meus pais, nunca tinha
certeza do que era melhor. Estar sozinha naquela casa o tempo todo
significava pensar o tempo todo, e nunca eram coisas boas que se passavam
pela minha cabeça. Eu pensava, principalmente, na voz da minha mãe me
chamando para comer, em como ela gritava quando estava brava, mas sempre
pronunciava meu nome de forma carinhosa. Mas não estar sozinha naquela
casa significava que Camillo havia voltado por um ou dois dias. Que pessoas
entrariam e sairiam sem o meu controle e que talvez até dessem uma festa; eu
precisava deixar sempre as portas do quarto trancadas, como Camillo pedia,
e, no dia seguinte, outro móvel ou eletrodoméstico teria desaparecido. Mas
suas visitas foram se tornando cada vez mais frequentes, até que se tornou
impossível continuar ignorando os olhares cobiçosos daqueles homens.
Eu estava sozinha.
Lá dentro da minha gaveta, como se me chamasse, a fotografia de
Nicolai — que resgatei no dia em que Roman e eu fomos no meu
apartamento — observa tudo com olhos cansados.
Nicolai vivia cansado de tudo. Das dívidas, dos cobradores, do seu
empreendimento indo à falência — eu ficava cansada só de ouvir, imagina
ele que vivia tudo na pele? Apesar de nunca ter me contado detalhes da sua
vida pessoal, houve algumas vezes em que deixou escapar uma informação
ou outra. Ele tinha uma família grande, uma esposa incrível a quem chamava
de minha rainha. Nicolai tinha tudo aquilo que me faltava, e, ainda assim,
não foi o suficiente.
O que ele falaria se eu contasse que me apaixonei por um homem
complicado como Vladimir? Provavelmente algo como: "estranho seria se
você se apaixonasse por um homem normal, isso sim seria assustador".
Pessoas erram, isso é um fato, quase uma obrigação. Nicolai tinha um
ressentimento obscuro e deteriorante, algo que tirava o seu sono e putrefazia
o doce coração. Ele se desculpava demais. O tempo todo.
Pessoas erram. Vladimir errou. Eu errei e continuo fazendo isso
incessantemente. Errar faz parte de estar vivo.
Nicolai não erra mais, nem meus pais, porque os mortos não podem
errar.
Rio sozinha, minha respiração controlada, os pensamentos
desacelerando. Isso, Serena, inspire e expire. Está tudo bem.
— Serena? — A voz de Tatiana ecoa no corredor, do outro lado da
porta fechada. Forço um comando para que meu corpo reaja, mas devo
demorar muito para conseguir assumir o controle, porque ela chama uma
segunda vez: — Querida, posso entrar?
— Ah, um momento! — visto-me rapidamente, sentando-me
no recamier aveludado antes de confirmar sua entrada. Enquanto Tatiana
desfila para dentro do quarto em um robe de renda longo com mangas
transparentes e bufantes, um envelope preto de aspecto caro é usado como
leque.
— Ela está dormindo no quarto do Iago — diz referindo-se a Luna. —
Ele está vigiando seu sono, não se preocupe. Vim trazer um presente!
— O que é isso? — Pego o envelope, com medo de que seja um
cheque. Essa família gosta de atirar dinheiro para o alto como se fosse água.
Não que cheques me assustem. De dinheiro a gente só tem medo
quando acaba. O negócio é que precisa haver um limite para que eu consiga
retribuir algum dia e não quero envelhecer devendo para essa família.
— Convites, não é óbvio? Ora, vamos! Eu confesso que considerei o
envolvimento deles em um passado muito distante, antes de descobrir que
meu filho tem um coração que funciona de verdade. São convites. Se
Vladimir vai em festas, então você vai em festas, essa é a lei dos bons
relacionamentos.
Pondero.
— Você está dizendo que eu deveria… ir nessa festa?
— Eu? Jamais, nunca nem vi esses convites — mente descaradamente,
mas o olhar sugestivo não nega. — Mas são convites, você os tem. Não seria
uma coincidência incrível se fossem convites para a confraternização no salão
da Kokorin Enterprises?
Ela não pode estar mesmo pensando que eu faria algo como aparecer de
surpresa na festa em que Vladimir talvez assuma compromisso com outra
mulher, pode?
Porque, se sim, está corretíssima.
Quero ver pedir outra em casamento na minha cara, condenado!
— Vladimir não é o tipo de homem que consegue abrir mão das coisas
que deseja, então continua achando que pode fazer o que bem entende —
prossegue, tagarelando. — Mas, algumas vezes, não temos escolha. A única
pessoa capaz de decidir o quanto meu filho vai ter de você, é você mesma.
Não se trata de correr ou não atrás dele, mas de permitir que ele enxergue o
que vai perder quando a sua paciência e os seus sentimentos esgotarem. Fogo
se combate com fogo, e poder com mais poder.
— E vale a pena, Tatiana? — questiono. Ela para de caminhar pelo
quarto e, por um milésimo, penso ter identificado uma vibração em seu olhar,
como se eu tivesse feito uma pergunta chave.
— Vou contar uma história que nunca contei nem mesmo para os meus
filhos, sobre o dia em que me apaixonei pela primeira vez. — Tatiana senta-
se ao meu lado, cruza suas longas pernas e inclina os ombros para trás em
uma pose que poderia facilmente ser capturada por artista. — Claro que, na
época, eu não fazia ideia de que tinha conhecido aquele que se tornaria um
dos grandes homens da minha vida. A gente sempre acha que o amor é
mágico, lindo e colorido, mas não foi bem assim que aconteceu. Eu estava
passando perto da ponte de Patriarshiy, que na época era uma ponte muito
menos conservada que nos dias atuais. O Rio Moscou parecia uma massa
escura e pegajosa por causa da noite sem estrelas para iluminar as ondulações
na água. Eu estava voltando de uma festa, um pouco bêbada talvez, quando
escutei duas pessoas gritando. Dois rapazes, para ser mais exata. Um deles, o
homem que viria a se tornar o meu marido, tinha se pendurado no parapeito
da ponte e encarava fixamente aquele estômago turvo muitos metros abaixo.
O outro tinha as mãos na cabeça e gritava desesperadamente para que meu
marido não pulasse. Confesso que foi o desespero do segundo que me fez
parar. Eu nunca tinha visto um homem chorando como aquele pobre coitado
que tentava impedir alguém de morrer, foram as lágrimas daquele sujeito, até
então desconhecido, que mais chamaram a minha atenção.
Minha nossa.
— O que você fez? — arfo.
— Eu subi no gradil da ponte também, bem ao lado dele e disse "bem,
se pular, eu vou ter que pular também para salvar você e nós teremos um
problema, porque eu não sei nadar. Consequentemente, seu amigo vai ter que
pular para me salvar e seremos as três almas mais novas no além". Foi a
melhor e a pior decisão que eu já tomei na vida, porque se engana quem
pensa no amor como uma coisa fácil, simples e boa o tempo todo. O que eu
estou tentando dizer, Serena, é que o amor não é uma competição sobre quem
corre mais na direção do outro, quem se sacrifica mais, ou quem precisa ser
salvo primeiro, mas sobre escolher um caminho que ambos possam atravessar
juntos.
Aceno com a cabeça, movimentando-a para cima e para baixo enquanto
me dou conta de que não adianta mesmo me apegar ao medo.
— Todos sabem que eu…
— Não sabemos nada, Serena, tampouco Vladimir sabe qualquer coisa.
Informações soltas ao vento não contam histórias. — Tatiana deposita um
carinho na minha perna, depois se levanta graciosamente. — Não se
envergonhe da sua história. Você está aqui, você venceu, isso é tudo o que
precisamos saber até que esteja preparada para contar a verdade. E se não
quiser contar, tudo bem também.
A forma como diz isso parece ter um significado maior, digestivo e
secreto, que não entendo.
— Por favor, se resolvam logo para que eu possa finalmente esfregar
mais uma neta na cara da sociedade. Já perdi uma neta outra vez, não estou
disposta a perder mais uma.
Chocada, é assim que eu me sinto enquanto Tatiana sai como se isso
não fosse a coisa mais bonita, especial, triste e preciosa que alguém já me
disse na vida.
Olho para a carta em minhas mãos, as bordas douradas refletem o
brilho da lâmpada do quarto.
É isso!
Se Vladimir vai em festas, eu vou em festas!
Saio em direção às escadas, já acostumada com os desdobramentos da
mansão. Por sorte, Roman e Andrei estão conversando na biblioteca quando
chego; apenas o mais novo está no computador. Imagino como a situação na
empresa deve estar cobrando dele. Como chefe do setor jurídico, lidar com
tantos processos ao mesmo tempo e com os trâmites comerciais que li nos
jornais deve ser desgastante.
Eles me encaram quando cruzo as portas duplas, Roman tem um copo
cheio do que suponho ser vodca e gelo na mão direita.
Ergo os envelopes para os dois, o entendimento se solidifica sem que
eu precise explicar.
— Nós vamos a um evento — anuncio.
Roman gargalha, Andrei somente morde o lábio para esconder um
sorrisinho.
— Que mente maquiavélica você tem! Vladimir vai ficar puto. E eu…
gostei muito da sua ideia, bebê. — Roman ergue o copo para me saudar. —
Adoraria entender como chegou a essa decisão.
Mas eu não explico. Dou de ombros com naturalidade, ainda que meu
coração estoure freneticamente no meu ouvido.
Contudo, não é outra crise, nem o medo e muito menos uma recaída.
Eu amo Vladimir.
Mas eu me amo mais.
E é por me amar imensamente que preciso fazer isso.
Vou caminhar a minha metade do caminho, pois o amor que sinto por
ele invadiu um pedacinho do amor que sinto por mim. E eu sou importante
demais para fingir que o coração acelerado dentro do meu peito e a vontade
de ser embalada em seus braços não existem.
Eu sou importante demais para não amar.
CAMILLO

MINHAS MÃOS ESTÃO tremendo.


Aliás, estão tremendo mais do que o normal. E suando. Meu corpo
costuma reagir assim quando consigo ficar um longo período sem o efeito das
drogas. Quanto tempo se passou desde a minha última dose? Acho que
menos de doze horas. Não tenho ideia de quantas horas são agora. Faz dez
minutos desde que me deixaram entrar. Ou talvez quinze. Eu não lembro. É
tarde, o sol começa a se deslocar na direção do horizonte. O efeito já
extinguiu, com certeza.
Está ficando cada vez mais rápido. Mas não me deixariam entrar na
prisão se eu aparecesse aqui chapado e delirando como um doente da cabeça.
O pior é a coceira. Na verdade, a aflição e a ansiedade que fazem minha
pele formigar. Queimar. Acho que estou esquecendo de alguma coisa
importante. O que era? O que poderia ser?
— Você está bem? — pergunta o policial, levando-me até a área para
visitantes. Não acredito que precisei passar por toda aquela vistoria por causa
daquela maluca.
— Sim, senhor — murmuro a contragosto, minha voz soando mais
aguda do que eu gostaria.
O guarda acompanha meu trajeto de perto, os olhos astutos me
observam de esguelha, desconfiados. São espertos; os cretinos de farda
farejam as merdas, não importa que eu esteja vestido com as minhas
melhores roupas e sem feder a algum perfume barato.
Deve ser qualquer coisa na minha feição que entrega, ou talvez estejam
tão acostumados a lidar com lixos iguais a mim que simplesmente sabem que
eu não valho nada. Ou as tatuagens, isso conta pontos também.
Forço minha respiração em um ritmo controlado, por mais que inspirar
faça minhas costelas doerem. Aqueles putos me pegaram de jeito, mas nem
se compara ao que Maksim deve estar querendo fazer comigo quando
descobrir que voltei. Estou em um beco cuja única saída me leva direto para
os dentes da fera.
Chegamos ao pátio, onde muitas detentas recebem seus familiares, e o
homem me indica o lugar antes de se recolher para um canto junto com seus
companheiros. Sistema prisional de merda. Annia está sentada em um dos
bancos de mármore, a cabeça torrando em um sol quente dos infernos e um
cigarro aceso entre seus dedos trêmulos.
Ela sempre tremeu demais também.
— Pensei que estivesse morto — diz, sem me olhar. As olheiras
parecem mais profundas, a fala arrastada e os cabelos sem vida ao redor do
seu rosto esquelético.
— Eu também — respondo, apesar do desconforto em me reencontrar
com ela nessas condições. As injeções conseguem afastar a insegurança;
quando o efeito acaba, no entanto, o que sobra no lugar é um desespero difícil
de remediar com apenas força de vontade. É como ter medo de tudo, o tempo
todo, incessantemente. Esfrego as mãos uma na outra, o calor se
intensificando de dentro para fora, e minha testa respinga com o acúmulo de
suor. — Como as coisas acabaram assim, Annia?
Olho para trás, como se alguém fosse surgir de repente para me
apunhalar. Mas não há ninguém ali. Apesar disso, a sensação de estar sendo
observado não vai embora. Nunca. É o efeito da abstinência, eu preciso de
outra dose.
— Então você não sabe? — Ela tosse no meio de uma gargalhada, o
corpo chacoalhando no ritmo dos espasmos. Ao recobrar o controle, traga o
cigarro, puxando com força a fumaça, segurando por um tempo antes de
expelir. Minha garganta se fecha com a vontade de pedir uma tragada, mas
isso não seria nem de longe suficiente para satisfazer o que meu corpo
precisa. — Existe um prêmio pela sua cabeça. Aliás, existem muitos prêmios.
Não me diga, ironiza o meu subconsciente fodido.
— Assim que cheguei, fui abordado por alguns imbecis e ganhei
hematomas novos para a coleção.
— E como conseguiu escapar? Não está se arriscando demais vindo até
aqui? — Annia assopra uma lufada de fumaça no meu rosto.
— Queriam saber por que Maksim está me procurando, onde ele guarda
as mercadorias e em que lugar do distrito está se escondendo. — Olho para
trás outra vez. Minha vista embaralha. — Mas não entendi por que me
deixaram livre, é como se só estivessem querendo me testar, ou com medo de
alguma coisa.
— A história que estão repassando é de que você é uma moeda de troca
para Maksim. Mas ninguém sabe o motivo. Os ricaços também estão
procurando seu paradeiro. No final das contas, por mais que Maksim tenha
seus inimigos, não é qualquer imbecil que vai arriscar retaliações, ainda mais
agora que ele está um pouco descontrolado e perdendo credibilidade por
causa do que Vladimir Volkiov fez.
Volkiov.
Só o nome faz a bile revirar ao longo do meu canal digestivo.
Ainda não acredito que minha irmãzinha está convivendo com aqueles
assassinos malditos. Que levou Luna para morar debaixo do mesmo teto das
pessoas que mataram os nossos pais.
Ela não sabe de nada, lembro, mas não deixa de ser uma constatação
horrível e nojenta. O que eu esperava? É a Serena, a pessoa mais
inconsequente e determinada que já existiu no planeta, mas que sempre pecou
por se entregar demais às pessoas.
Serena é a minha melhor lembrança, a única parte da minha vida que
deu certo. Tirá-la do distrito não foi fácil, abandonar Serena não foi fácil,
mentir sobre a casa não foi fácil, mas eu sempre soube que ela não tinha
nascido para ser apenas a irmã mais nova de um bandido viciado. Que aquela
casa era pequena demais para alguém como ela.
— Ouvi a história de que os dois estão juntos — digo, em busca de
confirmação. Os longos e ossudos dedos de Annia pousam no meu joelho
direito.
Olho para trás.
Minha nuca coça.
O coração começa a acelerar, ou é o que parece; provavelmente é
minha cabeça imaginando coisas.
— Maksim ficou louco, foi atrás dela e as coisas saíram do controle.
Você sabe como isso funciona, ninguém deve mexer com os brinquedinhos
dos chefes.
Ouvi sobre isso também. Muitas histórias diferentes. Maksim prometeu
que jamais faria qualquer coisa contra a minha irmã, mas não duvido que
tenha mandado alguém fazer o serviço em seu lugar.
Fosse para atingir Vladimir.
Fosse para me atingir.
— E você? — Esfrego os olhos, uma dor afiada despontando no centro
da testa, começando a serpentear rumo às minhas têmporas. — O que eu
posso fazer por você, Annia? Como veio parar aqui? Ainda não entendi essa
parte.
Não faz sentido.
Duas mulheres passam gargalhando perto de nós, eu me assusto com o
volume do som. Que merda de barulho alto dos infernos! É como se meu
corpo estivesse oco, vazio, sugando cada detalhe externo como a merda de
um funil a vácuo.
— Não mesmo? — Annia volta a sorrir, dessa vez sem a nota irônica
ou seu humor ácido. — Você nos deixou, Camillo. Foi embora, disse que
voltaria. Abandou sua filha. Eu falei que não conseguiria sozinha, eu falei
que não era capaz. Eu tentei tanto. — A última frase é procedida de um
gemido sôfrego, depois o cigarro quase despenca rumo ao chão de cimento.
Ela esconde o rosto em ambas as mãos, seu corpo pende para frente. Reprimo
a vontade de afagar suas costas. — Eu tentei demais.
— Me desculpe — murmuro na falta de conforto melhor.
Annia se envolveu nessa história por acaso, não precisava estar
passando por tudo isso. Ela estava no lugar errado, na festa errada, nós dois
bêbados demais para lembrar como aconteceu. Eu só recordo da frustração
antes do primeiro copo, daquele sentimento de medo caso descobrissem sobre
Maksim. Esses russos filhos da puta só têm merda na cabeça. Bando de
preconceituosos do caralho.
— Luna era a única coisa boa que eu tinha — lamenta baixinho, o
corpo envolvido em curtos espasmos.
Enquanto ela chora, percebo que talvez meu coração não esteja
acelerado, mas, na verdade, lento. Tudo em mim parece muito lento e o
mundo rápido demais; os movimentos, a forma como eu respiro, tudo
prossegue devagar. O calor na pele aumenta sem parar, o sol não está de
brincadeira hoje. Queria entender como há tantas pessoas usando casacos.
Luna fica inquieta no calor.
É a única coisa que sei sobre a minha filha. Que chora quando está
quente demais.
Precisei deixar as duas em casa como garantia, ou Maksim ficaria ainda
mais transtornado. Ele não aprovava minha ideia de procurar por Valentim, já
que ninguém sabe se ele existiu de verdade.
— A gente vai dar um jeito nisso — digo, desconfortável com a reação
dela. — Não é como se a minha irmã fosse ficar com ela para sempre.
Annia para de murmurar, virando a cabeça devagar, o cenho franzido e
os vermelhos olhos estreitos, uma expressão genuína de descrença.
— Você por acaso ainda não se perguntou como eu continuo viva,
Camillo?
As palavras entram dentro da minha cabeça e ficam flutuando enquanto
tento compreender a pergunta. Ah, sim… Era isso o que eu havia esquecido.
Annia continua viva, dentro de um presídio feminino abarrotado de detentas e
com informações valiosas demais dentro da caixinha.
Annia sabe tudo sobre Maksim. Tudo sobre mim. Tudo sobre tudo. Por
que continua viva? Só existe uma justificativa: ela conseguiu proteção. Mas
de quem?
— Você fez um acordo — concluo. Fecho minhas mãos em punho para
disfarçar os tremores. Annia se encolhe para longe, deixando um espaço
maior entre nós no banco. — Eu não deveria estar surpreso.
Desde o começo, ela foi uma sobrevivente. Uma mulher à margem dos
vícios, uma viciada à margem da cultura machista que impera em quase todas
as casas situadas no país da vodca. Ela aceitou os termos de Maksim quando
se descobriu grávida. Aceitou se tornar a nossa camuflagem.
E fez um acordo para continuar viva. Tudo bem. Se quede
tranquilo, Camillo.
Preciso de outra dose.
— Vladimir Volkiov fez a denúncia que me trouxe para a prisão —
conta, proferindo a porra do sobrenome de novo. — Ele fez isso para tirar
Luna de mim. Se não fosse o irmão dele me colocar na proteção, eu não teria
a mínima chance. Vladimir me jogou aqui para morrer. Maksim ainda não
sabe sobre a casa, ainda pensa que você é o dono, mas nós dois sabemos que,
nesse momento, ele está em desvantagem. — Annia pisa sobre o cigarro no
chão, apagando o restante da faísca. Limpa o rosto molhado com o dorso da
mão. — Não contei nada.
— Acha que eu sou otário? E conseguiu ajuda deles como?
— Sua irmã está movendo um processo para adotar Luna — confessa
baixinho. Olha para trás e eu repito o movimento, mas não há nada além do
desconforto, da ansiedade, da paranoia. — Andrei Volkiov se ofereceu como
advogado, propôs um acordo para que eu abrisse mão da nossa filha, ofereceu
tratamentos, oportunidades futuras…
— Ofereceram um acordo para que a minha irmã pudesse adotar a
própria sobrinha? — interrompo.
— Ele disse que Luna está sendo bem cuidada. Que gostam dela. —
Annia cruza os braços, envolvendo-se em um abraço aflitivo. — Daqui de
dentro é difícil entender o que está acontecendo lá fora. Ele me conta uma
coisa ou outra. Se quer saber a minha opinião, acho que eles querem que
Luna se torne a filha do presidente. Estão fazendo tudo sem pressa até que
resolvam a situação com a sua irmã e toda aquela confusão com o clube. Isso
é tudo o que eu sei.
Fecho os olhos, conto até dez.
Um. Dois. Três.
Depois de tudo o que fizemos para destruir aquela família, finalmente
temos a chance de causar um dano real. Serena só precisava ter ficado quieta
no canto dela. Era simples.
Quatro. Cinco. Seis.
Maksim não deve estar nem um pouco contente. Eu fugi com o
dinheiro dele para encontrar o homem que foi parceiro de Nicolai Volkiov na
época em que dominava tanto o mundo empresarial como a rede financeira de
apostas e casas de jogos em Moscou, mas não consegui nada além boatos e
sussurros.
Sete. Oito.
Conseguimos abalar seus negócios na época que procedeu o
desabamento de uma parte do prédio onde meus pais, Luna Fajardo e Romeo
Fajardo, trabalhavam em um micro negócio de capitalização. Graças a
Maksim, que fez acordos, alianças, cobrou dívidas e conseguiu, aos poucos,
ruir com os negócios clandestinos de Nicolai, eu pensei que conseguiria
expor a peçonha que corre no sangue daquela família.
Mas o velho morreu, e os crimes nunca foram expostos.
Não até agora… nós estamos tão perto.
Nove. Dez.
— Precisa manter a boca fechada. — Retiro o casaco preto, ficando
apenas com a camisa social branca, sem gravata. — Luna não vai ficar com
eles por muito tempo, e nem a minha irmã. Isso tudo é só um contratempo. Se
eles descobrirem que temos qualquer relação com o golpe que o senhor
Kokorin está orquestrando…
— Não vou falar — garante, sem que eu precise ser mais específico.
Ela se levanta, esfrega a testa com a palma da mão, encarando o céu lá em
cima.
Sem todos os efeitos colaterais do uso contínuo de drogas, Annia
poderia ter sido uma mulher bonita. Uma russa autêntica, do tipo que chama
atenção. Porém, quando a vida resolve jogar com a sorte, os dados de quem é
pobre possuem seis lados em branco. E então, ou a gente espera a brincadeira
acabar, ou roubamos no jogo.
Ela arrasta os pés, abre os braços e me abraça com o corpo inclinado
para frente. Eu retribuo, um pouco desengonçado, louco para dar o fora daqui
o quanto antes. Espero que essa situação seja boa para ela. Que Maksim não
precise interferir, porque Annia é uma boa pessoa. Gostaria de ter a
conhecido antes.
Antes dele.
— Boa sorte. — São minhas palavras finais, embora não acredite que
eu ou ela tenhamos qualquer chance se dependermos apenas disso.
Foda-se a sorte.
Assim que saio finalmente do presídio, começo a caminhar na direção
que tenho evitado desde o meu retorno a Moscou. Ando devagar, minha
barriga ainda está dolorida por causa dos chutes que aqueles infelizes me
deram. Segui Serena e o irmão de Vladimir até um estúdio de tatuagem há
alguns dias, mas a região pertence a um dos inimigos de Maksim e acabei
envolvido em uma confusão perigosa.
Maksim.
É por minha culpa que ele se transformou no homem que é hoje, preso
em seu próprio distrito, a fera amaldiçoada no próprio castelo. Para me
ajudar, ele colocou sua reputação no limite com outras facções, contraiu
dívidas, conquistou inimigos, eliminou empecilhos.
Eu me lembro como se fosse hoje como Serena ficou depois do enterro.
Era outra pessoa, sem vida, sem alma. Precisei deixá-la sozinha para o
próprio bem. Eu queria proteger minha irmã, e entrar na criminalidade
apareceu como uma luz no fim do túnel para garantir a segurança dela, ou
evitar que fosse levada para um orfanato. Eu sei o que acontece com
adolescentes bonitas e estrangeiras nos lares temporários.
Junto com o bando de Maksim, fiz o que precisava ser feito, aprendi a
fazer parte daquele mundo. A fazer coisas ruins. Mas estava tudo bem,
porque eu teria a minha vingança e mi hermana estaria protegida.
Isso foi antes também, claro.
Antes de descobrir o nome do responsável pela construção daquele
prédio.
Antes de descobrir que a heroína me fazia voar sobre o abismo.
Antes de Maksim.
Horas de caminhada e minha respiração começa a falhar. Gostaria de
poder dizer que é minha fraca condição física, que o calor está cobrando a
conta, mas as crises de abstinência são constantes demais para eu fingir que
não as conheço bem.
Por estar concentrado demais em respirar, não desconfio do carro
estacionado em uma esquina a cinco quadras do Vakhtangov — há quanto
tempo estou caminhando? Peguei a direção errada sem perceber —, e apenas
quando a porta se abre e Maksim desce com os olhos fixos em mim, concluo
que deveria ter tomado mesmo uma injeção antes de sair de casa.
Não espero uma ordem. Entro no carro, na parte de trás, ao lado de
Petr, um dos companheiros mais violentos. Tem alguma coisa errada,
Maksim não sairia do distrito com tão pouca escolta. Mas não me atrevo a
questionar, apenas abaixo a cabeça e tento fingir que meu coração acelerado e
a vontade repentina de chorar são também efeitos do vício.

***

Sou levado para os armazéns nos fundos da minha casa. O lugar está cheio,
mais que o normal, com montes de barris e caixas de madeira. Há poucas
pessoas. Doze. Não… onze. Onde foram parar os outros?
Maksim dá ordens para que me deixem em um cômodo pequeno,
fechado e claustrofóbico. Dez minutos se passam. Depois mais dez. Eu os
escuto conversando do outro lado, mas não entendo as palavras.
O quarto começa a rodar, balançar, como um navio em alto mar. Não é
a primeira vez que acabo preso aqui dentro; houve algumas situações em que
desejei, inclusive, nunca sair.
A porta se escancara, o metal choca contra a parede e o som estridente
atravessa a minha cabeça como uma perfuração. Cada pequeno ruído parece
se amplificar em largas escalas. Maksim entra acompanhado de dois de seus
homens, eles possuem armas em punhos e uma expressão de piedade nos
rostos. São meus amigos, hermanos.
— Eu deveria matar você. — Maksim coloca as duas mãos dentro dos
bolsos; à meia-luz, suas tatuagens parecem manchas incoerentes de tinta
escura. — Madrid, Morella, Roma, Florença. Férias invejáveis, de fato. —
Ele balança a cabeça, passa as mãos nos cabelos. Faz um sinal para que os
homens nos deixem sozinhos.
— Pensei que se encontrasse uma maneira de provar os crimes de
Nicolai Volkiov, nós poderíamos ir embora. Em Morella, visitei lugares,
casas. As pessoas lá são menos extremistas… — justifico desesperadamente,
sentindo-me muito menor e incompetente ao expor meu completo fracasso.
A expressão de ódio esmorece.
— Você sempre foi um sonhador, Camillo. Alguém como eu só
consegue sair dessa vida de uma maneira: no caixão. Está usando de novo?
— pergunta sentando-se em uma cadeira de frente para mim. Não respondo, é
uma questão retórica. — Só vai sair quando estiver limpo dessa merda.
Não fode.
— Me voy a morir. — Desespero-me. — Não dá para parar assim. Se
me trancar aqui dentro, eu vou morrer!
— Você vai sair disso — determina, retirando uma seringa de dentro do
bolso, a agulha ainda escondida pela capa protetora. É uma dose pequena,
mas, ainda assim, eu a desejo como nunca desejei mais nada na vida. —
Devagar. Vai ficar aqui dentro enquanto eu resolvo a bagunça que você fez.
Amanhã o senhor Kokorin tem uma festinha com Vladimir. Ele pediu para
que continuássemos incitando a vizinhança contra ele. Mas agora os planos
são outros.
— Como assim? — indago, toda essa sua passividade me deixa alerta.
— Serena. Você precisa trazê-la para o nosso lado, Camillo. Ou tudo
terá sido em vão. Você precisa convencê-la a nos ajudar. O senhor Kokorin
disse que se tivéssemos as plantas do prédio, seria tudo muito mais rápido.
Ele está prestes a pedir a neta do velho em casamento e, depois que
provarmos o lixo que são e o presidente for preso, ela herdará metade de
tudo.
— Não — nego, a ideia é perturbadora demais.
— Depois do que Vladimir fez, eu perdi forças, Camillo. Ele ferrou
com o meu distrito!
Nos bastidores do submundo, o que se conta é que Vladimir Volkiov
extinguiu o legado de Nicolai; um algoz para o demônio, e seu ódio foi tão
grande que sua capacidade de manipulação e destruição passou a ser temida.
Maksim é irredutível, não adianta discutir.
A ideia não é péssima, somente assustadora. Mas Serena em breve
saberá o que aquela família tirou de nós, é um destino que não pode ser
evitado.
Maksim se ajoelha e puxa meu braço. Ele não me olha enquanto amarra
o elástico. Não me olha enquanto bate na seringa, preparando o líquido. Ele
também não me olha quando perfura a minha pele e eu sou tomado pelo
alívio mais incrível de todos os tempos.
A química corre pela minha corrente sanguínea, a adrenalina é
imediata.
Maksim joga a seringa para o outro lado do quarto e, em um piscar de
olhos, empurra-me sobre a cama, seus lábios colidindo contra os meus com
agressividade, ressuscitando lembranças de todos os motivos que nos
trouxeram para essa situação.
O pobre menino órfão precisando de ajuda e com uma incomparável
necessidade de vingança conhece o grandioso líder de uma facção criminosa.
Duas pessoas de mundos diferentes que se apaixonaram apesar das
circunstâncias.
Enquanto a anestesia do prazer se intensifica em um turbilhão de cores
e sentidos, eu recordo das suas palavras quando a gente se rendeu pela
primeira vez.
"Maldições são bonitas, Camillo. A rosa na redoma é linda. E quando
eu olho para você, sei que não deveria, que é perigoso, mas estou enfeitiçado
demais".
A rosa na redoma é uma maldição, mas nunca consegui entender qual
de nós dois ela representa.
VLADIMIR

— EU SEI O que está tentando fazer — rosno no telefone, o aparelho range


entre os meus dedos.
— Não tenho ideia do que você está falando — responde Andrei com a
voz dissimulada e neutra, como se estivesse diante de um juiz estúpido de
merda.
— Manipulador maldito — praguejo. — Eu esperaria algo assim do
Roman, não de você, Andrei. Mas alguns costumes não são exclusivos a
nossas profissões, certo? — ironizo com todo o amargor, afastando um pouco
mais do aglomerado de pessoas que espreita em busca da minha atenção.
— Calúnia — prossegue com seu timbre plácido. — Acredito que estou
sendo acusado injustamente de algo que não é do meu conhecimento, irmão.
— Não tente me fazer de idiota! — Encontro uma das varandas frontais
do edifício que os Kokorin utilizam como sede; saio em busca de privacidade
e silêncio, abandonando o espetáculo de velhos babões e puxa-sacos no lado
de dentro. — Seu senso de ética e moralidade não funciona comigo, então
guarde suas boas ações para alguém que precise e pare de se envolver nos
meus problemas ou nos da Serena.
Andrei não se tornou advogado e chefe do departamento jurídico por
acaso, também não escolheu a formação com base no que a empresa
necessitava e muito menos para satisfazer as expectativas de toda uma
comunidade empresarial. Ele era apenas perfeito nessa coisa de compreender
o ser humano, interpretar por quais caminhos transitam as mentes das
pessoas.
Há aqueles que o chamam de escudo. O escudo da multimilionária
família Volkiov. De fato, é um ótimo defensor. Mas existem casos em que a
melhor defesa é o ataque, e Andrei é impecável nisso também.
Em atacar.
Nós temos isso em comum.
— Meu senso de ética talvez seja a única coisa que pode salvar você
da ruína, Vladimir — argumenta, mas nem a nota de compaixão que deixa
sobressair em suas palavras é suficiente para me fazer recuar. — Além disso,
para alguém que se diz imune às minhas habilidades, você me parece
bastante perturbado.
— Eu estou no meio de uma maldita festa e você acaba de me mandar
uma mensagem dizendo que marcou um encontro entre a minha mulher e
Annia. Na prisão, porra! Eu não estou perturbado, Andrei. Estou irado!
— Ah, isso — ironiza fingindo inépcia. Ao fundo do telefone, escuto
resmungos de outras pessoas, o barulho de uma buzina, como se estivesse no
meio do trânsito. — Pensei que toda essa animosidade fosse por causa das
fotografias.
E lá está ele novamente, cutucando onde mais machuca. As palavras
certas, na hora certa. Esse é Andrei Volkiov. É assim que ele funciona,
seu modus operandi tão aclamado e bem-sucedido.
Quer me desestabilizar.
E está conseguindo.
As fotos a que se refere têm sido enviadas religiosamente todos os dias
ao meu celular. Fotos de Serena na mansão, Serena passeando, Serena
dormindo de biquíni na espreguiçadeira perto da piscina, de costas; seu corpo
curvilíneo e deliciosamente pecaminoso completamente exposto e vulnerável
aos olhos alheios. Pior! Serena e Luna deitadas na minha cama, as duas lindas
demais para o meu equilíbrio mental se manter estável.
Serena. Serena. E mais Serena.
— Estou falando sobre você estar passando por cima da minha
autoridade e a colocando em um perigo desnecessário — contraponho, sem
expor que isso também me afeta. Apoio o braço livre no parapeito da sacada
e tento me distrair com a visão das pessoas lá embaixo, pequenos pontinhos
amontoados ao redor do tapete que foi estendido para recepcionar os
convidados.
— E eu estou fazendo o meu trabalho, para que a adoção aconteça da
maneira mais rápida. As duas precisam se encontrar para a assinatura dos
papéis. Você me colocou à frente desse caso, se me lembro bem. — Há uma
pausa, ele conversa com alguém no outro lado da linha, a voz abafada me faz
entender que afastou o aparelho do rosto. — Preciso desligar agora.
— Nem pense em… — Não concluo a frase, no entanto, pois a linha
fica muda, indicando que desligou sem se importar com o quanto isso
amplificaria a minha raiva.
Encaro meu celular por longos minutos, calculando o quanto seria
satisfatório simplesmente jogá-lo para frente e assistir quando espatifasse no
chão, muitos metros abaixo. Se não fosse o risco de atingir uma pessoa, seria
uma ótima maneira de extravasar a frustração nesse instante.
Cada dia longe dela tem comprovado aquilo que eu já havia percebido
antes de partir. O que sinto por Serena não tem relação nenhuma com as
minhas tendências competitivas; não desejo mantê-la ao meu lado apenas
para satisfazer um ego desafiado — isso pode ter sido o estopim que deu
início ao meu interesse, mas agora é diferente.
Ela é minha.
A porta de vidro desliza atrás de mim, a melodia de alguma canção
erudita qualquer escapando para a noite, e Elena Kokorina se apressa na
minha direção com uma taça de vinho presa em cada uma das mãos. Ela tem
uma habilidade peculiar de parecer saltitar enquanto caminha, quase como
uma… corça — algo cômico, considerando seu vestido cor-de-rosa
estampado com a imitação das listras de um tigre.
— Então é aqui que estava se escondendo — cantarola, rebolando os
quadris excessivamente. O rosto de Elena é muito expressivo, anguloso e
tipicamente russo; um ponto a seu favor como principal representante da
empresa de Efrem Kokorin. — Estava procurando por você.
Um rosto feliz demais que talvez se renda aos prantos daqui três ou
quatro meses, quando sua família e todo o legado Kokorin estiver falido.
— As pessoas se escondem por um motivo, Elena. Porque não querem
ser encontradas.
Elena dá uma risadinha, sem se abalar com meu sarcasmo. Oferece a
taça cheia com aquele líquido rubro e deveras atrativo, que aceito de bom
grado. Assim como eu já havia constatado em outras oportunidades, a
companhia dela não é de todo ruim. O senhor Kokorin com certeza investiu
uma pequena fortuna na educação da neta, no condicionamento de um
membro da própria família para atender um propósito específico.
Ela sabe como se comportar quando está inserida em alguma discussão
sobre investimentos e ações, a maneira correta para se intrometer ou não nas
conversas, o momento ideal para sorrir e de quais piadas gargalhar. É verdade
que, por vezes, seus anseios espalhafatosos se tornam inconvenientes, mas até
mesmo essa característica contribui para que a julguem como autêntica.
— O que está achando da festa? — pergunta. — Não deve estar do seu
agrado, obviamente, ou não teria motivos para se esconder.
— A festa está ótima — minto, bebendo uma golada generosa do vinho
e me vejo ansioso por algo mais forte. Não é todo o dia que tenho a
oportunidade de destruir um império e um pouco de álcool geralmente torna
tudo mais fácil. — Seu avô já chegou? — sondo.
Elena meneia a cabeça para os lados.
— Ele precisou resolver uma emergência, uma besteira qualquer com
alguns associados, mas deve chegar a qualquer momento — explica. — Eu
deveria estar lá dentro recepcionando os convidados, cumprindo com o
protocolo, mas as pessoas estavam perguntando sobre você.
— Tive alguns assuntos urgentes para resolver também — indico o
celular antes de guardá-lo no bolso do paletó. — Espero que os do senhor
Kokorin sejam mais fáceis de solucionar do que os meus — insisto um pouco
mais, aproveitando da situação para conseguir informações.
Serena estava linda quando acreditou que eu tinha algum
compadecimento pelo sacrifício da Kokorin Enterprises, que eu realmente me
importava com o risco iminente de sucumbirem à falência em tão pouco
tempo. Que esse era o motivo pelo qual eu cogitava seguir adiante com esse
casamento.
Mas os Kokorin enviaram aquele e-mail no dia em que Serena se
tornou minha mulher, arriscaram um ultimato. Eles moveram uma peça
no meu tabuleiro de xadrez, tentaram acuar o rei, mas esqueceram que um
peão sozinho não vence batalhas.
— Duvido. Com todo respeito, mas eu não os vejo muito envolvidos
com os veículos de comunicação, e esse tem sido o investimento favorito do
meu avô nos últimos meses. Imagem, visibilidade e popularidade. Por outro
lado, é um campo extremamente minucioso e difícil de sustentar.
Elena bebe o restante do próprio vinho e pousa sua taça vazia sobre
uma das mesas externas, sem perceber que mais uma vez me oferece
pequenas informações que contribuem para o meu entendimento sobre
um todo. Efrem Kokorin tem investido muito dinheiro para a manipulação
dos veículos de comunicação. Talvez mais do que nós.
Com qual propósito?
Mantenha seus amigos por perto e os inimigos mais perto ainda. Uma
frase completamente usual e corriqueira, mas de inegável eficiência. Em
outros tempos, não me importaria de virar o jogo, usar a neta do senhor
Kokorin para aumentar nossos investimentos e engolir a empresa deles até
que se tornassem tão dependentes de nós que nunca mais tentariam dar um
golpe desses em ninguém.
Mas agora é diferente. Serena entrou no meio da equação e todos os
meus cálculos passaram a girar ao redor dela na busca por um resultado que a
mantivesse ao meu lado para sempre.
Nenhuma decisão foi tão dolorosa quanto deixá-la no meio daquele
jardim. Nem mesmo quando resolvi esconder o suicídio do meu pai, ou
quando precisei sofrer o verdadeiro luto sozinho. Nada disso se compara com
a dor que se esparramou dentro do meu organismo como uma enfermidade
degenerativa.
Mas há um propósito para tudo quando a gente assume o controle,
inclusive para o sofrimento.
— Deveríamos voltar — digo. Preciso manter Serena longe dos meus
pensamentos ou corro o risco de cometer algum deslize.
Faço menção de ir sozinho, mas Elena entrelaça o braço no meu. Não
me passa despercebido quando leva a mão ao cabelo para deixar o penteado
ligeiramente bagunçado, ou a forma como desliza a língua sobre os lábios
para mantê-los úmidos.
Como eu disse, bem treinada.
Conduzo Elena para o interior do prédio e imediatamente nos tornamos
o centro das atenções. Há fotógrafos estrategicamente posicionados dentro do
edifício onde a festa foi organizada, de modo que nenhum detalhe escape às
lentes da imprensa.
O boato de que um grande pronunciamento será feito é verdadeiro.
Passei a última semana alimentando os rumores sobre um possível pedido de
casamento. Adoro quando as expectativas diferem da realidade, porque
quanto mais degraus dispomos a nossos inimigos, maior e mais fatal será a
queda deles.
— Finalmente apareceram — diz Efrem Kokorin à medida que nos
aproximamos de um grupo composto por homens e mulheres que trabalham
na empresa em cargos de confiança. — Essa festa estava à deriva sem você,
doce Elena.
— Desculpe por isso, ela não tem culpa nenhuma — digo
galantemente, e, mesmo sabendo da mentira, o rosto de Elena se tinge de
vermelho ao meu lado. — Acabamos nos distraindo.
O senhor Kokorin não esconde a satisfação. Nenhum deles desconfia
que estive esse tempo todo conhecendo sobre as intenções da empresa deles,
estudando seus investimentos, acompanhando as transações, listando os
contatos. Tenho certeza de que são os responsáveis pela denúncia às obras,
pelas gravações no terreno e as entrevistas que colocaram em risco nossos
investimentos.
Por quê?
Bom, não faz diferença, de qualquer forma. Até o final da noite, essa
empresa será reduzida a nada.
— Tudo o que o presidente quiser. — O velho ergue a taça na direção
da neta e não consigo deixar de lembrar da minha cunhada e todo o
sofrimento que passou por ter tido um pai exatamente igual Efrem.
Pior do que ele, aliás.
— Tudo o que o presidente quiser — repete Elena, passando os braços
ao meu redor. Pouso minha mão em seu ombro para que nos vejam juntos
pelo maior tempo possível.
— E seus irmãos, senhor Volkiov? Teremos o prazer da companhia
deles essa noite? — pergunta Dmitr, o chefe do departamento financeiro.
— Temo que não — respondo sem muitos detalhes.
— Eu sempre me perguntei como funcionava a gestão de vocês, pois,
mesmo sendo o presidente, especula-se que possuem direitos iguais na
tomada de decisões — menciona Elena, a esperta.
— Meus irmãos jamais se opõem a uma decisão minha a respeito da
empresa — explico de maneira esquiva, evidenciando a força da minha
família. — Assim como eu respeito quaisquer que sejam suas decisões. É
assim que funcionamos.
Nesse caso é diferente, penso. Roman com certeza seria a favor de
cortarmos relações com a Kokorin Enterprises; Ivan tentaria colocar em
pauta o rombo que será aberto em nossas contas bancárias, mas, por fim,
aceitaria o que eu determinasse.
Mas Andrei, não. Porque ele é o Volkiov bom, o que salva pessoas.
Ah, merda. Eu preciso acabar com isso logo e voltar para casa. Para
Serena.
Tem sido uma tortura manter o foco na última semana quando minha
mente só consegue recriar imagens dela entregando-se para mim. Quando
todo o meu corpo parece lamentar a nossa distância.
Mas há um sentimento novo que se iguala em intensidade ao desespero
e à saudade, um do qual não me orgulho nem um pouco. O ciúme! Sentir
ciúmes dos meus próprios irmãos é o cúmulo do quanto essa maluca mexe
com a minha cabeça.
— Bom, eu estava agora há pouco em uma conferência com um
confidente. — O senhor Kokorin começa a caminhar para longe do grupo,
um gesto para indicar que o assunto é privado. — Fiquei sabendo de algo
importante, senhor presidente. Longe de mim criar qualquer desconfiança
entre nós, mas conjectura-se que Serena Fajardo, a dona do imóvel que nos
custou alguns milhares, estaria morando na sua residência em Moscou.
Paro de andar no mesmo instante, o sangue parece congelar muito mais
rápido nas minhas veias.
— Como você…?
Nesse instante, uma comoção tem início. As pessoas começam a
cochichar e meus olhos demoram a focar em qualquer lugar por causa das
palavras que acabo de ouvir. Como ele descobriu?
Ao meu lado, ainda com os braços enroscados na minha cintura, Elena
arfa e me abraça com mais força. Então eu os vejo.
Os três atravessam o salão silencioso e os eventos parecem acontecer
em câmera lenta; até as máquinas fotográficas soam abafadas enquanto os
flashes piscam freneticamente. A cada passo de Serena, suas longas pernas se
projetam entre as duas fendas abertas nas laterais do vestido vermelho, e o
tecido leve e fino como uma segunda pele molda cada pequeno detalhe na
curva dos quadris, na linha da cintura e no contorno das costelas.
Há tantas minúcias em sua beleza que eu consigo imaginar com
perfeição como seria se o corpo estivesse despido, caminhando na minha
direção, da mesma forma como todas as outras pessoas nessa festa que
possuem um pau entre as pernas devem estar fazendo agora.
Mas o pior de tudo é o decote, um profundo e extravagante decote que
deixa à mostra o contorno dos seios volumosos, os mesmos que tive entre os
dentes e que se moldam embaixo das minhas palmas abertas. E é ali, entre os
dois, que eu identifico uma tatuagem.
Uma. Maldita. Tatuagem.
— Boa noite, Vladimir — Serena diz, mas não me sinto seguro o
suficiente para falar enquanto as mãos dos meus irmãos imbecis continuam
sobre ela.
Não me movo, não abro a boca para responder, sequer consigo
controlar o ritmo da minha respiração, como se qualquer movimento fosse
capaz de desencadear uma série de eventos catastróficos.
É claro que Serena faria algo assim, com certeza orquestrou cada
pequeno detalhe porque é disso que ela gosta: desafiar o perigo.
Desafiar a mim.
E a tatuagem…
— Boa noite! — Elena abandona meus braços e estende a mão para
cumprimentar os três. O olhar de Serena rapidamente estreita na minha
direção, espelhando o mesmo sentimento de indignação que eu.
Puta que pariu, ela me deixa possuído de raiva e tesão ao mesmo
tempo.
Andrei desfaz o contato de seus dedos com a cintura de Serena para
retribuir a saudação da anfitriã, mas não rápido o suficiente — demora uma
eternidade até que deslize a mão de um lado a outro, tateando as costas dela
antes de, finalmente, se afastar. Roman nem se dá ao trabalho e continua de
braços dados com a mulher que deveria estar nos meus braços, o irritante
sorriso torto lhe estampando a face ao perceber minha expressão.
O impacto da chegada de Serena era algo para o qual eu não estava
preparado, mas aqui está ela, linda, deliciosa, afrontosa. Um pecado
atentando o pecador.
— Pensei que não teríamos o prazer da companhia dos senhores nessa
noite — diz o velho Efrem, astuto como uma cobra. — E muito menos que
estariam na companhia de uma dama tão linda.
De frente para mim, Serena franze os lábios, como se quisesse
gargalhar à menção da palavra dama, mas me vejo hipnotizado por aquele
tom de vermelho, na curva que se forma em sua bochecha ao sorrir e como
morde o canto inferior da boca antes de puxar a respiração.
Ela quer me ver morto.
Ou que eu acabe matando alguém.
— O que está fazendo aqui, Serena? — pergunto, o nome dela
arranhando as paredes da minha garganta como se alguns séculos tivessem
transcorrido desde a última vez em que o pronunciei. — Eu disse para você
esperar.
O sorriso de Serena amplia enquanto ela se afasta de Roman e inicia
uma aproximação lenta. Ergue o rosto altivo, deixando o nariz empinado e o
colo abaixo do pescoço ainda mais acentuado. Eu não hesito em admirar seu
corpo e a arte de traços delicados entre os seios, por mais conflitante que seja
imaginar que alguém — possivelmente um homem — a tocou em um lugar
tão íntimo, que sentiu a textura da pele naquela região… Merda, é melhor não
imaginar.
As certezas começam a se desfazer na frente dos meus olhos, os planos
se tornam poeira cósmica e a beleza de Serena se funde com a saudade. A
sensação de pertencimento transita entre nossos corpos como se a existência
de um presumisse a realidade do outro, como se o destino não se importasse
com os danos que causamos juntos, como se o acaso gostasse de assumir
riscos.
Uma vaga noção de que todos ao nosso redor acompanham a cena
enquanto a gente se contempla pulsa em qualquer parte sem importância da
minha consciência. Serena toma de mim a taça de vinho, leva aos lábios e
acomoda uma mão em cima do meu peito, acariciando a gravata com o
polegar. A garganta dela ao engolir o líquido e o semblante de êxtase ao
saborear o restante da bebida destroem qualquer resquício de esperança que
eu tinha de resistir até o fim da noite.
Serena coloca a taça vazia sobre uma mesa próxima e inclina na ponta
dos pés para alcançar minha orelha direita.
— Quem espera é mulher grávida e noiva de cafajeste, Vladimir —
murmura maliciosamente, ciente de como seu calor tão próximo é a minha
ruína. — E me sinto muito feliz por não estar enquadrada em nenhuma dessas
duas categorias!
Ela faz menção de me dar as costas e voltar para os meus irmãos, mas
impeço que continue com essa afronta desmedida. Uma semana longe, uma
semana em que pôde se aproximar deles, e já não me sinto mais seguro o
bastante para confiar sua companhia aos dois. Estou sendo ridículo, mas não
consigo evitar. Minhas mãos anseiam por mais dela, por tocar cada pedacinho
de pele exposta, relembrar como seus ombros tremulam sempre que o meu
indicador resvala perto da clavícula.
Mas, o mais importe, eu preciso que continue próxima a mim ou a festa
corre o risco de acabar muito antes do que o previsto, porque ela é a mulher
mais atraente desse salão, porque eu não tenho psicológico suficiente para
assistir como todos a acompanham com o olhar, porque a ideia de que tenha
se afeiçoado a Andrei ou Roman de uma forma mais íntima é perturbadora e
assustadora demais.
— Essa é Serena Fajardo — apresento, contra a vontade, posicionando-
a na minha frente. Levantando a cabeça, os olhos dela se fixam nos meus e
canalizo todos os sentimentos na ligação que se estabelece entre nós para que
entenda como estou por um mísero fio de controle. — E sua fonte estava
correta, senhor Kokorin, ela está mesmo morando conosco até que a situação
no clube seja resolvida. Espero que isso não seja um problema.
— Problema? — pigarreia perante meu tom incisivo. — Não, não, é
claro que não, apenas curiosidade. Fiquei pensando o que uma jovem como
ela poderia estar fazendo em uma mansão como a de vocês.
— O senhor não vai querer saber! — Serena provoca sugestivamente.
— Se é que me entende.
— Coraz… Serena, é melhor conversarmos a sós — interfiro.
Efrem Kokorin não é confiável, e ele sabe muito mais do que deveria,
mais do que eu gostaria que soubesse. A pergunta dele antes de Serena
chegar ainda ecoa na minha memória. Há um plano a ser seguido e, se eu me
deixar levar, posso acabar colocando-a em perigo.
— Também estou curiosa — Elena diz, acompanhando o raciocínio do
avô.— Mesmo trabalhando na empresa, não tinha conhecimento desse fato.
Estão desconfiados. É óbvio.
Recuo um passo discreto, a distância de centímetros faz todo o meu
corpo ficar alerta novamente em uma contradição dolorosa e física. Meu
excesso de proteção e controle são as únicas coisas que mantêm o muro das
hesitações erguido entre nós dois nesse momento.
Além disso, falta pouco, muito pouco para o grande momento. O
horário do discurso, o grand finale.
— A senhorita Fajardo está sob os meus cuidados — Andrei mente.
Aliás, não é uma mentira, afinal Serena está, de fato, sendo cuidada por
todos. Esperto e manipulador. Ele estica a mão para que Serena o acompanhe
e as minhas se fecham em punho inconscientemente. — É nossa cliente, e
uma acompanhante adorável, nada mais justo do que oferecermos estadia até
o fim dos processos, sobretudo nessa semana em que o presidente
esteve ausente.
Serena não se move por um longo momento, seus olhos fixos em Elena
como se buscasse uma resposta. A música já recomeçou a tocar, e muitas
pessoas se dispersaram, mas há interessados por perto, sobretudo fotógrafos
atrás de uma boa história.
— Elena Kokorina, certo? — O pé adornado com um salto fino e alto
vai à frente, exibindo outra vez a perna por entre as aberturas no vestido.
Serena volta para Andrei, e só me resta fechar os olhos e sentir a merda que
eu mesmo alimentei. — Vocês dois já transaram? — dispara como uma
navalha e nós todos ficamos boquiabertos com a audácia.
— Bebidas! — Roman bate palmas, tentando desesperadamente mudar
o rumo da conversa. — Bebê, nada de álcool para você. Sem uma gota de
bebida, já causou constrangimentos o bastante. A propósito, Andrei —
murmura —, por que vocês dois não vão dançar um pouco enquanto eu
converso com o meu querido irmão presidente?
— O quê? — pergunto, indignado, irado e muito mais alto do que
deveria. O inferno que ela vai!
— O que, o quê? — teima com seu sotaque sensual, como sempre. A
única maneira de calar Serena é do nosso jeito, inferno! E eu daria qualquer
coisa para arrastá-la até uma sala qualquer para fazer isso. — Cedo demais
para esse assunto, Lord Vlad? — pergunta, raivosa, referindo-se à pergunta
que fez para Elena.
Em um arroubo, tento chegar mais perto para tirar Serena dos braços de
Andrei, mas Roman entra na frente. Eu sei, no fundo sei que está certo em
impedir que eu faça o que pretendo. Por isso, precisei deixá-la sem olhar para
trás, por isso limitei o nosso contado ao longo da semana, porque se a
trouxesse comigo, eu jamais conseguiria assumir o meu papel como
presidente e descobrir as farsas da Kokorin Enterprises.
Serena desperta o que há de pior em mim por gostar do monstro que
aqui reside.
— Desculpe, senhor Kokorin. Elena — digo para me livrar
temporariamente de tanta atenção. Andrei cochicha no ouvido de Serena e os
dois se afastam, mas é para mim que ela olha assim que começam a se
movimentar ao som dos instrumentos musicais. — Poderiam nos dar um
minuto? Preciso discutir algo importante e inadiável com meus irmãos.
— É quase hora do seu discurso, Vladimir — Efrem avisa, outra vez
tentando me encurralar, mas não me dou ao trabalho de impor uma resposta.
Andrei e Serena estão dançando agora. Há muitos cliques ao redor dos
dois, haverá matérias sensacionalistas, isso sem mencionar o perigo iminente
de algum outro engraçadinho filho da puta como meu irmão advogado do
diabo tentar uma dança ou puxar assunto, ou pior…
E tem Roman.
E a tatuagem.
E Andrei.
— Relaxa, Vlad. — Roman bate no meu ombro e me transporta de
volta para o presente. Efrem e Elena desapareceram.
— Que merda vocês estavam pensando? — indago, meu rosto muito
próximo ao de Roman para que ninguém nos ouça, mas também pela minha
vontade de descontar nele toda a minha raiva. — Aquela tatuagem tem o seu
cheiro, Roman.
— Sabe, Vladimir? Você está com ciúmes do irmão errado. — Roman
pega uma taça de champanhe, engolindo tudo de uma vez como se fosse
água. — Olhe para os dois. Você concorda comigo que Andrei é o melhor de
todos nós, não é mesmo? Ivan pode ter se dado bem, mas é tão ciumento que
eu me pergunto todos os dias como a nossa Larinha aguenta. Mas o caçula,
fala sério! É jovem, bonito, elegante, educado, quer se casar. Eu queria ser
mulher só para poder dar pra ele. Ah! E ainda é bom com crianças.
Encaro os dois. São os centros das atenções. Serena arrisca alguns
passos típicos da sua nacionalidade, remexe o corpo em um ritmo sensual,
suave e destemido ao mesmo tempo.
Andrei é bom com crianças, minha Lua parecia muito feliz nas fotos
em que os dois estavam juntos. Minha? O que deu em mim? Ele é bom em
todas as minhas falhas, conseguiria corrigir tudo o que estraguei na vida dela.
Mas não é para o meu irmão que Serena olha, embora pareça ter por ele
algum sentimento.
É para mim.
Ela andou novamente a metade do caminho, e eu preciso fazer o
mesmo.
— Não deviam ter a trazido— murmuro. Teria sido muito mais fácil
simplesmente expor Efrem Kokorin sem que ele desconfiasse e pudesse se
preparar para um contra-ataque como pode estar fazendo agora.
— Era isso ou deixar ela vir sozinha, Lord Vlad — ironiza. — Tanta
mulher no mundo e foi arrumar logo a mais pirada. A questão aqui é o que
você está pensando? Todo mundo só sabe falar sobre o seu namoro, noivado
ou o que quer que seja esse seu lance brega com a neta do velho.
— Não há nada entre mim e Elena — esclareço, mas o sorriso
debochado de Roman chega carregado com descrença.
— Não foi isso o que pareceu quando chegamos. Você deveria nos
agradecer por termos a trazido, ou o show teria acontecido ali mesmo.
— Agradecer por trazerem a minha mulher praticamente nua para uma
festa recheada com esse lixo tóxico que faria qualquer coisa para nos
destruir? Agradecer porque agora o país inteiro vai acreditar que a mulher por
quem eu estou apaixonado pode ser o mais novo casinho do Andrei? Vocês
nem deveriam estar aqui, Roman.
— Apaixonado? Eu ouvi direito? — Roman arregala os olhos,
procurando Serena e Andrei, que riem sem parar enquanto rodopiam como
crianças. — Me compadeço do seu sofrimento, irmão. Mas você conhece a
mulher que tem, devia ficar feliz por ela não ter vindo nua de verdade.
Ponto para ele.
— Eu vou acabar com a sociedade — confesso em um sussurro. —
Ainda não pude compreender quais as motivações dos Kokorin, mas você
achou mesmo que iam me manipular assim com tanta facilidade? — A feição
de Roman se transforma de incrédula para interessada. Se tem uma coisa que
Roman adora, é quando usamos nosso poder destrutivo. — Mas minha
estadia aqui na empresa deles esclareceu grande parte das minhas suspeitas.
Colocar a neta como estagiária na minha empresa, ocupar uma das principais
cadeiras no quadro geral de investidores do clube e aparecer magicamente
como um mártir em relação às reportagens sensacionalistas contra nossa
construção que foi atacada moralmente pelos populares do distrito, não
podiam ser apenas acasos.
Tomando solta um assobio impressionado e satisfeito.
— É por isso que você é o presidente, Vladimir. — Roman dá um passo
para o lado, abrindo passagem até Serena. — Resolve essa bagunça logo,
nossa mãe está louca para colocar um sobrenome Volkiov naquela criança.
Luna.
Luna Fajardo Vladimirovna Volkiova.
Soa muito bem.
Já estou quase alcançando a metade do percurso até os dois quando me
lembro que, apesar de tudo, não sou bom o bastante para deixar Roman sair
impune depois de levar Serena a um estúdio de tatuagem, por mais que isso
tenha sido ideia dela e seus sonhos mirabolantes.
— Antes que eu me esqueça. — Viro-me para Roman. Ele fecha os
olhos como se premeditasse o que pretendo falar. — Aquela tatuagem…
— Tatuagem? Que tatuagem? — simula, já com outro copo em mãos.
— Você vai para aquela conferência na Itália no meio do ano. Ainda
precisamos de um acesso e Palliermo está fora de cogitação. — Aquele
maldito ainda vai ter o que merece.
— Nem fodendo! Quanto ódio e rancor no coração, nunca ouviu que a
vingança não leva a lugar nenhum? — Ignoro seus apelos e sigo para colocar
Andrei em seu devido lugar também. — Mas que merda, Vladimir!
O caçula e Serena param à medida que me aproximo.
Ele me torturou a maldita da semana inteira. Deu a entender que
poderia estar interessado na primeira mulher que amei na vida. O que seria o
suficiente para revidar?
O que seria?
— Vladimir! — Serena grita, mas só percebo o que fiz quando é tarde
demais.
Andrei cai no chão, minha mão arde e um confusão tem início. Há
pessoas ao nosso redor, muitas, fazendo perguntas, tirando fotos. Meu irmão
continua ali, rindo. Ele me venceu no jogo de influências, talvez um dia se
torne um líder melhor do que eu.
Isso não vai soar bem para Efrem Kokorin, mas eu já sabia que a
chegada de Serena significava que eu perderia o controle.
Há um ditado que alguns russos adoram repetir, mas poucos têm a
paciência necessária para colocar em prática: bata enquanto o ferro está
quente. Ou, em termos literais, saiba a hora certa de agir, e é basicamente isso
o que um líder precisa fazer.
Serena faz menção de ajudar Andrei a se levantar, mas eu seguro sua
mão e a puxo na direção oposta.
— Você é uma piada, Vladimir! — Andrei grita sem parar de rir.
Ainda tenho tempo de ver Roman aproximando-se com duas taças de
sabe-se lá o quê nas mãos, que entrega para nosso irmão, e ambos começam a
amenizar a situação como se tudo não passasse de uma brincadeira entre
irmãos.
De mãos dadas, eu praticamente arrasto Serena através da multidão de
fotógrafos e convidados. Eles abrem caminho assim que percebem nossa
aproximação e rapidamente encontro o que estive procurando: um cômodo
vazio que parece ser utilizado como almoxarifado. Há caixas e arquivos
empilhados, mas meus olhos vasculham os cantos a procura de câmeras.
Nada, muito bom. Preciso lidar com uma coisa de cada vez.
Serena primeiro.
O discurso depois.
— Você enlouqueceu? — ela sussurra, seus grandes olhos amendoados
analisando-me cheios de surpresa. — Não acredito que socou o seu
irmão, misericórdia!
Ao invés de responder — e dar início a uma discussão infinita que não
seria suficiente para expressar o quanto estou irritado e afetado —, faço
aquilo que a gente faz de melhor. Agarro Serena e tampo sua boca com uma
das mãos, impedido que despeje sobre mim a enxurrada de xingamentos em
espanhol que provavelmente estão presos em sua garganta agora.
— Quietinha — sussurro, mas minha voz soa como um grunhido. —
Está cicatrizada? — Ela me fulmina com os olhos e tenta morder a minha
palma, mas, assim que aproximo nossos corpos e acaricio seu pescoço com
um beijo, Serena deixa de resistir. — Corazón, quero saber se a sua nova
tatuagem está cicatrizada.
Ela pensa poucos segundos e balança a cabeça, confirmando.
Ótimo.
Empurro as alças do vestido para os lados. Dois míseros centímetros
ocultavam as auréolas de seus seios e já não sou capaz de calcular em que
nível de intensidade meus sentimentos de paixão, ódio e desespero se
encontram. Serena puxa o ar com profundidade, fazendo o peito subir e
descer muito rápido — eu conseguiria viver disso, de assistir as diferentes
formas que seu corpo manifesta o desejo.
Um gemido agudo morre em sua garganta assim que inclino a cabeça e
saboreio a pele adornada pela tinta da tatuagem, deslizando a ponta da minha
língua por cada contorno, partindo do coração desenhado na base até a flor
desabrochada no topo.
Nosso tempo é curto, regressivo, limitado, mas eu preciso sentir o seu
sabor para acalmar o desespero, a adrenalina.
Talvez alguém tenha nos visto, talvez haja rumores, talvez escutem um
de nossos gemidos, mas é por isso que eu a escolhi. Que o mundo inteiro
saiba!
Ela é minha.
— Eu sempre me perguntei o que você tinha que me deixava assim,
louco, inconsequente, pior e melhor ao mesmo tempo. Você me faz querer
viver, Corazón, porque viver sem amor era como morrer aos poucos.
— Você me fez morrer aos poucos enquanto estava longe — confessa
em um arfar. Encosto minha testa na dela, fantasiando com o quanto vou me
esbaldar com a temperatura interna do seu corpo ao meu redor assim que
sairmos dessa festa.
— Eu sinto muito.
— Odiei ver você nos braços de outra mulher!
— Me desculpe.
— Eu queria ter socado a cara dela também! — pestaneja.
— Corazón. — Gargalho, reerguendo seu vestido para voltarmos à
balbúrdia.
Serena dá de ombros, não se importa em retocar a maquiagem ou
disfarçar o cabelo despenteado.
— No meu idioma, o sobrenome dela soa como um cacarejo, se quer
saber!
— Está a chamando de galinha? — provoco, enquanto saímos da sala e
iniciamos nosso retorno ao salão, seguindo a música da festa, que parece ter
sido controlada.
Agora sim o mundo voltou a girar do jeito certo. O que eu mais quero
está ao meu lado, como tem que ser!
— Chamando, não, meu querido, apenas constatando um fato. O meu
sobrenome deve significar doida em algum idioma e estou bem com isso,
obrigada.
O jantar ainda nem foi servido, mas os eventos de há pouco foram
suficientes para transformar a atmosfera. Há um medo pairando no ar. Efrem
Kokorin se levanta de sua mesa com a família ao perceber que estou
caminhando rumo ao palco.
— O que você vai ver hoje é um lado meu que eu preferiria que não
conhecesse — alerto, mas Serena revira os olhos como se isso não fosse nada
com o qual já não estivesse acostumada. — Tudo vai ruir, meu mundo vai
desabar em catástrofes, sabe? Nós estamos no olho do furacão, a calmaria
não é verdadeira. Ela vai passar da pior maneira possível, no pior momento
possível. Eu deveria estar preocupado, deveria me importar, entende? Então
por que tudo o que consigo pensar é em você? Por que se tornou na minha
prioridade?
— Vladimir, eu não quero que se prejudique por minha causa… —
Serena franze o cenho, começando a compreender.
— O que está pensando em fazer? — Andrei se aproxima, diplomático,
sorrindo amplamente para Serena.
Um grupo de repórteres começa a se alojar mais perto para escutar o
discurso melhor.
— Remover a sociedade com a empresa Kokorin e encerrar nossa
injeção financeira em todos as instâncias prejudicadas com a construção do
clube. Nós vamos falir a Kokorin Enterprises.
Serena arqueja.
— Se fizer isso, nós vamos… — Andrei começa, mas eu completo a
frase.
— Perder alguns milhões? Com toda certeza — confirmo, subindo os
poucos degraus à medida que a orquestra encerra a apresentação para o
momento mais aguardado da noite.
— Milhões? — Serena questiona, chocada. — Vladimir, você não
precisa fazer isso, deve haver outra maneira, uma que não envolva milhões e
nem noivado, de preferência.
— Isso é impossível — explico, atacando suas emoções, investindo
para que meus sentimentos a façam sucumbir. — Esse tempo todo eu tentei
afastar você. Fiz de tudo para negar o que sinto, Corazón. Mas todas as vezes
em que apareceram motivos para que desistisse de mim, sempre quando eu
acreditava que havíamos chegado em um limite, você me fez desejar que eu
estivesse errado. — Inclino para frente e beijo a testa dela. — Há poucas
semanas, quando estava à sua procura, uma das minhas maiores intenções era
descobrir o seu valor. Ele é inestimável, agora sei disso. Muito maior do que
alguns milhões. E noivado, bem, é algo com o qual você precisará lidar em
algum momento. Breve, de preferência.
Atônita, pela primeira vez sem palavras, Serena recebe um beijo meu
em silêncio. E quando subo no palco, sendo assistido por todas aquelas
pessoas, eu sei que não vou me arrepender dessa decisão.
A de sacrificar uma parte da minha empresa pela mulher que amo. A de
responder o barulho dentro da minha mente que se tornou um companheiro
no lugar de Nicolai.
E, diante dessas pessoas, da certeza de que as minhas palavras se
tornam leis, meus ouvidos são tomados. Há uma pulsação, um zumbido alto e
agudo muito parecido com aquele efeito sonoro que suprime a audição
humana após a explosão de uma bomba. É estridente como um grito,
constante como um carma agourento a pairar sobre uma pessoa fadada ao
fracasso. Mas não incomoda de verdade. Conviver com esse barulho por oito
anos fez com que eu me habituasse aos seus sintomas. Algumas vezes, quase
consigo apreciar o som como se fosse uma melodia, ou o atraente canto de
uma sereia, ou uma partitura simples sendo regida pelo instrumento musical
de um artista solitário.
Começou baixo, no segundo em que coloquei os olhos sobre o corpo
espasmódico de Nicolai no meio daquele jardim — que lugar estúpido para
morrer! — e aumentou gradualmente a cada vez que eu quitava uma de suas
dívidas, ou passava horas e mais horas negociando com seus malditos
clientes, destruindo vidas e condenando pessoas. Quanto mais fundo
desbravava o universo sujo com o qual meu pai estava envolvido, mais alto
aquele zunido se tornava.
Depois de algum tempo, entendi a origem: é o som emitido pelas
cordas vocais do poder.
Todos estão com os olhos voltados na minha direção. Centenas deles,
babando como hienas ao redor da carniça. Fotógrafos e curiosos, invejosos e
admiradores, pessoas úteis e descartáveis. Os ricos e os nem tão ricos assim.
Não importa quem seja, qualquer pessoa pode ser rotulada. Qualquer um…
menos ela.
Menos a minha Serena, a única que consigo enxergar no meio daqueles
que temem o que represento. Ela não tem medo e muito menos respeito.
Serena está pouco se ferrando para a merda na minha cabeça. Corazón. Eu sei
o que preciso fazer, as palavras certas. É claro que sim, foi para esse tipo de
situação que me preparei a vida inteira.
E ela destruiu tudo.
— Meu pai tinha um lema… — digo. Todos se calam, mas o barulho
dentro da minha cabeça continua mais alto do que nunca. — A vida é como
um botão, ele dizia.
VLADIMIR

RESPIRO PROFUNDAMENTE ANTES de continuar. Obrigo minha mente


a desapegar da obsessão por Serena e me detenho nos arredores. Parece haver
mais pessoas do que eu havia calculado a princípio, mais olhos e ouvidos,
mais lentes. Eventualmente, mais matérias, mais escândalos. Mais efeitos
colaterais.
Mais danos irreparáveis.
Mais destruição.
Serena caminha entre a multidão, seus grandes olhos arregalados e o
cenho franzido me fazem perguntas silenciosas cujas respostas inexistem em
qualquer âmbito da minha mente. Mas há uma certeza vagando no meio do
vazio, uma simples, inconveniente e inexplicável certeza. A de que eu amo
essa mulher e faria qualquer coisa para garantir que continuasse ao meu lado.
Eu amo Serena. Céus! Amo tanto que tenho medo desse Vladimir, me
sinto apavorado pelas coisas que eu seria capaz de fazer em nome desse
sentimento.
Das coisas que vou fazer.
— Um simples e insignificante botão — continuo no microfone. Os
espectadores se entreolham, confusos com o rumo do meu discurso. Efrem
vai se aproximando do palanque, as mão chacoalham ao passearem pela testa
com um lenço preso entre os dedos, limpando o suor no rosto muito roxo sob
a barba. Eu gostaria de encontrar um resquício de piedade, mas não há. Que
pena. — Imaginemos! Não um metafórico, mas um grande, vermelho e
luminoso botão, um que a gente precisa apertar todas as vezes que nos
deparamos com um arrependimento, uma perda, uma tragédia, quando
perdemos pessoas que amamos ou fazemos a escolha errada, quando
queremos esquecer, recomeçar, tentar outra vez, ou simplesmente desistir.
Retiro o microfone da base e início uma caminhada lenta sobre o
assoalho. A primeira parte está feita. Conquistar a atenção deles, hipnotizar a
todos como passarinhos dormindo no ninho da cobra. Meus passos
cronometrados sobressaem entre uma câmera ou outra que dispara de algum
profissional corajoso o suficiente.
Arrisco mais um olhar para Serena. Falta muito pouco para tê-la em
meus braços, para me alimentar da sua essência e suprimir todo esse turbilhão
de desespero que me assola. Estou cansado, exausto, e a presença dela
aumenta ainda mais a minha agonia, desregula meu controle sobre o homem
que se acostumou a possuir ao invés de merecer.
— A vida é como um botão — repito, as palavras se transformando em
fogo na minha língua —, é o que meu pai adorava dizer quando
questionavam sobre a origem do seu sucesso. Um movimento, uma frase, um
simples olhar, um apertar de botão, e tudo muda. Sua vida, suas perspectivas
de futuro, as pessoas com quem vai conviver. Pequenos eventos que se
tornam grandes, imprevisíveis e caóticos.
Fecho os olhos por um momento para calar a voz de Nicolai evocada
por esse discurso. Explorar o labirinto de ensinamentos pútridos construído
pelo homem que arruinou a minha vida é de longe uma das piores e mais
dolorosas experiências que já vivenciei. Mas eu consigo lidar com isso, tenho
que conseguir.
Não havia cogitado a possibilidade de restar alguma parte inteira da
minha alma para ser afetada por um fantasma, mas talvez reste. Talvez
Serena esteja me remontando.
— Caos — prossigo, retornando para o centro do palco para que as
atenções não se dispersem. Serena agora ocupa um lugar muito mais
próximo, uma de suas mãos está sobre os lábios como se tentasse se
recuperar de um choque. Ela não deixa de me olhar um segundo sequer, não
desiste, não foge, não teme. — Era disso o que ele falava, mesmo que
subjetivamente. A Teoria do Caos, que muitos de vocês já devem ter ouvido
falar. A teoria da imprevisibilidade, de como um evento, por menor que seja,
impacta pessoas em tempos e espaços distintos sem que ninguém tenha
qualquer poder de premeditar.
Pela minha visão periférica, identifico Elena Kokorina subindo a meu
encontro, provavelmente a mando do avô. À frente, Serena cruza os braços e
sua sobrancelha forma um arco em cima do olho direito. Se ela pudesse me
matar com o olhar, eu com certeza estaria morto há tempos.
— Isso me faz pensar nos começos, em como eles não são legítimos.
Quando qualquer coisa tem início de verdade, afinal de contas?
Elena para ao meu lado, oferecendo uma taça de champanhe que
arranca alguns suspiros da plateia. Serena começa andar na direção dos
degraus, o semblante impassível e furioso, mas é interceptada por Roman,
que começa a acalmar sua iminente vontade de — muito provavelmente e
compreensível — assassinar um de nós dois. Mas logo ela vai entender onde
pretendo chegar.
— Desculpem se pareço um pouco aleatório em meus devaneios —
brinco. — Eu sei que muitos de vocês acreditam que um pedido será feito
essa noite, que existem especulações sobre o meu inexistente relacionamento
com a senhorita Kokorin. — Ela vacila enquanto tomo o primeiro gole. —
Mas isso não vai acontecer.
— O que está fazendo? — Elena sussurra. — Senhor presidente…
Concedo-lhe alguns créditos por continuar sorrindo.
Não respondo à pergunta de Elena, apenas volto-me para onde a
verdadeira precursora dos meus sentimentos desalinhados espera. Seus
cabelos estão ainda bagunçados por causa do meu arroubo de instantes atrás,
o cheiro da sua pele é um martírio impregnado no meu corpo. Eu não
imaginava que a necessidade e a possessividade formavam uma linha tão
tênue com a insanidade, que precisamos de muito esforço e discernimento
para não cruzar esse limite.
— Não vai acontecer porque diversas pequenas coisas me levaram
rumo à direção oposta. — Aproximo-me da beirada do palanque, ela também
faz seu trajeto e logo estamos diante um do outro. Ela, com o pescoço
esticado para trás, é a personificação dos meus desejos, os seios vantajosos
impedem que meu olhar não se fixe naquele desenho feito sobre o coração.
— Vocês não acham interessante como meu pai esteve certo esse tempo
todo? Em um dia, você se hospeda em um hotel mais cedo do que havia
combinado no ato da reserva, e então, por qualquer motivo que seja, não
colocam um aviso para não ser perturbado. E seu quarto é invadido por uma
funcionária desavisada que começou a trabalhar naquele dia por ter sido
demitida no dia anterior, após ter jogado um copo de suco na cabeça de uma
cliente. E ela é o amor da sua vida. Simples assim. Não estamos falando de
destinos aqui, não estamos falando de acasos, mas daquilo que existe entre os
dois. Estamos falando sobre o caos em seu estado mais desordeiro.
O semblante de Serena suaviza à medida que absorve minha
declaração. Há tudo de mais perfeito nela, a forma como compreende os
meus anseios, como ela morde o lábio quando está nervosa ou eufórica, em
êxtase também. Aquele jeito de me enfrentar com o nariz empinado como se
tivesse certeza de que jamais seria perdedora. E ela não é, eu sou.
— Eu estou apertando um botão — digo para Serena, mas todos podem
ouvir minha voz através dos alto-falantes. — A Corporação Volkiov está
cortando relações com a Kokorin Entreprises e suspendendo
permanentemente todas as obras mantidas por essa sociedade.
E, com essa declaração, nós entramos no pandemônio. Inicia-se um
vendaval de perguntas, convidados conversam uns com os outros e a
sequência de flashes é cegante. Serena é levada por Roman e Andrei para
perto da saída, claramente contra sua vontade — tenho certeza de identificar
a palavra louco se formar em seus lábios. Já eu, não tenho sorte e nem
expectativas de escapar com tanta facilidade.
— Como você descobriu? — Elena se posiciona ao meu lado. Sua taça
ainda está intocada, mas o sorriso desapareceu, assim como a vivacidade, a
voz aguda e cantante.
Encaixo o microfone de volta à base e sinto a mão de Elena sobre meu
ombro, posando para fotografias para que não percebam como essa decisão
foi unilateral. Efrem é cercado para perguntas sobre o que acabo de revelar,
mas temo que o homem pareça prestes a explodir.
— Que vocês estavam armando para prejudicar a minha empresa? —
murmuro, certo de que os barulhos abafam nossa conversa. — Ou que
pretendiam deixar a minha empresa dependente da ajuda de vocês para que
eu não tivesse alternativas a não ser me casar com você?
Elena amplia seu sorriso, passeando a ponta da unha comprida sobre o
meu maxilar. Uma jogadora, uma muito boa, inclusive, pois mascarou a
personalidade engenhosa a tal ponto que não pude identificar se estaria
mesmo ciente dos planos do avô. Mas talvez seja pior do que ele, mais
perigosa.
— Eu tenho uma proposta — diz.
— Não estou interessado. — Começo a me virar para ir embora, mas
Elena diminui nossa proximidade e entrelaça o braço no meu. Na frente da
imprensa, qualquer movimento para afastá-la poderia ser mal interpretado,
então caminhamos juntos para fora do palco.
— Deveria, sobretudo por envolver diretamente a sua nova aquisição.
— Um grupo de repórteres nos intercepta com perguntas sobre que tipo de
envolvimento nós temos, os motivos que levaram ao fim da sociedade e como
isso vai impactar nossas empresas financeiramente. Mas não consigo
responder nenhuma delas, porque Elena Kokorina está sorrindo outra vez. Ela
tem uma maldita carta na manga envolvendo Serena, e agora meu ponto fraco
está exposto.
— Por aqui. — Puxo Elena para trás do palco, ganhando distância dos
marimbondos curiosos.
É por isso que os ratos caem em armadilhas, são seduzidos por aquilo
que mais desejam. Serena é o que eu preciso, o que eu mais sinto vontade de
proteger nesse momento.
— Fale — ordeno, grunhindo de ódio assim que nos isolamos do resto.
Minhas mãos estão frias, geladas. Aquela pulsação de poder o controle
foi substituída por um sonido orgânico e moribundo, meu coração irrequieto
com a menção à Serena, à débil promessa de uma ameaça.
— Eu sempre soube onde Serena Fajardo se encontrava, desde o
começo — confessa. — Ou você acha que eu realmente me enfiaria em uma
loja de conveniências qualquer para comprar suco? Naquele dia em que nos
encontramos no hotel dourado, tive medo de que você soubesse de tudo, que
tivesse descoberto o paradeiro dela.
Filha da puta!
— Se você sabia como encontrar Serena, por que não disse nada antes?
Por que não impediu que chegássemos ao ponto de destruir os negócios da
sua família?
— Porque era exatamente isso o que eu queria, não entende? — Elena
cruza os braços, os olhos percorrendo todo o salão até pousarem no
aglomerado formado por Efrem Kokorin. — Eu precisava de alguém
poderoso o suficiente para arruinar o meu avô.
Um golpe dentro do golpe. Genial. Preciso de mais informações antes
de deixar transparecer qualquer surpresa.
— Você quer a presidência — deduzo, incentivando que prossiga.
— Também, mas não é tudo. — Elena suspira, voltando a caminhar
para perto de mim, mas agora há lágrimas em seus olhos, os dentes se
apertam com força e suas palavras seguintes soam saem furiosas. — Como
você consegue dormir à noite? — pergunta. — Como consegue colocar a sua
maldita cabeça sobre o travesseiro e dormir à noite? Eu sei sobre o prédio,
Vladimir. Sobre o desabamento, sobre as pessoas que morreram. Você é uma
cópia perfeita do seu pai.
Dessa vez, não consigo disfarçar. Tenho certeza de que até a minha
respiração demonstra a surpresa, o choque e a raiva que me desmembram.
Mudo. O choque de ser julgado pela primeira vez pelo meu segredo mais
obscuro e vergonhoso é devastador. De ser considerado um monstro, um
cúmplice por omitir, um criminoso.
Nicolai fez isso comigo, me obrigou a fazer uma escolha mesmo após a
sua morte. Eu não queria ter me tornado essa pessoa. Não queria.
— Ah, meu Deus — exclama junto com um riso histérico. — Você
nunca leu os nomes, não é? Você nunca teve coragem de ler o nomes
daquelas pessoas que morreram. Nunca se importou. — Elena nega com a
cabeça, balançando-a de um lado para o outro. — Deve estar curioso para
descobrir como eu sabia onde encontrar Serena. Mas eu não vou dizer, não
agora.
— O que você quer? — cuspo as palavras para fora, sem forças ou
coragem para negar suas acusações. Há uma prioridade, e ela se chama
Serena. Eu posso ruir, desabar, posso ser destruído um milhão de vezes se
isso garantir que ela não seja atingida pelos estilhaços.
— Há uma catástrofe vindo ao seu encontro, presidente. Algo que não
vai atingir apenas você, mas toda a sua família. O seu legado, as pessoas que
ama. Quando esse momento chegar, você não vai conseguir se salvar.
— Continue — exijo.
— Meu avô será retirado do cargo nos próximos dias. Depois de um
fracasso como esse, duvido que nossa comissão vote para mantê-lo à frente
da empresa. Poupe a Kokorin Enterprises quando isso acontecer, e eu ajudo
você quando a bomba que está sendo preparada explodir.
— Não entendo. Você queria acabar com seu avô e, agora que
conseguiu, quer que eu salve a empresa dele?
— A minha empresa — vocifera. — A empresa dos meus pais. Então,
sim, eu preciso que ela continue existindo depois que meu avô tiver perdido o
direito à presidência. E você é o único com capital e influência suficiente para
conseguir isso.
Recomponho-me o máximo possível, menos do que eu gostaria. Ela é
esperta, mas não é a melhor. A vantagem continua sendo minha, é tudo uma
questão de tempo para desvendar como Elena descobriu sobre o crime que
meu pai cometeu meses antes de morrer.
Seria ótimo se minhas mãos parassem de tremer, se o mundo não
parecesse rodar mais devagar. Nicolai já me assombrou o suficiente hoje, e o
cansaço está pesando cem vezes mais.
Serena aparece, arfante, enfiando-se entre nós dois.
— Graças a Deus vocês não estão se pegando! — Há um garfo de
madeira em sua mão e prefiro não imaginar qual era a finalidade do
objeto. — Você disse que eu sou o amor da sua vida todinha, Lord Vlad. Não
exatamente com essas palavras e não necessariamente com o meu nome
incluso na sentença, e agradeço muito por isso. Mas poderia, por favor, parar
de me dar motivos para duvidar disso? Ficar sozinho com sua ex-pseudo-
quase-noiva-com-nome-de-galinha pelos cantos tira toda a sua credibilidade.
Serena fica parada na minha frente, como uma barreira protetora, um
escudo humano. Ela nem imagina que está realmente me defendendo,
escondendo a minha exposição ao medo e ao arrependimento por ter
encobertado Nicolai, mesmo que para proteger minha família do escândalo,
do sofrimento e dos perigos que rondavam a vida dele.
Há alguém que sabe. Elena Kokorina sabe.
— Estava ouvindo a nossa conversa? — Elena pergunta, e sou tomado
pelo pavor. Será que ela ouviu tudo? — O que você escutou?
— Nada demais. — Serena encosta em mim; minhas mãos envolvem a
sua cintura e os tremores se tornam mais intensos, a dependência do seu calor
liquefaz no meu organismo como uma bomba de adrenalina e eu sei que
somente quando a tiver outra vez o pavor e o peso de todas as minhas
decisões serão apaziguados. Por ela, vale a pena. — Apenas a última parte,
sobre seu plano maligno para destruir o vovô.
Elena solta uma série de pragas, e eu começo a conduzir Serena para
sairmos daqui. Não por ela, mas por mim.
— Mas não se preocupe comigo. Apesar de achar você uma doida,
talvez ligeiramente excêntrica, e un poquito psicopata, gosto mais dessa sua
versão do que da anterior que só queria casar com o presidente, ter dez filhos,
muitas plásticas e uma casa no lago.
— Vamos, Serena! — chamo. Ela pestaneja antes de me acompanhar
para fora.
— Pense no que eu falei, senhor Volkiov. — Ouvimos Elena dizer, mas
não me dou ao trabalho de concordar.
Também não refuto sua oferta de imediato.
Eu e Serena cruzamos o salão, minha mão comprimindo a dela, que me
acaricia com o polegar discretamente. Não tento disfarçar como estou uma
bagunça, ao menos não para ela, que já deve ter percebido os tremores.
Passamos por Efrem Kokorin jogado em uma cadeira, sozinho em sua
mesa com uma garrafa cheia como companhia e o olhar fixo em um ponto
cego do chão. Ele levanta a cabeça na nossa direção, mas não me impede de
ir embora, somente ergue a garrafa tristemente, como se brindasse à minha
vitória.
— Preciso sair daqui — murmuro para Serena.
Minha visão protesta contra a iluminação, mas não paro de andar. Eu só
preciso me afastar, fugir para longe, para um lugar silencioso. Não posso
lidar com isso agora, porque minha cabeça, meu corpo, todos os meus
pensamentos parecem cientes somente da mão que me guia para fora. Em
algum momento, ela assumiu a dianteira.
No elevador, Serena me abraça.
— Vladimir, olhe para mim. Você precisa se acalmar. O que
aconteceu? Me conte.
— Não me odeie — peço, sem controle. Puxo Serena, afundando
minhas mãos em seus cabelos soltos, sentindo a textura macia. Admiro como
seu corpo é minúsculo perto do meu e, ainda assim, parece muito mais
estável agora, forte e indestrutível. — Eu vou suportar se todos me odiarem,
menos você, Corazón. Eu morreria. Eu morreria.
Sinto as palmas de suas mãos ampararem minha face, fixando nossos
olhares, construindo uma ponte, como um caminho para casa. Seus olhos são
grandes, o maxilar muito fino, os lábios desenhados para sorrirem sempre.
— Não vou odiar você — garante. — Eu estou aqui, não estou?
— Você está?
— Eu estou.
Serena apoia-se na ponta dos pés e me beija intensamente. Quando isso
acontece, o mundo todo desaparece e só restamos nós em um infinito
devastado. É dela que eu preciso. Liberto minhas mãos em seu corpo,
mapeando todos os lugares em que sua pele se expõe entre as fendas do
vestido, em que meus irmãos tocaram para me provocar, como se fosse
possível apagar as últimas horas somente com o desejo que emana de nossos
corpos.
As portas se abrem e somos obrigados a nos afastar, mas não será por
muito tempo. Sinto como se doesse respirar, como se fosse humanamente
impossível me abastecer de um oxigênio que não tenha sido compartilhado
pelas nossas bocas unidas em um beijo.
Hoje, o caos mais uma vez chacoalhou o meu mundo, desestabilizou as
bases. Não sei mesmo dizer quando nossa história teve início, se no dia em
que Ivan sugeriu o projeto do clube, se no momento em que selecionamos
aquele terreno dentre tantos só por causa da região e nossos sonhos egoístas.
Se naquele quarto de hotel. Não importa, eu só não quero que acabe. Não
permito que acabe, porque eu estou cansado de abrir mão das coisas que amo,
estou cansado de não sonhar.
Adentramos o estacionamento. Ainda não confio em meus instintos
para dirigir, então pego a chave no bolso e jogo para o alto. Serena agarra-a
no ar, sem entender.
— Você dirige — aviso.
— Eu dirijo? — indaga, desconfiada. Deve estar me achando louco. —
Nem preciso chantagear você dessa vez?
— Não estou em condições de dirigir — confesso e, mais uma vez, ela
entende.
Ele me entende! Como eu posso ter vivido tanto tempo sem Serena ao
meu lado?
Entramos no carro, encosto a cabeça no banco e fecho os olhos
enquanto sinto o movimento do veículo, tentando me acalmar.
— Para onde vamos?
— Para qualquer lugar onde eu possa ter você — peço, ordeno,
imploro, já não sei mais que tipo de instabilidade Serena me acomete. — Eu
preciso de você, realmente preciso.
— Não precisa pedir duas vezes! — garante, pisando fundo no
acelerador.
Está feito.
VLADIMIR

REPARO EM DUAS coisas assim que chegamos ao destino.


Primeiro, que Serena não está hospedada em um hotel como eu havia
suposto, mas sim em um dos apartamentos da minha família. Segundo — e
mais importante —, que os computadores abertos sobre o balcão da cozinha e
as garrafas vazias em cima do aparador na sala de estar indicam que Roman e
Andrei acharam pertinente se instalarem aqui também. Junto com ela.
— Quando chegaram? — pergunto. Desfaço o nó da gravata e retiro
meu paletó, deixando ambos no cabideiro ao lado da porta.
Fizemos o trajeto quase todo em silêncio. Aliás, eu fiquei em silêncio,
enquanto Serena me perguntava a cada dois minutos se estava tudo bem, se
eu gostaria de falar a respeito, se aquele discurso significava alguma coisa.
Mas não respondi, pois a última coisa que preciso agora é continuar falando
sobre o meu pai.
— Ontem à noite — responde com naturalidade, acendendo as luzes à
medida que avançamos para dentro dos cômodos.
Minhas mãos pararam de tremer em algum momento, mas ainda há
uma sensação de sufocamento presa na minha garganta. É uma mistura de
adrenalina, repulsa e prazer. Gostaria de ter bom senso o suficiente para negar
como me orgulho de possuir nas mãos todo esse poder de causar danos
irreversíveis na vida das pessoas, mas estaria mentindo.
Eu gosto, e muito.
Mas hoje, diferente de todas as decisões anteriores que fiz em nome da
presidência, meu deleite parece contaminado. A alegria que eu deveria estar
sentindo pelo sucesso com o contra-ataque à Kokorin Enterprises se encontra
ofuscada por outro sentimento, um que só se atém à Serena e seu maravilhoso
vestido revelador.
— E o que ficaram fazendo esse tempo todo? — interrogo, esfregando
os olhos enquanto me acostumo com a mudança de ambientes. Mesmo no
silêncio, ainda escuto minhas palavras no alto daquele palanque, a voz de
Nicolai acompanhando cada frase, a acusação de Elena sobre eu ser uma
cópia da pessoa que mais abomino no mundo.
— Andrei ficou trabalhando sem parar — responde enquanto revira
armários na cozinha e seleciona garrafas de vinho na geladeira. Duvido que
conheça qualquer coisa sobre marcas de bebidas, então fico me perguntando
por que ainda não está nos meus braços. Eu deveria tê-la agarrado assim que
atravessamos a soleira da porta. — Roman se entupiu de cervejas, depois se
entupiu de remédios para ressaca. Nada muito diferente do que fazemos em
casa…Na casa de vocês, mansão. Na mansão de vocês que absolutamente
não é em casa.
Serena fala, e fala, sem parar. Em casa, como se minha família já não a
considerasse moradora do nosso lar. Como se eu tivesse capacidade para
imaginá-la vivendo em qualquer outro lugar, sobretudo com Luna. As duas
estão exatamente onde deveriam.
Minha cabeça continua rodando com os últimos acontecimentos e cada
célula do meu corpo se comporta como se fosse a metade de um inteiro, que
estarão completas assim que Serena entender que só seremos perfeitos juntos.
O longo vestido balança junto com seus quadris, vermelho e denso
como se estivesse banhada com sangue. Minha mente doentia é provocada
por essa associação, a do pecado, da tentação por meio da perversidade.
Desabotoo minha camisa, botão a botão. Minhas mãos estão dormentes,
meus ouvidos captam as vibrações ao redor em tons graves e tudo o que
enxergo parece se esconder atrás de uma lente sem foco.
Estamos protegidos pelas paredes desse apartamento; metros acima do
chão e um monte de tijolos e cimento é tudo o que nos separa da realidade.
Tenho certeza de que há um terremoto em andamento no lado de fora, que
minha decisão vai empurrar nossa empresa para uma das piores crises desde
o rombo causado por Nicolai e que a pior parte vai recair sobre Andrei e o
departamento jurídico.
Isso sem mencionar Elena: ela sabe sobre o prédio. Pode não ter provas
suficientes para incriminar a corporação, mas basta que um boato se espalhe
para que as verdades comecem a aparecer. Eu poderia ser preso por omissão.
Ainda assim, aqui estou. Sem arrependimentos, sem nenhum remorso,
agindo como se a minha vida dependesse de possuir Serena em cima do divã
na sala de estar.
— Vocês três ficaram bem próximos — comento para analisar sua
reação, aproximando do seu corpo por trás enquanto está distraída,
escolhendo as taças certas para servir o vinho.
Assim que minhas mãos encontram seus quadris, Serena estremece e a
respiração assume um ritmo pesado, condensado e sedutor. Eu a puxo na
minha direção, deslizando suavemente meus dedos ao redor da sua cintura na
direção da barriga. Ela joga a cabeça para trás, fecha os olhos e a garrafa
pende molemente para baixo, esparramando o líquido sobre a bancada de
mármore.
— Está mesmo com ciúmes dos seus irmãos, Lord Vlad? — Serena
fecha os olhos, dispersando com as minhas carícias em uma entrega
arrasadora.
Eu gostaria de saber se ela tem consciência do que faz comigo, se esse
poder de controle que me oferece ao seu corpo e à sua vida não passam de
uma ilusão na qual, na verdade, o único subordinado sou eu — porque estou
inegavelmente rendido. Não é apenas sobre predomínio, mas sobre confiança.
Sobre uma divisão de direitos e deveres tão intrínseca que nos coloca em um
patamar de equidade mesmo que não nos esforcemos para tanto.
Quero isso com Serena, que estejamos sempre juntos no mesmo degrau.
Que eu não tenha medo de demonstrar todos os meus defeitos… não para ela.
— Você não faz ideia do quanto, Corázon — confesso assim que ela
deixa um murmúrio deslizar para longe dos seus lábios, procedido por um
arquejo profundo. — Estou com ciúmes do ar que você está respirando nesse
exato momento, porque ele está dentro de você, e eu não.
— Eles cuidaram muito bem de mim — provoca com um sorriso
travesso. A ambiguidade presente na frase é absurda e me enche com todo o
tipo de ideia imoral. — Não precisava ter batido no pobre Andrei.
— Ele sabia exatamente o que estava fazendo — grunho de volta.
Rodeio seu pescoço e a imobilizo para que minha outra mão tenha livre
acesso a seus seios extremamente expostos por causa do vestido provocador.
— Os dois sabiam, e ainda assim mexeram em algo que não pertence a eles.
Serena emite um som que pode tanto ser uma gargalhada como um
gemido, ou até mesmo um choramingo. Talvez a mistura dos três. Suas mãos
espalmam a bancada assim que colo nossos corpos e a deixo perceber o nível
da minha necessidade.
— E eu pertenço a você? — ofega. — Não lembro de ter assinado
documento nenhum, mas quero!
Pequena ordinária deliciosa, penso sobre sua falta de responsabilidade.
Um de nós dois precisava ser racional nesse relacionamento, mas a
perturbação mental provocada pela ressurreição de um segredo que eu
supunha ter superado ainda corre pelas minhas veias. Um pouco da sensação
de triunfo intensifica meu apetite, tornando todos os meus movimentos rudes
e possessivos.
Separo suas pernas com os meus joelhos, as fendas na roupa se aliam à
minha pressa e rapidamente tateio o espaço entre as coxas.
— Isso te excita? Ser minha te excita, Corazón? — Não espero por
uma declaração e roubo a resposta com meus próprios dedos, explorando
uma parte dela que me cobre de desejos irresponsáveis e primitivos.
— Tudo em você me excita, Vladimir — geme, tão alto quanto eu
gostaria de ouvir. — Não existe nada de racional em nós, somos loucos,
quebrados, insanos. — Aprofundo meu toque; cada uma de suas palavras a
faz arquejar com mais ânsia. — E nem um pouco recomendados sem
prescrição médica.
Paro de estimulá-la por um momento e a viro de frente. Uma poça de
vinho se formou em nossos pés e as mãos de Serena também estão úmidas;
imagino como ela ficaria linda banhada naquele líquido, como seria
experimentar sua pele com o sabor frutado e aromático da cabernet
sauvignon.
— Por que você tem que ser tão perfeita, porra? — Desço o zíper do
seu vestido e a roupa cai em seus pés, imediatamente começando a absorver o
líquido. — Que tipo de crueldade você fez para merecer um homem como
eu? — divago apreciando sua seminudez.
Ela ampara meu rosto, sem demonstrar constrangimento por ser a única
despida no meio de uma cozinha bagunçada. Procura a minha boca,
ensinando uma paciência que eu jamais associaria à mulher impetuosa que
me enfrentou e provocou no meio de todas aquelas pessoas.
É um carinho quase celestial, pacífico. Uma oferta de afeto que eu
desconhecia até esse exato segundo.
— Você vai passar por isso — diz, e não precisa ser mais específica
para saber que se refere à empresa, ao fato de que tudo ainda vai piorar muito
e que eu deixei transparecer um pouco de fraqueza. — A angústia vai passar.
Eu estou aqui por você. Vai ficar tudo bem.
— Eu não estou bem — sussurro. Ergo Serena em meu colo, ela com as
pernas rodeadas ao meu redor e eu a amparando com meus braços. Levo-a
para o quarto, seguindo suas instruções intercaladas com beijos e sorrisos
cheios de prazer e carinho. Assim que a deposito sobre a cama, livro-me da
camisa e a encaro de cima. — É isso o que você gostaria de ouvir? —
interrogo, sem disfarçar como me sinto fraco e cansado. Posso confessar isso
para a mulher que amo. Ao menos essa noite, ao menos uma vez. — Estou
longe de estar bem.
— Então faça — murmura. Serena se ajoelha sobre a cama e começa a
desafivelar o meu cinto. — Faça, Lord Vlad. Use-me. Você me emprestou a
sua força uma vez, use a minha agora.
Seguro suas mãos.
Por três respirações, nos encaramos. Os peitos arfantes, os pensamentos
em frenesi. Uma paixão crescente, ardente, avassaladora, que me desvira de
dentro para fora, expõe o homem que eu gostaria de ser e me coloca de frente
para o homem que eu realmente gosto de ser.
Eu a beijo primeiro, o restante das roupas e sapatos perdendo-se no
meio do processo. Ela não fecha os olhos nenhuma vez. Retribui a minha
ganância com toda sua ambição e segue cada um dos meus comandos
silenciosos; seu corpo obedece ao que o meu precisa, e o que eu mais desejo
é satisfazê-la.
Use-me.
Esse comando é meu, não o contrário. Porque Serena é minha, e eu
nunca fui, não sou e jamais serei de outra pessoa que não seja ela. Minha
ousada, louca, sedutora, despudorada, desinibida e corajosa Serena.
Seguro toda a base dos seus cabelos com uma mão ao perceber que ela
se colocou de costas — de fato, uma demônia espertinha —, enrolo os longos
fios pretos na palma aberta e puxo sua cabeça para trás, obrigando sua coluna
a curvar em uma posição que me beneficia a estar ainda mais fundo dentro
dela.
— Eu amo você — digo em seu ouvido enquanto me aproprio do seu
corpo e sacio a minha fome da sua libido. — Eu amo você, Corazón.
Empurro sua cabeça de volta para o colchão macio, suas unhas
arranham o tecido felpudo. Serena tenta me olhar, mas seguro seu lindo
rostinho no lugar. Ao invés de protestar, ela sorri. O maior sorriso do
mundo. Somos mesmo insanos demais. É o sorriso de uma rainha que acabou
de abater o rei, de transformá-lo em seu súdito ante a confissão de um amor
que claramente não foi abençoado pelo destino, que superou o acaso e se
formou no caos, que se fez certo em condições completamente arbitrárias.
— Disso eu já sabia — comemora, fechando os olhos para aproveitar
das sensações que construímos juntos. — Yo también te amo mucho, Lord
Vlad. Eu definitivamente amo você.
VLADIMIR

PASSO A SEQUÊNCIA de fotos armazenadas no meu celular. Precisei


separar uma pasta apenas para Serena e outra para Luna, mas excluí todas em
que qualquer uma das duas estivesse na companhia de Andrei pelo patético
motivo de ele parecer terrivelmente ótimo e sem defeitos em fotografias de
família.
Vinte e quatro horas se passaram desde quando eu e Serena nos
isolamos do resto do mundo, presos em nossa fantasia particular onde não
existem as amarras do meu patrimônio ou as mentiras e medos de uma vida
inteira.
Um dia completo em que pude comprovar como Serena é a criatura
mais preciosa que já passou pela minha vida, e que eu seria louco se a
deixasse escapar.
Abro a câmera e enquadro no seu rosto adormecido, com cuidado para
que nenhum centímetro do seu corpo despido apareça na imagem, e pressiono
o botão que me permite registrar mais um pedacinho dela para que eu possa
apreciar sempre que a necessidade ficar insuportável.
Enrolada em lençóis de seda, Serena ressona ao meu lado. Uma de suas
pernas está jogada sobre as minhas e aquela curva sinuosa entre o quadril e a
cintura parece zombar do meu autocontrole. Uma parte da tatuagem está
visível entre os seios e, todas as vezes que a analiso, sou tomado por
sensações antagônicas e intensas. Há o ciúme e a possessividade em contraste
com seu incrível poder de sedução.
— Eu amo você para caralho — ela diz com os olhos fechados,
flagrando minha contemplação. Já perdi a conta de quantas vezes nos
declaramos nessa cama, mas sempre que escuto essas palavras saindo de seus
lábios meu coração parece inflar como um balão.
— Posso me acostumar com isso — respondo. — Com você dizendo
isso toda vez que acordar. Gosto muito dessa boquinha suja.
— Claro que você gosta! — debocha com um sorriso perverso montado
no rosto, causando uma reação imediata em meu corpo ao lembrar de tudo o
que me ofereceu na noite passada, de todas as suas primeiras experiências e
de como seu empenho e despudor sempre a levam direto à perfeição.
— Amo você também — repito. Deixo o celular cair sobre a cama e
procuro seu corpo. Acomodo-me sobre ela, apoiado em meus cotovelos para
que o meu peso não perturbe seu despertar sonolento.
— Para caralho? — pergunta travessamente, seus grandes olhos
amendoados agora me encarando, piscando devagar; a ponta dos cílios longos
e escuros quase alcança suas pálpebras e pede por um beijo que eu
prontamente deposito ali.
— Com certeza, Corazón. Para caralho.
Beijo seu pescoço, inspiro o aroma da pele aveludada que exala
erotismo e paixão — talvez seja apenas meu cérebro fazendo associações que
justifiquem a minha dependência, que sentimentos não possuam cheiros e
nem sabores; mas com Serena, meus sentidos ganham novas perspectivas.
Volto a possui-la de forma carinhosa, decorando o barulhinho que
emite antes de clamar meu nome com seu sotaque afoito e charmoso. Como
todas as vezes, Serena me deixa desfrutar da experiência como se ela fosse
um banquete dos deuses servido no centro do submundo. Sua permissividade
mexe com o meu pior e mais imutável defeito, o ego.
Perdemos a noção do tempo, vamos do quarto para o banheiro nesse
processo; somente quando as forças começam a faltar para ambos e o prazer
faz carícias suaves na satisfação, a gente se rende ao cansaço e à necessidade
de findar a fome de nossos estômagos.
Serena vai para a sacada horas mais tarde, assim que nossa comida
chega. Recebo as mercadorias, premeditando as reclamações de Serena sobre
o meu exagero.
Na área externa, ela encara as estrelas pontilhadas no céu; já percebi
seu fascínio com a noite. Os cabelos estão ainda bagunçados e úmidos, apesar
do clima fresco, e um cobertor cinzento e volumoso esconde seu corpo
pequeno. Ao seu lado, sobre uma das cadeiras vazias, seu caderninho de
coisas a fazer antes de morrer — que antes era uma simples lista —repousa
junto com uma caneta destampada.
Viajar madrugada adentro não faz parte dos meus planos e, por isso,
resolvemos pernoitar uma vez mais. Haverá tempo para lidar com os
problemas pela manhã, é impossível que se tornem piores ou mais fáceis de
solucionar caso eu antecipe o nosso retorno.
Além do mais, não ter Luna dentro do nosso alcance me deixa
incomodado.
Proibi qualquer pessoa de entrar no apartamento e despachei os
pertences dos meus irmãos de volta para Moscou. Os três devem estar me
odiando por causar um cataclisma e jogar os danos em suas costas, mas não
conseguiria resolver nada enquanto não tivesse Serena em meus braços e
expusesse tudo o que sinto.
— O que é isso? Estoque para o mês? — pergunta assim que começo a
colocar os pedidos em cima da mesa redonda. — Vamos ficar aqui até todo
mundo esquecer que você acabou com uma das empresas mais ricas do país?
— Não seria uma péssima ideia — digo, entregando um prato para ela e
sentando-me ao seu lado. — Mas a Kokorin Enterprises está apenas na lista
de empresas medianas. Em minha defesa, há menos de um ano Ivan
conseguiu desmembrar a segunda maior corporação da Rússia em termos de
patrimônio em pouco mais de dois meses.
— Então é isso o que vocês fazem nas horas vagas? — Apesar de
reclamar da quantidade de comida, ela não perde tempo e começa a se servir
com salada russa de frango com picles e mais um pouco de todo o resto. —
Destroem empresas multimilionárias?
— Somente aquelas que colocam nossas mulheres em risco — explico.
Serena ri baixinho, aprovando nossa excentricidade, já que o discernimento
entre certo e errado não fazem parte do seu raciocínio. — Lara é um
organismo importante, tanto na nossa família como na empresa, e, apesar de
amá-la como uma irmã, ainda não conseguia entender como funcionava de
verdade a relação dos dois. Agora eu entendo.
— O amor tem um lado bem sombrio, no final das contas — diz,
fazendo os efeitos destrutivos do amor parecerem simples. — É assim com
tudo na vida, eu acho. O amor não é algo que podemos segurar entre os dedos
ou apreciar com os olhos, ele se manifesta através das nossas ações. Eu não
diria que existam amores ruins, mas pessoas ruins que não sabem amar de
verdade. — Serena cutuca a comida em seu prato, pensativa sobre as próprias
palavras. — Nosso amor é bom, Vladimir. Isso tem que significar alguma
coisa.
Agarro-me nas entrelinhas das suas palavras, querendo acreditar que
sejam verdade. Que talvez eu não seja um monstro completo, que talvez
exista espaço para a bondade.
Resolvo não concordar ou discordar, desvio do assunto e volto a falar
sobre meu irmão e sua história de amor. Conto detalhes a respeito de tudo o
que Ivan e Lara enfrentaram para ficarem juntos, o que ela sofreu por anos
para proteger meu sobrinho, as agressões, a investigação, o esquema com os
orfanatos e o contrato de casamento.
— Eu a acho uma mulher incrível, determinada e tão… feliz — diz
quando termino a história toda. — Imagino como vai ser bom se ela estiver
mesmo… — Mas Serena não termina de falar, seus olhos arregalam, um
pensamento terrível a atingindo de repente.
— Mesmo…? — encorajo. Ela aponta a colher de sopa na minha
direção.
— Não usamos camisinha. De novo!
Ah, porra.
Camisinha. Certo. Eu estava preocupado demais em não surtar ou
cometer uma loucura. Não que considere isso o fim do mundo, não mais.
Como eu devo reagir? Pedido de desculpas parece a melhor opção.
— Desculpe, Corazón. Eu deveria ter me lembrado. Eu…
— Não sou nenhuma santa, sabe? — interrompe, um tanto mais
nervosa do que antes do meu pedido de desculpas, então deixo-a extravasar
enquanto balança a colher. — É claro que eu me lembrei da camisinha,
Vladimir. Em algum momento entre a terceira e a oitava vez que fizemos
amor, e eu poderia ter falado. Mas naquela altura do campeonato, já era tarde
para qualquer intervenção e eu estava mais preocupada em manter você
desempenhando suas excelentes funções orais. — Seguro a risada, com medo
de que isso a irrite ainda mais. — Obviamente não muda o fato de que
preciso dar um jeito nisso logo antes que você me transforme em uma
incubadora horrível de pequenos vampirinhos lindos de olhos azuis! Já é a
segunda vez, estamos abusando da sorte que nem sorte eu tenho para poder
ser abusada.
Minha mente é preenchida com imagens de Serena grávida. Puta
merda. Um filho era algo que nem passava pela minha cabeça antes, uma
ideia que eu abominada sob qualquer circunstância. Depois de Nicolai, toda
associação à paternidade me causava aversão imediata. Mas então Iago
chegou, Ivan se tornou um pai incrível, e agora eu tenho uma mulher que
amo.
E Luna.
Em outra ocasião, com outra mulher qualquer, eu estaria desesperado.
Mas, ao invés disso, estou sorrindo. Serena me fulmina.
— Você não seria uma incubadora horrível — digo com a voz
branda. — Sua barriga é linda, e continuaria linda.
Principalmente com um filho meu dentro.
Serena ergue as sobrancelhas, tentando disfarçar o rubor que se
concentra nas bochechas, mas obtém zero sucesso. Adoro que seja essa
contradição inocente e devastadora, que eu jamais consiga prever suas
reações.
— Está tentando dar o golpe da barriga em mim, senhor Volkiov? —
acusa em um questionamento absurdo.
Ou não tão absurdo assim.
Não estou, é claro. Acho. Mas é algo que eu faria, porque sou o que
sou, um filho da puta incorrigível. Que minha mãe me perdoe — e não me
ouça nunca.
— Intencionalmente, não — digo para ver como reage à ideia de que eu
talvez queira isso com ela.
— Pois eu não sei se você está lembrado, mas já temos um bebê. —
Serena deixa seus olhos rolarem para trás, depois os fecha com força. — Eu
tenho. Eu quis dizer que eu tenho um bebê, não você.
— Não corrija — peço rápido. Ela deixa a colher cair sobre a mesa, o
metal emite um som tilintante contra o vidro. — Pode dizer que temos um
bebê. Eu já disse e vou repetir, porque talvez ainda não tenha entendido
muito bem. Eu. Amo. Você. Você é minha, quero que fique ao meu lado para
sempre, Serena. Luna está incluída. E eu vou amá-la, porque você a ama e
vou amar tudo o que você amar também.
Ela abre a fecha a boca algumas vezes, desconcertada e surpresa. Não
posso julgar, também estou surpreso comigo mesmo por desejar essas coisas,
mas não por querer realizar tudo tão depressa. Se quero alguma coisa, eu a
tenho; com meus sentimentos não seria diferente. Não há porque negar ou
disfarçar algo que vai acontecer eventualmente.
Eu quero Serena e Luna.
Desistindo de encontrar algo a dizer, Serena abandona sua posição e
vem para o meu colo. Abre o cobertor, revelando peças íntimas vermelhas
que premeditam onde vamos parar daqui a pouco. As pernas se acomodam de
cada lado do meu corpo e ela esconde o rosto na curva do meu pescoço.
Ficamos assim, em silêncio, abraçados. Prendo e respiração para ouvir
a dela, com medo de que comece a chorar ou coisa parecida. Nunca vi Serena
chorar e não acho que esteja preparado, por mais que possam ser lágrimas de
felicidade.
Mas não acontece. Ela apenas me aperta mais e mais forte.
— No que você está pensando? — sussurro em seu ouvido.
Ela demora a responder, minutos longos e tensos. A hesitação em seus
gestosme preocupa.
— Há uma coisa que eu preciso perguntar. — Outra pausa. — No
discurso, você falou uma coisa sobre o seu pai…
Esse assunto não.
— Não quero falar sobre ele — corto. Por algum motivo, não quero ter
essa conversa com Serena, não quero que ela se suje com o nome dele.
— Aquilo que você falou, sobre o botão… — insiste. Eu a movo em
meu colo para que me olhe nos olhos.
— Não posso falar sobre ele — digo mais uma vez. Ela baixa os olhos
e eu me odeio por ceder tão fácil só para não a ver triste. — Eu odeio meu
pai — explico na medida do possível. — Odeio meu pai e tudo o que tenha a
mínima relação com ele. Exceto pelos meus irmãos, nada do que vem
daquele homem é bom. Nada. Meu pai era egoísta, mesquinho, manipulador e
extremamente egocêntrico. Eu o odiava com todas as minhas
forças, Corazón, e ainda odeio! Odeio tudo o que meu pai representa, tudo o
que ele construiu e destruiu…
— Pensei que ele fosse um homem bom. — Ela volta a deitar em meu
ombro, suas mãos estão trêmulas.
— É isso o que as pessoas pensam. — Coloco as mãos nas costas de
Serena para sentir o seu calor, buscar um pouco de coragem para expelir
coisas que têm me sufocado todos os dias de todas as semanas de todos os
meses nos últimos oito anos. — Ele era mais do que um homem de negócios.
Meu pai tinha uma rede de casas de jogos espalhada por Moscou, uma
amante muitos anos mais jovem e várias dívidas com pessoas perigosas. Por
causa dele, eu tive que lidar com essas pessoas, Serena. Fiquei de frente com
a morte pelo menos três ou quatro vezes, com a escória ameaçando minha
família. — Engulo em seco ao sentir minha voz embargar. Não vou chorar
por causa dele outra vez. — E, enquanto isso, ele estava morto. Morto, o
desgraçado morreu.
— Seus irmãos sabem? — murmura. O timbre de sua voz também
indica que está segurando o choro.
— Ninguém sabe.
Serena aquiesce. Seus lábios roçam na minha pele, deixando um beijo
próximo à minha jugular, outro na minha têmpora, um no nariz até
finalmente tomar a minha boca com ambição.
— Como ele se chamava? — questiona, a respiração descontrolada faz
seus seios resvalarem na minha camisa e as unhas estão fincadas em meus
ombros.
Ela parece tensa, muito mais do que o normal. Conversar sobre a morte
deve lhe trazer lembranças ruins.
— Nicolai — respondo, surpreso que o nome não tenha vindo à tona
nenhuma vez desde que se mudou para a mansão. — Meu pai se chamava
Nicolai Volkiov. — Serena desliza para o lado. Não esboça nenhum tipo de
reação além de um estranho interesse na garrafa de vinho. Ela parece…
perturbada. Estranho… — Você está bem?
— Sim! Eu só… — Um pouco da bebida cai sobre a mesa e Serena se
levanta, piscando freneticamente. — Merda! Eu… vou buscar um pano.
Serena corre para dentro do apartamento, desaparece na porta do
corredor que leva para a dispensa e me recrimino por continuar sendo tão
descuidado mesmo sabendo que ela tem um passado delicado também. Não
posso simplesmente despejar minhas merdas como se isso não afetasse seus
sentimentos.
Dez minutos se passam até que eu a vejo voltar com um pano na mão
esquerda — uma imagem bem interessante para alguém vestida apenas com
calcinha e sutiã. O ar da noite começa a ficar mais frio e, mesmo com o
apartamento climatizado, a varanda não consegue conter o calor muito bem.
— Marquei uma consulta com o meu psicólogo. — diz. Não retorna ao
assunto sobre meu pai e acho que é melhor assim, aparentemente é um tópico
que não faz bem a nenhum de nós dois. Ela vai limpando e falando, e não a
interrompo porque já percebi que só faz isso quando está nervosa. — Quando
meus pais morreram, o meu chão se transformou em lama. Foi tão aleatório,
inesperado. É claro que qualquer morte deve deixar essa mancha amarga na
vida de quem ficou, mas algumas vezes me pego pensando se teria sido
diferente caso eu soubesse o que estava por vir.
Que ela tentaria se matar.
— Sinto tanto que tenha passado por isso sozinha.
Serena se senta de frente para mim, volta a beliscar sua comida e puxa
o cobertor sobre o corpo, pensativa.
— Eu não queria morrer, só queria que o sofrimento acabasse, que a
dor tivesse um fim. Estou bem, me sinto bem e não estive sozinha… —
Serena para de falar e todas as anotações presentes naquele arquivo montado
com informações sobre a sua vida retornam à minha mente.
Deveria me envergonhar ou ao menos ter alguma decência para me
recriminar por tê-la investigado, mas meus interesses eram outros naquela
época. De fato, Serena esteve internada em um hospital bastante caro na
época em que tudo aconteceu, e a insegurança me atinge em cheio no meio
do peito.
E se foi alguém que ela amou?
Não, merda. Não posso me deixar contaminar por papéis e documentos,
muito menos me preocupar com algo que aconteceu há tento tempo.
Inclino-me para frente e estico minhas mãos; ela entrelaça os dedos nos
meus.
— Naquele dia em que você me perguntou se eu sabia sobre o que tinha
acontecido com você, entrei em pânico — digo, escolhendo as palavras
certas. — Apesar de saber, ainda não parecia real de verdade. Mas,
sabe, Corazón? A única certeza que eu tinha no momento em que deixei você
no meio daquele jardim era de que, pela primeira vez, talvez a única em toda
a minha existência, eu tinha um motivo para ser grato. E eu sou, Corazón,
muito. Insanamente grato. Absurdamente e profundamente grato. Obrigado
por estar viva.
Boquiaberta, a neblina de instabilidade desaparece do seu corpo. A
capacidade de recuperação de Serena está diretamente ligada ao seu humor e
à segurança emocional. Ela fica bem sempre que lhe ofereço certezas.
— "É preciso ter o caos cá dentro para formar uma estrela" — cita,
voltando a expressão tranquila para o alto. A frase soa familiar.
— O quê?
— Nietzsche — responde. — Era algo que meu psicólogo usava nas
sessões. Veja, as estrelas não nascem da estagnação, mas de um conjunto de
conflitos, poeira cósmica, forças gravitacionais, e assim é com tudo na vida.
Uma bagunça motivacional, entende? Mesmo das experiências ruins, no final
ainda podemos ter algo para admirar. Quando me sinto perdida, no meio de
um beco sem saída, durante uma crise ou do medo, isso me acalma às vezes.
— Por isso estava olhando as estrelas quando cheguei?
— Elas são lindas, não são? — Serena apoia a mão entre as pernas e lá
vou eu direto para o inferno outra vez.
Ela sabe como ser um pecado de mulher sem esforço nenhum.
— Eu poderia comprar uma estrela, se você quisesse — ofereço de
brincadeira, conduzindo a conversa para longe de Nicolai ou seus medos e
traumas.
— Ah, tá bom! — ironiza, sem me dar credito algum.
Eu poderia mesmo.
É uma ideia exagerada o suficiente, e extremos me deixam empolgado.
Após um beijo, voltamos a comer. Os assuntos densos se dissolvem em
questões sobre a semana, os jornais, os feitos de Luna e Malévola na mansão.
Serena conta que está procurando por emprego e reprimo a vontade de pedir
para que não faça isso. Seria ridículo, porque é jovem e precisa de um norte.
Preciso impulsioná-la, quero que esse poder reprimido dentro dela
alcance todo o seu potencial. Que o mundo se curve aos seus pés, tal como eu
me curvei.
Porque ela pode.
Serena me atualiza também a respeito de alguns problemas da empresa,
fofocas repassadas por Roman. Não gosto de saber que ele continua
estudando aquelas plantas antigas, pois em alguma delas pode conter algo a
respeito do prédio que desabou.
Hoje não, aviso para os meus pensamentos. Não vou me preocupar com
isso hoje.
— Também vou ao médico para resolver nosso probleminha com as
camisinhas — Serena diz enquanto saboreia a sobremesa. — Lara precisa
fazer o tes… — Ela engasga com o Vereniki de cereja, tossindo e vermelha.
— Você disse comprar uma estrela? Isso é possível? Porque eu posso
facilmente adicionar na minha lista. — Balançado o caderninho no ar, Serena
tenta me enganar com seu rostinho bonito e sua perspicácia.
É a segunda vez que se interrompe em um assunto sobre Lara. Alguma
coisa essas duas estão aprontando.
Mudo a minha estratégia.
— Deixe-me ver o que você tem na sua lista. Eu disse que quero
realizar todos os seus sonhos, não disse? Vamos começar por esses.
Mas a diabinha segura o caderno junto ao corpo.
Suspeita, muito suspeita.
— Isso não vai ser necessário — gagueja.
— O que tem nessa lista que eu não posso ver? — Levanto-me, ela
também.
— Nada!
— Serena…
Antes que eu consiga pular sobre ela, Serena corre até a cozinha e se
coloca atrás da mesa. Caminho lentamente, coloco minhas mãos no bolso e
ainda desfruto do seu jeitinho assustado.
— Me dê essa lista. Agora.
Serena recua devagar, coloca o caderno atrás das costas e solta aquela
risadinha nervosa que precede uma de suas insanidades.
É isso o que eu ganho por ser romântico e prometer realizar todos os
seus sonhos. Sonhos de uma louca!
Já posso imaginar que tipo de absurdo adicionou durante os dias em
que estivemos distantes.
— Bom, saiba que essa não é uma boa ideia. É uma péssima ideia. Nós
acabamos de nos acertar e não precisamos de outra discussão tão cedo, Lord
Vlad. — Eu espero e espero. Ela vai ceder em algum momento. Serena
estreita os olhos, me encara com a mesma paciência. Então, joga o objeto na
minha direção. Suas mãos se encaixam na cintura e o sorriso luxurioso me
faz hesitar. — Esteja avisado de que não vai gostar.
Abro na última página e a primeira coisa que leio já faz meu sangue
ferver.
Completamente louca, perigosa e sem escrúpulos. Tento rodear a mesa
para chegar até ela, pronto para arrancar o restante das suas quase
inexistentes peças de roupas e demonstrar o quanto essa ideia me perturba.
E excita.
Nadar pelada na praia à noite.
Pelada.
Na praia.
À noite.
E ela estava pensando em fazer isso quando? Inferno!
— Sabe quando você vai nadar pelada em uma praia, Corazón? —
Cruzo os braços e paro de tentar capturá-la. Serena faz aquilo que mais me
tira da órbita, morde o cantinho da boca. Ah, eu vou morder ali também, ela
que me aguarde! — No dia em que eu comprar uma maldita praia e cada
grãozinho de areia que estiver nela.
— Muito engraçado! — debocha. — Como se fosse possível comprar
uma praia… É?
— Nós já temos uma, mas Ivan meio que confiscou o lugar. Qualquer
coisa sobre o pôr do sol.
Tão inocente…
— Sorte da Lara, aposto que ela nada pelada!
— Corazón, prefiro não pensar no que os dois fazem ou deixam de
fazer na praia — reclamo, pensando em como colocar algum juízo em sua
cabeça, mas isso é impossível! — Quer saber? Nós podemos comprar uma
praia. Ou melhor. Uma ilha, no meio do oceano, completamente isolada e
sem seres humanos além de nós dois. Afinal de contas, por que quase todas
as suas metas de vida envolvem você pelada em algum lugar ou transando
com alguém? Meu Deus, Serena!
Ela me quer morto.
— Não seja exagerado, senhor todo poderoso. Não alguém! Mas você,
Vladimir. Sempre com você. E, quer saber? — Ela abre o fecho do sutiã, joga
o tecido vermelho e rendado na minha direção com força e deixa os seios
livres, pesados e fartos me hipnotizarem. — Agora eu vou voltar para a
varanda e realizaremos o item cinquenta e dois!
Serena vai saltitando bem contente de volta à sacada, a calcinha
pequena me fornecendo um vislumbre delicioso de seu traseiro redondo e
perfeito.
— Item cinquenta e dois — leio. — Sexo na varanda, debaixo das
estrelas. — Deveria estar bravo, sei que sim. Mas é Serena, a louca que mais
amo e que não se abaixa só porque sou eu o seu oponente, como qualquer
pessoa sensata. — Está levando Nietzsche muito a sério — grito, e sua
gargalhada chega baixa até mim.
Enquanto ela se ajeita numa posição ainda mais provocadora ao longe,
atrás da porta de vidro, apoiando os braços sobre o parapeito de uma forma
que eu julgaria perigosa demais considerando sua tendência para se colocar
em risco de vida, procuro uma caneta e escrevo um novo item em sua
listinha.
Porém, ao invés de acrescentar no final da última folha, volto para o
começo e coloco as quatro palavras logo acima do item número um.
SERENA

— SE CONTINUAR FAZENDO essa cara vão prender você! Parece prestes


a matar uma pessoa.
— É exatamente assim que eu me sinto — diz Vladimir, sem suavizar
seu semblante assassino.
Abaixo a cabeça para que ele não perceba minha vontade de gargalhar.
Qualquer pessoa com uma gota de bom senso estaria apavorada nesse
instante, mas esse homem quando fica bravo é bonito e atraente demais, não
consigo resistir; somando isso ao ambiente cheio de grades, já tive pelo
menos mais três ou quatro ideias para colocar na nossa lista.
Nossa, já que agora ele está incluso em cada linha, palavra e letra que
acrescento aos meus sonhos. Sonhos pervertidos, nas palavras dele.
No extenso corredor, apenas nossos passos são ouvidos. Dois policiais
fazem a escolta, enquanto Vladimir olha para frente e esmaga os meus dedos
para garantir que eu não me afaste — estamos em um presídio de segurança
máxima, o que de tão ruim ele pensa que pode acontecer comigo?
Depois que voltamos para casa, aconteceu exatamente aquilo que
Vladimir havia previsto: o mundo desabou, mas não de uma forma
desordenada e aleatória, não; desabou bem em cima da cabeça do presidente.
Dos jornais impressos aos televisivos, não se fala em outra coisa que não seja
o fracasso colossal com o investimento feito naquele clube, ou a forma quase
desumana que Vladimir escolheu para lidar com o problema, rompendo
contratos e sociedades.
Posso ter encontrado algumas matérias a meu respeito, todas
especulando sobre a minha identidade e se eu teria envolvimento com algum
dos irmãos Volkiov; a maioria apostava em Andrei, para o meu completo
desespero, já que Vladimir continua implicando com o irmão mais novo. De
qualquer forma, não demorou muito para que essas reportagens
desaparecessem misteriosamente e fossem substituídas por notas
escandalosas afirmando que, definitivamente e sem sombra de dúvidas, eu
era a mais nova primeira dama da Corporação Volkiov.
Primeira.
Dama.
¡La puta mierda!
Quando questionei Vladimir se ele tinha alguma coisa a ver com aquilo,
ele simplesmente respondeu um "é óbvio que sim", como se não fosse nada
demais.
E assim nos tornamos um dos casais mais conhecidos de Moscou.
Nunca mais reclamo da minha má sorte! Obrigada.
— Por aqui — diz um dos policiais. Ele estica a mão para puxar o meu
braço, mas é impedido por Vladimir que me abraça pelos ombros.
— Você não vai querer fazer isso — alerta, estreitando os olhos para o
homem fardado com o semblante de quem gostaria de arrancar a cabeça dele.
— Nós definitivamente seremos presos — murmuro de nervoso. —
Vladimir, meu amor, se acalme — sussurro.
— Então me diga outra vez por que eu aceitei essa sandice — pede com
os dentes trincados assim que voltamos a caminhar pelos corredores
cinzentos e escuros.
— Porque você me ama? — tento, mas recebo um olhar enviesado. —
Porque seu irmãozinho é um intrometido de marca maior.
Meus olhos rolam para cima assim que lembro. Andrei foi contra o meu
plano de não contar a Vladimir que Annia havia aceitado nos receber em sua
humilde prisão, e nem os meus lamentos mais teatrais convenceram nosso
advogado a guardar segredo.
Como resultado, eu e Vladimir tivemos outra discussão quente sobre
como eu sou uma irresponsável sem escrúpulos e sempre me coloco em
perigo quando ele não está por perto para impedir. No final das contas,
consegui convencê-lo a me acompanhar, mas, considerando seu mau-humor
do inferno e sua tendência para desrespeitar as autoridades como se ele fosse
uma espécie de divindade intocável, começo a repensar sobre essa ideia.
— Não discordo, meu irmão gosta mesmo de se intrometer em assuntos
que não lhe dizem respeito, mas ao menos posso contar com ele quando o que
está em pauta é a sua segurança, ou a de qualquer membro da nossa família.
— Bem, então tente se concentrar no fato de que assim teremos nossa
Luna muito mais rápido — argumento, ciente de que qualquer coisa que
envolva aquela espertinha amolece o coração de Vladimir.
Ainda não me sinto confiante para nomear Vladimir como pai de Luna
em voz alta, por mais que eu o veja dessa forma e, tenho certeza, ele se sinta
assim. Ela é nossa, haja o que houver. Mas esse é um passo grande demais
para tempo de menos, sobretudo agora que eu sei a verdade.
Que Vladimir é filho de Nicolai. ¡Hijo, Díos mio! O mesmo Nicolai
que me encontrou entre a vida e a morte, o mesmo que segurou minha mão
quando não havia mais ninguém…
— Serena? — A voz de Vladimir me desperta do transe, o tom
preocupado parece abraçar meu coração. — Odeio quando faz isso.
— Isso o quê?
— Quando vai para esse lugar na sua cabeça onde não consigo entrar
— responde, inclina sobre mim e deixa um beijo na minha testa.
E eu odeio o que o universo fez conosco.
Sua reação quando descobrir que eu conhecia seu pai é uma
preocupação constante. Não é como se eu quisesse esconder dele esse
segredo, mas Nicolai é a minha lembrança boa. A âncora que me impede de
nadar à deriva. E Vladimir não pode realmente me julgar por ter medo,
quando ele mesmo me alertou do que é capaz.
Tenho medo de que isso nos destrua.
O homem que Vladimir descreveu em seu desespero não condiz com o
Nicolai que eu conheci. Afinal de contas, como a pessoa que me guiou para a
luz pode ser o mesmo que empurrou o homem que amo para a escuridão?
Como posso confrontar Vladimir a respeito de Nicolai, quando todas as
notícias envolvendo a morte dele relatam a causa como parada cardíaca?
Nicolai não morreu por uma doença no coração.
Um dos policiais destranca mais um pesado portão com barras de ferro.
Já passamos por dois deles. Finalmente, avistamos Andrei diante de uma
porta entreaberta. O blazer branco faz com que se destaque no ambiente
escuro, mas o semblante é tão fatal quanto o de Vladimir.
— Vamos acabar logo com isso — diz assim que nos aproximamos de
Andrei.
Meu cunhado respira fundo em busca de paciência. Junto com os
problemas causados pela decisão de Vladimir, vieram os processos,
cobranças, reuniões ininterruptas e os quatro irmãos quase não conseguem
parar em casa sem que precisem correr para a empresa outra vez. Mas Andrei
é o que tem se sobrecarregado mais na tentativa de livrar a corporação dos
assédios da imprensa.
Vladimir, com seu sempre preto terno de presidente, entra primeiro.
Andrei me oferece um sorriso cúmplice e seguimos sala adentro.
Annia levanta assim que nos vê, mas toda sua atenção está fixa em
Vladimir. O cabelo loiro é um montinho ralo na cabeça, os ossos
protuberantes não parecem suportar o peso do próprio corpo.
— Não sabia que ele viria — acusa, deixando seu repúdio ser
detectável em cada palavra.
— Meu irmão tem um interesse particular nesse caso, como você sabe,
senhorita Guseva — Andrei intervém, chamando a cliente pelo sobrenome.
Três policiais assistem a cena de perto. Desconfio que todo esse
protocolo seja necessário, já que não fomos revistados além do detector de
metais, mas Vladimir colocaria esse presídio abaixo antes que nos
obrigassem a tirar as roupas.
— Até onde eu sei, o único interesse dele é o de me ver morta — Annia
continua. — Estou enganada?
— Nem um pouco.
— Vladimir! — repreendo.
— Eu deveria mentir? — questiona, dissimulado, o olhar reluzindo com
seu humor sádico.
— Não tenho certeza do que causaria um estrago menor — reflito. —
Sua sinceramente ou a ausência dela.
— Ela estava matando Luna, sinto muito não ser capaz de demonstrar
alguma compaixão.
Um silêncio tórrido se solidifica no ar, como se as partículas de
oxigênio começassem a pesar. Não tiro a razão de Vladimir, muito pelo
contrário. Lembrando da primeira vez que vi Luna, no meio daquele quarto
ladeada com cinzas de cigarro, conforta-me a certeza de que agora ela é
protegida por um monstro.
Acredito que ele seria capaz até mesmo de tirar Luna de mim se isso
garantisse a segurança dela.
— Não leve para o lado pessoal. — Andrei puxa a cadeira de metal e se
acomoda nela, retirando os papéis de sua pasta. — Meu irmão não sentiria
compaixão nem mesmo se soubesse o que essa palavra significa.
— Como pode ver, eu me apaixonei por um demônio calculista e sem
coração — brinco para tentar deixar o clima mais leve.
— Você não é exatamente um anjo, Corazón.
— E você bem gosta que eu não seja! — retruco pelo prazer de vê-lo
chocado.
Uma risada comedida chama nossa atenção. Annia tampa os lábios; o
rosto está tingido de vermelho e, por um segundo, enxergo toda a beleza
escondida atrás das várias camadas do seu corpo consumidas pelos vícios.
— Desculpem — murmura com o rosto abaixado. — Fazia tanto tempo
que eu não… ria. — Ela fecha os olhos, apertando-os com força para
disfarçar o constrangimento.
— Annia — diz Andrei, chamando-a pelo primeiro nome agora. —
Você sabe porque viemos.
Vladimir fica com o corpo rígido, eu o seguro pela mão e me sento na
cadeira à direita de Annia. Ele permanece em pé atrás de mim, a postura
alerta e superior o acompanha mesmo nessa situação.
— Eles querem a minha filha — diz, abrindo os olhos e focando em
mim.
As íris opacas são verdes; poderiam ser brilhantes como uma
esmeralda, mas agora me parecem pedras sem lapidação. Ouvir as palavras
causa um desconforto no meu estômago. Minha filha…
— Nós queremos o melhor para Luna — incentivo, afastando o
ciúme. — Annia, por favor, talvez essa seja a sua única chance de fazer algo
bom por ela. O que o meu irmão fez…
— Camillo não era um pai ruim, sabe? — divaga. Os dedos de
Vladimir pressionam meus ombros e cubro sua mão com a minha. Annia
sorri, mas sem humor ou felicidade, apenas um sorriso vazio. — Nos
conhecemos por acaso em uma festa há pouco mais de um ano e meio. Uma
noite, quem poderia imaginar?
Eu e Vladimir trocamos um olhar. Nós tivemos bem mais do que uma
noite! Ao invés de se desesperar, o maldito abre o maior sorriso do mundo,
prevendo os meus pensamentos. Golpista!
Hoje, assim que sairmos daqui, eu e Lara vamos nos encontrar na
mansão antes de irmos para nossas consultas, e eu estarei livre de duas
preocupações — a gravidez dela, e a chance iminente de acabar grávida
também.
Madre santíssima que me ajude!
— Eu sei que meu irmão não é uma pessoa ruim, Annia. Mas não pode
defendê-lo quanto a isso. Ele não merece aquela criança, não tem condições
de cuidar dela. Além disso, nem sabemos onde ele está.
— Ele fez o melhor que podia, mas nem sempre o nosso melhor é
suficiente. — Annia, abraçada ao próprio corpo, tamborila os dedos no
antebraço. — Ele esteve aqui na prisão — conta baixo, temendo nossa
reação. Ela procura Andrei com os olhos, buscando aprovação, que recebe
sem demora. Andrei aquiesce, muito sério e impessoal.
— O quê? — Vladimir dá a volta, parando ao lado de Annia.
— Deixe-a falar — ordena Andrei, enquanto lê os documentos como se
aquela história não fosse uma novidade para ele.
— Eu imaginei que viria em algum momento. Camillo vai, mas ele
sempre, sempre volta.
— Como pode ter tanta certeza? — pergunto. Minhas mãos formigam,
eu as esfrego uma na outra. Meu irmão pode não valer nada, mas sinto falta
dele, do irmão que já foi uma dia.
— Maksim. — Ela arruma o cabelo atrás da orelha, depois une as mãos
sobre a mesa e torce os dedos nervosamente. — Os dois são um casal.
Ah, Camillo…
— Acho que eu não ouvi direito — digo, inclinando-me para frente
enquanto um filme passa pela minha cabeça com lembranças do meu irmão.
Camillo sempre foi reservado, preso em seu próprio mundo de fantasias
em busca de uma vida melhor. Ele dizia que o distrito era pequeno para
alguém como eu, mas ele jamais coube naquele lugar.
— Ninguém sabe — continua Annia. Vladimir volta para perto de mim
e massageia meus ombros discretamente. — Ninguém pode saber. Camillo
gosta de aproveitar a vida, não faz distinção se está com homens ou mulheres,
mas Maksim…Só existe seu irmão para ele, Serena.
Duas lágrimas deslizam pelo rosto de Annia, fazendo com que seus
olhos brilhem um pouco mais.
— E por que você nunca disse nada? — Vladimir pergunta, o tom
muito mais brando do que no começo da conversa.
— Você sabe por quê — ela diz; as lágrimas continuam e eu a invejo
por não temê-las. — Se alguém descobrisse, ele seria morto. Nunca
respeitariam um líder que se deita com outro homem, ao menos não aqui em
Moscou, ou em qualquer cidade na Rússia.
— Onde você se encaixa nessa matemática?
— Lugar errado, hora errada. Camillo tinha brigado com Maksim na
noite em que nos conhecemos. A gente transou, eu engravidei e, quando
Maksim descobriu, ameaçou me matar. Mas seu irmão não é…
— Uma pessoa ruim — completo outra vez, minha voz várias escalas
mais ríspidas. — Só um completo imbecil, aparentemente é um problema de
família.
— Por que está nos contando tudo isso só agora? — Vladimir, ainda
cético, começa a andar lentamente pela pequena sala. — E por que
deveríamos confiar em qualquer coisa que diga?
— Camillo e eu acabamos nos tornando amigos. Ele precisava de
alguém que pudesse ouvir, e eu estava sempre em casa com a minha barriga
gigante. Ouvir era tudo o que eu podia fazer. — Ela fica de pé, muito
pequena, frágil e magra. — Eu não gosto de você — diz para Vladimir —, e
já ouvi o suficiente a seu respeito. Aprendi a manter a minha boca fechada, e
é assim que tenho me mantido viva nos últimos meses. Mas estou disposta a
ajudar vocês se… — A voz dela falha, um soluço ocupa o restante da frase.
Não aguento e me levanto para ampará-la. Faço uma reprimenda com
os olhos para Vladimir, que se força a suavizar a expressão carrasca.
— O que você quer dizer com… nos ajudar? — questiona, e vejo que
luta muito contra a vontade de me puxar para longe dela.
— Annia disse que Camillo e Maksim tem informações que poderiam
prejudicar a nossa família. Principalmente você, Vladimir. — É Andrei quem
diz.
Paro de afagar suas costas e olho desconfiada para Annia. Não faz
sentido nenhum o que acabo de ouvir. Meu irmão não tem motivos para
querer fazer alguma coisa contra Vladimir, e muito menos esse poder.
— Meu irmão anda usando muita droga ruim para achar que poderia
fazer alguma coisa contra vocês — digo para Andrei, mas o caçula não
concorda, somente espera em silêncio. Não era bem assim que eu tinha
idealizado esse momento.
— Eu cresci sozinha — Annia fala, a voz rouca por causa do choro. —
Você já passou alguma necessidade, senhor presidente? Não, eu tenho certeza
que não. Tem uma família bonita, conhecida. Uma mamãe que ama você,
aposto. — Ela se debruça sobre a mesa, abre uma das pastas que Andrei
deixou ali. — Essa é a minha ficha, olhe bem aqui, nessa linha vazia. Eu não
tenho pais, não tenho família. Estive em alguns lares temporários, alguns
muito bons, outros nem tanto, e alguns muito ruins. Não quero que Luna
passe por isso também.
Andrei finalmente se levanta, um monte de folhas arrumado nas mãos,
e entrega para Vladimir primeiro.
— Annia aceitou abrir mão de Luna, contanto que Vladimir se
comprometa a adotá-la, ao invés de você, Serena.

***

Eu tento me enganar, mesmo que brevemente, com a possibilidade de ter


entendido tudo errado, mas a racionalidade logo ganha forma e se aloja na
minha cabeça, pesada e sólida como uma pedra.
Annia não é uma mãe ruim.
Vladimir não demora dois passos para me procurar, sempre mais
consciente de mim do que eu mesma. Segura meu rosto com as duas mãos,
forçando nosso contato visual, e tudo se encaixa; ele é a peça que faltava na
minha vida. Toda vez que encontro suas íris e mergulho naquele choque de
azuis e lilases, é como voltar a respirar após um longo período perdida no
espaço sem oxigênio, sem propósito.
— O quê? — pergunto, estarrecida. O mundo se torna calamitoso ao
meu redor e recuo vários passos até quase esbarrar em um dos policiais no
canto da sala.
Em dois segundos, Vladimir já me tem nos braços, bem lindo,
maravilhoso e pleno!
— Eu sei que você a quer, senhor presidente. — Annia continua
falando para Vladimir, que está parado sem esboçar reação alguma além da
preocupação comigo. — Que se importa com ela, então fique com a minha
Luna, não deixe que Maksim a use outra vez por causa das péssimas escolhas
do pai.
— É claro que ele vai aceitar — interfiro, a certeza de que Luna estará
mais segura com ele do que comigo é tanto decepcionante como
reconfortante. Ele se tornou a minha muralha, e agora será a de Luna
também.
Vladimir me abraça, uma ação que tem feito com frequência. Quando
estamos perto um do outro, ele não consegue manter as mãos afastadas por
muito tempo, seja em busca de um contato mais libertino, seja pelo simples
prazer de me tocar ou para ter certeza de que não estou me despedaçando.
Esse é outro detalhe que percebi a respeito de Vladimir: ele tem medo
que eu me quebre em seus braços, como uma flor desabrochada no meio do
inverno mais rigoroso, lutando contra as adversidades para não congelar.
— Sinto muito, Serena. — A voz vem de Annia, que volta a sentar, as
maçãs do rosto muito vermelhas por causa do choro incessante. — Você tem
razão, eu precisava fazer ao menos uma coisa por ela, entende? E você… —
Ela não completa a frase imediatamente. Encara os documentos sobre a
própria vida esparramados em cima da mesa, como um livro escancarado
com suas piores lembranças. — Você não tem mais para oferecer a ela do que
eu tive. Sabe onde estaria se não tivesse saído do distrito.
Os braços de Vladimir me comprimem, tenho certeza que seus
pensamentos coincidem com os meus.
Annia deve estar se referindo ao que acontece com a maioria das
meninas pobres de distritos carentes, sobretudo as de origem estrangeira e
menores de idade. Mesmo na época em que meus pais eram vivos, a tensão
sobre a criminalidade e os riscos da região eram temas que vinham à tona
esporadicamente em nossas conversas de família. Quando meus pais se
foram, cheguei a receber algumas ofertas de amigos do Camillo que me
propunham dinheiro em troca de sexo.
Eu estava desesperada e quebrada, perdida e sozinha, e lembro de ter
cogitado a ideia, mas não havia sentido em fazê-lo. Não tinha forças,
vontade, ânimo. Nada. Era apenas… eu e o vazio deixado pela morte dos
dois, a vida de cabeça para baixo. Gostaria de poder dizer que era virgem
antes de Vladimir por ter me guardado para a pessoa certa, mas por muito
tempo foi apenas a estagnação que me impedia de sentir.
Pensando bem, mesmo que eu tivesse sobrevivido sem a ajuda de
Nicolai — algo que nunca parei para pensar —, talvez tivesse me tornado
alguém exatamente como Annia hoje. Talvez fosse eu no lado de dentro da
cela.
— Não me deixa aqui fora, Corazón — Vladimir sussurra, falando
sobre a minha mania de pensar demais.
— Sinto muito, Lord Vlad, mas eu tenho direito a alguns minutos para
pensar sobre o fato de que você já vai ter vantagem sobre a nossa primeira
filha. — Ele abre a boca, todo alinhado e com os olhos estreitos, prestes a me
repreender, mas não lhe dou essa chance: — Foi você quem me disse para
chamar ela de "nossa", nem pense em negar agora. — Com um sobressalto,
lembro de Annia e como isso deve ter soado inconveniente, então completo,
dessa vez para ela: — Espero que não se ofenda, estávamos mesmo fazendo
planos sobre Luna, desculpe.
— É sério que está preocupada com isso, de tudo o que foi dito até
agora? — pergunta, incrédulo. Suas mãos estão geladas e fazem meu corpo
se arrepiar ao alcançarem a pele do meu rosto.
Eu poderia cair dura e morta, porque ele está sorrindo e não existe nada
mais lindo, sensual e apaixonante no mundo do que o sorriso de Vladimir.
Mesmo querendo bater nele, quero amá-lo.
— A parte sobre meu irmão ter um namorado também foi bem
impactante — respondo, tensa e com a cabeça girando como um
caleidoscópio.
— Como sempre, está ignorando o perigo que Maksim representa para
você e Luna — pontua, mas sem advertências ou desapontamento. É somente
ele e sua sede de controle incorrigível. — Você não se importa?
— É claro que sim — explico. Seguro os dois lados do seu rosto da
mesma forma como fez comigo. — Você não tem nenhuma obrigação
comigo ou com a minha família, mas foi o primeiro a se preocupar com
Luna, o primeiro a protegê-la da maneira certa e, mesmo não sabendo a
segurar no colo sem parecer um robô enferrujado, ela é muito mais sua do
que minha.
Ele a amou antes de perceber.
Fechando os olhos, Vladimir inclina a cabeça e apoia a testa contra a
minha; o cabelo dele faz carícias na minha testa e nossas respirações mornas
se confundem. Meu monstro fica lindo contendo os sentimentos.
— Vocês duas são minhas, Corazón — decreta, baixo e carinhosamente
para que ninguém mais escute, mas, considerando a sala estreita, duvido que
não tenham ouvido nossa distribuição gratuita de açúcar. De mãos dadas,
voltamos a nos acomodar na mesa. Andrei está sorrindo, o rosto bastante
corado, como se a alegria do irmão lhe trouxesse grande conforto. — Você
disse que os dois sabem de algo sobre mim, preciso saber do que se trata.
Annia se encolhe, não encara Vladimir.
— Ela só pode falar em um depoimento oficial. Isso vai ser feito no
início da próxima semana, quando teremos a data definitiva do julgamento.
— Andrei fecha a pasta com o caso de Annia, entrega para ela uma cópia do
documento sobre a adoção de Luna e uma caneta.
Com a caneta em punho, leva a mão até a folha e começa a assinar sem
dizer nada, mas as mãos tremem, tornando seus traços irregulares e
pontiagudos. Não entendo muito sobre processos judiciais, e menos ainda
sobre como funciona uma adoção, mas tenho certeza de que não acontecem
com essa facilidade.
— Tivemos muitos problemas com a adoção de Iago — Vladimir
explica, decifrando meus pensamentos. — Mas aprendemos muito sobre
como agilizar as coisas.
— Mesmo? E como fizeram dessa vez?
— Minha mãe — responde com um risinho esnobe; não tem uma gota
de vergonha na cara ao falar esse tipo de coisa na frente de policiais armados
que não parecem aprovar nem um pouco a nossa presença. — E juízes bem
corruptos.
Por uma longa meia hora, os três conversam a respeito dos documentos.
Annia fala pouco, cada assinatura leva um pouquinho da sua alma e as
lágrimas aumentam junto com o seu silêncio. É triste, acima de qualquer
coisa, mas me assusta também. O amor me assusta, porque não tenho certeza
se eu sobreviveria a algo assim. Chegar a tal ponto da vida que precise me
afastar de alguém que amo como único recurso para provar o meu amor.
Eu não conseguiria. Aprendi a me conhecer bem o suficiente para
identificar quando algo me atinge, consegui reunir forças para enfrentar
quando minhas crises ameaçam retornar, mesmo que por vezes a vontade de
me arrastar para aquele cantinho escuro e solitário da mente sussurre de um
jeito muito sedutor. Mas isso… não, eu não conseguiria, e, por esse motivo,
Annia terá para sempre o meu respeito.
— Há algo que eu gostaria de dizer… — diz ela assim que nos
levantamos para partir. O ar está muito mais difícil de consumir do que
quando chegamos.
— Annia — Andrei alerta, solícito. Os policiais e o ambiente não o
atingem e, aqui dentro, diante de um caso judicial, de uma cliente e, ainda,
colocando em prática seu trabalho, ele se comporta com muita confiança. Sua
calma, o tom da voz e o sorriso tranquilizam, mas também seduzem
perigosamente.
— Está tudo bem — funga, limpando o rosto com o dorso da mão. —
Como eu disse, Camillo tem os seus motivos para fazer o que fez, e existem
segredos que não trazem conforto para ninguém. Mas isso… isso eu gostaria
de dizer, apenas isso. Não porque eu goste de você, presidente, esse não é o
caso. As coisas que sei, digamos que eu preferiria que Camillo nunca tivesse
me contado. Teria sido muito mais fácil se eu nunca tivesse ido atrás dele
quando descobri que estava grávida. — Suspirando, Annia se afasta na
direção de um dos policiais, estende o braço e eu preciso desviar os olhos
quando a algema se fecha em seu pulso. — Há um investidor, Efrem Kokorin
é como o chamam. Maksim tem algumas desavenças antigas contra o seu pai,
presidente, é melhor tomar cuidado.
— Nós sabemos sobre os planos da Kokorin Enterprises — Vladimir
diz, pela primeira vez demonstrando surpresa e algo mais… como, alegria?
Prazer?
Ah, Vladimir gosta mesmo de um desafio e de ser enfrentado, porque
não existe vitória sem um embate, e ele sempre vence. Sempre.
Mas o que tipo de desavença Maksim Loskov poderia ter contra
Nicolai?
O mesmo policial que nos guiou por todo trajeto agarra o braço de
Annia sem nenhuma delicadeza. Ela não reclama, nem se despede, apenas se
deixa levar, as bochechas ainda marcadas pelas linhas cristalinas que evadem
de seus olhos avermelhados.
Gostaria de abraçá-la, de me desculpar ou agradecer. Não tenho
certeza. Eu só gostaria de fazer alguma coisa por ela.
— Esperem — ordena Vladimir, a voz alta e rouca que só utiliza
quando contrariado, quando está realmente com raiva. Todos param e Annia
se vira, surpresa. Ele me procura, pensativo, conflitando sozinho antes de
continuar para a jovem que ele mesmo ajudou a condenar. — Você não é
inocente, e deve saber disso, pois minha intensão nunca foi acusar ou
condenar alguém que não merecesse. Mas vai cumprir a sua pena. Meu irmão
fará de tudo para que os anos sejam reduzidos, e pode ter certeza de que ele
vai conseguir. Você vai receber tratamento, dentro e fora da prisão. Quando
sair, haverá um emprego para você, com um bom salário e uma residência em
um lugar digno bem longe daquele distrito. Melhore a sua maldita vida.
Melhore, entendeu? Se conseguir fazer isso, poderá rever Luna.
Seguro com todas as minhas forças a vontade repentina de chorar,
seguro como se a minha vida dependesse disso. Impeço que aquela bola de
felicidade e tristeza se enfrentem, que as lágrimas caiam, porque eu as tenho
acumulado por muitos e muitos anos.
Seguro tudo, implodindo os embates emocionais com o meu amor por
esse homem. Enterro o rosto no peito de Vladimir, o abraço e me agarro à
sensação de completude, de estar no lugar certo.
— Serena será a mãe dela — prossegue —, mas isso não significa que
não possa fazer parte da vida da Luna se quiser. — Annia soluça, sendo
arrastada pelos brutamontes imbecis, agradecendo incansavelmente por essa
última chance. — Não me faça arrepender dessa decisão.
Não é um pedido, é uma ordem mesclada com um aviso, e que pode
muito bem ser uma ameaça também. Mas ele escolheu fazer a coisa certa,
como eu sabia que faria. Vladimir ainda não sabe, mas é um homem bom.
***

Ele inspira, seu nariz trilha um caminho pelo meu pescoço e a mão aberta
ampara meu rosto para que eu mantenha a cabeça inclinada.
— Você vai se atrasar — comento, embora não me importe nem um
pouco.
— Sou o presidente — responde, sem abandonar a minha pele,
projetando-se sobre o meu corpo enquanto me apoia contra a porta fechada
da limusine. Limusine! Esse deve ser o auge da minha vida: estar prensada
contra um carro chique por um ricaço gostoso. Meu Lord Vlad. — Eu faço os
horários, esqueceu?
— Esquecer que você é o presidente? — arfo. Ele deixa que os dentes
alcancem meu maxilar, mordiscando com força assim que chega no queixo
antes de me roubar um beijo cheio de ganância. — Impossível.
Sei que ele não gosta quando o chamo assim — presidente — apesar de
eu achar incrivelmente sedutor. Nunca vou me cansar do seu lado sombrio,
poderoso e autoritário, por isso não tenho medo de provocá-lo, de fazer com
que seu humor oscile entre o romântico perfeito e carinhoso e um completo
filho da puta mandão, ainda mais quando o último caso consegue me fazer
sentir coisas em partes do corpo que eu nem sabia que existiam.
— Já disse para não falar essa merda — grunhe. Enfia os dedos na
minha nuca, puxando a raiz do meu cabelo para trás em busca dos meus
olhos.
Estamos em um embate de desejos há mais de vinte minutos, com
certeza. Andrei foi direto para a empresa depois que saímos do presídio, e
Vladimir me trouxe para casa. Desde então, ele não deixou de me beijar e
perguntar se estou bem.
— Eu gosto — digo. — Acho muito calliente, el presidente — digo em
espanhol, rebelando-me um pouco em seu território de poderes.
— Preciso aprender essa sua língua esperta — reclama nada feliz,
desconfiado até da própria sombra. — Corazón.
Ainda é cedo, pouco antes do meio-dia. A mansão cria uma sombra
agigantada, protegendo todo o jardim que está florido agora que a primavera
se consolidou. Há funcionários cuidando da limpeza e das folhagens do
pequeno labirinto de arbustos, e Vladimir os olha com frequência como se
reprovasse a presença deles.
A segurança também foi reforçada, há mais guarda-costas com
Vladimir quando saímos e novos vigilantes nos limites da propriedade.
Vladimir pediu para que eu, Lara e a mãe não saíssemos sozinhas, porque
teme uma retaliação de Efrem Kokorin ou algum movimento de Maksim.
Agora que descobrimos sobre estarem trabalhando juntos, temo que
Vladimir ficará ainda mais protetor.
Ele disfarça bem, e nunca vai admitir que precisa de ajuda, mas toda
essa situação me preocupa: sua saúde, seus traumas sobre Nicolai... Guardar
tudo isso deve ser devastador.
Se está preocupado ou com raiva do que Annia confidenciou, não deixa
transparecer.
— Por que mudou de ideia sobre Annia? — pergunto quando recobro a
consciência que ele havia roubado com um beijo invasivo e devasso.
— Aquilo que Annia disse na prisão, sobre as coisas que acontecem no
distrito… — Nega com a cabeça, o brilho da ira cintilando em seus olhos. —
O que poderia ter acontecido com a sua vida, eu… apenas foi demais para
mim.
— Entendo — murmuro, envolvendo suas costas com os braços
enfiados por dentro do seu paletó aberto. — Isso não incomoda você? Nossas
diferenças? O lugar de onde eu vim?
— Financeiramente, você quer dizer? — Ele desdenha com os ombros,
a pergunta o diverte. — Pode ser horrível o que vou falar, mas a essa altura
acho que você já me conhece bem o suficiente para não se chocar. Eu tenho
dinheiro, Corazón. Muito dinheiro. Não pense que estou me gabando ou algo
parecido, mas tenho certeza de que qualquer mulher com quem me
envolvesse, por mais rica que fosse, continuaria tendo menos dinheiro do que
eu. Então a diferença seria apenas pela empresa. Lara é provavelmente a
única que possui tanto capital acumulado quanto nós, pelo menos em
Moscou, mesmo a família tendo perdido muito por causa do pai ela.
Vladimir nos gira, trocando nossas posições e apoiando-se contra a
lataria preta e reluzente do veículo. Não encontro nada do seu habitual
egocentrismo, é um desabafo e uma verdade.
— Aceitar isso faz parte do meu cargo como presidente. Então, se você
quer saber se me incomoda ter mais dinheiro do que a maior parte das
pessoas no país… bem, não exatamente, não posso fazer nada com relação a
isso. Eu sou o que sou, e tenho o que tenho. Se quer saber se me incomoda
estar ao seu lado simplesmente por ser quem você é, e ter o que você tem,
então não. Jamais, Corazón.
— Confuso — reflito. — Porém, justo.
— Sou prático, não vou criar um grande drama sobre algo que já tenho.
Sei como multiplicar dinheiro, Corázon, mas multiplicar você é impossível.
— Deus nos livre, homem! Imagina milhares de Serenas Fajardo no
mundo? Apocalipse na certa. Terceira guerra mundial. Isso sem mencionar
que eu teria que prender você em um calabouço, porque todas elas iam querer
o meu… namorado? — Franzo o cenho, dizer isso é constrangedor.
— Namorado? — Ele testa, fazendo uma careta. Seus dedos sobem e
descem nas laterais do meu corpo, um carinho inconscientemente que me
preenche de felicidade e outras coisinhas mais. — Isso parece tão… pouco?
— Sim — concordo, inebriada. Sua mão é tão grande, forte e calorosa.
Mas… o quê? — Não, calma! Você disse pouco?
— Bem pouco, Corazón — atiça, mordiscando o meu queixo. — Quase
nada. — Puxa o cantinho do meu lábio inferior com os dentes, deixando a
língua resvalar sobre a pele eriçada e sensível, e minha mente se liquefaz. A
coragem para contrapor sua pressa com o nosso relacionamento coloca o rabo
entre as pernas e fica rindo da minha cara.
— Já disse que você é um monstro vampiro bem esperto e gostoso
hoje?
Vladimir gargalha. Quando faz isso, seus olhos ficam brilhantes,
ressaltando os pigmentos lilases que tanto amo.
— Fica bem até eu voltar? — pergunta, meio segurando a risada. Lá
vem ele com sua maratona de pedidos e perguntas repetitivas. Aposto que vai
me pedir para não fazer nenhuma loucura. — Tenta não fazer nenhuma
loucura, tudo bem?
Eu disse.
— Eu e Lara vamos ao médico daqui a pouco, lembra? Vou cuidar do
nosso probleminha.
Problemão, diz a minha consciência.
Vladimir faz outra careta.
Eu devia bater nele, de verdade. Parece que baixou o espírito da mãe
nele depois que Luna entrou em nossas vidas e, toda vez que a hipótese de eu
engravidar — dele, obviamente — surge, faz com que se anime como um
coelho feliz de dentes afiados e sugador de sangue.
Eu, grávida?
Do Vladimir?
Nunquinha… certo? Eu não quero isso… quero? Um bebezinho, um
barrigão?
Não… certo?
Mierda de hombre.
Acerto um tapa em seu braço e fujo dos seus encantamentos.
— Vai trabalhar, vai. Pare de colocar essas ideias na minha cabeça.
— Que ideias? — pergunta, genuinamente confuso, esfregando o braço
e rindo ao mesmo tempo.
Eu sou um fracasso, não consigo ficar brava com ele por dois segundos.
Ciente de que vamos nos engalfinhar em mais vinte minutos de amassos —
uma hipótese tentadora —, fujo rumo aos degraus da mansão e jogo um beijo
por sobre os ombros. Vladimir afirma com a cabeça, refinado e sedutor.
Então, finalmente, vai embora assim que entro na mansão.
Rapidamente, começo a me arrumar para a consulta. O encontro com
Annia ainda está fresco na minha cabeça, então mantenho a calma e procuro
pensar em outras coisas para que isso não me deixe ansiosa demais.
Lara envia uma mensagem um tempo depois, dizendo que está a
caminho da clínica. Pego minha bolsa e vou para a saída. Tatiana saiu com
Luna e Iago. Ivan está na empresa desde antes do café da manhã, e Roman
desapareceu assim que Vladimir levantou a hipótese de abrirem uma sucursal
na Itália, há dois dias.
Abro a porta da saída e sou surpreendida por um segurança.
Reconheço-o da portaria, um dos funcionários novos. Em seu crachá de
identificação, há seu sobrenome: Ivanenko.
— Senhorita Fajardo — diz com uma mesura. O uniforme escuro se
destaca em sua pele extremamente branca manchada com muitas pequenas
sardas de coloração laranja. — Há uma pessoa na residência que deseja falar
com você. Disse que é seu irmão.
— Meu irmão? — repito. — Deve haver algum engano.
Camillo é louco, mas não tanto quanto eu. Ele não viria aqui.
O senhor Ivanenko me entrega seu comunicador, mas hesito antes de
pegar o aparelho.
— Aqui, ele insistiu em falar com a senhorita. Mas podemos chamar o
senhor Volkiov se assim desejar.
Seria uma boa ideia…
Mas já estou com o aparelho a caminho do ouvido, certa de que só pode
ser um equívoco. Camillo está desaparecido, ou nas mãos de Maksim.
— Me deixe entrar, mi hermana — suplica através do comunicador, a
voz que já me trouxe conforto e tormento muitas vezes ao longo da
vida. — Déjame entrar.
SERENA

SEMPRE PODE FICAR pior, principalmente se o assunto envolver uma


pessoa chamada Serena Fajardo, vulgo eu, obrigada. Afinal, não posso ver
uma merda que já corro para fazer.
Mas eu não podia apenas ignorar Camillo, ainda mais depois de tudo o
que Annia nos contou. Minhas opções eram: receber meu irmão dentro da
mansão, onde há segurança para que possamos conversar sem que eu precise
ter medo das suas intenções, ou aceitar me encontrar com ele em outro lugar;
então, dos males, o menor.
Posso estar sendo precipitada por usar dessa oportunidade para tentar
descobrir qual a relação entre Maksim e a Kokorin Enterprises? Com certeza,
mas depois de todos os problemas que Vladimir e sua família têm enfrentado,
é o mínimo que posso fazer.
Ele não combina com o ambiente, mas pouquíssimas pessoas no mundo
pareceriam à vontade em qualquer cômodo da mansão Volkiov. As mangas
da camisa, muito largas e compridas, balançam ao redor dos braços magros.
A calça rasgada logo acima do joelho me permite entrever a pele pálida cheia
de pelos escuros. Camillo aperta fortemente os braços da cadeira, afundando
as unhas sujas e roídas no estofado.
Parada na porta do escritório, com os braços cruzados e pensando em
como Vladimir tem todos os motivos do mundo para sempre esperar que eu
cometa alguma insanidade absurda e perigosa, observo o desespero do meu
irmão para esconder os espasmos no pescoço toda vez que seus olhos se
perdem na prateleira repleta com garrafas refinadas de vodca, vinho e uísque.
Considerando tudo o que Annia disse, eu deveria me afastar de
Camillo, abandoná-lo à própria sorte exatamente como fez comigo e com a
própria filha — aos poucos, estou me acostumando com a ideia de que ele
jamais se comportou como um pai e que, portanto, não merece esse rótulo —,
mas continua sendo o meu irmão.
O mesmo garoto que dividia a cama comigo quando eu tinha algum
pesadelo no meio da noite. O mesmo que me defendia na escola dos garotos
mais velhos, por mais que a culpa por arrumar briga com eles fosse sempre
minha, e o mesmo que me afastou do distrito para garantir a minha
segurança.
Os fins podem não justificar os meios, mas tampouco são suficientes
para condenar o ser humano por uma vida de miséria e medo.
— Parece um palácio — comenta, a primeira coisa que se atreveu a
falar desde quando solicitei que o segurança permitisse sua entrada, após
certificar de que não havia nenhuma arma com ele. Claro que não haveria;
apesar de tudo, Camillo não seria insensível o suficiente para tentar alguma
coisa contra a própria irmã por motivo nenhum. Já eu, não posso dizer o
mesmo de mim. — Obrigado por me deixar entrar.
— Não me agradeça — respondo. Tento parecer brava ou repreensiva,
mas aos meus ouvidos a frase soa apática e decepcionada. — Ainda posso
colocar você para fora ou enterrá-lo no jardim. É um grande, grande jardim, e
nunca encontrariam o corpo.
Ele emite uma risadinha nasalada, o humor não alcança os lábios. Sua
pele brilha em contraste com a luz que evade das janelas principescas do
escritório, o suor acumulado faz jus ao nervosismo. Não está dopado — é
isso o que meu vago conhecimento de entorpecentes acha —, mas também
não me parece nem um pouco normal.
— Sei que não vai fazer isso. — Ele coça os olhos, a perna direita
balança freneticamente.
— Eu deveria. — Aproximo-me da grande mesa que Vladimir e meus
cunhados usam para trabalhar em casa. A imagem quase cadavérica e
displicente de Camillo não é um bom gatilho para a minha mente, então tento
me concentrar em outras coisas, nos títulos literários sobre a mesa, nas
planilhas que Roman esteve estudando freneticamente jogadas em um canto,
ou na grande tapeçaria em uma das paredes, com os dois leões robustos nos
observando atentamente. — O que veio fazer aqui? Precisa de mim outra vez
para pagar as suas dívidas? Ou melhor, para assumir a sua sentença de morte?
— Eu avisei para se manter longe do distrito, hermana — murmura, a
cabeça baixa encarando os próprios pés. — As coisas… saíram do controle.
— Não me diga, nem tinha percebido — ironizo. Alcanço um exemplar
pesado de Crime e Castigo em uma das prateleiras e me pergunto se é uma
aprovação do universo para que eu jogue na cabeça dele. Essa seria a segunda
pior ideia que tive no dia de hoje, a primeira foi ter recebido Camillo na casa
de Vladimir. — E, caso ainda não saiba, Maksim foi atrás de mim primeiro,
fez ameaças, exigiu o dinheiro que eu claramente não tinha.
— Ele só queria usar você para chegar até mim — argumenta. —
Nunca tive intenção de trazer todos esses problemas para a sua vida, Serena,
precisa acreditar em mim. Você não merece, sempre foi uma pessoa boa
demais para ser irmã de alguém como eu.
Pelo menos em uma coisa a gente concorda.
— Boa em ser trouxa, né? — Perco a paciência, mas coloco o livro no
lugar para evitar agressões físicas ou, na pior das hipóteses, um assassinato
com a ilustre participação de Dostoievski. Concentro-me em Camillo agora,
falando várias escalas mais alto: — Eu deveria estar brava com você por
tantas coisas, Camillo! Muchas cosas, hermano. Você mentiu sobre a casa
de nuestros padres. Como pôde? Como? E Luna? Deixou minha sobrinha
com uma mãe relapsa, viciada, em uma casa que é usada como o depósito
particular da sua quadrilha de mierda.
— Minha filha…
— Então agora você tem uma filha? — interrompo, achando-me bem
durona e perigosa, e ligeiramente descontrolada também. — Não ouse falar
dela assim, você perdeu esse direito, Camillo. Se não fosse por Vladimir,
Luna estaria em um orfanato agora. Como pôde esconder de mim algo tão
importante como uma criança?
Os olhos dele faíscam, encarando-me de verdade; entretanto, com a
mesma velocidade com que a raiva transparece, ela vai embora e seu rosto se
contorce no que poderia ser culpa ou vergonha. Camillo se levanta, bagunça
os cabelos com a mãos e perambula ao redor do sofá devagar, pensativo e
débil, como se estivesse sempre em dois lugares ao mesmo tempo.
Encontro dentro de mim aquela menina solitária, quebrada e perdida,
que lutava contra sussurros, injustiças e perdas, e que diversas vezes
fantasiou em salvar o irmão quando sequer sabia como salvar a si mesma. Ela
está devastada agora.
Algumas pessoas não podem ser salvas a não ser que estendam as mãos
para o alto. Não adianta tentar alcançar alguém que deseja companhia dentro
do buraco.
E eu não posso cair lá dentro.
— Quem está com ela? — Camillo inclina-se para frente, encosta a
cabeça em um armário fechado de madeira e eu me pergunto se está
chorando. — Luna não é problema seu, Serena. Você mal consegue se
sustentar, e não vão ficar aqui para sempre. O que pretende fazer? Cuidar
dela sozinha? Ser a mãe dela?
Hesito em responder, com medo de que seja possível Luna ser
devolvida para o meu irmão caso ele resolva interferir no processo. Até então,
Camillo estava desaparecido, mas agora… Agora…
— Ela está bem, é tudo o que você precisa saber. — Meus lábios me
traem, trêmulos, transformando algumas palavras em vibrações. — É por isso
que veio até aqui? Você a quer de volta? Como pode ter mudado tanto,
Camillo? Você foi embora, deixou as duas sozinhas com aquelas pessoas, não
tem o direito de questionar a minha capacidade de cuidar dela. Você tem
razão, eu ainda estou aprendendo, ainda não sou a mãe dela, mas vou
conseguir. E sabe por que, Camillo? Porque eu não desisto, eu não fujo.
— Eu não estava fugindo! — grita, espalmando com força o armário.
Ao me encarar, o furor e desequilíbrio do meu irmão desencadeiam em mim
uma onda de medo. As pupilas muito dilatadas brilham com lágrimas que não
caem, e sua respiração parece exigir um grande esforço. Camillo está no
limite.
— Do que você está falando? — pergunto com cautela.
— Luna foi um erro, ela não fazia parte do plano — diz após alguns
segundos de silêncio. Diminui a distância entre nós e segura meus ombros
com as duas mãos. — Um acidente e eu… não sabia o que fazer. Eu não sei o
que fazer, hermana, não consigo mais manter isso sozinho por muito tempo.
O rosto de Camillo gira para o lado após o impacto, rápido como um
piscar de olhos, doloroso como uma sentença. Escuto o som, depois sinto o
ardume na palma da mão.
— Não me faça odiar você, e não diga nunca mais que ela foi um erro.
— Esquivo para mais perto da porta, decepcionada que a chance de redenção
de Camillo não exista mais.
Bom, eu tentei, paciência.
Camillo dá as costas para mim e volta a perambular, fiscalizando o
escritório sem dizer nada. Ele para perto das velhas plantas baixas
amontoadas sobre o aparador de vidro, finge prestar atenção nos gráficos,
mas meu palpite é que esteja enrolando para que o clima entre nós dois
amenize um pouco.
Gostaria que Vladimir estivesse aqui comigo, não por me sentir
intimidada ou fraca, mas pelo conforto da sua companhia, pelo lembrete
constante de que não estou mais sozinha.
E, obviamente, por diminuir drasticamente as chances de essa situação
acabar em confusão. Ele não vai gostar nem um pouco quando souber que
recebi meu irmão dentro da mansão.
— O que você quer, afinal, Camillo? Tenho certeza de que não se trata
de uma visita qualquer à sua querida irmã.
Mas ele não responde imediatamente, entretido com qualquer coisa no
meio daqueles papéis. Começo a caminhar para mais perto, a fim de checar o
que tanto observa, e escuto quando pragueja baixinho em espanhol.
— Maksim me enviou para pedir a sua ajuda, mas não quero isso. —
Ele estica as duas mãos para mim, gesticulando freneticamente como se
tentasse solucionar um enigma imaginário. — Essa família… não é o que
você pensa, Serena. Acha que pessoas comuns conseguiriam incitar os
inimigos de Maksim contra ele com tanta facilidade? Seu presidente é um
criminoso, Roman Volkiov não fica atrás, e eu vou provar isso. Por
favor, hermana, venha embora comigo, traga Luna. Vou arrumar uma
maneira de…
— Você perdeu o juízo? — Seguro suas mãos, sentindo a textura
escorregadia e fria, memorizando seus tremores como se fossem meus. —
Está drogado, Camillo? Isso nem faz sentido.
— Eu estou limpo! — sussurra. — Eu juro, eu juro, juro, juro Serena.
Maksim… sempre tenta me manter limpo.
— Que lindo — ironizo. — Merece o Nobel da paz. Camillo, escute o
que está dizendo. Você precisa de ajuda.
— Não, não, você não entende. Eu… ah, mierda, Serena. Maksim fez
coisas, coisas bem ruins. Quando nossos pais morreram, ele me ajudou a
encontrar os culpados.
Isso é suficiente para que eu recue, minha mente chiando e rodando, o
gotejar calculado do pavor crescendo em meus ouvidos. O ar começa a se
condensar lentamente e, mesmo sabendo que isso é só um sintoma e que
preciso me concentrar, sinto os pulmões pesados.
Eu devia mandá-lo embora.
— Você conhece as pessoas por trás daquele acidente, Camillo? O que
você fez, mi hermano?
Meu irmão nega com a cabeça e funga repetidas vezes, mas as lágrimas
nunca abandonam seus olhos. O terror começa a ser substituído lentamente
pela indignação. Eu posso nem sempre fazer as escolhas certas, mas Camillo
me supera.
Dessa vez ele foi longe demais.
— Você precisa ir embora. — Ouço-me dizer. — Vá embora, Camillo!
Como você tem coragem de vir aqui, acusar essas pessoas que me acolheram
quando o seu namorado psicopata invadiu o meu apartamento para me
machucar? Essas pessoas que acolheram a sua filha como se fosse parte da
família? Como ousa usar o nome dos nossos padres, Camillo? Eu quero que
saia dessa casa, e nem pense em tentar tirar Luna de nós. Ela é minha agora, e
Vladimir nunca vai permitir que faça qualquer coisa para prejudicar aquela
criança.
— Vladimir? — repete com escárnio. — Você realmente o ama, não é
mesmo? Parece que nenhum de nós dois teve muita sorte no amor.
— Não vejo dessa forma. Afinal, por que tanto ódio, Camillo? O que
vocês estão tramando contra a Corporação Volkiov? Isso tudo é por causa do
clube?
— Como descobriu sobre… Não precisa dizer. Annia. — Camillo
esmorece. Sua voz ao pronunciar o nome dela é tenra. — Eu não me importo
com o clube, com a casa, o terreno, nada disso. Inclusive, quando apareceram
na frente da minha porta, eu não acreditei na grande ironia do destino. Uma
coincidência bastante cruel.
Camillo não fala coisa com coisa. Tento compreender, mas nada faz
sentido.
— Eu quero que você vá embora agora, Camillo. Agora!
— Ele não é uma boa pessoa — insiste, os dentes rangendo.
— Não, ele não é! Então é melhor pensar bem antes de aparecer aqui
outra vez.
Chamo o segurança que se manteve parado do lado de fora e peço a ele
que retire meu irmão da mansão, antes de correr de volta para o quarto.
Malévola está dormindo na cama — é só isso o que ela faz ultimamente
— e, assim que minha cabeça se acomoda sobre o travesseiro de Vladimir e
seu cheiro preenche meus pulmões, ela se arrasta para perto.
Mesmo não acreditando nem um pouco em tudo o que tentou insinuar,
acusando Vladimir de ser um criminoso e toda aquela bobagem hipócrita, me
assusta a certeza de que nem isso seria suficiente para anular a minha vontade
de continuar ao lado dele. Talvez isso signifique que também não sou uma
boa pessoa.
Ou que sou burra demais.
Ou que o amo demais.
Ou todas essas coisas juntas.

***

Meus olhos se abrem lentamente, capturando a imagem de Vladimir


balançando-se de um lado para o outro com Luna no colo. A cabeça cheia de
cabelos escuros está pousada sobre seu ombro, os olhinhos fechados.
Ele está sorrindo, mas não me engana nem um pouco. Sinto sua tensão
de longe. Estar calmo é só um indício de que estou bem encrencada.
Seguranças fofoqueiros!
— Meu irmão esteve aqui — digo baixinho para não despertar Luna.
Ele para, respira profundamente e leva Luna adormecida para o berço.
Está usando suas roupas de trabalho, escuras e imperiosas, o que significa
que chegou há pouco tempo. Eu me sento, Malévola reclama com um miado
baixo e pula para fora da cama.
Acabei adormecendo.
— Eu sei — murmura, sua voz grossa e rouca reverberando pelo
quarto.
— Estava me vigiando? — Estreito os olhos, mesmo sabendo que a
resposta é óbvia.
— Não, Corazón. — Vladimir se senta na cama e se inclina em cima de
mim, esticando o braço para o outro lado do meu corpo. Seus olhos são duas
esferas azuis e perigosas. — Um pouco, talvez. Os seguranças me informam
qualquer movimentação incomum, é o trabalho deles.
— Aposto que sim, afinal de contas, você não é um controlador
muito…
Mas ele me silencia com um beijo, os lábios sedentos e brutais
dominando os meus, a intensidade dos nossos sentimentos personificados em
um gesto tão simples e íntimo.
Quando estamos sozinhos, somos apenas duas pessoas que se
conheceram sob circunstâncias adversas em um quarto de hotel, e não mais o
milionário a quem todos temem e uma mulher cuja vida esteve fadada ao
fracasso.
Suas mãos grandes e firmes percorrem a lateral do meu corpo, e tê-lo
assim, desesperado, faminto, irado e, ainda assim, apaixonado, são motivos
suficientes para me convencer que não existe outro lugar no mundo assim.
— O que foi? — sussurro com dificuldade, meu peito sobe e desce em
uma dessincronização intensa, mas Vladimir não desiste de me acariciar e
fazer algumas partes bem específicas do meu corpo despertarem para o seu
encanto. — Não ficou bravo por eu ter deixado meu irmão entrar?
Ele franze o cenho. Seu esforço para disfarçar que deve ter ficado puto
da vida é admirável.
— Bravo não é a palavra correta — responde. Dedilha meu rosto como
se estivesse desenhando com os dedos. — Eu só ficaria muito feliz se não
precisasse saber esse tipo de coisa através dos funcionários, e nem que se
trancasse no quarto com o celular desligado.
Ah.
— Estava preocupado comigo? — Como não tenho as habilidades dele
para disfarçar as minhas emoções sagazes, nem tento conter o meu sorriso.
— Não sorria assim. Eu estava apavorado e sai no meio de uma reunião
para ver se estava tudo bem. — Comprimo os lábios, mas fica difícil não
sorrir enquanto seus dedos continuam me perscrutando pelo simples prazer
de bagunçar o meu cérebro todinho. — O que seu irmão queria?
— Me arrastar para o plano do mal. Seja lá o que Maksim tem contra
vocês, é melhor não os subestimar, Vladimir. — Fecho os olhos para que ele
não perceba o incômodo que esse assunto me causa. — Sinto muito por tudo
o que estão passando na empresa, e que meu irmão faça parte disso de
alguma forma. Pensei que pudesse descobrir alguma coisa se conversasse
com ele, mas quase não conseguimos manter um diálogo coerente. Espero
que em algum momento nossa vida volte ao normal, porque pode até ser que
alguém lá em cima tenha exagerado na dose de azar quando foram me criar,
mas deve haver uma lei no céu que impeça as pessoas de se ferrarem para
sempre! Estou esperando ansiosamente esse dia chegar.
— Não precisa se preocupar com isso — diz, a boca cobre a minha uma
vez mais. — Eu cuido dos problemas da empresa e você cuida de parar de
testar a minha saúde.
— Falando em saúde, perdi a minha consulta.
— Fiquei sabendo. — Suspira no meu ouvido, mas dessa vez não
chamo a sua atenção. Não o repreendo e não nego que, lá no fundo, bem lá no
fundo, isso me deixa um pouco feliz.
— É claro que ficou.
VLADIMIR

ELENA CRUZA E descruza as pernas, repete o movimento algumas vezes


enquanto se ajeita na cadeira do escritório. Fora da própria empresa, ela não
demonstra a mesma segurança da última vez que nos encontramos.
Espero pacientemente enquanto puxa a borda do vestido para baixo,
como se fosse suficiente para esconder um pouco das pernas evidenciadas
pela vestimenta curta e justa. Há uma gargantilha chamativa em seu pescoço,
da qual um pingente em formato de flecha pende até a fenda entre os seios.
Diferente de antes, no entanto, quando não tinha certeza de que tipo de
pessoa ela realmente era, agora consigo enxergar com bastante clareza. Elena
é uma jogadora, estar aqui significa que tem coragem e esse é o único motivo
que me levou a recebê-la quando fui informado de sua presença.
— Confesso que não esperava uma visita sua tão depressa — digo,
após vários minutos de silêncio.
Ela desvia o rosto, encarando qualquer coisa na parede de vidro atrás de
mim. Finge se distrair com as nuvens cinzentas e pesadas que recobrem a
cidade e escondem o brilho diurno, entoando trovoadas como se evocassem
presságios ruins e fantasmas adormecidos. Da sua posição, devo parecer uma
sombra no meio da tempestade, um agouro que não deve ser provocado.
A posição da mesa e a disposição das cadeiras para visitantes foi
pensada exatamente com o propósito de engrandecer a minha imagem. Não
importa qual seja a estação do ano, haverá sempre um cenário glorioso
flanqueando a cadeira da presidência, mas admito que os dias chuvosos e
tempestivos são os meus preferidos. Quando o sol brilha alto no céu, prefiro
apenas manter as cortinas fechadas.
Mas hoje, por algum motivo, não me sinto confortável, como se
estivéssemos os dois — eu e o tempo — esperando algo acontecer.
Algo ruim.
O retorno de Elena à Moscou só intensifica as minhas desconfianças.
— Temos negócios a tratar. — Apesar de sentir o cheiro do medo, já
que possuo seu futuro nas mãos, ela tem a dignidade de falar com a voz
firme.
Depois da traição de Efrem Kokorin, eu deveria cortar laços com
qualquer pessoa da sua família, sobretudo de uma herdeira tentando dar o
golpe no próprio avô — por mais que ambos sejam igualmente
inescrupulosos. O problema é que há informações que estão em seu poder, e
elas me interessam.
Porque dizem respeito à Serena, e tudo o que envolve a minha mulher é
do meu interesse.
— Temos? — dissimulo, encostando na cadeira e lhe concedendo um
sorriso de desleixo. — Seja direta, Elena.
Suas pálpebras batem depressa, os cílios muito escuros se destacam em
comparação com os cabelos claros, mas ela se recompõe depressa da surpresa
com o meu comportamento rude e impessoal. Acena com a cabeça, cruza os
braços sobre a minha mesa e curva seu pescoço esguio para o lado, exibindo
a pele aveludada e branca.
— Eu ofereci um acordo, senhor presidente, caso poupasse a Kokorin
Enterprises assim que meu avô fosse destituído do cargo.
Alguns fragmentos da noite em que expusemos várias verdades sobre a
origem dos desentendimentos entre nossas empresas percorrem meus
pensamentos, mas a chance de Elena conseguir me afetar veio e passou,
desperdiçada nas mãos de uma menina inexperiente. Ela pode vir a ser uma
grandiosa empresária algum dia, mas não agora, com certeza não hoje.
— Isso já aconteceu? — questiono, sem jamais evitar suas reações,
percebendo todos os mínimos sinais de insegurança, o sutil arquear em seus
ombros, a respiração espaçada.
— Não — reponde —, mas vai acontecer em breve e preciso de uma
garantia de que posso confiar em você.
— Seria uma tola se confiasse em mim. — Os cantos da minha boca se
curvam em um sorriso de satisfação e desta vez sou eu a inclinar para frente,
concedendo a chance de que me olhe nos olhos por quanto tempo for capaz.
Um clarão corta o céu e o flash de luz se estende pelo escritório,
iluminando por um segundo as paredes cinzentas e despersonalizadas, os
lustres geométricos pendurados no teto e as demais poltronas com estofados
escuros e vazios. Antes que a claridade acabe, Elena já voltou a encarar o
céu.
O trovão vem em seguida, alto e feroz, fazendo vibrar as vidraças do
prédio inteiro.
— Estou em um impasse. — Volta a dizer, reelaborando sua sentença
com o dobro de cuidado. — Nossos assessores marcaram uma reunião de
emergência na próxima semana, e tudo indica que meu avô perderá o posto
que tanto lutou para conquistar, como eu havia planejado. — Prepotência e
arrogância estão presentes em suas palavras, mas há também desprezo. — O
problema é que não posso salvar a empresa a não ser que tenha o seu apoio.
Interrompendo sua proposta, Elena se retesa e fecha as mãos pequenas
e magras, pressionando as palmas com muita força. Ouso supor que, se
pudesse escolher, se existisse qualquer outra saída, ela jamais se humilharia
para mim.
— Estou ouvindo — incentivo, tanto apreciando sua subordinação após
ter tentado me chantagear como impressionado com tamanha
determinação. — Me convença, Elena. Por que eu a ajudaria depois de ter
trabalhado na minha empresa, convivido com meus irmãos, usado do nosso
poder em benefício próprio e ainda ter tido a chance de administrar um
casamento se assim eu tivesse desejado fazer? Até onde estava disposta a ir?
— O casamento era do interesse de Efrem — admite, pela primeira vez
parecendo uma menina e não a mulher inteligente e futura líder de um
legado. — Desde o começo, eu sabia do plano dele, é claro, mas nunca tive a
pretensão de levar isso adiante. Diferente do meu avô, que conhecia apenas a
sua reputação e o que conseguia absorver nas poucas reuniões em que se
encontravam, eu estava aqui o tempo todo, de olho em você. E eu sabia, aliás,
tinha certeza de que descobriria a verdade em algum momento. Foi mais
rápido do que imaginei, senhor presidente.
— Eu teria me casado com você se não fosse por Serena — acrescento.
A simples menção ao nome dela faz com que a saudade se espalhe no meu
peito, como se o oxigênio de repente carregasse seu aroma de açúcar e algo
cítrico… Tangerinas, talvez.
Ela me mataria em dois tempos se eu lhe dissesse que tem cheiro de
tangerina, ou inventaria qualquer coisa excêntrica para acrescentar à nossa
lista — o segundo caso não seria de todo ruim.
— Eu não teria aceitado — diz Elena, trazendo de volta meus
pensamentos e afastando Serena, listas e frutas para bem longe. — Com todo
respeito, Vladimir, mas um tiro nas pernas seria menos doloroso.
Devo ter sérios problemas, porque não me ofendo com a sua verdade. É
satisfatório e até mesmo compreensivo que, sabendo o que sou capaz de
fazer, ela me tenha em tão baixa estima. Meu julgamento inicial ganha
acréscimos de respeito e passo a considerar sua oferta com um pouco mais de
seriedade.
Só um pouco.
— E, ainda assim, aqui estamos. Eu do lado certo da mesa, enquanto
você continua dando voltas. A questão é: de que lado você gostaria de estar,
senhorita Kokorin?
Levanto-me da minha posição, amparado por sua atenção minuciosa.
Giro na direção das janelas, enxergando meu reflexo no vidro, vestido com o
mesmo terno azul-marinho salientado pela gravata vermelha, o relógio de
ouro encrustado com diamantes que brilhando no pulso direito. Sobreposta à
minha própria imagem imperturbável, estão as carregadas nuvens cinzentas
que despejam as primeiras gotas d'água sobre o Kremlin. As pessoas no lado
de fora se transformaram em pontos pretos com os guarda-chuvas abertos.
— Eles conseguiram alguma coisa contra você — começa a falar como
um sinal de fidelidade. — Escutei meu avô conversando pelo telefone com
um homem chamado Maksim Loskov, ele parecia muito satisfeito por, nas
palavras dele, terem finalmente conseguido o que precisavam para expor a
Corporação Volkiov ao mundo.
Finalmente, isso detém cem por cento da minha atenção. Adrenalina e
um outro sentimento que raramente me permito sentir: medo. Não por mim,
ou pela empresa, mas pela minha família. Meus irmãos e Lara. Iago, meu
sobrinho, e minha mãe.
Nenhum deles pode ser atingido. A simples possibilidade de que algo
ruim os atinja por minha causa faz com que um cadeado seja destrancado. O
ranger da jaula enferrujada onde escondo a criatura que não hesita em destruir
e usurpar estoura nos meus ouvidos; o som é fúnebre e perigoso.
Parece que Efrem e Maksim não aprenderam a lição do jeito fácil.
— O que era? — pergunto, ciente do rosnado que acompanha a minha
fala.
Elena arregala os olhos e seu rosto empalidece, tornando-se muito mais
visível na sala escura. A tempestade assalta o edifício com brutalidade, os
uivos do vento parecem lamentos de almas perdidas, o choro dos céus após
jogarem sobre mim outra maldita decisão. A chuva se transforma em uma
cachoeira do lado de fora, isolando-nos do mundo.
— Isso eu não sei dizer — murmura, inquieta. — Mas é algo grande,
como eu avisei que seria. Suficiente para que Efrem contatasse as maiores
emissoras da Rússia logo em seguida para vender a informação. — A cabeça
de Elena pende para baixo, suas mãos repousam sobre as pernas, mas eu
espero pacientemente, porque enxergo seu conflito, o medo de se expor
demais e perder a chance de sair daqui beneficiada. Conto mentalmente vinte
e quatro segundos até que ela cede: — É alguma coisa sobre o desabamento,
presidente. Então é melhor estar preparado.
Ah… Claro que sim.
Merda!
Sento-me de volta à cadeira majestosa e simbólica como se fosse um
trono da realeza, mas que agora queima meu corpo como se a tivessem
embebido em lava vulcânica, a mesma sensação que me revolveu no dia em
que ocupei esse posto pela primeira vez.
Naquela época, vomitei na lata de lixo antes de começar o expediente, e
gostaria de poder fazer o mesmo agora.
Todos saberão o que fiz, e eles vão me odiar.
— E você sabe como conseguiram essa prova? — Forço a pergunta
para fora.
— Talvez… — Elena coloca um fio solto do cabelo atrás da orelha,
deixando a possibilidade no ar, querendo recobrar a dianteira da conversa.
Em meu atual estado de hostilidade, mediante à chance de ter todos os
meus demônios expostos aos pés dos falsos santos do entretenimento
televisivo e jornalístico, não me esforço para parecer mais calmo ou educado,
simplesmente tomo dela, sem alterar o volume da voz ou fazer qualquer
movimento.
— Eu juro que se não contar — aviso calmamente, um contraste
perfeito com as sombras na minha cabeça —, você e todas as suas próximas
dez gerações não conseguirão se recuperar do estrago que vou causar não
apenas na empresa de vocês, mas no sobrenome de todo o clã Kokorin,
Elena.
Reconhecimento perpassa seu semblante, o lembrete de que está
lidando com um monstro, como ela mesma havia acusado em outra
oportunidade.
— Eu realmente não tenho certeza — admite com o corpo muito ereto e
atento —, não adianta descontar sua frustração em mim. — Elena engole em
seco, sustentando o meu olhar e, apesar do ódio escavando para a superfície
da minha alma, reconheço que tem muito mais fibra do que o avô. — Mas o
ódio de Maksim pela sua família não é recente, pelo que pude entender. Por
acaso nunca percebeu alguma interferência estranha nos seus negócios?
Talvez antes de você, na época em que seu pai ainda era o presidente?
Maldita esperta, acreditando que vai me atingir uma segunda vez.
Embora eu realmente saiba que meu pai mantinha seus negócios ilícitos,
sempre ficou claro que existiam pessoas atrapalhando externamente nossos
investimentos na empresa. Sempre acreditei que fossem questões
relacionadas com a sua vida dupla, mas talvez não fosse.
Se Maksim tem relação com isso, Camillo talvez tenha o seu papel, o
que me deixa ainda mais alerta.
— Seja direta, Elena — ordeno.
— Você não vai gostar da minha pergunta, mas se faz tanta questão que
eu fale, então aqui está: confia na sua mulher, presidente? Você confia nela?
Dedilho a ponta dos dedos. Uma, duas, três vezes, pensando, e chego à
conclusão de que odeio qualquer menção à Serena nesse assunto.
É verdade que há muito sobre o passado dela que ainda não entendo, e
que o início do nosso relacionamento foi estranho, com todos aqueles
encontros inusitados, mas detesto que a todo momento eu seja lembrado da
vida ordinária que a precede sem que tenha podido ajudá-la, protegê-la,
blindá-la da maldade mesmo que isso significasse soltar a minha maldade nos
quatro cantos do mundo.
— Isso é mais do que óbvio — declaro, de repente necessitado do seu
toque, do sorriso fácil e a mente ágil. Da leveza. — Por quê?
— Escutei meu avô dizer uma coisa. — Uma pausa, Elena inspira antes
de prosseguir: — Quando estava prestes a desligar a ligação, ele disse: "pelo
menos para isso a irmã dele nos serviu, agradeça a ela por mim". Talvez
signifique que…
— Não conclua essa frase. — Junto com o grunhido, escuto o som dos
meus dentes rangendo. — Não coloque a pouca admiração que acabou de
conquistar de mim em risco com essa frase.
Esfrego meus olhos, incomodado com os pontinhos vermelhos
transitando e distorcendo a minha visão. Se tivesse um espelho agora, poderia
confirmar se a causa por Elena continuar empalidecendo é porque pareço tão
destrutível quanto me sinto.
É claro que jamais faria nada contra ela. Gostaria de tranquilizá-la e
agradecer a grande ajuda.
Isso não vai acontecer.
— Sim, senhor. — Agarrando a alça de uma enorme bolsa amarela,
Elena se levanta, equilibrada em saltos altos e finos. Pergunto-me se deixou o
casaco na recepção, considerando o clima. — Bom, isso é tudo o que tenho a
dizer. Você ainda tem algum tempo, pode parar a imprensa, já fez isso uma
vez. Mas não vai conseguir o mesmo com a polícia, imagino. É melhor estar
preparado para o pior.
Vou precisar de Ivan, reflito, traçando todos os planos possíveis para
nos livrar dessa situação sem que o nome da família seja manchado. Meu
irmão foi para Nova Iorque no mesmo dia em que Camillo esteve na mansão,
atrás de uma pista sobre o paradeiro de Tasha e também para resolver
questões financeiras na sucursal americana.
Desde então, minha cunhada tem estado com os humores imprevisíveis
e maléficos, como se a culpa fosse nossa de que o marido precisou se afastar
por alguns dias.
Concordo com Elena, mas antes que tenha a chance de ir embora, tento
arrancar dela uma última informação.
— Por que você quer tanto destruir seu avô, Elena?
O lábio inferior dela treme. Outro relâmpago rasga o céu, mais
selvagem que o primeiro, fazendo-a sobressaltar antecipadamente ao estrondo
que vem em seguida. Talvez ela tenha medo de trovoadas. Assim que a sala
volta à sua tonalidade cinzenta e negrume, o rosto de Elena se agarra a um fio
de rebeldia.
— Pelo mesmo motivo que me fez descobrir quem era Serena Fajardo e
como encontrá-la — sibila. — Mas, sabe de uma coisa? Pode me ameaçar o
quanto quiser, não posso expor todas as minhas cartas, posso? Faça a sua
parte, presidente. Se você sobreviver aos próximos dias, espero que possamos
negociar outra vez.
Não confirmo que vou ajudar em seus planos, não ofereço nenhuma
esperança por enquanto. Preciso confirmar tudo o que foi dito e, caso
encontre verdades, não vejo motivos que me impeçam de colocar Elena
Kokorina à frente da Kokorin Enterprises. Talvez em seis ou sete anos a
Corporação Volkiov volte a ter uma concorrente à altura, e isso seria
divertido.
— Que merda está acontecendo aqui? — Roman sai do elevador
enquanto as portas se fecham atrás dele. Estava tão submergido na conversa
que nem percebi sua chegada. — Por favor, não me diga que bateu com a
cabeça e voltou atrás com a ideia do casamento? — Ele para ao lado de
Elena, a mede de cima a baixo, faz uma careta divertida com os olhos
arregalados e um sorriso torto ao notar a bolsa extravagante pendurada no
ombro da mulher.
Elena me olha, esperando que eu esclareça tudo e nos livre de uma
explicação mais precisa.
— Um tiro nas pernas seria menos doloroso — ironizo, utilizando suas
próprias palavras contra ela. Para minha surpresa, Elena sorri um tanto
quanto satisfeita e segue na direção do elevador que a aguarda com as portas
ainda abertas.
Roman, que esteve desaparecido por mais de uma semana, ergue o
indicador como se fosse fazer uma dedução complexa, mas desiste e se joga
na cadeira onde Elena estivera sentada. Há respingos de chuva em seus
ombros, os cabelos estão úmidos e um hematoma quase recuperado colore a
lateral da sua mandíbula de verde e azul.
Para meu espanto, está vestido com roupas formais, embora o terno
esteja aberto e amarrotado nas mangas, a gravata frouxa em seu pescoço.
— A conversa deve ter sido péssima, você está com cara de quem
pretende colocar fogo em alguém. Se for o caso, não esqueça de me chamar.
A presença do meu irmão abranda todos os conflitos causados pelas
revelações de Elena, e mais do que depressa me coloco a pensar em
estratégias para contornar a iminência de um escândalo.
Se eu não conseguir conter a exposição que Efrem está tramando, então
Roman, Ivan e Andrei descobrirão tudo da pior forma, e isso não pode
acontecer.
Eu realmente gostaria de vomitar.
— Onde você esteve? — pergunto. Encosto a cabeça para trás e fecho
os olhos, buscando conforto nas sombras e na voz familiar de Roman.
Gostaria de voltar para casa, me deitar ao lado de Serena e conversar
com ela aos sussurros como temos feito todas as noites para não acordar
Luna, que continua dormindo conosco enquanto não criamos coragem para
deixá-la sozinha no quarto que fica de frente para o nosso.
— Não que seja do seu interesse, mas eu precisava resolver algumas
coisas. — Roman aponta um dedo acusatório na minha direção. — Já que
você me condenou a uma temporada na Itália, resolvi agir por conta própria.
Isso me faz abrir os olhos.
— O que você fez? — interrogo com medo da resposta.
Meu irmão coloca as mãos atrás da cabeça, desliza na poltrona
despreocupadamente e faz um movimento desleixado com os ombros,
desdenhando da minha preocupação.
— Estamos há quase um ano tentando expandir nossos negócios na
Itália e entrar no ramo da hotelaria, contra à minha vontade, mesmo que isso
não venha ao caso. Mas, nossas últimas possíveis sociedades se mostraram
completos fracassos. O jovem Giamatteo, além de ser um babaca filho da
puta, declarou falência. Já Leonel Palliermo, suponho, assinou a própria
sentença no dia em que nossa amada Serena contou a verdade sobre o caráter
dele. Então, solucionei a situação de uma vez.
Apenas o nome daquele desgraçado faz todo o meu sangue ferver,
pensando no quanto suas mãos já cobiçaram Serena, nas noites em que deve
ter planejado utilizar da sua posição como chefe para se aproveitar dela e em
todas as funcionárias que caíram em suas garras nojentas.
— O que você fez, Roman? — repito, torcendo para que tenha sido
algo bem ruim.
Meu irmão exibe o canino, seu riso de escárnio e vitória. Ele pega uma
caneta sobre a minha mesa e começa a girá-la de um lado para o outro entre
os dedos.
— Digamos que Leonel Palliermo estava louco para vender o hotel
dourado e passar uma temporada na Austrália. Então agora temos hotéis na
Itália, e eu não preciso mais pisar naquele país tão cedo.
Um peso é retirado dos meus ombros e prefiro não pensar em que tipo
de abordagem ele utilizou contra o homem. Seja o que for, eu teria feito igual
ou pior. Por outro lado, sei que deveria me contrapor à sua atitude, ainda mais
agora que precisaremos desviar uma quantidade significativa de dinheiro para
encobrir as notícias que estão sendo preparadas a mando de Efrem e Maksim.
Mas apenas me sinto aliviado, e isso é suficiente por enquanto.
— Obrigado, irmão.
— Blá, blá, blá, sentimentalismo, eu te amo, etcetera. Agora me diga, o
que está havendo e por que Elena Kokorina estava aqui? Por acaso não tem
medo do que Serena pode fazer com você enquanto dorme?
Serena…
Será que chegará o dia em que o nome dela vai parar de fazer todo o
meu corpo doer com a expectativa de me afogar dentro dela?
Eu duvido.
— Um problema que preciso resolver — respondo, sem me aprofundar
ou oferecer detalhes comprometedores.
Roman levanta as sobrancelhas, a perna direita balança freneticamente
e a caneta continua sendo rodopiada em sua mão. Está agitado, desconfiado,
alerta como um lobo.
— Você sabe que pode contar comigo, Vladimir — diz de repente, o
tom baixo quase se perdendo em meio ao barulho abafado da chuva. — Não
precisava ter escondido as plantas, eu não pretendia contar para ninguém
sobre a existência delas. Todo mundo tem segredos, alguns apenas são piores
que os outros.
Uma pontada estoura na minha cabeça, aguda e longínqua, de dentro
para fora, cavando como um verme. Ele está falando sobre as plantas do
projeto que levou ao desabamento daquele edifício no ano em que Nicolai se
matou.
Esse dia não pode ficar pior.
Não tento esconder minhas mãos quando elas se fecham, nem controlar
a minha respiração. Apenas me concentro no que acabou de dizer e em como
não faz o menor sentido.
— O que você quer dizer com esconder?
Meu irmão, que me conhece como poucos, imediatamente entende que
alguma coisa está errada. Muito errada. Mas nada no mundo me prepara para
o que ele diz a seguir.
— Bom, elas desapareceram, então pensei que você tivesse pegado,
com medo que eu descobrisse alguma coisa.
Desapareceram.
— Porra! — xingo, levantando-me com o coração acelerado. Tudo se
encaixa, as peças encontram seus pares. É isso o que Efrem tem para usar
contra a Corporação Volkiov. E não encontro dificuldade nenhuma para
entender como aqueles malditos papéis chegaram em suas mãos. Não sei o
quanto Roman sabe, mas ele sabe ao menos que há um crime envolvido. —
Nós temos um problema.
Um terceiro relâmpago se estende ao longe, o escritório volta a acender
e se apagar. Nesse breve período, os olhos verdes de Roman cintilam,
grandes e cheios de expectativa. Esperamos que o trovão morra no céu, um
ribombar que chega sem fôlego.
— Imaginei que sim, presidente. Se aqueles documentos estiverem com
quem estou pensando, pela sua cara, teremos mais do que um problema.
Continuo sem ter certeza do quanto Roman sabe, ou do quanto
desconfia. Mas ele é tudo que tenho no momento.
Explico brevemente algumas coisas reveladas por Elena. Oculto a
grande maioria, como o fato de que muitas pessoas morreram naquele
acidente, sobre eu ter ajudado a sustentar a mentira de Nicolai por todos esses
anos. Mas a verdade paira entre nós, nos olhares, no maxilar trincado do meu
irmão.
Eu só não posso lidar com a sua decepção.
Ao fim do meu monólogo a respeito dos planos de Efrem para nos
derrubar e da visita de Camillo à mansão, quando deve ter roubado as plantas,
Roman solta um assobio.
— Filho da puta — grunhe, meio rindo, meio ardendo de ódio. — Ivan
é o chefe do departamento financeiro, vamos precisar dele se quisermos parar
o boato antes que seja noticiado.
Eu já tinha pensando nisso.
— Ele não está na cidade — explico, encarando minha mesa
desorganizada. — Foi resolver questões pendentes nos Estados Unidos. Vai
chegar pela manhã…
— Ah, por isso Lara estava tão nervosa agora há pouco. Nos
esbarramos no corredor e ela me olhou como se quisesse arrancar minha
cabeça, maravilhosa como sempre.
— Não diga isso na frente do Ivan — aconselho, mesmo que Lara
realmente seja maravilhosa e nossa verdadeira heroína, assumindo reuniões
com investidores menores.
— Não posso fazer nada se minhas cunhadas são tão irresistíveis.
— Vou fingir que não escutei o que você acabou de falar, em respeito
por estar me ajudando, mas não teste a minha paciência.
Roman bate continência, satisfeito por conseguir me irritar.
— Bom, voltando o que importa — prossegue —, vamos ver o que
conseguimos fazer com nossas reservas e amanhã falamos com Ivan a
respeito do que pode ser feito. Não estamos nos nossos melhores dias, Andrei
está na merda com os processos e Ivan não vai ficar nada feliz com os
desfalques, ainda mais agora que comprei uma rede de hotéis.
— Não, com certeza não estamos — concordo.
Flexionando os braços, Roman levanta da cadeira e alonga o pescoço
de um lado para o outro, estralando os ossos. Não volta a me olhar nos olhos
enquanto retira um maço de cigarros do bolso, escolhe um e acomoda dentro
da boca. Não o acende ainda, por ser proibido dentro da empresa, apenas
segura entre os dentes.
De costas, com as mãos nos bolsos da calça e os ombros rígidos, ele
caminha em direção à saída. Antes de entrar no elevador, porém, sua voz
volta a soar pela sala, alta e repreensiva, ameaçadora e muito parecia com a
minha, ou talvez pior. Um tom que não abre margens para contraposições.
— Vladimir, assim que essa merda for resolvida, você vai ter que me
explicar essa história direito. Do começo e sem joguinhos.
Não respondo.
Eu sei.

***

— Holla, tío. — Iago me cumprimenta no que identifico como espanhol.


Corre ao meu encontro assim que entro na mansão. Já é quase noite, a chuva
não parou um segundo sequer, insistente e perigosa com seus gritos
guturais. — Buenas noches.
— Ah — balbucio, sem muita certeza do que responder. Ele espera,
cheio de expectativa. O cabelo é uma desordem amarela e os olhos de uma
cor que navega entre o azul e o verde. — Olá, Iago. Isso é espanhol?
Após passar a tarde inteira fazendo videoconferências e remanejando
verbas de diferentes setores dentro da empresa — a ponto de Ivan me ligar no
meio da tarde para se certificar que nosso sistema não havia sido invadido, já
que ele monitora toda a parte financeira da corporação —, meu único desejo é
buscar conforto nos braços de Serena, permitir que seu sorriso gratuito e a
cabecinha engenhosa me carreguem para dentro da nossa bolha, onde não
existe espaço para o medo, ameaças ou arrependimentos.
— Sí — responde confirmando com a cabeça. — A tia Serena está me
ensinando, ela é muito boa em falar espanhol!
Acompanho Iago até o centro da sala. Mesmo havendo um quarto de
jogos, um escritório e duas salas de convivência na mansão, é no salão de
entrada que meu sobrinho mais gosta de brincar. Há alguns mapas abertos no
chão, um globo terrestre que deve pesar o dobro dele e um computador ligado
em cima da poltrona preferida do meu pai.
— Onde estão todos? — Olho através dos corredores, mas não há sinal
de nenhum movimento ou ruído.
— Minha mãe ainda está dormindo. — Ele revira os olhos com
impaciência. — De novo. A Luna e a Serena estão dormindo também. Mas a
vovó saiu de manhã e ainda não voltou.
— Certo. Vou subir com a sua tia.
— Vai dormir também? — questiona tediosamente, como se dormir
fosse um atentado à humanidade.
— É possível — admito. — Pelo menos até a hora do jantar.
Meu sobrinho suspira, balança a cabeça, reprovando a minha decisão, e
volta para a sua bagunça. Paro no primeiro degrau da escada e uma imagem
cresce na minha mente: Luna, com seus quase dez anos brincando ao redor de
um Iago já adulto. Quero ver isso acontecer, quero merecer viver algo assim.
Mesmo que signifique me tornar um homem melhor, eu faria por elas.
Depois de percorrer o restante do trajeto até o quarto, empurro a porta
devagar e sou atingido por uma visão devastadoramente linda, composta por
Luna encolhida ao lado de uma muralha de travesseiros e Serena com a mão
pousada perto do seu corpinho frágil.
As janelas estão fechadas, as cortinas entreabertas me permitem ver o
céu carregado com nuvens vermelhas e a chuva densa. Aproximo-me da
cama, tentado a deitar assim mesmo junto com elas, mas me contenho. Não
quero acordar nenhuma das duas.
Odeio ter que conversar com ela sobre o irmão, contar que Camillo
esteve aqui para roubar e machucar, que seja eu a trazer mais uma decepção à
sua vida.
Foco no rosto de Serena, já que todo o resto está envolto em um
cobertor grande e peludo. Seus cabelos pretos têm a mesma tonalidade que os
de Luna, e eu sei que, se encarar as duas mais de perto, conseguirei listar mil
outras semelhanças.
Algumas vezes, volto no tempo, naquele quarto de hotel quando eu e
Serena nos encontramos pela primeira vez, e gosto da ideia de que havia
qualquer coisa conspirando a nosso favor. Que ela seja a minha estrela
sobrevivente brilhando e enfrentando a escuridão que me acompanha.
Luna resmunga baixinho, rola para o lado e fica com a barriga para
cima, ainda dormindo.
Então eu vejo.
Embaixo da palma de Serena há um cartão, ou talvez seja uma
fotografia. Está virada, mas enxergo palavras escritas no verso.
Meu primeiro impulso é ignorar, não invadir a sua privacidade. No
entanto, como se uma conspiração perversa do destino sussurrasse nos meus
ouvidos, estreitos os olhos e leio uma palavra escondida entre seu dedo anelar
e médio.
Um nome.
Uma caligrafia familiar.
Nicolai.
Não, eu devo ter lido errado.
Luto contra meu corpo assim que estico a mão para baixo e puxo o
papel, que se desprende com facilidade dos dedos de Serena em seu sono
profundo. A dor chega devagar, junto com a náusea. Enquanto leio em
silencio, mentalizo cada movimento que os pulsos dele fizeram à medida que
escrevia.
"Esse mundo já não me cabia mais. Você é muito mais forte do que eu,
viva por mim. Me desculpe, Serena, mi doce Corazón. De Nicolai."
— Ni… colai? — sussurro, sentindo a aproximação, o som estridente
das garras afiadas, compridas, famintas, arranhando as paredes do meu
coração e deixando fendas profundas na superfície da minha alma.
Abrindo e fechando, gritando e gemendo, grunhindo e lamentando. Os
demônios estão soltos outra vez, e eu sou o líder de todos eles.
Minhas mãos, contradizendo a morte lenta que se espalha pelas minhas
veias, seguram o papel com uma firmeza assustadora, congeladas e frias
como todos os meus sentimentos.
Eu viro a fotografia, sem desejar que seja verdade.
Mas é tarde.
"Você confia nela?"
Meu mundo desaba, porque é tudo mentira.
VLADIMIR

ESTOU SENDO punido.


Era de se esperar que isso acontecesse em algum momento. Ninguém
consegue passar por uma vida de crueldades sem que, mais cedo ou mais
tarde, elas retornem para você, só que cem vezes pior — e isso é muita coisa,
considerando o quão ruim eu consigo ser.
A dor vem em ondas, às vezes fortes e devastadoras, outras lentas e
tortuosas, e meu coração tenta sobreviver à inundação. Há partes do meu
corpo desmoronando, como grandes pedaços de concreto espatifando no
chão, espalhando nervos pulsantes e sangue, e algo mais, uma coisa que não
pode ser vista ou descrita, que é etérea e, no meu caso, disforme: uma alma
estilhaçada em milhões de pequenos fragmentos caóticos.
Eu estava enganado esse tempo todo com relação aos meus limites.
Fodidamente enganado! A prova disso é o celular vibrando em cima da mesa,
bem na minha frente, enquanto o assisto pular sobre a madeira, sem coragem
para atender; apavorado com a possibilidade de que a voz no outro lado da
linha seja dela, e que todo esse ódio borbulhando no meu estômago recaia
sobre a mulher que amo.
Ou pensei amar.
Medo é a palavra. Medo de olhar nos olhos dela e enxergar a minha
verdadeira imagem refletida em suas íris peroladas e noturnas, de constatar
naquele segundo que serei cruel e machucarei Serena com palavras torpes e
acusações desumanas, porque é isso o que vai acontecer assim que nos
encontrarmos.
Ela mentiu para mim.
Eu serei cruel.
E depois disso não restará nada.
Deitado no chão de um quarto de hotel qualquer, seguro aquela
fotografia infernal na frente do rosto, desejando que alguém me acorde e que
os últimos oito anos tenham sido partes de um pesadelo.
Os dois estão rindo. O lado esquerdo do rosto de Serena parece
particularmente mais iluminado e suas pálpebras semicerradas me fazem
visualizar o momento em que a fotografia foi tirada como se estivesse
acontecendo diante dos meu olhos agora mesmo, emitindo um clarão ao
registrar a cena, a risada dela ecoando pelo Jardim de Alexandre adornado
com as cores brancas, cinzentas e marrons do inverno.
Meu pai tem um braço pousado sobre seus ombros magros e pequenos
de adolescente, os cabelos de Serena estão ainda mais compridos, perdendo-
se na borda da imagem onde a câmera não pôde alcançar. Tudo nela é
inocência, fragilidade e delicadeza. Uma Serena que nunca conheci, que não
era minha para proteger ou amar.
Luto contra o impulso de amassar o papel e o jogo para longe, como já
fiz dezenas de vezes madrugada adentro, mesmo sabendo que daqui a pouco
vou me levantar para procurar a fotografia outra vez, na esperança de que não
a encontre. Afinal, se não encontrar, então talvez tenha sido um engano, uma
ilusão, certo?
Mas basta erguer a cabeça poucos centímetros e eu os vejo.
Ironicamente, a foto está pousada de pé, de frente para mim, em um canto
próximo à porta que divide a sala do quarto, ao lado de um aparador de
madeira cujos pés têm formatos de losangos. O universo deve estar se
divertindo às minhas custas.
O celular volta a chacoalhar, tamborilando para o lado como se
estivesse vivo. Assisto o aparelho se mover cada vez mais para a ponta da
mesa, até ultrapassar a beirada e despencar no chão. Finalmente o silêncio
absoluto, penso, mas logo em seguida ele volta a se debater, agora abafado
pelo carpete macio.
Sento-me contra vontade, ainda com as roupas da noite anterior; as
mesmas que eu estava vestindo quando entrei naquele quarto e descobri que
Serena mentiu para mim, que a expectativa de construir uma família ao lado
dela me foi negada antes que eu tivesse a possibilidade de sonhar com isso,
de admitir em voz alta. Como seria possível?
— Nós sequer tivemos qualquer chance? — sussurro, a pergunta
retórica é um rasgo no mar de sonetos composto pela chuva torrencial que
assola a cidade junto com os redemoinhos de vento assobiando nas janelas.
Tudo soa como uma gargalhada. Andrei estava certo, eu sou uma piada,
e meu amor também.
Amor.
O que eu sei sobre o amor? Não muito, é verdade. Meu conhecimento
sempre esteve focado no ódio, no poder e na glória, mas de uma coisa tenho
certeza: amar não inclui suspeitar da pessoa que amamos, e desconfiar de
Serena quando tudo o que ela me ofereceu foi apoio, paciência e aceitação
cega é o extremo oposto do que deveria sentir nesse momento. Também não
envolve mentir e enganar, e isso tem sido grande parte do que concedemos
um para o outro.
Então é assim que estou sendo punido, porque não mereço amar —
nem Serena, nem ninguém.
Levanto-me e meu corpo inteiro reclama, as juntas entre os dedos doem
absurdamente e me detenho nas marcas lilases espalhadas sobre as minhas
duas mãos. Lembro vagamente de ter socado uma parede. Ou talvez tenha
sido a porta do carro, não importa. Inclino e pego o telefone, meus olhos
demoram para encontrar um foco que me permita ler o nome no meio da tela
acesa.
Quando saí da mansão, desorientado e furioso demais para permanecer
perto da minha família sem causar danos permanentes, a noite tinha acabado
de se estabelecer no céu, a lua não aparecera por causa do temporal e suas
nuvens condensadas. Assisti a manhã chegar com os olhos vidrados, o corpo
inerte, pensando. Vinte e quatro horas se passaram desde então, e é somente
isso o que tenho feito.
Pensar.
Pensar na forma como nos conhecemos, daquela maneira imprópria e
inusitada — lembro te ter questionado internamente como era possível que
ela não soubesse a minha identidade —, pensar nos nossos encontros casuais,
na enorme coincidência de ter sido contratada para trabalhar no casamento do
meu irmão. Em todas as suas escolhas de continuar ao meu lado mesmo após
os meus avisos e omissões.
Pensar no irmão dela tentando me destruir, e na conveniência por trás
de cada reviravolta em nosso relacionamento: a dívida, o ataque à sua casa, a
adoção de Luna, seu irmão ressurgindo do inferno para entrar e sair da minha
casa sem nenhum empecilho. Conveniente demais.
Uma pessoa sonhadora e otimista diria que eram alertas do destino nos
mandando ficar longe um do outro. Alguém mais cético apostaria nas
coincidências, que são também reconfortantes. Mas eu acredito em fatos e
provas.
Procuro uma justificativa que explique não ter me contado sobre essa
amizade com Nicolai, mas nada parece plausível além da sua evidente
vontade de esconder essa informação de mim, e a avalanche de traição me
afoga uma e outra vez. Sinto-me traído. Por ela, por ele. Todos esses anos
acreditando que meu pai tinha uma amante para descobrir que se tratava de
Serena.
A minha Serena.
Há pouquíssimos dias, me peguei temendo as coisas que eu seria capaz
de destruir em nome do amor, mas não imaginava que a ausência dele
pudesse ser muito pior e me transformar em alguém com tanta sede de
destruição.
Ela era virgem até nos conhecermos, isso é algo que repeti inúmeras
vezes na minha cabeça enquanto procurava por possibilidades. Não se pode
fingir uma virgindade, e essa experiência será minha para sempre. Seus
suspiros naquele dia, os gemidos de dor e prazer mesclados com nossas
respirações entrelaçadas, a forma como me ofereceu o controle como se a sua
concessão entrasse em sintonia com minhas falhas egoístas. Ela se entregou
sem ressalvas, sem medo, me fez interpretar batimentos cardíacos no sentido
figurado — cada batida só parecia possível porque Serena existia no meu
mundo.
A vibração do celular me traz de volta à realidade, e agradeço pelo bom
senso adquirido ao longo de anos que me afastou dela e meus irmãos,
evitando que me vissem assim, perdido e moribundo, porque não sou esse
homem. Eu sou o presidente, e é ele que vai enfrentar essa situação sem
medo de si mesmo. Sem remorsos e sem se abalar com a verdade vindoura.
— Roman — leio o nome, uma ondulação de alívio se estende desde a
ponta dos meus pés até o último fio de cabelo. Caminho até o quarto,
ignorando a fotografia no chão ao passar de um cômodo a outro, e me
acomodo na ponta de uma cama de casal forrada com lençóis brancos e
simples. Levo o celular ao ouvido mecanicamente. — Sim? — digo ao
atender.
— Onde você está? — pergunta, cheio de ansiedade. Há vozes ao
fundo, mas não consigo compreender sobre o tema da conversa ou identificar
a quem pertencem.
— Eu estou… — Onde eu estou? — Não tenho certeza.
— Como não sabe onde está? Você está bem? Andou bebendo,
Vladimir? Precisa de ajuda? — Ele para de falar, sua voz se torna distante,
suponho que tenha afastado a boca do telefone, conversando com o restante
da família. — Ele está bêbado em alguma sarjeta.
— Não estou bêbado, Roman — protesto, mas duvido que esteja
prestando atenção.
— Precisa se recompor, irmão — continua. — Sua mulher está nos
ameaçando em espanhol e ninguém entende espanhol nessa família além da
nossa mãe, e ela se recusa a contribuir com traduções. Somos bilionários!
Por que não aprendemos a falar espanhol, afinal de contas? Italiano e
francês não têm sido de grande ajuda. Andrei entende coreano, você sabia
disso? Que grande perda de tempo!
— Roman… — Tento interromper meu irmão antes que faça outra
menção à Serena, mas sem sucesso.
— Precisa voltar, presidente. Estamos no meio de uma crise do
caralho! — reclama, o tom ao mesmo tempo preocupado e ameaçador.
Algumas vezes me esqueço que Roman é mais do que um rapaz boêmio. Ele
odeia qualquer coisa que ameace a integridade da família e isso o transforma
em outro homem, um mais perigoso e inconsequente. — Conseguimos conter
as matérias, Ivan passou o dia todo fazendo transferências e Lara ficou
cuidando das coisas na empresa. Eu me casaria com aquela mulher hoje
mesmo se não fosse minha cunhada.
Roman emite uma exclamação, seguida de vários resmungos antes de a
linha ficar parcialmente silenciosa. Aguço os ouvidos, captando uma
discussão abafada pela distância e logo depois Ivan assume a ligação.
— Vladimir? Precisamos de você aqui. É urgente. — Ivan é mais
cuidadoso, o que faz dele um homem muitas vezes precavido demais, sempre
esperando o momento certo, o contexto ideal, as palavras apropriadas.
Mas a ideia de voltar para casa é tão atrativa quanto a de me jogar em
um rio fervente.
— Qual o prejuízo? — pergunto na tentativa de estender a conversa ao
máximo e me concentrar na empresa. Preciso me recompor, está tudo
desabando ao mesmo tempo e não vejo como qualquer coisa boa pode
emergir no meio dessa confusão.
— Preciso de uma semana, no mínimo, para colocar o setor financeiro
em ordem e calcular os déficits, mas já adianto que não vai ser bom.
Precisamos nos preparar para meses difíceis, Vladimir.
Fecho os olhos com força, o interior das minhas pálpebras se tinge de
vermelho e vários pontinhos brancos explodem como fogos de artifício,
barulhentos e ofuscantes. A sensação de derrota me acerta com a força de um
soco, transportando a minha mente em uma máquina do tempo de horrores
para uma época em que eu não tinha certeza se conseguiria nos salvar.
Ivan continua falando sobre finanças e estratégias, a tensão sinuosa em
seu timbre se destaca entre possibilidades. Fico aliviado quando ele esclarece
que a negociação — se é que podemos chamar assim — de Roman com
Palliermo pelos hotéis na Itália nos ajudarão a recuperar grande parte do
investimento em um tempo muito maior, mesmo que agora pareça apenas
mais um gasto à somar em nossas despesas.
A cada segundo, minha garganta queima, o nome de Serena engasgado
em uma bolha.
— Eu vou para a empresa — decido, meus dedos comprimem o
aparelho. — Eu preciso…
O que eu preciso?
— Já conseguiu passar por isso uma vez — diz a voz baixa do meu
irmão no outro lado da linha, seguida do barulho de uma porta sendo fechada,
e consigo imaginar que tenha se afastado dos outros. — Vai conseguir de
novo.
— Ivan — pronuncio seu nome, apesar não encontrar o que poderia ser
dito. Sempre desconfiei que Ivan talvez tivesse conhecimento sobre como a
empresa esteve à beira da falência quando Nicolai morreu, afinal, não muito
depois ele assumiu seu próprio cargo como segundo filho mais velho, justo
no setor financeiro.
É claro que ele saberia, mas essa é a primeira vez que admite.
— Deve estar se perguntando como ou o quanto eu sei. — Ele hesita, a
respiração pesada substituindo suas emoções. — Mas acho melhor
conversarmos pessoalmente. Temos problemas maiores por enquanto, não
sei por quanto tempo conseguiremos calar a imprensa.
Problemas maiores, duvido muito. Mas calar a imprensa significa que,
assim como Roman, Ivan também já está começando a juntar as peças. Eu me
pergunto quando começarão a fazer perguntas, quando seus olhos serão
manchados pela decepção.
Há muito tempo, tomei uma decisão de não me importar caso eles
chegassem a descobrir toda a verdade, de aceitar qualquer que fosse a aversão
que sentiriam, porque o objetivo era manter todos a salvo, e é isso que
preciso fazer agora.
Seja o presidente!
— Todos sabem sobre o prédio? — pergunto sem rodeios, expondo um
pouquinho de frieza e indiferença para esconder o resto que não consigo
nomear, os sentimentos sublimados que se desfazem no ar, sem que eu tenha
habilidades capazes de condensar tudo de volta para o lugar onde estiveram
trancafiados.
A resposta de Ivan demora a chegar, mas eu o sinto do outro lado,
impassível, cauteloso, buscando palavras adequadas antes de falar qualquer
coisa.
— Apenas nós quatro, ainda não tivemos coragem para contar à nossa
mãe — explica ainda mais baixo do que antes. Concordo com a cabeça,
movimentando o pescoço minimamente até perceber que é inútil; ele não
pode me ver, precisa ouvir, precisa que eu diga. — Você precisa voltar para
casa, Vladimir.
— Eu não…
— Andrei está indo embora, Vlad — diz por fim. — Volte agora.

***

De frente para a mansão, sem muita dificuldade, forço o controle para dentro
de mim outra vez. O sabor é amargo e ácido e, quando atinge o fundo do meu
estômago, se transforma em náusea e repulsa. De alguma forma, sou o
presidente outra vez, o irmão mais velho, o herdeiro não apenas de
patrimônios, mas de fardos, de mentiras e, principalmente, de péssimas
escolhas.
E agora estou a caminho de mais uma.
Atrás de mim, a chuva continua cantando com sua voz fantasmagórica,
molhando o jardim com lágrimas doces e os lamentos do vento. Pensei que,
depois de tanto tempo, nada mais conseguisse me abalar dessa forma, que
meu organismo fosse imune a sentimentos tão humanos, mas estava
enganado.
Confiro minhas roupas uma última vez, torcendo para que o banho
tenha sido suficiente para disfarçar meu estado passageiro de impotência, mas
o desespero que me levou para longe é o mesmo que me trouxe de volta. O
medo de machucar Serena dorme ao lado do medo de perder a minha família.
Esfrego os olhos, minha visão fatigada pela noite de sono perdida deixa
meus movimentos reativos lentos, como se eu assistisse ao mundo pelas
lentes de uma filmadora antiga, em preto e branco e sem qualquer som.
Abraço a maçaneta redonda com o punho fechado, mas um ruído agudo
e baixo me faz hesitar antes de abrir a porta de onde emergem as vozes
abafadas dos meus irmãos. Procuro a origem do barulho e encontro Malévola
sentada à minha frente, um vulto escuro no meio das sombras, seus dois olhos
julgadores de cores diferentes encarando-me como se enxergassem mais do
que deveriam.
Abaixo-me, apoiado sobre um joelho, e estico a mão até alcançar a
parte de trás de suas orelhas pretas. O som dos trovões e da chuva não parece
incomodá-la, mas poucas coisas incomodam Malévola de qualquer forma. Ao
receber o toque, ela começa a ronronar baixinho.
— Eu sinto muito, querida — digo, e é verdade. — Gostaria que as
coisas fossem diferentes. — Malévola empertiga a coluna, esticando o rabo
comprido e peludo para cima. — Que eu não precisasse descobrir a verdade
dessa forma. Mas o destino não anda colaborando com nós dois.
Como se compreendesse as minhas intenções, ela retesa o corpo todo e
corre para longe, desaparecendo debaixo do carro que deixei estacionado de
qualquer jeito na frente da escadaria principal.
Sem perder mais tempo, volto para a porta e a abro sem esperar uma
segunda hesitação. Minha família não presta atenção à minha chegada, Ivan e
Andrei estão submersos em uma conversa acalorada, cada um acomodado em
uma poltrona altiva sem estampas ou cores. Minha mãe anda de um lado para
o outro com um lenço na mão, perto de duas grandes malas pousadas aos pés
da escada que leva para o segundo andar.
Eles parecem devastados, e a culpa é completamente minha.
Meus olhos varrem o cômodo por conta própria, ainda acostumados ao
magnetismo que me leva a procurar Serena quando estamos no mesmo
ambiente, mas, assim que a encontro, sinto o sangue congelar nas veias.
Ela e Roman estão em um canto, ele com o braço apoiado em seus
ombros, gesticulando alguma coisa com as mãos, e ela com sua cachoeira de
cabelos escuros caindo sobre o corpo.
Assuma o controle!
A fotografia de Serena com meu pai queima no bolso interno do paletó,
um energizante cruel para que eu não esqueça as palavras de Elena sobre a
índole de Maksim e Camillo. Preferiria morrer mil mortes diferentes do que
arrancar de Serena a verdade, e eu me odeio por saber que não me
arrependerei quando o estrago estiver feito. Não vou me arrepender.
Ao invés de afastar os dois, como manda o meu coração, me aproximo
devagar, calmamente, para que minha presença seja notada. As conversas
esmorecem e morrem. Minha mãe solta um gritinho e Serena arqueja,
desvencilhando-se do meu irmão para se aproximar.
— Não parem só porque eu cheguei — digo, os olhinhos dela
arregalam com o meu tom. — Afinal de contas, Serena tem mesmo um dom
único para conquistar os homens da família.
— O que você quer dizer com isso? — A voz dela me atinge quase
fisicamente. Dói não poder me aproximar demais, dói perceber como eu amo
timbre agudo que, mesmo diante da angústia, continua firme. Dói, porque eu
amo.
Desvio o rosto antes que perceba como estou lutando para manter a
compostura agora que estamos diante um do outro, mas um segundo é
suficiente para que a imagem fique registrada na primeira camada dos meus
olhos. Seus pés, pequenos e delicados, estão descalços sobre o carpete, e o
corpo se esconde dentro de um conjunto de moletom azul e simples demais
em comparação com as minhas roupas formais. Os cabelos estão soltos,
pesados e negros como cascatas de sombras. Fecho minhas mãos em punho,
afundando as unhas na carne para afastar o impulso de tocar os fios.
A expressão em seu rosto é de mágoa. Um dia antes e eu já a teria em
meus braços, confortando seus medos e prometendo o universo com estrelas
e todas as ilhas do oceano.
— Ora, ora — diz Roman com o olhar dissimulado e astuto na minha
direção. Sua jaqueta está jogada sobre o encosto da poltrona de Andrei, e uma
gravata aberta contorna seus ombros em cima da camisa branca. — Se não é
o filho pródigo!
— Vamos para o escritório — ordeno, desviando de Serena, mas ela
segura meu braço e uma descarga de realidade emerge daquele ponto,
espalhando-se pelo meu corpo de um jeito perigoso.
Não.
O amor e o ódio se confrontam e, num impulso, seguro seu rosto com
firmeza, minhas palmas encaixadas em sua mandíbula puxando o corpo para
perto sem esforço, e ela se deixa comandar. Porque sou eu, porque
ela confia em mim; e não deveria.
Inclino-me sobre Serena e roubo um beijo; não com carinho e devoção,
mas com fome e hostilidade, ignorando minha família. Eu sinto em cada uma
de suas células que ela odeia, sobretudo quando abre a boca e eu a invado
com a língua, sem pudor ou amabilidade.
Os lábios dela têm sabor de desespero, mas quando se fundem com a
minha amargura, se transformam em decepção.
Ela sabe que a foto está comigo?
Espero que me empurre um milímetro ao menos, que hesite em receber
abertamente um pouquinho do meu destrato, que devolva a minha indignação
com ódio, assim eu me afastaria. Mas é Serena, não existe um desafio que
não esteja disposta a suportar.
— Vlad? — ofega, sem entender minha reação. — ¿Que passa? —
pergunta em espanhol; ela não consegue controlar os idiomas quando está
nervosa, e esse é um dos pequenos detalhes em sua personalidade que
apunhalam aquele ponto sensível do meu coração, onde vivem os sentimentos
fracos.
— Eu não posso lidar com você agora — respondo, atordoado, contra
sua boca rosada, igualmente atingido pela minha própria afronta.
— Nós precisamos conversar — sussurra. Espalma as mãos sobre o
meu peito com delicadeza e acabo fechando os olhos para não me deixar
levar pela onda de saudade e prazer que seu carinho desencadeia.
Assuma o controle!
— Você fica, Serena! — decido, empurrando suas mãos para baixo.
Serena arqueia as duas sobrancelhas, prende o cantinho dos lábios com
os dentes e fecha as mãos nas laterais do corpo, reprovando cada ordem. As
pontinhas de suas orelhas, visíveis embaixo dos cabelos bagunçados, estão
tingidas de vermelho — suponho que seja por causa do esforço para não
gritar comigo todas as ofensas que devem estar presas na sua língua agora.
Não entendo por que está se contendo, mas está.
— Você bateu com a cabeça, ou o quê? — Minha mãe interfere,
empurrando Serena para o lado enquanto me olha com um desprezo clássico
de superioridade. — Oh, céus! Deve ser algum tipo de maldição! Será que
todos os meus filhos ficam burros quando se apaixonam? Andrei vai embora
e você agindo como uma pedra arrogante de gelo. Não desconte na sua
mulher.
Tatiana passa a beirada do lenço bordado nas maçãs do rosto, mesmo
que não haja uma lágrima sequer em seus olhos.
— Estávamos esperando por você. — Ivan se junta a nós, solidário com
o assalto de nossa mãe. Suas íris vacilam entre mim e Serena, cheias de
dúvidas silenciosas sobre a minha reação brusca. — Mãe, temos muita coisa
para resolver, por favor, não vamos piorar a situação.
— Piorar a situação é o que eu vou fazer se não me contarem o que está
acontecendo! — protesta, jogando os cabelos prateados para trás com um
floreio teatral.
— Eu sinto muito, mãe — minto na esperança de que isso a acalme.
Olho de esguelha para Serena, que continua quieta demais. Isso me
incomoda, não saber o que está se passando dentro da sua cabeça é
assustador, pois sei como há sempre um pensamento astuto germinando lá
dentro. — Problemas com a empresa, precisamos resolver isso agora, então
fique calma.
— É bom que sintam muito mesmo. Você e seus irmãos devem sentir
muito por testarem o meu pobre e velho coração todos os dias com tanta
tolice. Espero que meus netos e netas puxem às suas belíssimas mães, ou a
mim, é claro. Quatro de vocês é mais do que o mundo pode suportar.
— Mais do que seria justo com o restante dos homens do mundo,
absolutamente! — Serena brinca, levando Roman a uma gargalhada.
Falar a primeira coisa que vem à mente é outro indício de que está
nervosa.
E outra particularidade que aprendi a amar.
Ela se afasta sem insistir sobre falar comigo, na verdade sequer me olha
mais uma vez, e, ao mesmo tempo em que desejo confrontá-la na frente de
todos para que explique sua história com meu pai, tenho vontade de
desaparecer para que isso nunca aconteça.
— Vamos logo com isso — pede Andrei rispidamente, passando direto
rumo ao escritório; Ivan vai em seguida.
Mas meus pés estão fincados no chão, imobilizados por um conflito
pungente que anseia por uma fagulha de Serena. Ela olha por cima dos
ombros para confirmar se estamos isolados o suficiente da minha mãe, que
voltou para perto das malas de Andrei — claramente na esperança de que
peguem fogo.
— Está com você, não é? — pergunta Serena, virando-se para mim, um
leve tremor percorrendo seus lábios. — Iago disse que você esteve aqui
ontem, mas que foi embora em seguida, e quando acordei não consegui
encontrar.
Então ela sabe.
Ela realmente sabe.
Mas não me dou ao trabalho de responder algo que nós dois já temos
certeza. Viro de costas, de repente muito necessitado em colocar a maior
distância possível entre nós, e sigo ao encontro dos meus irmãos.
Apesar de tudo, não consigo sentir remorso. Não consigo
sentir nada que não seja um sentimento abominável de perda, e que não se
relaciona apenas com a empresa ou a iminente partida de Andrei.
É com Serena que estão os meus pensamentos, os bons e os ruins. A
cada segundo perdido nessa confirmação pessoal sobre como sou um ser
humano horrendo — nenhuma novidade até então —, tenho a impressão de
que meus membros estão sendo arrancados devagar, quando na verdade é
apenas a ausência de Serena se espalhando à medida que luto com o meu
organismo para aguentar as lacunas deixadas por tudo o que ainda sinto por
ela.
Nossa paixão foi rápida e desesperadora. Espero que o caminho reverso
aconteça com a mesma velocidade. Por favor, por favor.
À medida que me esgueiro dentro da mansão, todos os móveis e
cômodos se destacam com lembranças vívidas e nem um pouco bem-vindas.
Alguns detalhes remetem a um Nicolai diferente, um homem que era
amado por se camuflar com mentiras: a poltrona intacta de pés escuros na
entrada e pequenos objetos distribuídos no meio da decoração — uma taça
solitária na cristaleira, um Romanée-Conti sobre o pequeno pedestal de ferro
em cima do aparador de vidro, esperando um grande evento para ser
brindado, a tapeçaria com a flor e os leões no escritório…
Porém, mais sufocantes do que as memórias de Nicolai, são as que
envolvem Serena e foram gravadas com faca no meu coração, como o dia que
se aninhou em meus braços no meio do salão de entrada e me golpeou com a
absoluta certeza de que não existiria encaixe mais perfeito na história da
humanidade; nossas discussões em todos os cantos que sempre resultaram em
nós dois suados contra a boca um do outro; seu sorriso inocente e, ao mesmo
tempo, desavergonhado em todas as nossas manhãs.
Assim que fecho a porta do escritório, Roman se coloca
estrategicamente perto de Ivan, que já segura uma garrafa. Andrei permanece
impassível, sentado em uma cadeira com estampas de flores e as mãos
pousadas sobre os joelhos.
— Você precisava falar daquele jeito com ela? — Roman provoca.
— Como eu falo com a Serena não é exatamente um problema seu —
respondo, incapaz de controlar todos os meus sentimentos de uma só vez.
Ignoro sua risadinha e paro diante de Andrei. — Então você vai embora —
digo, surpreendendo-me com o quanto minha voz parece rouca e fatigada. —
Está nos deixando?
— Não vou abandonar a empresa, se essa é a sua preocupação. —
Andrei levanta e coloca as duas mãos na cintura, por cima do blazer branco.
— Mas estou curioso. Achou que poderia esconder isso de nós para sempre?
Trinco os dentes e espero. Preciso de informações. O que sabem? O
quanto sabem?
— Entramos em contato com algumas emissoras e agências
jornalísticas para descobrir aquelas que haviam negociado com Efrem
Kokorin — Ivan explica, antecipando minhas dúvidas. Ele serve um copo
com vodca, e estende para mim. — Tivemos acesso à notícia a respeito do
desabamento.
Meus dedos se fecham ao redor do copo. Engulo a vontade de me
justificar, de fazer com que entendam, de explicar os meus motivos. Eu me
sinto exposto, dissecado, e manter a expressão indiferente se transforma em
um martírio.
— Como você pôde esconder isso de nós, Vladimir? — Andrei abre os
braços, a mandíbula tensionada faz com que suas palavras se assemelhem a
grunhidos. — Somos seus irmãos!
Incapaz de encarar qualquer um deles, viro o conteúdo do copo e me
concentro na acidez deslizando pela minha garganta, certo de que após essa
conversa eu precisarei de muito mais do que isso.
— Eu fiz o que precisava ser feito! — declaro firmemente.
Eles podem me odiar, não importa, não importa.
— Você cometeu um crime! — Andrei grita, evidenciando as sombras
escuras embaixo de seus olhos vermelhos e reluzentes. Ivan chega mais perto,
tentando acalmar nosso irmão. — Como acha que estou me sentindo agora,
presidente? Esconder algo assim por tanto tempo é… horrível. Acredita
mesmo que vamos conseguir conter esse escândalo? Você pode ser preso!
— Maksim entregou cópias das plantas para todos eles — Roman
explica. — Eu sinto muito, Vlad, não vai dar para silenciar a imprensa para
sempre.
Plantas, projetos, desabamento. Eles não deveriam saber nada sobre
isso. Minha mente parece não conseguir processar essa informação, como se
fosse um sonho, como se alguém tivesse chacoalhado o mundo e as peças não
encaixassem mais.
Tudo o que eu fiz foi em vão?
Não. Tudo bem, assuma o controle.
— Por que eles têm essas plantas? — Andrei questiona, mas Roman se
prontifica a responder novamente, livrando-me do fardo de explicar.
— Camillo pegou.
— Camillo? — repete Andrei, sem ideia de que esse é apenas o começo
da história. — Camillo Fajardo? Como isso é possível?
Roman olha de esguelha para mim antes de começar a explicar o que
contei antes, sobre os projetos que estavam arquivados no almoxarifado,
sobre Serena ter recebido Camillo em nossa casa, e também todo o
envolvimento de Maksim nos planos amadores de Efrem.
— Por que Serena faria uma coisa dessas? — reflete Andrei, como se
estivesse lendo os meus pensamentos. No canto, Ivan solta uma sequência de
xingamentos.
— É o irmão dela. — Roman se joga na cadeira presidencial, seu copo
está cheio. — Você se negaria a me receber na sua casa?
— Se você fosse um criminoso, sim — diz Andrei, agora olhando para
mim.
Assuma o controle.
— É por isso que está indo embora? — Vou até a mesa, pego a garrafa
aberta e me sirvo até o líquido alcançar a borda. Sento-me na ponta da mesa,
saboreando o líquido. Forço um sorriso antes de continuar. — Não consegue
viver com um criminoso?
Sua expressão continua inalterada. Ele não concorda, mas também não
nega.
— Você não pode assumir isso deliberadamente, Vladimir! — Ivan
protesta. — Precisa explicar o que aconteceu. Como nunca ouvimos nada
sobre esse projeto?
Explicar?
— É bem simples, na verdade. Nicolai Volkiov era um cretino. —
Termino de beber a bato a copo na madeira da mesa. Dizer as palavras é
menos prazeroso do que idealizei, principalmente por causa da fotografia
escondida dentro da minha roupa. — O prédio desabou, pessoas morreram e
ele encobriu o caso. Quando eu assumi o cargo, precisei fazer uma escolha:
continuar com a farsa esquematizada por ele, ou levar o caso à justiça. Vocês
já sabem o que escolhi e aqui estamos.
— Eu acho — diz Roman, colocando as pernas sobre a mesa. Em
algum momento ele desistiu do copo e agora empunha a garrafa, balançando-
a de um lado para o outro — que não podem mais me acusar de ser o irmão
problemático. Você e Ivan podem dar as mãos. Eu sou um santo!
— Não consegue ficar sério um minuto? — Ivan reclama, mas
Roman não responde.
— Vocês não entendem… — suspiro, nada acostumado a dar
satisfações, ainda mais de um assunto que sempre fiz de tudo para evitar.
— Não, você não entende! — Andrei para na minha frente, sua
respiração é profunda e irregular. Ele segura meu rosto com força. — Acha
que é por isso que estou indo embora? Você acha que pode suportar tudo,
Vladimir, que tem o poder de controlar as pessoas e de resolver problemas,
independente de quão graves sejam. Nós somos a sua família, eu sou o seu
advogado, mas não posso mais apoiar as suas escolhas e continuar vivendo
com você como se isso fosse normal.
Seria tão fácil desabar, mas as palavras intolerantes vêm, tão naturais
como uma respiração.
— Sim, você está certo — digo, torcendo para acabar depressa. — As
escolhas que faço, na maioria das vezes, são cruéis e isso faz de mim uma
pessoa terrível, mas não são escolhas inconscientes. Eu conheço as
consequências e não me importo em lidar com os danos. Se essa é uma
tentativa de me fazer enxergar os meus erros, desista, Andrei. Não estou aqui
pedindo ajuda, eu aguento lidar com o seu ódio.
— Ah, claro! — grunhe perto do meu rosto. — Isso faria você se sentir
melhor, não é mesmo? Receber todo o ódio que você acha que merece?
A porta abre bruscamente e meu irmão recua pelo menos três passos.
Olhamos na direção da entrada, e Serena nos analisa de volta com Luna em
seus braços e um celular preso na mão.
Assim como eu, a presença de Luna também faz Andrei relaxar. Ela
não merece fazer parte de um ambiente repulsivo, nem deveria estar aqui, na
verdade. Nenhuma das duas.
— Uau, homens brigando — diz Serena com uma falsa alegria. — Se é
para fazerem coisas másculas e desnecessárias, poderiam tirar as roupas,
assim seria mais interessante. E sexy.
— Sinto muito, cunhada, meus irmãos são verdadeiros trogloditas
descontrolados que querem resolver as coisas na base da força ao invés de
conversarem como homens adultos. — Roman ergue a garrafa, simulando um
brinde à sua declaração sem sentido.
— Disse o homem com um hematoma no rosto — Ivan rebate.
— Você já tentou matar seu sogro, Ivan, não tem moral nenhuma para
falar de mim.
Ivan abre a boca para rebater, mas desiste com um revirar de olhos.
— O que você quer? — pergunto para Serena.
Ela finge não ouvir.
— Desculpem interromper, sua mãe pediu para eu trazer o seu celular,
Ivan. Lara quer falar com você.
— Ela ainda está na empresa? — Andrei se vira para Ivan, mas ele já
está saindo do escritório com o aparelho no ouvido.
Serena o observa com as sobrancelhas franzidas.
— Ela não devia estar trabalhando tanto nessas condições — resmunga
sozinha, sem se incomodar com as mãos de Luna embaraças em seus cabelos.
— Condições? Que condições, bebê? — pergunta Roman, o humor de
antes dissipado em preocupação.
— Oi? — Serena desconversa, puxando Luna junto ao corpo, mas é
tarde para disfarçar e ela já tem nossa total atenção.
— Você disse que Lara não devia estar trabalhando nessas condições, o
que significa? — insiste Andrei com mais gentileza.
— Não tenho ideia do que você está falando. — Ela nega com a cabeça
exageradamente.
— Serena, se é algo grave você precisa nos contar — digo. Ela fecha os
olhos e prende os lábios com os dentes.
— Eu sabia que era uma péssima ideia! — reclama para Luna, como se
ela fosse sua consciência. — Não conte segredos para mim quando crescer,
querida. — Roman e Andrei se entreolham, sorrindo. Ela conseguiu acabar
com o clima adverso com meia dúzia de palavras. — Lara está grávida —
sussurra olhando para trás —, seu irmão ainda não sabe. Por favor, vocês não
podem contar, ela quer fazer uma surpresa, mas com todos os problemas com
a empresa…
Roman joga a cabeça para trás, gargalhando.
— Claro que não sabe. Se ela não contar, ele só vai perceber quando o
bebê estiver nascendo! — diz, e Andrei, agora sorrindo amplamente,
concorda.
Os dois começam a conversar sobre Lara e suas alterações de humor,
mas Serena, parada no meio do cômodo, abraçando a minha — nossa — filha
é uma visão perturbadora em níveis catastróficos. O gosto do beijo dela ainda
reina na minha boca, e me obrigo a pensar em Nicolai para não perder o
controle e puxá-la para mim novamente.
A palavra grávida sendo proferida na voz de Serena ecoa na minha
cabeça e, mesmo estando profundamente feliz por meu irmão e Lara, lá no
fundo sinto um pouco de inveja. Não por desejar viver a mesma experiência,
mas pela descomplicação ter sido possível em suas vidas.
— Estou indo até a empresa — Ivan anuncia, surgindo no batente da
porta. Seu terno foi substituído por um casaco comprido e quente. — Lara
não está passando muito bem. — Ele coça a barba, preocupado. — Eu sei que
é um péssimo momento, mas preciso que você diga para Lara não trabalhar
por alguns dias, Vlad. Eu poderia pedir, mas ela nunca vai obedecer a não ser
que seja uma ordem do chefe. E não conte que eu pedi isso de maneira
nenhuma.
Concordo em silêncio, torcendo para que Roman mantenha a boca
fechada, e tão logo ele vai embora.
— Nossa Larinha, grávida! — murmura Roman, parecendo um pai bem
idoso. — Puta merda! Ela deveria estar andando? Nós deveríamos interná-la?
Contratar médicos para morar em casa?
— Sim! — Serena apoia com um alívio cômico enquanto Andrei
discorda veemente.
— Você — Roman acusa com o indicador apontado para Serena. —
Nem pense em seguir esse caminho, está ouvindo? Duas de vocês grávidas é
demais para o meu coração.
Andrei, estranhamente quieto, vai se servir com um pouco da garrafa
quase vazia abandonada por Roman, e eu continuo no transe causado por
Serena.
Olhar para ela faz com que a minha mente e meu coração entrem em
curto circuito; não sei o que enxergar. Eu, que sempre soube como resolver
os problemas das formas mais pragmáticas e eficientes possíveis, me vejo
diante de um enigma sem solução.
Não, não. A quem estou tentando enganar? Eu sei como resolver,
apenas gostaria que não fosse preciso.
Sem me intrometer no assunto ou demonstrar atenção sobre qualquer
outra coisa, vou até as duas e pego Luna, sentindo a textura das mãos
lisinhas. Ela não protesta e nem reclama, continua sendo uma menininha
silenciosa apesar de as feições apáticas terem abandonado seu rosto redondo.
Alguém achou que seria uma boa ideia vesti-la com um macacão de
coelhinho, e duas orelhas compridas pendem nas laterais da touca.
— Ei, pequeno coelho branco, onde está o seu relógio? — brinco,
muito embora ela não compreenda a referência à Carroll.
Serena, visivelmente tensa, cede a um suspiro longo e me olha — me
olha de verdade, com cautela e um pouco de coragem. Não estamos bem, e
ela sabe o principal motivo, além de me conhecer o bastante para lembrar de
se precaver.
— Ela puxou ao pai — diz, tentando agir naturalmente. É estranho,
distante. — O novo pai, e não o velho. Ele também não é muito chegado a
relógios, eu acho, porque não voltou para casa e só apareceu um dia depois.
Luna vira os olhinhos para Serena, movida pelo som da sua voz.
Mencionar Camillo reverte o fluxo de ressentimentos, que tornam a me
fustigar com desconfianças e o sentimento de traição. Quando dou por mim,
as palavras já escaparam.
— Ela não tem um velho pai. Seu irmão é um delinquente, nunca se
importou com ela e nunca foi o pai dela! Ele vai estar atrás das grades em
breve, exatamente como a velha mãe.
A luz amarelada do escritório não impede que eu note o rubor
desaparecendo das suas bochechas. A palidez destaca lábios e cílios,
transformando Serena em uma pintura de traços pungentes.
— Vocês ainda não contaram? — pergunta para os meus irmãos.
— Contaram o quê? — questiono, virando-me para eles.
Andrei e Roman se encaram, ambos com receio de contar o que está
acontecendo. Meu irmão mais novo quase nunca deixa transparecer suas
fraquezas, dissimular as próprias emoções é uma habilidade que desenvolveu
por causa da profissão, mas agora ele parece livre de máscaras e o resultado
não é nada bonito.
Meu irmão está mais magro, mesmo que seja tão alto quanto qualquer
um de nós quatro, e o sorriso outrora contagiante já não emite o mesmo
brilho.
Segurar Luna ao mesmo tempo em que presto atenção nos meus irmãos
e batalho contra meu corpo para continuar de costas para Serena parecem
tarefas impossíveis de serem realizadas ao mesmo tempo. Posso sentir o olhar
dela penetrando a minha coluna.
Em uma outra realidade, na qual Vladimir Volkiov jamais tenha se
tornado presidente de qualquer empresa ou aprendido a colocar o orgulho
acima do medo e a desconfiança acima da capacidade de amar, talvez as
coisas fossem diferentes. Talvez a minha mente não estivesse fazendo
cálculos sobre o que dizer ou como me comportar para que ela apenas
confesse ou desista da ideia de continuar ao meu lado.
— Você queria saber por que estou indo embora? — diz Andrei. —
Bem, desde quando me formei, a empresa tem sido tudo na minha vida, na
minha carreira, e você o meu espelho. Eu queria ser mais como você,
entende? Inteligente e honrado. — As frases no passado não me passam
despercebidas. Andrei gira o copo em cima da mesa, fazendo a bebida cair
pelas bordas. — Mas percebi que não quero mais seguir os seus
passos. Você não deveria seguir esses passos, Vladimir, e não vou assistir
enquanto faz isso sozinho.
— Ninguém deveria ser como eu — concordo, trocando o peso do
corpo de uma perna para a outra enquanto embalo Luna, uma prática que vem
se tornando natural sempre que a tenho comigo.
Ela segura minha orelha com uma mão rechonchuda, e usa a outrapara
acariciar meu rosto com dedos babados.
Andrei sorri para a cena, não mais que um mostrar de dentes sem
significado, vazio de alegria.
— Seu plano foi um sucesso, Vladimir — declara. — Annia prestou
depoimento essa manhã; a seu favor, a propósito. — Ele pausa, pensativo,
depois inspira audivelmente, tomando fôlego para concluir, ao passo que eu
quase não tenho certeza de estar respirando. — Ela está morta, foi assassina
na prisão.
— O quê? — murmuro, automaticamente olhando para Luna.
Annia está morta.
Morta.
Quais foram as minhas palavras quando coloquei ela lá dentro?
Ah… Não me importo. Eu disse que não me importava!
— Eu fiz a denúncia — Andrei lembra, rouquenho, fechando sua
explicação definitivamente.
É demais para ele.
Lembro disso, Andrei sugeriu que não fosse eu para me poupar. Não
deveria ter permitido. Eu suporto, sempre suportei. Eu tinha que ter protegido
meu irmão.
Eu disse mesmo que não me importava?
Parece muito errado receber essa notícia com Luna tão perto, mesmo
que ela não entenda. É errado, tenho certeza de que não existe nada certo
nessa situação toda. A pequena balbucia alguns resmungos, piscando seus
olhões escuros de cílios compridos.
Continua piorando, o caos continua aumentando. Por que continua
piorando?
— Vlad — Serena me chama, mas o som vem de longe, embora ela
esteja na minha frente. Ela continua aqui, por que continua aqui? — Eu
seguro Luna, está bem? — oferece, estendendo as mãos.
Luna estica os bracinhos de volta, inclinando-se na direção de Serena, e
eu a entrego mecanicamente, sendo golpeado pela solidão imediata.
Assuma o controle.
— Saia — peço.
— Não precisa se culpar — sussurra, tentando me tocar.
Eu desvio, inseguro sobre o que sentir, o que dizer, como se de repente
estivesse muito mais consciente da minha capacidade de arruinar as pessoas.
— Minha empresa está em colapso — reflito, o sarcasmo e indiferença
carregam as palavras com mais ênfase do que eu gostaria. — Meu irmão está
indo embora por minha causa. Annia está morta, e a qualquer momento meu
nome pode ser destruído por um erro cometido pelo meu pai. E
você… você… — suspiro — por quê?
— Não faz isso — pede, contraindo os ombros.
— Saia, por favor. Saia, Serena! — ordeno, várias escalas mais altas.
— Não vou ter essa conversa com a minha filha nos seus braços!
Serena pondera, indignada com o meu volume de voz.
— Realmente — diz igualmente alto. — Não seria adequado se
a nossa filha assistisse o quanto o pai dela pode ser um babaca!
Depois, vira de costas e vai embora, deixando-me sozinho para digerir
seu arroubo.
Nossa, ela disse.
— Babaca? — Roman repete. — Como ela consegue xingar e ser fofa
ao mesmo tempo?
Fecho os olhos e me jogo na primeira cadeira que encontro, escondendo
o rosto com o antebraço e fingindo que não escutei o elogio velado do meu
irmão. Já tenho muito para processar em um espaço de tempo curto demais.
No escuro, com as pálpebras fechadas e o silêncio ao redor, escuto que
a chuva continua caindo do lado de fora da mansão. Não há brado dos trovões
retumbando no céu, nem o grito do vento. Eles estão dentro de mim agora,
sufocando, matando-me, tirando o controle das minhas mãos.
Eu gostaria de chorar, mas não lembro como fazer isso.
— Annia estava protegida, como isso foi acontecer? — pergunto,
escondido em um transe vazio dentro do breu.
— Pensei que não se importasse — diz Roman, que, diferente dos
outros dois, não pesa as palavras.
Então eu disse mesmo que não me importava.
— Acho que, só porque não me arrependo, não significa que não me
importe — concluo. — Não sei o que é pior, não me arrepender ou não me
importar.
Eles não respondem.
— Ainda estão investigando — Andrei volta a falar. — Mas aconteceu
entre a troca de turnos.
— O que você quer fazer? — Roman questiona, impelindo-me a abrir
os olhos e encarar o teto branco antes de procurar por eles.
Meus irmãos mais novos estão sentados também. Andrei se livrou da
gravata e Roman acabou com a bebida sem sofrer praticamente nenhuma
alteração alcoólica — é preciso bem mais do que isso para deixá-lo
embriagado.
O que eu quero?
Serena é a primeira resposta que minha mente viciada entrega.
Eu a quero e não quero, é confuso escolher dentre tantos sentimentos
antagônicos qual o certo para relacionar a Serena nesse momento. Continuo
desejando seu calor, os sorrisos e olhares furtivos, mas dentro de mim está
frio. O riso se calou e meu coração tenta sobreviver cegamente numa espécie
de inverno rigoroso e mudo.
Mas, além dela, as coisas que desejo são impossíveis de dizer em voz
alta. Eu quero que essa sensação acabe. Que Maksim pague pelos seus
crimes. Que Camillo desapareça do mundo. Que Efrem Kokorin seja ainda
mais humilhado e escorraçado.
Eu queria que Serena nunca tivesse conhecido meu pai, que essa foto
não existisse. Que o amor fosse suficiente para me fazer esquecer.
Mas nem sempre o amor cura, ele nem sempre basta. Principalmente
para alguém que não o merece.
— Eu quero entender — explico, juntando as peças no meu mapa
mental composto por Maksim, Annia, Camillo, Serena, Nicolai e Efrem. —
Por que esperaram tanto tempo para matá-la?
— Não devem ter desconfiado que ela fosse capaz de trair Maksim —
sugere Andrei profissionalmente. — Não foi uma queima de arquivo. De
alguma forma, devem ter descoberto que ela estava nos ajudando, só não sei
como…
Por não saberem de tudo, eles têm o direito de não suspeitar. Mas eu só
precisava dessa confirmação para ter certeza de que hoje estou perdendo mais
do que o respeito da minha família ou o orgulho da empresa.
Eu estou perdendo Serena.
— Camillo esteve aqui no mesmo dia em que Annia aceitou depor —
digo, ficando de pé. — Serena contou sobre a adoção de Luna.
— Vladimir, vamos com calma — Andrei orienta, acompanhando meu
movimento e se levantando também. Coloca as duas mãos para frente, como
se tentasse acalmar um animal selvagem. — Não sabemos se isso é verdade.
— Então está na hora de descobrir.
Foda-se o controle.
Saio para o corredor, sob os protestos de Roman me pedindo para ter
paciência. O trajeto até o hall é um borrão sem cores e só paro quando
encontro Serena sentada naquela maldita poltrona que meu pai tanto amava.
Minha mãe está com Luna, cantarolando uma canção familiar.
— Mãe, leve Luna para cima — peço. — Preciso falar com a Serena.
— O que você vai fazer? — resiste, desconfiada. — Não acho que seja
uma boa ideia, está com cara de quem vai fazer uma idiotice das grandes.
— Está tudo bem, Tatiana. É melhor levar Luna para o quarto. —
Serena faz um sinal de positivo com o polegar. — De idiotices grandes eu
entendo bem.
Andrei e Roman nos alcançam e minha mãe relaxa com a presença dos
dois. Ela sobe as escadas, levando minha filha depois de lançar um olhar
ameaçador para nós quatro.
Finalmente sozinhos, me dou conta de que não tenho para onde fugir ou
como adiar o inevitável. Que poupar Serena nunca foi uma opção. Eu não sei
respirar se o ar não estiver contaminado com um pouco de tormento.
— O que você disse ao seu irmão sobre Annia e a adoção de Luna?
— pergunto sem preâmbulos.
Serena analisa meu rosto clinicamente. Constato, com bastante tristeza,
que ela consegue ficar linda e ameaçadora mesmo vestida como se fosse um
bichinho de pelúcia, sem sapatos.
Isso não me ajuda muito.
— Eu juro que estou tentando entender, mas você está sendo tão
ridículo que meu cérebro fica mandando eu bater em você e não consigo
raciocinar direito.
Já sabia que não seria uma discussão fácil, mas o rancor está rastejando
pelas minhas veias, mordiscando o caminho de artérias na direção do meu
coração.
Dói.
Arde.
E quero colocar isso para fora.
— Por que continua mentindo, Serena? O que mais está escondendo?
— Transtornado, retiro a fotografia do bolso e estendo para que ela olhe, para
que veja a si mesma abraçada com o homem que destruiu a minha vida. —
Não vai se defender disso?
Como esperado, isso a atinge.
Serena abraça o próprio corpo, sem desviar a atenção da imagem
pendurada em meus dedos. A tristeza dela termina de arruinar os poucos
escombros que ainda sustentavam o meu bom senso.
— Me defender? — debocha. A mágoa na pergunta abre uma cova no
meio do meu estômago. — Não tenho do que me defender, não sabia que
estava sendo acusada de alguma coisa, para começo de conversa.
Eu serei cruel.
— Então você confessa que mentiu? Que conhecia meu pai e mesmo
assim não disse nada?
— Mentir é uma palavra um pouco forte. Acho que "preservar a
verdade" é um termo mais adequado. — Ela estende a palma da mão, os
dedos trêmulos parecem pequenos e frágeis perto da determinação que usa
para falar comigo. — Isso me pertence. Devolva.
Sorrio, treinado a demonstrar o contrário do que estou sentindo.
— Não vai acontecer — aviso, embevecido com o humor peçonhento
cujo veneno se já me tornei imune.
Eu gostaria de sentir mais.
De me importar mais.
De me arrepender mais.
Ao invés disso, continuo destruindo, e destruindo, e destruindo.
Exaustivo.
— Por essa eu não esperava. — Roman inclina ao meu lado para ver a
foto, depois solta um assobio. Talvez todo aquele álcool tenha surtido um
pequeno efeito, afinal. — Alguém pode desenhar? Porque eu acho que nem
explicando eu vou entender.
Sentando-se no sofá, mais perto de Serena do que de mim, Roman
deixa implícito quem ele vai apoiar. Andrei assiste à discussão de longe, mas
seus olhos de águia não falham; ele vai intervir se houver necessidade.
Espero que não haja.
— Seu irmão entrou na nossa casa e roubou uma coisa muito, muito
importante — informo para ver sua reação.
— Oh, mierda — xinga. — E você acha que eu estou envolvida? Em
que universo isso faz qualquer droga de sentido?
Coloco minhas pernas em movimento, obrigando-me a não olhar
Serena por muito tempo — tão linda, tão desejável e sendo machucada pelas
minhas palavras —, e dou a volta na sala. Ela tem esse temperamento
determinado e desafiador contra o qual nunca consegui lutar.
— Quando nos conhecemos, eu não sabia o seu nome e você se recusou
a dizer por semanas. Além de ter entrado no meu quarto de hotel sem usar
nada que comprovasse a sua identidade, um crachá, nada. Depois continuou
aparecendo, se enfiando na frente do meu carro, no casamento do meu irmão.
Até Luna! — percebo, tardiamente. — Se não fosse por você, eu não teria me
apaixonado por ela, não teria entrado com o pedido de adoção. Todas as
evidências estão contra você, concorda? E agora, coincidentemente, seu
irmão entra na minha casa e rouba a única coisa capaz de arruinar os nossos
negócios.
Coloco as mãos nas costas e espero, voltando para a posição original,
de frente para Serena, enquanto ela abre e fecha a boca algumas vezes.
— Colocando dessa forma, devo admitir que entendo como chegou a
essa conclusão, mas…
— Elena disse — continuo, impedindo que se defenda com mais
justificativas falsas — que a inimizade do seu irmão com a minha família é
antiga, muito antiga. — Ergo a fotografia outra vez, meu coração protesta,
explodindo dentro do meu peito como se quisesse sair do corpo. — E
podemos ver que sua relação com meu pai também.
— Então é isso? — Diminuindo a distância entre nós, Serena se
posiciona perigosamente perto. — Parece que você já tirou todas as
conclusões sozinho, e que a palavra da sua quase ex-noiva, que tentou
derrubar a sua empresa com um plano maligno, vale mais do que a minha.
Coerência mandou lembranças, Lord Vlad!
— Você não quer jogar esse jogo de forças contra mim, Serena. Sabe
que vou vencer. — Toco seu rosto, ciente de que nada a faria se afastar, que
seu orgulho é quase tão elevado quanto o meu. Mas ela vai ceder. Ela vai. —
Além do mais — puxo sua nuca, conduzindo a minha boca rumo ao lóbulo da
orelha escondida no meio dos cabelos sedosos, e sussurro para que apenas ela
ouça: — pelo menos Elena não tinha um caso com o meu pai.
Serena arqueja, espalma as mãos contra o meu peito e se desvencilha,
empurrando-me.
Agora não temos mais volta.
O brilho em seus olhos começa a apagar. Procuro meu reflexo dentro
deles para confirmar se a imagem é tão repulsiva quanto imaginei em meus
sonhos insanos. Mas não encontro nada mais do que vazio.
Vazio e silêncio.
— Como pode dizer isso sabendo que você foi o único homem que eu
já tive? — vocifera com o indicador apontado para mim. — Está me
afastando. Não faz isso, não me afaste, seu idiota!
Sim, fique longe.
Descarto o argumento, pois já tentei usar isso para me convencer antes,
e não adiantou.
— Não muda o fato de que ele pode ter desejado você — acrescento de
forma natural. Cada palavra é uma fenda maior, separando-nos por um
imenso abismo. — Ou ter se aproveitando de outras maneiras.
— Ouça o que está dizendo! — Serena insiste, desesperada. Roman se
levanta devagar, mas eu o alerto para não se intrometer. — Eu era uma
adolescente, Vladimir.
— Uma podridão a mais para eu acrescentar na lista de crimes de
Nicolai Volkiov.
A mão dela se abre no alto. Eu poderia desviar se quisesse, mas espero
o golpe e aproveito a dor quando atinge o meu rosto com fervor. Eu gosto da
sensação de ser ferido por ela, que seja o meu pequeno caos.
Qual o meu problema?
— Nicolai foi a melhor pessoa que passou pela minha vida! E eu sinto
muito que não tenha conhecido seu pai de verdade, mas você deveria
agradecer profundamente se algum dia conseguir se tornar metade do homem
que ele foi.
— Não o defenda! — ordeno com um meio grunhido que reverbera por
todos os filamentos dos meus músculos.
— Não me diga o que fazer! — grita, jogando uma almofada contra
mim, mas acaba acertando uma Malévola molhada, que entrou
misteriosamente por um de seus milhões de acessos felinos. Ela mia alto e
corre para o meio das minhas pernas. — Traidora!
— Não brigue com o gato, Serena.
— Não defenda a minha gata, é uma traidora, e você é um ladrão de
gatas usando o papai como desculpa porque não consegue lidar com o
fracasso!
— Ladrão de gatas? Ela não sabe brigar — Roman observa. — Onde
estão todos aqueles palavrões em espanhol?
— Vocês dois precisam parar com isso! — Andrei entra na minha
frente, forçando-me a ficar mais longe.
Ele tenta me dizer muitas coisas com o olhar. Se acalme. Pare com
isso. Que merda está acontecendo? Mas eu também não entendo, e, agora
que já me alimentei da destruição, meu organismo exige por mais migalhas.
— Vocês querem saber a verdade? — pergunto para Andrei, a
adrenalina impedindo-me de parar. As palavras saem vomitadas para fora da
minha garganta, soltas por causa da jaula que os demônios de Nicolai
deixaram aberta. — Toda a verdade? Quer um motivo a mais para ir embora,
Andrei? — Gargalho. O que eles vão achar disso? — Nicolai tinha uma vida
dupla. A empresa era só uma fachada para lavar o dinheiro que conquistava
com casas de jogos clandestinas.
— Alguém cala a boca dele, pelo amor de Deus — Roman pede,
gritando também. Suas mãos estão nos ombros de Serena, que me encara com
olhos arregalados… de medo? De surpresa? Decepção?
Provavelmente um pouco de tudo.
— Sim, é isso mesmo — prossigo. Andrei me solta. — Ele morreu sem
se importar com as pessoas que viriam atrás da própria família por causa das
dívidas e dos inimigos que ele deixou de herança. Eu lidei com isso, Andrei!
Salvei a empresa, protegi vocês! Eu! Fiz escolhas ruins, e não me arrependo,
porque enquanto eu estava lutando para apagar a sujeira do nosso pai com
uma mira na cabeça, vocês estavam seguros! E faria tudo de novo sem pensar
duas vezes.
— Tem como isso ficar pior? — Roman tira a gravata dos ombros e
joga no chão, esfregando as têmporas com os dedos indicadores.
Tem.
— Ele tinha uma amante, ou qualquer coisa do tipo. — Aponto para
Serena.
— Nós não tínhamos um caso! — contesta com o rubor se
concentrando em suas bochechas. — Nicolai era meu amigo. E eu o amava
muito, sim, mas nós éramos amigos!
— Naquela noite, quando eu contei sobre o meu pai, você sabia? — Ela
confirma. — Por que não disse nada, então?
— Eu tive medo.
— Medo de mim? — ironizo. A sensação de ser temido não me enche
de satisfação como em outras ocasiões.
— Não, não tenho medo de você. Mesmo agora, enquanto age como
um cretino egoísta, continuo não tendo medo. — Serena agarra outra
almofada e joga. — Mas não posso amar por nós dois, Vladimir! — grita. —
Não posso confiar por nós dois! Ninguém vai perdoar você se não perdoar a
si mesmo primeiro. Seu pai é a parte boa da minha vida, e eu tive medo que
isso fosse contaminado pelo seu ódio. Nicolai Volkiov me salvou, eu devo a
minha vida a ele!
Cada palavra apunhala meu coração, abrindo buracos por onde escorre
o pouco de humanidade que Serena havia me ensinado a ter. Nicolai era um
maldito monstro. Por que infernos ela tem que amar os monstros?
Eu me sinto cada vez mais vazio, e é na solidão que a gente encontra
companhia na perversidade.
— Eu já entendi essa parte, a carta de despedida dele deixou isso bem
claro, Corazón — cito o apelido dado por ele. — Era divertido quando eu
chamava você assim?
Corazón.
— Pare com isso — pede, baixo e melancólico, e, se antes eu achava
que estava doendo, agora é um milhão de vezes pior. — Eu sei o que está
fazendo, essa coisa de afastar as pessoas. Então vou ajudar você, Vladimir.
Não vou mais lutar, nem insistir. Estou desistindo por nós dois, mas quero
que diga com todas as letras, vamos fazer isso direto: você quer que eu vá
embora?
Não.
Não.
Não.
Por Deus, não.
— Sim — afirmo.
A primeira lágrima cai.
Brilhante como uma gota de cristal.
Solitária como a última estrela no céu.
Devastadora como o apocalipse.
É a primeira vez que vejo Serena chorar.
— Ah, droga. — Ela tropeça para trás e Roman corre para amparar,
mas Serena não parece se dar conta do que está fazendo. — Não, não. Isso
não pode estar acontecendo. — Ela encosta a ponta do indicador na
bochecha, capturando a trilha úmida deixada pela lágrima. Encara as próprias
mãos trêmulas com horror.
As lágrimas me assustam, dissera uma vez.
— Você disse que me destruiria, Vladimir. Eu deveria ter escutado.
Parabéns por tentar o seu melhor e conseguir aquilo que sempre quis: ser
odiado por todos.
Isso, sim. Me odeie também.
— Você me odeia? — digo, movido pelo desespero. Todo o ódio,
mentiras, medos, fantasmas e demônios escapando e uma só vez. — Ainda
tenho dois irmãos disponíveis.
— Eu posso socar ele? Me deixem socar ele, por favor!
Roman desvia de Serena, mas ela é mais rápida e o agarra pelos
ombros, ficando na ponta dos pés.
— Você tem razão — diz maldosamente, lembrando-me que foi isso o
que me fez apaixonar por ela. A coragem. — Mas eu também sei brincar de
ser cruel, Lord Vlad.
A brasa em suas órbitas inflama, incendiando o caminho que conduz
nossos olhares um para o outro.
Ela encaixa o corpo no de Roman, próximo demais, íntimo demais,
rodeando o pescoço dele com os braços antes de entregar os lábios para o
meu irmão. Eu assisto, com um horror crescente e letárgico, enquanto ela
prova aquilo que me disse tanto tempo atrás: Serena não é feita de açúcar,
monstros não a assustam e ela não é a princesa esperando ser salva na torre
mais alta.
Não.
Serena é o cavaleiro que derrota o dragão.
Roman se recupera rápido do choque e eu percebo, nauseado, que não
vai recuar, não depois do que acabei de dizer. Ele pressiona as costas de
Serena, acabando com qualquer ponto onde seus corpos não encostassem
antes, e, com a mão livre, segura sua nuca, aprofundando a maldita língua
dentro da boca dela.
Eu avanço — sem ideia do que fazer, deixando-me guiar pelo
instinto —, mas os braços de Andrei me seguram no lugar.
— Não posso deixar você continuar com essa merda toda, Vladimir! —
rosna no meu ouvido, enquanto Serena encerra com sua vingança. — Não
estraga mais as coisas, ou os danos serão grandes demais para serem
consertados.
— Como se sente?! — diz Serena, batendo os dentes em um riso
descontrolado. — ¿Cómo te sientes, Vladimir? Quem vai salvar você agora?
Eu estou desistindo. — Ela estica os dois braços e puxa as mangas, exibindo
os pulsos magros. — Você está gravado nos meus ossos, visceralmente,
profundamente, e vai doer todos os dias, tanto! Mas eu vou sobreviver. Eu
vou sobreviver a você, está me ouvindo? Diga alguma coisa.
Me peça para ficar.
É como se o tempo ao lado dela estivesse se transformando em água e
meus dedos não conseguissem conter tudo dentro das palmas fechadas, como
se os dias que passamos juntos escorressem entre as fendas, deixando-me
com a garganta seca de sede.
Por mais que tenham sido poucas semanas, pareceram anos e
pareceram segundos, como um infinito que não foi suficiente, se é que isso
faz sentido.
Eu não faço sentido nenhum agora.
Frente ao meu silêncio, Serena se vira e sobe os degraus correndo.
Nem parece que há poucos dias estávamos declarando nosso amor à
quem quisesse ouvir. Mas eu estava enganado sobre a velocidade que o amor
acaba: ele não acaba.
— Você não acredita em nada do que disse a ela — Roman diz. Sua
voz me faz querer socá-lo. Já está tudo desmoronando, não seria nada
demais. — Não acredita mesmo que esteja envolvida com os planos do
irmão.
— Roman — digo, sentando-me com a cabeça abaixada. — Eu não
acho que consiga falar com você por algum tempo.
— Vladimir, você não pode estar falando sério. Está destruindo a sua
chance de ser feliz por causa de um erro que nem é seu! — insiste.
Eu vou socá-lo.
— Roman — Andrei chama. — É melhor você ir agora.
Alguma coisa se choca contra a parede. Uma estatueta, talvez. Ou
alguma garrafa. Depois ouço os passos de Roman se distanciando, até
sobrarmos eu e Andrei. Daqui a pouco ele vai embora, e então não restará
ninguém.
— Se acalma, converse com ela. Serena não pode ir embora, Vladimir.
— Sim, ela vai — diz minha mãe.
Levanto o olhar. Ela ainda está com Luna, mas substituiu o macacão de
coelho por outro mais confortável. Sem avisar, coloca minha filha no meu
colo e, por um segundo, meu coração dispara, como se eu também fosse
capaz de destruí-la, como se ela fosse se transformar em pó só por entrar em
contato comigo.
Mas é o contrário, Luna me acalma com seu jeito manso e o cheiro de
talco.
O impulso me fez agir e, agora que a adrenalina se foi, me sinto
perdido.
Não posso me arrepender.
— Mãe…
— Sabe quantas vezes seu pai me colocou para fora de casa, meu filho?
Uma, e Deus sabe que eu mereci. Aliás, você teve a quem puxar. — Minha
mãe vai balançando os braços à medida que anda de um lado para o outro. —
De qualquer forma, só voltei para ele com a condição de que comprasse a
mansão mais opulenta da cidade, porque meus belíssimos pés não pisariam
outra vez na casa onde fui despejada. É melhor preparar o seu bolso.
— Não acho que estamos em um bom momento para gastar com
mansões — Andrei observa.
— Oh! — Minha mãe abaixa e pega a fotografia de Serena no chão,
mas, ao invés de ficar surpresa, ela solta uma gargalha que faz Luna rir
também. — Eu estava procurando isso há dias, e estava o tempo todo com
ela.
Serena desce os degraus antes que eu tenha a chance de perguntar como
minha mãe sabia sobre essa foto. Ela também trocou as roupas e o conjunto
de dormir deu lugar a botas e um casaco grosso com capuz largo.
Ela não pode estar pensando em ir embora agora, agora!
— Tatiana, eu juro que… — Serena começa a dizer, mas é
interrompida pela minha mãe.
— Eu sei, minha querida. Eu sou Tatiana Pavlovna Volkiova, meu
marido seria um idiota se me trocasse por outra mulher. Não que ele não
fosse idiota por outros motivos. É um lance de família, como você já deve ter
percebido. Bom, Andrei era a minha única esperança, mas também não tive
essa sorte.
— Serena — chamo, obrigando minha voz a soar calma. — Você não
está pensando em sair agora, está?
— Você disse que não me queria mais aqui. Não vou continuar
morando em uma casa onde não sou bem-vinda, nem mesmo por uma noite a
mais.
— Eu avisei — minha mãe cantarola.
— Eu não usei essas palavras — argumento. — É perigoso, está
chovendo.
Andrei pega Luna assim que me levanto e ela deita a cabecinha em seu
ombro esquerdo. Serena, com uma bolsa pequena pendurada ao lado do
corpo, sorri.
— Eu estava pensando — diz para mim, a naturalidade da conversa me
deixa momentaneamente confuso — que pelo menos essa foi a nossa
primeira briga que não acabou em sexo. E isso nem é uma indireta.
Mesmo sendo uma brincadeira, tem uma nuance de despedida presente
nas entrelinhas. Eu vou sobreviver a você, foram as suas palavras. É um
alívio ter essa certeza de que pelo menos um de nós dois sabe como seguir
em frente.
Porque eu ainda não sei, e falar sobre sexo é a última coisa que preciso
agora.
— Eu não faço bem para você — digo, mais para me convencer do que
para ela.
Nós somos estranhos.
— Não fazemos bem um para o outro, Vladimir.
Serena respira fundo e vai abraçar minha mãe e Luna.
Fico observando para ver se ela vai chorar outra vez, mas seus olhos
nem sequer umedecem. Ela vai embora, levando nossos planos, sonhos e uma
parte de mim que só ela conhecia, que apenas Serena aceitava, aquela parte
que não era presidente, nem monstro, nem o filho de Nicolai Volkiov.
A minha melhor parte.
Ela poderia exigir Luna se quisesse, porque eu não afastaria as duas em
nenhuma hipótese. Mas Serena não faz isso. Apenas se despede da nossa
filha, prometendo voltar em breve, e eu me lembro de Annia na prisão, aos
prantos.
De alguma forma, a concessão de Serena é muito mais dolorosa de
assistir.
— Serena — chamo ao fim de todas as despedidas e lamentos por parte
da minha mãe, que consegue chorar por todo mundo. Depois de levar nosso
relacionamento ao pó, preciso ser sincero sobre uma coisa: — Você está nos
meus ossos também.
— Bom, isso é bom — aprova. — Vai doer em você também.
Já está doendo.
— Eu também estou indo — Andrei anuncia, arrancando de Tatiana um
lamento e mais lágrimas. — Posso te dar uma carona, se quiser. Para onde
você vai, Serena?
— Eu vou para o distrito — diz, e Andrei para antes de pegar a bolsa
dela.
— O quê? — impeço a saída dos dois. — Não, nem pensar!
— Lembro muito bem de ter terminado o nosso relacionamento há
quinze minutos. Perdeu o direito de me pedir qualquer coisa. Além disso,
acrescente isso à sua lista de provas contra mim, se quiser.
Estou pronto para darmos início a uma briga ainda pior do que a
anterior, mas várias batidas na porta de entrada calam a discussão. Olhamos
uns para os outros, como se alguém pudesse responder quem poderia ser.
Andrei assume a dianteira e abre um lado da porta dupla, deixando que
um de nossos seguranças entre na mansão. Atrás dele, três policiais e um
oficial aguardam com guarda-chuvas pretos fechados pendurados nos braços.
— Desculpe, senhor — diz o segurança, não me recordo do seu nome.
— Nós tentamos anunciar a chegada dos oficiais, mas ninguém respondeu à
ligação e eles tinham um mandato. Eu sinto muito.
— Boa noite, senhor Volkiov — diz o homem que parece ser o
representante do pequeno grupo. — Precisamos que nos acompanhe até a
delegacia.
SERENA

SORTE NO JOGO e azar no amor é o caramba! Quem inventou essa frase


nunca amou de verdade, tenho certeza. Afinal, o amor é um jogo! Um bem
sacana em que ambos os competidores vencem ou perdem juntos, não? Claro
que, no meu caso, é azar no jogo, azar no amor, azar no azar e depois disso só
piora.
Metade de mim quer voltar correndo e bater nele até a idiotice sair pelo
nariz. A outra metade quer bater em mim mesma por não ter contado antes
sobre Nicolai. As duas metades concordam que eu e Vladimir somos o
cúmulo do ridículo multiplicado por dois quando o assunto envolve ferrar o
nosso relacionamento.
E, mesmo assim, eu não o amo menos. Mesmo depois de tudo o que me
disse, das palavras cruéis e das acusações absurdas, ainda amo Vladimir
Volkiov monstrinho malvado chupador de sangue e de outras coisas mais
interessantes.
Trouxa? Presente! Mas é a verdade.
Seus olhos suplicantes à medida que acompanhava os policiais para
fora da mansão emergem no centro dos meus pensamentos, nebulosos como
as nuvens de uma tempestade no meio do oceano. Havia amor lá dentro,
perdido no meio de muitas dúvidas e ressentimentos; mas estava longe, em
um lugar onde eu não podia mais alcançar.
— Não vá agora, Serena, por favor — pediu, contrastando com o
homem impiedoso que me acusou momentos antes de traição, que me
ofereceu os irmãos como se eu fosse uma prostituta interesseira.
Aquele vadio sem coração!
— Sinto muito. — Foi a minha resposta final, antes de ir embora,
ignorando suas súplicas, o choro da minha Luna e os apelos de Tatiana e
Andrei.
Apenas não podia mais suportar.
Um minuto a mais e talvez eu não conseguisse colar os meus cacos no
lugar outra vez. Um minuto a mais e Vladimir me faria sucumbir, e isso não
seria benéfico para ninguém, principalmente para ele. Eu aguento cair e
levantar quantas vezes forem necessárias sozinha, mesmo que nem sempre da
mesma forma; mas assistir à queda da pessoa que eu amo…
Não, isso eu não suportaria.
Tatiana me obrigou a trazer o carro, pelo menos, o que acabei aceitando
temporariamente por causa da tempestade.
Bato na porta com o punho fechado repetidas vezes, mas o som da
chuva leva o barulho para longe. Meu ombro está dolorido por causa da bolsa
pendurada e as barras da minha calça estão encharcadas e frias.
Nem pensar que eu vim de tão longe para ficar presa do lado de fora no
meio de um dilúvio!
Desço os poucos degraus, com o guarda-chuva equilibrado em cima da
minha cabeça, e tento ver alguma coisa através das janelas, mas o interior da
casa parece escuro e vazio demais para que meu irmão esteja lá dentro.
Tento não olhar muito para a construção do clube erguendo-se ao redor
do terreno, um grande amontoado de ferro e concreto rangendo por causa do
temporal. Pode ser que a versão final seja um clube lindo, cheio de cores e
formas, mas agora poderia ser qualquer coisa; por enquanto, me faz pensar
em uma prisão — e, consequentemente, em Annia.
Eu me sinto cheia, como se não existisse mais espaço para abrigar tudo
o que Vladimir me faz sentir. A sensação é de estar presa em um cômodo
quadrado cujas paredes estão se comprimindo ao meu redor, esmagando
ossos, pulmões e coração. Dói, é claro que dói. Mas eu prometi que
conseguiria lidar com o monstro, que tinha a força necessária para suportar os
medos do presidente, a crueldade e os traumas. E é exatamente isso o que
pretendo fazer agora.
Posso não ter o poder de continuar ao lado dele para salvá-lo, mas isso
não vai me impedir de tentar — e Vladimir também não. Ele vai ter que
engolir a minha ajuda, aquele bastardo delicioso e cretino.
— Você está brava com ele, Serena — sussurro para mim enquanto
abro a portinhola enferrujada que dá acesso aos fundos a casa. — Esquece a
parte do delicioso, gostoso e bom de cama.
Misericórdia.
Ignoro os galpões iluminados a alguns metros de distância e as sombras
se movimentando ao redor deles, e abro a velha porta de madeira cuja
fechadura está quebrada desde a época em que eu ainda morava aqui,
praticamente sozinha. Camillo fazia suas visitas esporádicas e dispensáveis
com seus amigos mais dispensáveis ainda.
Todo o trabalho que eu tive para manter a casa limpa enquanto estava
cuidado de Luna, antes de Maksim me atacar e Annia ser detida, se perdeu no
meio de muita poeira e cinzas de cigarro. O balcão está novamente infestado
com copos sujos, garrafas vazias e panelas enferrujadas das quais emana um
odor repulsivo — prefiro ser sequestrada por maníacos comedores de gente
do que conferir o que tentaram cozinhar lá dentro.
Deixo minha bolsa em cima da mesa, junto com o guarda-chuva
fechado; não é como se a água escorrendo dele fosse piorar a situação do
carpete. Caminho através do corredor, detendo-me por um momento na frente
da porta do banheiro antes de seguir para a sala. Os poucos móveis que ainda
restavam na casa desapareceram e o velho sofá foi substituído por um
colchão bolorento ao lado de uma cadeira sem encosto.
— Camillo? — chamo baixo para não chamar atenção desnecessária,
mas ninguém responde.
Depois constatar que o quarto dos nossos pais está igualmente vazio,
seja de mobília ou seres humanos, surpreendo-me ao encontrar meu irmão no
antigo quartinho de Luna. O corpo ressona em um canto, rodeado com trapos
puídos e bitucas de cigarro. A janela aberta deixa entrar o vento forte da
chuva e os relâmpagos iluminam a poça de água acumulada no chão.
Ele não parece notar, ou se importar.
— Camillo — sussurro, abaixando ao seu lado. — Hermano.
Suas pálpebras abrem molemente, piscando enquanto ajusta a visão.
Ele olha para mim com ares de deslumbramento, sorrindo no meio do transe
causado após o despertar recente. Os ossos proeminentes nas bochechas
parecem mais fundos por causa das sombras cavadas abaixo dos olhos e o
sorriso sonolento com dentes amarelos jamais pareceria feliz aos olhos de
qualquer pessoa.
— Serena? — pergunta. — É você? O que está fazendo aqui? Como
conseguiu entrar?
Ele se senta depressa, finalmente acordado, e bate nas bochechas com
as mãos, ainda descrente com a minha presença, como se eu fosse um sonho
que vai desaparecer em breve. Na última vez que nos vimos, as roupas
grossas me imperam de perceber seu corpo completamente, e a situação é
pior do que eu imaginava. Vejo ossos e pele, unhas sujas e cabelos ralos —
não restou muito para ser visto do menino bronzeado e bonito que um dia já
fora meu irmão mais velho.
— Acho que o sistema de segurança estava quebrado — brinco,
sentando-me ao lado dele sem me incomodar muito com a sujeira; esse é o
menor dos meus problemas, na verdade. — Não havia ninguém observando a
entrada. Além do mais, essa casa ainda é minha, se não estou enganada.
— Não deveria estar aqui — murmura, piscando com avidez e
encolhendo os joelhos junto ao corpo. — Por que não está na mansão? Eu
não entendo.
Bem-vindo ao clube, ironizo mentalmente. Nem eu entendo.
— Vladimir me mandou embora — explico. Dizer as palavras em voz
alta faz a dor apunhalar meu coração outra vez, e as lágrimas voltam a se
acumular nos meus olhos. — Por culpa sua e do seu namorado.
Camillo sobressalta e tampa a minha boca de repente, arregalando os
olhos para a porta como se alguém muito perigoso fosse aparecer.
— Ficou louca? — pergunta com a voz vacilante e pneumônica,
soltando-me. — Se alguém escuta você falar isso, nós estamos fodidos!
— Eu já estou fodida, Camillo. Nós dois estamos, caso não tenha
percebido. Começou mais ou menos no dia em que a gente nasceu. —
Empurro meu irmão para longe e encosto no canto da parede, abraçando meu
corpo para espantar um pouco do frio. — Vladimir acha que eu o enganei,
que ajudei você a roubar alguma coisa na mansão.
As sobrancelhas de Camillo se unem em um semblante de genuína
confusão, depois se transforma em um sorriso procedido de uma gargalhada
familiar, há muito esquecida. Por algum motivo, isso não me deixa feliz por
ele.
Não acho que esteja drogado, percebo tardiamente quando um feixe de
luz alcança seus olhos lacrimosos e a testa brilhante de suor, mas a
abstinência está acentuando. Ele provavelmente dormiu depois de consumir
alguma substância pesada. Houve uma época em que isso ainda não me
causava estranheza. Era apenas normal que meu irmão estivesse sob o efeito
de alguma droga. Agora é só… lamentável.
Talvez eu seja uma pessoa horrível por não sentir pena. Por estar
cansada demais para me apegar a qualquer outro sentimento que não seja de
repulsa.
— Desculpa — diz assim que percebe a minha careta de reprovação. —
Mas é um pouco engraçado imaginar você roubando.
Olhamos para a janela por um breve passar de minutos, eu com minhas
muitas camadas de roupas e Camillo enrolado em trapos de tons cinzentos.
Espero para ver se vai tomar a iniciativa de se explicar, mas meu irmão nunca
foi muito corajoso e certamente não vai começar agora.
O berço de Luna continua no canto, fazendo-me lembrar de Vladimir
na primeira vez que viemos aqui, em seus olhos aterrorizados e furiosos, na
forma como me tomou nos braços com ganância. A gente fazia nosso amor
parecer certo mesmo nas condições mais erradas. Mas, naquela época, não
contávamos ainda com duas doses extras de má sorte e três de crueldade — a
dele, a minha e a do destino.
— Nós brigamos — conto ao refrear o rumo dos meus pensamentos.
Mas a minha língua meio que não dá para ser controlada e preciso mesmo
desabafar antes que minha cabeça exploda; já basta ter que aguentar meu
corpo dolorido como se tivesse corrido uma maratona. — Quer dizer, a gente
briga o tempo todo, mas dessa vez foi diferente. Ele disse coisas que não
deveria e eu…
Paro de falar, repassando tudo o que dissemos um a outro até as coisas
saírem do controle, mas a vontade de chorar aumenta. Não vou fazer isso de
novo, me recuso a derramar mais uma lágrima por causa dele.
Fraca.
— Você…? — Camillo incentiva, sem interesse genuíno. Ele deve
estar tentando ganhar tempo para controlar a vontade de se drogar outra vez.
— Beijei o irmão dele para me vingar — conto, atropelando as
palavras. — Puta madre — arquejo, escondendo o rosto com as mãos. —
Nós dois somos loucos, eu contei essa parte?
Por que estou confessando essas coisas para o imbecil do meu irmão,
afinal?
— Certo — diz com cautela na voz —, isso foi…
— Infantil? Crueldade? Eu sou uma vadia sem coração também?
Camillo solta uma risadinha arrastada.
— Eu ia dizer que foi interessante — explica, fungando. — Ele
provavelmente mereceu.
Merecer, ele mereceu mesmo!
— E foi bom? — Sua respiração se transforma em fumaça sempre que
ele expira.
Demoro a entender o teor da questão.
— O quê? O beijo? — Ele confirma. Dou de ombros, lembrando o
momento em que agarrei Roman e ele me sorriu com cumplicidade. — Não
prestei muita atenção. Eu estava possessa de raiva. Mas foi como…
beijar você na boca.
Camillo torce o nariz, exatamente como Roman fez enquanto Vladimir
estava sendo contido por Andrei, após me soltar.
— Certo, péssimo exemplo. Nojento.
— Exatamente! — concordo, feliz que faça sentido para alguém, pois
duvido que Vladimir tenha a mesma opinião.
— E o que pretende fazer agora?
— Meu plano era encontrar você e gritar até que aceitasse contar a
verdade para todos e provar que nunca fiz parte de crime nenhum —
confesso, repetindo o plano que parecia genial até pouco tempo.
— E por que não fez isso? — pergunta em um fio de voz, revirando os
bolsos até encontrar um cigarro amassado que não tarda a colocar nos lábios
e acender. A primeira lufada de fumaça obscurece suas feições.
— Porque — sussurro, buscando os verdadeiros motivos — eu estou
tão cansada, tão triste e tão perdida. E tem essa vontade absurda de chorar
entalada na minha garganta. — Fecho meus olhos, aceitando a confortável
escuridão, e mesmo isso me faz pensar em Vladimir. — Eu só queria que
passasse.
Camillo não tenta me consolar, acho que perdeu essa capacidade há
alguns anos.
— Não passa — diz depois muito tempo, e isso é tudo. — Você está
melhor longe deles, de qualquer forma.
Estou?
Abro os olhos, tentando impedir que a minha mente recrie cenários do
que Vladimir deve estar pensando agora, do que ele está fazendo —
provavelmente prestando depoimento e me odiando mais ainda por ter saído
mesmo ante suas súplicas, já que não gosta de ser contrariado —, e me
concentro no homem diante de mim.
— Preciso que me conte a verdade, Camillo. Toda a verdade — peço.
— O que você roubou naquele escritório? Por que estão tentando prejudicar a
empresa? Qual o seu envolvimento com Nicolai Volkiov?
Ele joga o cigarro para a poça embaixo da janela e a brasa emite um
chiado antes de morrer na água da chuva. Está ofegante, a respiração pesada
se faz ouvir acima das trovoadas distantes.
— Não pretendia roubar nada. Eu só precisava convencer você a nos
ajudar, mas, quando coloquei os olhos naquelas plantas, soube imediatamente
do que se tratavam.
— Plantas? — Lembro de ter ouvido Vladimir e seus irmãos
conversando a respeito desse assunto.
— No dia em que estive na mansão, falei que tinha descoberto o nome
da pessoa responsável pelo desabamento do prédio que matou nossos pais,
está lembrada? — Confirmo, ligeiramente incomodada com o rumo da
conversa. Isso não vai prestar. — A Corporação Volkiov era a responsável
pelo projeto. Por causa de Nicolai Volkiov, nossos pais estão mortos, e seu
namorado ajudou a encobrir as provas que poderiam incriminá-los.
Oi?
— Certo, por essa eu não esperava. É para rir, né? Porque só rindo para
não chorar. Olá, destino, tudo bom? Fode mais que tá pouco! — Respiro
fundo, controlando o choque e o nervosismo. Não posso surtar agora. De jeito
nenhum. — Isso é Impossível.
— Eles não são quem você pensa — argumenta, coçando os olhos com
força. Ótimo, ele está surtando também. — Aquelas plantas eram tudo o que
faltava para que fossem incriminados de verdade, foi muita sorte encontrar
com tanta facilidade.
Meu irmão luta para se levantar, como se não tivesse acabado de jogar
uma bomba na minha cabeça. Ele segue plenamente para fora do quarto, com
a maior naturalidade, e não lembro nem a minha idade. Puta merda.
— Camillo! — chamo um tempo depois, ao perceber que não adianta
nada tentar entender essa equação sozinha. Levanto-me e vou até a cozinha,
onde meu irmão revira gavetas velhas no balcão. — Como você descobriu
isso? Quando?
— Maksim descobriu, não eu — explica, sem prestar muita atenção em
mim, está mais preocupado com os potes de mantimentos vazios. — Ele me
ajudou a acabar com os negócios deles por um tempo. Nicolai era dono de
uma rede de casas de jogos clandestinas e, por isso, lidava com muita gente
perigosa. Ele sempre teve as pessoas mais importantes do país na palma das
mãos e foi assim que abafou o desabamento. Mas então o velho morreu e o
filho assumiu a presidência.
Sou tomada por uma náusea horrível, minha cabeça girando, mas a
ânsia de vômito é contida pelo meu estômago vazio. Mesmo assim, me apoio
contra a parede, sentindo as pernas perderem as forças.
As evidências vão se encaixando devagar, cada peça entrando em seu
devido lugar. Eu sempre soube que Nicolai tinha seus segredos, lembro
inclusive quando mencionou que estava passando por problemas com pessoas
que desejavam prejudicá-lo; e as acusações de Vladimir contra meu irmão
terminam de sustentar a verdade.
— Você tem certeza disso? — insisto pateticamente, não querendo
acreditar em tamanha ironia do universo.
Meu irmão deixa escapar uma risada sombria, jogando latas e copos no
chão da cozinha. O barulho me pega de surpresa e recuo alguns passos por
impulso. Isso não vai prestar, não vai.
— Sabe por que Maksim não pode sair do distrito sem correr o risco de
ser morto? — pergunta com a voz alterada, o corpo em espasmos. — Por
minha culpa! Para me ajudar a destruir o homem que tinha matado nossos
pais, Maksim se colocou contra eles. Cobrou favores, investiu dinheiro,
eliminou empecilhos. Mas adivinha? Não dá para enfrentar pessoas tão
poderosas como aquela família sem conquistar alguns inimigos pelo
caminho.
Tento não me perguntar se eliminar empecilhos significa o que eu acho
que signifique, e procuro acalmar meu irmão antes que alguém escute seus
gritos.
— Hermano, se acalme, tudo bem? — Mantenho uma distância segura,
com medo do que ele pode fazer nesse estado. Não sou nem burra de chegar
perto.
— Então Vladimir Volkiov arruinou nossos planos — continua com o
olhar distante, sufocado com lembranças narradas por palavras sôfregas. —
Eu cheguei a pensar que, talvez, com o novo presidente, a verdade finalmente
seria exposta. Que ele fosse consertar a merda que o pai dele tinha feito. Mas
o maldito acabou com todas as casas de jogos do pai, reergueu a empresa e
seguiu com a vida como se nada tivesse acontecido.
Eu sou um monstro, Corazón.
As coisas que eu fiz…
Você não sabe do que eu sou capaz.
Agora eu entendo, é esse o peso do fardo que Vladimir carrega.
Por isso ele odeia o pai. Não por ter tido uma vida arbitrária, ou pela
suspeita absurda de que tivesse uma amante; o problema foi ter se obrigado a
vestir uma pele condenada para preservar a história de Nicolai e salvar o
patrimônio da família.
E por isso os policiais o levaram.
Não consigo respirar.
Coloco as mãos no pescoço, tentando facilitar a passagem de oxigênio.
— Nicolai me salvou — lamento em um fio de voz. — Ele me salvou e
agora você está me dizendo que, se não fosse por ele, nossos pais poderiam
estar vivos?
— É exatamente o que estou dizendo — confirma, passando por mim
em direção ao banheiro.
Não me atrevo a segui-lo até lá dentro. Minhas pernas estão fincadas no
lugar, paralisadas. Os pulmões ardem, mas continuo forçando meu corpo a
inspirar e expirar, garantindo a passagem de ar sob a palma da mão.
Não vou dar uma de louca agora, mas seria um ótimo momento para
surtar ou, sei lá, desmaiar e acordar só na próxima encarnação, bem rica e
famosa.
— Sempre me perguntei o que ele estava fazendo aqui naquele dia —
pondero comigo mesma, relembrando o momento em que Nicolai me ergueu
nos braços e perguntou se eu queria viver. Por todo o caminho de
semiconsciência até o hospital, ele pediu desculpas.
Desculpar-se era algo que Nicolai fazia com frequência, inclusive em
suas últimas palavras, e nunca entendi o motivo.
Até hoje.
— Agora que você sabe a verdade… — diz Camillo, aparecendo no
corredor com outro cigarro aceso na mão; aparentemente não obteve sucesso
em sua busca por drogas. — Entende que é melhor não se envolver com
aquela família?
— Meio tarde, né, maninho — digo, movida pelo nervosismo. Não,
não, não, ordeno sem parar, nada de entrar em pânico agora. — Você está
oito anos atrasado com esse aviso.
Meu coração golpeia a caixa torácica, protestando contra as emoções
afloradas. Massageio os dedos dormentes e volto para o quarto de Luna,
sabendo que o ar gelado talvez me ajude a manter o controle. Não posso
perder o controle, mesmo ciente que o medo de me descontrolar é apenas um
atenuante da crise.
Vai passar. Vai passar. Por favor, passe logo.
Eu sei como a merda funciona, não é a primeira vez que acontece.
Aprendi a identificar os sintomas durante o tratamento pago por Nicolai —
conhecer meus limites sempre foi a minha melhor defesa. Fique calma, você
não está morrendo. Com sorte, só vai durar alguns minutos.
Com sorte.
Ouço os passos de Camillo atrás de mim, mas a companhia dele não é
suficiente para que meu organismo se sinta seguro. Em meus pensamentos,
lembranças dos meus pais ainda vivos reluzem como se fosses flashes de uma
máquina fotográfica antiga, expondo momentos que nunca poderão retornar:
minha mãe, Luna Fajardo, sempre amável ao lado do meu pai, um sujeito
cheio de piadas prontas para fazer nos almoços em família. Por muito tempo,
vivi sozinha no buraco deixado pela perda dos dois. Nicolai veio atrás de
mim para se redimir.
Ele se sentia culpado.
Sento-me no ninho de panos onde meu irmão estava dormindo antes e
abraço as minhas pernas. Um sentimento de desespero e medo assopra meus
ouvidos, trazendo à tona todo tipo de sensações terríveis e assombrosas.
E o único nome que meu coração pede é o dele.
Vladimir.
Meu monstro.
Ele sabe como se esgueirar pela escuridão. É por isso que o aceito, que
o entendo e o amo com tanta intensidade. Não pelo perigo que representa,
não por me sentir atraída por seus trejeitos ameaçadores e mortais como
sempre supus — embora sejam características inegavelmente sensuais. Nada
disso! É pela certeza de que não teria medo de mergulhar nas profundezas
dos meus pesadelos, porque ele sabe como é a companhia do medo e da
morte, mesmo que de uma maneira completamente diferente de mim.
Ah, céus. Nada justifica a forma como me tratou a acusou, nada! Mas
Vladimir não deve fazer a menor ideia.
— Já chega, Camillo — digo ao meu irmão, que se abaixou na minha
frente em algum momento nos últimos cinco minutos enquanto eu tremia. —
Eles não podem continuar sofrendo pelos erros de alguém que não está mais
aqui para se defender.
— Não — protesta, segurando meu rosto. A textura das suas palmas é
oleosa e gelada, e os olhos são iguais aos meus, escuros, espessos e com
longos cílios negros. — Nós estamos perto, muito perto de conseguir.
— Camillo, não podemos usar a dor para justificar nossos erros para
sempre. — Meus olhos queimam para impedir que as lágrimas se libertem,
mas aos poucos a pressão dentro do peito começa a arrefecer, tornando-se
nada mais que um espaço dormente. — Nossos país se foram e nada do que
fizer vai trazer eles de volta. Vladimir foi levado pelos policiais, aquela
família está devastada. Nicolai está morto há anos. O que mais você deseja,
Camillo? Quantas vidas precisa destruir até perceber que está lutando contra
si mesmo? Você me enganou, me roubou, e agora… — Não consigo
concluir.
Eu o perdi.
Camillo se afasta abruptamente, andando em círculos pelo quarto com
os dedos enfiados no cabelo. Estou amortecida demais para lidar com sua
dependência. Na verdade, meu corpo dá indícios de exaustão e sono. Eu
gostaria de dormir.
— Eu precisava encontrar uma pessoa — resmunga. — Por isso fui
embora. Precisava do dinheiro, e que você ficasse longe do distrito nesse
meio tempo. Não era para ter sido assim. Eu queria proteger você.
Ele disse algo parecido da outra vez.
— Ouça — digo, não suportando mais a dor aguda no centro da testa.
— Estou dizendo, Camillo, que você precisa parar agora. Que já chega.
Nicolai veio até mim quando nossos pais morreram, ele me ajudou a superar
a perda deles. Me ajudou a viver, Camillo.
— Ele matou nossos pais — acusa, mas a afirmação soa menos
enfática.
— Sim, sim, eu já entendi isso, e você não sabe como está doendo. —
Olhando de baixo, com Camillo contra a janela, seus contornos são meras
sombras, ocultando as tatuagens e os olhos vidrados. — Conheci Nicolai há
muito tempo. Era um homem bom e gentil, triste e arrependido, e é nessa
pessoa que vou me apegar. Chega de lutar, Camillo.
— Eu… só queria proteger você.
— Eu sei, e você protegeu, hermano. Você protegeu. Mas agora, já
chega. — Coloco o máximo de gentileza na minha voz, recuperada da
pequena recaída emocional.
Meu objetivo era apenas descobrir a verdade, mas Camillo ainda é meu
irmão e não posso ignorar que precisa de ajuda e apoio tanto quanto qualquer
pessoa.
— Mas Annia… Maksim mandou…
Para minha surpresa, Camillo começa a chorar. Soluços nada contidos
reverberam pela casa, junto com frases enroladas e ininteligíveis das quais
compreendo somente dois nomes: Annia e Maksim.
— Eu sinto tanto, hermano. Lo siento mucho — ofereço as palavras
após seu lamento se tornar um arquejo constante.
Cogito a possibilidade de conceder um abraço, mas a ideia de confortar
Camillo não me parece atrativa. Alguns lutos precisam ser vividos da pior
forma possível para que as cicatrizes causadas pela perda não desapareçam
quando o ferimento estiver curado.
— Você vai voltar para ele? — pergunta, aparentemente mais calmo.
Está falando de Vladimir.
— Não. — Balanço a cabeça para os lados. Como foi que passamos de
um assunto para outro tão depressa? — Desde quando decidimos ficar juntos,
temos mentido e machucado um ao outro. Talvez seja melhor assim. Além do
mais, ele me mandou embora e tenho meu próprio orgulho.
— Então você não o ama mais?
Acabo rindo amargamente com o bombardeio de perguntas pessoais.
Discutir meu relacionamento com Camillo era a última coisa que eu pensaria
em fazer nessa vida.
— Amo, amo muito — confesso, a resposta vem fácil. — E isso me
irrita, porque ele não anda merecendo tanto amor assim depois de hoje. —
Camillo sorri, sentando-se perto novamente. — Mas, sabe? Vladimir não é do
tipo que costuma tratar as pessoas bem. Ele é um cretino egoísta, mas um
cretino egoísta que me mostrou como é estar no topo do mundo. Ele nunca
me tratou com delicadeza por medo de que isso pudesse me quebrar, ele
jamais cogitou se afastar para me poupar do sofrimento. E é isso o que mais
amo nele, poder provar todos os dias que a minha força é tão poderosa quanto
a dele.
Capto o aquiescer discreto do meu irmão, abatido como um passarinho
que se perdeu do ninho.
— Tenho certeza de que você é mais poderosa do que qualquer pessoa,
Serena. — Ele puxa uma das mangas, esticando o braço na minha direção, e
meu corpo fica tenso com a imagem. A magreza é o que menos impressiona,
são os hematomas que fazem meus olhos se fecharem com um pesar atroz. —
Maksim acha que eu parei de usar. — Camillo esfrega as mãos uma na outra,
ficando de pé. — Ele vai ficar puto comigo.
— Você deveria parar — sussurro. Minhas pálpebras fecham e abrem
por conta própria, pesadas. — Eu poderia dormir um pouquinho, não? O
mundo não vai acabar só porque eu tirei um cochilo depois de um dia de
merda.
— É tarde — conclui. Não sei se está fazendo referência a si mesmo
como um caso perdido ou às horas. — É melhor você descansar um pouco
antes de ir embora.
Concordo, só não tenho certeza para onde devo ir depois.
Começo a me entregar para o sono quando meu irmão volta a falar.
— Sabe qual foi a última coisa que eu disse para Annia? — Não
respondo, absorta pelo sono. Aconchego o corpo contra a parede. — Boa
sorte.
Boa sorte.
Quero dizer a ele que são palavras bonitas, que Annia deve ter
aprovado, que era uma coisa melhor a se ter dito do que "me desculpe".
Eu quero dizer, contudo, as palavras não saem.
Pouco antes de mergulhar em um sono profundo, percebo que Camillo
não perguntou por Luna nenhuma vez.

***

Nicolai está sorrindo. Não é algo que faça com muita frequência. Ele tem um
sorriso bonito, igual ao de Vladimir. Os dois são lindos, mesmo que Nicolai
seja mais maduro e robusto, mas é Vladimir o dono do meu coração.
Eu dei tudo a Vladimir, transformando-o no desbravador dos meus
sentimentos e do meu corpo. Não é fácil amá-lo, ele não está acostumado
com o amor. Nenhum de nós dois está, eu acho.
Vladimir não está aqui. Para onde ele foi?
É inverno, está frio. As árvores no Jardim de Alexandre estão nuas,
despidas de suas folhagens. O jardim é mesmo belíssimo nessa época do ano,
quando o céu já não vibra com as cores quentes do verão e nem com as
tintas coloridas da primavera. É reconfortante. Eu gosto.
Nicolai me mostra uma câmera fotográfica antiga, parece animado
com o objeto. Ele abre a boca, pronto para dizer as últimas palavras — não
entendo como, mas sei que serão as últimas, e eu as conheço muito bem.
Desculpe-me, Serena, mi doce Corazón.
Desculpe-me.
Mas, ao tentar dizê-las, Nicolai se engasga, tossindo. Tento ajudar,
mas não o alcanço. Está longe agora, afastando-se, tossindo sem parar. Ele
quer me dizer alguma coisa.
O que é? O que pode ser?
— Fogo!
Acordo tossindo. Minha garganta arde, impregnada com o sabor de
fuligem, e um cheiro forte de fumaça invade minhas narinas, intensificando a
dificuldade para respirar.
Fico de pé, perturbada com o sonho confuso e o cheiro ressequido de
queimado. Apoio a mão na parede até que o acesso de tosse acabe. Meu
celular vibra no bolso e eu o alcanço depressa enquanto saio para o corredor
em direção à cozinha.
Tem alguma coisa pegando fogo…
Há muitas ligações e uma dezena de mensagens, a maioria de Vladimir.
Abro a primeira, enviada pouco tempo depois que adormeci.

"Por favor, Serena. Volte para a mansão."

Aquele diabinho que mora dentro de mim cutuca meu coração com o
garfo, fazendo as batidas descompassarem um pouquinho. Passo para a
próxima, meus dedos deslizam sobre a tela, tremendo.

"Serena, Ivan e Lara estão em casa esperando você. Por favor, volte."

Ele não cita a si mesmo, o que me faz supor que ainda não foi liberado
da delegacia. Não tenho certeza de como me sinto com relação ao homem
que amo estar sendo acusado por um crime que está vinculado ao meu
passado. E agora não é o momento ideal para pensar sobre isso!
Ouço gritos raivosos vindos do quintal e paro, apavorada com a
perspectiva de ser encontrada. São muitas vozes e o cheio de fumaça vai se
tornando cada vez mais intenso. O que está acontecendo?
Pulo algumas mensagens, estagnada contra a parede para que ninguém
me veja, e seleciono a próxima aleatoriamente, enviada há pouco mais de
meia hora.

"Serena, porra! Pare de me ignorar."

Mandão.
Por fim, abro a última, recém-chegada, e a primeira palavra volta a
agredir meu peito com força.

"Corazón, atenda o telefone. Eu sei que não quer falar comigo, ou me ver.
Pode me odiar o quanto quiser. Mas atenda o maldito telefone! Mande uma
mensagem, qualquer coisa!"

O ar está denso, os gritos vindos dos fundos chegam aos meus ouvidos,
mais apavorados do que ameaçadores. Arrasto-me para mais perto da porta
da cozinha, ainda em conflito se devo ou não retornar a ligação, quando vejo
o fogo através das janelas.
Fogo.
Muito fogo.
Os galpões estão em chamas, duas grandes fogueiras espiralando até o
céu, e a fumaça negra se funde com a noite. As nuvens carregadas e
vermelhas foram ocultadas pela fumaça; a chuva enfim desistiu de lavar a
cidade, deixando para trás somente a promessa de dias frios que não
combinam com as labaredas.
Uma dezena de homens corre de um lado para o outro, gritando ordens
e mirando debilmente com uma mangueira na direção das chamas.
— Ah, Camillo, o que você fez? — choramingo, apertando o celular
contra o peito.
Deu ruim, claro que deu ruim!
Preciso ligar para a polícia, ou para o corpo de bombeiros… Não, eles
já devem estar a caminho. Deus tem telefone? Preciso do
número. Misericórdia! Olha o tamanho desse incêndio! Surpreende-me não
estar ouvindo ainda o barulho dos helicópteros da imprensa, ou das sirenes.
A alternativa mais inteligente é sair daqui o mais rápido possível, então
começo a correr — tentar, pelo menos, pois as minhas pernas mal se
sustentam. Quando estou quase chegando na porta da frente, porém, vejo
Camillo encolhido no canto da sala, pálido e ensopado de suor.
— Camillo! CAMILLO! — chamo, debruçando-me sobre seu corpo
fremente, sofrendo com espasmos musculares. — Não, não, não. O que você
fez?
Algumas seringas estão jogadas ao seu lado. Ele usou todas? Isso é
humanamente possível? Não sei qual de nós dois está tremendo mais. Meu
irmão bate os dentes, seus lábios estão roxos e o peito sobe e desce de uma
forma agonizante, emitindo um chiado agudo.
Isso não pode estar acontecendo.
Grito por ajuda, ou acho que grito, porque não consigo escutar a minha
própria voz. Sei que repito o nome dele diversas vezes enquanto estico o
corpo no chão, de lado, para que não se engasgue. Não tenho ideia do que
estou fazendo, mas geralmente é isso o que as pessoas fazem nos filmes.
— Frio — geme, revirando os olhos.
Abro meu casaco e tento cobrir Camillo, mas ele tem um corpo grande,
muito maior do que o meu, fazendo com que os pés descalços continuem
exposto, assim como os braços marcados e vermelhos.
— Eu vou… — gaguejo, suprimindo um soluço. Camillo estava errado,
não tenho tanto poder assim, não sei o que fazer, alguém me ajude. — Vou
buscar mais cobertores…
— Não! — Camillo segura meu pulso, rosnando com os dentes
trincados e olhos arregalados, a pele adquirindo um doentio tom cinzento —
Você sabe, porra! Ela não gosta quando está calor…
Ele volta a se debater no chão, delirando e grunhindo. Uso toda a minha
força para fixar seu corpo no lugar, tentando evitar que se machuque, mas,
mesmo magro e doente, meu irmão continua sendo muito mais forte
fisicamente.
— Quem? Quem não gosta, Camillo? — pergunto, tentando chamar sua
atenção para a consciência. Seus espasmos aumentam, eu volto a gritar por
ajuda; alguém, qualquer pessoa. Mas sua condição piora em uma
velocidade impiedosa, dolorosa, desumana. — No puedes morír, hermano.
Meu corpo é puxado de repente. Minhas costas batem dolorosamente
contra a única cadeira remanescente no cômodo, arrancando outra onda de
tosse que tento controlar o mais rápido possível.
Maksim tenta socorrer Camillo. Ele parece saber o que está fazendo,
porque meu irmão parou de se debater.
A porta da frente está escancarada — Maksim provavelmente a
arrombou — e o barulho de sirenes começa a soar em algum ponto da cidade.
— O que ele tomou?! — Maksim grita, estático, com as mãos afastadas
de Camillo.
— Eu não sei… Não sei… — Levanto-me, horrorizada com o ódio
transfigurado no rosto de Maksim. Ele nunca pareceu tão perigoso, tão
descontrolado.
— O que você fez? — sibila, olhando de mim para o corpo inerte do
meu irmão.
Camillo não se move. Ele não se mexe. Ele não…
Oh, Deus.
Antes que eu consiga assimilar quais partes do meu corpo e da minha
alma doem mais, antes que o choque dissipe e eu liberte a vontade de chorar,
a arma brilhante na mão de Maksim — de onde ele tirou isso? — me obriga a
reagir.
Você se coloca em perigos demais. Por que, Corazón?, ressoa a voz de
Vladimir na minha cabeça, repetindo um questionamento que já me fizera
tantas vezes.
Jogo-me na direção da saída ao mesmo tempo em que o disparo
retumba dentro da casa, atingindo a porta. Desço os degraus todos de uma só
vez. Meia dúzia moradores estão na rua; alguns me olham com espanto,
outros filmam o incêndio com os celulares suspensos.
Camillo era como uma redoma prendendo a sanidade de Maksim.
Pego a chave do carro dentro do bolso da minha calça, rezando para
não deixá-las caírem ou eu mesma tropeçar no meio do desespero. O segundo
disparo acerta a lataria do carro assim que me acomodo no banco e giro a
chave na ignição.
Os moradores estão dispersando depressa agora, tão apavorados quanto
eu, e a última coisa que vejo antes de dar partida é Maksim correndo para um
carro poucos metros atrás do meu.
Piso no acelerador e sinto o carro se mover, ganhando velocidade, e tão
logo estou saindo do distrito, fazendo curvas fechadas e desviando de outros
veículos mais lentos.
Maksim continua me perseguindo.
Isso não pode estar acontecendo.
Minha melhor chance é seguir na direção da região central, onde o
número de pessoas e policiais é maior mesmo no auge da madrugada. Isso vai
obrigá-lo a desistir. O percurso é longo, mas aumento a velocidade. Mais
rápido, mais rápido.
Outro tiro atinge o carro e não posso evitar um grito de surpresa.
Pensa, Serena, pensa!
Posso seguir caminho até chegar à Bolshoy Krasnokholmsky, atravessar
o rio Moscou por um acesso mais movimentado e, talvez, conseguir distrair
Maksim; mas um bloqueio na ponte que procede o monastério
de Novospasskiy se abre à minha direita, como uma luz — deve ter sido
colocado por causa da chuva.
Sem tempo para pensar em opções melhores, giro o volante e entro no
acesso, desviando de um cone de sinalização esquecido no meio da pista.
Olho pelo retrovisor bem a tempo de ver o carro de Maksim passar direto,
sem chance para fazer a curva atrás de mim. Ao olhar para frente, solto a
respiração e contemplo as estrelas em seus mundinhos perfeitos de caos.
Comemoro.
Por um segundo, eu comemoro.
Então, vem o impacto.
O carro gira sobre a mureta de proteção da ponte. O som do metal
chocando-se contra o concreto é muito alto e assustador, mas nem se compara
com o choque que me assola ao perceber que estou caindo.
A velocidade, a pista molhada pela chuva, os avisos sinalizando o
bloqueio da ponte…
Eu vou morrer.
Aperto o volante com força e fecho os olhos pouco antes do carro
atingir a água do rio Moscou, muitos metros abaixo. Era para ser igual nos
filmes e eu ver toda minha vida passando diante dos olhos. Mas tudo o que
vejo é Vladimir.
Talvez isso signifique que ele se tornou a minha vida em algum
momento, ou grande parte dela.
Vladimir.
O que eu disse antes de ir embora?
Ah, sim…
Minhas últimas palavras para ele foram "sinto muito". Eu deveria ter
dito algo mais legal, como "eu te amo".
VLADIMIR

NUNCA TIVE MUITA empatia com repórteres, isso é fato. Nas últimas doze
horas, contudo, aprendi que posso muito bem odiar cada um deles — não que
signifique grande merda no momento, considerando que estou com ódio de
qualquer coisa que respire, incluindo eu mesmo.
O carro estaciona na frente da casa de Serena e somos rapidamente
cercados por um monte deles. Abutres malditos, como Ivan costuma dizer.
Confiro o celular mais uma vez, mas Serena não respondeu nenhuma
das minhas mensagens nem retornou às ligações, impedindo qualquer
tentativa de contato. Para meu completo desespero, há mais ou menos três
horas o número dela ficou indisponível e o medo só fez crescer no meu peito
desde então, junto com a culpa.
Eu passei dos limites… em tudo.
E, por causa disso, Serena foi embora.
Um inquérito foi aberto para dar início às investigações contra a
empresa. De acordo com Andrei, não temos nenhuma chance de subverter as
provas à favor da Corporação — e ele não faria isso mesmo que fosse
possível, por ter princípios muito mais dignos que os meus —, então
precisamos nos preparar para uma causa perdida. No entanto, existe uma
maneira para que eu não seja acusado de encobrir os crimes de Nicolai, e isso
envolve declarar publicamente que nos opomos à gestão anterior e oferecer
nosso apoio às famílias prejudicadas o mais rápido possível.
Famílias essas que nunca conheci.
Eu sei que todas as partes do meu irmão não concordam com essa
manobra. Se eu fosse qualquer outro empresário em apuros, ele ficaria
satisfeito em me ver atrás das grades, mas Andrei jamais viraria as costas
para a família. De acordo com ele, desde que eu assuma e conserte meus
erros, posso contar com seu apoio.
Consertar os erros. Está aí uma coisa que nunca aprendi a fazer.
— Nada ainda? — Andrei pergunta, também preocupado com o sumiço
de Serena e visivelmente cansado.
Guardo o celular e nego, olhando para fora enquanto alguns policiais
obrigam repórteres protegidos com máscaras cirúrgicas a se afastarem,
delimitando a passagem deles com uma fita amarela.
— Talvez ela esteja lá dentro — digo, mas a possibilidade faz com que
a frase saia como um grunhido.
— Espero que não. — Andrei abre a porta do carro assim que a
passagem é liberada.
Eu o sigo, ignorando a algazarra de perguntas; muitas são sobre a
minha visitinha à delegacia, outras se referem ao vazamento das plantas e do
edifício que desabou — agora toda a verdade está exposta, não adianta mais
tentar conter a imprensa. Há três carros do corpo de bombeiros na frente da
propriedade e um helicóptero sobrevoa o bairro de um lado para o outro,
contornando a fumaça escura que continua espiralado rumo ao céu mesmo
que o incêndio tenha sido controlado.
— Ivan está a caminho — Andrei diz, guardando o celular no bolso
enquanto entramos na casa. A porta foi arrancada do batente.
Um bombeiro vem ao nosso encontro com as mãos esticadas,
impedindo nossa passagem. Ele usa capacete e uma máscara de respiração do
rosto.
— Desculpe, senhores. A aproximação de civis no foco do incêndio
está proibida por enquanto. Havia muitos entorpecentes e outras drogas
escondidas nos galpões e a fumaça não é segura, mesmo que o fogo tenha
sido controlado.
— Sargento. — Andrei assume a frente da conversa, faz um
cumprimento respeitoso antes de continuar. — Esse é meu irmão, Vladimir
Volkiov. Fomos chamados para conferir os danos causados na estrutura do
nosso edifício.
A postura do homem muda imediatamente, reconhecendo nosso
sobrenome.
— Poderia nos explicar o que aconteceu aqui? — peço o mais
controlado possível à medida que assimilo o estado degradante no interior da
casa.
— Ainda não temos informações oficiais, mas, aparentemente, a
residência estava sendo usada como esconderijo de uma gangue local para o
armazenamento de mercadorias ilícitas. — O sargento do corpo de bombeiros
nos guia para os fundos da casa enquanto prossegue com as explicações. Não
mencionamos nada sobre já sabermos de tudo isso. — Seis pessoas foram
detidas e todas alegaram que um homem chamado Camillo Fajardo iniciou o
incêndio intencionalmente. Os policiais confirmaram que ele morava na
residência, embora ela pertença à irmã.
Meu irmão nega minimamente com a cabeça, alertando para não insistir
no assunto por enquanto ou podemos comprometer Serena de alguma forma.
Mas a preocupação presa nos meus pulmões continua se expandindo.
Recebemos duas máscaras pequenas para nos aproximarmos dos
galpões, que foram reduzidos a cinzas muito rápido; segundo os peritos, por
causa da madeira velha e dos muitos materiais inflamáveis escondidos lá
dentro.
Os danos ao clube foram menores, pelo menos vistos nesse ângulo.
Precisaremos que Roman avalie melhor pelo lado de dentro, mesmo que eu
deteste a ideia de me reunir com ele pela próxima década.
Depois do que pareceram horas — e de enviar mais uma dúzia de
mensagens para Serena — retornamos para dentro da casa bem a tempo de
encontrar Ivan sendo escoltado por outro oficial.
— Como está Lara? — Andrei pergunta antes de qualquer coisa, mas
Ivan abre um sorriso maior do que qualquer outro que eu já tenha visto.
É um daqueles sorrisos que fazem inveja.
— Eu vou ser pai! — anuncia, depois corrige. — De novo. Lara está
grávida de um filho meu.
— De quem mais seria? — Andrei gargalhada, abraçando Ivan.
Mesmo em meio aos sucessivos desastres, a alegria do meu irmão nos
contagia. Pelo menos agora que nós todos já sabemos, poderemos cuidar de
Lara como ela merece.
— Descobriu isso sozinho? — pergunto, abraçando e parabenizando
Ivan, que faz uma careta.
— Todos já sabiam então? — confirmo, sem explicar que Serena
deixou escapar. Dizer o nome dela vai além das minhas capacidades por
enquanto. — Ela fez uma surpresa junto com Iago, que acabou virando uma
reunião de negócios porque aquela mulher só pensa em trabalhar. Talvez eu
precise a prender em casa pelos próximos sete meses. Mas conversamos
sobre isso depois. — Ele faz sinal em direção a saída. — Alguma notícia da
Serena?
— Nada ainda — responde Andrei. — Ela disse que viria para o
distrito, então pensamos que pudesse estar aqui, mas nenhuma notícia por
enquanto. O celular está desligado…
O restante das palavras de Andrei é calado por um policial que passa
por nós com um casaco pendurado nas mãos e uma bolsa dentro de um saco
plástico transparente.
São dela.
— Ei, ei! Onde encontrou isso? — questiono, entrando na frente do
homem, sem me importar com a falta de respeito. Ele me encara com o
semblante rígido, mas responde mesmo assim.
— Estava ao lado do corpo, senhor. A bolsa nós encontramos na
cozinha.
— Corpo? — pergunto, alarmado, avançando para perto do policial.
Andrei coloca um braço na minha frente antes que eu segure o homem e o
obrigue a falar.
— O corpo de Camillo Fajardo foi encontrado na sala com sinais de
overdose — explica. — Ele foi levado pela perícia para ser examinado.
Ela esteve aqui.
— A dona dessas peças, vocês a encontraram? — Ivan é quem faz a
pergunta. Eu estou paralisado, pensando no que pode ter acontecido.
Será que ela sabe sobre a morte de Camillo? É possível que tenha visto
o incêndio? Que tenha se machucado?
Por favor, Deus, ela não pode ter se machucado.
— Sinto muito, não temos essas informações ainda. Não encontramos
ninguém na casa além dos homens que foram detidos.
Andrei começa a interrogar o policial com sua boa e velha lábia de
advogado. Às vezes é assombroso assistir meu irmão, sempre doce e
bondoso, em ação. Se Andrei quisesse e gostasse do poder tanto quanto eu,
ele seria imbatível.
O sentimento de impotência me causa uma angústia surreal. Não saber
onde Serena está e o que está fazendo agora parece desestruturar toda a
minha mente. Não poder ter certeza da sua segurança me deixa ainda mais
irritado e decepcionado comigo mesmo.
Eu causei isso. Eu a afastei, humilhei e julguei. Mandei Serena embora,
porra! Que merda de homem faz uma coisa dessas?
Um burburinho na entrada chama nossa atenção. Roman está
estacionando a moto na frente da pequena escada, discutindo com policiais
como se fosse o dono da rua enquanto retira o capacete. Depois de alguns
gritos, eles abrem passagem ao mesmo tempo em que nos aproximamos.
Não consigo esquecer aquela cena, o beijo, Serena em seus braços. Mas
todo tipo de vingança não parece suficiente ainda. Precisa ser algo à altura.
Roman não é idiota, ele sabe que não vai ficar impune por muito tempo.
— Você entende que não adianta brigar com ele, certo? — Andrei
sussurra. — É do Roman que estamos falando, aquele beijo não significou
nada, Vladimir.
É claro que sei, bem lá no fundo eu entendo por que Roman a beijou de
volta — primeiro, por ser um imbecil, e, segundo, porque ele faria qualquer
coisa por Serena naquele momento de desespero. Ela estava se quebrando
bem na frente dos nossos olhos, eu a estava despedaçando, e Roman jamais
negaria qualquer tipo de apoio que pudesse mantê-la inteira.
Isso não diminui a minha raiva.
Mas meus olhos encontram os dele e toda a preocupação com o beijo
evapora, dando lugar a outra coisa, um sentimento devastador, sem nome,
sem forma. Não preciso de nenhuma palavra para entender que algo
aconteceu.
— Onde ela está? — pergunto. Roman comprime os lábios. Ele desvia
o rosto pálido, deixando o cabelo deslizar sobre a testa.
— Eu sinto muito, Vlad. Serena, ela… — Roman engole seco, a
sombra da tristeza que engloba meu irmão começa a se arrastar na minha
direção. — Encontraram o carro dentro do rio, só conseguiram retirar agora e
entraram em contato através da placa.
Escuto sua voz, mas não entendo. Não quero entender.
— O que você está tentando dizer? — Ivan faz a pergunta no meu
lugar.
Roman aperta o punho no capacete, mas nada me prepararia para o que
diz em seguida:
— Algumas testemunhas viram quando ela ignorou um bloqueio na
ponte perto de Novospasskiy. O carro foi flagrado em alta velocidade pelos
sensores de trânsito antes de cair no rio. — Fecho os olhos, não querendo
escutar. Não pode ser verdade. Não ela, por favor. — Serena tentou se matar,
irmão.
Não.
Não.
O que foi que eu fiz?
A risada de Serena me acerta em cheio, uma lembrança reluzindo no
meio da desesperança, junto com declarações de amor sussurradas no meio
da noite. Minha Serena, pequena, machucada, desesperada. Eu deveria ter
protegido a mulher que amo, deveria ter sido a sua força.
Eu deveria… ah, céus.
Corazón, o que foi que eu fiz?

***

Odeio o cheiro do cloro mais do que odeio repórteres.


Rezar não é algo que eu faça com frequência, mas parece a única coisa
que ainda me resta antes de colocar esse hospital abaixo, junto o maldito
cheiro de cloro.
Espero que Deus atenda às preces dos demônios também, pelo menos
daqueles que oram pela vida dos seus anjos.
Serena está viva, por algum milagre continua viva. Depois do que
Roman disse, não foi difícil descobrir o seu paradeiro. Em poucas ligações
descobrimos o nome do hospital. Tento não a imaginar atrás do volante
daquele carro, avançando para a morte, desejando a morte, caindo em direção
à água. Sozinha. Eu a deixei sozinha.
Minha Serena. Quantas vezes eu disse para ela que me pertencia?
Quantas vezes disse que a amava? Que a protegeria? Não entendo nada do
que está acontecendo, como Serena se encaixa nessa história confusa
envolvendo o irmão dela e meu pai, mas ela continua sendo a dona do meu
coração e perdê-la assim seria pior do que a morte. Pior do que qualquer
coisa.
Não posso viver em um mundo em que Serena não exista.
Abaixo a cabeça e realizo minha milionésima prece no saguão de
espera para visitantes. Serena está em algum lugar recebendo atenção dos
médicos e não estou ao lado dela. O passar dos segundos apunhala meu
coração sincronicamente enquanto repasso na minha mente toda crueldade
que derramei em seus ombros.
Meus irmãos estão comigo, um mais impaciente que o outro. Odeio
admitir, mas Roman é o único com quem posso contar caso decida invadir o
quarto de cada paciente até descobrir onde está a minha mulher. Ele anda de
um lado para o outro com sua jaqueta de couro pendurada nas costas,
soltando alguns palavrões de vez em quando.
Disseram para esperarmos.
Esperar pelo que, exatamente?
Não sei esperar, odeio esperar! Odeio repórteres, cheiro de cloro e
odeio esperar por notícias da minha mulher que pode estar morrendo.
Eu só queria voltar no tempo e fazer as coisas direito.
— Alguém já avisou nossa mãe? — Andrei pergunta apaticamente,
com os olhos fechados e a cabeça escorada na parede.
Ivan nega, sentado de frente para mim.
— Lara está grávida, melhor não preocuparmos as duas antes das boas
notícias. Vocês sabem como temos a sobrecarregado com a empresa nas
últimas semanas, e nossa mãe está ajudando com as crianças.
Roman para de caminhar em círculos e encara Ivan, erguendo a
sobrancelha.
— Descobriu isso sozinho? — implica, sorrindo com deboche. Mas
aquele brilho orgulhoso reluz em seus olhos ao ouvir sobre a gravidez de
Lara.
— Qual o problema de vocês? — reclama Ivan, bufando com os braços
cruzados.
Antes que os dois continuem com a provocação mútua, um jovem
médico entra na sala segurando uma prancheta. Ele avalia nós quatro com
olhos escuros, demorando-se em mim com uma dúvida severa ocultada pelo
semblante profissional. Não deve ser mais velho do que Roman, mas o jaleco
branco confere alguma credibilidade.
— Acompanhantes de Serena Fajardo? — questiona. Um leve sotaque
faz as palavras soarem cantantes, menos grosseiras. Nós confirmamos
enquanto ele folheia os papéis em busca de confirmações. — Meu nome é
Castilho Molina, são parentes da paciente?
— Ela é minha mulher — digo, ficando de pé e avançando em sua
direção.
— Ah… — Ele franze as sobrancelhas, desconcertado. Encara suas
anotações outra vez.
Isso está começando a me irritar.
Muito…
— Algum problema? — questiono, mais ameaçador e menos
apavorado. Meus irmãos fingem prestar atenção em outras coisas enquanto o
médico me encara de volta, confuso.
— Nada de matar o médico, Vladimir — Andrei sussurra atrás de mim,
apoiando a mão no meu ombro.
Matar, não. Talvez machucar um pouquinho. Quem sabe assim ele me
leve até Serena mais depressa.
— Nenhum — decide sabiamente o jovem doutor. — A paciente
apenas disse que não era casada.
O alívio que sinto faz todo o meu corpo relaxar. Procuro a primeira
cadeira e me sento, não confiando nas minhas próprias pernas. Isso significa
que está consciente, que consegue falar, que não está morrendo.
Que eu não estou morrendo.
— Como… — gaguejo, minha garganta queima. — Como ela está?
— Acabou de acordar — informa, os olhos presos em seus diagnósticos
cheios de rabiscos. — Realizamos todos os exames necessários para ter
certeza de que estava tudo bem. Fora algumas poucas escoriações, ela
conseguiu sair praticamente ilesa do acidente. O airbag do carro amorteceu o
impacto, mas ela deve ficar com alguns hematomas na região torácica pelos
próximos três ou quatro dias. Também controlamos a temperatura corporal
para evitar um quadro de hipotermia, mas se quiserem mais informações
sobre o resgate, precisam se informar com os policiais. Ela teve muita sorte.
Constatamos indícios iniciais de anemia associadas à gravidez, por isso
vamos continuar monitorando sua recuperação pelas próximas setenta e duas
horas…
O doutor Molina continua falando outros termos médicos mais difíceis,
alguma merda sobre Serena ter passado por um grande estresse e seu corpo
ter desligado para se recuperar. Outras coisas que não fazem sentido, como a
impossibilidade de realizarem um raio-x, também por causa da gravidez.
Gravidez.
— O que foi que você disse? — sussurro, ciente de que esse é o tom
que eu utilizo apenas contra pessoas que realmente testam a minha
inexistente boa vontade. O médico se cala, arregalando os olhos. — Ela está
grávida?
Passando os olhos pelos rostos surpresos dos meus irmãos, o doutor
Molina enrijece as feições, assumindo uma expressão neutra e muito mais
profissional. Ele aquiesce, confirmando ao mesmo tempo em que uso todo o
meu autocontrole para não descontar no homem o meu pânico e todo o
desprezo que sinto de mim mesmo agora.
Um filho. Nosso segundo bebê. Vamos ter outro bebezinho juntos.
— O bebê está bem — explica condescendente. Meus olhos devem
estar escancarando a surpresa dessa revelação mais do que eu gostaria de
demonstrar. — Tem uma mãe muito corajosa. Vocês podem conversar com a
obstetra, se quiserem.
— Grávida — digo, decepcionado comigo mesmo. Tantas vezes eu
desejei em segredo que isso acontecesse, cultivei a vontade egoísta de que
carregasse um filho meu.
Mas então, expulsei a minha mulher de casa.
Grávida.
Ela quase morreu com meu filho dentro da barriga por minha causa.
Eu preciso tocá-la, preciso ver seus olhos abertos e ter certeza de que
não matei a minha família.
— Me leve até ela — ordeno, meus olhos queimam agora. Minhas
lágrimas não derramadas me recordam do seu choro quando a humilhei no
meio do meu acesso de raiva infundada. Deus não ouviria as minhas preces.
Talvez eu os tenha perdido, talvez seja mentira que ambos estão bem. Deve
ser mentira. — Preciso ver com meus próprios olhos.
— Mas… — diz, olhando para trás como se buscasse um pretexto para
negar o meu pedido.
— Ei, amigo, quer um conselho? — Roman coloca o braço ao redor do
médico e aperta, dando tapinhas de leve em seu ombro. — Faça o que ele está
dizendo, vai ser melhor pra todo mundo.

***

No caminho entre o saguão e o quarto, tento me preparar para todas as


possibilidades do que me aguarda. Imagino Serena com os olhos fechados,
frágil, machucada e sozinha. Imagino a dor em seus olhos depois de tudo o
que passou, os cabelos espalhados nos lençóis brancos manchados com
lágrimas, sua força esvaindo aos poucos.
A única alternativa de passar por isso sem ser engolido por todos os
problemas é me torturando, então apenas permito que os pensamentos mais
dolorosos fluam livremente. Serena se jogou de uma fodida ponte e a culpa
não desaparece, pelo contrário, cada passo que me leva para mais perto dela
também faz com que o arrependimento impeça a passagem de ar até os meus
pulmões.
Não estou acostumado com esses sentimentos — remorso,
arrependimento, culpa, não sei como lidar com eles sem causar um estrago
ainda maior.
No entanto, assim que entro no quarto, seguido pelo médico, vejo seus
olhos desfocados reluzindo com a luz da manhã que é filtrada pelas cortinas
brancas. Ela está viva. Serena pisca devagar, habituando-se à nossa chegada
repentina, e dedico vários segundos para examinar seu rosto salpicado com
pequeninas escoriações. Os fios descontrolados e negros contrastam com a
branquidão do quarto e caem sobre os ombros sem qualquer ordenação, e sou
arrebatado pela maneira quase sobrenatural que faz o mundo ter tanto sentido
só porque a tenho por perto.
Não penso duas vezes antes de acabar com a distância entre nós,
ignorando seu arquejo de surpresa ao ter meus braços envolvendo seus
ombros, prendendo seu corpo só para ter certeza de que não estou sendo
enganado pelos meus próprios olhos.
Espero que diga algo primeiro, que me empurre ou grite comigo, que se
explique. Mas Serena não faz nenhuma dessas coisas — isso não deveria me
surpreender, vindo da mulher mais completamente fora da caixinha, cujo
objetivo de vida é me causar uma parada cardíaca. Separando nosso abraço
alguns centímetros, ela segura meu rosto e me arrepio com suas palmas
geladas.
— Você demorou — sussurra, para meu alívio. Há uma leve rouquidão
nas palavras misturada com um arfar sôfrego; mesmo não parecendo
fisicamente debilitada, esse pequeno detalhe é suficiente para fazer todo meu
corpo se contorcer por dentro. — Pensei que os carros do presidente fossem
mais rápidos do que isso.
— Eu não sabia. — Deslizo meus dedos na linha que desenha seu
maxilar, subindo pela bochecha até as maçãs do rosto, acariciando com
cuidado a pele pálida. — Quando Roman me contou, pensei que você… Eu
pensei…
O médico pigarreia atrás de nós, chamado atenção de Serena, que se
desvencilha de mim e inclina sobre os travesseiros. Não me dou ao trabalho
de olhar para ele, com medo de que ela desapareça se eu desviar os olhos por
um segundo que seja.
— O senhor Volkiov insistiu em vê-la — explica calmamente;
prestativo, eu diria.
Mas Serena é esperta e me conhece bem demais para acreditar que foi
só isso.
— Ameaçou o meu médico, Lord Vlad?
Não respondo o óbvio. Serena revira os olhos e acena que está tudo
bem para o doutor. Relutante, ele nos deixa sozinhos, fechando a porta ao
sair. O hospital é bem equipado, mesmo não sendo o melhor da cidade.
Talvez eu devesse pedir uma transferência, mas tudo vai depender dela agora.
— Serena… — chamo seu nome, odiando não conseguir usar o apelido
como antes.
Corazón.
Há tanta coisa entre nós, tantas histórias e mentiras, tantas perguntas
não respondidas e segredos não revelados, mas que parecem insignificantes
neste momento. Gostaria que tudo desaparecesse, que existisse um mundo em
que eu pudesse levar Serena para nossa casa e dormir ao seu lado sem me
importar com a empresa em declive, com investigações criminais, Nicolai e
seus enigmas sobre botões e prédios desabados, ou qualquer coisa que não
envolva ela em meus braços, em um mundo em que eu não tivesse sido um
cretino.
— Estou com medo — diz, pegando-me de surpresa. Ela segura minha
mão, entrelaça nossos dedos. — Preciso que faça uma coisa por mim.
— O que você quiser — respondo, cada vez mais ciente de toda a
fragilidade que esteve escondendo desde quando nos conhecemos.
Serena fecha os olhos, aconchegando-se mais na cama. Há um
cortezinho no seu arco do cupido, bem no centro dos lábios, que me faz ter
vontade de beijar aquele ponto.
— Eu acho… — murmura — que meu irmão está morto.
Ah, droga, droga, Camillo!
Eu deveria sentir pena por ele, mas no momento só encontro a raiva
por, mesmo em sua morte, ainda trazer tantos problemas e sofrimento à irmã.
Trago sua mão até a minha boca, deixando um beijo demorado sobre
cada uma de suas juntas nos dedos. Noto quando prende a respiração,
compreendendo o destino do irmão, e nem mesmo consigo me imaginar em
seu lugar.
Perder um dos meus irmãos… Eu certamente iria preferir a morte.
— Eu sinto muito, Serena.
Ela aquiesce, forçando um sorriso com os lábios fechados, mas sua
respiração muda de ritmo, tornando-se mais profunda e acelerada.
— Houve um momento… — Serena umedece os lábios com a língua
para disfarçar a rouquidão. — Quando eu estava caindo da ponte, houve esse
momento exato em que tudo ficou muito escuro. Eu pensava que coisas
perigosas me atraíam, que um pouquinho daquela Serena que tentou buscar
alívio na morte ainda estava viva aqui dentro. — Sua mão vai de encontro ao
coração. — Mas não é verdade. Eu fiquei com medo, com tanto medo de
morrer.
— Corazón, não diz isso, por favor.
Meu pedido não surte efeito algum. Serena não abre os olhos, continua
parada, pensativa, o peito subindo e descendo com a respiração acelerada. Ela
está quebrada, percebo mais tarde do que deveria. Por que é tão inconcebível
admitir que a minha Serena, sempre sorridente, forte e destemida de repente
parece frágil demais, quebrada demais?
Que essa é a mesma mulher que, há poucas horas, estava me
enfrentando com lágrimas nos olhos como se nada no mundo fosse capaz de
feri-la?
Eu sou o responsável por isso, ninguém mais. Suas palavras quando a
fiz chorar ainda estão frescas na minhas memória, ecoando sombriamente
dentro da minha cabeça: "Você disse que me destruiria, Vladimir. Eu deveria
ter escutado".
— Sinto que devo chorar a qualquer momento, mas não quero fazer
isso sozinha. — Serena abre os olhos e minha própria face umedece com a
tristeza que enxergo lá dentro junto com lágrimas contra as quais ela luta com
afinco. — Você poderia fazer isso por mim? Ficar comigo até isso passar?
Acomodo-me ao seu lado na cama, abraçando o corpo junto ao meu.
Ela deita a cabeça em cima do meu peito, segurando a frente da minha camisa
com força.
Há um alerta se estendendo dentro de mim, lembrando que não devo
me apegar a suas manifestações de afeto agora, que Serena foi exposta a todo
tipo de pressão nas últimas horas e eu talvez seja a única pessoa que resta
para confortá-la. É passageiro, eu sei, merda! Mas eu serei o que ela precisa
pelo tempo que desejar.
Depois, estaremos de volta à fatídica realidade em que eu condenei a
ambos.
Seu choro chega silenciosamente, molhando a minha camisa. É
diferente de antes, quando estava louca de raiva. Dessa vez é pior, porque ela
não pode descontar em mim e eu não posso extinguir sua dor.
Tanto poder, tanto dinheiro, tanto renome, e nada disso é suficiente
para corrigir meus erros com a mulher que amo.
Serena soluça baixinho, e é o som mais aterrador que já escutei na
minha vida. Tenho certeza de que nunca mais vou esquecer o ruído do seu
choro e que essas mesmas notas serão entoadas para sempre como a melodia
dos meus medos.
Não consigo calcular o passar do tempo, alheio ao mundo correndo ao
nosso redor. Mas parece que décadas se passam até que os soluços acabem e
o meu martírio tenha um fim.
Concedo o silêncio como presente, para que ela escolha como quer
reagir, o que gostaria de dizer. É hora de ouvir ao invés de ser ouvido, mesmo
que isso não nos leve de volta um para o outro. Preciso entender por que
decidiu se jogar daquela ponte, o que aconteceu depois que saiu de casa,
quando estava com o irmão…
— Você vai ser preso? — pergunta, fungando.
É a cara dela se preocupar mais com os outros do que consigo mesma.
Sorrio contra seus cabelos, querendo desesperadamente nunca sair desse
quarto, dessa cama.
— Não precisa pensar sobre isso agora. Andrei vai resolver tudo, não se
preocupe.
Contra a minha vontade, ela senta e abraça os joelhos, enxugando os
olhos com a manga da roupa hospitalar. O abandono é imediato e o vazio
retorna com força. Combatendo o capetinha possessivo gargalhando no meu
ombro, arrasto a cadeira de visitas para perto da cama e me sento enquanto
Serena acompanha todos os meus movimentos.
Ainda está abatida, os olhos carregam marcas do choro recente em sua
tonalidade avermelhada. Por que tentou se matar?, quero perguntar, mas
seria arrogante e egoísta fazer isso, ainda mais com meu filho em seu ventre.
Nosso bebê.
— Serena, você está grávida. Se eu soubesse…
Instintivamente, suas mãos buscam a barriga e eu fecho os olhos por
alguns segundos para expulsar o desejo de fazer o mesmo, de acariciar nosso
filho protegido dentro do seu corpo. Não sei por quanto tempo vou aguentar
essa péssima ideia — correta, mas ainda péssima — de fazer a coisa certa
antes de decidir a sequestrar de volta ou qualquer absurdo do tipo.
Vá com calma.
— É isso, então? — Sua postura muda de repente. Ela termina de
limpar o rosto para eliminar qualquer resquício de vulnerabilidade e se
recompõe, como se eu tivesse acendido o pavio de uma bomba. — Vai me
acusar de dar o golpe em você? Não vai dizer que isso também foi um plano?
— O quê? Serena, não, é claro que não… — Começo a levantar, mas
ela abraça a própria barriga como se não me quisesse em contato com nosso
bebê.
Isso dói para caralho.
— Talvez esteja achando que fiz de propósito para conseguir dinheiro
— acusa severamente, a rebeldia e o fogo reacendendo em seus olhos. —
Acha que meu irmão estava envolvido nisso também, que me mandou transar
com você por interesse? Ah, não, me deixe adivinhar! — Ela vai elevando a
voz e me agarro à cadeira para não calar sua boca com um maldito beijo. —
Vai perguntar se o filho é seu? Me acusar de dormir com algum dos seus
irmãos, quem sabe os dois ao mesmo tempo? Afinal, é isso o que você pensa
de mim, não é mesmo, presidente?
Presidente.
— Não, não. Serena, não diga isso, por favor — imploro, esforçando
para que soe suave ao invés de autoritário. — Eu fui um cretino ao dizer
aquelas coisas. Gostaria de culpar tudo o que está acontecendo com a
empresa, meu pai ou qualquer coisa, mas nós dois sabemos que não há
explicação suficiente.
Com o semblante vívido e minucioso, Serena pondera sozinha, fazendo
caras e bocas como sempre acontece quando entra em um conflito consigo
mesma. É linda, maravilhosa. Eu não vou conseguir ficar longe, não vou
mesmo.
— Sabe o que é pior nessa história toda? — questiona retoricamente.
— Entendo por que agiu daquela forma. Entendo mesmo. Você estava certo
sobre o meu irmão. Ele realmente era culpado por todos os problemas que
seu pai enfrentou, sabe? Na vida do crime com as dívidas e na empresa.
Antes de morrer, Camillo me disse por que odiava você, sua família e
principalmente seu pai.
Então Elena disse a verdade sobre isso, mas não vou cometer o erro de
citá-la na frente de Serena nunca mais.
Tenho que ser sincero assim como ela está sendo comigo, como nós
deveríamos ter sido o tempo todo. Por mais que odeie a relação dela com
Nicolai, se isso me contaminar para sempre então jamais seremos felizes
juntos
E eu quero ser, preciso ser.
— Meu pai representa uma fase muito dolorosa da minha vida —
confesso, encarando minhas mãos. A simples menção ao nome dele
ressuscita um pouquinho da revolta que tanto me caracteriza pelo que aprendi
a ser. Um monstro, o presidente com coração de gelo. — Já entendi que ele é
importante para você, embora isso me perturbe.
Os dedos de Serena afundam no meu cabelo suavemente, um carinho
que amansa o desconforto com o assunto. Mesmo assim, não ouso erguer a
cabeça para que ela não se decepcione com o que vai enxergar.
— Ele me salvou — afirma. Escuto o farfalhar da sua movimentação na
cama e tenho uma noção distante de que se deitou. Meus dentes rangem por
causa da força que utilizo para manter o maxilar cerrado. — Quando eu tentei
me matar, seu pai apareceu na minha casa. Eu estava presa no banheiro e…
— A frase se perde, assim como as batidas do meu coração. — Lembro da
sensação, de não conseguir respirar, do meu coração acelerado e o ardor na
garganta. Mas também me lembro dos olhos dele, arregalados, apavorados,
da boca se movimentando como se gritasse alguma coisa. Ele disse: você
quer viver?
Nicolai… a salvou?
Isso não faz sentido. Ele não salva, não ajuda. Como pode ser a razão
por Serena continuar viva? Por eu ter tido a chance de encontrá-la? Não faz
sentidos que nossos Nicolais sejam a mesma pessoa.
— Não entendo… — Tento com todas as forças encontrar coerência
em sua explicação. — O que Nicolai estava fazendo na sua casa?
— Ele disse que estava passando e escutou os meus gritos. Mas,
Vladimir? — A súplica faz minha cabeça girar na direção dela. Serena,
deitada de lado com a cabeça sobre o antebraço, me captura em um oceano
infinito de piedade. — Eu nunca gritei.
Algo me diz que estou bem perto de descobrir uma coisa que vai mudar
tudo, um daqueles momento em que a vida da gente fica marcada e tudo o
que existiu antes se torna um amontoado de histórias sem importância.
— Então, como? — pergunto, devastado com o desejo de voltar para
seu lado quente na cama estreita.
— Nicolai foi até a minha casa pelo mesmo motivo que levou meu
irmão a tentar destruir tudo o que envolvia o sobrenome do seu pai até hoje.
— Ela morde o cantinho da boca, o meu preferido. — Eu ouvi vocês falando
sobre o prédio que desabou. Se você procurar dentre as vítimas, vai encontrar
os nomes dos meus pais.

***

Serena aguarda até que eu diga alguma coisa, mas minha única reação é
encarar seus lindos lábios franzidos e a maneira como ela consegue arquear
as sobrancelhas quando fica ansiosa.
— Como pode ver, nunca houve nada minimamente romântico entre
seu pai e eu, Vladimir. Sendo bem sincera, é claro que ele era bonitão,
charmoso e tinha aqueles ombros largos, mas ele foi como um segundo pai
para mim, nada mais que isso.
Absorvido pelo choque, outras evidências se somam à sua afirmação. É
por isso que Maksim conhecia meu pai e usou isso contra mim na primeira
vez em que nos encontramos, e foi isso o que Elena quis dizer quando
mencionou a forma como havia encontrado Serena na época em que eu ainda
não sabia quem ela era.
— Então ele matou os seus pais, Serena — pontuo com muito cuidado.
Não quero perturbá-la.
Uma brisa suave, vinda da janela aberta, faz seus cabelos dançarem
enquanto ela pensa com o indicador pousado em cima do queixo. As
vestimentas largas do hospital deixam à mostra todo o colo ao redor das
clavículas e, tal como o médico havia afirmado, há alguns mapas lilases
marcados na pele.
Gostaria de beijá-los.
— Talvez — conclui, despreocupadamente. — Isso pode ser uma
verdade, e eu me sinto devastada que ele tenha morrido levando esse
arrependimento.
Não aguentando continuar sentado, levanto-me e caminho pelo quarto
cheio com aparelhos que apitam. Um televisor desligado está acoplado em
uma parede e, ao lado da cama, há uma espécie de balcão.
— Você consegue se ouvir falando? — pergunto. Dessa vez não
consigo disfarçar um pouquinho de rispidez. Ela reage, sorrindo, porque é
doida. — Como ainda pode defendê-lo?
Serena joga as pernas para fora da cama, expondo os pés descalços. A
camisola hospitalar está franzida na altura das coxas e ela não faz questão
nenhuma de esconder, de modo que uma parte do meu cérebro começa a
falhar.
— Estão mortos, Vladimir. — Cruzando os braços, seus seios se
avolumam e um pedacinho da tatuagem foge pela gola da roupa. — De que
adianta odiar um cadáver? Eu não posso trazer meus pais de volta e muito
menos o seu, mas amei todos eles incondicionalmente e não é agora que isso
vai mudar.
Cristo! Por que ela tem que ser tão teimosa?
Mantenho uma distância segura e tento explicar com calma.
— Seus pais morreram. Tudo o que você passou até hoje, foi por causa
de Nicolai e da minha decisão em acobertar o caso. Se vocês tivessem tido
suporte da empresa, talvez você não tivesse… Talvez seu irmão estivesse
vivo.
— Talvez, é verdade. — Interrompe. Vindo até mim, bate o dedo
indicador no meu peito. — Ou talvez, com a falência e um escândalo daquele
tamanho, a Corporação Volkiov tivesse acabado. — Espalmando as mãos
sobre o meu coração, trilha um caminho até o meu rosto. — Ou ainda, quem
sabe, eu tivesse depressão de qualquer forma e, sem o suporte que seu pai me
ofereceu, ninguém conseguisse me impedir de cometer suicídio. Eu não tentei
me matar porque eles morreram, Vladimir, mas porque a minha mente e a
minha alma estavam doentes. Não temos como mudar o passado, mas isso
que estamos fazendo um com o outro agora, as coisas que me disse ontem,
não podemos culpar ninguém além de nós mesmos, e é com isso que estou
preocupada! Você me fez amar você — acusa, sussurrando.
Imito sua pose e também embalo suas bochechas com as minhas mãos,
afagando as maçãs do rosto com o polegar. Ela é tão pequena, teimosa e
doce. Mas ao mesmo tempo consegue ser intensa e forte, olhando-me sem ter
medo, sem julgar os meus defeitos.
Sou mesmo um idiota por ter estragado tudo.
— Precisa parar de ser tão boa, Corazón.
Serena sorri, orgulhosa, arrebitando o nariz como um… ratinho.
E lá vamos nós com as comparações ridículas.
— Olha, eu concordo, gente boa só se fode. É a lei natural da vida.
Mas, apesar de eu claramente me ferrar pra caramba, você precisa entender
que não sou nada boa, Lord Vlad. Ninguém é completamente bom ou
completamente mal, ou o mundo seria um tédio. — Ela diz tudo muito
rápido, quase não consigo acompanhar. — Além disso, não foi pelo seu lado
bom que eu me apaixonei.
Virando-se, Serena dá um passo para longe, na direção da cama. Um
único passo, pouquíssimos centímetros, e meu corpo age por conta própria,
puxando-a de volta.
— Eu perdi você? — murmuro no seu ouvido, suas costas encaixadas
no meu corpo. A respiração acelerada e morna chega até o meu braço que a
mantém presa.
A resposta demora… Muito.
— Sim, presidente — decreta, rodando até ficarmos um de frente para o
outro. Os rostos próximos, as bocas fazendo promessas veladas, é muita
agonia. — Você me perdeu.
Ignoro seu tom desdenhoso, curvando até nossas testas se tocarem. Ela
poderia recusar o contato se quisesse, mas Serena apenas fecha os olhos e se
deixa consolar em nosso estranho abraço. Destruí a confiança que tinha em
mim quando me deixei levar pela cegueira do ódio, e agora não me restam
alternativas a não ser lutar contra as consequências.
— Não devia ter mandado você embora, não foi justo. Me perdoe,
Corazón, por favor, me perdoe — imploro, apertando-a com mais força.
— Não é tão simples — diz e, mesmo sem olhar seu rosto, consigo
sentir o sorriso. — A culpa não é totalmente sua, eu também estraguei as
coisas. Tive a chance de dizer a verdade sobre o seu pai e me acovardei.
Ainda beijei seu irmão. Mesmo você merecendo, foi errado. Eu faria de
novo? Com certeza, mas foi errado.
A lembrança ameaça ressurgir na minha cabeça, assim como o desejo
de acertar Roman com um soco. Eu o amo, mas continua sendo um maldito.
Além disso, soquei Andrei por bem menos…
— É verdade. Você foi bem cruel ao fazer isso.
Ela nem finge se importar.
— Eu já não tenho a mente lá muito certa das ideias, e você me
quebrou, Vladimir. Há menos de um dia, me expulsou da sua vida, escolheu
ser cruel comigo e ainda gostou bastante de incorporar o todo poderoso do
andar de baixo.
— Corazón, eu estava errado…
— Ah, sério? Conta uma novidade. É disso que eu estou falando… —
Serena ironiza, erguendo o nariz em sinal de afronta. Segura meu queixo,
seduzindo como sabe que apenas ela consegue fazer comigo, e passa os dedos
sobre os meus lábios, fazendo promessas que não pretende cumprir,
hipnotizada nessa ligação que nos conecta. — Quer saber? Não consigo
pensar direito com você tão perto.
Dessa vez, ao tentar se afastar, eu permito. Serena vai para a cama, se
senta com os pés pendurados, balançando-os para frente e para trás como
uma criança.
Ela é mesmo fofa.
E sexy.
Ao mesmo tempo.
E grávida, tem um bebê meu dentro dessa coisinha abusada.
— Eu vou conquistar você de volta — comunico, decidido. — Então
não faça isso de novo. Quando eu soube que tinha tentado se…
Não tenho coragem para dizer o restante, até por imaginar que não seja
adequado abordar o assunto assim, tão recente. Porém, pela expressão de
surpresa, eu diria que compreendeu muito bem.
— O quê? Você acha que eu tentei me matar por sua causa?
— A ponte… — explico, igualmente confuso. — Que você se jogou
com o carro. Você… Não fez de propósito?
— Gosto muito da minha vida, e vou gostar mais ainda agora que você
vai me pagar uma pensão bem gorda. Ninguém mandou dar o golpe da
barriga ao contrário.
Assumo meu lugar na cadeira, apoiando os cotovelos nos joelhos e os
punhos no queixo. Assim posso enxergar Serena sem a cascata ondular se
cabelos escuros escondendo seu rosto.
Se ela não tentou se matar, só há uma explicação para ter avançado
contra a ponte. E seja quem for o culpado, não vai sair impune.
— Me conte o que aconteceu.

***

— Muito bem, agora repita comigo: eu não vou assassinar ninguém.


— Não vou matar Maksim, Corazón — digo, sorrindo.
Serena me encara, desconfiada.
— Você está sorrindo, Lord Vlad. Eu conheço esse sorrisinho de "vou
esconder um corpo no jardim".
— Ele atirou em você! — justifico, irritado. Só não saí em busca
daquele filho da puta porque não quero ficar longe de Serena ainda. —
Tentou te matar. Não vai me convencer a deixar isso de lado.
Serena bufa, olhando ao redor do quarto, como se estivesse em busca
de alguma coisa para me bater.
Depois de contar com detalhes tudo o que passou após sair no meio
daquela chuva torrencial, Serena continua tentando me convencer a não fazer
nada contra Maksim.
Já estamos há mais de duas horas presos nesse quarto. Nesse meio
tempo, fomos visitados por duas enfermeiras. Uma delas fugiu bem depressa
ao perceber o clima tenso, enquanto a outra foi despachada por Serena sob
protestos de estar olhando demais o homem alheio.
— Eu não devia ter contado! — continua tagarelando. Está deitada,
com a mão pousada sobre o ventre, fazendo círculos inconscientes. — Seus
irmãos não vão concordar com essa insanidade!
Até parece que não conhece a minha família.
— Se eu não parar Maksim, um dos três vai fazer isso no meu lugar,
provavelmente Roman, e ele acabou de sair de um processo.
Serena me olha de esguelha.
— Odeio quando usa bons argumentos contra mim — resmunga,
testando meu autocontrole que está sendo esmurrando nesse segundo pela
vontade de beijá-la.
Para o bem da sua saúde, cedo um pouquinho, abrandando meus dedos
fechados que espremem as laterais da cadeira.
Maksim…
A sorte de Camillo é que está morto.
— Não vou matá-lo, tudo bem? Melhor assim? Conversarei com
Andrei antes de tomar qualquer decisão.
Serena continua desconfiada, dedilhando a barriga. Como eu queria…
— Por que não acredito em uma palavra do que está prometendo?
— Porque você me conhece. — Ela continua circulando o umbigo
enquanto falo. — Mas… prometo me esforçar.
— Ótimo! Não pretendo criar meus filhos sozinha sendo que posso
esfregar essa gravidez na sua linda carinha malvada que eu não acho nem um
pouco sexy. Zero, nadinha de nada, absolutamente não acho.
A forma como utiliza o plural para falar dos nossos bebês não deveria
doer, mas o golpe chega bem forte, quase um punhal perfurando a minha
carne. Parece que, quanto mais a gente conversa, mais eu encontro motivos
para nunca mais ser perdoado.
— Luna é nossa — digo, puxando a cadeira para mais perto, tentando
alcançar suas mãos. — Ontem, eu não devia…
As palavras somem assim que Serena alcança a barra da camisola e
começa a erguê-la distraidamente, deslizando o tecido sobre as coxas até
deixar uma maldição de calcinha à mostra antes de exibir a barriga.
Claramente uma diabinha.
— Você pode tocar, se quiser — oferece, interrompendo-me, fingindo
inocência. Remexe a cintura enquanto se arrasta para o lado, na beirada da
cama e mais perto de mim.
O ar deixa os meus pulmões como se eu tivesse trancafiado todo o
oxigênio do quarto lá dentro. Meus olhos não conseguem desviar da pele
macia em sua barriga, que ainda não exibe qualquer indício da gravidez;
apesar disso, imaginar que há um bebê nosso lá dentro, que o fizemos juntos
e que Serena agora carrega um pedacinho de mim em seu ventre desencadeia
uma sequência de sentimentos novos e arrebatadores.
Encosto meus dedos com cautela, atento à sua receptividade. Sinto a
textura macia ao redor do umbigo antes acariciar toda a barriga com a palma
aberta ao mesmo tempo em que Serena fecha os olhos, arrepiando-se com o
singelo contato. Ela tem o direito de não me querer, não mereço mesmo o seu
perdão. Mas isso que existe entre nós continua vivo, a conexão que nos une é
poderosa demais para ser esquecida no limbo dos nossos erros, e farei de tudo
para que permaneça assim. Inclino-me para frente e ouço o suspiro de
surpresa que foge da sua boca entreaberta quando beijo seu corpo, capturando
seu calor com os lábios.
— Tocar com as mãos, Lord Vlad — suspira, encolhendo o abdômen
com um calafrio afrodisíaco e quente. — Não com a língua.
Ergo os olhos, hipnotizado com o desafio presente em suas órbitas. Está
me provocando, testando, brincando com a minha mente.
— Não estou usando a língua — sussurro.
— Não mesmo. — Serena morde o cantinho do lábio inferior,
escondendo um sorriso vitorioso. — Mas seria uma ótima ideia. Fica a dica.
Rio contra sua pele, que reage, arrepiando-se. Decido, nesse instante,
que a barriga de Serena é minha parte preferida em seu corpo, seguida de
perto por aquele cantinho na boca.
— Então, não estamos mais juntos? — incito, obedecendo à sugestão e
umedecendo sua pele com a língua. Ela geme quando levo uma das minhas
mãos até sua perna direita e aperto a coxa macia com delicadeza, subindo
devagar.
— N… não? — gagueja. — Quer dizer, com certeza não. Ah, mierda,
isso não fazia parte do combinado. — Serena enfia os dedos nos meus
cabelos, puxando os fios com violência para que nos olhemos nos olhos
incandescentes um do outro. Aproveito para afundar minha mão cada vez
mais perto do tímido tecido rendado. — Não significa que perdoei você,
entendeu? Continuo brava, muito brava e… misericórdia, eu definitivamente
odeio você e a sua língua também.
— Eu posso parar — ofereço, provocativo.
Como resposta, Serena meio rosna, meio geme.
— Não se atreva ou eu juro que nunca mais volto pra você, está me
ouvindo? Vai ficar se aliviando sozinho pelo resto da vida! — ameaça.
Porém, quando me preparo para voltar a sentir o seu sabor, a porta do quarto
é aberta abruptamente, revelando um jovem doutor Molina muito vermelho e
um Andrei todo sorridente.
Cubro Serena, que começa a gargalhar. O processo todo é
desengonçado e constrangedor.
— Bom ver que fizeram as pazes — diz meu irmão, indo até uma
Serena com lágrimas nos olhos de tanto dar risada.
— Não fizemos — dizemos, juntos.
Andrei beija a testa de Serena, fazendo uma careta para nós dois e
negando com a cabeça.
— Não vou tentar entender. — Balança a mão, indicando o médico. —
Queremos saber quando poderemos levar Serena para casa.
— Não, obrigada — diz ela antes que o médico consiga apresentar sua
resposta. — Não tenho intenção de sair do hospital até o fim da minha
gravidez. — Serena puxa os cobertores na altura do pescoço, encolhendo-se
na cama hospitalar como um montinho teimoso.
Andrei se diverte, franzindo a sobrancelha para mim como se eu tivesse
todo esse poder de entender a mente dela.
— Seus exames estão ótimos, senhorita Fajardo. Não existem motivos
para preocupação — intervém o médico, combatendo o exagero de Serena.
— Eu sobrevivi a um incêndio, doutor. — Ela conta mostrando os
dedos. — Um incêndio, um tiroteio, uma perseguição de carro e caí de uma
ponte! Tudo isso em uma noite. Se eu sair por aquela porta, vai ser o fim da
humanidade, apocalipse na certa, escute o que estou dizendo. Meu bebê vai
estar ainda mais em risco.
— Nada vai acontecer nada ao nosso bebê, Serena — digo, engolindo a
vontade de prometer mais, de dizer que jamais a deixarei sozinha outra vez.
— Já aconteceu, Lord Vlad. Eu sou a mãe, isso já é risco o suficiente.
Aproveitem e tragam a Lara também, assim fazemos companhia uma pra
outra.
— Ótima ideia, sua traidorazinha. — Roman entra
despreocupadamente no quarto. Eu tento… Esforço-me muito para não sentir
ciúmes quando ele a abraça com carinho e cuidado, passando os olhos por
seu rosto para memorizar os machucadinhos esparramados por ali. Vai
demorar muito até que eu me esqueça dos dois juntos, por mais que o bom
senso tente me convencer que não significou nada. — Como isso foi
acontecer?
— Bem, quando o homem coloca…
— Serena! — recrimino, calando sua linha de raciocínio. O médico já
desapareceu faz tempo.
— Bom saber que sua cabeça continua funcionando perfeitamente,
bebê. — Roman dá alguns tapinhas na cabeça dela, depois volta para a porta
e se apoia no batente com os braços cruzados.
Agora que estamos nós três aqui dentro — e Serena —, o quarto parece
muito pequeno.
— Vladimir, pode nos explicar que história é esse de tiroteio? —
Andrei pede, desfrouxando sua gravata. Estamos todos sem dormir e o
cansaço é evidente em nossas roupas amarrotadas e olhos fundos.
Estudo Serena atentamente, sua reação ao assunto, mas aquele
momento de fragilidade em que chorou nos meus braços desapareceu,
restando um pouquinho da leveza que tínhamos alcançado antes da chegada
de todos.
— Tiroteio? — Roman pergunta, em alerta. — O que eu perdi?
Antes que eu ou Serena possamos explicar, Ivan chega e empurra
Roman para o lado, vindo até Serena para parabenizá-la pelo bebê. Ela não
perde a chance de pedir a companhia da minha cunhada.
Mal sabe Serena que Lara colocaria fogo nesse hospital se realmente
fosse obrigada a permanecer aqui por mais de uma semana. Ela não suporta a
ideia de ficar presa, e nós sabemos muito bem o porquê.
— Precisamos ir agora, Vladimir — Ivan informa, passados os abraços
e congratulações. Se antes o quarto parecia menor, agora está impossível
continuar aqui dentro. — Não sei se estão lembrados, mas Lara não vai para a
empresa hoje. Acabei de marcar uma coletiva para daqui três horas,
precisamos nos preparar.
Uma coletiva sobre o prédio.
— Já estamos cuidando de tudo sobre o funeral do seu irmão. —
Andrei informa Serena, sempre atento aos detalhes. — Há alguma coisa que
você gostaria que fizéssemos?
Ela nega tristemente.
— Só… Obrigada por fazerem isso mesmo depois de tudo o que ele
fez.
Aceno para Andrei, agradecendo silenciosamente por sua atitude.
Tenho certeza de que fez o mesmo por Annia também. Talvez os dois possam
ter o mesmo funeral.
Meus irmãos fazem fila para se despedir de Serena, enquanto eu
prometo atualizá-los sobre tudo o que Serena me contou assim que sairmos
do hospital.
A verdade é que temos tanta merda para resolver que precisarei de pelo
menos algumas horas de sono para traçar uma estratégia que nos livre de
todos eles.
Em teoria, o escândalo sobre os prédio e as famílias que perderam
parentes naquele desabamento — incluindo os pais de Serena — deveria ser
nossa primeira preocupação, seguida de perto pelo incêndio no clube e nossas
baixas financeiras; mas sei que toda a atenção vai se voltar para Maksim e
Efrem assim que eu repassar a verdade.
Para ter Serena de volta, vou precisar encarar os meus erros. Eu precisei
perder tudo para perceber algo tão simples.
— Vou voltar depois — prometo assim que somos deixados sozinhos.
Sento-me na borda da cama, apoiando a mão livremente sobre sua barriga,
por cima dos lençóis.
— Toda essa situação com a empresa, eu me sinto tão culpada. Vocês
vão ficar pobres?
— O quê? — pergunto, rindo. — De onde você tira essas suposições?
Não seja boba. Talvez não sejamos mais a empresa número um pelos
próximos anos, mas vamos sobreviver bem.
— Vocês ricos são um saco, sabia? — Ela revira os olhos, corada e
alegre.
— Desculpe por ser rico e incrivelmente eficaz, Corazón — brinco,
levando minha mão livre até seu rosto.
— Está me chamando de Corazón outra vez — observa,
surpreendendo-me. Não tinha me dado conta. — Obrigada.
Corazón… É o que ela representa para mim, meu coração. Gostaria de
entender por que meu pai a chamava dessa forma, e talvez um dia eu tenha
coragem para perguntar.
Ela é linda, perfeita, e a saudade chega antes mesmo que eu a deixe.
Não quero deixá-la. Não quero nunca mais. Lutar contra meu lado autoritário
e possessivo com Serena vai além do esforço humano. Ameaço juntar nossos
lábios, roubar um beijo egoísta, mas Serena contrai o corpo — é uma recusa
mínima, quase inconsciente — e paro a centímetros de distância, tão perto
que bastaria um sopro do vento para nos unir.
Trinco os dentes, recuando. Levanto, tomado pelo vazio, saudade,
medo e insegurança. Se eu a destruí, seria justo admitir que fez o mesmo
comigo?
— Eu aceito perder você por enquanto — declaro, afastando-me com as
mãos bem seguras e firmes dentro do bolso. — Só não me torture por muito
tempo.
Quando estou prestes a abrir a porta, ela me chama.
— Ei, Lord Vlad! — Seguro a maçaneta, olhando-a de longe, e se
parecia quebrada e pequena quando eu cheguei, agora ela se agiganta com
brasas no olhar e um sorriso de mil cores. — Eu amo você.
Mas que sacana…
— Bem… — digo, organizando o raciocínio após ser alvejado no
coração. Depois eu a jogo no ombro e carrego de volta e ainda vou estar
errado! — Isso está me deixando confuso.
— Sabe como é, para o caso de eu cair de uma ponte ou sei lá. Não
quero correr o risco de deixar você sem que isso esteja bem claro, sempre.
Concordo, feliz e triste ao mesmo tempo. Olhar para Serena, nesse
momento, é como assistir nosso amor preso dentro de uma redoma de vidro,
exposto em um show de horrores. Perto, perfeito, vermelho, mas ainda
inalcançável e proibido.
— Amo você também, Corazón.
TATIANA

ONDE O DIABO não pode ir, ele envia uma mulher, já dizia minha sogra,
que Deus a tenha…Ou não, existe contradição demais nessa linha de
raciocínio.
Nesse caso, pelo menos, ela tinha razão e merece os créditos.
À medida que avanço pelo saguão da empresa, cabeças e olhares viram
na minha direção, cochichos têm início e alguns mais espertos abrem
caminho sorrateiramente. Aqui é o território deles, meus queridos filhos; o
lugar onde governam como se nada no mundo fosse capaz de atingi-los, e é
por esse motivo que Vladimir tem se escondido no escritório, convicto de que
vai conseguir resolver todos os seus problemas se fundindo com as paredes
do edifício.
Acontece que paciência não é uma virtude que eu admire ou cultive.
Não. Deus me livre ser paciente com aqueles quatro! Só funcionam na base
da ignorância; cópias perfeitas do meu falecido marido. Não bastava morrer e
me deixar sozinha para criar nossos filhos, ele ainda tinha que colocar seus
variados defeitos em cada um deles.
Retiro os óculos escuros e dou uma boa olhada nas recepcionistas, que
se entreolham, as feições admiradas. Bonitinhas, com as sobrancelhas loiras e
os típicos olhos claros de grande maioria das russas. O que estraga são as
alianças nos dedos.
Uma pena, meus filhos ainda não aprenderam mesmo a escolher
funcionárias.
Sem perder mais do meu precioso tempo, me dirijo aos elevadores e
seleciono o andar da presidência a tempo de ver, através das portas se
fechando, a apreensão no rosto das mulheres. As pobrezinhas devem estar se
perguntando se é sábio anunciar ou não a minha chegada. Bem, não que fosse
fazer qualquer diferença.
Minhas noras estão super grávidas! Finalmente minhas preces foram
ouvidas e começaram a acertar o alvo. Mal posso acreditar que serei avó de
dois novos bebezinhos ao mesmo tempo. Tudo estaria perfeito, se não fosse
meu filho mais velho fazendo aquilo que os russos fazem de melhor:
esconder os sentimentos e fingir cara de paisagem. Ultimamente, só o vejo
em coletivas. Voltar pra casa que é bom, nada.
Assim que chego ao meu destino no último andar, percebo que há uma
reunião em andamento. Vladimir não está em sua mesa como de costume e
vozes irrompem do anexo em uma conversa acalorada sobre as vítimas do
acidente que, por sua vez, tem recebido toda a atenção da imprensa nos
últimos dias. Sair de casa se tornou uma verdadeira missão especial, dado o
número de repórteres e curiosos sempre à espreita.
Antes de fazer a minha entrada, dedico alguns segundos analisando a
sala familiar que tanto me faz lembrar daqueles dois, mas tão logo as
lembranças chegam, as mando para o limbo outra vez. Não é mais sobre
mim, e sim sobre o filho de péssimo temperamento que ainda não enfiou
Serena dentro de um cartório.
Eu, que deveria estar pulando de felicidade, estou quase arrastando os
dois para um casamento de surpresa. Quais as chances de dizerem não no
altar? Não entendo por qual motivo meu filho amado e teimoso decidiu ser
paciente sobre isso, sendo que nunca soube como esperar qualquer coisa que
desejasse por mais de dez minutos antes de derrubar o mundo para conseguir.
Isso Vladimir puxou de mim, então entendo muito bem.
Meu reflexo se forma na porta de vidro à medida que me aproximo, o
terno bordô se destacando em um tom mais claro por causa da iluminação,
mas pouco consigo distinguir do meu penteado, muito preso no alto da
cabeça, ou dos saltos pretos.
Eles não percebem a minha chegada assim que entro. Vladimir
conversa pelo telefone e, a julgar pela irritação em sua voz, fica fácil saber de
quem se trata.
— Não, Corazón. Não saia do maldito prédio. Não, eu sei muito bem
que não mando em você… Droga! Não importa, Serena, os seguranças vão…
— Frustrado, encara a tela do celular, que indica o fim da ligação.
— Mãe? — Roman pergunta, fazendo com que os outros também me
olhem. Colocando-se de pé, ameaça me abraçar, mas dispenso o agrado,
desdenhando com a mão.
— Guarde esse abraço para quem acredita na sua lábia barata, Roman.
Preciso conversar com vocês e, já que que nunca consigo me reunir com os
quatro na mansão, agora que Andrei foi embora… — Lanço meu olhar mais
enfurecido para o caçula, que fez a sua escolha de morar com aquela cria de
serpente. — E já que Vladimir não voltou mais para casa, não me deixaram
opções.
Ocupo meu lugar à direta de Vladimir, onde Lara normalmente se senta
quando não há uma gravidez e um marido superprotetor mantendo-a em casa.
Era aqui que eu costumava acompanhar reuniões maçantes ao lado de
Nicolai, e estar de volta é ao mesmo tempo nostálgico e muito irritante.
Eu era boa nisso tudo — ser boa é apenas inerente em qualquer coisa
que me comprometa a fazer —, não significa que gostava.
— Já encontrou quem tentou matar a sua mulher e seu filho? —
pergunto, indo direto ao ponto mais importante com munição pesada.
Lide com isso agora, querido.
Vladimir, que reage muito bem quando pressionado, trinca a
mandíbula; um rosnado emerge em seu peito, por baixo do terno pomposo e a
gravata vermelha. A rebeldia e aura de poder e controle combinam com ele,
mesmo que pareça ter enfiado o cérebro na bunda desde aquela noite, quando
revelou tudo o que pensava a respeito de Nicolai e Serena.
Serena, que é quase um anjo por aturar — e amar! — esse dissimulado.
Em seu lugar, eu teria me enfiado no primeiro avião para a Austrália e
desaparecido por algumas semanas até que seus ossos fossem consumidos
pelo arrependimento… Qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência.
Pelo menos ela está fazendo um bom trabalho em não voltar para a
mansão e ainda exigir a companhia de Luna agora que o irmão se foi,
deixando-o remoer a própria estupidez sozinho.
— Maksim está se escondendo — explica com a calma velada,
enfiando os dedos em seus cabelos pretos tão semelhantes aos de Nicolai; é a
única característica em que ambos se parecem. — Mas já temos cada maldito
canto dessa cidade sendo revirado atrás dele, sem contar cos policiais e com
uma ajuda extra que Dimitrio enviou a pedido de Ivan. Ele não vai fugir por
muito tempo.
— Maksim não vai escapar — Andrei decreta distraidamente, naquele
tom de justiceiro que geralmente só utiliza para falar sobre seus casos
jurídicos. — Não conseguiremos uma acusação para o que aconteceu com
Annia, mas há muitas testemunhas que presenciaram seu ataque de fúria
contra Serena. É só questão de ser encontrado.
Com minha visão periférica, vejo Vladimir bufar, renegando a situação
hipotética versada pelo irmão. Posso imaginar que tipo de retaliação espera
conquistar, e nenhuma condiz com as expectativas lícitas de Andrei.
Dou uma boa conferida nos quatro. Todos exaustos, ombros
cabisbaixos e roupas amarrotadas. Ivan é o mais composto, com o cabelo
castanho bem penteado e a barba de cortes limpos, mas enxergo em seus
olhos o desejo de se enfiar dentro de casa vinte e quatro horas do dia para
realizar todos os desejos da mulher.
Andrei se isolou, não consigo entender o que seus brilhantes olhos
caramelados revelam, e os cachos negros pendem sobre as orelhas. Uma
cópia mais jovem, cética e honrosa do presidente. Já Roman…Suspiro,
tomada pela sensação de derrota. Ele continua em sua bagunça organizada de
fúria e rebeldia, destoando dos irmãos com os destacados olhos verdes. As
mangas dobradas na altura dos antebraços deixam à mostra suas tatuagens, e
a camisa se ajusta ao corpo, evidenciando a boa forma.
Meus filhos são belíssimos, um orgulho sem precedentes, é verdade.
Mas, algumas vezes, é tão difícil fazer com que entendam.
Eu só quero que sejam felizes.
Casem.
Tenham filhos.
E, depois, tenham mais filhos.
Não é uma equação tão difícil assim!
— Ótimo, porque ela não vai estar segura enquanto aquele criminoso
estiver à solta. — Dedilhando sobre a mesa, minhas unhas emitem estalos
compassados ao bater contra a madeira.
— Como se já não tivesse meia dúzia de seguranças vigiando o
apartamento — ruge Vladimir, parecendo uma fera enjaulada.
Parece que a ausência de Serena tem surtido mais efeito do que eu
imaginava. Depois que o médico insistiu que ela desistisse da ideia de
permanecer no hospital, Vladimir a instalou na suíte do hotel dourado — que
é agora propriedade da Corporação Volkiov — e cercou o lugar.
Entendo que estejam enfrentando muitas merdas, mas a grande maioria
poderia ter sido evitada se não fossem as tendências heroicas de Vladimir em
esconder o quanto conhecia dos antigos negócios do meu marido. E é por isso
que, agora, precisam me escutar, para que não continuem empilhando tolices
em seus mundinhos de suposições.
— Estou aqui para conversarmos a respeito do pai de vocês…
— Nós temos muito para conversar, mãe — Vladimir me interrompe,
esquivando-se como sempre acontece quando tocamos no assunto. — Mas
precisamos cuidar dessa situação primeiro. — Ele aponta para um papel à sua
frente. — A lista com os nomes das pessoas que morreram foi divulgada pela
imprensa antes que nós pudéssemos identificar todas as vítimas. Como sabe,
os pais de Serena estão inclusos, mas isso não é tudo…
— Ah, para o inferno com seus problemas! — Abro a minha bolsa e
retiro a fotografia de Nicolai e Serena, que guardei com muito cuidado, e a
bato contra a mesa. Eles se encolhem rapidinho. — Vamos esclarecer
algumas coisas, e vocês vão escutar com muita atenção o que tenho para
contar.
— Já entendemos essa parte — diz Roman, com uma caneta
rodopiando entre os dedos. Vladimir fulmina o retrato como se desejasse que
fosse consumido por chamas. — O velho se sentiu culpado e ajudou a
menina.
— Sim, sim. Seu pai sempre teve esse lado que sonhava em salvar o
mundo. Na primeira e única vez que vi essa fotografia, ele estava escrevendo
a mensagem atrás dela. Não tive tempo para pressioná-lo quanto a história
por trás da jovem ao seu lado, porque faleceu dias depois e esse registro
desapareceu. Imaginei que estivesse no almoxarifado, junto com todas as
coisas dele. Mas me enganei.
Vladimir balança a cabeça minimamente, compreendendo o cenário,
criando imagens em sua mente enquanto assimila os fatos.
— Sabia no que ele estava envolvido? — Vladimir não consegue
esconder o tom acusatório. — Com as casas de jogos e todas as dívidas com
aqueles criminosos?
Acerto um tapa em sua têmpora. Vladimir arregala os olhos, pego
desprevenido.
— Olha bem para a minha cara, meu filho. Acha que, se eu soubesse
que seu pai ainda mantinha aqueles negócios, teria compactado com a ideia?
Que teria deixado você lidar com tudo sozinho? Não seja idiota.
— O que quer dizer com "ainda"? — Andrei faz a pergunta
astutamente.
E lá vamos nós… Inspiro profundamente antes de começar as
explicações. Esclarecer toda essa confusão não estava na minha lista de
prioridades. Ao menos, não nessa vida. Se Nicolai estivesse vivo, eu
certamente o mataria agora.
É bom que esteja sofrendo aí do céu, seu cretino.
Levantando-me, dou a volta pela ponta esquerda da mesa e escolho
uma das garrafas dispostas em cima do aparador encostado na parede interna.
Sirvo meio copo e bebo, ciente dos olhares atentos às minhas costas. Não é
que precise de coragem nem nada assim, mas eles vão fazer o maior drama
e… bem, tiveram a quem puxar.
— Para entenderem o que vou contar, vocês precisam saber como a
empresa foi criada.
— Conhecemos a história, mãe — Roman reclama, entediado. — A
crise nos anos oitenta…
— Ora, fique quieto e me deixe falar! Seu irmão tem esses… traumas
para resolver ou vai perder a mulher dele! — Cutuco Vladimir um pouquinho
mais. O homem precisa reagir, e se não for na base do seu gigantesco ego, é
possível que o tempo passe e sua chance se perca.
Nem ferrando que vou viver longe dos meus netos — no plural, porque,
conhecendo aqueles dois, impossível pararem no primeiro.
— Não vou perder Serena — garante, grunhindo. — Deviam se
preocupar mais com suas próprias vidas. Com a Serena eu me viro.
Roman, o endiabrado, não perde tempo e coloca mais lenha na
fogueira, deixando arrastar uma risada debochada que não passa despercebida
por Vladimir.
— Tem alguma coisa a dizer sobre a minha mulher, Roman? —
pergunta, cruzando as mãos na frente do rosto.
Ao invés de interferir, volto a me servir de mais vodca. É bom que
queimem um pouco dessa testosterona reprimida. O excesso de
masculinidade tende a afetar o cérebro.
— Até quando vai continuar com esse ciúme ridículo? — Roman
devolve, cruzando os grandes braços na frente do peito largo. — Já me
desculpei, não já? Umas cinquenta vezes! Só quis ajudar, e você estava sendo
um filho da puta.
— Obrigada, querido — cantarolo, erguendo o pequeno copo. Ele
resmunga um pedido de desculpas, sem tirar os olhos do irmão.
— Beijou a minha mulher, Roman. Na minha frente. Vai precisar de
mais do que um pedido de desculpas para me fazer esquecer.
— Ela me beijou, é diferente. — Roman, exasperado, apela para os
irmãos. — Poderiam me ajudar a colocar algum juízo na cabeça desse
maldito?
Ivan nega solidariamente.
— Sinto muito, estou com o Vlad nessa. Tenho a minha esposa,
Roman. Se fizesse uma merda dessas com a Lara… — O semblante de Ivan
se torna sombrio, a voz sempre alegre e otimista se transforma em uma
partitura sanguinolenta. — Só de imaginar, já quero bater em você.
E eu só queria contar uma história, é pedir demais?
— Já chega! — decreto. Essa briga deve durar décadas para ser
esquecida. — É por isso que vivem presos nessa empresa, não conseguem
manter uma conversa. Roman, pare de beijar suas cunhadas e arrume seus
próprios filhos.
— Ninguém falou nada sobre filhos. Está desviando do assunto em
benefício próprio, dona Tatiana — Andrei comenta, distraído com uma folha
diante de si, vendo através das minhas intenções. Estraga prazeres.
— Cunhada, mãe. No singular — Ivan corrige, irritado.
Vladimir, parecendo prestes a explodir, quase derruba a cadeira ao se
colocar de pé.
— Isso é um desastre! — brada, firme e autoritário. — Podemos, por
favor, focar no que realmente importa? Temos uma reunião em dez minutos!
Mãe, seja o que tiver para contar, faça agora antes que eu me arrependa. Nada
do que disser pode mudar o fato de que o odeio, e vou continuar odiando.
Nicolai.
Está falando de Nicolai. Pergunto-me o que meu querido marido
acharia dessas palavras se pudesse escutar o filho nesse momento, tão
acometido por mágoas e remorsos. Isso o destruiria, tenho certeza; nada no
mundo era mais importante para ele do que proteger nossos meninos.
Aguardo até que voltem a respirar sem parecerem touros perdidos no
pasto. Assim que se sentam, em silêncio, prendo o fôlego.
— Muito bem, do começo. Como sabem, meu casamento com Nicolai
surgiu como consequência de um acordo — inicio pelas bordas, virando-me
para observá-los. — Naquela época, odiei a ideia. Ninguém quer ser vendida
como uma vaca leiteira, mas não era algo assim tão incomum. O problema é
que a família do seu pai era conhecida pelo envolvimento com muitas
organizações criminosas. Foi assim que ele herdou todas aquelas casas de
jogos, Vladimir.
— Ah, porra — Ivan xinga, incrédulo, arrastando-se na cadeira para
me encarar de frente. Espero que esse não seja o linguajar que costumam usar
durante as reuniões oficiais.
— A Corporação Volkiov era apenas uma camuflagem para lavar o
dinheiro — continuo, puxando os detalhes da memória. — Foi assim que ela
surgiu, pouco antes de eu ser apresentada ao pai de vocês.
Ivan se junta a mim em busca de uma bebida, mas acaba levando a
garrafa para a mesa, junto com copos para todos.
Não me agrada que descubram dessa forma, mas o plano era que nunca
precisassem saber. Agora que aconteceu, não adianta mais tentar manter
segredo. E, com meus netos a caminho, só espero que isso acabe de uma vez
e Vladimir possa entender que a prioridade deve ser, sempre, a criança que
ele ajudou a gerar.
Andrei me analisa meticulosamente antes de perguntar, ríspido:
— Nunca passou pela cabeça de vocês, quem sabe, assim, só talvez,
contar para os próprios filhos?
Volto para eles, que já têm copos em mãos e olhos curiosos em mim,
como crianças perdidas. Roman, por sua vez, parece tranquilo, com os braços
atrás da cabeça e um leve sorriso de escárnio. Tão lindo, cuida tanto das
cunhadas, seria um ótimo marido…
Não, Tatiana. Esse não é o ponto agora.
— Não foi assim que aconteceu. — Recupero-me das divagações. A
fotografia de Nicolai, ainda em cima da mesa, parece me enxergar. — Isso foi
antes de vocês. Seu pai… — Hesito, é uma grande revelação. — Não era o
único herdeiro da família. Ele tinha um irmão, Valentim. Depois que eu
fiquei grávida de você, Vladimir, seu pai tomou a decisão de se afastar dos
negócios da família, não queria que crescessem no meio daquela realidade.
Então ele e o irmão chegaram a um acordo: Valentim ficaria com as casas de
jogos e Nicolai se desvincularia de tudo junto com a corporação.
Silêncio absoluto.
Os quatro olham uns para os outros, naquela conversa sem palavras que
pertence a irmãos que realmente se amam. Mas eu sei decifrá-los, ler os
pensamentos desconexos, o leve girar de engrenagens em seus cérebros,
entendendo a profundidade de um passado desconhecido.
Reviver o nome e a memória de Valentim é estranho, faz tantos anos…
— O que deu errado? — Vladimir, que estivera pensativo durante o
meu relato, começa a juntar as peças.
Estão chocados; duvidosos, eu diria.
— Funcionou por muito tempo. Construímos nossa vida longe de tudo,
a empresa se tornou grande. Mas… Valentim acabou morrendo, há oito anos.
A perda do irmão deixou seu pai devastado.
Deixou nós dois devastados.
— Mãe, por acaso não está inventando tudo isso, não é? — Andrei,
cético, expõe o que os outros estão pensando.
— Essa é a verdade. Seu pai foi tragado de volta para aquele negócio
quando soube que Valentim tinha deixado tudo desgovernado. Ele tentou
acabar com as dívidas, mas… Houve complicações que nem eu entendia.
— O desabamento — Vladimir pontua, massageando a base superior
do nariz com os olhos apertados. — E, ao que tudo indica, o irmão de Serena,
junto com Maksim e seus capangas, também contribuíram para ferrar ainda
mais aquele esquema.
Vladimir, agora de pé, expira pesadamente, e posso imaginar que tipo
de imagem constrói em sua mente. Ele guarda tudo, esconde o que está
sentido e sei que não vai nos mostrar o que oculta debaixo da casca de
presidente.
— Vladimir — chamo, dirigindo-me especificamente ao meu
primogênito. — É comum que essa sua natureza molde os grandes líderes em
nosso país. Sorrisos fáceis e gentilezas não movem montanhas, é preciso que
se tornem as montanhas e se movam com as próprias pernas se quiserem que
a realidade seja transformada. Muitas vezes, no entanto, tanta altitude gerada
pela experiência da superioridade faz com que destruam coisas boas pelo
caminho, por não enxergarem mais o que de bom reside lá embaixo. —
Pouso minha mão sobre a dele. — Tive medo que acontecesse com você.
Meu filho encara nossas mãos unidas, o cenho franzido remete ao
pequeno bebê que um dia segurei no colo, pequeno e indefeso. Por ele,
sempre pelos meus filhos, eu pude continuar vivendo.
— Aconteceu — sussurra. — Veja o que fiz com ela.
Sorrio ante à franqueza, sabendo que esse é um momento raro.
— Não, meu querido — tranquilizo. — Eu estava enganada,
completamente enganada. Serena não está embaixo, está no alto. Então você
pode parar de olhar para os próprios pés com medo de nos machucar. Deixe o
peso da montanha para trás e roube a mulher que ama de volta.
— Eu preciso conquistá-la — reflete, acomodando-se pela centésima
vez na grande cadeira presidencial.
O quê?
— Não foi nada disso que falei. Escute, eu disse roubar mesmo, sabe?
Vá até aquele apartamento e case de qualquer maneira. Casar primeiro,
conquistar depois, entendeu?
— Aproveite e seja preso — Andrei ironiza. — Vai ser ótimo para a
reputação. Ouça, mãe, Serena contou que Camillo esteve atrás de um antigo
sócio de Nicolai. — Ele raciocina rápido, juntando mais evidências ao grande
mapa de desencontros e coincidências. — Poderia ser esse Valentim?
Antes que eu consiga evitar, uma imagem de Valentim vem à minha
mente. Os olhos claros, diferentes do irmão, o sorriso pontiagudo e a
personalidade sempre no limite, como se a margem do fim do mundo fosse
sua morada. Nicolai, não; seu lugar era onde eu estivesse. Os dois morreram
praticamente no mesmo ano e ainda hoje não consigo recordar de ambos sem
que alguma revolta inflame. Idiotas.
— Talvez — defino, situando-me no tempo presente. — A morte dele
ou mesmo seu vínculo com Nicolai não são de conhecimento público.
Então… sim, é possível.
— Ele não era… — diz Vladimir, mas o restante da pergunta não
vinga, encoberta por um esgar de desprezo.
Essas informações sobre o passado do pai não devem estar sendo bem
recebidas.
— Tudo o que estão expondo na mídia sobre ele são inverdades muito
severas. Aquele prédio… é impossível que tenha compactuado com as obras.
Dito isso, os quatro se calam, olhando ao mesmo tempo para a folha
que antes estava nas mãos de Andrei.
— Nós temos uma desconfiança — Andrei empurra o papel para mim.
O corpo de Vladimir fica tenso ao meu lado, cada músculo transformado em
pedra. Há vários nomes marcados na frente, incluindo dois com o mesmo
sobrenome de Serena. Mas não é para eles que Andrei aponta. — Na última
linha, veja.
— Aleksei Kokorin — leio, sem entender o que está acontecendo. —
Por que um Kokorin estava naquele edifício?
— É isso que estamos prestes a descobrir. Elena está a caminho. Vamos
colocar um ponto final em toda essa história, de uma vez por todas. —
Vladimir confere o celular, irritando-se com a mensagem recebida.
Aproveito a deixa para me levantar. Já disse tudo o que precisava e
precisarão de tempo para assimilar.
— Façam isso. E, Vladimir, ninguém ameaça a minha família. Se
Maksim e Efrem estão juntos, se ambos tiverem alguma mínima relação com
minha nora grávida caindo de uma ponte… — A ameaça fica no ar. Mas eu
sei que Vladimir não deixaria isso passar em branco, sobretudo ao constatar
brilho predatório em suas órbitas azuis.
Primeiro, porque ele nos protege. Como tem feito desde a morte de
Nicolai.
E segundo, porque gosta de reprimir seus inimigos.
Algumas características são impossíveis de mudar, e o gosto pelo poder
está intricado nas entranhas de Vladimir. É por isso que não vai existir outra
mulher capaz de amá-lo como Serena. Só alguém com tanto poder quanto ele
suportaria a intensidade dos seus sentimentos.
Vladimir não ama como os outros.
Algumas pessoas mudam por amor, mas há aquelas cujo amor
transforma a si mesmo, tornando-se algo maior, mais forte, um sentimento
que expõe o conjunto de qualidades enterradas dentro de cada par, escondidas
de todo o resto. É assim que acontece quando o amor nasce das adversidades
e sobrevive às negações do destino: continua sendo amor, mas é mais do que
isso também.
E, com isso em mente, eu finalmente coloco a cereja em cima do bolo.
Não posso perder a oportunidade.
— Diga como se sente.
— Eu errei — admite sombriamente, enquanto me preparo para partir.
— Ela pediu um tempo, e terá a droga do tempo.
— Ah, faça-me um favor! Quem precisa de tempo é relógio, Vladimir.
Serena é jovem, bonita e tem um corpo que faria qualquer homem ficar de
joelhos. Então corra atrás do prejuízo antes que outro tome o seu lugar!
As risadinhas dos irmãos se fazem ouvir enquanto Vladimir tranca
todas as suas feições. Não sei qual é mais ciumento, mas a notícia boa é
posso sempre usar isso a meu favor.
Digo, a favor de suas lindas futuras esposas.
— Ela está carregando meu filho dentro da barriga — rosna, cerrando a
mandíbula.
— Meu filho, não se iluda. Uma mulher grávida, sozinha e carente,
com todos aqueles hormônios… Não me surpreenderia se arrumasse uma
distração vez ou outra, de preferência uma distração com muitos músculos
nos lugares certos.
— Ela não seria louca… — Vladimir rosna, fechando as mãos sobre a
mesa. A consciência do que acaba de dizer não tarda e logo ele já está de pé,
disparando para fora do escritório. — Maldita coisinha abusada — xinga,
desaparecendo com o celular a caminho do ouvido.
— Mãe, você me assusta — diz Roman, sorrindo sombriamente,
recebendo a concordância de Andrei e Ivan.
— Vá se acostumando. — Sigo o meu caminho para a saída. — Sua
hora ainda vai chegar.
VLADIMIR

SERENA ME ESTRAGOU, ou melhor, contaminou-me com seus olhos


fugazes, escuros e muito vibrantes, espalhou seu veneno viciante no meu
organismo e agora meu corpo clama pelo dela, por sentir o sabor da sua pele
e a maneira quase celestial com que se perde em meus braços, desistindo de
lutar e me presenteando com todo amor e entrega que um homem pode
sonhar.
Pior do que a incerteza sobre nosso futuro, é essa saudade doentia e
danosa dilacerando meu peito. Desde o começo, ela sempre foi capaz de
enxergar através de mim, de ser forte nos momentos em que eu já não
distinguia os limites, provando que toda a minha força, poder e ambição
pouco valiam diante da sua capacidade de suportar.
E eu forcei, forcei e forcei, até que ela se quebrou na frente dos meus
olhos, e agora não sei como merecê-la de volta, quando meu único desejo é
entrar nesse apartamento e jogá-la sobre os ombros sem me importar se isso
faz de mim a porcaria de um homem das cavernas.
Encosto a cabeça na madeira da porta, acalmando o arrebatamento que
me trouxe até aqui antes do amanhecer. Não é a primeira vez que uma noite
de insônia me faz caminhar até o hotel onde Serena está hospedada, cheio de
ideias ruins e primitivas na cabeça.
Louco é a palavra. Completamente insano por essa mulher.
Nada é pior do que ficar longe dela. Nem as coletivas de impressa, os
repórteres seguindo todos os meus passos dia e noite, o declive cada vez mais
sinuoso em nossos gráficos de déficits ou minha reputação sendo massacrada
pelos jornais. Descobrir que havia mais sobre Nicolai do que meus
julgamentos e segredos escondiam e que o passado da minha família é
poluído só serviu para me deixar ainda mais miserável, porque não consigo
reagir.
Estou preso.
Estagnado.
Parado no tempo.
Só há espaço para a droga que Serena injetou nas minhas veias, um
entorpecente perigoso de nome bonito.
Amor.
Sei como lidar com as questões da empresa e como solucioná-las; caso
contrário não seria o presidente, droga! Se fosse alguma outra pessoa, é bem
provável que a empresa acabasse indo à falência. Mas não comigo no
comando. Em menos de dois anos teremos recuperado todos os investimentos
perdidos.
E, na verdade, surpreendentemente, nem me importaria se fosse o
contrário, porque só consigo pensar nela. Eu deveria dar meia volta e ir
embora, respeitar seu espaço… Ah, foda-se o espaço.
Considerando que Luna deve estar dormindo e eu seria perseguidor
demais se usasse meu próprio cartão de acesso — mesmo que esse seja o
desejo real —, dou algumas batidinhas na porta e espero, torcendo para que
tenham sido suficientes.
Segundos depois, ela é aberta, intensificando minha tortura. Serena está
descabelada, dentro de um conjuntinho de pijama prateado e curto como o
próprio inferno na Terra. Instintivamente, meus olhos varrem toda a extensão
do seu corpo, passeando pelas pernas macias, os quadris mais largos e a
cintura que eu adoraria circundar com as mãos. Ao chegar na região dos seios
— visíveis e perfeitos sob o tecido leve —, tenho a singela impressão de que
preciso visitar um médico.
— Vladimir? — Sonolenta, espreguiça-se inteira, fazendo com que a
blusinha levante e uma faixa de pele na barriga fique exposta.
É oficial, eu vou morrer se não tiver Serena de volta em minha vida, em
minha cama, envolvida com o meu corpo enquanto sussurro seu nome, para
sempre.
— Corazón — cumprimento. Aos meus ouvidos, o apelido assemelha-
se com uma espécie de rosnado agonizante. — Vai me deixar entrar?
Arrastando os pés descalços, oferece passagem sem hesitar enquanto
coça os olhos, ajustando-se ao despertar repentino. Algum dia me
acostumarei com esse seu jeitinho de presa desatenta que me deixa ainda
mais perturbado? Duvido muito. Serena me mostrou como é viver entre o céu
e o inferno, banhou-me com doçura e inocência, mas também afogou a minha
cabeça em seu perverso oceano de força e poder.
Minha mãe estava certa, Serena está em cima e é por isso que a amo.
Nunca precisei olhar para o alto por ninguém. Empurrei Serena do penhasco
ao me apaixonar por ela, mas não percebi que estávamos amarrados um no
outro e acabei caindo junto. Procurei por rochas sólidas e soluções cruéis em
nosso relacionamento, e, em troca, ela me entregou o céu aberto, flutuando
para longe, livrando-nos um do outro.
Inferno! Não quero essa liberdade. Eu a quero para mim.
— Pensei que tivesse acesso a todos os quartos, já que você é, bem… o
dono. — Procuro algum tom de acusação ou julgamento, mas não encontro
nada mais do que um comentário genuíno de alguém que me conhece bem o
suficiente para saber do que sou capaz.
Passo por ela, entrando na sala principal. A suíte presidencial continua
exatamente como lembrava quando nos encontramos aqui pela primeira vez,
naquela ocasião constrangedora e atípica quando meus olhos foram atraídos
pelo movimento dos seus quadris e a melodia que cantava baixinho.
— O hotel pertence à Corporação — explico. Serena tranca a porta,
eliminando o único foco de luz que vinha do corredor no lado de fora. Vira-se
em seguida, um corpo pequeno perdido nas sombras da sala escura. — Mas,
sim, eu poderia ter entrado.
Fazendo jus à sua boa fama de mulher sem escrúpulos, Serena se
aproxima, uma felina recuperada do sono, e deixa seu corpo resvalar no meu,
abraçando-me pelo pescoço, na ponta dos pés.
Seu calor me domina, incendiando a saudade que há pouco parecia
suficiente para matar. Amar Serena é um teste de sobrevivência constante e
meus esforços para entender como sua mente funciona ainda causarão um
curto circuito em meus pensamentos ardilosos.
— Sinto muito por isso — murmura contra o meu ombro, notando a
tensão em cada fibra dos meus músculos. — Mas quando preciso de algo…
— Você não se priva de nada, Corazón — completo por ela. — Eu
entendo. Não se desculpe por me dar algo que preciso tanto.
Agradeço aos céus quando nos encaixamos em um abraço que deixa
explícito como nos amamos sem nos pertencermos de verdade, e não sei até
quando será suficiente. Mas depois do que eu fiz, das coisas que falei…
Qualquer migalha que Serena possa oferecer será guardada como um troféu.
— Você pelo menos conferiu quem era antes de abrir a porta? —
pergunto, muito consciente da quantidade de pano utilizada em suas roupas
de dormir.
— Sabe quantas horas são, Lord Vlad? Não conferi nem se acordei de
verdade. Vai ver estou sonhando com você de novo.
Dividido entre pressionar sobre a essência desses sonhos ou repreender
sua completa falta de prudência consigo mesma, opto pelo caminho mais
importante:
— Poderia ser um perseguidor, Serena. Um repórter, ou mesmo um dos
meus seguranças. — Inspiro contra seus cabelos, roubando o máximo dela
antes que o momento acabe. Imaginar outro homem atentando contra Serena,
sequer desejando-a como eu…
— Bem, sorte a minha que era você, então. Ou azar? — sussurra a
última parte, afastando o rosto e olhando fixamente para a minha boca. Se
nós pelo menos conseguíssemos resistir, ou mesmo disfarçar, seria muito
mais fácil.
— Você também sente, não sente? — Fecho os olhos, tentado a atacar
seus lábios com os meus. Resistir aos meus desejos depois de ter fantasiado
com essa proximidade durante todas as últimas noites desde a sua saída do
hospital assemelha-se à sensação cravar uma faca em meu próprio peito.
Minhas mãos sobem, procurando seu rosto, e com os polegares faço carícias
no espaço entre as suas bochechas e nos cantinhos tentadores da boca. — Diz
que sente a minha falta como sinto a sua, Corazón. Isso aqui, entre nós, não
dá para ignorar ou fingir.
— Sabe que sim — confessa com uma risadinha. Uma risadinha! Estou
aqui, assassinando a minha pouca sanidade, dia após dia, noite após noite,
segundo após segundo, e ela dando risadinhas.
— Então volte para mim. Me perdoe — imploro, roçando nossos
narizes, implorando por mais, qualquer mínima coisa.
Abro minhas pálpebras, agora ajustadas à escuridão, e enxergo as
maçãs do rosto muito angulosas, o peito subindo e descendo rumo ao meu,
ambos descontrolados em busca de mais oxigênio do que controle. Ao invés
de se afastar como uma pessoa normal, Serena crava as unhas no meu
pescoço, espelhando uma fração do mesmo desejo intrínseco que se tornou
um companheiro próximo, vivendo debaixo da minha pele; está lá também,
bem no fundo dos olhos dilatados, habitando seu interior, consumindo e
desafiando suas barreiras a suportarem esse abismo de erros e fantasmas
instalado entre nós.
Serena abre a boca e um gemido silencioso me convida, rompendo a
tênue linha que ainda me segurava no chão. A consciência dos detalhes
acende assim que o beijo acontece. Não preciso olhar para ter certeza de que
suas sobrancelhas estão franzidas, e há um leve tremor em sua jugular por
causa do coração acelerado.
Ergo Serena do chão, induzindo suas pernas a encaixarem ao meu
redor. Ela não perde tempo, entrando na dança de braços e mãos junto
comigo, no meu ritmo, arfando entre um beijo e outro, suspirando e gemendo
à medida em que me comprimo mais contra seus quadris.
Há muita coisa sobrando pelas minhas contas incoerentes, sobretudo
roupas e sapatos. Em algum momento, alcançamos uma parede — se
pertence à sala, cozinha ou quarto, não tenho a mínima ideia, mas lembro
vagamente de esbarrarmos em alguns móveis para alcançá-la.Um alarme
estoura nos meus ouvidos sobre o quanto tudo isso é erroneamente bom.
Afundo meus dedos na carne de suas coxas e Serena me saúda com
uma lamentação longa de dor e prazer que aumenta a vontade de marcar a
pele macia. O bebê dentro dela é a única coisa que me impede de possuí-la
com a potência que estamos acostumados, forte, rígido e feroz.
Palavras sem sentido se fazem ouvir no meio do diálogo regido pela
luxúria: nossos nomes, uma clemência, algumas súplicas, quase indecentes de
tão deliciosas, exigindo por mais.
Entregando-se da exata maneira que me alucina, Serena permite que eu
explore suas curvas com as mãos, tateando os seios vigorosos debaixo do
pequeno e provocante pedaço de pano que utilizava para dormir. Estou
tremendo de febre e ambição ante a forma como me deixa avançar, cedendo o
controle.
Cedendo…
Ah, isso não é um sim.
— O que está fazendo comigo? — Mordo seu lábio inferior com um
pouquinho mais de força. Utilizo uma perna para mantê-la imóvel.
— Como assim? — pergunta, embriagada com o prazer crescendo
naquele ponto onde meu joelho pressiona. Ela nem se esforça para disfarçar
que sabe do que estou falando, oferecendo mais um dos seus típicos
sorrisinhos abusados.
— Vai me deixar continuar para que eu me sinta miserável em seguida,
Serena? — Desvio da sua boca e capturo a região macia do ombro com os
dentes, possuído pelo enrede ardiloso utilizado em nosso jogo particular de
poderes. — Mulher cruel — acuso, fascinado e apaixonado pela promessa de
um confronto.
Serena nunca se cansa ou me entedia. É incrível como expõe cada
nuance da minha personalidade como se não fosse tão ruim. Perto dela, nada
parece ruim ou obscuro o bastante; há sempre uma saída, uma chance, um
novo começo.
Esperança.
— Mierda. — Trinca os dentes quando eu a mordo, não me dando a
satisfação de ouvir um resmungo ou arquejo sequer. — Aprendi com o
melhor — declara, sorrindo, referindo-se ao que eu disse antes. — Saciar a
fome do meu corpo é completamente diferente de alimentar a minha alma
com amor.
— Eu amo você! — rosno, cogitando marcar o outro lado também. —
Não duvide disso, eu amo mesmo você.
Ela passa a língua na boca inchada, amenizando o semblante
provocador. Utiliza o polegar para fazer carícias na minha barba, depois
passa sobre meus olhos e de volta ao pescoço.
— Sei que sim — diz, mais branda e calma, olhando-me nos olhos. —
Jamais duvidei disso, mas você duvidou. Pode ter sido por um segundo ou
dois, mas duvidou do que sentia por mim. — Deixo que deslize para o chão,
a fogueira transformando-se em brasa e cinzas. — Posso suportar tudo por
você, Vladimir. O seu temperamento egoísta, a mania de controle, esse seu
jeito arrogante e possessivo. Falei que podia lidar com o seu lado ruim, não
falei? Mas, em troca, preferiu me usar como alvo. Caso eu ceda agora e você
venha a fazer o mesmo uma segunda vez, não vai ter mais volta. Não vou
voltar, não importa o quanto ainda te ame, e não estou preparada para arriscar
perder você para sempre, entende? Ainda não confio que mereça.
Não é bem um não.
Suas palavras me ferem a alma, porque é esse o poder da verdade:
machucar e expor a ferida, por mais hedionda que seja.
— Como posso ser inteiro quando só consigo pensar em você como
tudo de bom que falta em mim? Vou conquistar a sua confiança de volta. —
Selo o aviso com um beijo brando e apaziguador. — Então terei seu corpo e
seu amor, como deve ser.
Afasto-me de Serena com uma força de vontade sobre-humana e olho
em volta, constatando que migramos para o corredor. Ela demora mais tempo
para se recuperar. Escorada na parede com as pernas um pouco abertas,
joelhos ligeiramente dobrados e uma boca que é a canalização dos meus
pecados sendo pagos, Serena poderia muito bem me matar apenas com o
olhar frustrado.
— Homem cruel — sibila, domando os fios rebeldes do cabelo
desarrumado. Mesmo brava e desiludia com a minha desistência temporária,
o sorriso orgulhoso e satisfeito continua lá, repuxado para cima.
Um passo de cada vez, presidente.
— Bom saber que não sou o único sendo torturado aqui — brinco,
torcendo para que meu corpo entenda que nada acontecerá
hoje. Hoje. Estendo-lhe e mão e voltamos juntos para a entrada, onde nos
acomodamos em um grande sofá de estofado rubro. Serena se aconchega ao
meu lado, com as pernas cruzadas sobre o assento e o ombro apoiado no
meu. — Como estão meus filhos?
— Luna está dormindo tranquilamente. Nem o fim do mundo seria
capaz de acordar aquela criança.
Meus olhos são atraídos na direção do quarto, cuja porta está fechada,
e, de repente, gostaria que não existisse nada além desse apartamento, com
minha mulher grávida e nossa filha ressonando, protegidas de qualquer
maldade.
Virando de lado, curvo-me para baixo, até meu rosto estar bem
próximo à sua linda, deliciosa e perfeita barriga. Ela me acusou de ter
orquestrado uma espécie de golpe da barriga reverso; não tenho certeza se o
fiz inconscientemente, mas não vejo a hora de ver nosso bebê crescendo,
ganhando forma.
Já posso imaginá-la reclamando da barriga grande, impaciente com o
nascimento, deixando-me preocupado a cada passo que der para fora de casa.
Droga, eu com certeza vou ficar ao lado dela todos os segundos do dia.
Assim que ela me aceitar, claro… Eu acho.
— Oi, bebê, como está aí dentro? Aproveitando bastante? Confesso que
estou com um pouquinho de inveja, não vejo a hora de estar dentro da mamãe
também.
— Vladimir! — repreende, chocada e enrubescida. — Não fale esse
tipo de baixaria. E se ele ouve você? Ou ela? Não escute seu pai, meu amor,
ele é um pervertido mandão e egoísta — diz para a barriga.
Seu pai.
Volto para a posição normal ou corro o risco de agarrar essa mulher
outra vez. Uma leve coloração azul-arroxeada começa a se estender no céu
através das janelas panorâmicas, indicando o início do amanhecer.
Não queria ir embora, ainda mais para fazer o que me espera.
— Como estão as coisas na empresa? — pergunta, abraçando as pernas
e mudando o assunto. — Soube que havia alguém importante naquele
desabamento.
Espero o desconforto com o assunto chegar, pronto para me controlar
caso iniciemos a milionésima discussão. Umas das minhas principais
decisões para não perder Serena é respeitar sua opinião a respeito de Nicolai.
Ainda não estou pronto para aceitar ou perdoar a pessoa que ele foi, mesmo
que tenha sido submetido àquela vida contra sua própria vontade.
Por Serena, posso ao menos tentar entender. Assim como não podemos
exterminar o amor dentro do peito de um dia para outro, o ódio também
precisa de tempo para ser apaziguado. Contudo, nenhum dos dois desaparece
completamente.
— Todas as pessoas que morreram eram importantes para
alguém, Corazón. Andrei está à frente de cada morte com nossa equipe de
advogados. Localizamos todas as famílias, até aquelas que ainda não tinham
se manifestado, e iniciamos as propostas de indenização. Você, inclusive,
receberá uma também.
— Então foram considerados culpados? Você ainda pode ser preso?
— Não — asseguro para acalmá-la. — Responderei pela empresa junto
com os meus irmãos, mas não podem nos acusar já que o caso aconteceu
antes da nossa gerência. Andrei se certificou de criar uma defesa sólida
quanto a isso.
— Estão… — Sua voz falha na primeira tentativa. Serena pigarreia
para disfarçar. — Estão falando coisas horríveis a seu respeito.
Oh, Deus, como ela tem esse poder de me deixar com raiva, depois
louco de tesão, preocupado, apaixonado e agora hipnotizado pelo tom fofo
que demonstra preocupação? Tudo em menos de uma hora?
— Não se preocupe com isso, Corazón. Deixe que falem — digo para
tranquilizá-la. — Sobre a sua pergunta, havia um jovem chamado Aleksei
Kokorin naquele edifício. Ele morreu imediatamente, mas sua morte havia
sido divulgada como causa natural.
Observo de esguelha para ver sua reação, e as caretas e expressões de
Serena enquanto pensa me fazem sorrir feito bobo.
— Kokorin? — repete, torcendo o nariz com desprezo. — Parente da
sua quase noiva?
Comprimo os lábios para não gargalhar do seu ciúme.
— Você nunca vai esquecer disso? Elena me odeia, para que fique
claro. — Estico meu braço, acomodando-o sobre seus ombros. Serena não
protesta, mas tampouco parece feliz com o assunto.
— Pode até odiar, mas nunca viu você pelado — pondera
seriamente. — Duvido que exista ódio suficiente para resistir a você pelado, é
um fato trágico, sinto muito. Veja só nós dois, tudo começou com a sua
mania de andar sem roupas depois do banho.
Dessa vez, não consigo segurar a risada; Serena, mesmo contrariada,
me acompanha. Parece que voltamos no tempo, meses antes, quando me senti
atraído sem mesmo saber o seu nome, com uma sensação familiar e
aconchegante conduzindo nossa interação.
— Roman está analisando as plantas melhor — explico, voltando ao
assunto para estender o momento o máximo possível. — Como não houve
perícia, não temos como provar que o projeto tenha de fato causado a queda
do edifício.
— Mas… — Serena se afasta, franzindo as sobrancelhas. — O prédio
não desabou inteiro.
— O quê?
— Isso que você ouviu, tenho certeza. O contrapiso de um dos andares
cedeu, caindo em cima dos escritórios. O prédio foi demolido depois.
— Corazón, você tem certeza disso? — Serena assente, sem saber o
quanto essa informação corrobora nossas suspeitas. Ela merece saber,
entender, então acrescento: — Elena tem certeza de que o avô assassinou o
irmão dela. Na época, Elena ainda era menor de idade. Sem os pais,
fundadores da Kokorin Enterprises, e com a morte do irmão, Efrem Kokorin
assumiu a presidência. Mas ela é a sucessora legítima agora.
Reproduzo o relato de Elena em nossos últimos encontros. A verdade é
que a menina é inteligente, aprendeu a ser por questão de sobrevivência.
Viveu todos esses anos debaixo do mesmo teto do homem que talvez tenha
matado seu irmão. Conseguiu entender e ver coisas que eu mesmo não pude e
fez bom uso da expressão o inimigo do meu inimigo é meu amigo.
Serena não disfarça como Elena a desagrada, e por um lado eu gosto
desse seu lado possessivo. Faz com que me sinta mais normal, pelo menos no
nível Serena de normalidade — o que não é grande coisa.
— Nicolai não concordaria com isso. — Seu primeiro argumento é para
defender meu pai.
Tento imagina os dois juntos amigavelmente. Carregar a certeza de que
Nicolai era um traidor moldou a minha vida por anos. As coisas que assumi
em seu nome, que vi acontecer naquelas casas clandestinas… são difíceis de
superar. Minha mente está programada para associar o nome dele a tudo que
existe de pior no mundo.
Mas minha Serena o ama — eu sei, agora, que não como amante, mas
alguém vital, especial em sua vida. Se ele realmente a salvou, significa que
tenho uma dívida com Nicolai que não pode mais ser paga.
Poderíamos estar quites, considerando tudo o que fiz por ele após a
morte. Mas salvar a vida dela, ter estado ao seu lado quando Serena não
desejava mais viver… nada do que eu faça vai pagar.
— Nossa única chance é encontrar Maksim e convencê-lo a confessar
seus crimes e o envolvimento de Efrem em tudo — explico, mas minha voz
entrega todo o meu ódio por aquele sujeito. Serena percebe, porque me
abraça, mas nada diz. — Annia deixou um depoimento contanto sobre…
Muitas coisas envolvendo seu irmão. O nome de Efrem é citado algumas
vezes.
A sala está iluminada, mas o sol não chegou em seu esplendor. O
tempo continua frio por causa das chuvas e o vidro das janelas estão
embaçados com a umidade matutina, mas os climatizadores dentro do prédio
nos protegem da rigidez impiedosa das baixas temperaturas, mesmo para nós
que estamos acostumados desde o nascimento.
— Uma vez Nicolai me disse que não podia agir contra as pessoas que
o estavam prejudicando, porque um deles era irmão de alguém que ele
amava. — Beijo sua cabeça, percebendo o quanto esse assunto a machuca. —
Pensei muito sobre isso e acho… que estava falando de Camillo.
Não concordo ou discordo, acho que ela só precisa ser ouvida, então lhe
concedo meu apoio de outras formas. Com carinho, atenção. Mesmo odiando
seu irmão por fazê-la sofrer, aprendi da pior maneira que Serena tem
tendência adversas no tocante a como se relaciona com outras pessoas. É
como se um imã a atraísse para os piores.
Conversamos mais um pouco sobre como meus irmãos estão lidando
com essa situação. Mesmo não querendo admitir, a maneira carinhosa que
Serena fala sobre eles deixa clara a saudade que sente de conviver com todos.
Também falamos sobre minha mãe e tudo o que deixou de nos contar, em
como respeitamos suas escolhas sobre não ter contado antes. Perder o marido
e guardar um segredo assim…
— O que acontece quando encontrarem Maksim? — pergunta Serena.
É hora de ir.
Antes de responder, seguro seu maxilar e a beijo suavemente. Serena
resiste primeiro, indecisa sobre aceitar a minha investida agora, sendo que
antes ela me tinha em mãos. Mas não quero competir, só preciso beijá-la para
lembrar quem consigo ser ao seu lado. Ao sair por aquelas portas, precisarei
disso.
Absorvo seus lábios sem fechar os olhos, inebriado com os sentimentos
que Serena desperta. Isso que estamos fazendo não é o ideal, brincando e
fugindo do que nutrimos um pelo outro.
— Já temos o paradeiro dele — conto, levantando-me. — O cunhado
de Ivan tem contatos na Interpol e nos ajudou a conseguir. Depois do que
Elena contou sobre Efrem, foi mais fácil. Só precisaram cruzar o
rastreamento que estavam fazendo com algumas ações suspeitas do
presidente Kokorin e logo chegaram a esse endereço.
Serena aquiesce. Poderia fazer um drama sobre isso, ou pior, afastar-me
de uma vez. Mas não, e eu mais uma vez não deixo de pensar sobre como
pude desconfiar dela, sendo que confia cegamente em mim?
— Não faça nada estúpido, Lord Vlad. Você tem dois filhos agora —
alerta duramente, abraçando a barriga.
Tão linda e poderosa, perfeita demais para um homem como eu. A
minha mulher, a mulher do presidente. Serena pode ser tudo o que quiser.
— Sim, eu tenho, Corazón.
E uma futura esposa.
Não matar Maksim será um bom começo, basta descobrir como resistir
à tentação.

***

O desejo de matar alguém, ou mesmo torcer pela morte de uma pessoa, por
qualquer motivo que seja, faz parte do ser humano. Na verdade, eu diria que é
bem normal e o instinto de sobrevivência será sempre a justificativa mais
coerente para explicar esse fenômeno. Mas são poucos aqueles com coragem
suficiente para assumir.
Houve algumas pessoas ao longo da minha vida cuja morte almejei
com grande satisfação. O primeiro deles, um sujeito robusto com sotaque
francês que veio cobrar uma dívida de Nicolai por causa de um investimento
fracassado em Danilovsky, no distrito administrativo sul. Foram as palavras
dele, ameaçando minha família, que despertaram o pensamento de "eu
gostaria que ele morresse".
É claro que, entre desejar, imaginar ou sonhar com a morte de alguém
e, de fato, executar essa ideia, existe um imenso abismo.
Com o tempo, descobri que havia outros meios para alcançar meus
objetivos sem precisar sujar as minhas mãos dessa forma. Bastava conversar
com as pessoas certas, cobrando favores nos momentos certos, e
eventualmente a lei do retorno seria concretizada — não pelo cosmos ou por
uma energia sobrenatural, tampouco por uma sentença de fogo, mas por mim
mesmo. Eu seria o carma de todos eles, aterrorizando, acuando e subjugando
suas vidas à miséria que mereciam.
Abro a case preta, apoiada sobre as minhas pernas, e encaro a Smith e
Wesson de cano longo e brilhante; mais uma herança do meu pai. Parei de
carregá-la comigo mais ou menos na mesma época em que parei de me
preocupar com inimigos à espreita, quando eles é que passaram a se
preocupar comigo em suas sombras.
Olhando para a arma, percebo os motivos que me levaram a guardá-la:
é um instrumento de hierarquização, que classifica o ser humano entre
aqueles com mais ou menos controle sobre a vida, como se fôssemos todos
discípulos do anjo da morte ou peças em seu grotesco tabuleiro de xadrez. Eu
gostava do pensamento absurdo e distorcido de que, ao mantê-la sem jamais
utilizá-la, estava indo contra as expectativas, como se isso fizesse de mim
uma pessoa menos pior do que os homens que eu odiava.
Não queria ser como eles.
Hoje, no entanto, não me ocorre outro pensamento além de matar
Maksim, enterrar uma bala no meio da sua testa e assistir enquanto é
erradicado do planeta. A justificativa sobre instintos não se enquadra, é
puramente emocional. Ele machucou a pessoa que amo, quase causou a morte
da minha mulher e do nosso filho dentro dela; nada mais natural do que
receber o mesmo tratamento.
O celular no meu bolso começa a vibrar, tirando a minha atenção da
arma. No visor, o nome de Andrei pisca insistentemente.
— Sim? — atendo, retirando o revólver antes de fechar a pequena mala
preta e descartá-la no banco do passageiro.
— Os seguranças estão com ele dentro da casa. Estou a caminho com
a polícia, chegamos em dez minutos. Não estrague as coisas. — Meu irmão
não espera por uma resposta e encerra a ligação.
Gostaria de ter explicado que não sei mais como fazer isso. Serena
arrancou todo discernimento da minha cabeça. Por mais que as catástrofes se
assomem ao redor, meus impulsos foram todos reprogramados para se
preocuparem apenas com ela e nossos filhos.
E, nesse momento, o que precisam é de proteção.
Proteção e vingança.
Guardo a arma na parte de trás do meu cinto, escondendo o volume
com meu sobretudo, e desço do carro, cumprimentando os seguranças
parados em frente à pequena escada de quatro degraus que antecede a porta
da casa.
É uma residência familiar simples, com pintura gasta e janelas
fechadas. Aparentemente, Efrem Kokorin cobriu os custos do lugar pelos
próximos dois meses, o que já nos rende provas para uma acusação sólida a
nosso favor. Elena tem certeza de que o avô orquestrou aquele desabamento
para assassinar seu irmão, mas ela acreditava que Nicolai fazia parte do
esquema. Nós dois ainda não estamos convencidos de que meu pai seja
inocente, mas de uma coisa tenho certeza: Efrem vai pagar por seus crimes,
assim como Maksim.
Entrando na casa, deparo-me com um ambiente organizado, com
móveis de madeira e um pequeno porta-sapatos vazio ao lado da porta —
ninguém teve tempo para se preocupar com boas maneiras. O próximo
cômodo é uma sala aconchegante, com sofá para três pessoas e uma tapeçaria
com losangos vermelhos e verdes fixada à parede logo atrás.
Continuo em frente, passando por duas portas fechadas até à cozinha,
onde encontro o motivo da minha busca.
Maksim está sentado em uma cadeira, as mãos amarradas na frente do
corpo, enquanto outros dois dos meus seguranças o vigiam de perto.
Arrastaram mesa e cadeiras para um canto, e os copos usados sobre o balcão
me dão uma pista sobre há quanto tempo ele tem se escondido aqui.
— Retirem as cordas e nos deixem sozinhos — ordeno para meus
homens, que me olham, hesitando.
— Mas, senhor… — Um deles tenta argumentar, olhando para Maksim
com desconfiança e, eu diria, um pouco de medo também. O homem tem a
sua fama, afinal.
Puxo uma cadeira e a coloco diante dele, sentando-me em seguida.
— Agora — repito, encarando Maksim, que mantém a cabeça abaixada
e ombros tensos.
Os dois obedecem, libertando o maldito e desaparecendo em seguida,
mas sei que continuam por perto, talvez no cômodo ao lado, pois é para isso
que são pagos.
— Veio me levar para o inferno? — pergunta Maksim, erguendo o
rosto. Apesar das palavras, não encontro nenhum tom de afronta ou repulsa
na forma como faz o questionamento. Os olhos, vazios e afundados no
crânio, praticamente não parecem me enxergar.
Não sei o que esperava, mas definitivamente não era isso.
— Com medo do diabo, Maksim? — digo, mantendo as expressões
igualmente neutras.
Ele não diz mais nada. Desvia os olhos para o chão outra vez,
destoando do líder que encontrei meses atrás, no meio do distrito, cercado por
homens que matariam e morreriam em seu nome. Não restou ninguém,
certifiquei-me disso naquele dia, sabendo que sua queda seria inevitável.
O aquecimento no interior da casa está desligado, permitindo que o frio
se espalhe através dos corredores. A cada respiração, uma pequena nuvem se
forma na frente dos lábios ressecados e lilases de Maksim, e suas roupas
pouco fazem para protegê-lo do tempo tirânico. O casaco aberto revela uma
blusa branca e surrada, enfiada no cós da calça jeans; nos pés, botas simples
que não alcançam as panturrilhas.
Em sua têmpora, há uma protuberância inchada e avermelhada,
cortando a tatuagem de uma rosa presa em uma redoma de vidro. Não é um
ferimento recente e está visivelmente infeccionado.
— Deveria — sussurra, referindo-se à própria pergunta e olhando para
os punhos marcados pelas cordas. — Eu a teria matado.
Fecho as mãos em punho, controlando o desejo de extirpar sua
capacidade de abrir a boca para falar de Serena, de pensar na existência dela.
Esse homem é um dos principais culpados por todas as desgraças que
recaíram sobre as nossas vidas.
Não tenho muito tempo antes que meu irmão chegue. Serena me pediu
para pensar em nossos filhos antes de fazer alguma besteira. Mas e nossa
Luna? Esse infeliz a manteve como moeda de troca dentro daquela casa
imunda, colocando sua vida inocente em risco. Como? Como não querer
fazer justiça com minhas próprias mãos?
— Você é um homem esperto — reflito, soando calmo. Os muitos anos
à frente da presidência me ensinaram como o ódio é paciente, e as punições
são mais prazerosas quando saboreadas lentamente. — Respeito isso,
Maksim. Manteve sua identidade oculta por todos esses anos, soube escolher
aliados influentes, como Efrem Kokorin, além de ter ajudado a destruir o
império de Nicolai Volkiov. São feitos impressionantes.
— Onde está querendo chegar? — rosna, rompendo um pouco da apatia
e me enfrentando com olhos injetados e vermelhos.
Devo-lhe créditos por não tentar fugir e nem olhar na direção da saída,
mas não consigo afastar o som do choro de Serena naquele hospital após
presenciar a morte do irmão e ainda ser atacada por esse miserável.
— Estou em um impasse, talvez possa me ajudar. — Levo minha mão
até as costas e puxo a arma, envolvendo os dedos no cabo de madeira e
encaixando o indicador no gatilho gelado. — Em oito minutos a polícia estará
aqui, talvez menos, e estou pensando o que vou dizer a eles quando
chegarem. Meu irmão tem planos para você, sabe? Andrei tem certeza de que
o seu testemunho contra Efrem Kokorin vai nos ajudar a limpar o nome da
empresa. E, se nossas suspeitas estiverem corretas, é ele a verdadeira mente
por trás daquele desabamento. — Enquanto gesticulo, Maksim se endireita na
cadeira, tornando-se consciente da ameaça escondida nas entrelinhas. —
Sinceramente, não me importo. Nicolai não era um santo, e eu tampouco sou
um. Por outro lado, ouça bem, você tentou matar a minha mulher grávida
mesmo depois do nosso último encontro. Ora, fui legal com você, não fui?
Avisei para nunca mais fazer nada contra ela, não avisei? Entende agora o
meu impasse? O que faria se estivesse no meu lugar, Maksim?
Na cozinha apertada, as feições de Maksim endurecem, o maxilar se
torna rijo e seus olhos fecham em fendas estreitas. Dizer que isso não me
agrada seria mentira, a rendição tem a sua beleza e sei como apreciar.
— Se me matar, será preso — argumenta. Maksim franze a testa,
repuxando os dois piercings nas pontas das sobrancelhas.
Não enxergo sombras de medo no homem diante de mim, pouco
consigo interpretar das suas reações — uma perna balançando aqui, uma
respiração mais profunda ali, nada muito conclusivo. Está amedrontado?
Ansioso? Preciso que mostre o mesmo pavor que Serena sentiu, que tema
pela própria vida assim como ela, que alguém pague pela vida miserável que
minha pequena destrambelhada teve.
E esse alguém só pode ser ele. Maksim precisa pagar, ele merece…
— Já deve ter ouvido falar em legítima defesa — explico, deixando
explícito de que tenho um plano em mente. É assim que funciona a minha
mente, sempre dez passos à frente. — Tenho testemunhas, contatos, dinheiro.
Para qualquer efeito, basta dizer que você me atacou e eu precisei reagir.
Nada.
Sua falta de reações é irritante! Não me basta tanta passividade.
Estamos ficando sem tempo, então levanto e me aproximo, com a arma
pendendo, pesada em meu punho cerrado.
— Homens como nós não foram feitos para o amor — declara,
desdenhando com um arquear de ombros desleixado, mas mantém o rosto
erguido, evitando olhar para o objeto na minha mão. Aí está ele. Olá,
medo. — Vocês estão certos, ajudei a derrubar a rede de contatos que seu pai
gerenciava, afundei o meu nome, eliminei alguns caras bem influentes…
Escuto sua declaração a respeito de Nicolai, um compilado menos
detalhado de tudo o que minha mãe já havia revelado: ele tinha um sócio que
morreu — desapareceu, é a palavra que utiliza, e presumo que se refira ao
irmão que, até então, não sabíamos da existência — e restou a ele gerenciar
toda a rede de apostas clandestinas; menciona brevemente o desabamento e
como Nicolai utilizou dos poucos recursos que lhe restavam para esconder o
ocorrido; por fim, a última parte de sua confissão termina de esclarecer
minhas ressalvas com Efrem Kokorin.
— Ele me procurou quando as obras daquela merda de clube
começaram — conta, impassível. Não é o primeiro assassino com quem
preciso conversar, mas a forma corriqueira com que fala sobre tirar vidas,
como se fosse uma banalidade, é revoltante. Toda vez que esse sujeito
respira, sinto-me mais tentado a socar seu rosto até que todo o ódio que sinto
dentro de mim desde quando Serena caiu daquela ponte se torne uma
memória ruim. — O senhor Kokorin sabia tudo sobre a minha desavença com
a sua corporação e propôs uma parceria para desmoralizar o projeto,
incitando a população contra a empresa.
Controle-se, Lord Vlad.
— Então esse tempo todo foram vocês dois? — Enjoado, tento me
apegar a tudo o que Serena me fez sentir antes de sair do hotel, à sua voz
doce e, ao mesmo tempo, determinada, ao jeito como crispa as narinas
quando quer me bater, em todos os anos de vida que me roubou com sua
personalidade inconsequente.
— Já amou alguém tão desesperadamente que destruiria o mundo por
essa pessoa, presidente? — Acima da voz de Maksim, escuto o barulho de
sirenes e meu pulso acelera, aumentando a sensibilidade dos meus sentidos.
Respiração… Consigo escutar a respiração dele, o som que emite ao
engolir a saliva. O cheiro do pavor, agora evidente, exala pelos poros de
Maksim. Minha língua se afoga no sabor amargo dos meus conflitos sobre
ceder às emoções ordinárias da besta que me proclama ou livrar-me das
correntes pesadas que se arrastam aos meus pés.
— Amor… — sussurro, saboreando a palavra e tudo o que representa
para mim. O cheiro de Serena ainda está impregnado no meu corpo, a
sensação de provar sua boca e a necessidade de marcar cada centímetro da
pele macia com minhas mãos, dentes e língua é intensa e descontrolada. Ela
está acabando com a minha cabeça, maldição! — Não me faça rir, Maksim.
— O amor trouxe você até aqui, com uma arma. Use-a — incita. —
Você sabe porque está aqui, Vladimir. Use a maldita arma. Faça valer a sua
fama. — Lá fora, começo a ouvir as vozes dos policiais, carros estacionando
e ordens sendo professadas. Isso tudo afeta Maksim mais do que eu, que
passa a falar mais rápido e desesperado. — Camillo me pediu ajuda para tirar
a irmã do distrito, e eu faria qualquer coisa por ele; qualquer merda de coisa!
Ela era jovem demais, não sabia nada da vida e andava muito estranha, foi
fácil.
— Não fale dela! — grito, erguendo a arma na altura dos seus olhos. —
Se aproveitaram da fragilidade dela. Serena estava doente, sozinha,
deprimida.
Maksim fulmina o cano da arma.
— Se ela continuasse no distrito, acabaria como as outras. — Maksim
continua me testando. — Os caras morreriam para comer ela, mas Camillo
tinha um coração mole demais. Sua mulher teria sido uma ótima prostituta,
presidente…
Meu punho sobe e desce, esmagando o cabo do revólver contra o rosto
de Maksim duas vezes. O som do metal ao atingir sua cabeça é visceral, mas
o grunhido que ele solta junto com uma risada histérica é ainda melhor.
Gosto das sensações que seu desespero me causa.
Miro em sua cabeça novamente. A essa altura, já não tenho mais um
álibi, seria assassinato a sangue frio. Quem entrasse primeiro, encontraria
nada mais do os restos de sangue grudados na parede e o corpo já sem vida
de Maksim.
Minha mão treme.
Maksim não fecha os olhos. Encara-me profundamente, engasgando-se
com um sofrimento enclausurado. Está em agonia. É normal, depois de
alguns anos infligindo dor nas pessoas, paramos de entender como é a
sensação quando acontece com a gente.
— Faça, por favor, faça… — implora.
Olho em seus olhos, tentado a puxar o gatilho, deixando-me levar pela
onda de indiferença e impiedade que ratos medíocres como ele
merecem. Maksim merece. Sinto meus pés afundando no poço lamacento de
escuridão de onde eu não deveria ter saído. Reconheço os tijolos ao redor da
minha alma; é a minha casa, construída com inclemência e desumanidade.
Você tem dois filhos agora, lembro-me de Serena dizer.
Suor acumula entre as juntas dos meus dedos. O golpe que acertei em
Maksim abriu a ferida em seu rosto e o sangue começa a encharcar sua
camisa.
Lord Vlad, continua a voz de Serena, soando alegre e descontraída em
minha cabeça, eu amo você.
Aperto mais e mais a arma, tanto que meus ossos latejam com o esforço
para manter a empunhadura fechada. Meu reflexo está estampado em suas íris
frívolas, golpeando-me com a pior versão do homem cruel que consigo ser
em busca daquilo que precisava encontrar na ruína de Maksim.
Vingança.
O mal que deu origem a toda essa situação foi Camillo, deixando-se
levar pelo ódio, sedento por destruir e revidar. Ele não queria justiça em
nome dos pais, só precisava vencer sua própria batalha ilusória de destruição.
A mesma sede de vingança levou Maksim a se tornar esse homem vazio e
confuso.
Tantas vidas perdidas, tantas tristezas e arrependimentos enquanto o
universo brincava às nossas custas. Não posso permitir que acabe assim.
Não com mais vingança.
Recuso-me.
Por Serena. Por ela, eu prometi voltar. Prometi que a reconquistaria!
Andrei entra na cozinha, mas para ao ver a cena de Maksim rendido e
eu sobre ele como um juiz do céu e do inferno. Há mais pessoas, policiais,
mas não ouso desviar meus olhos de Maksim. Quero ver sua expressão e
gravar nas cavernas da minha mente que posso ser melhor do que isso.
Por todas as vezes em que não pude fazer a coisa certa, que não pude
ser bom, eu serei. Por ela, por Serena, eu serei bom.
— Não posso matar algo que já está morto — determino. Meu braço
desce lentamente enquanto minha visão se torna vertiginosa.
Dentro do peito, meu coração lidera uma percussão de tambores,
ribombando sonoramente, forte, alto, calando sons externos. Andrei para na
minha frente, os lábios formando frases nervosas, das quais identifico
instruções soltas: "saia, saia agora". De repente, sinto-me leve, livre de um
peso antigo. A arma desliza da minha mão, alguém a retirou. Quem? Andrei
está se afastando com o objeto.
Ele conversa com Maksim, meu irmãozinho caçula já não precisa mais
da minha proteção. Suas palavras provocam um verdadeiro terror no homem,
que começa a se debater para não ser algemado.
Meus irmãos são homens agora.
Dou as costas para a cena, ignorando as perguntas sobre meu bem-
estar, e saio da casa o mais rápido possível. Não é tão simples enfrentar a
decisão de não atirar em Maksim. Ainda desejo sua morte, por tudo o que fez,
pelas vidas que arruinou, por respirar o mesmo ar que a minha família e por
saber que daqui dez ou vinte ou trinta anos meus filhos serão adultos em um
mundo que pessoas como ele existem.
Agora eu entendo o que meu pai queria dizer sobre apertar um botão e
quebrá-lo em seguida. Algumas decisões não podem ser revertidas, e mostrar
para Serena que posso ser digno do seu amor é a minha decisão agora. Não
vou voltar atrás.
Encosto na lateral da casa e respiro. Ou tento; não é fácil. O oxigênio
não quer se manter nos meus pulmões.
Quatro viaturas estão estacionadas no meio da rua, mas ainda há poucos
curiosos e nenhuma câmera. O sol lá em cima não tem qualquer poder contra
o frio. Em plena primavera, era de se esperar que as temperaturas fossem
mais amenas, mas continua congelando. Eu estou congelando.
De repente, sou puxado para o lado e os braços de Andrei me apertam.
Demoro muito, muito tempo para retribuir seu gesto, chocado e surpreso.
Meu irmão é um pouco mais magro, mas temos a mesma altura, e a lateral
das nossas cabeças encosta uma na outra.
— Não tentou me impedir — afirmo, encontrando a minha voz assim
que nos desvencilhamos do abraço.
Andrei segura meu rosto severamente, obrigando-me a enfrentar seus
olhos cujas cores nunca consegui nomear: não são verdes ou azuis, tampouco
marrons; não são escuros também e nem claros demais. Parece uma mistura
entre o cinza e o dourado, manchados com um pouco de ferrugem, e me
fazem pensar nas folhas durante o outono.
— Você não é um monstro, Vladimir! Eu sei que pensa isso de si
mesmo, mas existem pessoas muito piores do que você à solta, e Maksim é
um deles. Eu sabia que não faria isso, você é meu irmão!
Andrei está errado, tem que estar. Eu sei o que sou, sei o que desejo…
— Eu queria muito ter feito…
— Sei que sim, todos nós o queríamos morto. — Andrei sorri para
mim, não com humor, mas carinhoso, fraterno. — Serena é sua mulher, faz
parte da nossa família, acha que não nos preocupamos? Mas a questão agora
é que fez a coisa certa, irmão. Vá, eu cuido das coisas aqui. Acabou,
entendeu? Acabou.
Acabou.
SERENA

QUANDO ENTRO NA cozinha, sou obrigada a fazer uma prece.


Minha querida e amada nossa senhora madrecita das mulheres fracas
com pensamentos impuros, ajude-me nesse momento de dor e sofrimento e
livra minha mente do pecado que é desejar o pai dos meus filhos vinte e
quatro horas por dia, amém.
Vladimir anda pela cozinha como se fosse o rei do café da manhã, o
todo poderoso dos ovos fritos, faraó da pia cheia de louça, presidente dos
homens sem camisa. Sem camisa! Que desaforo! Como ousa ser tão baixo e
apelar para o corpo estupidamente definido?
Ele tem músculos demais, é esse o problema! Alguma coisa muito
errada está acontecendo nessa corpulência toda, não pode ser tão sem defeitos
assim. O que falta de humildade virou gominho no abdômen. Misericórdia!
Para completar, está com uma sorridente e despenteada senhorita Luna
no colo, vestindo um macacão com asinhas de borboleta nas costas.
— Se continuar me olhando assim, Corazón, teremos problemas em
breve. — Sem tirar os olhos dos pratos que está montando para nós dois, com
apenas um braço livre, Vladimir abre um daqueles sorrisos presunçosos que
fazem minhas pernas tremerem.
Luna olha para Vladimir completamente rendida ao seu vozeirão rouco,
e solta uma sequência de resmungos que roubam a atenção dele
completamente. A imagem dos dois faz meus olhos lacrimejarem; as duas
pessoas mais importantes da minha vida, já que a terceira continua crescendo
dentro de mim.
Depois que Maksim foi preso, Vladimir apareceu no hotel
completamente perdido. Nós brigamos primeiro, nos beijamos depois,
brigamos novamente e nos beijamos enquanto brigávamos, até ele ir embora
aos gritos dizendo que eu o deixaria louco.
Em minha defesa, a culpa é dos hormônios. E Vladimir nervoso é um
negócio bom demais para ser evitado.
Decidida a não estragar o momento, acomodo-me em um banco perto
do balcão. Continuo no apartamento — que, na realidade, é o quarto de hotel
em que nos conhecemos — e Vladimir aparece todos os dias sem aviso
prévio. Ele tem se esforçado mais do que o normal, comprando flores e
andando seminu sempre que pode, mas ainda não demos nomes ao que
estamos vivendo agora.
Essa coisa de amar é tão frágil e imprevisível que a todo momento sinto
como se fosse perdê-lo, como se estivesse caindo daquela ponte sempre que o
abraço ou beijo seus lábios.
— Tenho certeza de que o hotel faz esse tipo de serviço, senhor
presidente — digo, esticando os braços para pegar Luna. Ele faz uma careta
por ser chamado assim, mas não diz nada. — Você é milionário, não deveria
nem saber cozinhar.
Vladimir coloca nossa filha no meu colo, curva o corpo no meio do
processo e rouba um beijo rápido, sorrindo de modo travesso ao retornar às
suas funções culinárias.
— É tudo parte do meu plano para reconquistar você, querida —
explica, galante, servindo um copo de suco para mim e outro para Luna, em
seu copinho cor-de-rosa de plástico. Essa coisa de me chamar de querida é
perigosa, meu Deus.
— A falta de camisa também faz parte do seu plano? — questiono,
dando uma boa olhada, porque não sou nem boba.
— Obviamente — confessa, sem nenhuma vergonha na cara,
arrumando os dois pratos com ovos e outro maior com fatias de Grénki.
— Isso é golpe baixo — reclamo, mas não deixo de dar outra boa
olhada em suas costas largas e na lombar marcada pela bermuda de elástico
assim que se vira para buscar talheres.
Ao retornar, Vladimir solta um daqueles seus típicos grunhidos
impacientes. Vê se pode uma coisa dessas?
— Já viu como está vestida? — pergunta impaciente, um rosnado baixo
ecoando quando limpa a garganta, descendo os olhos pela minha camisola
curta, rendada nas bordas, até as pernas expostas e pés descalços.
Ops! Culpada.
Com fingida inocência, me coloco a comer e mudo de assunto.
— E como estão as coisas na empresa? Você chegou cedo hoje.
— Efrem Kokorin foi preso — diz de repente.
O garfo cai da minha mão, batendo na borda de vidro do prato.
Vladimir não me olha, segue sua refeição com naturalidade, mas sei que
diante de mim está apenas a casca de muitos nomes, a fantasia de presidente,
a armadura de monstro impiedoso.
— Ah, caralho! — balbucio, surpresa com a informação e a carga por
trás desse acontecimento. — Estamos… felizes com a notícia?
Vladimir não responde de imediato. Quando volta a falar, a confissão
vem depois de um suspiro de partir o coração.
— Tudo indica que ele usou meu pai para se livrar da acusação sobre o
desabamento. Andrei está certo disso e não temos mais por que duvidar.
Agora está nas mãos da polícia, como deveria ter sido desde o começo.
Coloco minha mão sobre a dele, que também soltou seus talheres.
— Como está se sentindo?
Ele nega minimamente com feições perdidas e olhar distante.
— Não sei o que sentir — admite, entrelaçando nossos dedos. —
Mesmo meu pai sendo inocente sobre isso, ele ainda cometeu muitos erros…
Falar sobre Nicolai com Vladimir é um assunto a ser abordado com
muito cuidado, sobretudo por discordarmos em praticamente tudo sobre seu
pai. Não pretendo mudar sua opinião e nem provar que seu julgamento é
injusto, mas gostaria de arrancar dele a mágoa que ainda resiste em seu
coração.
— Talvez não precise sentir nada, talvez seja só isso, uma coisa que a
gente precisa deixar como está. O passado é nosso para fazermos com ele o
que a gente quiser.Podemos aprender com ele ou permitir que nos destrua.
Somos nós que o fortalecemos, mas no final continua sendo apenas isso, o
passado.
Vladimir não concorda comigo, mas não faz nenhuma objeção, e
considero isso um bom sinal. Comemos em silêncio, respeitando a dor um do
outro em nossas próprias memórias, mas próximos o suficiente para nos
apoiarmos com sorrisos e olhares tenros.
Algum tempo depois de terminarmos a refeição, Luna cochila em meus
braços e a coloco no berço enquanto Vladimir finalmente se veste para o
trabalho.
Aleluia, roupas!
Mas minha alegria dura pouco, para variar. Na sala de estar, Vladimir
me puxa pela cintura, forçando meus pés a se equilibrarem bem nas pontas
dos dedos, e com sua mão forte, de longos e apetitosos dedos, apalpa a minha
coluna, a lateral do meu corpo e por último a sinuosa curva da minha bunda,
arrancando de nós dois um suspiro lânguido.
É isso o que acontece todas as vezes em que acabamos sozinhos.
Nossos corpos estão um condicionado a procurar o outro, e Vladimir sabe
que esse é o único lugar em que não busco a vitória. Gosto da sua mão
habilidosa comandando meu corpo de encaixe ao seu, que beba meus
gemidos com a boca, saboreando todas as minhas reações em um deleite
sagrado.
Vladimir tem nos privando de consumar o desejo que nos castiga, mas
nem por isso deixa de me seduzir como um torturador nato, o diabo perfeito
com uma auréola falsa na cabeça.
Presa em sua rede de carícias, percebo que se prepara para dizer alguma
coisa no meu ouvido e antecipo minha mente para receber suas palavras
quentes, cheias de tentação, charme e…
— Preciso fazer uma viagem de três dias.
Ok, não era isso o que eu esperava.
Procuro algum indício de brincadeira em sua voz ou no brilho devasso
dos olhos, mas não há nada além da já familiar feição prepotente de quem
sabe que acaba de me tirar totalmente da órbita. Nosso tempo juntos tem sido
tão curto e escasso, e a gravidez não me ajuda a suportar a sua ausência com
dignidade.
— O quê? Assim, do nada? — pergunto, esmorecendo com o balde de
água em minhas expectativas.
Atencioso, Vladimir abranda seu tom de voz faz carinho em minhas
bochechas, apertando-me mais contra seu corpo — ora, temos um volume
considerável aqui?
— Negócios, Corazón, não vou demorar — informa, contemplando-me
com devoção. Só ele tem esse poder de me transformar em algo precioso.
Com sua veneração graciosa e elegante, Vladimir não deixa dúvidas de que
sou seu maior e mais valioso objeto de desejo.
— E quantos dias vai ficar fora? — questiono teimosamente, torcendo
para que a gravidez seja culpada pelo meu tom infantil e birrento.
— Dois ou três, no máximo. — Ele sorri, mas é aquele riso
desavergonhado e egocêntrico, justamente o que eu mais gosto. — Vai sentir
a minha falta, Corazón?
A apreciação é tamanha que a voz rouquenha afeta seu sotaque. Há
muito ele se tornou um experiente pronunciador do meu apelido, mas agora a
excitação e ansiedade transformam a palavra em algo parecido com
"curassóm", da mesma forma que fazia nas primeiras vezes.
— O tempo todo — respondo, rendida e sincera.
Não adianta mentir, é a verdade. É nele que penso antes de dormir e
sempre que meus olhos se abrem pela manhã. É o tom azul-arroxeado ao
redor das suas pupilas dilatadas que procuro quando me sinto sozinha e
perdida. É a sua voz soberana e convencida que meus ouvidos anseiam em
busca de conforto e segurança, porque Vladimir é meu porto-seguro.
Abraçados no meio da sala de um quarto de hotel, sobre a mesma
tapeçaria rubra na qual nos conhecemos, Vladimir me beija com delicadeza,
sorvendo meus lábios e amparando meu rosto amavelmente.
— Por favor, seja cuidadosa — clama, tomado por preocupação. Seu
hálito sussurrado é tão aterrador quanto as investidas libertinas e
desavergonhadas. Uma mão revoga meu rosto e viaja até o meu ventre. —
Vocês são tudo o que tenho para chamar de meu.
— Eu… — Começo a concordar, pronta para prometer zelar pelo nosso
bebê, mas Vladimir não permite.
— Você me pertence, Corazón, e sabe disso — enfatiza, precipitando-
se em um longo beijo cheio de necessidades.
— Isso é muito presunçoso, Lord Vlad — brinco, massageando a fina
membrana que constitui seu ego.
Ele se empertiga, o rosto enrijecido, e busca a minha nuca, puxando a
raiz dos meus cabelos com brutalidade. Peguei você, penso, convicta de que
agora ele perde o controle. Porém, o bicho é ruim e suaviza o toque no último
segundo.
Devo ser mesmo meio masoquista tentando trazer meu monstrinho
malvado à tona.
— Guarde suas armas, meu amor. Quando digo que me pertence, não
estou falando apenas de modo objetivo. Não sou o seu dono, embora essa
ideia seja realmente excitante, e nem pretendo tentar mandar em você, já que
isso é impossível e nós dois sabemos disso. Não quero te prender
jamais, Corazón, mas que me ensine a ser livre aos seu lado. Você me
pertence porque faz parte de mim, é meu órgão mais vital.
As palavras desaparecem, meu cérebro estúpido sendo reduzido a pó
mais rápido que lenha na fogueira. Quando disse que me conquistaria, eu
deveria ter me preparado para artilharia pesada. Vladimir não sabe nem
brincar e toda vez que abre a boca é uma paixão diferente que me arrebata.
Ele está caminhando na minha direção, mas continuo parada, minhas
pernas congeladas no lugar. O psicólogo que comecei a frequentar me
aconselhou a não projetar em Vladimir a responsabilidade de suportar o peso
do nosso amor sozinho, que só conseguirei superar o medo de viver sem ele
quando aceitá-lo de volta.
Monto uma linda declaração de amor na minha cabeça, do tipo que
causa diabetes a quem ouve, cheia de confissões desesperadas e juras
carinhosas… mas a quem estamos tentando enganar?
Não somos ondas comuns que morrem na areia. A gente inunda,
devastando a vegetação rasteira de flagelos que floresce em nossos
sentimentos mútuos.
— Romântico — avalio, segurando em seus ombros. O sempre
desconfiado homem da minha vida semicerra os olhos, calculando ações e
palavras com seu brilhante raciocínio de empresário de sucesso… e de quem
já está treinado na arte de me entender. — Gosto quando diz coisas assim, e
admiro seu esforço. — Invertendo os papéis, estímulo sua imaginação
roçando nossos lábios. — Mas também gosto do meu presidente mandão e
controlador que está escondido aí dentro.
Alcançando minhas expectativas, sua compostura começa a esvair, a
calmaria sendo substituída por um instinto perigoso.
— Não me chame assim, sabe que não gosto — reclama, segurando
meu pescoço com firmeza.
— Não deveria, você é o presidente e não tem nada de ruim nisso —
contraponho, sincera. Vladimir precisa parar de se estigmatizar por amar sua
profissão. — Diga, presidente, diga outra vez que pertenço a você.
Antes que eu tenha tempo para perceber, ele gira nossos corpos e me
vejo caindo sobre o sofá, com seu corpo moldando-se ao meu, os quadris
entre as minhas pernas.
— Coisinha infernal! — queixa-se, exigindo um beijo ardente que não
tardo em oferecer. O visual corporativo de Vladimir e o excesso de roupas só
contribui para deixar tudo mais fantasioso, enquanto eu continuo com meus
trajes de dormir. Sinto seus dedos perscrutando a pele em minhas coxas com
avidez e experiência, descendo e subindo, apertando e esfregando. — Está
estragando o momento, Serena — observa, porém, não soa mais como
reclamação.
— Qu… que pena, não é mesmo? — gaguejo, inebriada com o cheiro
da sua pele, a perfeição com que passa a língua no meu lábio inferior antes de
mordiscar.
— Você é minha, Corazón, sempre foi e sempre será — avisa,
presenteando-me com uma fricção impiedosa e muito bem-vinda que me faz
gemer baixinho. — Então me espere, sem nenhuma loucura. Nada de cair de
pontes e nem se envolver em problemas, estamos entendidos? — A ordem é
clara, rosnada para dentro de mim, poderosa, quase uma ameaça.
Entretanto, meu erro foi acreditar que poderia dominá-lo tão
facilmente, e é por isso que demoro a entender o que está acontecendo
quando Vladimir se ergue sobre mim, arrumando a roupa desalinhada com
um sorriso diabólico estampado na cara.
Ele não vai continuar.
De novo.
Cretino!
Bêbada com as sensações de dependência serpenteando em minha
corrente sanguínea, sento-me, mole, e o fuzilo com os olhos. Em dois
segundos, Vladimir já está todo alinhado em seu terno caro como se nada
tivesse acontecido. Já eu, nem respirar consigo direito.
— Olhe para nós… — Aponto para nós, cruzando as pernas em cima
do sofá. Ele se diverte com a minha braveza. — É quase como se já fôssemos
casados. Pensa comigo: temos uma filha, eu estou grávida, você sai para
trabalhar cedo e volta só quando já estou dormindo, não rola sexo… ¡La puta
mierda! É um casamento!
Vladimir gargalha, dando palmadinhas na minha cabeça.
— Nossas concepções de casamento são muito diferentes.
Muito, muito diferentes. — Afastando-se, meu coração se aperta ao ver que
pega sua mala de trabalho para partir. — Quando a gente se casar, vai se
cansar de me ter em você, Corazón.
Duvido muito.
Para não perder minha moral, dou de ombros, rolando os olhos.
— Bem, se a gente se casar, você quer dizer — atiço, louca da vida.
— Até quando vai continuar com isso? Minha paciência está acabando,
Serena! — alerta, falando alto.
— Ótimo! Que acabe — retruco, quase implorando para que isso
aconteça.
— Ótimo! — Faiscando como um pavio aceso, Vladimir bufa e xinga,
vem até mim e, contraditoriamente, beija a minha boca ferozmente antes de
virar de costas e seguir para a porta. Está indo embora. — Volto em três dias.
Não, não pode ir assim. Não podemos nos despedir assim. Suas últimas
palavras não podem ser essas.
Corro até ele assim que aperta o botão eletrônico e a porta se abre com
um ruído magnético. Abraço suas costas, escondendo o rosto na curva entre
as omoplatas rijas.
— Eu amo você — sussurro, buscando as mesmas palavras vindas dele.
Contudo, elas não vêm. — Não vai me responder?
Vladimir gira sobre os calcanhares, minhas mãos pendendo para os
lados. Ele trilha um caminho de afagos em minhas bochechas, lábios e nariz,
mas é na testa que deposita o último beijo.
— Só quando parar de usar isso para se despedir de mim.
Depois sai e bate a porta.
Droga.

***

Lara estica a mão por cima da mesa elegante e organizada, oferecendo-me


um sorriso sincero.
Penso duas vezes antes de retribuir o gesto. É mais claro que água
potável que Vladimir está por trás disso. Ele pode tentar se transformar no
príncipe encantado arrependido o quanto quiser, mas é um fato consolidado
que sempre terá o pezinho esquerdo no lado negro da força.
Tirar proveito da linda cunhada boazinha e grávida é golpe baixo. Não
tem como recusar uma oferta depois de conversar cinco minutos com essa
mulher; primeiro, por ter argumentos realmente convincentes e, segundo,
porque ela me encara com tanto otimismo e vivacidade que desperta em mim
a vontade de entregar o mundo em suas mãos, simples assim.
— Eu sei o que está pensando, já passei por essa indecisão — diz,
solidária, recolhendo a mão educadamente. — Quando Vladimir me chamou
para trabalhar na empresa, meu orgulho falou mais alto e tive medo de que
estivesse fazendo aquilo só por causa do nosso parentesco.
Remexo-me desconfortavelmente na cadeira, ouvindo atentamente. Em
comparação com os demais ambientes da empresa, o escritório de Lara é
cheio de personalidade. Há muito da estética russa, com cores diversas e uma
linda tapeçaria em uma das paredes que, vista dessa distância, parece compor
uma praia, com o sol se pondo ao fundo. As janelas panorâmicas ocupam
toda a parede leste da sala, deixando o ambiente bem-iluminado.
Sobre a mesa, poucos objetos de trabalho e muitas fotografias em
bonitos porta-retratos, a maioria de Iago sorrindo, dela com Ivan no que
parece ser uma casa de praia e duas da família completa, com os cunhados ao
seu redor no dia do casamento. Na ponta da mesa, em uma pequena moldura
dourada, vejo a foto de uma menininha ruiva; a pele é uma paleta de
pintinhas enquanto encara a câmera atentamente.
Volto a me concentrar em Lara, que continua sorrindo enquanto espera
minha resposta. É uma mulher muito bonita, inteligente e elegante, com seu
cabelo curtinho e ângulos magros. O par de olhos castanhos, muito bem
guarnecidos com cílios delicados e longos, não demonstram outra coisa além
de carinho e apoio.
— Nunca parei para pensar em coisas como carreira, sabe? Era sempre
um dia de cada vez — explico. Minhas mãos procuram a barriga, uma
espécie de mania que surgiu desde a descoberta da gravidez. — Vladimir…
— Sim, foi ele quem me sugeriu você, não vou negar. Meu cunhado é
mesmo um controlador intrometido, mas não faz as coisas por acaso. Quando
o assunto envolve empreendimentos, Vladimir é o melhor. — Lara se levanta
de sua cadeira grande e almofadada, passa as mãos nas laterais do terninho
azul e vem para perto de mim, acomodando-se na poltrona ao meu lado. —
Você sabe o que as pessoas precisam, há muito tempo apontou as falhas com
o projeto do clube e nossos equívocos ao supor que sabíamos o que o distrito
precisava. A sua experiência de mundo é o que estou procurando agora. Além
do mais, esse é um projeto meu, vai ser minha funcionária, não deles, então
não importa quem indicou ou por quê.
— Lara, eu acho incrível o que está fazendo, mas não tenho nenhum
conhecimento — insisto, tentando colocar algum juízo em sua cabeça.
Ela nega, desfazendo da minha observação como se não fosse nada
importante.
— Você precisará se especializar, é claro, e com o tempo vai poder
assumir mais responsabilidades. Mas eu não poderia pensar em alguém
melhor. — Tomando minhas mãos nas suas, Lara insiste: — Andrei vai
cuidar de toda a parte jurídica do projeto, você só precisará lidar com o
pessoal no começo. Ajudar a coordenar algumas coisas e me repassar. Por
causa da corporação, não posso lidar com isso diretamente.
Reflito sobre a oferta, considerando minha atual situação — em
desunião instável com o presidente e, ainda por cima, grávida. Lara disse que
tem uma propriedade em seu nome e que decidiu transformá-la em um
projeto beneficente que vai funcionar em parceria com o clube, mas de
maneira independente. A ideia é oferecer abrigo temporário para pessoas que,
por quaisquer motivos, estejam passando por dificuldades, uma iniciativa
beneficente, pois esse tipo atrai muitos investidores.
O clube no distrito, por sua vez, não vai mais ser voltado para o lazer e
geração de emprego apenas. Após toda a repercussão negativa por causa dos
barracões repletos de drogas, Vladimir e os irmãos reformularam o discurso
por trás do investimento, prometendo um projeto de cunho social, com
oficinas culturais para os mais jovens e de profissionalização para a
comunidade.
Isso elevou e muito o conceito deles, que estava na lama com toda
aquela história do desabamento. Para completar, Lara apareceu com essa
mansão que vai se transformar em abrigo e os Volkiov se tornaram santos
outra vez.
Isso me faz lembrar de Vladimir atestando que, em menos de dois anos,
voltariam a ser os maiores do país. Não duvido que isso aconteça antes que o
previsto.
— Tudo bem — decido, sentindo o estômago revirar de expectativa. —
Aceito ajudar na supervisão do abrigo.
Com um gritinho animado, Lara me puxa para um abraço antes de
começar a explicar vários detalhes dos quais, sendo sincera, não memorizo
nem metade. Vou precisar me acostumar com a sua eficiência toda.
Conversamos por mais de meia hora e, quando enfim apertamos as mãos, não
aguento continuar segurando a pergunta presa em minha garganta.
— Lara, como ele está? Digo, como tem agido com a família?
— Sofrendo muito — responde, entendendo a quem me refiro por ser
mais do que óbvio. — Vladimir não está acostumado a perder e, de repente,
perdeu tudo de uma vez. O prestígio, os segredos, sócios, reputação, até um
pouco do apreço dos irmãos, e você, claro. Principalmente você.
Concordo com a cabeça, sentindo uma saudade visceral tomar conta do
meu corpo. Não nos vimos desde a despedida conturbada no hotel, e
trocamos poucas mensagens desde então. Ele disse que voltaria em três dias,
mas cinco dias se passaram sem que nenhuma explicação fosse dada.
Gostaria de saber onde está, o que está fazendo de tão importante fora
de Moscou.
— Faz cinco dias que não nos encontramos. Está me evitando, sei que
sim. Não agimos direito quando estamos juntos — conto para Lara, ouvindo
minha própria decepção na voz, e um pouquinho de raiva também. — Ele
deveria buscar Luna ontem, mas Andrei apareceu em seu lugar e acabei
ficando sozinha. O cretino ainda enviou uma mensagem dizendo "durma
bem, Corazón". Pode uma coisa dessas?
Lara volta para sua posição atrás da mesa, apoia os cotovelos na
madeira e me analisa com um sorriso cúmplice.
— Ele anda com um péssimo humor, acredito que esteja tentando
poupar você de uma discussão desnecessária.
Nossas discussões são sempre desnecessárias e, na grande maioria das
vezes, muito divertidas. Gosto de ver Vladimir fora de controle, a forma
como estreita os olhos como se cogitasse me castigar por ser tão
impertinente, a sensualidade emanando de sua postura sempre que desafiado.
Amo que não precise se controlar quando estamos juntos e que o resto do
mundo se torne uma informação secundária.
Quando penso no homem que me expulsou da mansão há algumas
semanas, não sinto mais tristeza ou decepção. Depois de passar várias noites
insones revivendo nos meus sonhos aquele momento, pude lembrar dos
detalhes que a raiva não me permitiu enxergar: o corpo trêmulo e a voz
embargada entre um grito e outro, os olhos arregalados e perdidos, o arquejo
de surpresa quando beijei seu irmão.
Tenho medo o tempo todo que nosso fim tenha chegado e nós apenas
não quisemos aceitar o inevitável, adiando algo que já estava escrito pelo
destino.
— Ele ainda está chateado com Roman, sinto-me culpada por fazer os
dois brigarem. — Abaixo a cabeça, envergonhada. Meu coração se aperta
sempre que penso no mal que causei aos dois.
— Não pense nisso, Serena. — Lara rola os olhos para cima. — Logo
aqueles dois se entendem. Roman sabe se cuidar muito bem, e tenho certeza
de que está se divertindo muito com o péssimo humor do presidente.
Imaginar os dois se implicando faz surgir um sorriso bobo no meu
rosto. De forma inesperada, todos eles se tornaram parte da minha vida; meus
cunhados agem como irmãos mais velhos e gosto da sensação de fazer parte
de uma família verdadeira.
A família que Camillo nunca foi para mim e nem para Luna.
Confiro as horas. Aproximamo-nos do entardecer e me sinto
incomodada por estar na empresa de Vladimir sem que ele tenha aparecido
ainda, como faria em uma ocasião normal. Pressentindo que Lara tem mais a
dizer sobre a ausência do cunhado mais velho, questiono:
— O que não está me contando?
Ela inspira fundo, me encara por segundos que mais se parecem horas e
volta suspirar, vencida pelo meu patético poder de dissuasão; acredito que
por pena.
— Serena, antes de viajar Vladimir fez uma pequena reunião em casa e
contou para todos o que aconteceu com Nicolai… de verdade.
— Ah, porra — murmuro, chocada demais para ser elegante.
Sem que eu tenha tempo para controlar, uma tristeza desenfreada por
Vladimir volta a englobar meu coração e aquela saudade de estar ao seu lado
bate de frente com o medo por sua dor.
Queria estar com ele, segurar sua mão e tentar dizer palavras bonitas só
para falhar miserável e fazê-lo sorrir; de mostrar que sou forte por nós dois,
que as merdas podem se juntar contra o que sentimos o quanto quiserem, o
importante é não permitir que nos definam.
Mas tenho medo. Muito medo, o tempo todo. Perder Vladimir uma
segunda vez…
— Ele deve estar arrasado. — Era para ser uma pergunta, mas só
percebo que afirmei quando Lara concorda com semblante tristonho. —
Como reagiram?
— Na medida do possível, bem. Ficamos mais devastados por ter
aguentado sozinho. Encontrar Nicolai à beira da morte… — Um arrepio
percorre o corpo de Lara e seus olhos marejam. Ao contrário de mim, ela não
se importa de chorar na frente dos outros. — O luto por Nicolai já foi
superado há anos, Vladimir era o único que revivia aquilo dia após dia.
Acredito que os meninos apenas precisem de um tempo para digerir. Tatiana
explicou que Nicolai já tinha um histórico.
— A história da ponte… — Lembro, e Lara assente sem fazer
perguntas de como fiquei sabendo sobre a história de Tatiana. Agora que tudo
foi esclarecido, pergunto-me se o outro menino era o irmão de Nicolai; faz
sentido. — Como ela está?
— Pronta para outra! É claro que os meninos ainda não engoliram essa
história de terem tido um tio, e o assunto sempre volta à tona. Mas nossa
sogra não se abala com nada. Meia hora depois, já estava discutindo com
Andrei…
O telefone sobre a mesa começa a tocar e Lara reclama ao reconhecer o
número no identificador, mas o sorriso entrega a verdadeira felicidade. Só
pode ser Ivan.
— Não sei mais o que fazer, é a quinta vez que me liga para saber
como estou me sentindo.
Ela atende e dá início a uma sequência de respostas que conheço bem,
já que todos os dias Vladimir me manda mensagens com as mesmas
perguntas, salvo algumas exceções: "Você está bem?", "Como está se
sentindo?", "Se alimentou direito?", "Precisa descansar!", "Não fique
dançando na varanda.", "Não tente sair sem os seguranças, droga!".
Ao terminar com sua sequência de "sims" e "nãos", Lara franze o cenho
para o telefone, pousando os olhos sobre mim.
— Ele fez o quê? — pergunta ao marido, apertando a ponte do nariz. —
Calma, querido. Sim, eu entendo que é uma péssima hora e… — Ivan diz
alguma coisa no outro lado da linha e Lara outra vez me olha de esguelha.
Muito suspeito esses dois. — Diga que não faria o mesmo por mim?
Espero os dois conversarem sobre algum gasto irresponsável e começo
a ficar com medo de que Vladimir tenha feito a loucura de comprar uma
mansão como sua mãe sugeriu inúmeras vezes. Ele não faria isso assim, do
nada, faria?
Faria, claro que faria. O homem é doido.
— Algum problema? — pergunto depois que ela termina.
— Ivan está preocupado com nossos gastos. Nada com o que se
preocupar. — Sem cerimônia, Lara levanta e diz que tem muito serviço para
fazer, não me deixando alternativa a não ser voltar para casa com uma
sensação eufórica no peito.

***

— Senhorita Fajardo? — Alguém me chama assim que desço a escadaria na


frente da empresa. Uma moça vem caminhando na minha direção, jovem,
cabelos loiros e firmes em uma trança embutida. — Podemos conversar um
momento?
Ora, ora. Se não é a senhorita cocoricó em pessoa.
Dois seguranças imensos flanqueiam Elena, tão grandes quanto os
paspalhões que me esperam na frente do carro que Vladimir enviou
exclusivamente para mim. Tentei negar no começo, mas ele usou a carta da
gravidez dizendo que não me perdoaria se eu precisasse me deslocar até o
hospital e algo de ruim acontecesse pela falta de condução.
Ela para na minha frente, equilibrando-se em cima de saltos finos com
estampas de zebra. Seu terninho cor-de-rosa só é menos chamativo que a
bolsa azul-celeste com pedrinhas douradas.
— Pode me chamar de Serena — digo, parabenizando-me por não voar
na cara dela.
Elena aquiesce. Ao respirar fundo, me ocorre que é mais nova do que
eu, uma menina ainda, que acabara de colocar o próprio avô atrás das grades.
— Eu só queria me desculpar — diz, constrangida. — Fiquei sabendo
de tudo o que aconteceu e me precipitei dizendo aquelas coisas sobre você
para o presidente. Não deveria ter falado sem provas.
Foi ela quem regou a semente da discórdia entre Vladimir e eu, mas
essa semente já havia sido plantada há muitos e muitos anos, desde a morte
dos meus pais. Olhando o cenário de longe, agora consigo ver as lacunas
preenchidas com informações que antes faltavam. Sabemos que o verdadeiro
culpado de tudo é Efrem Kokorin.
— Já passou — asseguro-lhe, sendo o mais sincera possível. — Minha
preocupação agora é outra. Não gosto da ideia de que você estava de olho no
meu Lord Vlad, sabe?
Elena arregala os olhões azuis e olha rapidamente para um dos
seguranças bonitões. O sujeito, um clássico homenzarrão com barba ruiva e
olhos verdes, finge não escutar, mas tenho a impressão de que seus ombros
ficam mais tensos sob o uniforme.
— Sinto muito se passei essa impressão — diz, voltando a atenção para
mim novamente. — Eu precisava agir daquela forma para conseguir provas
contra meu avô e estava convencida de que o senhor Volkiov tinha relação
com o crime — explica, mas Vladimir já tinha me contado essa parte.
Elena aguarda minha resposta com expectativa. Ainda não me sinto
confortável em sua presença, não consigo esquecer das vezes em que precisei
assistir os dois juntos, mas não estou disposta a carregar mais esse peso.
Ao nosso redor, pessoas passam sem parar, vivendo suas vidas corridas,
com os problemas que só pertencem a elas. Há muito decidi que não seria
essa pessoa apegada ao passado, e dessa vez não será diferente.
Ofereço minha mão para Elena, que não demora nada para retribuir o
cumprimento. Ela tem mãos pequenas como as minhas, e estão geladas.
— Não vou julgar — prometo, apertando suavemente os dedos magros
antes de soltar. — Vladimir não é um exemplo de bom samaritano.
Elena sorri, as maçãs do rosto corando.
— De qualquer forma, ele não faz mesmo o meu tipo — esclarece,
arrogante. Tudo bem, talvez eu não desgoste dela tanto assim. — Se quer
saber a minha opinião, fico surpresa que exista alguém que consegue
conviver com o ego gigante que ele tem.
Não consigo evitar uma risada, porque é verdade.
— Bem, não é só o ego dele que é gigante, sabe? — brinco
sugestivamente, mas arrependo-me ao lembrar dos homens atrás dela,
escutando tudo. O barbudo parece querer arrancar a minha cabeça.
Aproveitando a deixa, nos despedimos com um breve aceno de mãos,
mas Elena me chama de volta antes que nos afastemos demais. Olho por cima
dos ombros e espero.
— Sinto muito pelo seu irmão — diz, partindo finalmente sem me dar a
chance de agradecer.
Todos os jornais noticiaram sobre as vítimas do acidente, e dentre elas
se encontrava o irmão de Elena. Ela sabe como é estar sozinha, perder a
pessoa com quem dividiu sua infância e precisar contar somente consigo
mesma para não desabar.
É, eu definitivamente não desgosto completamente de Elena Kokorina.

***

No caminho de volta, decido fazer um passeio pelo jardim de Alexandre. É a


época mais bonita do ano para apreciar os abetos pontiagudos em contraste
com os bordos alaranjados e rebeldes como fogo, os arbustos coloridos e o
cheiro da natureza.
Já começa a escurecer, mas o parque continua movimentado, com
muitas pessoas tirando fotos contra o Kremlin. Encontro sem dificuldades
meu destino e sento-me no banco onde eu e Nicolai nos encontrávamos
depois das minhas sessões com o psicólogo. Tinha dias em que ficávamos em
silêncio, encarando o nada, outros em que tomávamos sorvete e
conversávamos sobre meus progressos.
Sinto falta dele, gostaria que estivesse aqui, que soubesse como aprendi
a amar seu filho mais velho. Contar que meus filhos serão seus netos e
carregarão seu sobrenome.
Nicolai…
Sinto o pavor agonizante da tristeza sobrepujando as lembranças boas,
e quase ligo para Vladimir ou um dos meus cunhados. Mas controlo. Obrigo-
me a controlar isso sozinha. Não posso ter medo para sempre. Se eu quero
que Vladimir supere seus fantasmas, preciso fazer o mesmo com os meus.
Algumas lágrimas ameaçam cair. Fecho os olhos e imagino Nicolai
aqui, comigo, confortando-me, dizendo-me para confiar nos meus
sentimentos. Mas como? Como confiar nisso quando o destino provou tantas
vezes que eu e Vladimir não fomos feitos um para o outro?
Como?
Confiro meu celular, a última mensagem é dele me parabenizando pelo
cargo que Lara me ofereceu no abrigo, mas não respondi por pura rebeldia
mesmo. Gostaria de poder pedir que volte para mim, que me obrigue a
acreditar que o nosso amor é para sempre e…
Cacete, mas o que estou fazendo?
Parada aqui, sozinha, lamentando por causa de homem? Nem pensar,
eu hein! Posso estar com os hormônios bagunçados, mas não vou ficar
sentada enquanto ele está por aí viajando.
Se me quer mesmo, que venha me pegar de uma vez, idiota!
A única forma de isso acontecer é se ele finalmente aceitar que eu o
amo independente do que pensa sobre si mesmo. Que vou amar o monstro, o
presidente e tudo mais que ele quiser ser.
Já munida de uma péssima ideia, enquadro meu rosto na câmera do
celular, encaixando a fonte ligada ao fundo, iluminada por lâmpadas
coloridas embaixo dos cavalos de bronze empinados, com as cascatas de água
passando por cima das cabeças relinchantes. Antes de enviar para ele, escrevo
uma legenda:

"Se não voltar agora, eu vou me afogar na fonte!"

E desligo o celular.
Pronto.
Fico por ali mais algum tempo, recompondo-me antes de voltar para
casa. Luna vai passar a noite com Tatiana na mansão e ficarei sozinha
novamente.
Por todo o caminho de volta, os seguranças recebem chamadas e eu sei
que é Vladimir se certificando que está tudo bem. Quase fico com pena, mas
quero dizer pessoalmente que estou disposta a tentar, que estou pronta para
me arriscar ao seu lado.
Espero estar pronta.
— Volte — sussurro no interior do carro em movimento, encarando as
belíssimas estrelas que prosperaram em meio ao caos.
Ao entrar no apartamento, no entanto, sou surpreendida por Vladimir
descabelado, andando de um lado para o outro. O casaco está jogado de
qualquer jeito no chão, perto de uma poltrona com pés de madeira, e os
primeiros botões da sua camisa estão abertos.
— Que merda é essa, Serena?! — grita, apontando o dedo para a tela do
celular que está preenchida com a minha fotografia.
— Vladimir? — pergunto, espantada com sua chegada.
Ele está possesso! Pior que isso, Vladimir está puto da vida. Preciso
saber se é puto do jeito bom ou puto do jeito ruim.
— Não faça essa carinha inocente! — continua gritando, sempre
dramático.
Arrisco alguns passos para dentro, não me importando com a porta
aberta. Escolho uma abordagem mais segura, não quero que a gente brigue
logo agora que desejo tanto dizer para ele o quanto o amo.
— Eu estava… eu…
— Quero mudar — diz por cima de mim, alto. Espero que tenha
isolamento acústico no prédio, se não daqui a pouco teremos um helicóptero
televisivo sobrevoando o edifício. — Quero ser um homem melhor, mas não
posso fazer isso em um dia ou um mês! Você estava certa antes, esse sou eu!
Egoísta, controlador, ciumento, e quando o assunto é você, fico ainda
pior, Corazón. Você me deixa completamente fora de mim com essa
insegurança, porra!
— Não coloque a culpa toda em cima de mim! — protesto, irritada com
o seu tom e por tirar conclusões sozinho. — Se estou insegura é porque você
fez isso comigo, porque passamos por muitas coisas que…
— Ah, claro! — debocha, maldoso. — Vai culpar o destino também
por sua falta de bom senso? — Assim que as palavras saem, ele fecha os
olhos e pragueja: — Merda! Merda, Serena!
Sem me tocar, vai para a saída e bate a porta, fazendo estremecer as
paredes e janelas.
Não.
Não era isso o que eu queria.
Não era para ser assim.
Eu me enganei, não estava sozinha antes. Isso sim é estar sozinha. Ele
se foi outra vez.
Arrastando os pés até a mesa de jantar, sinto minha garganta se
fechando, os pulmões faltando ar. É como naquele dia, está se repetindo e eu
não tive a chance de me confessar. Encaro minhas mãos escorregadias e
geladas, estão trêmulas.
— Inspire — sussurro, obedecendo ao comando.
O que eu faço? Ligo? Vou atrás dele?
Como uma luz afastando a névoa na minha mente, os olhos de Nicolai
encontram os meus. Nossa fotografia está sobre a mesa, desbotada como
sempre, exatamente como a deixei antes de sair, com nós dois abraçados na
primavera. Sou arrebatada por um maremoto de sentimentos conflitantes
quando viro o verso e releio uma, duas, três vezes aquela frase de despedida.
Estou cansada de me despedir das pessoas que amo.
— Eu perdoo você, Nicolai, é claro que perdoo você — digo,
desesperada, minha voz sozinha cortando o silêncio. — Então me ajude um
pouco, o que acha? Diga o que devo fazer, porque não sei mais. Por
favor, por favor…
Jogo minha bolsa em cima da mesa, sem perceber que estava aberta. O
conteúdo inteiro espalha sobre a madeira, algumas coisas caem no chão,
fazendo a maior bagunça. Não penso em recolher nada agora, quem se
importa? Mas algo chama a minha atenção.
O caderninho preto com a minha lista de coisas para fazer antes de
morrer está caído, por um acaso aberto na primeira página. Tinha me
esquecido dele. Abaixo para pegá-lo e percebo que na primeira linha, acima
do primeiro item — o já realizado sonho de perder a virgindade — há uma
frase que não estava lá antes, que não foi escrita por mim e que faz todo o
meu corpo tremer.
São quatro palavras na bonita caligrafia de Vladimir, e o amor presente
nelas é tão grande, tão intenso e poderoso que minhas pernas se movem
sozinhas em direção à saída. Eu posso fazer o caminho mais uma vez, uma
última vez.
Quando abro a porta, arfante, meu coração estourando dentro do peito,
esbarro em Vladimir parado na porta.
É ele!
Vladimir!
Aqui, na minha frente. Não foi embora.
Ferozmente, ele segura minha mão na frente do copo e enfia um anel
brilhante e de aspecto caro no meu dedo anelar.
Misericórdia que o homem ficou louco de vez. Já não era sem tempo!
— O que está fazendo? — questiono, horrorizada. — Isso é o que eu
estou pensando?
— Serena, eu tentei do jeito certo, comprei flores, presentes, fui
paciente! — Certo, ele ainda está puto. — Agora vai ser do meu jeito. Eu
pretendia ser romântico, dizer coisas bonitas e entregar essa merda em uma
caixinha. Mas que ilusão! Se as coisas com nós dois têm que ser sempre na
base da insanidade, então que seja!
— ¡Dios mío! Você enlouqueceu? — continuo, encarando minha mão,
embasbacada, apaixonada.
— Sim! Eu estou louco! — grunhe, entrando no apartamento. —
Completamente fora de mim, não está vendo? Eu cansei, Serena. Cansei!
Vou levar você agora, então pegue suas coisas! — Vladimir aponta para o
quarto, os olhos infames desafiando-me a não me opor de maneira nenhuma.
— Vlad…
— Não, não! Não quero escutar — nega, olhando à nossa volta como se
procurasse alguma coisa. — Quer saber? Deixe tudo para trás e eu mando
alguém buscar depois; compramos tudo de novo, não importa.
— Mas… — digo, erguendo o caderno para dizer que estar ao seu lado
é tudo o que mais desejo, o único sonho que eu tive de verdade. É claro que
eu quero ir com ele, é claro que estou feliz. Oh, céus, esse é o momento mais
feliz da minha vida!
— Sem "mas", Serena — Vladimir me corta, grosso, sem deixar
brechas para contestação. — Dane-se o destino, o universo, não ligo para essa
merda. Olhe para mim, eu amo você. Cometi um erro terrível, é verdade, e
não sei como corrigir isso agora. Mas vou conseguir, em algum momento
entre hoje e o resto das nossas vidas. Vou corrigir e compensar você. Todos
os dias, de todas as formas inimagináveis.
Dessa vez, não consigo segurar e, na verdade, nem quero. O alívio é tão
grande que enche meus olhos com lágrimas, que transbordam em uma
torrente sem fim. É um choro profundo, mas que não machuca. Alívio e amor
em estado líquido, e tudo só piora quando Vladimir corre e me toma em seus
braços carinhosamente.
Bipolar é pouco!
— Meu amor, não, não. Não chore, me desculpa por ter gritado… —
murmura, beijando meus olhos. — Ei, ei, ei, o que foi? Não diga que não me
quer, por favor, não faça isso comigo.
— Bateu a cabeça? Pensei que tinha desistido de mim — choro,
pulando em seu pescoço e soluçando como uma perfeita grávida
descontrolada.
— Corazón — chama, rindo, segurando meu rosto protetoramente. Eu
já disse que amo esse homem? Eu amo. — O sol vai parar de brilhar durante
o dia e as flores morrerão na primavera antes que eu desista de você.
É assim, comigo desaguando igual uma cachoeira e ele rindo do
sofrimento alheio, que mostro para ele o caderno, especificando o item
número zero com o indicador.
— Você prometeu realizar todos os itens da minha lista de desejos. —
Soluço. — E não posso realizar esse aqui sem você. Sim. Eu te amo, Lord
Vlad. Com ou sem a benção do destino, eu amo você.
— Amo você também, minha linda, maravilhosa, louca e
impulsiva, Corazón. Todos os seus sonhos são meus. — Admirado, Vladimir
acaba com dúvidas e transforma nossas confissões em ações e toques.
Fecho os olhos para receber sua boca, e, no interior das minhas
pálpebras, as palavras escritas por Vladimir dançam no meio da escuridão
onde reside nossa morada caótica e perfeita.
Casar com Vladimir Volkiov.
VLADIMIR

— ELA JÁ SABE para onde estão indo? — Roman pergunta, aproximando-


se do carro, com as mãos escondidas nos bolsos da jaqueta preta que usa por
cima da camisa social sem gravata. Nossos olhos voltam-se sincronicamente
para Serena, que se despede de Ivan e Lara na frente da mansão.
Os cabelos brilham contra o sol, estendendo-se até a metade da coluna.
O corpo está oculto por um sobretudo longo, que só deixa à mostra as meias
justas em uma faixa sob as botas marrons sem salto — em suas próprias
palavras, só voltará a usá-los depois da gravidez. Claro que é um exagero,
mas essas pequenas decisões deixam Serena mais segura consigo mesma, e,
no momento, minha única preocupação é que se sinta assim, protegida,
acolhida e estável.
— Claro que não — respondo à pergunta do meu irmão, ocupando-me
da tarefa de colocar nossas coisas no porta-malas da limusine. — Se
soubesse, não estaria assim tão calma.
Roman aquiesce, ajudando com as duas malas restantes. Ele tem sido
um excelente amigo para Serena, principalmente depois que ela voltou a se
consultar com um psicólogo, e a mágoa que antes eu sentia se transformou
em gratidão muito depressa. Ela conquistou minha família totalmente, e isso
só me faz amá-la ainda mais.
A verdade é que no fundo eu sempre soube que aquele beijo nunca
significou nada, mas um homem com o orgulho ferido dificilmente pensa
com a cabeça certa.
— Considero sua esposa como uma irmã, Vladimir — diz,
aproveitando que estamos longe dos ouvidos de todos. — A amizade dela se
tornou muito importante para mim.
Seguro a vontade de rir, mantendo a expressão rígida e calculada,
porque sei bem onde pretende chegar com esse assunto. Roman não abaixa a
sua cabeça para ninguém, não faz o tipo arrependido.
— Eu sei disso Roman. Confio em vocês três mais do que em mim
mesmo — confesso, apoiando o braço em seus ombros e nos conduzindo para
junto dos outros. — Serena merece ser feliz e tenho certeza de que também te
considera um irmão. Levando em conta tudo o que ela passou com Camillo,
isso significa muito. — Roman gosta de se sentir importante, e o sorriso
presunçoso prova que a ideia de ser comparado como sendo melhor do que o
falecido irmão de Serena o agrada. — Mas você ainda vai precisar cuidar dos
hotéis que comprou na Itália — digo, por fim, ciente de que essa mansidão
toda tem a ver com os novos hotéis em Roma, Milão e Florença, e a sede que
precisaremos inaugurar em breve.
Roman lamenta, rangendo os dentes e bufando.
— Seu marido é um sádico de merda — diz para Serena assim que nos
aproximamos o suficiente, livrando-se do meu meio abraço e indo se juntar a
Ivan e Lara.
— Você não viu nada — Serena responde, abrindo um imenso sorriso
vermelho que faz meu corpo querer se desdobrar de dentro para fora,
lembrando-me como sua boca é perfeita para outras coisas além de me
enfrentar e tirar do sério.
Se eu soubesse que um anel de noivado a deixaria tão criativa, teria
comprado um há tempos.
— Está pronta? — pergunto, enlaçando sua cintura.
É um dia frio, a brisa gelada promete uma noite ainda mais rigorosa,
mas os canteiros de flores continuam vivazes, multicoloridos ao longo de
todo o jardim. O labirinto de arbustos recebeu um novo tratamento, e
algumas mudas de bordo crescem ao seu redor, erradicando aquela atmosfera
mórbida que eu costumava associar à morte do meu pai.
Tatiana está com Luna no colo. Minha filha olha para todos com seus
olhos idênticos aos de Serena. Talvez esse seja o jeito torto e estranho do
destino de avisar que o interpretamos errado esse tempo todo. Que ele nos
queria juntos há muitos e muitos meses atrás e que Luna sempre foi nossa.
Talvez, mas isso não importa, porque escolhemos estar aqui, juntos.
Luna é minha filha mais velha e eu a amo incondicionalmente. Graças a ela,
consegui rever tudo o que enfrentamos com outros olhos, concentrando-me
nas coisas positivas que a livraram de cuidados negligentes e um futuro
malfadado.
Como se fosse atraída pelo meu olhar, ela sorri e impulsiona o corpo na
minha direção, balbuciando baixinho. Luna sempre me procura, pede pelo
meu colo e isso me faz sentir o homem mais importante do mundo. Poderoso,
como nenhum cargo ou conta bancária jamais conseguiu.
— Tem um bebê na barriga da tia Serena também? — Iago pergunta,
encarando a barriga de Serena com um ar de espanto, depois faz o mesmo
com a mãe, franzindo o cenho.
Lara acaricia a cabeça do filho. Mesmo tendo explicado da forma mais
objetiva possível, ainda é difícil para ele entender algumas etapas do processo
de como os bebês vão parar lá dentro. E agora, ter que lidar com duas
grávidas deve aumentar mais ainda sua curiosidade, assim como o número de
perguntas.
— Sim, Iago. Será o seu priminho — respondo, gostando de como soa.
— Ou priminha — Serena corrige, encarando meu rosto, desafiando-
me a contestar.
— Será um menino, querida — insisto.
— Como pode ter tanta certeza, querido? — Assumindo uma postura
afrontosa, Serena coloca as mãos na cintura e arqueia aquela sobrancelha
poderosa e ousada.
— Posso não ser o melhor exemplo de ser humano, mas seria muita
maldade com um homem só ter que lidar com três mulheres lindas na minha
vida — esclareço, por mais que não faça sentido algum. — Já é
suficientemente ruim pensar que minha Luazinha vai crescer e precisarei lidar
com os marmanjos correndo atrás dela!
Ivan emite um som engasgado e até Roman parece um pouco nauseado
com a ideia de nossas filhas ou sobrinhas crescendo.
Que bando de idiotas nos tornamos.
Realizamos uma longa e enfadonha sequência de despedidas. Andrei
não pôde deixar a empresa, mas enviou mensagens a manhã inteira nos
desejando boa viajem. Minha mãe, que voltou a tingir os cabelos de vermelho
agora que Iago a considera uma avó legítima, não perde tempo em pegar
Luna de volta. Ivan e Lara trocam abraços com Serena e Roman vem logo
depois, beijando-a na testa de um jeito protetor. Meu pequeno e inusitado
sobrinho faz um malabarismo com o corpo para se desviar da barriga de
Serena ao se esticar para beijá-la também, arrancando risadas dos pais.
Quase meia hora depois, eu e Serena conseguimos deixar a mansão
rumo ao aeroporto.
— Acha que está tudo bem mesmo deixar Luna com a sua mãe? —
questiona, apoiando a cabeça no meu ombro, enquanto o motorista guia a
limusine pelas ruas de Moscou.
— Claro que sim, Corazón — tranquilizo-a, quase não acreditando que
está mesmo em meus braços rumo a um destino desconhecido por ela só
porque determinei assim. Serena se entregou a mim outra vez e não vou
deixá-la escapar nunca mais. — Acha que dona Tatiana Volkiova seria tão
obcecada assim por netos se não desejasse cuidar deles? Se não tomarmos
cuidado, é bem capaz de monopolizar nossos filhos.
O banco balança de leve com sua risada e de repente me recordo da
primeira vez que a tive dentro desse mesmo veículo, no dia em que quase foi
atropelada. Estava linda, cabelos molhados, o olhar frágil e evasivo,
esquivando das minhas perguntas. Naquela época, eu já estava fodidamente
atraído, capturado em seu redemoinho de respostas rudes e provocações sem
fim.
Serena me desafiou desde o começo, esgueirando-se sorrateiramente
para dentro das minhas defesas, um cavalo de Tróia reluzente que atacou em
silêncio e reivindicou seu direito ao meu coração.
E ganhou, essa mulher deliciosa e perversa sempre ganha.
— Não vai mesmo me contar para onde estamos indo? — indaga,
levantando o rosto curioso, os lábios comprimidos em um biquinho que
colocaria à prova a sanidade de um santo.
E estou bem longe de ser um.
A mão pousada em cima da minha coxa esquerda captura parte do meu
raciocínio lógico, que tão logo faz meus olhos esquadrinharem os ossinhos
pontudos dos seus ombros, visíveis agora que se livrou das roupas quentes
por causa do aquecedor do carro. No vale entre os seios, admiro a ponta
negra da tatuagem inclemente, que desce no decote comportado até se perder
de vista, cutucando minha imaginação maliciosa.
A maldita aperta, sutil, fazendo parecer um carinho inocente.
— É surpresa, já falei — sussurro em seu ouvido, sentindo o corpo
sedutor tensionar perante meu tom.
Seus dedos insolentes sobem, tateando minha perna até quase alcançar
a virilha. Ela para de se aventurar pouco antes do volume proeminente,
ocasionado por sua habilidade natural de me deixar alucinado com um
simples piscar de olhos.
Um gemido escala a minha garganta, seguido do seu suspiro ao
constatar que esse joguinho orquestrado por ela está surtindo o efeito
esperado.
— Algum problema, amor? — indaga, a mão desviando para a minha
barriga em uma pressão puramente lasciva.
Encaramo-nos, olhos faiscantes e sorrisos maquiavélicos idênticos.
Serena é uma competidora natural, seus gestos e olhares se orientam segundo
a lei do mais forte, adaptando-se ao meu mundo para governar toda a minha
existência.
Seu vestido sobe quando cruza as pernas, deixando entrever a borda da
meia-calça pressionando a pele farta das coxas, e esse pequeno vislumbre do
paraíso enche minha cabeça com todo tipo de pensamento pecaminoso que
mais adoro.
No limite do desejo, exijo sua boca, trazendo o rosto de traços suaves
de encontro ao meu. Serena não coloca barreiras entre nós, amolecendo em
meus braços e entreabrindo os lábios para que a invada com a língua. Tomo
tudo dela, os gemidos e arquejos, passeando a mão livremente ao redor do
vestido até a barra da roupa.
— Deite-se no banco e abra as pernas, querida — ordeno, seduzido. —
Temos tempo até chegarmos no aeroporto.
Surpresa, Serena tenta se desvencilhar, mas nós dois sabemos que não
há nada capaz de refrear o que nossos instintos pedem quando a ambição
voluptuosa se instaura na conexão invisível que nos une. Ela pode tentar, mas
nesse quesito a única maneira de evitar o que queremos é mentindo para si
mesma e negando a cobiça queimando em seu ventre.
— Lord Vlad, não podemos agora — reclama, contorcendo-se com os
meus toques cheios de luxúria marcando a pele clara.
Minha palma clama para sentir a textura cálida de seus seios tão logo
nos livrarmos da roupa. Arfante, Serena arrasta os pés para os lados e me
concede acesso ao centro caloroso enquanto me esbaldo, beijando seu
pescoço, trilhando um caminho de pontos úmido até a boca manchada de
vermelho.
Rendida, entregue e anestesiada.
Adoro isso, merda!
— Seu corpo e suas palavras não estão em sintonia, meu amor —
provoco, empurrando-a para baixo.
— O motorista… — murmura, deitando-se no banco enquanto
acomodo um de seus joelhos para cima, apoiando a panturrilha torneada no
meu ombro.
Os olhos anuviados de expectativa fazem pedidos sórdidos, mesmo por
trás da vergonha e do medo por estarmos dentro de um carro em movimento.
Prisioneira do próprio prazer, Serena provavelmente não tem ideia de que
estou acorrentado também.
— Hum… — Seguro as laterais do vestido franzido na cintura,
iniciando uma subida contemplativa que revela aos poucos a barriga onde um
pedacinho meu se esconde; isso leva embora o que restava da minha
prudência. — Vai precisar ser muito, muito silenciosa, Corazón. Não quero
ninguém escutando como sua voz é uma perdição quando estou todo
enterrado em você.
***

— Você não fez isso! — grita, olhando para baixo, sua voz sobressaindo ao
barulho do helicóptero em nossos abafadores, enquanto o cabelo agita ao
redor do rosto espantado. — ¡Dios mio! ¡Usted se volvió loco! — continua
com o espanhol energético que faz meu corpo reagir de imediato. Mesmo
sem entender uma palavra, tenho certeza de que está me chamando de maluco
ou coisa pior.
— Achei que isso já estava mais do que óbvio, Corazón — respondo
segundo minha dedução, admirando a paisagem que agora nos pertence.
Assistir esse cenário com Serena é diferente, especial de uma maneira única.
— Isso é… — Ela espalma as mãos no vidro, assombrada e, ao mesmo
tempo, maravilhada com a beleza paradisíaca das árvores. — Uma ilha!
Comprou uma ilha, puta merda!
— Nossa ilha — corrijo, só para aumentar seu espanto. Ela abre a boca,
negando enquanto o helicóptero desce na estação de pouso nos fundos da
imensa mansão suntuosa no topo do monte irregular.
Precisamos vir para a Grécia com o jato da empresa, e de lá o
helicóptero fez nosso embarque direto para a ilha. Não é muito grande em
termos territoriais, mas extensa o suficiente para receber novas instalações
em um futuro próximo, além das já existentes que receberão o apoio
necessário para crescerem.
Depois de pensar muito no que minha mãe disse sobre mostrar para
Serena que eu estava disposto a viver ao lado dela em um novo lar —
considerando a estupidez colossal ao despejá-la da mansão —, escolhi fazer
isso da maneira mais impactante possível.
Não sei fazer as coisas pela metade.
No extremo norte da ilha, as rochas se elevam em uma montanha
arborizada que saúda a grande construção em seu cume. Há um ancoradouro
particular invadindo a baía, mesmo que outro maior tenha sido construído na
pequena vila ao sul. O antigo proprietário utilizava os recursos apenas por
lazer, o que fez com que a economia local ficasse parada no tempo em
comparação com as centenas de ilhas espalhadas pelos demais arquipélagos.
— ¡La puta madre! — Serena continua após descermos, abaixando
para fugir do vento causado pelas hélices ainda ligadas sobre nós. — Por que
fez isso? — questiona, vindo para os meus braços. Dois seguranças fazem
nossa escolta rumo à escada de pedras naturais encrustadas em um declive
que desponta no primeiro pavimento da mansão.
Parece uma criança feliz, e não deixo de pensar em Roman e seu
apelido tosco. Um bebê, inocente em praticamente tudo sobre o mundo, tendo
que se desdobrar sozinha para sobreviver. Mas isso agora acabou, Serena vai
ter a vida que merece, não apenas em termos materiais.
— Porque eu posso — respondo, meio brincando, embora não seja uma
resposta muito distante da realidade.
Implicar com Serena e chocá-la com meu dinheiro é divertidíssimo. Ela
sempre fica impressionada e nunca me oferece um olhar acusatório ou de
julgamento, embora não economize em adjetivos espirituosos com sua
boquinha astuta.
— Quanta modéstia, senhor milionário — ironiza, apoiando-se em mim
enquanto descemos juntos.
— Vai dizer que não gostou?
Serena se posiciona na minha frente, com as costas contra meu peito, e
toma uma respiração carregada, observando a vastidão norte da ilha que se
perde de vista no ângulo em que estamos. Mas a mansão é um espetáculo à
parte, com muros brancos destacados contra o verde escuro da vegetação
selvagem.
É maior do que nossa residência na Rússia. O jardim se propaga na área
plana ao redor da piscina, que conta com uma pequena cascata artificial em
sua composição. Há também uma fonte rústica próxima ao portão de saída,
com um casal de mármore e bronze se admirando amorosamente enquanto a
água chove sobre seus corpos talhados.
É romântico, muito diferente do que estamos acostumados, mas a
mistura clássica da arquitetura com alguns melhoramentos mais tecnológicos
e modernos — como as janelas panorâmicas ou as paredes clínicas de vidro
entre alguns cômodos — transformam a atmosfera em algo que combina com
a lógica russa; prática, moderna e, ainda assim, carregada de história.
— É lindo — Serena concorda, virando o pescoço com um sorriso
tenro após circundarmos toda região externa. — Mas, querido, isso é uma
ilha. Uma ilha inteira! — sussurra, exasperada, o sorriso congelado no rosto.
Tão linda.
— Eu compraria o mundo para você, se estivesse a venda — digo,
sincero, escancarando o meu amor sem mais jogos, brincadeiras ou
desafios. Argh! Estou derrotado aos pés dessa mulher e isso nem me
incomoda. — Venha, vamos entrar.
Exploramos o interior do nosso ostensivo refúgio e Serena não disfarça
nem um pouco o quanto acha tudo magnífico como em um palácio. São três
andares, sem contar a torre onde fica o quarto principal, que deixo para
mostrar por último.
— Vai poder decorar como achar melhor. — Passamos pela antessala,
cruzando o portal sob a escadaria bifurcada que sobe majestosa para o andar
superior. — Esse será nosso paraíso particular. Aviões de pequeno porte e
helicópteros não podem sobrevoar a região sem autorização, e todos os
funcionários moram em uma pequena vila de nativos perto da praia. Não
mais do que cem pessoas por enquanto.
Serena não responde, está atônita. Caminha dentro da galeria fantasiosa
que fica bem no meio da residência, entre vasos imensos de plantas silvestres,
deixando as mãos resvalarem na mobília antiga. Entendo que esteja chocada,
e até um pouco assustada, e amo ser eu a trazer essas sensações novas à sua
vida. Estou acostumado ao luxo, o exagero faz parte da minha essência, e não
aceito oferecer menos do que isso para a minha família.
— Vamos nos casar aqui — aviso, um tanto presunçoso para que não
ouse dizer o contrário. Não discutimos o assunto desde quando exigi que se
casasse comigo, e nem pretendo.
Vamos nos casar. Fim!
Cruzo os braços, apoiando-me em uma coluna que transpassa todos os
andares até o teto. Serena percebe minha pose autoritária, e é claro que vem
toda altiva na minha direção com o olhar provocador e os quadris se lançando
para os lados, transmutada em seu modo diabinha insolente.
— Na ilha? — pergunta, laçando meu pescoço com os braços. É tarde,
o sol começa a adormecer, banhando as vidraças com uma coloração bonita
de laranja e amarelo.
— Sim. — Retribuo seu gesto, abraçando a cintura delgada que quase
desaparece entre os meus braços. Por pior que soe, a constatação da sua
fragilidade física faz cócegas no homem possessivo que habita em mim e que
deseja consumi-la vorazmente o tempo inteiro. Ao invés de fazer isso, desvio
para o romantismo, por enquanto, e digo: — Meu irmão se casou na mansão
a pedido da minha cunhada. Era onde se sentia protegida e amada, e não
queria uma exposição tão grande se locomovendo até uma igreja. Quero que
o nosso casamento seja livre de todas as lembranças ruins. Em um lugar só
nosso, onde construiremos nossas próprias memórias.
— Amo você, Lord Vlad — diz, escorando a cabeça sobre meu coração
disparado. — Não pensei que pudesse me surpreender mais, mas conseguiu
superar as minhas expectativas. Preciso parar de subestimar meu noivo-
quase-marido podre de rico.
Noivo.
Marido.
Porra, ela não tem mesmo noção de perigo! Ou melhor, até tem, mas
adora.
— Bem, essa foi nossa última extravagância por algum tempo, ou Ivan
é bem capaz de entrar em colapso nervoso. — Juntos, rimos da possibilidade
e começo a conduzir Serena para a torre. Haverá tempo para conhecermos a
ilha e o que mais ela quiser, mas agora preciso confiscar toda sua atenção em
nosso quarto até que o cansaço supere a luxúria. — Pense nisso como um
investimento, se isso fizer com que se sinta melhor. Essa ilha estava
esquecida por anos, sem injeção financeira externa ou qualquer outro atrativo
para movimentar a economia local. A mansão precisa de reformas, é claro,
mas a terra é fértil, o terreno é bom, e em breve poderemos expandir a rede de
hotéis que Roman comprou logo ali, na Itália. Quem sabe criando um resort?
Explorar o mercado turístico, sem prejudicar o meio ambiente da Ilha, vai ser
ótimo para a corporação.
— Não é à toa que você é o presidente. Tenho tanto orgulho de
você, Lord Vlad. — Espero a sensação de repúdio se alastrar ao ouvir sua voz
me chamando assim, presidente, mas não acontece. Sempre associei o
sucesso como presidente ao meu lado ruim, mas Serena também mudou isso.
— Desculpe ter dito que não era um homem tão bom quanto seu pai. Você é
incrível.
Pai.
Esse elogio me pega desprevenido. Utilizar o nome de Nicolai como
exemplo de bondade é quase tão absurdo quanto fazer o mesmo com o meu
nome, mas sua fala é tão sincera e amorosa que começo a desejar ser esse
sujeito que Serena acredita existir em mim. Ela continua sendo uma caixinha
de surpresas que nunca esgota, sobretudo no que diz respeito ao seu jeito
prático de lidar com a vida.
— Esqueça isso, não vamos falar sobre nada que tenha separado você
de mim — digo, preciso, não querendo entrar em qualquer assunto que não
envolva Serena e o nosso futuro juntos.
Subimos a escada espiralada até chegarmos às portas duplas, douradas
e ornadas com flores esculpidas em relevo sobre a madeira pesada. Ao
entrarmos, Serena novamente despeja seu extenso repertório de palavras
chulas em espanhol a respeito do majestoso espaço; meu preferido, sem
sombra de dúvidas.
É circular, com uma abóbada de vidro sobre o teto, que pode ser aberta
ou fechada por um mecanismo eletrônico. Há uma sacada que apresenta a
praia particular na lateral da encosta e o aroma salgado do oceano desliza
para dentro do quarto. O chão foi revestido com uma tapeçaria que lembra
muito a do hotel, confeccionada em um vermelho bem escuro, com requintes
de arabescos em forma de flores.
Ao menos aqui, a familiaridade russa me agrada mais, e, pelo olhar
lacrimoso de Serena para os detalhes, presumo que também tenha aprovado.
Ela retira as botas e corre para a cama, jogando-se de costas, com os
braços abertos.
— Isso parece um sonho! — Suspira. — Por favor, se for um sonho,
não quero acordar nunquinha! — avisa, apontando o dedo para mim, como se
eu tivesse o poder de decidir isso.
Jogada sobre lençóis perolados, com a luz opaca do anoitecer
suavizando seus contornos, Serena rola pelo imenso colchão até ficar
ajoelhada na ponta. Os cabelos despenteados junto com o rosto corado pela
alegria deixam-na com aspecto feroz, o que é uma merda, porque sei que sua
cabecinha engenhosa está imaginando as coisas que faremos nesse quarto em
breve.
Ela é tão transparente para essas coisas, ainda mais quando começa a
arfar só com a expectativa. Sua reação exótica faz meus pés ganharem vida e
tão logo estou diante dela, olhando-a por cima.
— Descanse, Corazón — oriento, mas o brilho em seus olhos mostra
que minha rouquidão não passou despercebida. É impossível não ficar atraído
quando começa com seu jeitinho sem vergonha. — Tome um banho e durma
um pouco, ainda tenho mais uma surpresa assim que a noite chegar e espero
que esteja com as energias recarregadas.
— Oh! Misterioso… — Ela segura o cós da minha calça, brincando
com a fivela do cinto. — Vai finalmente revelar que é um vampiro e sugar
todo o meu corpo?
Boa escolha de palavras.
— Não é uma ideia ruim. Você bem que gostaria, não é? — Agarro seu
rosto, no espaço entre o pescoço e a mandíbula, e Serena sorri jocosamente.
Eu sempre me perco, não tem salvação.
— Espero que isso seja uma promessa, Lord Vlad.
— É um aviso, Corazón. — Curvo-me, provando sua boca com um
roçar suave. — Ficaremos sozinhos nessa ilha por uma semana. Acha que eu
trouxe você só porque sou um homem romântico e atencioso?
— Você é um amor… — ironiza, impiedosa, trincando os dentes para
esconder que odeia a lentidão. Sua fome me enlouquece.
— E você é minha — afirmo, ciente do efeito que essas palavras
ocasionam em seu corpo. Sabemos que isso tem um limite insignificante
quando estamos escondidos dos olhos do mundo. — Toda minha, sem
ninguém para atrapalhar por uma semana inteira.

***
— Ela não gosta quando está calor — digo para minha mãe, que bufa
dramaticamente no outro lado da linha.
— Não tem nada melhor para fazer Vladimir? — reclama. Estamos
conversando há menos de dez minutos e ela já tentou desligar cinco vezes.
— Sei muito bem do que a minha neta precisa. Já disse para não se
preocupar. Graças a Deus sua mulher já está grávida, ou eu estaria ainda
mais frustrada com você. — Alguém diz alguma coisa no fundo, parece a voz
de Roman. Minha mãe troca poucas palavras com quem quer que seja antes
de voltar para o telefone. — Querido, por acaso você não gosta de sexo?
Existem médicos especializados se estiver com problemas de…
— Boa noite, mãe! — Adianto-me, antes que essa conversa piore.
Minha mãe é a mestra da lábia quando quer nos irritar.
— Não ligue! — ordena, desligando em seguida.
— Algum problema? — A voz de Serena soa no quarto escuro. As
cortinas estão fechadas, mas a noite nos assiste do alto, atrás do côncavo
transparente no teto. Iluminada pela lua e pelas estrelas, Serena se levanta,
bocejando e se espreguiçando em uma camisola branca que não esconde a
nudez por baixo do tecido translúcido.
— Minha mãe ligou — conto, descartando o celular sobre a mesinha ao
lado da poltrona em que me sentei para apreciar minha mulher dormindo
tranquilamente. — Está tudo bem, mas Luna estava um pouco inquieta e eu
disse para minha mãe que pode ser por causa dos aquecedores.
Levanto-me da minha posição e me acomodo perto de Serena, só então
consigo enxergar seu olhar tristonho, cabisbaixo, as mãos fechadas nos
lençóis amarrotados.
— Entendo… — murmura, abatida. Tento imaginar o que pode ter
causado essa reação, mas nada óbvio me ocorre e odeio a impotência quando
Serena está envolvida.
— Algum problema? — indago, aninhando Serena entre as minhas
pernas.
— Ela não gosta quando está calor… — Repete as minhas palavras. —
Camillo disse isso antes de… — Não termina de falar, não precisa. — Essa
foram as últimas palavras do meu irmão. Agora entendo, estava falando sobre
ela, nossa Luna.
Cretino, penso, constatando que continuo bem insensível para alguns
assuntos. Mas talvez não seja apropriado admitir isso assim, e muito menos
agora.
— Sente falta dele? — questiono, pesando minhas palavras com
sabedoria, sem deixar que as emoções aflorem e Serena acabe se chateando
por minha causa.
— Não tenho certeza. Acho que tinha esperanças de que melhorasse,
sabe? Que se recuperasse. — Encostando a cabeça entre meu pescoço e a
clavícula, Serena dobra as pernas, abraçando os joelhos. — Acha que sou tola
por pensar assim?
Tento me colocar em seu lugar. É o irmão dela, o pior tipo, mas ainda
assim… Eu morreria por meus irmãos. Mataria por eles, assim como fariam o
mesmo por mim. Mesmo odiando tudo o que Camillo causou, não ouso
atentar contra os sentimentos fraternos.
— Era seu irmão. — É tudo o que consigo dizer para confortá-la. Um
fato que justifica a tristeza da sua perda, sem mostrar como considero a
memória de Camillo tóxica para minha mulher, que já passou por tanta coisa
graças às escolhas dele. — Vem, está na hora do seu presente — informo,
beijando seu rosto antes de levantar e obrigá-la a fazer o mesmo.
— O que é? — sonda, curiosa, deixando o assunto anterior se esvair
junto com a melancolia.
— Surpresa! — De mãos dadas, levo Serena na direção da sacada,
abrindo as cortinas e a porta de vidro.
— O que tem aí? — insiste, ficando na ponta dos pés para bisbilhotar
sobre os meus ombros.
— Você faz muitas perguntas, Corazón.
— Talvez porque meu noivo tenha uma mania irritante de não
responder nada do que eu pergunto. — Serena passa na frente, mas a sigo de
perto para não perder nada das suas reações. Ela contempla primeiro as
estrelas, muito visíveis e brilhantes no céu e no espelho oceânico embaixo.
Só depois percebe o objeto cromado na borda do parapeito de pedras. — Isso
é… um telescópio?
Serena é esperta, não precisa de mais do que isso para tirar suas
próprias conclusões. E eu amo. Porra! Amo demais a sua perspicácia, a
forma como seu rosto escancara todas as emoções em questão de segundos,
indo da incredulidade à indignação, da vontade de me bater à de me beijar.
— Comprou uma estrela! — exclama, toda linda com o nariz vermelho
e um sorriso tenso.
O frio nem se compara ao que estamos acostumados em nosso país,
mas os ventos marítimos são gelados e Serena se arrepia, exposta demais em
seus trajes indecentes e muito aprazíveis.
Pensei por dias em uma maneira única de presentear Serena com algo
significativo. A ilha, mesmo sendo magnânima financeiramente falando, é
parte de um negócio. Eu penso assim, não há o que ser feito; meu cérebro
está condicionado a funcionar segundo a lógica empresarial, e investir em
uma ilha fora da Rússia, principalmente depois de todos os escândalos,
pareceu a escolha mais inteligente. Além do mais, não temos como morar
aqui o tempo todo. Nosso lar é em Moscou.
Mas eu queria algo especial. Uma coisa apenas nossa, tão louco quanto
nós e esse relacionamento cheio de insanidades maravilhosas.
A sacada forma uma meia-lua na frente do quarto, com típicas
espreguiçadeiras em junco acolchoadas e mesinhas com tampos de vidro e
pés de madeira.
— Foi bem mais fácil do que eu imaginava, para falar a verdade —
confirmo, pegando as três pastas bonitas ao lado do telescópio. Entrego as
duas primeiras a Serena. — Essa se chama Luna, uma anã-vermelha, e aqui,
uma gigante-azul, para o nosso filho.
Serena olha as duas pastas. Atordoada, busca palavras, abrindo a boca e
fechando sem parar, mas acaba gargalhando nervosamente. Na primeira, está
o pequeno globo vermelho que representa nossa filha, e Serena leva um longo
momento lendo o nome completo — que já leva o meu patronímico e o
sobrenome dos Volkiov.
— Não é oficial de verdade — explico, para quebrar o silêncio. — Os
nomes científicos continuam sendo os mesmos, então a compra é
emblemática. É possível as encontrar no céu com as indicações de latitude e
longitude do certificado.
— Isso é tão incrível, Lord Vlad. Oh, céus! Se eu já não amasse você,
passaria a amar agora mesmo! — Serena guarda a estrela de Luna e vai para a
próxima, mas hesita, como eu já havia previsto. Certeza de que vai surtar…
— Você escolheu o nome do nosso bebê sem me consultar? ¡Dios
mio! Vladimir, colocou o nome do nosso filho, que não foi escolhido com o
meu consentimento, em uma estrela?
— Leia, Serena!
— Não! E se for algo horrível como… Nikita? — Ela me devolve a
pasta. — Ou, ou... Galina? Meu Deus, Vladimir, me diga que o nome do
nosso filho não soa como um mugido, ou um cacarejo, e nem com o nome de
nenhum animal em espanhol! — Ela geme, fazendo uma careta, com a mão
em cima da barriga. — Desculpe, bebê, a mamãe promete que isso não vai
acontecer.
Serena é meu teste de paciência particular! Só pode.
— Vai mesmo destruir todas as minhas tentativas de ser romântico? —
digo, irritado. É uma doidinha linda, mas entender sua mente nunca funciona.
Eu mesmo retiro o conteúdo, mostrando primeiro a massa azul, vibrante
e forte no meio do cosmo galáctico. Depois, entrego-lhe o certificado,
mostrando o nome destacado, e Serena escancara a boca de surpresa.
— Nicolai? — lê, evocando lágrimas a seus olhos. Serena chorando é
uma visão para a qual nunca estou preparado. — Mas… Você não… — Por
espontânea vontade, Serena me abraça, o gesto demonstrando o que as
palavras não foram capazes.
— Eu amei meu pai, Serena — sussurro com a boca apoiada contra a
sua cabeça. — Durante a minha infância, ele era o meu herói. Com ele
aprendi sobre o amor, mas também sobre como os efeitos do ódio e da
opressão são mais imediatos e duradouros. Mas ele amou você, protegeu e
cuidou. Devo isso a vocês, e quero que seja um recomeço para nossa família.
— Obrigada, eu amei, amei demais. — Ela funga de olhos fechados.
Beijo sua testa, mas frações não são suficientes e busco por seus lábios,
roubando sua boca úmida em uma junção celestial de línguas e respirações
entrecortadas. Ao final, pergunta: — Vladimir? E se não for um menino? —
Agora é ela a implicar comigo.
— Será! — decido, simplesmente.
— Certo. E se não for? — pressiona, mordendo meu queixo.
— Então teremos que continuar tentando até que ele venha. Há muitas
estrelas no céu esperando para serem nomeadas. Mas não vamos desviar do
foco aqui, ainda não acabamos. — Aponto para o telescópio, já posicionado
na frente de uma cadeira larga. Sento-me primeiro, depois coloco Serena em
meu colo e a ajudo a olhar através da pequena lente que já está posicionada
na direção certa. — Essas são estrelas binárias, consegue ver?
Serena curva para frente, arrebitando os quadris para trás, empinando
em cima do meu colo. Não é uma provocação direta, mas o corpo perfeito tão
perto, tão encaixado, tão delicioso, quase me faz pular o restante das
declarações para voltar a preencher seu corpo.
— São duas? — pergunta, impressionada com o par de pontinhos
brilhantes que já gravei na minha mente depois de admirá-los por horas.
Seu fascínio é tamanho que nem percebe minhas mãos aliciando-lhe a
cintura curva, as coxas meio abertas. A resposta à sua pergunta só chega
depressa porque ensaiei inúmeras vezes para ter certeza de que tudo seria
perfeito.
Ledo engano. A mulher consegue me desestabilizar até quando não tem
intenção.
— Sim — rosno, incapaz de me controlar. Serena percebe que a pose
em que estamos não me favorece nem um pouco. Ou melhor, favorece mais
do que deveria, considerando meus planos preliminares. — Elas compõem
seu próprio sistema estelar, duas estrelas solitárias, ligadas por uma órbita
própria. — O corpo quase desnudo de Serena reage ao som da minha voz, e
ela abandona o telescópio para se dedicar inteiramente a mim. — A estrela
primária se chama Corazón, orbitada pela segunda. É assim que me sinto ao
seu redor: existindo porque você existe. — Conduzo minha boca para perto
do seu ouvido, enquanto minhas mãos fazem o caminho da perdição, rumo
aos seios entumecidos tanto pelo frio como pela expectativa da promessa que
o meu corpo faz ao dela. — Assim somos nós, criando nosso universo
particular.
— Você é lindo, louco e completamente apaixonante, Lord Vlad. —
Meu nome é pouco menos que um gemido. — Obrigada por ser tão incrível.
— Agora… — Empunho seu pescoço com brusquidão, forçando-a a se
contorcer em uma posição muito sugestiva e erótica. — Gostaria muito de
ganhar o meu presente também.
Inquieta, Serena faz de tudo para manter o mínimo de controle. Mas é
tarde para nós dois, principalmente quando a ouço dizer:
— Como ganhar o que já é seu?
Levanto-me e a levo comigo. Serena grita com o arrebatamento
repentino, mas segura meu pescoço enquanto a carrego de volta para a cama e
a derrubo sobre os lençóis, afastando seus tornozelos antes de mergulhar
minha boca na umidade pulsante do seu prazer.
— O que vai… — A voz dela se desfaz em um lamento jubiloso.
Serena não tarda a obedecer aos meus silenciosos comandos corporais,
arqueando as costas para que eu desfrute do seu sabor, elevando todos os
meus sentidos a um patamar desconhecido antes dela. O toque dos nossos
corpos exigentes dispara uma corrente de sentimentos bons direto para o meu
coração, enquanto meus ouvidos brindam ao som das suas súplicas afogadas
no mais absoluto prazer. Perco-me no gosto da pele nua como um homem à
deriva faria depois de muitos dias sem saciar a sede da água doce; e o
cheiro… céus! O perfume libidinoso do meu corpo se misturando com o dela,
viciante como uma droga.
— Te amo mucho, Lord Vlad — geme, enfiando os dedos cuidadosos
entre os meus cabelos, forçando os quadris gananciosos em busca de alívio
para a fome que a faz implorar usando meu nome.
Meu nome.
Ensandecido de desejo, não deixo que se perca ainda, apesar do
lamento penoso que emite quando minha boca sobe para a barriga,
resvalando sobre o peito arfante. Nosso desespero entra em sintonia e Serena
pragueja, puxando meu rosto agressivamente para o seu e beijando-me com
fervor.
Ela se arrasta embaixo de mim, facilitando o nosso encaixe magistral.
Desejei poucas coisas com tanto afinco como anseio despejar o nome dela
enquanto proporcionamos o ápice um ao outro.
— Também amo você, Corazón.
Unidos tanto na carne quanto na alma, sustentamos nossos olhares e
reverenciamos o sentimento que se converte em harmonia enquanto nos
movimentamos sempre de encontro ao outro. Aprofundo-me em Serena com
cada vez mais força conforme seu clamor aumenta, e suas unhas arranham
minhas costas a cada investida feroz.
Rápido.
Profundo.
Caótico.
Não importa se o nosso amor estava escrito nas estrelas, eu lutaria
contra o universo se preciso fosse, desde que a tivesse exatamente onde está
agora. Ela prometeu se tornar a minha morada e conseguiu mais do que isso.
Entre acasos e destinos, Serena apareceu na minha vida e mostrou que
não preciso viver na escuridão sozinho. Que ela não é luz para erradicar
minhas trevas, mas que vai sempre me enxergar no meio do breu, assim como
eu sempre a encontrarei nas profundezas mais silenciosas e vazias, porque
juntos somos o próprio caos, que, em uma sucessão agonizante de desastres,
torna-se único, indestrutível e eterno.
SERENA

ACHO QUE DESSA vez passei dos limites. Não sei, alguma coisa nos
enfurecidos olhos azuis do meu marido diz isso; o rosto vermelho, junto com
a mandíbula enrijecida, também. Ora, o homem todo está prestes a explodir, é
claro que passei dos limites!
Algumas vezes, Vladimir é tão romântico e perfeito que quase me
esqueço da fera escondida por baixo da capa de marido dramático e
superprotetor.
— O que você disse? — grunhe, rangendo os dentes. — Desde quando
essa merda está acontecendo?
Olhando de esguelha, vejo Bóris, nosso psicólogo, entretido com a
discussão ao invés de conduzir a terapia de casal como era de se esperar. O
velho nem disfarça o quanto está pouco se importando com o nosso
confronto.
Talvez não tenha sido uma boa ideia dizer que os colaboradores ricaços
e bonitões — nessas exatas palavras — do abrigo não economizam elogios ao
trabalho que eu e Lara estamos realizando. A ideia era o deixar orgulhoso,
mas mirei errado e acertei em cheio no ciúme.
— Desde sempre — respondo com calma, por mais que a vontade seja
mandá-lo à merda. Hipócrita! — Não sei se você sabe, mas merecemos todos
os elogios! O abrigo tem sido muito enaltecido pela imprensa e o objetivo é
que a ajuda continue chegando cada vez mais. A proximidade com nossos
colaboradores é muito benéfica para ambos os lados, pois assim eles podem
averiguar onde o dinheiro que injetam está sendo investido.
Mas Vladimir ainda não se convence. Hoje ele acordou virado do
avesso, cruzes! Tudo isso só porque dormiu no sofá?
— A Corporação Volkiov faz muitas doações todos os meses, Serena, e
nem por isso fico marcando reuniões privadas com as diretoras de cada
instituição — argumenta, retesando o corpo e jogando um braço para o alto
na tentativa de extravasar a frustração. — Já posso imaginar que tipo de
investimento eles estão interessados em fazer.
— ¡Dios mio! Você é tão homem das cavernas às vezes! — reclamo,
indignada com seu exagero, e apelo para minha carta na manga. — Sou uma
mulher grávida, Vladimir. Olha o tamanho dessa barriga, acha mesmo que
algum homem vai se interessar por mim assim?
Falar sobre a gravidez e, principalmente, sobre a incrível, protuberante
e pesada barriga onde nosso Nicolai segue sem manifestar nenhuma intenção
de sair sempre funciona para acalmar o monstro. Vladimir abre um sorriso
admirado e bastante prepotente no mesmo instante.
— Que argumento ridículo — diz, tocando o topo redondo por cima do
vestido. — Você está linda e gostosa, mais do que nunca.
Meus olhos quase param na nuca. Só espero que esse tesão estranho
pela minha barriga grávida acabe assim que nosso bebê nascer, porque não
estou nem um pouco animada para passar por isso outra vez tão cedo.
Talvez nunca!
— Ridículo ou não, querido, é um fato consolidado que você, sendo um
presidente assediado constantemente pelas cocoricós de plantão, está
exagerando. — Vladimir começa a falar junto comigo, tentando anular meu
contra-ataque, então solicito a ajuda do psicólogo que está sendo pago para se
divertir às nossas custas. — Está vendo? Ele não consegue admitir quando
está errado!
Bóris, o psicólogo da família, um senhor que deve ter nascido mais ou
menos há uns duzentos anos, com seus cabelos brancos concentrados em
cima das orelhas e nenhum no alto da cabeça lisa, empurra os óculos para
cima, fazendo com que seus olhos se agigantem atrás das lentes garrafais.
O consultório é exatamente como eu me lembrava da época em que
Nicolai pagou meu tratamento. Espaçoso, porém escuro demais e nem um
pouco convencional; inclusive, a mobília mórbida e o cheiro forte de tabaco
poderiam tranquilamente ser características de que um psicopata do século
passado faz uso desse aposento.
— Eu admitiria que estou errado se estivesse errado! — brada meu
presidente, que está mais do que perfeito em um finíssimo terno escuro e
misterioso. Não julgo nosso sobrinho por ter confundido o tio com um agente
secreto, ele se parece mesmo com um quando se veste assim.
Um agente secreto misterioso e sexy! Céus, eu podia fantasiar com isso
à noite.
De dia também!
Agora, inclusive.
— Vocês discutem assim com que frequência? — pergunta Bóris de
modo enfadonho, acabando com a minha linha de raciocínio. — Como é a
comunicação de vocês?
— Ótima! — Vladimir se adianta, irritado com essa situação.
— A gente transa — intervenho, sendo mais específica.
— Como eu disse, ótima! — diz meu marido, sorrindo perversamente.
Está bem, não discordo.
Bóris resmunga alguma coisa que soa como "idiotas", abaixa a cabeça e
anota uma palavra em seu bloco de notas — tenho a impressão de que
também escreveu "idiotas" no papel. Os óculos voltam a escorregar para a
ponta do nariz e dessa vez ele não arruma, apenas nos olha sobre as hastes
douradas.
— Pretendem se separar? — pergunta, direto, fazendo-me gargalhar.
Será que ficou doido?
Vladimir grunhe, pronto para ter uma síncope.
— Que absurdo! — responde irritado, como se Bóris tivesse sugerido
que ele desse um tiro no próprio pé. Meu marido é lindo demais, ¡puta
mierda! — Jamais, nunca, em hipótese alguma. Serena, vamos embora, esse
homem não tem ideia do que diz.
Lindo e louco.
— Vlad, meu amor, ele só fez uma pergunta, não mandou que a gente
se separasse. — Tento acalmar meu homem, mas a vontade de gargalhar é
maior e ele fica mais emburrado.
— O que os dois tontos precisam entender é que a terapia de casal serve
para fortalecer a relação! — Bóris explica, bufando. — Para encontrar um
significado, entendem?
— Como eu disse, isso é uma perda de tempo — Vladimir resmunga,
olhando impacientemente o relógio em seu pulso. — O significado é que eu
amo essa mulher, todas as células do meu corpo amam essa mulher, mesmo
que ela teste a minha paciência em noventa e nove por cento do tempo! Acha
mesmo que, se eu não a amasse, estaria aqui?
— E por que estão aqui, afinal de contas? — Bóris se queixa,
apontando para a saída pela quinta vez desde que chegamos.
A consulta foi ideia minha, porque talvez isso nos ajudasse a apaziguar
toda essa onda de poderes se chocando o tempo todo. Não quero que nenhum
de nós dois mude, mas que Vladimir entenda que não precisa mais se esforçar
tanto para compensar seus erros comigo, que isso não continue sendo um
fardo para o nosso amor que é tão lindo.
Mas Vladimir, impaciente, começa a tagarelar com sua pose autoritária
que amo.
— Bem, se o senhor tiver alguma ideia de como fazer com que a minha
mulher pare de ser tão inconsequente e imprudente, para que eu não precise
me preocupar o tempo inteiro, isso seria interessante.
— Não sou imprudente! — protesto, cruzando os braços em cima da
barriga.
Meu marido gargalha, debochando.
— Querida, você saiu sem os seguranças três vezes só essa semana,
brigou com o pai de uma criança que apareceu no abrigo pedindo ajuda e
ficou presa no meio da estrada porque esqueceu de abastecer. Isso sem
mencionar a sua mania de nunca carregar o seu celular que me deixa
ensandecido.
Bóris solta um pigarro solidário. Traidor!
— Detesto os seguranças, você sabe disso. Chamam muita atenção e
não preciso deles quando estou no abrigo — explico, mas sei que não
convenceria nem uma criança. Tudo bem, ele tem um ponto nessa. — E
você? O que me diz da última vez em que discutimos e você voltou para a
empresa como se nada tivesse acontecido?
Esfregando os olhos com força, Vladimir pragueja e respira fundo,
invocando um pouco de discernimento antes de continuar, dessa vez mais
controlado.
— Você me trancou para fora do quarto só porque estava em uma
reunião com Elena Kokorina, e nós dois sabemos que ela me odeia. O que
esperava que eu fizesse, Serena? É por você e Luna que eu volto para casa
mais cedo. Se não posso estar com as minhas meninas, então vou trabalhar.
Ah, tão lindo esse homem, meu Deus. Como pode dizer algo
maravilhoso assim e, ao mesmo tempo, que me estressa tanto?
— Eu estou grávida — comunico, caso não esteja evidente o bastante.
— Você deveria se ajoelhar e implorar.
— Ficar ajoelhado era o meu plano, Corazón, mas a única implorando
seria você. — Seu olhar vibra, perigoso e cheio de malícia.
Misericórdia!
Quero.
Digo, quanta arrogância!
Quero mesmo.
Prepotente!
— Está vendo, doutor? Tudo para ele gira em torno de sexo! — acuso,
fingindo uma indignação que não existe. Até eu me surpreendo com a minha
cara de pau às vezes.
— E para você, não? — Vladimir questiona.
Outro ponto para ele, droga!
— Já chega! — Bóris bate as mãos em cima da mesa; os óculos caem
do seu rosto e ficam pendurados no pescoço por duas cordinhas marrons. —
Eu tenho mais o que fazer, vocês não precisam de terapia, e sim de um
quarto. Andem, sumam das minhas vistas. E diga para aquela velha bruxa que
eu estou aposentado! Aposentado!
Suponho que a bruxa velha em questão seja a minha sogra, que de
velha não tem nada.
— Ótimo, finalmente concordamos em alguma coisa! — Vladimir sorri
para o homem de maneira cúmplice, e Bóris esconde um risinho antes de
fechar a cara e nos despejar outra vez.
Ainda tento insistir, minha ideia era ótima, mas parece que nossa
terapia íntima funciona melhor. É claro que nós dois ainda precisaremos nos
encontrar outras vezes com o psicólogo — não necessariamente Bóris, já que
ele nos odeia —, pois faz parte do meu tratamento que a família esteja
presente.
Depois da morte de Camillo e Annia, tive algumas crises mais suaves.
É sempre assim, basta abrir uma fresta na porta que trancá-la de novo se torna
um martírio. Mas estou conseguindo, aos poucos; já faz bastante tempo que
não acontece e Vladimir tem me ajudado muito com meus medos.
Já no carro, de volta para casa, Vladimir tenta esconder a expressão de
quem ganhou uma guerra e está sentado no trono. A terapia pode ter sido uma
péssima ideia, mas ao menos agora temos o aval de um doutor para
continuarmos solucionando nossos embates da maneira que a gente mais
gosta.
Na cama.

***

Vladimir acabou convencendo-se de que precisávamos de um apartamento


nosso, já que as visitas à nossa ilha se tornaram cada vez menos frequentes
agora que minha barriga triplicou de tamanho. Eu disse que poderíamos
morar na mansão, mesmo depois da nossa briga catastrófica, porque queria
colocar uma pedra em cima daquele dia horrível.
Mas convencer meu marido a mudar de ideia é mais difícil do que dar a
volta no mundo a braçadas.
Tatiana não ficou muito feliz, mas acabou acostumando-se com a ideia
de que aquele lugar tem muitas lembranças que Vladimir deseja superar. Ele
tem se aberto mais sobre Nicolai e algumas vezes até pergunta sobre nossos
momentos juntos, o que é um grande avanço para o monstro.
Porém, mesmo assim, Luna fica com Tatiana na mansão todos os dias
enquanto trabalho — outro ponto que ajudou muito para que minha sogra
aceitasse a mudança.
Assim que entro pela porta da frente, com as pernas meio abertas por
causa da barriga dura e pesada, minha coluna queimando como um vulcão
ativo, vejo minha filha sentada com Iago no chão. Ao me ver, apoia as
mãozinhas no tapete e empina o bumbum para o alto antes de ficar de pé e
dar seus passinhos vacilantes da minha direção.
Iago, protetor, a acompanha de perto. É muito lindo o amor que esse
menino tem pela nossa Luazinha.
— Oi, meu amorzinho! — digo com minha voz estridente de mãe que
não aguenta tanta fofurice em uma criança só. Pego-a no colo, distribuindo
beijos enquanto ela olha por cima dos meus ombros à procura do pai. Sempre
o pai! — O papai está na empresa, querida. Mas prometeu que vai chegar
bem cedinho hoje, tá bom?
Luna responde um "todo bien" que me faz querer mordê-la ainda mais.
O passatempo preferido de Iago é estudar espanhol e repassar seus
conhecimentos para a prima. Eu tenho feito o mesmo, claro. Vladimir adora
quando conversamos e tem aprendido bastante também.
— Onde está a vovó? — pergunto, desejando me sentar o mais rápido
possível. Minhas pernas doem. Minhas costas doem. Até a minha bunda dói!
— Está no quarto com a Tatiana, porque a minha mãe foi no abrigo se
encontrar com a tia Dema no café.
Minha sogra só faltou anunciar no jornal que o nome da neta seria uma
homenagem a ela. Lara e Ivan só anunciaram no dia no nascimento, há um
mês, e isso a deixou realmente feliz.
Tatiana é uma cópia perfeita da avó, com os cabelos castanhos claros,
quase loiros, e os pequenos olhinhos azuis.
— E você sabe que problema é esse, meu anjinho? — pergunto para o
pequeno, que adora esse apelido. Lembro-me de Dema, nos encontramos pela
primeira vez no dia em que fui despedida e roubada pelo meu irmão. Só
descobri seu nome e sobre sua amizade com Lara muitos meses depois. Ela
tem um filho poucos meses mais velho que Luna, e por isso nos tornamos
próximas também.
— Era alguma coisa sobre uma prima da tia Dema que precisa de ajuda,
mas não sei muito bem com o que — explica, orgulhoso de si mesmo por
repassar a informação.
— E seus tios? — questiono, incomodada com um formigamento no
ventre. Coloco Luna no chão e ela volta para os brinquedos esparramados.
— Tio Andrei acabou de sair, estava brincando com a gente até
agorinha mesmo, mas o tio Vlad chamou ele na empresa. E o tio Roman…
— Tio Roman está bem aqui! — diz o próprio, surgindo pelo corredor.
Está alegre hoje, finalmente. Depois de ser obrigado a ficar dois meses na
Itália cuidando da inauguração de uma nova sucursal, ele conseguiu um sócio
decente e voltou mais que depressa para o nascimento dos sobrinhos. — Em
carne, osso e gostosura.
Ele faz uma mesura, retirando os óculos escuros e pendurando-os na
gola da camisa preta. Está usando calças jeans e botas, então deve ter acabado
de chegar de algum passeio com sua motocicleta super maneira.
— Moto! — Luna grita, acompanhando meu raciocínio e batendo
palminhas. Vladimir quase morre com esse gosto da nossa menininha pelos
veículos potentes do tio.
— Não pode, Lua — Iago repreende, branco como papel. Por mais que
ele também ame passear com Roman, continua apavorado com a ideia de
Luna se colocar em perigo. Já sinto pena da pequena Tatiana com um irmão
tão dedicado. — Tem que crescer mais.
— Isso mesmo, lindinha, nada de fazer igual a sua mãe e sair por aí se
colocando em risco — Roman diz, provocando-me. — E essa criança, sai ou
não sai? — pergunta, apontando para a minha barriga, que continua estranha.
A médica avisou para ficarmos de sobreaviso a qualquer alteração, mas
essas coisas de parto natural doem, certo? Tipo, doem muito. Eu vou saber
quando for a hora!
Porém, antes que eu responda dizendo que, sim, estou ótima, sinto uma
pontada mais forte que me faz gemer.
Ah, merda.
Ah, droga.
Ah, madrecita, perdónname por todos os meus pecados!
— Ah, porra! — Roman geme junto, olhos arregalados e um sorriso
assustado no rosto.
— Roman! Pare de sorrir, eu não consigo respirar, meu Deus! — A dor
desaparece depressa, deixando nada mais do que um desconforto. Mas é a
dor. Só pode ser. Misericórdia! Eu sabia que não devia ter saído do hospital.
— Onde eu estava com a cabeça quando deixei seu irmão colocar uma
criança aqui dentro?
— Eu avisei para não fazerem isso! — Meu cunhado reclama,
estagnado.
— Agora é tarde, Romanzito — repreendo-o, começando a
hiperventilar. — Vamos, ligue para o seu irmão. Nicolai, nem pense em sair
no meio do caminho. Está me ouvindo? Eu sou sua mãe, você tem que me
obedecer!
Nesse momento, uma Tatiana loira desce as escadas com um embrulho
de cobertores e mantas entres os braços. Tenho certeza de que ela tem algum
tipo de radar para netos na cabeça.
— Meu neto vai nascer! — grita, enquanto eu me curvo em outra onda
de dor. Puta que pariu. Vai nascer mesmo. Meu Deus! — Ande logo, Roman!
Leve-a para o hospital. Eu aviso seus irmãos. E não desmaie! Nenhum dos
dois.

***

VLADIMIR

— Onde ela está? — grito no corredor do hospital, batendo a mão sobre o


balcão em seguida. O recepcionista arregala os olhos, sobressaltando-se.
Ivan não tenta me conter, porque já passou por isso há pouco tempo e
sabe bem o que estou sentindo nesse momento.
— Porra, presidente! — Roman e Andrei aparecem, com certeza
atraídos pelo volume da minha voz. — Será que pode parar com essa mania
de ameaçar os funcionários do hospital? — pede, colocando-se entre mim e o
recepcionista.
— Pare de ameaçar pessoas de modo geral, de preferência — Andrei
ordena, mas seu timbre é suave, divertido e um tanto orgulhoso. Já
entendemos que nascimentos o deixam bobo e todo derretido.
— Como isso aconteceu? — pergunto a Roman, que a trouxe direto da
mansão. — Ela estava bem, não tinha nenhum sintoma…
Ele e Andrei se entreolham, e eu sei que não vou gostar nem um pouco
e que Serena provavelmente aprontou mais uma das suas. O caçula responde:
— Aparentemente os sintomas vêm acontecendo há quase uma semana,
mas…
— Serena não se deu conta, como era de se esperar — completo,
respirando fundo para não cair morto antes de conhecer meu filho. — Preciso
entrar junto com ela! — digo, virando-me para o corredor, determinado a
olhar em todos os quartos até descobrir onde ela está.
— Não pode entrar agora, Vladimir — Andrei intervém, jogando sua
baboseira sensata para cima de mim. — Você precisa ficar calmo, Serena
estava bem quando a levaram.
— O inferno que não posso entrar! — protesto, explodindo de
preocupação. Preciso vê-la, olhar em seus olhos e saber que está bem. Preciso
de qualquer mínima informação. — Ninguém vai me impedir de ficar com a
minha mulher.
— Se eu fosse você, não faria isso — Roman alerta, sorrindo daquele
jeito torto e debochado. — Serena estava gritando em alto e bom som que
não queria que você visse a sua parte preferida do corpo dela toda aberta e
estranha.
— Ela é louca! — afirmo, indignado enquanto imagino a cena. Serena
não faz ideia do que diz em situações normais, durante um parto tenho
certeza de que ficou ainda pior. — Quanto custa um maldito hospital? Eu
quero um hospital, não aguento isso toda vez! — Ivan, concorda, mas
recebemos reprovação dos outros dois.
— Senhor Volkiov? — Uma enfermeira com uniforme rosa e voz
cantante chama.
— Sim? — respondemos juntos, eu e meus irmãos. Ela abre a boca,
enrubescendo.
— Eu sou o pai! — informo quando vejo Roman piscando para a moça.
Ela pigarreia, mais vermelha do que nunca, e diz:
— O senhor pode entrar agora.
— Como assim? O que isso significa? — De repente, minha cabeça é
preenchida com lembranças da última vez em que ela esteve internada, do
medo que senti, temendo por sua vida. — Fale de uma vez!
— Está tudo bem, senhor — informa, encolhendo, antes de
praticamente correr na direção do quarto certo.
Já não era sem tempo!
Apesar do que disse, ainda me sinto sufocado, necessitado de Serena,
do seu calor, dos olhos vibrantes e escuros. Da sua voz dizendo que me ama
em espanhol.
O caminho é curto, mas suficiente para que eu relembre todos os
detalhes de seu rosto a fim de me certificar se continuam no lugar assim que a
encontrar.
A enfermeira arrasta a porta para o lado, indicando para eu entrar.
Penso se devo me desculpar agora ou depois por ter agido como um
troglodita há pouco, e decido que minha prioridade no momento é Serena e
nosso filho.
Assim que entro, os vejo.
Serena está com os olhos cheios de lágrimas, chorando silenciosamente
com um sorriso deslumbrante para o bebê em seus braços. É a visão mais
linda da minha vida, só empata com a imagem dela e Luna dormindo
abraçadas quase todas as noites.
Porra, eu tenho a família mais perfeita do universo.
— Como está se sentindo, meu amor? — pergunto, fazendo-a erguer o
rosto para me olhar.
Aquela conexão desigual me atinge em cheio, o amor que nos une e me
encanta em incontáveis escalas. Devagar, chego mais perto até enxergar o
rostinho franzido do nosso filho, o nariz pequeno e as sobrancelhas escuras
iguais às da mãe.
— Sinto como se tivesse sido rasgada, querido. Olha que interessante?
Porque foi exatamente isso o que aconteceu.
Serena está pálida, suada, os cabelos grudando na nuca, mas acho que
nunca estive tão apaixonado como agora. Pensei que Serena grávida era o
suprassumo da minha capacidade de amá-la, mas parece que me enganei
outra vez. Serena após dar à luz a um filho nosso acaba de me conquistar
novamente.
Ela sempre me conquista.
Sempre ganha.
Eu nunca tive chances.
— Você não cansa de me preocupar? — Beijo sua testa, sentando-me
ao seu lado para apreciar nosso filho.
— E perder a aventura? — brinca, cansada, entregando-me um
dormente Nicolai. — Ele acabou de mamar e apagou. Vemos logo que puxou
a mim.
— Ei, filhão, mas que susto você e sua mãe me deram! — sussurro,
balançando de leve. — E agora, temos um problema muito sério.
— O que seria? — Serena questiona, confusa.
Sempre inocente a minha mulher insana.
— Não suporto a ideia de que você tenha sentido tantas dores e
dificuldades — explico —, mas, olha que perfeição fizemos. Acho que
precisaremos de mais dois, ou três!
Serena arregala os olhos, franzindo as sobrancelhas e me fulminando.
— Nem pensar! — declara, aconchegando-se preguiçosamente contra
os travesseiros. — Minha dívida está paga, senhor Volkiov, daqui de dentro
não sai mais nada, só entra!
Seguro a gargalhada para não despertar nosso bebê. Não vejo a hora de
nossa Lua conhecê-lo. Tenho certeza de que serão tão unidos quanto eu e
meus irmãos. Inclusive, prevejo os três invadindo o quarto daqui a pouco.
Falam que não tenho paciência, mas não perco para nenhum deles nesse
quesito.
— Dívida? — pergunto, confuso.
— Quando você descobriu quem eu era, no casamento do seu irmão,
disse que eu te devia nove meses de vida, lembra?
Resgato da memória as lembranças daquele dia. Serena sempre teve um
algo a mais que me encantou. Eu me apaixonei e não percebi, porque não
conhecia nada sobre amar e ser amado de volta.
— Eu amo você — ela diz, sonolenta.
— Para caralho? — indago, relembrando agora das primeiras vezes em
que nos declaramos. Só ela para arrancar de mim tantos palavrões. Meus
sócios e clientes nem imaginam.
— Para caralho, senhor presidente — murmura de volta. — Te amo
mucho — diz, fazendo de mim o homem mais orgulhoso.
Orgulhoso, não por ter posses e títulos, mas por ter ao meu lado a
mulher que amo, que me deu a chance de olhar para frente e descobrir que
tudo aquilo que eu mais odiava em mim não era nada se comparado ao
homem cheio de qualidades que posso ser por eles.
Pela minha família.

FIM
Meu Deus, há tantas pessoas a quem desejo agradecer neste momento
que tenho medo de acabar esquecendo algum nome importante. Caso eu o
faça, peço que me perdoem, mas farei o meu melhor para expressar o quanto
sou grata por todo o apoio e carinho recebidos durante o processo de escrita
deste livro.
Agradeço primeiramente à Deus, porque ter me dado a força necessária
para passar por todas as provações, dificuldades, desencontros e desventuras
durante os meses em que estive escrevendo Entre Acasos e Destinos. Houve
momentos em que a vontade de desistir foi grande, confesso, mas o amor pela
Família Volkiov e por todos que partilham desse sentimento junto comigo foi
mais forte, e isso me deixa imensamente feliz.
Vladimir foi meu grande desafio, e só quem esteve pertinho sabe!
Eu quero agradecer principalmente às minhas leitoras da plataforma
Wattpad, que estiveram ao meu lado por meses, aguardando pacientemente
por novos capítulos, enviando mensagens nos momentos difíceis. Vocês
fizeram esse livro acontecer, obrigada! Também deixo um agradecimento
mais do que especial para todas as meninas do grupo do WhatsApp que me
acolheram não apenas como autora, mas como amiga também. Amo vocês!
Agradeço sobretudo a meu marido e filhos, que me apoiam na ausência,
nas noites em claro e no constante mau humor pela falta de sono e excesso de
cafeína no organismo. São minha força maior, minha constante inspiração e
cada passo meu é pensando em vocês.
E por último, mas não menos importante, um super obrigada a todas as
minhas amigas autoras, que sempre estiveram presentes, conversando e me
apoiando, dizendo que eu conseguiria, em especial minha “best” Sara Fidelis,
e meu bonde: Cassia Carducci, Clyra Alves e Natalia Saj.
A palavra que fica é: gratidão! Hoje e sempre.

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LIVRO: Entre Perdas e Ganhos


SINOPSE:
"Quando se perde um grande amor, o que sobra no final?"
IVAN VOLKIOV conheceu o amor ainda na infância e aquele
sentimento se perpetuou ao longo da juventude; mesmo que o seu
relacionamento estivesse vinculado com os negócios da família, nada
importava desde que ela estivesse ao seu lado. No entanto, um grave acidente
em uma madrugada há cinco anos levou para sempre aquela que acreditava
ser sua alma gêmea, e ele agora precisa conviver com a dor e o ódio de ter
perdido tudo.
No meio de todo o seu sofrimento, Ivan sabe que há uma única pessoa a
quem culpar. Lara Ihascova, a irmã de sua amada... e principal responsável
pela morte dela.
LARA IHASCOVA, por outro lado, tem passado seus dias como uma
sombra desde que tudo aconteceu. Para se livrar da pressão do pai e
conquistar o direito de ficar ao lado da única luz que ainda brilha em sua
vida, Lara aceita prosseguir com o acordo matrimonial que a irmã deveria ter
selado antes da morte. Mas ela não podia contar que Ivan Volkiov voltaria do
exílio em Nova Iorque para interferir nos seus planos e reviver sentimentos
há muito soterrados.
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LIVRO: Entre Acasos e Destinos


SINOPSE:
"O que acontece com o amor quando o destino resolve jogar contra a
sorte?”
VLADIMIR VOLKIOV se considera um monstro: exausto e
assombrado por verdades envolvendo a morte de seu pai, permitiu que o
trabalho consumisse sua vida aos poucos, e agora tudo o que importa é
garantir que nunca descubram sobre seu pior segredo.
No entanto, um empreendimento em um distrito desfavorecido de
Moscou ameaça tudo o que ele sacrificou para reconstruir, e sua única
esperança é descobrir o paradeiro da proprietária misteriosa que impede seus
planos, e junto com ela, sentimentos e revelações que podem reviver tudo
aquilo que se empenhou tanto para enterrar.
SERENA FAJARDO ainda se lembra do dia em que quase desistiu de
tudo. Ir embora do distrito e se apegar à lembrança da pessoa que a puxou
para longe da escuridão foram escolhas que salvaram a sua vida fadada ao
desastre. Porém, quando seu irmão reaparece deixando uma dívida com um
grupo de criminosos no distrito, não lhe restam alternativas a não ser aceitar a
ajuda de um homem impiedoso e que acaba por envolvê-la em uma trama na
qual o destino e o acaso se perdem no meio de muito caos.
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CONTO: Um Presente Entre as Cinzas


SINOPSE:
VIKTOR YASHKIN é o chefe de segurança pessoal de Elena
Kokorina, a presidente da Kokorin Enterprises, conhecida principalmente por
sua personalidade desagradável e, muitas vezes, tirânica. Mas o passado dos
dois esconde ressentimentos trágicos que tendem a ser revisitados com a
chegada do ano novo.
Enquanto se divide entre a animação de sua filha pequena e o trabalho,
Viktor descobre que seus sentimentos protetores com relação à Elena talvez
signifiquem muito mais do que apenas culpa por tê-la abandonado quando ela
mais precisou.
ELENA KOKORINA perdeu as pessoas que mais amava em diferentes
momentos da vida, e teve que construir muros rigorosos para se proteger. Sua
reputação vilanesca começa a ceder, no entanto, quando uma de suas maiores
perdas retorna, depois de muito tempo, como seu segurança pessoal. Elena
sabe que, a cada dia, se torna mais difícil ignorar a chama que ele acende em
seu coração, um lugar que esteve preenchido apenas com cinzas por tempo
demais.
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LIVRO: Picante e Lascivo


SINOPSE:
Atlas Bertuzzo está determinado.
Qualquer um que olhasse de fora jamais imaginaria que o Titã de Los
Angeles, sócio-proprietário do clube noturno privativo mais polêmico e bem
frequentado da cidade, na verdade está em busca da mulher perfeita, uma que
atenda às suas preferências sexuais sem dramas ou expectativas. Debochado,
sarcástico, egocêntrico, mas conhecidamente responsável, ele carrega consigo
a culpa por um acontecimento em sua adolescência, e está decidido a jamais
se sentir impotente como naquela época outra vez.
Porém, os planos de Atlas começam a desmoronar no segundo em que
conhece Natalie, uma mulher que considera a prática da submissão como um
refúgio essencial em sua vida de aparências e segredos. O grande problema?
Ela não está livre para pertencer a ele.
Por outro lado, Natalie Jones, que sempre viu seu casamento como uma
tábua da salvação para seguir em frente após tudo o que passou ao longo da
vida, descobre muito rápido que não gosta de alguns extremos adotados pelo
marido e se vê cada vez mais presa em uma relação de abusos camuflados
por um falso desejo.
Atlas não consegue lidar com o fato de a mulher (im)perfeita para ele
se encontrar nas mãos de outro homem, e acaba fazendo a única escolha que
seria considerada crime dentro do seu estilo de vida: ele decide roubá-la. O
que Atlas não sabe, é que os fardos de Natalie podem ser pesados demais...
talvez, até mesmo para um Titã.
ATENÇÃO: Livro não recomendado para menores de 18 anos.

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