Você está na página 1de 344

Copyright © 2024 Anne Marck

Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.


Edição digital | Criado no Brasil.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos de imaginação do autor.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível —
sem o consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº.
9.610./98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
PRÓLOGO
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
EPÍLOGO
Para a Abbi esperta, amorosa e falante que tenho em casa,
exceto pelo sotaque caipira.
Nesta terça-feira, o mundo da agricultura testemunhou um feito
notável durante a 17ª edição do Concurso Nacional de Pesagem de
Abóboras em Marble Falls, Texas. Willie Gienger, um agricultor de
setenta e três anos, não só conquistou sua terceira vitória na
competição, como também estabeleceu um novo recorde mundial
que deixou o público maravilhado!
A estrela da ocasião foi a abóbora nomeada “Abbi”, pesando
incríveis 1.248 kg. Esta não foi a primeira vez que Gienger dominou
o concurso, pois triunfou no ano passado com uma abóbora de
1.161 kg chamada “Bobbie” e, em 2020, com outra de 1.066 kg
batizada de “Aboby”. Suas conquistas anteriores já haviam
quebrado recordes nacionais, mas desta vez ele superou o recorde
mundial do Livro dos Recordes para a maior abóbora, que
anteriormente pertencia a uma de 1.225 kg cultivada pelo agricultor
italiano Estefan Cutrupi em 2019.
Nossa repórter Samantha Olsen está em Marble Falls, Texas, e
traz mais informações:
— Sr. Gienger, nossos espectadores devem presumir que o
senhor está orgulhoso desta grande abóbora, certo?
— Ara, que tô sim, moça. Essa aqui deu trabalho!
— E quem é a garotinha ao seu lado? Sua netinha?
— Ela? É a Abbi. É a minha ajudante de seis ano.
— Abbie, então é uma homenagem? Olá, pequena Abbie! Está
feliz por essa grande abóbora recordista levar o seu nome?
— Moça, meu nome não é Abbie, é Abbi! Abbi Contreras! E se
tô feliz?! Ouchê! Claro que tô, essa abóbora gigante deu um
trabalho dos diabos — a garotinha limpou o suor da testa,
levantando a aba do chapéu, repetindo o mesmo trejeito do velho
Willie Gienger — O Willie se cagou de medo dos corvos comerem
ela todinha! Eita, minha mãe não gosta que eu fale assim... — o
rostinho de Abbi de repente ficou desconfiado – Ô moça, eu vou
aparecer mesmo na televisão? Pra valer?
— ABBI! — um grito de pânico cortou o ar.
Automaticamente, o cinegrafista girou a câmera e mirou no
rosto pálido e aterrorizado de uma mulher de olhos acinzentados,
antes de se voltar para a menininha, ajustando o zoom.
A pequena fazendeira tagarela arregalou os olhinhos.
— Ê lasqueira, me dei mal... aquela é a minha mãe, moça, o
nome dela é Cherry. E sabe o quê? Acho melhor eu ir agora…

— “Acho melhor eu ir agora?” “ACHO MELHOR EU IR


AGORA?!” O que foi que te falei sobre ficar longe do pessoal da TV,
Abbi?! — o controle remoto em minha mão tremia compulsivamente.
Eu nem sabia dizer o que predominava, a irritação ou o
desespero, enquanto olhava para o meu rosto congelado na
televisão da sala.
Isso não podia estar acontecendo! Não podia!
— Mãe, eles vieram ver a nossa abóbora!
— A abóbora do Willie, mocinha! Do Willie!
— Ajudei ele, tá bom? — minha pequena argumentadora cruzou
os braços aborrecida. Uma miniatura, perfeita.
— Se continuar andando de um lado para o outro desse jeito,
vai acabar furando o tapete, querida — Eva, a mulher de setenta
anos que era como uma avó para mim, apontou com delicadeza.
Parei no meio da sala. Minha cabeça estava dando voltas. Eu
só conseguia pensar no erro e nas consequências daquela
entrevista.
— É. Por que cê tá tão brava, mãe?
— Por… por... — olhei para minha menina esperta e falante,
sentada obedientemente no sofá como se fosse sempre esse
anjinho.
E ela era.
A melhor filha que eu poderia querer.
Por isso era injusto descontar meu medo nela. Abbi não tinha
culpa de eu ter escolhido viver em uma cidadezinha de cinco mil
habitantes no Texas, de eu ter fugido para cá com uma bebê na
barriga.
Exaurida pela tensão, sacudi a cabeça.
— Não é nada, filha. Não é nada.
— O que acha de deixar nossa pequena cultivadora de imensas
abóboras ir lá para fora comemorar com o Willie, Cherry? — sugeriu
Eva com bondade.
Abbi não precisou de uma resposta. Saltou do sofá, passando o
braço pela testa, aliviada de escapar da bronca.
Desabei me sentando ao lado de Eva.
— O que há de errado, querida?
Respirei fundo. Meu instinto era pegar minha filha, fazer as
malas e correr para o mais longe possível.
— Eu só... não quero ser... — fechei os olhos com força e
murmurei a próxima parte, uma que calei por tanto tempo — Não
quero ser encontrada...
Recebi um tapinha amoroso no meu joelho.
— Isso eu já sei, querida. Sei há muito tempo. Embora você
nunca tenha dito nada, estava meio na cara, não é? Uma jovem
bonita de vinte anos, bem vestida, chegando aqui com apenas uma
mochila, querendo encontrar emprego e moradia nesse fim de
mundo? Só se eu fosse uma tonta para não juntar dois e dois.
Esses anos todos, apenas me perguntei o porquê.
— Chegou a alguma conclusão? — arrisquei questionar, sem
coragem de encarar minha velha amiga, aquela que me estendeu a
mão quando mais precisei.
— Problemas com a justiça era um palpite, no começo. Mas
depois que a conheci, sei que você não é capaz de fazer mal a uma
mosca. Minha aposta é que tem a ver com o pai da menina. Estou
certa?
Encarei-a.
— Fugi de meu marido, Eva.
E temia a reação de Derek Reynolds se descobrisse que,
quando o abandonei, carregava dentro de mim uma filha... a filha
dele.
Se, numa hipótese muito azarada do destino, Derek assistisse
àquele vídeo, seria possível convencê-lo de que não era o pai de
Abbi apenas com minha palavra?
Quis rir. Ele não confiara em mim no passado, certamente não
confiaria agora também. Pediria um teste de DNA. E em seguida,
arrancaria minha filha impiedosamente. Poder e riqueza não lhe
faltavam para tanto. Não quando ele era um Senador.
Restavam-me duas alternativas: fugir outra vez, para um destino
incerto e com uma criança de seis anos, podendo correr todo o tipo
de risco, ou ficar e procurar um advogado imediatamente. Pedir o
divórcio e assegurar que Derek não tirasse minha Abbi de mim.
Enquanto me dirigia ao hangar para tomar meu jato particular,
no aeroporto de Washington, D.C., podia sentir os olhares furtivos
que me acompanhavam. Onde quer que eu fosse, era comum
aquele tipo de reação. Minha posição de Senador chamava atenção.
Além do mais, havia aquele artigo patético do NY Times sobre eu ter
sido eleito “o político mais impiedoso com os adversários, do
Congresso” há poucos dias.
Ironicamente, impiedade era tudo o que eu sentia desde que vi
aquele vídeo, logo depois das palavras de Iron, meu chefe de
segurança de longa data, há três dias:
— Senador, desculpe incomodar, mas... há um vídeo viralizando
na internet sobre uma garotinha do campo, no Texas. Acho melhor
que dê uma olhada.
— Não tenho tempo para memes de internet, Iron — ele já
deveria saber disto.
A manhã começara agitada no Congresso, um novo projeto de
lei fiscal vinha criando grande agitação nos corredores. Pretendiam
colocar em votação antes do recesso de verão, que aconteceria em
dois dias.
Era imprescindível que eu me concentrasse nos documentos
diante de mim.
— É realmente importante que dê uma olhada, Senador.
Principalmente... porque a mãe dela é...
Um pressentimento frio atravessou minha coluna.
— Quem é a mãe dela, Iron?
— Cherry, Chery Contreras, senhor.
Minha esposa fugitiva.
Usando o sobrenome de solteira, quase sete anos mais velha
do que a última vez que botei meus olhos na infeliz. Mas era ela
bem ali, apavorada depois de uma garotinha... droga, uma garotinha
com a minha cara, revelar mais do que deveria.
Sim, e Cherry tinha razão de estar apavorada mesmo.
No que a infeliz estava pensando quando decidiu esconder de
mim uma gravidez? De sair daquele jeito da minha vida?
Meus músculos estavam contraídos quando aterrissamos em
Marble Falls. Aos quarenta e quatro anos de idade, não me
lembrava de me sentir tão furioso antes. Apenas uma vez, se eu for
honesto, há quase sete anos, quando cheguei em casa e me
deparei com tudo no lugar, exceto pelo que mais importava.
Um carro de aluguel e seguranças me aguardavam na pequena
pista de pouso. Enquanto percorríamos as estradas do lugar, eu
sequer conseguia prestar atenção na paisagem pitoresca lá fora.
Uma filha. Cherry escondeu de mim a minha filha. Minha única filha.
Minha equipe de advogados já estava em ação. Documentos
estavam sendo preparados. Iron providenciara também um
levantamento completo da nova vida de Cherry. A lanchonete onde
trabalhava. A velha Ford que dirigia. A cópia da certidão de
nascimento, com um espaço vazio na paternidade, e a escola
primária que a criança frequentava. Abbi. Abbi Contreras, que
deveria ser Abbi Reynolds, nascida sete meses depois que Cherry
me deixou.
Olhando para a imagem da criança, percebi que era
desnecessário um exame de DNA. Possuíamos os mesmos traços
marcantes nas sobrancelhas muito escuras e grossas, o nariz. Mas
o faria, porque não deixaria mais atalhos para a mãe dela. Abbi era
minha.
E tinha também seus dados bancários. A mulher orgulhosa não
tocara em um único centavo do dinheiro que depositei em sua conta
mensalmente esses anos todos. Tudo estava intocado.
Desejei apertar seu lindo pescoço quando descobri. Ainda
desejava. Mas, intimamente, também reconhecia seu maldito ponto.
Nunca foi pelo meu dinheiro. Meu poder. Foi por mim. Do minuto em
que entrou em meu escritório para a vaga de estagiária, e tudo o
que veio depois, a química, a paixão irrefreável, o tesão que
sentíamos, quando parecíamos não ter o bastante um do outro. O
casamento relâmpago. Minha aliança em seu dedo. Minha maldita
aliança a marcando como uma Reynolds. Foi por mim. E a mesma
intensidade em como tudo desabou também foi minha culpa.
Precisei abrir a janela do carro para respirar um pouco,
observando as paisagens que se desdobravam diante de mim.
Marble Falls, a cidade rural escolhida por ela como refúgio,
localizada no coração do Texas
No levantamento feito por Iron, o lugar era apontado por sua
beleza natural e atmosfera acolhedora. Situada entre colinas
suaves, a paisagem era marcada por uma mistura harmoniosa de
vegetação exuberante e espaços abertos, incluindo o Lago Marble
Falls, que emoldurava parte da cidade. Imagens do pequeno centro
de Marble Falls mostravam certo charme rústico, com lojas
pitorescas e cafés aconchegantes. Era fácil imaginar mãe e filha
criando uma vida ali, estabelecendo laços com a comunidade.
Mas aquele não seria o lar delas por muito tempo. O que me
pertencia tinha de estar comigo.
Tive de parar no caminho em direção ao meu primeiro dia no
novo emprego para comprar supercola e colar o solado do meu
único Louboutin preto de salto fino. O sapato, comprado em brechó
(e que, sendo justa, caminhou bastante nos últimos meses em
minha busca por emprego), resolveu que era um bom dia para me
deixar na mão. A pausa, a alguns quarteirões do Russell Senate
Office Building, para comprar a cola e esperar os minutos de
secagem me rendeu um atraso, embora eu detestasse me atrasar.
Foi por isso que entrei três minutos depois do combinado na
recepção do gabinete de meu novo chefe, Senador Derek Reynolds,
esbaforida, vermelha por subir os lances de escada correndo, e
amedrontada por ser demitida antes mesmo de começar. E foi desta
maneira que o conheci pessoalmente, o político que eu admirava há
algum tempo.
Foi atrasada e com o visual desgrenhado que trombei com ele e
quase caí de joelhos à sua frente, se não fosse por uma mão grande
e bronzeada me segurando pelo cotovelo.
— Quem é ela? — perguntou meu novo chefe, frio, à mulher
que seria minha chefe imediata, depois de percorrer-me com os
olhos.
— Srta. Contreras, Senador. Sua nova estagiária. Ela está
começando hoje conosco — Mas o olhar que a Chefe de Gabinete
me lançou dizia tudo.
— Desculpem. Tive um imprevisto no caminho — expliquei,
mantendo a voz o mais equilibrada possível. Foi somente então que
percebi que o Senador continuava me segurando. E ele também,
pois me soltou como se o toque o queimasse.
Pelo jeito, levava extremamente a sério a pontualidade.
— Espero que saiba que procuramos evitar imprevistos por
aqui, Srta. Contreras — avisou o implacável e poderoso homem que
estava me dando um emprego, evitando me lançar um segundo
olhar — Agora, acredito que Mônica possa esperar alguns minutos,
enquanto a senhorita vai ao toalete se recompor, para então lhe
passar suas atribuições do gabinete. Com licença.
Derek Reynolds saiu caminhando como se o mundo fosse um
mero súdito dele. Notei, rapidamente, que o que tinha de bonito e
muito atraente, tinha de exigente e sério.
— Estou bem — falei baixo para Mônica — Desculpe, mais uma
vez.
Olhando-me de cima a baixo, ela meneou a cabeça:
— É melhor que faça o que ele disse, Srta. Contreras.
Envergonhada, entrei no pequeno banheiro da recepção. De
frente ao espelho, compreendi o que o Senador Reynolds vira.
Mechas de meus cabelos castanhos claros estavam fora do lugar no
coque baixo; as bochechas estavam vermelhas demais; o batom
cereja ― para minha completa vergonha ― bem borrado em um
canto da boca, de quando tive de abrir a tampa da supercola com os
dentes; um rastro discreto de suor permeava minha testa por causa
da corrida... e o último botão de minha camisa de seda creme
estava aberto, revelando, para quem via de cima, uma parte
generosa do meu colo. Alto como o Senador era, com
provavelmente mais de um metro e noventa de altura, certamente
viu meus seios e foi o que incomodou. O Senador deve ter me
interpretado como uma mulher vulgar.
Ele não tinha como saber que, na verdade, eu era
extremamente reservada. Que não saía para bares ou nada do tipo,
não tinha amigos ou família, que passei os últimos anos
absolutamente focada em estudar e tentar conquistar uma vida
melhor. Que, aos vinte anos, era uma virgem em todos os sentidos.
Minha única infração era ser uma leitora voraz de romances de
banca dos mais picantes possíveis. Quase um tipo de segredo.
Saí do pequeno lavabo determinada a mudar aquela primeira
impressão. Eu me dedicaria com força a esse emprego.
— Desculpe o atraso, Sra. Twohill, não acontecerá outra vez.
Realmente tive um problema no caminho — falei para Mônica, que
me esperava.
— Está tudo bem — disse ela com firmeza, embora eu não
estivesse muito segura de que estava mesmo. A mulher altiva, de
pele marrom e cabelos curtos, parecia extremamente competente e
rigorosa — Aqui, essas são as suas atribuições no gabinete.
Enquanto conversamos, vou lhe mostrando as coisas.
Peguei as folhas e corri os olhos pelas obrigações listadas:
Auxiliar na resposta a pedidos de informação: podendo envolver
pesquisa, redação de correspondências ou e-mails para responder
às perguntas de eleitores ou organizações.
Apoiar a equipe em projetos legislativos: participar da redação,
revisão e análise de propostas de legislação, realizar pesquisas
sobre temas relevantes e manter-se atualizado sobre questões
políticas.
Assistir em atividades de comunicação e relações públicas: isso
pode incluir ajudar na administração de mídias sociais do Senador,
elaborar comunicados à imprensa, preparar materiais para eventos
públicos ou ajudar na redação de discursos.
Atender chamadas telefônicas e receber visitantes: Receber e
direcionar chamadas, bem como receber visitantes que chegam ao
escritório do senador.
Apoiar a equipe em tarefas administrativas: Isso pode envolver
a organização de arquivos, a preparação de documentos para
reuniões e a realização de tarefas de rotina do escritório.
Participar de reuniões e sessões: Em alguns casos, os
estagiários podem ter a oportunidade de assistir a audiências,
reuniões ou sessões do Senador para entender melhor o processo
legislativo.
Realizar tarefas específicas de pesquisa: Essas tarefas podem
variar desde a pesquisa sobre políticas públicas até o
acompanhamento de notícias e atualizações relevantes para o
trabalho do Senador.
Minha recente formação em Ciência Política na Universidade de
Nova Iorque não havia me preparado especificamente para muitas
daquelas funções, mas eu aprendia rápido. E faria dar certo. Seria a
melhor estagiária que Derek Reynolds já teve, porque precisava
demais deste emprego.
Porque sonhava com uma vida com independência financeira.
Porque nunca mais queria depender de ninguém, ser o alvo mais
fácil e vulnerável.
Ergui Abbi em meus braços, envolvi-a em um abraço bem
apertado. Meu coração inquieto, me sentia ansiosa:
— Te amo, carinho.
— Ara, também te amo, mãe — reclamou, apressada para
correr e se juntar às amiguinhas no pátio da escola primária.
Acariciei seus cabelos assim que a devolvi ao chão.
— Que seu dia seja muito bom, meu amor — tentei sorrir ao me
despedir.
Estava fazendo muito isso, disfarçando minha tensão para que
minha filha não notasse.
Era meu dia de folga na lanchonete. Depois de deixar Abbi na
escola, voltei para casa e comecei a fazer a única coisa que me
acalmava em algum nível: faxina. Havia equilíbrio na limpeza.
Sensação de controle.
Fechei a tampa da máquina de lavar, depois de enchê-la com as
roupas de cama da semana, e estava pronta para dobrar a pilha de
toalhas recém-saídas da secadora, quando uma batida soou na
porta da frente.
Alta, forte. Decidida.
Antes mesmo de me dirigir à porta, pressenti que sabia quem
estava do outro lado. Era quase como se o sentisse fisicamente.
Com o mínimo de barulho possível, em vez de ir atender, dirigi-
me à janela que dava para a frente. Morava em uma rua residencial
tranquila, perto da fazenda de Eva e Willie e no caminho para o
centro da cidade.
Conhecia todos os vizinhos, nos mais de seis anos morando ali.
Seus veículos. E foi por isso que tomei a decisão covarde de não
atender. Aquele carro preto de luxo estacionado diante da minha
casa simples de dois andares com varanda e flores no quintal não
era de ninguém que eu conhecesse.
Na verdade, apenas uma pessoa ostentaria um carro assim,
mesmo que provavelmente fosse alugado.
— Abra! Sei que está aí — ordenou aquela voz impositiva e
potente, baixa e mortal.
Precisei me apoiar na parede para o tremor violento nas pernas
ao constatar que ele havia me encontrado. Era ele. Derek estava
aqui.
Mesmo depois de tanto tempo, meu coração disparou com
força, suor preencheu as mãos. Me senti zonza, nauseada.
Que loucura. Que loucura perceber que meu marido ainda
mexia comigo.
Ainda fazia eu me sentir aquela jovem inexperiente e insegura,
disposta a seguir com ele até o fim do mundo se essa fosse sua
vontade.
Mas as coisas haviam mudado. Eu mudei. Amadureci. Não era
mais a garota apaixonada e imatura. Tinha uma filha, e por ela, eu
lutaria com unhas e dentes se fosse preciso.
Não, eu não me acovardaria.
Respirei fundo. De queixo erguido, vestida com uma legging
preta e uma camiseta desbotada de ficar em casa, abri a porta. Foi
impactante dar de cara com ele. Com o rosto altivo, de traços fortes,
mandíbula cortante. A boca delineada e macia que podia drenar
meu ar, nos raros sorrisos. E um olhar duro e penetrante, que ao
encontrar o meu, pareceu capaz de me fazer queimar, de culpa, e
de algo mais... algo muito parecido com saudade. Uma saudade
visceral.
— Olá, Cherry.
Derek me odiava; a tensão fria em sua voz me avisou disso.
— O que quer? — murmurei, porque estava nervosa demais
para qualquer outra coisa.
— Minha filha.
Engoli em seco.
— N-não sei do que está falando. Agora, se me der licença...
— Podemos fazer do jeito fácil ou do difícil, cereja.
O apelido, um dia carinhoso, bateu fundo em meu estômago. As
mariposas adormecidas por tanto tempo voltaram à vida com tudo.
Não pensei no que estava fazendo. Se pensasse, teria feito
outra coisa além de bater a porta em sua cara.
Mas foi exatamente a decisão que tomei, pois continuar olhando
para ele estava me deixando doente.
Não perdi, no último segundo antes de nosso contato visual ser
quebrado, a surpresa em seu rosto com minha reação. Jamais tive
coragem de fechar uma porta entre nós antes. Nunca me recusei a
ele.
Derek sempre teve completo acesso a mim, minha total
submissão, sem nem precisar exigir.
No entanto, eu havia mudado. Ele precisava saber. Tremendo,
consegui dar alguns passos para longe até finalmente desabar
sentada contra a parede da cozinha. Ele havia me encontrado.
Sabia da nossa filha. Veio pessoalmente, provavelmente, para
anunciar que tomaria a Abbi de mim.
Pensei ouvir o carro lá fora sendo ligado e partindo. No entanto,
não fui tola ao ponto de acreditar que era o fim. Na verdade, seria
justamente o começo do meu inferno pessoal.
Olhei para minha casa, meus móveis, a marca de Cherry e Abbi
naquele lar. Cogitei, pela enésima vez, enfiar tudo o que seria
possível carregar dentro de minha caminhonete e fugir. No entanto,
agora eu não estaria fugindo de um casamento para ele. Até
porque, nisso, meu marido foi indiferente.
Se me amasse como eu o amava, com a mesma loucura, teria
me encontrado antes.
Não havia nada que Derek Reynolds desejasse e não pegasse
com as próprias mãos se fosse necessário. Isso era uma prova de
que eu não fazia parte dessa lista.
Mas uma filha, alguém com seu sangue sendo escondida dele,
certamente não seria tolerado. Ele, com seu poder e dinheiro, me
caçaria pelo país e não sossegaria até encontrar e arrancar a filha
de mim.
De um jeito ou de outro, o mundo como Abbi conhecia estava
prestes a mudar.
Depois do que pareceu horas naquele chão, finalmente me
levantei quando percebi que estava na hora de buscar Abbi na
escola.
Ao abrir a porta da frente, já com as chaves da caminhonete e
minha bolsa, foi tanto uma surpresa quanto um terror perceber que
eu estava enganada.
Derek não havia deixado a minha casa.
Vê-lo sentado nos degraus da minha varanda, na casa de dois
andares pequena e simples do interior, com seu terno Armani,
sapatos italianos e Rolex no pulso, quase me congelou no lugar.
Não combinava... e de alguma forma, era tocante.
O cabelo – com algumas mechas grisalhas que não estavam ali
anos atrás – estava ligeiramente desalinhado, provavelmente de
passar os dedos pelos fios escuros pretos e grossos. Um hábito que
vi mais de uma vez e pelo jeito não havia perdido.
Os ombros largos – ainda mais definidos do que eu me
lembrava, como se fosse possível – eram revestidos pela camiseta
com mangas dobradas até os antebraços, e o blazer apoiado sobre
um joelho.
Derek ainda era um homem muito atraente. O tempo só havia
melhorado sua aparência. Estava mais forte fisicamente também.
Meu coração disparou com força.
Quando se levantou, com seus mais de um metro e noventa, me
senti pequena, quase frágil. Olhei para seu peito; foi impossível não
fazer, e me senti carente daquele espaço onde eu me via acolhida
no passado. De seus braços à minha volta. Do seu cheiro e calor.
De quando nossos corpos úmidos se embalavam num prazer
visceral, capaz de apagar o mundo.
— Cherry — disse meu nome de forma neutra, mas encarando
meus olhos intensamente.
Será que também havia se lembrado de como éramos? Da
química intensa entre nós?
Pigarreei, arrumando a postura da minha coluna.
— Esta é uma propriedade particular.
Sua sobrancelha escura se arqueou, cínico.
— E este é o pior dos crimes aqui?
Não. Mas omitir uma criança, sim. Tive de engolir em seco.
— O que quer, Derek? —
Seu olhar sombrio, escurecido por uma fúria gélida, desceu à
minha boca e pairou ali por um momento, antes de responder:
— Entender por que achou que era uma boa ideia esconder
minha filha de mim, Cherry.
— Ela não é sua — rebati, trêmula de nervosismo.
— Sabe que um teste de DNA resolveria facilmente isto, não
sabe? — Derek inclinou o rosto ligeiramente de lado — Aliás, é o
que faremos amanhã.
— F-fazer? Você...?
— Já providenciei tudo. Você só precisa assinar o documento
autorizando o teste. Isso da maneira fácil.
Cruzei os braços defensivamente.
— E qual seria a maneira difícil? — ousei desafiar.
— Uma determinação judicial. Um processo de guarda —
sequer hesitou em afirmar.
— Você não tem o direito...
— Não tenho?
Estava irritado, apesar da frieza. Mais do que isso, estava
furioso por eu ter escondido Abbi dele. Derek não era um homem de
perder aquilo que lhe pertencia, e em sua cabeça, nesse momento,
eu havia roubado algo dele.
— Nos deixe em paz, por favor... só... só vá embora e esqueça
da gente... — não sei se foi um pedido ou uma exigência; eu tremia
dos pés à cabeça.
Meu cérebro dava voltas vertiginosas de medo.
— Esquecer que tenho uma filha, Cherry? Que a manteve
escondida de mim este tempo todo?
Tranquilamente, ele puxou o celular do próprio bolso da calça.
Calça esta que se ajustava perfeitamente em suas coxas largas e
firmes. Digitou alguma coisa na tela. Em seguida, meu celular apitou
em minha bolsa.
Arregalei os olhos, surpresa.
— Como...? — como conseguiu meu número, só que nem
consegui verbalizar.
— Salve meu contato e me dê sua resposta sobre autorizar o
teste — determinou impiedoso — Você tem até amanhã de manhã
para tomar uma decisão.
— Mas isso é... — eu nem consegui encontrar as palavras
certas para a ideia de ele invadir a vida de Abbi sem me dar tempo
de preparar as coisas com ela — Você está sendo um...!
Antecipando-se, Derek voltou a levantar a sobrancelha:
— Vai me xingar? Virou uma boca suja, esposa? O que o Texas
fez com a garota educada de Nova Iorque?
Cerrei os lábios, nervosa, abalada.
A atmosfera tensa entre nós quase podia ser cortada.
— Ótimo — para me provocar, aprovou o meu silêncio como se
dissesse “boa garota”, em uma agressividade velada — Agora,
quero conhecer minha filha.
— O quê?!
Derek se aproximou mais um passo, evidenciando nossa
diferença de altura de mais de vinte centímetros.
— Quero conhecer a Abbi, Cherry. Nós dois concordamos que
você já a afastou de mim por tempo demais, não acha?
— Não... — minha Abbi, minha garotinha, não estava pronta
para ser apresentada a um pai nesta altura da vida, sem uma
conversa antes. Errei em não falar nada sobre ele para ela. Estava
esperando o tempo certo para ter esta conversa, mas o tempo certo
nunca chegava.
Só que ainda não deveria ser hoje. Não assim, tão subitamente.
— Tenho o endereço da escola primária, Cherry. Estou te dando
uma oportunidade de agirmos de maneira civilizada, mas não
significa que não posso ir até lá diretamente, agora mesmo.
— Você não pode simplesmente aparecer... ela não... ela não
está pronta! — a rouquidão em minha voz deve ter denunciado meu
pânico.
Derek riu sem nenhum humor.
— Abbi ainda não está pronta para conhecer o pai, é o que quer
dizer?
— Você a assustaria...
Sua boca firme se apertou em uma linha. O maxilar
perfeitamente anguloso contraiu.
— Que merda acha que sou para assustar uma garotinha de
seis anos? Quem diabos acha que sou? — a mão grande e
bronzeada percorreu os cabelos negros, exasperado — Porra, acha
mesmo que eu faria alguma coisa contra a minha filha?
Não, não o homem que conheci no passado, por quem me
apaixonei tão loucamente. Aquele homem tinha honra.
— Só me dê um tempo... por favor.
Meu pedido o enfureceu; percebi na intensidade fria de seu
olhar.
— Te dei malditos seis anos da vida dela, está lembrada?
Pretendo conhecer minha filha hoje, e nada do que disser mudará
isso.
Meu marido estava determinado. Conhecia-o neste ponto para
saber que não recuaria. Derek Reynolds podia ser implacável
quando queria.
Fechei os olhos por um momento, buscando dentro de mim
equilíbrio para lidar com tudo aquilo. Eu protegeria Abbi. Dele, e de
quem fosse preciso. Não iria traumatizar minha filha, apresentando-
a a um pai inesperadamente, para atender a um capricho dele.
— Você não precisa da gente, Derek. Volte para a sua vida em
Washington. Estamos felizes aqui...
— Algo que me pertence está neste lugar, e sabe disso.
Encarei-o, realmente encarei-o.
— É sempre do seu jeito, não é? Você não aceita perder! — a
amargura em minha voz ficou nítida.
— E qual é o ponto em afirmar o óbvio? — ironizou.
— Ela é minha, eu a carreguei dentro de mim, eduquei,
alimentei. Criei uma vida aqui para nós!
O sorriso frio em seus lábios teria o poder de me incinerar se
fosse possível.
— Somente porque a escondeu de mim, Cherry. É a única razão
para ter feito tudo isso sozinha.
— Não queria que minha filha fosse mais um brinquedinho em
suas mãos.
— É o que diz a si mesma, que você era um brinquedinho em
minhas mãos, querida esposa?
— Pedi o divórcio — anunciei de repente, como um fato — Um
dia atrás, entrei com o pedido. Não sou mais sua esposa.
Não era de todo verdade. Kyrsten Casey, sobrinha de Eva, que
morava em Burnet, a menos de dez milhas de Marble Falls, aceitou
me ajudar. Ela não era especialista em divórcio, mas havia um em
seu escritório. Agora eu tinha de enviar os documentos para ela.
— Ainda é, pelo que sei — ironizou — Uma esposa que decidiu
me abandonar levando um filho meu na barriga.
— Não sabia que estava grávida quando eu...
— Fugiu como uma covarde? — completou por mim.
— Você me disse para ir — acusei.
E foi a coisa errada a dizer. Seu olhar queimou-me feito brasa.
— De tudo o que eu já te disse — Derek aproximou a boca da
minha orelha. Nossos corpos quase se tocando. Foi como colocar
um dedo em uma tomada elétrica — De tudo o que já fizemos,
esposa, uma briga pontual foi a desculpa que encontrou para me
deixar?
Eu cairia. Minhas pernas não suportariam tamanha tensão.
— Por favor...
— Jurei amar você. Respeitar você. Lembra? — continuou
acusando-me com palavras baixinhas sussurradas furiosa e
intimamente em meu ouvido.
Mas foi o que disse, a lembrança de nossos votos, que me deu
certa força para me afastar.
— Você jurou fidelidade também, está lembrado?
Sua coluna se endireitou. O rosto letalmente calmo, porém
contraído, mirou o meu.
— Cumpri cada maldito voto, Cherry.
— Nem todos eles — alfinetei, buscando dentro de mim
determinação para não sucumbir aos velhos sentimentos.
Derek sorveu uma grande quantidade de ar, fazendo seu peito
largo e firme se levantar. Percorreu os cabelos com os dedos.
— Vamos ao que interessa aqui. Minha filha. Quero vê-la ainda
hoje, e, para ser justo, vou permitir que escolha o local: na saída da
escola ou aqui, em sua... — fingiu escolher as palavras com o
máximo desprezo que pôde — casinha enfeitada.
Apesar de ter a intenção apenas de me atacar, doeu. Esta
“casinha enfeitada” era nosso lar. Decorado com amor. Havia amor
em cada tábua, cada planta, cada porta-retrato.
— Onde? — insistiu irredutível.
— Aqui não.
— Tudo bem, no jardim de infância, então — ia se virando.
Segurei seu braço no último minuto.
O toque foi uma descarga de energia potente. Queimou.
Precisei afastar a mão.
Derek olhou para o ponto onde o toquei. Será que também
sentiu?
Engoli a saliva, tentando normalizar minha respiração.
— Na saída da escola também não.
Outra vez, aquela sobrancelha firme me questionou.
A contragosto, sugeri um meio-termo:
— Almoço. Podemos almoçar juntos. Amanhã.
— Hoje.
— Por favor.
— Hoje, Cherry. Vinte e quatro horas não mudam as coisas
como são. Quero ver minha filha hoje.
Sacudi a cabeça. Encarei o chão. Se o desespero pudesse ser
pesquisado no Google em forma de uma imagem, seria a minha foto
lá agora.
— Vamos então estabelecer condições...
— Sem condições.
— Por favor. Por... ela.
E se a fúria pudesse ter uma imagem, seria a do implacável
Senador Reynolds por eu usar sua filha contra ele.
— Quais?
— Para todo efeito, você é... é um amigo que veio visitar a
cidade.
— Um amigo — debochou — Espero que não tenha encontrado
muitos amigos como eu nesta cidade, cereja.
Raiva e ciúmes ficaram evidentes mais do que ele gostaria de
exibir, provavelmente.
Inevitavelmente, também senti o efeito das palavras.
Não, eu não estive com nenhum homem desde então. Derek
havia sido meu primeiro e único. E acho que ele leu isso em mim.
No rubor da minha pele. Em como desviei os olhos.
E saber que não houve mais ninguém foi o que o fez recuar.
— Está bem. Amigo. Por hoje.
Quase pude respirar de verdade desde que abri a porta.
— Obrigada. Depois, decidirei como...
— Decidiremos — corrigiu, interrompendo-me — A partir de
hoje, as decisões serão nossas, a respeito da menina.
Ignorei o peso daquilo.
Fucei minha bolsa, peguei o celular.
Ignorei também a mensagem recebida do número desconhecido
“Chega de fugir!” e abri o site de buscas. Compartilhei com Derek a
localização do restaurante que seria nosso ponto de encontro. Um
lugar neutro.
A mensagem foi recebida por ele.
— Seguirei você até a escola dela, e então até o restaurante.
— Não precisa.
— Não quero que ache que ainda pode escapar, querida
esposa.
— Não faria isso — me defendi.
— E nem pode mais. Acabou o tempo de fugir de mim, Cherry.
O significado ficou claro. Cristalino. Meu marido estava de volta
à minha vida. Para ficar. Mas não por mim.
Eu já estava trabalhando com Derek Reynolds há quase dois
meses, mas nossos contatos ainda eram pouquíssimos e breves.
Mal o via no dia a dia.
Antes de começar a trabalhar em seu gabinete, eu não fazia
ideia de que senadores realmente davam duro; pelo menos
Reynolds era assim. Não parava nunca. Estava sempre em ação.
Tratava suas funções com dedicação e punho de aço.
Era reservado em sua vida particular e compromissado com a
agenda pública. Sobre a vida pessoal, a imprensa noticiava,
evidentemente, seus jantares discretos com modelos, atrizes e as
mulheres deslumbrantes com quem ocasionalmente saía, mas
parecia haver um tipo de romantização nestas manchetes. Tinha a
ver com o fato de ele ter respeitado o próprio luto por mais de cinco
anos.
Era uma informação pública que Olivia, sua falecida esposa, e
Derek se conheceram na universidade, casaram-se pouco antes da
primeira disputa eleitoral dele e ficaram juntos por alguns anos até o
falecimento precoce dela, que sofria de um quadro agressivo de
Esclerose Múltipla.
Talvez ele ainda a amasse. Isto justificava o fato de não ter se
casado outra vez, quando constituir família era uma cobrança para
todo homem público.
Sei que tudo nele me agradava, me impressionava. Sua
formação em Direito pela Columbia e Ciência Política em Harvard,
as conquistas ao longo da bem-sucedida carreira política desde que
entrara no Partido Republicano. A força, a virilidade...
Mas, pelo jeito, ele continuava não indo muito com a minha
cara. Nos breves encontros que tivemos, mal falava comigo.
Recebia dele, se muito, um olhar intenso que durava dois ou três
segundos a mais do que o comum para ser acidental.
Por alguma razão, eu queria que fosse diferente. Queria
impressioná-lo como chefe. Que visse que valera a pena ter me
dado a oportunidade. Que eu realmente estava trabalhando pra
valer.
Eu ficava depois do meu horário quase todos os dias. Cobria
meus colegas em suas obrigações quando necessário. Mantinha
meus relatórios com o maior grau de excelência possível. Estava
sempre atenta às demandas. Atualizava-me do que acontecia no
cenário político diariamente... Mas Derek Reynolds simplesmente
não ligava.
Ninguém ali dava a mínima para o trabalho que eu fazia, sendo
sincera, e isso era um pouco frustrante às vezes.
Mesmo assim, eu estava gostando muito do emprego. Muito
mesmo. E o salário era, de longe, bem melhor do que em qualquer
outra vaga à qual me candidatei desde que cheguei em Washington
D.C.
Naquela noite, finalizei um relatório sobre um novo projeto de lei
em estudo, desliguei meu computador – percebendo que, não pela
primeira vez, era a única ali, pois o restante da equipe já havia ido
embora há pelo menos uma hora – e fui realizar minha última
obrigação do dia: recolher a louça suja da sala do Senador e repor
os itens faltantes de seu espaço de café, para que tudo ficasse
pronto quando ele retornasse. Ele poderia voltar ainda naquela
noite, já que estava fora em uma reunião importante, ou na primeira
hora do dia seguinte.
Era notório que Derek Reynolds costumava trabalhar até bem
tarde, varando a madrugada às vezes, e era sempre o primeiro a
chegar no gabinete na manhã seguinte, quando o dia ainda estava
escuro.
Conforme caminhei para a sala do Senador, fui desligando as
luzes do escritório e das salas pelo caminho, algo que eu sempre
fazia.
O escritório privativo do Senador Reynolds ficava de frente para
a Constitution Avenue. Era uma sala de tamanho moderado, não
muito grande, mas suficiente para acomodar algumas peças de
mobília confortáveis. Decorada no estilo clássico, as paredes eram
revestidas de painéis de madeira, com obras de arte destacando-se
em uma delas, e uma pesada cortina que filtrava a luz natural diante
das amplas janelas de frente para a avenida, embora ficassem
sempre abertas.
Tapetes persas no chão subdividiam espaços: havia um no
centro da sala, onde um sofá de couro preto e cadeiras estofadas
ficavam dispostos ao redor de uma mesa de centro de madeira
escura; do lado esquerdo, uma mesa de reuniões com capacidade
para dez pessoas. Do lado direito, uma estante de madeira escura
cobria toda a parede, contendo livros sobre legislação, política e
história. E, diante das janelas, ficava a grande mesa de trabalho,
elegante, com uma cadeira estofada de couro atrás dela, onde o
Senador passava grande parte do dia.
Sua mesa era quase impessoal. Formal demais. Sobre ela
ficavam: um telefone antigo e um porta-canetas, além de um porta-
retrato com a imagem do dia em que tomou posse e um abajur.
O laptop pessoal de Reynolds seguia sempre com ele.
Entrei no espaço iluminado escassamente apenas pela luz
suave e quente do abajur sobre a mesa e recolhi a louça de café
suja.
Na copa, abasteci a bandeja dourada com o pote de grãos
recém-moídos selecionados, e uma nova caixa de leite vegetal,
adoçantes e louças de café limpas, e me dirigi de volta ao escritório.
Amava quando o gabinete ficava vazio daquele jeito.
O silêncio, depois de toda a agitação.
Empurrei a porta do escritório com o quadril, levei a bandeja ao
aparador próximo à mesa de trabalho e disponibilizei os itens do
café de maneira meticulosa, exatamente como fui orientada, já que
Derek Reynolds gostava de tudo organizado. Ele era um homem
metódico e exigente.
Apesar de ser parte de minha função, ainda me sentia estranha
estando ali sozinha, como se fosse uma intrusa. A sala era o espaço
privado do Senador, só entrava nela quem ele convidava, e nunca
fui convidada oficialmente para nenhuma reunião.
Olhei pela janela, para a silenciosa Constitution Avenue, um
cenário totalmente diferente de uma hora antes, quando o trânsito
não dava trégua. Daqui a pouco, caminharia pouco mais de uma
milha até Near Northeast, ao norte, para meu novo apartamento,
que consegui alugar graças a este emprego. Antes disso, desde que
me mudei de Nova Iorque para cá, minhas economias só
conseguiram pagar um quarto a mais de uma hora e meia de
distância nos limites da cidade.
Ainda não podia dizer que estava feliz vivendo em Washington
D.C. Acho que eu não sabia o que realmente era felicidade. Viver
pulando de lar adotivo em lar adotivo até alcançar a idade legal para
morar sozinha, e depois lutar para conseguir comer e frequentar
uma universidade, não permitiu verdadeiramente conhecer o
conceito. Tampouco o de pertencimento.
Mas me sentia bem aqui. Um emprego, uma perspectiva de
futuro. A vida estava melhorando. Havia sido uma boa decisão ter
fugido para cá.
Esbarrei sem querer no porta-retrato sobre a mesa. Consegui
pegar a tempo, antes de cair. Encarei o homem imponente na foto, a
imagem oficial do dia de sua posse no Senado Americano.
Derek Reynolds era um homem bonito. Não, essa palavra não
fazia jus a ele. Ele tinha aquele tipo de aparência agressivamente
atraente ao ponto de mexer com a cabeça da gente. Os olhos
escuros e intensos quando te focavam desestabilizavam. Era
grande, ombros largos, um peitoral definido mesmo debaixo de
ternos sob medida, de quem mandava ver nos exercícios físicos. A
mandíbula perfeitamente angulosa. O cabelo, grosso e escuro,
cortado pouco abaixo da orelha, quase um ato de rebeldia para seu
papel sério demais.
Era o tipo de homem que invadia seus pensamentos quando
você menos esperava... e sonhos também. Nunca fui de ter sonhos
eróticos em minha vida, até conhecê-lo. E agora vinha acontecendo
com uma frequência constrangedora.
Dois meses trabalhando para Derek Reynolds, percebi que
nunca me interessei por garotos da minha idade por uma razão.
Faltava algo a eles. Algo que o Senador, dezoito anos mais velho do
que eu, tinha. E mexia comigo, ainda que contra a minha vontade, já
que ter uma queda pelo chefe era algo extremamente
desconfortável.
— Ando sonhando muito com você, sabia? — falei para a
imagem — Mas você não gosta muito de mim, não é, Senador?
Então faça o favor de sair da minha cabeça e me deixe dormir em
paz. Seria muito bom não acordar excitada no meio da noite, para
variar um pouco. Além disso, preciso mesmo deste emprego.
Pousei a foto de volta no lugar, pronta para pegar minha bolsa,
em minha mesa, calçar os tênis e caminhar para casa.
— Lamento que esteja tendo problemas para dormir, Srta.
Contreras.
— Ai, merda! — minhas pernas enfraqueceram com o susto —
Eu... você...! — meu coração galopou com tanta força que foi
preciso segurar o peito — Você, quero dizer, o senhor quase me
matou de susto!
Praticamente na penumbra, Derek Reynolds estava diante da
parede tomada pela imensa estante.
— Pensei que tivesse me visto quando entrou — falou num
timbre grave, baixo, sacudindo de leve o livro para provar o que
fazia ali. Mesmo com a distância entre nós, pude sentir a vibração
intensa de seu olhar cravado no meu.
Estava sem o blazer e a gravata. Os dois primeiros botões da
camisa abertos. As mangas dobradas até os antebraços fortes.
Nunca o vi assim. E podia jurar, se meus olhos não estivessem
enganados, que uma camada de pelos despontava naquele vão de
pele na região do peito.
O local entre minhas pernas pulsou com força.
Esperava que não visse o tom rubro que inundou meu rosto.
— Desculpe, eu... vim deixar os itens do café... organizados e...
estava, quero dizer, estou indo, então... — me sentia fazendo um
papel de boba, e era difícil controlar a vontade de sair correndo dali
— Boa noite, Senador.
Apressei meus passos até a porta, desejando que o chão me
engolisse, mas sua voz profunda e grave me deteve:
— Srta. Contreras.
— Sim, Senador? — murmurei, gelada, quente, amedrontada,
envergonhada, tudo ao mesmo tempo.
— Não tenho nada contra a senhorita.
— Ah.
— Mas é melhor que mantenha seus pensamentos somente
para si mesma da próxima vez.
Um tapa teria sido menos humilhante.
— Não se repetirá, senhor. Desculpe e... boa noite, de novo.
Abbi estava me aguardando quando cheguei, em cima da hora.
Levei-a para o carro sem olhar em volta para confirmar se estava
sendo seguida.
— Hoje não vamos para casa, filha — informei, enquanto a
colocava na cadeirinha infantil e afivelava o cinto de segurança.
— Vamos para a lanchonete? Mas hoje não é seu dia de folga?
— Não, carinho. Vamos almoçar em um restaurante.
— Ué, por quê?
— Porque sim — respondi distraída.
— Ara, mãe! Porque sim não é resposta!
Crescer no Texas a fazia puxar os “r” das palavras e usar
expressões como “ara” com muita frequência.
Por um instante, me perguntei como teria sido se, em vez disso,
minha filha tivesse sido criada em Washington D.C., frequentando
escolas particulares da elite e os ambientes que os filhos dos
poderosos frequentavam.
Evitei o pensamento. Ela era feliz aqui, e isso era o que
importava.
— Porque quero comer uma comidinha diferente hoje —
inventei a primeira mentira que veio à cabeça, e me odiei por fazer
isso com ela.
A garotinha franziu a sobrancelha escura e grossa, exatamente
como a do pai. Não era comum que desviássemos do plano durante
a semana. Em geral, ela ficava com Eva durante as tardes,
enquanto eu trabalhava, exceto em minhas folgas.
— Será que depois podemos ir ao lago, mãe? Podíamos dar
comida aos novos gansos que o prefeito comprou! Estão magrinhos
pra burro.
— Abbi, o que falei sobre esse tipo de palavra?
— “Não podemos ser rudes” — minha pequena argumentadora
fez uma imitação de mim.
De tanto passar tempo na fazenda, Abbi havia pegado certos
hábitos, repetia certas expressões. Mas eu gostava da influência
que Willie e Eva tinham sobre ela. De como minha filha gostava do
campo, do trato com os animais, e se empolgava com a obsessão
de Willie por bater recordes com suas abóboras. Abbi se sentia uma
fazendeira.
A verdade é que ela era uma garotinha livre. A ideia de termos
que sair daqui, da vida que construímos, de arrastar minha filha para
Washington D.C., e a loucura que era lá, me entristecia, se as
coisas tivessem que ser assim.
— Mas a gente pode, mãe? Passar no parque e dar comida
para os gansozinhos que estão muito magros?
— Na volta do restaurante, filha — prometi — Embora não ache
que seja uma boa ideia se aproximar deles. São animais bravos,
lembra?
— Ara, é só tratar eles com respeito, mãe! Willie sempre diz:
devemos tratar os bicho com respeito!
Que orgulho eu sentia dela. Não suportava a ideia de que sua
vida estava prestes a mudar.
Diante do volante, encarei o espelho retrovisor, procurando o
carro dele.
Como eu contaria à minha filha sobre a existência de um pai?
Um problema mais urgente: como conseguiria apresentar Derek a
ela fazendo-o se passar por um velho conhecido, ciente de quem
ele era para Abbi?
Resisti à tentação de voltar para nossa casa e me trancar lá
com minha filha. Em vez disso, guiei pelo trânsito tranquilo em
direção ao restaurante que combinamos. Minhas mãos tremiam,
meu coração batia depressa, não me lembro de já ter me sentido
tão ansiosa antes.
Esse era o tipo de situação que mudava tudo.
Como seria quando Abbi descobrisse que escondi que ela tinha
um pai? Que eu sempre soube onde ele estava? Que, na verdade, a
América inteira o conhecia, menos ela.
Seu pai era um Senador muito famoso, levava o tipo de vida
que ela jamais pensou. Tinha o tipo de riqueza de berço que Abbi
jamais viu.
Será que minha filha se ressentiria de mim?
Vi o carro de luxo logo atrás da minha caminhonete quando
estacionamos no pátio do restaurante tranquilo e afastado. Era uma
propriedade rural que oferecia um cardápio de comidas regionais.
Evitei levar Derek ao centro da cidade. Conhecia quase todo mundo
por lá, era onde eu trabalhava e não queria ser vista com ele.
Levei um pouco mais de tempo para desligar o motor e descer.
Enrolei na verdade.
Minha ansiedade chegando a limites impressionantes.
Desci, fui até a porta traseira e retirei Abbi da cadeirinha.
— Ara, por que cê não contou que a gente tava vindo pra cá,
mãe! — ela adorava essa propriedade. Vê-la saltar para fora toda
empolgada foi um tipo de refresco para a tensão que eu sentia.
Ainda que mínimo, porque conforme Derek descia pela porta de
trás do carro preto, suor preenchia as palmas de minhas mãos.
Ele veio caminhando em nossa direção com passadas seguras,
sem pressa, grande, forte, confiante, bem vestido. Em seu rosto
havia aquela expressão neutra, política. Na certa, estava querendo
causar uma boa impressão, ou, no mínimo, não assustar a filha.
Mas quando a intensidade do seu olhar encontrou o meu, eu o
reconheci ali. Sabia que continuava furioso comigo.
Peguei a mão de Abbi protetoramente e inclinei o rosto para o
dela.
— Filha, eu gostaria de te apresentar a um amigo meu. Este
aqui é o Sr. Derek Reynolds.
Ouvir eu o chamar de senhor e o apresentar assim à própria
filha resultou em um olhar duro, que ganhou apenas suavidade ao
se dirigir a ela:
— Olá, Abbi. Você pode me chamar de Derek. É um prazer
conhecê-la — ele se abaixou em um joelho para ficar na altura dos
olhos da criança. Havia tanto ali: certo nervosismo, expectativa,
medo e uma vulnerabilidade sutis que jamais pensei ver nele.
— Cê é amigo da minha mãe?
Outra vez, nossos olhares se encontraram antes de ele
responder:
— Acho que podemos dizer que sim.
— Ah, nunca conheci um amigo da minha mãe, além dos amigo
dela daqui, é claro.
— E sua mãe tem muitos amigos?
— Não muitos. A mamãe é tímida. Mas a Eva disse que está na
hora de ela achar um namorado antes que fique seca igual um
tronco de árvore.
— Abbi! — reclamei baixinho.
— Ô mãe, não fui eu que falei, não. Foi a Eva!
— Mas não precisa ficar repetindo, não é mesmo?
Quis arrancar o sorriso de satisfação da boca do pai dela com
minhas próprias mãos. Agora ele tinha certeza de que não havia
outro, coisa que certamente eu não podia dizer sobre ele.
Quantas mulheres Derek teve depois de mim?
— Eva é sua amiga? — perguntou ele, especulativo.
— Ara, ela é assim. Uma amiga das boas. Faz bolo, sorvete de
milho, e me deixa assistir celular quando a mamãe não está vendo.
Eita, que não era para eu dizer isso!
Como se eu já não soubesse das infrações.
— Eva é uma amiga nossa — expliquei.
— Que te ajuda a cuidar da criança — concluiu ele, como se de
alguma forma já soubesse.
— Sim — falei — ela é esposa do Willie, da abóbora gigante —
o vídeo responsável por ele ter encontrado a gente.
— Moço, cê também assistiu o meu vídeo? Na escola estão
dizendo que tô louca de famosa!
— Assisti, sim. Aliás, bom trabalho com a abóbora.
— Obrigada — a menininha respondeu orgulhosa como se
fosse mesmo a responsável pelo cultivo. Era uma figurinha. Falante,
amorosa e cativante.
Derek ia se levantando do chão, mas ela o deteve, estendendo
a mãozinha tardiamente.
— Eu sou a Abbi. Prazer conhecer ocê também, moço — o
sotaque mais carregado do que nunca, uma típica texana dando
boas-vindas a um forasteiro.
Vi um brilho novo cintilar no olhar do pai.
— O prazer é todo meu, Abbi. Estou realmente feliz por esse
encontro. O modo como apertou a mão dela, com gentileza e
cuidado, a atenção que destinava àquele aperto, me tocou.
Como ele teria sido desde o início? Um pai que ajudava com as
trocas de fraldas, as cólicas, as idas ao médico? Presente?
Ausente? Colocaria o pé no freio na vida de antes por uma bebê?
Senti uma imensa vontade de fotografar aquele momento,
registrar quando pai e filha finalmente se conheceram. Mas se eu
pensasse assim, então seria engolida pela culpa de ter sido
responsável por impedir, por privá-los de conviverem.
O restaurante revelou-se altamente apropriado, amplo, quase
vazio, oferecia privacidade. Não era nem de longe o que Derek
estava habituado a frequentar, mas ideal para este encontro. A
atenção dele estava totalmente nela. E eu, me forçava a parecer
relaxada diante disto. Mas a verdade é que manter o fingimento de
amizade estava me exaurindo, principalmente porque minha
garotinha estava encantada por meu suposto amigo.
Como poderia ser diferente? Derek era competentemente
charmoso quando queria ser. Sabia manter uma conversa com uma
criança de seis anos de uma forma que fui obrigada a admirar...
ainda que silenciosamente odiando-o por conquistar o coração
inocente de minha filha tão rápido.
Abbi tagarelava sobre os novos gansos do parque.
— Moço, vou te dizer uma coisa: gansos são bicho bravo, viu. E
eles não dormem nunca — contou com propriedade.
— É mesmo? — Derek fingia completo interesse no assunto.
— Se eles não forem com a sua cara? Já era. Tacam o dente!
— Gansos não têm dentes, Abbi — corrigi.
Minha filha finalmente me deu um segundo de sua atenção.
— Cê fala isso, mãe, mas eu bem sei que também se caga de
medo deles.
— Boca, filha — falei baixinho.
— Tá bom, tá bom. Então ocê se borra toda, tá bom assim?
Derek, assistindo com curiosidade nossa interação, gargalhou.
Um som tão genuíno que por um momento paralisei. Fui arrastada
no tempo. Quando podia ouvir aquele som quase que com
exclusividade. Um a que poucas pessoas tinham acesso. Um lado
desse homem sempre reservado, que se mostrava humano.
Saudade me causou uma dor física no peito. Não podia continuar ali
com ele. Não gostava de como estava me sentindo.
— Coma a sobremesa porque precisamos ir, filha.
— Passar no lago para dar comida aos gansozinhos — explicou
Abbi para o pai, que ela não sabia ser seu pai — Quer ir junto,
Derek?
Meu olhar encontrou o dele. Vi o desafio, o desejo de me
provocar. Ele sabia que aquele almoço já havia sido demais para
mim. Que minhas emoções estavam tão esticadas que com um
puxão, arrebentariam. Desviei o olhar.
— Desculpe, Abbi. Tenho uma reunião com meus advogados
em alguns minutos — tanto era uma informação para ela, quanto
uma ameaça para mim — Mas adoraria fazer isso outro dia, se você
puder — mirei seu rosto, calor inundando o meu — Se sua mãe
achar que é uma boa ideia.
— Claro que é! Né não, mãe? — Abbi, sem se dar conta da
tensão, quase saltou no lugar animada.
Ele sabia o que estava fazendo, me colocando nesse tipo de
situação. Me deixava sem saída.
— É... é sim — as palavras saíram baixas, roucas de minha
boca.
Quando a conta chegou, peguei minha carteira, só que antes
que eu pudesse tirar o cartão, um olhar duro e frio me parou no
lugar. Derek puxou o próprio cartão e entregou ao funcionário.
— Cê podia jantar lá em casa amanhã, Derek — alheia, Abbi
teve a ideia de terminar de me embrenhar naquele labirinto sem
saída, enquanto descia da cadeira — Vai ser noite de almondegas.
Evitei olhar para meu marido. Se olhasse, então ele veria o
pânico que começava a me deixar zonza.
— Será um prazer, Abbi — mas sua resposta me disse que
sabia disto. Que não tornaria minha vida fácil.
Diante da minha caminhonete, Derek esperou que eu
acomodasse minha filha na cadeirinha para, então, me entregar um
envelope, um que eu não tinha reparado com ele durante o almoço:
— A autorização para o teste de paternidade. Assine e me
devolva amanhã — exigiu em voz baixa. Seu timbre me avisou que
não aceitaria um não como resposta.
Para que Abbi, esperta como era, não visse e fizesse perguntas,
guardei rapidamente em minha bolsa, forçando-me a manter uma
expressão neutra.
— Até amanhã, Derek! — despediu-se minha filha, enquanto ele
segurava a porta aberta.
Vi o modo genuíno como sorriu para ela:
— Vejo você amanhã, Abbi.
Depois de fechar a porta traseira de minha Ford, me peguei
sozinha do lado de fora com ele. Seus olhos escurecidos domaram
os meus. Ferozes. Mandíbula tensa. Era difícil estar assim com ele,
depois de tanto tempo. Quase impossível até para respirar.
Por alguns instantes prolongados, a eletricidade entre nós
pareceu ressurgir com toda força. Invadiu como uma corrente de
alta potência, intensa. Mas eu não precisava de recordações de
como éramos. Não quando tinha um enorme problema pela frente.
— Adeus, Derek — murmurei, meio secamente.
— Até breve, Cherry — antes que eu pudesse me afastar, falou
ao meu ouvido: — Não tente fugir de mim outra vez — não fez
nenhuma questão de esconder que se sentia furioso.
Os dias seguintes àquele flagra no escritório do senador foram
difíceis, para dizer o mínimo. Ele parecia me evitar o quanto podia,
deliberadamente. E quando nos víamos, quando seu olhar duro
encontrava o meu, sentia toda a sua frieza, até irritação, sem que
uma palavra precisasse ser dita.
De minha parte, passei a pesquisá-lo quando chegava em casa,
quase que obsessivamente. Coloquei um alerta com seu nome e
recebia tudo o que envolvia Derek Reynolds na internet. Os jantares
discretos com megamodelos, a família. O senador tinha apenas uma
irmã, mais nova do que ele, Mary-Kate, uma CEO que gerenciava
as indústrias Reynolds, que também pertenciam a Derek, além da
mãe, a viúva Lisa Reynolds.
Era um homem com reputação ilibada, narrado como sério e
exigente nos negócios, no Senado, e em quem levava para sua
cama (candidatas não faltavam. No gabinete, todos os dias, havia
uma enxurrada de e-mails de eleitores do sexo feminino com os
mais obscenos conteúdos, e, claro, cabia a mim responder).
E eu ainda sonhava com ele com uma frequência maior do que
gostaria de admitir. Fazia, aliás, mais do que apenas sonhar,
ultimamente. No começo, foi uma coisa tímida, de me tocar apenas
para conter o fogo que ardia em meu interior, pensando nele. Agora,
me dava prazer com os olhos bem fechados e a imagem fixa de
Derek Reynolds em minha mente, só parando quando minhas
pernas cediam exaustas pelos espasmos. No dia seguinte, mal
conseguia manter a cabeça erguida no gabinete quando tinha um
vislumbre dele.
O pior é que era como se Reynolds soubesse o que eu fazia na
intimidade do meu apartamento.
Que eu me dava prazer fantasiando com ele.
Sua expressão dura e olhar frio eram reveladores.
Eu precisava parar. Era hora de sair, conhecer pessoas e perder
logo minha virgindade, pois isso já se tornava um incômodo.
— Srta. Contreras, ouviu o que falei?
Sobressaltei-me no lugar ao notar Mônica, minha chefe, em pé
diante da minha mesa. Seus olhos castanhos escuros me sondaram
com certa especulação.
— Desculpe.
— Enviou os relatórios que pedi?
Assenti, endireitando minha coluna.
— Sim, detalhado, e copiei a senhora e o Senador.
— Perfeito. Pegue sua bolsa e venha comigo.
Contornei minha mesa rapidamente e a segui. Meus sapatos
novos estavam causando bolhas nos mindinhos dos pés, mas não
manquei; segurei a dor e tentei acompanhar o ritmo acelerado dela.
Na rua, o carro oficial do Senador esperava por nós. Foi uma
surpresa e tanto ser chamada para entrar nele. Por isso, hesitei.
— Ande, Cherry, não temos o dia todo — repreendeu Mônica.
— Está bem, certo — alisei minha saia lápis e o coque baixo em
meu cabelo, e entrei.
Lívida, descobri que o carro não estava vazio.
— S-senador... boa tarde.
— Srta. Contreras — cumprimentou, sério como sempre,
perfeitamente à vontade no banco de couro, em seu elegante terno
cinza e gravata bordô. O cheiro, seu aroma maravilhoso que às
vezes eu aspirava em seu escritório vazio, dominava o ar no interior
do veículo a ponto de me desnortear. Engoli em seco.
Mônica entrou logo atrás, e nós duas nos sentamos de frente
para ele.
— Reynolds.
— Mônica.
— As modificações estão no e-mail.
— Acabo de ler — informou ele, colocando o iPad ao lado e me
encarando fixamente — Fale-me sobre as lacunas, Srta. Contreras.
Ele realmente havia lido meu relatório inteiro, o primeiro em que
ousei adicionar algumas observações por conta própria. Minhas
mãos começaram a transpirar. Derek Reynolds nunca havia me
solicitado algo assim diretamente. Estaria irritado por eu me atrever
a apontar lacunas em seu projeto de lei?
— Bem... — precisei limpar a garganta — Bem...
O Senador levantou uma sobrancelha grossa e escura,
aguardando.
Sentia-me como uma boba, uma universitária diante de um
professor para apresentar um trabalho. Respirei fundo. Fechei
minhas pernas de modo que ficassem de lado. Se soubesse que iria
com eles aonde quer que estivéssemos indo, teria arrumado meu
cabelo e vestido meu blazer do conjunto.
— Acho que... quero dizer, os critérios de elegibilidade são
desfavoráveis para pequenas empresas...
— Isso foi o que escreveu. Quero entender qual é o ponto —
exigiu, dando-me sua completa atenção.
Lambi meus lábios secos. Seu olhar afiado acompanhava.
— Os critérios de elegibilidade para se qualificar para as
reduções tributárias baseiam-se principalmente no tamanho da
empresa em termos de receita ou lucro. Isso poderia criar uma
situação em que apenas as grandes corporações se beneficiariam
das reduções, deixando de fora as pequenas startups ou empresas
com menor faturamento.
Seu olhar tornou-se avaliativo. Quase contemplativo.
Continuei:
— Em geral, são somente esses pontos, mesmo: a base de
elegibilidade no tamanho da empresa em termos de receita ou lucro;
a exclusão de empresas em estágios iniciais de desenvolvimento;
foco apenas no tamanho sem considerar potencial de crescimento;
complexidade dos critérios de elegibilidade.
Notei a troca de olhares entre ele e minha chefe imediata.
— Vou levá-la comigo.
— Foi o que pensei — Mônica sorriu... eu nem mesmo sabia
que ela tinha capacidade de sorrir. Era sempre tão durona.
Quase em pânico, vi que ela pretendia descer.
— Se precisar de mim, estarei no gabinete.
No minuto seguinte, eu estava sozinha com ele. Iron, o
motorista lá na frente, discreto, colocou o carro em movimento.
— Quantos anos tem, Srta. Contreras?
De todas as perguntas, essa foi a que Derek Reynolds fez. E
me pareceu um pouco ofensiva, como se minha idade tivesse algo a
ver com competência para uma tarefa.
— Vinte — levantei o queixo — Em breve, vinte e um.
— Bastante jovem — ponderou, relaxando um pouco. Os olhos
saindo de mim e indo para a avenida lá fora.
— Você entrou para o Partido Republicano com a minha idade.
Seu olhar curioso e surpreso por minha audácia voltou para
mim.
— Naquela época, eu não tinha a metade da capacidade que
está demonstrando, Srta. Contreras. Não passava de um garoto tolo
que queria um cargo político para impressionar o pai.
O pai dele, Bill Reynolds, um famoso senador republicano já
falecido.
Bill foi eleito personalidade do ano pela Time em diversas
edições. Era um grande político. Tinha fama de ser honesto e
trabalhar pelo povo, o que é muito em se tratando da maioria dos
políticos.
— E conseguiu — me atrevi.
Um meio sorriso moveu seus lábios atraentes.
— É o que quer?
Não precisei pensar.
— Não. Mas gosto dos bastidores, de fazer parte da mudança.
Um novo interesse fez com que ele avaliasse meu rosto.
— Por ambição?
— Por querer que as coisas melhorem para quem realmente
precisa.
— Você cresceu em lares adotivos — não foi uma pergunta.
Portanto, não respondi. Mas meu rosto avermelhou.
— Para onde estamos indo?
Apesar da temperatura agradável dentro do veículo, o Senador
apertou o botão que abaixava o vidro.
— Para uma reunião com representantes do setor de tecnologia
e alguns senadores.
— Ah.
— Espero que goste de atenção, Srta. Contreras.
— Desculpe?
Olhos escuros e intensos fixaram-se nos meus.
— Irá expor esses pontos para todos.
A informação me alarmou. Eu era tímida, detestava admitir isso,
mas minha timidez era quase uma doença. Odiava falar em público.
— Por que você... quero dizer, o senhor, não pode fazer isso?
— E roubar seu crédito? — havia um quê surpreendente de
zombaria em sua voz. Oposta à figura sempre séria.
— Prefiro que fique com ele de bom grado. Não estará
roubando se eu der ele a você.
Outra vez, senti o impacto de sua atenção em minha pele
quando me percorreu com um olhar avaliativo.
— Não sou de aceitar favores, senhorita. Assim como não abro
mão do que é meu.
À medida que o carro ganhava velocidade, as coisas foram
ficando mais impraticáveis dentro de mim. Eu me sentia tensa em
sua presença. Cada letra do que falei naquela noite em seu
escritório voltava com força. Minha confissão de que sonhava com
ele. As palavras dele, o (praticamente) fora que me deu com aquilo
de “mas é melhor que mantenha seus pensamentos somente para si
mesma da próxima vez”.
A forma fria como me tratou desde então.
Algo precisava ser dito.
Eu precisava dizer algo.
— Sobre aquel... — só que minhas palavras foram
interrompidas quando o veículo freou bruscamente. Fui
arremessada para frente, para o banco onde o Senador estava...
literalmente para cima dele. Bati minha boca em algo duro, sua
mandíbula ou queixo talvez. Doeu. Senti o gosto metálico de sangue
quase que imediatamente.
— Porra — alguém praguejou. Derek Reynolds. Ele soltou o
palavrão inesperado. Estava furioso porque trombei com ele.
— Me desculpe! Desculpe mesmo, eu...
Antes que eu pudesse dar um jeito de tentar levantar daquela
posição em cima dele, mãos grandes e fortes me levantaram pela
cintura e me colocaram sentada outra vez... só que desta vez, sobre
suas coxas musculosas.
— Você está sangrando, Contreras.
Passei a língua pelo lábio. Afastei um pouco a cabeça e notei
que respingos do meu sangue mancharam a gola imaculada de sua
camisa branca.
— Sujei sua camisa, minha nossa, eu... me desculpe.
— Onde mais se machucou? — perguntou, me surpreendendo
pela segunda vez, quando alisou o polegar sobre o ferimento.
Estremeci. Senti meu corpo irrompendo em ondas quentes.
— Acho que só bati a boca...
— Um ciclista, senhor! — avisou a voz do motorista —
atravessou a frente. Estão todos bem?
Sem me soltar, ainda me mantendo em seu colo por mais
absurdo, antiprofissional, e delicioso que fosse aquilo, o Senador
esticou a cabeça para ver onde estávamos.
— Você está bem, Contreras?
— Estou, estou bem.
Uma ruga se formou no centro de sua testa, deliberando alguma
coisa em sua mente.
— Vamos, pelo menos, pôr gelo aí — levantando um pouco a
voz, ordenou ao motorista: — Iron, para o Lincoln Tower.
Questionei-o com o olhar. Sabia o que era Lincoln Tower.
Mônica me pediu, certa vez, que encontrasse um novo serviço de
limpeza para a cobertura naquele prédio, na Avenida New Jersey,
em West End, o lugar onde o Senador morava, em Washington D.C.
— É neste quarteirão. Levaríamos mais de meia hora para
voltar ao gabinete, com este trânsito — explicou.
— E quanto à reunião?
Ele já estava digitando no celular.
— Mônica irá em meu lugar.
Eu mal respirava, para não ter que me mover. Ainda estava em
seu colo e ele não parecia se dar conta, compenetrado em digitar a
mensagem com apenas uma das mãos enquanto a outra mantinha-
se em minha cintura, firme, me prendendo ao lugar.
Derek Reynolds era macio e duro ao mesmo tempo, sua perna
quente e musculosa. E seu cheiro. O perfume gostoso que me
desnorteava os sentidos, e algo mais. Seu próprio cheiro. De pele.
De homem.
Inevitavelmente, aquele lugar entre minhas pernas latejou. Qual
era o meu problema?!
— Pare de se mexer, Contreras — resmungou, enviando um
novo texto para outro senador que reconheci pelo nome.
— Estou em cima de você, senhor... — murmurei, avermelhando
violentamente.
— Acredite em mim, eu sei. O incidente não me fez perder a
sensibilidade nas pernas.
Estar montada nele me excitou em uma velocidade aterradora.
Vinte anos, nenhum sexo de verdade na vida além de vibradores e
minha própria mão, fazia isso: deixava excessivamente sensível.
Eu me peguei ofegando por entre os lábios semiabertos. Aquele
tipo que quanto mais você tenta controlar, mais sai em lufadas de
dentro do peito.
E finalmente, atraí seu olhar para o meu. Escuro e muito, muito
intenso, sério demais. Suas narinas dilataram. Ele então aproximou
a boca de meu ouvido e disse baixinho, a voz quase rouca, irritado:
— Está se comportando como uma virgem, Contreras.
Certo.
Se ele podia ser sincero, eu também podia.
— Sou uma virgem, Senador.
Subi os degraus da construção estreita de dois andares na rua
tranquila, não sem antes percorrer um olhar pelo pequeno jardim da
frente. Bem cuidado, coberto de flores. Na varanda, uma bicicleta
infantil cor-de-rosa recostava ao balaústre como se tivesse sido
deixada ali temporariamente. Era impossível não admitir que tudo
aqui tinha um ar de vida, desde as cores vibrantes das plantas e
paredes externas, até os risos de criança que eu ouvia lá dentro.
Cherry havia construído um lar para si mesma e minha filha. E me
excluído de participar disto.
Maldição, ela havia me excluído de participar de tudo. De cada
maldito dia destes seis anos.
Me peguei ansioso, tenso, com um tipo novo de sentimento que
não imaginei ser possível, antes de bater à porta. Abbi era minha.
Uma verdade que tornava desnecessário um exame de DNA para
comprovar. Mas o que a pequena garotinha tagarela sentiria sobre
esse fato? Eu era bom o bastante para ser seu pai?
Queria ser.
Desejava desde o minuto em que botei meus olhos nela. E era o
que me deixava mais enfurecido com sua mãe. Cherry me privou do
amor natural da garotinha. Um que agora eu teria de conquistar. Só
que eu não permitiria que a mentira durasse mais tempo. Estava
determinado a tomar posse do que era meu.
Bati o punho contra a porta fechada.
Ouvi o gritinho de Abbi:
— É o nosso amigo Derek!
Cherry demorou a abrir, embora eu sentisse sua presença do
outro lado da barreira de madeira entre nós.
Estava tomando coragem de me enfrentar, certamente.
Quando abriu, precisei travar o maxilar para a imagem à minha
frente. A garota que um dia se vestia de seda e sapatos de salto alto
do tipo que te fazia querer fodê-la em cima da mesa, havia sido
substituída pela mulher de vestido simples do campo, um avental
amarrado em torno da cintura e cabelos presos em um rabo de
cavalo. Mas ainda era linda. Talvez até mais do que antes, porque
agora era uma mulher de vinte e sete anos.
Tive que meter as mãos nos bolsos, pois coçavam por tocá-la. E
estavam assim desde o minuto que a reencontrei no dia anterior.
Porra, eu me sentia tão furioso com ela. Tão, tão furioso. Não
cabia desejá-la. Não quando meu desejo por essa mulher foi
justamente o que me levou a tomar decisões impensadas no
passado.
— Derek — falou meu nome baixo, a voz tensa.
Enchi o peito e o esvaziei devagar, sentindo minhas narinas
alargarem. Seu cheiro cítrico ainda era o mesmo. Era curioso isso,
eu me lembrava perfeitamente dele.
— Boa noite, Cherry.
Notei sua mão de dedos finos apertar firmemente a madeira,
como se eu fosse um vendedor que pretendia dispensar de sua
porta. Os olhos, de um tom escuro de cinza, que ainda mantinham
um pouco da vulnerabilidade da garota que cresceu em lares
adotivos de Nova Iorque, denunciavam sua insegurança.
— Vai me convidar para entrar, ou...? — levantei a sobrancelha
arrogantemente.
Ela engoliu em seco.
Caí na tentação de olhar para sua boca. Lábios naturalmente
vermelhos, projetados, simétricos. Olhos pequenos, sobrancelhas
finas. Tudo ainda era igual, e ainda assim diferente. Não parecia a
mesma garota que entrou e saiu de minha vida na velocidade de um
relâmpago. O casamento mais curto que já se ouviu falar,
provavelmente.
Baixando a camada grossa de cílios, escondendo seus olhos de
mim, ela se afastou da porta.
— Entre, por favor.
— É ele, mãe? — Abbi gritou de algum lugar. Passos vieram
fazendo barulho na corrida até a porta.
— Ah, olá, seu moço! — gracejou a criança.
Pele bronzeada pelo sol, uma faixa de sardas pelas bochechas
e ponta do nariz, duas trancinhas no cabelo escuro como o meu,
dividido ao meio. E as mãozinhas na cintura. Meu peito se encheu
de algo muito parecido com orgulho. Minha filha, sangue do meu
sangue, era uma garotinha linda.
Abaixei-me em um joelho.
— Olá, Abbi — falei sorrindo.
— Cê quer conhecer o Rudolph?
Olhei para cima, para a mãe dela.
— “Você quer”, Abbi — corrigiu Cherry, um tipo de repreensão
amorosa na voz, então me olhou — O furão dela — explicou com
resignação.
Levei um segundo para associar o nome a alguma figura
conhecida em minha mente. Curioso sua escolha de animal
doméstico.
Mais curioso ainda é pensar que eu não fazia ideia do que
Cherry pensava a respeito de animais de estimação. Se algum dia
teve um, se gostava deles. Olhando em retrospecto, havia muito
pouca coisa que eu realmente sabia sobre minha esposa fujona.
— Pode mostrar ao Derek, Abbi, mas não demore, e lave as
mãos. O jantar está quase pronto.
Fiquei novamente de pé entre elas, e ali, no pequeno e
enfeitado saguão, entre as duas mulheres que estavam ligadas a
mim, minha filha e minha esposa, de algum jeito me senti
deslocado. Nada, nas paredes com papel de parede florido, nas
cores vibrantes, combinava comigo. Mas combinava com elas. Com
a vida que viviam. Com a vida que fui privado de participar.
— Tá bom! Vamos lá, seu moço? Vou te mostrar o meu quarto!
Uma pequena caipira, risonha, que gostava de gracejar.
Cherry sacudiu a cabeça. E evitou meu olhar.
Tirei os sapatos, depois de ler o recado impresso no tapete
engraçado diante da porta “Sapatos ficam de fora. Aqui somente
pés limpos e cheirosos” e segui de meias pelo piso de madeira
antiga lustrada através do corredor.
Como eu suspeitava, era uma casa pequena, limpa, bem
cuidada, móveis antigos, decoração feminina.
Minhas pernas interromperam as passadas automaticamente
quando vislumbrei o mural de fotos na parede do longo corredor,
logo no fim das escadas.
Muitas fotos. Abbi de diferentes tamanhos, em diferentes
situações. Suja de tinta. Vestida de girassol junto de outras crianças,
no que deduzi ser uma apresentação escolar recente. Sorrindo no
colo de uma senhora e do tal Willie do vídeo viral, menor.
Engatinhando em um tapete... e a que mais me abalou: ela do
tamanho da palma de minha mão aberta, enrolada em um pano com
o emblema da maternidade... nos braços de uma Cherry de rosto
inchado, olhos cheios de lágrimas e um sorriso.... porra, um sorriso
que jamais vi em seu rosto.
Emocionada, abalada, feliz.
Algum dia ela sorriu assim enquanto estava comigo? Não,
provavelmente não.
Tudo entre nós foi sempre na base da intensidade, do desafio,
do desejo insano.
— Essa aí faz tempo pra burro — uma voz infantil contemplativa
falou ao meu lado.
Olhei para baixo para notar a menininha com as mãozinhas na
cintura olhando para a mesma imagem.
— Eu era bebê — explicou, como se fosse necessário.
Num ímpeto, precisei me conter para não pegar a foto da
parede e levar comigo.
Acompanhei Abbi até seu quarto no segundo andar.
Não foi necessariamente uma surpresa perceber que era um
lugar enfeitado, decorado para que uma garotinha se sentisse
especial. Pôster de cavalos na parede. Bonecas em uma estante
baixa. Cortinas cor-de-rosa. A cama arrumada com uma colcha de
retalhos em variados tons de rosa também. Um baú de brinquedos
em um dos cantos. Tudo o que provavelmente a mãe não teve na
infância. Doeu o pensamento.
Fui arrancado dele quando algo peludo passou entre minhas
pernas, raspando em mim. Ergui um pé por reflexo e por pouco, por
muito pouco, não esmaguei a coisa comprida que foi direto para os
pés da pequena dona. Um animalzinho feio, de pelagem cinza
escuro e focinho e testa brancos.
— Ara, Rudolph, cê tá com medo? Precisa ter medo não, esse
aqui é amigo nosso — sem muita delicadeza, a criança levantou o
bicho do chão e o pôs sobre o ombro. Um ato natural para ambos,
pois a ferinha feia se encaixou ali e ficou me sondando através
daqueles olhinhos terríveis e pretos — Cê gosta de bicho, Derek?
Não sei. Cachorros sim. Mas se aplicava a furões?
— Nunca vi um furão de perto, na verdade — desconversei.
— Cê tá com cara que tá cagando de medo também. Fica não.
Ele quase não morde.
Tive a ligeira sensação de que a menininha esperta estava
curtindo com a minha cara. Gostei que fosse o caso. Gostei de
como era engraçada e segura de si, que se sentisse à vontade
comigo.
— Por que “Rudolph”?
Abbi alisou a cabeça peluda perto de seu rosto.
— Ele parece uma rena.
Encarei a eriçada ferinha me mirando.
— Hm.
Jamais teria coragem de desmentir minha filha. Se ela achava
essa coisa feia parecida com uma rena, quem era eu para dizer o
oposto.
— Lá na fazenda, eu tenho uma cabra também.
Levantei as sobrancelhas.
— É mesmo?
— Uhum. May é o nome dela. É uma Cabra Pigmeu. Ela não
cresce. É anã. Willie me deu de presente de aniversário. Sabia que
faço aniversário em cinco de novembro?
Sim, eu sabia. Iron havia levantado tudo sobre a vida delas.
Quando Cherry fugiu, estava grávida de dois meses, segundo
minhas contas.
— É mesmo?
— Sim, sim. Mamãe diz que ainda falta muito para meu próximo
aniversário, mas o Willie já me avisou que vai me dar um pônei.
Evitei dizer que muito provavelmente em novembro ela já não
estaria mais aqui.
Eu a levaria comigo logo depois do feriado do Dia da
Independência. Era quando eu precisava estar de volta. Com o fim
do curto recesso, minha presença em Washington D.C. era
importante para a votação da lei do endividamento que vinha se
tornando um problema para o país.
Precisava conversar com Cherry sobre isso. Deixá-las no Texas
estava fora de cogitação. Já fiquei tempo demais longe de minha
filha.
— Cê já foi na fazenda do Willie?
— Ainda não.
— Então vou levar ocê lá amanhã.
— Acho que ele tem compromisso amanhã, filha — a voz suave
às minhas costas não me surpreendeu.
Senti seu cheiro assim que ela surgiu silenciosa no umbral da
porta.
Estaria me espionando para saber o que eu diria à nossa filha?
Dei a ela um olhar que a desmascarava.
— O jantar está pronto — avisou, evitando me encarar.
— Eba! Já estava varada de fome! — a garotinha soltou a
ferinha feia que sumiu o mais depressa que pôde para debaixo da
cama.
— Modos — repreendeu Cherry — E vá lavar as mãos, carinho.
Resmungando algo parecido com “tá bom, tá bom, mas eu tô
com um buraco na barriga de tanta fome!”, Abbi passou por nós,
para o corredor, onde vi um banheiro. Cherry finalmente me
encarou.
Sustentei seu olhar.
Nunca a perdoaria por omitir uma criança... mas, porra, minhas
mãos ardiam de vontade de puxar a maldita para meu peito e
mergulhar fundo em sua boca.
— Quero contar a verdade para ela de uma vez — exigi,
modulando minha voz apenas para seus ouvidos.
Minha esposa fujona engoliu em seco. Pude ver o brilho de
pânico cintilar junto aos olhos acinzentados.
— Não hoje — pediu, quase implorou.
Travei a mandíbula.
— Amanhã — caminhei em sua direção — E nem um dia a
mais.
Cherry desviou o rosto quando passei por ela para sair do
quarto. Os pequenos punhos cerrados.
— Quero minha filha em Washington comigo.
Seus lábios carnudos e simétricos se abriram. Os olhos
arregalaram.
— Não — sibilou quase sem voz.
— Sim — declarei, frente a frente com ela — Falaremos sobre
isto, eu e você, ainda esta noite.
— Prontinho! — a criança saltitou correndo pelo corredor e
parou no topo da escada. Abbi desceu. Desci atrás dela.
Cherry ainda permaneceu um minuto a mais no mesmo lugar.
Digerindo.

— Foi o Charles que me ensinou a andar de bicicleta — Abbi


falou com a boca cheia, entre uma garfada de macarrão e outra —
Eu tinha quatro — levantou quatro dedos no ar.
— É mesmo? — cortei uma almôndega entre meu garfo e faca.
Não dava para negar que estava delicioso.
Mais uma habilidade de minha esposa que eu desconhecia.
Cherry sabia cozinhar.
— Charles é o chefe da mamãe — assentiu a garotinha — E ele
gosta dela — sussurrou essa última parte como se fosse um
segredo, passando o dorso da mão pela boca para limpar e, no
processo, espalhando ainda mais molho pelas bochechas.
Parei o movimento dos talheres e olhei para a mãe da criança, a
mulher de rosto avermelhando sentada à minha frente.
— É mesmo?
— Verdade verdadeira — Abbi confirmou — Eva acha que ele
quer pedir mamãe em casamento.
Algo rugiu dentro do meu peito, sacudindo as paredes. Uma fera
enjaulada.
— Seu chefe? — levantei a sobrancelha para a infeliz, que
parecia mais desconfortável do que nunca. Nem podia julgar o
desgraçado, fosse ele quem fosse. Só que essa mulher ainda era
casada. Comigo.
— Não pode levar tudo o que a Eva fala a sério, Abbi. Ela
provavelmente estava brincando.
— Não estava, não. Charles gosta d’ocê, mãe — minha filha,
que ainda não sabia que era minha filha, se inclinou para frente para
confidenciar: — Ele fez um bolo no aniversário dela.
O tom vermelho ficou ainda mais forte na pele clara da mulher.
— Sua mãe é uma mulher bonita, Abbi — alfinetei de propósito
— Não é surpresa que um chefe a queira.

Cherry tossiu.
Abbi assentiu, concordando comigo.
Enfiei um pedaço da almondega na boca e a mastiguei,
tomando o cuidado de dizer à minha esposa, com um olhar,
exatamente o que eu pensava disto.
O assunto rapidamente se voltou para nabos, abóboras e
cenouras. Abbi detalhava os processos de plantação – pela visão de
uma criança de seis anos – enquanto devorava a comida.
A sobremesa veio em forma de uma torta de peras (“lá da
fazenda”, contou minha filha), servida na sala.
Me abstive da torta, aceitei o café, sentado no sofá macio e
desgastado, enfeitado com almofadas floridas.
Cherry se sentou ao meu lado, mas o mais distante que o móvel
de três lugares permitia.
Abbi se revezava em comer pedaços da torta e mostrar o jogo
de montar, espalhado pela mesa de centro de madeira rústica.
— Falta pouco para o horário de subir, querida — falou minha
silenciosa e tensa esposa, quando a pequena tomou um fôlego.
— Mãe, mas a gente tem visita!
— Amanhã tem escola.
— Mas é dia de reunião de pais.
— Não significa que pode faltar aula.
— Diacho!
— A boca, Abbi — desta vez, a mãe repreendeu com mais
seriedade.
Compreendendo meu papel nisto tudo, estiquei as pernas,
simulando um movimento de encerrar a noite.
— Já é tarde. Eu estava mesmo de saída, Abbi.
— Ah — lamentou a garotinha.
— Podemos nos ver amanhã outra vez.
— É sério? — minha filha me lançou um olhar desconfiado.
Vi muito de mim em seu semblante, reconheci.
— É sim — não olhei para a mulher em busca de autorização.
Era um aviso de que eu não perderia mais tempo.
— Então tá combinado! — a expressão magoada deu lugar a
uma risonha, apressando-se em guardar as peças do jogo.
Precisava que Cherry realmente colocasse a filha para dormir,
ainda havia muito a conversar com minha esposa, e eu não adiaria.
No dia do incidente em seu carro, quando subimos à sua
cobertura, Derek Reynolds me manteve o mais emocionalmente
distante possível. Não chegou a ser frio. Não me tratou mal nem
nada. Foi gentil, deu-me gelo para pôr contra a boca inchada,
chamou um táxi e me deu o resto do dia de folga. Exigiu, na
verdade, que eu fosse para casa descansar.
E vinha sendo essa parede fria desde então. Mal me olhava
quando passava por mim.
Errei ao admitir que era virgem, mas em minha defesa, ele havia
mencionado a questão em primeiro lugar. Agora, tinha quase
certeza de que seria demitida.
Começou com uma suspeita. Depois, um burburinho de que
uma nova vaga de estágio havia sido aberta no gabinete. Então, um
rodízio de pessoas com mais ou menos a minha idade aparecendo
para se reunir com Mônica – para entrevistas, eu supunha – e
ninguém me dizia nada. Até que aconteceu, quase que sem querer.
Eu estava descendo para pegar uma encomenda na portaria
quando um garoto bonito começou a descer as escadas ao meu
lado.
— Você trabalha no gabinete do Senador Reynolds, não é? Vi
você lá.
— Trabalho — falei, observando os degraus que eu pisava, sem
ânimo para levantar a cabeça.
— Consegui a vaga de estágio! — disse ele, como se mal
pudesse se segurar, extasiado.
Eu sabia bem como era esse sentimento. Foi o que senti
quando tive a confirmação de que estava sendo contratada também.
Agora, no entanto, perto de ser demitida, só conseguia sentir
náusea.
— Parabéns — tentei sorrir.
— Ah, desculpe, nem me apresentei. Carter Williams, sou do
Michigan — Carter, que parecia uma boa pessoa, estendeu a mão.
— Cherry. Cherry Contreras — a garota que será demitida.
— É verdade que o homem é duro na queda? Quero dizer, que
ele é rigoroso?
— Uhum... — e quer um conselho? Jamais admita que é virgem
perto dele.
— Legal. Vou começar amanhã — na recepção, ele se
despediu. — Vejo você no trabalho, Cherry!
— Vejo você no trabalho, Carter.
Peguei a caixa na portaria e subi em modo automático. Uma
sensação de tristeza imensa. Gostava de trabalhar aqui. Do
ambiente, principalmente do salário. Só de pensar em me lançar na
grande maratona de procurar emprego outra vez, quis chorar. Teria
que entregar o apartamento. Que encontrar outro em um lugar longe
que eu pudesse pagar.
Sentei diante do meu computador, mas o texto da nova proposta
de emenda era um borrão. Não importava quanto tentasse, não
conseguia me concentrar nele.
Lamento, mas acho que você terá que fazer este sozinho,
Carter.
Meus colegas, quase ex-colegas, iam passando por minha
mesa e se despedindo conforme acabavam seus expedientes. Eram
“Até amanhã” “Tchau, Cherry”, tão amigáveis. Engraçado como hoje
todos fizeram isso. Será que sabiam da minha demissão?
Esperei que Mônica me chamasse em sua sala para dar a
notícia. Em vez disso, ela passou por mim e acenou um: “Estou
esperando aquele relatório para amanhã de manhã no meu e-mail,
Contreras”.
— Pode deixar, entregarei antes de você me chutar, chefe —
falei baixinho, quando ela se foi.
Tudo porque aquele homem de gelo não gostou de ouvir a
minha verdade. Uma que ele praticamente pediu.
Desliguei meu computador, organizei a mesa e fui fazer minha
última tarefa do dia, provavelmente pela última vez. Sabia que ele
estava atrás daquela porta. Infelizmente, teria que entrar e pegar a
louça suja do café, moer mais grãos fresquinhos para o homem que
estava me dando um pé na bunda sem o menor problema.
Dei duas batidas.
— Entre.
Empurrei a porta.
Imerso no que fazia, parecendo mais cansado do que o normal,
ele subiu a cabeça e me viu.
— Ah, você.
Ah, a estagiária insignificante que decidi demitir depois de uma
interação pra lá de inconveniente em meu carro de senador
poderoso.
Muda, mas começando a ferver por dentro, caminhei para o
aparador próxima à sua grande mesa, onde ele tomava decisões
que poderiam afetar a vida de uma nação. Coloquei uma xícara
sobre a bandeja. A força foi tamanha que fez barulho. Coloquei mais
uma. O pote de grãos. Minhas mãos tremiam pela indignação.
— Algum problema, Srta. Contreras? — perguntou em voz baixa
e grave. Como ele poderia ser tão indiferente ao fato de que me
faria desempregada no dia seguinte?
Não pensei ao agir. Se tivesse pensado, não teria feito isso
jamais. Mas quando dei por mim, eu já havia passado a mão no
copo com água e girado em sua direção. Acertei seu rosto em cheio.
— Mas que p...?!
— Se não queria uma virgem trabalhando para você, deveria ter
deixado claro na entrevista, Senador! E se está lembrado, foi você
que me colocou em seu colo! E que veio me provocar sussurrando
no meu ouvido sobre eu parecer uma virgem!
— De que merda está falando, Contreras? — levantando-se, e
com isto parecendo ganhar o dobro de tamanho, ele grunhiu com a
mandíbula apertada. A voz assustadoramente calma.
— De você me mandando embora por uma coisa como aquela!
De você me dando um chute por algo que eu nem tive controle!
— Não teve controle? — arqueou a sobrancelha, letal, enquanto
passava a mão pelo pescoço, onde a água escorria.
— Sentir tesão é humano sabia? Não, é claro que não sabe.
Você é um robô!
Ele quase riu, se não estivesse com aquela expressão tão
friamente ameaçadora.
— Estou te mandando embora porque senti tesão por você, é
isso?
— Não, claro que não ― não era tola de pensar que provocava
qualquer efeito em um homem como ele — Porque eu senti! E quer
saber?, não vou pedir desculpas. Você que começou errando
quando me manteve sentada em você!
— Pegue a caixa de lenços dentro de minha gaveta — ordenou.
— Quê?
— Eu disse para pegar a caixa de lenços na gaveta, Contreras.
Engoli em seco, confusa, meio desnorteada outra vez, sentindo
que perdi uma parte da conversa.
— Por quê?
— Pegue.
Era um comando tão firme que me vi obedecendo. Abri a gaveta
de sua mesa e retirei a caixa. Com a mão trêmula, começando a me
dar conta da grande burrice que fiz, estendi para ele. Derek
Reynolds não me daria uma carta de recomendação. Acho até que
me impediria de encontrar emprego outra vez nesta cidade. Não
haveria mais trabalho para mim em Washington, D.C. Não depois
desse lapso de raiva inútil.
— Venha até aqui.
Ele parecia tão furioso e tão sob controle ao mesmo tempo. Dei
um passo incerto em sua direção, e mais um. Com um metro e
setenta, me senti pequena perto de seu tamanho e força.
— Quem lhe falou sobre sua demissão?
Lambi os lábios secos para separá-los.
— Encontrei Carter nas escadas.
— Carter — ponderou o nome, medindo-o — É assim que
chama o novo estagiário, com intimidade?
— É o nome dele. E ele não sabia que ocuparia meu lugar —
não queira prejudicar o cara.
Derek apertou os olhos, então tornou-se mais frio.
— Comece.
— Começar?
— Quero que seque a minha mesa.
— Se... secar a sua mesa? Mas... — olhei para a poça de água
na madeira escura que eu havia feito. Era humilhante demais.
Contudo, eu já havia feito tanta coisa errada naqueles minutos que
me pareceu certo obedecer.
Puxei um lenço da caixa, sem coragem de encará-lo, e passei
sobre a superfície. E mais um.
Podia sentir a energia tensa emanando de seu corpo.
— Eu deveria exigir que me seque também, Contreras.
E, por alguma razão perturbada, eu adoraria. Mesmo ciente do
que ele havia feito.
— Se quiser, farei isso, senhor.
Derek riu, um sorriso bonito, porém furioso, não alcançou os
olhos.
— Quer me fazer acreditar que é uma garota obediente depois
desse showzinho com a água?
Como era possível de repente me sentir ligada em todos os
lugares, apenas com a provocação que saía de sua boca? Minha
calcinha ficar úmida no dia em que eu deveria apenas estar
chorando de desespero pela incerteza do futuro?
Não estava certo. Nada daquilo.
Baixei os olhos, fugindo do olhar duro, e ao fazer isso, percebi
que não era a única coisa dura nele.
Arregalei meus olhos pela surpresa.
Derek grunhiu.
— Satisfeita? — soava como uma acusação.
Arfei.
— Pelo menos não sou a única — murmurei quase inaudível.
— Fale mais alto, Contreras. Seja corajosa — exigiu.
Subi o rosto e o enfrentei.
— Pelo menos não sou a única, Senador.
Já estava tudo perdido mesmo, de que adiantava negar?
Foi a coisa errada a dizer. Um músculo em sua face perfeita
contraiu com força.
Me enchi de mais coragem:
— Mas não é justo, é? Você também está com tesão e não será
demitido por isso.
— Menininha tola.
— Não sou menininha.
Depois de me percorrer com um olhar intenso, ele meneou a
cabeça.
— É, você é sim.
Apertei minhas mãos nervosamente.
A tensão entre nós quase podia ser cortada, ficou sufocante.
Queria poder voltar cinco minutos no tempo e não ter agido tão
impulsivamente.
— Isso tudo foi um erro — recuei, envergonhada demais por
minha atitude — Me desculpe. Se quiser, não é necessário esperar
até amanhã para o aviso formal. Desocuparei minha mesa e
entregarei a vaga hoje mesmo.
— Faço questão que venha amanhã e desocupe sim sua mesa.
Claro que ele desejaria me submeter a esta humilhação. Era
como me ensinar uma lição. Exatamente como no meu primeiro dia.
— Tudo bem. Farei isso, Senador — só quis correr dali o mais
depressa possível.
— Sua nova mesa ficará no escritório contíguo ao meu. Será
minha assistente direta.
— O quê?! — olhei para cima, para o prazer debochado e irado
em seu rosto de mármore. Derek Reynolds estava furioso e ao
mesmo tempo extraindo toda graça da minha cara.
— Espera eu... eu não vou ser demitida?
— É o que merece.
Santo Deus, eu não podia acreditar.
Promovida.
Em vez de demitida, promovida!
E quase arruinei tudo!
— Nossa, me desculpe, Sr. Reynolds. Desculpe de verdade.
Eu... nossa, que vergonha — tapei meu rosto, mortificada,
desejando ser tragada por um buraco — Acha que há algo que eu...
que eu possa fazer para me desculpar... estou tão... nossa, que
vergonha.
— Vá para casa, Contreras — ordenou.
Assenti freneticamente. Não testaria ainda mais a minha sorte
ficando.
— E Cherry.
Meu nome. Algo que jamais pensei ouvir de sua boca. Subi os
olhos devagar, atenta.
— Sim, senhor.
— Da próxima vez, não terei a mesma tolerância — tão perto
como estávamos, li cada palavra em sua boca perfeita e firme.
— Sim, me demitirá e tem toda razão em avisar, Senador.
Derek fingiu ponderar minhas palavras por meio segundo, então
sacudiu a cabeça, quase cruel.
— Possivelmente, sim. Mas antes, esteja certa que eu a
ensinarei, da minha própria maneira, que não gosto de ser
desrespeitado.
Sua própria maneira. Estava quase claro que envolvia algo
físico, talvez até... sexual.
Uma conferida e notei que ele ainda estava duro. Bastou descer
o olhar para o volume mal contido em sua calça.
— Recado entendido, senhor — baixei a cabeça em reverência.
Como a boa garota que eu era, porque além de precisar muito do
emprego, meus ossos sentiam que eu deveria, que queria, ser
submissa a esse homem — Da próxima vez, me puna como achar
melhor.
Corri dali, porque não queria saber se minha provocação sutil foi
entendida como tal.
Fiquei do lado de fora do quarto enquanto a mãe colocava a
filha para dormir. Havia um ritual na casa: banho, pijama, escovar os
dentes, contar uma história. Uma dinâmica natural para elas.
Ouvi a fábula contada por Cherry, sobre uma princesa pobre
que conheceu um príncipe e recebeu uma proposta de casamento
sem sequer se conhecerem direito (esta parte, enfatizada pela
mãe). Eu não entendia muito bem de histórias infantis, mas podia
jurar que não acabava com a princesa se recusando a casar, ou
mesmo conseguindo um trabalho vendendo maçãs e se tornando
bem-sucedida com o próprio esforço... mas compreendi o ponto.
Cherry estava criando a filha para ser independente, ter o
próprio ganho sem depender de ninguém.
Eu me recusei a comparar essa história com a nossa. A
reconhecer a semelhança. Cherry ter fugido com uma filha minha na
barriga anulava todo o resto.
Não há erro que eu pudesse ter cometido que superasse omitir
um filho.
Quando saiu silenciosa do pequeno quarto enfeitado, deixou
apenas uma fresta da porta aberta. Deparar-se comigo a
aguardando foi uma surpresa para minha mulher. Levantei a
sobrancelha. Se ela esperava que eu desse o fora sem
conversarmos, me conhecia pouco demais.
Segui seus passos escada a baixo. Entrei na cozinha atrás dela
e me recostei ao balcão enquanto Cherry enchia a máquina de lavar
com a louça suja.
— Me fale sobre essa reunião.
— O quê? — subiu a cabeça para mim, confusa.
— A reunião que Abbi mencionou, na escola.
— Ah.
Cherry suspirou pesadamente. Fechou a máquina e olhou em
volta. A garrafa de vinho branco descansava sobre a ilha de
madeira.
Despejou uma taça cheia, e somente então se lembrou de
oferecer.
— Quer?
— Tem algo mais forte?
Fazendo um muxoxo com a boca, pensou. Foi até um armário
alto e retirou uma garrafa de conhaque.
— Willie me deu de presente em meu último aniversário.
Willie, Eva, Charles, pessoas de seu convívio, desconhecidos
completos para mim. Uma parte de sua vida que não me inclua.
Aquele lado possessivo rugiu em meu peito. Fiz o que pude para
ignorar. Esperei que me servisse um copo.
— É amanhã, às dez da manhã — explicou — Em um mês
acaba o ano letivo, então os professores gostam de fazer esse
encontro para reportar o desempenho.
— Como ela é na escola?
Um assunto fácil, seguro, deu para ver em seu rosto.
— Surpreendente. Boas notas, boas relações com colegas,
professores, funcionários. Participativa. E será a atriz principal do
espetáculo de encerramento.
Minha filha. Orgulho inflou dentro de mim.
— Ela gosta daqui — disse minha esposa, significativamente —
Conhece todo mundo desde pequena, se sente bem em Marble
Falls.
— Quero ir à reunião com você — avisei, irredutível.
Cherry suspirou e apertou os olhos.
— Ouça, Derek. Sei o que está sentindo e...
— Sabe mesmo? — cortei-a, encarando por trás do meu copo
— Diga-me, Cherry, como estou me sentindo? Traído? Enganado?
Furioso por ter sido privado de conviver com uma filha que eu
desconhecia a existência até ver um vídeo na internet? Passado
para trás por uma esposa mentirosa?
— Não menti para você — defendeu-se com bravura, apesar do
semblante cansado — Nunca menti para você.
— Omitir não é uma mentira, por semântica?
— Não sabia que estava grávida quando deixei Washington
D.C.
— Quando me abandonou, você quer dizer.
— Você me mandou ir.
— Não. Não mandei — a fera rugiu baixinho em meu peito —
Se se lembra bem daquela noite, não deveria repetir isso.
Se ela se sentia irritada, ultrajada, eu me sentia mais. Muito
mais. Porra, eu me sentia doente pela fúria!
Cherry encarou o chão, sacudindo a cabeça.
— Falar do passado não vai mudar nada, agora — a mágoa em
sua voz quase me fez sacudi-la. Que direito ela tinha de estar
magoada, porra?!
Observei-a inspirar fundo e virar todo o vinho em uma golada.
— Não quero que a leve daqui.
Direto ao ponto, ótimo.
— Ela precisa estar onde eu estou — fui enfático.
— A vida dela está nessa cidade, Derek.
— Uma muito melhor a aguarda em Washington. Escolas
melhores. Oportunidades.
Um sorriso descrente surgiu em seu rosto, enquanto voltava a
negar com a cabeça.
— Uma menina de seis anos não precisa de oportunidades!
Precisa de estabilidade, um lar, amigos, pessoas que ela conhece e
ama.
Entornei o maldito conhaque de uma vez também.
— Só não há pessoas que ela conhece e ama lá porque você a
privou disto! — acusei — Minha mãe e irmã sequer sabem da
existência de uma filha minha. Acha isso certo, Cherry?
— Elas também não me conhecem — falou tão baixo que
pensei não ter entendido direito.
— O quê?
Seu olhar magoado mergulhou no meu:
— Sua mãe e irmã, elas também não me conhecem.
Não permiti que a dor em sua afirmação se transformasse em
culpa dentro de mim, portanto ataquei:
— Acha que é uma atitude boa para a menina, continuar
escondendo o que ela pode ter lá?
— E o que ela pode ter? Seu dinheiro? — atacou também.
— Eu! — vociferei em voz baixa — Eu, porra. O pai dela!
Nem me dei conta de que cortei a distância entre nós. De que a
estava pressionando com meu corpo junto ao balcão.
Quando percebemos, juntos, a proximidade, foi uma merda de
um choque, uma maldita descarga elétrica.
Meu pau, se fosse possível, a farejou. Fosse pela raiva ou pelo
motivo que quisesse, ficou duro na calça. As bolas pesaram.
Grunhi.
Cherry arfou baixinho.
Por um instante me vi sendo transportado ao passado. Quando
seus gemidos eram o único som no ambiente. Quando eu me
afundava nela com fome, violência, com um querer insaciável.

Um amargor tomou conta de minha boca reconhecendo que a


sensação de mergulhar nessa mulher, a paixão que me fazia querer
devorá-la toda maldita vez, ainda pulsava em minhas veias.
E nas delas também. Vi a bagunça em seus olhos, nas
pálpebras pesando. Também lembrava. Mesmo agora, sob toda a
tensão irritada entre nós por ela ter omitido uma filha de mim, seu
corpo reagia ao meu, reconhecendo-me, ainda que ela lutasse
contra.
A desgraçada me desejava tanto quanto eu me sentia faminto
por ela.
Mas foi minha esposa a tomar a atitude de recuar.
Não queria relembrar a paixão avassaladora, meu toque,
nossos beijos... não queria se lembrar de como se entregou por
completo a mim, de como fui eu a tirar a virgindade de sua boceta
apertada. De como sempre se submetia e ansiava por mais.
Habilidosa agora em dissimular seus sentimentos, ocultou suas
emoções ao se afastar.
Foi impossível não admitir a mudança: A mulher estava
diferente, mais combativa, amadurecida. Mantinha uma compostura
notável, embora eu vislumbrasse um leve brilho nos olhos cinzas,
algo muito parecido com a mesma força brutal que eu me obrigava a
controlar para não a puxar de volta aos meus braços.
— Vão te reconhecer.
— Desculpe? — irritei-me comigo por me deixar perder a linha
de raciocínio.
— Se for à escola amanhã, será reconhecido.
Interroguei-a com um olhar.
— Vergonha de mim?
Cherry revirou os olhos.
— Sabe que não. Só pensei que... que gostaria de manter sigilo
deste assunto por mais algum tempo. Até... até o exame ser feito,
pelo menos.
Cruzei os braços diante do peito.
— Eu e você sabemos o resultado.
— Posso ter me deitado com outro — enfrentou, orgulhosa —
Eu era uma alpinista social, se você se lembra.
Corri os olhos desdenhosos por ela, aceitando sua acusação.
A infeliz estava devastadoramente mais linda. Seu corpo,
revestido pelo vestido de campo simples, sem a sofisticação das
roupas de alta costura que vestia antes, continha mais curvas,
suaves, perfeitas.
— Fez tudo isso, me afastou de minha filha, para provar um
maldito ponto, Cherry?

Fiz para atingi-la. Para tirar sua audácia. Para colocá-la no lugar
a que pertencia: uma egoísta, imatura, que na primeira briga deu o
fora como uma covarde.
Obtive sucesso em meu objetivo.
Mágoa, vergonha, culpa atravessaram seus olhos cinzas. A
boca se abriu, mas eu a cortei antes que pronunciasse as palavras:
— Não se atreva — grunhi baixinho por entre os dentes
apertados — Não se atreva a pedir desculpas.
Caralho, como eu queria puni-la. Como queria fazer com que se
sentisse metade de como me senti naquela época.
— Eu não ia — mas o tom de sua voz dizia o contrário.
— Ótimo. Quando eu levar minha filha comigo, quero ter certeza
de que enfrentará o resultado de suas ações com a mesma maldita
coragem que teve para fugir de minha vida daquele jeito.
Não consegui ficar nem mais um minuto perto dela.
Olhar para essa mulher, porra, olhar para Cherry estava me
fazendo mal.
Descobrir que eu ainda me sentia do mesmo jeito, que ainda a
desejava, que ainda a am... não. Porra, não! Eu não sentia mais
nada por ela.
Estava aqui, nessa cidade, somente por minha filha.
— Irei à reunião amanhã — avisei.
Antes de dar o fora, deixando a mulher de cabeça baixa na
cozinha da pequena casa de bonecas que criou para si, cobrei:
— Quero aquela autorização para o exame assinada, amanhã.
O ar quente da noite foi bem-vindo.
Enchi o peito, esperando meu coração estúpido voltar à
normalidade.
Maldita fosse!
Cherry não iria me cegar novamente.
Não iria atrapalhar meu juízo, como no passado.
Eu não era o mesmo.
Se antes me sentia endurecido, agora estava pior. Agora meu
peito estava protegido pelo caralho de uma parede de aço.
Ela não encontraria o caminho para dentro outra vez.
Eu amava meu emprego. De verdade. Estudar a necessidade
de determinado projeto de lei e o impacto na vida de setores, de
pessoas. Desde sempre, quando ainda dependia do sistema, já
compreendia que tudo girava em torno da política e de quem a fazia.
E não podia estar em um lugar melhor do que trabalhando para
Derek Reynolds. Ele, mais do que qualquer outro senador,
conseguia movimentar o jogo. Ter influência sobre as decisões de
seus pares. Era feroz no que queria. Eu o admirava por isso.
A única coisa que eu não gostava era de sua frieza comigo. Das
respostas curtas. De como evitava me olhar durante as reuniões,
apesar de elogiar minhas ideias e iniciativas, e evitava ficar sozinho
comigo. Usava Mônica como um tipo discreto de amortecedor entre
nós.
O Senador estava fugindo de mim.
Em contrapartida, encontrei em meu substituto um amigo. Carter
era um garoto engraçado, inteligente, observador. Vínhamos
passando tempo juntos, já que ele me ajudava com levantamentos
importantes, e descíamos para almoçar aos arredores do Russell
Senate Building algumas vezes.
— O Reynolds é um cara fechadão, não acha? — comentou ele,
certo dia.
Carter também tinha vinte anos, assim como eu.
— Acho que é o jeito dele. Além de quê, ele meio que tem uma
reputação a zelar. O mundo está sempre atento ao que faz, então...
— Aquela jornalista no New York Times tem uma queda pelo
cara, só pode. Toda semana ela consegue meter o nome do
Reynolds em alguma matéria.
E quem não tem?, pensei. Eu tinha mais do que uma queda, era
uma paixãozinha mesmo. Absorvia seu cheiro profundamente,
quando ninguém estava olhando. Ainda gostava de organizar o
cantinho do café dele. E ainda fantasia com o Senador, à noite,
sozinha na intimidade do meu pequeno apartamento.
— Por falar nisso... eu estava pensando — disse ele, quando
subíamos de volta ao andar — Será que você, sei lá, um dia destes
não estava a fim de, tipo, sair comigo?
Olhei para o garoto bonito. Ar descontraído. Olhos verdes e
sinceros. Jovem demais. Tão diferente do homem que estava se
tornando uma obsessão para mim.
— Eu... — mas fui salva de responder com a entrada de
algumas pessoas no elevador.
Eu deveria aceitar. Deveria sair um pouco. Perder de uma vez
aquilo que já estava se tornando um problema. Se eu transasse com
alguém, quem sabe não apagaria Derek da cabeça? Era do que
precisava, com urgência.
Entrei em minha nova sala, contígua à do Senador e abri meu
computador. Passei as próximas horas imersas em um relatório
quando alguém bateu e entrou. Era Carter. Trazia a pasta com os
levantamentos que solicitei.
Havia um sorriso charmoso em seu rosto, ao sair.
Quando abri o relatório, um post-it grande estava colado à
primeira página.
“Cherry quer sair com Carter ( ) sim | ( ) não.”
A criatividade me fez rir.
Colei o post-it na mesa e continuei a trabalhar. Meu cabelo,
como sempre, estava preso em um coque baixo, mas devo ter
apertado demais naquela manhã porque senti o puxão nos fios o dia
todo. Como a maioria dos funcionários do gabinete já havia partido,
decidi que não havia nada de mais em soltá-lo. Foi um alívio quando
tirei o último grampo. Cheguei a gemer baixinho.
E foi assim que meu chefe me encontrou, quando passou pela
porta que unia nossas salas – a primeira vez que a usava.
Derek, como sempre, estava lindo. Não tão impecável, porque
seu cabelo, grosso e ondulado, sempre penteado para trás, estava
ligeiramente mais bagunçado. Dava a sensação de que ele havia
passado os dedos por ali. E, cacete, só o tornava ainda mais
atraente.
— Contreras.
— Senhor.
Devagar, ele se aproximou da mesa, uma das mãos dentro do
bolso do terno claro. Examinou meu cabelo, pela primeira vez solto.
Notei a maneira como suas narinas se dilataram. Será que ele
sentia essa coisa queimando a pele sempre que estávamos no
mesmo ambiente? Nenhum romance de banca fazia jus a esse
sentimento. Nem o mais picante, jamais me deixara tão inquieta
quanto eu ficava em sua presença.
Pigarreei.
— Acho que temos que pensar em medidas para incluir
empresas em estágios iniciais de desenvolvimento que, apesar de
terem um grande potencial de crescimento, ainda não alcançaram
uma receita significativa ou uma situação lucrativa, Senador...
Vi quando sua atenção se deteve sobre minha mesa. Uma ruga
se formou no meio da testa, quase imperceptível. A mão, imensa e
bronzeada, apanhou algo sobre a superfície. O post-it. Conforme lia
e entendia, sua mandíbula apertou. Só que eu não esperava pelo
que fez a seguir. Foi total e completamente surpreendente vê-lo
apanhar uma caneta do meu pote e traçar um x no papel, antes de
devolvê-lo ao mesmo lugar.
Acompanhei onde assinalou. “Não”. Um risco forte e
determinado respondendo por mim.
— Não permito esse tipo de coisa em meu gabinete, Contreras
— apesar de calmo, havia uma ondulação diferente em sua voz.
Quase feroz.
Será que estava com ciúmes? Um lado doentio de mim amou a
ideia. O lado mais racional, no entanto, foi responsável por
avermelhar minha face, porque realmente não era nada profissional
aquele tipo de bilhete. Mas o lado doentio foi mais rápido em mover
minha boca:
— Apenas me sentar em seu colo e falar sobre a minha
virgindade, senhor? — perguntei quase desafiadora, apesar da voz
baixa e obediente. Derek Reynolds não esperava. Ou esperava,
talvez, porque me encarou com tamanha intensidade que quase
derreti.
— O que falei sobre comportamentos impertinentes, Srta.
Contreras?
Engoli em seco. Excitada rápido demais. Eu era tão idiota.
— Que me ensinaria uma lição.
Encarei-o sob meus cílios, cabeça inclinada para baixo, quase
em submissão. Meu instinto me dizia que era disto que gostava. A
submissão era o que o tirava do controle rígido. Derek era o tipo de
homem poderoso, que fazia o mundo se dobrar às suas vontades.
Não aceitava não como resposta. Era implacável com seus
adversários políticos. Deveria ser assim na intimidade também.
Ele espalmou a mesa e se inclinou devagar para mim. A
mandíbula apertada. Seu cheiro, cheiro de homem de verdade, me
inundou, era meu oxigênio no momento.
— É o que quer? Minha atenção. Por isso está dando liberdades
ao garoto?
— Não dei nenhuma liberdade, Sr. Reynolds.
— Este pedido mostra o contrário.
— Carter é um amigo — atrevi-me a dizer.
— Gosto que minha equipe trabalhe em harmonia, mas não se
deixe enganar, senhorita Contreras — antes de voltar à posição fria
de antes e sair da sala, ainda disse — Você não está aqui para fazer
amizades.
Tive vontade de arremessar o pote de canetas contra a porta
fechada entre nós. Como ele podia ser tão arrogante?
Um tempo depois, de queixo erguido, fui fazer minha última
obrigação do dia. Ajeitar o aparador de café de sua sala, substituir a
louça suja.
Encontrei-o somente de camisa, a gravata e o blazer já não
estavam em seu corpo. O cabelo estava mais agitado, como se
nosso encontro anterior o tivesse incomodado a ponto de tornar
suas mãos inquietas.
Eu me sentia inquieta também. Irritada até.
Derek não se dignou a me dar um olhar sequer enquanto eu
atravessava sua sala. Coloquei a xícara suja sobre a bandeja de
forma brusca e saí a passos duros da sala. Quando voltei, meu
humor não estava melhor. Organizei as coisas ruidosamente. E
talvez meu comportamento tenha atingido um limite, porque a
caneta em sua mão foi solta de qualquer jeito sobre a mesa, e
Derek Reynolds inspirou com força.
— Qual é o problema, Srta. Contreras?
— Nenhum — organizei o aparador sem olhar para ele.
— Então, por que está se comportando desta maneira infantil?
— Não há nada de infantil em fazer o meu trabalho, senhor —
resmunguei em voz baixa.
— Devo presumir que não gosta desta tarefa, então? Pelo que
sei, você se ofereceu para continuar vindo aqui. Seu namoradinho
pode muito bem fazer isto.
Por que ele estava sendo tão irritante? E por que eu estava me
sentindo tão furiosa? Virei o rosto para ele; Derek estava me
encarando, olhar afiado, me desafiando em silêncio. Fiz o que
obviamente desejava, caí na armadilha de rebater:
— Meu namoradinho? — inclinei o rosto de lado, fingindo
pensar a respeito — Significa que repensou sua regra de não-
confraternização entre funcionários?
Um brilho escuro cintilou em seu olhar.
— Saia com ele e o garoto estará na rua.
— E não eu? Não me parece justo, senador.
Pronto, eu finalmente, com esse atrevimento, havia ido longe
demais. Soube assim que as palavras deixaram minha boca. Derek
Reynolds, imponente, poderoso, seguro de si, relaxou na cadeira,
estudando meu rosto. Se eu fosse tola, podia pensar que estava
indiferente. Mas eu não era. Sentia sua fúria irradiando em ondas.
— Aproxime-se, Contreras.
— Não — neguei, só que desta vez sem nenhuma audácia.
Apenas instinto.
— Não me faça repetir.
Minhas pernas moveram por conta própria. Quase sem ar, fui
me aproximando.
— Contorne a mesa.
Engoli em seco, enquanto fazia o que exigiu.
— Olhe para mim — ordenou, quando eu já estava próxima o
bastante para quase tocá-lo.
Fiz, subi meus olhos devagar, quase que magneticamente.
Santo Deus, ele era tão lindo, tão... perfeitamente lindo. O ar ficou
rarefeito. Meu coração, com a proximidade, descompassou.
— Uma boca-dura, Contreras?
— Desculpe — murmurei.
— Incline-se.
— O... o quê? — sibilei sem fôlego.
— Cotovelos na mesa, Contreras. Não me faça repetir.
— Senhor...?
Seu peito forte se encheu devagar. O olhar mais escuro e feral
do que nunca. Irreconhecível. Seu semblante ficou irreconhecível
para mim, como se o animal selvagem sob sua pele finalmente
viesse à superfície dar um vislumbre de si.
Senti medo.
E tesão. Muito tesão.
Tudo ao mesmo tempo.
Meu corpo simplesmente obedeceu ao seu comando. Apoiei
meus cotovelos em sua mesa. Ao fazer isso, fiquei praticamente
curvada sobre ela. Um prazer furioso perpassou seus olhos. Dava
para ver um tipo de luta sendo travada ali, quando percorreu o olhar
para como eu estava. Eu, ofegante. Ele, mandíbula travada, narinas
infladas.
— Pretende sair com o garoto? — grunhiu baixo.
— Talvez — murmurei, ciente de que era a coisa errada a dizer.
Ou a certa, se meu desejo era tirá-lo do controle sempre tão rígido.
O primeiro tapa em minha bunda veio sem aviso. Uma mão
poderosa que me acertou em cheio. Subi no lugar, dando um
gritinho pelo susto. Mas não tirei meus cotovelos da mesa.
— Por quê?
— Porque sim! — desafiei, rouca, excitada em um ponto que
pensei que fosse passar mal. Outro tapa. Fechei os olhos quase
alucinada. Aquilo não era real. Eu deveria estar sonhando. Ou
fantasiando em mais uma masturbação solitária em meu quarto. Só
podia ser isso.
— Por quê? Quer me provocar?
— Não!
Tapa.
— Também! — admiti. Minhas pernas estavam quase cedendo.
— Qual outra razão? — o som gutural nem parecia sair dele.
— Nenhuma — recusei confessar. O tapa seguinte me fez
encostar a barriga na mesa. Minha vagina latejava com força. A
bunda, formigava pela ardência.
— Sinceridade, Contreras. Exijo sinceridade daqueles que me
cercam — avisou.
Por cima do ombro, olhei para seu rosto, sombrio pela tensão.
Mais lindo do que nunca. Mais potente. Meu coração galopou com
força. Engoli em seco.
— Quero perder minha virgindade de uma vez, senhor — admiti
quase sem voz, impactada pela figura do homem tão poderoso, tão
furiosamente dominante, me olhando de olhos semicerrados,
analítico.
Ousei pousar o olhar em sua virilha. O volume ali. Monumental.
— Acha que aquele bostinha pode dar o que precisa? — mas
em vez de me golpear outra vez, sua mão alisou o interior de
minhas coxas. Foi instintivo separar um pouco mais as minhas
pernas. Ele riu, sem humor.
Dedos longos provocaram um pouco acima, quase na linha da
polpa de minha bunda, que graças às caminhadas diárias no
caminho para o trabalho e casa, era até bem firme para o tamanho.
Tardiamente, me lembrei de responder:
— Acho que preciso disto para parar de... — mas foi aqui que
não tive coragem de ir em frente.
— Parar do quê? — ordenou saber.
Inspirei entrecortado, mordendo a língua. Não diria. Não falaria
em voz alta jamais.
Desprevenidamente, outro tapa me atingiu. Eu enlouqueceria.
Nem no meu sonho mais molhado, imaginei essa cena aqui
acontecendo. Eu simplesmente enlouqueceria. Apoiei a testa sobre
a mesa fria.
— De me masturbar pensando em você, senhor — sussurrei, os
pulmões queimando. A pele ardendo. Minha vagina pulsando a
ponto de eu querer colocar minha mão entre as dobras e me
acariciar para aliviar. Foi o que tentei fazer.
— Cotovelos na mesa! — a voz gutural me impediu.
— Preciso... — murmurei sem som.
Dedos longos voltaram o caminho para baixo da saia. Desta
vez, ultrapassando a linha da polpa do bumbum.
— Sinto o seu cheiro, Contreras. Sinto o tempo todo o seu
maldito cheiro — o toque alcançou o tecido de minha calcinha — Sei
quando está excitada. Reconheço desde que se sentou em mim
naquele carro. É o que está sentindo agora, não é? — roçou
suavemente minha vagina — Olhe só para você, enxarcada.
Meu rosto corou com força. Tentei fechar as pernas. Um dedo
me invadiu por baixo da calcinha quase que como punição. Separei-
as mais. Derek rosnou.
— Tão molhada. Tão fácil de entrar em você.
Conforme o dedo ia abrindo caminho, eu perdia as forças nas
pernas. Tentava me mexer, me aproveitar dele. Era um sonho. E se
era, então eu faria todas as loucuras que tinha vontade.
Rebolei gostoso naquele dedo.
Mas de um minuto para o outro, ele saiu de mim.
Choraminguei.
Senti a pressão de suas mãos rasgando a lateral de minha
calcinha pequena. Uma, depois a outra. O tecido caiu como um
trapo no chão. Surpreendendo até a minha alma, meu quadril foi
agarrado e girado com facilidade, de forma que me vi sentada em
sua mesa, aberta para ele.
O Senador agora tinha uma visão completa de mim. Suas
pupilas dilataram. O rosto ficou mais duro. Tenso. Queixo erguido.
Furioso, mas não indiferente. Jamais indiferente agora.
— Apoie seus pés — foi uma ordem. Apoiei as pontas de meus
sapatos de saltos novos, uma em cada lado de sua cadeira, nos
descansos para os braços.
Derek me puxou pela bunda de modo que fui mais para frente,
para ele.
Encarando-me como se dissesse: “Você ainda me pagará por
isso, Contreras”, ele aproximou o rosto de minha intimidade exposta
e... e desceu a boca sobre ela. Fechei os olhos, mãos espalmadas
sobre a mesa, corpo arqueado para trás no primeiro contato de seus
lábios quentes contra minha boceta.
Gemi quando lambeu meu clitóris, quando o sugou.
Eu me sentia em um sonho.
Derek me invadiu com a língua. Agarrei seu cabelo. Ele
mordiscou meus lábios externos. Lambeu com tanta devoção.
Chupou tão gostoso. Que sonho maravilhoso! Que delícia! Esse
homem implacável se banqueteando comigo como se eu fosse a
coisa mais saborosa que já provou.
Meus gemidos ecoavam pela sala. Foi assustador. Quando
aquela eletricidade, antes familiar, começou a aquecer e se mover
em meu ventre de uma maneira diferente do que havia sido até
então com as masturbações, mais potente do que nunca, me senti
completamente assustada.
Mas não dava mais tempo de raciocinar sobre a diferença.
Sobre nada.
Quando o orgasmo alcançou seu pico máximo, quase
convulsionei, aterrada pela violência dos tremores, pela destruição e
reconstrução acontecendo ao mesmo tempo. Cedi para trás, caída
sobre a mesa, sem ar, exaurida pelo prazer. Assustada que meu
corpo fosse capaz de tanto.
Era um sonho. Só poderia ser.
Depois de minutos, que poderiam muito bem ser horas porque
realmente perdi a noção de tempo, quando meu coração já voltava a
bater num compasso normal, abri meus olhos. Encarar o lustre de
cristais no teto fez a realidade me atingir com força.
Provoquei meu chefe, falei coisas, permiti coisas. Coisas que
não deveriam de forma alguma acontecer entre nós.
Eu sabia disso.
Ele sabia disso. Estava em pé, de costas, sua silhueta
encarando a avenida silenciosa lá embaixo. Ombros rígidos,
músculos tensos na penumbra. As mãos enfiadas nos bolsos. Derek
era um homem correto. Todos o respeitavam por uma razão.
Provavelmente estava arrependido. Com a maior discrição que
consegui, em silêncio desci da mesa, atravessei a porta entre
nossas salas, recolhi minhas coisas, tirei os saltos, calcei o tênis e
desci para partir.
Na portaria, encontrei Iron, motorista e segurança particular de
meu chefe. Não tive coragem de cumprimentá-lo do jeito certo,
apenas movi a cabeça, logo antes de baixá-la. Mas Iron não estava
parado ali sem razão.
— O Senador pediu que a leve para a casa, senhorita.
— Não precisa, mas... obrigada — eu mal consegui encará-lo.
— Devo me corrigir: Não foi um pedido — foi uma ordem. Claro
que sim.
Tudo bem que estava um pouco mais tarde do que o habitual,
mas eu caminhava para casa todos os dias. Não havia nada de
errado nisto. Bastou um passo mais, no entanto, para eu me tocar
do óbvio: estava sem calcinha. Meu gozo melado entre as pernas.
Aceitei, sem criar caso. Minha cabeça começava a doer pela
irresponsabilidade, também. Seria bom chegar rápido em casa.
Não foi propriamente uma surpresa encontrar Derek na escola
antes de mim. Mãos nos bolsos da calça jeans, observava
atentamente o mural dos alunos na sala de aula, ouvindo o que a
Sra. Wren, a professora de Abbi, dizia.
Parei por um segundo para observá-lo, sem poder evitar.
Camiseta preta, jeans desbotado, tênis. Derek estava com
quarenta e quatro anos agora. E a única coisa que revelava
minimamente sua idade, talvez, era a pequena mecha de cabelo
grisalho em sua têmpora. Ainda tinha o corpo forte, mais do que
antes. Ombros largos. Peito definido. Coxas grossas dentro da
calça.
Seu rosto ainda conseguia arrancar o fôlego, mesmo de uma
mulher discreta como a Sra. Wren, que olhava para Derek enquanto
falava, como se visse um grande pedaço de presunto.
E ele ainda conseguia mexer com meu coração. Disparar. Como
se eu fosse a jovem deslumbrada de antes.
Da mesma forma que senti sua presença, antes de vê-lo, notei
que ele também sentiu a minha. Devagar, girou a cabeça para a
porta.
Seus olhos, quando me encontraram parada, pega no flagra,
estreitaram discretamente. Ele sabia o poder que exercia. Claro que
sim, afinal era um dos políticos mais influentes do mundo, não à toa.
Pigarreei, levantei a cabeça e entrei na sala.
— Boa tarde, Sra. Wren.
— Cherry, querida, como vai? — mas no rosto da mulher dava
para notar o espanto e a sutil acusação por eu ter omitido a
identidade do pai de Abbi — O Sr. Reynolds veio... uhum... para a
reunião da... uhum... filha.
Mas que droga, ele não tinha o direito! Assenti, me forçando a
sorrir. Só que o sorriso não saiu do jeito certo. A expressão
desafiadora de Derek me disse isso.
— Vejo que já se conheceram.
— A Sra. Wren estava me contando sobre o desempenho da
Abbi.
— Entendo... — falei, quando o que eu queria mesmo dizer era:
“Você não tinha o direito de sair revelando isto por aí!”.
— Querida, você nunca me disse que... — a professora do
jardim de infância, sem notar a tensão, se colocou ao meu lado —
Que o pai da Abbi era o Senador.
— Não temos certeza ainda — falei sem pensar.
Derek rosnou, ou pensei que fosse essa a justificativa para o
som que saiu de seu peito. Mas quando olhei, o encontrei sorrindo.
Era uma risada.
— Minha esposa tem um senso de humor tão... único.
Semicerrei os olhos para ele, fulminando-o.
— Esposa? — as sobrancelhas da Sra. Wren quase alcançaram
a raiz dos cabelos ruivos.
— Nós nos casamos em uma linda cerimônia, antes de Abbi
nascer — Derek explicou, gostando de me constranger — É uma
surpresa que ela não tenha mencionado à professora de nossa filha.
— Estamos nos divorciando — contei, acima de sua alfinetada,
para a estarrecida senhora entre nós.
— Mas ainda somos casados — esclareceu ele, impositivo, sem
perder o charme político.
— Entendo, entendo — a professora, coitada, olhava de um
para o outro como se não entendesse absolutamente nada.
— E então? — segurei minha bolsa bem apertada, ansiosa com
essa situação — Como Abbi tem se saído, Sra. Wren?
— Ah, nossa garotinha é uma joia! Claro, isto você já sabe, não
é Cherry? Falante, curiosa, cheia de personalidade — a mão
enrugada apontou para o mural — Criativa.
Em geral, o que ela queria mesmo dizer com isso? “Abbi é
terrivelmente inteligente, me faz perguntas de cair o queixo, tais
como ‘professora por que os homens não se sentam para fazer
xixi?’ ou ‘por que a senhora nunca casou?’; constantemente tenho
de pedir que fique em silêncio durante as aulas, mas as notas dela
são ótimas, porque vocês têm uma filha muito competitiva, e agora
sei por quem ela puxou”
— Vou sentir falta dela no próximo ano — suspirando, a mulher
uniu as mãos junto ao peito. Não tinha bem certeza se ela realmente
sentiria, e isso deve ter ficado estampado no meu rosto.
Derek sorriu. Me peguei mordendo um sorriso também. Alguns
minutos depois, quando outro casal de pais entrou na sala, exigindo
a atenção da professora, Derek provocou em voz baixa:
— Aposto como metade dos cabelos brancos dela não estavam
ali antes de nossa filha.
Cada palavra penetrou meu coração, elevando o calor de um
jeito novo. O orgulho desse homem, ainda que mal conhecesse Abbi
direito, era tocante demais.
— Você ganhará um bom dinheiro. Precisa ver os recados na
agenda — sorri com cumplicidade. E cometi o erro de encarar seus
olhos escuros. De mergulhar neles.
Derek seria um bom pai para Abbi desde o início. Foi essa a
verdade que enxerguei ali dentro.
— Nossa filha ama a escola — falei sem pensar.
— Então é estudiosa como a mãe — falou ele, mais rouco.
— E o pai também.
Ficamos nos encarando ali, parados, por um momento como se
não houvesse mais ninguém em volta. Fui eu a quebrar o contato,
me lembrando que havia sim. Pigarreei.
— Preciso voltar ao trabalho.
— Quer uma carona? — perguntou, enfiando as mãos nos
bolsos outra vez. Tão focado em mim, tão intenso como sempre.
— Vim dirigindo — encolhi o ombro.
Assentiu. Mas nenhum de nós se mexeu.
— Quer jantar em casa esta noite... quero dizer, se não tiver
nenhum compromisso?
Porcaria, por que eu estava fazendo isso?
Derek ficou um pouco mais sério.
— Quero.
Foi minha vez de sacudir a cabeça.
— Certo.
Baixei os olhos para minhas sandálias, que em breve seriam
substituídas por tênis no trabalho.
— Não tenho compromissos, Cherry — acrescentou ele — Meu
único objetivo nesta cidade é conhecer minha filha.
Engoli em seco.
— Supostamente.
Ele arqueou a sobrancelha. Esclareci:
— Ainda não fizemos o exame.
— Basta que assine aquela autorização — havia um quê de
acusação, que quebrou qualquer cumplicidade que poderia ter
existido minutos antes — Você a trouxe?
Contra minha vontade, abri a bolsa e entreguei o documento
para ele. Minhas mãos tremiam. Não havia outra escolha. Se eu não
fizesse de bom grado, poderia se voltar contra mim. Derek não
admitiria ser enrolado. Ele teria esse exame de um jeito ou de outro.
— Ótimo.
— Quero estar junto, no dia — exigi, em voz baixa. Mas meu
ainda marido fez questão de me mostrar que eu não estava em
posição de exigir nada:
— Ela também é minha, Cherry — sentiu-se impelido a me
lembrar — Não importa quanto tempo isso leve, eu e você
conhecemos o final dessa história.
Tensa em cada músculo, eu o encarei:
— Não vou abrir mãe dela, Derek.
— Em tampouco, Cherry — avisou, perigosamente sério. Seu
rosto era duro. O meu, deveria ser um reflexo.
Mas ficar ali, fazendo o jogo de encarar, não nos levaria a lugar
algum, então, apertando minha bolsa contra mim, falei:
— Vejo você mais tarde.
Saí da escola o mais depressa que pude. Em minha
caminhonete, derrubei a testa contra o volante, olhos marejados.
Abbi era tudo para mim. Jamais permitiria que ele a levasse... e não
sabia como conseguiria evitar.
Era o mesmo que assistir a um desastre prestes a acontecer.
Um trem de carga fora dos trilhos vindo em minha direção.
Minha filha ficaria magoada quando descobrisse o que fiz. Ele
usaria minha omissão em seu benefício.
Eu tinha de entrar em um acordo com Derek antes disso. Antes
de perder totalmente o controle. Mas não tinha ideia de como fazer
isso. Ele me odiava. Não havia espaço para diálogo quando um
abismo de ressentimento se estendia entre nós.
Ressentimentos do passado. Ressentimentos do presente.
Talvez se eu realmente mostrasse a ele como era a vida de
nossa filha aqui. Como Abbi tinha pessoas que a amavam, e era
feliz de verdade.
Um plano se formou em minha cabeça. Antes de voltar ao
trabalho na lanchonete, liguei para Eva. Já era hora de eles se
conhecerem. Derek veria com seus próprios olhos que Marble Falls
era onde Abbi deveria ficar.
Derek Reynolds embarcou em uma viagem para Chicago na
manhã seguinte. Mônica me informou assim que entrou em minha
sala ― quando a vi, na verdade, pensei que estava vindo me
demitir. Não era um compromisso secreto; eu estava ciente da
agenda dele, evidentemente. Mas, até onde eu sabia, a viagem
aconteceria somente no dia seguinte. O Senador antecipou para
ficar longe de mim.
Evitei qualquer intimidade com Carter naqueles dias. Parecia
errado continuar uma amizade quando ele queria, talvez, mais do
que isso.
Mergulhei fundo no trabalho. E os dias seguintes se passavam
lentos e sem maiores novidades. Na quinta-feira, no final do
expediente, fui surpreendida no meu e-mail de alerta por uma
notícia que caiu mal em meu estômago. Uma matéria de capa do
NYT mostrando a imagem de Derek saindo de um restaurante
movimentado em Chicago, acompanhado de Florença Firenze, a
megamodelo que também era filantropa.
Um casal belíssimo, segundo o jornalista que assinava a
matéria. Florença tinha uma ótima reputação por ser
ecologicamente consciente e preocupar-se com o meio ambiente. E
ele, bem, Derek era amado pelo eleitorado. “O Superman da
política”, como costumavam dizer, não só pela aparência, como
pelos projetos pró-povo.
Odiei o casal e fechei a tela imediatamente. Nem a caminhada
ajudou a tirar aquela sensação de ciúmes do meu peito. Entrei no
gabinete no dia seguinte determinada a não me deixar mais atingir
por sentimentos pessoais em relação ao meu chefe. Era errado. Eu
deveria ser mais profissional do que isso.
Encontrei Carter no caminho para minha sala.
— Advinha só, Cherry — brincou ele, apontando para si —
Finalmente terminei a pós, e não aceito não como resposta.
Ri do seu jeito engraçado. Ele era tão leve. Era tão fácil
conversar com Carter.
— Não aceita não para quê?
— Um happy hour depois do expediente, lá no Thunder — o pub
que ficava no quarteirão — Todo mundo vai, então...
— Também vou — sorri. Estava precisando mesmo disso. De
começar a ter uma vida social, confraternizar mais com meus
colegas.
Passei o dia concentrada no trabalho, sem nenhuma informação
sobre meu chefe. Em sua agenda constava um compromisso para
sábado à noite no Partido, então sabia que voltaria de Chicago em
breve.
Só não esperava dar de cara com ele quando Carter e eu
saíamos para a rua. Carter com a mão apoiada em minha coluna,
enquanto passávamos pela porta de vidro. Derek escolhendo esse
momento para sair do banco de trás do carro preto, com Iron no
volante.
O olhar de meu chefe foi rápido e preciso, como o de uma
águia, para a mão que meu colega mantinha em mim. Vi sua
mandíbula apertar. De queixo erguido, com uma calma que
impressionou, ele caminhou em nossa direção, fechando o botão do
blazer.
Aparência impecável. Lindo como sempre. Meu peito doeu.
— Williams — cumprimentou com a cabeça. E então me olhou
— Contreras.
Quase desintegrei com a frieza em sua voz. Em seu rosto.
— Ah, olá, Senador — alheio, Carter o saudou, animado —
Cherry e eu estamos indo esticar um pouco a noite.
Até eu sabia que aquilo soou de um jeito errado.
Derek levantou as sobrancelhas e meneou a cabeça, como se
indagasse “é mesmo?”, sem o menor humor.
— Lamento estragar a noite de vocês, Williams, mas preciso
que a senhorita Contreras me acompanhe.
Meu coração deu aquela guinada rápida e violenta.
Ele soava tão calmo. Tão impassível. Então por que seus olhos
faiscavam com algo que parecia capaz de me partir ao meio?
Não criei caso ao acompanhá-lo para cima. No elevador, o
silêncio entre nós estava quase cortante, de tão tenso.
Até que foi ele a quebrar isso:
— Esticar a noite — falou em voz alta como se testasse o som.
— Ele está comemorando o fim da especialização — me atrevi a
justificar, baixo.
— Por isso aceitou esticar a noite.
O que ele pretendia, afinal? Me provocar, me confrontar, me
punir? Depois de dias longe, de ficar se exibindo com aquela
modelo por aí.
— Aceitei — ergui a cabeça, sustentando seu olhar intenso —
Espero que isso não me renda outra surra, Senador.
Sobrancelhas poderosas se uniram.
— Está irritada porque interrompi sua noite, Srta. Contreras? —
apesar da provocação, pude enxergar todos os sinais de sua
tensão. Ombros largos rígidos, narinas dilatas, punhos cerrados.
— Não estou irritada.
Cortando o espaço entre nós com um passo, Derek aproximou
sua boca de minha orelha com discrição:
— Não é o que está parecendo, Cherry — falou “Cherry” como
uma imitação de Carter. Ele não gostou que meu colega usasse
meu primeiro nome daquele jeito.
E ele tinha razão, eu estava mesmo irritada. Mas não pelo
motivo que dizia. Estava irritada porque ficar esses dias longe me
fez sentir todo tipo de sentimento: culpa, ansiedade, saudade,
frustração, arrependimento. Já Derek parecia apenas... ele mesmo.
Indiferente ao que fizemos.
Somente para que também sentisse um pouco do que eu sentia,
resolvi rebater:
— E você, Senador, me parece estar com ciúmes.
Não fiquei para ver a reação que a acusação provocou. O
elevador chegou ao andar e desci. Não gostava de elevadores, por
isso só usava as escadas. Mas pegar elevador com Derek, seu
cheiro, sua presença, era ainda pior.
Atravessei o gabinete em direção à sua sala, ouvindo os passos
de meu chefe atrás de mim.
Diante da porta do escritório dele, parei.
— Entre — exigiu, sério.
Entrei. Ele veio atrás.
Ao fechar a porta, Derek me encurralou contra a parede.
— Não quero que dê intimidade ao garoto.
Meu coração disparou mais forte. Respirando por entre os
lábios semiabertos, desafiei:
— Todos daqui já estão no pub da rua para comemorar. Não o vi
proibindo qualquer outro funcionário.
— Não me importo com o que fazem fora do horário de trabalho,
Contreras — ele estava tão em mim, que sua perna praticamente se
colocou entre as minhas. Será que sentia a pulsação louca lá
embaixo.
— Mas importa-se com o que eu faço? — levantei o queixo.
Frente e frente com a intensidade de seu olhar escuro.
Depois de um momento inteiro sustentando seus olhos furiosos,
li a resposta em sua boca firme.
— Importo.
Engoli em seco.
Coração a mil dentro do peito.
— Para alguém que andou ocupado em Chicago, me parece
meio injusto.
Foi a sua vez de acusar com acidez.
— Com ciúmes, Contreras?
Sim.
— Não. Só não gosto de disparidades.
— Disparidades — repetiu, me provocando.
— Não deveria se importar com o que faço com meu tempo
livre, quando claramente eu não o incomodo por sair com suas
amigas por aí.
— Não tenho amigas — corrigiu, perto demais.
— Amantes, então.
Ele não rebateu. E foi isso, a confirmação, o que me fez querer
atacá-lo, para que, nem que fosse minimamente, também sentisse
essa coisa feia apertando a garganta com a ideia de ele na cama
com alguém.
— Quem você leva para a cama não é da minha conta, assim
como quem eu levo para a minha — minha declaração o enfureceu
de verdade. Vi o exato momento em que suas pupilas dilataram. Os
dentes se fecharam em um aperto duro.
— Você se deitou com ele?
Não respondi. E evitei seu olhar mudando a direção dos meus
para o teto.
Derek segurou meu queixo com força, embora sem me
machucar.
— Responda, Contreras. Você se deitou com ele?
— Não... — orgulhosa, e para não prejudicar Carter com uma
mentira, acrescentei: — Não com ele.
— Com quem?
— Não é da sua conta.
— Com quem, Cherry? — roçou a boca em meu pescoço me
arrepiando inteira — Quem a comeu depois que devorei essa sua
bocetinha provocadora?
Senti o cheiro do uísque. Quase sutil demais, mas estava lá.
Derek havia bebido. E estava furioso. Furioso comigo e consigo
próprio por perder o controle. De sua boca, de sua mente. De seu
corpo.
Seu pênis estava duro, imenso dentro da calça costurada sob
medida. Foi impossível não mover meu quadril um pouco para frente
e me roçar nele. De leve. Querendo matar aquela coceira, aquela
ardência, que estava começando a consumir meu corpo. Tesão era
algo doloroso demais.
— Putinha — segurando meu queixo, acusou, rouco, grave,
consternado.
Meu chefe estava atraído por mim, e isso o contrariava.
Empurrei mais. Queria sentir, mesmo sob as roupas, o calor, a
dureza. Derek baixou o olhar entre nós, para onde eu me roçava
nele como a putinha que me acusava de ser. Subiu então para a
marca que meus mamilos entumecidos faziam dentro do sutiã de
renda, sob a camisa de cetim.
— Você não passa de uma putinha, não é, Contreras? Uma
coisinha que veio para me tentar, para me deixar maluco.
— Se sou uma putinha, você é um puto também, Senador —
acusei, queimando com essa coisa visceral entre nós. Ciúmes e
desejo.
Encarando-me, me desafiando a pará-lo, Derek fez o
impensável. Retirou devagar minha camisa de dentro da saia e a
subiu. Na altura do peito, agarrou meu sutiã creme e também o
suspendeu, libertando meu seio por baixo dele.
Levou todo o esforço para manter meus olhos abertos enquanto
ele descia a boca até o mamilo, sem deixar de me encarar. Foi
surreal ser chupada por ele. Surreal. Poderia muito bem gozar só
com isso.
Com aquela mão grande e forte, Derek amassou meu outro
seio. Judiando. Sugava, chupava, apertava. Uma tortura. Arqueei a
coluna para trás. Para meu terror. E meu completo prazer, ele caiu
de joelhos aos meus pés.
— O quê?
— Quero provar sua bocetinha, Contreras — minha saia foi
levantada para o quadril. Eu o ajudei, tremendo, ansiosa.
Derek agarrou minha coxa e a montou sobre seu ombro. Temi
cair. Mas ele me manteve segura no lugar.
Roçou o nariz por minha calcinha, fungou.
— Estou passando de todos os limites com você, garota — e
para alguém tão ético, sempre com a reputação impecável, eu sabia
que aquilo era o fim — Mas só penso no seu maldito cheiro.
Derek era mestre naquela arte. Em encontrar o ponto extremo
de prazer de uma mulher. De lamber com vontade, sugar, friccionar.
Eu me contorcia alucinada. Agarrada a uma mecha de seus
cabelos, gemia incoerente.
— Tão sensível — debochou, torturando meu clitóris.
Enlouqueci quando um dedo me invadiu.
Entrava e saía.
Lambia.
Chupava.
Entrava. Saía.
Mordi a boca para não urrar de prazer. Só conseguia ser
consumida por aquilo, aquela onda elétrica de alta potência vindo de
todos os lugares.
Eu morreria de prazer.
Gozei forte, gritando baixinho.
Não me dei muito conta de como Derek se levantou ainda me
sustentando no lugar. Não vi o momento em que abriu o zíper, mas,
fascinada e enevoada, assisti os movimentos de seu punho em
torno do pau grande e grosso, lindo demais. Ele estava se
masturbando motivado pelo prazer indescritível que ainda percorria
meu corpo.
Jatos atingiram minha coxa quando gozou gemendo um som
gutural.
Quando seu gozo estava chegando ao fim, Derek encostou a
testa sobre a minha, ofegante.
— Você me tenta, Contreras. Não sai dos meus pensamentos.
Isso precisa parar.
— É verdade o que estão dizendo? — espantada, Jessy deixou
a bandeja com xícaras vazias no balcão ao meu lado, os cachos de
sua cabeleira loira caindo ao redor do rosto jovem e
extravagantemente maquiado. Minha colega de trabalho tinha
inclinação para a cor rosa em tudo, incluindo roupas, sapatos,
batons, sombras, carro...
— Eu poderia responder se tivesse trazido minha bola de cristal
— fingi me concentrar em fechar a conta do Sr. Hopper da loja de
ferragens, rabiscando a comanda em minhas mãos. Claro que sabia
do que ela estava falando. Do que a cidade inteira estava falando.
— Duas palavras — Jessy levantou dois dedos de unhas
compridas pintadas do rosa mais chamativo que havia à venda na
loja de cosméticos da rua — Senador. Bonitão.
Respirei fundo e finalmente a encarei.
— É possível.
— Nãooooo.
Dei de ombros e tentei me afastar para voltar à mesa do Sr.
Hopper.
— Você está brincando! — ela entrou na minha frente,
impedindo que eu continuasse, e sussurrou do modo “Jessy de
sussurrar”. Escandalosa e admirada. — Tá dizendo que a Abbi é
mesmo filha daquele gostoso, como estão falando pela cidade?!
Cherry! Por que bulhufas você nunca me contou!
— Você nunca perguntou — tentei contorná-la.
— Não, não, não, senhora. Não me venha com evasivas.
Como uma boa texana do interior, ela mantinha o típico sotaque
carregado do Sul.
— Não estou com evasivas. Agora, preciso mesmo levar a conta
ao Sr. Hopper, Jess — apontei por cima de seu ombro, onde o
homem sisudo segurava o chapéu no peito, impaciente — Ele já
está me olhando de cara feia.
Virando-se brevemente para conferir, Jessy descartou:
— Aquela é a cara normal dele — voltou-se para mim — Não
tente fugir de me contar todos os detalhes! Até os mais sórdidos:
como, por que, quando, de que jeito, quem estava por cima e tudo o
mais.
Não conseguindo evitar um suspiro, admiti a derrota:
— Contarei depois de levar isso — acenei a comanda diante de
seu rosto.
— Sério, não acredito que nunca me disse uma coisa destas.
Mas finalmente me liberou.
Desejei ter contado antes, para ela, para Eva, Willie, Charles.
No entanto, era complicado. Quanto mais tempo você guarda um
segredo, mais difícil fica contar, principalmente envolvendo o nome
de um homem tão poderoso.
Desejei também que Jessy fosse a única a ouvir sobre essa
história, mas depois que Derek foi à reunião e se apresentou como
pai de Abbi, Marble Falls inteira parecia ter conhecimento do fato.
Notei isso tão logo coloquei meus pés no trabalho. Coincidência ou
não, a lanchonete estava mais cheia do que o comum para um dia
de semana.
As notícias corriam rápido por aqui, eram como fogo em um
pavio encharcado de gasolina.
E essa rapidez me fez ter consciência de que o tempo não
estava a meu favor, se eu não tomasse cuidado, se não fizesse
nada, logo chegaria aos ouvidos de Abbi. Nem podia suportar o
pensamento de ela descobrir daquela maneira.
— Meu bem, posso fazer meu pedido? — enquanto eu
guardava a nota de dez dólares do Sr. Hopper no bolso frontal do
avental, uma voz amável chamou atrás de mim.
Não foi bem uma surpresa encontrar Rita Johnson em uma das
mesas da Popeye Pot Pie, embora, como consumidora, sua
presença fosse rara na lanchonete.
— Como vai, Sra. Johnson?
— Ah, Cherry, é você!
Desconsiderando que a única outra funcionária era a Jessy, e
essa era absolutamente loira, sua surpresa foi quase convincente.
Ajudou o fato de tirar os óculos do rosto e limpá-los.
— O que vai ser hoje? — devolvendo o sorriso amigável, puxei
a comanda.
— Hm, acho que uma torta de carne cairia bem — bateu o dedo
enrugado no queixo — Se bem que uma torta doce cairia melhor. O
que sugere, meu bem?
— Temos uma torta de maçã recém-saída do forno.
— Ah, Charles tem mãos de anjo para tortas de maçã. Adorei a
sugestão! E café, por favor... Cherry, meu bem...? — antes que eu
me virasse, ela me deteve, melodiosa — Estão comentando que
temos um visitante ilustre em Marble Falls; você sabe alguma coisa
sobre isso?
Que mulher terrível. Mais de sessenta anos e os olhos ainda
brilhavam com uma boa fofoca.
— Ainda não, Sra. Johnson, mas aposto que daqui a pouco a
notícia chega por aqui. Com licença, por favor. Volto com seu café
em dois minutos.
Cada passo para longe dela, eu me tornava mais consciente
dos olhares em mim. De todos os lados. O que fez meu rosto
aquecer com força. Atenção nunca foi o meu forte. E tinha Jessy,
que me esperava com um sorriso de Gato Risonho, enorme.
— E então?
Inspirei.
— Ele é o pai da Abbi.
— Como?!
Tirei a jarra de café da cafeteira.
— Da maneira convencional, eu suponho.
— Engraçadinha. Quando?
— Há quase sete anos, se minhas contas estão certas.
Desviei dela para pegar uma xícara limpa.
— Entendi, então quer dizer que você: 1) Conhece aquele
gostoso e 2) já teve um caso com ele. Inacreditável — essa última
parte, ela disse mais para si mesma.
Pela primeira vez, sentindo vontade de sorrir, deixei uma
informação para ela:
— Sou casada com ele, Jess.
Enquanto voltava para a Sra. Johnson levando o café, o som de
choque de minha colega me acompanhou.
Somente meia hora depois, consegui me livrar de todas as
solicitações de xícaras vazias erguidas no ar para me chamar.
Nunca a Popeye Pot Pie serviu tanto café, podia apostar meu
salário nisto.
Tão logo foi possível, fugi para os fundos da lanchonete em
busca de um minuto de paz.
Meus nervos estavam tão tensos que, se esticados,
arrebentariam. Peguei o celular do bolso da calça jeans,
aterrorizada com um pensamento inquietante:
Levou dois toques:
— Eva — a urgência em minha voz fez uma risada rouca, pelos
anos de consumo de tabaco, ressoar baixinho.
— Meu telefone não parou de tocar nas últimas duas horas,
querida, desde que peguei Abbi na escola. Suponho que tenha a ver
com certo político de passagem pela cidade.
Apoiei-me na parede.
— Ela ouviu?
— Não. Mas se não se apressar, algum linguarudo vai acabar
contando em seu lugar.
Fechei os olhos.
Minha amiga mais antiga em Marble Falls indagou cuidadosa.
— Então é verdade?
— É — murmurei — Derek Reynolds, o Senador, é o pai da
minha filha.
Sua pergunta seguinte foi inesperada, e ao mesmo tempo tão
condizente com o que essa mulher significava para mim:
— Vocês estão em perigo? — a seriedade em sua voz reafirmou
que se eu precisasse, Eva e Willie me ajudariam. Que estavam lá
por Abbi, por mim. Eram a família que eu nunca tive.
Ponderei a pergunta. A presença de meu marido significava sim
um perigo, mas não no sentido que Eva se referia. Eu poderia
perder minha filha... ver Abbi ser levada para outro estado.
— Só não suporto a ideia de que ele pode tirar ela de mim, Eva.
— Ele pode?
— Escondi uma filha. Fugi grávida.
— E deve ter tido um bom motivo para isso, querida.
Olhando em retrocesso, eu tinha? Tudo aquilo agora parecia tão
nebuloso, pequeno, perto da grandiosidade de uma vida. Perto de
ter impedido que um elo tão forte quanto o de pai e filha se
formasse. De ter privado Abbi de conviver com Derek. Dos Dias dos
Pais que não tiveram, os Natais, aniversários, férias de verão. Os
primeiros passos. O primeiro dia no Jardim de Infância. O primeiro
joelho ralado.
Arrependimento. Era a primeira vez que eu conseguia nomear
aquele aperto no centro do meu peito desde que vi os dois juntos
naquele restaurante. Santo Deus... o que foi que eu tinha feito?
— Ainda está aí, querida?
— Acho que cometi um grande erro, Eva...
Ela estalou a língua suavemente.
— Não há erro que não possa ser consertado, Cherry. Acredite
quando uma velha lhe diz isto.
Como queria poder me acalentar com isso.
— Nenhum juiz me dará razão — dor cortava minha garganta
em pronunciar as palavras que eu sabia serem verdadeiras. Que
Derek também sabia — Vou perder minha filha.
Eva bufou como uma avó.
— Só se esses juízes forem loucos. Você é a melhor mãe que
conheço, querida. Nunca vi uma tão boa. Testemunhas não faltam
para isso. Você tem uma cidade inteira a seu favor.
E ele tinha um país. O Senador mais amado dos Estados
Unidos. A principal aposta para a presidência, pelo que os jornais
diziam.
— Não demore a contar para nossa garotinha, Cherry. Abbi é
esperta, vai saber entender — Eva aconselhou antes de
desligarmos.
— Contarei... farei isso ainda hoje.
E não tinha o direito de fazer sozinha. Por isso, com as mãos
trêmulas, disquei para o número que eu sabia de cor. Mesmo que
quase sete anos tivessem se passado.
Meu marido atendeu como se esperasse a chamada. As
palavras baixas e suaves em meu ouvido:
— Olá, Cherry.
Resisti à vontade de desligar. Engoli em seco. Não poderia ser
normal ainda me sentir daquele jeito por ele.
— Vou contar a ela esta noite — empurrei para fora do meu
peito, antes que eu me acovardasse.
Silêncio. Meu peito galopou como louco.
— Quero estar lá — exigiu, a voz rouca.
— Foi o que imaginei... por isso estou ligando — confessei.
Silêncio.
— Mas quero que seja do meu jeito.
— Mentindo? — alfinetou com uma acidez quase cálida.
— Não quero falar do passado... de como... tudo aconteceu —
era a minha condição.
Sua risada cínica me deu uma imagem exata de como seu rosto
estava no momento. O músculo que certamente saltava em sua
mandíbula, por isso me preparei para o que vinha:
— Não quer contar à nossa filha como você fugiu no meio da
noite como uma covarde, Cherry? De como não ficou para lidar com
a bagunça e optou pelo caminho mais fácil?
— Não foi o mais fácil!
— Foi, e sabe disso. Apenas admita para si mesma.
Encarei meus tênis, lágrimas nos olhos que eu não queria ter.
— É passado.
— Nunca será passado, Cherry — a dureza em seu timbre
arrastou um calafrio de medo ao meu corpo. Derek não me
perdoaria, jamais perdoaria, é o que suas palavras significavam.
Inspirei devagar.
— Não vou deixar que a tire de mim, Derek.
— Não está em seu poder decidir isso, esposa.
Foi ele a desligar, deixando a certeza de sua decisão fixada no
vazio. Ele não mediria esforços para levar minha menina.
Limpei uma lágrima que insistiu em cair. A seguinte também. Eu
ainda tinha uma opção. Poderia fazer exatamente aquilo que fui
acusada por ele. Fugir. Novas identidades. Talvez outro país. Outra
vida.
— Imagino que você escondida aqui, confirma o burburinho lá
dentro... — alguém disse com suavidade.
Virei na direção da porta dos fundos aberta. Charles,
proprietário da Popeye Pot Pie, e meu chefe. O olhar inteligente e
sereno buscando meu rosto.
— Desculpe, precisei vir respirar um pouco — disfarcei as
lágrimas, limpando-as com o punho, enquanto sorri de volta, me
preparando para entrar outra vez.
— Fique — ele se juntou a mim na parede, calmo, observando o
céu azul — Acho que o Popeye nunca viu tanta gente junta —
brincou.
— Isso quer dizer que aumentará meu salário, por atrair o
público para cá com uma fofoca escandalosa? — brinquei de volta,
fungando.
Charles sorriu. Ou melhor, seus olhos castanhos sorriram. Era
um cara reservado, mas com senso de humor leve do tipo que era
fácil conviver. Apesar das reclamações de Jessy quanto a ele se
recusar a mudar o cardápio, que vinha sendo o mesmo há mais de
três décadas, quando a lanchonete ainda pertencia aos seus pais,
mesmo ela concordava que ele era o melhor chefe que poderíamos
querer. E, principalmente, Charles era um homem bom. Honesto,
decente. Atencioso com minha filha, quando eu precisava trazer ela
ao trabalho. Foi quem ensinou Abbi a andar de bicicleta.
Curioso que em uma cidade tão pequena, e com uma
população de mulheres solteiras tão grande, ele ainda estivesse
solteiro aos trinta anos.
Ele gosta de você, querida, a afirmação recorrente de Eva
ecoou em minha mente.
Olhando para ele, aqui fora comigo, eu poderia ter me
apaixonado por Charles. Poderia ter vivido uma nova história de
amor. Ter sido feliz com outra pessoa... se meu coração já não
estivesse ocupado, mesmo que eu não desejasse aquele
sentimento.
Afastei depressa o pensamento. Não precisava de mais essa
culpa, a de ter negligenciado meu coração, nesse momento.
— Boa tentativa — brincou.
Sorri.
Charles observou o movimento de uma revoada de pássaros no
céu.
— Um senador republicano. Devo dizer que estou
decepcionado.
Estreitei os olhos.
— Nunca a imaginei republicana — esclareceu, zombeteiro,
apesar de reservado.
Bati de leve em seu braço, Charles era alto, não tanto quanto
Derek, mas era. Nosso olhar se encontrou.
Inspirei profundamente e me vi desabafando:
— Ele não sabia que eu estava grávida quando terminamos. Eu
também não, na verdade. Descobri aqui, em Marble Falls. Já estava
com quase sete meses. Minha barriga quase não cresceu e eu...
bem, também não ajudou o fato de eu estar meio deprimida e me
alimentar mal naquela época.
— Sinto muito.
— Não tive coragem de procurar Derek, quando eu soube. E
sabe o que é o pior? — desviei o olhar para meus tênis — Hoje não
consigo compreender por que a escondi.
Ouvir saindo de minha boca uma verdade tão cristalina quanto
aquela foi tanto um choque quanto uma decepção. Porque, quando
eu olhava para trás, agora, não conseguia encontrar mais os
motivos que sustentaram minha decisão esses anos todos. Parecia
pouco, eu parecia errada de um jeito grave, de um jeito que não
dava para corrigir.
A garota jovem e inexperiente de vinte e um anos, desnorteada,
sozinha no mundo, fez mesmo a escolha certa?
— Abbi vai me odiar quanto tiver entendimento — e essa era a
parte que mais doía. Fiz o que fiz achando que estava protegendo
minha filha, quando na verdade, só estava tirando dela um direito
natural.
Lágrimas grossas, que eu ainda não havia derrubado, verteram
com força.
— Ela vai me odiar, Charles.
Charles passou o braço por cima de meu ombro e me puxou
para seu peito.
— Aquela garotinha não é capaz de odiar nem os corvos que
ameaçam as abóboras dela, Cherry.
Ri e funguei, tudo ao mesmo tempo.
— Minha garotinha é incrível, não é.
— É, e nisto puxou totalmente a você — afirmou, apoiando o
queixo no alto de minha cabeça.
Somente alguns minutos depois, recostada em seu peito, me
permiti perceber que era bom estar naquele abraço. Me permiti
refletir sobre há quanto tempo eu não era abraçada por alguém.
Eu me sentia sozinha, a verdade era essa.
Apesar de Eva e Willie, a quem considerava família, eu me
sentia extremamente sozinha.
Não que fosse um sentimento novo. Crianças órfãs são
apresentadas à solidão desde sempre. Mas o problema é que, por
algum tempo, no passado, esse lugar começou a ser preenchido. E
foi bom. Foi muito bom ter um vislumbre de como era não se sentir
tão só.
Só que então tudo ruiu. E quando ruiu, ficou esse... esse vazio.
Como uma ferida aberta.
Uma que eu permiti estar ali.
Permiti por tempo demais.
Mas que tinha de mudar.
Derek nunca mais preencheria esse espaço novamente, ele
vinha deixando isso claro. E não era justo comigo mesma, essa
solidão, essa sensação de um buraco no peito.
Era hora de parar de ignorar minhas necessidades, de parar de
fugir e começar a viver de verdade.
Eu sabia qual era o primeiro passo: depois de contar a verdade
para minha filha, tentar entrar em um acordo com o pai dela.
Naquela noite, sem mais adiamento.
E o segundo, admitir que eu era uma mulher, além de mãe.
Que eu queria ser amada.
Merecia ser.
— Charles eu...
Observei o movimento de sua garganta, o pomo-de-Adão subir
e descer. Os olhos ganharem mais foco pela proximidade tão inédita
entre nós.
— Sim?
Também engoli com dificuldade.
Eu podia fazer isto.
O amor que eu sentia por Derek Reynolds desde quando eu
ainda era uma estagiária em seu gabinete, torcendo por um
encontro furtivo, um olhar mais demorado, um vislumbre dele,
precisava morrer.
Era hora de parar de achar que eu só merecia as migalhas
deixadas no caminho.
— Se aquele convite para o cinema ainda estiver de pé, eu
aceito. Um dia. Quando você puder.
Quando me disse que aquilo, entre nós, precisava parar, Derek
não estava brincando. Ele não dava abertura para estarmos
sozinhos. Costumava sair do escritório antes de mim e continuar o
trabalho de casa. Passou a ter o dobro de compromissos no
Congresso e em reuniões. Quando minha presença era solicitada,
nunca era sozinha. Mônica, chefe de gabinete, sempre estava com
a gente, embora não parecesse saber o que havia acontecido entre
o Senador e eu.
Nas reuniões, me ouvia com seriedade e profissionalismo.
Respeitava minhas sugestões, mas se mantinha emocionalmente
distante. Nem de longe era o mesmo homem passional que me deu
prazer contra a parede, e sobre sua mesa. E foi assim até uma
terça-feira à noite, quando Mônica me ligou no que cheguei em meu
apartamento, depois do trabalho.
Derek e ela tinham um jantar com integrantes do setor que
representava os interesses das empresas de tecnologia do Vale do
Silício, no projeto que entraria em votação na próxima semana, o
qual eu também vinha trabalhando.
Naquela noite, o filho de minha chefe não estava bem. Ela
precisava de alguém que a substituísse no compromisso com
Derek.
Eu estava totalmente por dentro do projeto. Ajudei em cada
linha redigida. Sabia tudo o que era preciso saber.
— Ah, claro, tudo bem... mas... o Senador sabe que vou em seu
lugar?
— Avisarei a ele, Cherry, não se preocupe. Agora realmente
preciso desligar.
— Tudo bem, melhoras para o Chris.
— E ah, antes que eu me esqueça, vou mandar um carro aí
apanhar você às nove, tudo bem? Obrigada, novamente!
Uma hora, eu tinha pouco mais de meia hora para me arrumar.
Corri para o banho. De toalha, sequei e escovei o melhor que
pude meu cabelo, e dei uma enganada com um babyliss de
segunda mão. Não tinha o hábito de me maquiar, além de batom e
rímel, mas tentei fazer algo mais caprichado, apesar de ainda
discreto. Na boca, escolhi meu Cereja Matte. Vesti a calcinha de
renda preta. O vestido tubinho preto abaixo dos joelhos, que ainda
estava com a etiqueta de quando comprei em uma ótima promoção
na Zara, com meu último pagamento, e meus novos saltos
Louboutin preto verniz, um presente que dei a mim mesma.
Esborrifei meu perfume no colo e nuca para finalizar.
Elegante e bonita, foi exatamente como me senti ao conferir o
resultado no espelho. Não estava nada vulgar, mas ao mesmo
tempo era uma versão minha mais feminina e jovem do que as saias
lápis e camisas que eu usava no dia a dia.
A verdade é que, apesar de ser um evento com muitas figuras
importantes, havia apenas uma que eu queria impressionar.
O interfone tocou às 21h em ponto.
Ao descer, para minha surpresa, foi Iron que encontrei parado
na frente de meu prédio.
— Srta. Contreras.
— Olá, Iron — passei pela porta aberta que me ofereceu.
Foi um choque e tanto perceber que o interior não estava vazio.
— Senhor — cumprimentei despreparada, quase congelada na
porta.
— Srta. Contreras — Derek retribuiu a cordialidade, só que foi o
olhar que me percorreu inteira, que me fez ver que aquela
indiferença era uma fraude.
Ele também não estava preparado para me ver, pelo menos não
sozinhos desse jeito.
— Com licença — me sentei do outro lado, de frente para ele.
As pernas unidas voltadas ligeiramente para o lado. Era a maior
distância física que eu conseguia ter em relação ao pouco espaço.
— Sinto muito pela Mônica não poder ir essa noite — falei
apenas para ter o que dizer, depois do longo silêncio quase
incômodo demais. E não me contive: — Há imprevistos que não
podem ser evitados.
Era uma alfinetada para nosso primeiro contato, quando me
rechaçou com seu olhar superior, por eu ter me atrasado para o meu
primeiro dia no trabalho.
A verdade é que eu queria mesmo era mexer com ele,
desestabilizá-lo. Odiava esse seu autocontrole, a impassibilidade
com que vinha me tratando.
— Estou bem com a mudança, Contreras — foi cordial, porém
não me olhou. Encarou a paisagem começando a se mover lá fora.
— Há alguma instrução que queira me passar, senhor? Algo
que eu deva fazer neste jantar?
Inspirando profundamente, a ponto de as narinas dilatarem
levemente, seu olhar escuro capturou o meu.
— Você é, provavelmente, quem mais conhece do projeto,
Cherry. As pessoas vão querer falar sobre ele, debater. Mas acredite
em mim quando digo que jantares assim nunca são exclusivamente
para falar sobre política — Derek massageou a testa, como se
doesse — Principalmente quando a virem.
Essa última parte foi um grunhido baixo demais.
Apertei os lábios com discrição, para não sorrir. Ele ainda sentia
alguma coisa, mesmo que fosse somente possessividade.
— Está certo — fingi uma seriedade que eu não sentia. Pelo
contrário, meu coração batia feito louco por absorver seu cheiro, por
estar tão perto outra vez — Farei o meu melhor, senhor.
Se notou a proposital submissão em minha voz, não fez
qualquer comentário. Sua mandíbula, no entanto, estava travada.
O jantar acontecia no salão do hotel Waldorf Astoria. O lugar
estava decorado com elegância para receber figuras importantes da
tecnologia e política. Conversas e música clássica de fundo podiam
ser ouvidas da recepção, conforme adentrávamos.
Senti, de repente, uma mão apoiada na base de minha coluna,
alguns passos antes de alcançar a porta do salão. Olhei para cima,
para o rosto impassível de Derek. Não fazia ideia do que estava
pensando, mas podia sentir a tensão entre nós quase cortante.
Representantes da Apple, Google, Microsoft, Dell, Meta, entre
outras big techs, além de grandes especialistas da tecnologia e
política estavam presentes. Derek Reynolds, no entanto, era a
principal figura da noite.
Duas propostas de nosso gabinete prometiam uma mudança
considerável no setor: a regulamentação de geração de
investimentos pela Lei das Startups e outra, mais espinhosa: a
criação de uma agência de privacidade, para dar ao cidadão
americano mais controle e consentimento sobre os dados coletados.
Derek tinha a maioria para aprovar a lei em seu partido. No
Congresso, mesmo opositores concordavam que uma
regulamentadora para as duas pautas era necessária e urgente. O
problema é que ainda havia divergências. Era imperativo que se
chegasse a um consenso.
Na teoria, esse era o objetivo da noite... embora o clima de festa
se sobressaísse.
Caminhamos para onde um grupo de políticos estavam
reunidos. Logo chamamos a atenção:
— Vejam, se não é o Homem do Ano! — Donald McCarthy,
Senador republicano pela Carolina do Norte, abriu os braços
exageradamente, saudando Derek.
— Senhores — discreto, meu chefe acenou com a cabeça para
cada membro ali.
— E quem é essa preciosidade? — McCarthy indagou em tom
lisonjeiro apontando para mim com olhos gananciosos.
— Srta. Contreras, Assessora Legislativa do meu gabinete.
— Hm, um tanto jovem para tal cargo, não? — havia algo de
malicioso na questão.
Imperturbável, Derek pôs a mão livre dentro do bolso da calça
do terno perfeito em seu corpo. Ele estava lindo essa noite, apesar
de não ser novidade.
— A Srta. Contreras foi a primeira de sua turma na NYU,
McCarthy. Formou-se com honras e levou uma bolsa para
especialização em Ciência Política. É a responsável pela maior
parte da pesquisa que embasou o projeto que o senhor está
apoiando.
Evitei transparecer o choque e prazer por saber que meu chefe
tinha esse tipo de conhecimento sobre minha formação. E,
principalmente, que estava me defendendo com tanta propriedade.
— Claro, claro. Os jovens tendem a surpreender, Reynolds —
voltando-se para mim, o homem detestável inclinou-se num
galanteio — Acompanha-me em uma bebida, Srta. Contreras. Quero
dizer, tem idade legal para beber, não é?
A mão forte e possessiva que ainda estava em minha coluna,
colocou um pouco mais de pressão. Talvez me exigindo que
negasse.
— Tenho sim, Senador.
Vinte e um anos completos há menos de uma semana, em um
aniversário solitário em meu apartamento, como ocorria todos os
anos.
— Então venha comigo, minha cara — McCarthy me ofereceu
seu braço de maneira que não pude recusar — Será um prazer ser
visto com uma joia tão linda quanto a senhorita.
O Senador McCarthy não foi o único a requisitar minha atenção.
A cada passo, uma nova figura se aproximava com o objetivo,
inicialmente, de falar sobre a proposta de lei de meu chefe. Em
seguida, o assunto se direcionava para a minha idade, e então
tomava um rumo pessoal, de um flerte indesejável.
Estava ficando exaustivo sorrir e ser educada com todo homem
que se sentia no direito de me oferecer o braço ou uma bebida.
Meus pés estavam doendo dentro dos sapatos novos. A
cabeça, começando a latejar pelo barulho.
Derek não parecia menos desconfortável. Volta e meia pegava
seu olhar de águia em mim, embora ele nunca estivesse sozinho.
Certamente era o homem mais disputado da noite.
Mal trocamos uma palavra desde que chegamos, mas sentia
sua atenção como um toque físico em minha pele, mesmo à
distância. Quando finalmente nos sentamos em torno da imensa
mesa oval para o jantar, obtive sua primeira frase inteira:
— Gostando da atenção?
Olhei bem para ele. Para o rosto calmo. Apesar dos ombros
rígidos e maxilar tenso.
Era uma pergunta bem capciosa.
— Devo gostar? — devolvi baixo e discreta.
Olhos flamejantes se semicerraram, fitando os meus
intensamente pela provocação.
Fui incapaz de sustentar por muito tempo.
Se eu continuasse olhando para ele, exigiria saber por que
vinha me evitando tanto. Se não sentia essa coisa pulsando entre
nós o tempo todo.
Foquei na taça em minha frente, sendo preenchida de
espumante pelo garçom.
— Com apenas uma foto é possível saber quem é cada uma
destas pessoas — disse alguém ao meu lado — Mas não você.
— Desculpe...? — girei o rosto para o homem sentado ao meu
lado esquerdo. Jovem, por volta dos vinte e oito, no máximo, olhos
cinzas, cabelos no mesmo tom claro de castanho do meu. E uma
gravata borboleta de bolinhas, o que me dizia logo que não era
ninguém da política.
— Você não tem uma rede social — afirmou ele, no que talvez
fosse um flerte.
Impressionada por sua ousadia, indaguei:
— Devo perguntar como sabe?
— Se perguntar, terei de admitir que a pesquisei, e talvez não
goste de saber que precisei mirar a câmera do meu celular em seu
rosto, enquanto você tentava se livrar da atenção daquele senador
babão.
— Fez mesmo isso? Tirou uma foto minha sem autorização —
apesar de invasivo, havia um quê de interessante na coragem da
confissão.
O desconhecido sorriu.
— Em minha defesa, nada de fotos. Apenas tentei localizar suas
redes a partir de um enquadramento de seu belo rosto, muito
fotogênico a propósito. Ah, acho que não me apresentei: Sou John
Matt, da Meta.
— Cherry Contreras, Assessora do Senador Reynolds — me
apresentei também, embora não tenhamos dados as mãos, já que
estávamos sentados lado a lado.
— Sei seu nome. Ouvi pelo menos três pessoas perguntando
sobre a senhorita — brincou ele.
Tive de rir.
— Então você é um stalker credenciado pela Meta? —
provoquei.
John levou a mão ao peito.
— Uau, um golpe certeiro. Gostei.
Sacudi a cabeça, sorrindo. Voltei meu rosto para Derek. Sua
atenção agora estava na assessora de um parlamentar, sentada ao
seu lado, que gesticulava com a taça enquanto falava sobre algo
acontecendo na Califórnia. Queimadas, acho que ouvi a palavra.
— Apesar de você não ter rede social, o que deveria ser um
crime... — John voltou a puxar assunto — Pelo que descobri, tem
idade para beber.
— Ouviu aquilo, não é?
— Ouvi. Diria que aquele sujeito não tem meu voto de forma
alguma, embora eu não faça a menor ideia de que estado ele
represente.
— Carolina do Norte — respondi solícita.
— Anotado. Se um dia eu me mudar para lá, lembrarei disto.
Bebi um pouco do espumante.
A vontade de tirar o sapato debaixo da mesa era irresistível
demais. Discretamente, me desfiz de um pé, e depois o outro. Este
último foi mais difícil de tirar e, sem querer, acabou saltando do meu
pé pelo esforço.
— Acho que fui atingido — John arregalou os olhos de maneira
exagerada — Sim, acabo de ser atacado por algo pontudo.
— Schhh — rindo, pedi baixinho que não chamasse a atenção
para o fato — Provavelmente foi meu sapato. Meus pés estão me
matando.
A expressão travessa que surgiu em seu rosto me fez morder o
lábio.
— Seu segredo está a salvo comigo, senhorita Contreras.
— Pode me chamar de Cherry, agora que temos isso em
comum — zombei em voz baixa — E então, costuma fazer isso
sempre? Perseguir as pessoas?
— Na verdade, só aquelas que me interessam, o que é uma
média de uma a cada cinco anos.
— A cada cinco anos, hein — falei cética.
— Temos um código de ética na Meta que proíbe usar o sistema
a nosso favor. Sou, infelizmente, o cara que estabeleceu esse
código.
— E quem foi a sortuda de cinco anos atrás?
— O programa foi criado há quatro anos.
Meu rosto deve ter corado. Gostei do galanteio bobo, de como
estava me sentindo à vontade pela primeira vez na noite.
— Como é? — perguntou.
— Como é o que?
— Trabalhar no meio político. Estar cercada desses caras que,
honestamente, não são meu tipo preferido de gente.
Me afastei ligeiramente para o lado, para que o prato de entrada
fosse servido. Um prato imenso com uma porção ultra pequena de
algo amarelo foi colocado diante de cada um de nós. Então me
voltei para John, para respondê-lo com sinceridade:
— Gosto do que faço. Trabalhar com o Senador Reynolds é
empolgante e desafiador de um jeito bom. Ele é ético, humano,
pensa nas pessoas, preocupa-se com elas.
John assoviou baixinho.
— É a descrição mais curiosa que já vi fazerem sobre um chefe.
Normalmente as pessoas os odeiam.
— Eu o admiro. Quis trabalhar para ele desde quando ainda
estava na universidade.
— Isso é algo legal de se dizer de alguém. Pensa em entrar
para a política, digo concorrer diretamente em algum momento?
Sacudi a cabeça.
— Não tenho essa pretensão. Nem acho que isso seja possível
algum dia. Mas os bastidores me satisfazem.
John me encarou.
— Posso fazer uma pergunta pessoal?
Meu rosto esquentou. Será que ele sacou o que eu sentia pelo
meu chefe? Era o que perguntaria? Estava tão na cara assim?
— Você tem namorado, Cherry?
Inspirei devagar, aliviada por não ser o caso.
— Não. Não tenho.
— Seria muito atrevimento convidá-la para sair?
Não sabia o que dizer. Apesar de estar gostando da conversa,
não tinha qualquer interesse em passar disso com John. Era burrice
minha, eu sei. John era atraente, sabia conversar, não estava
diretamente relacionado com o meu trabalho, e as coisas pareciam
fluir com facilidade entre nós.
Mais importante, eu precisava tirar meu chefe da cabeça, e sair
com alguém poderia ajudar. Mas não conseguia. Minha pequena
obsessão por Derek não permitiria.
— Está pensando em um jeito de me dispensar, não é —
brincou, me ajudando a sair dessa situação — Vamos fazer o
seguinte, continuamos a conversar enquanto comemos esse
delicioso não sei o quê, e no final do jantar você me dá sua
resposta. Aposto que ficará tão louca por mim que decidirá abrir
uma conta no Instagram hoje mesmo.
— Sua autoconfiança é admirável — brinquei de volta, grata
pela fuga.
Comi uma garfada do que logo descobri ser um tipo de purê
salgado de maracujá, bem delicioso por sinal, e, discretamente,
voltei meu olhar para meu chefe, o homem com quem eu deveria
estar conversando desde o início.
Derek continuava dando atenção à mulher ao seu lado, mas
parou por um momento, parecendo sentir que eu o observava.
Devagar girou a cabeça para mim.
Quase perdi o fôlego enfrentando a intensidade em seus olhos.
Era como se, mesmo tendo a própria conversa com a
assessora, tivesse escutado cada palavra entre John e eu. E
desaprovasse.
Pois eu também não estava feliz em estar sendo ignorada por
ele.
Principalmente quando parecia ter tanto assunto com ela. Tanto
em comum com a mulher elegante, provavelmente uns 10 anos
mais velha que eu, e talvez mais interessante também.
Derek era um chamariz para mulheres atraentes e
interessantes, percebi durante toda a noite. Ele combinava com
elas. Mulheres decididas, financeiramente independentes,
sexualmente ativas, que sabiam exatamente como conquistar um
homem. O completo oposto de mim, o que me fazia sentir uma tola
por ousar ter esperança de que aqueles momentos entre meu chefe
e eu pudessem ter qualquer valor para ele. Significassem alguma
coisa.
Magoada com esses pensamentos, me voltei para John, e falei
em voz baixa:
— Eu aceito.
— O quê? — ele pareceu confuso e surpreso.
— Sair com você.
O rosto de John se iluminou. Um sorriso bobo e bonito
atravessou seus lábios.
— É sério? Puxa. Aconteceu rápido. O que foi, meu jeito de
mastigar esse creme amarelo esquisito a conquistou? — deu uma
piscadela insinuante — Espere só até me ver devorando um filé,
Cherry.
Rindo, baixei os cílios, escondendo que visse o real motivo.
— Imagino que seja uma visão encantadora.
— Como faremos? Eu me levanto primeiro, fingindo desconforto
alimentar, e você me segue oferecendo ajuda? — zombeteiro,
apontou com o queixo para o outro lado da mesa — Exceto pelo Sr.
Carolina do Norte cheio de hormônios ali, não acho que qualquer
um notará nossa estratégia.
Quase soltei pelo nariz o espumante que levei à boca. John era
engraçado de verdade. Era um tipo de charme próprio.
— É um bom plano, mas infelizmente sinto que devo ficar até o
final do jantar, pelo menos — cochichei em tom conspiratório,
gostando de brincar com ele — Não cairia bem me levantar agora e
sair. Prezo pelo meu emprego, sabe. Foi bem difícil conseguir a
vaga.
John aproximou-se para sussurrar no meu ouvido.
— Acho que tem razão. Se você visse a cara que o Senador
Reynolds está olhando para a gente agora...
Não me atrevi a conferir.
Nos momentos seguintes, conforme o jantar transcorria, evitei
focar muito na tensão que havia entre Derek e eu, e no fato de ele
dedicar toda a sua atenção à mulher sentada ao seu lado. Procurei
levar a conversa de forma amena com John, trazer o projeto de lei
em questão para o foco, e manter as coisas mais neutras, apesar
das risadas escandalosas e da conversa estridente que acontecia
ao redor de toda a enorme mesa oval. Ninguém parecia se importar
com projetos de lei, Congresso, eleição, nada de assunto sério a
essa altura da noite.
John era espirituoso, tinha um humor fácil e era muito
inteligente. Sabia muito sobre tecnologia, inovação, as demandas
das startups, as tendências da geração atual. Eu poderia ficar horas
conversando com ele. Estava começando a acreditar que havia sido
uma boa ideia aceitar sairmos daqui juntos.
Quando o jantar deu sinais de chegar ao fim, com algumas
pessoas se levantando prontas para voltar ao salão principal e
recomeçar a festa, John me convidou a fazer o mesmo.
De canto de olho, vi que Derek já estava se colocando em pé.
Só que havia um problema.
Tateando com o pé descalço debaixo da mesa, não encontrava
meus sapatos em lugar algum.
— O que foi? — perguntou John, estranhando a concentração
em meu rosto na tarefa de ser discreta em minha busca.
— Meus sapatos. Não consigo encontrar — sussurrei.
— Srta. Contreras? — Derek me surpreendeu, a voz de um
trovão, baixa, rouca, grave bem atrás de mim, obrigando-me a virar
imediatamente para ele. A mulher ao lado já estava com o braço
enroscado no seu.
Odiei a intimidade, a forma como me sentia à vontade com ele.
— Senhor? — falei, esperando uma ordem.
As sobrancelhas grossas do homem poderoso se uniram,
indagador.
— O que há de errado?
Engoli em seco. Cogitei mentir. Só que ele não daria trégua.
Não arredaria o pé sem uma resposta. Já o conhecia bem para
saber. Desviando meus olhos para sua boca, porque não tive
coragem de encará-lo, confessei baixinho:
— Tirei meus sapatos durante o jantar. Estou tentando encontrá-
los debaixo da mesa, é só isso.
De todas as coisas que eu esperava dele, ajoelhar-se ao lado
de minha cadeira não era uma delas.
Sem hesitar, sem pensar duas vezes, o poderoso Senador
Derek Reynolds ajoelhou-se e esticou o braço grande e forte por
debaixo da toalha branca, saindo de lá segundos depois, trazendo o
par de sapatos de verniz consigo. E não parou de surpreender:
segurou um dos pares para que eu o calçasse e depois o outro.
Olhares à nossa volta sondavam a situação com certa
curiosidade. A mulher que o aguardava observava intrigada. John
ficou em silêncio.
Derek então se levantou, com a mesma imponência, como se
calçar sua funcionária não fosse nada de mais. Se ainda fosse
possível, eu me sentia um pouco mais afetada por meu chefe.
— Bem, isso foi legal — falou John, amigável, sem saber o que
dizer — Agora, se não se importar, vou roubar sua assistente,
Senador.
— Eu me importo — o par de olhos escuros não deixou os meus
enquanto declarava — Preciso falar com a Srta. Contreras.
— Certo... — pigarreei, apertando minha clutch de mão —
Claro.
John nos estudou por um instante.
— Vejo você mais tarde, Cherry?
— Hm, sim, claro — virei a pessoa que só sabia responder isso?
— Senhores — com a mão outra vez em minha lombar, Derek
foi sucinto ao passar pela mulher e por John, me guiando para fora
do salão de jantar.
Não perguntei para onde estávamos indo quando ele me levou
para longe do salão onde o clima de festa retornava com ainda mais
animação. Paramos diante dos elevadores.
Tentei questionar Derek quando o encarei por cima do ombro.
Impassível, seu rosto fitava o mostrador de andares sem me dar
qualquer vislumbre do que acontecia em sua mente. Quando o
elevador chegou, me conduziu para dentro sem nunca desconectar
seu toque. Sentia o calor de sua mão mesmo sob o tecido do
vestido. Vi quando apertou o andar da cobertura.

— Tão desesperada, Srta. Contreras?


— Senhor? — sem entender, tentei indagar, a voz rouca pelo
contato, pela presença avassaladora de seu cheiro me cercando.
Notei o tique em sua mandíbula tensa.
Derek parecia estar tendo um grande trabalho em se conter.
Quando finalmente me encarou, podia jurar que vi chamas
salpicadas em suas pupilas:
— Perguntei se está mesmo tão desesperada que precisa
aceitar o convite de um desconhecido qualquer que se senta ao seu
lado em um jantar de trabalho.
Meu queixo caiu. Nem sei o que passou pela minha cabeça. Foi
tão inesperado que não consegui que minha boca se movesse para
rebater a acusação. A abri e fechei. Até que reencontrei minha voz:
— Está tentando dizer... Está insinuando que eu...
As portas se abriram. Sem uma palavra mais, Derek me
conduziu para fora. Retirou um cartão magnético do bolso,
aproximou-se da porta em frente, a destravou esperando que eu
entrasse. Forcei minhas pernas no lugar.
— Não.
— Entre, Srta. Contreras.
— Não — repeti, irritada. Quem ele pensava que era?
— Agora, Cherry — meu chefe também parecia furioso. Uma
fúria fria, que o consumia, enrijecia os músculos de seus ombros, a
mandíbula, o fazia aspirar pequenas quantidades de ar pela boca
semiaberta. Nunca o vi assim.
— Você é um babaca, Senador.
Mas, contrariando o bom senso e a minha dignidade, eu entrei.
Havia algo que eu jamais conseguia administrar quando se tratava
deste homem.
O meu interior era submisso a ele, minha natureza o obedecia
sem pensar.
A cobertura era uma suíte luxuosa. Não fazia ideia que ele tinha
se hospedado aqui, apesar de ter um apartamento na cidade. Só
que não tive tempo de absorver os detalhes. Sem que eu
esperasse, Derek me encurralou na porta. Meu corpo foi aprisionado
contra a madeira, sua mão apoiada acima de minha cabeça.
O véu da impassibilidade se desmanchando em seu rosto,
dando lugar a uma fúria passional.
Amei que esse fosse seu real estado. Amei ver a desordem. A
figura inabalável que o mundo conhecia, não era tão inabalável
assim.

— O que realmente pretende, menina?


— Não sei do que está falando.
— Quer me enlouquecer, é isso? — Derek empurrou seu quadril
contra o meu. Foi delirante notar o tamanho do que pressionava
meu estômago. Eu deveria mesmo ser a putinha que ele havia me
acusado de ser naquele dia, porque, do nada, sentia tanto tesão que
minhas pernas enfraqueceram.
— Ah...
— O que quer de mim, Contreras?
Sem nenhuma vergonha, deixei a clutch cair no chão, me
aproveitei do joelho entre minhas pernas e praticamente montei
suas coxas. Precisava da pressão. Precisava que aquela dor fosse
sanada, porque é isso que o meu tesão significava quando o
assunto era ele, uma dor insaciável e deliciosa. Irritado, Derek
grosseiramente apertou minha boceta, forte, punitivo, por cima da
roupa.
— Ele, eu, qualquer um serve para te dar prazer, é isso?
— Não — me esfreguei contra sua mão — Não qualquer um.
Você.
Como se eu o queimasse, abruptamente meu chefe se afastou
de mim. Apenas o contato íntimo, porque ainda estava bem ali, a
menos do que um palmo de papel de distância.
— Me beija — exigiu.
Sem ar, perturbada, respirando com dificuldade, mergulhei na
escuridão possessiva de seus olhos, imóvel, mal acreditando que
estava mesmo acontecendo.
— Me beija, porra.
Então era isso. O poderoso Senador Derek Reynolds me
desejava. Não importa o quanto tentasse lutar contra, ele me
desejava também.
Era glorioso perceber que eu tinha certo poder na situação. Que
eu não era somente a cadelinha no cio que sonhava com ele até
quando não estava dormindo, enquanto era tratada com polidez e
afastamento civilizado pelo objeto da minha obsessão. Aqui, agora,
era o meu momento de agarrar as rédeas, por menores que fossem.
Nos saltos altos, dei um passo à frente, unindo nossos corpos
outra vez.
Desafiadoramente, subi o queixo para encará-lo.
Um homem grande, poderoso, rígido pela tensão. Lindo.
Perfeitamente lindo. E à minha mercê. Talvez para se eximir da
culpa que sentia por algo que considerava errado. Para se enganar
que eu era a vilã aqui. Talvez apenas porque quisesse saber até
onde eu iria. Mas Derek definitivamente estava à minha mercê
nesse momento.
Quis rir. Se meu chefe estava se permitindo ser meu por um
minuto, eu saberia bem o que fazer com esse tempo. Fiquei nas
pontas dos pés e me imaginei dentro de todas aquelas cenas
quentes dos livros que eu lia secretamente. Em cada ousadia que
eu poderia cometer. Em cada obscenidade. O que eu não tinha de
experiência física, tinha de conhecimento da literatura erótica e era
o momento de pô-la em prática.
Castamente, pousei um primeiro beijo em seu queixo firme,
delineado à perfeição. Rigorosamente barbeado. Derek apertou os
olhos, fechando-os por um instante, antes de voltar a me encarar
com ferocidade.
Provocadora, mordi a pontinha do queixo, chupando em
seguida, imaginando o mais delicioso morango que já comi. Fosse
pelo espumante que bebi, fosse pelo tesão reprimido, eu me sentia
corajosa demais nesta suíte, sozinha com meu objeto de desejo.
Apoiei uma mão no peito largo, batendo forte sob minha palma,
e com a outra deslizei os dedos por seus cabelos grossos cortados
um pouco acima do colarinho da camisa, apanhando uma boa
mecha na nuca.
Santo Deus, nem acreditava que estava mesmo acontecendo.
— Estou aqui para cumprir suas ordens, senhor — falei,
baixinho, amando tudo isso. E então, finalmente, pousei minha boca
sobre a sua. Minha. Boca. Na. Boca. Dele. Estava mesmo
acontecendo!
Meus batimentos cardíacos aceleraram desenfreadamente. No
entanto, não levou mais do que três segundos para a insegurança
me arrastar do topo da montanha de glória. E agora? O que eu
deveria fazer em seguida?
Só beijei duas vezes na vida, beijos roubados por adolescentes
na escola. Garotos tolos. Bocas desengonçadas.
De que maneira eu deveria enfiar minha língua dentro dele?
Na dúvida, o lambi suavemente.
Um som gutural reverberou do fundo de seu poderoso peito.
Arrastei de novo meus lábios pelos seus, inesperadamente macios
demais.
Poderia fazer isso por horas.
Suguei atrevidamente o lábio inferior.
Derek abriu os olhos escuros e tempestuosos.
— Terminou de brincar, Contreras? — rosnou com nossas bocas
ainda unidas.
— Acha que estou brincando? — ousei desafiar sem me afastar.
Minha voz, no entanto, falhada e rouca, mostrou o quanto eu me
sentia subjugada por tudo aquilo.
Senti o sorriso se movendo em seus lábios. Ácido. Irado.
Meu cabelo foi enrolado quase que como uma corda em seu
punho e puxado para trás.
— O que eu acho, menina — senti o toque de sua outra mão
subindo por meu braço nu, passando meu ombro, alisando minha
nuca, e então envolvendo meu pescoço — É que está tentando me
provocar. Desde o maldito minuto que entrou em minha vida, está
tentando me tirar do sério — meu pescoço foi apertado, o corpo
esmagado para trás, contra a porta às minhas costas — Já é hora
de eu te mostrar algumas coisas.
Derek Reynolds, o homem dono de um autocontrole rigoroso,
estava simplesmente apertando meu pescoço de um jeito que
dificultava a passagem de ar. Meu grau de excitação beirou a
loucura.
— E sua primeira aula será sobre como me beijar do jeito que
gosto, menininha tola.
Sem uma prévia, sua língua invadiu minha boca com fome.
Meus lábios foram mordidos. Minha boca devorada. A escassez de
ar pelo aperto na garganta só tornava aquele contato mais
alucinante. Quis montá-lo, abraçá-lo, gritar. Mas nada disso me era
permitido porque eu estava imobilizada contra a parede por aquele
quadril poderoso. Meu cabelo em seu domínio também. Minha
respiração era sua para controlar.
Uma completa submissa. Vulnerável ao que ele me permitia.
Derek arrastou um beijo úmido para minha mandíbula, orelha,
têmpora.
— Sabe o que pensei na primeira vez que a vi? — rosnou em
meu ouvido, torturando — Que você tinha acabado de sair
diretamente de alguma trepada. Seus seios expostos, o cabelo
revirado, o batom, o maldito batom em sua boca, borrado daquele
jeito, como se tivesse chupado um pau. Aquilo não foi profissional,
menina provocadora.
— E-e me odiou — acusei em um murmúrio. Era difícil falar
quando alguém cortava sua respiração e permitia apenas pequenas
lufadas de ar.
— Errado — Derek sugou o lóbulo de minha orelha — Eu a
desejei. Quis curvá-la e enfiar meu pau em sua bunda, Contreras.
Mostrar que eu poderia fazer dez vezes melhor do que o imbecil que
a tinha tocado antes.
Uau. Se fosse possível, o tesão que eu sentia ganhou formato
de ferroadas na boceta. Doloroso, inquietante.
— Mas a minha surpresa: você, intocada. Que peça desgraçada
do destino — Derek afastou o rosto apenas para encarar o meu,
intensificando o puxão em meu cabelo — Ainda é virgem, Cherry?
Mal consegui respirar e não tinha nada a ver com sua mão
envolvendo meu pescoço. A intensidade em seu olhar era
insuportável.
Foi bom que a saída de minha voz estivesse condicionada por
seu aperto em minha garganta. Me deu tempo de pensar. De
perceber que eu tinha duas opções: falar a verdade, e correr o risco
de Derek fazer como das outras vezes, me afastar movido por um
tipo de senso de culpa de última hora. Ou mentir, e ter esperança de
que desta vez ele levasse as coisas até o fim.
Precisava dele. Precisava estar em sua cama de verdade quase
que com desespero. Nem que fosse apenas uma vez.
Escolhi mergulhar fundo na mentira:
— Não — murmurei em desafio, o que o fez afrouxar
momentaneamente a mão, surpreendido, quase golpeado.
Palavras não descreveriam as emoções que perpassaram em
seus olhos frenéticos enquanto caçavam os meus. Dúvida,
incredulidade, ira, desprezo, e, o vencedor: determinação.
Assentiu.
Suas mãos cederam o aperto em meus cabelos e garganta.
Devagar Derek deu as costas e andou até o aparador de
bebidas na suíte. A rigidez em seus ombros não deixava dúvidas
quanto ao que sentia.
Assisti o líquido âmbar sendo despejado no corpo.
Meu chefe tomou aquele uísque em apenas um gole, secando a
boca com o dorso da mão. Em seguida, despejou mais uma dose.
Finalmente, então, se virou para me enfrentar:
— Você não respondeu — a ondulação perigosa destoava da
calma letal quando me encarou — O que quer de mim? Que eu a
coma? — havia um quê de desprezo em sua voz — Matar a
curiosidade?
Eu só tinha uma certeza. Depois dessa suíte, as coisas
mudariam ainda mais radicalmente entre nós.
Essa era, de fato, a minha única oportunidade.
Por essa razão não recuei.
— Quero que me mostre como é ser a mulher em sua cama,
senhor — baixei os cílios, o rosto.
Não desejava que visse a maneira que eu me sentia a seu
respeito. Que estava apaixonada e provavelmente sairia ferida de
tudo isso.
Ouvi a respiração pesada entrando em seu peito.
Vi seus passos retornarem para mim, devagar, decididos.
— Então faremos esse favor a nós dois, Contreras, porque
também quero te comer e tirar de vez do meu sistema o cheiro que
sua boceta exala quando está pingando por mim.
Tão sujo, tão brutal. E tão gostoso.
— Uma noite — falei.
— Não diria que precisamos de tanto — riu com sarcasmo.
Estava me magoando de propósito, por ciúmes.
Ainda que houvesse dezoito anos de diferença entre nós, e que
eu não tivesse a sua experiência, sabia que me ferir era sua forma
de revidar o golpe.
— Tire o vestido.
— Senhor?
— Tire o vestido, Cherry — fingiu uma mansidão que não sentia
— Aposto que foi o que cada maldita mente masculina lá embaixo
desejou essa noite: vê-la nua. Deve ser meu dia de sorte, pelo jeito.
Certo. Eu deveria sair, ter um pouco de orgulho diante de como
parecia querer me atingir. Porém a perspectiva de não ter outra
chance destas falou mais alto. Estava cansada de desejá-lo tanto.
De ficar fantasiando. De estar apaixonada por um homem muito
além de meu alcance.
Se ele iria fingir que eu não existia pelo resto de nossas vidas,
depois de hoje, então que eu tivesse minha vontade atendida
também.
E quer saber? Quem sabe fosse isso: o que eu sentia era só
curiosidade. Quem sabe eu o esquecesse assim que
terminássemos aqui.
Lentamente, abaixei as alças finas de meu vestido e o tirei de
meu corpo, deixando o cair em torno dos meus pés. Nua, apenas de
calcinha e salto alto, tapei os seios e subi os olhos para receber a
próxima ordem.
Uma inspiração forte inflou seu peito largo.
— Abaixe as mãos. Quero vê-la.
Fiz. Os mamilos intumescidos exibindo meu nível de excitação.
— Você é linda, mas acho que sabe disto, não sabe? Do efeito
que causa nas pessoas.
Olha quem fala.
Derek me avaliou de cima a baixo, sua cabeça inclinada, quase
contemplativo, se não fosse a ira salpicando um brilho escuro em
seus olhos.
— Uma putinha, que sabe bem o poder da própria beleza.
Não me ofendi. Pelo contrário, só me tornava mais ansiosa.
— Era mesmo virgem?
Assenti.
— Vinte anos é um pouco tarde para perder, não acha?
Lambi meu lábio.
— Vinte e um — minha idade atual, a idade que eu teria minha
primeira vez com o homem dos meus sonhos.
Vi quando apertou o copo mais forte entre os dedos.
— Seu aniversário foi há uma semana.
Fingi que não fiquei surpresa por ele saber.
— Foi.
— Quem? — rosnou baixo demais.
Sacudi a cabeça, negando a informação.
— Carter? — o desprezo despejava em cada letra.
— Não — se eu mentisse, Carter teria problemas, eu tinha
certeza.
— Quem então?
— Não vem ao caso, senhor — tentei encerrar o assunto, minha
historinha falsa não duraria muito se ele continuasse a pressão.
— Um estranho?
Assenti.
— Estava mesmo tão desesperada, Contreras?
Estou, sim, por você!
— Você me recusou, senhor — alfinetei, apesar da submissão
em cada célula do meu corpo.
Foi a coisa errada a dizer.
Gélido, um dedo passou provocativo por cima do meu mamilo.
— Rosados.
Estremeci.
— Tire a calcinha. Fique com os saltos.
— Sim, senhor.
— Gire-se.
Fiz, fui me girando para que me visse por inteira. Nunca me
senti tão ansiosa, tão sensível. Um toque de minha mão entre as
pernas, e sabia que eu gozaria. Estava ficando boa em me
masturbar. Fazia todas as noites. Era libertador.
— Pare — de costas para ele — Curve-se.
Acatei, me abaixei com as pernas esticadas, bumbum no alto.
Um tapa estalou em minha bunda, inesperado, quase me fez
saltar no lugar. Levou tudo de mim para me manter nessa posição.
Menos de dois segundos depois, inesperadamente, Derek abriu
as dobras de minha boceta com os dedos.
Constatar meu estado deplorável o fez grunhir.
É, sim... estou escorrendo de vontade.
Um dedo grosso me invadiu.
Precisei apoiar as mãos na parede.
Enrijeci quando o dedo saiu de mim e, usando minha própria
lubrificação, rodeou o meu ânus.
— Senhor...
— Ele comeu seu cuzinho, Contreras?
— N-não.
— Ótimo.
“Eu vou comer” é o que ficou entendido tacitamente.
— Suba na mesa.
Disse, afastando-se.
Olhei para a mesa oval, iluminada pelo lustre. Não podia
acreditar no que estava me pedindo.
Irredutível, ele levantou a sobrancelha, como se me desafiasse
a desobedecer.
Caminhei até ela. Não por medo, jamais. Mas profundamente
impactada pelo desejo que crepitava eu seu rosto enquanto me
observava da parede, ombro escorado, mão dentro do bolso e a
outra bebericando o uísque.
— Deite-se.
Deitei. A superfície fria, dura.
Meu chefe voltou para perto, pairando ao meu redor, me
contornando até ficar de frente para minha vagina.
Nem nos meus sonhos mais ousados, Derek Reynolds, o
homem com punho de ferro, despejaria uísque vagarosamente em
minha barriga. Mas é exatamente o que estava fazendo. Pondo
mais álcool em uma fogueira.
Para em seguida, se debruçar e colher a bebida com a língua.
O mesmo se repetiu em meus seios.
Eu era seu banquete esta noite.
A língua chicoteou meu mamilo, a boca o sugou, enchendo-se
de mim.
Agarrei seu cabelo na nuca.
— Derek.
Não aguentaria muito daquela tortura.
— Você estava linda esta noite, Cherry. De um jeito insuportável
— mais lambidas, apertões, sucções — Tive de me controlar para
não sair socando a cara de todo imbecil que se atreveu a tentar uma
investida — uma mordida súbita e cheia me fez arquear a coluna em
um uivo de dor e prazer — Mas nada se compara a essa visão.
Eu gozaria.
Tentei levar minha mão ao clitóris, a fricção que eu precisava
desesperadamente.
— Não — rugiu baixo, me impedindo.
Não conseguia pensar. Só queria tudo, queria mais, queria o
que vinha depois de toda essa provocação.
Inexpressivo, respirando por entre os lábios ligeiramente
abertos, Derek se desfez da gravata. Pensei que a arremessaria
para algum lugar. Em vez disto, meus punhos foram presos com ela,
amarrados juntos.
Nua, amarrada, exposta.
Delirante!
O blazer em seu corpo foi lançado para uma poltrona.
Lentamente, comendo meu corpo com os olhos, os botões da
camisa foram abertos. Dois ou três, apenas. As mangas foram
dobradas até os antebraços. Ele não tiraria a camisa, não agora,
pelo menos. Fiquei desapontada.
Quando abriu o botão da calça e baixou o zíper, no entanto,
mais expectativa e tesão quase escureceram minha vista.
Ele deve ter notado, porque riu, sem nenhum humor.
— É o que quer, não é?
— S-sim... sim senhor — minha voz até falhou.
— Então, seja uma boa menina, Contreras, vire-se de barriga
para baixo, e chupe o meu pau.
Aquela coisa assustadoramente imensa, grossa, rosada, cheia
de veias pulsantes foi liberta de dentro da boxer preta. Gemi,
aterrorizada.
Mesmo com o pouco conhecimento, ou zero, que eu tinha sobre
paus, podia apostar que aquilo ali era excepcional.
O poderoso Derek Reynolds era grande em todos os lugares.
Salivando, ansiosa demais, tentei me ajeitar sobre a mesa,
apoiada em minhas mãos amarradas, de um jeito que eu
conseguisse ficar confortável para fazer o que pedia.
A cabeça larga foi posta diante de meu rosto.
Sem pensar, agindo pela minha natureza, rocei o nariz na
glande, aspirando o cheiro cru de homem. Sua potência.
Perfeito, até mesmo nisso.
Eu queria tomar o lugar daquela mão forte que segurava a coisa
grande, eu mesma. Derek empunhava o pau como um lenhador
empunhava um machado pesado.
Separei meus lábios.
Ele empurrou, roçando o contorno de minha boca, provocando.
Batom de pau. Quis rir da ideia. Se conseguisse respirar e
pensar, teria rido.
Juntei saliva na boca e me preparei para a invasão.
Minha posição era tão vulnerável e submissa. Eu mal conseguia
me mexer, mãos amarradas presas debaixo de mim, espalhada de
bruços sobre uma mesa dura.
— Tenha cuidado — alertou, e sem mais avisos, entrou. Foi
difícil receber em minha língua. Ainda assim, instintivamente, o
rodeei com ela, apertei com meus lábios, tomando o cuidado de não
usar os dentes.
Derek estocou devagar no começo, só que conforme eu o
chupava, notei a mudança de ritmo. As estocadas ficavam mais
fundas, me causando ânsia pelo tamanho.
Meu cabelo foi agarrado com força.
Um som animalesco foi ouvido de seu peito.
— Porra, menina. Porra...
Deu para notar que afastar o pau de minha boca foi a coisa
mais difícil que fez em muito tempo.
Virei na mesa, barriga para cima novamente, assistindo-o se
desfazer da camisa. Não foi metódico dessa vez, foi furioso.
Derek estava furioso por quase perder o controle.
E... cacete... esse homem pegava pesado nos exercícios
físicos.
Eu já imaginava que sua barriga, peito, braços, fossem
musculosos, definidos, mas outra coisa era ver pessoalmente.
Com trinta e oito anos, o corpo desse homem causava inveja
em muitos garotos de vinte.
Levei minhas mãos amarradas, juntas, para minha vagina que
pulsava. Aquilo tudo estava demais para mim.
Mandíbula travada, Derek percebeu, e estreitou os olhos, em
um aviso.
Prolongando a tortura, reabasteceu o copo com uísque, e voltou
para mim bebericando devagar. Encarando meu rosto.
Era como se tivesse todo o tempo do mundo para me deixar ali,
suspensa, em expectativa.
Havia prazer em me punir com a espera, dava para reconhecer
em sua expressão.
— Acho que essa é a minha nova gravata preferida.
— A minha também — ousei dizer, frustrada.
— Quer se tocar?
— Quero.
Ruidosamente, puxou a cadeira diante da mesa, e se sentou de
frente para minha boceta, confortável, apreciando o uísque e a
visão.
— Toque-se então.
Fiz, sem que precisasse repetir. Massageei meu clitóris, do jeito
que eu sabia que seria rápido. Não precisava de muito. O tesão que
me consumia era quase insano.
Meus dedos dos pés se retraíam. A coluna, automaticamente
curvada.
Aumentei a pressão, já sentindo as fagulhas.
Até que senti um dedo grosso me invadir. Curvado para aquela
parte áspera dentro de mim que canalizava em sincronia o prazer do
pequeno ponto de nervos sob minha mão.
Gozei rápido. Gemendo alto, despudorada.
Pensei que era tudo, que aquela sensação já era o suficiente.
Fui abocanhada, no meio dos espasmos.
Enquanto ainda gozava, Derek me chupou mais forte, me
comeu com seu dedo mais rápido.
Minha cabeça ia explodir.
Aquilo, aquela onda gigante de eletricidade vindo me devastar,
não podia ser normal. Eu estava morrendo, só podia ser.
Gritei alto.
Queria que parasse. Não conseguiria suportar.
Sua boca literalmente me devorava.
— Ahhhhhhh........!
Meus olhos giraram nas órbitas quando um raio me rasgou a
partir do ventre, em uma cadeia de explosões surreais demais.
SURREAIS DEMAIS. Senti, sem nenhum controle, algo líquido
sendo despejado de mim.
Eu estava me mijando?
Meus pensamentos nublados sucumbiam depressa demais,
mas em algum lugar daquela explosão violenta, a vergonha me fez
querer emergir para que aquele xixi não saísse!
Tentei afastar Derek, empurrar sua testa, enquanto me
contorcia.
Ele não cedia. Chupava até estrelas salpicarem em meu
cérebro.
— Porra!
Não sei qual de nós uivou isso. Eu, provavelmente.
O som da cadeira arrastando brutalmente e caindo no chão me
fez ter a noção de que ele se levantou. Ouvi algo sendo rasgado,
uma embalagem talvez. Preservativo.
— Esguichando para mim, putinha safada? — a tempestade na
rouquidão de sua voz era um regozijo — Sua boceta é a maldita
coisa mais gostosa que já provei — Derek bateu nela com seu pau,
estalos altos, barulhentos por causa de toda aquela umidade — A
maldita coisa mais gostosa!
Sem advertência. Sem um alerta do que faria, aquele pau
grande demais, grosso demais, me invadiu, deslizando para dentro,
aproveitando-se de como eu estava escorregadia.
Uivei pela surpresa.
Berrei pela dor violenta, que se sobressaía aos espasmos de
prazer.
Eu estava literalmente sendo rasgada enquanto ele arremetia.
Doía demais.
Lágrimas escorreram por minhas bochechas, para a mesa.
Meus dentes se fincaram no lábio inferior, não suportando a
sensação de que estava sendo partida ao meio.
Derek, furiosamente, foi até o fundo... e nesse momento ele
parou. Simplesmente parou... travado dentro de mim.
— Que porra é essa?
Ele não se moveu.
Eu, respirei pela primeira vez, de alívio porque o ápice da dor
não estava mais acontecendo, embora ainda a sentisse na carne.
— Não me diga que...
Mas eu não tinha forças para abrir os olhos e procurar seu
rosto, saber do que estava falando, ou pensando, ou sentindo.
Tudo se resumia àquele volume descomunal dentro de mim.
Errado. Doloroso.
— Cherry! — Derek exigiu, rouco, incrédulo... mais furioso do
que nunca.
— Virgem... — murmurei sem forças.
— PORRA! — podia apostar que seu rugido se infiltrou pelas
paredes, as sacudindo como um trovão.
Ele fez menção de sair.
— Não — choraminguei.
Outro palavrão deixou seus lábios enquanto se mantinha
imóvel, mais duro e grosso do que nunca.
— Por qu... por que mentiu, merda?
— Você desistiria.
Abri os olhos a tempo de vê-lo esfregando o cabelo, deslizando
os dedos frustrado pelos fios, culpado. Sacudia a cabeça como se
não acreditasse que aquilo estava acontecendo. Que eu o
enganara.
— Preciso tirar — falou por entre a mandíbula apertada.
— Dói — chorei baixinho.
— Porra, menina — sua voz abrandou um pouco.
O toque do seu dedo acariciou meu clitóris.
Enterrado dentro de mim até o talo, o corpo potente se curvou
para o meu, e abocanhou meu seio com suavidade, chupando o
mamilo, brincando.
Sabia o que ele estava fazendo. Tentando me relaxar para
resolver o impasse de que sua estaca descomunal precisava sair de
dentro de mim de um jeito que não me machucasse. Que não me
machucasse mais.
— Passe seus braços pelo meu pescoço e me abrace, amor.
Amor. Uma palavra simples, mas que me fez suspirar como uma
criança.
Fiz o que ordenou.
Meu chefe forte e belo, andou comigo para a cama macia, a
mais macia em que já me deitei na vida.
De joelhos na cama. Voltou a chupar meus seios. Me puxou
pelo pescoço e beijou minha boca mais lento dessa vez,
aproveitando, atiçando.
Preso em mim, fui adorada em seus braços. Masturbada
gostoso. Lambida, mordida.
Se seu objetivo era me excitar, ele havia conquistado com
louvor.
Mesmo com a dor, eu queria mais, mais dele, disso, de nós.
Cavalguei debaixo dele, rebolando, querendo me adaptar ao seu
tamanho. Sem pressa, Derek foi saindo, e entrando, e saindo.
Eu estava num estado que gozaria mais. Que gozaria muito, se
ele continuasse aquelas investidas.
Gemi.
Mordi seu ombro.
Derek deslizou pela primeira vez totalmente para fora.
— Não — implorei que não parasse, que não me deixasse com
essa ausência dele dentro de mim.
Deu uma risada rouca, transtornada:
— Nem que eu quisesse, menina — rosnou, entrando outra vez
e estocando forte.
Nossos corpos, juntos, produziam sons obscenos.
O cheiro de suor e sexo impregnava o ar.
Quanto mais ele entrava e saía, mas forte eu queria que fizesse.
Prazer e dor. Visceral.
— Me pega de quatro — falei, doida por realizar todas as
fantasias possíveis com ele. Desesperada para prolongar cada
segundo desta noite, porque eu sabia que seria a única.
— Você não está pronta para isso, amor.
— Eu quero — me empurrei para ele — Me come assim,
senhor.
Senhor. Eu intuía que esse tratamento o enlouqueceria. Tinha a
ver com submissão. Tinha a ver com nossa hierarquia de chefe x
assistente. Tinha a ver com a diferença de idade entre nós.
Em mais de uma perspectiva, ele era meu senhor. E eu queria
ser sua.
Derek me girou pelos quadris, me deixando de quatro na cama.
Amarrava, acessível para o que quisesse fazer.
Antes de se enterrar, desferiu um golpe pesado em minha
bunda. Ardeu, deu prazer, tudo ao mesmo tempo.
O polegar rondou meu ânus.
— Quero meter nesse cuzinho, Contreras.
— Mete — empurrei a bunda, apesar de ter certeza que doeria
tanto quanto o rompimento do hímen.
— Caralho — outro tapa forte, gostoso. Eu pingava, escorria por
ele.
Por cima do ombro, conferi seu rosto.
A visão foi de matar. Transfigurado, de tesão. Suor brilhava em
sua testa, no centro do peito, acima da camada de pelos e... e meu
sangue, o sangue de minha virgindade, manchando a região da
barriga trincada.
Nunca me esqueceria dessa imagem. De como parecíamos
animais. Muito melhor do que qualquer sacanagem que eu pudesse
ter fantasiado.
Foram anos lendo literatura erótica nos romances picantes de
banca. Lia desde os quinze. Anos solitária tendo tempo de sobra
para conhecer meu corpo, me dar prazer.
No fundo, nunca me esforcei para transar pela primeira vez
porque sabia que estava esperando o cara certo. Alguém que
tornasse esse momento épico.
Tudo bem que não estava acontecendo com o romantismo que
sonhei. Mas isso aqui, a fome genuína em seu rosto, superava em
muito qualquer outra realidade paralela que eu pudesse inventar.
Derek era meu cavaleiro na armadura brilhante.
Ser penetrada nessa posição não era menos desconfortável do
que por cima, talvez o tamanho de meu chefe nunca fizesse ser
verdadeiramente indolor em posição alguma. Mas era gostoso.
Gozei em seu pau com a mesma facilidade que gozei em sua
boca.
No meio do delírio, o senti sair inteiro de dentro de mim e... e
penetrar meu cu.
Cacete que dor fodida!
Uivei, gozando.
Menos de dez segundos depois, mãos cravadas em meus
quadris, pau atolado no meu rabo, a pulsação daquela coisa grossa
e comprida, cheia de veias, foi o marcador que indicou que também
gozava.
Derek Reynolds gozava como um animal dentro de mim.
Não havia nada de polido ou civilizado nessa cena.
O homem na essência ofegava, rosto virado para cima,
empurrando o quadril contra o meu até a última gota. Arfando.
Caí na cama, mole, fraca, desintegrada.
O corpo forte, puro aço e calor, se despejou sobre o meu, ainda
metido dentro do meu ânus.
Ele era pesado. Mais de noventa quilos. Em comparação ao seu
corpo, eu era pequena. Mas suportei seu peso com o coração
cambaleante de emoção.
Não sei dizer quanto tempo ficamos assim até ele rolar para o
lado e jogar o antebraço sobre o rosto. Seu peito subia e descia em
respirações fortes.
— Porra, menina.
Suspirei sentindo o mesmo.
Estava feito. Finalmente, tínhamos ido até o fim.
A gravata foi retirada de meus pulsos.
Derek terminou de se desfazer da calça que ainda pendia em
seu quadril.
— Espere aí — ordenou.
Nu, o vi caminhar para a porta que presumi ser o banheiro da
suíte. Ouvi o som de água. Deduzi que tomaria um banho.
Fiquei surpresa quando ele voltou trazendo a toalha úmida nas
mãos.
Meu chefe, o poderoso Senador mais votado da história,
separou minhas pernas e me limpou com verdadeira perícia. A
barriga, coxas, passou o pano por toda a intimidade, ânus.
— Está com dor?
Sacudi a cabeça, encantada demais pelo ato para abrir a boca e
possivelmente me envergonhar com alguma exibição de afetação.
— Pois ficará. Não fomos muito moderados para uma primeira
vez — olhos profundos e intensos se fixaram nos meus, acusatórios
— Por que mentiu?
Mordi o lábio, antes de responder, ponderando.
— Como eu disse, você teria desistido.
— Não. Não teria. Mas teria sido mais cuidadoso — minha
omissão não estava descendo bem em sua garganta.
— Está feito — encolhi os ombros, tampando meus seios com
os braços.
— Não gosto de mentiras.
— Ninguém gosta.
— Não gosto de ser feito de tolo, Cherry.
— Não acontecerá outra vez — nada disso acontecerá, e eu
sabia.
— É, não mesmo — afirmou, levantando-se.
Cheirávamos a sexo. Tudo aqui estava impregnado com nosso
cheiro. Minha pele, marcada por suas mãos, mordidas.
Mas não me atrevi a levantar e segui-lo para o banho. Se
quisesse minha companhia, teria pedido. Pressentia que Derek
gostaria de ficar sozinho, de pensar. A culpa, certamente, já estava
começando a atingi-lo.
Puxei o edredom embaixo de mim e mergulhei sob ele. Minha
energia, exaurida.
Fechei os olhos para descansar um pouco, antes de ter de
realmente enfrentar a nova realidade.
Só esperava que meu emprego não estivesse em risco depois
desta noite.

Quando acordei, o quarto estava escuro. E vazio. Grogue,


procurei minha clutch de mão, em busca do celular, de saber que
horas eram. Foi um choque perceber que passava das seis da
manhã.
Desespero me desnorteou. Eu deveria correr para um banho,
me vestir, voar para casa me trocar, e chegar ao gabinete a tempo.
Impossível que não me atrasasse para o trabalho. Já estava, na
verdade.
Um bilhete, apoiado em um copo de água na mesinha ao lado
da cama, no entanto, me impediu de começar o frenesi
desesperado.
Caminhei, nua, até ele.
“Tome os comprimidos. Fará com que se sinta melhor...” mudei
brevemente os olhos do recado para os dois Advil ao lado do copo
“Não precisa comparecer ao gabinete hoje. Avisei Mônica que você
tirará o dia de folga”.
Sem um “até breve” ou “gostei da noite”.
Fiquei me perguntando em que momento ele deixou a suíte.
Jersey. Lembrei do compromisso em sua agenda. Derek
provavelmente estava voando para lá nesse momento. Será que
partiu do quarto assim que saiu do banho? Ficou mais um pouco?
Recolhendo minha dignidade, fiz o melhor para ir embora o mais
rápido possível.
E não aceitei a folga.
Meu trabalho já estava em risco por dormir com meu chefe. Não
precisava dar mais motivos.
Atrasada, depois de passar em casa, fui direto para a minha
mesa e mergulhei no trabalho até o final do dia, quando voltei ao
meu apartamento, me enfiei debaixo do chuveiro e... e chorei,
morrendo de medo de ter feito a maior besteira da minha vida.
Um monstro de dez braços arranhava violentamente suas
garras nas paredes do meu estômago, tentando desesperadamente
escapar. Essa era a sensação enquanto eu me sentava na mesa de
centro, de frente para Abbi no sofá. Mãos suadas, coração batendo
descompassado.
A única coisa que me impediu de desistir foi a presença de
Derek em minha casa. Seu semblante calmo ao lado dela poderia
até passar a impressão de tranquilidade, mas bastou nosso olhar se
encontrar para eu perceber que também estava tenso.
Nunca imaginei que a situação se desenrolaria assim.
— Cê tá com aquela cara, mãe.
— Que cara? — esforcei-me para relaxar o rosto.
— Igual quando come nabo — a garotinha bronzeada provocou
o pai: — Ela não gosta de nabo, mas finge que gosta só para me
fazer comer também.
— Nabo é bom para o intestino — me defendi
desnecessariamente.
— Ara, mas eu já cago bem, mãe — minha filha bateu na
própria barriga, fazendo graça.
Derek soltou uma risada baixa.
Foi impossível não desviar o olhar dela para a curva nos lábios
dele, o vislumbre dos dentes brancos e alinhados, e a maneira como
seu rosto se transformava nas raras vezes que sorria assim. Abbi e
Derek tinham o mesmo sorriso.
— Isso não é jeito de falar, Abbi — corrigi, porque era meu
papel, embora soubesse que, neste aspecto, de usar expressões
grosseiras, Willie a influenciava muito mais do que eu.
— Faço bastante cocô, então — e deu uma risadinha para o
homem ao seu lado.
Como eu amava sua personalidade autêntica, a
espontaneidade, o jeito espertinho. Se pudesse, a protegeria de
tudo. Jamais permitiria que o mundo a magoasse. O problema é que
era justamente eu, com o que tinha para contar, que estava prestes
a desempenhar esse papel.
Inspirei fundo. As palavras saíram da minha boca como areia:
— Filha, a mamãe precisa ter uma conversa com você.
Enquanto eu me sentia prestes a infartar, Abbi franziu o cenho,
investigando meu rosto. Então, arregalou bem os olhinhos.
— Eita lasqueira! Não fica brava, mãe, eu só estava ensinando
uma lição praquele cabeçudo... eu juro que ele...
— Ensin... cabeçudo? — pisquei, sem entender — Do que você
está falando, filha?
— Do Christopher. Não é isso o que cê quer falar, mãe? Do
sapo que eu coloquei na mochila dele?
Jesus... Meu peito esvaziou como um balão. É errado sentir
alívio por ganhar mais cinco minutos de normalidade em uma vida
prestes a mudar radicalmente, mesmo que isso signifique sua filha
pondo um sapo na mochila de um coleguinha?
— Cê não sabia? A Sra. Wren escreveu na agenda.
Claro, a agenda, onde a professora anotava os recados e que
quase sempre vinha preenchida com alguma peripécia dela.
— Eu não li ainda — admiti, me sentindo um pouco culpada por
estar tão focada em contar a verdade a ela desde que a peguei na
fazenda, que mal perguntei como tinha sido seu dia.
— Cê não vai andar de um lado para o outro? — ela se virou
para Derek e cochichou — Mamãe sempre anda de um lado para o
outro quando vem recado.
— Por que fez isso, filha? — perguntei.
— O que o garoto fez a você, Abbi? — Derek indagou ao
mesmo tempo, protetoramente.
Trocamos outro olhar. Ele estava sendo protetor com a filha,
mesmo que tenha acabado de conhecê-la. Esse era o pai que teria
sido, se eu tivesse dado a oportunidade.
— Aquele cabeça de repolho vive me aporrinhando — Abbi
contou aos dois — E ontem grudou chiclete no cabelo da Lindsay —
arregaçou as manguinhas da camisa jeans — Pelo menos agora ele
aprendeu uma lição. Todo mundo descobriu que ele se caga de
medo de sapo.
O pai apertou um sorriso orgulhoso nos lábios. Eu, fitei um e
outro, identificando também a semelhança na personalidade.
— Onde conseguiu o sapo?
A maneira que desviou o olhar rapidinho, me fez ter uma
resposta.
— Willie — era evidente. Um segundo pensamento me ocorreu,
embora eu também já imaginasse a resposta — Quando ele pegou
o sapo pra você, Abbi?
A garotinha de repente se mostrou muito interessada em um
fiapo da manta sobre o sofá, sabendo exatamente onde eu
pretendia chegar.
— Ontem — contou baixinho.
Claro que sim.
— Por favor, não me diga que você o manteve em sua mochila
a noite toda.
— Claro que não, mãe... — apertou os lábios por um instante —
Deixei ele dormindo dentro da caixa da minha bota preta, debaixo
da cama.
— Jesus, Abbi!
A pontinha do narizinho arrebitado torceu de lado, mostrando
indignação:
— Eu tinha que dar uma lição naquele burro!
Massageando discretamente minha têmpora, que começava a
doer pela tensão, respirei fundo. Eu não tinha o direito de recriminá-
la. Não hoje. Não quando eu estava prestes a admitir um pecado
muito mais grave. Não quando a vida como conhecia estava a um
passo de mudar radicalmente.
Esvaziei meu peito como um balão de ar.
— Só não faça mais isso, está bem? — afastei suavemente a
franja de seu rosto — E não o chame de burro.
A espertinha nem disfarçou o alívio, quando relaxou as costas
no encosto do sofá. Derek meneou a cabeça discretamente, como
se aprovasse a forma como lidei com o problema.
Então aquele longo e constrangedor momento de silêncio se
colocou entre nós. Uma ausência de som que dizia: “Bem, a hora é
agora”.
— Abbi — pigarreei — Há algo que a mamãe precisa te contar...
algo importante.
— Ara, pode falar, mãe — minha garota incentivou, sorrindo
com expectativa nos olhinhos escuros como os do pai.
Como falar? Que palavras usar? Esperei esse momento. Temi
esse momento. E simplesmente não fazia ideia de que maneira
abordar.
Abbi já me perguntou sobre o pai antes. Não uma, não duas
vezes. E sempre desconversei. Então, na prática, essa conversa já
poderia ter acontecido. Oportunidade para isso, eu tive. A questão é:
como você diz ao seu filho que fez algo terrível? Que o prejudicou,
embora sem nunca ter sido essa a sua intenção?
— Sabe que te amo mais que tudo no mundo, não sabe,
carinho?
— Daqui na lua, ida e volta, ida e volta — voltou-se para Derek:
— É assim que falamos, sabe.
Derek sorriu fraternal para ela:
— É um bom jeito, o de vocês.
Ignorei o que o carinho destinado à filha, em sua voz profunda,
provocou em meu peito e me concentrei apenas nela:
— Exatamente — sorri, ou tentei — daqui na lua, ida e volta, ida
e volta.
Apertei minhas mãos unidas em meu colo. A presença massiva
deste homem ao lado dela no sofá não ajudava.
— Eu... eu... — não conseguia dizer. As palavras simplesmente
não saíam.
Olhei para ele. Ele soube disto. Da bagunça em meu peito, o
pânico. O terror de abrir o jogo e correr o risco de Abbi me odiar
para sempre. Esperei que tripudiasse. Que usasse esse momento
contra mim.
Mas Derek me surpreendeu ao esticar sua mão forte e
bronzeada e segurar a minha. O primeiro toque de verdade entre
nós, depois de anos. Estava me apoiando, me dando forças.
Inspirei fundo, bem devagar, de olhos fechados. Então encarei a
pessoa mais importante no mundo para mim.
— Filha, eu...
“Eu não te contei antes, e foi um erro. Há alguns anos, eu tive
um relacionamento com Derek Reynolds. Nós nos casamos. Não
deu certo. Fui embora porque naquela época me pareceu a única
decisão certa a tomar. E quando cheguei aqui, descobri que estava
grávida. Grávida de você. Não contei a ele. Quis criar você sozinha.
Por amor. Por orgulho. Já não sei realmente dizer a razão agora.
Mas eu a escondi dele. E agora Derek nos encontrou. Veio para o
Texas para te conhecer. Derek é seu pai.”
Eu sabia o que precisava dizer. Só que não foram estas
palavras a saírem:
— Filha, em alguns dias, nós vamos a uma clínica fazer um
exame médico. Eu, você, e o Derek. Provavelmente vão colher um
pouquinho do seu sangue, mas será bem rápido e... e... tudo vai
ficar bem.
Derek endureceu discretamente, soltando minha mão. Abbi
franziu a testinha.
— Exame igual ao que a doutora pediu pra fazer aquela vez?
Apertei os lábios, sem coragem de encarar o homem de olhar
gelado ao seu lado.
— Isso, bem parecido ao que a sua pediatra pede anualmente,
amor.
— Hm... por quê?
Derek arqueou a sobrancelha grossa, desafiador.
— É, Cherry, por quê? — sua voz, envolvente como melado,
quase irônica, foi um soco em meu estômago.
Tive que me levantar. Eu agora estava fazendo exatamente o
que minha filha disse que eu fazia. Andando de um lado para o
outro:
— É um exame importante, que vai... hm... ser importante.
— Mas eu não tô doente. Cê tá, Derek?
Como sempre, Abbi tirava conclusões lógicas de tudo.
— Não, Abbi. Não estou — respondeu ele, calmo, embora eu
sentisse a onda de reprovação que emanava dele.
Lancei um pedido para o rosto duro do homem impositivo, um
que dizia “Por favor”. Por favor, ainda não estou pronta. Por favor,
me dê mais tempo. Por favor, não me obrigue a isso.
Derek, mantendo o sorriso suave para a filha, levantou-se
devagar do sofá.
Agarrei a oportunidade com unhas e dentes:
— Agora, é hora de subir, escovar os dentes e pôr o pijama,
filha. Vá indo que vou acompanhar o Derek até a porta.
— Mas já, mãe?!
— Ele tem que ir agora, filha.
— Mas a gente nem jogou! — a mãozinha gesticulou para o
tabuleiro sobre a mesa.
Benditas fossem as crianças que argumentavam sobre tudo!
— Amanhã vocês jogam — busquei tranquilidade, uma que eu
não sentia, para não pegar minha filha pela mão e levar para cima
de uma vez, desejando urgentemente que ele fosse embora logo.
Meu estômago estava enjoado. Mal suportava a acusação no olhar
penetrante de meu marido.
— Amanhã eu volto, Abbi — e foi como uma promessa, não
para ela, mas para mim, apesar da voz gentil que destinou à filha.
“Obrigada” sibilei somente para ele. Como resposta, obtive um
queixo se levantando, um olhar inflexível, o músculo em seu rosto
belo e mortal, pulsando.
Fui com ele até a porta.
— Amanhã, Cherry — e ele não estava brincando quanto a isso.
— Amanhã, sem falta — assumi o acordo.
— Abbi não tem culpa de ter uma mãe covarde e mentirosa.
Não coloque mais tempo entre mim e minha filha, ou farei do meu
jeito — era uma ameaça.
Fechei a porta quando ele passou e precisei me escorar nela
por um instante. Tudo estava ruindo; essa era a sensação.
Fiquei com a imagem da decepção e contrariedade no
semblante de Derek comigo durante toda a noite. Não consegui
dormir. Girei e girei na cama, até não suportar mais. Vi o dia
amanhecendo da sala de minha casa, me sentindo terrivelmente
mal. Era como ter uma corda em torno do pescoço. Sufocando.
Quanto mais eu pensava em tudo, mais sentia que estava me
enrolando em algo que não acabaria bem.
— Cherry?
Eu me acovardei. Mais uma vez. Ele tinha razão por me chamar
de covarde. Fui covarde ao não contar ao meu marido, quando
descobri a gravidez, mais de seis anos atrás. Covarde quando fui
evasiva com Abbi todas as vezes que ela me perguntou do pai.
Estava sendo covarde agora, ao não saber como contar a minha
filha.
— Cherry! — a entonação aguda me puxou dos pensamentos.
Ah merda.
Olhei para o café transbordando na xícara de Petter Smith,
caindo sobre o jornal aberto em cima da mesa.
— Nossa, me desculpe! — pousei a jarra e puxei o pano
enroscando em minha cintura, rapidamente, tentando conter os
danos — Me desculpe mesmo!
— Tá com a cabeça na lua, mulher! — riu ele, apesar do
estrago.
Petter era funcionário da agência de Correios de Marble Falls e
cliente assíduo na Popeye Pot Pie. E, claro, tinha razão sobre eu
estar distraída porque esse nem foi meu primeiro incidente do dia.
Queimei a mão, troquei pedidos, e não eram nem dez da manhã
ainda.
— Acho que sim, me desculpe, Petter. Vou levar essa bagunça
e pegar outra xícara para você — em tom de desculpas, recolhi o
jornal destruído — E um novo jornal, também.
— Aceito mais café. Quanto ao jornal, não se preocupe, já tinha
terminado de ler.
Petter estava sendo gentil, e eu o agradecia por isso.
De repente, ele enrugou a testa:
— Cherry, acho que seu celular está tocando — apontou para o
bolso frontal do meu avental.
Estava, de fato.
— Já volto... e me desculpe de novo — com um sorriso
provavelmente amarelo, me afastei, pegando o aparelho do bolso do
avental.
Identifiquei o número como sendo do jardim de infância.
— Alô? — atendi, estranhando. Será que Abbi tinha aprontado
mais alguma?
— Sra. Contreras?
— Diretora Grant? Aconteceu alguma coisa?
— É a Abbi, ela... ela desapareceu da escola.
No futuro, eu não me lembraria da jarra de café despencando
de minha mão e quebrando em dezenas de pedaços no chão. Do
café quente em meu tênis. De como algumas pessoas se
levantaram imediatamente de suas cadeiras. Lembraria apenas do
eco que a frase produziu em minha cabeça.
— Desap... Ela o quê?! — não ouvi minha própria voz. Mas a
diretora sim.
— Lamento muito ter de dar essa notícia por telefone. Na
verdade, estava esperando que me dissesse que Abbi a procurou,
que está aí com a senhora.
— Santo Deus, o que é que você está falando? Deixei ela aí às
oito, como todos os dias! O QUE FOI QUE ACONTECEU?!
Meu grito, isso eu lembraria.
— Acalme-se, Sra. Contreras. Devemos manter a calma.
Provavelmente é somente mais uma peça que ela está pregando
em todos nós. Estamos procurando pela Abbi nesse exato
momento, nas dependências da escola e imediações, toda a equipe
está mobilizada e...
— Estou indo para aí!
— O que foi, Cherry? — Jessy vinha apressada em minha
direção.
— É a Abbi, Jess, eles não estão encontrando ela na escola e
eu... eu preciso ir!
— Vá, vá!
Corri para fora, do jeito que eu estava, de avental e celular na
mão. Peguei do bolso da calça a chave de minha caminhonete e
quase não consegui colocar na ignição. Minhas mãos tremiam
demais. Ela está lá, eu sei que sim. Nada aconteceu. Nada podia
acontecer! Jesus, por favor, que minha filha esteja bem!
Arranquei do estacionamento e por muito pouco não bati
quando despontei na avenida. Uma buzinada forte me fez girar o
volante e desviar, mas não freei. Quando Abbi estivesse em meus
braços, eu me desculparia com Brent Lichtman por ter feito ele e
seu Toyota subir no canteiro.
Brent entenderia. Afinal, tinha filhos também. Brent era pai.
Pai.
Derek.
“Ou farei do meu jeito”.
— Não, ele não teria coragem...
Não pensei quando girei o volante outra vez, no sentido oposto,
abruptamente, cruzando na contra mão sob buzinas indignadas.
Meti o pé no fundo do acelerador e dirigi os três quarteirões até o
principal hotel de Marble Falls, onde certamente Derek estava
hospedado.
Abandonei a caminhonete de qualquer jeito na entrada e corri
para a recepção.
— Qual é o quarto Derek Reynolds, Amalija?
— Cherry?
— Ele pegou a Abbi, QUAL É O QUARTO DELE? — gritei,
porque, sinceramente, estava prestes a ter um colapso emocional.
Em outra oportunidade, eu me desculparia com ela também, por
ser rude. Principalmente quando Amalija sempre foi apenas doce
comigo. Eu me desculparia com a maldita cidade inteira, mas
depois. Quando minha filha estivesse comigo!
— Na suíte presidencial, Cherry, mas a Abbi não...
Não fiquei para ouvir o restante do que Amalija tinha a dizer.
Disparei para o elevador, que não estava no andar.
Corri então os quatro andares pelas escadas, e eu nunca
saberia dizer de onde tirei tanta força e energia para não parar, para
fazer com que minhas pernas simplesmente voassem os degraus.
Bati com o punho na primeira porta do quarto andar. Na
seguinte. E na terceira. Uma destas tinha que ser dele.
— Abra! — gritei descontrolada — Apareça! — voltei batendo
forte em cada uma delas, até que aquela no meio do andar se abriu.
E ele apareceu. Camiseta branca, jeans, pés descalços, óculos
de grau no rosto.
No futuro, me eu lembraria de comentar que nunca o tinha visto
de óculos de grau.
Não hoje.
— Onde ela está?
— Quem?
— A Abbi, você a pegou na escola, não foi? — meu desespero
fez a acusação sair como afirmação. Fez sair como... como um
pedido que dissesse sim.
— Não — mas não foi a palavra que esmagou minhas
entranhas, foi o pânico em seus olhos atrás das lentes. A verdade
contida neles. — O que está acontecendo com a Abbi, Cherry?
Desabei em uma torrente de lágrimas que fizeram seu rosto
virar um borrão em minha frente:
— Ela não está na escola. Não estão encontrando a Abbi,
Derek. Minha filha, eu...
— Porra — Derek não hesitou. Voltou para dentro da suíte,
pegou de cima da mesa onde seu laptop estava aberto e ligado, o
celular e uma chave, calçou um par de tênis e saiu, me levando pela
mão com ele até o elevador — Ela está bem, Cherry. Nossa filha
está bem — afirmou com convicção, apertando botões na tela de
seu celular, e então vociferou para o telefone: — Iron, minha filha
desapareceu da escola, descubra que merda está acontecendo!
Descemos. Tudo um borrão. No saguão, descobri que os
funcionários já estavam se movimentando para ajudar. Amalija nos
alcançou quando investimos apressados para a porta:
— A Jessy contou que a Abbi sumiu da escola, Cherry. Vamos
ajudar a procurar ela. O Tom e o Alec estão indo para lá também.
Mais lágrimas despencaram.
— Obrigada, Amalija — peguei brevemente sua mão.
Não questionei quando Derek abriu a porta do passageiro de
seu carro pra mim, só entrei depressa e esperei que ele assumisse
a direção. Mãos grandes e tensas apertavam o volante.
— Conte o que sabe — exigiu. O músculo em seu maxilar
pulsando ritmado.
— A diretora ligou, disse que não estavam encontrando ela em
lugar algum.
— Porra — praguejou baixo.
Se eu dirigi como doida até o hotel, Derek fazia pior. Costurava,
ultrapassava, passou o sinal fechado. E quanto mais ele corria, mais
eu queria que tivéssemos a capacidade de voar.
— Já aconteceu isso antes? — indagou, a voz rouca e sombria.
— Não. Nunca. A escola sempre foi segura, essa cidade é.
— Então Abbi está bem — e foi como uma ordem, não para
mim, mas para o universo. Um ultimato que trovejou debaixo de
nossos pés e no céu acima de nós.
Duas viaturas do departamento de Polícia de Marble Falls
estavam em frente ao prédio do jardim de infância, quando
chegamos. Uma onda de pânico subiu à boca em forma de ânsia.
Não sei como saltei do carro, me sentia cega, zonza, prestes a
vomitar. Santo Deus, o que estava acontecendo?!
Reconheci Mark Whitacre, o chefe do departamento,
conversando com a diretora, assim que entramos no prédio.
— Ah, Sra. Contreras! — disse ela, vindo me encontrar no meio
do caminho.
— O que aconteceu? — a urgência em minha voz só não foi
mais assustadora do que a acusação na voz gutural e furiosa do pai
da minha filha:
— Como uma criança desaparece de uma escola?!
— Você é... minha nossa, Senador Reynolds — reconhecimento
ruborizou o rosto da mulher.
— Ele é o pai da Abbi, Sra. Grant, por favor, diga de uma vez o
que aconteceu?
— Sim, certo — a mulher pigarreou e buscou o chefe de polícia
com o olhar — Abbi fugiu da escola, Sra. Contreras.
— Fugiu? — não fazia qualquer sentido, ela adorava esse lugar.
Outra vez, a mulher vermelha olhou para Whitacre.
— Foi depois que... hum...
— Depois que o quê, porra?! — impaciente, Derek rugiu.
Engolindo em seco, a diretora levantou o queixo.
— Depois que uma colega de turma revelou... informações...
informações que correm na cidade a respeito do... hm... pai dela.
Minhas pernas amoleceram.
Os tímpanos vibraram.
Meu maior medo estava se concretizando: Abbi descobriu a
identidade do pai pela boca de alguém que não eu.
Cambaleei para trás.
O peito apertou com força.
— Encontrem minha filha! — Derek rugiu outra vez — Façam a
merda que for necessário, mas encontrem minha filha, porra!
Whitacre contraiu inteiro, irritado pelo tratamento. A diretora não
parecia menos ofendida, só que era esperta demais para não sentir
medo. Ela sabia, todos sabiam, quem estava aqui entre eles, a
dimensão do poder de Derek.
— Cherry? — Eva vinha pelo corredor, apressada, mancando
de um pé por alguma razão que eu perguntaria mais tarde — Ah,
querida — abriu os braços para me acolher.
— Eva — solucei em seu abraço.
— Ela está bem, minha querida. Nada aconteceu, fique calma.
Me desvencilhei, limpando o rosto com os punhos, uma tarefa
inútil porque um oceano se abria dentro de mim. Não podia ficar ali
parada, cada minuto com a possibilidade de Abbi perdida por aí, era
pior que o anterior.
— Eu preciso procurar ela...
Reviraria a cidade inteira se fosse preciso! Essa dor, essa
sensação de terror me comendo viva só acabaria quando eu a
tivesse comigo.
— Não posso ficar aqui parada, Eva! — Santo Deus, não podia
ficar nem mais um segundo.
Mas foi Derek que tomou meu rosto entre as mãos, com muito
mais suavidade do que jamais pensei para o momento, para o
próprio pânico em seus olhos.
— Sua amiga tem razão, Cherry — disse baixo, alisando os
polegares gentilmente em minhas bochechas úmidas — Fique aqui.
— Eu tenho que encontrar a Abbi, Derek.
— Eu vou — avisou com a mesma força brutal como dominava
tudo no mundo — Vou me unir às buscas e trazer nossa filha de
volta.
Sua palavra, era o que ele estava me dando.
Por mais que eu odiasse nosso passado, a dor, a forma como
nos ferimos mutuamente, jamais poderia dizer que Derek Reynolds
não era um homem que cumpria sua palavra.
Derrubei a cabeça em seu peito, cedendo ao terror me
engolindo:
— Traga ela. Por favor, traga minha menininha para mim.
O som estridente da campainha que quase nunca tocava foi o
responsável por me tirar da cama. Duas e meia da manhã, quem é
que poderia ser àquele horário? Eu ainda me sentia inquieta,
demorei a pegar no sono depois de um dia arrastado no gabinete,
um misto de emoções. Por sorte, o dia seguinte era um sábado e eu
não precisava trabalhar.
— Oi? — falei receosa para o interfone.
— Abra, Contreras — reconheci a voz calma imediatamente.
Meu corpo a reconheceu. Derek estava em frente ao meu
apartamento.
Não podia acreditar.
Tardei alguns segundos a agir. Apertei o botão que liberava a
porta, abalada. Ele não demorou a subir ao andar certo, e bater na
porta certa, sabia sem que eu precisasse falar.
Vestida apenas com minha velha camiseta da NYU, abri uma
fresta.
— Vai me deixar entrar? — havia cautela em sua expressão, por
mais serena que estivesse.
— C-claro.
Afastei-me para o lado, permitindo que entrasse em meu
apartamento. Meu chefe ainda vestia terno e gravata, a expressão
um pouco cansada, teria vindo do aeroporto direto para cá?
Derek sondou ao redor, minha mobília de segunda mão, o
ambiente pequeno mas organizado, o mais cara de casa que eu
consegui deixar. Gostava de ter meu próprio canto, cuidar, depois de
uma infância em que nada era verdadeiramente meu. Abrigos e
lares adotivos eram chocantemente impessoais. Eu me perguntava
se as pessoas sabiam disso, se se davam conta de que crianças
reparavam em detalhes assim.
Se um dia tivesse filhos, e esse era um dos meus sonhos, daria
a eles o meu melhor para que se sentissem pertencentes, que
soubessem que havia um lugar no mundo feito especialmente para
eles.
Criança nenhuma merece ser despejada no mundo e ficar à
mercê da boa intenção de estranhos.
Depois de um longo silêncio, meu chefe finalmente me encarou:
— Como você está?
Será que veio só para saber? Ou pior, temia que eu abrisse a
boca e revelasse ao mundo que fizemos? Eu jamais faria isso.
— Bem e você? — tentei parecer segura, mas me envolvi com
os meus braços.
Derek passou as mãos pelos cabelos, um tipo de tique que
revelava estresse.
— Sobre ontem...
Não estava pronta para uma rejeição. Ainda não.
Antes que concluísse, eu interrompi:
— Não contarei a ninguém, não se preocupe.
A partir do jeito como apertou os olhos e inclinou o rosto de
lado, tive a sensação de ter dito a coisa.
— Acha que é por isso que estou aqui?
— Então veio para dizer que está arrependido, e que não se
repetirá? Desculpe, mas isso eu também já sei.
Suas sobrancelhas escuras subiram, falsamente impressionado.
— É mesmo? E o que mais sabe?
Despejei então a pior parte:
— Que vai me demitir. Mal me olhou durante semanas, depois
do que fizemos no escritório. Agora, imagino que não pretenda
continuar convivendo comigo.
Derek meneou a cabeça devagar.
— Uau, que juízo interessante faz de mim.
— Não é o que que está pensando? — tive coragem de
enfrentar.
Passando a língua pelo lábio inferior, seu corpo pareceu ganhar
o dobro do tamanho, quando veio cortando a distância entre nós.
— Quer mesmo saber o que eu estou pensando, Contreras?
Estou pensando que seu cheiro não saiu do meu nariz o dia todo —
um passo — Que ainda sinto o gosto da sua bocetinha,
esguichando em minha boca — mais um passo, meu coração
desenfreado conforme me encurralava — Que não consegui me
concentrar um só minuto, porque meu pau passou a maior parte do
tempo duro com a lembrança de como foi estar enterrado no seu
cuzinho apertado. E está puto, porque a deixei naquela suíte.
Frente a frente comigo, o ar se tornou rarefeito. Eu mal podia
acreditar que ele estava aqui me falando mesmo essas coisas, tão
explícito.
— Então veio repetir a dose? — desafiei, trêmula, pulsando até
a alma por ele em uma velocidade alarmante.
A risada grave grossa, apesar de contrariada, foi um deleite.
Ele ainda se sentia furioso, comigo e com ele.
— Você é mesmo uma coisinha intrigante, não é? Gosta de me
desafiar, mas basta uma palavra minha e se rende sem pensar.
Aposto que está molhada. Que sua bocetinha lateja por meu toque
agora mesmo. Estou enganado?
— Não, não está.
Minha admissão o fez inspirar com força, as narinas dilataram.
Derek precisou levantar o rosto e encarar o teto, para se estabilizar.
Então se voltou para mim novamente.
— Por mais tentador que seja a ideia de mergulhar fundo em
você, Cherry, vim porque quero realmente saber como está. Sente
alguma dor, eu a machuquei?
Foi inesperadamente chocante perceber que sua preocupação
era genuína. Ele estava realmente aqui para saber como eu me
sentia. Se ainda fosse possível, o Senador cravava-se mais fundo
em meu peito.
— Estou bem, senhor, de verdade — a sensação de dor entre
as pernas não era nada perto daquela em meu coração.
Meu chefe passou a mão pelos cabelos uma última vez.
— Derek, me chame de Derek. Já passamos dessa fase.
Não acho que eu conseguiria, era intrínseco. Ainda assim,
continuei:
— Da minha parte, podemos virar a página... Derek.
Queria tranquilizá-lo, dizer que nada mudou. Ele não tinha
nenhuma obrigação comigo, não estávamos no século passado, ele
não precisava me pedir em casamento só porque havia tirado minha
virgindade. Na verdade, era um problema a menos agora.
Meu interior gargalhou com acidez para esse último
pensamento. Quem eu estava tentando enganar? Me deitar com ele
não havia resolvido problema nenhum, só havia me feito gostar
ainda mais.
— Página virada — testou o som das palavras em sua boca —
É o que quer?
Encarei o chão.
— É o que o senhor... quero dizer, você, deseja. E vou respeitar.
— Não sabe o que desejo — rebateu, duro — Você não faz
ideia.
Não queria sentir esperança, ainda assim, levantei o rosto:
— Então, o que sugere?
Uma respiração profunda encheu seu peito. Reconheci, pela
primeira vez, a exaustão em seu semblante. Ele estava na mesma
bagunça de sentimentos.
— Honestamente? Eu não sei. Você ainda é uma criança. Sou
seu chefe. Se isso não me torna um filho da puta, não sei o que
tornaria.
— Não torna. Eu quis, quis muito. Até menti para você por isso.
E tenho vinte e um anos, Derek. Se quer saber, sou emancipada
desde os dezesseis. Sempre cuidei de mim mesma, não sou
nenhuma garotinha indefesa.
Odiava a culpa e a piedade em seu rosto. O arrependimento.
Minha cabeça estava doendo com essa conversa, com o medo de
ser desprezada, de ser demitida e ficar novamente vulnerável na
vida.
— Tomei uma aspirina há pouco tempo e ela ainda não está
fazendo efeito. Vou me deitar. E... e eu aceito o que decidir... só...
bata a porta quando sair, por favor.
Não podia ficar implorando por algo que não era recíproco. E
não queria chorar em sua frente. Dei as costas a ele e fui para o
quarto. Meu objetivo na vida era ser feliz, cuidar de mim mesma, ter
um teto sobre minha cabeça e comida no prato. Já fui maltratada
demais pela vida. Precisava agora priorizar minhas emoções. Se eu
tivesse que procurar outro emprego, pensaria nisso amanhã.
Me deitei na cama, sob o edredom quentinho, em posição fetal.
Esse quarto era meu refúgio no mundo. A cama de ferro que eu
mesma reciclei, lixei e pintei. O varal de luzes pendurado nela. Até o
papel de parede floral original do imóvel, de gosto questionável, me
dava a sensação de lar. Uma que era boa, acalmava.
Estava feito.
Eu havia me deitado com ele e não tinha mais volta.
Era o que eu queria, não era?
Não vou me arrepender de nada. Sou competente, me formei
com notas altas, ganhei uma bolsa de especialização. Posso
conseguir outro emprego. Gastei o mínimo dos meus salários desde
que comecei a trabalhar no gabinete dele – com exceção dos
sapatos novos e do vestido – tenho economias para me manter por
algum tempo enquanto procuro uma nova colocação, se for o caso.
Coragem para lutar não me falta.
Fechei os olhos.
Mas ouvir passos no chão de madeira me surpreendeu. De
costas para a porta, olhei por cima do ombro a tempo de vê-lo entrar
em meu quarto. Mãos nos bolsos. Um olhar especulativo em volta.
Então fez o que eu não esperava. Retirou o blazer cinza, elegante, e
pousou sobre a cadeira. Depois a gravata.
— O que... o que está fazendo? — murmurei, confusa.
— O que deveria ter feito na noite anterior — seu rosto sério,
mandíbula apertada, se fixou no meu — Cuidar de você.
— Ah...
— Precisa de mais algum remédio? Água? Comer alguma
coisa?
Sacudi a cabeça que não, olhos arregalados, observando o que
pretendia, estarrecida.
— Certo — outro olhar em volta, o quarto organizado, antes de
se aproximar da cama — Então afaste-se um pouco, por favor.
Fiz, mas sem coragem de continuar encarando.
O peso de seu corpo afundou o colchão ao meu lado.
Não resisti, por cima do ombro, espiei Derek tirando os sapatos.
Meu coração acelerado, galopava no momento em que ele se
deitou totalmente atrás de mim.
— Venha aqui.
Não podia ser um sonho, mas... o homem por quem eu estava
apaixonada deitado em minha cama, me trazendo para seus
braços... parecia bom demais para ser verdade.
— Durma — exigiu baixinho.
— Acho que não vou conseguir — admiti.
— Tente.
Seu cheiro, seu calor, sua voz rouca. Pouco a pouco, fui me
sentindo mais desperta, o sono e a dor de cabeça empurrados para
segundo plano. Em cada ponto onde nos tocávamos, minha pele
queimava. A mão espalmada em minha barriga me apertou mais
forte.
— Pare, Cherry.
— De fazer o que? — cochichei, mal me lembrando de como
respirar.
— De reagir a mim.
Derek inspirou forte e lento.
— Só tente relaxar, menina.
A intimidade que nunca imaginei. E era maravilhosa, mesmo
que fosse uma ilusão. A palma de sua mão espalmada em minha
barriga por cima da camiseta era tão quente. Seu peito atrás de
mim, o braço forte me cercando.
— Onde cresceu? — surpreendeu com a questão um tanto
aleatória.
Ele estava tentando me distrair, ou a si mesmo, pelo que
parecia.
— Nova Iorque.
— Em que lugar de Nova Iorque?
— Um pouco em cada lugar, mas passei mais tempo no Bronx.
— Mudava-se muito?
— Cresci em lares adotivos, como sabe — essa informação não
estava em meu currículo, mas de alguma maneira, Derek tinha esse
conhecimento — Tem gente que só quer receber o cheque do
governo, por isso se disponibilizam a cuidar, mas quando as contas
ficam equilibradas, decidem que não é mais viável continuar com a
criança e a devolvem. Nunca havia tempo o bastante para criar
laços. A família com quem fiquei mais tempo morava no Bronx.
Foram quase dois anos lá.
Silêncio.
Por alguma razão, contei também algo que eu nunca falava, que
não tinha com quem falar.
— O que aconteceu com seus pais?
— Minha mãe me entregou para a adoção quando eu tinha
quatro anos. Nunca mais a vi. Não sei quem é meu pai.
Derek ficou em silêncio.
Não queria que sentisse pena de mim ou algo assim.
— Não foi tão ruim quanto parece — brinquei... apesar de ter
sido ruim o bastante para eu nunca desejar isso para nenhuma
criança. Quando eu for mãe, vou cuidar com unhas e dentes dos
meus filhos, não importa o que tenha de enfrentar.
— Por que Ciência Política?
Essa era fácil.
— Política pode mudar a vida das pessoas — apesar da
lentidão e má-vontade do sistema, somente pela lei é que ocorrem
mudanças reais.
— Por isso veio para cá?
Inspirei devagar.
— Sim... e também para... recomeçar.
Para pertencer a algum lugar. Em Washington, D.C., eu podia
ser uma nova pessoa. Não a rata sem família que vivia dependendo
da assistência social para ter o mínimo. Aqui eu podia construir
minha própria história, trabalhar duro, criar raízes.
Depois de mais um longo momento de silêncio, colada a ele,
decidi fazer perguntas também.
— E quanto ao seu pai?
— Já ouviu falar dele?
— Todo mundo ouviu.
Silêncio.
Uma respiração profunda.
— O melhor político que este país já viu. Pessoas como ele
fazem falta.
— Você é como ele — murmurei.
— Tento ser — disse em voz baixa, como se não fosse hábito
falar sobre isso — A maior parte do tempo me questiono sobre que
decisões ele tomaria em meu lugar, e tento me nortear por elas.
Derek era bom, justo, honesto, trabalhava duro. Empenhava-se
de verdade em produzir leis benéficas para os que precisavam,
minorias, classe trabalhadora, era a voz delas no Congresso,
exatamente como o pai.
— Está fazendo um bom trabalho. Bill Reynolds deve estar
orgulhoso de você.
Passou-se um longo momento sem que dissesse nada. Pensei
que o assunto tivesse morrido.
— Não sei se orgulho é a palavra que define o que ele
provavelmente sentiu a meu respeito. Não fui o melhor filho
enquanto estava vivo.
— Por que diz isso? — inquiri, surpresa.
— Eu era jovem, prepotente, não compreendia a necessidade
que meu pai tinha de colocar os compromissos da vida pública
acima da vida privada. Crescer dividindo-o com a política causou
certo tipo egoísta de ressentimento em um garoto mimado. Fiz
coisas, coisas para chamar a atenção dele, das quais não me
orgulho. Tenho dedicado minha vida para corrigir, mas Bill Reynolds
não está mais aqui para ver, está?
Pensei no que eu sabia sobre a morte de seu pai. Derek tinha
dezoito anos quando o carro de Bill Reynolds se envolveu em um
acidente fatal nos arredores de Washington, D.C. Dois anos depois,
o filho despontava na política. Então era pela culpa?
Não. Eu não acreditava nisso. No começo, pode ser que sim,
mas Derek nasceu para o que faz. Foi o Senador mais jovem eleito
pela Califórnia, ganhou prêmios populares de desempenho. Era sua
vocação.
— Não, ele não está — respondi, embora fosse uma retórica —
Mas se te ajuda saber, seu nome já está consagrado naquele lugar
que marca a história: um político que verdadeiramente contribui para
a América, ao lado do nome de Bill Reynolds. Não uma sombra ou
cópia, mas um desbravador.
Senti seu corpo tenso atrás do meu.
— Diz isso porque está apaixonada por mim, Contreras — se
era uma coisa boa ou ruim, seu tom não me deixou ter certeza. Fato
é que ele sabia dos meus sentimentos.
Não deixei de notar que não disse nada sobre os seus a meu
respeito.
Só o que eu sabia é que meu chefe não era tão alheio a mim;
do contrário, não estaria em minha cama agora.
— É, estou — sussurrei para o quarto parcialmente escuro.
Seu peito forte subiu e desceu atrás de mim, torturado.
— Sou velho demais para você.
— Tenho vinte e um.
— É uma criança, que até vinte e quatro horas atrás ainda era
virgem.
— Mas não sou mais.
— Não é — havia um sorriso ácido em sua voz — Porque eu a
deflorei. Me deixei perder o controle e fiz merda.
Fez merda. Era assim que definia.
Não pretendi que as lágrimas surgissem, mas vieram. Estava
emocionalmente sensível. Minha menstruação desceria dentro de
dois dias, além disso, para ajudar a desequilibrar ainda mais minhas
emoções. Não estava em um bom dia para lidar com o
arrependimento e a culpa de alguém.
— Se faz você se sentir melhor, não quero que se case comigo
ou me assuma publicamente, nem nada do tipo. Tinha que
acontecer, uma hora ou outra. Se não fosse com você, teria sido
com outra pessoa.
— Homens aos seus pés não faltam para isso, não é mesmo?
— acusou com acidez.
Fechei os olhos apertados.
— Talvez não faltem — por alguma razão, também queria feri-lo.
O modo como seu corpo enrijeceu colado ao meu me disse que
eu havia conseguido.
— Acha que encontrará alguém que me supere comendo sua
bocetinha, Contreras? — sua palma em meu estômago ganhou
mais pressão, possessiva — que a faça esguichar daquele jeito? —
rosnou baixinho, a boca colada em meus cabelos.
— N-não sei — sibilei, meu corpo desperto demais.
— Ninguém vai te foder como eu, menina — a mão grande,
quente, subiu por meu corpo e veio para o pescoço, apertando
daquele jeito que dominava a passagem de ar e me excitava demais
— Comi sua boca, boceta, sua bunda. Minhas digitais estão
gravadas em seu corpo.
Empurrei minha bunda ao seu encontro, queria senti-lo de novo,
ter cada uma destas coisas acontecendo outra vez.
— Não — negou, uma energia furiosa — Não vou te comer do
jeito que está desejando, Contreras. Por mais que eu queira meter
fundo nessa coisinha apertada — pressionou o volume latente em
sua calça contra minha bunda — Você ainda está toda dolorida. Seu
corpo precisa se recuperar.
— Eu quero — avisei, tirando isso do caminho.
— Sei que quer — colou a boca em meu ouvido, me deixando
louca — É uma putinha, afinal, não é?
Fiquei sem ar quando apertou mais minha garganta.
Eu era? Era a putinha que me acusava de ser?
Se desejá-lo com agonia me tornava isso, então eu era sim.
Rebolei mais.
De um minuto para o outro, meu chefe nos girou na cama.
Pairou em cima de mim. Ainda me enforcava, e agora, deslizava a
mão livre por meus seios, amassando, apertando, enquanto
empurrava a ereção dentro da calça contra minha pélvis. Beliscou
um mamilo. Desceu pelo estômago.
Encontrou minha intimidade sob a renda da calcinha.
O som gutural de sua garganta ao identificar meu estado de
excitação me encheu de poder.
Meu chefe abocanhou meu seio, por cima da velha camiseta,
mordendo deliciosamente quase como se me punisse por estar tão
molhada.
Separei bem minhas pernas para que tivesse completo acesso.
Era só descer o zíper e colocar para fora, não teria nenhum
trabalho.
Eu me sentia piscando, abrindo e fechando por ele.
Derek me surpreendeu quando se afastou para trás, levantou
meu quadril para ele e... e caiu de boca.
Gemi alto, apertando os lençóis entre os dedos, me oferecendo
para sua fome.
Fui chupada, lambida, masturbada com sua língua até meus
olhos rolarem em órbita e os primeiros espasmos do que prometia
incinerar meu cérebro me tornarem fraca.
Não sabia se seria capaz de suportar muito tempo aquela
sensação pré-gozo. Já me sentia tonta.
Um dedo longo se enfiou em mim.
— Dói?
Sim!
— Não.
— Mentirosa.
O polegar namorou as bordas de meu ânus.
— E aqui? — provocou, com a boca grudada em minha boceta.
Eu seria uma pervertida se admitisse que o queria ali, lá, em
todo lugar?
— Dói, mas eu quero... acho que... que gosto da dor —
confessei, porque foi o que descobri. Gostava da pegada agressiva
que ele tinha na cama.
Não sabia dizer se todas as relações eram assim, pressentia
que não. Que Derek também era extraordinário no sexo, além de
em tudo na vida.
— Putinha.
Chupou mais forte meu clitóris.
Mas antes que o orgasmo viesse e me arrebentasse, como
prometia ser, meu quadril foi subitamente girado. Fiquei de quatro
na cama, meu chefe de joelhos logo atrás. Por cima do ombro, o vi
pegar a carteira no bolso da calça, dela, tirar um trio de
preservativos e rasgar a embalagem de um com os dentes.
Enquanto tirava o pau para fora e envolvia aquela extensão
descomunal, seu olhar queimava o meu.
Subiu o punho sobre o pênis grande e grosso. Desceu. Subiu.
Desceu.
Minha boca salivou com a cena.
Então um tapa forte e inesperado me fez saltar no lugar.
— Nunca será assim com outro, está entendendo?
Não respondi. Santo Deus, eu me sentia doente por ele.
— Está entendo, Cherry? — outro tapa forte, estalado, seguido
de um beliscão em meu clitóris.
Choraminguei de dor e desejo.
Derek se posicionou na abertura de meu cu, mas não entrou.
Agarrou um seio por baixo da camiseta, amassou e brincou com o
mamilo entumecido.
— Ai — gemi rouca, empurrando mais a bunda para ele,
enlouquecendo com a perspectiva de ter tudo aquilo dentro de mim
outra vez.
— Ninguém além de mim, diabinha desgraçada — voltando a
me enforcar, puxou meu corpo para o seu, fiquei sobre os joelhos,
costas coladas a seu peito. Derek me masturbou gostoso com a
mão enquanto me beijava a bochecha, sugava o lóbulo da orelha,
mordia agressivamente a nuca — Isso me pertence, Contreras.
Que delícia de sensação.
Gostoso demais.
Quando capturou minha boca para um beijo, me fazendo provar
o sabor salgado de minha vagina nele, também empurrou a cabeça
do pau para minha vagina. Somente a cabeça foi o suficiente para
me fazer uivar.
Foi como se a descarga elétrica só estivesse esperando isso
para explodir. Gritei, mergulhando fundo naquela sensação que
prometia me desintegrar. Não via nada pela frente, a não ser as
estrelas em minhas pálpebras e a onda furiosa me rasgando o
mundo.
Imersa na névoa de loucura, fui empurrada de quatro outra vez.
Dedos lambuzaram minha bunda e... e meu cu foi penetrado,
enquanto a onda avassaladora me levava ao delírio.
O uivo foi de dor.
E de prazer quase surreal demais para suportar.
Entrou e saiu. Entrou e saiu. Grunhindo. Mãos cravadas em
meu quadril. Mordeu meu ombro. Golpeou minha bunda.
Precisei agarrar as grades da cama.
— Que cuzinho gostoso do caralho — rosnou animalesco.
Macetou mais.
Curvei a cabeça para trás, Derek enlaçou meu cabelo no punho.
Eu estava subjugada. Penetrada até o fundo.
Não fazia ideia real de como um cavalo gozava, mas quando
senti a pulsação violenta de seus jatos dentro do preservativo,
atolado em mim, essa expressão me veio à cabeça: meu chefe
gozou como um cavalo.
A cabeça jogada para cima, a veia grossa em seu pescoço
agitada em um ritmo forte.
Minha visão preferida dele, atrás de sua mesa, compenetrado
no trabalho acabava de ser substituída por essa.
— Tem certeza?
— Positivo, chefe. Rastreei cada câmera no caminho — disse
Iron ao telefone — Sua filha foi em direção ao lago. Sozinha. É onde
está agora.
Inspirei com força. Merda, por que nunca ninguém falou que ter
um filho era o mesmo que estar na borda de um ataque cardíaco
iminente?
— Mande alguém para vigiá-la. Estou a caminho — eu não
estava muito longe do Lago Marble Falls, confirmei ao olhar para o
GPS do carro.
— Já estão de olho nela, senhor.
Desliguei. Mordi o punho com força, canalizando aquela energia
irracional para algum lugar. Se a última hora não tivesse sido a pior
de minha vida, não gostaria de saber o que era.
A ideia de aquela menininha estar perdida, vagando por aí, ou
pior, ter caído em mãos erradas, drenou um pedaço da vida que
existia em mim. Fez mais: terminou de trucidar qualquer dúvida que
eu tinha sobre a capacidade de amar profundamente um filho.
Porra, isso em meus olhos eram lágrimas?
Abbi, Abbi, de quem será que você herdou esse instinto de fugir
quando as coisas ficam difíceis, hein?
Ri, sozinho em meu carro. Grato por não ter testemunhas do
meu estado. Pensei imediatamente em Cherry. Na dor que jamais vi
em seu rosto bonito, jovem, mas muito mais amadurecido agora.
Vê-la sofrendo pela filha não foi jamais o que desejei, mesmo que
ainda estivesse furioso com ela.
E como seria então? Depois? Minha esposa não abriria mão da
guarda, eu tampouco estava minimamente inclinado a perder mais
tempo longe de minha filha, então qual é? Como diabos isso
aconteceria?
Sacudi a cabeça. Era inútil pensar nisto nesse momento,
quando tinha um problema mais imediato pela frente: o fato de que
agora Abbi sabia quem eu era.
Porra, eu mentiria se não dissesse que ansiei demais pela
verdade. Que, na noite anterior, a covardia da mãe dela me deixou
fodido.
Minha filha precisava saber que me tinha. Que já era amada por
mim e não havia nada que eu não fizesse por ela. Aquele vazio
errado e cruel em sua certidão de nascimento não era jamais para
ter acontecido, em primeiro lugar. Abbi precisava saber que eu
lutaria por ela.
Nem que para isso, eu tivesse de arrastar sua mãe para o lugar
de onde ela nunca deveria ter saído.
Congelei momentaneamente com esse pensamento.
Eu a queria de volta? Depois de tudo? Queria Cherry em minha
vida... em minha cama outra vez?
Diabos. Tentei reprimir minha mente de ir por esse caminho.
Cherry e eu, não poderia se repetir. Eu não daria a ela outra chance
de me quebrar, não podia dar.
— Guarde essa merda para mais tarde, cara.
Foi um bom estímulo estar a um minuto de alcançar o lago, de
acordo com o GPS.
Avistei um dos homens contratados por Iron na entrada.
Discreto. Óculos escuros. Desliguei o carro, desci e me aproximei.
— Onde ela está?
— Ao Norte, depois daquelas árvores, senhor. A garotinha está
com os gansos.
Apesar do nervosismo e do alívio fodido que quase enfraqueceu
meu corpo, eu me peguei sorrindo.
— Bom trabalho — falei ao cara.
Peguei meu telefone e, quando obtive a confirmação visual, fiz o
que era certo. Disquei para a mãe de minha filha.
— Derek! — a voz angustiada de Cherry surgiu logo após o
primeiro toque — E então? Você a encontrou?
A memória da dor em seu rosto exigiu que eu afagasse meu
próprio peito.
— Sim. Estou vendo ela, Cherry.
— Onde? Onde ela está?
— No Lago Marble Falls.
— Santo Deus... — seu suspiro de alívio me fez fechar os olhos.
Saudade dessa infeliz, agora? O pensamento intrusivo se
atreveu a me desafiar. Não. Não era saudade. Mas Cherry e eu
compartilhávamos o que havia de mais valioso no mundo. Esse elo
não era o tipo de coisa que poderia ser ignorado.
— Estou indo para aí.
— Não — cortei-a — Vá para casa, Cherry. Eu a levarei para lá.
— Derek...
— Eu a levarei — fui incisivo — Fique tranquila.
— Mas...
— Confie em mim.
Não queria mais ser o espectador da relação delas. Queria
forjar a minha própria com minha filha.
— Tudo bem, estou voltando para casa. Só... cuida dela, por
favor.
— Ela também é minha, Cherry. Jamais faria nada que a
magoasse.
Jamais te magoaria também, esposa, apesar de você não ter
me dirigido a mesma consideração quando realmente importou.
Desliguei, joguei o aparelho dentro do carro e fui em direção ao
grupo de gansos reunidos na beira do lago, com uma garotinha
jogando pequenos pedaços do que presumi ser pão para eles. Seus
lábios, tão parecidos com os da mãe, apertados em um biquinho
aborrecido, bateu forte em meu peito. Minha garotinha.
— Aposto como você é a criança preferida destes gansos em
todo o mundo — brinquei serenamente, impondo tranquilidade ao
meu tom para não a assustar.
O que não pôde ser evitado. Olhinhos tão escuros quanto os
meus, se arregalaram. Mas Abbi se recuperou rápido. Era orgulhosa
como eu... e como a mãe.
— Como cê me achou?
Confirmei, com essa pergunta expressada no forte sotaque
texano, que eu também era alvo de seu aborrecimento.
— Deu trabalho pra burro — me lembrei da expressão que já a
vi usando — Foi preciso um montão de gente. Você deve ser a
melhor jogadora de pique-esconde desta cidade.
— É — bufou de um jeito engraçado e deu de ombros — sou
sim.
Competitiva como eu.
— A cidade toda está bem preocupada.
— Humpf — torceu o pequeno nariz — Tão me procurando, é?
— Sua mãe, principalmente. Ela não vê a hora de você voltar
para casa.
Abbi mantinha os olhos fixos nos bichos.
— Não vou voltar.
— É mesmo?
— É — jogou mais uma migalha do que confirmei ser pão do
seu sanduíche — Vou morar aqui.
— No lago?
— Na floresta.
— Hm. Posso perguntar por quê?
A pontinha do tênis cor-de-rosa raspou o chão.
— Porque tô muito magoada.
Abaixei meu olhar para que ela não visse minha vontade de
sorrir.
Uma caipirinha invocada, essa minha. Sentei-me ao seu lado no
chão.
— Com sua mãe?
— É.
— Por quê?
— Por que ela é uma mentirosa.
Eu deveria dizer que era exatamente o que eu pensava de
Cherry. Confirmar que a garotinha não estava sozinha nesse time.
Mas... não era justo com a mãe dela.
— No que foi que ela mentiu, Abbi?
Constrangida, minha filha chutou uma pedrinha para longe.
— Cê sabe.
Encarei o extenso lago diante de nós. Era engraçado como a
vida podia surpreender. Eu, no alto dos meus quarenta e quatro
anos, e de toda a experiência que possuía, jamais me imaginei na
situação de estar diante da conversa mais importante de minha vida
e não saber por onde começar... e que essa conversa fosse com
uma criança de seis anos.
— Posso te contar um segredo?
Emburrada, mas curiosa, como toda criança, minha filha
resmungou a contragosto:
— Pode.
— Cherry Contreras é a única pessoa no mundo capaz de me
deixar furioso de verdade.
Protetoramente ― e isso foi a coisa mais engraçada ― Abbi
franziu a testa, talvez pronta para sair em defesa da mãe.
Leal a ela.
Só que antes que se virasse contra mim ― e senti uma
inesperada vontade de rir com isso ― me antecipei:
— E ela é também a mulher mais surpreendente que já conheci.
Embora jamais tenha dito isto em voz alta, nem mesmo para
ela, era a mais pura verdade. Nada, na estagiária que invadiu meu
gabinete toda desalinhada, como se tivesse acabado de foder, e
surpreendentemente se mostrou a garota mais inocente que já
cruzou meu caminho, era previsível.
Cherry era forte e vulnerável, ao mesmo tempo.
Atrevida e tímida.
Silenciosa e inquieta.
Solitária e magnética.
Corajosa e insegura.
Demorei a enxergar que não havia jogos, com ela. Que o que
desejava era exatamente o que dizia desejar, beirando a
ingenuidade de se recusar a vestir uma máscara, como faziam
todos em meu mundo.
Mas o mais surpreendente ela deixou para o final. Quando saiu
da minha vida, o fez sem alardes, sem ameaças. De forma
silenciosa e definitiva.
Poucas pessoas têm coragem de deixar tudo para trás e
recomeçar.
— Ah — minha filha exprimiu a interjeição, que eu não soube
dizer o que significava.
— Imagino que ela seja uma boa mãe, também — pesquei.
— É, das boas — ponderou, ainda que contrariada.
— E que você a ame imensamente.
— Humpf.
Bati meu ombro no da menina.
— Ela tem o dom de enlouquecer a gente, não é mesmo? E
quando chora, então?
— Cê viu minha mãe chorando? — olhinhos de carvão se
arregalaram.
Assenti, me fazendo de desentendido.
— Hoje mesmo.
— Ela tava chorando?!
— Estava sim.
— Hm... — quase podia ver toda a raiva inocente abandonando
seu corpo, quando a preocupação tomou o lugar.
— Aposto dez dólares que ela vai querer te abraçar bem forte,
quando voltarmos.
— Eu aposto cinquenta, nisto!
— Que ela vai te abraçar?
— Claro! — Abbi fez um trejeito com o braço — Minha mãe
adora ficar abraçando. Eu que tenho que falar pra ela parar de ficar
grudada em mim que nem carrapato.
Evitei pensar em como isso acontecia quando Cherry era minha.
Era uma ideia equivocada de todo modo. Cherry nunca havia
sido minha de verdade. Ou de quem quer que fosse. Eu a tive, por
um tempo, o tempo que ela permitiu. Efêmero como uma descarga
de energia no solo, deixando somente os rastros de queimadura,
uma cicatriz de que aconteceu, um lembrete de que esteve ali.
Enquanto esperava minha filha tomar a única decisão possível,
por si só, inevitavelmente me perguntei se ela mencionaria os
boatos que a fizeram fugir e mobilizar uma cidade inteira. E
aconteceu. Quando réplicas dos meus olhos escuros se voltaram
para mim, apenas esperei o esperado:
— Cê é mesmo meu pai?
Sorri para ela, sentindo uma vontade violenta de abraçar minha
filha.
— Você gosta de boas histórias, Abbi?
Abbi fez um pequeno muxoxo.
— Gosto, ara.
— Então vem comigo que eu e sua mãe temos uma muito boa
para te contar.
Não era justo entrar no assunto ou contar a verdade sem Cherry
por perto. A maior parte desta história ela dela, não minha.
Embora estivesse determinado a mudar as regras deste jogo no
futuro.
Foi confuso encarar Derek no gabinete na segunda-feira
seguinte à sua visita ao meu apartamento. Quando ele partiu, no
sábado bem cedo, não havia promessas entre nós. Nenhuma pista
sobre em que pé estávamos com aquela situação. Agora, havíamos
transado duas vezes.
Na nossa reunião, em sua sala, acompanhados de dois
assessores e da minha chefe, evitei fazer contato visual. Era difícil,
depois de tudo o que havíamos feito, não evocar memórias, e elas
não me ajudariam em nada.
— Qual é a opinião da Srta. Contreras? — Derek indagou,
impassível, do topo da mesa. Todos os olhares da sala naturalmente
se voltaram para mim, inclusive o dele. Forte, intenso. Precisei
pigarrear para encontrar minha voz.
— O projeto define que apenas empresas com um faturamento
anual acima de dez milhões terão direito às reduções tributárias
propostas. Isso cria uma lacuna, pois muitas das startups ou
empresas menores podem não alcançar esse patamar de receita
inicialmente.
— Continue — incentivou.
— Em minha opinião, esse ponto deveria ser revisto. Excluindo
essas pequenas empresas, acabamos por desprezar o impacto que
as reduções tributárias poderiam ter no estímulo ao crescimento, e
consequentemente na geração de empregos.
— Que valor sugere? — um dedo pairava sobre seus lábios,
compenetrado, estudando o que eu dizia com atenção.
— Não determinar um valor específico como critério, senhor,
mas uma alíquota para a categoria com base no enquadramento
fiscal. Derek assentiu devagar.
— Certo. Redijam a proposta final com estas alterações. É o
que apresentaremos ao Congresso.
Juntamos nossas coisas, concluindo que a reunião estava
encerrada.
— E Srta. Contreras? Olhei para ele.
— Prepare-se para dar uma entrevista ao NYT antes da
votação.
— Eu? — olhei dele para Mônica. Minha chefe imediata
assentia, concordando.
— Exatamente. Ninguém melhor do que a senhorita para
esclarecer os pontos de dúvidas que vierem a ser levantados. A
senhorita assinará a proposta como coautora.
— Mas... mas essa proposta é sua — murmurei, estarrecida.
— Nossa — afirmou convicto, agora sim encerrando o encontro.
Carter me deu um sinal com o polegar para cima, do tipo “é isso aí!”.
Derek viu, fechou a expressão, não sem antes estreitar os olhos
para o estagiário.
Na saída da sala de Derek, já no horário do intervalo do almoço,
Megan, a garota da recepção, esperava do lado de fora.
— Há um visitante para você, Cherry.
Estranhei.
— Para mim?
Megan conferiu o papel em sua mão.
— John Matt, da Meta.
— Uau — Carter assoviou baixo, passando por nós — O
pessoal da Meta mandando um representante. Estão mesmo
agitados com a proposta.
Pressentia que esse não era o motivo de John ter vindo.
— Obrigada, Megan.
Estava pronta para ir encontrá-lo quando a voz poderosa e
exigente de Derek me parou ainda na porta:
— Srta. Contreras, uma palavra, por favor.
Engoli em seco.
— Pode dizer ao Sr. Matt que o encontro será em alguns
minutos, Megan? Obrigada.
Esperei que todos passassem por mim, da porta, para entrar.
— Feche — exigiu Derek. Fechei, trancando nós dois em sua
sala. Ele agora estava em pé, parado perto da ampla janela.
— Como você está? — indagou, de costas para mim.
— Bem... obrigada.
Devagar, ele se virou. Quase perdi o fôlego com a profundidade
ardente nas chamas em seus olhos.
— O que ele quer aqui?
— Não sei — fui honesta.
— Combinaram? — indagou com ceticismo.
— Não tive a oportunidade de falar novamente com John desde
o jantar.
— John — ponderou, em uma crítica silenciosa pela
informalidade.
Esperei, pacientemente. Minhas mãos coçavam de vontade de
tocar seu rosto. Meu peito batia um pouco mais rápido. Era difícil
administrar esses sentimentos, principalmente quando eu não fazia
ideia de como ele se sentia a meu respeito.
Após uma inspiração forte, e percorrer os dedos nos cabelos
perfeitamente arrumados, meu chefe declarou:
— Não quero que saia com ele.
— Para o almoço? — precisei esclarecer.
— Para um encontro, uma foda, ou qualquer que seja a merda
que ele está pretendendo vindo atrás de você.
— Então não devo me relacionar com ele — não foi uma
pergunta. Mas foi o suficiente para atiçar um lado possessivo que
raramente Derek exibia ao mundo.
— Com ninguém.
A esperança agia de forma estranha dentro de nós. Em mim,
deu dor de barriga, taquicardia, mãos suadas.
— Está dizendo que...?
Derek se aproximou devagar. Mais sério. Olhos mais escuros.
— Estou dizendo que não quero você com outro, Cherry —
havia uma posse silenciosa na declaração.
— Por quê? — me atrevi, ansiando para que ele dissesse o que
eu gostaria de ouvir.
Só que Derek não estava pronto para ir até o fim no que
pensava. Deu para reconhecer isso em sua expressão sombria.
Meu chefe não me queria com outro... mas não tinha a menor
intenção de colocar um nome para o que fizemos. De prometer um
“depois”.
Tudo bem. Eu já esperava por isso. Não era tola o suficiente
para pensar que Derek Reynolds se envolveria de verdade comigo,
ainda mais quando tinha um mundo de opções muito melhores. Um
cardápio de mulheres que daria tudo para estar ao seu lado.
Assenti.
— Preciso sair para almoçar agora, senhor.
Um músculo em seu rosto saltou forte. Evitei encará-lo por muito
tempo, me virei e fui para a porta.
— Não alimente o que quer que ele tenha vindo procurar,
Contreras — ainda avisou.

*
Naquela noite, Derek apareceu à minha porta. Gravata
afrouxada, cabelo bagunçado, expressão séria. Parecia ter lutado
contra a própria força de vontade, e perdido. Quando me afastei
para que entrasse, ele segurou meu rosto entre as mãos grandes,
mergulhou os dedos entre os fios dos meus cabelos agora soltos e
me beijou. Profundamente, punitivamente.
— Eu não deveria estar aqui.
Não respondi, porque temia que qualquer coisa que eu falasse o
fizesse desistir.
Ceder ao desejo que sentia por mim era uma tortura para ele, e
acabava sendo para mim também. Ao mesmo tempo que me sentia
em uma felicidade absurda, também me sentia errada,
envergonhada por algo que eu nem sabia o que era.
Eu não queria ser o segredo sujo de ninguém. Só queria
construir uma vida para mim, uma história de coisas boas.
— O que há de errado comigo quando o assunto é você,
garota? Por que não consigo ficar longe? — mordeu meu lábio.
E por mais que eu tentasse evitar, era quase uma doença
aquele sentimento de gostar tanto de alguém.
Dando as costas para ele, fui para o quarto. Sabia que me
seguiria. Diante de minha cama, o olhei por cima do ombro. Estava
em pé na porta, mandíbula travada. Tirei a camiseta de dormir, e
depois a calcinha.
— Cherry — advertiu.
— É o que veio buscar, não é? — me girei, totalmente nua para
sua contemplação.
Minha atitude o deixou furioso.
Melhor assim. Preferia isso à culpa. Sua culpa fazia eu me sentir
suja.
Deitei em minha cama, afastando de lado o livro que eu lia, um
erótico de banca.
Separei as pernas e comecei a me tocar. Olhos fechados.
Fantasiando também.
Só antecipei o que eu já faria em breve, me tocar pensando
nele. Meu desejo o atraiu para minha casa esta noite.
Ouvi o rugido baixo. O baque de seus joelhos no chão. A fome
como caiu de boca em minha boceta e me devorou. Puxei seus
cabelos, gemi gostoso, sensível, delirante. Espasmos começavam a
tremer meu ventre. Derek se afastou. Ficou de pé e abriu o zíper da
calça.
Gloriosamente duro.
O pau das minhas fantasias, carne e veias, grosso, ponta
brilhando.
Ele me arrancou da cama com um puxão em meu braço. Parei
abraçada ao seu peito, envolvendo seus ombros com meus braços
e enlaçando minhas pernas ao redor dele. Meu chefe me empurrou
contra a parede, a mão apertando meu pescoço. Num movimento
bruto, invadiu minha boceta. Saiu. Entrou. Macetou com raiva.
Gritei em seus braços, ou pelo menos tentei. Minha garganta
estava sob seu domínio.
O gozo veio rápido. Devastador.
Derek deu uma última estocada, grunhiu feroz e arrancou de
dentro de mim para gozar fora. Jatos quentes e intermináveis foram
jorrados contra meu estômago, respingando em minhas coxas.
Não quis encará-lo quando saltei no chão.
— Vou tomar banho — falei em voz baixa — Boa noite,
Senador.
Demorei no banheiro, encarando os ladrilhos sem realmente vê-
los.
Quando saí, sabia que ele não estava mais em minha casa. Um
sexo rápido, silencioso, sujo. Gostoso demais. Triste também. De
alguma forma, sentia que era assim que as coisas seriam entre nós.
Nossa configuração. Um desejo proibido e interminável, seguido por
uma encenação no trabalho.
Olhei para o livro aberto em minha mesa de cabeceira e
suspirei. Um sorriso sem vontade moveu meu lábio enquanto
evocava a garota do livro, cujo enredo se assemelhava ao meu,
consumida por um homem mais velho e poderoso. O melhor sexo.
Fechei o livro sem saber como a história dela terminava. Nem a
minha.
— Abbi! — corri para fora, saltando os degraus para pegar
minha filha assim que ela saiu do carro.
Minhas pernas falharam, moles demais para me sustentar em
pé.
Caí de joelhos e a puxei para junto do meu peito antes mesmo
que Abbi pudesse pôr os pés no chão.
As últimas horas foram a pior da minha vida. A mais
aterrorizante, angustiante. Santo Deus, nunca senti tanto medo. O
sumiço de Abbi me fez reafirmar a máxima de que filhos são o
nosso coração fora do peito, porque o meu simplesmente se
recusava a bater enquanto eu não a tivesse comigo.
— Ara, mãe, me larga!
Não consigo, filha.
Não conseguia nem falar. Só afundar o rosto em seu pescoço e
soluçar, me afogando naquele espiral de choro de alívio e gratidão.
Tanta coisa passou pela minha cabeça. Se algo tivesse
acontecido com ela, eu morreria. Simplesmente morreria.
— Abbi está bem, Cherry — uma voz rouca e
surpreendentemente suave falou sobre minha cabeça.
Derek.
Assenti.
Eu estava fazendo papel de boba, para eles. Claro.
E não me importava.
— Te amo, carinho — peguei o rostinho inocente em minhas
mãos — Te amo tanto, tanto.
— Também te amo, mãe — minha adolescente de seis anos
bufou.
Ri, em meio às lágrimas, e fui me levantando do chão.
Meus vizinhos da casa em frente, o Sr. e a Sra. Butler, estavam
do lado de fora, na calçada, comovidos.
Olhei em volta, a maior parte da vizinhança estava.
Pessoas boas, preocupadas com minha filha.
Uma cidade que ajudou nas buscas.
— Obrigada — olhei em volta — Ela está bem, gente, muito
obrigada.
Essa era a minha comunidade, o lugar ao qual me encontrei, me
sentia pertencente.
— Você assustou a gente, Abbi! — a Sra. Murphy gritou da
terceira casa, limpando as lágrimas também.
— Não faça mais isso, mocinha, ficamos preocupados com
você! — disse o Sr. Bennet, da casa ao lado, com ar de avô.
— Ara, pessoal, eu tô bem — envergonhada, Abbi chutou uma
pedrinha no chão.
Alguns riram, outros bateram palmas.
Derek, mãos nos bolsos, fez um movimento de cabeça para os
vizinhos, em saudação.
— Senador — o Sr. Bennet também cumprimentou, com
respeito.
— Obrigada, novamente pessoal — falei, limpando a bagunça
em meu rosto.
Peguei minha filha pela mão e segui para a entrada, com o pai
dela ao meu lado. Ele fechou a porta atrás de nós.
— Vamos para a cozinha — sugeri, ainda zonza daquela
bagunça.
Peguei três copos e coloquei sobre a bancada, me virando para
a geladeira, para apanhar a jarra de água.
— Aquele conhaque cairia bem agora — pediu Derek com
suavidade. Uma discreta demonstração de como isso também havia
mexido com ele.
Assenti e apanhei a garrafa do armário de cima.
— Boa ideia — Abbi concordou, assentindo vigorosamente —
Também vou querer.
— Engraçadinha. Suba na banqueta — falei para ela. E então
para ele: — Sente-se um pouco, também.
Entreguei o copo de água para Abbi, e um menor vazio para o
pai, junto da garrafa.
Abbi tomou a água quietinha. Eu queria abraçá-la e nunca mais
soltar.
Mas também queria torcer o pequeno pescoço.
Enquanto eles bebiam, espalmei a bancada e deixei minha
cabeça pender por um instante, respirando fundo, tentando gerir as
emoções.
Ainda tremia demais.
— Cê tá chorando? — especulou Abbi.
Reconhecia aquele tom mansinho dela. Um que vinha logo
depois de ela aprontar.
Subi a cabeça devagar, embora ela tivesse razão sobre os olhos
marejados.
— Nunca mais faça isso, carinho — e foi talvez o pedido mais
honesto que já fiz na vida — Nunca mais fuja ou se coloque em
perigo outra vez. Por favor, prometa para mim.
— Tá brava comigo?
Rindo, limpando a última lágrima remanescente, assenti.
— Furiosa. Mas também muito aliviada que você está bem. Só...
nunca mais faça isso outra vez, filha.
Senti a intensidade do olhar de Derek em mim, e mudei a
direção do meu olhar para ele. Para o homem que estava aqui com
a gente, que veio ao Texas pela filha. Que deixou uma cidade louca
com sua grosseria e desespero para que a encontrassem... e que
amava Abbi tanto quanto eu.
— Obrigada.
A sobrancelha escura arqueada com simplicidade me devolveu
em silêncio “ela é minha também”.
Concordei, ele tinha razão.
E não havia mais como adiar aquela conversa.
Respirei fundo.
— Acho que precisamos conversar.

Não era fácil. Encarar sua filha e revelar a existência de um pai,


depois de seis anos sem a presença dele, não era fácil.
Derek não me abandonou grávida, como acontecia com muitas
mulheres.
Não rejeitou a criança.
Não se recusou a conhecê-la ou participar de sua vida.
Fui eu que impedi essa convivência. E me arrependia por isso.
Porque, a verdade é que, não importava o que havia acontecido
entre nós, quanta mágoa preenchesse aquele abismo... nada disto
me dava o direito de separá-los, como fiz.
— Derek e eu fomos casados — foi por onde consegui começar
a desenrolar aquele grande novelo. Sentados na mesa de jantar, em
um tipo de reunião de família.
Olhei para ele.
— Mas não deu certo.
Ouvir isso o fez contrair a mandíbula, embora permanecesse
apenas ouvindo.
Encarei Abbi, de olhinhos ansiosos.
— Vim embora para cá, para Marble Falls.
Estava seguindo o conselho de Eva, na conversa que tivemos,
nos momentos de desespero enquanto esperávamos por notícias.
“Saber a sua origem, quem são seus pais, são questões
fundamentais para o desenvolvimento de qualquer pessoa, querida.
Não tive filhos, você sabe, mas olhando para você, sei que o que fez
foi pensando no melhor para sua filha. E que não quer que ela sofra.
Mas Abbi já tem idade para compreender algumas questões”.
“Ela vai me odiar, Eva”.
“Não vai. Apenas seja honesta com ela. Conte os fatos e deixe
que a menina faça as perguntas, que fique livre para questionar.
Responda sem acusações, sem encontrar culpados ou vitimizações.
Nossa Abbi é inteligente, ela vai saber lidar bem com tudo”.
“Ela fugiu quando ouviu sobre isso, pela coleguinha”, falei.
“Ela fugiu porque não foi você contando. Quem é que quer ouvir
a própria história pela boca de um estranho?”
— Quando cheguei aqui, descobri que estava grávida.
— De mim?
— Sim, carinho. De você. Foi... — puxei uma longa respiração
— Foi inesperado. Uma gravidez, normalmente, é descoberta no
começo. Mas eu só descobri quando já estava com mais de sete
meses. Você quer saber como descobri?
Abbi assentiu depressa. Derek, prestava atenção em cada
palavra. Alisei a toalha de centro sobre a mesa.
— Eu estava trabalhando na loja de ferragens. Você sabia que
Willie e Eva já foram donos daquela loja?
— Por isso que ele tem tanta ferramenta!
Sua linha de raciocínio me fez sorrir.
— É, por isso, sim. Quando cheguei em Marble Falls, eles
estavam precisando de uma atendente e me deram a vaga. Então
um dia, eu estava trabalhando e não me senti muito bem, acabei
desmaiando. Eva foi comigo ao consultório médico, e lá fizemos
alguns exames. Depois de alguns dias, o resultado chegou. Eu
estava grávida de você.
— Aí a Eva e o Willie ajudaram a cuidar de mim?
Essa era a parte da história que ela conhecia. O casal sempre
esteve em sua vida. Só Deus sabia o quanto eu era grata pela
acolhida, e pelo amor que demonstraram por nós. Se não fosse por
eles... sinceramente? Eu talvez não teria conseguido.
— Depois que você nasceu, eles decidiram vender a loja e se
aposentar, e sim, filha, Eva e Willie me ajudaram a cuidar de você.
Eles a amam, muito.
Abbi suspirou.
— Também amo eles demais da conta — afirmou baixinho,
satisfeita.
Continuei, porque agora vinha a parte difícil.
— Quando descobri a gravidez, já fazia alguns meses que eu
estava aqui em Marble Falls, sem contato com Derek — olhei de um
para o outro. Para a serenidade em um semblante que era traído
pelas chamas nos olhos escuros — Naquela época, eu tomei uma
decisão, uma que eu não tomaria hoje: decidi não contar a Derek
sobre você.
Silêncio.
Minha filha, assimilando de cenho franzido.
Derek, mandíbula endurecida.
— Por que, mãe? — foi Abbi a questionar, sem acusação,
apenas a dúvida genuína de sua inocência.
E ainda assim, não foi uma pergunta cuja resposta veio fácil.
Precisei de tempo para transformar em palavras.
— Eu não tinha a maturidade que tenho hoje — uma completa
verdade — Deixei que meus sentimentos, minha mágoa, minha
insegurança e orgulho, falassem mais alto — olhei para ele — Acho
que, no fundo, eu quis provar um ponto.
Provar que eu não precisava dele, do seu dinheiro ou influência,
para seguir em frente. Que eu poderia recomeçar.
Fui egoísta e orgulhosa. Egoísta por não pensar nos
sentimentos daquele ser dentro de mim. Orgulhosa, porque quando
Derek me acusou de querer alguém poderoso, eu só quis esfregar
em seu rosto que ele estava errado.
— Foi um erro. Na época, eu não via assim, mas hoje sei disto.
Impedi que vocês se conhecessem — inspirei profundamente para
me munir de coragem e força, e então expulsei as palavras, uma por
uma, as mais difíceis, as mais reais: — Derek é seu pai, Abbi. E veio
à Marble Falls somente por você.
A troca entre eles, o olhar de reconhecimento dela e... e aquele
intenso e devastador no rosto dele, enquanto eu vivesse me
lembraria desse momento.
Silêncio emocionado, e então:
— Oi, filha — disse ele, a voz rouca e grave, profunda como as
emoções em seu rosto.
— Oi, pai... — minha bebê, que seria para sempre uma bebê
para mim, devolveu timidamente.
Abrindo um sorrisinho constrangido e... e feliz.
Eu não queria chorar. Já havia chorado demais naquele dia.
Porém foi impossível evitar que meus olhos marejassem.
Derek empurrou a cadeira para trás e estendeu os braços.
— Venha aqui, filha.
E ela foi. Abbi saltou para aquele abraço que eu sabia, por
experiência própria, ser um dos melhores lugares do mundo, e se
aconchegou ali. Pai e filha. Finalmente.

Naquela noite, foi difícil fazer Abbi realmente pegar no sono. Ela
quis contar tudo ao pai, sua vida toda em quatro horas tagarelando
sem parar, mostrando fotos, brinquedos, cicatrizes.
E ele ouvia e respondia com carinho, atenção, amor, que jamais
vi em Derek.
Era como se um lado do homem público, do político respeitado,
imponente, impiedoso, existisse secretamente com o único objetivo
de ser destinado para a filha.
Quando finalmente descemos para a sala, depois de ter certeza
que Abbi mergulhara em um sono profundo (porque a cada vez que
quase cedia ao sono, ela acordava para conversar um pouco mais
com ele), nós nos servimos do conhaque e nos sentamos lado a
lado no sofá.
Ele, pensativo.
Eu, em uma bagunça emocional imensa.
Meu lado mãe, rugindo com força, agora que oficialmente Abbi
não era mais somente minha. Morrendo de medo do que viria
depois.
E meu lado mulher... meu lado mulher estava lutando
desesperadamente contra aquele velho e conhecido sentimento de
estar em sua presença. Hoje mais do que nunca.
Pensei que tivesse matado meu amor por esse homem. Queria
poder ter varrido de mim... mas não era o que estava acontecendo.
— E agora? — murmurei para o ar, sem coragem de enfrentar
seu rosto, sua presença massiva.
Demorou alguns segundos para ele responder.
Só o fez quando tomei coragem de encarar seus olhos,
profundos, cor de carvão e brasa. Intensos como somente Derek
Reynolds conseguia ser.
— Agora quero recuperar o tempo perdido com minha filha,
Cherry.
— O que isso quer dizer? — indaguei baixinho, engolindo a
ansiedade que tentava me engolir.
— Significa que não quero impedimentos para ter acesso a ela.
Quero conhecê-la de verdade, passar mais tempo com minha filha.
— Aqui?
Ponderou, meneando o queixo.
— Aqui, enquanto eu estiver nessa cidade, sim.
— E depois?
Lentamente, Derek pôs o copo sobre a mesa de centro e se
levantou. Somente então pude permitir meus olhos passearem por
seu corpo.
A calça jeans preta, camiseta, os óculos de grau que o faziam
parecer o Clark Kent da América.
— Depois, quero minha filha comigo em Washington. Vou levá-
la, e você Cherry, terá de decidir se vem com a gente ou fica.
Me levantei também.
— A vida dela é aqui, Derek.
Ele não se deteve de chegar o mais perto que pôde, até eu ter
que olhar para cima para fitar seu rosto.
— A vida dela é onde os pais estão.
— Eu estou aqui, em Marble Falls — afirmei, um pouco ofegante
demais, prevendo o caminho desta discussão.
Sua mandíbula forte, apertou.
— É, está. Só porque fugiu de mim — acusou baixo, a tensão
presente na rouquidão de sua voz.
— Não fug...
Ele me interrompeu, avançando mais perto.
— Decida, Cherry. Aqui ou lá. Não me importo. Mas Abbi vem
comigo.
— Não...
— Sinto dizer, mas será exatamente que acontecerá, esposa —
provocou, grunhindo, o olhar baixando para minha boca — Exceto
pela parte de que não a quero mais em minha cama.
Engoli em seco.
Foi um golpe baixo.
— Também não quero estar nela, Derek.
Em um acordo tácito, Derek e eu estabelecemos uma rotina. Era
como se vivêssemos em dois mundos paralelos. Em minha casa, eu
lhe dava total acesso, permitindo que invadisse meu espaço no
meio da noite com a chave que lhe entreguei, tomando-me com
voracidade. No entanto, no ambiente do gabinete, mal ficávamos
próximos. Nossas interações eram limitadas a reuniões sucintas,
nunca a sós, sempre marcadas pela formalidade.
Sem um compromisso, uma promessa, ou uma declaração do
que éramos verdadeiramente um para o outro.
Dei uma pequena entrevista ao NYT para a famosa jornalista
política Barbara Walters, uma mulher séria e comprometida com a
verdade, representando o gabinete em relação ao projeto de lei das
Startups. Era a minha primeira entrevista. Apesar do nervosismo,
acredito que me saí bem, explicando todos os pontos e
esclarecendo dúvidas.
Naquela semana, a lei foi aprovada com a maioria absoluta dos
votos, tornando-se um sucesso popular tanto entre o público quanto
na mídia.
Era setembro, e Derek começava a se preparar para a disputa
por um novo mandato, que ocorreria na primeira semana de
novembro, então as coisas no escritório estavam mais agitadas.
Mais assessores se juntavam à equipe. Mais compromissos oficiais
e viagens para a Califórnia. Menos encontros entre nós, e mais
intensidade quando aconteciam.
Derek venceria. Ninguém da equipe duvidada. As pesquisas
mostravam uma vitória com folga.
Mas então, uma bomba caiu no escritório naquela manhã.
Quando passei pela porta do prédio para iniciar o dia, sabia que
havia algo errado. Recebi olhares e notei cochichos enquanto subia
ao andar. Olhares de meus colegas de gabinete também. Mônica já
estava à minha espera, o que era incomum.
— Cherry — seu semblante fechado não me deu uma boa
sensação.
— Aconteceu alguma coisa?
— Venha à minha sala, por favor.
Enquanto andávamos, vi nas expressões de meus colegas certo
desagrado.
Sentei diante da mesa dela e quase tive um choque quando
colocou a tela de seu iPad na minha frente.
Na matéria de capa do The Wall Street Journal.
“A vida secreta de Derek Reynolds”.
Uma publicação sensacionalista e escandalosa sobre “o caso
amoroso do Senador Reynolds com uma assessora muito jovem,
recém-promovida a um dos cargos de confiança do gabinete.” “(...)
A amante é Cherry Contreras, uma novaiorquina ambiciosa, que
recebe o chefe todas as noites em seu apartamento em Near
Northeast”.
Imagens, muitas, de Derek saindo do meu apartamento com o
dia amanhecendo. Em uma delas, no dia em que o levei até a porta,
meu chefe me beijava o pescoço enquanto apertava meu seio.
“Amantes libidinosos”, de acordo com os vizinhos do edifício.
— Ele já viu? — murmurei, estarrecida, tremendo inteira.
— Já. Vou me reunir com Derek na cobertura em alguns
minutos.
— Mas... mas e eu? O que faço?
Mônica me desprezava naquele momento. Ela não disse nada,
mas seu olhar falava por si só.
— Volte para o seu apartamento e não saia de lá ou fale com
alguém — ordenou com frieza. — Vamos decidir como resolver essa
bagunça.

Assenti, envergonhada. Nunca me senti mais suja antes, como


a vadia que as expressões de meus colegas me acusavam de ser.

Eu andava de um lado para o outro sem parar, agoniada pela


espera, inquieta com o silêncio de Derek e Mônica durante todo o
dia, quando recebi uma mensagem para descer. Iron, o segurança e
motorista do meu chefe, me aguardava em frente ao meu prédio.
No caminho, que reconheci ser para a cobertura, apenas o
completo medo e nenhuma palavra.
Entramos pela garagem para evitar o caos que os jornalistas
faziam em frente ao edifício.
Subi no elevador com Iron, sentindo minha ansiedade doer no
fundo da barriga. Quando as portas se abriram, revelando a sala de
estar elegante e espaçosa, minhas pernas travaram.
Havia mais pessoas do que eu esperava: Mônica, três
advogados, duas mulheres da equipe de marketing (uma delas a
chefe de campanha), dois assessores... e ele, de costas para mim,
mãos nos bolsos, ombros rígidos, observando o mundo mortal
através de sua parede de vidro.
— Cherry — disse Mônica, a única razoavelmente receptiva,
entre tantos olhares de acusação. Exceto por um, que ao ouvir meu
nome, tornou-se mais tenso, mas ainda não se virou — Sente-se,
por favor.
— O que está acontecendo? — murmurei.
— Você não sabe? — ironizou uma das responsáveis pela
campanha de marketing — Seu nome e rosto estampam as páginas
dos principais jornais do país.
Não gostei da acidez, da forma como me tratou.
— Meu e do Senador, você quer dizer?
Por que ele não se virava? Por que não me olhava?
— Tem toda razão — disse ela — de vocês. Embora não seja o
passado dele que esteja sendo colocado em evidência, os segredos
e omissões.
— O que... o que quer dizer com isso?
— Vejamos — a odiosa mulher começou a correr tela atrás de
tela em seu iPad, lendo manchetes: — “A Ninfa que fisgou o político
mais cobiçado da América”, “A ardilosa Cherry Contreras”, “A órfã
ambiciosa que apostou alto”... “A fisgadora de políticos
descuidados”.
Eu me sentia zonza.
Foi minha chefe que decidiu ser um pouco mais humana
comigo, me estendendo seu iPad pela segunda vez naquele dia.
— Por que nunca mencionou que trabalhou para Sean
Montgomery, Cherry?
Meu corpo perdeu forças. Senti minha pressão caindo muito
rápido, foi por pouco que não caí no chão. Ou melhor, foi porque
Derek finalmente decidiu se virar e me encarar, com a mesma
pergunta furiosamente dançando em sua expressão ilegível.
Olhei para a tela e ali estava ele, aquele homem desprezível e
nojento, sorrindo para a foto. Ânsia de vômito revirou minhas
entranhas.
“Segundo fontes, Cherry Contreras, a garota descrita como
faminta por ascensão, já havia sido demitida pelo representante do
distrito 14 de Nova Iorque na Câmara, Sean Montgomery, depois de
demonstrar comportamento altamente antiprofissional. Pessoas
ouvidas afirmam que a jovem tentou uma investida no político do
Queens, mas foi severamente repreendida. Montgomery é tido por
seus funcionários e colegas, como um homem de reputação
impecável”.
Só podia ser um pesadelo.
— Por que não nos contou, Cherry? — Mônica insistiu.
Minha língua pesou na boca.
“Vou acabar com você, vadiazinha desgraçada! Vai se
arrepender por isso! Nunca mais conseguirá emprego nessa
cidade!”
A lembrança da última vez que ouvi a voz daquele homem
pavoroso, curvado de dor, berrando totalmente vermelho e
ensandecido, enquanto eu corria daquele lugar, me paralisou.
— Ele... — minha voz falhou, dor e humilhação. Não queria ter
que contar isso aqui, com tanta gente — Ele tentou me... estuprar.
A mulher elegante do marketing bufou sem acreditar em uma
única palavra.
Mônica gemeu baixinho.
Outras pessoas sacudiam a cabeça, não sabendo o que pensar.
A maioria duvidando de mim.
E meu chefe, do outro lado da sala, olhos cravados nos meus,
emitiu um tipo de grunhido gutural que fez todo mundo se silenciar.
— Deixem-nos a sós — exigiu.
— Não é hora para isso, Derek. Estamos todos aqui para limpar
a bagunça! — entoou a chefe de campanha.
— Não vou repetir, Alexandria.
— É um erro. Nosso tempo está contado. Há dezenas de
repórteres lá embaixo esperando uma declaração!
— Foda-se eles! — Derek, pela primeira vez desde que o
conheci, vociferou em alto e bom som, uma ordem inconfundível.

Sem contestar, um a um, a sala foi sendo esvaziada. Ficando


apenas nós dois.
Ele apertou a ponte do nariz, recusando-se a continuar olhando
para mim. Foi até o bar de canto e despejou uma dose significativa
do líquido âmbar no copo, esvaziando-o em seguida.
— Que porra de história é essa, Contreras? — indagou frio,
corpo ereto, punho cerrado.
Senti vontade de chorar.
— Estagiei para ele quando concluí o ano de especialização...
fiquei somente um mês.
— E está dizendo que ele, aquele porco, tentou... — não dava
para saber se acreditava em mim ou não.
— Estou — levantei o queixo, apesar da dor em cada célula.
Derek se aproximou devagar, quase ameaçador, caçando meu
rosto.
— Conte o que aconteceu.
Eu não conseguia.
— O que aconteceu, porra? — exigiu baixo e feroz.
Arfei, tendo certeza de que desmaiaria a qualquer momento.
— Ele me pediu para ficar até mais tarde, um dia... e... me
chamou na sala dele. E então... então tentou... me agarrar... —
precisei fechar os olhos com a lembrança daquelas mãos imundas
em todos os lugares — rasgou minha saia e... e me golpeou o
rosto... eu... eu lutei. Consegui acertar uma joelhada e corri de lá.
— Você denunciou o desgraçado?
Sacudi a cabeça negando.
— Recebi a visita de um assessor dele, em minha casa, no dia
seguinte — minha vergonha mal permitia manter a cabeça
levantada — Ele disse que minha carreira estava destruída. Que se
eu abrisse a boca, Montgomery acabaria comigo.
Não foi difícil para ele chegar à conclusão:
— Por isso veio para cá. Fugindo de Nova Iorque.
Sacudi a cabeça que sim.
Derek praguejou. Apertou a têmpora.
— Vamos nos casar.
Eu... o que ele disse?
— O que foi que disse?
Furioso, decidido, contrariado, tomado por todos os sentimentos
errados que destoavam do que deveria ser um momento como
estes, repetiu:
— Eu e você, Cherry. Nós vamos nos casar.
Precisei recuar. Quase tropecei no tapete quando dei um passo
para trás.
— Não.
— Nós vamos.
— Não, não vamos! — consegui ter determinação para dizer.
Ele me encarou como se não acreditasse no que eu estava
fazendo. Sacudiu a cabeça. Correu os dedos pelos cabelos grossos.
Então fez o inesperado.
Tomou minha mão e tentou me levar com ele para outro
cômodo.
— O que está fazendo?
— Lembrando a você o que terá se parar para pensar por um
momento.
— Sexo?
A palavra me pareceu suja. Errada.
Ele também sentiu, porque parou e me soltou.
— Você terá a mim — disse, a voz profunda, olhos flamejantes
de raiva e de algo mais — sem mais segredos.
— Então quer se casar comigo para... para assumir que
transamos? Por obrigação?
— Não está sendo racional, Contreras — rosnou por entre a
mandíbula apertada.
— Quem não está sendo racional é você! — gritei baixo, saindo
daquele estado de inércia e mergulhando em um novo, pior — Não
pode estar falando sério! Você nem mesmo me ama para tomar uma
decisão como essa!
— Amar é superestimado — zombou sem qualquer humor.
— Que loucura... que loucura — eu não estava acreditando
naquele dia. Naquela bagunça.
— O prazer vem com um ônus, querida. Nunca te contaram?
Odiei aquela versão dele, o cinismo inflamado pela irritação. A
leviandade ao lidar com aquela situação. Ele não queria se casar
comigo. Talvez nem me considerasse digna da posição.
— Pois, se te importa tanto o que a sociedade pensa, negue!
Diga que aquelas fotos foram forjadas! Jogue a culpa em mim, como
fez aquele homem asqueroso, e diga que tentei te seduzir! Eu
assumo a bronca! Dou minha cara a tapa, não tenho nada a perder!
Estava gritando. Gritando com meu chefe. Com um Senador
poderoso. Com o homem que estava me propondo casamento.
Pela expressão selvagem em seu belo rosto, foi a coisa errada
a dizer.
Derek me fitou com surpresa e escárnio:
— Prefere ser rechaçada publicamente a ter uma vida ao meu
lado? — a voz sombriamente baixa me fez parar de gritar e encará-
lo, encarar de verdade.
O pior é que parecia acreditar que aquilo era o certo.
Inverti sua visão, trazendo uma mais coerente para alguém que,
apesar de tão inteligente, parecia não estar pensando direito.
— Prefere estar preso a mim, a ter de admitir que você é
humano, que também tem amantes, como todos os homens, a
simplesmente me demitir? É a decisão mais fácil para você,
Senador. O caminho mais curto.
As fendas escondiam a escuridão por trás dos cílios pesados:
— Pareço homem que toma o caminho mais fácil, Contreras. O
mais curto?
Eu o havia ofendido, como se fosse possível.
— Então podemos resolver de maneira simples: eu me demito,
dou uma declaração afirmando que você é inocente, que eu o atraí
ao meu apartamento usando mentiras e enganações, e que você
me deu um fora.
— Só pode estar de sacanagem...
— Ué, agora sou a jovem ambiciosa que seduz políticos
inocentes, para a América. Que diferença faz para minha
reputação? Não tenho nada a perder, Derek, mas você tem. E pode
corrigir isso agora mesmo.
— Eu a deflorei.
— Quê?
— Comi sua boceta virgem, Contreras.
Que loucura.
— Cem anos atrás, poderia ter sido razão suficiente para um
casamento por obrigação, mas, para sua sorte, não é mais o caso,
então não se apegue tanto a isso — fui eu a ser irônica,
detestavelmente irônica — Não quero que se amarre com alguém
por quem não sente nada, baseado em um princípio arcaico destes.
— E se eu sentir? — declarou baixo, grave.
Precisei engolir em seco, coração batendo nos tímpanos.
— Tesão não é bem um sentimento — murmurei, lívida.
— Mas é um começo — não corrigiu a verdade — É, pelo
menos, mais do que a maioria dos caras casados pode dizer de sua
própria relação. Temos tesão um pelo outro. Química. Somos bons
juntos.
Santo Deus, eu queria aquilo. Queria de verdade. Cada parte do
que oferecia. Embora soubesse que nunca teria um lugar verdadeiro
em seu coração. Que eu nunca ocuparia o local em que sua esposa
morta já esteve.
— Por quanto tempo? — ousei questionar.
— Quanto tempo o quê? — pareceu confuso.
— Nosso casamento duraria.
Derek não pareceu satisfeito com aquela questão.
— Quanto dura a porra de um casamento, Contreras. Um dia,
um ano, uma década. Só vai depender de nós.
Fechei meus olhos. Não sabia distinguir se era um pesadelo
ou... ou um sonho.
— Está falando mesmo sério?
Senti o toque macio da mão grande e calejada em mim.
— Nunca falei mais sério antes.
Inspirei com força.
— Tudo bem, eu aceito.
Enquanto me arrumava no meu quarto, esforçando-me para
encarar com naturalidade a ideia de que estava prestes a ter meu
primeiro encontro com um homem em toda a minha vida — com
meu chefe — ouvia as gargalhadas de Abbi no andar de baixo.
Como havia prometido, Derek vinha passando bastante tempo
com a filha nos últimos dias: em nossa casa, no lago dando comida
aos gansos, buscando-a na escola, e passaram a tarde juntos por
duas vezes.
Prometi a mim mesma não ficar no caminho enquanto se
conheciam e construíam uma relação.
Fiz mais do que isso; para dar espaço a eles, enchi-me de
coragem e convidei Charles para o cinema. E esta noite, pela
primeira vez em seis anos, teria uma noite longe de Abbi.
Ansiosa, sentei-me na cama arrumada com a colcha de flores
por alguns minutos.
Uma gargalhada explodiu lá embaixo. Abbi estava se divertindo
com o pai, parecendo até não sentir minha falta. Soprei o ar para
fora do peito.
— É natural. Estão tirando o atraso — consolei em voz baixa
para mim mesma.
Ao som da campainha, verifiquei o celular. Oito horas. Era hora
de descer. Conferi minha aparência no espelho: vestido preto justo,
sapatos de salto, batom vermelho, cabelos soltos na altura dos
ombros.
Um visual que eu não via há tantos anos.
Quase, quase enxergava a Cherry de antes. Só que a de agora
trazia uma bagagem maior de vida nas costas. Uma que a fazia ser
menos ansiosa com o “sair com um homem” e mais preocupada
com “ver minha filha se apegando ao pai”.
Estava descendo as escadas quando ouvi o diálogo na porta.
— Ah, oi... — cumprimentou Charles, um pouco surpreso.
— Você deve ser o chefe — falou Derek, desnecessariamente
arrogante.
— E você o...
— Marido — foi enfático.
Maldito fosse.
— Já estou descendo, Charles — avisei no melhor tom amigável
que consegui.
Derek se afastou da porta, e meu chefe entrou.
Engoli em seco quando me vi diante dos dois. Parados. Olhos
fixos em mim. Charles, impressionado. Derek... possessivo, do tipo
que fez esquentar meu rosto, meu corpo, quando seu olhar sombrio
me varreu dos pés à cabeça.
— Uau. Cê tá parecendo artista de Hollywood, mãe! — minha
pequena escolheu esse momento para me salvar, contornando meu
corpo e assoviando exageradamente.
— Obrigada — agradeci baixinho, afastando a franja de seus
olhos.
— E aí, Abbadabadoo! — Charles, como sempre, aliviou o clima
estranho com seu humor calmo e irreverente quando se tratava de
minha filha.
— Tá bonitão também, hein Charles — Abbi se aproximou dele
para o “toque de mão Abbi & Charles”.
Que um Derek sério acompanhou sem parecer muito
espirituoso.
Quando me pegou olhando, arqueou a sobrancelha
arrogantemente. E de propósito, só porque sabia que eu ruborizaria,
desceu aquele olhar forte e perverso por mim. Uma chama
emocionante e perturbadora acendeu dentro do meu estômago.
Odiei meu marido por ainda ser responsável por isso.
— Só vou pegar minha bolsa, Charles — avisei, me afastando
deles. Segui pelo corredor até a sala, ouvindo as risadinhas de Abbi
para algo que Charles dizia.
— Você é mãe, agora — aquela voz baixa e arrogante falou
muito perto de mim, quando me seguiu.
— O que isso quer dizer? — não tive coragem de me virar para
ele, enquanto me aproximava do armário onde minha bolsa estava.

— Que não deveria sair assim por aí.


Finalmente me virei, somente para constatar que Derek estava
perto demais, praticamente em cima de mim. Maxilar rígido, olhos
acusadores e... e com uma energia que bambeou minhas pernas.
— Assim como? — levantei o queixo, com audácia.
— Como se implorasse para ser comida contra a parede, Cherry
— o sorriso cruel e furioso não alcançou os olhos.
— Talvez eu não precise implorar, sabe — enfrentei, baixinho.
Vi o momento em que seus ombros tensionaram. A veia em seu
pescoço largo deu uma saltada forte. Derek se inclinou para mais
perto, a boca quase encostando em meu ouvido, quando sussurrou
com escárnio.
— A mesma putinha de sempre, esposa?
O golpe foi bem-sucedido. Feriu. Ponto para ele.
Minha reação foi automática. Quando dei por mim, já tinha me
afastado um passo. Minha mão, estalou em seu rosto endurecido
pela raiva.
— Um pouco mais exigente agora — devolvi, pegando minha
bolsa, pronta para me afastar.
Meu cotovelo foi segurado, não forte o suficiente para
machucar, mas o bastante para eu não conseguir me soltar tão
facilmente, sem um escândalo pronunciado.
Atrás de mim, Derek uniu nossos corpos. Feroz... duro.
— Em outra época, eu teria golpeado sua bunda por isso. E
você imploraria pelo que viria depois — grunhiu baixinho, sem
esconder o inesperado volume que crescia em sua calça —
Cuidado, Cherry, posso pensar que é exatamente o que ainda
deseja.
Engoli a saliva preenchendo a boca.
— Eu aprendi a lição que nem tudo vale o preço cobrado —
rebati, agradecida por ter soado ácida.
Não daria a ele o prazer de saber que suas palavras, seu
contato, estavam me afetando... mais do que isso, estavam me
excitando como se meu corpo finalmente voltasse à vida.
— Só tenha o cuidado de esconder daquele pobre coitado que
sua calcinha já saiu ensopada de casa.
Sacudi meu braço para que me soltasse.
— Por sorte, não estou usando uma — meu marido largou o
aperto, afastei-me sem ficar para ver sua reação — Boa noite,
Derek.
Ele não me queria, e pelo jeito, também não queria que
ninguém mais tivesse.

— É estranho pensar em você e ele — enquanto caminhávamos


devagar na avenida tranquila, saindo do cinema, Charles comentou,
as mãos afundadas no bolso.
Não pude deixar de notar que Abbi tinha razão sobre ele estar
bonito esta noite, na calça mostarda e camisa de botão. Nunca vi
Charles em uma camisa de botão antes.
— Em que sentido? — enfiei uma pipoca fria na boca.
— Não sei. Não costumo julgar alguém que não conheço — o
que era uma verdade, porque Charles jamais falava de quem quer
que fosse, para a frustração de Jessy e suas “fofocas quentinhas” —
Mas ele não me parece o tipo que você escolheria.
— Sou uma ótima pessoa e ele um esnobe? — brinquei,
empurrando seu braço com meu cotovelo.
— Algo assim — um sorriso moveu seus lábios quando
encolheu o ombro.
Um pouco mais séria, fitei o céu sem estrelas acima de nós.
— Derek não é exatamente assim. Na verdade, eu costumava o
admirar. Ele era um dos poucos políticos que eu via realmente
fazendo algo, sabe.
— Para o povo.
— Para o povo — confirmei — Não costumo mais acompanhar
política — dei um olhar autoexplicativo para ele — Mas não vejo
ninguém com voz se levantar e proteger quem realmente precisa.
Aqueles que são invisíveis para a maioria.
— Reynolds, sim — refletiu.
— Não existe mudança real se não partir de cima. E acho que
Derek também pensa deste modo.
— Um Democrata em pele de Republicano? — brincou Charles.
— Por aí... — suspirei, e inevitavelmente lembrei de nossa troca
de horas antes, de como o senti duro atrás de mim, e minha própria
reação — Mas não quero falar dele.
Derek já estava impregnado demais em minha vida, antes e
agora.
Meu acompanhante pareceu querer o mesmo.
— Que tal me dizer então por que não me contou que tem medo
de filme de suspense?
Sua provocação foi bem-vinda, me fez rir.
— Não é medo! — exagerei — Em minha defesa, não gosto
daquela expectativa prolongada! E aquele instrumental que colocam
neste tipo de cena? Como se já não estivéssemos tensos o
bastante!
Charles gargalhou, um som inesperado e muito bem-vindo.

Ele era bonito. Mais do que bonito, era o tipo de cara por quem
era fácil demais se apaixonar.
Então apaixone-se por ele! Esqueça quem não a quer, e seja
feliz com esse homem diante de você!
Quase bufei com o pensamento. Como se tudo não fosse muito
mais complicado do que isso. Não envolvesse uma criança, dois
estados, ressentimentos.
— E quanto a você? — falei, um pouco para afugentar o barulho
em minha cabeça — Esperava por aquele fim?
Charles encolheu o ombro.
— Não foi tão óbvio, mas ela ter sido a responsável pela morte
do marido, e perdido a memória? Não convenceu muito, eu acho.
— Acho que ela não perdeu. Fingiu para todo mundo. Isso faz
mais sentido.
— Isso faz — paramos diante de um bar familiar a dois
quarteirões, Charles apontou com o queixo — Quer entrar?
Olhei lá para dentro, a alegria, as risadas.
— Um drink seria perfeito — suspirei, olhando para o relógio em
meu pulso — Mas ainda tenho que colocar a Abbi na cama. Se eu
bem conheço aquela garotinha, deve ter enrolado para ficar
acordada até esse horário.
A verdade é que a ideia de Derek fazendo em meu lugar algo
que fiz todos os dias da vida de minha filha, me deixava enciumada.
A hora de dormir era o nosso momento do dia. Quando eu me
deitava com ela em sua cama, deixava Abbi falar sobre seu dia,
contava uma história de ninar e a via adormecer, a mãozinha
segurando a minha.
O ritual de dormir de Abbi e Cherry.
Ainda não me sentia pronta para abrir mão disto.
Por outro lado, ele também precisava construir seu próprio ritual
com a filha. Derek merecia isso.
— Pensando bem, acho que o pai dela já deve estar fazendo
isso. Uma bebida não faria mal, vamos lá?
— Tem certeza?
Assenti.
— Tenho sim.

Passava das onze quando Charles me deixou em casa. A


despedida foi meio desengonçada. Fui beijá-lo no rosto, no mesmo
momento em que ele me deu um abraço. O cantinho de nossas
bocas acabou se resvalando.
Sorri. Ele também. Os dois sem jeito.
— Eu me diverti muito esta noite, sabe — fui completamente
sincera ao dizer — Como não acontecia há muito tempo.
— Eu também, Cherry — havia apenas honestidade nele.
Bonito, cheiroso, inteligente, tinha senso de humor, não era
prepotente ou arrogante, ou mesmo maldoso.
Apaixone-se por ele e seja feliz!, uma voz rugiu em meu ouvido.
Engoli em seco.
E se eu o beijasse, o que sentiria?
Mas a decisão partiu de Charles, ao se inclinar e roçar os lábios
suavemente por minha testa.
— Boa noite, Cherry.
Inspirei fundo.
— Boa noite, Charles. Te vejo amanhã.
Esperei que voltasse ao carro e desse partida, antes de entrar
em casa. Estava silenciosa, as luzes reduzidas. Abbi com certeza já
estava na cama. Deixei a chave no suporte, retirei os sapatos, e fui
descalça pelo corredor.
Encontrei Derek no sofá. O laptop aberto em seu colo. Na
televisão, ligada em um volume baixo, uma partida de futebol
americano. Uma visão tão estranha e ao mesmo tempo tão casual,
como se fosse a coisa mais natural do mundo encontrá-lo em minha
casa, me esperando.
— Oi... — falei, sem saber em que pé estávamos depois dos
últimos acontecimentos entre nós. Derek fechou o laptop,
levantando-se devagar.
— Ela dormiu.
Assenti, encarando seus pés descalços. Grandes, firmes,
masculinos. Até os pés dele me atraíam, o pensamento intrusivo se
manifestou.
— Ela deu muito trabalho para dormir?
Um sorriso de canto moveu seus lábios cheios.
— Exceto que nenhuma de minhas histórias era tão boa quanto
as suas? — riu baixo — Foi bem tranquilo.
Mordi um sorriso.
— Costumo mudar os finais tradicionais das histórias de
princesas.
— É... — seu peito se encheu lentamente — Eu sei.
— Não é certo que elas se casem no fim sem conhecer direito
seus príncipes.
A frase saiu sem que eu pensasse, e quando entendi o efeito,
me arrependi imediatamente. Os olhos intensos de meu marido
buscaram os meus.
— O mesmo vale para eles.
Nos encaramos por um momento que pareceu longo demais.
Fui eu a recuar:
— Você quer... uma taça de vinho... ou já está, sabe, indo...?
Odiei a hesitação em minha voz, a insegurança.
— Aceito o vinho.
— Certo — segui para a cozinha. Passos silenciosos me
seguindo. Peguei duas taças do armário, e o vinho branco. Despejei
quantidades generosas para ambos.
Senti seu olhar me queimando a pele. Quando me virei, Derek
estava no balcão atrás de mim, o quadril descansando contra a
bancada, as mãos segurando de cada lado do mármore.
Engolindo em seco, estendi a taça para ele. Nossos dedos se
roçaram no caminho. Uma onda elétrica percorreu minhas junções.
Me perguntei se também sentiu.
Derek encarava meu rosto firmemente, não me dando outra
saída senão fazer o mesmo. Respirei fundo, quando meu olhar caiu
para a lateral de seu rosto.
— Desculpe pelo tapa — falei em voz baixa.
— Eu mereci — devolveu, o timbre grave e também baixo.
Pensei sobre isso, e voltei para fitar seus olhos.
— O fato de eu ser mãe não me faz menos mulher.
Ar dilatou levemente suas narinas.
— É, eu sei — aquele olhar sombrio desceu em mim, me
percorrendo com vagareza e intensidade.
Resisti à vontade de trocar o peso do meu corpo de um pé para
o outro, de apertar minhas pernas juntas e conter a pulsação
nervosa entre elas.
— Ele não deve ter feito um bom trabalho.
— Não entendi — murmurei, com a sensação de ter realmente
perdido uma parte da conversa.
— O imbecil com quem esteve até agora.
Meu corpo ficou tenso com a agressividade velada.
— O que quer dizer com isso? — enfrentei.
Derek bebeu uma golada de seu vinho, sem desprender nosso
olhar, baixou a taça, lambendo o lábio, e a deixou de lado na
bancada.
— Que se ele tivesse cuidado do seu problema, você não
estaria assim, esposa.
— Assim como?!
Derek inspirou fundo, devagar e com força, exalando o ar.
— Estou dizendo que sua boceta não estaria enxarcada, como
está agora, Cherry.
Santo Deus...
— Você n....!
Mas Derek me cortou, dando um passo a frente, deixando
menos de trinta centímetros entre nós.
— Sinto seu cheiro, amor — provocou, baixinho, zangado, cruel
— Esqueceu que sinto seu maldito cheiro, quando está excitada?
O ar se tornou denso.
Meu corpo, uma chama humana.
Minha boca se secou.
Precisei separar os lábios para inspirar por entre eles.
— Como se atreve? — a rouquidão vergonhosa em minha voz
foi mais uma arma para ele.
Uma que o fez rir.
E se aproximar mais, até estar a uma polegada de me tocar.
Alto, forte, pairando sobre mim, sobre meu ouvido, quando
murmurou:
— É, é uma maldição, esposa. Odeio ter um conhecimento tão
profundo da linguagem de seu corpo, que sei quando sua boceta
lateja, quando umedece, quando seus seios ficam sensíveis por um
toque. Sua respiração, ofegante. Minta, minta para mim que estou
errado — desafiou — Continue sendo uma mentirosa e minta para
mim.
— Afaste-se — eu não poderia ter soado menos convincente
nem se tentasse.
Ele riu outra vez, em meu ouvido, um som gutural e masculino
que alastrou uma onda de arrepios por todo o meu corpo.
— Aposto que se eu a tocar agora, ela engolirá meu dedo.
Isso era tão provocativo, tão mal.
... e tão tentador.
— Muitos anos se passaram — falei, mais aguda do que
pretendia — Não sou mais a mesma... você não sabe nada sobre
mim.
— Há coisas que não mudam — suas mãos foram para segurar
o balcão atrás de mim, uma de cada lado do meu corpo, talvez só
para se obrigar a não me tocar.
Ele também queria.
Essa era a verdade.
Tirei a prova quando empurrei um pouco meu quadril para a
frente e o senti.
Duro como uma pedra. Gigante dentro da calça jeans.
Derek grunhiu, baixo e animalesco.
— Putinha desgraçada.
Apesar de ofensivo, me desestabilizei demais pelo momento.
Desejei. Com uma vontade tão avassaladora que me cegou, que
nublou a coerência.
— Se sou a mesma, você também é — acusei — Ainda me
quer, e ainda se recusa a admitir.
— Porque nós dois somos um erro, Cherry — mas empurrou a
pélvis contra mim, moendo a minha de um jeito gostoso demais —
Somos um maldito erro.
Arfei quando sua boca encontrou meu pescoço. Levantei a
cabeça para dar mais acesso.
— Sempre o quis, Derek — encarando o teto de minha casa,
minha casa no Texas, onde recomecei minha vida sem ele, recobrei
um pouco da razão — Talvez ainda queira. Mas não vou permitir
que façam eu me sentir inferior ou o erro de alguém.
Empurrei seu peito para que se afastasse.
— Nunca mais vou permitir que me destrua de novo.
Rígido, tenso, furioso consigo mesmo, Derek deu passos para
trás, afastou-se de mim, recuperando o controle também.
— Nisto, concordamos, Cherry — passou as mãos pelos
cabelos, irritado — A única coisa que quero de você é que não se
coloque mais entre minha filha e eu — Antes de sair, ainda me olhou
de cima a baixo — Não a quero em minha vida de qualquer outra
maneira.
De alguma maneira que somente um bom trabalho de marketing
(e muito dinheiro) justificava, eu havia me tornado a queridinha da
imprensa. Minha imagem havia sido transformada publicamente.
Passei de jovem ambiciosa para a discreta noiva do Senador
Reynolds.
Tudo estava acontecendo muito rápido. Um suposto noivado
secreto foi revelado e aceito como verdade absoluta. Montgomery
se retratou a meu respeito, rasgando elogios desta vez – nem quis
me perguntar o que foi que o fez mudar de atitude (e nem de onde
veio o olho roxo que tentou esconder da imprensa). Esperava não
ter que ver aquele homem asqueroso nunca mais em minha vida.
Mas, longe dos holofotes, as coisas desabavam. Derek foi
aconselhado pela raivosa Alexandria, chefe de sua equipe de
marketing, a não me manter mais como funcionária (naquele dia, na
cobertura, ela quase desmaiou quando ele avisou que se casaria
comigo. Tentou dissuadir de todo jeito, e recebeu palavras duras de
meu agora-noivo para que não se intrometesse em sua vida
pessoal). Virei um enfeite. Demitida. Instruída a morar na cobertura.
Era chamada eventualmente para estar ao lado dele em um e outro
evento, e com uma frequência cada vez mais escassa. Ele
praticamente me escondia do mundo.
Em compensação, nossa fome sexual nunca esteve com tanto
apetite agora que dividíamos o mesmo teto. Virávamos a noite
fazendo os mais diversos tipos de loucuras na cama. Bruto. Gentil.
Calmo. Feroz. Lento. Rápido. Nunca era o suficiente. Não podia
mais negar que estava apaixonada por meu noivo. Que sempre fui,
desde a primeira vez que o vi, provavelmente.
Da parte dele, eu era consciente que não havia reciprocidade.
Pelo menos não no sentido emocional. Apesar da grande diferença
de idade, tínhamos uma química forte e isso era tudo.
Mas o mais difícil para mim era não trabalhar.
Descobri que eu detestava o ócio. Sempre cuidei de mim
mesma, e agora que tinha alguém fazendo isso, nem todo livro de
romance em uma livraria conseguia me entreter o bastante.
Trabalhar era a minha praia. Meu estado natural. O que me fazia
bem. Ser impedida começava a me causar ansiedade, estresse.
Decidida a conversar com Derek sobre isso, pedir que me desse
alguma função em sua campanha, fui para o gabinete naquela
tarde.
Minhas roupas, um novo e completo guarda-roupa escolhido à
dedo por uma stylist de renome, agora contava com alta-costura,
alfaiataria, cores claras, tecidos fluídos. Joias discretas. Meu cabelo
castanho e longo, ganhou um corte meio-termo, pouco abaixo dos
ombros, era alinhado e com ondas perfeitas. Unhas e maquiagem
sempre impecáveis e discretas.
Eu me tornei a noiva do Senador mais bonito e atraente do país,
e deveria ser bonita e recatada em minha aparência para fazer jus
ao novo cargo.
Irreconhecível até mesmo para mim.
Quem dirá para os meus colegas, que me viram entrar com
expressões reservadas em seus rostos, e o pequeno pulso de
julgamento debaixo disso.
Carter parecia ser o único capaz de me tratar com normalidade.
— Você faz falta aqui, hein — bateu com seu ombro no meu,
quando nos encontramos na metade do caminho.
— Aposto que ninguém mais é capaz de corrigir seu problema
de “mais e mas” como eu — provoquei, o que não era uma verdade.
Havia acontecido apenas uma vez.
— É, dessa sua parte professora eu não sinto falta.
Rimos. Era revigorante ter uma conversa, por mais curta que
fosse, com alguém que não pisava em ovos comigo.
— Derek está aqui?
— Saiu com a armada completa — era como chamava a equipe
enorme que durante a reta final da campanha o seguia a todo lugar
— Ei, quer descer para um café? Estou em meu horário de intervalo.
— Vamos lá — sorri, me sentindo intimamente um pouco
ressentida por meu noivo ser capaz de continuar sua vida
normalmente, e eu ter de abrir mão da minha tão completamente.
Prestes a sair do gabinete, alguém me chamou.
— Srta. Contreras! — era mais do que um chamado, era um
ultimato em uma voz insuportavelmente autoritária e aguda.
Em meu limite de paciência com Alexandria, virei-me devagar
para ela, que vinha marchando duro em seus saltos finos de doze
centímetros, o que lhe conferia mais de um metro de pernas.
— Onde vai?
— Tomar um café.
A sobrancelha fina passou de mim e arqueou para Carter.
— Não acho que seja boa ideia.
Apertei a alça de corrente da bolsa creme que eu usava,
combinando com o vestido off-white, e também levantei a minha.
— Não é boa ideia tomar um café?
— Andar por aí na companhia de... — pigarreou,
deliberadamente, para causar aquele tipo desconfortável de
conclusão — outro, longe da presença de seu noivo.
Haja paciência.
— Derek vai superar. Com licença, Alexandria.
Seu julgamento de merda e a falsa autoridade que ela pensava
que tinha sobre mim que fossem para o lixo.
— Vamos, Carter.
Rindo discretamente (tá, não tão discreto assim), ele me
acompanhou sem pensar duas vezes.
— E então, como é a vida de patroa? — perguntou, enquanto
atravessávamos a avenida para o café em frente.
— Não sou patroa de nada, Carter.
— Força de expressão. Foi mal. Mas sabe, agora você é mulher
do cara, né.
— Noiva — aquela palavra nem parecia natural saindo de minha
boca.
— Vão casar.
— É, vamos.
— Dois dias antes das eleições.
— É bom para a campanha — apesar de ser apavorante a ideia
que em uma semana eu estaria irremediavelmente amarrada à
Derek. Que ele seria meu marido oficialmente.
Nós nem mesmo conversávamos sobre isso. Era como um
grande elefante branco no meio da sala da luxuosa cobertura, sendo
sumariamente ignorado.
— Deveríamos organizar uma despedida de solteira para você
— provocou, zombeteiro.
Dei a língua para ele.
E foi nessa posição que ouvi um clique do outro lado da rua. Um
fotógrafo escondido registrava o momento.
Endureci. Ser vigiada pela imprensa era uma sensação terrível.
Qualquer erro meu, e respigaria em cheio na eleição de Derek,
ainda que as pesquisas mostrassem uma vitória tranquila para ele.
E isso é o que me convencia que toda essa farsa de casamento
era facilmente evitável.
Derek não tinha manchas em sua carreira. Era uma vida pública
transparente.
Ninguém esperava que ele fosse um celibatário. Então, bastava
me chutar de sua vida, e tudo ficaria resolvido. Odiava saber que
não me amava e estava, de alguma forma, impelido a se casar
somente para fazer “o certo”.
— Babaca — Carter resmungou.
— Deixa pra lá, o cara só está fazendo seu trabalho.

Mas a foto inocente da noiva do Senador, a bela e discreta Srta.


Contreras, mostrando a língua para um garoto jovem e bonito, não
caiu muito bem para meu noivo. Quando voltei ao gabinete,
ninguém precisou me dizer que ele já estava lá e que certamente já
sabia de minha saída com Carter.
O pessoal do Marketing de campanha estava em peso na sala,
quando bati de leve e entrei. Todas as cabeças se giraram para
mim, olhares ostensivos.
— Deixem-me sozinho com minha noiva.
Alexandria, venenosa, passou por mim marchando de queixo
erguido.
Derek apertou a têmpora. Dava para ver que a campanha o
estava drenando.
— Oi — falei baixinho, me aproximando com a sensação de ter
feito algo errado, embora soubesse que não era o caso.
— Por que veio, Cherry? — a voz dura, baixa, demonstrava
chateação.
— Pra saber se precisa de ajuda.
Seu olhar intenso e profundo prendeu o meu.
— O que há entre você e o garoto?
Franzi a testa.
— Não entendi.
Derek assentiu devagar, passou as mãos pelos cabelos.
— Você deu intimidade para ele. Por quê?
Bufei, sem acreditar.
— Só pode estar brincando.
— Gostaria de estar — refutou naquele timbre forte e baixo —
De não ver imagens de minha noiva com a língua de fora, seduzindo
o estagiário do meu gabinete.
— Seduzindo? Você ao menos se escuta? — indignação corou
meu rosto.
— E você, Cherry, ao menos se dá conta do efeito que causa
nos homens? — riu debochado, administrando a fúria silenciosa que
estava sempre sob controle — Ah, acho que se dá sim. Está noiva
de um Senador, afinal.
— O que foi que disse?
Não, eu não estava ouvindo direito.
Derek passou por mim e foi ao aparador, para se servir de uma
dose de uísque.
Fui atrás.
— Que está estressado com toda essa exposição, essa
campanha frenética, eu entendo. Entendo perfeitamente! — falei
para suas costas, exaltada — Mas não vou ficar aqui ouvindo você
me acusar de... de ter forçado essa situação entre nós! O noivado
foi ideia sua!
Lágrimas de raiva preencheram minha visão enquanto eu
continuava:
— Eu nem mesmo acho que seja necessário!
Ele se virou abruptamente.
— Por quê? — grunhiu com ferocidade — Sua bocetinha não
está satisfeita o bastante comigo, meu amor?
Santo Deus, que maluquice era aquela!
Sacudi a cabeça, incrédula. Por que ele estava com tanta raiva
de mim? Se tudo o que vinha fazendo nos últimos tempos era
agradá-lo, me podar, me forçar a caber na gaiola de ouro que estava
me enfiando até o sufocamento?
Dei dois passos para trás, para longe dele, até bater o bumbum
na mesa atrás de mim.
— Não — murmurei atordoada — Não haverá casamento
algum.
Derek me fulminou de olhos em fenda.
— Um pouco tarde para desistir, não acha? — a gelidez no
timbre exibia a fúria por entre as frestas.
— Diga ao mundo que eu o traí. Que você, a vítima, decidiu pôr
um ponto final. Ninguém vai questionar. Não perderá votos. Eles te
amam!
Como se cada palavra que saísse de minha boca fosse mais
errada do que a anterior, meu noivo veio se aproximando, um passo
de cada vez, o rosto perfeito e lindo, másculo, contraído.
Com um movimento só, me colocou sentada sobre a mesa.
Meu coração bateu veloz. Apesar de também estar com raiva, a
maior parte de mim amava a ferocidade, a coisa química e brutal
que queimava a pele quando estávamos nesse tipo de situação, de
embate.
Sua mão, bruta, se enfiou por entre as minhas pernas.
— Por acaso estou falhando em manter você saciada, amor? —
rosnou baixinho, dava para ver em seu rosto o tamanho de sua
excitação.
Nossas brigas também o deixavam louco, ansioso por me
subjugar.
Dedos habilidosos me masturbaram por cima da calcinha, a
afastaram e penetraram.
Espalmei a mesa, coluna envergada gemendo baixinho.
Derek agarrou meu cabelo e me puxou para um beijo agressivo,
faminto.
Ouvi o farfalhar da calça. Minha calcinha fina foi rasgada de vez.
Arregalei os olhos quando senti seu pau duro e grosso pressionando
a entrada. Era o que ele estava esperando, que eu abrisse os olhos
para se forçar todo para dentro, me rasgando em uma única
estocada. Mesmo lubrificada, doeu pra cacete.
Derek agarrou minhas coxas, afundando os dedos na carne,
enquanto me estocava com voracidade. Indo fundo e voltando, e
indo mais fundo ainda, enquanto me beijava forte.
Gozei cravando os dentes em seu peito, por cima da camisa.
Foi uma surpresa os jorros que senti contra minhas paredes
quase que simultaneamente.
Ele nunca tinha feito isso. Gozar dentro. Sempre havia um
preservativo entre nós, e nas raras vezes que não era assim, Derek
tirava antes de chegar ao gozo.
Meio envergonhada, mas inevitavelmente mais relaxada pela
descarga de adrenalina, aceitei sua ajuda para descer da mesa.
Derek ajeitou meus cabelos e beijou minha testa.
Ajudou a ajustar a saia do vestido e, em seguida, tomou minha
boca em um beijo possessivo.
— Nunca mais fale em me deixar — não foi um pedido.
Eu era sua obsessão, assim como ele era a minha, embora eu
não entendesse o porquê. Derek era genuinamente um homem
correto, bom, popular e lindo. Poderia ter a mulher que quisesse.

Nós nos casamos, conforme combinado, em uma cerimônia


rigorosamente discreta alguns dias depois. Da parte dele, apenas o
advogado para testemunhar. Nem sua mãe, nem sua irmã,
compareceram. Eu me perguntei se elas aprovavam a união. Ou se
Derek ao menos as havia comunicado.
Da minha parte, também não havia ninguém.
Dois dias depois, previsivelmente, a confirmação de sua vitória
finalizou o processo de uma campanha exaustiva e desgastante.
Pensei que tiraríamos férias, a partir de então. Uma lua de mel ou o
mais perto disso. Nunca chegamos a viajar juntos, nesse sentido.
Nossas núpcias foram no mesmo hotel e suíte de nossa primeira
vez. Sexo até eu mal conseguir me mexer, e depois disso, trabalho
pesado da parte dele, no gabinete.
Derek estava prestes a travar uma nova e grande batalha:
queria propor um projeto de lei para garantir direitos primários aos
imigrantes ilegais, um problema pandêmico e espinhoso para a
América. Ninguém do Partido Republicano parecia inclinado a
apoiar, mas Derek contava com uma força que não podia ser
ignorada por seus pares: a alta aprovação popular, reforçada com
esta eleição.
A esperança de poder voltar ao trabalho e ajudá-lo foi o que me
motivou nas semanas seguintes ao casamento, enquanto ficava
sozinha na cobertura.
Mas conforme os dias foram passando, entendi que minha volta
nunca aconteceria.
Não fazia parte dos planos do meu marido me ver trabalhando
de novo.
Enquanto éramos explosivos juntos, insaciáveis, apaixonados
na cama, fora dela mal tínhamos uma conversa inteira e honesta.
Representávamos papéis.
Dirigindo pela estreita estrada ladeada por árvores altas e
robustas, logo avistei a cerca baixa de madeira branca que envolvia
a propriedade rural. Se o GPS não tivesse ditado o caminho, a placa
grande “Bem-vindo ao lar dos Gienger” acima do arco teria me
indicado que estava na fazenda sobre a qual Abbi tanto me falara.
Para ser sincero, eu mal podia esperar para conhecer o lugar
onde minha filha passava a maior parte do tempo, quando não
estava na escola ou em casa.
Já havia visto Willie Gienger no dia em que Abbi fugiu da
escola. Trocamos breves palavras antes de cada um assumir uma
direção na busca pela menina. No entanto, tudo o que eu sabia
sobre ele era por meio de Abbi.
Por isso, não hesitei em aceitar o convite para um churrasco na
propriedade.
Trazia comigo uma garrafa de bom uísque para ele,
providenciada por Iron, e uma caixa de chocolates para Eva
Gienger, além de flores em agradecimento pelo convite para passar
com eles o feriado de 04 de Julho.
Conforme os pneus amassavam o cascalho, compreendia o
apelo do lugar.
Uma propriedade grande, com direito a um galpão, animais, e a
grande casa branca com alpendre que a cercava, tipicamente
texana. A bandeira americana sacudia no ar.
Podia imaginar Abbi correndo livre por aí, cuidando dos bichos,
andando em cima do pequeno trator amarelo estacionado lá
adiante.
Um aperto cerrou meu peito.
Era dessa vida livre que eu pretendia tirá-la.
Ignorei imediatamente a repreensão da ideia.
Abbi merecia conhecer como era a vida do outro lado também,
e era isso o que eu pretendia propor à sua mãe. Queria que minha
filha passasse uma parte de suas férias de verão comigo. Estavam
próximas.
Assim que estacionei diante da casa e desliguei o carro, ouvi,
vindo dos fundos, no meio de tantas vozes, a aguda, alegre e infantil
de minha menina. Abbi era vida. Porra, ela era vida. Isso era o que
minha garotinha representava.
Peguei as coisas do banco do carona e contornei a casa.
— Derek! — ela foi a primeira a me ver. Gritou e acenou antes
de vir correndo me encontrar.
Ainda levaria um tempo para me chamar de pai, eu concordava
com isso. Podia esperar. Tinha todo o tempo do mundo agora.
Abaixei-me para ela.
— Olá, garotinha.
— Cê tá cheiroso, hein — gracejou.
— Obrigado. Você também está muito cheirosa, filha — ri,
abraçando-a.
— O que ocê trouxe aí?
— Para os anfitriões — mostrei a sacola de papel.
Os olhinhos brilharam de aprovação.
— Eva gosta de chocolate. Muito bem, hein — bateu palminhas,
aprovando — E essa bebida aí?
— Creio que para o marido dela. Ele gosta?
— Willie não é de beber, mas isso tá com cara de ser bebida
das boas.
— E como sabe? — arqueei a sobrancelha, me divertindo com
os gracejos da criança.
— Ara, parece coisa chique.
— Tenho algo para você, também.
Curiosidade a fez se inclinar um pouco mais para a sacola.
Peguei a pequena caixa de doces, do tipo que ela havia me dito que
gostava, grudentos, que esticavam, colavam, brilhavam, e toda essa
porcaria açucarada que, aposto, a mãe dela me esganaria quando
visse. Abbi pôs as mãozinhas na barriga de contentamento.
— Bem que eu precisava!
Que figurinha.
Levantei-me do chão e me uni ao grupo que esperava por nós.
Eva e Willie Gienger; um casal que eu não conhecia, mas que vi
no dia das buscas; Cherry, linda em um vestido floral, cabelos
presos em um rabo de cavalo, dando a ela um aspecto de
camponesa fodido e delicioso... e o panaca do seu chefe, Charles,
perto demais de minha mulher.
Minha mulher. A afirmação repercutiu como um disparo errado
dentro de mim. Ela não era minha, apesar do que diziam os papéis.
— Senhores — cumprimentei com a cabeça conforme me
aproximava.
— Senador Reynolds! — A Sra. Gienger veio em minha
recepção.
— Por favor, me chame de Derek. Feliz Feriado da
Independência, Sra. Gienger — estendi a sacola e as flores.
— Ah, pode me chamar de Eva, Derek. E é muita gentileza —
recebi dois beijos no rosto, um de cada lado, e um sorriso inteligente
— Um homem que sabe agradar uma mulher.
— Há quem diga o contrário — galanteei, gostando dela.
Estendi a mão para seu marido.
— Você deve ser o grande Willie de quem Abbi não para de
falar. Como toda a América, também vi aquele vídeo. Parabéns pela
abóbora.
O homem alto de pele bronzeada e rugas marcadas pelo sol, na
casa dos setenta anos, gargalhou satisfeito.
— Ara, Senador, fico feliz demais que teja aqui. Nossa Abbi
também anda falando muito no senhor. Pois seja bem-vindo, viu?
Compreendi de quem minha filha copiava o modo forte e sulista
de falar.
Pessoas simples, trabalhadoras, receptivas. Iron também havia
levantado informações sobre casal Gienger. Foram donos da loja de
ferragens de Marble Falls por muitos anos, até se aposentarem. A
propriedade foi herdada da família de Willie. Comercializavam
produtos artesanais cultivados na fazenda. Não tinham filhos ou
herdeiros.
Olhando para eles, e Abbi, percebi o elo. Formavam uma
família. Avós que, do lado de Cherry, Abbi não tinha.
Era grato por isso.
O outro casal foi apresentado como Rosie e Nelson Blackburn,
amigos da família, e eleitores do Partido Republicano, como
gostaram de dizer, assim como a maior parte do eleitorado do
estado. O Texas, nas últimas eleições presidenciais, havia se
mostrado um estado predominantemente conservador-republicano.
Membros do meu partido já começavam a tramar os próximos
passos aqui... e cobravam uma resposta minha.
Então chegou a vez de cumprimentar minha esposa e seu
acompanhante, chefe, amante ou seja lá a merda acontecendo
entre eles que os fazia conversar e sorrir um para o outro daquele
jeito.
— Cherry.
O sorriso natural praticamente morreu em seu rosto, dando
lugar a um muito mais polido.
— Derek. Que bom que veio.
— Sr. Donnelly — fui cordial com o cara.
— Senador Reynolds — devolveu, com a mesma cordialidade.
O sujeito de trinta anos, formado pela Universidade do
Mississippi, nascido em Marble Falls, para onde voltou e assumiu o
negócio dos pais, poderia ser tido como gente boa pela cidade,
conforme Iron levantou, aliás, eu não duvidava de que era mesmo,
de acordo com seu passado sem manchas, mas Charles queria o
que era meu. Estava em sua cara, no olhar discreto que lançava à
minha mulher.
Portanto, não era alguém que eu pudesse chamar de amigo.
Quem ela escolhe para sua cama não te interessa, porra!
— Gostaria de uma taça de vinho, ou...? — Cherry ofereceu,
solícita.
Estava tentando ser civilizada comigo diante das pessoas que
conhecia. Tentando agir normalmente depois de quase treparmos
com raiva em sua casa.
— O mesmo que vocês estão bebendo — apontei para a long
neck em sua mão.
— É cerveja — explicou ela, um pouco confusa — Você não
gosta de... — mas rapidamente se impediu de continuar,
pigarreando.
Somente porque podia, eu a provoquei.
— Aprecio que ainda conheça os meus gostos, esposa — usei a
última palavra como uma alfinetada no cara também — Sempre
pronta para me satisfazer, não é?
As bochechas dela queimaram vermelho vivo. Raiva e
constrangimento.
— Ou ela só está sendo gentil — falou com tranquilidade o
imbecil com ela, interferindo como se minha mulher precisasse de
sua defesa.
— É mesmo? — levantei as sobrancelhas, interessado nele.
O tal Charles não se abalou em sua cordialidade tão falsa
quanto a minha:
— Cherry é especialista em atendimento ao público e em lidar
com insinuações. Você não faz ideia da quantidade de babacas que
tentam chamar a atenção dela.
Minha esposa olhou impressionada para o imbecil. Mais do que
isso, admiração cintilou em seus olhos cinzas.
Uma fera rugiu em meu peito. Frustrante, raivosa, indesejada.
Familiar.
Quis arrancar a cabeça dele por isso.
— Ah, eu acho que faço — dei ao cara um olhar duro e
desafiador — Via o quanto ela era assediada no trabalho. Algumas
coisas parecem não ter mudado, pelo jeito.
Mais rubor no rosto lindo pra caralho. E dessa vez mágoa
também. Eu a estava ferindo.
Mas me recusei a sentir culpa. Era Cherry que estava dando
abertura para seu chefe. Merecia ouvir.
Você era o chefe dela, seu filho-da-puta!, a fera rugiu, se
voltando contra mim.

Encontrei minha esposa finalmente sozinha, algumas horas


depois, sentada de lado sobre uma cerca, de cabeça baixa. Ela
estava me evitando desde o episódio com Charles O Gente-Boa.
Percebi nossa dança durante toda a tarde: eu me aproximava de
onde ela estava, e Cherry disfarçadamente fugia.
Mas seu cão de guarda já não estava por perto agora. Vi
quando foi embora. E não suportei a vontade de mexer com a
infeliz.
— Um cheiro encantador — provoquei em voz baixa, atrás dela.
Seu corpo suave e cheio das malditas curvas que sempre me
viraram a cabeça, retesou.
— São porcos, o que esperava? — disse, inexpressiva, em
referência ao que acontecia do lado de lá da cerca.
Não estava me referindo a eles. É claro. A desgraçada ainda
tinha o mesmo cheiro. Limão e canela, uma mistura que não fazia o
menor sentido, se não fizesse tanto nela. Por seu tom, me
ignorando sumariamente, percebi que ainda estava chateada
comigo.
Contornei-a e montei a cerca também. Filhotes de porco
brincavam na lama perto de nós. De todas as situações possíveis,
jamais imaginei a gente aqui. Nestes anos todos que esteve
desaparecida, Cherry em uma fazenda era minha hipótese mais
remota.
— Eu te procurei.
Não sei por que revelei essa merda, mas revelei.
— O quê? — seu rosto franzido somente então se voltou para
mim.
— Quando você fugiu.
— O que tem?
— Eu te procurei. Você não levou nada. Suas coisas ainda
continuavam lá.
Notei quando seu peito se encheu, devagar.
— Levei o que era meu.
— Aquilo tudo era seu — porra!
Serenamente, desviando o olhar para o horizonte, minha linda
mulher sacudiu a cabeça:
— Não. Nada daquilo era meu.
Bufei baixinho.
— Não me lembro de ter em minha coleção pessoal todos
aqueles vestidos, sapatos, joias.
— Mas foi seu dinheiro que comprou — rebateu sem
arrogância.
Claro que esta seria a lógica da garota orgulhosa.
— Deixou então para me ferir? — ironizei, furioso, ainda que
mantendo isso somente para mim.
As sobrancelhas castanhas se levantaram, pouca coisa mas
sim, como se esse pensamento nunca a tivesse ocorrido.
— Deixei porque aquelas coisas não faziam mais sentido para
mim. Eu não estava lá por elas...
Estava por mim.
Engoli a sensação ácida que tomou minha boca.
— Também não mexeu no dinheiro que depositei — ainda
estava tudo intacto em sua conta, Iron levantou os documentos.
— Nunca precisei dele.
— Porra, Cherry — grunhi baixo. Quanto mais falávamos, mais
ela conseguia fazer aquela angústia desgraçada me engolir.
Mas foi seu próximo golpe capaz de me acertar onde mais doía:
— Deve ser difícil para você aceitar que eu te amava, não é? —
a pergunta simples, honesta, do rosto delicado de olhos sinceros
enfrentando os meus.
Cerrei os punhos.
— Quem ama não vai embora daquele jeito — acusei sem fazer
questão de esconder a ira.
— Você não me deu opção, Derek.
Não, não, não. Não era assim que eu me lembrava de nossa
história. Não era como ela deveria estar contando. Com essa
franqueza que não correspondia aos fatos.
— Se me amasse, como diz, não teria cogitado me deixar.
Cherry meneou a cabeça, não concordando.
— E onde ficaria meu amor próprio, se eu ficasse? — perguntou
com simplicidade — Eu deveria aceitar tudo, em troca de quê? Uma
parcela do que desejou me dar? — fez uma pausa, sorveu o ar o
suficiente para encher seu peito, como se ao fazer isso também se
enchesse de coragem para finalmente pôr para fora: — Você se
lembra do nosso casamento?
— Claro que sim — rosnei.
— Seus convidados?
— Não havia convidados além do meu adv... — mas me calei
imediatamente. Esse era o seu ponto. Aonde quis chegar.
— Exatamente — seu rosto pensativo se voltou para o campo
ao longe — Nunca tive uma Lua-de-Mel. Nunca fui apresentada a
nenhum amigo seu — ela riu baixinho, sem vontade — Sequer
conheço sua mãe e irmã — então me encarou — E quando fui
massacrada pela mídia, você nunca abriu sua boca para dizer nada
sobre nós, Derek. Para o mundo, eu era a jovem ambiciosa que
obrigou o Senador correto a se unir a ela — minha esposa me fez
ver a próxima coisa que diria estampada em seus olhos
transparentes: — Migalhas de você. Foi só o que eu tive.
Tudo de mim, tudo o que eu tinha para dar, foi o que você teve,
maldição!
— Você não faz ideia — neguei, furioso comigo, com ela... com
sua verdade sendo lançada contra minha cara de um jeito que
impedia de discordar.
— Faço ideia do que é amor, Derek. E sei que nunca foi
recíproco.
— Eu te amei pra caralho, porra! — rugi baixo.
Cherry sorriu. A tristeza no sorriso me fez desejar arrancar ele
dali com... com minha boca. Com minhas mãos nela, meu corpo.
Com aquela energia feral que corria minhas entranhas sempre que
me aproximava dela.
— Sei que já deve ter ouvido isso, sabe, mas desejo sexual e
amor são coisas diferentes. Um, a gente teve... talvez ainda tenha,
até demais. O outro, apenas um lado amou de verdade nessa
relação, Derek — desviou outra vez os olhos cinzas — Sempre me
perguntei se tinha a ver com a Olivia.
Minha primeira esposa, falecida.
— O que tem ela?
— Se sua falta de amor por mim tinha a ver com ainda a amar.
— Pare de ficar repetindo que eu não te amei, por favor —
apertei a base de meu nariz. Inspirei com força — E não. A resposta
para isso é não.
Olivia foi minha amiga. Minha namorada de universidade. Nós
nos dávamos bem. O caminho para o altar era natural de acontecer.
Esperado. E é claro que sua morte me abalou. Ninguém quer ver
alguém de quem gosta sendo levada embora um pouco a cada dia
por uma doença maldita e incurável. Definhando até deixar de
respirar.
Mas Cherry... maldição, essa garota atrevida, inteligente e
assustadoramente linda... com ela foi o oposto.
Ninguém nunca havia me desestabilizado tanto.
Eu a desejei com fúria desde a primeira vez, quando quase caiu
aos meus pés com cara de quem havia acabado de foder. Desejei
quando a ouvi admitir que também me desejava. Desejei quando
tive um gosto de como ela se encaixava em mim, naquele carro,
quando foi arremessada para o meu colo. Desejei ser o primeiro a
possuir sua boceta. E quando a possuí, desejei ser o único... porra,
se eu errei nessa merda, foi por querê-la tanto e com tanta
possessividade que a quis somente para mim. Quis esconder essa
garota do mundo para que ninguém mais descobrisse o quanto ela
era uma maldita perfeição.
E foi esse o sentimento que tentei combater... tentei até ver que
não era mais possível. Que eu a queria comigo, em minha vida. Que
eu a amava.
Mas não era hora de dizer aquilo. Não quando o que ela fez não
teve nada a ver com amor.
— Não interessa o quanto fale que me amou, Cherry — acusei
— Você não entende nada de amor. Nem por mim, nem por nossa
filha. Se entendesse, não teria escond...
Não tive tempo de completar a frase.
— Vá se ferrar, seu arrogante de merda!
Mais furiosa do que jamais vi, à menção de nossa filha, suas
mãos vieram violentamente para o meu peito e ela... maldição, a
infeliz me empurrou para a porcaria da lama do chiqueiro!
Caí de costas naquela nojeira... só que não caí sozinho. No
último instante, eu a puxei comigo.
Os dois. Na lama mais fedida que já senti.
Ela sobre mim.
Seu corpo inteiro, debaixo do vestido fino, totalmente encaixado
no meu.
Era o pior momento do mundo para sentir seu hálito quente em
minha cara, quando exprimiu um “Oh” chocada.
Para notar que minhas mãos estavam nas curvas de sua bunda,
sempre e ainda mais deliciosa.
As bolas pesaram dolorosas. Meu pau... meu pau imbecil do
caralho endureceu na hora. E ela sentiu.
Cherry arregalou os olhos, surpresa.
— Derek... — gemeu baixinho.
Ri sem humor.
— Mergulhado na lama e duro por você — minha voz uma coisa
rouca e indistinta, com raiva e um tesão desmedido — Deve ser
minha maldita sina.
— Pare... — murmurou, afetada.
— O que foi, esposa, não se lembra de como sempre fizemos
isso um ao outro? — provoquei com escárnio, doido por virar e
comer essa infeliz aqui mesmo, no meio de toda essa nojeira.
A lembrança de como era mergulhar em sua boceta me deixou
mais fodido. Mais rígido como se ainda fosse possível. Puro aço.
— As coisas mudaram... — mas nem ela ousou perder um só
minuto do atrito. Mal respirou.
Fez pior.
Tive a sensação de que soltou mais o peso nos quadris. Pélvis
contra pélvis.
Uma tortura.
— Certas coisas nunca mudam, Cherry.
Aqueles olhos acinzentados, fixos nos meus. Os lábios
vermelhos pairando sobre minha boca. Sua respiração quente
saindo em lufadas curtas.
Não dava para suportar.
Eu a beijaria.
Aqui, agora, a necessidade de devorar sua boca foi quase
demais para administrar.
Levei minha mão suja para suas costas.
Minha esposa compreendeu a intenção. Mas parecia incapaz de
se negar, a mim e a ela mesma.
— Desgraçada — rosnei baixinho, só que não havia qualquer
fúria em minha voz. Apenas o mais lascivo e brutal desejo
incoerente.
Tive que fechar os olhos, me recusando a continuar encarando
seu rosto. Sabia o que aconteceria se olhasse. Não conseguiria me
impedir de seguir em frente.
Cedi à tentação.
Olhos nos olhos, assisti quando suas pálpebras pesaram, foram
caindo, fechando-se.
A língua, rosada, despontou lambendo o lábio inferior.
Cherry ardia do mesmo desejo.
Inferno, como eu queria morder seus lábios, mergulhar em sua
boca até perder qualquer capacidade de raciocinar.
— Você é uma mentirosa — murmurei, rouco pra caralho,
lembrando a mim mesmo do porquê aquilo não era nem de longe
uma boa ideia.
— Nunca menti para você, Derek.
Foi impossível me frear.
Embrenhei meus dedos sujos de lama em seus cabelos e a
puxei pela nuca para mim, ao mesmo tempo em que mordi o lábio
da infeliz. Cravei os dentes fundo, arrancando dela um gemido de
dor e desejo. Punindo-a.
Quem acabou punido, no entanto, fui eu. Uma descarga potente
atravessou meu corpo, como uma represa que arrebenta
descomedida.
Pujante, em contraste ao suave e delicioso suspiro que ela
soltou.
— Porra...
Que saudade dessa garota. Maldita seja, que saudade! Eu
estava faminto dela!
Partiu de minha mulher a iniciativa de trazer sua língua de
encontro à minha. Uma que eu aceitaria de bom grado se um grito
alegre e infantil, à distância, não tivesse cortado o ar.
Petrificando a nós dois.
— Eita, cês caíram?! — por baixo da cerca, deitados, vi que
botinas pequenas vinham correndo pelo campo em nossa direção.
Foi o que me fez recobrar a consciência imediatamente.
O que eu estava prestes a fazer, merda?!
Levantei a mulher quente e macia e a sentei ao meu lado.
Sujos. Imundos. Constrangidos pelo caminho que quase tomamos.
Abbi nos alcançou nesse momento. Trepou na cerca e espiou
por cima.
— Hmmm — fungou o ar — cês tão fedido que só vendo! — e
riu, achando a coisa mais divertida do mundo.
Minha filha recém descoberta e que, em pouco tempo, já se
tornava importante demais para mim, estava rindo de nós.
O que, inevitavelmente, nos fez rir também.
Risadas descabidas que reverberaram pelo ar fedido de uma
fazendo no meio do Texas, e se misturavam num som que foi difícil
não interpretar como era: leveza... felicidade.

— Você fica bem de camisa de flanela — minha esposa falou


naquela noite, mais tarde, depois que colocamos nossa filha para
dormir. Juntos.
Eu ainda vestia as roupas que precisei pegar emprestado de
Willie Gienger depois do episódio no chiqueiro. Cherry, há pouco,
tinha saído de um novo banho, mais um, para se livrar totalmente do
cheiro, em sua própria casa, substituindo o vestido que Eva lhe
cedera por uma regata simples e saia.
Quanto mais eu olhava para ela, mais difícil era não perceber
que ainda era linda, em cada detalhe do rosto, do corpo. Em roupas
de grife, ou se vestindo com trapos de uma senhora de setenta
anos.
— Por sorte, Willie tem a minha altura — dei de ombros.
— Só não o seu peso.
De fato, a camisa de flanela estava justa em meus braços e
peito. Resultado de uma vida conciliada a extensos exercícios
físicos.
Encarei o fundo de minha taça. O dia havia sido muito diferente
do que imaginei. Pela primeira vez, em muitos anos, eu me diverti
de verdade. Pessoas simples, minha filha e ela... minha esposa. Foi
difícil não encarar como um vislumbre do que nossa família teria
sido se não tivesse sido separada.
Deve ser difícil para você aceitar que eu te amava, não é?
— Eu pretendia que tivéssemos uma cerimônia de verdade,
depois — não sei o porquê, mas falei.
Distraída com os próprios pensamentos, Cherry franziu a testa.
— Não entendi.
— Nosso casamento. Eu pretendia fazer uma segunda
cerimônia, descente, depois das eleições. Foi o que prometi à minha
família, meus amigos.
Sobrancelhas delicadas subiram, antes de voltarem ao lugar e
Cherry admitir uma expressão neutra.
— Imaginei isso, por um tempo.
Merda, por que sua conformidade me incomodava.
— Queria tudo com você. Pra valer.
Apenas assentiu, passando o dedo pela borda da taça em
busca de fugir dos meus olhos, na certa.
— Fale — exigi, ciente dos pensamentos quase barulhentos
demais em sua cabeça.
Minha vontade era saber de tudo que havia ali, cada vírgula,
cada ponto.
— O que quer que eu fale? Que era o que eu esperava de
você? — sacudiu de leve a cabeça — Não muda nada agora.
Aquilo me irritou.
— Não muda. Mas espero que saiba. Para que não repita que
foi a única a sentir.
Ela me fitou por um longo momento. Segurei seu olhar, preso
nele.
— Admitir seu sentimento por mim fará com que desista da ideia
de levar minha filha?
— Não — fui definitivo.
Ela também.
— Então amor também nunca foi o suficiente entre nós. Foi?
Quase ri, de puro desprezo pelo que dizia.
— Me diga você. Afinal, quem me deixou foi você, Cherry.
Lambendo os resquícios de vinho, e atraindo meu olhar no
processo, minha mulher levantou o rosto. Uma combatente, era o
que ela era, sempre foi. No fundo, a admirava por isso.
— Responda com honestidade, Derek. Acredita mesmo que
meus erros foram os responsáveis pelo nosso fim? Que eu quis
deixar para trás o homem por quem eu era completamente
apaixonada, e ficar outra vez sozinha no mundo?

— Você era jovem... — consegui grunhir com desdém, para a


pressão que começava a sentir rugindo em meu peito. Reabrindo
velhas feridas.
Cherry riu.
— Jovem demais para ser levada a sério, para ter as vontades
respeitadas, mas não para estar em sua cama, Senador.
Incongruente, não?
Inferno.
— Sempre a levei a sério, porra! — tive o cuidado de vociferar
baixinho, para que nossa filha não acordasse, no andar de cima —
eu a promovi. Não pelo sexo, mas porque a considerava
competente. Aos vinte anos, eu a tornei minha assessora porque a
considerava muito boa no que fazia, Cherry. Então me fale, como
isso é não te levar a sério?!
— E quanto ao que veio depois? — atacou, obrigando que
mergulhássemos naquilo. No fim trágico e inevitável.
Apertei a taça com força em minha mão, tenso. A fera rugindo.
E não suportei. Cortei a distância entre nós no sofá. Minha mão
voando para seu pescoço lindo, quando a segurei, não com força,
mas porque precisava daquilo.
Frente a frente com meu rosto, para que enfrentasse de uma
vez por todas seus erros:
— Minha culpa, querida esposa, foi querê-la para mim. Foi me
tornar um cara obcecado pela sua boceta. A sua? — aproximei-me
tanto que respirávamos o mesmo ar — Me punir tomando uma
decisão infantil de fugir depois de uma briga, de desaparecer no
mundo, e pior, levando minha filha com você!
Eu estava com tanta raiva. E tão duro pela maldita.
Se ficasse um minuto mais ali, tomaria Cherry. Com força. Faria
com que pagasse por todos esses anos me privando de Abbi... me
privando dela. E ela cederia, porque sempre fomos assim.
Levantei depressa, me afastando para o outro lado da sala. De
costas para Cherry. Esfreguei o cabelo. Inspirei com força. Tudo
para obter de volta o controle.
— Em dois dias terei de voltar à Washington D.C. — avisei,
minha voz soando rouca através do silêncio entre nós — Quero que
a Abbi passe as férias de verão comigo. Pelo menos metade delas.
Virei-me devagar.
— Não espero que coloque obstáculos nisto, Cherry.
Ela se levantou, vindo para mim, atordoada com a informação.
— Minha filha não conhece ninguém lá, Derek — tentou apelar.
— Nossa — corrigi — Ela é nossa — encarei seus olhos — Vá
junto. Venha para casa com a gente.
— Nossa casa é aqui. Minha e de Abbi. Não posso deixar tudo e
simplesmente passar um mês e meio longe, tenho meu emprego e...
Tive de rir, com escárnio.
— Aposto que seu chefe — aquele panaca do caralho, pensei
— pode fazer uma concessão. Você é boa em convencer seus
chefes, querida.
O corpo esguio, retesou com a insinuação, com a malícia.
Cherry se preparou para me atingir o rosto outra vez. Desta, segurei
seu pulso. A raiva, a violência correndo junto ao meu sangue era
tamanha, que fiz mais.
Girei-a com agilidade e pressionei a infeliz na parede atrás de
mim, segurando seu pescoço.
— Hoje não, esposa.
— Odeio você.
Ri. Rígido dentro da calça, pela maldita.
— Seu jeito de odiar é engraçado, Cherry — aproximei minha
boca de sua orelha — Vi por mim mesmo hoje, naquele chiqueiro.
Teria trepado com você lá mesmo, sabia?
Em vez de me empurrar, de tentar me agredir, Cherry arfou. A
infeliz ainda era sensível ao meu toque. Como eu era ao dela.
Apertei seu pescoço. E assinei minha ruína, metendo o nariz no
meio de seus cabelos castanhos, aspirando o cheiro tentador de
minha mulher.
— Não me importaria de relembrarmos os velhos tempos —
provoquei, ácido, afiado — Diga, querida — fui subindo sua saia,
lento, embora com uma vontade animalesca de obter tudo dela.
Passei os dedos por sua coxa grossa, a pele macia como o diabo —
Você ainda é tão sensível quanto antes?
— Afaste-se — nada convincente. Sua boca e corpo não
estavam trabalhando no mesmo time.
— É curioso, a sensação de conhecer tanto alguém, mesmo
que quase sete anos tenham se passado. Essa veia em seu
pescoço? Pulsando agitada — perpassei o nariz por ela — Seu
cheiro, Cherry — moí nossas pélvis juntas, empurrando meu pau
duro contra ela — O cheiro de sua boceta escorrendo, por mim. Mal
consegue respirar de tanta vontade, não é?
Como se fosse só ela, seu fraco do caralho.
Colei minha boca em seu ouvido:
— Me deixa sentir você.
Não era uma ordem. Eu a queria, sim, nesse momento. Mais do
que do oxigênio a nossa volta. Mas queria que ela também
quisesse. Não com o corpo, esse respondia em seu lugar. Mas com
a mente.
Queria que Cherry me desse seu aceite consciente de que era
uma decisão sua, me permitir tocá-la.
Não podia confiar apenas no reverberar de meu peito, insano,
ameaçando me pôr de joelhos.
Muda, assentiu.
— Diga — rosnei — Diga que posso tocar você, Cherry — exigi.
Precisava de palavras.
Afastei a cabeça para observar seu rosto. Os dentes cravados
nos lábios macios. A pele ruborizada.
— Me toque, Derek... por favor.
— Maldita seja você, Cherry Reynolds — não resisti. Roubei
seus lábios para mim. Como um predador.
E bastou tocar a boca macia para o tesão, a saudade, atear
fogo líquido em minhas veias. Para a fera rugir furiosa dentro de
mim. Porra!
Não deveria ainda me sentir assim por ela, não depois de tanto
tempo. Era errado. Era burrice. E era a maldita melhor coisa que eu
provava em todos esses anos.
Minha esposa gemeu baixinho.
Aquele gemido honesto e delicioso.
Separando os lábios, me deu passagem para invadir e buscar
sua língua. Gosto de vinho e... e de casa. Essa maldita mulher, para
mim, tinha gosto de casa.
Entrelacei meus dedos em seus cabelos e a mantive presa,
enquanto, com a outra mão, subi por sua coxa e afastei sua
calcinha.
Porra, sentir a linha baixa de pelos. A umidade ali... Quantas
vezes me lembrei de como era. Quantas noites passei acordado
fantasiando com essa garota, me dando prazer até a exaustão
porque não conseguia varrer a maldita de minha mente.
Minha esposa, nada imune, agarrou meus braços, fincando as
unhas sobre a camiseta. Será que também sentia essa coisa
incinerando? Será que sentiu minha falta, se masturbou pensando
em mim?
— Derek... — reclamou.
Mas era ela que aprofundava o beijo. Que se entregava com a
mesma verdade de quando ainda o fazia nos amassos roubados em
meu gabinete. Quando eu a comia no tapete de nossa casa. A gente
se encaixava tão bem, merda.
Afastei de sua boca. Pressionei beijos pelas bochechas,
têmpora, queixo, mandíbula. Nada, em relação a essa infeliz, me
era o suficiente. Eu sempre ansiava por mais, faminto por ela.
Baixei a boca para seu pescoço, para o colo. Mordi o seio por
cima da regata, sem sutiã, bico entumecido. E ao mesmo tempo,
mergulhei um dedo para dentro dela, apertada e lisa, gostosa
demais.
Cherry gemeu. Agarrou uma mecha do meu cabelo, na nuca.
Dois fodidos.
Passei minha mão calejada por baixo de sua regata, subi, pele
contra pele. Sentir o bico diretamente em minha palma era o
paraíso. Meu pau, aço puro, reclamou preso na calça que nem
mesmo era minha porque até isso essa mulher já fez comigo, me
lançou na lama. Literal e figurativamente falando, porque depois
dela, jamais foi igual com qualquer outra. Meu corpo jamais pegou
fogo dessa maneira. Com outras, era pelo gozo. Com ela, pela
necessidade de sobrevivência. Amassei o seio. Judiei. Queria puni-
la.
— Eu deveria parar — encostei nossas testas juntas, arfando
como um animal — Deveria me afastar de você agora mesmo —
cerrei os olhos. Uma vontade de urrar de frustração — Mas não
consigo... Porra, não consigo.
E precisava prová-la. Era mais do que precisar. Se não fizesse
isso, sufocaria com a urgência martelando, corroendo, rasgando.
Então, mais uma vez, me vi caindo de joelhos aos seus pés. Uma
montanha, diante de um ramo de flor. Submetido a ela.
— Se não me mandar parar, eu vou devorar você, Cherry. E vou
fazer isso até que esteja tão fodida quanto estou.
Olhos cinzas selvagens e desesperados encontraram os meus.
Ela queria resistir. Queria rebater. Recusar. E, assim como eu, era
incapaz de lutar contra o que tínhamos. A infeliz me desejava tanto
quanto eu a desejava.
Suavemente, muito mais do que a energia crepitando lasciva
entre nós, seus dedos delicados vieram para meus cabelos.
— Sabe que o quero. Nunca neguei como me sinto em relação
a isso, Derek.
Não. Mesmo quando era uma garota inocente e curiosa, virgem
e mais atraente do que deveria ser permitido, Cherry deixara claro o
que queria de mim.
Recompensei sua honestidade lambendo devagar o recanto
quente e úmido.
Rocei meu nariz, aspirando. Seu corpo sacudiu. Meu pau
empurrou, doloroso, as bolas pesaram.
Senti uma vontade imoral de sorrir. Eu só podia estar louco
mesmo para me sentir tão empolgado por uma maldita boceta, aos
quarenta e quatro anos.
Já havia passado de ser um garoto há pelos menos três
décadas. Essa ansiedade não correspondia com o homem que eu
era.
— Sonhei com isso — afundei a língua entre os lábios,
lambendo até encontrar o centro rígido de seu prazer, onde circulei,
arrancando outro tremor dela — Desejei esse momento mais do que
gostaria, e me odiei por isso, Cherry.
Subi os olhos para os seus.
— Tem noção do quanto odeio desejar tanto você?
— Derek... — o corpo feminino, de curvas suaves, vestindo
trapos, uma saia simples e uma regata desgastada, mostrando que
não queria me impressionar, como se tivesse essa opção, se curvou
para frente, apertando mais forte meu cabelo.
Sua linguagem corporal implorava que eu não parasse.
Oferecia-se para mim. Exigia.
Eu deveria parar agora. Causar nela a mesma frustração que
senti esses anos todos.
E ri do pensamento. Como se eu tivesse força de vontade
suficiente para resistir a boceta de minha esposa.
Lacrei a porta da racionalidade, tomando uma decisão. Essa
seria minha despedida. Eu me daria mais uma vez o prazer de
devorar Cherry Contreras, e seria a última.
Tomei o que queria, lambendo, sugando, afundando meu dedo
nela até a mulher uivar baixinho. O corpo sacudir. Até se desfazer
em minha boca.
Seria tão fácil mergulhar nela, molhada como estava. Meu pau
não encontraria dificuldade. E a queria tanto, tanto.
Não. Nada de bom viria de sentir as paredes apertadas, quentes
como uma fogueira.
Seria mais uma tortura para as memórias já existentes, porque é
exatamente o que se tornaria. Uma memória. Eu não a queria mais
em minha vida. Me recusava a ainda amar a infeliz e pensar nela.
Não daria a Cherry mais esse poder.
Covarde de merda!
Esperei que seus tremores cessassem e me levantei,
arrumando gentil e friamente suas saias de volta ao lugar.
Foi um erro encarar seu rosto. Confirmar que Cherry ficava linda
quando gozava. Bochechas coradas. Gotículas de suor na pontinha
do nariz e têmporas.
Inspirei com força, sentindo o ar dilatar minhas narinas.
Ainda gostava dela. Gostava demais. E era um erro.
— Decida se virá ou não para casa comigo, nas férias de nossa
filha — lambi o lábio inferior, o gosto dela impregnado em mim —
Ela, vai.
Eu tinha um cartão de crédito sem limites, motorista particular e
um carro disponível, uma ótima cobertura, planos de comprar uma
mansão em Kalorama, bairro nobre da Capital, onde a vizinhança
era composta por grandes nomes da política, inclusive o Obama, e
um marido gostoso e apaixonado que se empenhava em me dar
prazer de todos os jeitos na cama.
A vida dos sonhos para uma dona de casa. Mas me sentia
frustrada por esse papel de esposa troféu, esperando o marido
todas as noites, de não ter sua companhia ou a de qualquer outra
pessoa.
Nunca foi o que almejei para mim.
Naquela noite, esperei Derek para o jantar decidida a ter uma
conversa.
Quando entrou, não titubeou em me beijar com fome, como se
esperasse o dia todo por isso. Amava quando me pegava assim,
forte e ansioso. Às vezes mal dava tempo de encontrar uma
superfície; apenas segurava minha perna levantada e penetrava em
pé mesmo, ou caía de boca em minha vagina. Nunca pensei que o
sexo pudesse ser tão magnífico.
Só que eu estava decidida a, primeiro, colocar as coisas para
fora, aparar as arestas, expor como eu me sentia a respeito da parte
profissional. Por isso, fui a primeira a me afastar.
Derek estranhou. Normalmente, eu já estaria ajudando-o a
arrancar seu terno, esfomeada pelo prazer que daríamos um ao
outro.
— Está tudo bem? — sondou com cautela.
Via, pela ruga no centro de sua testa, que o dia havia sido
exaustivo. Que o projeto dos imigrantes ilegais estava sendo mais
difícil do que o esperado.
Eu podia ajudar! Se quisesse, eu podia estar lá com ele,
pesquisar, pensar juntos, encontrar aliados. Não que ele não fosse
extremamente competente em seu papel. Mas eu queria me sentir
útil.
— Quando posso voltar ao trabalho? — fui direta.
Derek deslizou a mão pelo cabelo e evitou meu olhar quando se
dirigiu ao bar. A ereção fazendo um volume na calça.
— Não sei se é o momento, Cherry.
— E quando será? — fui atrás.
— Já se cansou de mim? — ironizou suavemente; era seu jeito
de me distrair.
— Sabe que não. Que eu te amo. Meu marido se virou para
mim devagar.
— Repete.
Mordi o lábio. Nunca me declarei assim para ele, abertamente.
— Eu te amo, Derek. Amo há muito tempo.
Prazer e algo mais... algo parecido com alívio, perpassou seus
olhos.
— É o primeiro homem por quem sinto isso.
— E serei o único.
Tive de rir. A possessividade era inerente à sua personalidade.
O mundo, via o homem poderoso, ético e comedido. Eu via o
passional, o humano, o que amava com verdade.
— Até porque dizem que isso aqui — apontei a aliança grossa
em meu dedo anelar, sustentando o diamante — é para sempre —
brinquei.
— É, Cherry. É para sempre — ele apanhou minha mão e beijou
meu dedo com brandura.
— Mas o casamento não é tudo que compõe a vida —
arrematei, antes que nos envolvêssemos daquele jeito físico.
— O que quer dizer?
— Que preciso trabalhar, manter minha mente ocupada.
Odiei que franziu a testa como se não percebesse ao que eu me
referia.
— Pensei que a busca por uma casa fosse trabalhosa o
suficiente.
— E é. Só que não é um trabalho de verdade, Derek.
Derek me encarou. Como se não pudesse evitar, percorreu os
dedos em meus cabelos, embrenhando-se entre os fios e segurou
minha nuca.
— Por que não podemos apenas tentar desse novo jeito? — o
timbre rouco, grave, honesto — Você, aqui.
— Porque não fui feita para ficar parada — expliquei, usando a
mesma honestidade — Já passei tempo demais dependendo de
outras pessoas, entende?
Não queria que sentisse pena de mim, por isso não expliquei
que passei anos da minha vida dependendo do sistema do jeito
mais vulnerável possível. Um absorvente íntimo, que fosse, eu tinha
de pedir. Havia planilhas de controle, burocracia. Roupas de
segunda mão que por vezes ficavam largas em meu corpo. O que
eu comia, bebia, onde ia. Tudo dependia da boa vontade de alguém.
Prometi a mim mesma que teria minha independência, meu
dinheiro.
— Não sou outras pessoas — sua mandíbula apertou — Sou o
seu marido, Cherry.
— E continuará sendo, enquanto faço o que estudei para fazer!
— tentei argumentar, exasperada — Só estou pedindo que me dê
meu emprego de volta!
— Não.
Foi como receber um tapa. Olhei bem para ele, para a negativa
seca e definitiva.
— Por que não? — eu não conseguia entender. Menos ainda
porque essa ideia o incomodava tanto.
— Porque não a quero no meu gabinete. Não a quero nesse
meio.
— Não sou competente o bastante? — ironizei, quando nós dois
sabíamos que eu havia trabalhado duro esses meses todos. Derek
exalou, contrariado, embora tentasse se controlar.
— Não tem a ver com competência.
— Então tem a ver com o quê? Precisei me afastar de seu
toque.
— Ouça, Cherry — passou a mão pelo cabelo, encarou o teto, o
chão, até se voltar ao meu rosto — Não vou conseguir fazer meu
trabalho direito se tiver que passar metade do tempo afastando cada
maldito idiota que deseja estar dentro de minha esposa. Você, lá, é
uma distração. Não posso ter distrações no momento. Sabe bem
disto.
Nem podia acreditar em meus ouvidos.
— Está dizendo... — mal encontrei minha voz — Está tentando
dizer que eu...?
Ele me interrompeu:
— Estou dizendo que todo filho-da-puta que conheço está
sempre de olho em você. Que nem se dá conta do tipo de atenção
que atrai. Dos pensamentos sujos que aqueles desgraçados têm a
seu respeito — Derek apertou a ponte do nariz —Você é jovem
demais para entender. Inocente demais. Mas tem coisas que...
— Só pode estar brincando...
— Não, não estou — sacudiu a cabeça, tensão em cada célula
de seu rosto belo e brutal — Gostaria, mas não estou e isso vinha
me deixando maluco — aquele olhar agoniado se voltou ao meu —
Nunca senti ciúmes de ninguém antes. Mas com você... — sacudiu
a cabeça outra vez, angustiado — Porra, com você, sequer consigo
raciocinar direito. E esse é o problema. Preciso estar focado, preciso
ter a mente no lugar e... não dá.
Eu me sentia tão atingida, tão magoada.
— Sou um problema para você, então.
— Não. Sabe que não é. Mas é linda. Linda pra caralho. Tão
linda que essa merda — levou a mão grande e bronzeada ao peito
— dói cada vez que te olho. Que toda maldita hora do dia, só penso
em maneiras de me enfiar em você, em cada buraco, marcar sua
pele. Sua mente. Sua alma — ficou claro que não gostava de se
sentir assim — E não sou o único a desejar isso.
Um pensamento me acertou em cheio: ele não disse que me
amava, quando me declarei há pouco. Eu era para ele... isso... sexo.
— É a coisa mais machista que já ouvi — fui recuando, me
afastando dele, ferida em algum lugar que me deixava até zonza —
Nem aquele homem desprezível com quem trabalhei, que tentou me
estuprar, conseguiu fazer eu me sentir desse jeito — apontei para
mim — Um objeto, uma posse de alguém.
Minha afirmação trouxe um ar feroz ao seu semblante já
retraído. Repúdio.
— Você não é minha posse! — vociferou.
— Tem razão, não sou — falei levantando o queixo — Não
pertenço a você ou a quem quer que seja. E se não está disposto a
devolver o meu emprego, encontrarei outro. Vou procurar dia e
noite, se for preciso, mas isso — girei o dedo em círculo — Não vai
mais ser assim. Não serei o brinquedinho do poderoso Senador!
Corri para a nossa suíte e bati a porta. Me joguei na cama e
chorei até os olhos incharem. Bem mais tarde, percebi que ele não
tentou entrar – embora a porta estivesse destrancada – Derek não
veio para conversar. Eram as primeiras rachaduras. O começo do
enorme e silencioso abismo que se formou em nosso casamento.
A primeira vez que coloquei meus pés em Washington D.C.,
deixando para trás uma vida da qual eu não sentiria nenhuma falta
em Nova Iorque, lembro do poderoso sentimento de recomeçar, na
capital da América. Se Nova Iorque havia sido minha casa por vinte
anos, empurrada de família em família até se tornarem apenas
nomes e números nos cheques do governo, deixada pelo sistema
para sobreviver sozinha na maior cidade do mundo quando
completei idade legal para ser emancipada... Washington fora o meu
lar, mesmo que por pouco tempo.
Conhecia Nova Iorque como a palma de minha mão.
Washington, prometi que conheceria aos poucos, explorando o que
havia além dos prédios governamentais, monumentos e galerias.
Faria no meu tempo, porque pensava que o teria.
Deixei Nova Iorque sem olhar para trás. Não pretendia voltar lá,
pelo menos não para morar. Washington, deixei arrasada, porque
tudo o que mais queria era ficar.
Era difícil não pensar nestas coisas enquanto pegava nossas
bagagens na esteira do Ronald Reagan, o aeroporto doméstico
escolhido pela equipe de Derek.
Fazia quase um mês que eu não o via, desde que partiu.
Abbi, ao contrário, costumava ligar para o pai através de
chamadas de vídeo pelo menos duas vezes ao dia. Os laços entre
eles, naturalmente, se tornando raízes... como deveria ter sido
desde o início.
Com o retorno de Derek para Washington, minha filha e eu
vínhamos tendo conversas muito francas sobre meu passado; meu
relacionamento com o pai dela; minha infância nos lares ― algo que
evitei falar por tempo demais também. Descobri que Abbi era mais
madura do que eu pensava, neste aspecto. Suas questões eram
pertinentes, e eu as respondia com a verdade que uma menina de
seis anos podia lidar. Nem de mais, nem de menos. E não deixei de
admitir meus erros para ela.
Não agora ― pois seu coração puro de criança já havia feito ―
mas no futuro, quando tivesse entendimento da vida, esperava que
pudesse me perdoar de verdade.
A Abbi de agora, esperta e falante, estava tão empolgada com a
ideia de passar as férias em outro estado. Sua primeira viagem. A
primeira vez que entrava em um avião. Pensei que fosse ficar com
medo... no fim, tive certeza que o piloto faria uma parada de
emergência e nos obrigaria a descer, porque Abbi simplesmente não
parava de falar, com todo mundo, sobre absolutamente tudo.
“Ara, o banheiro tem um cheiro ruim demais”.
“Tá com medo, moça?” para a passageira pálida do outro lado
do corredor, que agarrou a poltrona em meio a uma turbulência leve
“Fica não, minha mãe falou que avião quase não cai”.
“Pra onde vai as merda de toda essa gente, quando caga aqui
em cima? Cai lá embaixo, mãe?”.
“Vô aceitar o lanchinho, sim senhora, que tô varada de fome!”.
Abbi sabia falar de forma correta, e ter boas maneiras, mas eu
supunha que ser uma pequena réplica de Willie a satisfazia mais.
Por falar nele, ainda tinha o chapéu... o terrível chapéu country
preto surrado, com abas largas, que Abbi havia ganhado de Willie
anos atrás... minha filha, uma típica texana, decidiu que era uma
boa ideia embarcar usando-o na cabeça. Chamou a atenção de
quase todo mundo que cruzou com a gente. Dentro e fora do avião.
Ela era uma gracinha de gente, não tinha como ser diferente.
— Quer se sentar no carrinho? — sugeri, quando peguei nossas
bagagens.
Que dúvida, né. Trepou com destreza por cima das malas,
soltando um “toca essa carroça!”, divertindo-se demais e chamando
a atenção, enquanto nos dirigíamos para a saída.
Nas mensagens que troquei com a equipe de Derek, sobre
nossa vinda, fui informada de que mandariam um carro para nos
apanhar, mas foi, de certa forma, uma pequena surpresa encontrar
o próprio número um de Derek do outro lado da fita que separava
quem desembarcava de quem aguardava os que chegavam.
Iron, sempre impassível, cabeça raspada, terno preto e óculos
escuros, segurando uma placa com meu nome... meu nome de
casada “Cherry Reynolds”.
Foi difícil evitar a lembrança de seu chefe, na última vez que
nos vimos, no Texas, me chamando pelo mesmo nome contra a
parede, um que eu não me sentia confortável para usar. Que nunca
senti que realmente pertencia a mim.
Mas o problema é que na boca de meu marido pareceu certo.
Pareceu que eu era mesmo a dona do título.
— Sra. Reynolds — Iron cumprimentou, sério como sempre.
— Ainda me lembro de você, Iron. Não há necessidade de uma
placa para isso — falei, suavemente.
Não houve qualquer mudança em sua expressão. Apenas um
aceno firme para Abbi.
— Srta. Reynolds — ele se dirigiu à menina — Sejam bem-
vindas.
— Eita, quem é esse moço, mãe?
— Motorista do seu pai, filha — e segurança. O homem que
estava sempre por perto, vigilante, invisível.
— O Senador as aguarda — disse ele, conduzindo o caminho
até o luxuoso e comprido carro preto parado na vaga exclusiva
próximo ao portão de entrada, para o dia quente e úmido de fim de
julho.
Abbi assoviou baixinho quando viu o carro. Animada, saltou
para dentro.
Esperei estar longe de seus ouvidos para falar com Iron.
— Onde ele nos aguarda, Iron?
— Senhora? — ótimo, o cão de guarda de Derek estava se
fazendo de desentendido.
— Onde Derek está?
— Na cobertura, senhora — meu reflexo nas lentes dos óculos
escuros estilo aviador dele, apertou os lábios.
— Fiz reservas no Courtyard, Iron. É para lá que precisamos ir,
primeiro. Fazer o check-in, deixar nossas malas — falei, procurando
manter meu tom civilizado.
Ficaríamos em um hotel. Havia avisado sua equipe... mas, é
claro, o poderoso Senador tinha outros planos.
— Tenho ordens de levá-las à Lincoln Tower, senhora — e isso
era tudo o que ele me diria.
Não moveria um centímetro a rota combinada com seu senhor.
Eu sabia que era inútil gastar energia agora, brigando por isso,
quando uma batalha muito maior estava a caminho.
Entrei no banco de trás, passei o cinto de segurança em Abbi e
o meu próprio. O trânsito era maluco naquela cidade... prova disto é
que, sete anos antes, uma freada brusca me fez ser arremessada
no colo do Senador e... enfim, deu no que deu.
O trajeto escolhido por Iron, do aeroporto até a Avenida New
Jersey, onde estava localizado o apartamento de cobertura de
Derek, na Lincoln Tower, prometia oferecer uma visão de alguns dos
pontos históricos e emblemáticos da capital dos Estados Unidos.
Tanto para acalmar meu nervosismo, quanto para entreter minha
menina, fui mostrando tudo o que podia pelo caminho.
Apontei o Rio Potomac, conforme percorríamos a George
Washington Memorial Parkway. O dia quente permitiu que os raios
de sol refletissem na água, produzindo um efeito de cartão-postal, e
falei um pouco sobre isso. Então o lugar seguinte e o seguinte. Abbi
absorvia tudo com atenção.
— Aquele lá é o Memorial da Segunda Guerra — falei, quando
nos aproximamos do monumento aberto — É dedicado aos
americanos que serviram durante a guerra.

Minha filha, respeitosamente, e de uma maneira muito tocante,


tirou o chapéu da cabeça e o segurou contra o peito, em sinal de
deferência. Ela não fazia ideia do que era uma guerra, de quantas
aconteceram, o que faziam, mas aprendeu, como todo americano,
que deveríamos honrar aqueles que lá estiveram. Peguei o olhar de
Iron na cena, pelo retrovisor, e o sutil sorriso em sua boca. Ele era
um ex-soldado.
— Fez um bom trabalho, senhora.
Eu tinha, talvez, vinte anos a menos. Nunca conversamos mais
do que as formalidades exigiam, porque Iron era assim,
extremamente sério... então o peso do elogio penetrou fundo meu
sentimento de orgulho materno.
Procurei que minha filha tivesse e fosse tudo o que não tive e fui
em minha infância. Amada, ensinada, acolhida, incentivada. Que
tivesse um lar de amor, pessoas em quem confiar, um lar seguro. E
sim, eu vinha fazendo um ótimo trabalho, apesar dos meus erros.
Enchi o peito desse sentimento. Estava pronta para enfrentar
Derek, mesmo estando em seu território agora.
Só não estava pronta para encontrar as coisas exatamente
como eram, quando entrei no lugar que havia sido minha casa ―
mesmo que por pouco tempo. A decoração ainda era exatamente a
mesma. As cortinas que comprei. O tapete da sala que escolhi. Os
quadros da parede, do artista da pequena galeria na Dupont Circle.
Tudo o que sua autorização e um cartão sem limites me deram aval
para fazer, quando eu ainda era o seu pássaro dourado preso aqui.
E no centro da sala, vestido na informalidade de calça jeans e
camiseta de mangas puxadas até os antebraços fortes, e óculos de
grau de armação preta... o homem com quem dividi essa casa, a
cama, a vida. Pai da minha filha.
Nunca pensei que voltaria aqui, embora tivesse me perguntando
como seria. Se ele havia colocado alguém em meu lugar. Outra
mulher. Nestes últimos sete anos, às vezes, quando perdia o sono
no meio da madrugada, não resistia a dar uma espiada naquele
velho e-mail, com o alerta sobre o nome “Derek Reynolds”,
esperando notícias sobre um namoro, anúncio de um noivado (ainda
que estivesse casado comigo) ou algo assim. Oficialmente, Derek
não tinha ninguém... mas e não oficialmente?
Minha boca secou. Fiquei estática na entrada, sem saber ao
certo o que dizer. Não precisei dizer nada, porque Abbi, em uma
explosão inesperada de alegria, correu para Derek de braços
abertos, dizendo apenas uma palavra, uma que reverberou pela
cobertura e pareceu atingi-lo em cheio:
— Paaaaaai!
Derek a recebeu no ar, para o salto que a pequena deu
derrubando até o chapéu. O rosto lívido pela surpresa. Era a
primeira vez que o chamava assim.
Quando finalmente reencontrou sua voz, foi um som gutural e
rouco:
— Oi, filha.
Meus olhos, tolamente, marejaram. Tentei fazer com que as
lágrimas recuassem. Culpa dilacerava minha garganta como uma
navalha cega.
— Cê mora em um castelo, hein! — Abbi gracejou — Subiu,
subiu, subiu.
Era a primeira vez dela em um prédio tão alto.
— Um castelo que é seu, querida — disse ele, colocando-a no
chão — E então como foi a viagem?
Abbi levou as mãos à cintura:
— Pois olhe, não fiquei nem com um tiquinho assim de medo —
mentirosinha, pensei com amor — Até que gostei.
Finalmente, o olhar do meu marido se voltou para mim.
— Cherry.
— Derek.
Uma sobrancelha grossa subiu.
— Não vai entrar? — só então reparei que ainda estava no hall.
Encarei o chão, sem coragem de sustentar a emoção afiada ali.
A lembrança de nosso último encontro, e de como ele saiu de minha
casa deixando a palavra “erro” reverberando no ar, embora não a
tenha pronunciado.
Outra vez.
Evocando palavras do passado. “Foi um erro, Cherry. Esse
casamento foi um erro”.
Que ingenuidade nossa acreditar, em algum momento, que um
casamento entre nós teria dado certo.
Minha idade sempre foi um impedimento moral para Derek,
ainda que tenha dito o sim diante do Oficial. Que tenha sido ideia
dele nos casarmos. Minha origem, uma órfã sem berço ― e ele
vindo de uma das famílias mais poderosas e tradicionais do país ―
outro ponto contra. Termos nos envolvido enquanto eu trabalhava
em seu gabinete? Mais um agravante.
“A Ninfa que fisgou o político mais cobiçado da América”.
“A ardilosa Cherry Contreras”.
“A órfã ambiciosa que apostou alto”.
“Faminta por ascensão”.
E não podia ignorar o fato de Derek nunca ter saído em minha
defesa publicamente. De alguma forma, seu silêncio corroborou as
acusações... mostrou que também acreditava em cada uma
daquelas manchetes sensacionalistas.
Estive sozinha nessa relação o tempo todo. Amei sozinha.
Não havia outra decisão entre nós:
— Eu trouxe os papéis do divórcio — falei num impulso, embora
estivesse segura demais do que estava fazendo.
Kyrsten Casey, a sobrinha-neta de Eva, e advogada, que
morava em Burnet, a menos de dez milhas de Marble Falls,
providenciara o documento.
O familiar músculo em sua mandíbula perfeitamente projetada
saltou forte.
Estampando um sorriso gentil, ajoelhou-se para a filha.
— Quer conhecer seu quarto?
— Eu tenho um quarto aqui?! — alegria irradiou dela.
— Você tem sim — Santo Deus, como eu amava o que os
sorrisos faziam em seu rosto, ainda que soubesse que aquele era
só um disfarce. Que Derek estava tenso — Vá até o final do
corredor e abra a última porta.
Abbi não precisou de uma segunda dica. Correu na direção de
um dos antigos quartos de hóspedes da cobertura, gritando um
“yupi!” no caminho.
— Fiz reservas em um hotel — falei.
— Este apartamento é grande, Cherry — disse ele, olhos
incisivos. Antecipando minha próxima fala, acrescentou: — Vocês
duas ficarão mais confortáveis aqui. Terão privacidade.
De fato, era um milagre que a imprensa ainda não soubesse da
existência de uma filha do Senador preferido do país.
— Cê tá brincando?! — ouvimos o gritinho de puro êxtase de
Abbi vindo correndo do corredor — Mãe, cê tem que ver isso!
Troquei um olhar com seu pai, desconfiada. E a segui de volta
pelo caminho. Tudo exatamente igual... exceto pelo que encontrei
na última porta.
Um quarto magnificamente projetado para uma verdadeira
princesa. Tons de madeira um elegante rosa claro se estendiam
pelas paredes e móveis; por uma cama em formato de casinha com
roupa de cama colorida e alegre; um espaço de leitura completo;
caramba, ele tinha mandando instalar até uma parede de escalada
para a menina!, e brinquedos. De todos os tipos. Ursos, casa da
Barbie com o que imaginei ser uma coleção inteira da boneca. Havia
até uma bicicleta nova, pelo amor de Deus!
Respirei fundo, absorvendo, e compreendendo o sorriso
atordoado de nossa filha. Tudo aquilo era para ela.
Que não decepcionou:
— Ara, obrigada, pai! — abraçou a perna grossa de Derek — Eu
tava mesmo precisando!
Ri, porque não havia outra coisa a fazer.
Desde que aprendeu a falar, Abbi costumava agradecer a tudo
que ganhava assim: “eu estava mesmo precisando”, e o fazia com
verdade, como se de fato estivesse, por exemplo, precisando de um
quarto novo, em uma casa que nem conhecia.
O sorriso orgulhoso no rosto do pai era nada, exceto genuíno.
Aproveitando-se que a menina se afastou de nós para descobrir
um novo atrativo no quarto, ele se dirigiu a mim:
— E então, vai ficar?
Encarei seus olhos prudentemente impassíveis.
O homem poderoso que fazia tudo a seu modo.
— Não acho que tenha me deixado opção, não é? — ele havia
acabado de eliminar qualquer argumento que eu pudesse usar com
Abbi, e sabia disto.
Assentiu, satisfeito e sério. Olhei para o corredor. Me sentia um
pouco cansada da viagem, e mais ainda dos dias que viriam pela
frente.
— Onde posso me instalar?
— Como eu disse, o apartamento é grande. Pode escolher.
Saí do quarto de Abbi, que, notando agora, tinha uma placa com
seu nome na porta.
Derek me seguiu.
— Bom trabalho — admiti com honestidade, me referindo ao
que tinha feito para ela.
— Só assinei o cheque — deu de ombros, enfiando as mãos
nos bolsos. Grande, imponente naquele corredor. Cheiroso.
O Clark Kent da América.
— Aposto que sim — não consegui evitar provocar.
Se eu bem o conhecia, estava quase certa de que Derek deve
ter colaborado e muito com a ideia do projeto. Ouso dizer que
provavelmente deixou o arquiteto, ou arquiteta, responsável, louco
com exigências de que tudo ficasse perfeito para a filha.
Dinheiro nunca foi um problema para ele. Tampouco o negou
para mim. Derek era um bilionário antes mesmo de ser um político.
Encarei o chão, consciente demais de nós dois. De sua
presença. Desta casa.
— Acho que vou dar um banho na Abbi, e tomar um também...
— Ótimo — notei a nota rouca em sua voz — Há comida pronta,
pedi à cozinheira que deixasse tudo preparado para vocês.
Uma cozinheira. Empregados. A rotina daquela casa que antes
eu conhecia tão bem.
— Obrigada...
Mas nenhum de nós se mexeu.
— Você tem certeza? — perguntou de repente, ainda mais
baixo, mais grave.
— Do que? — indaguei, o cérebro incapaz de pensar direito em
meio a atmosfera densa entre nós.
— Os papéis.
Do divórcio.
Subi os olhos para seu rosto. Para a intensidade me mirando.
— Você não? — foi, com certeza, uma pergunta retórica de
minha parte.
Então por que fiquei esperando que respondesse?
Suas narinas inflamaram-se sutilmente, na passagem de ar.
Derek esfregou a nuca.
— A única certeza que tenho, Cherry, é que quero o melhor para
essa garotinha.
Por Abbi. Não por mim.
Ele estava certo, é evidente.
Então por que ainda esperei por mais? Por que me enchi
daquela esperança ingênua e descabida.
— Ambos queremos, Derek.

Estava parcialmente escuro quando Derek entrou na sala,


naquela madrugada. Provavelmente sem se dar conta de minha
presença, caminhou descalço até o bar de canto. Acompanhei os
movimentos de pôr uma pedra de gelo no copo, que tilintou, e
despejar a bebida âmbar.
Um ritual que talvez fosse um hábito, embora eu não
conhecesse mais seus costumes como antes.
Será que também perdera o sono? Que rolou na cama até ser
demais. Até essa o expulsar.
Comigo, foi assim. Não consegui dormir, esmagada pelas
lembranças do passado; repassando nossas conversas desde que
nos reencontramos, a desta tarde, quando me perguntou se eu tinha
certeza do divórcio.
Estar aqui, sob o mesmo teto, um tão familiar, não havia sido
uma boa ideia... embora eu duvidasse que esses pensamentos me
deixariam em paz em um hotel, também.
Escondida pela penumbra, aproveitei do anonimato para
observá-lo.
Suas costas largas, sob a camiseta clara, terminando em uma
cintura fina. A calça de moletom que se moldava com pouca folga às
coxas grossas, ao bumbum redondo e duro. Pés descalços.
Um homem grande, mais de um e noventa de altura, forte em
todos os músculos.
Um rosto projetado para ser admirado e respeitado.
Que dominava o sexo como o melhor dos amantes ― ainda que
eu não tivesse me deitado com mais ninguém mais para comparar,
sabia que era uma verdade absoluta ―
Possuía fortuna. Poder. Fama.
Por que ousei acreditar que poderia ser meu um dia? Por que
mirei tão alto, e ao fazer isto, acabei por anular as possibilidades de
me apaixonar por outro porque ninguém podia ser comparado a ele?
Acabou, Cherry. Não era para ser. Apague esse homem do seu
coração de uma vez por todas.
— Servida? — ofereceu aquela voz baixa, gutural, sem se virar,
revelando que tinha ciência de minha presença desde o início.
Como poderia ser diferente, se eu me sentia igual em relação a
ele.
— Não, obrigada — recusei polida, não sabendo direito como
reagir nesse cenário, de nós, aqui.
O melhor era voltar ao meu quarto.
— Tenho vinho também, Cherry — provocou com suavidade,
como se me desafiasse a não fugir. A mostrar a mesma civilidade.
Levantei do sofá, mas em vez de voltar ao quarto, aproximei-me
dele no bar. Queria provar que podia ser essa pessoa.
— Então, aceito.
Escondendo a satisfação por trás de um sorriso discreto, foi ágil
em abrir uma nova garrafa, pegar a taça do suporte e me servir.
— Obrigada.
Derek apoiou o quadril contra o bar, cruzando um pé em frente
ao outro, de frente para mim, segurando o próprio copo.
Bebericando o vinho, ali com ele, sem coragem de encarar seu
rosto, foquei em seus pés. Uma parte que sempre achei atraente
nele. Grandes, veias largas. Pés masculinos de um homem feroz.
O silêncio se prolongou entre nós, até que foi ele a quebrá-lo.
— No que está pensando?
No que eu estava pensando? Em tanta coisa. No futuro, no
passado. E tudo se resumia à verdade que abandonou minha boca:
— Estou cansada de brigar.
Fosse pela penumbra parcial. Pelo álcool ― embora um gole
não fosse suficiente para tanto ― deixei sair e me senti
estranhamente bem em fazê-lo.
Isto o pegou desprevenido. Através da visão periférica, notei
sua mão hesitar no caminho de levar o copo à boca.
— Nunca pretendi brigar com você, Cherry.
Subi meus olhos para ele, para outra verdade difícil:
— Mas me odeia.
Derek estreitou aqueles olhos cor da noite.
— É o que costumo dizer a mim mesmo — ponderou calmo, por
trás do copo, me encarando intensamente, tão intensamente que
doía em algum lugar profundo de mim.
Então confirme, confirme que me odeia. Preciso esquecer você,
preciso fazer minha vida sair desse lugar onde estou parada há sete
anos! Que meu coração está preso.
— É como se sente — lembrei-o.
Lambendo um resquício do uísque no lábio inferior, ele pousou
o copo sobre o balcão. A mandíbula apertada. Não de raiva, não
parecia ser. Não hoje.
— Foi um erro desde o começo, não foi? — odiei a ansiedade
em minha voz.
Depois de um momento medindo minhas palavras, ele negou
com a cabeça.
— Não. Não foi.
— Essa é a maior mentira de todos os tempos — ri baixinho,
sem vontade, desviando meu olhar para um ponto da parede.
Meu marido continuou me encarando. Sereno demais.
— Foi uma mentira para você, Cherry?
As palavras, roucas, penetraram meu coração com facilidade.
Sempre com facilidade. Nem que eu quisesse, conseguia me
revestir de qualquer armadura quando o assunto era ele. Ponderei
por um momento antes de dizer o que realmente pensava,
analisando em retrospectiva:
— Não, não foi. Teve muita coisa, mas mentira não foi uma
delas — admiti.
— E o que então, em sua opinião? — havia um interesse
profundo na questão. Talvez um ponto a ser provado — Onde acha
que erramos?
Não nos levaria a nada, e ainda assim, não consegui me
impedir de responder.
— Eu nunca tinha me relacionado com ninguém. Admirava
você, antes mesmo de te conhecer pessoalmente. Estava tentando
começar uma vida nova aqui. Talvez eu tenha me jogado com força
demais, sem verificar se havia uma rede de proteção lá embaixo.
Derek estalou a língua baixinho.
— Não acho que tenha sido isso.
— E o que você acha? — caí na armadilha de perguntar.
Seu olhar penetrante se fixou nos meus.
— O que eu acho, Cherry, é que nenhum de nós teve qualquer
chance contra isso aqui — gesticulou com a mão poderosa entre
nós, não se referindo ao fim... mas ao começo. À química — E olha
que a gente tentou resistir. Tentou evitar a colisão. Eu e você
tentamos — enfatizou, dividindo igualmente entre nós a
responsabilidade — Mas o choque era inevitável.
— Você tentou evitar. Não eu. Como eu disse, me joguei sem
pensar duas vezes — apontei na defensiva.
— Não se engane, você o fez tanto quanto eu, querida — e não
havia nada de ácido no tratamento, ao contrário, uma suavidade
desarmada que talvez nunca tivemos de fato um com o outro —
Quando não deu tempo suficiente para nos ajustarmos. Quando
interpretou minha vontade de tê-la aqui como intenção de prendê-la.
Ficou tão desesperada com a ideia de alguém cuidando de você,
pela primeira vez em sua vida, que lutou, resistiu. Fugiu.
Senti suas palavras como um golpe físico dentro de mim.
Ficou tão desesperada com a ideia de alguém cuidando de
você, pela primeira vez em sua vida.
Meu coração galopou no peito.
Eu não tinha feito aquilo, tinha?
— E quanto à sua parcela? — murmurei, ou acusei, perdida
com o zumbido em meus tímpanos. O ardor na garganta.
Derek respirou fundo, meneando a cabeça lentamente,
aceitando:
— Fui orgulhoso demais para admitir que uma garota de vinte
anos tinha tanto poder sobre mim. E egoísta demais para
reconhecer que precisava deixar ela livre, se a quisesse comigo.
— Derek.... — eu estava sem ar. Na conversa mais honesta que
já tivemos na vida, eu estava simplesmente sem ar.
Derek se afastou do bar, cortando o espaço seguro entre nós
até estar diante de mim. Gentilmente, segurou meu queixo para que
eu o encarasse.
— A verdade é que nenhum de nós esqueceu o outro, Cherry.
Esperei você, e você me esperou. Por sete malditos anos. E uma
filha no meio.
Fechei os olhos. Não por não suportar a verdade. Mas por
lamentá-la.
— Eu me arrependo... — murmurei sem voz — De não ter te
contado, quando descobri.
Lábios quentes tocaram os meus, polegares varreram a lágrima
que despencou em minha bochecha.
— E eu me arrependo de ter perdido você — afastou-se com a
mesma suavidade — Vou assinar aqueles papéis, Cherry. Não é
justo, com nenhum de nós, continuarmos no lugar onde estamos.
Meu marido, o único homem que já amei, finalmente estava
declarando o nosso fim. De forma honesta. Sem fugas. Sem
acusações.
Civilizados para o bem de nossa filha.
Mas não deixou de doer por isso.
— Derek! — chamei, baixo, virando-me para ele, antes que
desaparecesse no corredor.
Derek parou, onde havia ainda menos luz, me impedindo de ver
seu rosto.
— O que mudou? — daquela atitude, desde que soube da filha,
para esta. Da raiva que mostrou sentir por mim, era ao que me
referia, sem necessidade de verbalizar.
Ele, claro, compreendeu.
Assentiu.
— Só decidi parar de lutar contra o que sinto.
Seus sentimentos por mim.
Fiz o que avisei que faria. No dia seguinte, disfarcei os olhos
inchados com maquiagem e saí em busca de emprego. Voltei à
agência que havia conseguido minha entrevista para o estágio com
Derek há meses – que mais parecia uma vida atrás – e esperei ser
atendida pela gestora de Recursos Humanos.
Não acho que tenha me reconhecido. Fiz o cadastro
novamente. Depois de lá, visitei outras duas.
Durante todo o dia, quis ligar para Derek, saber como estava.
Me segurei. Eu não podia me sentir culpada – ou ser culpada –, por
querer ter uma vida, assim como ele tinha a dele. Não era justo.
Quando chegou em casa, naquela noite, parecia já saber que
procurei emprego durante o dia, mesmo eu dispensando o
motorista. Estava calado, inexpressivo. Foi a primeira vez que não
nos beijamos com a loucura de sempre. Derek se serviu de uísque.
Eu, me sentei no braço do sofá, esperando para saber se
conversaríamos sobre a discussão da noite anterior. Sobre ele ter
dormido no quarto de hóspedes da cobertura.
— Como foi o seu dia? — perguntei com cautela.
Vi seus ombros contraírem.
— A verdade? — respondeu devagar, entornou uma golada da
bebida âmbar desafrouxando a gravata, e se virou para mim — Uma
merda. O seu? — havia certa acidez no modo polido.
Ainda que ele provavelmente já soubesse, eu me sentia na
obrigação de contar:
— Fui a agências de emprego, me cadastrar.
Um aperto na mandíbula denotou a insatisfação.
Não queria que nada disto estivesse acontecendo. Amava esse
homem, minha pele ardia de vontade tocá-lo. Abraçar, beijar, sentir
ele dentro de mim. Ele também queria cada coisa destas, dava para
ver.
— Não quero que a gente brigue — fui sincera.
Derek inspirou fundo. O peito poderoso subiu e desceu.
Notei as marcas ao redor dos olhos. Estava cansado,
provavelmente também não dormiu na noite anterior.
— Mas pretende continuar com a ideia de trabalhar.
Não foi uma pergunta. Ainda assim, assenti:
— Pretendo.
Pousou o copo vazio no balcão.
— Vou tomar um banho.
— Tudo bem — murmurei. O coração dolorido por essa frieza
entre nós.
E foi isso que me fez entrar no chuveiro atrás dele, alguns
minutos depois.
Tremia como uma dependente química treme pela abstinência
de uma droga.
Sem um convite, me despi, abri a porta do banheiro, nua, e
entrei debaixo da água, abraçando-o pela cintura, por trás.
Esmagando meus seios em sua pele.
Seu corpo enrijeceu por um momento.
Então, com a brutalidade e fome que eram viscerais para nós,
meu marido se girou, me pressionou contra a parede, mão no meu
pescoço, e me beijou.
Com força. Punitivo. Cheio de fome.
O pau, duro, empurrou contra meu estômago.
A mão, me estrangulava daquele jeito que me dava um tesão
irracional.
Comecei a masturbá-lo. Devagar, indo e vindo pela estrutura
grossa e comprida.
Derek grunhiu contra minha boca, o aperto em minha garganta
intensificando.
Estava melada. Era sempre assim entre nós, rápido demais meu
corpo se tornava ansioso por recebê-lo. Não encontrou dificuldade,
quando levantou minha perna e me penetrou.
Estocava forte. Ia até o fundo. Mordeu minha boca, amassou
meu seio.
Meus gemidos ecoavam pela acústica do banheiro.
E quanto mais na borda do precipício eu estava, mas doida ele
me deixava.
Gozei com tamanha violência que cheguei a ver estrelas diante
dos olhos.
Derek me girou contra a parede, prensou meu corpo no azulejo
frio e penetrou meu ânus, afundando-se impiedosamente,
aproveitando-se de minha lubrificação. Doeu, mas dor fazia parte do
tesão. A mão veio para meu clitóris, dedos habilidosos, fazendo o
trabalho de me enlouquecer.
Só parou de me masturbar para me golpear a bunda.
Uivei de dor e prazer.
Gozei pela segunda vez, chorando porque aquilo, assim como a
água despejando do chuveiro, lavava minhas emoções. Ser comida
pelo meu marido era viciante e libertador.
Derek me levou para a pia, molhados, me curvou e penetrou
outra vez, de quatro, enquanto golpeava minha bunda de novo e de
novo.
Gozou comendo o meu cu, enforcando meu pescoço, enquanto
espasmos ainda explodiam em meu ventre, vibrando com a potência
elétrica que só ele conseguia provocar. Era insano o que eu sentia
por esse homem. O tesão devastador.
Eu não sabia, mas aquele seria um precedente para a dinâmica
entre nós nas semanas seguintes, até tudo verdadeiramente ruir.
Muito sexo com violência e intensidade. Ressentimento dos dois
lados. Ausência de diálogo.

Consegui um emprego. Fui chamada para a vaga de


Especialista em Comunicação Política na Oxfam, uma confederação
internacional de organizações sem fins lucrativos que trabalhava em
conjunto para combater a pobreza e a desigualdade global, com
escritórios em dezenas de lugares ao redor do mundo, e em
Washington, D.C.

Eu não sabia bem como tinha dado tanta sorte. Na verdade, mal
acreditava que estava mesmo acontecendo. Por uma coincidência
enorme do destino, a Oxfam estava buscando alguém exatamente
com o meu perfil, jovem, recém-formada, foi o que a recrutadora da
empresa contou quando entrou em contato, ainda que eu não
fizesse ideia de como tiveram acesso ao meu currículo.
Feliz demais, não resisti a ligar para a primeira pessoa – e única
que eu tinha no mundo – para contar a novidade. Mordi o lábio,
ansiosa e hesitante, enquanto completava a chamada. Derek
atendeu no terceiro toque.
— Oi... — falei baixinho.
— Oi — respondeu no mesmo tom. O timbre rouco. Sentia tanta
saudade dele, de nós naquelas primeiras semanas de casados.
— Fui chamada para trabalhar na Oxfam... — ouvi sua
inspiração profunda — Especialista em Comunicação Política. Dá
para acreditar? — brinquei, encarando meus sapatos, alguns metros
longe do prédio em que minutos antes tive uma conversa com a
gestora.
Silêncio.
— Dá, dá sim. Você é competente no que faz. Um elogio
sincero. Suspirei.
— Sinto sua falta... — murmurei, não suportava mais aquela
pontada de dor por nós.
Silêncio. Respiração forte. Quase podia imaginar Derek
massageando a têmpora.
— Estou aqui — a voz mais grave e profunda — Sempre vou
estar.
— Eu sei... Vejo você em casa?
Silêncio. Um minuto depois, ele me surpreendeu:
— Quer sair para jantar?
Bobamente, apaixonada, sorri para o telefone.
— Quero.
— Oito?
— Oito — confirmei.
Nenhum de nós disse nada. Respirei fundo. Fez o mesmo.
— Te amo — sussurrei.
Grunhiu. Inspirou fundo.
— Sou maluco por você, menina — respondeu de volta,
baixinho, quase que se fosse uma maldição gostar tanto de mim.
— Não sou uma menina — e não gostava quando ele
evidenciava nossa diferença de idade.
— É, cereja. Você é uma menina.
— Cereja? — provoquei, escolhendo evitar esse caminho.
— A tradução do seu nome. A cor da sua boca... o sabor da sua
boceta. Arfei.
— Te vejo depois, então?
— Sempre.
Antes que eu desligasse, ainda me chamou:
— Cherry? Parabéns, estou orgulhoso de você — pareceu
honesto, apesar de tudo.
*

Mesmo com um novo guarda-roupa completo, escolhi vestir o


mesmo tubinho preto de nossa primeira vez, naquele jantar. Arrumei
meu cabelo em ondas perfeitas. Escolhi o batom cereja. Saltos
finos.
Quando Derek entrou na cobertura, seu olhar escurecido me
perscrutou inteira, arrepiando a minha pele com a intensidade.
Engoli em seco, afetada, como sempre acontecia.
Derek se aproximou e me beijou mais devagar, explorando. Foi
diferente. Percorreu beijos por minha mandíbula, ombros, colo,
descendo por meus braços enquanto se abaixava ao chão. Ficou de
joelhos aos meus pés, sem desgrudar os olhos dos meus.
As chamas em suas esferas me queimavam, enquanto subia
meu vestido.
— Separe-as — exigiu.
Tremendo de ansiedade, afastei os pés. Minha calcinha de
renda foi afastada. Meu marido me lambeu, provocativo, chupou
gostoso. De joelhos no chão, me comeu com sua língua e dedos até
eu gritar que já não suportava mais. Agarrei seus cabelos, enquanto
espasmos prometiam me derreter o cérebro. Era demais.
Derek me girou e apoiou sobre o braço do sofá, bunda nua para
ele. Ficou de pé, abriu o zíper da calça e se afundou em mim.
Grunhiu forte, o pau grosso macetando bem no fundo. Gemi
também. Gozou puxando meu cabelo bem firme em seu punho e
mordendo meu ombro. Era sobre isso. Essa conexão visceral que
nos ligava através do sexo.
Decidimos não sair de casa. Nosso jantar aconteceu no chão da
sala. E foi um dos momentos de maior normalidade em nosso
relacionamento. Dividir um japonês com meu marido, num clima de
paz e relaxamento.
Eu estava mais ansiosa do que minha filha para conhecer uma
parte de sua família; era uma verdade indiscutível. Enquanto tentava
fazer uma trança bonita no cabelo liso e preto, herança genética do
pai, ela trepava na parede de escalada, indo de um lado para o
outro. Estava me enlouquecendo!
— Abbi, pare por um momento, por favor! — tive que falar mais
firme, o que chamou imediatamente sua atenção.
Abbi saltou no chão e se virou para mim, o rostinho inocente e
confuso.
— Ara, mãe, cê tá brava?
Suspirei.
— Não, filha. Não estou brava. Só quero que se arrume porque
daqui a pouco elas chegam... e é “você”, Abbi. Tente falar certinho,
filha — girei seus ombros com gentileza, para encaixar o laço de fita
em seu cabelo.
— Por que cê tá me vestindo que nem boneca, mãe?
— “Por que você está”.
— Por que eu tô o que?
— O modo correto de falar, Abbi; “por que você está”. E não
estou te vestindo como boneca. Às vezes é bom se arrumar um
pouco mais, sabe. Principalmente quando vamos conhecer pessoas
importantes.
— Elas são importantes?
— São a família do seu pai. E sua tia e avó.
Abbi pensou um pouco.
— Nunca conheci uma tia e uma avó.
Graças a uma decisão ruim minha.
— Aposto como elas não veem a hora de te ver — bati o dedo
na pontinha do narizinho empinado.
— Vão gostar um montão de mim, né — não era uma pergunta.
Ri.
— Sim. Vão te amar.
Se fosse diferente disso, então não a mereciam.
Não sabia muito sobre elas. Lisa Reynolds, mãe de Derek, era
viúva do também senador Bill Reynolds, pai de Derek. Uma senhora
na casa dos setenta anos, elegante — pelo que vi nas imagens de
revistas e jornais sobre os eventos beneficentes que promovia —
sempre aparecia impecavelmente bem vestida, com cabelos presos,
joias e adepta a cirurgias plásticas.

E Mary-Kate Reynolds, irmã de Derek e CEO dos negócios da


família, que se baseavam em indústrias, e eram muitas. Não havia
muito sobre Mary-Kate na internet, além das imagens da executiva
que saíam na Forbes.
Gente do old money, como a nova geração os chamava.
Não sabia bem o que esperar deste encontro, mas podia
apostar que, uma família de onde vinha um homem nobre e honrado
como Derek, não eram más pessoas.
E pensar em meu ex-marido dessa forma trazia de volta aquele
aperto em meu peito.
Convivendo como dois adultos, pais, pessoas que se amaram
um dia. Quanto mais tempo eu passava com essa versão real de
Derek, mais via que, no passado, não o conhecia. A verdade é que
a paixão falou tão alto naquela época, a necessidade de provarmos
algo um ao outro, de nos protegermos do outro, que vestimos
máscaras.
Perdemos nossa chance juntos.
E eu ainda o amava. Talvez até mais do que antes.
Quando enfim deixei Abbi pronta, voltei para meu quarto, o
quarto de hóspedes que eu ocupava no apartamento. Chequei meu
visual. O vestido longo fluído, as sandálias de salto Anabela ―
porque essa versão minha de agora, mãe, não se encaixava mais
no desconforto de saltos muito altos de bico fino e nas saias lápis,
apertadas―. Eu agora era a Cherry Contreras que trabalhava em
uma lanchonete, em uma cidadezinha do Texas, e era mãe de uma
menininha bruta e cativante.
Fui com Abbi para a sala, e me sentei no sofá esperando.
Levantei, dei uma volta pelo cômodo, me sentei de novo.
— Ara mãe, tem um bicho mordendo sua bunda, é?
— Abbi! Modos, filha.
— Você não para de andar pra lá e pra cá... peraí... cê tá
nervosa?
Muito.
— Não — voltei para o seu lado no sofá e me sentei. Não
resisti: fiz cócegas em sua barriga até ela gritar de tanto rir.
— A senhorinha é muito bisbilhoteira, viu? — mais cócegas — E
espertinha demais para seu tamanho também!
Abbi gargalhava sem ar, tanto que acabou soltando um pum alto
e barulhento... o que me fez rir demais também, e foi assim que as
três pessoas paradas na porta da cobertura nos encontraram.
Derek, sua mãe e a irmã.
— Cê fez eu peidar, mãe!
Pigarreei, me levantando... e colidindo com os olhos do pai de
minha filha em mim, intensos, brilhantes. A mandíbula tensa... mas
de algo muito mais forte do que toda a raiva de antes. Mais perigoso
para o meu coração.
— Olá — falei, meu sorriso morrendo.
Foi somente quando Abbi se deu conta de que não estávamos
mais sozinhas. A primeira reação de nossa filha foi de certa forma
inesperada, para alguém sempre tão desenvolta. A garotinha se
escondeu atrás de minhas pernas.
Corri meus olhos pelas duas mulheres.
Mary-Kate era uma mulher quase tão alta quanto Derek,
cabelos pretos cortados na altura dos ombros, vestindo jeans,
camiseta e tênis. Não era exatamente o visual que eu esperava de
alguém tão poderosa. Gostei dela imediatamente. Ela não estava ali
como a CEO bilionária da Forbes, estava vestida como... tia.
Já a elegância de Lisa Reynolds, eu imaginava, era inerente a
ela, num tailleur verde menta clarinho, sapatos de salto baixo, e um
coque na cabeça contendo os cabelos grisalhos. Usava pérolas nas
orelhas e pescoço. Um sorriso admirado e curioso no rosto.
— Ei, será que aquela menininha bonita ali é minha sobrinha, da
qual você falou tanto, Derbear?
— Derbear? — Abbi questionou, despontando timidamente a
cabeça, curiosinha demais para se manter totalmente escondida.
— É o apelido do seu pai — Mary-Kate disse irreverente — Ué,
você não sabia? Olhe só para ele, um urso grande.
— Ele não se parece com um urso.... — a garotinha saiu em
defesa do pai, dando uma risadinha.
— Espere até só eu te contar uma história de quando ele era
criança — confidenciou ela, sussurrando alto.
— Que história? — Abbi se afastou totalmente de mim, indo em
direção ao grupo, interessada.
— É a sua cara, filho — Lisa Reynolds falou pela primeira vez,
sua voz continha aquela ondulação da idade — Na verdade, estou
olhando para você em uma versão feminina.
Derek se abaixou para Abbi.
— Filha, esta é a sua avó, Lisa. E essa aqui, sua tia Mary-Kate,
se ela te contar que tenho medo de ursos, você não pode acreditar,
está bem?
— Você tem? — Abbi investigou.
Derek se inclinou mais para ele.
— Tenho, mas sua tia não pode jamais saber disto.
O Senador mais influente da América, sempre sério para o
mundo, estava ali, ajoelhado, fazendo graça com a filha. Arrancando
uma risada dela.
Assistindo ao grupo de longe, de repente me senti uma intrusa.
Como se eu não devesse estar presente nesse momento deles.
Alisei a saia do meu vestido, abaixando a cabeça. Derek se
levantou.
— Cherry — chamou, o timbre profundo, me obrigando a olhar
para ele — Mãe, Lisa, essa é a Cherry.
Suguei uma boa quantidade de ar esperando a retaliação,
animosidade delas, acusação.
Encontrei rostos interessados, livres de julgamento. Foi uma
surpresa.
— Meu irmão falou muito de você, Cherry. É um prazer
finalmente a conhecer — Mary-Kate foi a primeira e vir em minha
direção.
Estendi a mão.
— É um prazer conhecer você, também — falei.
O aperto foi firme, e veio um beijo no rosto inesperado.
— Na verdade, pensei que ele a esconderia de nós outra vez —
a mulher deu uma olhada para o irmão, com censura.
O que ele havia dito para elas. Uma parte da história, toda ela?
Também olhei brevemente para ele.
— Já aprendi minha lição — Derek disse apenas, mas era em
mim que se focou.
— Lamento muito que tenham perdido tantos anos, Cherry. Mas
se eu puder te dizer algo agora, que gostaria de ter dito antes, é que
você sempre foi bem-vinda em nossa família.
Meu rosto esquentou com sua franqueza e modo direto. Não
soube como lidar com aquilo.
— Obrigada — falei baixo.
— Mãe, cê viu os brinco e o colar da minha avó? Parece coisa
chique que só vendo — Abbi soltou essa, no meio do momento mais
embaraçoso que já me vi, e eu a amei ainda mais por ser assim,
porque quebrou um pouco da tensão.
— São pérolas, querida — explicou a Sra. Reynolds, também se
aproximando. Sua mão enrugada na mãozinha pequena de Abbi —
Uma mulher pode sair de casa até de pijama, mas jamais deve sair
sem suas pérolas.
— A filosofia das Reynolds — debochou Mary-Kate, revirando
os olhos.
— É um prazer, senhora — estendi minha mão para a mãe de
Derek.
— Digo o mesmo, Cherry — seu rosto se tornou sério e franco
— Derek me pediu para não me intrometer nesta situação entre
vocês, mas como mãe, e você entende bem isto, acho que posso
ser sincera com você.
— Sim, a senhora pode — falei, sem me acovardar, esperando
o pior de queixo erguido, porque Abbi estava aqui, e de maneira
nenhuma eu permitiria que minha filha visse sua mãe ser humilhada
ou qualquer coisa neste sentido.
— Mãe — alertou Derek, a voz baixa e perigosa, dando um
aviso.
— Faz pouco mais de um mês que descobri a existência de
uma neta, minha única neta, já que nenhum dos meus filhos
pareceu inclinado a aumentar a família, em anos. Seja lá como
vocês, dois adultos, esperam resolver essa situação, não gostaria
de ser privada da convivência com ela daqui para frente.
— O que minha mãe quer dizer — intrometeu-se Mary-Kate,
tentando aliviar o clima — É que seria muito bom se você a
permitisse mimar e estragar essa garotinha inteligente aqui —
esfregou o cabelo de Abbi para provocar —, porque minha mãe está
se sentindo solitária e carente. Ela precisa de alguém para ouvi-la
reclamando dos filhos.
Mas Lisa Reynolds e eu, em uma conversa silenciosa entre
duas mães, presas uma no olhar da outra, sabíamos exatamente o
que ela realmente estava dizendo. Separei Abbi deles por tempo
demais, e ela estava evocando seu direito de ser avó. Era justo.
― Não pretendo afastar minha filha de vocês — dei minha
palavra, e ela soube que era verdade.
Sorriu. E enxerguei a leoa. Eu era uma, no que dizia respeito a
proteger minha filha. A admirei.
Abbi teria uma boa avó, além de Eva.
Meu trabalho para a Oxfam consistia em ajudar minha chefe,
Mariah Gonzales, a desenvolver estratégias de comunicação com
representantes políticos a fim de ganhar apoio em causas
humanitárias da organização no Congresso.
Mariah era uma chefe maravilhosa. Latina, quarenta anos,
inteligente, determinada. Tinha um olhar valente e gentil para
causas das minorias. Em três meses, eu me vi aprendendo muito
com ela. E ela me incluía em tudo. Eram reuniões, jantares,
almoços, congressos, com figuras importantes da política e
referências globais.
Nesse sentido, questões relacionadas à justiça social, direitos
humanos, igualdade de gênero, e desenvolvimento sustentável, que
eram temas importantes para a Oxfam, alinhavam-se muito mais às
ideias progressistas do Partido Democrata do que às conservadoras
do Partido Republicano, do qual meu marido fazia parte. O que
resultava em uma agenda completamente oposta à dele, e menos
tempo juntos. Eu percebia o quanto isso o desgastava.
Derek não reclamava, mas não se mostrava satisfeito quando
eu era a última a chegar em casa, tarde da noite.
E havia o ciúme. Das pessoas com quem eu era fotografada,
dos sorrisos que eu era obrigada a dar. Dos homens poderosos com
quem eu convivia para conseguir aliados na aprovação de uma lei
em andamento no Congresso naquele mês, acompanhando minha
chefe.
Tudo finalmente chegou ao limite da tensão construída em
nossa casa no começo de abril. Um jantar beneficente com alguns
dos bilionários do Vale do Silício e políticos democratas com objetivo
de angariar fundos.
Fui escalada para me sentar ao lado de Carl Anthony, senador
democrata em evidência no noticiário atual por fazer parte do que a
oposição chamou de “Pacote Pró-morte” em uma campanha
fervorosa para impedir que a lei de direito ao aborto voltasse à
pauta.
Eu já havia esbarrado com Carl duas outras vezes, embora
nunca tenha me aproximado. Ele era o tipo charmoso, popular com
o eleitorado jovem, e vinha ganhando números entre as mulheres
americanas. Seu rosto estava em todos os principais jornais do país
semanalmente, muitos especulavam que estava polemizando tal
assunto somente para fazer seu nome em uma futura corrida
presidencial... algo que eu suspeitava que o Partido Republicano
também pretendia para Derek.
Meu marido era a principal aposta republicana para concorrer
ao maior cargo da América, embora, pessoalmente, ele não
expusesse o que pensava a este respeito.
Conversando com Carl, naquela noite, pude compreender que
suas ideologias eram genuínas.
— Os mesmos, no Congresso, que se dizem a favor da
proibição do aborto — discorreu para mim, enquanto conversas
paralelas se estendiam ao redor de nossa mesa — São os que
obrigam as amantes a abortar seus bastardos fora do casamento.
Não esbocei nada, enquanto ele continuava:
— Proibir ou não, não fará com que diminua. Só obrigará estas
mulheres a procurar meios menos seguros de realizar.
Vi, em seus olhos, que era no que acreditava.
— É um pensamento — comentei, bebericando o vinho branco
em seguida.
No fundo eu concordava com Carl. Mas, ao concordar, me
sentia traindo Derek, caso um dia essa disputa entre eles realmente
acontecesse.
Carl pareceu notar isso. Aproximou-se mais do meu ouvido e
disse em voz baixa, com bom humor:
— Você ainda pode votar nele, mesmo concordando comigo.
Isso me fez sorrir. E foi essa cena que os fotógrafos escolheram
captar. Carl falando ao pé do meu ouvido e me arrancando um
sorriso.
Na duração de um flash, senti, apenas senti, que aquela
conversa inocente, de alguma maneira, respingaria em meu
casamento. Eu só não sabia com que intensidade.
Quando voltei à cobertura, horas mais tarde, Derek não estava
em lugar algum. O apartamento estava completamente vazio.
Mas o iPad em cima da mesa de centro me disse que eu tinha
razão: Uma matéria tendenciosa do The Washington Post com um
título absolutamente sensacionalista:
“Esposa do Senador Derek Reynolds trabalhando contra ele”
. O conteúdo do texto me deu náusea. Os comentários eram
tóxicos, mentirosos, ofensivos:
“Vai ver ela se cansou de um conservador de bem e decidiu dar
para um liberal satânico”.
“Reynolds não está comendo muito bem a ninfeta dele, pelo
jeito”.
“Essa piranha nem se constrange de humilhar o marido
publicamente, andando com esses demônios que defendem o
aborto”.
“O sorriso sacana dela diz tudo, isso aí não é de hoje. Tá
rolando há muito tempo”.
Foi angustiante ligar para Derek e ir direto para a caixa postal,
hora após hora. Cochilei no sofá da sala sem notícias. O dia estava
quase clareando quando despertei, e nada de ele voltar para casa.
Caí na besteira de pegar outra vez o iPad. Os comentários se
multiplicavam exponencialmente. Um pior do que o outro. Fizeram
montagens grotescas de Carl e eu. Imagens falsas de nós dois
saindo de um carro. Abraçados em frente a um hotel. Coisas que
seriam facilmente desmentidas se fossem levadas a diante... mas
que tinham um potencial de destruição feroz enquanto perpetuavam
a inverdade.
Minha agonia virou desespero.
Às sete da manhã, quando finalmente o horário permitia, liguei
para Mônica. Fui informada que Derek voou para a California, para
participar de uma reunião de última hora.
Foi estranho pensar que não me disse nada. Califórnia era onde
moravam sua mãe e irmã. Planejávamos passar alguns dias lá no
feriado de Memorial Day, no mês seguinte, já que Ação de Graças e
Natal não foi possível, para que eu finalmente as conhecesse.
Esse sentimento de aperto no peito durou durante todo o dia,
até que, quase vinte e quatro horas depois de chegar em casa e não
o encontrar, uma imagem no meu e-mail, das notificações que eu
ainda mantinha de seu nome no Google, apesar de já nem lembrar,
caiu em meu corpo como um balde de lâminas frias e afiadas.
Derek e Florença. Saindo de um restaurante. Ela com o braço
enroscado ao dele, escondendo o rosto dos fotógrafos. “O
casamento de Derek Reynolds chegou ao fim? Senador e Florença
Firenze vistos em clima de romance em restaurante de Chicago”.
Chicago.
Não Califórnia.
Mônica mentira.
Meu marido estava com outra.
Nada nunca doeu tanto. Pensei que morreria com aquela
sensação de ser cortada viva. Foi assim que Derek me encontrou
naquela madrugada, quando entrou na cobertura. Embolada no
chão, olhos inchados pelo choro.
A imagem o surpreendeu. Vi em seu olhar preocupado, apesar
de frio. Estava magoado comigo e ainda assim, preocupado. Mas eu
também estava magoada. Mais do que qualquer coisa, aquilo me
cortava.
Devagar, eu me levantei. Derek atravessou a sala e foi para o
bar.
— Se não pretendia me respeitar, por que se casou? — falei
para suas costas tensas.
Vi seus ombros enrijecerem. O copo foi deixado de lado. Derek
apoiou as mãos no bar. A cabeça baixa. Sentia sua raiva. Ela colidia
com a minha.
— Poderia dizer o mesmo — rebateu em voz baixa, gélida.
— Jamais o desrespeitei.
Uma risada fraca, que odiei, moveu seu ombro.
— Não é o que dizem — então, lentamente, meu marido se
girou para mim. Foi como receber um golpe, a frieza e desprezo em
sua expressão feroz — Há quanto tempo isso vem acontecendo?
— Isso o quê? — desafiei com raiva, queria que desse voz
àquele pensamento e percebesse o quanto parecia ilógico me
acusar de algo cujo único culpado aqui era ele.
— Você nunca foi uma tola, esposa. Não acho que esse papel
lhe caiba agora. Como ele tinha coragem?!
— Você ao menos se escuta?! — explodi. Meus punhos
estavam cerrados. Nunca senti tanta raiva antes — Escuta o
absurdo que é me acusar de algo que eu não fiz, e usar isso como
desculpa?!
— Não grite ― ordenou baixo e com frieza, embora chamas de
ferocidade queimassem em seus olhos.
Que fosse para o inferno com suas ordens!
— Ah, está preocupado que alguém nos ouça? Sua privacidade
é importante agora? — sacudi os braços, gritando mais alto — Pois
adivinhe só, seu rosto está em todos os jornais! — Por você! — ele
também explodiu, vociferou dando um passo para frente, abrupto,
cheio de raiva — Por você meu nome foi arrastado para as páginas
de fofoca, Cherry. Espero que esteja satisfeita! — havia tanto em
seus olhos, tanta raiva, ressentimento, ciúmes, mágoa.
Recuei.
Recuei porque encarar aqueles sentimentos feios era doloroso
demais.
Derek confundiu minha dor com medo. Afastou-se de mim para
o mais longe, esfregando o cabelo.
— Nunca deveríamos ter levado isso a diante.
Senti fisicamente suas palavras.
— O que, o que não deveríamos levar a diante? — desafiei em
voz baixa, ferida demais.
Derek se calou. Esfregou o cabelo. De frente para a parede de
vidro com vista para a cidade, inspirou com força.
— Foi um erro, Cherry — o tom conformado me matou — Esse
casamento foi um erro. Você é jovem demais... — não permiti que
continuasse.
Seu arrependimento me matava de verdade. Por isso o
interrompi:
— Eu ser jovem é a sua desculpa? A diferença de idade entre
nós é o que credencia suas ações?
— Não as minhas — seu timbre baixo, cansado, me dizia o que
eu não queria ouvir. Ele estava me culpando. Me culpando pelo
nosso fim.
— As minhas, então? Acredita mesmo que eu te traí? Que por
ter vinte e um anos não tenho caráter para discernir o certo do
errado? — era tão injusto.
Tão errado que se apoiasse nisso para me trair e magoar.
Sua falta de resposta era uma resposta. Aproximei-me de suas
costas:
— Nunca fui boa a bastante para você, fui, Derek? — seu
silêncio, aquele que antecedia o fim, me fez sangrar por dentro, por
isso continuei, ataquei, queria magoá-lo também —Uma amante
para comer escondido? Ah, isso era legal. Mas casar com a garota?
Ah, que erro. Só que advinha só: foi você que fez questão disso!
Você, para manter a sua imagem de homem correto, me arrastou
para cá! — gritei essa última parte.
Ele se virou e me encarou. A mandíbula apertada. Classificar
nosso relacionamento dessa forma o atingiu.
— Não a vi reclamando dos benefícios de se casar comigo,
Cherry — acusou friamente.
Santo Deus, como eu o odiei nesse momento, e como doía
amar tanto alguém que não merecia esse amor.
— Sempre cuidei de mim mesma — me defendi, sentindo meu
coração sangrar mais forte — Quem tentou me manter nessa sua
gaiola dourada foi você. E está furioso porque escapei. Porque não
aceitei ficar aqui presa o dia todo e encontrei um emprego por mim
mesma!
Meu marido colocou as mãos nos bolsos, dissimulava uma
tranquilidade que não sentia, eu sabia disto:
— Pedi a Mariah Gonzales que a empregasse — foi tão baixo e
imperturbável que quase me confundiu.
Pisquei várias vezes.
— O que disse?
Derek inspirou fundo, a mandíbula dura, o músculo em seu
rosto saltando. Quando repetiu, foi como se eu o ouvisse debaixo
d’água.
— Gonzales é uma velha conhecida, pedi que lhe oferecesse a
vaga. Como pode ver querida, ser casada comigo tem suas
vantagens.
Bastava olhar para ele para saber que não mentia. Derek nunca
mentia. E ter isso jogado contra a minha cara foi uma traição tão
grande quanto ter passado a noite com outra.
Sacudi a cabeça, desnorteada.
— Eu te odeio...
— Não existe nenhuma gaiola, Contreras. Pode sair por aquela
porta no momento em que desejar.
Contreras, para ele eu ainda era uma Contreras. Não Reynolds.
Nada mais precisava ser dito.
*

Derek não ficou na cobertura para me ver reunir minhas coisas,


colocá-las em uma mochila e partir. Tampouco tentou ligar nas horas
seguintes.
Sentada em um banco frio, enquanto aguardava que o dia
amanhecesse para pegar o primeiro ônibus, qualquer ônibus, que
partisse daquela estação, o silêncio em meu celular foi
ensurdecedor.
Decidi jogá-lo na lixeira, pela segunda vez na vida, e buscar um
lugar para recomeçar. Eu estava sozinha no mundo mais uma vez.
Era minha obrigação cuidar de mim mesma da melhor forma
possível. Sempre foi.
— Ela já tem um fundo em seu nome — contou Derek, naquela
noite, mais tarde, quando nos encontramos novamente na sala,
depois que Abbi já estava adormecida.
Seu dedo longo brincava com a borda do copo apoiado em seu
joelho. Havia certa beleza em observar um homem poderoso, no
conforto de sua casa, degustando um bom uísque.
— Desculpe? — ao dizer isso, praticamente admiti que estava
distraída demais para ter prestado atenção.
Ele me distraía. Sua presença... esse outro Derek, mais calmo e
leve, me confundia demais. Me atraía demais.
— Minha mãe abriu um fundo no nome de nossa filha. Abbi
nunca precisará trabalhar em sua vida, se ela desejar.
— Trabalho não faz mal a ninguém, Derek. Falei sem pensar... e
sem querer, reabri nossas feridas.
— Compreendi isso quando saiu por aquela porta, Cherry. Que
era importante para você — a voz profunda, o olhar intenso no meu.
Baixei os olhos para minha taça.
Ficou tão desesperada com a ideia de alguém cuidando de
você, pela primeira vez em sua vida, que lutou, resistiu. Fugiu.
Refleti muito desde aquela conversa. Ele tinha razão. Foram
dezesseis anos passando de casa em casa. Algumas, simples;
outras, verdadeiras mansões. Fartura e escassez. Quartos lindos, e
sótãos empoeirados. Sempre que estava a caminho de uma nova
família, me perguntava o que tinha de fazer para que aquele ciclo
fosse quebrado. Para parar de não saber onde e o que seria minha
próxima refeição; deixar de depender da boa vontade de alguém.
— Lamento por isso — disse Derek, me confundindo.
Precisei piscar e me reconectar ao presente para entender que
expressei aquele pensamento em voz alta.
Mas não me permiti sentir qualquer constrangimento. Lutei para
construir a mulher que me tornei, uma que compreendia que a vida
tinha nuances. Minha mãe, ao me ceder para o sistema e sumir,
tinha seus motivos, e provavelmente “dar o seu melhor”, no caso
dela, foi me permitir ter um teto sobre a cabeça e comida no prato,
independentemente de onde.
— Uma vez eu te falei que não havia sido tão ruim ser uma órfã.
A verdade é que foi ruim o bastante para eu nunca desejar aquela
vida de novo. Trabalhar foi a maneira que encontrei de ter minha
liberdade. Minha independência.
Sorvi mais vinho, para não ter de assistir, em seu rosto, o que
pensava disto. Não queria piedade ou coisa do tipo.
— Teria feito diferente, se pudesse — disse ele.
— E eu, teria sido mais honesta também em relação a isso —
admiti.
Silêncio.
— Não saí com a Florença, naquele dia — falou, baixo.
Não tive certeza se ouvi mesmo isso... mas foquei seu
semblante para confirmar.
— Saiu no jornal, uma imagem de vocês deixando um
restaurante — lembrei-o.
Um sorriso amargo curvou o canto de sua boca.
— Os jornais decidiram focar em nós, naquele dia, se não está
lembrada.
Nunca esqueceria daquele terror. As manchetes apelativas e
mentirosas, as montagens que fizeram de mim, os comentários
tóxicos, agressivos, ofensivos se multiplicando em uma velocidade
vertiginosa.
— Inclusive com mentiras — murmurei, a garganta apertando.
— Inclusive com mentiras — repetiu, parecia no mesmo estado
terrível de ser afundado naquela lama — A imagem que usaram era
antiga. Eu estava na Califórnia, naquele dia, em uma convocação do
Partido.
Mas Derek não esclareceu isto, naquela noite. Deixou que eu
pensasse que estivera com a modelo. Tudo porque...
— Nunca te traí — senti necessidade de dizer, ferida, mesmo
depois de tantos anos — Jamais pensei ou estive com outra pessoa
enquanto estávamos juntos. Abbi é sua filha, não porque se parece
com você. É sua filha porque nunca me deitei com mais ninguém na
vida, Derek. O exame de DNA vai comprovar...
— Eu sei — e não foi o que disse, mas o tom, que me impediu
de continuar falando. A angústia nele — Sei que não fez aquela
merda, Cherry! — levantou-se do sofá, esfregando o cabelo — Eu
estava com raiva, com ciúmes, mas... porra — praguejou baixo —
eu sei que nunca fez nada daquilo. E não quero DNA nenhum.
Levantei também.
— Está tudo bem... Não muda nada, agora.
Ele se aproximou de mim, como uma fera enjaulada.
— Pare, por favor pare de ficar repetindo isso — segurou meu
rosto — Pare de continuar jogando na minha cara que eu fodi tudo,
Cherry, porque eu sei disso, está bem?! — seus olhos furiosos
procuraram os meus — Sei disto no minuto em que você foi embora.
E depois? Você simplesmente evaporou no ar. Sumiu, abandonou
esta casa, seu emprego, sua vida aqui... exatamente como fez em
Nova Iorque.
Eu tremia.
Ele também.
— Um emprego que você me colocou como um fantoche —
acusei baixinho.

— Eu era um idiota. Ainda sou. Acha que não me arrependo do


que fiz, do que falei? Acha que não procurei você durante meses?!
Fechei os olhos.
Não suportava mais ficar olhando para ele. Para o que
perdemos, deixamos de viver.
E não suportava mais segurar a verdade comigo:
— Em cada minuto da vida da Abbi, eu desejei que você
estivesse por perto — confessei — Cada joelho ralado, cada
primeira experiência. Nos primeiros anos dela, foram poucas as
noites que não adormeci chorando de saudade, me torturando para
entrar em contato com você... via tudo o que saía na imprensa a seu
respeito... te amei até quando reconhecer esse amor, me
machucava...
— Cherry — pressionou a boca na minha, como se quisesse me
impedir de continuar — Porra...
— Desejei você, Derek. E esse desejo me ardia.
— E eu ainda a desejo, amor — admitiu com sofreguidão —
Ainda desejo, mesmo agora. Sempre desejei você, Cherry.
Meu corpo urrou sob suas palavras, sob a densidade do ar
crepitando entre nós.
— Sente isso? — apanhou minha mão e empurrou contra seu
peito. Seu coração batendo violentamente — Ele sempre foi louco
por você, garota.
Não consegui engolir a saliva. Não consegui piscar. E não pude
conter minha boca, que assumiu o que meu coração, meu corpo
desejava.
— Então me dê uma despedida... Me faça esquecer minha dor e
me mostre como éramos...
— Cherry — rugiu baixo.
— Me ame novamente, Derek... nem que seja só por essa noite.
Buscando freneticamente meus olhos, meus sentimentos
através deles, uma nova emoção se apossou de seu rosto
dolorosamente bonito.
Determinação.
Meu amor, o homem da minha vida para sempre, e isso era uma
doença, apanhou minha mão na sua. E saiu me levando com ele
para a ala onde ficava sua suíte. Nossa, em outra vida.
Segui-o, sem falar ou hesitar enquanto íamos pelo corredor
parcialmente escuro oposto ao dos quartos de hóspedes e de minha
filha. Derek também não disse mais nada.
Talvez temêssemos que palavras pudessem quebrar nossa
decisão. Já havíamos nos magoado tanto.
Meu ex-marido fechou a porta atrás de mim. Nosso quarto.
Igual. Nada mudara. Mais uma vez aqui. Andei até o centro da
imensa suíte. Diante de nossa cama. Lembranças me atingindo com
força. O amor, a loucura que já existiu sobre ela. Doeu, deu
saudade, medo, ansiedade, esperança... um misto avassalador de
sentimentos.
Só mais essa vez, falei a mim mesma. O fim do jeito que deveria
ter sido.
— Nossa despedida — murmurei, virando-me para ele... para
encontrá-lo tenso bem atrás de mim.
Havia se aproximado em silêncio.
— Me faça sentir... — pedi, baixinho, amparada pela noite.
Se eu tivesse de apostar ― para a ruína do meu coração ―
diria que a sombra em seus olhos era de contrariedade. Mas nem
mesmo o fato de não concordar comigo o faria mudar de ideia sobre
nós, aqui, esta noite. Seu desejo por mim, sua fome, eram um
espelho dos meus próprios.
Dedos longos e elegantes afastaram uma mecha de meus
cabelos do rosto; em seguida, desprendeu o coque no alto, fazendo
com que os fios caíssem soltos ao meu redor. Passaram então uma
trilha por minha sobrancelha, a maçã do meu rosto, a linha da
mandíbula, contornaram lentamente o arco do cupido em minha
boca. Fechei os olhos. Aquela carícia lenta era demais.
Não estava familiarizada com ela.
Entre nós sempre foi só explosão, frenesi, ira.
Murmurei seu nome.
A mão vagarosa percorreu meu pescoço, o caminho para minha
nuca. Fui me colocando na ponta dos pés, conforme ela se ajustava
para me dominar.
Nossas bocas, magnéticas, se encontraram no meio do
caminho. Dois lados, cedendo na batalha. Humildemente se
rendendo, só por esta noite.
Beijá-lo foi como voltar a respirar. Me assustou a constatação,
mas era apenas verdade. Foi como sentir uma parte adormecida de
vida em mim retornando ao corpo.
Era a mulher dentro da Cherry, que por muito tempo vinha
sendo apenas a mãe, a amiga, a vizinha, a dona de casa.
A leitora de romances de banca picantes, que eu havia deixado
para trás também.
Segurei seus ombros, abracei meu marido, fingindo o papel só
por esta noite.
Se seria uma despedida, então eu não me privaria de nada.
Empurrei mais minha boca contra a dele, busquei sua língua,
devagar, explorando, reencontrando o caminho.
Um grunhido feroz atravessou sua boca.
Derek me puxou para si, o braço musculoso envolvendo minha
cintura com possessividade. Beijos úmidos em minha boca,
descendo para o maxilar, subindo às têmporas.
— Cherry, Cherry, Cherry — apossando-se de minha boca
novamente.
Desci minhas mãos por seus braços, invadi sua camiseta por
baixo, arranhando de leve o caminho pela pele firme, musculosa,
quente. A camada suave de pelos no centro do peito largo, os
mamilos pequenos e duros contra minhas palmas.
Desci, encontrando aquela trilha de gomos que levavam ao cós
da calça.
Ele rugiu baixinho quando abri o botão.
Tateei o caminho pelo cós da boxer, o cheiro de sua
masculinidade rígida invadindo minhas narinas.
Absorvi aquele cheiro, ao mesmo tempo em que invadi o
espaço, encontrando aquela cabeça grossa, úmida na ponta,
empurrando contra a cueca, implorando para ser libertada.
Alisei a glande macia, febril.
Queria tanto isso.
Soltando-me de sua boca, derrubei a testa contra o peito largo,
minhas mãos trabalhando em baixar o zíper.
Derek tentou me deter.
— Não. Não é sobre mim, amor...
Ri, sem vontade.
— Tão generoso.
Uma risada sofrida também deixou seu peito.
— Te quero tanto, garota. Você não faz ideia.
Eu fazia. Porque eu também o queria quase que com
insanidade.
Tentei descer a calça o suficiente para ter acesso ao pênis. Mas
Derek, sua bunda grande e durinha, coxas largas, tornava o trabalho
impossível de fazer sem esforço.
Ele me ajudou, praguejando sobre querer me provar primeiro,
sobre como o gosto de minha boceta o fazia louco.
O problema é que eu queria muito mais. Estava tempo demais
sem isso. Era justo comigo que eu fosse a primeira. Derek me teve,
em minha casa naquela noite, antes de voltar para cá. Eu, não o via
ou tocava há quase sete anos.
Ele se sentou na cama. Eu me ajoelhei no carpete aos seus
pés.
Seu cheiro, de excitação masculina, sabonete, pele... que
saudade.
Não resisti, rocei a boca por sua coxa, a camada de pelos sobre
a dureza de músculos.
Beijei com devoção carinhosa.
Derek arfou, reclamando, amando.
E finalmente, pude ter meu próprio tempo com o membro duro
feito aço, bolas grandes, pesado e orgulhoso com todas essas veias
grossas.
Lindo em cada milímetro, era o que esse homem era.
Literalmente dos pés à cabeça.
Lambi de mansinho.
Ele praguejou baixo, outra vez.
Beijei a cabeça.
Percorri o caminho de volta com a língua, enquanto segurava a
base.
Chupei meu marido, de joelhos no chão, como fantasiei nas
madrugadas mais solitárias.
Eu me deliciei com ele.
E quanto mais eu tomava meu tempo, mais furioso, frustrado e
atingido esse homem poderoso ficava.
Até que não aguentou mais.
— Chega. Se terminou de brincar, agora é minha vez — foi o
único aviso de que me içaria do chão e me faria colidir em pé contra
seu corpo... o pau para fora da calça ainda nele.
— Eu pediria para que tirasse esse vestido, amor. Mas quero ter
o trabalho, eu mesmo.
Ágil, provocador, sem pressa, apanhou as barras e as subiu
devagar por minhas pernas, coxas, pélvis, barriga. Me vi levantando
os braços para ajudar.
Nua, exceto pela calcinha, fiquei exposta para seu olhar
profundo, flamejante.
Meu primeiro impulso foi tapar os seios. Para que não visse as
linhas brancas de estrias provocadas por dois anos inteiros de
amamentação. Ou a barriga, que apesar de plana, também trazia a
ligeira flacidez de quem teve diástase por carregar uma linda bebê
no ventre, que nos dois últimos meses em minha barriga, decidiu
crescer tudo o que não crescera nos sete primeiros.
Um corpo de mãe.
Claro que seu olhar me queimando viu cada detalhe. Escaneou
com ferocidade contida.
Esperei que comentasse algo. Em vez disto, me surpreendeu,
ao cair de joelhos no chão e murmurar um “linda” reverente, antes
de despejar beijos devotos onde sua filha estivera.
“Linda, linda, linda”.
“Amor da minha vida”.
Congelei, sem ter certeza de que escutei mesmo isso.
Petrificada, lívida, olhei para baixo.
Olhos escuros cor da noite subiram para o meus.
— Amor da minha vida — repetiu.
Senti vontade de implorar que não fizesse isso, não se
declarasse. O sexo como despedida, eu suportaria. A confissão de
seus sentimentos, não.
Fechei os olhos para bloqueá-lo.
Derek entendeu. Fez o oposto do que eu quis. Beijou mais.
Murmurou mais.
Me enlouqueceu mais com suas palavras.
Então separou minhas pernas, descendo a renda até o chão. A
primeira lambida provocativa, saltei no lugar. Agarrei firmemente
seus cabelos, quando se tornou uma exploração territorial lenta.
Ele conhecia meu corpo. Minhas vulnerabilidades. Não foi difícil
para Derek me jogar no fundo daquele espiral indescritível de
prazer. Mas foi difícil para mim, suportar que eu nunca mais teria
aquilo com mais ninguém. Aquele êxtase alucinante, o gozo que
contraía os músculos da perna, que me fazia querer gritar alto,
explodir.
Encontrar outro alguém que me devorasse com tanta vontade.
Tanta necessidade.
— Minha — declarou com possessividade.
Sua. Para sempre
Mas não era justo, era? Eu, nua, desestabilizada pelo tesão. E
ele, intacto, somente o pau, mais duro de fosse possível, um indício
que se encontrava na mesma ruína.
Arfando, com dificuldade para respirar novamente, fixei meus
olhos nublados nele:
— Preciso de você.
Derek se levantou, trilhando beijos, mordendo meu mamilo e
sugando, no caminho para cima.
— Estou aqui — tomou minha boca, o gosto salgado, meu
gosto, em sua língua.
— Transe comigo, Derek — pedi baixinho.
O músculo em sua mandíbula saltou.
— Hoje não é sobre sexo, Cherry, é sobre amor.
Não era! Não podia ser. Porque se fosse, doeria ainda mais.
Ignorei, me deitando nua em sua cama. Nossa.
Feroz, ele me assistiu fazer isso, ficar ali, suscetível a sua
espera.
Arrancou a camiseta por cima da cabeça, se desfez da calça,
sem nunca desgrudar o olhar de mim. Então se deitou sobre o meu
corpo. Pele contra pele, magnífico. Relaxei para trás. Meu marido
deslizou uma das coxas grossas entre minhas pernas.
Os músculos de seus antebraços vibrando de cada lado de
mim.
— Sonhei com isso por tanto tempo, que já não sei te dizer se é
um sonho agora, ou não — confessei.
Narinas levemente inflamadas, pupilas negras dilatadas, Derek
empurrou o quadril com suavidade para mim. O pau imenso e
glorioso batendo na entrada.
— Você é tão lindo — passei os dedos pelos contornos de seu
rosto. Olhos, mandíbula, nariz retilíneo. Um deus da beleza e do
poder.
Ele se acomodou mais entre minhas pernas.
— Não sou nada, amor, mas você é. Bela, perfeita. Se acha que
está sonhando, não faz ideia de como me sinto. De quantas vezes
me masturbei aqui, na nossa cama, delirando de saudade de você.
E finalmente, finalmente, ele me penetrou. Abrindo espaço,
forjando. Estocando fundo, rígido, músculos tensos, e um querer tão
assustador quanto o meu.
Era como encontrar sua casa. O encaixe entre nossos corpos, a
maneira como eu me sentia engolindo-o com minha vagina, que
doía e desejava, e queria mais, mais, mais.
Eu sou sua. Sou sua.
E se aquilo significava alguma coisa, ele também era meu.
Enquanto me estocava com força, macetava com violência, Derek
Reynolds era meu e somente meu.
Foi esse pensamento que me fez empurrá-lo com força. Derek
se afastou, sem entender, concluindo errado.
— Quero montar você — expliquei, passando as coxas ao redor
dele.
— Cherry... — me alertou, num misto de excitação e perigo.
Mas era meu direto tomar aquilo, o meu próprio prazer. Ir atrás
do que eu queria de verdade, sem me privar ou sentir culpa.
Encaixei a cabeça grossa contra o lugar onde eu o queria e fui
sentando, me acomodando naquela estaca parecendo capaz de me
rachar ao meio.
Derek não se contentou em só receber, exigiu participar.
Encontrou o ponto firme e sensível do meu prazer e o esfregou,
enquanto eu subia outra vez e descia lentamente por toda a
extensão maravilhosa.
Montar, ao mesmo tempo em que meu clitóris era estimulado,
produziu uma sensação maravilhosa.
Eu quis mais, mergulhei memorizando cada centímetro dele até
engoli-lo para mim, inteiro, pleno. Completo. Derek cerrou os olhos.
— Não, amor, assim não. Não vou aguentar — era uma ordem,
um apelo humilde... era uma admissão de que também estava à
beira daquele desfiladeiro junto comigo.
Para pularmos.
Para morrermos e matarmos aquilo que estava nos matando
nestes anos todos.
Fui a primeira a gozar, arqueando a coluna, cravando os dentes
na boca para não exteriorizar aquela sensação triunfante e em seu
estado mais puro.
Derek agarrou me quadril e arremeteu com força também,
estocou com brutalidade, entrou e saiu, entrou e saiu, e então se
jorrou dentro de mim. Veias pulsando forte. Sem aviso. Sem um
pedido.
Desabei em seu peito largo, exausta. Fui acolhida com braços
fortes ao meu redor. Coração batendo com violência. Não sabia se o
meu ou o dele. Nosso suor colando um ao outro. Respirações
desritmadas. O cheiro forte de gozo no ar.
Devagar, ciente do que vinha depois de nossos corpos
satisfeitos, fui me levantando.
Não queria. Mas permanecer só tornaria as coisas piores.
— Fique comigo — não havia qualquer orgulho na voz rouca e
profunda.
Me arrastei até os pés da cama, desci.
— Não posso.
Não posso lidar com um coração partido nos braços de quem o
partiu.
Continuar sabendo que um gozo a mais, um a menos, não vai
mudar nossa situação.
Quis o prazer de estar em seus braços de novo, e o recebi.
Era hora de finalmente seguir em frente da maneira mais justa
com a gente.
Derek não estava na cobertura no café da manhã. Nora, a
cozinheira e uma espécie de governanta da casa, avisou que ele
havia saído muito cedo. Não me surpreendeu. Ele era
comprometido com o Congresso. O primeiro a chegar ao trabalho.
Engraçado conhecer esse seu hábito.
Ou só está te evitando. Ignorei o pensamento. Para ser sincera,
também não me sentia pronta para encará-lo ainda, depois de tudo.
Mas não foi um erro. Não, isso não. Coisas demais foram
catalogadas como erro entre nós, e eu não seria injusta com algo
que ambos desejamos conscientes das implicações.
Ele amava a filha ― isso estava muito mais do que claro.
Eu amava demais Abbi.
Ela era nosso propósito no mundo. O que tínhamos de maior
valor e em comum. Depois da última noite, focaríamos apenas nela,
nada mais sobre passado, mágoas, lamentações. Somente o futuro
importava.
— Pronta?
— Estou pronta, mãe — esticou a palavra na língua. Vínhamos
conversando sobre os “cê”; “ara” “tô” e as derivações da palavra
“cagar”, que por si só era feia. Abbi gracejava dizendo o certo.
Como se fosse um jogo muito divertido.
Avisei Nora que estávamos de saída, peguei minha bolsa e
desci com Abbi, sabendo que Iron, na certa, estava esperando por
nós na portaria, como todos os dias. Minha filha estava ansiosa para
mais um de nossos passeios por Washington D.C. Meu plano era
levá-la ao Museu Nacional de Arte Americana, com bônus de que
pretendia dar a ela a experiência de andar de metrô pela primeira
vez em sua vida.
É o que me preparei para dizer a Iron, quando descemos no hall
e atravessamos a porta para fora do prédio... mas o que
encontramos foi o verdadeiro inferno. Iron, furioso, de braços
abertos, tentava conter a horda de jornalistas com dezenas de
câmeras apontadas para nós, flashes cegantes, gritaria, perguntas
berradas umas acima das outras. “É ela?”; “A filha secreta do
Senador!”, “Ela está ali!”; “Cherry, Cherry! É verdade que você
escondeu uma filha do Senador Reynolds?”; “Você voltou para exigir
que ele reconheça a paternidade?”; “Quantos anos tem a garota?”.
Senti uma onda quente percorrer meu corpo, bochechas, mãos
tremeram, faltou ar... não conseguia me mover do lugar. Gritei alto,
mas não gritei, porque o grito ficou preso na garganta. Me deixem
em paz! Deixem minha filha em paz!
— O que tá acontecendo, mãe? — foi a pergunta assustada e
confusa de Abbi que me tirou do estupor. Agarrei sua mãozinha e
corri para dentro, ciente de que era tarde, o estrago já estava feito.
Eles nunca largavam o osso, quando ficavam suas presas, até não
sobrar mais nada da caça.
— Ara, mãe! Por que essa gente não para de tirar fotos de nós?
— Venha logo, venha logo — murmurei para o elevador,
apertando o botão repetidamente, colocando meu corpo diante do
dela, impedindo que a vissem — Venha, venha.
Era uma demora infinita. Quando finalmente chegou ao andar,
arrastei minha filha para dentro. Lágrimas nos olhos. Pânico
renascendo das memórias.
— Mãe! — exigiu Abbi. Obriguei meu tom a soar tranquilizador,
quando sorri para ela.
— São jornalistas, carinho. Eles querem uma foto de você,
porque seu pai é um homem famoso. Um político importante.
— Um Senador — repetiu ela ainda sem entender o que havia
de mais nisso, porque já havíamos tido essa conversa — Ara, mas
deixa tirarem fotos, mãe! O que que tem?
Tão pura, inocente, não sabia da maldade dessas pessoas, que
estavam ali somente para farejar fraqueza, para expor, contar
mentiras que tinham o potencial de se alastrar mais rápido do que
um gás venenoso.
— Eles são... — pigarreei, a garganta em estado de incêndio ―
São — abutres! — Pessoas que contam mentiras, filha.
As sobrancelhas franzidas me diziam que ela ainda não estava
entendendo. Subimos de volta à cobertura. Tive de me sentar com
Abbi no sofá e explicar algumas coisas para ela. Sobre
comportamentos invasivos, sobre contar mentiras que, uma vez
jogadas no ar, não podiam ser pegas de volta. E o poder do pai dela
naquele país.
Eu ainda estava conversando com Abbi, e tentando não surtar
por ver o filme se repetindo, quando o próprio Derek entrou no
apartamento.
A primeira coisa que notei foi a fúria cega nos olhos em chamas.
Então ele nos viu ali. Os lábios contraíram. Obrigou-se a
suavizar a expressão e murmurou um “desculpe” sincero para mim
antes de se aproximar da filha.
— Ei, Aboby...
O apelido carinhoso que ele vinha chamando-a desde que ficou
sabendo que foi assim que nossa filha nomeou uma das abóboras
gigantes premiadas de Willie.
— Papai! — Abbi pulou em pé — Nós estávamos saindo, e um
bando de gente estava lá embaixo!
— Eu sei, eu sei — ele a pegou no colo — São jornalistas, filha.
Infelizmente, fazem parte da vida de um político, sabe.
— Minha mãe estava me falando. Eles contam mentiras, né? Eu
não gosto de jornalistas — cruzou os bracinhos.
Levantei também, quando confiei em minhas pernas, que ainda
estavam bambas pelo tremor.
— Nem todos, filha. Existem bons jornalistas — expliquei — Os
bons não fazem aquilo, não são invasivos ou ficam cercando as
pessoas daquela maneira.
— Se a gente estivesse lá em casa, a gente jogava um sapo
neles! — disse ela, com bravura.
Seu pai e eu trocamos um olhar. “Se estivéssemos lá em casa”
e o peso da frase ficando entre nós. Aqui não era nossa casa.
Principalmente quando nossa presença em Washington D.C. já não
era mais uma questão privada. Era hora de voltar.

Enxerguei no rosto do homem que eu amava o reconhecimento


do caminho que meu pensamento tomou. A tortura e, ao mesmo
tempo, resiliência. Devagar, ele pôs Abbi no chão.
— Filha, o que acha de ver se a Nora tem um bom pote de
sorvete lá no freezer? Dizem que sorvete nos acalma quando
jornalistas bobos tentam nos irritar.
Não precisou repetir. Como se fosse uma excelente sugestão,
Abbi saiu pulando o caminho para a cozinha.
Respirei fundo. Ele correu os dedos pelo cabelo escuro e
grosso.
— Me desculpe. Vim assim que Iron me avisou.
— Está tudo bem — menti.
— Não, não está.
— Mas a culpa não é sua, que eles são assim, não é? —
gesticulei.
— Não, Cherry. No entanto, cabe a mim proteger vocês deles.
Encarei o chão.
— É hora de voltarmos. Abbi e eu... a gente veio para passar
um mês e esse tempo já está acabando. Tenho trabalho, e ela... —
ela poderia ficar mais, mas eu não conseguia suportar a ideia de
mais de novecentas milhas entre minha filha e eu, e um bando de
abutres perseguindo-a por aí... — Ela tem a vida dela lá, também.
— Uma vida sem mim — disse ele, e pelo tom, não consegui
discernir muito bem suas emoções. Mas sabia que não era
felicidade.
— Ela é sua filha. Lá ou aqui. Você pode sempre nos visitar.
— É isso o que nos restou, Cherry? — disse ele, chegando mais
perto — A possibilidade de visitar vocês? Este é tipo de vida que
teremos daqui para frente?
Esfreguei meu rosto. Uma dor de cabeça resultada de não ter
dormido sequer uma hora na noite anterior, revirando na cama
depois de deixar sua suíte, começando a cobrar o preço. A verdade
é que eu já não conseguia pensar com clareza em nada disso. O
querer e a razão estavam em caminhos opostos.
Derek também respirou fundo.
— Aceitei concorrer nas prévias do partido.
Olhei para ele. Compreendi a que se referia. Não era uma
novidade. Ainda assim foi uma surpresa.
Derek me encarou.
— Naquela noite, quando... — seu queixo meneou pela sala, me
fazendo saber de que noite se referia... a derradeira noite do fim —
Eu estava na Califórnia em uma reunião do Partido. Queriam que eu
me candidatasse para as prévias. Fiquei de dar uma resposta e
então... então toda aquela merda aconteceu.
— Mas agora decidiu aceitar.
A mandíbula quadrada perfeita pulsou num aperto. Raiva dos
jornalistas, de nossa situação.
— E já não sei se foi uma boa ideia. Tomei a decisão e dei
minha resposta ao Partido há algumas horas, mas já não sei se foi a
decisão certa.
Dei um passo para ele.
— Foi. Foi, sim. Você, de todos os candidatos, é a melhor opção
deste país — afirmei, porque não havia verdade maior — E vai
vencer. A América te ama.
Olhos escuros mais intensos encararam os meus.
— Mas não a pessoa que importa.
Eu te amo, quis gritar, eu te amo tanto que esse amor agarra
meu coração e o aperta a cada vez.
— Ser Presidente dos Estados Unidos era um caminho natural
para você, Derek. Nasceu para isso, é competente, se importa com
o que realmente importa. A Abbi tem muito orgulho de você...
— E você, Cherry? — sua voz baixou uma nota, torturado.
— Sempre vou torcer por seu melhor — falei, com toda
sinceridade e dor que uma despedida de quem se ama pode causar
— Vou cuidar de nossa filha, como sempre fiz, enquanto você vai
atrás de realizar isto. Estaremos ao seu lado, aplaudindo, torcendo.
E minha casa estará aberta para que veja Abbi quando desejar...
e.... — minha garganta ardeu com tanta, tanta força — E quando
essa loucura das prévias pelo país finalmente acabar, quando o
frenesi das viagens der uma trégua, e decidir tirar uma folga, pode
trazê-la para cá, para passar alguns dias com você.
— Então é isso?
Não consegui manter seu olhar. Baixei o meu, para que não
visse as lágrimas.
— Vença, Derek. Estou muito orgulhosa de você.
Frustrado, se afastou, como se não conseguisse mais ficar perto
de mim.
Andou até a janela da cobertura, olhando lá para baixo.
Provavelmente o caos que os jornalistas, dezenas deles, ainda
faziam.
Depois de um momento em silêncio, teso, pensativo falou baixo:
— Você nunca desejou os holofotes.
— Mas desejei a política — falei em voz baixa — porque é
somente ela que pode gerar a verdadeira mudança.
Assentiu, pensativo.
— É o fim, não é?
Lágrimas verteram, silenciosas. Agradeci que não estivesse me
olhando no momento.
— É, é o fim.
Dois dias depois, estávamos de volta ao Texas. Abbi não havia
conversado muito no voo de volta; estava mais pensativa. Não
infeliz. Nada, ainda bem, conseguia arrancar a felicidade do coração
desta criança boa e pura. Mas estava meditativa. E me surpreendeu
ao questionar:
— Por que você e meu pai não namoram de novo?
Era uma lógica simples, não? Que os pais, solteiros,
namorassem outra vez. Na mentalidade de uma criança de seis
anos, parecia óbvio até.
— Por que agora estamos focados em ser bons pais para você,
filha. Derek e eu nos gostamos e respeitamos, mas nossos
sentimentos não são de namorados. São de amigos que te amam
muito.
— Hm... — disse ela, apenas. Era raro ver Abbi com tão pouca
coisa a dizer.

— Ela voltou diferente... — comentou Eva, na fazenda.


De longe, olhei para Abbi, alimentando um bezerro, segurando
uma mamadeira grande para o filhote.
— Diferente como? — indaguei, embora também sentisse.
— Mais quieta. Um pouco mais séria, também.
— Ela me perguntou por que o pai e eu não namoramos.
— Ah — Eva riu — Então é isso.
— Isso o quê?
— Nossa garotinha anda tento pensamentos.
Olhei para minha amiga mais antiga e mais querida. Os cabelos
grisalhos presos de qualquer jeito debaixo do chapéu de palha,
enquanto cortava a folhagem das cenouras recém-saídas da terra.
Minhas próprias luvas sujas do mesmo serviço. Um que
acalmava.
— O que quer dizer?
— Quer dizer, querida, que aquela cabecinha pensante bem ali
está certamente bolando ideias sobre você e o pai.
— Não — conferi minha filha, a gargalhadinha que deu para
algo que o bezerro fez — Acho que não. Ela entendeu que ele e eu
temos uma relação somente de pais dela.
— E você?
— O que tem eu?
— Entendeu isso também?
Cortei um talo, para desviar de seu olhar experiente.
— Nunca daria certo, Eva.
— Mas é o que você gostaria, não?
Bufei baixinho.
— Nem sempre dá para ser o que gost... Mas o que é aquilo?!
Levantei depressa, Eva também.
Carros, vários deles, vinham pela estrada ao longe em alta
velocidade, parecendo disputar espaço. O sol, brilhando em seus
capôs, não permitia entender direito o que acontecia, quem vinha...
e eram muitos.
— Abbi! — me desesperei, gritando para ela, que deixou cair a
mamadeira de leite no chão e olhou assustada para a estrada —
Venha, filha!
Ela correu para mim sem entender nada, olhos arregalados,
talvez pelo susto. Levantei minha filha nos braços e corri com Eva
para dentro da propriedade.
— Willie! Willie! — Eva gritava, enquanto atravessávamos o
alpendre.
— Ara, que foi? — um Willie esbaforido adentrou a casa imensa
pela porta dos fundos. Estava todo coberto de penas, no trabalho
com as galinhas.
— Venha, venha depressa! Venha ver! — fomos todos para a
janela, a tempo de visualizar um festival de carros, nenhum
conhecido, invadindo a estrada de cascalho.
Não demorou muito para aquilo ficar claro, quando os
ocupantes desciam munidos de câmeras e microfones, vários deles,
mais de uma dezena.
— Jornalistas...
— Mas o que pensam que tão fazen... Eles tão invadindo a
propriedade! Bando de corvo! Piores do que os corvo! — a revolta
de Willie, genuína e inédita, fez com que todas nós olhássemos para
ele.
O fazendeiro bondoso, um homem de mais de setenta anos, se
afastou da janela, arregaçando as mangas da camisa de flanela
laranja e preta, e afundando o chapéu de cowboy na cabeça.
— Abbi, minha garotinha, preciso que ocê feche os ouvido
quando eu for lá fora falar com esses animar, está bem?
— Ara, por que não posso ouvir, Willie? — reclamou ela, pronta
para a aventura.
— Porque o tempo vai fechá lá fora. O que vô dizer praqueles
peste num vai ser bonito — olhou cerimoniosamente para todas nós
— Ocês tudo fique aqui. Num importa o que aconteça.
Por “não importa o que aconteça”, certamente eu não esperava
que estivesse falando da espingarda na parede.
— Willie! — gritei baixo — O que vai fazer?
— Dar uma lição nessa gente, Cherry. Mostrar que não devem
mexer com minha família.
Olhei para Eva, que observava a espingarda com o cenho
franzido, mas não preocupada.
— Eva! — ela não podia deixar o marido fazer uma maluquice!
Não valia a pena se meter em uma confusão tão grande, que corria
o risco de parar na justiça, por causa de gente como aquela lá fora.
Minha amiga, uma avó para mim, sacudiu a mão.
— Deixa o Willie resolver, querida. É bom que ele bote essa
gente pra correr.
— Mas ele está armado! — murmurei a última parte, numa
desesperada tentativa de não assustar a Abbi.
— Atira neles, Willie! — a pequena guerrilheira incentivou.
Santo Deus.
— Vá, lá, amor. Dê a eles o que merecem.
Da janela, lado a lado com as cabeças de minha filha e da
esposa do homem portando uma arma e muita determinação, assisti
ao desenrolar angustiante da cena.
— Cês tão invadindo uma propriedade privada, seus corvo!
Sumam daqui!
“Quem é você e o que é de Cherry Contreras?”
“É verdade que a criança é a filha secreta do Senador?”
“Por que ela não procurou o Senador Reynolds antes?”
“A criança é mesmo filha dele? Ou de um dos amantes daquela
época?”.
Cerrei os punhos, e tentei ir até lá, mas Eva me deteve,
segurando gentilmente meu ombro.
— Não vale a pena.
Do lado de fora, Willie esbravejou.
— Ouçam bem, seus urubu! Cherry é a jovem mais doce,
educada, trabalhadeira, que esse lugar já viu. E criou aquela
menininha muito bem, melhor do que a mãe do cês tudo, que não
apreenderam a respeitar uma propriedade particular, então eu vou
dar uma chance antes de fazer chover bala aqui! — posicionou a
espingarda, mirando o grupo — Vô contar até cinco, e no cinco eu
meto bala!
Expressões incrédulas, curiosas começaram um pequeno
burburinho entre eles.
— Um!
“Ele não vai fazer isso”; “Não estamos fazendo nada demais”.
— Dois!
“Baixe essa arma, senhor, viemos em paz!”.
— Três!
Expressões começaram a se tornar mais cautelosas.
— Quatro! — Willie engatilhou a arma, mostrando que estava
falando pra valer.
Pânico se instaurou. Passos apressados se tornaram uma
corrida para fora.
Quando Willie gritou “cinco”, já não havia mais ninguém nos
limites da propriedade... sequer fora dos carros.
— E vão embora da frente da minha casa! Vô chamar o xerife e
contar que cês tão perturbando a ordem por aqui!
Willie entrou orgulhoso, pisando duro.
Abbi bateu palminhas, vibrante. O sotaque texano e os modos
“aprendiz de Willie” voltando com tudo:
— Muito bem, Willie! Cê foi corajoso pra burro!
Finalmente, voltei a respirar.
— Obrigada, Willie — apoiei a cabeça em seu braço — Mas não
faça mais isso, me caguei de medo...
O senhor por quem eu tinha um imenso carinho e gratidão
desde o momento em que botei meus pés em Marble Falls, grávida
e perdida, e que, junto da esposa, me acolheu, deu tapinhas
reconfortantes no meu ombro.
— Essa arma num solta um tiro há mais de cinquenta anos,
Cherry. Foi do meu pai. Não tem nem bala. Serve só pra enfeite da
parede — riu, aquela risada forte e desengonçada que sacudia os
ombros — Meu peido é mais barulhento que ela.
Me juntei às risadas. A minha, de alívio, de amor, de gratidão.
Minha risada durou só até o dia seguinte, o terceiro que eu
estava de volta a Marble Falls, e o primeiro dia de retorno ao
trabalho. A cidade foi invadida por repórteres e fotógrafos. Eles me
seguiram de casa para o trabalho, e no Popeye Pot Pie, fizeram
tanto caos que Charles se viu obrigado a chamar reforço.
Mark Whitacre, o chefe do departamento de polícia da cidade,
teve que intervir, ameaçando prender quem tentasse entrar que não
fosse cliente, o que resultou em inúmeras mesas lotadas de
forasteiros munidos de câmeras e microfones.
Charles, que era a pessoa mais paciente que eu conhecia,
acabou por perder a paciência. Enxotou todo mundo e fechou a
lanchonete.
“Cherry, Cherry, fale com a gente!”
“Conte o seu lado da história!”
“Sua filha é filha do Senador Reynolds?”
“Por que demorou tanto para procurar ele?”
“Já sabe dos boatos sobre ele se candidatar para as prévias do
Partido Republicano? É por isso que reapareceu?”
“Sua intenção é ser a nova primeira-dama do país?”
— Um pior do que o outro — Charles parou ao meu lado, atrás
do balcão, apontando com o queixo para o grupo batendo contra o
vidro lá fora — Deveria existir uma lei que proíba esse tipo de coisa.
— Perseguição?
— Os gritos — brincou ele — Por que gritam tanto?
Acabei rindo.
— Obrigada... você sabe, por isso — a lanchonete fechada — e
me desculpe, Charles. Nunca foi a minha intenção causar esse
transtorno.
Meu chefe deu de ombros.
— Isso aqui estava calmo demais em suas férias.
Encarei seu rosto.
— Você é um bom chefe, e um bom amigo.
Seu rosto bonito, de um jeito nerd, foi ficando mais sério, apesar
de ainda suave. Uma conversa inteira se passando entre nós, com a
última palavra que falei passeando em ecos. Amigo, é o que ele
seria. E eu lamentava profundamente por isso, por ser incapaz de
amá-lo, ou a qualquer outro.
Meu coração, para o bem e para o mal, havia sido entregue de
maneira irreversível, quando atravessei as portas daquele gabinete,
ainda uma garota de vinte anos. Neste aspecto, pelo jeito, eu era
como um cisne, destinada a me relacionar com um único parceiro
na vida.
Abbi adoraria essa informação. Ela era tão curiosa sobre o
mundo animal.
— Se achar que precisa de mais tempo para resolver as coisas,
a Popeye vai estar sempre aqui, te esperando.
Assenti.
— Obrigada, Charles.
Meu telefone tocou, no bolso do avental. Era o número de
Derek. Charles viu.
— Preciso atender — expliquei.
— Os fundos sempre é um lugar — brincou suavemente.
Aceitei a sugestão e empurrei a porta dos fundos.
— Cherry — o som tão familiar de sua voz grave e baixa me
atingiu assim que aceitei a chamada.
— Oi, Derek... aconteceu alguma coisa? — ele parecia ansioso.
— Minha equipe. Acabam de me contar que há repórteres aí,
em Marble Falls.
— Desde ontem...
— Porra — ele parecia genuinamente furioso — Você e Abbi,
estão bem?
— Estamos — mordi um sorriso, apesar de tudo — Estou
ficando na fazenda. Ontem, Willie botou eles para correr com uma
espingarda emperrada mais velha do que ele, sem munição.
Uma inspiração forte e profunda veio do outro lado. Podia
imaginar sua mão impaciente bagunçando o cabelo grosso e
escuro.
— Estou olhando para esta imagem agora. Está na internet.
— Ninguém pode dizer que ele já não era famoso antes.
— O vídeo das abóboras — falou baixo.
— O vídeo das abóboras — confirmei baixo também.
Fechei os olhos. Por que meu coração ainda tinha de reagir
assim a ele, droga?
— Eu vou dar um jeito nisto.
— O que quer dizer?
— Vou mantê-los longe de vocês, Cherry.
Só que nem mesmo alguém tão poderoso quanto ele, tinha esse
poder. Eu era a presa, outra vez. Não sossegariam enquanto não
cravassem os dentes bem fundo.
— Tudo bem — falei, apesar disto.
Silêncio.
Respiração profunda.
— Sinto falta de vocês, em casa... Falta pra caralho.
Eu também, da rotina que estabelecemos. Da presença. Da
convivência entre ele e Abbi. De nossos encontros furtivos nas
madrugadas, conversas francas em seu sofá.
Dele.
Limpei a garganta.
— Tenho que voltar ao trabalho.
— Falo com você à noite.
— Tudo bem...
— Até mais, Cherry.
Mas nenhum de nós conseguia desligar.
— Até, Derek.
— Mande um beijo para Abbi.
Ri baixinho.
— Ela, com certeza, ligará para você antes disso.
— Ela adora chamadas de vídeo, não é?
— Ela adora você.
Silêncio.
— Vou dar um jeito nisto, Cherry.
— Sei que sim.

Ao voltar para a fazenda, naquela tarde, muito antes do meu


horário normal, seguida por uma frota de carros da imprensa até o
limite que Willie estabeleceu para eles, pensei muito no que eu
poderia fazer. Como afastaria o interesse dos jornalistas de uma vez
por todas. Não permitiria que arruinassem minha vida, minha paz,
outra vez. E só havia um jeito de fazer isto: dando a eles o que
desejavam.
Foi com essa ideia que me tranquei no quarto de hóspedes da
casa de Eva e Willie, aproveitando que Abbi estava entretida
ajudando Eva com a horta, e fiz o que achei necessário. Entrei em
contato com Barbara Walters, a jornalista política do New York
Times, uma mulher que levava a sério a notícia, que se mostrava
íntegra. Minha primeira e única entrevista na vida, no passado, foi
para ela, quando eu ainda pertencia à equipe de Derek.
Barbara ficou surpresa quando se deu conta de quem eu era e o
que estava oferecendo agora, principalmente porque a internet
começava a ferver com boatos outra vez, exatamente como no
passado.
— Me pergunte todas as coisas que eles desejam saber. Falarei
sobre absolutamente tudo. Minha única questão é que toda
curiosidade, dúvida, seja sanada nesta entrevista com você, para
que percam definitivamente o interesse por mim.
Barbara riu, na chamada de vídeo.
— Espero então que tenha tempo para isso, e prepare uma
cadeira bem confortável, querida, porque vai precisar.
— Já estou sentada — respondi.
Nas três horas seguintes, revivi o passado. Falei de mim: minha
infância, origem, ingresso na Universidade de Nova Iorque, o curso
que cursei e as razões de escolher Ciência Política. Compartilhei
como comecei a trabalhar para o político que admirava mesmo
antes de conhecê-lo, destacando sua integridade e a preocupação
genuína com o bem dos americanos, especialmente aqueles que
precisavam de mudanças reais por meio da política.
Descrevi o homem justo e decente por trás da figura pública.
Apaixonar-me por Derek Reynolds foi inevitável.
E ele resistiu. Resistiu o quanto pôde antes de se envolver
comigo, porque era assim que ele era, correto demais, se é que isso
existia.
Contei à Barbara sobre como deixamos que nossas
inseguranças, naquele relacionamento, sufocassem o amor.
Falei da parcela de responsabilidade da imprensa, que passou a
nos perseguir sem nenhum respeito, como nos atacaram e
magoaram profundamente. E do dia em que uma enxurrada de fake
news, incluindo imagens manipuladas e terríveis, conseguiu nos
separar.
E, finalmente, falei sobre Abbi. Minha decisão de não contar ao
pai. Como foi criá-la. A culpa que eu sentia.
— De todas as coisas, meu maior arrependimento, Barbara, é
ter omitido a existência de minha filha. Derek Reynolds merecia
mais do que isso. Ele é um homem decente, justo, e está se
mostrando um excelente pai. Abbi o adora, e ele a ela.
A jornalista me observou pela câmera, sem dar nenhuma ideia
do que pensava.
— Desculpe, Cherry, mas preciso perguntar. Você está
desenhando aqui um homem admirável, de bom caráter (talvez com
alguma questão de ser um pouco passional, o que aumenta o apelo)
— essa parte ela brincou, para quebrar a seriedade do que viria: —
Mas em geral, o tipo de homem confiável, com grandeza e honra
para governar este país. Esta entrevista, você ter aceitado se abrir
para mim, tem algo a ver com os boatos de que o Partido
Republicano irá anunciar o ingresso do Senador Reynolds nas
prévias para a corrida presidencial?
Não precisei pensar.
— Não. Não tem nada a ver. Meu único objetivo é que essas
pessoas, que não param de nos perseguir a mim e à minha filha, em
nossa cidade, saibam a verdade, toda ela, e que deixem nossa vida
em paz. Meus erros estão aí, como eu os abri integralmente. O
julgamento de minhas ações, no entanto, só cabe aos envolvidos,
às duas pessoas que eu magoei, Derek e Abbi. E quanto à questão
da corrida presidencial, honestamente? Não consigo ver um
candidato melhor para este país.
O sorriso de aprovação no rosto experiente de uma boa
jornalista me fez saber que ela acreditou em mim. Que consegui
transmitir minha verdade.
Quando desliguei, a tarde já começava a se despedir e o céu
ganhava tons de laranja e azul mais escuro lá fora.
Eu me sentia drenada, com uma ressaca emocional imensa por
ter voltado ao passado, cavado e exposto minhas feridas. O lado
bom é que não havia mais o que extrair de mim. A verdade pura e
simples estava divulgada agora em detalhes. Sem espaço para
mentiras, teorias da conspiração ou qualquer coisa. Eles podiam
voltar para suas vidas e deixar Abbi, eu, Marble Falls em paz. E
Derek podia agora se concentrar em ser o que sempre soube que
seria bom para ser: o presidente dos Estados Unidos da América.
Fui para a cozinha ajudar Eva com o jantar. Abbi, meu bem mais
precioso, meu coração batendo fora do meu peito, já estava lá,
descascando batatas e cenouras, e tagarelando sem parar. A
televisão ligada. Uma cena tão familiar para mim. Quantas e
quantas vezes estivemos, as três, neste mesmo lugar,
compartilhando o preparo de uma refeição, o trabalho. Abbi cresceu
nesta propriedade, passava grande parte de seus dias aqui, quando
não estava na escola ou em nossa própria casa.
Minha vida, nossa vida, era nesse lugar... então por que eu
sentia essa sensação de aperto no peito, de saudade de uma outra
vida que não era a minha?
— Mãe, olha, é o papai! — de repente Abbi gritou, empolgada,
apontando para a televisão.
A apresentadora da CNN ocupava a maior parte da tela, um
quadro acima, uma imagem de Derek em um palanque do Partido,
atrás de um microfone. Impecavelmente bem vestido, em um terno
azul escuro elegante, gravata um tom fechado de vermelho, lindo
em sua toda a sua potência. A câmera o enquadrava com perfeição.
A legenda “Senador Derek Reynolds anuncia seu nome na
corrida pela nomeação do Partido Republicano, em coletiva de
imprensa, nesta tarde em Washington, D.C.”
Eva pegou o controle e aumentou o volume:
― ...além da divulgação, na coletiva convocada pelo Senador,
Reynolds também falou sobre a recente notícia que vem ganhando
força na internet a respeito de uma criança que supostamente é sua
filha e cuja existência foi mantida em segredo pela mãe... — odiei o
emprego da palavra “supostamente”.

— Abbi, é melhor você ir brincar na sala, carinho — o desespero


de que falassem coisas que poderiam machucá-la gritou em mim.
— Ara, mãe! Quero ficar aqui! Olha, meu pai tá falando!
Virei para a tevê. Que agora trazia apenas a imagem dele... e
conforme foi falando, precisei me sentar, sem conseguir desgrudar
os olhos da tela... e sem acreditar que ele estava fazendo mesmo
isto.
“Estou confirmando minha entrada na disputa pela nomeação
do Partido e declarando que participarei ativamente das prévias
(aplausos e gritos). E sobre isso, é tudo que tenho a falar, por
enquanto (o rosto do homem que eu amava ficou então mais sério,
queixo erguido, peito se encheu daquela fúria silenciosa). Agora, a
principal razão de eu ter convocado vocês aqui hoje: muito se tem
falado a respeito de minha vida pessoal nestes últimos três dias,
embora não haja qualquer relação com minha vida política e jamais
fiz ou dei qualquer abertura para que se sentissem no direito de
invadir minha privacidade desta maneira desrespeitosa e criminosa.
Um silêncio atento se estendeu por todo o lugar, que imaginei
ser a sede do Partido. Derek encarou intensamente a câmera,
transmitindo toda a emoção gélida de sua desaprovação.
“Em mais de duas décadas de vida pública, servindo ao meu
país como Senador da República, acredito que não deixei de
cumprir meu papel com excelência, como deve ser, em nenhum
momento, e isto é o que me credencia ao direito de manter minha
vida pessoal longe do interesse da imprensa, da perseguição e da
indústria maldosa de notícias falsas.”
“Esta semana, vocês divulgaram, sem qualquer respeito à
minha privacidade e da minha família, notícias em relação à
existência de uma criança, cuja identidade vocês criminosamente
também não respeitaram ou preservaram. Trata-se de Abbi, uma
garotinha linda e muito inteligente, que orgulhosamente posso
chamar de minha filha.”
“Uma filha amada, estimada, admirada. A criança mais linda e
inteligente que já conheci (o rosto selvagem pela raiva contida
suavizou-se, olhos cor da noite tornaram-se mais ternos, como se
ele soubesse que ela o assistia naquele momento) fui
profundamente abençoado por sua chegada, filha, e estou ansioso
por todas as aventuras que ainda virão.”
Abbi arfou de alegria e orgulho do pai, olhinhos brilhantes e
atentos. A fala seguinte foi destinada exclusivamente à imprensa.
“Em relação à minha filha, vocês estão sendo, mais uma vez,
intrusivos, invadindo a privacidade dela, da mãe, daquela
comunidade. E estão assustando minha família. Exijo que saiam
imediatamente daí. Que parem de persegui-las, de perturbá-las. Se
não pela dignidade de deixar uma criança e uma mulher inocentes
em paz, então pela força da lei, que não terei qualquer hesitação em
usar.”
“Eu escolhi a vida pública, elas não. E não menos importante:
no passado, permiti, com minha impassibilidade, que soterrassem
minha esposa em toda a mentira, acusações, especulações e
notícias falsas que a imprensa suja costuma recorrer. Meu silêncio
equivocado foi anuência para atacá-la. Vocês pegaram a jovem
mais destemida, trabalhadora, competente, esforçada, gentil e
amorosa que já conheci e a transformaram em alvo.”
“Não pensem que não reconheço minha parcela de culpa nesta
história. Minha obrigação moral como marido era protegê-la, e
falhei. Mereci perder o amor de minha esposa, mereci sua falta de
confiança em mim no que veio depois.”
“Não há um único dia em que eu não me arrependa por isso,
por perder essa mulher. Teria feito tudo diferente, se pudesse. Teria
a amado, como ela merecia. Ainda a amo”.
Agora, estava falando comigo.
O ar se tornou insuficiente em meu peito. Lágrimas borraram os
olhos. Quando pisquei, uma caiu.
— Meu pai tá dizendo que te ama, mãe! Ah, mas que coisa mais
bonita foi essa, hein! — Abbi só faltou saltar do chão de alegria.
Eva apertou meu ombro.
Derek encarou a câmera com uma brutalidade nada amistosa:
“E este é um assunto estritamente privado que não diz respeito
a nenhum de vocês. Deixem minha mulher e minha filha em paz.
Não é um pedido. Obrigado a todos”.
E com isto, virou as costas e saiu do palco, andando em passos
firmes, peito largo, ombros tensos.
A imagem da apresentadora boquiaberta voltou à tela.
Nem ela, com toda a sua habilidade em dar a notícia, soube o
que dizer por um momento. Emitiu um “uau” sibilado e riu para os
câmeras e pessoas no estúdio, provavelmente.
— Nosso (com grande probabilidade de ser) próximo presidente
da América deixou seu recado, senhores. Sim, ele tem uma filha.
Sim, ele ainda ama a mãe sortuda dela. E sim, ele quer que os
jornalistas que estão acampados em Marble Falls, Texas, deixem a
cidade imediatamente. Diga para nossos amigos expectadores,
Richard, você que é um especialista em política, essa declaração do
Senador Derek Reynolds pode mudar alguma coisa nas pesquisas
das prévias?
Fui incapaz de ouvir a resposta do comentarista de política,
todos na propriedade fomos, na verdade.
Um barulho estridente vinha cortando o ar calmo do campo lá
fora, tornando-se cada vez mais próximo.
Willie, todo sujo de graxa dos tratores, entrou correndo,
limpando as mãos.
— Que diacho é isso?
Abbi tapou os ouvidos, Eva se segurava para não fazer o
mesmo.
Corremos todos para fora. Não me importei com a imprensa à
distância, que estava toda voltada para a propriedade vizinha.
Câmeras na mão.
Precisamos descer os degraus do alpendre para ter uma visão
melhor do imenso e imponente helicóptero preto que pousava do
lado de lá da cerca.
Mal acreditei no que vi quando aquela máquina feroz finalmente
encostou no chão. A porta se abriu abruptamente, e de dentro do
helicóptero, Derek Reynolds, que há minutos estava na televisão, se
materializou ali, saltando para fora.
Vestia o mesmo terno elegante. Conforme afastava-se para
longe das hélices, o cabelo grosso escuro ia sendo soprado pela
ventania. Ele correu até a cerca branca dividindo as duas
propriedades e a saltou com habilidade e elegância... Santo Deus,
até saltando cercas ele era atraente. Com sorriso contido no rosto,
um pouco sério, quando notou a imprensa, aproximou-se de nós.
— Desculpe por assustar seus animais, Willie — Derek
estendeu a mão ao meu amigo querido, sem se importar em se
sujar de graxa.
Mas Willie, em vez disso, se esquivou e deu um toque
camarada de antebraço contra antebraço.
— Num quero estragar sua roupa elegante, Senador. E o susto
às vezes é até bão para o coração dos bicho.
— Desde que não seja frequente, não? — Derek brincou, um
sorriso genuíno agora. — Sra. Gienger — acenou com a cabeça
para ela em cumprimento — Minhas desculpas também.
— Você é bem-vindo para nos visitar pelo céu, Derek — falou
ela, com simpatia e um quê de admiração.
— Papaaaaiiiiii ― Abbi nem esperou mais para saltar nos
braços dele, que a levantou com a mesma receptividade firme.
— Assustei você, Aboby?
— De jeito nenhum! Quero é andar nesse pássaro de ferro
também!
E o pior é que ela não estava brincando.
— Farei acontecer — depois de um beijo na testa da filha,
Derek a colocou no chão. E então se aproximou de mim. — Cherry.
— Derek.
— Você está bem? — sondou com cuidado, cautela,
preocupação e... e aquela reverência que fez meu coração bater
com desespero.
— Assisti a coletiva... na verdade, você ainda deve estar falando
lá dentro, na tevê — tentei brincar, mas ele viu a emoção em mim, a
que eu tentava esconder.
O quanto eu estava abalada pelo que disse. Nunca seria capaz
de não desejar com todo o meu coração, esse homem. Que me
olhava profundamente. Intensamente. Como se eu fosse o centro de
sua atenção.
Inspirei, abandonando aquele sentimento no ar, entregando ao
universo.
— Estamos bem... Acho até que eles estavam ligando os
motores para irem embora, antes de... — gesticulei para o
helicóptero e sua chegada triunfante.
— Eles irão deixar vocês em paz, Cherry — era uma afirmação,
e não tive qualquer dúvida que faria acontecer.
— Cê podia ter estacionado aqui, Senador — disse Willie, com
receptividade — Tem um pasto grande aí pra trás.
Derek assentiu em gratidão pela oferta e então disse:
— Segui seu conselho — apontou com o queixo para a área
vizinha.
— Ara, tá brincando!
— Não. Há duas semanas, fechei o negócio.
Willie gargalhou com satisfação.
— Então cê seja bem-vindo, vizinho!
— Vizinho? — Eva e eu questionamos em uníssono.
— Ara, bem. O Senador comprou a fazenda aqui do lado.
Olhei para Derek, totalmente surpresa.
— Você comprou?
— Comprei — havia tanta coisa em sua expressão, no olhar
profundo cravado no meu — Se aqui é a casa de minha família, é
onde também quero estar, tanto quanto possível.
— Derek... — Santo Deus.
— Yupi! — Abbi saltou no ar, batendo palmas — Então nós tem
duas fazendas, agora?!
Sorrindo de lado, a expressão do pai se tornou curiosa:
— É meu engano ou quando ela está aqui, o sotaque...?
— Muda — afirmei, sorrindo. Impossível não sorrir. No Texas,
minha menininha fazendeira e livre, era uma texana completa.
— Vamos entrar, vamos entrar — sugeriu Eva — Na verdade,
estávamos começando a fazer o jantar, se você nos der a honra de
ficar, Derek.
— Adoraria — disse ele.
Willie subiu, falando com Abbi sobre tudo o que podiam fazer na
propriedade vizinha — que era do Derek, agora! Ai minha nossa —
o que plantar, que peixes cultivar no lago, e Abbi opinava como se
de fato intendesse do assunto.
Subi também, atrás deles e de Eva. Mas Derek segurou
suavemente meu cotovelo.
— Podemos conversar?
Temi esse momento. E quis mais do que tudo também.
— Tem um pergolado nos fundos — concordei, indo para lá.
Derek me seguiu silencioso. Mãos nos bolsos. Pensativo. Me
sentei em um dos balaços e ofereci o outro, que ele aceitou.
O influente Senador Republicano que estava dando uma
coletiva nacional há algumas horas, sentado aqui em um balanço de
madeira.
— Eu...
— Eu...
Falamos ao mesmo tempo.
— Pode ir em frente — ofereci.
Derek sugou o ar quente do campo.
— Lamento fazer vocês passarem por isso. Você passar, outra
vez.
— Não é tão ruim. A arma do Willie ainda os assusta.
Derek sorriu, embora sério demais.
— Você assistiu ao que eu disse?
— Cada palavra — confirmei, baixo.
— Não pretendia nos expor daquela forma, mas não vi outra
saída. E para ser sincero, Cherry, queria que todos soubessem, de
uma vez por todas, que o único errado nessa situação toda sou eu.
Que mereci sua falta de confiança em mim. Mereci que não se
sentisse segura o bastante para me contar sobre nossa filha.
— Não foi assim que aconteceu...
— Foi. Sabe que sim. Não cultivei um terreno seguro para você
ao meu lado. O lar que deveria ter sido. A confiança, que eu deveria
ter estabelecido. Você só reagiu.
Olhei para ele. Esse homem lindo e justo. Não queria mais falar
do passado, reviver nossas dores e continuar nos punindo.
— Uma culpa dividida, então? Um meio termo, para a gente
conseguir se perdoar e seguir em frente? — propus com
honestidade, porque remoer nossos erros não mudaria nenhuma
das decisões que tomamos.
Derek encarou o chão, pensativo, e assentiu.
— Será que nós dois temos o mesmo conceito de seguir em
frente?
Meu coração, por alguma razão, mudou a batida. Admitiu
aquele ritmo descompassado familiar demais quando o assunto era
esse homem.
— Criar nossa filha da melhor maneira possível, sem brigas ou
mágoas. Encontrando um meio de fazê-la feliz sendo feliz no
processo — essa era a minha.
— Eu quero isso.
— Eu também — afirmei.
— Mas eu quero mais, Cherry.
Eu também.
— O que você quer? — tive coragem de indagar, presa naquela
atmosfera densa que envolvia e crescia entre nós.
Derek não titubeou em afirmar:
— Você.
— Derek...
Uma onda de adrenalina começava a despertar em meu
estômago, se é que era de lá que ela vinha. A boca se secou.
Meu queixo foi segurado, para que eu fitasse os sentimentos
através daquela cortina negra que cobria os seus. A verdade. A
vontade. O... o amor, pujante, como tudo o mais que vinha dele.
Intenso, forte.
— Você me ama, Cherry? Ainda me ama? — era a questão
mais importante do universo. E a com a resposta mais lógica
também.
— Amo... sabe que sim.
Sua mandíbula pulsou, agressivamente.
— Eu também te amo. Amo pra caralho. Amo todos os dias.
Lágrimas, bobas, inúteis.
— A gente já perdeu tempo demais, amor — polegares
limpavam a umidade com gentileza, com devoção — Não é justo
continuar perdendo. Não é justo com nenhum de nós.
Despenquei a cabeça contra seu ombro largo, firme, incapaz de
suportar o medo, o querer abrasador.
— Se você for capaz de me perdoar, Cherry — os lábios se
colaram ao topo de minha cabeça — e prometo que vou passar
todos os dias de minha vida buscando diariamente o seu perdão,
então por favor, amor, por favor, me dê mais uma chance.
Chorei em seus braços. Simplesmente chorei copiosamente.
— Ainda vou errar muito — falou, o timbre rouco, penitente e
gutural — Vou errar e te deixar furiosa comigo. Mas farei isso ciente
de que te amo e tenho seu amor. De que não há outro lugar no
mundo onde eu queira estar mais, do que ao seu lado. Trabalharei,
todos os dias da minha vida para ser o melhor para você, Cherry,
um marido bom, o homem que a venera como você merece, que a
completa.
— Você já é... — inútil não admitir — Você já é tudo isso, Derek
— levantei a cabeça para olhar seu rosto, esse homem que nunca
deu oportunidade para qualquer outro entrar em meu coração, que
se instalou e fincou estacas profundas — Nunca houve espaço para
uma opção, quando o assunto é você aqui — apontei para o meu
peito.
Sem resistir, sua boca macia salpicou beijos sobre a minha,
subindo para a testa, descendo a bochecha, nariz, olhos.
— Então me dá uma nova chance, meu amor.
— Ara mãe, casa com ele! O pai é louco de bonitão! — Derek e
eu nos empertigamos, o momento quebrado por uma vozinha logo
atrás de uma das colunas do pergolado.
— Abbi...
Culpada ― mas nem tanto ― por ser pega nos espiando, ela
veio devagar para junto de nós.
Secando as lágrimas, emocionada e boba, a repreendi, ou
tentei.
— O que falei sobre escutar atrás da porta?
— Não tava atrás da porta, mãe — se defendeu, mansinha — É
que, eu ouvi o pai falando pra você casar com ele, e, cê sabe, eu
acho que a ideia é boa.
Funguei.
O pai dela, sorriu, num misto de achar graça e ainda estar
atingido pelo momento.
— Ele não estava me pedindo em casamento, filha — afastei
sua franja da testa, sob o mesmo tipo de emoções do pai.
— Era o próximo passo, na verdade — aproveitou-se ele,
concordando com Abbi — Eu estava prestes a fazer isso.
Lindo, manipulador, perfeito.
— Aí, mãe, viu?!
Era uma mentira, e eu amei.
— A senhora não deveria estar se metendo em assuntos de
adulto, sabia? — bati com o dedo na pontinha do nariz, enquanto
limpava algumas lágrimas que insistiam em cair.
— Essa decisão também envolve o futuro dela, Cherry — podia
enxergar o humor maravilhosa no timbre poderoso tentando parecer
sério — Abbi tem um terço das ações desta família.
— Santos Deus... — ri, chorei, funguei, tudo ao mesmo tempo.
— E, lamento dizer, mas juntos, eu e ela, temos a maior parte.
Então o voto de nossa filha tem peso.
— Eu voto sim! — Abbi gritou com alegria.
— Também voto sim — o pai manifestou.
Olhavam para mim.
Nela, uma alegria juvenil contagiante. Nele, a expectativa
profunda e sincera de começarmos uma nova página. Uma chance
para finalmente conhecermos o outro, desnudos do medo, do
orgulho.
— Já que estamos em um regime democrático, meu voto
também é sim. Sim. Sim.
Eu queria essa família, essa configuração. Não tinha dúvidas de
que seríamos bons juntos, bons uns para os outros. Abbi merecia.
Derek merecia. E eu, eu realmente me sentia merecedora de
construir o lar dos meus sonhos. Onde as paredes, teto e chão
transbordassem apenas amor.
Derek de repente ficou sobre um joelho, no chão.
— Me permita fazer do modo certo, desta vez, Cherry
Contreras. Por favor, me dê a honra de ser minha esposa, para eu
amar e respeitar, mimar e cuidar, dar espaço e liberdade. Criar
nossa filha e fazer o melhor por nossa família.
Alisei seu belo rosto, uma beleza brutal, sincera, intensa.
— Será uma honra, Derek Reynolds.

The New Work Times


Por: Barbara Walters
Reencontro e Redenção: Senador e Ex-Assistente, uma
história de amor

O mais cotado candidato ao cargo presidencial, Senador Derek


Reynolds descobriu recentemente sua filha de seis anos, fruto do
casamento com sua ex-assessora, Cherry Contreras. Em uma
entrevista sincera e emocionante, Cherry compartilha que pressões
da mídia e inseguranças a levaram a tomar a impulsiva decisão de
se afastar de seu marido e omitir a gravidez, enquanto elogia a
integridade do Senador Reynolds como um pai dedicado e homem
íntegro. Em suas palavras “O mais preparado candidato que esse
país já teve”.
Clique no link para continuar lendo a matéria...
— Você percebeu que elas estão disputando, não?
Derek pegou da minha mão a bandeja com os filés, pinçando
um a um e colocando na grelha fumegante.
— Ter apenas uma neta para compartilharem dá nisto — meu
marido me alfinetou, sem nunca perder a oportunidade.
Fez nos últimos dois anos.
Ri, envolvendo sua cintura estreita e me aconchegando debaixo
de seu braço forte, enquanto acompanhava meu habilidoso
churrasqueiro preparar o nosso almoço.
— Hoje, Eva perguntou à Lisa quando ela pensa em voltar para
a Califórnia.
— Sutil — Derek achou graça.
— E Lisa respondeu que está pensando em morar no Texas
definitivamente.
— Competitiva, como todo Reynolds.
Estávamos nos divertindo com a competição entre as duas avós
de Abbi, para se provar a preferida da menina, que, intimamente,
amava ser mimada como ninguém.
Por falar nela:
— Cê viu isso, Willie! — Abbi vibrou orgulhosa do trabalho —
Ela já tá pra lá de um metro!
— Vai ser a maior de todas até agora! — o fazendeiro animado
devolveu com o mesmo entusiasmo.
Se tinha uma coisa que eles, Abbi e Willie, eram obcecados, era
por ganhar anualmente o Concurso Nacional de Pesagem de
Abóboras. Competidores ferrenhos. No ano anterior, quase foram
banidos do evento porque insultaram um juiz, tudo porque ele tentou
desconsiderar o peso do caule extraordinariamente crescido.
— Ara, diz pra mãe natureza fazer um caule mais delicado...
Humpf, se tem cabimento! — bufara minha filha geniosa —
Roubando na cara dura.
— O que foi que disse, mocinha?
— Ela disse que cês tão é inventando desculpa pra roubar pro
lado de lá — Willie se invocara também — E eu digo que ocê num
tem nem as habilidade pra tá aqui julgando nóis.
— Por que não tenho?!
— Com essas mãozinha lisa de moça? — entortou o nariz com
desdém — Nunca nem viu uma inchada. Mostra pra ele, Abbi.
Mostra como é mão de quem trabalha duro na terra!
Abbi não se fez de rogada. Orgulhosa pôs as palmas abertas na
cara do avaliador.

— É engraçado como ela consegue se adaptar bem lá e aqui,


não é — comentou Derek, observando nossa filha.
— No Texas, uma texana raiz. Em Washington D.C., a filha de
um político, cheia de opinião própria e ideias de novas leis.
Derek me apertou em seus braços, deixando de lado o garfo
com o qual virava a carne na churrasqueira, e beijou o topo de
minha cabeça.
— Tal qual a mãe.
— Qual parte?
— As duas.
— É impossível não se deixar contaminar pelo sotaque —
admiti, rindo — às vezes um “cagado de fome”, “ara”, “ocê”, sempre
acaba escapando inconscientemente.
Ele retirou uma mecha de meu cabelo de lado.
— Ocê é a moça mais linda que meus olho já viu — provocou,
me encarando com aquele calor nos olhos cor de noite que ainda
era difícil de absorver, mesmo dormindo e acordando ao seu lado
nos últimos dois anos.
Dois anos muito felizes.
— E ocê não faz ideia de como espero que nosso próximo filho,
ou filha, assim como a Abbi, também herde esses seus olhos
escuros e inteligentes, sabe.
Sobrancelhas grossas se uniram.
— Não está dizendo o que acho que está.
Mordi os lábios.
— Acho que estou sim.
Derek me afastou pelo comprimento de um braço, investigando
meu rosto. Espanto, desconfiança, e aquele brilho distinto e familiar:
felicidade.
— Esse não é um assunto para brincar, esposa.
— Que bom que estou falando sério, então.
— Ah lasqueira! — meu marido, forte, grande, poderoso, me
levantou no ar e girou, gargalhando aquela risada rica, gostosa,
rouca e contagiante.
— Derek! Derek! — Mary-Kate desceu correndo os degraus de
nossa casa no Texas, enorme e espaçosa, ao lado da propriedade
de Eva e Willie. Vinha gritando — Pensilvânia, Wisconsin e Michigan
são seus! Você ganhou, p.... — o palavrão, proibido diante de sua
sobrinha, sendo substituído de última hora por um “puxa vida” —
Você VENCEU!
— Venceu?! — vibrou Willie.
— Venceu! — Eva e Lisa Reynolds gritavam juntas, abraçadas.
— Meu pai ganhooooouuuuuuuuu!
Vieram todos em nossa direção, onde meu marido ainda me
rodopiava no ar, rindo como um garoto. Apaixonado. Reverente.
Maravilhoso.
— Ué, já sabiam da confirmação? — minha cunhada perguntou
confusa.
Limpando lágrimas de felicidade, murmurei para ele, o homem
da minha vida:
— Parabéns, novo Presidente dos Estados Unidos da América.
— E pai, de novo.
Beijou minha boca com força e repetiu, desta vez urrando para
o céu:
— Pai, de novo!

Você também pode gostar