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ÍNDICE

SINOPSE
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
EPÍLOGO
LIVRO 2
SANTA REFERÊNCIA
Para todas nós que sentimos todos os dias o peso do julgamento do
patriarcado. Não importa qual seja nossa escolha como mulheres ou como
mães, sempre seremos criticadas, julgadas e responsabilizadas.
SINOPSE

Um erro de uma única noite me afastou de minha irmã gêmea. Eu


esperava que, um dia, tivéssemos a chance de fazermos as pazes, mas quase
dois anos depois, recebi a notícia de que ela estava morta.
Como último desejo, ela queria que eu fosse a guardiã do seu filho
— um bebê de oito meses que eu nem sabia da existência. Como se não
bastasse, fazia parte do testamento que seu ex-marido assumisse o menino e
o criasse comigo. Não seria necessariamente uma ideia ruim se Augusto
Monteiro não fosse o meu maior erro.
Eu ainda cultivava sentimentos que tentava soterrar, mas, em
memória de Mariana e agarrada à esperança de que seu pedido era uma
forma de perdão, eu aceitei as responsabilidades de cuidar do meu sobrinho,
ainda que ao lado do homem que sempre mexeu com minhas estruturas.
Precisando nós dois nos habituarmos a uma nova rotina com uma criança,
concordamos em coabitar a mesma casa por um pequeno prazo — o
suficiente para que colocássemos a vida nos eixos e encontrássemos a
melhor maneira de partilhar os cuidados do bebê.
Em meio a nossa convivência, eu não tinha certeza se seria capaz de
manter meu coração protegido.
CAPÍTULO 01

Abro os olhos, assustada. Passo a mão em minha testa encharcada


de suor, sento-me na cama e confiro as horas no relógio. Cinco da manhã.
Suspiro pesadamente, acendo a luz do abajur e encaro a solidão opressiva
em meu quarto. Permaneço um segundo nessa posição, remoendo o sonho
que tive. Tento ignorar a aflição que pressuriza meu peito, mas não consigo
entendê-la, muito menos ignorá-la. Jogo as cobertas para o lado e corro até
o banheiro. O espelho reflete o semblante cansado de uma mulher de trinta
e um anos que trabalha demais e não vive para outra coisa.
Lavo meu rosto com a água gelada para despertar e todo meu corpo
se arrepia. Ainda falta um mês para o inverno, mas o frio já começou a dar
as caras. As temperaturas caíram e vieram acompanhadas de chuvas frias.
Na última semana, precisei desempacotar meus casacos, me hidratar com
chá sem açúcar, me alimentar de sopa e acender a lareira a lareira a álcool.
Ergo o rosto para o espelho e me seco com uma toalha pequena. Só tenho
que estar no restaurante às dez horas, então vou aproveitar que a chuva
parou e que não pretendo dormir mais para ir correr um pouco.
Nem sempre gostei de correr ou de fazer exercícios físicos, mas
desde que entrei em uma fase delicada da minha vida, que quase
comprometeu minha saúde mental, encontrei na corrida um modo de aliviar
o estresse, de espairecer, de controlar minha ansiedade e ocupar minha
mente.
Visto uma roupa confortável que me faça enfrentar o frio lá fora,
calço meus tênis e enquanto tomo um café da manhã leve, espero
amanhecer para sair à luz do dia. Sou mulher, então não me dou ao luxo de
correr antes de o sol nascer ou muito depois de se pôr. Passado um pouco
das seis, já estou rodando as ruas do meu bairro. Controlo a respiração e
confiro o pace a cada mil metros, esforçando para diminuir meu tempo no
próximo quilômetro. Para falar a verdade, não me importo se meu pace está
em cinco minutos em meio ou em sete. Meu objetivo na corrida não é esse.
Nunca foi.
Mas hoje, depois daquele sonho…
Preciso me concentrar em alguma coisa e tirar as imagens de minha
mente, que pareciam tão reais. Então, foco na minha velocidade e em
vencer meus obstáculos. Ofego, respiro, aplico força em minhas pernas,
aumento o ritmo ou diminuo quando sinto que é demais para mim. No final
das contas, não consigo afastar o sonho da minha cabeça. Penso nele com
cada vez mais intensidade, tentando entendê-lo. Tentando entender todos
esses sonhos que comecei a ter há algum tempo. Sonhos que envolvem
minha irmã gêmea, Mariana, e um bebê.
Após seis quilômetros percorridos, chego em casa, minha pele com
uma sensação esquisita do calor do meu corpo em contraste com o vento
frio da natureza. Tomo um banho rápido, visto uma roupa modesta e agarro
meu dólmã preferido antes de entrar no carro e dirigir para o trabalho. O
restaurante ainda está acordando — as cadeiras continuam viradas sobre as
mesas, a recepcionista confirma as reservas do dia, o caixa confere outra
vez as entradas e saídas do expediente anterior, garçons e garçonetes
organizam o salão e o bar, o gerente lida com os fornecedores, cozinheiros
checam a dispensa, ajudantes organizam prateleiras ou lavam panelas.
Passo por todos eles e vou ao vestiário dos funcionários, logo nos fundos do
estabelecimento. Destranco meu armário e visto meu uniforme. Estou
calçando as botinas quando Maitê surge, atrasada e atrapalhada.
— Ah, oi, chefinha — ela me cumprimenta, ajustando a alça da sua
bolsa no ombro. Ao conferir as horas em seu relógio, me dá um sorriso sem
graça. — Desculpa o atraso.
Indico o armário atrás de mim.
— Tudo bem. Se arrume para começarmos o trabalho.
Maitê caminha até seu nicho, abre o cadeado e começa a tagarelar
enquanto se arruma, como de costume:
— Fernanda disse que a casa vai lotar a semana toda.
— É mês das mães — aponto, calçando a outra botina. ­— e com as
promoções e descontos, não me surpreende que lote. Teremos muito
trabalho pela frente. Pronta para me aturar?
Maitê tira a camisa cambraia que está vestindo e coloca outra —
branca e lisa — sem qualquer pudor em ficar seminua em minha frente. Ela
ri baixinho e move a cabeça em negativo.
— Você é a melhor chefe de cozinha que já tive na minha vida toda.
Abro um sorriso sincero.
— E você é a melhor sous-chefe.
Maitê veste sua calça quadriculada e me olha com atenção enquanto
ajusto o dólmã em mim.
— Estou te sentindo… diferente. Tem alguma coisa te
incomodando? — pergunta, sentando-se ao meu lado, como a boa amiga
que é. Maitê é esse tipo de garota, que faz amizade facilmente, é sempre
toda ouvidos e disposta a ser um ombro amigo.
— É só… esses sonhos com a Mariana que estão me incomodando,
sabe?
— Ah. Aquele em que você a vê com um bebê?
Aceno em positivo. Os sonhos variam bastante — às vezes, ela está
com um recém-nascido nos braços, às vezes, eu a vejo grávida —, mas no
geral, é nesse contexto de Mariana sendo mãe.
— Já tentou ligar para ela? Saber se ela está bem? Talvez seja um
sinal.
Sorrio, complacente, e movo a cabeça em negativo. Maitê acredita
em signos, astrologia e interpretação dos sonhos. Não demora nada para ela
consultar na internet e vir me dizer o que significa eu sonhar com minha
irmã ou com um bebê.
— Perdi contato com a Mariana já faz quase dois anos. Ela trocou
de telefone e… eu nem sei onde está morando. Acha que ela pode ter
engravidado? Ter tido um filho sem nunca me dizer nada?
Maitê balança a cabeça em positivo.
— Tudo é possível. Não vai me dizer mesmo por que vocês se
afastaram?
Molho o lábio inferior e desvio o olhar do dela. Faz menos de um
ano que estou trabalhando aqui e apesar de ter feito amizade fácil com
Maitê, de ter sido fácil confiar nela e tê-la como uma das melhores pessoas
em minha vida, ainda não me sinto segura para contar o que fiz que me
distanciou de Mariana. Suspiro, recordando-me do Natal quase dois anos
atrás, a última vez que a vi, recordando-me da minha atitude terrível que
nos destruiu. Que terminou de destruir seu casamento já em estado abalado.
Odeio me lembrar de como ela me odiou, como disse que nunca me
perdoaria, as palavras que me disse entre lágrimas.
Odeio a mim mesma por tudo que fiz e nunca vou me perdoar. Eu
me martirizei por tanto tempo que foi difícil me livrar de hábitos ruins,
autodestrutivos, e ainda que eu continue me punindo, lido melhor com a
culpa agora.
— Talvez um dia. — Forço um sorriso e me levanto. — Melhor
trabalharmos, Maitê.
— Não quer mesmo me falar mais sobre esses sonhos? Posso dar
uma pesquisada e…
— Não, não quero. Não deve ser nada, já disse. — Pego-a pelos
braços e a coloco em pé. — Vamos, porque temos muito o que fazer.
Ela suspira, contrariada, mas me obedece.
Sinto suas mãos vigorosas deslizar pelas minhas costas suadas
enquanto estou montada nos seus quadris. Ele se arremete com força para
dentro de mim, preenchendo-me com seu pau majestoso. Jogo minha
cabeça para trás, apreciando a sensação boa que percorre todo meu corpo
naquele segundo antes do ápice. Apoio a mão em seu tórax e me liberto
com um murmuro baixo e estrangulado, ao que ele me acompanha e usa
meus lábios para conter os próprios gemidos. Quando passa o efeito de
todos os hormônios no meu cérebro, a culpa me acomete. Olho para o lado
e ele está ali, os olhos meio caídos, a expressão vazia, a testa franzida,
como se estivesse analisando a situação terrível em que nos metemos.
Engulo em seco e cesso nosso contato visual, acanhada.
— Nós fizemos de novo — sua voz baixa e rouca ressoa pelo quarto
silencioso e à meia-luz. Não digo nada, aproveitando o momento para
remoer a culpa. — Heloísa?
Ergo os olhos em sua direção e o observo. Tão bonito. Tão proibido.
Não respondo.
— Heloísa? Heloísa. Heloísa…?
Acordo sobressaltada e encontro os olhos de Maitê a alguns
centímetros de mim, dando-me conta de que dormi no carro. Depois do
primeiro turno na cozinha, eu tirei uma hora de descanso para comer. Devo
ter pegado no sono sem me dar conta. Sonhei com ele, que me disse
“fizemos de novo”, embora, na realidade, nunca tenhamos passado de uma
única transa. Toda vez que sonho com ele, nós estamos transando o que
parece ser a outra vez. Com meus conhecimentos zero em psicanálise, acho
que é um desejo inconsciente de ter estado com ele de novo, ainda que não
seja algo muito correto de minha parte.
— Oi, o que foi? — pergunto, ainda atordoada por causa do sonho e
de acordar de forma abrupta.
Coço os olhos e tento focalizar Maitê.
— Telefone para você.
— Quem é?
Ela se afasta para que eu desça e alongue meus músculos. Maitê faz
silêncio por um segundo, como se não soubesse me dizer e estivesse
escolhendo as palavras certas.
— É de um hospital em… Santa Mônica.
A essa menção, eu desperto completamente e fico em alerta. Amarro
meus cabelos e os prendo com um elástico enquanto caminho
apressadamente até a recepção do restaurante, perguntando-me o que deve
ser. Santa Mônica não é muito longe, mas não tenho ninguém lá. Nasci e
cresci aqui, em São José, e a única que família que eu tinha, minha irmã, foi
embora depois da Fatídica Noite há um ano e meio.
— Heloísa falando — digo ao pegar o gancho que estava virado
sobre o balcão.
A voz do outro lado da linha se apresenta antes de me dar a notícia
que enfraquece minhas pernas e faz meus olhos juntarem lágrimas. Levo a
mão à boca, incapaz de controlar a tristeza que me acomete. Devolvo o
telefone ao gancho e deslizo pela parede, completamente em prantos, com o
coração despedaçado, a cabeça a mil, uma dor insuportável apertando meu
peito. As pessoas ao meu redor se preocupam comigo e vêm me ajudar.
Ninguém pode me ajudar agora. A recepcionista não me deu detalhes, mas
no fundo do meu coração, eu sei.
Sei que minha irmã gêmea morreu.

Levo um minuto para me recompor e conseguir ficar em pé e com


os nervos no lugar. A gerente do restaurante me dispensa para que eu vá até
Santa Mônica saber o que aconteceu com Mariana e me deseja boa sorte.
No vestiário, eu me troco de forma letárgica, com um pressentimento ruim
de que ela se foi. Talvez esteja sendo pessimista, mas é como me sinto
agora. Não me informaram o que aconteceu, talvez para não me
desestabilizar. Entretanto, causa dos sinais, eu sei que ela morreu.
Se minha gêmea estivesse bem, teriam me dito isso para me
tranquilizar. “Heloísa, sua irmã sofreu isso, isso e aquilo, mas ela está viva.”
Talvez estivesse muito mal, podendo morrer a qualquer hora, mas o hospital
reforçaria que estava viva. Não foi o que me disseram. Apenas um “A
senhora Mariana Alvares Monteiro deu entrada no hospital hoje pela
manhã”. Se ela não está bem, o hospital não pode dizer o contrário para não
me dar falsas esperanças. Então, eles são evasivos sobre o que aconteceu.
Assim que estou pronta, chamo um Uber para me levar até a cidade
vizinha. Maitê me ofereceu uma carona, mas como sous-chefe do
restaurante, a cozinha vai precisar dela. Fernanda, minha gerente, também
se ofereceu, mas declinei de sua oferta porque a casa está cheia, vai lotar
muito mais e a equipe precisa dela aqui.
A viagem até o Hospital Regional de Santa Mônica não leva mais
que uma hora. Pago pela corrida e disparo até a recepção. Informo o nome
completo de minha irmã e a recepcionista me pede um instante para chamar
um responsável. Cinco minutos mais tarde, uma enfermeira aparece,
oferecendo-me um sorriso complacente enquanto me encaminha hospital
adentro e alega que um médico vem em breve “falar com vocês dois”.
Pisco, confusa com sua sentença, e não tenho tempo de questioná-la porque
ela abre a porta de um quarto e lá dentro, eu o vejo.
Mesmo que esteja de costas, eu o reconheceria em qualquer lugar.
Augusto Monteiro.
Meu pior erro.
Sinto como se meu coração subisse até minha garganta quando ele
se vira para mim e não expressa qualquer surpresa em me ver. Talvez já
esperasse por mim. Antes de nos deixar, a enfermeira reforça que o médico
não demora a vir nos atender.
Encaro seus olhos verdes por segundos eternos, incapaz de ignorá-lo
como deveria fazer. Augusto usa um terno Armani bem ajustado — o que
me faz pensar que veio do trabalho direto para cá—, os cabelos loiro-
escuro, quase castanhos, estão bem penteados, e a barba está baixa e bem-
feita, como sempre gostou. Ele é alto e esguio, oprimindo-me sob seus 1,90
metros e mais de oitenta quilos de músculos.
Não lembro mais como se fala.
A última vez que o vi foi…
— Oi. — Sua voz sai hesitante e baixa, as mãos nos bolsos da calça,
quebrando meus pensamentos.
Molho o lábio inferior.
— Oi. O que está fazendo aqui?
Eu me arrependo da pergunta no instante seguinte porque é uma
pergunta idiota, acho. Augusto é ex-marido da Mariana afinal. Ele suspira
baixinho.
— Eu… ainda estava no contato de emergência dela.
Assinto e parece que há um grande incômodo entre nós. Desvio os
olhos, brinco com a barra da manga da minha camisa, arrasto os pés no
chão, cutuco a unha. Ao olhar para Augusto de novo, ele parece prestes a
dizer alguma coisa, mas a porta atrás de nós se abre e interrompe o que quer
que fosse me falar. Um médico na casa dos quarenta e poucos anos entra
carregando algumas imagens que parecem radiografia ou tomografia. Ele
nos cumprimenta e se apresenta. Para minha infelicidade, preciso dar alguns
passos atrás até estar ao lado de Augusto, porque só assim faço contato
visual com o médico.
— Minha irmã faleceu, não é? — pergunto, incerta, a voz chorosa.
Se ela estivesse bem, teriam nos levado para o quarto dela, não para
um cômodo desabitado. Sinto Augusto tenso ao meu lado, em especial,
quando a expressão do médico não é nem um pouco apaziguadora. O doutor
pigarreia e balança os exames em suas mãos, mostrando-as para nós.
— Há pouco mais de três meses, a Mariana descobriu um tumor na
coluna, na vértebra L2. — O médico aponta para a área que acabou de
mencionar, mostrando-nos o tumor. — O estágio já estava bastante
avançado e o tratamento era… incerto, mas o mais indicado, era o paliativo.
Ele pausa, esperando que a informação assente em nossa cabeça e
que tiremos nossas próprias conclusões.
— Para mim era inoperável e sua irmã preferiu uma segunda
opinião. Ela entrou em contato com Étienne Laurent, um neurocirurgião
francês muito conceituado, e apesar de todo prognóstico e de ele ter dito
que era impossível ela sair viva da cirurgia, que o tratamento melhor era o
paliativo, Mariana insistiu pela cirurgia.
Um grunhido escapa da minha garganta e demoro a notar que
lágrimas se acumularam nos meus olhos. Pela visão periférica, sinto
Augusto olhar para mim e tenho a impressão de que quer envolver meus
ombros, mas se mantém em seu lugar.
— A cirurgia aconteceu hoje pela manhã e sua irmã não resistiu a
intervenção, morrendo ainda na mesa de operação. — O médico olha para
mim, depois para Augusto. — Eu sinto muito.
Augusto dá dois passos para trás, até se sentar na cama, e eu
continuo no meu lugar, processando a informação, letárgica, enxergando
tudo embaçado pelas lágrimas em mim. Uma profusão de sentimentos me
assalta. Dor, culpa, emoção, raiva, ódio. Quase não escuto o doutor nos
dizendo que o neurocirurgião francês ainda virá falar conosco para nos dar
detalhes do procedimento porque estou dispersa demais.
Mariana tinha todos os motivos do mundo para ter ido embora, ter
me deixado e cortado contato, mas ela podia… ter me telefonado, ter me
contado sobre sua doença. Minha irmã sabia que ia morrer e, ainda assim,
deixou sua mágoa entre nós duas.
O médico nos dá cinco minutos antes de nos guiar até o corpo de
Mariana. Coberta por um lençol, sua pele está pálida e arroxeada. Ele nos
deixa a sós por algum tempo, e é aqui que eu não me seguro. As lágrimas
vertem do meu rosto como tempestade, minhas mãos segurando as dela,
geladas e sem vida. Nem me importo que estou tirando a chance de
Augusto de se aproximar e prestar uma última despedida a ex-esposa. Dói
tanto. Dói a perda dela, dói que tenha se afastado, dói que tenha morrido
sem ao menos ter me perdoado.
— Helô… — Augusto sussurra, acariciando meus ombros.
A presença dele aqui só intensifica toda dor e toda a culpa dentro de
mim. Ainda assim, permito que seus braços longos me envolvam. Eu me
viro e escondo o rosto em seu peito, buscando abrigo e conforto no tórax do
homem errado. Meu momento dura dois minutos e então me afasto, dando-
me conta de que eu deveria permanecer distante dele. Recuo alguns passos,
limpando as lágrimas e lhe dando algum tempo com o corpo da ex-esposa.
— Vou te esperar lá fora — digo, a voz embargada e carregada de
dor e emoção.
Saio do necrotério e me encosto na parede externa, enxugando as
gotas sobressalentes e mal percebendo que o médico está aqui, esperando
por nós. Forço um sorriso triste e me recomponho, ao que ele sussurra outro
“sinto muito”. Augusto fica lá dentro mais cinco minutos e quando sai, noto
que também chorou. Em seguida, o doutor pede para que nós o
acompanhemos ao seu consultório para tratarmos de um assunto
importante. A sala fica um pouco distante do necrotério e, ao adentrar, noto
uma mesa, computador e maca de exames. Ele oferece os dois lugares na
poltrona e ocupa o seu.
— Antes de entrar na sala de cirurgia — menciona —, a Mariana
escreveu um testamento. Por falta de outros parentes e amigos, ela delegou
a mim para fazer a leitura do documento.
— Ai meu Deus — Augusto sussurra, a voz quebrada. — Isso é
sério?
Olho para ele, furiosa.
— Antes da leitura da divisão de bens — o doutor prossegue,
ajustando os óculos no rosto —, quero adiantar um assunto que talvez…
precisem de um tempo para assimilar.
Encaro Augusto outra vez, na esperança de ele ter alguma ideia do
que o médico está falando, mas pelo modo como massageia as têmporas,
está tão confuso quanto eu.
— Mariana tem um filho — informa.
Augusto e eu exclamamos, uníssonos e assustados:
— O quê?!
O médico completa:
— E o último desejo dela é que vocês dois cuidem dele.
CAPÍTULO 02

— Como assim a Mariana tem um filho?! — exclamo e troco um


olhar com Heloísa, como se ela fosse me dar uma explicação para esse
absurdo, mas ela não me encara de volta, chocada com a notícia.
— É tudo o que eu sei, Augusto — o médico profere, a voz calma.
Ele me estica uma pasta que puxou da gaveta da sua mesa e informa: — Aí
estão as informações sobre o bebê. Sei que vão precisar de um minuto,
então… vou atender um paciente e volto logo mais para falarmos do
testamento, está bem? Fiquem à vontade.
Assim que ele se vai, eu me levanto do meu lugar e ando de um lado
a outro, atordoado. A pasta continua fechada em minhas mãos e não tenho a
menor vontade de abri-la. Mais cedo, quando me ligaram na sede da
Monteiro & Castro Construções e me disseram que Mariana estava
internada a sessenta quilômetros de mim, eu esperei por tudo, menos que
ela estivesse morta. Menos que ela tivesse um bebê. Pisco um par de vezes,
me negando a acreditar nessa reviravolta. Mariana não me contou sobre
esse filho, tampouco sobre a doença. Me surpreende que seu último desejo
seja que eu crie o filho dela ao lado da Heloísa.
Por Deus, não posso fazer isso.
— Você não vai olhar o arquivo? — pergunta com cautela.
Paro de andar para lá e para cá, viro-me em sua direção e encaro seu
olhos avelãs —olhos que já confundiram minha cabeça e meu coração,
idênticos ao de Mariana. Assinto devagar, sento-me em meu lugar outra vez
e abro a pasta. Os primeiros arquivos são fotos do bebê e de várias de suas
fases. É um menino. Ele tem olhos grandes e expressivos, cílios longos,
bochechas cheias, cabelos volumosos e loiro-escuro. Na foto em questão,
está sentado no berço, abraçado a um urso de pelúcia pouco maior do que
ele. Abro um sorriso sincero para a imagem. Nos próximos documentos,
encontro caderneta de vacina, exames variados, RG que Mariana emitiu
recentemente e certidão de nascimento. Heloísa puxa este último. Nasceu
em oito de setembro do ano anterior, então ele vai completar oito meses em
seis dias.
— Gustavo Henrique Alvares Monteiro — Heloísa lê o nome dele e
se vira para mim. — É seu filho?! — Embora seja uma pergunta, seu tom
sai com um pouco de hesitação, surpresa e afirmação.
Pisco duas vezes e nego.
— Não é. — Abaixo os olhos para o papel esverdeado em sua mão.
— Ele não tem pai no registro.
— Monteiro é o seu sobrenome.
— Que sua irmã manteve no nome de casada mesmo depois do
divórcio. — Dou de ombros, ainda sem encará-la e lendo o restante das
informações. — Não sei por que ela optou em colocar Monteiro no menino,
mas… não é meu filho.
— E se for? — sussurra.
— Não é, Heloísa — digo, mais incisivo.
— Como pode ter tanta certeza? — questiona, furiosa. — Ele
nasceu em setembro, isso significa que Mariana engravidou em dezembro.
Antes do divórcio de vocês. Augusto, esse menino pode ser seu filho.
Apoio a papelada sobre a mesa e me levanto, minha cabeça
latejando. É muita coisa para eu assimilar e isso tudo está me deixando
zonzo.
— Não é — repito, afundando os dedos nos meus cabelos.
Heloísa vem até mim.
— Augusto, o bebê…
— Não é meu filho — falo mais alto e me viro para ela. — Não
quero que seja!
Heloísa ofega, paralisada com minha reação. Eu não queria ter
soado tão insensível, mas sei que soei exatamente assim.
— Não quero que seja porque se for, significa que sua irmã o
escondeu de mim. Por mais de um ano. E essa ideia me magoa porque eu
tinha o direito de saber, de estar presente na vida desse garoto. Me magoa
porque significa que se ela não tivesse morrido, eu nunca saberia da
existência desse menino. Não quero enterrar minha ex-mulher magoado
com ela, Heloísa.
Ela parece refletir por um segundo antes de acenar lentamente e
umedecer o lábio inferior que, inadequadamente, captam minha intenção
por um segundo rápido.
Augusto, não. Agora não. Em momento nenhum inclusive.
— Eu sei que dói pensar nisso — Heloísa murmura, circunspecta.
— Mas existe essa possibilidade. Você sabe que Mariana tinha motivos para
esconder a gravidez de você. Talvez estivesse muito magoada, talvez fosse
menos doloroso criar esse filho sozinha do que… te ter por perto. Talvez
por isso ela tenha pedido que nós dois criássemos o bebê.
Movo a cabeça de um lado a outro.
— Gustavo não é meu filho — insisto e não vejo outra maneira de
justificar minha convicção a não ser confessando: — Eu viajei no começo
daquele mês a trabalho e passei mais de duas semanas fora. Voltei a dois ou
três dias do Natal e Mariana estava menstruada, então não transamos. E
bem… nosso relacionamento acabou antes do ciclo dela. Sabe bem disso,
não é? Foi a pivô do meu divórcio.
Eu noto seus olhos se escurecerem e o maxilar ficar mais tenso.
— Você quem foi o marido infiel, Augusto — aponta, repleta de
raiva.
Solto uma risada sem humor.
— Diz como se não fossem as suas pernas em torno do meu quadril
naquela noite de Natal — provoco, sem saber por que tenho essa
necessidade de alfinetar nossas feridas.
Ela avança sobre mim e tenta me estapear, mas seguro sua mão bem
a tempo. Talvez eu seja o mais errado nessa história toda, porque eu era o
cara comprometido, mas ela não pode se eximir da própria culpa. Heloísa
não pode se eximir da culpa de ter traído a irmã. Somos os dois errados.
Uma dupla de mau-caráter.
— Não é o melhor momento para discutirmos — digo, abaixando o
tom de voz.
Ela se solta da minha pegada e dá um passo atrás, os olhos abatidos
e marejados. Nunca soube como Heloísa lidou com nossa situação porque
depois que contei para Mariana sobre nossa noite, todos nós nos afastamos.
Minha cunhada sumiu sem deixar rastros, minha mulher pediu o divórcio e,
um tempo depois, se mudou para cá. Eu permaneci onde sempre estive e
não digo que foi fácil para mim. Não foi. Ainda que meu casamento já
estivesse abalado antes da minha traição, lidar com o divórcio e com minha
culpa foram uma das coisas mais dolorosas que já enfrentei na minha vida
inteira.
— Então… você tem certeza de que não é seu?
— Tenho — repito com um suspiro. — O que é ainda mais confuso.
Ou ela engravidou de um cara qualquer antes de rompermos, talvez
enquanto eu estava viajando, ou depois, quando rompemos.
— Isso explica por que ela não te contou nada — Heloísa
argumenta. — Se não era seu, não tinha porque te contar.
Concordo, mas ainda há algo que parece errado nessa história.
— Ainda assim… é estranho ela não ter me contado nada. Eu vi
Mariana mais duas ou três vezes até formalizarmos o divórcio. A última
vez, quando assinamos a venda da casa, daria para notar a gestação, mas
não vi nada de diferente em sua irmã.
Heloísa pondera antes de dizer:
— Talvez ela tenha escondido ou a barriga não estava aparente
apesar do tempo gestacional. Já vi casos parecidos. — Ela suspira e
mordica o cantinho do dedo indicador. — Minha irmã podia ao menos ter
contado para mim.
— Mariana era orgulhosa, Heloísa. Não nos contou nem sobre a
doença, que estava morrendo, quem dirá sobre essa criança. — Engulo em
seco e me encosto à maca de exames no ambiente depois de pegar o arquivo
sobre o menino. ­— Para falar a verdade, me surpreende que seu último
desejo tenha sido deixar seu filho perto de nós dois. Eu achei mesmo que
nesse testamento, ela ia excluir nós dois como possíveis tutores, não nos
incluir.
Heloísa ri baixinho, entristecida.
— Pensei que ela ia preferir que lobos criassem o filho dela a nos
passar a tutela do menino. — Isso arranca uma gargalhada pequena e
sincera de mim. — O quê…? — murmura, incerta. — O que vai fazer,
Augusto? O que vamos fazer?
Para ser sincero, cuidar de uma bebê agora era o que eu menos
precisava. Estou lotado de trabalho e cheio de projetos na construtora para
dar atenção. Um bebê que não é meu. Ao lado de Heloísa, a mulher que eu
queria evitar o resto da minha vida. Encaro as fotos do menino, alguma
coisa remexendo dentro de mim, apertando meu coração.
— Você quer essa responsabilidade? — pergunto, encontrando os
olhos de Heloísa.
Ela afaga o rosto, parecendo cansada.
— Eu não sei.
Assinto devagar.
— Eu também não sei.
Heloísa vem até mim e se senta do outro lado da cama.
— Eu sei que era o último desejo da minha irmã, mas isso não é
loucura, Augusto? A responsabilidade que a Mariana deixou nas nossas
mãos… Nem sei se sou capaz de cuidar de mim mesma, quem dirá de um
bebê.
Rio baixinho e movo a cabeça de um lado a outro, meus olhos ainda
presos nas fotos do menino.
— Você ao menos tem alguma ligação com o menino. É seu
sobrinho. Vai conseguir lidar com o fato de que terá um sobrinho perdido
no mundo? — Ergo os olhos em sua direção. — Sabe, por que é isso que
provavelmente vai acontecer se não assumirmos a tutela do Gustavo. Ele
vai entrar na fila de adoção e vamos perder contato, acredito.
Heloísa permanece em silêncio por vários segundos, ponderando.
— Acho que tive… algum tipo de aviso.
Ergo uma sobrancelha.
— Como assim?
Ela inspira fundo e expira lentamente.
— Tive um sonho com a Mariana essa noite. Parece esquisito dizer,
mas é verdade. Ela… estava amamentando um bebê, parecia um recém-
nascido. — Assimilo suas palavras, silencioso, não querendo me inclinar a
acreditar em predestinação ou qualquer coisa assim. Deve haver alguma
explicação racional. — E nos últimos tempos, eu venho sonhando sempre
com isso. Ou Mariana está grávida, ou ela está com esse bebê.
Heloísa pisca algumas vezes, querendo afastar as lágrimas de seus
olhos.
— Não quero acreditar nisso, Augusto, mas acho mesmo que é
algum tipo de sinal.
Faço um gesto com a cabeça, lento e afirmativo.
— O que quer dizer?
Ela engole em seco e olha para longe.
— O último desejo dela era que eu cuidasse do meu sobrinho,
apesar… de tudo entre nós. Sinto que devo isso a minha irmã. Com ou sem
você, vou cuidar do Gustavo — diz, a voz meio incerta, mas com uma
pitada de determinação. É como se ela estivesse decidida a isso, mesmo
morrendo de medo.
Olho para a frente, para porta do quarto, e ficamos em silêncio o que
parece ser muito tempo. Não quero me sentir na obrigação de ajudar a
Heloísa, me sentir culpado pelo mal que fiz a Mariana e compensar isso
criando o filho dela com outro homem. Movo a cabeça de um lado a outro e
suspiro, sem saber o que fazer.
Meu Deus, que pedido absurdo, esse da Mariana.
— Eu… não sei se consigo — sussurro, sincero e incerto.
Ao mesmo tempo que quero me juntar a ela nesse absurdo — em
um sentimento confuso de dever e carinho —, quero me afastar dessa
responsabilidade que não cabe a mim.
— Entendo — diz de volta, baixinho. — Mariana queria isso. Você
deve a ela também.
Exaspero com uma lufada entredentes.
— Ela nem me contou que estava doente, que estava grávida — bato
nessa tecla de novo. — E de repente, quer que eu cuide do filho dela?
— É justo — Heloísa argumenta. — Se ela engravidou depois da
separação de vocês, então… pensa que isso não teria acontecido se não
tivesse a traído. Ao menos, se não tivesse contado.
— Vai sempre me condenar por eu ter sido sincero com ela? Por que
achei que ela merecia a verdade?
Heloísa balança a cabeça em negativo, abatida.
— Não estou te culpando, Augusto. Sou a última pessoa aqui com
moral para isso. Só estou apontando um fato. Se aquela noite entre nós…
nunca tivesse existido, provavelmente seu casamento ainda existiria.
— Eu estaria viúvo agora — acrescento, com uma pitada mórbida
de humor e um sorriso forçado.
Sem que eu espere, Heloísa apoia uma mão em minha coxa, em um
gesto amistoso de conforto. Abaixo os olhos para o seu toque, surpreso com
sua atitude que dura só um instante.
— Gustavo não é mesmo sua responsabilidade e vou entender se
não quiser ter contato com ele. Mas eu… vou fazer isso pela Mariana. Só te
peço para pensar na possibilidade com carinho.
— Já ponderou no que isso tudo vai implicar, Heloísa? Eu e você,
cuidando desse menino? — questiono, abaixando o tom de minha voz e
tentando não soar desesperado e dolorido.
Eu queria dizer a mim mesmo que não fico mexido com a ideia de
tê-la por perto, de convivermos. Estaria mentindo se eu dissesse que não
tenho medo de me apaixonar por ela, porque… nos últimos quase dois anos,
eu não tirei a porra daquela noite da minha cabeça. Permanecer longe estava
sendo a melhor coisa em nossas vidas e agora, não sei se consigo ficar por
perto sem me render.
— É por isso que quero que pense muito bem — acrescenta. — Que
pense em toda responsabilidade afetiva e emocional que vai precisar ter
com Gustavo. Ele não é seu filho, temos nossas divergências e teremos que
lidar um com o outro. Não precisamos de uma pessoa ferrada da cabeça
cuidando de um bebê.
Eu rio, sem humor algum.
— Sim, como se você fosse muito mentalmente equilibrada.
Heloísa me olha, furiosa.
— Há dois meses, comecei a fazer terapia.
Pisco duas vezes.
— Sério?
— Minha psicóloga vai aumentar o preço da sessão quando souber
que vou criar meu sobrinho — reclama.
Rio baixinho, agora com humor. Ela me acompanha e me encara
com seus olhos avelãs suaves e amáveis. Não consigo me desprender dela,
de desconectar-me desse olhar. Parece até… o mesmo modo que me olhou
naquela noite em que tudo desandou.
— Pode me dar um ou dois dias para pensar?
Ela acena e se volta para os documentos e fotos de Gustavo sobre a
cama. Heloísa passa um longo tempo ali, observando as fotografias do
menino, com um sorriso carinhoso, um olhar amável como … se tivesse se
apaixonado pelo sobrinho assim que soube da existência dele. E eu fico a
observando durante esse tempo, me esforçando para não ficar encantado por
Heloísa. Não de novo.
Eu me apaixonei pela Mariana e nunca mais olhei para Heloísa com
outros olhos.
Até aquela noite em que tudo desandou.
CAPÍTULO 03

Um pigarro me faz erguer o olhar. Augusto disfarça, fingindo que


não estava olhando para mim enquanto eu observava as fotografias do meu
sobrinho. Ele se vira para a entrada do consultório, onde o médico que deu
a notícia da morte da minha irmã está parado ao lado de outro homem de
meia-idade, jaleco, estetoscópio no pescoço e exames em mãos. Não
demoro a entender que deve ser o neurocirurgião francês que Mariana
trouxe para operá-la, na esperança de salvar sua vida.
Nós nos levantamos ao mesmo tempo para cumprimentarmos o
cirurgião que tentou salvar a Mariana. Ele fala muito pouco português e
precisa da intervenção do colega a maior parte do tempo, que traduz tudo
para nós. Pelos próximos cinco minutos, Étienne Laurent explica como era
o quadro clínico de Mariana, que por conta do avanço da doença, o
tratamento paliativo era o mais indicado, mas que ela insistiu pela cirurgia,
mesmo sabendo de todos os riscos. Então, ele descreve em detalhes sobre a
cirurgia, as complicações e o falecimento dela.
— Sinto muito — deseja, em um português com sotaque. — Eu fiz
tudo o que estava ao meu alcance.
— Sei que fez — acalento e o agradeço em seguida por ter vindo de
tão longe para operar Mariana. Não duvido nada que ela gastou até o último
centavo que tinha para trazê-lo.
Laurent se despede do colega e nos deixa a sós para a leitura do
testamento. Todos os bens ficarão com Gustavo, é claro, e deverão ser
administrados por mim e por Augusto até que ele complete a maioridade.
Mariana gastou boa parte de sua pequena fortuna, que ela juntou como
consultora de imagens de famosos e gente rica, na tentativa de se livrar do
câncer, mas conseguiu deixar uma boa economia para o filho. O carro ela
quer que seja vendido e o dinheiro, guardado em uma poupança no nome do
Gustavo.
Para finalizar, ele expressa os desejos da Mariana de sermos nós os
tutores de Gustavo, e que Augusto adote o menino para que ele tenha um
pai na certidão de nascimento. Olho para ele nesse instante, parecendo
confuso e indeciso.
— Mariana finaliza o testamento — o doutor continua —
expressando que “um dia, Heloísa, espero que perceba, que não seja tarde
demais e que o ame como eu amei, como sempre vou amá-lo”.
Pisco duas vezes sem entender.
— Do que Mariana está falando? — Augusto indaga.
— Não tenho ideia ­— respondo, sincera. — Ela está falando de…?
— Engulo em seco e movo a cabeça em negativo, decidindo não completar
minha sentença. Não, ela não pode estar se referindo ao Augusto.
Talvez o Gustavo?
Será que minha irmã achou que eu seria incapaz de amar meu
próprio sobrinho? Pode ser que ela tenha ponderado que me impondo a essa
“maternidade forçada”, eu fosse desprezar o menino. Ah meu Deus, é claro
que não. Eu já o amo sem nem o conhecer.
— Vocês já decidiram o que vão fazer? — o médico pergunta.
— Já — digo.
— Não — Augusto responde ao mesmo tempo que eu.
Olho para ele, e o doutor olha para nós, confuso.
— Eu sei que era a última vontade da minha ex-mulher, mas…
cuidar de um bebê, que não é nem meu? — Augusto protesta, massageando
suas têmporas. — Preciso pensar. — Uma expiração lenta e pesada escapa
da sua garganta.
— Legalmente — o médico diz —, você não pode negar a tutela.
Pode tentar recorrer, mas acredito que há situações específicas para que o
juiz conceda sua recusa. De qualquer maneira, procure um advogado se
preferir. Enquanto isso, a tutela legítima é da Heloísa, com ou sem
testamento. — Ele olha para mim. — A menos que queira tentar recorrer
dessa decisão também.
Um segundo de silêncio paira sobre nós.
— Não quero — intervenho. — Vou cuidar do meu sobrinho.
Meu coração diz que é a coisa certa a se fazer. Devo isso a minha
irmã e talvez inconscientemente, eu acredite que ter confiado em mim para
cuidar do Gustavo tenha sido seu modo de me perdoar por eu ter dormido
com Augusto. Preciso acreditar nisso, me agarrar a essa ideia para
conseguir trabalhar e lidar com minha culpa.
Passamos mais alguns minutos com o médico, que nos explica mais
detalhes do testamento, que podemos consultar um advogado, se quisermos,
e que apesar do desejo de Mariana, o juiz responsável vai decidir se somos
uma boa escolha para cuidarmos do meu sobrinho. E eu espero que esse
juiz não leve em consideração meu histórico com Augusto.
— Com quem o Gustavo está agora? — pergunto, assim que
encerramos o assunto do testamento.
— Com uma babá na casa dela. — O doutor puxa um pedaço de
folha de caderno com um endereço anotado.
Tomo o papel em mãos e depois, troco um olhar com Augusto, que
tenta ler as direções anotadas.
— Você quer ir lá agora, antes de termos que lidar com as
burocracias do funeral? —pergunta, cauteloso.
Volto meus olhos para o endereço e em seguida, para as fotografias
do menino.
— Quero. — Olho para Augusto. — Você está com seu carro? —
Ele assente e diz que nos leva até lá. — Tudo bem. Eu só preciso comunicar
o restaurante sobre a Mariana, sobre o bebê. — Suspiro e passo a mão pelos
meus cabelos. — Provavelmente, vou ter direito a licença maternidade, não
é?
Augusto me dá um sorriso pequeno e depois, foca nas fotografias
por um segundo. Seus olhos se erguem para o doutor e ele agradece por
tudo. Deixamos o consultório caminhando lado e a lado e nunca me senti
tão claustrofóbica. Abraço a pasta com os documentos de Gustavo e inspiro
fundo o ar do lado de fora, precisando disso. Augusto vai buscar o carro —
estacionado a poucos metros dali — e aproveito o momento para ligar para
o meu trabalho e contar sobre a mudança que minha vida toda vai tomar.

— Nervosa? — Augusto pergunta, parado ao meu lado, os olhos


verdes no interfone.
Abaixo a cabeça para a calçada e controlo minha respiração.
— Por que eu estaria? — zombo. — Só porque vou conhecer o
sobrinho que eu nem sabia que existia?
Levanto o rosto em sua direção com um sorriso irônico. Augusto
sorri de volta e move a cabeça de um lado a outro. Um segundo depois, o
portão de entrada se abre, revelando uma garota entre dezoito e vinte anos
que atendeu o interfone pouco tempo atrás e se apresentou como a babá.
Nós a cumprimentamos e, sem demora, ela nos encaminha para dentro. Eu
paro no limiar da porta de entrada — sentindo Augusto esbarrar em mim
logo atrás — porque preciso de um instante.
— Você está bem? — questiona, sua voz bonita soando na minha
nuca e mexendo com minhas bases.
— Uhum — murmuro. Expiro, trêmula, e dou um passo para dentro.
A sala da casa de Mariana é espaçosa e aconchegante. Há um jogo
de sofá, prateleira de livros, televisão e uma lareira. O filho está dentro de
um cercado, rodeado de alguns brinquedos e almofadas. A babá estica os
braços para pegá-lo e ele não demora a aceitar o colo.
— Mamã… — Gustavo exclama ao me ver, forçando o corpo para
frente, em minha direção.
Meu coração, de repente, erra uma batida. Um sentimento diferente
corta meu organismo de uma ponta a outra, uma sensação quase primitiva,
como se isso, seja lá o que for, já estivesse dentro de mim. Sou a última
mulher do mundo a admitir que existe um instinto maternal em nós, mas
não posso negar o sentimento.
— Ele… ele me chamou de mamãe — murmuro, tomando-o nos
meus braços.
— Claro que chamou — Augusto intervém, ao meu lado. — Você e
Mariana são idênticas.
Assinto, porque me esqueci desse detalhe. Gustavo apoia as duas
mãozinhas em minhas bochechas, em um gesto carinhoso, e balbucia mamã
outra vez. Sorrio para ele, um pouco emocionada, e deixo um beijo no seu
rosto redondo. A babá se retira, nos deixando mais à vontade depois de nos
oferecer suas condolências, e agradecemos o momento de privacidade.
Sento-me no sofá e coloco o menino sobre minhas coxas. Augusto segura
na mão dele, chamando sua atenção.
— Oi, Gustavo.
De primeira, o bebê se acanha e deita a cabeça no meu peito, a
mãozinha na boca, os olhos atentos no homem ao seu lado. Um sorriso
gostoso surge em seus lábios pequenos um segundo depois, quando
Augusto brinca com sua barriguinha.
— Viu só? Você não é um bebê rabugento — diz, segurando na
mãozinha dele agora. Ao erguer os olhos para mim, murmura: — Ele é…
uma graça.
Sorrio, precisando concordar, e acaricio os cabelos de Gustavo,
quase na mesma tonalidade dos de Augusto. Por um segundo, desconfio
outra vez se esse menino não pode mesmo ser filho dele. Afasto esse
pensamento da cabeça, porque… ele garantiu que não é e não vejo motivo
para negar a paternidade do menino. Além do mais, Mariana teria dito, não
teria? Não faz sentido minha irmã esconder o menino do próprio pai e pedir
que cuidasse dele depois da morte dela.
— A minha rotina vai virar de ponta-cabeça — sussurro, colocando
minha cabeça no lugar e pensando com mais clareza. — Vivo para aquele
restaurante e agora… vou ter que me preocupar com um ser humano.
Augusto não diz nada por um instante.
— Ainda pode voltar trás.
Movo a cabeça de um lado a outro e aperto Gustavo entre meus
braços.
— Não vou fazer isso. Era o último desejo da minha irmã e quero
acreditar que… era o jeito dela de me perdoar. — Ele abaixa a cabeça,
desviando o olhar do meu, e, com cuidado, arrisco perguntar: — Mariana
nunca te perdoou também, não é?
Augusto não olha para mim por muitos segundos e quando diz,
continua sem fazer contato visual:
— Mariana me perdoou.
Sinto como se tivessem cravado uma faca no meu coração e quero
acreditar que ele está dizendo apenas para me magoar, para eu me remoer
um pouco mais em culpa porque fui o pivô de sua separação, como gosta de
apontar. Ele continua ressentido comigo, ainda me culpa, e só quer me
machucar, não quer?
— Ela… te perdoou?
Augusto ergue o rosto em minha direção.
— No dia em que assinamos o divórcio, Mariana disse que me
perdoava. Não íamos reatar, mas ela… me perdoava.
Molho o lábio inferior e tento não me sentir magoada ou com raiva.
Eu me agarro a pequena faísca de esperança de que, de algum modo, fui
perdoada. Talvez minha irmã não tenha tido tempo de me dizer, mas quero
acreditar nisso. Pisco um par de vezes, fazendo derramar uma lágrima
teimosa. Antes que eu tenha tempo de limpá-la, sinto o polegar dele na
minha pele.
— Mariana não teria te pedido que fosse a tutora do filho dela se
não tivesse te perdoado também, Heloísa — murmura, brando. Não sei se
Augusto acredita nisso de verdade ou se está dizendo apenas para que me
sinta melhor.
Seu toque se afasta do meu rosto e ele me oferece um sorriso
compassivo.
— Acho que tem razão — balbucio, embora eu tenha minhas
dúvidas acerca disso.
Mariana escreveu um testamento e o finalizou com “um dia,
Heloísa, espero que perceba, que não seja tarde demais e que o ame como
eu amei, como sempre vou amá-lo”, mas não podia rabiscar algumas
palavras a mais para acalentar meu coração cheio de remorso? Então,
duvido muito que tenha me perdoado de verdade e vai ser sempre um
mistério os motivos que a levaram a pedir que eu e Augusto tomássemos
conta de Gustavo.
Dois longos minutos em silêncio se passam, Augusto interagindo
com Gustavo, que, aos poucos, se simpatiza e se anima com ele. Não faço
nada além de assisti-los, de sentir o meu coração aquecido, de apreciar o
cheirinho de bebê e de estranhamente estar feliz em meio ao meu luto.
— Como faríamos isso? — Augusto questiona, me encarando.
Gustavo se inclina em sua direção, querendo o colo dele, e eu o
entrego sem resistência. Augusto o coloca em pé sobre suas coxas e o
menino logo é atraído por uma corrente de prata delicada no pescoço de
Augusto.
— Como faríamos o quê? — devolvo, meio confusa.
— Cuidar do Gustavo. ­— Engole em seco e expira devagar. —
Faríamos como um casal de divorciados, tipo… um de nós o visita no final
de semana enquanto o outro cuida dele em tempo integral? Dividimos a
tutela ou… moramos na mesma casa?
Analiso seu questionamento porque não parei para pensar por esse
ângulo. Mariana não deixou nada do tipo detalhado, então entendo que nós
dois decidimos como faremos isso funcionar. Um frio na barriga ameaça
embrulhar meu estômago porque eu passei os últimos dezoito meses
fugindo desse homem, mantendo distância e fingindo que ele não existiu
em minha vida, mas agora…
— Você não precisava de um ou dois dias para pensar? — sussurro
de volta, não querendo abordar o assunto neste momento.
Augusto volta sua atenção para Gustavo, ainda em pé sobre suas
pernas, inquieto e curioso com a corrente que tem um pingente delicado de
cruz. Sem um Jesus pregado. Apenas a cruz.
— Não preciso mais — murmura, a voz rouca. — Não quero tomar
uma decisão baseada em obrigação, como se eu devesse algo a Mariana, e
não estou tomando. — Seus olhos se direcionam para o menino com um
brilho diferente. — Acredite, não é por causa disso que decidi assumir esse
menino.
Abro um sorriso pequeno, um pouco admirada com sua decisão
rápida. Até trinta minutos atrás, Augusto estava indeciso sobre cuidar de
Gustavo, mas bastou cinco minutos na companhia dele…
Espero de verdade que não seja uma decisão precipitada — e vale
para mim também.
— Você e minha irmã planejavam um bebê, não é?
Ele acena, quase imperceptível.
— Nossos planos era quando ela completasse trinta — sussurra. —
Teríamos seis anos de casado e acreditávamos que era… um bom tempo
para trabalharmos e termos uma condição financeira legal para criar um
bebê. Te contei sobre isso naquela noite.
Gustavo olha para mim e sorri, os dentinhos à mostra, e então estica
os braços, me querendo. Eu o pego de volta e mergulho meu rosto na pele
macia e cheirosa do seu pescoço.
— Mas aí… — Augusto continua — resolvemos esperar mais um
ano e veio a crise dos sete que nunca superamos. Mariana me pressionava a
um bebê, mas eu sentia que ela queria um filho para tentar consertar nosso
casamento, entende? — menciona, como contou meses atrás.
Encontro seus olhos, um pouco mais abatidos que o comum.
— Sabe que foi por causa disso que discutimos no Natal.
Cesso nosso contato visual, como uma medida para esquecer que
Augusto discutiu com a mulher naquela noite e, na mesma noite, nós
transamos depois de ele aparecer no bar que eu trabalhava e despejar a briga
toda sobre mim.
— Então… — digo com cuidado. — Você tem certeza?
— Tenho — responde, sem hesitar. — Como vamos fazer?
Penso a respeito por um instante. Eu tenho uma rotina irregular no
restaurante. Às vezes, tenho horário para entrar, mas não para sair. É claro
que as coisas vão ter que mudar com a chegada de Gustavo e não sei como
minha gerente vai lidar com isso. Nem sei se ela pode me demitir,
entretanto, terei que encontrar uma maneira de flexionar meu horário a
partir de agora, caso eu ainda tenha o meu emprego.
Já Augusto… ele é engenheiro e trabalha em horário comercial,
além de comandar a empresa do avô. Se está disposto a cuidar do bebê, ele
também terá de fazer algumas flexibilizações. Teremos que conversar com
calma sobre os horários, se vamos inscrevê-lo em uma creche, se vamos
dividir os custos de uma babá… Suspiro, já sentindo minha cabeça latejar,
mas não pretendo voltar na minha decisão.
— Alguma sugestão? — pergunto de volta.
Ele reflete.
— Acho que… até nos habituarmos a uma nova rotina e com o
bebê, poderíamos, sabe?, morar na mesma casa.
Essa, definitivamente, não é uma boa ideia. Meu coração palpita só
de pensar de convivermos sob o mesmo tempo, mesmo que por um tempo
limitado, como ficou subentendido em sua sugestão. Por outro lado,
Augusto tem razão. A última coisa de que Gustavo precisa agora é de uma
rotina bagunçada. Mesmo que a gente decida por compartilhar a tutela,
talvez não seja adequado para seu desenvolvimento ficar de um lado a
outro.
— Vai ser mais fácil, Heloísa… — argumenta com um sussurro. —
Até para dividirmos nossas obrigações. Pelo menos por enquanto.
Assinto devagar, inclinada a aceitar sem pensar muito a respeito, ao
mesmo tempo que meu peito oprime uma sensação sufocante de não querer
isso de jeito nenhum.
— Quero pensar — digo e aperto o menino nos meus braços. —
Tudo bem pra você?
— Claro que sim. — Augusto me dá um sorriso compreensível e
olha para Gustavo, voltando a brincar com ele.
No fundo do meu coração, eu já sei que decisão vou tomar.
Mesmo que seja a pior de todas.
CAPÍTULO 04

Estralo os dedos das minhas mãos, um pouco nervoso. Eu os vi pela


última vez no funeral de Mariana, três dias atrás, mas nós não conversamos
por muito tempo. Eles me desejaram condolências e me cobraram por uma
visita, porque o filho caçula deles já fazia meses que não via os pais.
— Parece tenso — Heloísa diz ao meu lado, enquanto o elevador
nos leva até a cobertura do edifício de luxo que o casal Monteiro mora.
Aperto a alça da bolsa de bebê trespassada em meu ombro e suspiro. —
Você ainda tem uma relação complicada com seus pais?
Engulo em seco e mantenho os olhos nos indicadores dos andares.
Ouço um resmungo trêmulo de Gustavo, que pegou no sono no colo da tia.
Ele está encaixado em um canguru, seu rostinho corado escondido no tórax
de Heloísa.
— Tenho.
Heloísa conhece o motivo das minhas divergências com meus pais e
é uma das poucas pessoas a saber a verdade sobre as sujeiras que Saulo e
Cassandra escondem. Boa parte dos nossos amigos não têm ideia do
segredo sujo que minha família carrega. Nem sempre eu tive uma relação
ruim com eles. Só passamos a nos estranhar quando descobri que minha
mãe abafou um caso do meu pai com uma garota de dezesseis anos usando
meu irmão mais velho como bode expiatório.
— Então por que estamos aqui? Você não tem que se submeter a
essa situação.
— Cassandra me pediu para conhecer o neto.
— Neto? Cassandra Monteiro vai mesmo considerar uma criança
que não tem o sangue dela como neto? Uau. Parece que ela está evoluindo.
Abro um sorriso pequeno e me viro em sua direção. Minha mãe é
uma das pessoas mais conservadoras e tradicionais que eu conheço — o que
muito explica suas tentativas de manter as aparências de família perfeita a
ponto de abafar um caso problemático dentro de casa — e me surpreendeu
também o fato de ter me pedido para conhecer Gustavo, de ter o
mencionado como neto — por livre e espontânea vontade. Acabei
concordando em trazê-lo sem saber exatamente o motivo.
— Minha mãe gostava muito da Mariana. Talvez seja por isso.
Não menti. Cassandra Monteiro adorava a nora e vivia dizendo que
ela era a filha que não teve. Acredito muito porque Mariana concordava e
seguia alguns ideias conservadores que agradavam minha mãe — queria ter
filhos e uma família grande, gostava de afazeres domésticos apesar de
trabalhar fora, se dedicava ao nosso casamento, odiava roupas muito
chamativas ou “vulgares” e tinha um aspecto, segundo a sogra, de “mulher
de verdade”. Era elegante, discreta, recatada e do lar. Mas isso era mais uma
parte da personalidade de Mariana do que algo que ela absorveu de um
sistema opressor. Ela não gostava de roupas curtas não porque era coisa de
mulher vulgar, mas porque simplesmente não gostava de mostrar o corpo e
se sentia melhor dentro de calças e blazers sofisticados.
— Sorte da minha irmã — Heloísa diz quando as portas do elevador
se abrem para a cobertura —, porque Cassandra sempre me detestou. —
Rio baixinho e caminhamos pelo corredor até a porta de entrada. — Você
não acha que sua mãe vai querer tomar o Gustavo de mim, vai? — indaga.
É uma pergunta que me pega, porque… pode acontecer. Se eu
conheço bem minha mãe, não me espantaria se ela tentasse ficar com a
tutela do menino. Penso em dizer para ela não se preocupar quando a porta
se abre, revelando, do outro lado, Cassandra Monteiro em um conjunto
preto elegante, joias no pescoço e nas orelhas, maquiada e com o cabelo
loiro impecavelmente preso em um penteado complexo.
— Augusto… — sussurra e se aproxima, tomando-me em um
abraço rápido e sem muito afeto. — Cinco minutos atrasados, querido. —
Minha mãe afaga meus braços e olha para mim.
Aponto para o bebê no canguru.
— Sou pai de família agora — brinco, justificando o pequeno atraso
e forço um sorriso.
Cassandra se volta para Heloísa, um pouco tensa ao meu lado.
Minha mãe tenta ser simpática, mas fica claro que ela preferia que minha
cunhada não estivesse aqui.
— Boa noite, Heloísa — cumprimenta e dá um passo à frente,
amaciando os cabelos de Gustavo. ­— Por que não o trouxeram em um
carrinho? Olha como ele está dormindo desajeitadamente. Pode ser
desconfortável para o meu neto — critica.
É claro que ela ia criticar.
— Mãe, por favor — repreendo.
— Por que não trouxeram um carrinho? — insiste, nos dando
espaço para entrar.
— Gustavo não gosta muito do carrinho — Heloísa se intromete —
e prefere o colo. Acho que se sente mais seguro e confortável.
Mamãe encosta a porta, pedindo a bolsa de bebê e meu casaco para
pendurar no cabide no hall de entrada. Ela pendura a bolsa no próprio
ombro e abana o sobretudo antes de pendurá-lo.
— Já vi que você vai educar esse menino da maneira mais errada
possível — condena, virando-se para nós. — Não leve para o lado pessoal,
Heloísa, mas acredito que sem minha ajuda, não será uma boa mãe para
Gustavo. Diferente da Mariana, que Deus a tenha. Ela sim, teria sido uma
mãe excelente.
Vejo quando todos os músculos do rosto de Heloísa se tensionam,
como se ela estivesse se segurando para não mandar minha mãe à merda.
Tudo que faz, então, é manter o sorriso falso e a paciência.
Em uma atitude impensável, eu passo um braço em torno da cintura
da Heloísa, que parece deixar tanto ela quanto minha mãe surpresas.
— Ainda bem que a Heloísa não vai educar esse menino sozinho.
Cassandra amplia o sorriso.
— Ainda bem que é você que também estará na criação do Gustavo.
Tenho certeza de que concorda comigo que dar muito colo a uma criança a
deixa mimada.
Movo a cabeça de um lado.
— Na verdade, não. Se Gustavo se sente mais bem acolhido, seguro
e aconchegado no nosso colo, então nós daremos colo. Ele não vai ficar
mimado, vai se sentir amado, mãe.
Heloísa ri baixinho, adorando que eu tenha contrariado Cassandra.
Ela empina o queixo, com ar de superioridade, e nos encaminha até a sala
de jantar, onde meu pai e meu irmão mais velho nos esperam, acomodados
em sofás diferentes — distante o suficiente um do outro para evitar
conflitos.
— Me diz que você pode beber — Conrado, meu irmão, diz,
levantando-se do seu lugar e vindo até nós. — Vai precisar se quiser
sobreviver a esse jantar.
— Conrado, tenha modos — nossa mãe censura.
Eu rio enquanto ele me abraça apertado e sussurra um “você sabe
que não menti” em meu ouvido.
— Confesso que estou surpreso que tenha vindo — eu digo,
afastando-me.
Ele se vira para Heloísa, cumprimentando-a com um beijo no rosto,
e depois busca por Gustavo, ainda nocauteado no canguru.
— Meus pais não são minhas pessoas favoritas no mundo, mas acho
que conhecer o filho adotivo do meu irmão vai compensar o desastre dessa
noite.
Minha mãe resmunga alguma coisa e se retira, dizendo que vai
guardar a bolsa do bebê no quarto de hóspedes. Conrado dá de ombros, sem
se importar em estar deixando o clima desse encontro em família
desconfortável. Na verdade, ele mal começou. Meu pai se aproxima,
repreendendo o filho mais velho por sua inconveniência. Por fim, troca
algumas palavras comigo e com Heloísa e um abraço rápido.
— Ele se parece com você — Saulo aponta, acariciando o rosto
sereno de Gustavo. — Tem certeza de que não é seu?
— Tenho — respondo. — Mariana não esconderia de mim.
Talvez… em vida, mas por que ela levaria um segredo assim para o túmulo
ao mesmo tempo que me pedia para adotar o menino?
— Faz sentido — papai concorda. — Mas não muda o fato de que
Gustavo se parece com você. Não concorda, Helô?
Ela abaixa os olhos para o menino e o analisa por um segundo.
— É… lembra um pouquinho.
De repente, meu pai se vira para Conrado, em um gesto que parece
uma pergunta implícita.
— Ah, qual é? — Ele ergue as mãos e solta uma risada sem humor.
— Em primeiro lugar, eu não chegaria perto da Mariana, mesmo depois do
divórcio. Em segundo lugar, na hipótese improvável de eu ter dormido com
ela, se Gustavo fosse meu, eu assumiria. — Seus olhos escurecem um
pouco e um sorriso sacana surge nos seus lábios quando menciona, sem
tirar os olhos do meu pai: — Diferente de você, eu não jogaria a
paternidade de um filho em outro homem.
Minha cunhada pigarreia enquanto eu sussurro para os dois
acalmarem os ânimos. Meu pai finge que não escutou a alfinetada do filho e
nos oferece um lugar no sofá, desligando a televisão para que possamos
conversar. Minha mãe surge em seguida e se senta ao lado do marido,
enquanto Conrado prepara algumas bebidas no bar para nós. Heloísa tira
Gustavo do canguru — eu a ajudo a desamarrar o acessório de suas costas
— e o deita ao seu lado no sofá, a cabeça dele apoiada em suas pernas,
enquanto Cassandra informa:
— O jantar vai ficar pronto em breve. Não tivemos a oportunidade
de conversar, Augusto. — Ela apoia mão delicada na coxa do meu pai.
É, não tivemos. Só faz quatro dias que recebemos a notícia da morte
de Mariana e, de lá para cá, com nossas agendas adiadas, tudo que fizemos
foi cuidar dos pormenores do funeral, velar o corpo da minha ex-mulher e
enterrá-la. Gustavo passou a maior parte do tempo sob os cuidados da babá
em Santa Mônica. Hoje à noite, pela primeira vez, estamos cuidando dele
de verdade.
— Foi para isso que pediu para que eles viessem jantar aqui, não?
— Conrado alfineta, de costas para nós, ainda preparando nossas bebidas.
Ele olha por cima do ombro para mim e para Helô, em uma solicitação
silenciosa.
— Chá gelado — peço.
— Suco de laranja, por favor — Heloísa completa.
Meu irmão assente e continua com sua tarefa. Mamãe se levanta do
seu lugar e toma o bebê nos braços, retornando para lá e o mantendo em seu
colo, os olhos amorosos sobre o menino. Sinto meu coração gelar por um
segundo, mas me acalmo sem demora. Ao menos, Cassandra não vai
rejeitá-lo.
— Você vai registrá-lo como seu filho? — meu pai pergunta.
— Pretendo conversar com um advogado antes. Saber se não vou ter
nenhum problema caso o pai biológico resolva aparecer e exigir direitos
sobre o garoto. Se não tiver… qualquer obstáculo nisso, vou registrá-lo.
— E como pretendem criar esse garoto? — É minha mãe que quer
saber, sua voz um tom de julgamento. — Não acho que é uma boa
influência para ele qualquer outra imagem que não a de uma estrutura de
família convencional.
Heloísa se segura para não soar inconveniente e dar uma resposta
atravessada que minha mãe merece. E eu sei o motivo do seu silêncio. Não
é porque ela quer demonstrar respeito e não estragar o jantar que mal
começou, mas porque Heloísa tem medo de que minha mãe tente algo
contra nós. Ainda teremos que passar pelo juiz para termos a tutela
definitiva de Gustavo, e minha mãe pode, com muita facilidade, tomá-la de
Heloísa. Tomá-la de nós. Estou pensando em responder quando meu irmão
ri sem discrição.
— Deus me livre a família tradicional — Conrado brinca, vindo até
nós com a bandeja de bebidas. Heloísa alivia a tensão e ri, aceitando seu
copo de suco. — Gustavo vai ter um lar, saúde, educação e pessoas que o
amam cuidando dele. É só o que importa, certo?
— Gustavo precisa de uma figura paterna e materna — minha mãe
insiste e busca aprovação do esposo. — Não é, Saulo?
Meu irmão para com a bandeja de frente para os meus pais. Minha
mãe escolhe o martini, e papai opta pelo uísque. Os olhos de Conrado
fixam-se em Saulo. Nisso, eu sei que vem outra provocação.
— Perguntou ao pai do ano.
— Conrado, já chega — Cassandra adverte, a voz firme e
impiedosa.
Ele se afasta com a bandeja e retorna com sua própria bebida —
uma cerveja em lata. Conrado se senta no sofá vazio, se recusando a ficar
perto dos nossos pais. Eu tenho uma relação complicada com eles desde que
descobrimos os podres da família, mas meu irmão… ele foi o mais atingido
e enganado nessa história toda. Minha relação complicada com meus pais
não chega nem perto da relação complicada deles.
— De qualquer maneira — Heloísa intervém, tentando abrandar os
ânimos —, Conrado tem razão. Não importa qual seja a estrutura familiar
que Gustavo vai ter. O que importa é que vai ser amado e cuidado.
— Estudos apontam o contrário, querida — Cassandra insiste.
Eu quero rir e escondo minha vontade tomando minha lata de chá
gelado. Conrado não se segura e solta uma gargalhada, abafada logo em
seguida pela boca da garrafa contra seus lábios.
— É importante crescer com um pai e com uma mãe — completa,
enviando um olhar atravessado ao filho mais velho.
— Se — Conrado se intromete — for um filho legítimo. Se for um
filho bastardo entre um homem de meia-idade rico com uma garota de
dezesseis anos, você deixa a mãe entregar para a adoção. Não sem antes
tentar jogar a culpa em outra pessoa.
Meu pai perde a paciência e esbraveja:
— Já chega, Conrado! — Seu grito assusta Gustavo, que acorda
chorando. — Ou para de me provocar, ou te coloco para fora da minha casa.
Você entendeu?
Heloísa corre pegar o sobrinho e começa a acalmá-lo. Minha mãe
recrimina o filho mais velho com “está vendo o que você fez?!”, e então, os
ânimos começam a ficar exaltados. Eu levo os dois para longe da confusão
da minha família, guiando-os até o quarto de hóspedes. Fecho a porta atrás
de nós e, por um segundo, apenas assisto Helô acalmando o Gustavo. Ela
sussurra para ele, balançando-o devagar, como se já soubesse desde sempre
fazer isso.
— Pode pegar a chupeta dela para mim? — pede.
Eu volto ao mundo real e corro até a bolsa sobre a cama, revirando-a
em busca da chupeta. O menino se acalma um pouco mais, sugando com
força o bico de plástico.
— Eu não deveria ter vindo ­e ter trazido vocês — digo, arrependido.
Heloísa balança a cabeça em negativo e se senta na cama,
convidando-me a me sentar ao seu lado. Eu o faço, suspirando lentamente.
— Esqueci que o Conrado pode ser um pouco inconveniente, mas o
problema não é ele.
— Tenho minhas dúvidas. — Abaixo os olhos e seguro nas mãos de
Gustavo, que é atraído pelo meu gesto e olha para mim, meio lacrimejante.
— Sei que ele tem todo direito de continuar ressentido com meus pais,
mesmo depois de cinco anos, mas… poxa, meu irmão podia ter se
esforçado um pouco mais, pelo menos por hoje.
O silêncio entre nós permite que a gente escute a discussão dos três
na sala.
— Não o julgo — Heloísa sussurra e sorri quando Gustavo fecha
com força a mão em torno do meu dedo indicador. — No lugar dele, eu
também infernizaria meus pais.
Rio baixinho e ergo os olhos na sua direção. Meu coração erra uma
batida ao vê-la de perfil, à meia-luz do quarto, o rosto inclinado para baixo,
admirando o bebê no seu colo. Ela está mesmo muito disposta a cuidar dele
e se apegou ao sobrinho muito rápido.
De repente, ela ofega.
— O que foi?
Heloísa pisca e continua na mesma posição, sua postura mudada,
parecendo assustada com alguma coisa. Ela acaricia os cabelos de Gustavo
e se inclina, deixando um beijo nas bochechas do menino, bem mais calmo
agora.
— Não é nada. Foi só… uma sensação de déjà-vu. — Heloísa se
vira para mim e seus olhos ficam presos nos meus. Nesse pequeno instante,
prendo a respiração, sem entender o sentimento que atravessa minha pele.
— Você já teve um? — murmura, as íris avelãs se desviando rapidamente
para os meus lábios.
— Algumas vezes.
Gustavo se remexe no meio de nós e resmunga, incomodado com
alguma coisa. Heloísa confere a fralda e constata que precisa trocá-la. Eu
me divirto com ele nesse momento. O menino sorri para nós o tempo
inteiro, bate as pernas e se remexe na cama, atraído pelos travesseiros e
almofadas. Eu até bato de leve com um deles em seu rosto, o que o faz
gargalhar mais.
— Pare, Augusto! — Heloísa exige, empurrando-me com o quadril.
— Ele está se divertindo — protesto e o golpeio de leve com o
travesseiro outra vez. Gustavo solta outra gargalhada gostosa, que infesta o
quarto inteiro.
— Sim, e eu não consigo prender a fralda por conta disso!
Eu me deito na cama, de frente para o menino, e converso com ele
até Heloísa terminar de trocá-lo. Descarto a fralda no banheiro e estou
terminando de juntar os produtos de bebê e colocá-los na bolsa quando a
porta se abre.
— Oi, pessoal — Conrado cumprimenta, parado no limiar. — O
Gustavo se acalmou?
— Sim — respondo, pegando o menino em meu colo, que pede por
mim agora. — Vocês também se acalmaram?
À meia-luz do quarto, vejo a sombra de um sorriso nele.
— Papai quase partiu para cima de mim, mas, sim, nós nos
acalmamos. — Conrado molha o lábio inferior e suspira. — Me desculpem.
Eu não queria ter assustado o garoto.
— A culpa não foi sua — Heloísa intervém. — Não foi você quem
gritou.
— Foi o meu pai, que não teria perdido a paciência comigo se eu
não o tivesse provocado.
— Não esquenta, Conrado. — Meu irmão olha para mim,
verdadeiramente sentido pela situação. — Já passou. Só… tenta segurar sua
onda com o papai. Pelo menos, por essa noite.
— Só porque o caçulinha está pedindo — debocha e indica com a
cabeça. — O jantar já está na mesa.
Conrado vira nos calcanhares e nos deixa a sós. Ajeito Gustavo em
meu colo e ele, como se tornou o seu costume, pega na minha corrente de
prata e brinca com ela. Muitas vezes, preciso impedir que coloque a cruz na
boca.
— Pronta para um pouco mais da minha família disfuncional?
Heloísa ri e move a cabeça de um lado a outro.
— Como a Mariana aturava isso tudo?
— Acho que ela me amava.
Sem querer, eu crio uma tensão insólita entre nós. Heloísa desvia o
olhar, um sentimento de culpa e arrependimento evidenciado em toda a sua
postura. Dou um passo em sua direção e jogo um braço em torno dos seus
ombros.
— Eu sei que ainda tem que lidar com seus sentimentos e sua culpa
— sussurro, preso nos seus olhos. — Tal qual como eu. — Ela sorri, triste,
e mantém nosso contato visual. — Mas podemos, só por essa noite, tentar
esquecer todas as merdas que já aconteceu nessa família?
Heloísa me dá um sorriso mais amplo agora.
— Só porque o caçulinha está pedindo.
CAPÍTULO 05

De volta à sala de jantar, a mesa já está posta com delicadeza e


fartura. Conrado está distante dos pais, enquanto cada um deles ocupa uma
das cabeceiras. Cassandra colocou uma cadeira especial para Gustavo logo
à sua direita e, por mais relutante que eu esteja de ficar longe do menino,
acalmo meu coração porque Augusto vai se sentar perto dele. O lugar que
me resta é ao lado de seu irmão mais velho.
— Eu quero retomar o assunto de minutos atrás, antes de Conrado
nos atrapalhar — a matriarca profere, apontando para a comida sobre a
mesa em um gesto de permissão para nos servirmos. — É do meu neto que
estamos falando, então eu me preocupo.
Sinto que Conrado se segura para não soltar outra alfinetada.
Quando ele se vira para mim, entregando-me uma cesta com pedaços de
pão, vejo um sorriso irônico. Movo a cabeça de um lado a outro e ele pisca
para mim, como se compartilhássemos um segredo. Aceito sua oferta e me
sirvo, ouvindo Augusto responder:
— Ainda estamos conversando sobre o que vai ser melhor para nós
e para o bebê.
— Você sabe o que é melhor — Cassandra alega, servindo um prato
ao marido. — Insisto na estrutura de pai e mãe, Augusto. Você deveria se
casar de novo, arranjar uma boa moça que faça o papel de Mariana, que seja
a mãe do Gustavo.
Conrado vira uma dose de vinho goela abaixo, claramente se
contendo para não soltar qualquer ofensa à mãe, e tudo que consigo é deixar
escapar uma risada inconformada, meu prato parado a meio caminho da
mesa. Meu Deus, Conrado tinha razão. Eu preciso beber se quiser aturar o
resto dessa noite. Augusto olha para mim e parece prestes a responder
quando eu passo à frente:
— Gustavo não precisa de uma mulher que faça o papel de mãe
porque eu vou ser a mãe dele.
Cassandra emite uma risada graciosa e ajusta o guardanapo de pano
sobre seu colo.
— Tenho minhas dúvidas se vai se sair bem.
Desenrolo os talhares com força, mantendo todos os meus nervos no
lugar.
— Mãe — Augusto intervém com um suspiro —, era desejo da
Mariana que a irmã e eu cuidássemos do Gustavo. Não vou contrariar o
último pedido dela. E mesmo que não fosse essa a questão, não preciso
arranjar outra esposa ou uma mãe para o garoto. Heloísa é muito capaz de
cuidar do sobrinho.
Seus olhos verdes se voltam para mim e não sei como reagir ao fato
de Augusto sair em minha defesa. Eu me sinto comovida com sua atitude e
ofereço um sorriso de agradecimento.
— Augusto tem razão, Cassandra — Saulo concorda, dando uma
garfada em sua comida. — Eles são dois adultos responsáveis que sabem o
que estão fazendo.
Os olhos frios de Cassandra se direcionam para mim, um sorriso
forçado nascendo em seu rosto.
— Eu duvido que uma mulher que destruiu o casamento da própria
irmã seja uma adulta responsável que sabe o que está fazendo.
As lágrimas se acumulam nos meus olhos na mesma hora e toda a
vontade que tenho é de sair daqui. Em um gesto automático, ignorando o
sussurro de Augusto para mim, eu me levanto, arrastando a cadeira sobre o
piso de linóleo. Gustavo, comendo seus legumes cozidos, ergue os olhinhos
e estica o braço em minha direção.
— Mamã…
Meu peito se aperta em uma dor sufocante. Eu não sou a mãe dele e,
por um segundo de insanidade, quero concordar com Cassandra, quero
concordar com ela de que não vou ser boa para Gustavo. Como eu poderia?
Como a mulher que dormiu com o marido da irmã gêmea pode ser uma boa
pessoa, uma boa mãe?
— Nós vamos embora — Augusto determina, caminhando até o
bebê e o desamarrando da cadeira. — Foi um erro ter vindo.
— Augusto, por favor — Saulo tenta apaziguar a situação —, sua
mãe está apenas preocupada.
— Dispenso esse tipo de preocupação.
Ele olha para mim, e ainda estou parada no mesmo lugar, incapaz de
reagir. Em qualquer outro momento, eu já teria avançado no pescoço de
Cassandra ou, no mínimo, dado a resposta que ela precisava, mas não
consegui fazer nada além de me levantar.
— Me desculpe — Cassandra se redime, mas não me soa sincera. —
Não era minha intenção ofender.
Solto uma risada sem humor.
— Era, sim — respondo, por fim, a voz profundamente magoada.
Ela fica cabisbaixa, parecendo entristecida.
— Tudo bem — diz, empinando o nariz para mim. — Você acha que
sou uma megera sem coração, não é? Não me culpe por eu ainda estar
furiosa com você, por ter dormido com Augusto e o separado de Mariana,
minha nora que eu muito estimava, que agora está morta.
A culpa entala na minha garganta e a essa altura, Augusto já está do
meu lado, prestes a ir embora sem nem se preocupar de pegar a bolsa de
Gustavo. O menino parece manhoso e pede por mim, inclinando-se
desesperadamente em minha direção. Eu o agarro ao meu corpo e o abraço,
procurando um lugar de refúgio neste ato. O “mamã, mamã” que ele
ronrona e seus bracinhos entornando meu pescoço acalmam um pouco o
meu coração e me mantém no controle da situação.
— Diz como se eu não me arrependesse amargamente todos os
malditos dia da minha vida por ter feito o que fiz — sussurro, minha voz
embargada. — Como se eu sentisse orgulho de ter dormido com Augusto.
Não sinto. Se pudesse mudar o passado, eu mudaria, mas não posso. E por
mais que eu tenha errado, isso não te dá o direito de apontar um dedo na
minha cara e me julgar.
— O casamento do Augusto só acabou…
— Chega, mãe — Augusto se intromete, impaciente. — Heloísa não
fez nada sozinha, pare de culpá-la e pare de aliviar o meu lado! —
Cassandra está para argumentar, mas o filho não a deixa continuar: — Não,
ela não se aproveitou que eu estava fragilizado. Pare de aliviar o meu lado!
Ele ofega, parecendo mais cansado psicologicamente do que
fisicamente.
— Por favor, fiquem — pede, a voz mansa e controlada, mantendo a
postura arrogante. — Mal tive tempo de conhecer meu neto e não quero
intrigas entre nós.
Augusto olha para mim e move a cabeça de um lado a outro, me
aconselhando que não é uma boa ideia dar ouvidos a Cassandra Monteiro.
Se ela não quisesse intriga, não estaria tentando me diminuir o tempo
inteiro desde que cheguei.
— Eu vou me comportar — promete.
Afago as costas de Gustavo e procuro por Conrado, por qualquer
motivo que seja. Ele me olha de volta, a taça de vinho na altura dos lábios, a
expressão de quem não estaria aqui se não fosse pelo irmão caçula. Se
decidirmos por ir embora, é capaz de ele liderar o caminho. Penso por um
instante, indecisa entre dar uma segunda chance e não nos submeter a essa
atmosfera.
— Heloísa, nós vamos embora se você quiser.
— Mais um comentário desnecessário — digo, meus olhos em
Cassandra — e juro que pego o Gustavo, vou embora e nunca mais volto a
ver sua cara, está me ouvindo? E não ache que conseguiria tirá-lo de mim,
porque não conseguiria. Ele não é nada seu. Você não tem direito nenhum
sobre meu sobrinho.
Cassandra suspira, ligeiramente contrariada, mas assente. Sento-me
em meu lugar outra vez, mantendo Gustavo comigo. Augusto coloca o prato
de legumes dele em nossa frente, acomodando-se onde estava antes. O
clima parece pesado, de repente, e quem o quebra um pouco é Conrado,
com outro comentário inconveniente:
— Por que não conta que Mariana te roubou do Augusto primeiro?
— Conrado! — eu advirto, mas, por algum motivo, começo a rir.
E minha risada faz Gustavo rir. Então, em dois segundos, como se
nada tivesse acontecido, estamos todos rindo em torno da mesa. O momento
de descontração dura alguns bons segundos e dissipa a tensão de antes. Nós
começamos a comer de verdade, e Saulo quer saber como Augusto pretende
lidar com sua rotina no trabalho e cuidando do filho.
Filho. A palavra soa tão… certa, se encaixa tão bem. No fundo do
meu coração já apegado, eu gosto da ideia de chamar Gustavo de meu filho
também.
— Cancelei minha agenda das próximas duas semanas — Augusto
informa, levando um pedaço de peixe à boca. — Vou precisar desses dias
para organizar minha nova rotina. — Seus olhos encontram os meus, e mal
toquei na comida porque estou com Gustavo no meu colo. — Ainda não
decidimos como vamos fazer isso, mas… sugeri que morássemos juntos por
um tempo.
Conrado pigarreia e solta uma risadinha irônica. Eu coro com a
sugestão implícita na risada dele e ofereço um brócolis ao Gustavo.
— Não é uma boa ideia — Cassandra opina, ao mesmo tempo que o
marido diz:
— É uma ótima ideia.
— Vai ser um desastre — a matriarca reitera para contrariar o
parceiro. Ao mesmo tempo, Conrado exclama:
— Acho que vai ser incrível.
Saulo, por sua vez, abana a mão no ar e come mais de sua comida.
— Bobagem. É melhor assim até os dois se acostumarem com o
bebê, com a rotina e tudo mais.
— Faz muito tempo que não concordo com Saulo — Conrado
intervém, virando-se para o menino e acariciando o rosto dele. — Ele tem
razão. Não que eu tenha qualquer habilidades paternas, então… podem
desconsiderar o meu conselho.
Cassandra faz algum comentário, mas que eu deixo escapar porque
meus olhos estão presos aos de Augusto e meu corpo está atento aos
movimentos constantes de Gustavo em meu colo.
— Estou pensando na possibilidade — digo, puxando o bebê para
trás, impedindo-o de alcançar um talher.
A matriarca Monteiro vira um gole de seu vinho, como se estivesse
engolindo uma alfinetada junto — e eu já até imagino o que seja.
— Tudo bem — Conrado diz, mostrando seu telefone para Gustavo.
— Me deixa segurar o pirralho para você jantar em paz.
Sorrio em agradecimento e, atraído pelo brilho da tela do telefone, o
bebê vai para os braços de Conrado sem dificuldade.
— Se forem dividir o mesmo teto — Cassandra prossegue, um ar de
descontentamento em sua voz —, eu aconselharia uma casa. Não o
apartamento em um conjunto habitacional que você mora.
Augusto fecha os olhos e move a cabeça de um lado a outro, e eu
mordo meu lábio inferior. Só vou deixar esse comentário passar batido
porque dá última vez que vi essa mulher, eu morava mesmo em um
conjunto habitacional.
— Nós vamos morar na nossa cobertura, se Heloísa aceitar.
— Por que você decide onde vamos morar? — questiono,
engarfando um pouco do purê de batata em meu prato.
Ouço uma risadinha de Conrado, que ajeita Gustavo em pé sobre
suas pernas, direcionando-o para nós, como se fosse um telespectador:
— De camarote, Gustavo, a primeira DR dos seus pais! — O menino
ri e pula sobre as pernas do tio.
— Conrado, fica quieto — o irmão adverte. Saulo ri discretamente e
acompanha a conversa; Cassandra tenta opinar, mas Augusto corta ao dizer:
— Não estou decidindo nada, foi uma sugestão. Por isso eu disse se aceitar.
— Ótimo, porque não quero morar na sua cobertura.
— Por que não? — exclama, um pouco irritado. — É um
condomínio com boa localização, segurança monitorada, tem piscina,
academia, playground e…
— Não me importo. Prefiro uma casa com quintal, com espaço para
Gustavo brincar.
Cassandra finaliza um gole em seu vinho e me apoia:
— Nesse ponto, Heloísa tem razão.
— Também é mais seguro — Saulo agrega.
— Posso colocar grades de segurança — Augusto argumenta.
— Quero uma casa — reitero.
— Agora — Conrado sussurra para Gustavo —, você vai ver quem
manda na relação, rapazinho.
O menino se agita ainda mais, as perninhas dobrando e esticando
animadamente, outro daquele sorriso enorme em seu rosto, os olhinhos
claros brilhantes de felicidade como se ele estivesse prestes a ganhar uma
aposta muito importante. Augusto encara o irmão, o maxilar um pouco
tenso, reticente em dar o braço a torcer, mas sabendo que venci, que ele vai
se dobrar à minha vontade. Um segundo até meu ex-cunhado concordar:
— Tudo bem. Podemos procurar uma casa.
Fico satisfeita com a resposta. Conrado imita um coro de
comemoração frente à minha vitória, suas mãos segurando o pequeno pelas
axilas. Gustavo se agrada com a brincadeira e gargalha, contagiando todo
mundo ao redor da mesa.
— Então, estamos entendidos? — Augusto pergunta, afastando seu
prato, agora vazio. — Vamos escolher uma casa e morarmos juntos por um
tempo?
Meu coração dá uma batida errada. Parece que esqueci desse detalhe
por um segundo. Molho o lábio inferior, entendendo que não há como
voltar agora e assinto, concordando.
— Só por um tempo. O suficiente para acostumarmos com o bebê e
nossa nova rotina.
Ele me dá um sorriso pequeno de satisfação e assente. Por incrível
que pareça, o restante do jantar decorre tudo bem. Cassandra quer opinar na
escolha da nova casa, nas consultas do bebê e nas compras que teremos de
fazer. O filho caçula concorda, mas, no fundo, sei que vai evitar que a mãe
palpite em nossas vidas o tanto quanto for possível.
No final da noite, o menino se rendeu ao sono e agora está no
canguru, dessa vez amarrado em Augusto. Junto nossos pertences e
Cassandra nos acompanha até a porta para se despedir de nós. Nós viemos
caminhando — já que Augusto mora a menos de dois quilômetros e
queríamos que Gustavo tivesse um passeio agradável — e fazemos o
mesmo percurso de volta a pé. A noite está gostosa com temperaturas
amenas e céu estrelado. A região privilegiada em que meu cunhado mora é
mais segura e podemos caminhar até seu condomínio sem muitas
preocupações.
— Temos que ir até Santa Mônica amanhã — Augusto comenta,
uma mão ao lado do corpo, outra apoiando as costas de Gustavo. —
Precisamos empacotar os pertences da Mariana e os móveis do bebê.
Assinto devagar, apreciando o calor em minhas mãos dentro do
bolso da minha jaqueta enquanto caminhamos para…casa. Ofego por um
instante, me dando conta, só agora, de que vou dormir no apartamento do
Augusto. Eu sei que aceitei vivermos por um tempo sob o mesmo teto, mas
eu esperava ter uns dias antes disso para me acostumar com a ideia.
— E depois disso, há muito o que resolvermos ainda. — Ele solta
um suspiro longo e olha para mim, um sorriso pequeno despontando dos
seus lábios. — Sua cozinha vai sobreviver sem você por esses dias? Por que
eu duvido que a Monteiro & Castro sobreviva sem mim.
Rio baixinho e balanço a cabeça em positivo.
— Minha sous-chefe é muito competente. — Molho o lábio inferior
e expiro lentamente. ­— Não sei como vai ficar minha situação no
restaurante. Minha gerente me deu umas semanas de férias até isso tudo —
indico Gustavo com o queixo — se estabilizar. Disse que conversamos
quando eu retornar.
— Não tem que se preocupar caso precise… sabe?, ficar um tempo
afastada do trabalho. — Augusto beija os cabelinhos do bebê
— Eu não faço o estilo esposa do lar. Deveria saber disso.
— Sei que não. — Seu sorriso se amplia e sinto meu estômago se
apertar ao notar todo o carinho de Augusto com o menino. Não o julgo por
ter se apegado fácil, porque eu também me apeguei. — Só estou dizendo
que não tem que se preocupar. Vou estar aqui para vocês dois.
Pisco algumas vezes, comovida com o que disse. E eu não deveria
me comover. Não deveria permitir que meu coração pule uma batida
errática por causa do sorriso dele enquanto conversa com Gustavo, ainda
que o menino esteja dormindo, acariciando o rostinho dele, seus cabelos,
como se o achasse a coisa mais perfeita do mundo. Eu não deveria começar
a gostar da ideia de convivermos e cuidarmos do meu sobrinho. Eu não
deveria. Não deveria me permitir que, a cada segundo, eu me apaixone um
pouco mais por Augusto Monteiro.
Vinte minutos mais tarde, chegamos ao seu condomínio. Uma vez
em sua cobertura, eu analiso tudo com cuidado, enquanto Augusto joga sua
chave e carteira sobre a mesa de centro e desamarra o pequeno do canguru.
A decoração de seu apartamento é bastante diferente da casa onde vivia
com Mariana. Minha irmã adorava plantas, texturas e cores vivas. Augusto
prefere algo mais minimalista, então tudo basicamente é branco e tons de
cinza — o que não deixa de ser bonito de qualquer forma.
— Temos um problema — Augusto diz, encaixando o bebê no
braço. Encontro seus olhos e espero. — Com a burocracia e os preparativos
do funeral, e como o Gu passou os últimos dias com a babá, esqueci de
arrumar um lugar pra vocês ficarem.
Augusto faz um movimento breve com a cabeça, indicando um
corredor. Eu o sigo até sua suíte que está bem arrumada, a cama está feita,
com edredons e travesseiros em tons de cinza e branco.
— Só temos uma cama — completa, colocando delicadamente
Gustavo sobre o colchão.
Pisco duas vezes, processando a informação.
— Você não tem um quarto de hóspedes? É a cobertura. Deveria ter
ao menos mais dois.
Ele balança a cabeça em negativo.
— Um eu transformei no meu escritório, e o outro, uni a suíte
principal e fiz um closet.
Engulo em seco e expiro lentamente.
— Alguém vai ter que dormir no sofá — determino — e esse
alguém não será eu.
Augusto faz uma careta engraçada.
— Vai mesmo me submeter a essa tortura?
Coloco a mão na cintura e abro um sorriso malicioso.
— Tenho certeza de que seu sofá é muito bom.
Ele ri baixinho e desvia os olhos para Gustavo, dormindo
despreocupadamente sobre sua cama, os bracinhos para cima, os olhinhos
movendo-se sob as pálpebras, como se ele estivesse sonhando, e então, o
sorriso debaixo da chupeta. Aquele sorriso típico e fofo que bebês dão
quando estão dormindo. Meu coração se derrete frente à imagem e quase
para de bater ao me deparar com o sorriso que Augusto exibe para o
pequeno dorminhoco. Ele se vira para mim, pegando-me no flagra, e eu
tento disfarçar.
— Certo — pigarreia. — Pode tomar um banho se quiser. Você…
não tem nada para vestir, não é?
Balanço a cabeça em negativo. Nem passou pela minha cabeça que,
depois do jantar, eu ficaria no apartamento do Augusto. Estive o dia todo
ocupada com questões do restaurante, para que eu possa passar as próximas
semanas despreocupada, e não me atentei ao mínimo. Deus, eu deveria ter
voltado para meu apartamento.
— Se quiser, tenho bermudas, calças de moletons ou camisas —
sugere. — Tenho escovas de dente novas no armário do banheiro também.
Não reajo por um instante. A ideia é absurda, mas é melhor do que
eu dormir sem roupa ou de calça jeans.
— Tudo bem.
— Levantamos cedo amanhã. Descanse. — Augusto se inclina e
beija a bochecha de Gustavo. — Boa noite, campeão.
Augusto pega alguns dos travesseiros e um edredom antes de vir em
direção à porta. Ele para a meio passo de mim, seu rosto muito perto do
meu, o aroma da sua pele e do seu pescoço invadindo meu sistema e me
deixando sem chão. Mantenho a postura e tento controlar as batidas
malucas do meu coração. Odeio tanto que esse homem ainda… mexa
comigo quando não deveria. Nem antes. Nem agora.
— Você está bem? — sussurra, preocupado. — Só te vi chorar no
necrotério quatro dias atrás. Depois… nem no funeral, nem no enterro.
Balanço a cabeça em positivo.
— Estou bem, não se preocupe.
Ele assente.
— Boa noite, Helô.
Engulo em seco, mexida com meu apelido em seus lábios.
— Boa noite, Guto.
Augusto sorri de volta para mim e sai do quarto, fechando a porta.
Por um instante, eu apenas fecho os olhos e inspiro o rastro do seu perfume
que fica pelo ambiente. Só então, eu tomo um banho em seu banheiro e
visto uma de suas camisas. Augusto é ao menos vinte e cinco centímetros
mais alto do que eu, então a camisa fica como um vestido em mim. Faço
uma barreira de travesseiros na beira da cama e ajeito melhor meu sobrinho,
deitando-me ao seu lado e nos cobrindo.
À meia-luz do abajur, passo longos minutos estudando seus traços e
deixando-me ser encantada. Dedilho o perfil de seu rosto delicadamente,
passando pelo narizinho perfeito, os lábios que chupam o nada porque sua
chupeta caiu e ele nem notou. Aprecio o queixo delicado, que… meu Deus,
tem o formato do queixo de Augusto. Balanço a cabeça de uma lado a
outro, afastando o pensamento absurdo.
É a primeira vez, de verdade, que tenho um tempo com Gustavo a
sós por mais de dois minutos. Só agora posso admirá-lo com calma, sentir
seu corpinho, seu cheiro gostoso de bebê. Os últimos quatro dias foram
tão… turbulentos. As lágrimas escorrem pelo meu rosto. Todas as que não
chorei no velório, no enterro. Minha cabeça estava tão ocupada que mal
tive tempo de chorar, viver meu luto. Pela primeira vez, então, eu tenho a
chance de sentir a dor, de sofrer mais pela morte de Mariana.
Agarrada a Gustavo, eu me permito simplesmente…
…desabar.
CAPÍTULO 06

Um barulho me desperta. Ao abrir os olhos e me deparar com


Heloísa na cozinha, dentro de uma das minhas camisas, quase sinto meu
coração parar. Ela está no fogão e a julgar pela fórmula sobre a bancada ao
lado da mamadeira vazia, acredito que esteja preparando o leite do Gustavo.
Eu deveria fingir que estou dormindo até ela voltar para o quarto em vez de
manter meus olhos em suas pernas expostas ou desejar ver um pouco mais
da sua bunda sob a camisa preta que usa.
Merda.
Afasto o pensamento da cabeça e me viro de costas, precisando
fazer um pouco de esforço, admito.
— Augusto? — Aperto os olhos e suspiro. Droga. Queria ter
passado despercebido. — Eu te acordei, não é?
Giro em sua direção, devagar, preparando minha mente para lidar
com a tentação que se chama Heloísa Alvares. Coço os olhos e me sento no
sofá, minhas costas protestando.
— Não se preocupe — digo, levando algum tempo para focalizá-la.
— Precisa de ajuda?
Heloísa mantém os olhos em mim da mesma maneira que não
consigo afastar os meus dos dela. Do seu corpo. Inferno, eu sei que ofereci
que usasse uma das minhas camisas, mas há dois pontos a se considerar.
Primeiro: eu não pretendia vê-la nesses trajes. Segundo: isso já faz sete dias
e, na ocasião, minha cunhada não tinha o que vestir. Agora que trouxe boa
parte dos seus pertences para cá, não há motivos para usar minha camisa
social como pijama. Não quero pensar no que sua atitude significa.
— Não — responde, por fim, puxando a barra da vestimenta para
baixo, como se estivesse incomodada ou envergonhada. — Gustavo
costuma acordar às seis, cheio de fome. Eu acordei por acaso e resolvi
deixar a mamadeira pronta e conservada no recipiente térmico. Ele costuma
ser impaciente e não queria te acordar com a choradeira dele. Acho que não
adiantou muito.
Abro um sorriso sonolento e movo a cabeça em negativo.
— Está tudo bem. Inclusive, gostei da ideia. Na minha vez, vou
fazer a mesma coisa.
Levanto-me do sofá e alongo os músculos, esquecendo-me que eu
também não estou nos meus trajes mais decorosos — apenas uma cueca
boxer justa marcando minha ereção matinal. Heloísa pigarreia e se vira de
costas, adicionando algumas colheres da fórmula na mamadeira antes de
despejar a água quente.
— Você não acha que já deveria ter providenciado um sofá-cama?
— questiona.
Nós temos nos revesado e cada vez, um de nós dorme no meu
quarto e fica responsável pelo Gustavo — trocar a fralda no meio da noite,
preparar a mamadeira, lidar com sua falta de sono, essas coisas. Heloísa
trouxe seu colchão de casa pois, por mais que meu sofá seja bom, continua
não sendo confortável para dormir mais do que uma ou duas noites. Ela até
ofereceu que, na minha vez de dormir na sala, eu o usasse, mas declinei a
oferta porque ele é um pouco curto para mim. E porque seu aroma ficou
impregnado nos lençóis e quis evitar a tentação.
— Vamos nos mudar em breve — digo, me aproximando a passos
cautelosos. — Eu aguento mais uns dias.
Paro ao seu lado, e Heloísa está colocando a mamadeira no isopor
térmico. Ela se vira para mim, fazendo contato visual, e tenho a impressão
de que segura o ar em seus pulmões por causa da minha aproximação.
Novamente, puxa a barra da camisa para baixo e estou me segurando para
não perguntar por que está a usando.
— A visita com o corretor é hoje, né? — pergunta, expirando
devagar. — Às onze?
Heloísa pisca algumas vezes, tentando manter a atenção em mim,
mas, vez ou outra, ela espia meu tórax, o abdômen, minhas coxas. Meu
quadril. A ereção que não consigo esconder. O que diabos estou fazendo
aqui, tão perto dela, afinal de contas? Eu deveria respeitar o espaço dela, o
meu espaço, e me manter tão longe dela quanto possível.
— Isso. Acho que… você vai gostar da casa.
Heloísa assente e agarra o isopor térmico como se fosse uma
estatueta do Oscar.
— Se importa em ficar com o Gustavo por umas horinhas até lá?
Eu… — pigarreia — quero ir correr um pouco. Já faz alguns dias que não
vou. Sabe, por causa de toda a mudança repentina nas nossas vidas.
— Tudo bem. Vamos sair daqui às dez e quinze.
— Eu chego a tempo — ela diz, animada, e parece inclinada a dar
um passo em minha direção e me abraçar ou me dar um beijo, como forma
de agradecimento, só que Heloísa se dá conta da sua atitude e refreia o ato.
Ela me oferece um sorriso sem graça, sussurra um “obrigada” e
volta para o quarto. Eu me esforço para me manter de costas, para me
manter ocupado em preparar a cafeteira para minha dose de cafeína diária,
mas não consigo não me virar e vê-la sumindo pelo corredor. Não consigo
não escanear suas pernas, fixar os olhos em sua bunda. Augusto, pelo amor
de Deus. Suspiro devagar e ajusto meu amigo rígido sob a cueca.
Acho que preciso de um banho frio.
— Ai meu Deus, ele está a coisa mais linda! — Heloísa exclama
parada à porta do meu quarto.
Eu sorrio, orgulhoso do look que escolhi sozinho, e Gustavo, sobre a
cama, sustentado pelas minhas mãos, pula animadamente. Ele tenta dar
alguns passos na direção da tia, murmurando “mamã, mamã”.
— Admita, você pediu ajuda à mãe de quatro filhos que mora no
décimo andar — Heloísa diz, aproximando-se.
Eu rio de suas palavras e movo a cabeça em negativo, dando a
última avaliada em Gustavo antes de ela tomá-lo nos braços.
— Eu procurei inspiração no Pinterest, se você quer saber — brinco,
o que no fundo, é um pouco de verdade.
Eu poderia ter telefonado para Cassandra ou… perguntado para a
mãe de quatro filhos do décimo andar, mas, por Deus… Sou um homem de
trinta e três anos. Não deveria ser um bicho de sete cabeças vestir uma
criança. E vesti-la bem. Gustavo está mesmo uma gracinha dentro de uma
camisa polo amarela, tênis all star da mesma cor e bermuda que imita jeans.
Heloísa o enche de beijos, inspira seu cheiro e brinca com sua barriguinha,
o que faz o sobrinho gargalhar gostoso.
— Está pronta para irmos? — pergunto e olho no relógio.
— Estou, sim.
Pego a bolsa de Gustavo, pronta sobre a cama, e a encaixo no meu
ombro. Heloísa sai na frente, conversando com o pequeno, e seguimos até a
garagem subterrânea. Depois de colocá-lo na cadeira de segurança e distrai-
lo com alguns brinquedos porque ele quer continuar no colo, seguimos
viagem até o bairro nobre em que vamos nos encontrar com o corretor.
Meia hora depois e com quinze minutos de antecedência, nós chegamos a
uma casa elegante e espaçosa. O corretor já está nos esperando frente ao
portão. Cumprimentos trocados, ele nos guia para dentro, dando algumas
informações sobre o imóvel. Três duas, sendo duas suítes, banheiro, lavabo,
sala de estar, jantar, área de lazer, lareira, piscina, sauna, quintal grande e
uma pequena horta nos fundos, perto de um canil.
— Meu Deus, olha essa cozinha — Helô exclama, virando-se para
mim, ainda na interseção entre um cômodo e outro. — É maravilhosa,
Augusto!
Abro um sorriso de satisfação.
— Sabia que ia gostar, por isso disse ao Carlos que queria visitar
uma casa com quintal e uma cozinha grandes.
Sua postura parece se abalar por um instante antes de Heloísa
explorar o local, o sobrinho encaixado no seu quadril. A pia tem ao menos
três metros, a bancada que se interliga a ela e faz um L tem mais dois.
Armários na parede acima e gaveteiros embutidos na estrutura. Além de já
estar toda equipada com tudo o que causa um orgasmo em uma chefe de
cozinha.
— O proprietário está pedindo três meses adiantados e mais dois
cauções — o corretor informa, abraçado a uma pasta com poucos
documentos. — Além de um contrato de, ao menos, dois anos.
— Por mim, está ótimo.
— Espera — Heloísa diz, virando-se para nós. — O aluguel dessa
casa deve ser um absurdo de caro.
— Nada que eu não possa pagar — argumento, dando de ombros. —
Não tem que se preocupar com isso, Helô.
— Na verdade, eu tenho, sim — contra-argumenta. Ela ajeita o
menino em seu colo e envia um olhar rápido ao corretor. — Pode me dar
cinco minutos a sós com o Augusto?
O agente imobiliário acena em positivo e se retira. Heloísa se
aproxima e, nesse momento, Gustavo estica os braços para mim,
murmurando em seu idioma de bebê. Eu o tomo em meus braços e ele se
agarra ao meu pescoço, parecendo manhoso. Acho que o pequeno quer tirar
um cochilo.
— Qual o problema?
— O problema é que vamos morar juntos só por um tempo.
— Eu sei.
Heloísa suspira, cansada.
— Como vai ser depois, Augusto? Eu não vou ter como pagar o
aluguel dessa casa.
Sorrio, malicioso.
— Então eu fico aqui e você vai embora.
Ela semicerra os olhos em minha direção, não gostando nada da
minha resposta engraçadinha. Eu me aproximo um passo e com a mão livre,
acaricio seu braço esquerdo.
— Não temos que nos preocupar com isso agora, Heloísa —
acalento. — Você queria uma casa confortável e com um quintal grande pro
Gu e eu consegui uma. Depois… eu volto para meu apartamento e te ajudo
com as despesas daqui.
Teimosa, Heloísa move a cabeça de um lado a outro.
— Não quero sua caridade.
— Não vai ser caridade, vai ser minha parte na obrigação de criar o
Gustavo. Eu moro em um condomínio de luxo, não vou deixar que vá para
um bairro modesto porque não pode pagar o aluguel daqui.
— Parece uma ideia estúpida.
— Meu filho vai ter o mesmo padrão de vida que o meu —
determino e ela ergue os olhos para mim. — Se isso significa pagar o
aluguel dessa casa pra vocês, eu vou pagar.
Helô prende a respiração por um segundo antes de desviar os olhos
para Gustavo, quieto e agarrado em mim, respirando bem devagar.
— Vai mesmo criar o Gu como se fosse seu filho?
Acaricio as costas dele e inclino-me um pouco para conseguir ver
seu rostinho sereno. Os olhos estão fechados e ele chupa sua chupeta com
calma, embalado em um sono bom. Há quinze dias, eu não sabia o que fazer
com o pedido da Mariana; há quinze dias, eu não queria cuidar de uma
criança que não fosse minha.
Agora eu quero.
— Vou. Conversei com meu advogado ontem e… ele não me
aconselha a assumir o Gustavo como meu porque se o pai biológico
aparecer, vou ter dor de cabeça. Mas posso entrar com um pedido de
adoção.
Ela me dá um sorriso pequeno.
— Sua mãe vai ficar maravilhada quando souber que a estrutura da
nossa família vai ser tia e pai adotivo — Heloísa brinca, acariciando as
costinhas do Gustavo. Sua mão acaba esbarrando na minha ainda ali e seus
olhos se erguem para mim rapidamente ao cessar o contato.
Nossa família.
Eu não sei por que isso soa tão errado e… tão certo ao mesmo
tempo.
— Nada te impede de ser a mãe dele também — murmuro. — Não
precisa apagar a existência da Mariana da vida dele. Você vai fazer o papel
de uma mãe, Helô. Não tem que ser só a tia, ou o Gustavo apenas o
sobrinho.
Noto que seus olhos marejam um pouco e ela morde o lábio inferior,
a atenção voltando toda para o menino em meus braços.
— Vou ser a mãe dele — sussurra, um sorriso amoroso nascendo em
seu rosto. — Sempre tive medo de uma gravidez não planejada, mas nunca
me passou pela cabeça um bebê por acaso.
Eu rio, e ela ri de volta, olhando para mim, seus olhos repletos de
amor.
— É, na minha também não. — Mantemos contato visual por um
segundo, e dentro desse tempo, meu coração pula uma batida. — Então,
podemos ficar com a casa?
Ela sorri e afirma.
— Podemos.
Eu me alegro com nossa decisão e, por isso, deixo um beijo no seu
rosto.
É o suficiente para abalar cada estrutura que compõe o meu sistema.
De volta ao meu apartamento — depois de eu assinar o contrato e
pagar os adiantamentos necessários —, Heloísa se encarrega de dar um
banho em Gustavo, já que o dia está ensolarado e o suor em seu corpo o
deixa irritado. Enquanto isso, eu preparo algo para comermos. Meia hora
mais tarde, ela retorna dentro de uma regata branca e um short soltinho,
descalça, o cabelo preso em um coque desajeitado. Eu acabo de empratar
nossas porções de macarrão ao molho alfredo — um dos poucos pratos que
tenho habilidade de preparar — e sirvo-os à mesa.
— Ele dormiu de novo?
— Depois de um banho relaxante e uma mamadeira, quem resiste a
uma soneca no meio da tarde?
Heloísa se senta comigo e inspira o aroma do macarrão.
— Estive remoendo uma coisa — comento, enrolando um pouco de
minha massa no garfo.
— Que coisa?
— O que o Conrado quis dizer sobre Mariana ter te roubado de mim
primeiro?
Ela abaixa os olhos para sua comida, parecendo refletir por algum
instante, e joga sua porção para lá e para cá antes de enrolá-la e levar à
boca. Acho que Heloísa não está inclinada a me contar o que quero saber.
— Você se lembra como nos conhecemos? — pergunta, cabisbaixa.
— Claro que lembro — respondo com um sorriso pequeno.
Faz uns dez anos. Eu estava no último ano de engenharia civil,
Mariana estava no segundo ano de design de moda, e Heloísa estava no
último semestre em Gastronomia. Estudávamos todos em instituições
diferentes, mas acabamos nos encontrando em uma festa junina beneficente
que boa parte dos colégios e universidades do munícipio organizou para
ajudar algumas regiões vizinhas que estavam enfrentando uma calamidade
pública. Heloísa estava na barraca do beijo e eu comprei um ingresso.
Ela estava bonita em um vestido típico, maquiada e de cabelos
trançados. Havia uma venda em seus olhos, a fim de que ela não visse quem
a estava beijando. Eu não tinha pretensões nenhuma de passar na barraca do
beijo quando fui à festa. Mas aí, eu a vi. Em dois minutos, já havia
comprado um ingresso e estava na fila. Na minha vez, Heloísa me deu o
sorriso mais bonito que já tinha visto em toda minha vida.
— Eu não quero só um beijo inocente — murmurei, encaixando
minha mão na sua nuca, desejando olhar no fundo dos seus olhos. — Posso
até pagar outro bilhete se me der direito a um beijo de língua.
— Infelizmente — murmurou de volta e, naquele momento, eu
ainda não sabia seu nome, nem que tinha uma irmã gêmea idêntica — se eu
abrir uma exceção pra você, preciso abrir uma exceção para os outros na
fila. Desculpe…?
Sorri.
— Augusto.
— Desculpe, Augusto. Vai ter que se contentar com um beijo
inocente.
Acariciei sua nuca e com a outra mão, toquei em seu queixo,
erguendo-o um pouco mais em minha direção. Aproximei nossos lábios, sua
respiração calorosa se desregulou e meu coração perdeu algumas batidas.
— E fora daqui, eu posso te ver para te beijar de verdade?
Vi quando engoliu em seco e, hesitante, explorou meu rosto com
suas mãos. Heloísa sorriu ao sentir a aspereza de minha barba nas pontas de
seus dedos. Ela continuou me tateando por mais um segundo antes de
decidir:
— À meia-noite, atrás do palco.
Nós nos beijamos. Foi um beijo calmo, quase superficial, inocente,
que durou apenas cinco segundos. No horário e lugar combinados, nós nos
encontramos e eu pude beijá-la de verdade. Seus lábios se encaixaram nos
meus com facilidade e perfeição, e ali, por um segundo, quis morar em sua
boca. Segurei com mais firmeza sua nuca e mantive um ritmo cadenciado e
suculento. Foi um beijo incrível e eu não entendia por que tinha sido tão
bom para mim. Eu já havia beijado outras inúmeras garotas, mas aquele
beijo com uma garota que eu nem sabia o nome foi o que mais mexeu
comigo.
— Eu tenho que ir — murmurou ao se afastar.
A sentença me pegou desprevenido.
— Ainda nem sei o seu nome.
Ela sorriu e arrumou a gola do meu blazer.
— Te conto amanhã se aparecer na barraca do beijo de novo.
— Por que precisa ser desse jeito?
— Porque não sou uma garota fácil. — Mordendo o lábio inferior,
ela me deu um último selinho e foi embora.
Eu apareci na noite seguinte e lá estava ela, com uma roupa
diferente, uma maquiagem diferente e uma trança diferente. Por um
segundo, quase desconfiei de que não fosse ela, mas acalmei meu coração e
esperei minha vez. Eu a beijei, inocente outra vez, e ao separar nossos
lábios, sussurrei:
— Vai me dizer seu nome agora?
Ela sorriu, um pouco desconcertada.
— Mariana. E o seu?
Estranhei sua pergunta, mas achei que era apenas um joguinho, um
modo de se fazer de difícil. Puxei sua venda, devagar, e ela me olhou,
assustada, como se nunca tivesse me visto antes. Não sabia naquele
momento de que não se tratava de Heloísa e só fui saber alguns dias depois.
— Augusto. Me encontra atrás do palco, à meia-noite?
— Por que eu faria isso? — questionou, inclinando a cabeça para o
lado.
Achei engraçada a sua pergunta.
— Para eu te beijar de verdade. Se você quiser, é claro. Ou posso
fazer isso aqui mesmo. Não me importo se tiver que pagar outros ingressos.
Já disse isso, né?
A garota manteve os olhos nos meus por um segundo, indecifráveis,
antes de concordar comigo. Eu me afastei e nos encontramos atrás do palco
de novo. Dessa vez, ela não foi embora logo depois de beijá-la e tivemos
uma conversa legal. Comemos cachorro-quente e churrasco no espetinho,
caminhando distraidamente pela festa. Nem me passou pela cabeça
mencionar o nosso primeiro beijo na noite anterior. Então, eu a chamei para
um encontro no final de semana seguinte e Mariana aceitou. Nesse
encontro, descobri que ela era a gêmea errada.
— Eu gostava de você — Heloísa diz e isso me traz de volta ao
mundo real. — Gostei quando ouvi sua voz, gostei mais quando nos
beijamos atrás do palco. Aí… rolou aquela confusão entre nós duas.
Assinto, limpando os lábios com o guardanapo. Eu soube no
encontro com Mariana que Heloísa não pôde comparecer à festa por causa
do seu trabalho.
Ela me dá um sorriso fraco e suspira ao continuar:
— Na noite que você a beijou, Mariana chegou em casa felizinha,
dizendo que tinha beijado um “carinha muito bonito e gostoso”. — Heloísa
pausa, os olhos baixos, a postura um pouco abatida. — Mariana me falou
com carinho sobre você, sobre tê-la chamado para um encontro e quando
mencionou seu nome, eu… contei que também tinha te beijado, que te pedi
para ir à barraca do beijo de novo e que provavelmente você achou que ela
era eu.
— Eu não tive culpa — me defendo, com uma pitada de graça. —
Vocês eram idênticas.
— Eu sei. O caso é que Mariana estava mesmo a fim de você. —
Heloísa abaixa o tom e completa: — Tanto quanto eu. Nós conversamos,
fomos sinceras uma com a outra e eu a incentivei a ficar com você, desde
que te contasse a verdade. — Solta uma risada fraca, como se tivesse se
arrependido da decisão.
Pisco algumas vezes, confuso com essa parte da história. Em partes,
foi o que aconteceu. Mariana me contou que era a gêmea errada, mas nunca
me falou sobre a versão de Heloísa gostar de mim. Eu me preocupei que me
envolver com a outra irmã fosse causar algum atrito, mas Mariana garantiu
que Heloísa estava bem com isso.
— Não faz sentido — digo, balançando a cabeça em negativo. —
Naquele encontro, Mariana disse que você a incentivou a ficar comigo se eu
quisesse, que eu nem mesmo fazia seu tipo.
— Foi o que eu a aconselhei a fazer porque — ela dá de ombros e
leva outra porção do macarrão à boca — achei que Mariana merecia. Fazia
algum tempo que ela não saía com ninguém. Era a primeira vez em anos
que ela estava apaixonada e… bem, não quis ficar no caminho.
Bebo um pouco do meu refrigerante e suspiro.
— Isso ainda não explica por que ela “me roubou” de você primeiro
— constato, fazendo aspas com os dedos.
— Vocês já estavam noivos quando eu soube, por uma amiga de
classe da Mariana, que ela tinha uma paixão platônica por você muito antes
de nós nos beijarmos. Vocês frequentavam a mesma academia e minha irmã
não sabia… como te abordar. Eu lembro que na época, ela me contou
mesmo que gostava de um cara da academia, mas Mari sempre foi muito
discreta quanto a isso e dificilmente compartilhava seus sentimentos.
Entreabro os lábios, surpreso com essa nova informação. Confesso
que nunca reparei em Mariana antes daquela festa. Na academia, eu
costumo me concentrar na música em meus fones e na minha série de
exercícios. Dificilmente dou atenção às pessoas ao meu redor.
— Então ela viu você me beijando na barraca do beijo e atrás do
palco. Acho que ela ficou magoada, ou enciumada… Mas eu não tinha
como saber de nada. Você, tampouco. Mariana sabia que você voltaria na
noite seguinte e se ofereceu para me substituir, mas eu disse que não
precisava. Para a sorte da minha irmã, meu chefe me ligou precisando de
mim para cobrir o turno.
Heloísa fica cabisbaixa outra vez, comendo devagar outra porção da
sua comida. Eu… nem sei como reagir a informação que recebi. Se ela
tivesse aparecido naquela noite na barraca do beijo, a história entre nós…
seria outra. Completamente diferente. Talvez eu nunca tivesse me
aproximado da Mariana, me envolvido, me apaixonado de verdade, me
casado.
— Você se ressente com a Mariana por causa disso?
Seus olhos se erguem aos meus.
— Me ressenti quando soube, mas depois passou. Vocês estavam
felizes e eu já tinha te superado fazia muito tempo. Não vi motivo para
remoer mágoas desnecessárias. Nunca sequer mencionei para a Mari que eu
sabia a verdade.
— Se nem ela sabia, por que o Conrado sabe? — questiono,
encostando-me à cadeira. O rosto de Heloísa fica um pouco vermelho e ela
demora a me responder. Seu silêncio me faz concluir situações que, por
algum motivo, não me agradam. ­ — Você dormiu com meu irmão e contou
isso para ele enquanto estavam nus na cama?
Não gosto da ideia. Por que eu não gosto da ideia? Por que pensar
neles juntos aperta meu coração e me deixa com um gosto ruim na ponta da
língua?
— Não — Heloísa responde, mas não sei se está sendo sincera. —
Nós nos vimos algumas vezes, trocamos alguns beijos e amassos, mas…
nunca fizemos nada mais íntimo.
Saber disso me alivia, em partes, mas não me convence muito.
— Sério? Conrado come tudo que tiver uma boceta e ele nem faz
distinção de gênero.
Heloísa ri e leva a mão à boca. Ao dar de ombros, recuperando-se
dos risos que mexem com meu coração, ela explica:
— Nós não estávamos no clima, acho. Eu tinha acabado de sair de
uma relacionamento merda e o Conrado… estava se recuperando do choque
de saber que foi usado como bode expiatório pelos próprios pais.
Ao menos essa relação deles já faz cinco anos.
— Então… foi tipo uma conversa sobre segredos? — Enrolo a
última porção em meu garfo. — Você contava um, ele te contava outro?
— Mais ou menos isso — confirma, afastando seu prato com um
pouco de macarrão que sobrou. ­— A questão é que percebemos que nosso
envolvimento era um modo de colocarmos um band-aid sobre uma fratura
exposta. Então só… continuamos bons amigos.
Não digo mais nada em resposta, meu coração batendo mais
calmamente agora que sei que meu irmão mais velho não dormiu com a
minha cunhada. E eu nem deveria me importar com isso, de verdade. Mas
eu me importo.
Não sei por que, mas me importo.
CAPÍTULO 07

Eu sei que estou sonhando.


Às vezes, você simplesmente sabe que aquilo ao redor — mesmo
que faça sentido — é um sonho. E agora, enquanto vejo minha irmã sentada
em uma cadeira de balanço com o filho nos braços, eu sei que é apenas uma
projeção da minha mente. O que me incomoda é que ela… não parece feliz.
Ainda que nine o menino, cantarolando alguma coisa, sua postura é outra, e
Mariana parece estar chorando.
— O que foi? — sussurro, encostada ao batente da porta.
Ela ergue o rosto em minha direção, lágrimas escorrendo
timidamente por seu rosto.
— Não posso fazer isso.
— O que você não pode fazer? — questiono, preocupada. Avanço
em sua direção e me ajoelho em sua frente.
Toco no corpinho de Gustavo, que aparenta ter só um ou dois meses,
e fixo meus olhos no seus traços delicados. Sorrio para o pequenino, que
dorme alheio às tristezas da mãe.
— Cuidar dele. Não vou conseguir fazer isso. Eu… eu nem quero
esse filho.
Pisco duas vezes, confusa com sua sentença e a pitada de rancor em
sua voz. É claro que ela queria um filho. Talvez não nesse momento, mas…
Mariana e o marido faziam planos de gestar um bebê.
— É claro que quer.
— Não quero! — responde, a voz embargada, lágrimas rolando
pelos seus olhos. — Não quero esse filho!
— Por quê?
Minha irmã inspira fundo e abaixa os olhos para o filho antes de
sussurrar:
— Porque é do Augusto.
Pisco, confusa, mas quando estou prestes a perguntar por que isso
seria um problema, eu acordo com o choro do Gustavo vindo do outro lado
da parede. Rolo na cama e me espreguiço, perguntando-me, só por um
milésimo de segundo, porque topei essa insanidade…
Acendo o abajur e jogo minhas pernas para fora, exausta. Queria
poder perguntar a Mariana como ela conseguia. Ao entrar no quarto dele e
acender a luz, Gustavo já está em pé, segurando-se à grade do berço. Seus
olhinhos estão inchados e molhados, a fralda parece pesada e só uma perna
da calça mijãozinho está encaixada nele.
— Mamã… — protesta, esticando os bracinhos para mim.
Por causa disso, Gustavo se desequilibra e cai sentado no colchão.
Ainda chorando, o menino se apoia nas grades e fica em pé outra vez.
— Oi, Gu… — cicio, pegando-o em meus braços. Ele me aperta
pelo pescoço e suspira, acalmando-se.
— Mamã…
Fecho os olhos e o aperto um pouco mais nos meus braços. Eu
nunca fiz questão de corrigi-lo e pedir que me chamasse de titia porque
gosto que me reconheça como sua mãe. Quando ele estiver maior, pretendo
contar tudo o que tem direito de saber.
Confiro sua fralda, encharcada, e o levo até o trocador sobre a
cômoda. Gustavo se acalma conforme converso com ele e coloco uma
fralda seca. Seus olhinhos brilham, ainda que meio marejados, e ele me dá
um sorriso incrível.
— É disso que você gosta, não é? — sussurro, virando-o com
cuidado para ajustar a fralda em seu quadril. — Atrapalhar minhas
madrugadas. — Puxo a gaveta e pego uma calça limpa. — Eu sei que você
ainda está se habituando a casa nova, mas… por que só nas minhas noites,
Gu?
Subo a calça limpa pelas suas pernas e protejo seus pezinhos com
meias novas, já que as anteriores devem estar perdidas entre suas cobertas.
— Nunca vi você chorar nas noites que Augusto cuida de você —
reclamo.
Sua resposta é um sorriso sapeca e um balançar de pernas felizes.
— Gugu… — murmura, os braços esticados.
— Augusto — digo, pondo-o de pé sobre o trocador. — Em breve,
vai ter que chamá-lo de papai. Assim que ele conseguir te adotar, o que eu
acho que não vai ser muito difícil. — Olho ao redor, constatando o lar
confortável que Gustavo tem aqui.
O bebê emite um som qualquer que não consigo descrever e pula
sobre suas pernas, agora acordado e feliz. Beijo sua bochecha e o tomo em
meus braços, levando-o comigo para a cozinha porque sei que ele vai querer
uma mamadeira de leite. Caminho devagar, respeitando o silêncio da casa e
não querendo acordar o Augusto. Faz uma semana que nos mudamos para
cá, deixando nossos respectivos apartamentos para coabitarmos sob o
mesmo teto. Ele voltou a trabalhar na construtora e eu estou prestes a voltar
a comandar minha cozinha.
Da melhor maneira possível, criamos uma rotina com Gustavo e
temos nos saído bem, até. Nós nos revezamos em tudo — de quem levanta
para atender as necessidades do bebê a quem lava a louça do jantar. Tem
sido uma experiência pacífica por enquanto. Na próxima semana, assim que
voltar a trabalhar no restaurante, teremos que reajustar a rotina e ainda não
conversamos sobre como faremos isso — porque eu ainda não disse que
logo retorno ao meu trabalho.
Depois de esquentar uma mamadeira que já estava pronta, eu me
sento no sofá da sala, deito o pequeno nos meus braços e o cubro com uma
coberta que achei por aqui, entre as poucas bagunças do bebê. Suas
mãozinhas agarram o recipiente e seus olhos fixam nos meus enquanto ele
aplaca a fome em seu estômago.
Por um instante, eu me recordo do sonho que estava tendo com
Mariana. Reflito sobre ele, tentando entender por que minha mente projetou
aquelas cenas, aquele diálogo.
— Não quero! Não quero esse filho!
— Por quê?
— Porque é do Augusto
Movo a cabeça em positivo, parando de procurar uma lógica para
um sonho, mas não sou capaz de afastar um detalhe da minha mente.
Porque é do Augusto. Abaixo os olhos para Gustavo outra vez, os olhinhos
fechando-se enquanto ele suga o bico da mamadeira, e presto atenção aos
seus traços. Sempre achei que ele compartilha semelhanças com Augusto, o
que já me fez desconfiar de que o menino pode ser, sim, seu filho biológico.
Negamos essa possibilidade porque não faria sentido Mariana não contar.
Mas essa questão está me perturbando como uma dorzinha chata e
constante na têmpora que não atrapalha seu dia a dia e seus afazeres, mas
incomoda de qualquer maneira e seria melhor se ela não existisse. Augusto
pretende entrar com o pedido de adoção assim que o juiz da Vara da
Infância bater o martelo e determinar que somos capazes de cuidar do
Gustavo. Entretanto, se o menino for filho dele…
Suspiro e aperto os olhos.
Isso é loucura. Só que…
…preciso tirar essa questão a limpo. Ter certeza.
Gustavo dorme antes de terminar sua mamadeira, que eu apoio na
mesinha de centro. Levo-o para o quarto enquanto tento fazê-lo arrotar.
Assim que consigo, eu o deito de volta ao berço, cubro seu corpo e limpo
um pouquinho de leite no canto dos seus lábios. Ele aceita a chupeta
quando a ofereço e suspira, sonolento.
— São duas da manhã. — A voz dele me assusta e eu levo a mão ao
coração.
Ao me virar para a entrada do quarto, quero praguejar esse homem.
Augusto está apenas com uma calça de moletom que marca coisas que não
deveria e sem camisa. Meus olhos insistem em focar no seu abdômen, ou
nos braços fortes, ou na tatuagem que cobre todo o seu braço direito.
Preciso me esforçar para manter o contato na linha dos seus olhos.
— Se eu pudesse programar esse serzinho para acordar só depois
das oito, eu já teria feito — digo, caminhando para fora do quarto. Augusto
recua um passo, rindo baixinho, e eu encosto a porta. — Deveria estar
dormindo e aproveitando a sua folga. A próxima noite é sua, não se
esqueça.
— Eu sei, mas acordei com a movimentação na casa.
— Desculpe.
Ele dá de ombros.
— Tenho o sono leve, não é sua culpa. Está tudo bem com ele?
— Aham. Só troquei a fralda e dei uma mamadeira.
Molho o lábio inferior e puxo as laterais da camisa de cetim do meu
pijama, dando-me conta, só agora, que eu também não estou nos meus
trajes mais comportados. O short do conjunto é curtinho e folgado.
— Tudo bem, então… — diz, ajustando a postura porque parecia
sem jeito. —Vou voltar para o meu quarto.
Augusto faz menção de sair, mas eu não quero esperar até vê-lo
amanhã para comentar esse incômodo insensato que está no meu coração.
— Espera. — Ele para, olha para mim, um instante rápido para
minhas pernas, então pisca e focaliza em meus olhos. — Tive um sonho
com a Mariana essa noite. Ela estava triste e abalada, dizendo que não
queria o bebê.
Augusto cruza os braços e aguarda.
— Não queria porque era… seu.
— Isso não faz sentido — contesta, abanando a cabeça de um lado a
outro. — E não significa nada. Quero dizer, deve significar alguma coisa.
Freud explica, mas não significa que seja meu, Heloísa. Já falamos sobre
isso.
— Eu sei — digo, com um suspiro. — Mas poucas horas antes de eu
saber que minha irmã estava morta e que tinha um filho, eu sonhei com ela
e com um bebê. Foi um sinal e acredito nisso agora. O sonho dessa noite…
é um sinal também.
Ele massageia as têmporas.
— Heloísa…
— Só faz um teste, está bem? Para termos certeza.
Augusto expira lentamente e me encara, os olhos suaves, até meio…
amorosos.
— Tudo bem. Vou agendar um dia para o exame, mas vai ser tempo
e dinheiro jogados fora.
Eu abro um sorriso de alívio e me adianto em sua direção. Demoro a
notar minha atitude e quando me dou conta, meus braços já estão em torno
dele. Tento recuar, mas Augusto contorna minha cintura e me mantém
aprisionada ao seu corpo caloroso. Meu coração acelera na mesma hora e
minha respiração falha conforme tomo consciência da nossa proximidade.
Dois segundos mais tarde, consigo me afastar. Engulo em seco, sem
conseguir erguer os olhos em sua direção.
— Vou tentar dormir mais umas horinhas antes do Gu acordar —
digo, evitando contato visual. — Até já, Augusto.
Passo por ele, não esperando por sua resposta. Atrás de mim, fecho
a porta e me encosto à madeira, tentando restabelecer meus batimentos
cardíacos. Aperto os olhos e afasto as lágrimas. Eu não posso permitir que
esses sentimentos cresçam dentro de mim. Não por Augusto. Não respeitei
minha irmã no passado, mas vou fazer isso agora. Pela memória dela, nunca
mais vou me envolver com Augusto Monteiro.
Nunca mais.
Ao amanhecer, ainda que seja a vez de Augusto preparar o café da
manhã, decido eu mesma prepará-lo porque não consegui dormir depois que
voltei para o meu quarto e preciso ocupar a cabeça. Às oito, ele aparece na
cozinha, cabelo bem-penteado, dentro de um terno cinza sob medida,
perfumado. Entretido no iPad, ele demora a me notar aqui.
— Não era a minha vez de fazer o café da manhã? — pergunta,
apoiando o iPad sobre a mesa.
— Era — respondo, tirando uma fornada de pãezinhos do forno. —
Mas eu não consegui dormir, então… vim cozinhar. É terapêutico. — Apoio
a forma sobre as grades do fogão e me viro, quase perdendo o ar ao notá-lo
ao meu lado.
— Ainda bem — ele brinca, farejando o ar — porque eu ia comprar
pão de forma e frios. Eu sou péssimo cozinhando.
Eu rio baixinho e pego ovos na geladeira, quebrando-os em seguida
em um prato. Bato-os delicadamente antes de despejá-los na frigideira que
está aquecendo sobre uma boca livre. Augusto surrupia uma banana da
fruteira na bancada da pia e o sinto me olhando enquanto a descasca.
— Gustavo?
— Ainda dormindo — respondo, sem fazer contato visual. Abaixo o
fogo e mexo os ovos com cuidado. — O que é um milagre. Esperava que
acordasse no horário habitual.
Dessa vez, eu o encaro. Seus olhos fitam os meus por um instante
antes de meu pijama chamar sua atenção. O mesmo de mais cedo — a
camiseta de alcinhas, o short curto. Eu deveria ter trocado quando vim para
a cozinha porque eu sabia que Augusto viria preparar o café da manhã. De
forma muito consciente, mantive a droga do pijama porque talvez eu goste
do modo como ele olha para mim agora.
Não deveria gostar, mas gosto.
— Precisa de ajuda?
— Pode arrumar a mesa, por favor?
Ele assente e coloca na mesa os pães, a louça, queijos, a garrafa de
café e uma porção de uva. Enquanto isso, jogo um pouco de sal e cheiro
verde nos ovos e continuo mexendo até que estejam coagulados. Levo a
frigideira à mesa já posta e me acomodo no meu lugar de costume. Augusto
se senta de frente para mim e serve nossas xícaras.
— Eu vou voltar a trabalhar em alguns dias — anuncio, recheando
um dos pães com os ovos mexidos. — Teremos que reajustar a rotina com o
Gustavo.
— Seus horários ainda vão ser bagunçados?
— É uma cozinha de restaurante, então… sim. Mas vou ver se
consigo um horário um pouco mais flexível. Ainda não conversei com a
minha gerente.
— Posso contratar uma babá — sugere. — Ou podemos matriculá-
lo em uma escolinha.
Fixo meus olhos no líquido preto em minha xícara, pensativa.
— Uma babá caberia no nosso orçamento?
— É claro que caberia.
Ergo meus olhos em sua direção, um pouco incomodada com seu
tom. É claro que caberia. Ele está se referindo à sua própria renda, porque
no meu orçamento, com certeza não caberia. Suspiro devagar, afastando o
sentimento ruim de meu coração. Augusto não foi arrogante, sou eu que
estou incomodada em ser “bancada”. Se eu pudesse criar Gustavo sem
depender do dinheiro de Augusto, faria isso.
Orgulhosa demais, diria minha mãe se ela ainda fosse viva.
A herança que Mariana deixou para o filho seria uma ajuda
relevante, mas consultei um advogado e ele me aconselhou a esperar que o
inventário esteja pronto para não termos qualquer problema com a Justiça.
Estive reorganizando a vida depois da morte da minha irmã e só vou dar
entrada nesse processo depois do feriado de Corpus Christi.
— Acho que uma babá vai ser melhor — digo. — Ao menos, por
enquanto.
— Vou selecionar alguns currículos e escolhemos juntos.
Eu esperava que Augusto deixasse essa responsabilidade nas minhas
costas, mas gosto que esteja disposto a fazer mesmo seu papel de pai.
Terminamos nosso café da manhã com uma conversa amena — eu conto
dos planos que tenho com Gustavo hoje, e Augusto garante que chega mais
cedo e traz o jantar. Ao terminarmos, ele me ajuda a tirar a mesa e a levar a
louça para a pia.
— Não precisa me ajudar — pontuo ao vê-lo começar a lavar as
canecas depois de tirar o paletó e arregaçar as mangas da camisa. — Não
vai se atrasar para o trabalho?
— Só preciso estar lá às dez. Tenho um tempinho. — Aceito sua
ajuda nesse caso. — Escuta — murmura, cauteloso, e faço contato visual.
— Quero ter certeza de que você sabe que pode… ficar em casa cuidando
do Gustavo. Se quiser.
— Eu já disse que não faço o estilo esposa do lar.
— Eu sei que não. Só quero ter certeza de que sabe disso, Heloísa.
Se preferir cuidar do Gustavo e não ter que se preocupar com seus horários
no restaurante…
Seco minhas mãos no pano de prato e o encaro, espalmando para
que pare de falar.
— De verdade, Augusto. Agradeço a oferta de me bancar também,
mas uma hora ou outra, eu vou ter que conciliar trabalhar e cuidar de uma
criança. Preciso te lembrar que vamos morar juntos só por um tempo?
Ele fecha a torneira e encosta o quadril na pia, de lado, seca as
mãos, cruza os braços como se estivesse se protegendo e me encara nos
olhos antes de meu pijama indecoroso chamar sua atenção de novo por um
segundo inadequado. Augusto pigarreia e faz contato visual comigo outra
vez.
— Tudo bem. Um passo de cada vez, certo?
Sorrio e assinto.
Terminamos, por fim, de limpar a louça do café. Eu me ergo nos pés
para guardar a última xícara no armário acima da pia, mas é um pouco alto
demais para mim e encontro alguma dificuldade.
— Espera, eu te ajudo — ele se oferece, aproximando-se.
Mas nesse momento, eu já consegui e sua aproximação repentina me
assusta. Eu me desequilibro e quase caio. Se não fossem as mãos firmes
dele em torno da minha cintura, sustendo meu peso, com certeza, eu teria
caído em cima dele. Meu coração acelera de repente, por causa do pequeno
susto, e sem que eu espere, Augusto está aqui, perto demais de mim, seu
tronco forte pressionando-me contra a beira da pia.
Tento respirar normalmente, mas é difícil quando tenho consciência
da nossa proximidade, do seu calor, do seu aroma, da sua presença que
sempre mexeu comigo. Eu disse que não me magoei com Mariana porque já
o tinha superado, mas, lá no fundo, o sentimento sempre existiu. Sempre
esteve plantado na parte mais profunda de meu coração, esperando a chance
de germinar e florescer.
— Augusto… — murmuro, fechando os olhos.
Ele apoia as duas mãos na minha cintura e quase colapso. Faz tanto
tempo desde a última vez que senti seus dedos fundos em minha carne…
E é tão errado eu querer esse contato. Augusto se inclina um pouco
mais para mim, deixando seus lábios muito rentes aos meus.
— Você se pergunta como teria sido a nossa história se… tivesse
aparecido naquela barraca do beijo dez anos atrás? — Suspiro, trêmula, e
abro os olhos para encará-lo. — Porque eu me pergunto. Às vezes, eu me
perguntava isso quando ainda era casado com sua irmã.
Engulo em seco e me esforço para afastar a culpa em meu coração
de ter abalado o já frágil casamento de Augusto e Mariana. Quero me
afastar e fugir dele, mas, apesar disso, eu me pego confessando com um
sussurro:
— Todos os dias desde então.
Seguro o ar em meus pulmões e contraio o ponto entre minhas
pernas ao senti-lo deslizar a ponta do seu nariz no meu pescoço. Meus
batimentos cardíacos disparam e mal me vejo encaixando minha mão em
sua nuca. Augusto geme, dolorido, e planta um beijo em minha pele.
— Odeio tanto pensar em você — murmura, traçando uma linha de
beijos pelo meu pescoço em direção à linha do meu maxilar. — Odeio
pensar todos os dias na nossa noite.
— Augusto, por favor — choramingo, incendiada com seu toque,
com sua aproximação, com as lembranças daquela noite.
Sua boca me alcança, ficando a um centímetro de mim. Sua
respiração é quente e irregular, acelerando ainda mais as batidas do meu
coração traidor. Os olhos dele se erguem aos meus, as pupilas dilatas,
repletos de desejo, dor e arrependimento.
— Acho que nunca te esqueci de verdade — sussurra, para o meu
desespero. — Não falo da nossa transa. Falo… desde quando te conheci. —
Aperto os olhos e quero afastá-lo, mas ele agarra minha cintura e me
mantém em meu lugar. — Por que você me marcou tanto, Heloísa? Foi só
um beijo. Um único beijo. E isso me marcou uma vida inteira.
— Por favor, não fale assim — imploro, contendo minhas lágrimas.
— Não quero pensar que não amava a minha irmã.
— Eu amei. — Seus dedos alcançam uma mecha do meu cabelo que
escapou do meu coque e o coloca atrás da minha orelha. — Juro que a amei.
Com todo meu coração.
— Então por que está me dizendo essas coisas?
— Você sabe por quê. Não finja que não entende.
Queria dizer que não entendo, mas entendo. Na última década,
homens entraram e saíram da minha vida e amei alguns deles. Amei de
verdade. Não acredito que nessa vida só temos um “amor verdadeiro”.
Talvez eu tenha confundido um ou outro com paixão passageira, em
especial na adolescência, e talvez eu tenha amado em intensidades
diferentes, mas amei. Com Augusto, foi tudo tão diferente. Ainda que tenha
me apaixonado por outros rapazes e seguido em frente quando o
relacionamento chegou ao fim, meus sentimentos por ele sempre foram…
uma incógnita. Nunca pude intensificar o que tinha por ele, mas esse
homem constantemente esteve permeando meus pensamentos, guardado em
meu coração.
— Eu entendo — confesso, baixinho.
Augusto se inclina um pouco mais e roça nossos lábios. Meu peito
se comprime, o coração dispara, os nervos entre minhas pernas se contraem.
Quando eu menos espero, sua mão está encaixada na minha nuca e ele está
me beijando. Começa com carinho, pedindo espaço e permissão, em um
ritmo lento que, mesmo assim, rouba todo meu ar. Minha mão ainda está
atrás de sua cabeça e quando o puxo para intensificar nosso beijo, me dou
conta do que estamos fazendo. Antes que eu tenha tempo de afastá-lo, ele já
me agarrou pela cintura e está me colocando sobre a bancada da pia.
Eu quero resistir.
Mas não consigo.
Afundo meus lábios nos seus e contorno seus quadris abraçando-os
com meus calcanhares. Sinto sua ereção no meu ponto que já está
incendiado há muito tempo e o agarro com mais força, inclinando meu
quadril em sua direção.
Tão necessitada…
— Porra — murmura contra minha boca, descendo sua mão por
dentro do meu short.
Então, como se um curto-circuito me despertasse, eu o afasto.
— Augusto, não… — peço, a voz embargada, e encosto nossas
testas. — Não posso fazer isso.
Augusto está ofegante quando pergunta:
— Por quê?
Molho o lábio inferior e travo uma batalha contra minhas lágrimas.
— Já traí minha irmã uma vez. Não vou trai-la de novo. — O peito
dele chia, subindo e descendo intensamente. Eu sei o que Augusto vai
argumentar, mas digo primeiro: — Para mim, seria outra traição. Não vou
repetir o mesmo erro de um ano e meio atrás. Já carrego culpa demais.
Ele fecha os olhos e mantém sua testa na minha por alguns
segundos. Também fecho meus olhos e controlo meu coração, minha
vontade de desabar, de desistir dessa ideia absurda de convivermos. Lá no
fundo, na real, quero me esquecer do meu senso de moral. Quero esquecer
que eu seria a gêmea que destruiu o casamento da irmã e depois ainda ficou
o ex-marido e o filho dela. Quero esquecer dos julgamentos que receberia,
dos olhares atravessados e simplesmente beijá-lo, permitindo-me viver o
que deveríamos ter vivido dez anos atrás.
Mas não posso.
Abro os olhos ao senti-lo tocar no meu rosto. Augusto parece a
ponto de dizer alguma coisa quando o choro alto de Gustavo ressoa pela
casa. Suspiro, frustrada, porque queria suas palavras, que provavelmente me
desarmariam e me renderiam com facilidade.
— Eu cuido dele — murmura, se afastando.
Fico sobre o balcão mais um tempo, como se ainda pudesse sentir
seu calor, sua presença, seus lábios nos meus.
CAPÍTULO 08

— Preciso adiar a visita aos canteiros em que sou o engenheiro


responsável — explico, segurando o telefone com o ombro. Gustavo, preso
ao canguru, tenta alcançar meu celular, mas eu o impeço e ele ri por alguma
razão. — O motivo? — Do outro lado da linha, meu mestre de obras quer
saber por quê. — Estou com meu filho.
Abaixo os olhos para o pequeno e abro um sorriso singelo. Acho
que é a primeira vez que me expresso assim para alguém além de Heloísa e
minha família. Soa tão certo. Não vejo por que não dizer para todos à minha
volta que Gustavo é meu filho. Amacio os cabelos dele, agora distraído com
um botão da minha camisa. Troco mais algumas palavras com meu
funcionário, que vai garantir que nada saia do planejado durante minha
ausência e eu o asseguro que vou reagendar as visitas para o mais breve
possível. Assim que encerro nossa ligação, a porta do meu escritório se
abre.
— Você não sabe bater? — reclamo, vendo meu irmão entrar.
— Encontrei a sua secretária na recepção do andar.
Franzo as sobrancelhas, não entendendo o comentário dele.
— O quê?
— Eu a encontrei na recepção do andar — repete e acrescenta: —
Estava resolvendo alguma burocracia para você.
— Qual é a relação com sua falta de modos em não bater na porta
antes de entrar?
Conrado me oferece um sorriso sacana.
— Achei que sua preocupação fosse que eu te pegasse comendo sua
secretária.
Reviro os olhos e ele explode em uma gargalhada que contagia
Gustavo. Meu irmão se aproxima por trás de mim, já que o menino está
virado em minha direção, e começa a interagir com o sobrinho.
— Tira ele dessa coisa — reclama, puxando o sobrinho do canguru.
Sem qualquer resistência, o pequeno vai para o colo de Conrado,
divertindo-se com o tio e de estar livre de mim. — Por que você o trouxe
para o trabalho hoje?
Aproveito que meu irmão está com ele por esse tempinho para me
sentar em frente ao notebook e resolver algumas pendências.
— Soube que a Heloísa voltou a trabalhar hoje? — digo, acessando
meu e-mail.
— Soube. Cassandra achou um absurdo — comenta, encaixando
Gustavo sobre seus ombros, o que o deixa radiante de felicidade. — Mamãe
preferia que Heloísa cuidasse dele integralmente.
Suspiro.
— É claro que preferia. Enfim, o caso é que, hoje, a babá ligou
pouco antes de ela sair e informou que não poderia ir trabalhar. Está com
suspeita de gripe. Heloísa não pode comandar uma cozinha com o garoto
pendurado em um canguru. — Gesticulo para o carregador ainda em mim.
— Não tive outra saída.
— Você não tem uma reunião com o pessoal da prefeitura sobre uma
licitação em meia hora?
Digito no computador ao responder:
— Aham. Vou ter que levar o Gustavo comigo.
Respondo alguns e-mails mais urgentes e repasso outros não tão
importantes para a minha secretária responder por mim. Enquanto isso,
Gustavo se diverte com Conrado. Por um segundo, eu os observo em minha
sala. Meu irmão colocou o menino sobre o tapete no meio do escritório e o
está distraindo com conversas e brinquedos que eu trouxe com a bolsa.
— Você teria sido um bom pai — comento despretensiosamente.
Ele ergue os olhos para mim e me dá um sorriso entristecido.
— Claro, e por melhor que eu fosse, ainda me veriam como o
pedófilo que engravidou uma adolescente.
Seus olhos se desviam para Gustavo, que colocou uma fralda de
pano na cabeça e está se divertindo com isso. Meu irmão ri da situação, mas
eu não consigo acompanhá-lo, lembrando-me da culpa que precisa carregar.
Uma culpa que nem pertence a ele.
— Você não sabia que ela era menor de idade — pontuo.
— Não, mas eu era um homem adulto — diz, com uma pitada de
remorso. — Eu deveria ter desconfiado. — Conrado olha para mim,
pesaroso. — Ou pedido um documento dela. — Franze o cenho. — Espera,
eu desconfiei e pedi. Alexandra me deu a droga de um RG falso.
Eu me levanto do meu lugar e vou até ele, sentando-me ao seu lado
no sofá. Não tenho ideia do que é estar sob sua pele e carregar esse fardo.
— Ela agiu de má-fé. A culpa não é sua.
Gustavo ergue o queixinho para mim, a fralda ainda cobrindo seus
olhos, e me dá um sorriso enorme ao ouvir minha voz. Com as mãozinhas
gordas, agarra o pedaço de pano e o tira de seus olhos, engatinhando em
minha direção.
— Tenho me dito isso todos os dias nos últimos cinco anos —
confessa, com um suspiro. — Ainda não sei por que não explanamos essa
merda para toda a cidade e continuo permitindo que as pessoas achem que
fui eu que engravidei aquela menina.
— Porque nossos pais fariam de tudo para manter o segredo sujo
deles, inclusive nos prejudicar — digo, pegando Gustavo e o colocando no
meu colo. — Eu mesmo nunca disse a verdade porque me preocupo com o
que papai poderia fazer para me punir. Pode ter certeza de que ele… usaria
você. É um paradoxo dizer que te deixo levar a culpa por isso para te
proteger?
Conrado suspira, um sorriso fraco em seus lábios.
— É o mesmo motivo por qual eu nunca desmenti — murmura,
cansado. ­— Saulo ameaçaria você para me fazer ficar de boca fechada,
muito provavelmente colocando em jogo a empresa do vovô que você tanto
ama, seu cargo e seu futuro aqui.
— Protegemos um ao outro, então?
— Sempre. — Conrado joga um braço por cima do meu ombro por
um instante, em um ato de fraternidade, antes de Gustavo pedir pelo seu
colo. — Eu queria mentir dizendo que depois do choque de saber que ela
estava grávida e que era menor de idade, não pensei que um filho seria algo
bom no meio daquela merda toda — comenta, os olhos atentos no sobrinho.
Observo meu irmão com carinho. Depois que as coisas se
acalmaram um pouco e Conrado aceitou a gravidez, ele parecia nervoso e
feliz ao mesmo tempo. Desde o início, Alexandra dizia que não queria o
bebê, e meu irmão estava mais do que disposto a cuidar da criança sozinho.
Mas aí, nós descobrimos a verdade. Saulo não permitiria que sua imagem
fosse manchada com um escândalo dessa magnitude, afinal, ele é um
homem influente. Uma indecência dessa com toda certeza atrapalharia
muito dos seus negócios e sua reputação.
O pai de Alexandra — querendo extorquir a família — ameaçou
contar para a cidade toda que um homem de meia-idade casado transou com
uma adolescente e a engravidou. Então, eles entraram em um acordo:
Alexandra diria que o filho era do Conrado — já que na época, eles estavam
se namorando —, Saulo pagaria o valor que o pai dela estava exigindo e a
criança seria entregue para a adoção e sob sigilo — um meio de Saulo
garantir que, se uma hora ou outra seu segredo se voltasse contra ele,
ninguém poderia provar nada.
— Eu o procurei uma vez — comenta, com um sussurro. — Faz
dois anos.
Pisco duas vezes.
— Nosso irmão?
Conrado balança a cabeça que sim.
— Alexandra nunca o entregou para a adoção de maneira formal. —
Conrado suspira e aperta o osso do nariz entre os olhos. — Acho que ela
queria ter onde procurá-lo se um dia se arrependesse, não sei. Ela me
contou que deixou o menino em uma casa paroquial.
— Uma casa paroquial?
— É. Não me disse qual ou onde, mas eu tinha dinheiro e um pouco
de tempo. Descobri que, no final das contas, o pároco da Matriz de Santa
Mônica o adotou. — Conrado engole em seco e suspira.
— Por que está me contando isso só agora?
Ele dá de ombros e um peteleco no nariz de Gustavo.
— Eu pensei em tentar pegar a tutela do garoto. Mas aí… — seus
olhos vêm aos meus — lembrei que ele faria parte dessa família. Seria filho
de um pai que não o quis, de uma “madrasta” que provavelmente o odiaria.
Duvidei se seria o suficiente que eu e você o amássemos de todo coração.
Talvez o menino esteja melhor lá na paróquia do que aqui.
Assinto devagar. No fundo, sei que Conrado tem razão e me sinto
um pouco mal em saber que tenho um irmão perdido por aí e não movi um
dedo para fazer nada em benefício dele. Mas o que nós faríamos, afinal?
Trazê-lo para o meio dessa família seria expor nossos segredos. Não que eu
esteja preocupado com isso. Nunca estive, mas meus pais com toda certeza
não permitiriam e infernizariam a vida de nós três. Não poderíamos adotá-
lo legalmente, por conta da consanguinidade, e não seria justo que ele não
soubesse a verdade sobre a própria família, que fosse criado sob uma
mentira.
— Tenho certeza de que ele está melhor lá.
— Se chama Liam e tem quatro anos — diz, de repente, expirando
com força. — Era o nome que escolhi quando achei que era meu. Alexandra
o deixou na porta da igreja com uma fralda que eu mandei fazer com o
nome dele para o enxoval e… mexeu um pouco comigo que tenham
mantido o nome dele.
— Como eu disse, você teria sido um bom pai.
Ele me dá uma risada triste e então, fareja o ar e olha para Gustavo,
colocando-o em pé sobre suas coxas, as mãos sustentando o pequeno pelas
axilas.
— Você é tão pequeno, como pode feder tanto? — pergunta.
O menino gargalha e pula no colo do tio. Olho no relógio. A reunião
é em dez minutos. Droga.
— Preciso trocá-lo agora se eu não quiser me atrasar com o pessoal
da prefeitura.
Conrado se levanta, mantendo os braços esticados para que Gustavo
se mantenha longe dele.
— Eu troco o fedorento e fico com ele para você pelo tempo que
precisar.
— Sério?
— Claro que é sério.
Cruzo os braços.
— Você tem prática em trocar fraldas?
— Eu tenho trinta e cinco anos e projeto casas, Augusto. Trocar uma
fralda é fichinha. Deixa comigo. Tenho duas horas livres até ter que me
encontrar com uma cliente, então eu fico com o Gu. Não se preocupe.
— Tudo bem. — Desamarro o canguru, pego meu iPad e alguns
documentos que vou utilizar na reunião. — Se precisar de mim, sabe onde
me encontrar. Há uma mamadeira e fraldas na bolsa, ali. — Aponto. — Tem
que aquecer o leite se ele ficar com fome, tá?
Conrado revira os olhos, como se a orientação fosse absurdamente
desnecessária.
— Se Gustavo sujar a roupa, não coloca a jardineira e a camisa
creme que estão separadas. Nós vamos à clínica às quinze e vou vestir essa
roupinha nele.
— Algum exame? — questiona, ainda mantendo o menino
pendurado e longe de seu tórax.
— De paternidade. — Aproximo-me da porta e Conrado lança um
olhar curioso para mim. — Longa história, mas, em resumo, Heloísa insiste
para que eu tenha certeza de que ele não é meu filho biológico.
Conrado assente e franze o nariz, chamando o sobrinho de fedorento
uma vez mais antes de eu sair e correr para a sala de reuniões.

Arrumo Gustavo na cadeirinha, os olhinhos dele ainda cheios de


lágrimas por causa da picada da agulha na coxa. Depois de passarmos na
clínica para que eles colhessem amostras para o exame de DNA, Heloísa me
ligou e me lembrou que Gustavo precisava tomar a vacina de influenza, que
estava atrasada por conta dos problemas de saúde da Mariana. Aproveitei
que a carteira de vacinação dele estava dentro da bolsa e o levei até o posto
mais próximo.
Limpo as últimas lágrimas que escorrem do seu rosto e me odeio
por tê-lo submetido a essa pequena tortura. Por Deus, Heloísa terá que ir
sozinha para vaciná-lo nas próximas vezes porque nunca mais quero vê-lo
chorar dessa maneira.
— Mamã… — reclama, fungando e irritado. Gustavo parece um
pouco sonolento, e, somada à dor da picada, está mais chato que o comum.
— Mamã.
— Nós vamos ver a mamãe, prometo.
Coloco a chupeta em sua boca, jogo uma manta que ele é apegado
sobre seu corpo e entrego o ursinho de pelúcia a qual ele se agarra como se
sua vida dependesse disso e que o deixa mais calmo. Heloísa me passou
uma mensagem dez minutos atrás em que dizia que tem uma hora livre para
descanso e que quer ver o menino. Como não vou voltar mais para a
construtora hoje, posso passar em seu restaurante. Talvez eu aproveite e
almoce lá com Gustavo. Ele comeu algo em seu horário habitual, mas na
correria de dar conta de todos os meus compromissos para sair mais cedo,
mal parei para comer e enganei meu estômago com algumas frutas.
Vinte minutos mais tarde, nós chegamos ao trabalho da Heloísa.
Gustavo logo se torna o centro das atenções enquanto a esperamos. As
funcionárias do restaurante estão o rodeando, apaixonadas pelo menino,
mas ele está chatinho e, diferente de toda hiperatividade com Conrado mais
cedo, Gu está introvertido agora. Ele fecha a cara e se agarra ao meu
pescoço cada vez que alguém tenta falar com ele ou pegar em sua mão.
Heloísa não demora mais que cinco minutos para aparecer. Ela usa um
dólmã preto com botões brancos e os cabelos estão amarrados. Assim que
nos vê, ela se adianta em nossa direção, como se fizesse duas décadas desde
a última vez que nos viu.
— Mamã… — O menino se anima e estica os braços para Heloísa.
— Mamã…
Em dois segundos, ela está com Gustavo em seu colo, apertando-o
em um abraço forte, cheio de saudade, e o enchendo de beijos.
— Que saudade de você, Gu… — exclama. Seus olhos se
direcionam para mim e ela sorri. — Oi.
— Oi.
— Com fome?
— Faminto.
Heloísa ri e indica uma mesa mais aos fundos. Seguimos até lá
depois de ela pedir algo para comermos. Gustavo não quer sair do seu colo,
da mesma maneira que ela não quer colocá-lo na cadeira apropriada, então
os dois entram em um acordo pacífico. Eu a deixo atualizada sobre o dia
com ele e rimos quando conto da situação com Conrado.
— Seu irmão não fez isso! — exclama, com um risada contagiosa.
Eu gargalho com ela. Gustavo, sentado em seu colo, ao ouvir a
risada da tia, se vira em sua direção, as mãozinhas sobre a mesa, e abre
aquele sorriso enorme, feliz por vê-la feliz.
Movo a cabeça em positivo, lembrando-me da situação. Depois de
meu irmão dizer que seria muito capaz de trocar a fralda do menino, eu
corri para a reunião. Quinze minutos mais tarde, Conrado invadiu a sala
com Gustavo nos seus braços. A fralda toda torta e pendurada no quadril do
menino era a limpa, ao menos isso, e meu irmão desabafou:
— Erguer uma cidade inteira é mais fácil que trocar um bebê. Eu
não consigo pregar a fralda, Augusto!
O choque nos rostos dos representantes da prefeitura e funcionários
da empresa durou apenas dois segundos antes de todo mundo cair na
gargalhada e eu ir socorrer o Conrado.
— O que você fez em seguida? — Heloísa quer saber quando
nossos pratos chegam.
Ela pediu uma posta de tilápia ao molho vermelho, salada de agrião,
arroz e feijão para nós dois, e palitos de cenoura cozida e arroz para
Gustavo.
— Deixei a sala de reuniões e fui ajeitar a fralda do Gustavo. O
danadinho estava se divertindo e rindo às custas do desespero do tio —
digo, alcançando a bochecha dele e a apertando. — Terminei a reunião com
ele no canguru.
Ela ri um pouco mais, imaginando a cena. Eu mesmo gargalhei
sozinho da situação enquanto ajustava a fralda do menino. Gustavo pega
um palito de cenoura e o leva à boca, degustando devagar com um punhado
de arroz que pega entre seus dedinhos.
— Minha gerente vai me dar folga no domingo.
— Sério? — pergunto, separando o espinho da carne antes de levar
uma porção à boca. — Acabou de voltar a trabalhar.
— Eu sei, também fiquei surpresa — diz, terminando de mastigar
uma folha de agrião. — Mas é meu domingo do mês de direito e tem que
ser nesse, porque o próximo final de semana a casa estará lotada por conta
do feriado de Corpus Christi, e os domingos seguintes estão programados
para outros funcionário. Esse feriado vai ser uma loucura. Provavelmente,
não tenho hora para sair.
Ela olha para Gustavo e deixa um beijinho no ombro dele.
— Sei que não é o ideal — retoma — e que eu deveria ficar com o
Gu, mas… preciso trabalhar.
— Não se preocupe. Somos uma equipe, lembra? Dou conta do
pequeno. Aliás, minha mãe quer fazer uma visita. Talvez, eu permita que
ela o veja feriado e assim me ajuda um pouco. Se você concordar, é claro.
Heloísa ergue o rosto para mim, reflexiva. Não a culpo por pensar a
respeito. Eu mesmo pensei a respeito. Desde o que fizeram com o Conrado
que não confio mais nas boas intenções deles.
— Se você estiver junto, por mim tudo bem — propõe, me dando
um sorriso bonito.
Nós sustentamos o olhar um do outro por alguns segundos, criando
uma tensão que não existia entre nós desde aquele beijo na cozinha, uma
semana atrás. Heloísa foi boa em se esquivar de mim para evitarmos esse
tipo de situação. Pigarreio e finjo observar o local para quebrar essa
atmosfera estranha entre nós.
— Pensei em passearmos com Gustavo no meu domingo de folga —
retoma o assunto murmurando, como se não quisesse me assustar, e volto
meu olhar para ela. — Um piquenique no parque ou alguma atividade ao ar
livre. Ele vai fazer nove meses bem no feriado e acho uma boa
comemorarmos, mesmo que uns dias adiantados, já que não vou estar
presente na data.
Heloísa sorri, aquele sorriso bonito que ilumina tudo ao seu redor
quando olha para Gustavo. Um beijinho estrala entre os cabelos dele e seus
braços o apertam com carinho. O sorriso logo se apaga porque ela se
recorda do mesmo que eu: em quatro dias, fará um mês que Mariana
morreu. Falamos sobre isso essa manhã e combinamos de eu passar no
cemitério deixar flores para ela depois do expediente.
— Acho uma ótima ideia. É bom pro Gustavo se conectar com a
gente. Precisamos disso.
— Combinado. — Ela beija as bochechas do Gustavo. — Será
nosso primeiro passeio, não é, meu amorzinho? Vou preparar muitas coisas
gostosas para nós — sussurra, a voz meio embargada de emoção, não sei se
pelo bebê ou pelo primeiro mês de ausência de sua irmã gêmea.
De qualquer forma, meu coração erra uma batida e se enche de amor
por causa da imagem à minha frente. Engulo em seco e desvio o olhar,
sufocando todos os meus sentimentos que ameaçam florescer dentro de
mim.
A última coisa que preciso é desejar Heloísa e desejar que sejamos
uma família.
CAPÍTULO 09

— Vocês estão prontos? — pergunto, colocando a última guloseima


para o piquenique dentro da bolsa.
Fiquei encarregada de preparar nossas comidas, e a missão de
Augusto era arrumar Gustavo e a bolsa com tudo o que vamos precisar.
— Só mais uma coisa… — Ouço a voz dele atrás de mim e, ao me
virar, eu o vejo colocando um par de óculos escuros em Gustavo. O
acessório é grande demais para o menino, mas fica uma graça nele. —
Agora, sim. Prontos.
Gustavo ri, as mãozinhas nos aros do óculos, e meu coração parece
que vai rasgar as camadas de pele do meu peito. Eu rio ao notar o conjunto
pai-e-filho que estão usando. Na camisa preta de Augusto está desenhado
uma âncora e escrito: “Pai de primeira viagem”; na camisa de Gustavo está
estampado “S.O.S” com um símbolo de perigo. Movo a cabeça em
negativo, pego a bolsa com nossa comida e me aproximo deles. Queria
dizer que não acho nada bonito ver Augusto com o menino encaixado no
seu quadril e a bolsa de bebê pendurado no seu ombro, mas eu acho. Acho
até demais.
— Vamos?
Enquanto Augusto esquenta o carro e confere a água do
reservatório, eu prendo Gustavo na cadeirinha, que brinca com os óculos
escuros em seu rosto. É um domingo ensolarado, para a nossa sorte, e vai
ser divertido passarmos esse tempinho com ele. Quinze minutos mais tarde,
já estamos em um parque arborizado da cidade. Apesar de estar
relativamente cheio de visitantes, conseguimos encontrar um lugar para nós,
perto de uma árvore e de um dos playgrounds. Gustavo fica animado com
os brinquedos e força o corpo no colo de Augusto, resmungando e querendo
se rastejar pelo chão.
— Parece que nunca viu um brinquedo na vida — Augusto
comenta, levando-o até o topo do escorregador.
Apoio nossas mochilas em uma mesa aqui por perto, dizendo:
— Segura o Gustavo, porque ele pode se desequi…
Antes que eu tenha tempo de terminar minha sentença, ele já soltou
o menino, que desliza rápido pelo brinquedo de madeira com uma
felicidade contagiante. Meu coração ameaça parar de bater nesse instante e
nem mesmo o fato de Guto o segurar no fim do escorregador, são e salvo,
me deixa mais aliviada.
— Augusto! — advirto, assustada. — Não faça mais isso!
Ele ri, Gustavo o acompanhando, e leva o menino de volta ao topo.
— Fazer o quê? Isso?
Corro para tentar impedi-lo, mas chego tarde demais e o menino já
está deslizando outra vez, rindo sem ter qualquer noção do perigo que o pai
está o submetendo. Augusto o agarra outra vez e gargalha, beijando as
bochechas coradas do bebê.
— O “S.O.S” na camisa do Gustavo parece ser um pedido real —
reclamo, as mãos na cintura.
— Relaxa — Augusto expressa, sorriso enorme. Ele espera que
algumas crianças desçam pelo brinquedo antes de colocar Gustavo no topo
outra vez. — O Gu está se divertindo.
— Gustavo pode se desequilibrar e cair, Augusto — digo,
preocupada. — Não vai ser nada divertido se machucar nosso filho.
Ele olha para mim agora e sustenta o contato visual por um segundo
inteiro com alguma emoção em seus olhos. Demoro a notar o que disse.
Tudo bem, Gustavo é mesmo nosso filho. Já me acostumei que me chame
de mãe, exerço esse papel com todo carinho, e independente do resultado
do teste de DNA, Augusto vai ser o pai dele — se não o biológico, adotivo.
Então, tecnicamente, é nosso filho mesmo. Mas… acho que é a primeira
vez que externalizo dessa forma — nosso filho — e de um jeito carinhoso e
íntimo, como se fôssemos um casal tradicional.
Augusto deixa o menino deslizar pela terceira vez, da mesma forma
de antes, para o meu desespero. Eu quero esganar esse homem, mas a
vontade passa quando ele pega Gustavo no colo e se aproxima de mim —
os dois sorrindo, descontraídos e felizes, e é aqui que não quero mais
enforcar Augusto Monteiro. Para a minha surpresa, ele planta um beijo
rápido em minha bochecha.
— Não vai acontecer nada — garante, mas não confio muito na sua
palavra. — Vem. Eu solto o Gustavo e você o pega no final do
escorregador.
Tento resistir à ideia maluca, mas esse homem não vai me dar paz.
Esperamos outras crianças descerem pelo brinquedo, então eu me posiciono
no meu lugar e espero que Gustavo venha deslizando pela madeira até os
meus braços. São os dois segundos mais felizes da vida dele, pelo modo
com ri e cai nos meus braços.
— Mamã… — diz, todo alegrinho, enquanto eu o aperto contra meu
corpo.
Depois de brincarmos por mais uns cinco minutos, dessa vez no
balanço que ele indicou, nós nos reunimos na mesa para comermos alguma
coisa. Mantenho-o sentado em minhas pernas enquanto Augusto distribui
nossa comida pela mesa. Eu trouxe frutas, água, sanduíches, papinha de
banana e mamão, suco natural, cookies integrais caseiros e beijinhos de uva
que fiz apenas com água, leite em pó e coco ralado sem açúcar — e essa
misturinha é uma das favoritas do Gustavo.
Eu o deixo comer sozinho sua papinha de frutas, apenas
supervisionando. Ele já está independente nesse quesito, algo que Mariana
o ensinou com certeza, ainda que faça a maior lambança para comer. Não
nego que tenho vontade de alimentá-lo, apenas pelo prazer de alimentá-lo e
melhorar nossa conexão, mas me seguro. Augusto se senta ao meu lado, me
entregando um copo de suco e um sanduíche de frango e cenoura enrolado
em uma camada de papel-filme e papel-laminado.
— O advogado me ligou pela manhã — comenta, desembrulhando
seu sanduíche. — Nossa audiência com o juiz está marcada para daqui a um
mês.
Inspiro fundo e apoio delicadamente meu queixo na cabeça de
Gustavo, um medo aterrorizante tomando posse do meu coração. E se o juiz
decidir que não somos bons para tomar conta do meu sobrinho? Faz um
mês que estamos com ele e já me sinto terrivelmente conectada com esse
menino. Não quero ter que me separar dele e não aceito visitas ocasionais.
Não mesmo. Eu o quero por tempo integral, mesmo que, de vez em quando,
eu me sinta exausta e me pergunte por que me propus a cuidar dele. Será
que ainda haveria audiência se o exame de DNA desse positivo? Lá no
fundo, eu torço para que Augusto seja o pai biológico do Gustavo. Talvez
não precisemos passar por nenhuma audiência e correr o risco de perdermos
a tutela do meu sobrinho.
— Por que demorou tanto? — questiono e mordo meu sanduíche
para disfarçar a ansiedade em minha voz.
Augusto dá de ombros.
— Acho até que foi relativamente rápido. Além disso, Gustavo não
está em situação de vulnerabilidade, então… talvez explique a “demora”.
— Augusto toma um pouco da sua água na garrafa antes de morder o
sanduíche e continuar: — Meu advogado disse que… existe a chance de o
juiz não conceder a tutela definitiva.
Engulo o pedaço de pão com tanta força, que chega a doer minha
garganta.
— Por quê? Será que o juiz vai julgar que não somos capazes de
criar o Gu por qualquer motivo que seja?
— Não é isso. — Ele limpa os dedos com um guardanapo que eu
trouxe e olha para Gustavo por um instante. — O testamento da Mariana
pode ser invalidado. Alguma regra sobre a tutela testamentária só valer se
ambos os pais estiverem mortos. Ele ainda tem um pai por aí que tem a
guarda dele.
Reflito por um segundo.
— E se você for o pai dele?
Augusto suspira, como se não estivesse convencido dessa
possibilidade.
— Falei sobre isso com meu advogado e ele me disse que, caso o
exame de DNA seja positivo, então, não teremos que passar pela audiência e
automaticamente a guarda do Gustavo é minha. — Augusto ergue os olhos
para mim, pesaroso. — E o testamento da Mariana é anulado, o que
significa que você… deixaria de ser a tutora do Gu.
Essa perspectiva parece igualmente ruim, porque se Augusto quiser
me afastar do menino por qualquer razão, terá poder legal para isso. Ele
deve perceber como e por que o que me disse me afeta e, sem que eu
espere, toca em minha mão na cintura do menino, ainda se lambuzando com
sua papinha de frutas.
— Não vou te afastar dele. Podemos, juntos, até conversar com meu
advogado, caso Gu seja mesmo meu filho biológico, para que você também
tenha respaldo legal sobre o seu sobrinho.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Faria isso por mim? Se for o pai dele, você faria mesmo isso por
mim?
Augusto se aproxima mais, o rosto cheio de compaixão.
— Em pouco tempo, vi como se apegou ao Gu como se ele fosse
seu filho. E ele… também é apegado a você, ainda mais por que acha que é
a mãe dele. Não seria capaz de quebrar essa ligação entre vocês. Nunca.
Eu nem me importo em abraçá-lo, esmagando Gustavo entre nós
dois, que gosta do momento e ri. Eu me afasto, vendo seus olhinhos
brilharem de felicidade. O menino estica a mãozinha suja de papinha de
fruta para mim, balbuciando um “mamã” e depois faz o mesmo com
Augusto, dizendo “Gugu” — o modo como rapidamente aprendeu a chamá-
lo. Augusto segura o punho dele e abocanha a sua mão.
Gustavo gargalha intensamente.
— Augusto! — advirto, contagiada pela risada do menino.

Voltamos para casa no final de um dia exaustivamente divertido. O


parque fez bem para Gustavo, que brincou mais no playground, se rastejou
pela grama e se divertiu conosco. Eu não quero idealizar uma família com
Augusto, mas a cada interação dele com meu sobrinho, a missão se torna
um pouco mais difícil. No caminho de volta, penso em Mariana, em como
ela estaria feliz se pudesse ver a dedicação do ex-marido, como ele se
esforça para ser uma boa figura paterna.
Em alguns momentos, eu simplesmente me esquecia de que estava
ali e tudo que fazia era observar os dois juntos. Augusto ajudando Gustavo
a andar. Augusto erguendo o pequeno em seus braços para brincar de
“avião”. Augusto no balanço ou no escorregador com Gustavo. Nós três na
gangorra.
Acho que a parte mais incrível desse dia foi quando, simplesmente,
deitamos no gramado depois de um pega-pega rápido. Gustavo ainda estava
gargalhando, contagiado pela brincadeira, quando eu o coloquei na grama,
entre nós dois, e ficamos vários minutos assim, deitados, observando o céu,
contendo o pequeno de se afastar e conversando sobre planos para o futuro
se tudo der certo.
Agora, o pequeno está todo sujo de terra e grama, além de estar
cansado e com sono. Por conta disso, está um pouco irritado. Augusto se
prontifica a preparar um banho enquanto eu tiro a roupinha do Gu e tento
acalmá-lo. Por algum milagre, ele se acalma assim que tiro sua roupa.
Peladinho, o sapequinha balança as pernas e ri. Eu o levo até o banheiro e o
coloco na água com cuidado depois de atestar a temperatura.
— Trouxe uns brinquedinhos também — Augusto diz, sentando-se
na borda da banheira e mergulhando patinhos e peixinhos, que logo
Gustavo agarra entre seus dedos. — Acha que ele vai precisar de uma
mamadeira para dormir?
— Vai, sim.
Guto assente e diz que vai deixar uma fórmula preparada. Enquanto
isso, eu lavo as dobrinhas de Gustavo, os cabelos, atrás das orelhas, a
barriga. Peço licença para lavar suas partes íntimas, porque, por algum
motivo, tenho a impressão de que Mariana fazia isso. Acho que vi em um
dos meus sonhos com ela. Quando Augusto retorna, já estou quase
acabando.
— Deixei a mamadeira no recipiente térmico — informa, sentando-
se outra vez na beirada da banheira. Ele olha para Gustavo, coloca a mão
em forma de concha na água e joga um pouco no rosto do menino.
Meu sobrinho gosta da brincadeira e ri. Augusto repete o gesto, para
a felicidade do garoto, que bate as mãos na água, espirrando-a para todo
lado. Entro na onda deles, jogando um pouco de água em Gustavo e, depois,
uma boa quantia em Augusto. Ele fica chocado e surpreso com o ataque
repentino, o rosto e o peito todo molhado. Meu sobrinho gargalha,
divertindo-se.
— Isso não vai ficar assim! — Guto exclama, mergulhando as duas
mãos na banheira.
O banho que tomo em seguida quase me afoga, mas me tira uma boa
risada sincera. Em dois segundos, estamos em uma guerra de água,
molhando todo o banheiro. Nossas risadas se misturam à risada de Gustavo,
que eu nunca vi tão feliz em todo esse mês que estamos juntos. Ao final da
brincadeira, estou toda encharcada, tal qual Augusto.
— Cuida do banheiro que eu cuido do encrenqueiro — Augusto se
prontifica, enrolando-se em um roupão antes de envolver Gustavo na toalha
azul que tem um capuz.
Enquanto Augusto está com meu sobrinho, esvazio a banheira,
guardo os brinquedos, os itens de banho, organizo a bancada e seco o piso.
Em pouco tempo, meu cunhado está de volta.
— O Gu dormiu — diz, aproximando-se devagar. — Não esperou
nem a mamadeira. Antes de terminar de vesti-lo, ele já tinha caído no sono.
— O dia dele foi agitado hoje — comento, sentando-me na borda da
banheira. — Não me espanta.
Augusto, encostado à pia, sorri para mim. Nossos olhos se mantêm
um no outro e então, fico desconfortável porque estou molhada dos pés à
cabeça e aposto que minha camisa branca marca o bico dos meus peitos, já
que estou usando só um top. Cruzo os braços, querendo me proteger, me
esquentar e esconder meus mamilos intumescidos.
— Você está com fome? — pergunta.
O ar parece ficar rarefeito de repente. Inspiro com um pouco de
dificuldade, me odiando pelo simples fato de que Augusto me afeta. Fiz
bem em evitá-lo o quanto pude desde aquele beijo na cozinha, e agora não
consigo disfarçar o quanto quero abraçá-lo pela nuca outra vez.
— Comi frutas o suficiente. Estou bem.
Ele assente devagar.
— Vou te deixar tomar um banho quente.
— Eu não vou demorar — digo, apertando os braços em torno de
mim. Até parece que ele não tem um banheiro no próprio quarto.
— Não se preocupe. Demore o quanto precisar.
Augusto se vira para sair e dou um passo à frente para chavear a
porta assim que ele se for, mas o piso ainda está meio úmido e eu escorrego.
Meu corpo é lançado para frente e os braços dele impedem minha queda.
Meu coração dispara, não sei se pelo susto ou se por que estamos muito
próximos um do outro. Ele me ajuda a me levantar, mas não se afasta, nem
pergunta se estou bem. Tudo o que Augusto faz é… manter suas mãos frias
em mim e olhar para minha boca.
Minha mente é bombardeada de lembranças nossas — do beijo na
festa junina, na cozinha, do sexo no meu sofá quase dois anos atrás — e não
consigo me desprender dele, recuar um passo, pedir para que se afaste. Eu
fiz uma promessa em memória da Mariana, mas aqui estou eu, desejando
que ele apenas invista um beijo em mim que eu sei que não serei capaz de
resistir pela segunda vez. Suas mãos deslizam pelo meu corpo, nossas
respirações irregulares, os olhos um no outro.
— Augusto… — murmuro, agraciada pelo seu toque.
— Como eu faço para esquecer você? — questiona, a voz um pouco
dolorida. — Como faço para não pensar naquela noite de Natal, ou no nosso
beijo no outro dia? Como faço para não te desejar a cada novo maldito dia,
Heloísa?
Respiro com dificuldade, incapaz de cessar nosso contato visual.
— Eu não sei — respondo, sussurrando. — Queria ter a resposta
para… parar de pensar em você também.
Seu braço esquerdo aperta minha cintura, chocando-me contra sua
parede de músculos. De repente, sua boca se choca com a minha. Augusto
me beija, urgente e necessitado, suas mãos explorando meu corpo. Em um
átimo, ele me gira e me encosta contra a porta. Seu beijo rouba meu ar e
minha sanidade por um segundo. Eu o afasto, ofegante, e digo, cheia de
arrependimento:
— Não. Não, Augusto. Eu não posso.
— Mas você quer. Você quer como eu quero.
Sustento nossa olhar, meu coração disparado. Eu quero. Como eu
quero. Aperto as pálpebras, tentando desligar as emoções que impedem
outras. As emoções de culpa, ressentimento e recusa que impedem a paixão,
o desejo, o prazer. Augusto toca no meu rosto e aproxima sua boca mais da
minha.
— Eu quero — admito em voz alta.
Um milésimo de segundo depois, ele está me beijando outra vez.
Agarro-me ao seu roupão, puxando-o em minha direção com toda força,
amedrontada que se afaste. Augusto me esmaga ainda mais contra a porta
do banheiro, afundando seus lábios desesperados nos meus, suas mãos
percorrendo meu corpo molhado. Sôfrega, eu tiro o roupão dele, sem
separar nossas bocas, parando de me questionar se o que queremos fazer, se
o que vamos fazer, continua sendo errado.
Augusto gira meu corpo e nos encaminha para o box do chuveiro.
Minhas costas batem contra o ladrilho gelado, sua boca ainda me tomando
para si, e não demoro a sentir o jato duplo de água quente. Encontro o cinto
da sua calça e o arranco. Ele puxa minha camisa para cima, livrando-me
nela. Sua boca volta para mim. Abro o zíper da sua calça. Ele abre o zíper
da minha. Seus lábios escorregam pelo meu pescoço antes de seus dedos
puxarem o top pela minha cabeça e expor meus peitos intumescidos.
Abaixo sua calça jeans e, com alguma dificuldade, ele vai a empurrando
para baixo com o auxílio dos pés até estar apenas de cueca. Minha mão
invade sua peça íntima no mesmo instante que seus lábios abocanham meus
seios. O gemido que ressoa pelos azulejos é uníssono.
Contraio os nervos entre minhas pernas ao sentir sua dureza em
minhas mãos e jogo meu corpo mais para trás, precisando de um apoio para
o meu corpo em chamas, necessitado dele. Augusto é dedicado em meu
seios ao dar atenção aos dois. Ele suga e lambe, rodeando a auréola,
abocanhando e mordiscando os mamilos sensíveis. Estimulada, eu bombeio
seu pau com força, empenhada em retribuir o prazer. Apressado, Guto me
ajuda com minha calça, seus lábios sôfregos intercalando beijos em meus
peitos e na minha boca. Em dois segundos, estamos completamente nus.
Seus dedos se afundam nas minhas coxas, impulsionando-me para cima,
contra a parede. Uno meus calcanhares em torno da sua cintura e gemo
baixinho ao sentir sua ereção contra minha entrada umedecida.
Augusto para de me beijar e se distancia o suficiente para olhar para
mim, ofegante. Eu vejo muitas coisas em seus olhos claros, muitas mesmo,
mas nenhuma delas é hesitação ou arrependimento. Ele sabe o que quer.
Está decidido. Seu quadril se movimenta um pouco, alinhando melhor
nossos sexos. Unindo meus punhos acima da minha cabeça, ele aproxima a
boca da minha e investe em mim, penetrando-me lentamente. Augusto me
preenche até o fundo e isso é… maravilhoso.
— Porra — murmura, saindo de mim e voltando com tudo. —
Porra.
Ele deita o rosto no meu ombro e permanece um instante assim,
parado, com seu pau todo enterrado em minha boceta. Arranho suas costas
e movo meus quadris o quanto consigo, precisando dele, do seu pau.
— Por favor… — imploro e mordo a ponta da sua orelha,
sussurrando: — Me come.
Seu maxilar fica tenso por um segundo antes de ele se arremeter em
minha direção, pressionando o pau para dentro de mim a toda potência.
Augusto me come vigorosamente, batendo sem piedade seus quadris contra
os meus e devorando minha boca na mesma intensidade. Eu me seguro ao
seu corpo como se fosse despencar, amando cada centímetro de seu pau
dentro de mim, deslizando, preenchendo, fodendo. Seus dedos estão fundos
e firmes em minha pele, mantendo-me contra a parede, conforme,
incansavelmente, me fode e me beija. A água quente sobre nossas peles, o
modo como me segura, como me toca, a maneira desesperada e amorosa
que me beija… tudo isso acentua as sensações pelo meu corpo e transforma
esse momento em algo muito além de sexo.
Muito além de sexo casual. Não é só sexo. É conexão. Prazer.
Paixão. Segundas Chances. Um recomeço. A história que merecíamos
juntos.
Mergulho meus dedos nos seus cabelos molhados, afetada com esse
turbilhão de emoções em meu peito. Então, tenho medo de que seja tudo
apenas anseios da minha mente, do meu corpo. Que todos esses sentimentos
sejam unilaterais. Que Augusto não retribua e para ele seja mesmo apenas
sexo casual. Jogo a cabeça para trás, agarrando-me à esperança tola e
infundada de que o que eu sinto seja recíproco.
Dando-me um último beijo, Augusto me solta. Antes que eu tenha
tempo de entender que apoiei os pés no chão, ele está virando meu rosto
contra o box de vidro e me inclinando. Recordo da nossa primeira noite, em
que me colocou de joelhos no meu sofá, e a sensação quando ele aperta
minha cintura agora e me penetra com força é a mesma daquela vez.
É melhor do que aquela vez.
Só fico nessa posição cinco segundos porque Augusto me puxa para
si e beija minha boca, minhas costas em seu peito forte, suas mãos em
minha bunda, abrindo-a para me comer, cheio de vitalidade e desejo.
Apoio-me contra o vidro e aperto os olhos, minha cabeça zunindo e meu
ventre apertado.
Eu vou gozar.
Meu Deus, vou gozar.
Ele agarra meu cabelo molhado e ainda preso em um rabo de cavalo
todo desajeitado, e me puxa para trás.
— Eu sou um filho da puta — murmura, sua boca em meu ouvido.
A mão livre serpenteia por entre minhas pernas até meu clitóris, que ele
massageia como se conhecesse cada centímetro dele. — Sou um filho da
puta por ter desejado sua boceta todos os dias no último mais de um ano.
Ele rodopia em meu ponto sensível com a pressão certeira que causa
uma explosão insana em cada célula do meu corpo. Seus dedos apertam
meu cabelo com um pouco mais de força e suas investidas atrás de mim se
tornam mais rigorosas. Ele me fode gostoso, com força, sem se cansar. E
isso é tão bom!
— Agora estou aqui, comendo a boceta que tanto desejei. — Eu
gemo em resposta, amando o palavreado quando não deveria. — Comendo
a mulher que não saiu da porra dos meus pensamentos nesses últimos
malditos meses.
— Augusto… — choramingo e sobreponho minha mão à sua,
ajudando-o a se esfregar em mim, precisando da minha libertação.
— Eu me odeio tanto por ter te desejado com facilidade, por não ter
esquecido a primeira vez que te fodi. — Ele me puxa, colocando minha
nuca em seu ombro. Sua boca exigente toma a minha, em um misto de
raiva, paixão e desejo. — Eu me odeio muito mais por não ter ido atrás de
você depois do divórcio. Por não ter ido atrás de você dez anos atrás.
Não tenho tempo de responder porque ele me empurra contra o
vidro, segura em minha cintura e me come com uma intensidade
arrebatadora que faz meus gemidos ganharem volume, que faz todo meu
corpo colapsar. Eu gozo com um grito abafado. O orgasmo é tão potente
que perco a firmeza nos joelhos e estou despencando quando ele me segura
pela cintura, ainda se arremetendo atrás de mim.
— Preciso esporrar cada gota de gozo bem fundo em sua boceta —
sussurra, a voz quase em tom de suplício. — Preciso muito gozar gostoso na
sua boceta e te preencher inteira com a minha porra. Eu posso? Caralho, eu
posso?
Sem energia, só consigo acenar que sim. Augusto se torna quase um
selvagem um instante depois, rude, vigoroso e rápido. Ele goza dez
segundos mais tarde, um gemido delicioso reverberando da sua garganta
contra os azulejos. Ao terminar, ele me puxa para cima, mas me mantém de
costas para si, os jatos de água quente sobre nossos corpos. Seus braços me
rodeiam com carinho, o queixo apoiado no meu ombro. Um beijo estala no
meu pescoço e não dizemos nada um ao outro.
Ficamos em silêncio apenas apreciando o banho, o calor um do
outro e as sensações que os hormônios causaram em nosso sistema. Seus
braços me apertam mais, com carinho. Ele está ofegante como eu. Engulo
em seco porque o arrependimento se aproveita desse instante de quietude
para se infiltrar sob a minha pele.
CAPÍTULO 10

Nós tomamos um banho juntos e sinto Heloísa quieta demais. No


fundo, acho que já esperava que ficasse introspectiva. Que se arrependesse.
Não vou me surpreender se ela previsivelmente me disser que foi um erro o
que fizemos. Ela se enrola em um roupão e deixa o banheiro primeiro,
dizendo que vai conferir se Gustavo está dormindo tranquilamente. Eu fico
aqui mais um pouco, aproveitando os jatos de água quente contra meus
músculos tensionados.
Eu não me arrependendo.
Meu Deus, tirando um ano e meio atrás, não me arrependo de nada.
Lavo meu cabelo, esfregando delicadamente meus fios, até que, de
repente, penso em Mariana e volto dezoito meses no tempo.
Minha mãe tinha mandado preparar uma ceia farta para a ocasião,
como eram todos os anos. Mariana estava sentada à mesa em uma conversa
animada com a sogra e vestia uma calça pantalona vermelha, saltos e um
cropped ciganinha branco de mangas compridas. Os cabelos estavam
severamente amarrados e os brincos eram longos.
— Conseguiu falar com seu irmão? — minha mãe perguntou
quando retornei da sacada, onde eu estava fazendo uma ligação para
Conrado.
Sentei-me ao lado da minha esposa e servi uma taça de champanhe
para mim.
— Consegui. Ele não vem.
Cassandra suspirou lentamente, insatisfeita com a ausência do filho
mais velho.
— Não sei por que insisto em convidá-lo para os eventos da família
— minha mãe reclamou, espanando uma sujeirinha sobre sua impecável
toalha de mesa.
Forcei um sorriso e segurei minhas grosserias para mim. Afinal de
contas, era compreensível os motivos do Conrado ter se afastado. Eu
mesmo só havia aparecido por consideração e porque Mariana insistiu. Ela
sabia dos podres da família, mas também gostava de manter as aparências.
Acho que gostava mais do acolhimento que, de uma forma ou de outra,
meus pais proporcionavam. O pai dela foi embora quando ela e a irmã
tinham cinco anos, e não fazia muito tempo que a mãe havia morrido de um
infarto fulminante. Minha família, então, era toda a família que minha
esposa tinha.
Meu pai não demorou a se juntar a nós na mesa para beliscarmos os
petiscos até o relógio bater meia-noite. Assistimos os fogos de artifícios da
sacada da sala, Mariana envolvida no meu abraço, meus pais um ao lado do
outro. Trocamos abraços, desejos de felicidade e presentes. Minutos depois,
nos reunimos para ceia. Mariana fez questão de nos servir, para a alegria da
minha mãe. Assim que ela se sentou ao meu lado outra vez, Cassandra
disse:
— Mari, lembro que comentou comigo que você e Augusto
pretendiam ter um bebê ainda esse ano. Mudaram os planos?
Segurei um suspiro exasperado, porque o assunto “filhos” não era
algo que eu queria discutir com a minha família. Nem sabia se era algo que
eu queria discutir com a minha esposa. Não naquele momento, naquela fase
meio difícil que estávamos atravessando. O casamento não ia bem —
apesar de Mariana se esforçar para manter a fachada de casal perfeito — e a
última coisa que eu precisava era de uma criança no meio de pais com
questões mal resolvidas.
— Augusto mudou os planos — ela disse, suave, mas com uma
pitada de alfinetada. — Por mim, essa criança já teria até nascido.
Minha mãe me olhou em um questionamento silencioso. Ela vivia
me pressionando a lhe dar um neto, que já estava passando da hora, que eu
precisava de um herdeiro e toda essa ladainha.
— Não acho que estamos prontos para ter um bebê agora —
argumentei, virando um gole de champanhe. Olhei para o pedaço de chester
em meu prato, quase perdendo a fome.
Essa conversa não ia acabar bem. Sentia que não.
— Estamos casados há sete anos — Mariana interveio, aproveitando
o momento para tentar, mais uma vez, me convencer da ideia de
planejarmos um filho. É claro que ela se aproveitaria. Com o apoio da
sogra, ela achava que seria mais fácil me dobrar. — Nós dois temos
estabilidade financeira e emocional para conceber uma criança, Guto.
Troquei um olhar com meu pai, que nessas ocasiões preferia se
manter calado. E eu gostava que ele não se metesse nesse assunto.
— Por que essa resistência, Augusto? — minha mãe indagou,
comendo delicadamente uma porção de lentilhas. — Olhe para vocês. Têm
uma casa em um bom condomínio, condição financeira e formam o casal
perfeito.
— Estamos longe de ser o casal perfeito — retruquei, perdendo a
paciência. — Mariana, mais do que ninguém, sabe que não estamos bem.
Nosso casamento está desmoronando, droga.
Minha esposa olhou para mim, triste e chocada que eu tenha dito
isso em voz alta. Ela não se atrevia, nunca, a reclamar de mim ou da nossa
convivência para quem quer que fosse. Como eu disse, Mariana adorava
manter as aparências. Ela me convencia a manter nossos problemas dentro
das paredes de nossa casa, me convencia a participar do seu teatro de
família de comercial de margarina. Eu estava cansado de manter as
aparências, cansado dessa pressão em cima de mim. Acho que se eu não
tivesse meus próprios cuidados, Mariana teria engravidado sem meu
consentimento.
— O que isso quer dizer? — meu pai se manifestou pela primeira
vez.
— Significa que estamos em crise — falei, impaciente. — Já faz
meses.
— Não é verdade — Mariana se intrometeu, a voz chorosa com uma
pitada de decepção. — Temos discutido com mais frequência, sim, mas não
estamos em crise.
Bufei, irritado. Ela sabia que ia muito além de discussões. Nós dois
simplesmente não funcionávamos mais. Nosso relacionamento estava
morno, nossas brigas eram bobas, nós nos magoávamos com facilidade e
dificilmente sentávamos para nos reconciliar, ter uma conversa adulta e
civilizada. Nós discutíamos, passávamos um ou dois dias sem nos falar e
depois, já estávamos bem, como se nada tivesse acontecido. Sem uma
conversa franca para colocar à mesa o que nos incomodava, o que nos
entristecia. Como ela ainda ousava dizer que… que tínhamos um emocional
equilibrado, pelo amor de Deus?
— Estamos em crise — teimei porque, dessa vez, não ia entrar em
seu teatro. — Eu passei duas semanas fora a trabalho e você mal ligou para
mim para saber como eu estava, porra.
— Porque você mal ligou para mim para saber como eu estava —
acusou de volta. — Cansei de sempre tomar a iniciativa, Augusto.
— Como se eu nunca tomasse a iniciativa, não é? — cuspi,
afastando o prato porque perdi a fome. — Você só queria que eu afagasse a
droga do seu ego. Nada mais que isso. Tudo o que quer é me ver me
rastejando por você, que eu viva em função de você.
Ela balançou a cabeça em negativo. Vinha sendo sempre assim —
uma luta incansável para definir quem tinha o orgulho maior. Eu não dava o
braço a torcer, Mariana tampouco. Eu queria que minha mulher demostrasse
que ainda se importava comigo e com nosso casamento. Ela queria o
mesmo de mim, mas no fim das contas, nenhum dos dois lados cedia.
— É Natal — mamãe interferiu, nos lembrando de acalmar os
ânimos. — Por favor, não vamos discutir.
— Não estamos discutindo — Mariana e eu dissemos ao mesmo
tempo.
Suspirei e precisei de um gole da minha bebida.
— Eu só queria que você reconsiderasse — minha mulher
murmurou, a voz quebrada.
— Não vou te dar um filho só para tentar consertar a droga desse
casamento — disse rude demais.
Ela me encarou com olhos tristes antes de se levantar e sair às
pressas em direção ao quarto de hóspedes onde eu sabia que tinha deixado
sua bolsa. Fechei os olhos por um instante, me odiando por ter dito o que
disse, e fui atrás dela. Como já era de se esperar, Mariana estava juntando
alguns dos seus pertences para ir embora.
— Vamos conversar — pedi, pegando a bolsa de sua mão.
Mariana manteve a cabeça baixa, a respiração lenta e calma, mas eu
sabia que, por dentro, estava irritada comigo.
— Não temos o que conversar. — Ela puxou sua bolsa de minha
mão com toda força e estava prestes a sair quando segurei seu cotovelo.
— Como pretende que a gente tenha um bebê dessa maneira, porra?
— A pergunta saiu entredentes, cheia de raiva. — Você… nem tenta se
resolver comigo.
Seus olhos se voltaram para mim, marejados.
— Por que não podemos ter um bebê? — questionou como se eu já
não tivesse dado meus motivos um milhão de vezes.
— Porque não estamos bem — respondi de novo, compassivo. Eu a
tomei em um abraço, mas durou pouco tempo porque ela me afastou. —
Precisamos… lidar com essa crise primeiro, Mariana.
— Um bebê pode nos ajudar com essa crise. — Balancei a cabeça
em negativo. Ela se agarrou à lapela do meu paletó como se fosse naufragar.
— Um filho pode… nos unir de novo, Augusto.
— Não, Mariana. Um bebê não vai resolver os nossos problemas.
Ela deu um passo atrás e uma lágrima escorreu dos seus olhos. Se eu
fosse um bom marido, eu cederia ao seu pedido, daria um voto de confiança
a Mariana porque talvez ela estivesse certa. Naquele momento, contudo,
não estava agindo como o marido dela. Estava agindo como um homem
racional.
— Se não acredita nisso, então não tenho porquê me manter casada
com você — disse e suas palavras saíram trêmulas. — Talvez o melhor seja
nós nos divorciarmos.
Aquilo me pegou de surpresa e doeu em meu coração. Apertei o
maxilar.
— Não quero o divórcio — falei e dei um passo adiante.
— Não? Suas atitudes dizem o contrário.
— Minhas…? — Ri, inconformado. — Minhas atitudes? Não quero
a porra do divórcio, Mariana. — Eu me aproximei mais e a segurei pelos
braços. — Quero consertar nosso casamento.
— Então me dê um bebê — insistiu.
Respirei com dificuldade.
— Precisamos nos entender primeiro.
Ela me deu um murro no peito.
— E se nunca nos entendermos? E se tentarmos por mais um, dois,
cinco anos e nunca nos entendermos? Eu vou ter perdido toda a merda do
meu tempo com você?!
Suas palavras me machucaram, o tom de desdém que usou, como
se… eu não significasse muita coisa para ela. Me machucaram porque,
apesar de toda a nossa crise, eu a amava. Não queria a via mais fácil.
Diferente dela, preferia tentar arrumar nosso relacionamento antes de
decidirmos pelo divórcio.
— Eu quero um filho — Mariana disse, a voz embargada. — Se
você não quer me dar um, então não serve para nada em minha vida.
Ri, não conseguindo controlar uma lágrima que rolou pelo meu
rosto. Preferi não prolongar a discussão e passei por ela, desejando apenas
ir embora. Mal abri a porta quando senti seus dedos cheios de anéis
rodearem meu punho.
— Por favor, Guto. É noite de Natal — sussurrou, a voz calma e
dolorida.
Balancei a cabeça e me soltei dela.
— E parece que você acabou de me pedir o divórcio, então por que
se importa?
Não esperei por sua resposta e saí.
Tenho a impressão de que ainda posso ouvir o estrondo da porta se
batendo com força quando deixei o quarto de hóspedes. Suspiro devagar,
afastando as lembranças da minha cabeça. Termino meu banho, me enrolo
em uma toalha e me visto. Heloísa me disse que ia conferir o bebê, então
sigo até o quarto dele para verificar se ela ainda está lá. Eu a encontro de
frente para o berço, velando o sono do sobrinho. Ela nota minha chegada,
mas mantém a postura. Paro atrás dela e envolvo seu corpo com meus
braços. Apoio o queixo em seu ombro e ouço seu suspiro. Gosto de abraçá-
la e gosto ainda mais que esteja usando uma das minhas camisas.
— Ele está dormindo tão tranquilo — Heloísa sussurra. — Sem
nenhuma preocupação, sem ter que lidar com sua própria consciência por
ter feito algo errado.
Entendo sua alfinetada, mas não digo nada por um minuto.
— Você está arrependida?
Heloísa não responde de imediato. Tudo que faz é ficar encaixada
no meu abraço, olhando para o sobrinho. Instantes mais tardes, ela se vira
para mim e eu mantenho meu cerco em torno do seu corpo. Seus olhos se
erguem aos meus, e quase não posso ver a cor deles por causa da pouca
luminosidade no ambiente.
— Não sei.
— Quer conversar sobre isso?
Ela suspira e assente. Eu me afasto, em um gesto silencioso para
conversarmos em outro lugar, e antes de me seguir, Heloísa se inclina na
direção de Gustavo e beija as bochechas dele. No lado de fora, ela hesita
por um segundo, não sabendo para onde devemos ir. Tomo a iniciativa e
sigo para meu quarto.
— Vem aqui — eu a puxo até minha cama e a sento ao meu lado. —
Então?
— Você está bem com o que fizemos? — pergunta, olhando para
mim. — Está bem com as coisas que disse pra mim?
— Por que eu não estaria?
— Augusto…
Seguro suas mãos e me ajeito melhor na cama, ficando de frente
para ela. Heloísa hesita e leva algum tempo para me olhar nos olhos.
— Não fizemos nada de errado — argumento, e ela solta uma risada
triste. — Eu não disse nada além da verdade. Não tem que se sentir mal.
Heloísa permanece em silêncio por alguns segundos e tenho a
impressão de que vai ser difícil se livrar do sentimento de culpa.
— Você não se arrepende?
— Não. Eu me arrependo de um ano e meio atrás, porque não foi
justo com a Mari. Por mais magoado e bêbado que eu estivesse, por mais
que meu casamento estivesse desmoronando, não foi justo, nem correto. Eu
me arrependi muito e sua irmã sabia disso.
— E acha justo com a memória dela o que me disse? — Sua voz cai
um tom e seus olhos se distanciam de mim antes de fechá-los e suspirar. —
Eu… Ai meu Deus, naquela hora foi tão bom ouvir, mas depois que
passou… fiquei me perguntando o quão errado é.
Aceno devagar, entendendo sua preocupação.
— Acho que Mariana e eu teríamos acabado em divórcio com ou
sem traição. — Pego uma mecha do seu cabelo e o enrolo delicadamente
em meu dedo. Ela me encara, suas íris repletas de dúvidas. — Acredite em
mim quando digo que não te desejei enquanto estava casado com sua irmã.
Eu a amava, Heloísa. De verdade.
Ela fica cabisbaixa.
— Nosso relacionamento estava desgastado e desmoronando —
continuo, agora colocando a mexa ondulada atrás de sua orelha. — Cometi
um erro porque estava bêbado, ferido e… — suspiro — odeio admitir em
voz alta, mas eu também estava fragilizado naquele momento. — Abaixo o
tom de voz, como se dizer isso ainda doesse: — Ela sugeriu um divórcio no
Natal. No Natal. E me disse que eu não servia para ela se não fosse para
engravidá-la.
— Você ao menos tem uma desculpa — murmura, a voz quebrada.
— Eu nem isso. Nada justifica ter dormido com você.
— Estávamos os dois bêbados, Heloísa.
Ela balança a cabeça em negativo, recusando-se a aceitar essa
justificativa. Puxo seu rosto em minha direção, acariciando suas bochechas
com meus polegares.
— Não vai adiantar nada se martirizar. Passou. Cometemos um erro
e nos arrependemos. Não é como se tivéssemos mantido um caso, é? A
Mariana perdoou nós dois, Helô. Se agarre a isso.
Vejo lágrimas tímidas rolarem pelos seus olhos.
— Eu não queria estar apaixonada por você — confessa, a voz
quase inaudível. — Não queria ter gostado de te ouvir dizer que me
desejou. Por favor, Guto, me diz que você não pensava em mim quando
estava com ela.
Encosto nossas testas e entrelaço nossas mãos.
— Juro, Heloísa. — Soo sincero. — Às vezes, eu pensava de forma
inocente, no que teria sido nossa história se você tivesse ido à barraca do
beijo. Mas nada além disso. Eu só me apaixonei por você depois daquele
Natal, depois do divórcio.
Não dizemos nada um ao outro por alguns segundos, e aproveito o
momento para apenas apreciar sua presença, seu respiração quente contra o
meu rosto.
— Quero ficar com você — ela diz, um tempo depois. — Quero ter
a nossa história que eu deixei escapar pelos meus dedos. — Heloísa levanta
o rosto, seus olhos ainda cheios de dúvidas e medos. — Espero que a
Mariana não me odeie, onde quer que esteja.
Abro um sorriso pequeno e acaricio sua bochecha, sem deixar de
encará-la.
— Ela era uma boa pessoa. Se você não tivesse se afastado, sua irmã
teria tido a chance de te dizer que te perdoava.
Heloísa move a cabeça.
— Foi ela quem se afastou, Augusto.
— Sua irmã só cortou contato por um tempo, é verdade, mas foi
você quem sumiu, Heloísa. Acho que morou em outra cidade por alguns
meses.
Ela franze o cenho, como se eu tivesse dito uma grande asneira.
— Eu nunca saí de São José.
Entreabro os lábios, sem saber o que dizer. Por meses, não tive
notícias dela. Heloísa pediu demissão do bar que ela trabalhava, se mudou e
nunca mais soube do seu paradeiro até reencontrá-la um mês atrás por causa
da morte de Mariana. Será que ela esteve, então, o tempo todo por perto?
Não é exatamente uma metrópole e tenho colegas do ensino médio que eu
sei que ainda moram por aqui, mas nunca mais nossos caminhos se
cruzaram, então… é possível que ela tenha apenas se isolado?
— Sempre achei que foi você quem se afastou da Mariana. Ao
menos, foi o que ela me disse quando assinamos o divórcio.
Heloísa nega.
— Ela estava morando em Santa Mônica, lembra? — Assinto, mas,
segundo o contrato com a imobiliária, ela estava morando lá havia cerca de
um ano. — Mariana quem rompeu nossa ligação. Tudo bem minha irmã ter
se afastado de mim e ter dito que foi eu que me afastei. Ela tinha todo o
direito de tentar piorar ainda mais a minha imagem, não é?
Pondero por um segundo e talvez faça sentido. De qualquer
maneira, isso não importa mais.
— Mariana deixou o Gustavo com a gente — murmuro,
aproximando meus lábios dos seus. — Ela poderia ter nos excluído do
testamento, mas preferiu que nós cuidássemos do garoto. Isso significa
muito, Heloísa. Talvez até que… ela estivesse tentando nos juntar.
Heloísa ri entre as últimas lágrimas que seca com o dorso de sua
mão.
— Acho muito inocente de sua parte pensar assim.
— É uma possibilidade, por que não? Por qual outro motivo ela
pediria que tutelássemos o filho dela? De todas as pessoas no mundo, por
que justamente nós dois? O ex infiel e a irmã gêmea que dormiu com o
marido dela?
Um sorriso triste surge no seu rosto.
— Acho que vou me agarrar a isso — sussurra e ergue o olhar para
mim. — Não quero conviver com essa culpa de ter acabado com seu
casamento pelo resto da minha vida.
— Você não acabou com meu casamento. Eu sei que já te culpei,
mas… não foi sua culpa, está bem? — Afago sua bochecha. — Meu
casamento com Mariana era como um prédio com a estrutura
comprometida. Muitas coisas afetaram nossas bases antes que ele
desmoronasse por causa de um único tijolo que foi retirado. Esse prédio ia
cair de qualquer forma.
De repente, Heloísa me abraça apertado. Retribuo o seu gesto,
inalando fundo seu cheiro bom. Ela se afasta e me beija. É um beijo
afetuoso e calmo, sem qualquer dúvida. Eu a deito na cama e jogo meu
corpo por cima do dela. Minhas mãos enveredam por dentro da minha
camisa que ela usa até eu alcançar sua boceta. Seu gemido baixo contra
meus lábios me endurece quase na mesma hora e aprofundo nosso beijo.
Dois minutos mais tarde, estou dentro dela outra vez.
CAPÍTULO 11

O choro de Gustavo me desperta no meio da madrugada. Levo mais


um instante para tomar consciência do calor do corpo de Augusto agarrado
ao meu. Ele resmunga e me aperta entre seus braços fortes antes de fazer
menção de se levantar.
— Deixa — impeço, puxando-o de volta. — Eu vou.
— É a minha noite — pontua, sonolento, e joga outra vez seu braço
forte sobre meus quadris.
— Eu sei. — Beijo seus lábios antes de me desvencilhar dele e ir ao
quarto do pequeno.
Acendo o abajur assim que entro e encontro o projetinho de ser
humano em pé dentro do berço, apoiando-se nas grades. Gustavo balbucia,
chamando por mim e flexionando as perninhas. Ao me aproximar, ele ri e
chora entre lágrimas. Seus braços se erguem em minha direção, clamando
por colo, e antes que caia para trás, eu o agarro.
— O que foi, bebê? — sussurro assim que Gustavo encosta a cabeça
em meu ombro.
Confiro sua fralda e constato que está seca. Tateio o colchão, atrás
da chupeta e do urso de pelúcia, que não demoro a encontrar. Eu o embalo
lentamente, um pouco aliviada de que não quer uma mamadeira de leite, e o
observo apertar o ursinho de pelúcia e sugar a chupeta. Cinco minutos mais
tarde, sua respiração está mais pesada e sei que voltou a dormir. Abaixo-o
de volta ao berço, mas assim que seu corpinho afunda no colchão, meu
sobrinho abre os olhos e resmunga. Tento mantê-lo ali e não consigo porque
ele volta a chorar. Acalmo-o outra vez. Faço mais duas tentativas, contudo,
o pequeno segue não querendo ficar no berço.
— Tudo bem — digo baixinho, afagando suas costas. — Mas só
essa noite.
Apago as luzes ao sair e encosto a porta. De volta à suíte principal
— que eu tenho compartilhado com Augusto desde que entramos em um
relacionamento há três dia —, eu balanço meu namorado lentamente.
— Guto.
Namorado.
— Hum? — Ele abre os olhos devagar.
— Gustavo está manhoso e não quer o berço. Chega pra lá.
Namorado.
Ele se afasta o suficiente para eu acomodar meu sobrinho entre nós.
Diferente de segundos atrás que ele chorou quando o coloquei no berço,
dessa vez, Gustavo permanece dormindo. Ele esconde o rosto no meu colo
e apoia a mãozinha direita no meu seio.
Namorado.
Ainda estou me acostumando com a palavra e, acima de tudo, com o
nosso relacionamento. Lá no fundo, ainda tenho a sensação de que não é
certo estarmos juntos, que eu feriria minha irmã se ela soubesse disso, mas
tenho me esforçado para pensar em coisas boas e me livrar da culpa.
Augusto se arrasta sobre o lençol até estar perto o bastante para envolver o
corpinho de Gustavo e manter um espaço confortável para ele respirar.
— Ele não quis mamar? — sussurra, olhando para mim.
A luz do meu abajur está acesa, então podemos ver ao menos a
penumbra um do outro.
— Não. Acho que ele só está carente. — Afago sua bochecha. Gu
está dormindo bem tranquilo com a chupeta e sem o ursinho, que ficou no
berço depois da minha última tentativa. — Vai ser só essa noite.
Augusto me dá um sorriso irônico.
— Sei.
— É sério! — sussurro contendo uma risadinha. — Vou ser firme
com Gustavo e não vamos compartilhar mais a mesma cama.
O braço forte de Augusto se fecha mais em torno do corpo do
menino.
— Tente me convencer disso.
Rio baixinho e me ajeito na cama, meus olhos nos de Augusto.
— Você sabe quando o teste de DNA fica pronto?
— Em até três semanas depois da coleta.
Suspiro, porque ainda temos mais pelo menos doze dias até o
resultado. Aconchego-me melhor na cama e Augusto me abraça pela cintura
com o braço direito. Ele se inclina um pouco, deixando um beijo suave em
mim. É um gesto tão simples que mexe demais com todo meu sistema.
Talvez não seja apenas o gesto, mas todo o conjunto.
— Somos uma família agora — ele sussurra e beija a bochecha
corada de Gustavo. — Não importa que o teste dê negativo, ou que o juiz
anule o testamento da Mariana. Eu vou lutar por vocês, Helô. Vou lutar pela
minha família.
Aperto os olhos, comovida com suas palavras. Só faz pouco mais de
um mês que nos reencontramos, que Gustavo está sob os nossos cuidados e
ainda há essa incerteza entre nós. Mas apesar disso tudo, eu sinto o mesmo
que Augusto. Sinto que somos uma família, que podemos fazer isso. Mais.
Eu quero fazer isso, quero essa família, ainda que não tenha o direito, ainda
que eu não mereça.
— Se precisar, vamos lutar juntos — determino, fechando seus
dedos nos meus. — Boa noite, Guto.
— Boa noite, Helô.

Eu acordo primeiro do que os dois. Eles se mexeram bem durante a


noite, tanto que, agora, Augusto está debruço, uma perna para fora da cama,
e Gustavo está de ponta-cabeça, com o rosto apoiado nas costas do pai.
Deixo um beijo suave nas bochechas de cada um deles antes de ir à cozinha
preparar o café da manhã.
Pouco tempo depois, quando estou fatiando o pão sovado, sinto os
braços dele rodear minha cintura. Seu aroma matinal é uma delícia e me faz
sorrir, em especial porque ele me aperta e beija meu ombro.
— Bom dia — sussurra.
— Bom dia. Deixou o Gu sozinho na cama?
— Coloquei as grades de proteção.
Sorrio com o beijo que ele deixa no meu pescoço.
— Você ainda gosta de banana toast com doce de leite? — pergunto.
— Eu adoro. É o café da manhã de hoje?
— Aham. Pretendo correr antes de você ter que ir trabalhar e é um
bom pré-treino.
Deixo o pão e a faca de lado e me viro para Augusto. Seu cabelo
está desgrenhado, o rosto marcado de sono, e o hálito está fresco, indicando
que escovou os dentes. Ele envolve meus lábios em um beijo singelo e sorri
ao se afastar.
— Gosto dessa rotina — diz. — Gosto de sermos uma família.
Não tenho tempo de responder porque sua boca está na minha outra
vez. Seu beijo agora é mais firme e lascivo, intensificado quando suas mãos
agarram minha cintura e me colocam sobre a bancada. Rimos juntos quando
derrubo um pote de vidro com doce de leite com a bunda. Enquanto me
beija de novo, Augusto levanta o recipiente, afastando-o.
— Não temos tempo para um namoro indecente, senhor Monteiro.
— Ainda são seis e meia. Eu só entro às nove e você só entra às
quatorze, certo?
Suspiro e enlaço seu pescoço, concordando.
— Devo voltar de madrugada. O feriado prolongado começa
amanhã, mas aquele restaurante já está uma loucura.
— Mais um motivo para namorarmos indecentemente na cozinha.
Sorrio contra seus lábios e assinto, argumentando:
— Rápido porque o Gu pode acordar a qualquer momento.
Augusto segura minha nuca e me puxa para um beijo delicioso e
cheio de desejo. Seus lábios permanecem nos meus por um minuto antes de
ele me empurrar para trás, fazendo-me sustentar sobre minhas palmas e
apoiar minhas pernas na bancada. Com um movimento sexy, ele separa
meus joelhos e abaixa meu short e minha calcinha. Suas mãos se mantêm
firmes em minhas coxas quando sua boca mergulha em minha boceta.
Jogo minha cabeça para trás, amando a sensação que atravessa meu
sistema. Entreabro os lábios e gemo baixinho, afundando meus dedos em
seus cabelos. Sua língua incrível percorre todo meu sexo, do clitóris
clamando por atenção à minha entrada molhada. Sinto que posso colapsar a
qualquer momento, principalmente quando Augusto crava com vontade
seus dedos em minhas coxas, mergulhando ainda mais o rosto contra minha
boceta.
Começo a perder a força em meus braços e tudo o que quero é
esparramar sobre a bancada e me deixar levar. Para intensificar o desejo,
Augusto joga minhas pernas sobre seu ombros e afunda mais seu rosto por
entre minhas coxas. Uno meus calcanhares em volta da sua nuca e inclino
meu corpo para trás, recebendo com prazer sua boca suculenta. Augusto é
diligente com cada centímetro que encontra pelo caminho, usando a ponta
de sua língua rígida para estimular meu clitóris, ou para me penetrar, ou
ainda para passear pelo interior dos meus grandes lábios. É um sacrifício
suportar que sua boca cubra todo o meu sexo e ele me sugue intensamente,
mamando minha boceta como se quisesse extrair tudo de mim. Ele se
dedica mais, chupando, lambendo e sugando com uma intensidade deliciosa
e torturante.
— Vou gozar na sua boca — aviso entre sussurros entrecortados. —
Ai, Augusto… Eu vou… Assim, chupa gostoso minha boceta. — Aperto
seus fios e movo o quadril de encontro ao seus lábios, procurando minha
libertação.
— Goza, safada — incentiva, esfregando meu clitóris por dois
segundos antes de estimulá-lo com a ponta da língua e me foder com dois
dedos.
Meu corpo queima e clama pelo ápice, que vem sem demora em
uma explosão alucinante. Aperto os olhos, sentindo minha cabeça girar, o
coração acelerado e a respiração irregular. Gozo na sua boca, apertando
suas têmporas com meus joelhos. O orgasmo dura dez segundos — e são os
dez segundos mais incríveis da minha vida. Augusto fica entre minhas
pernas mais alguns segundos antes de subir para a minha boca e me beijar.
Ele me puxa de cima da bancada, sem desgrudar nossas bocas e sussurra,
enfiando a mão por dentro da camisa dele que eu visto:
— Agora você tem que me dar essa boceta.
Sem esperar por resposta, Augusto me vira de costas e me inclina
contra a bancada, erguendo minha perna esquerda. Eu me agarro à borda do
mármore e separo um pouco mais as pernas. Mordo o lábio inferior,
sentindo a corrente de excitação passar pelo meu corpo ao me sentir
exposta, obscena.
— Não quero que soque fofo.
Ele resmunga e junta um punhado do meu cabelo que se desprendeu
do coque, puxando-me.
— Quando foi que soquei fofo, Heloísa? — pergunta, soltando um
tapa em minha boceta. — Sabe muito bem o jeito que eu soco. Ontem
mesmo, não me disse que trabalhou o dia todo pensando em voltar para
casa e abrir as pernas para mim?
Suspiro, trêmula, sentindo meu corpo aquecer outra vez com o
carinho dos seus dedos no meu sexo molhado. Ele me estapeia.
— Admita.
— Droga — gemo. — Sim. Eu só queria voltar para casa e sentar
gostoso no seu pau, ou ficar de quatro na sua cama para você socar forte.
Eu… — Engulo um gemido quando ele insinua a ponta de seu sexo na
minha entrada. — Augusto, me come. Minha boceta precisa muito do seu
pau. Agora.
Seus dedos agarram minha cintura e com um único golpe, ele me
penetra, deslizando para dentro de mim com facilidade. Então, ele me fode
com muito mais vigor a cada nova estocada, rápido e sem descanso. Os
sons das nossas peles se chocando ressoam pelo ambiente e não faço
cerimônia para gemer. Eu quero gemer alto. Quero gemer gostoso. E é o
que faço, sem pudor, sem vergonha, sem receios. Em resposta, Augusto
enfia seu pau em mim cada vez mais fundo, causando-me um misto de dor e
prazer. Ele enrola uma porção de meus cabelos em sua mão e me puxa um
pouco para trás, o suficiente para alcançar meu ouvido e me manter
empinada.
— Você gosta de receber pau, não é… — sussurra, mordiscando a
ponta da minha orelha. Sua voz rouca causa um abalo em todo meu sistema
quando completa: — Sua vadia?
Minha boceta se contrai ao redor dele. Augusto geme em resposta e
me dá um tapa na bunda.
— Porra. Esmaga de novo o meu pau.
— Me chame de vadia outra vez — peço, procurando pelos seus
lábios.
Posso sentir o sorriso dele ao me beijar e amo o seu hálito quente
contra a minha nuca quando rouqueja:
— Sua vadia. — Contraio-me, estimulada. Ele geme de volta,
estrangulado. O aperto em meu cabelo aumenta, suas estocadas se tornam
muito mais vigorosas. Eu o esmago mais. — Heloísa… porra, que chá de
boceta gostoso.
— Tão gostoso quanto a surra de pau que está me dando. — Rebolo,
movendo-me para frente e para trás no mesmo ritmo que ele. — Ai, cacete,
que delícia, Guto. Que delícia!
Ele afunda ainda mais seus dedos em minha carne, dando os sinais
que conheço bem.
— Me ajude a gozar nessa boceta… — pede, suplicante. — Por
favor, por favor.
Eu levo minha mão por entre minhas pernas e alcanço seu pau que
entra e sai de mim. Augusto suspira, gostando quando meus dedos o
envolvem o máximo possível. Permaneço nessa posição, estimulando-o, e
acrescento:
— Goze em mim, Guto. Me enche com a sua porra quente e gostosa
e a deixa escorrer pela minha boceta.
— Caralho. Ah, meu Deus. Ah-ah… Ah! — O ritmo do seu quadril
de encontro ao meu se intensifica e quando suas estocadas violentas são
precedidas por uma série de gemidos entrecortados, sei que ele gozou.
Augusto abraça ao meu redor e deita a cabeça em minhas costas por
um segundo para recuperar o ar, mantendo-me em minha posição durante
esse meio-tempo. Ele sai de dentro de mim lentamente, e no caminho,
consigo sentir seu sêmen quente escorrendo pelo meu sexo. Sua mão grande
envolve minha boceta e ele espalha seu gozo pela minha superfície. Um
tapa estala em minha bunda.
— Gostosa. — Augusto me vira para si e me beija mais, seus dedos
ainda entre minhas coxas, acariciando-me. Seus lábios percorrem a linha da
minha mandíbula até o meu ouvido: — Vadia safada.
— Gostoso — respondo com um sussurro, beijando sua mandíbula.
— Seu safado gostoso. Infelizmente, vou ter que chegar de madrugada do
trabalho e mamar o seu pau até gozar na minha boca.
Ele me dá um sorriso sacana.
— Que delícia. Digo, que absurdo!
Caio na gargalhada e me aconchego no seu tórax por um instante
antes de receber um tapa na bunda e Augusto me puxar para o chuveiro.

O sexo matinal adia meus planos de ir correr, mas tudo bem. Depois
de uma chuveirada rápida, enquanto Augusto se arruma para ir para o
trabalho, eu termino nossa refeição — passo café e faço as bananas toast
em fatias de pão sovado. Gustavo chora do quarto principal e ouço Augusto
gritar que cuida dele.
Ajeito a mesa e preparo o que Gustavo vai comer — uma papinha
de banana e mamão e um pouco de fórmula. Durante todo esse tempo,
posso ouvir o escândalo do menino. Penso em ir até lá e verificar o que está
acontecendo, mas me contenho. Instantes depois, quando tudo já está
pronto, Augusto surge dentro de um terno ajustado, meu sobrinho em seus
braços, usando só uma fralda e uma camisa branca.
— Eu não consigo trocá-lo — reclama, com um suspiro. — Gustavo
simplesmente não para de chorar e pedir por você.
Ao dizer isso, o menino se inclina para mim, chorando.
— Mamã… mamã…
Uma vez em meus braços, Gustavo parece se acalmar, escondendo o
rostinho no meu pescoço enquanto afago suas costas e converso baixinho
com ele.
— Ei, carinha — Augusto diz, cutucando as costas dele. Hesitante,
Gustavo se vira. — Vem comigo. — Gesticula com as duas mãos.
Emburrado, o pequeno move a cabeça em negativo e torna a
esconder o rosto em minha pele.
— Gustavo gosta mais de mim do que de você — debocho,
sentando-me no meu lugar à mesa.
— Ha-ha-ha. — Augusto se senta no seu, servindo uma xícara de
café para si. — Ele só está assustado porque acordou sozinho na nossa
cama. É natural que quisesse você.
Ajeito o pequeno no meu colo, que agarra a mamadeira de fórmula
assim que entrego para ele. Não tiro meus olhos do pequeno e nem de
acariciar suas bochechas enquanto, quietinho, ele suga o bico da
mamadeira. Esse peralta costuma ficar inquieto mesmo nos horários das
refeições, mas agora está comportado em meus braços.
— Quer que eu tome conta dele para você tomar seu café da manhã?
— Augusto oferece, colocando uma banana toast em seu prato.
— Mesmo se eu quisesse — sussurro, passando o indicador pelos
traços do Gu —, ele não ia aceitar. Está tudo bem. Você tem que ir para a
construtora, então coma sossegado. Eu consigo tomar conta dele e comer.
— Pego uma banana toast com a mão livre e dou uma mordida, sentindo a
canela, a textura da fruta e a cremosidade do doce de leite. — Viu? — digo,
a boca meio cheia.
Ele ri baixinho e acena.
Conversamos em torno da mesa até que uma ligação faz com que
Augusto tenha que estar quarenta minutos mais cedo na empresa. Ele
termina seu café às pressas e vem até nós antes de partir.
— Preciso deixar alguma coisa pronta para você comer quando
chegar do restaurante? — questiona, beijando minha têmpora.
— Não. Eu como algo por lá. Só chego de madrugada. Se quiser,
coloca o Gu pra dormir com você.
Ele sorri e acena.
— Tudo bem. — Augusto se inclina para Gustavo e o beija. — Até
mais tarde, campeão. — Gustavo está sentado em meu colo agora, comendo
a papinha de banana e mamão, e gosta do beijo que recebe, abrindo um
sorriso gostoso. — Tchau, Helô. — Carinhoso, ele me beija nos lábios.
Para nossa surpresa, uma mãozinha cheia de papinha de fruta nos
separa. Gargalhamos ao notar a carinha brava de Gustavo por causa do
beijo que trocamos.
— Isso é ciúmes, carinha? — Augusto me beija de novo. E de novo,
Gustavo coloca sua mãozinha entre nossos lábios, bravo. — Ei, a tia é sua,
mas a namorada é minha. — Ele tenta outra investida, mas o menino o
repele pela terceira vez.
Quando Augusto vai trabalhar, eu passo a manhã com Gustavo.
Primeiro troco sua fralda e coloco uma roupa mais fresca, já que o dia está
ensolarado. Com o auxílio do cercadinho e de um desenho na televisão,
consigo fazer algumas tarefas básicas dentro de casa — estendo algumas
roupas, arrumo os quartos e lavo a louça do café da manhã. Lá pelas dez, eu
o levo até o jardim e nos sentamos à sombra. Ele se distrai com um
brinquedo enquanto eu passo um protetor solar pelo seu corpo. O pequeno
ri e se diverte com o carinho, em especial quando eu o encho de beijos.
Quinze minutos mais tarde, volto lá para dentro com ele, sentindo o
cheirinho forte de fralda suja.
— Eita, como tem um intestino bom — brinco ao abrir sua fralda.
— Mamã — Gustavo ri, batendo as mãozinhas no colchão.
— Mamãe.
— Mamã-mamã.
Rio e o limpo, conversando com ele. É uma tarefa um pouco difícil
porque Gustavo simplesmente não para, mesmo que eu tente distrai-lo com
um brinquedinho. Apesar da dificuldade, eu me divirto com o momento.
Me alegra vê-lo girar de um lado a outro, ora tentando alcançar o
travesseiro, ora atraído por qualquer outra coisa.
— Quieto. — Puxo-o para mim, enfiando meus dedos nas suas
costelinhas. Gustavo ri, contorcendo-se ainda mais. — Como vou te trocar
se você não para um segundo?
Sua resposta é bater os pés e as mãos.
Consigo colocar a fralda e subo o short por suas pernas. Ajusto a
camisa branca em seu tronco e o pego em meu colo, apertando-o entre meus
braços, o que arranca uma risada sincera do menino. Aumento a pressão em
torno dele, deixando todo esse sentimento bom invadir o meu sistema.
Quando eu o afasto, Gustavo coloca as mãozinhas em minhas bochechas e
sem que eu espere, ele me beija. A atitude me pega de surpresa. Não é o
primeiro beijo que Gustavo me dá, mas é a primeira vez que o gesto é
espontâneo, que ele não está retribuindo nada.
— Mamã-mamã-mamã — balbucia, colando seus lábios pequenos
em mim outra vez, quase como se quisesse me dizer eu te amo.
Eu me comovo, o coração apertado de um jeito bom.
— Eu também te amo, Gu. — Sorrio e fecho os olhos, embalando-o
devagar, curtindo seu cheiro de bebê e do talco em sua pele. — Eu também
te amo muito.
CAPÍTULO 12

Eu balanço o menino no meu colo e troco um olhar com Conrado,


um pouco desconfiada.
— Vai ser um dia divertido — meu cunhado diz, tentando me
acalmar. Ao seu lado, minha agora sogra está me dando um sorriso forçado,
como se ela aprovasse de verdade meu relacionamento com Augusto, o que
todos nós sabemos que não é o caso.
É feriado de Corpus Christi, e como Augusto já tinha me dito uma
vez, a mãe quer passar um tempo com o neto. Eu jamais permitiria que
Cassandra ficasse sozinha com Gustavo, embora eu saiba que ela não faria
nada de mau ao menino. Não confio nas suas intenções, porém. Ela pode
muito bem tentar tirá-lo de mim.
— Vocês vão aonde? — pergunto, afagando as costas do meu filho.
Meu filho.
— Helô, é só um passeio pela cidade — Augusto argumenta,
surgindo ao meu lado e abraçando minha cintura. — Vai ficar tudo bem. O
Conrado pode ser um desmiolado e sem qualquer habilidade com crianças,
mas minha mãe, apesar de tudo, é bem responsável e criou dois filhos. De
qualquer forma, também vou estar junto.
Ele beija minha têmpora e Conrado ergue o dedo do meio para a
provocação do irmão. Na mesma hora, dou um tapa em sua mão e o advirto
por fazer esse gesto na frente do bebê.
— Tudo bem. — Assinto e passo Gustavo para o Conrado. O
menino fica todo animado no colo do tio, e vejo alguma sinceridade em
Cassandra quando ela acaricia os cabelos do neto e conversa com ele.
— Vou cuidar bem dele. Vamos cuidar bem dele — Augusto
garante, beijando minha bochecha. — Pode comandar aquela sua cozinha
sossegada.
Belisco sua costela.
— Bem, quer dizer que enquanto vocês todos aproveitam o feriado,
eu tenho que trabalhar duro?
Augusto ri e aproxima seus lábios dos meus.
— É você quem insiste em não ser uma esposa do lar.
— Estou começando a reconsiderar. — Beijo sua boca. — Não
deixa sua mãe sozinha com o Gu, tá? — sussurro só para ele ouvir. —
Ainda não confio nela.
Meu namorado sorri contra meus lábios e dedilha minha cintura em
um carinho gostoso.
— Não vou tirar os olhos do nosso filho.
Nosso filho.
— Se divirtam — desejo aos quatro.
Eles se vão e eu corro terminar de me aprontar para ir ao
restaurante. Chego por lá às dez, e toda a equipe está alvoraçada para
começar o dia, já que a cidade está lotada de turistas e teremos muito
trabalho pela frente. Comando a cozinha a movimentada até perto das três
horas, quando o fluxo de clientes dá uma trégua. Libero alguns funcionários
para o descanso e eu mesma só vou tirar meu horário de almoço quando
outros dois cozinheiros chegam para assumir o posto. Depois de comer
alguma coisa, eu me acomodo em um banco na área atrás do restaurante,
onde alguns colegas descansam, conversam ou fumam. Fecho os olhos,
apreciando o sol de meio da tarde contra meu rosto.
— E pensar que depois do feriado, logo vem a alta temporada —
Maitê reclama, sentando-se ao meu lado.
Sorrio um pouco e sinto uma dorzinha no coração. Quero dizer,
sempre amei meu trabalho e a loucura que o envolve. Para mim, meus
melhores momentos foram a casa lotada em dias comuns, as altas
temporadas e feriados movimentados. Adoro comandar minha cozinha,
adoro a pressão, a correria. Só que isso era antes de Gustavo surgir na
minha vida. Agora, eu só estou pensando o quão difícil vai ser para mim
continuar com essa rotina. Não quero mais trabalhar doze, treze horas
seguidas, ainda que ocasionalmente. Eu queria poder passar esse tempo
com ele.
Com eles.
E lá se vai meu discurso de que não faço o tipo esposa do lar…
— Será seu primeiro ano aqui, né? — Ela me cutuca, chamando
minha atenção. — Meu Deus, você não tem ideia do que é essa cozinha na
alta temporada, Helô.
— Estou acostumada — digo, por fim, a encarando. — Só vai ser
difícil ter menos tempo para o Gu.
Os olhinhos dela se suavizam quando menciono o pequeno. Ela não
demorou a conhecê-lo e vive me perguntando como ele está, como eu estou
lidando com tudo. Nós conversamos por mais uns dez minutos até Maitê
precisar voltar a trabalhar. Ainda tenho mais uns trinta minutos de descanso
desse primeiro intervalo, então uso esse tempo para ligar para o Augusto e
saber como está sendo o passeio deles.
— Gu está se divertindo — meu namorado comenta. — Tirou um
cochilo no carro depois do almoço durante o caminho até o Parque
Encantado e agora está no colo da Branca de Neve. Não me atrevo a levá-
lo na casa da Bruxa Má. Eu sou adulto e fiquei com medo.
Rio, imaginando a cena do pequeno se divertindo. O Parque
Encantado é famoso na cidade, quase como uma Disneylândia. O
diferencial é que as atrações são em meio à natureza, cheias de diversas
casas temáticas de personagens dos contos de fadas.
— Sério, Helô — protesta. — É horripilante.
— Queria estar aí com vocês — comento.
— Podemos vir na sua próxima folga. Talvez seja até melhor, sabe?
Hoje aqui está lotado por conta do feriado. Um dia comum é mais
tranquilo para um passeio em família. O que acha?
— Eu aceito.
Encerro a ligação cinco minutos mais tarde, depois de ouvir Gustavo
pelo telefone e falar com ele. De repente, Mariana vem à minha mente e
meu coração se aperta ao pensar que ela nunca mais poderá ver o
crescimento do Gustavo — um bebê que ela sempre desejou. Engulo a
vontade de chorar e ergo o rosto, tentando segurar as lágrimas para mim.
Sem permissão, de repente, eu me lembro daquela noite.
Estava terminando de recolher alguns copos e garrafas de cima do
balcão quando ouvi a porta da frente se abrir. De costas para a entrada,
colocando algumas tulipas dentro da pia, eu disse:
— Estamos fechados.
— Sou um cliente excepcional.
Augusto se aproximou do balcão, o paletó apoiado no braço. Com
um sorriso triste no rosto, ele pendurou o blazer no encosto da banqueta e se
sentou.
— Augusto! — exclamei e contornei o balcão para abraçá-lo. — Eu
desejaria Feliz Natal, mas… para estar aqui a essa hora, você não deve estar
nada feliz.
Ele abaixou os olhos, em um gesto sem graça, e suspirou.
— Preciso de algo para beber.
Voltei para trás do balcão e, de costas para ele, preparei uma água
com gelo. Apoiei o copo sobre um guardanapo de papel e o gelo tilintou no
vidro quando ele virou um gole generoso. Augusto franziu a testa e olhou
para o líquido.
— Isso é água.
— Acha mesmo que vou te dar álcool? Você está dirigindo,
suponho.
Ele revirou os olhos. Preparei duas gin tônica e me sentei ao seu
lado, envolvendo meu copo com as duas mãos. Augusto olhou para sua
bebida por um tempo ­— descontente porque ele precisava mesmo de álcool
— antes de ingerir uma dose pequena.
— Por que está aqui, e não com a sua família? Com a minha irmã?
— perguntei, embora eu já desconfiasse do motivo.
Ele virou outro gole de sua bebida, enquanto a minha seguia
intocada.
— Nós discutimos.
Movi a cabeça em positivo, analisando a situação, analisando seu
rosto. Augusto não me encarava de volta, as mãos em torno da taça, o olhar
abatido.
— Ainda aquele assunto sobre um bebê?
Neste momento, Augusto se virou para mim, parecendo surpreso.
— Mariana te contou que temos brigado por isso?
Dei de ombros e, por fim, tomei um pouco da minha bebida.
— Não. Você sabe, minha irmã nunca, nunca reclama de você por
nada. Mesmo que seja o pior marido do mundo. — Ele riu e assentiu. — Sei
que a Mariana prefere manter a imagem de casal perfeito e feliz.
Ele bebeu mais de sua tônica e pescou uma rodela de limão,
mastigando-a lentamente.
— Ela comentou comigo que queria um bebê — prossegui —, que
estavam conversando sobre as possibilidades, mas que você ainda estava
um pouco resistente e preferia esperar. Deduzi que por “conversar” ela quis
dizer “quase entrando em guerra.”
— O assunto surgiu durante a ceia — ele disse, os braços apoiados
no balcão, os olhos tristes em mim. — Ela tem mesmo tentado me
convencer, mas… Heloísa, não sinto que estamos bem para ter um bebê
agora.
Certo, essa informação tinha me pegado de surpresa. Que Mariana
mantinha as aparências de um casamento perfeito, disso eu já sabia, mas
não me passava pela cabeça que ela e Augusto não estavam na melhor fase
do relacionamento. Discussão todo casal tem, mas pelo tom dele, eu
presumi que a situação ia além de discussões comuns e rotineiras. Era coisa
séria.
— Sinto que a Mariana quer um bebê como solução para a nossa
crise, entende? Eu não quero trazer um filho ao mundo com esse objetivo.
Meu Deus, não. Se fôssemos ter um filho, deveria ser para somar felicidade
à nossa vida de casados, não para nos consertar.
— Você está certo. Se conheço minha irmã, ela tem te infernizado
com isso, certo? Mariana tem a mania irritante de sempre se achar na razão.
— É. Eu fui um pouco duro nas palavras com ela, nós discutimos e
ela me disse algo que me magoou demais. — Augusto pega a segunda
rodela de limão, dessa vez menor, e mastiga devagar. — Mariana sugeriu
um divórcio já que não estou disposto a fazer a vontade dela.
Compadecida, eu afago seu braço.
— Sinto muito, Guto. Nossa, a Mari perdeu a razão desta vez. Poxa,
é Natal. Ela não poderia ter esperado ao menos até o dia vinte e seis? —
Tentei animá-lo, e ele soltou uma risadinha triste.
— Eu a amo — sussurrou, a voz falha. — Digo, sinto que estou
cansado desse amor, mas eu a amo, Heloísa.
— Não duvido que a ame.
Ele virou o restante da sua tônica e mastigou o gelo.
— Eu não sei se a Mari falou sério sobre um divórcio ou se só
estava tentando me chantagear, mas não precisamos ir por nenhum desses
dois caminhos, sabe? — Moveu a cabeça de um lado a outro e brincou com
a borda de sua taça. — Eu quero um filho, só que temos que resolver nossas
diferenças primeiro.
— Se a Mariana continuar te pressionando entre divórcio e um filho
— falei depois de virar um pouco da minha tônica —, eu acho que é o
melhor a se fazer, Guto, é se divorciar. Um bebê pode consertar o
casamento de vocês, como não pode. Acho que só dois envolvidos saindo
de coração partido é o suficiente.
Ele me deu um sorriso triste.
— Eu concordo. O que mais me magoa é que Mariana pareceu
decidida, entende? Não tenho certeza se é um blefe. Ela vai me pedir o
divórcio se eu não der o filho que ela quer. E, Helô, eu não queria mesmo ir
por aí antes de tentar exaustivamente arrumar meu casamento.
Bebi o resto de minha gin tônica e limpei os lábios com o
guardanapo de papel.
— O certo a se fazer agora é ir para sua casa, descansar, esfriar a
cabeça. Amanhã, vocês dois conversam.
Augusto pareceu ainda mais aborrecido e indignado.
— Sua irmã não conversa comigo. Tudo tem que ser do jeito dela.
— Apontou para seu copo vazio. — Por isso, eu precisava de álcool. Não
quero nem voltar para casa hoje. Mariana vai me desprezar e vai doer mais
do que já está doendo.
Eu me compadeci dele naquele momento e, de alguma forma, quis
ajudar. Então, me levantei e disse:
— Espera aqui.
Eu corri até a cozinha do bar e separei pequenas porções dos doces
que sobraram — pudim, salada de frutas e mousse de chocolate. Das
comidas salgadas, embalei pedaços de pernil, canapés e uma porção de
farofa. Voltei e escolhi duas garrafas de vodca. Anotei a retirada delas e
deixei perto do caixa — o dono costumava abrir a registradora pela manhã,
então ele ia ver a comanda e descontaria do meu salário no dia do
pagamento. Peguei minha bolsa e meu celular debaixo do balcão e disse:
— Vamos.
Ele franziu o cenho, se levantou e vestiu o paletó.
— Para onde?
— Você quer beber e precisa de um lugar para ficar. Sua opção é o
meu apartamento. É melhor do que beber por aí e depois, dirigir.
Saímos do bar e ele segurou todos os meus pertences para que eu
conseguisse trancar as portas e acionar o alarme de segurança.
— E o que é isso? — perguntou, indicando as sacolas.
— Comida de Natal. Vai ser a nossa ceia. — Ao terminar, eu me
virei e peguei tudo das mãos deles. — Não é muito elegante oferecer uma
ceia com restos de outras pessoas, mas… é o que temos para hoje.
Ele riu e moveu a cabeça. Nós nos separamos porque estávamos
com dois carros e eu o esperei estacionar o seu do outro lado da rua do meu
condomínio para subirmos juntos.
— Por que está trabalhando no Natal? — perguntou, me ajudando
carregar metade das sacolas.
Subindo os degraus até o meu andar, respondi:
— Alguém fez aniversário com o menino Jesus. — Augusto deu
uma risada sincera e me empurrou com os ombros. — Então, fecharam o
bar para comemorar o Natal e o aniversário do sujeito. Eu comandei o
buffet que eles contrataram com a casa e meu expediente era até às dez, mas
eu devia um favor à balconista do turno e ela me pediu para cobri-la para
poder passar a data com o namorado.
— Foi legal da sua parte.
— Eu devia um favor — reforcei.
Terminamos de subir as escadas até meu apartamento. Uma vez lá,
ele me ajudou a distribuir as porções de comida sobre a mesa, sem tirar das
marmitas. Eu tinha um pouco de arroz na geladeira, então o aqueci no
micro-ondas e o juntei ao restante. Os próximos quinze minutos foram bem
tranquilos. Augusto não reclamou do seu casamento e focamos em
conversar sobre outros assuntos. Em determinado momento, contudo, foi
inevitável voltar ao tópico sobre o bebê que Mariana tanto queria.
— Me surpreende que ela não tenha tentado te enganar e
engravidado sem seu consentimento.
Ele riu e moveu a cabeça em negativo.
— Eu tomo os meus cuidados — explicou. — Sabe aquela cena em
“Até que a Sorte nos Separe” que a Laura ataca o Amauri e ele tenta
conferir a tabela do ciclo dela antes de qualquer coisa? Já fiz isso uma vez.
Soltei uma risada sincera, minha cabeça indo para trás.
— Mentira!
— É verdade — afirmou, me acompanhando na risada. — Instalei o
aplicativo de calendário menstrual dela no meu celular e sincronizei ao
meu. Atualizava para mim automaticamente a cada nova anotação da
Mariana.
Rimos juntos e pouco tempo mais tarde, estávamos no sofá,
comendo o pudim quando ele me cobrou as bebidas. Eram duas da manhã.
Busquei dois copos de shots, voltei para o seu lado e os apoiei sobre a mesa
de centro.
— Quero jogar “Eu nunca” — disse, servindo nossas doses. — Você
topa?
Augusto pegou o seu copo e o ergueu para mim, incitando a um
brinde.
— Topo.
Brindei e comecei o jogo:
— Eu nunca discuti com meu companheiro na noite de Natal.
Ele riu e balançou a cabeça em positivo.
— Touché. — Então, virou sua dose. Pensou por um segundo antes
de dizer: —Nunca trabalhei no Natal.
— Eu poderia beber as duas garrafas de vodca de tanto que já
trabalhei no Natal, seu filhinho de papai privilegiado — provoquei e depois,
engoli minha bebida.
Enchi nossos shots outra vez, ouvindo a risada dele, que, por algum
motivo, me alegrou e mexeu com alguma coisa dentro de mim. Tive que
pensar em algo dessa vez.
— Eu nunca quis um bebê.
Fiquei com medo de isso magoá-lo, mas Augusto sorriu e bebeu não
só o seu shot, mas o meu também. Isso aqueceu um pouco o meu coração e
me peguei observando-o demais enquanto ele nos servia pela terceira vez.
— Nunca cantei no chuveiro.
Eu ri.
— Qual é, Augusto!
— É sério! — Ele riu e me incentivou a virar a vodca.
Fiz como ele, bebendo os dois shots. Jogamos por vários minutos e
me diverti muito com Guto. Até então, mencionamos as coisas mais banais
possíveis — “nunca saí sem pagar a conta”, “nunca cozinhei para um
restaurante”, “nunca colei na escola”, “nunca peguei dependência na
faculdade”. Depois de muitos minutos, nós estávamos bêbados, rindo de
qualquer coisa. Um “a” nos fazia cair na gargalhada como se fosse a piada
mais engraçada do universo.
— Tudo bem — Augusto disse, a voz meio grogue, virando mais
um dose nos nossos copos. Uma boa parte da bebida caiu para fora,
arrancando outra risada nossa.
— Eu nunca… rebolei até o chão — falei e minha soou voz lenta e
preguiçosa.
Explodi em gargalhada quando Augusto virou seu copinho. Então,
ele olhou para mim. Naquele momento, não sabia se era o álcool em meu
sistema, mas tive a impressão de que ele me olhava de um jeito diferente.
Só confirmei minha suspeita quando ergueu seu copo e disse:
— Nunca desejei com todas as minhas forças outro daquele nosso
beijo atrás do palco.
Aquilo me pegou de surpresa e nós dois sustentamos o olhar um do
outro por algum tempo. Acho até que fiquei mais desperta. Augusto apertou
o maxilar, como se estivesse na expectativa. Por um instante, nem fui capaz
de reagir. Se eu estivesse sã naquela noite, teria encerrado nossa brincadeira
e o mandado embora. Eram mais de três da manhã e minha irmã poderia
estar preocupada com o marido. Mas eu não estava sã. Por isso, virei minha
vodca de uma única vez. Augusto também virou a dele.
Meu coração errou uma batida.
O clima, de repente, ficou estranho entre nós. Eu tentei me levantar,
mas fui rápida demais e meu corpo sentiu o tranco do movimento repentino
e da bebida em minha cabeça. Perdi o equilíbrio por causa da tontura que
acertou minha têmpora e despenquei em cima do Augusto. Seu peito
amorteceu minha queda e meus lábios ficaram muito rentes ao dele. Pude
sentir seu coração disparado dentro do peito, o hálito de vodca contra meu
rosto. Segurei a respiração quando sua mão repousou em minha cintura, os
olhos nunca deixando os meus. Eu não sei quem tomou a iniciativa, mas, no
instante seguinte, nossas bocas estavam unidas em um beijo sôfrego,
desesperado e explosivo.
— Heloísa! — A voz de Maitê me traz ao mundo real. Eu pisco
duas vezes e endireito a postura. — Estamos precisando de você na cozinha
— informa, caminhando rápido em minha direção. — Está tudo bem? Seu
horário de almoço acabou já faz dez minutos.
Eu me levanto rápido, espantando as lembranças da minha cabeça.
— Estou bem — garanto, acompanhando-a de volta. — Só perdi a
noção do tempo.

Estou exausta. Meu trabalho durante todo o feriado prolongado


somado aos cuidados com Gustavo acabou com todo meu estoque de
energia. Estou de folga do restaurante hoje depois de uma semana cheia,
mas eu tenho tanta coisa dentro de casa para fazer, que não vou conseguir
descansar. O cesto de roupa suja está lotado, a pia está transbordando de
louça, os brinquedos dele estão todos espalhados, eu nem arrumei a cama e
já são quinze para as quatro.
Para ajudar, Gustavo estava mais manhoso do que o normal e não
quis sair do meu colo para praticamente nada. O pouco que saía — às vezes
para brincar ou se sentar no tapete para ver algo na televisão —, eu não
podia me afastar. Agora, ainda de pijama, estou no sofá, acariciando o seu
rostinho enquanto ele tira um cochilo. Por algum motivo, tenho a impressão
de que Mariana estaria se saindo muito melhor do que eu. A casa estaria
limpa e cheirosa mesmo que ela tivesse que limpá-la com o menino nos
braços. Ela estaria bem-vestida, maquiada e perfumada, pensando no que
preparar para o jantar que ela gostava de deixar pronto para quando
Augusto chegasse do trabalho. Mas aqui estou eu, me sentindo insuficiente
porque não consegui lavar a louça ou arrumar a droga da cama.
Pego Gustavo no meu colo e o levo para o seu quarto, criando
alguma coragem para um trabalho que venho adiando há dias. Eu o deito no
berço e corro até a garagem buscar algumas caixas com pertences de minha
irmã que empacotamos. Eu doei suas roupas para um bazar de luxo da
cidade que reverte todo o dinheiro para causas sociais, a casa dela aqui na
cidade já está à venda e fiquei agradecida que Augusto cuidou de toda a
burocracia com o banco. Mas eu simplesmente não consegui me desapegar
de muitas de suas coisas. Itens de decoração, livros que não estavam no
testamento, alguns vestidos. Nas caixas em questão, contudo, há porta-
retratos dos quais eu não me desfaria nunca.
As fotografias são muitas, de todos os tipos, de muitos estágios da
vida de Mariana. Quando os empacotamos em Santa Mônica, não
encontramos nenhuma recordação do seu tempo com Augusto. Namoro,
noivado, casamento. Augusto disse que ela nunca devolveu nada a ele,
então o mais provável é que tenha jogado fora. E eu odeio o sentimento que
se apossa de mim ao pensar nisso.
Escolho algumas fotografias a dedo. Todas são de Mariana com
Gustavo. Eu não quero e não vou apagar minha irmã da vida do meu
sobrinho. Com cuidado, espalho os retratos pelo quarto — nas prateleiras,
nas paredes e sobre a cômoda. Até coloco algumas no painel da televisão da
sala, no meio de uma bagunça que preciso organizar e do pó que precisa ser
removido.
Suspiro, frustrada e sentindo meu corpo massacrado. Eu nem posso
cobrar o Augusto porque em todos esses dias de feriado em que trabalhei
até de madrugada, ele manteve a casa organizada e limpa. É claro, meu
namorado teve a ajuda da babá e do Conrado, de qualquer forma, mas,
ainda assim, ele conseguiu. Então, antes de ontem à noitezinha, eu cheguei
do restaurante e não havia uma colher fora do lugar — Guto deixou tudo
organizado para mim para o dia seguinte, já que ele ia viajar e só voltaria
dois dias depois.
Facilitou um pouco a minha vida, mas eu fui desleixada ontem e
hoje e agora… essa casa está virada de cabeça para baixo. Eu deveria ter
pedido para que a babá viesse hoje, mas estava confiante de que daria conta
de tudo e a dispensei. Acho que estava tentando provar algo a alguém.
Provar que sou capaz de ser uma supermãe, aquela que Mariana com
certeza seria. A que deixa a casa organizada e perfumada, que fica arrumada
e bonita para o marido e ainda consegue cuidar de um bebê de nove meses e
trabalhar fora.
No final das contas, eu não sou capaz.
Estou exausta e preciso dormir um dia inteiro sem me preocupar
com Gustavo ou com o que vou cozinhar para Augusto jantar.
— Tudo bem — digo a mim mesma quando pego Gustavo no colo e
o levo de volta ao sofá. — Só vou tirar um cochilo de meia hora. — Forro o
chão com almofadas e me deito com Gustavo, abraçando seu corpinho. —
Antes do Guto chegar, vou deixar tudo limpo.
Bocejo, ajusto o pequeno em meu braço e fecho os olhos.
CAPÍTULO 13

— Tem certeza de que a Heloísa não vai se importar? — Conrado


pergunta quando estaciono o carro no meio-fio em frente à garagem. — Se
fosse comigo, eu ia detestar, sério. Ia te receber com um sorriso no rosto e
braços abertos, mas assim que fosse embora, eu ia cutucar seu boneco vodu.
Eu rio, puxo o freio de mão e destravo o cinto, garantindo:
— Acho que não. Eu amanso minha namorada se ela ficar brava.
Relaxa.
— Namorada, hein? — debocha, soltando o seu cinto. — Sabia que
uma hora vocês iam acabar juntos — menciona, como se não fizesse isso
desde que contei que Heloísa e eu assumimos um relacionamento.
Já faz quase duas semanas, mas Conrado continua empregando
malícia cada vez que digo que Heloísa é minha namorada. Meu irmão é um
adolescente no corpo de um homem de trinta e cinco anos.
Descemos do carro e aciono o alarme ao abrir o portão de entrada.
Do outro lado, a casa está aberta, mas silenciosa demais. Nenhuma música
infantil que cola na cabeça soando de lá de dentro, o que é estranho.
— Ela está em casa? — Conrado pergunta, estranhando a quietude
tanto quanto eu.
— Deveria estar. Se bem que… — olho no relógio e são quatro da
tarde. — Eu disse que só chegaria às seis. Estamos duas horas adiantados.
Ela deve ter saído e deixou as janelas abertas para arejar. A vizinhança não
oferece muito perigo.
— Eu disse para avisar que você estava vindo embora e que eu
ficaria para o jantar — Conrado recrimina.
— Eu quis fazer uma surpresa — digo e testo o trinco, esperando
que esteja trancado, mas não está.
Às minhas costas, Conrado fecha a porta assim que entramos.
Observo ao redor, notando a casa revirada. Brinquedos espalhados pelo
tapete, um cesto de roupa suja na interseção para a cozinha, copos, canecas
e pratos de vidro e de plástico na mesa de centro. Eu me aproximo e
encontro Heloísa no sofá, dormindo tranquilamente com Gustavo entre seus
braços. Sorrio para mim mesmo, notando as almofadas no chão — uma
segurança para caso o Gu caísse — e cubro os dois com uma coberta que
encontro dentro do cercadinho do meu filho.
Depois de beijá-los, olho para Conrado e faço sinal de silêncio,
indicando a cozinha. Lá, a situação não é muito melhor.
— Quantas pessoas moram nessa casa? — meu irmão questiona,
sentando-se à mesa depois de afastar para longe mais algumas louças. —
Vinte e cinco?
— Cale a boca. — Eu abro a geladeira e pego a jarra de água. Custo
a achar dois copos limpos e tenho que recorrer a louça de “ocasião
especial”. Minha mãe me mandaria para a cadeia por causa disso se
pudesse.
— Sério, parece que passou um furacão por aqui.
Eu me sento de frente para o meu irmão e coloco água em sua taça.
— Tudo indica que Heloísa está cansada demais — digo, dando de
ombros. — E não seja um sem noção fazendo esse tipo de comentário,
Conrado.
Ele ergue as mãos e bebe a sua água.
— Então não acho que seja uma boa ideia eu ficar para o jantar. Vai
mesmo colocar aquela pobre mãe exausta para cozinhar?
Rio e balanço a cabeça, ingerindo a minha água.
— Não, nós dois vamos cozinhar e vamos limpar essa casa.
— É? — Conrado olha para as horas em seu celular. — Nossa,
lembrei que tenho um compromisso agora. Vamos deixar o jantar para outra
ocasião.
Contenho uma gargalhada para não acordar os dois na sala e movo a
cabeça em negativo.
— Vamos lá. Nós dois juntos limpamos rápido.
Não preciso de muito para convencê-lo e logo estamos organizando
todos os cômodos. Enquanto eu lavo a louça e limpo a cozinha, Conrado
junta os brinquedos, coloca a roupa na máquina e ajeita a sala, sempre com
cuidado para não acordar os dois dorminhocos. Minutos mais tarde, ele
estende a roupa e eu fico com a tarefa de arrumar os quartos e banheiro.
Pouco mais de uma hora depois, tudo está limpo. Meu irmão e eu estamos
na cozinha, o notebook sobre a bancada, rolando a tela em busca de uma
receita para o jantar.
— Augusto — Heloísa me chama e ouço um resmunguinho.
Ao me virar para a entrada do cômodo, vejo Heloísa ali, dentro de
um pijama, com Gustavo nos braços, parecendo irritado.
— Oi. — Vou em sua direção e beijo seus lábios, mas não sou
retribuído. Gustavo fica um pouco animado e pede meu colo. — Cheguei
mais cedo e vocês estavam dormindo. Descansaram bem?
Heloísa cruza os braços e dá um sorriso de cumprimento para
Conrado logo atrás de mim.
— É, descansamos. Posso falar com você? — Seus olhos se desviam
rapidamente para o meu irmão. — A sós.
— Eu disse que ela não ia gostar que eu chegasse de surpresa —
Conrado aponta. — Tudo bem, eu também odeio visitas inesperadas, Helô.
Na verdade, eu odeio visitas. Já estou de saída.
Heloísa move a cabeça em negativa.
— Não, Conrado. Fica. Só quero trocar duas palavras com seu
irmão.
Seu tom de voz me assusta um pouco, porque ela parece brava. Por
que ela está brava? Gustavo não para no meu colo, agora pedindo pelo tio.
— Como quiser — Conrado diz, tomando o pequeno em seus
braços. — Eu cuido do fedorento enquanto conversam. Ele está com fome,
Heloísa?
— Está. Pode dar uma banana para ele, por favor?
— Deixa comigo.
Heloísa se volta para mim outra vez e indica a sala com um mover
de cabeça. Eu a acompanho até lá, mas ela continua caminhando até a suíte.
Encosto a porta e pergunto:
— O que houve?
— Você limpou a casa?
Pisco duas vezes, tentando entender qual é o problema nisso.
— Eu e o Conrado — afirmo. Heloísa parece surpresa e recua um
passo, cruzando os braços em sinal de defensiva. — Por quê?
— Vocês limparam toda a casa enquanto eu estava dormindo?
— Heloísa, de verdade, não estou entendendo por que está brava
com isso.
Os olhos dela marejam de repente e, pela primeira vez em muito
tempo, eu a vejo vulnerável. Eu me aproximo e a abraço no instante em que
ela solta um soluço alto, escondendo o rosto no meu peito. Sua tristeza me
pega desprevenido e não sei como reagir.
— Helô… — Aperto-a em meus braços. — Meu Deus, o que foi?
Você ficou triste por que limpamos a casa pra você?
Ela move a cabeça em negativo e se afasta, enxugando as lágrimas.
— Não estou brava, nem triste. Eu… — Seus olhos se erguem para
mim, abatidos. — Estou me sentindo insuficiente. — Meus braços a
envolvem outra vez, apertando-a contra meu peito. — Você deixou tudo
organizado antes da viagem, conseguiu cuidar do Gustavo e da casa
enquanto eu estava trabalhando, e eu… só queria ter dado conta das minhas
tarefas como você, mas eu não consegui. Estava tão cansada e…
Pressiono meus lábios nos dela, e Heloísa se cala, retribuindo ao
beijo. Sinto o gosto salgado das suas lágrimas e as seco com meus
polegares.
— Está tudo bem, Heloísa.
— Não está — rebate, mais lágrimas insistindo em escorrer pelo seu
rosto. — Só tem um mês e meio que estou cuidando do Gustavo, quinze
dias que voltei a trabalhar e precisando conciliar tudo, mas estou tão
cansada que parece que já faz uma década. Não vou conseguir, Augusto. No
meu lugar, a Mariana ainda ia achar tempo para fazer cabelo e unha, mas eu
nem fui capaz de tirar o pijama hoje.
Acaricio seus cabelos e a trago para outro abraço, porque sei que ela
precisa disso agora. Heloísa soluça uma vez mais nos meus ombros e, ainda
chorando, completa:
— Para piorar, você trouxe o Conrado para cá. Meu Deus, ele
chegou, viu aquela bagunça e ajudou a limpar a casa. Ele deve estar
pensando que sou uma preguiçosa. Seu irmão vai comentar com sua mãe,
ela vai me recriminar e criticar o modo como eu cuido do Gu. Talvez até
tente tirá-lo de mim e Cassandra vai conseguir se ele não for seu filho e…
— Heloísa… — eu a interrompo, suave, porque ela já estava
atropelando as palavras. — Você trabalhou sessenta e duas horas nos
últimos cinco dias, e isso só no restaurante. Ninguém vai te recriminar por
estar cansada e ter dormido. — Afasto-a dos meus braços e seco outra vez
suas lágrimas. — Está tudo bem.
Ela fixa seus olhos em mim e acena devagar.
— A Mari…
— Mariana não era perfeita. Na frente de todo mundo, ela tinha
aquela pose de Mulher Maravilha, mas ela não era perfeita, não era
imbatível. Perto de mim, ela sempre estava arrumada e perfumada, mas eu
sabia que se ficasse sozinha, ela tirava a maquiagem, vestia um pijama e
passava o dia assistindo filme, deitada no sofá e comendo porcaria.
Heloísa solta uma risada triste.
— Está dizendo isso para que eu me sinta melhor.
Nego com um gesto.
— É a verdade. Sua irmã achava que eu não sabia, mas sabia. —
Afago suas bochechas e beijo seus lábios com carinho. — E aposto que ela
não dava conta de tudo também. Provavelmente ela matinha a fachada de
que sim, de que conseguia conciliar os cuidados com o filho, a vida
profissional, e ainda manter a saúde mental, física e o sono em dia, mas no
fundo, ela dormia no meio da tarde com a pia transbordando de louça.
— Acha mesmo?
— Heloísa, está tudo bem não conseguir lidar com casa, bebê e
trabalho. Você não tem que lidar com tudo sozinha. Ei, somos uma equipe,
certo? Eu mesmo só fui capaz de manter o mínimo de organização na casa
porque a babá me ajudou a cuidar dele. Não precisa se sentir insuficiente,
não precisa se sentir na obrigação de dar conta de tudo.
— Mas eu queria dar conta de tudo… — sussurra.
— Só se você fosse um robô. — Afago seus braços e beijo sua
bochecha.
— Não ficou chateado por encontrar a casa revirada?
Eu rio e a beijo de novo.
— Meu Deus, claro que não. Por que eu ficaria? É sua primeira
folga depois de um feriado prolongado pauleira, você tem um bebê em casa
que precisa de cuidados e atenção. Eu sabia que estava cansada.
Heloísa parece aliviada agora. Ela me abraça e ficamos assim por
alguns segundos. Seu coração bate acelerado contra o meu, mas ele vai se
acalmando à medida que ela entende que não vou recriminá-la. Amacio
seus cabelos e digo:
— Você tem a mim, Helô. Temos o Conrado. Minha mãe, apesar dos
pesares. E temos uma babá. Podemos ter uma diarista também se você
quiser. É uma rede de apoio. Não vai te fazer menos mãe do Gustavo se
tiver pessoas ao seu redor te ajudando.
— Eu sei — ela sussurra. — Você tem razão. Acho que eu surtei
sem motivo. Me comparei com a Mariana, pensei que você me compararia
com a Mariana, me importei com seu julgamento e com o julgamento
alheio. Acho que… só quero que você tenha orgulho de mim.
— Ei… — Seguro seu rosto e encaro seus olhos. — Já tenho
orgulho de você, Heloísa. — Beijo sua boca e sorrio. — Você está mais
calma agora?
— Estou.
— Ótimo. Então, aproveita que Conrado e eu vamos fazer o jantar e
cuidar do Gustavo para você relaxar. O que quer fazer? Ficar duas horas na
banheira? Deitar no sofá e ver televisão? Dormir um pouco mais?
Ela ri e encosta sua testa na minha.
— Acho que preciso de vinho e um banho de banheira.
Eu a viro e dou um tapa em sua bunda. Heloísa ri mais.
— Vá tirar essa roupa e preparar seu banho. Eu providencio o vinho.

Conrado cozinha melhor do que eu e isso sempre foi uma vantagem


para ele. Agora, está sendo uma vantagem para mim porque meu irmão
cozinhou para nós e todo meu trabalho foi manter Gustavo distraído. Ele
alega que a louça é minha, mas lavar alguns pratos e panelas não será um
problema.
Em torno da mesa, Heloísa está sorrindo enquanto conversamos.
Depois do seu pequeno momento, ela tomou um banho longo e se arrumou.
Está bonita agora com um conjunto azul e brincos pequenos, sem
maquiagem. Conrado conta outros detalhes do nosso passeio na quinta-feira
de feriado que fazem os olhos dela brilharem ao rir. Gustavo, sentado no
cadeirão ao lado, comendo com suas mãozinhas alguns pedaços de couve-
flor cozida, gargalha com a tia.
— Augusto me prometeu um passeio em um dia mais tranquilo —
ela diz, afastando seu prato agora vazio. Seu olhar vem ao meu ao
completar: — Eu vou cobrar.
Rio baixinho, comendo o último pedaço da minha couve-flor à
parmegiana.
— Pode cobrar.
O telefone de Conrado toca no bolso do seu paletó e vejo seu rosto
mudar um pouco ao reconhecer o contato em sua tela. Ele se levanta.
— Preciso atender, me deem licença, por favor.
Enquanto meu irmão conversa ao telefone, Heloísa comenta
comigo, cautelosa:
— O banho de banheira me fez pensar em uma coisa.
Limpo os lábios do Gustavo ao meu lado, que sorri para mim.
— Em quê?
Heloísa toma um pouco de ar para os pulmões antes de dizer:
— Em pegar um empréstimo com o banco e investir no meu próprio
restaurante, na minha própria equipe. — Seus olhos se desviam para
Gustavo, amorosos, e um sorriso pequeno ilumina seu rosto. — Se eu puder
diminuir o ritmo, terei mais tempo para o Gu.
Eu queria dizer que ela poderia se preocupar em só ficar em casa e
trabalhar de outra forma. Talvez produzindo conteúdo de gastronomia para
a internet ou algo assim, mas Heloísa já me disse que não faz o tipo esposa
do lar. Ela precisa sair de casa para trabalhar. De qualquer maneira, eu
aprovo.
— Acho uma ótima ideia, Helô.
— Mesmo?
— Claro! — Arrasto minha mão em direção à sua e entrelaço nossos
dedos. — Do que depender de mim, terá todo o meu apoio.
Emoção corta seus olhos e ela parece prestes a dizer alguma coisa
quando meu irmão retorna.
— Tenho que ir.
— Já? — pergunto e olho no relógio. Oito da noite. — Está cedo
ainda.
Conrado veste o paletó que estava no encosto de sua cadeira.
— Eu gostaria de ficar mais um pouco, mas a Laura está precisando
de mim.
— Laura? — Heloísa e eu questionamos ao mesmo tempo.
— Ah. — Meu irmão nos dá um sorriso sem graça. — Eu não
comentei com vocês, né? É minha nova vizinha. Ela se mudou há uma
semana, ainda está se adaptando ao prédio e tem dois filhos. Um garotinho
de três anos e uma bebê de seis meses.
— É mesmo? — respondo, um pouco malicioso.
Sério, nunca vi meu irmão tão prestativo dessa forma. Conrado
confere se a carteira está consigo e digita rapidamente no telefone enquanto
responde, notando minha malícia:
— É mesmo. Ela é viúva e eu a ajudei com a mudança e com a pia
entupida. Enfim… eu disse que se ela precisasse de algo, poderia me ligar.
Bem, a bebê dela está febril e ela ainda está sem o carro, que foi para o
conserto.
— E você vai ajudá-la sem interesse nenhum? — sondo, não
acreditando em suas boas intenções. — Desista, Conrado. Ela é uma mãe
viúva com duas crianças. Ela não vai te dar, por mais prestativo que seja.
Heloísa explode em uma gargalhada, que morre assim que Conrado
me mostra o dedo no meio. Ela o adverte por, outra vez, fazer esse gesto na
frente do menino.
— Não estou ajudando a Laura porque quero me enfiar no meio das
pernas dela — se defende, guardando o telefone. Provavelmente pediu um
Uber, já que viajamos juntos a trabalho no meu carro e depois, viemos
direto para cá. — Mas não nego que quero.
Rio e me levanto, acompanhando-o até a porta depois que ele se
despede da Heloísa. Na porta, esperando pelo seu carro, eu interpelo:
— Livre no final de semana?
— Depende. Para uma noitada com você? Não. Quero terminar um
livro que estou lendo. — Reviro os olhos. — Me arranjou um encontro com
uma peituda gostosa? Sim, livre.
— Idiota. — Dou um murro no seu ombro. — Queria saber se podia
passar o sábado com o Gu. Quero que a Heloísa descanse. Vou encontrar
um jeito de ela folgar nesse final de semana também.
Uma sobrancelha dele sobe.
— Mentiroso. O Gustavo atrapalha suas trepadas, né? Admita que
quer transar em paz, seu safado ordinário.
Gargalho e movo a cabeça.
— Isso também. Se não puder, tudo bem. Eu chamo a babá.
— Eu posso. Venho buscá-lo às dez. Até lá, vou treinar minhas
habilidades de trocar fralda em uma boneca.
Confio nele. Embora seja um pouco desastrado nesse quesito,
Conrado leva jeito com crianças e aprende rápido. Durante o feriado,
inclusive, a maioria das fraldas foi ele quem trocou. Seu Uber chega cinco
minutos depois, ele me dá um abraço de despedida e se vai. Ao retornar
para a cozinha, Heloísa já está cuidando do Gustavo e o preparando para
colocá-lo para dormir em breve. Eu paro ali e os observo. Ela cuida dele
com carinho, tirando o babador, limpando sua boca, hidratando-o com uma
mamadeira de água. Sorrio pequeno, comovido com a cena. Sem minha
permissão, eu me pego pensando naquela noite de Natal.
Eu não sabia se era a embriaguez, ou se o gosto da boca dela era
melhor que dez anos antes, mas ali estava eu, beijando Heloísa com todo
empenho e dedicação. Minha cabeça me dizia que estava cometendo um
erro, mas meu corpo e meu coração não faziam mais distinção de certo ou
errado. Apalpei seu corpo, devorei seus lábios e externalizei antigos
sentimentos que ressurgiram em meio ao meu porre e minhas mágoas.
Virei meu corpo sobre o dela, descendo meus lábios pelo seu colo.
O cheiro de Heloísa era algo único e viciante. Minhas têmporas latejaram e
eu não sabia dizer como eu ainda encontrava o centro da gravidade e me
mantinha equilibrado. Firmei um pé no chão, mantive um joelho no
estofado e voltei para ela. Suas pernas me abraçaram a cintura e seus dedos
voaram para os meus cabelos.
Endureci entre suas coxas e todo meu sistema estava entrando em
combustão. Foda-se que era Natal e que eu era casado. Pela minha cabeça,
só pensava que precisava beijar a boca dela. Foder Heloísa. Foder Heloísa
todas as vezes que não fodi porque nossa história terminou antes de
começar, porque ela não apareceu na maldita barraca do beijo. Não entendia
aquele sentimento, não entendia porque eu estava tão irritado e magoado
com o fato de que não tive minha chance com ela. Por que porra? Eu amava
a Mariana.
Sabia que amava.
Afastei todos os meus pensamentos da cabeça e tirei a roupa dela.
Tirei a minha roupa. Eu me empurrei para dentro de sua boceta com todo
afinco e foi como uma dádiva senti-la ao meu redor. Foi fantástico deslizar
para dentro e para fora dela, apreciando sua umidade, seu aperto, seu calor.
Naquela hora, eu sabia que ia me viciar nela e que ia precisar de outra dose.
De muitas outras doses.
— Augusto — meu nome soou entre seus gemidos quando estoquei
fundo. Meus olhos encontram os dela, meio bêbados de vodca e de paixão.
Eu não achei que pudesse ficar mais duro, mas fiquei. — Augusto… você é
tão gostoso.
Não respondi. Apenas a puxei e a coloquei de quatro no sofá.
Enrolei uma porção do seu cabelo em meu punho e a trouxe um pouco para
mim. Soquei em sua boceta, alucinado, nem parecendo que estava bêbado.
Na quinta ou sexta investida, eu me inclinei sobre suas costas e encontrei
seu clitóris. O gemido dela se intensificou e eu já queria gozar. Não ia durar
nada dentro dela, mas que se foda. Mordisquei a ponta de sua orelha,
sentindo suas costas suarem contra meu tórax. Ela gemia cada vez mais
gostoso, me deixando cada vez mais duro.
— Sua vadia — sussurrei entre gemidos, e Heloísa se derreteu
debaixo de mim.
Sua boceta ficou mais úmida — senti isso em meu pau e nos meus
dedos ainda em seu clitóris — e sabia que ela tinha gozado. Sem anunciar,
gozei dentro dela. Seu corpo desabou no sofá e fui junto. Nossas
respirações entraram no mesmo ritmo e ficamos encaixados um no outro,
recuperando o fôlego por mais um instante antes de eu me levantar, enrolá-
la no meu abraço e convidá-la para irmos ao seu quarto. Sem questionar,
Heloísa me acompanhou. Eu a abracei de conchinha quando nos deitamos e
foi questão de segundos até o mundo se apagar.
CAPÍTULO 14

Encosto a porta do banheiro quando identifico o número da clínica


onde fiz o teste de DNA. Deslizo o dedo pela tela, aceitando a chamada.
— Alô? — Seguro o aparelho com os ombros e termino de lavar as
mãos. — Sim, aqui é o Augusto. Ah, claro. Eu passo aí ainda hoje.
Obrigado.
Respiro devagar e apoio o celular na bancada da pia. O exame ficou
pronto depois de dezoito dias e posso buscá-lo. Não vou dizer nada a
Heloísa por enquanto porque ela vai querer abrir esse teste já. Só que eu
planejei que amanhã, sábado, a gente tenha um dia legal e descanse. Tenho
medo de que o resultado possa, de alguma forma, interferir no nosso
momento. Além disso, minha mãe avisou que quer todos presentes, ainda
que exista uma chance de dar negativo.
— Guto, o almoço já está pronto. — Helô bate na porta antes de
abri-la.
— Já terminei aqui. — Guardo o telefone no bolso e deixo o
banheiro abraçado à sua cintura. — O Gu acordou? — pergunto, dando um
beijo no seu rosto.
— Não. Será que ele está bem? Os cochilos matinais não costumam
ser tão longos.
— Mal é meio-dia, Helô. Ele deve estar cansado. Hoje ele acordou
mais cedo que o comum, não foi? — Ela assente e, chegando à cozinha, me
entrega um prato enquanto me sento na mesa e me sirvo. — Então é isso.
— Tudo bem, não vou me preocupar.
Depois que terminamos de comer, Gustavo ainda está dormindo e
Heloísa se prepara para sair comigo. Ela entra a uma tarde no restaurante
hoje e só sai à meia-noite por causa do final de semana. Mais cedo,
consegui convencer sua gerente a lhe dar folga amanhã, mas Helô só vai
saber sobre isso no final de seu expediente. A babá chega com dez minutos
de antecedência e eu dou uma carona para minha namorada até seu
trabalho. De lá, eu busco o teste. Tenho uma reunião com a nova agência de
marketing às duas, então, assim que chego na minha sala na Monteiro &
Castro Construções, aproveito os minutos que me restam para observar o
envelope em minhas mãos e pensar.
Confesso que tenho medo do resultado. Estava muito seguro de que
Gustavo não é meu filho biológico, mas diante do exame, já não tenho tanta
certeza e estou ansioso. Admito que prefiro que ele não seja meu porque
não gosto de pensar na ideia de que Mariana o escondeu de mim. Um filho
era tudo o que minha ex-mulher mais queria e ela podia ter me enganado de
alguma forma, ainda que eu tomasse minhas precauções.
Eu estava dizendo a mim mesmo que era impossível que Gustavo
fosse meu porque eu não transei com minha mulher em dezembro, o
provável mês de concepção. Mas, ponderando melhor e puxando pela
memória, Mariana menstruou no final de novembro e sua ovulação
aconteceu no dia cinco seguinte — e sei disso porque eu ainda estava
paranoico e com medo de ela engravidar de propósito, então acompanhava
suas atualizações. Eu viajei a trabalho no dia quatro, que era um dia fértil, e
transamos com proteção — mas, pensando bem, quem me garante que ela
não furou a camisinha com um alfinete? Eu me preocupava até com isso e
nunca usava as camisinhas que ela trazia para casa. Eram sempre as minhas.
Naquela noite não foi diferente. E se minha mulher sabia por que eu
negava as dela, Mariana poderia ter se aproveitado do momento em que eu
estava no banho para furar as minhas, certo? Se foi isso que aconteceu,
contando o tempo gestacional como os médicos costumam contar, ou seja, a
primeira semana de gravidez sendo a partir do primeiro dia da última
menstruação, então Mariana teria completado quarenta e uma semanas no
dia sete de setembro. Gustavo nasceu dia oito. Ainda que não seja o mais
comum, a literatura médica assegura que um bebê pode nascer de até
quarenta e duas semanas. Então, é completamente possível que ele seja meu
filho.
Afasto os olhos do calendário em meu celular, o que usei para fazer
meus cálculos, e tento acalmar meu coração. Eu a traí na noite de Natal.
Talvez ela tenha dormido com outro homem para se sentir ao menos um
pouco vingada e pode ter engravidado. Encaro o envelope lacrado e suspiro,
lembranças me bombardeando sem permissão.
Acordei na cama de Heloísa. Eu já estava sozinho, mas o calor dela
no lençol ainda estava presente, o que significava que não fazia muito
tempo que tinha se levantado. Precisei de um instante para colocar meus
pensamentos em ordem e analisar a situação.
A situação de merda em que me encontrava.
Passei a mão no rosto, o arrependimento me acertando com a força
de um caminhão em alta velocidade. Por Deus, o que foi que eu tinha feito?
Eu me levantei e encontrei uma toalha sobre o espaldar da cadeira da
penteadeira. Enrolei em minha cintura e fui até o banheiro no fim do
corredor. Lavei o rosto e fiz um bochecho com água e pasta de dente. Sobre
a tampa do vaso, encontrei minhas roupas. Eu me vesti e saí à procura de
Heloísa. Ela estava na cozinha pequena, encostada à pia com uma xícara
fumegante de café.
— Você tem que ir embora — disse, sem me encarar.
Sua voz estava abatida e baixa, com uma pitada de choro. Sabia que
Heloísa estava se segurando para não desabar em lágrimas.
— Eu vou — respondi, sem me atrever a dar um passo em sua
direção. Queria conversar sobre o que aconteceu, mas, pelo jeito, Heloísa
não queria o mesmo. — Pretendo contar para a Mariana.
Neste momento, ela ergueu o rosto, assustada.
— Por que você faria isso? — perguntou, esganiçada.
Não ia ser uma conversa fácil, mas era a coisa certa a se fazer.
— Porque quero ser honesto com a sua irmã.
Heloísa deixou a caneca sobre a pia e avançou um passo em minha
direção, seus olhos cheios de terror e lágrimas.
— Você não pode contar para ela!
Eu cruzei os braços, como se pudesse me defender da raiva dela.
— Não vou mentir para a minha mulher.
Heloísa se calou por um instante, respirando com dificuldade. Meu
coração se partiu ao meio ao ver as lágrimas tomar conta do seu rosto.
— Se fizer isso, vai terminar de afundar o seu casamento e de
quebra, vai prejudicar meu relacionamento com Mariana. Por favor,
Augusto. Não precisa ir por esse caminho. Você só vai magoar a minha
irmã desnecessariamente.
Pensei a respeito por um segundo. Em algum nível, Heloísa tinha
razão. Contar para Mariana apenas iria feri-la sem qualquer necessidade. Se
o divórcio até a noite anterior era só uma ameaça, dizer a verdade o tornaria
iminente. Ao mesmo tempo, ela merecia a verdade. Eu não queria aquele
segredo entre nós, não queria nada me ameaçando ao longo dos anos, não
queria que a verdade viesse à tona em algum momento da minha vida.
Queria que Mariana soubesse por mim, que eu estava arrependido e que
aquilo nunca mais, nunca mais, ia acontecer outra vez.
— Se fosse o contrário — argumentei, sussurrando —, eu ia preferir
que ela me magoasse me contando a verdade, em vez de omiti-la.
Heloísa soluçou, destruída, e me encarou com súplica. Quando fui
embora, sem me despedir, pensei um milhão de vezes em voltar atrás e
manter o nosso segredo. Ao chegar em casa, contudo, estava firme em
minha decisão. Abri a porta e fui recebido por uma mulher aflita que me
tomou em um abraço apertado.
— Augusto! — exclamou, o rosto escondido no meu tórax. — Meu
Deus, eu fiquei tão preocupada com você. Enchi seu número de chamadas e
mensagens, mas não retornou minhas ligações e nem me respondeu!
Fechei meus braços ao seu redor, sufocado pelas lembranças da
madrugada. Senti meus olhos queimarem pelas lágrimas, arrependido.
Apertei-a com cada vez mais força, sabendo que ali era o nosso fim. Eu ia
contar, ainda que custasse de vez o meu casamento.
— Até o Conrado ficou preocupado com você — ela continuou, sua
voz soando abafada. — Ele te procurou pela cidade toda e não te encontrou
em lugar nenhum. Eu achei… eu achei que tinha acontecido alguma coisa
com você. — Seu soluço me quebrou. — Não ia me perdoar nunca se
estivesse se machucado, Guto.
Delicadamente, eu a afastei de mim e limpei suas lágrimas.
— Eu precisava ficar sozinho.
— Onde você esteve?
Travei o maxilar. Eu podia adiar essa conversa, não é? Ainda era
Natal e tínhamos o almoço na casa da mamãe. A noite de ontem foi um
desastre e eu não precisava tornar o dia de hoje uma tragédia. A verdade
poderia esperar.
— Não importa. Estou bem. Depois da nossa discussão, só queria
ficar sozinho para esfriar a cabeça.
Mariana segurou meu rosto com as duas mãos, os olhos marejados.
— Desculpe. Não quero o divórcio, Augusto. Eu… — Impedi-a de
continuar, pousando dois dedos em seus lábios.
— Ainda é Natal. Não vamos falar disso hoje, está bem?
Minha mulher parecia prestes a protestar, mas não permiti com um
gesto silencioso. O restante do dia foi muito esquisito. Nós fomos à casa da
mamãe almoçar e tentei, ao máximo, parecer natural, mas as pessoas ao
meu redor sabiam que eu não estava bem. Ninguém me questionou, mas
provavelmente ponderavam que estava relacionado à nossa discussão na
noite anterior. Cassandra quis saber onde passei a noite, mas fugi de sua
pergunta. No meio da tarde, fomos para casa. Mal entrei em nosso quarto
quando Mariana me abordou:
— Nós temos que conversar.
— Hoje, não — insisti, tirando o blazer.
Ela me puxou pelo ombro e me fez virar em sua direção.
— Hoje, sim. Eu sei que está magoado comigo, Guto, mas juro que
não quis te machucar. Você está certo — alisou meus ombros com carinho
—, não estamos bem e um bebê não vai nos consertar. Não vou te
chantagear com um divórcio. Foi tudo da boca para fora. Juro.
Dei um passo atrás, meu coração disparado. Encarei seu rosto
assustado, incapaz de esconder minhas próprias dores. A expressão de
Mariana mudou ao ver que eu não conseguia mais esconder minhas
emoções.
— Me desculpe — pediu, sussurrando. — Eu nunca quis dizer
aquelas palavras, Augusto.
Eu quero um filho. Se não quer me dar um, então não serve para
nada em minha vida.
— Acho justo de certa maneira — eu disse, a voz embargada. — É
seu sonho ter um filho, formar uma família, e se estou resistente em te dar
isso, o divórcio é a melhor saída.
— Augusto…
— Mariana, escuta. Te disse um milhão de vezes que queria um
filho com você, mas estamos atravessando uma fase difícil. Nunca te neguei
um bebê, uma família. Só queria tentar nos entender primeiro.
— Você está certo. Entendo isso agora. — Ela segurou meu rosto.
— Eu fiz consultoria na semana passada para uma terapeuta de casais. —
Mariana me olhou por um instante que pareceu longo demais e completou:
— Podemos marcar uma consulta.
Meu coração entalou na garganta. Ela estava disposta a arrumar
nosso casamento e eu estava prestes a estragá-lo de uma vez por todas.
Talvez eu devesse aceitar a sugestão e depois conversar a sós com a
terapeuta, perguntar o que seria melhor para nós. Por um longo segundo,
não sabia mais o que fazer. Por fim, decidi contar a verdade e tentaria
convencê-la a trabalharmos essa questão na terapia.
— Você pode marcar — disse, acariciando sua bochecha. — Mas
precisa saber de uma coisa antes. — Seus olhos me analisaram com atenção
e temor. — Ontem à noite… — meu peito apertou — estive com outra
pessoa.
Mariana recuou na mesma hora, seu rosto se transformando.
Lágrimas se acumularam ali e eu não pude evitar as minhas.
— Você…? — Ela se engasgou e precisou respirar fundo. — Há
quanto tempo tem me traído?
Balancei a cabeça em negativo.
— Nunca traí você até ontem à noite, Mariana. Não era para ter
acontecido.
Ela riu, sem humor, e se afastou mais um passo.
— Então o quê? Você estava andando pela rua quando uma mulher
acidentalmente sentou no seu pau? Por favor, não vou acreditar nisso. No
mínimo, você já a conhecia e… — Mariana parou de falar e me encarou,
seus olhos tomando conhecimento do que aconteceu.
Dei um passo em sua direção, mas ela recuou dois, a mão no peito.
— Mariana, me escuta. Juro que nunca aconteceu nada entre nós até
ontem.
Uma risada triste escapou dos seus lábios e seus olhos se encheram
mais.
— Você dormiu com ela? Trepou com a minha irmã, Augusto?
Abaixei os olhos, meu coração dolorido, minhas próprias lágrimas
se acumulando.
— Eu… estava bêbado e magoado. Não era para ter acontecido —
repeti.
— Eu também estava magoada! — rebateu, erguendo a voz. — Nem
por isso eu procurei o Conrado e abri minhas pernas para ele.
Travei o maxilar e mantive a calma. Ela tinha o direito de estar
magoada comigo, de falar o que quisesse. Ergui os olhos em sua direção,
destruído por dentro, e sussurrei:
— Me perdoa, Mari. Se você soubesse o quanto eu me arrependo, o
quanto… dói em mim o que fiz. Por favor. — Eu me aproximei sem que ela
me repelisse. — Podemos superar isso, eu sei que podemos. A terapia… —
Ofeguei e me obriguei a ficar calmo. — A terapia em casal vai nos ajudar.
Mariana limpou o rosto com o dorso das mãos e se distanciou outra
vez.
— Por que me contou? — Seus olhos se mantiveram nos meus. —
Você queria um motivo para o divórcio, não é? Então saiu ontem à noite e
foi comer a Heloísa só para garantir! Toda aquela história de querer lutar
por nós era pura mentira. Podia ter escondido de mim e estaríamos bem.
Você contou porque quer mesmo se divorciar.
— Contei porque você merecia saber a verdade e porque não queria
nenhum segredo entre nós ­— expliquei, respeitando nosso espaço. — Te
contei porque quero que saiba que foi a maior burrada que fiz na minha
vida inteira e que estou muito, muito arrependido. Amo você, Mari.
Acredita em mim.
Ela balançou a cabeça e mais lágrimas desceram pelo seu rosto.
— Acho que…eu poderia perdoar se tivesse sido com qualquer
outra mulher. Mas foi com a Heloísa — disse com uma pitada de raiva. —
Você nunca a esqueceu de verdade, não é, Guto? Vocês se beijaram apenas
uma vez, mas foi por ela que se sentiu atraído naquela época.
— Mariana… — tentei interrompê-la, mas ela não me deixou.
— Eu sou exatamente o que a Heloísa é. Somos iguais em tudo.
Então por que parece que ela sempre permeou seus pensamentos mais do
que eu?
Entreabri os lábios, querendo argumentar que era mentira. No fundo,
contudo, eu sabia que havia um pouco de verdade. Posso não ter pensado
em Heloísa com frequência ou com malícia, mas de alguma maneira, eu
sabia que meus sentimentos por ela, despertados por aquele único beijo,
estavam dentro de mim.
— Vou deixar o caminho livre para que continuem de onde pararam
— Mariana disse, entristecida.
Eu deveria tê-la impedido de pegar a bolsa sobre nossa cama e sair,
mas não fiz isso.
Um bater na minha porta me dispersa dos meus pensamentos.
Guardo o exame de DNA na gaveta da minha mesa no instante que minha
secretária aparece.
— Augusto, o Arthur do Conecta Mídia acabou de telefonar para
informar que teve um imprevisto e não consegue vir para cá, mas pode se
encontrar com vocês em um restaurante a dez minutos daqui. Ele explica
tudo quando chegarem.
— Apolo e Felipe da INOVE aceitaram?
— Sim.
— Tudo bem. Nós nos encontramos lá.
Vinte minutos mais tarde, chego ao ponto de encontro. Em frente ao
restaurante, Arthur Massari carrega um garoto nos braços, mais velho que
Gustavo, e segura nas mãos de outro maiorzinho, talvez com uns quatro
anos.
— Eu apertaria sua mão — ele diz assim que me aproximo —, mas
estou meio ocupado aqui. Oi, Augusto.
Bagunço o cabelo do rapazinho loiro segurando na mão dele.
— Seus filhos?
— Aham. Esse aqui — ergue o que está em seu braço — é o
Filippo. Era o caçula até dois meses atrás. Ganhou uma irmãzinha há três
meses. E esse aqui é o Mattia. Diga oi, Matt.
— Oi ­— o rapazinho cumprimenta, meio tímido e se escondendo.
— Oi, Mattia.
— Ei, desculpe mudar as coisas assim em cima da hora. Louise
estava em casa com as crianças, mas surgiu um problema no setor dela lá no
Conecta e ela deixou os dois mais velhos comigo porque dispensamos a
babá hoje. Não encontrei mais ninguém disponível para ficar com os
pequenos. Costumo vir sempre para cá, então sei que há área de recreação
aqui. Posso deixá-los lá enquanto conversamos. Eu pago a conta. Você já
almoçou?
— Almocei, mas aceito um suco. Apolo e Felipe estão a caminho.
Não devem demorar.
— Ótimo. Vamos nos acomodando então até eles chegarem.
Arthur deixa os filhos na recreação e pede algo para comer, já que
não conseguiu nem parar para almoçar na última hora. Apolo e Felipe
chegam logo em seguida e como também não almoçaram, optam pelo prato
da casa. A reunião decorre tudo bem. A INOVE vai cuidar de reformular
nossa identidade visual e logomarca. Já são quase quarenta anos, desde que
meu avô fundou a Monteiro & Castro, usando a mesma identidade. Em
breve, a construtora completa seu quadragésimo aniversário e quero
começar uma nova era na empresa. Em contrapartida, a Conecta Mídia vai
cuidar da propaganda audiovisual.
Ao final da reunião, eu volto para a construtora e encerro meu
expediente pouco tempo depois. Ao voltar para casa, encontro Gustavo com
a babá, comendo seu lanche da tarde — iogurte com mamão.
— Sei que eu ia te dar folga ontem — eu digo para a babá —, mas
se importa em auxiliar o Conrado? Ele pode precisar.
— Sem problemas, seu Augusto.
Em seu lugar no cadeirão, Gustavo estica as mãozinhas para mim,
pedindo meu colo. Eu o limpo um pouco antes de pegá-lo. Dispenso a babá
e completo a rotina dele. Penso no exame que deixei em minha gaveta
quando fazemos festa no banheiro durante o banho, Gustavo se divertindo e
espirrando água para todo lado ao bater as mãozinhas. Ele irradia tanta
felicidade e inocência. No fundo, quero que ele não seja meu para não ficar
magoado com Mariana, ao mesmo tempo… torço para que seja, porque
assim, nada vai tirá-lo de mim. De Heloísa. Nada vai atrapalhar a minha
família.
Então, de repente, estou com medo.
— Que horas são? — Heloísa ronrona quando me enfio por baixo
das cobertas com ela outra vez.
— Dez e meia da manhã.
Ela se remexe na cama até estar bem encaixada no meu abraço.
— Meu Deus, não lembro quando foi a última vez que dormi até às
dez e meia da manhã de um sábado. — Acaricio seus cabelos, rindo
baixinho. Eu sabia que ela precisava de um descanso. — Gu já saiu com o
Conrado?
— Já, sim. Eles vão se divertir.
— Será que seu irmão vai dar conta do Gu?
— Claro que vai. Além disso, a babá está com ele.
Heloísa ri, o rosto escondido no meu tórax.
— Se ele não se esquecer do sobrinho para comer a babá, então tudo
certo.
Gargalho de tremer e a aperto mais entre meus braços. Namoramos
mais uns minutinhos na cama antes de eu dizer:
— Eu coloquei a sauna para aquecer. É dia de relaxar.
— Nunca a usamos desde que nos mudamos para cá.
— Eu sei. — Eu me levanto e a puxo pelo punho. — Vem. Temos
que usar antes do café da manhã.
Ela me acompanha, rindo ao dizer:
— Que provavelmente vai sair no horário do café da tarde.
Heloísa coloca um biquíni e se enrola no roupão, enquanto eu opto
por sunga e toalha. Nos primeiros dez minutos na sauna, nós apenas
relaxamos, rimos e conversamos despreocupadamente. É bom ver a Helô
um pouco mais relaxada, feliz. Ela merecia mesmo um dia de descanso.
Não vou permitir que ela levante um copo hoje. Vou pedir comida no
almoço, vamos a uma cafeteria à tarde e jantar no começo da noite.
Toda sua pele está vermelha e suada por causa da temperatura alta,
assim como a minha, e por algum motivo, amo o tom corado dela agora.
Depois da primeira sessão, tomamos uma ducha fria de chuveiro e voltamos
para a segunda. Cinco minutos mais tarde, estamos rindo de qualquer coisa
quando ela me beija. É um beijo gostoso, cheio de amor e afeto.
Agarro sua nuca e a puxo com força em minha direção,
aprofundando o beijo. Entrelaço meus dedos em seus cabelos, mantendo
seus lábios em mim. Meu corpo aquece além dos cinquenta graus da sauna
e meu pau ganha vida. Com a mão livre, toco sua coxa e subo por dentro do
seu roupão, explorando sua pele até a beira do biquíni.
— Augusto… — murmura, repleta de desejo, os olhos fechados.
Invado a sua calcinha e resvalo meu indicador por entre os lábios da
sua boceta. Introduzo um dedo nela e o movo lentamente contra suas
paredes para frente e para trás. Heloísa inclina o quadril para mim,
acompanhando meus movimentos. Insiro mais dois dedos nela e a fodo
assim com mais força. Ela geme sem pudor, agarrada ao meu pescoço, a
boca muito perto da minha, os olhos nos meus.
— Quer o meu pau nessa sua boceta? — sussurro, indo mais fundo
nela.
— Quero.
Eu abro a toalha em minha cintura e abaixo a cueca, expondo meu
pau duro para ela. Heloísa monta em meus quadris e afasta a calcinha,
encaixando-me na sua entrada em seguida. Ela se senta em um único
movimento, introduzindo-me todo dentro dela. Um gemido estrangulado
escapa da minha boca ao sentir sua boceta me esmagar. Afundo meus dedos
em sua cintura e ela se apoia em meus ombros para me cavalgar com força.
Enquanto Heloísa monta em mim, eu abro seu roupão para ter
acesso aos seus peitos. Puxo-os para fora do biquíni e abocanho um deles,
mamando-o com dedicação. Ela finca as unhas na minha pele e aperta a
boceta ao meu redor. Travo seus quadris e me arremeto para dentro dela,
rápido e com força, combinando as chupadas nos seus peitos. Deslizo
minha língua pelo seu colo, sentindo o gosto salgado da sua pele suada, até
chegar aos seus lábios. Eu os devoro, faminto, necessitado, possessivo.
Agarro seus cabelos pela nuca e desvio ninha boca até a ponta da sua
orelha, mordiscando ali.
— Senta gostoso, sua vadia.
— Augusto, ai meu Deus… — Ela entreabre os lábios, jogando a
cabeça para trás. — Fode minha boceta com mais força.
Aumento o ritmo para dentro dela, batendo a toda potência meus
quadris nos dela, indo cada vez mais fundo. Nossas peles quentes
escorregam e meu pau incha mais a cada nova estocada. Tão molhada, tão
quente, tão gostosa… Solto um gemido estrangulado quando ela aperta meu
pescoço com suas mãos finas e senta com força, rebolando no meu colo,
socando fundo meu pau em sua boceta.
Aperto sua bunda, extasiado.
— Se continuar assim — aviso, acompanhando o ritmo do seu
quadril no meu, enterrando muito fundo meu pau nela —, vou encher sua
boceta de porra.
Heloísa mordisca o lóbulo da minha orelha.
— Goze dentro de mim — murmura.
Afundo ainda mais meus dedos em sua carne.
— Heloísa…
— Me fode forte e goza em mim— incentiva, arranhando minha
nuca. — Quero a sensação de que está gozando na minha boceta para eu
gozar no seu pau gostoso.
Puxo seu cabelo para trás, me dando acesso ao seu pescoço. Deslizo
minha língua pela sua pele, concentrando-me para aguentar mais um pouco,
ainda que seja difícil segurar a vontade. Sua boceta é uma delícia, o modo
como ela senta com gosto em mim é uma delícia, a porra do biquíni
roçando em minha pele é uma delícia, seus peitos se esfregando no meu
tórax é uma delícia.
Tudo nesse mulher é uma delícia.
— Sua boca precisa de uma dose de pau também.
Ela me desmonta na mesma hora e se ajoelha na minha frente, sobre
o roupão. Heloísa me segura com as duas mãos, uma na base, outra no meu
pau. Ela me masturba e me acaricia por alguns segundos antes de me
colocar inteiro na sua boca. Fecho os olhos e jogo a cabeça para trás,
extasiado com seu boquete perfeito. Ela me chupa até o fim, sem deixar de
apertar minhas bolas até que ela está me masturbando com as duas mãos
enquanto me engole. Droga, isso é demais para mim.
— Abra as pernas — ordeno, agarrando outra vez seus cabelos.
Heloísa geme sob minha pegada, gostando da sensação. Ela se ajeita e faz o
que pedi. — Boa garota. Agora, enquanto me chupa para que eu encha essa
boquinha de porra, você vai se masturbar e gozar comigo. Consegue?
Sua língua desliza pelo meu pau, da base até o topo, um sorriso
sacana surgindo no seu rosto.
— Se prometer que goza na minha boceta mais tarde.
— Ainda hoje faço isso — garanto, acariciando sua nuca. — Mas
agora, vai gozar nos próprios dedos, engolindo meu pau.
Atendendo meu pedido, Heloísa me engole outra vez e passa a
brincar com si mesma, esfregando seu ponto sensível e gemendo com os
lábios em mim. A imagem causa um efeito devastador no meu corpo, que
entra em combustão e bombeia sangue para o meu pau, deixando-o ainda
mais duro. Minhas bolas também endurecem e eu estou prestes a jorrar em
seus lábios.
— Isso, vadia… — murmuro, apertando rudemente seus cabelos e a
ajudando a me chupar. — Chupe o pau do seu homem.
Heloísa geme e aperta os olhos. Noto quando os movimentos se
tornam mais frenéticos em seu clitóris, em busca de prazer. Ela me leva até
o fundo de sua garganta e quando reparo que está se fodendo com os dedos
e cavalgando na própria mão para aplacar o fogo de sua boceta quente, é
demais para mim. Aperto seus cabelos, não podendo mais aguentar.
— Vou gozar, gostosa — aviso, jogando meu quadril em sua
direção.
Derrubo minha cabeça para trás e meu corpo inteiro estremece
quando o orgasmo me corta de uma ponta a outra. Jorro em sua boca um
sêmen viscoso e longo, deliciado com o conjunto de sensações ao meu
redor. Os gemidos de Heloísa provocados pelo boquete e pelos dedos dentro
dela, o calor da sauna, o prazer da sua boca em mim, meus sentimentos
aflorados. Meus lábios se entreabrem e uma sequência de gemidos roucos
escapam da minha garganta. Na última gota de gozo, meu organismo parece
querer entrar em colapso. Aperto os olhos e me concentro em recuperar o
fôlego. Ainda a sinto entre minhas pernas, lambendo os resquícios da porra
no meu pau e ouço quando também chega ao ápice. Segundos mais tarde,
ela monta em mim, colocando-me dentro dela outra vez. Seus lábios
encontram os meus em um beijo calmo e afetuoso, cavalgando-me
lentamente.
Ficamos um tempo assim, beijando com amor, fazendo sexo
devagar, apenas para acalmar nossos corações acelerados. Segundos mais
tarde, ela abraça meu pescoço e sorri. E é nesse sorriso, então, que eu tenho
certeza.
— Eu te amo, Heloísa.
Vejo emoção atravessar seus olhos. Ela entreabre os lábios, como se
estivesse prestes a responder a mesma coisa, mas, ao invés disso, recebo um
sorriso amoroso e um beijo no canto dos lábios.
— Vamos para a ducha? — convida, me puxando pelos punhos.
Não fico magoado com a sua falta de resposta. No fundo, sei que
Heloísa ainda precisa de tempo para se livrar de toda a culpa que continua
em seu coração. Debaixo do chuveiro, nós namoramos um pouco mais, até
que estou a fim outra vez. Empurro Heloísa contra os ladrilhos, de costas
para mim, separo sua bunda e me enterro em sua boceta doce. Eu a como
assim, meu corpo esmagando o seu contra a parede, minha boca ora em sua
boca, ora em seu pescoço ou no seu ombro, sempre arremetendo
impiedosamente meus quadris nos seus.
— Você queria que eu enchesse sua bocetinha de porra, não é, sua
vadia? — sussurro no seu ouvido, sentindo a água fria bater em minhas
costas.
— Ainda quero — devolve, a voz trêmula de prazer.
Ergo suas mãos acima de sua cabeça e as mantenho aprisionadas
assim, com apenas uma mão. A livre, uso para tocar seu clitóris.
— Empina o rabo para mim e abra as pernas — ordeno e ela se
inclina mais em minha direção, separando os joelhos. — Se prepare para
gozar comigo. — Esfrego seu ponto sensível e meto em sua boceta com
afinco. — Goza nos meus dedos que vou gozar na sua boceta.
Instantes mais tarde, nós gozamos juntos. Mantenho Heloísa contra
a parede, sentindo seu coração bater no meu tórax. Ela se vira, me abraça
pelo pescoço e beija devagar os meus lábios. Neste ato, ainda que não tenha
me dito em palavras, eu sinto que essa mulher me ama.
CAPÍTULO 15

Inspiro fundo frente à caixa fechada na garagem, tomando um


pouco de coragem. Não faz muito tempo que desempacotei alguns retratos
da Mari com o Gustavo e os espalhei pela casa, depois de algumas semanas
adiando a tarefa. Agora, preciso fazer a mesma coisa com alguns livros que
ela deixou. Eu doei para a biblioteca local os títulos que minha irmã deixou
de fora do testamento e guardei os outros que estavam incluídos e alguns
que não estavam. Inclusive uma edição linda de O Médico e o Monstro, um
dos nossos favoritos.
Agacho-me e abro a caixa, à procura do título. Eu sorrio ao tomá-lo
em mãos, recordando-me do primeiro exemplar que ganhamos. Foi na
escola, quando estávamos em algum período do ensino fundamental, e o
livro fazia parte de um programa do Governo para incentivar a leitura. Entre
outros quatro ou cinco exemplares, o clássico do escocês Robert Louis
Stevenson se tornou o nosso favorito. Eu me lembro de que o lemos juntas,
cada um com seu, e passamos uma noite toda debatendo sobre Jenkyll e
Hyde.
Devolvo o livro à caixa, coloco-a debaixo do meu braço e volto para
dentro de casa. A cozinha ainda está suja do café da manhã, então tenho que
me apressar com os exemplares se eu quiser deixar tudo organizado antes
de Cassandra chegar.
É domingo. Ontem tive um bom dia com Augusto. Ele foi atencioso
em convencer minha gerente a me dar um folga e deixar o Gu com Conrado
para que eu tivesse um dia de descanso de verdade, mas não esperava que
no final da tarde, Fernanda me ligasse e me dispensasse do trabalho hoje
também. Eu não sei se foi coisa do Augusto ou se ela decidiu por vontade
própria.
— Oi, meu amor — digo ao abrir a porta e entrar no quarto de
Gustavo.
Ele está no carpete felpudo, se distraindo com brinquedos
adequados. Eu o deixei sozinho e sem alcance de nada perigoso apenas para
ir à garagem. Gustavo sorri para mim e vem engatinhando na minha
direção, animado. Apoio a caixa no chão e o tomo em meu colo. Encho seu
rosto de beijos e o jogo para cima. Gustavo ri quando o pego outra vez,
aquela gargalhada gostosa que só os bebês têm.
— Não conta pro papai — sussurro, devolvendo-o ao chão. — Eu o
repreendo por essas brincadeiras perigosas e não posso ser hipócrita, não é?
Gustavo abre outro sorriso enorme e eu apoio a caixa sobre sua
cômoda. Vou empilhando os títulos que quero que fiquem aqui no quarto
dele enquanto o supervisiono. Ele torna a brincar e dessa vez, se distrai em
tirar e colocar os brinquedos de um cesto redondo pouco maior que ele.
Meu celular me notifica de uma mensagem. É Augusto. Ele saiu fazer
mercado e Conrado foi junto.

Augusto: Já estamos quase chegando em casa, mas me esqueci


de comprar o sorvete. O que tem aí não é mesmo o suficiente?
Eu: Não. É melhor parar em algum lugar e comprar outro só
por garantia.
Augusto: Tudo bem, passo no mercado que tem no caminho de
casa. Beijos.

Nós vamos fazer um churrasco para o almoço em família desse


domingo. A ocasião é que, finalmente, vamos descobrir se Gustavo é ou
não filho biológico do meu namorado.
— Tenho uma novidade pra você — lembro que Augusto disse
instantes depois de gozar dentro de mim pela segunda vez no dia.
Ele ainda estava encaixado em minha boceta, a água quente do
banho noturno caindo sobre nós. Tinha sido um dia divertido e logo,
Conrado chegaria com Gustavo.
— Que novidade? — perguntei, virando-me em sua direção.
Augusto beijou meus lábios com carinho.
— O exame de DNA ficou pronto.
— Quando? — Pisquei, surpresa.
— Ontem.
Dei um tapa sem seu braço.
— Por que está me contando só agora?
Ele deu de ombros e me prensou contra a parede, um sorriso
malicioso surgindo em seu rosto.
— Existe a possibilidade de Gustavo não ser meu filho. Então, não
queria que, de alguma forma, o resultado desse teste atrapalhasse nosso
sábado. Vamos abrir ele amanhã, com a família reunida.
— Precisamos mesmo disso?
— Minha mãe faz questão. Eu sei que deveria ser um momento
entre nós, mas querendo ou não, Cassandra, Saulo e Conrado farão parte da
vida do Gu. Meus pais não mereciam essa ocasião, mas eles estão se
esforçando, então…
Movi a cabeça em positivo e beijei seus lábios.
— Mamã… — Gustavo murmura, agarrado em minha perna agora,
trazendo-me de volta ao mundo real. Ele tenta se levantar apoiado em mim,
mas não consegue. Sorrio e me abaixo para beijar suas bochechas.
Seu interesse dura só dez segundos até ele voltar para seus
brinquedos e seu cesto. Recomeço minha tarefa, guardando os livros nas
prateleiras. Muitos títulos, Mariana adquiriu ao longo dos meses e são
infantis; outros, são clássicos que marcaram nossa infância — alguns são
edições atuais; outras, são os que ela preservou a vida toda. Deixo O
Médico e o Monstro por último, já que tenho um cantinho especial para ele
na prateleira. Por algum motivo, resolvo folhear essa edição. O miolo é
lindo e bem trabalhado, as páginas são amarelas e a fonte é confortável. A
edição também possui ilustrações nos principais pontos.
É neste momento que percebo que alguma coisa está entre as folhas.
Ao abrir o livro, descubro um envelope. Viro-o com cuidado e prendo a
respiração por um instante ao reconhecer a caligrafia de Mariana.
Heloísa.
Meu coração acelera dentro do peito e minhas mãos tremem. O
envelope está lacrado e bem conservado, o que significa que não faz muito
tempo que está aqui. Engulo em seco, perguntando-me o que pode ser. No
mais íntimo do meu peito, desejo que seja uma carta de perdão. Talvez ela
fosse orgulhosa demais para me dizer pessoalmente e preferiu escrever.
Abro o envelope com cuidado e as folhas estão delicadamente dobradas.
Apoio as folhas sobre a cômoda. O modo como Mariana dobrou o papel faz
com que o conteúdo fique para dentro, então tudo que consigo ler é a
primeira linha, a única parte visível.
Heloísa…
Permaneço vários segundos olhando para meu nome em sua
caligrafia, criando coragem para desdobrar o papel e ler o conteúdo da
carta. E se não for uma carta de perdão? E se ela estiver me culpando ainda
mais pelo fim do seu casamento? Por ter adoecido, ter afastado Augusto
dela naquele momento crítico, por ter afastado o pai do filho dela?
Com cuidado, guardo a carta de volta ao envelope e o devolvo entre
as páginas do livro. Agora entendo por que Guto não me disse nada sobre o
exame de DNA na sexta-feira. Estou morrendo de curiosidade para saber o
que ela me escreveu, mas tenho medo de o conteúdo estragar meu domingo.
Respiro fundo e coloco o exemplar no cantinho especial.
Quando me viro, sinto minha pulsação parar. Simplesmente não vejo
Gustavo aqui. A porta aberta me deixa em pânico e eu saio em disparada,
com medo de que ele encontre o caminho até a piscina e caia na água, ou
que coloque algum produto químico na boca, ainda que todos estejam na
lavanderia, fora de seu alcance. Mas posso ter me esquecido de algum que
ele facilmente teria acesso, não posso? Meu Deus, eu não vou me perdoar
se alguma coisa acontecer com o Gu por causa de uma distração de um
segundo. Lágrimas se acumulam nos meus olhos quando não o encontro na
sala, nem na cozinha.
— Gustavo! — chamo, desesperada, e corro para o quintal.
A piscina está vazia e observo ao redor, em busca de suas perninhas
se rastejando. Ai Deus, ele não pode ter ido muito longe, pode? Eu me
distraí só um segundo. Como ele sumiu dessa forma? Volto para dentro,
correndo, e confiro a cozinha mais uma vez, vasculhando a lavanderia
também. Confiro a sala e corro até a suíte principal. Olho debaixo da cama,
no banheiro.
— Gustavo — grito, em completo desespero.
Na sala, ouço alguém chegar.
— Helô? — É a voz do Guto.
Corro para lá, cada vez mais desvairada. Ele está ao lado do irmão,
os dois carregando muitas sacolas.
— Augusto, o Gustavo sumiu!
— Como é? — indaga, assustado.
Conrado solta as sacolas na mesma hora e dispara casa adentro
enquanto explico que me distraí só um segundo.
— Você olhou no banheiro do quarto dele? — Conrado grita,
conferindo a área de serviço.
— Não. Ainda não.
Disparamos os três para lá, mas nenhum sinal do menino. Olho ao
redor, observando seu quarto. Conrado está erguendo cobertas do berço e
Augusto procura atrás dos móveis. Então, eu noto o cesto que Gustavo
estava brincando minutos atrás virado para baixo. Franzo o cenho.
Será que…?
Ergo o cesto e ali está ele, sentadinho. Assim que o encontro,
Gustavo gargalha, chamando atenção do pai e do tio. Começo a rir com ele,
meu coração se aliviando na mesma hora. O tempo todo ele esteve aqui,
escondido. Ergo-o em meus braços, nós quatro rindo da situação. Depois do
susto, minha barriga até dói de tanto que dou risada.
— Meu Deus, quase morri — sussurro, esmagando o menino entre
meus braços. — E você estava aqui, bem quietinho, né, seu danado? Não
faça mais isso, Gu.
— Pode esperar que esse vai dar trabalho quando for maior —
Conrado graceja.
Augusto ri e beija o rosto do Gustavo, abraçando nós dois em
seguida.

Conrado me ajuda com a salada e com o vinagrete. Ao meu lado, ele


pica os tomates pacientemente enquanto eu lavo as folhas de alface. Lá
fora, Saulo ajuda Augusto a temperar a carne e preparar a churrasqueira
enquanto Cassandra cuida do neto. Distraída higienizando a verdura, eu
penso na tarde de ontem, na declaração do meu namorado. Nós não
tocamos no assunto em nenhum momento e não o senti estranho, então
suponho que esteja tudo bem. Mas Augusto também viveu muito tempo ao
lado da minha irmã fingindo que estava tudo bem e demorei a notar.
Olho para o lado e me pergunto se é uma boa ideia. Provavelmente é
uma ideia idiota porque Conrado vai fazer graça em vez de me dar um bom
conselho. De qualquer maneira, eu me arrisco.
— Conrado? — Ele se vira para mim. — Você já se apaixonou?
Seus olhos me analisam por um instante.
— Uma vez. Eu tinha sete anos e ela era minha professora de
música.
Eu rio da sua palhaçada. É claro que ele falaria alguma gracinha, ou
não seria o Conrado.
— Estou falando sério.
Ele desliza a mão pela lâmina da faca para tirar os pedaços de
tomate ali e depois, lava as mãos na pia.
— Nunca me apaixonei de verdade — responde. — Era tudo tesão.
— Dou uma risadinha, acomodando as folhas de alface no secador manual.
— Por que a pergunta?
Suspiro e me viro para trás, vendo Augusto sorrir e brincar um
minutinho com Gustavo.
— Seu irmão me disse “eu te amo” ontem — confesso, esperando
que entenda meus dilemas.
Conrado pega um pimentão sobre a bancada e começa a picá-lo.
— E se eu entendi direito, você não disse “eu te amo” de volta?
Por qualquer razão que seja, sinto meu rosto corar. Encaixo a tampa
do secador de salada e começo a girar o cesto.
— Não — confesso baixinho.
Não dizemos mais nada um ao outro por alguns segundos. Eu não
sei como continuar essa conversa — tudo o que quero saber é se Conrado
acha que Augusto está magoado comigo por causa disso —, então fico
esperando que meu cunhado adivinhe tudo.
— Você não sente o mesmo? — questiona.
Movo a cabeça.
— Sinto, é claro que sinto — me apresso a dizer e depois, escorro a
água do secador. — Só… não estou muito segura para falar isso em voz
alta.
— Entendi. — Ele faz o mesmo movimento de deslizar a mão na
lâmina e depois, as coloca sob a água corrente da torneira. — Você o ama,
mas ainda se culpa pelo que aconteceu no passado e acha que é injusto e
indigno com a memória da sua irmã amar o Augusto.
Um pouco envergonhada, eu confirmo, monossilábica:
— É.
Conrado seca as mãos no pano de prato sobre seu ombro e encosta o
quadril na pia, olhando para mim com os braços cruzados. Paro com a
minha tarefa de “centrifugar” as folhas de alface e sou atraída pela sua
postura.
— Se você ama alguém, precisa dizer antes que seja tarde demais —
ele aconselha, amoroso.
— Eu sei, mas… — Fecho os olhos e suspiro. — Você realmente
não se importaria se estivesse na minha pele? Se no meu lugar e no de
Augusto, estivessem você e a Mariana?
Conrado dá de ombros.
— É difícil responder a essa questão, Heloísa. Eu posso te dizer que
não, não me importaria, mas isso não seria totalmente verdade. Ninguém
sabe como se sentiria ou como agiria em uma situação assim até estar em
uma situação assim.
Reflito um instante a respeito disso, meus olhos longe dos dele.
— De qualquer maneira — Conrado continua, selecionando agora
uma cebola para picar —, não acho que tenha que se sentir pressionada a
dizer “eu te amo” ao meu irmão para não ferir os sentimentos dele. — Ele
ergue os olhos para Augusto do outro lado da área de lazer. — Confie em
mim, Guto está bem.
Fecho os olhos e suspiro, porque esse é o meu maior medo.
— Certeza? Augusto escondia bem suas tristezas em relação a
Mariana.
— Ele escondia dos meus pais e das pessoas ao redor, não de mim.
Por mais que Augusto e Mariana mantivessem a fachada de família de
comercial de margarina, eu sabia muito antes daquela briga no Natal que
eles não estavam bem.
Assinto, recordando-me que Conrado não presenciou a discussão,
mas me contou uma vez que Augusto confidenciou com ele toda a situação
daquela noite de Natal — da discussão com Mariana a ter ido parar na
minha cama. Nessa ocasião, Conrado tinha ido até o bar uma semana depois
para conversar comigo e foi um bom amigo naquela ocasião, tentando me
confortar do meu erro.
— Isso significa que eu não o conheço como gostaria — reclamo,
tirando as folhas do secador.
Conrado ri, picando a cebola demoradamente.
— Eu convivo há trinta e três anos com o Augusto, Heloísa. É
natural que eu conheça as camadas do meu irmão.
Isso me faz sorrir um pouco.
— Então, ele está bem?
— Está — confirma, virando-se para mim. — E está feliz. Meu
irmão sabe que você o ama, ainda que não tenha dito. Augusto está sendo
paciente, esperando você se sentir confortável para pôr os sentimentos para
fora. Lembre-se que gestos dizem mais do que palavras.
Assinto devagar, aliviada com o conselho.
— Mas olha — ele retoma, o tom sério e ao mesmo tempo
condolente —, espero que seu medo e sua insegurança não estejam
baseados na aprovação de outras pessoas. Eu sei que é inevitável pensar que
vão te julgar e dizer coisas maldosas do tipo “ela só estava esperando a irmã
morrer para ficar com o cunhado”, mas não se deixe levar pelo julgamento
alheio, está bem? Lide com seus conflitos morais por causa de si mesma,
não pelo que os outros vão pensar.
Abro um sorriso afetuoso, agradecida por Conrado ser tão
compreensível.
— Você é uma pessoa incrível, Helô — prossegue, sincero. — Você
e Augusto cometeram um único erro e vi o quanto se arrependeram, o
quanto isso… machucou você e meu irmão. Sei que tem um bom coração,
ou não estaria por tanto tempo cheia de culpa. Mas, de verdade, não demore
demais para dizer ao Guto que o ama. Vocês dois merecem amar e serem
felizes.
Eu o abraço, pegando-o de surpresa.
— Obrigada, Conrado.
Ele ri e funga, mas sei que o “choro” deve ser por conta da cebola.
Meus próprios olhos agora começam a lacrimejar por causa do cheiro forte
da hortaliça. Ele se afasta e deixa um beijo no meu rosto.
— Que “obrigada” o quê — brinca, aos risos. — Mil reais pela
consultoria.
— Ei — Augusto diz, se aproximando. Ele joga um braço sobre
meu ombro e me olha com carinho. ­— De que consultoria Conrado está
falando?
— Ele não te disse? — Entro na brincadeira. — Conrado vai deixar
o cargo de arquiteto-chefe na construtora dos Monteiro para se tornar coach
de relacionamentos.
— Podem me chamar de Mr. Lover — Conrado graceja.
Augusto solta uma risada gostosa.
— Você, coach de relacionamentos? É o cara mais avesso a namoros
que eu conheço.
— Não sou avesso a namoros — protesta, apontando a faca para o
irmão. — Eu só não encontrei a pessoa certa ainda. Já não diz o ditado que
“quem procura acha”? Pulo de cama em cama procurando o amor da minha
vida.
— Certo — meu namorado ri. — Mas por que minha garota precisa
de uma consultoria com um cara que não entende nada de relacionamentos?
— pergunta, olhando para mim.
Abro um sorriso sem graça, pego uma faca do faqueiro e começo a
picar as folhas de alface, evitando o contato visual.
— Deixa disso, Guto — Conrado intervém. — Temos um termo de
confidencialidade entre coach e cliente. Posso te oferecer uma sessão pela
metade do preço se quiser.
— Tudo bem — meu namorado diz, rindo da palhaçada do irmão, e
planta um beijo no meu rosto. — Seja lá o que for, confio no seu coach de
meia-tigela.
Nós rimos por um instante até Augusto voltar para ajudar o pai com
as carnes — ele só veio pegar mais sal grosso — e Conrado e eu
terminamos nossa parte.

Por incrível que pareça, temos um momento divertido em família.


Conrado se mantém comportado em relação ao pai, sem fazer qualquer
provocação. Eu sei que provavelmente é difícil para ele se reunir com
Cassandra e Saulo, mas seu coração é bom o suficiente para fazer isso por
Augusto e por Gustavo. Conrado Monteiro merece ser feliz, seja com
alguém ou só pulando de cama em cama.
Cassandra também se comporta bem. Ela não faz qualquer
comentário desnecessário, não coloca defeito no modo como estamos
criando Gustavo e nem encontra motivos para criticar nosso lar ou meu
relacionamento com seu filho. Não sei se ela está simplesmente aceitando a
ideia de que não pode palpitar sempre que quiser na nossa vida e na
educação do Gu ou se só está fingindo para o bem geral da nação.
O único “problema” de Cassandra é querer monopolizar Gustavo.
Ela simplesmente não o deixa para nada. Ela o segura no colo o tempo todo,
brinca com ele pelo jardim, o troca nas vezes que precisa e até quando o
menino cochila um pouco, ela o mantém em seu colo ou no carrinho ao seu
lado. Fico feliz pelo carinho de Cassandra com Gu, mas, lá no fundo, tenho
medo de que ela passe a rejeitá-lo caso não seja seu neto de sangue.
Por fim, depois de uma tarde agradável, Augusto resolve ir buscar o
exame. Nós nos reunimos na sala de estar, acomodados no sofá, e
Cassandra permite que Gustavo fique um pouco no colo de Saulo. Entrelaço
os dedos, apreensiva. No fundo, quero que o exame dê positivo — dessa
forma, não teremos que enfrentar a possibilidade de o juiz nos tirar o
menino. Augusto vem do nosso quarto trazendo o exame. Ele parece
nervoso e apreensivo ao parar no meio da sala, os olhos cabisbaixo.
— Meu Deus, abre logo esse envelope — Conrado diz. — Estou
mais nervoso que você.
Isso arranca uma risadinha de todos nós e deixa o clima mais leve.
— Certo — Augusto murmura, tomando uma golfada generosa de
ar.
Suas mãos abrem com cuidado o envelope e puxam de dentro dele o
resultado, delicadamente dobrado em quatro partes. Devagar, meu
namorado desdobra a folha, e meu coração dispara, assim como tenho
certeza que o dele também. Seus olhos se fixam no papel e noto quando sua
expressão muda completamente.
O tempo parece congelar por um segundo eterno.
Augusto pisca e engole em seco, os lábios entreabertos. Só existe
duas chances: ou Gustavo é seu filho ou não é, e ainda assim, Guto está
surpreso demais com o resultado ali — seja ele qual for.
— Ai meu Deus — murmura, seus olhos lacrimejando. Seguro o
ímpeto de ir em sua direção e tomar a folha de suas mãos para conferir o
resultado.
— Augusto? — Cassandra diz, apreensiva.
— Calma, querida — Saulo suaviza.
Meu namorado dobra o exame outra vez e seca algumas lágrimas
com o dorso da mão. Conrado resmunga um “porra, conta logo” ao meu
lado, e eu sou a única que não consegue pronunciar uma palavra, esperando
pelo tempo dele.
Por favor, Deus.
Por fim, Augusto ergue o rosto e olha para cada um de nós ao dizer,
a voz abatida:
— Gustavo é meu filho.
CAPÍTULO 16

— Você está bem? — Heloísa pergunta, abraçando-me por trás.


Forço um sorriso e encontro seus olhos pelo reflexo do espelho do
banheiro. Gosto do calor do seu corpo nas minhas costas nuas, dando-me
uma sensação de aconchego e carinho que preciso neste momento.
— Estou cansado, só isso.
Ela apoia a cabeça nas minhas costas e fecha mais ao braço ao meu
redor. Relaxo envolvido pelo seu abraço, tentando afugentar a exaustão
física e psicológica do meu corpo. Foi um dia intenso hoje e ainda estou me
habituando à ideia de que Gustavo é meu filho.
— Vou preparar um banho para nós — sussurra, deixando um beijo
na minha omoplata.
Sorrio em agradecimento e passo o próximo minuto encarando meu
reflexo cansado no espelho. Horas atrás, eu abri o exame e foi como ter
minha vida virada de cabeça para baixo. Naquele primeiro minuto, com a
verdade bem diante dos meus olhos, a tristeza se abateu sobre meu corpo.
Eu quis sair dali, pisando firme, e extravasar a raiva e a tristeza com um
grito dolorido. Por que Mariana o escondeu de mim? Por que não contou a
verdade no testamento? Por que me afastou por tanto tempo do meu próprio
filho? Por que me pediu para adotá-lo? Quis ir até seu túmulo e esbravejar
com ela, como se ela pudesse me dar qualquer resposta. Ao invés disso,
permaneci no meio da minha sala porque não podia deixar toda a minha
família.
— Eu sabia — minha mãe havia dito, radiante de felicidade. ­— Eu
sabia que ele era seu, Guto.
Tudo que consegui fazer foi dar um sorriso triste. Por que Mariana?
Porra, por quê? As vozes de todo mundo se misturaram mas não dei muita
atenção a nenhuma delas, ainda meio catatônico com o resultado. Heloísa
veio até mim para me abraçar e me beijar. Sua atitude me aliviou um pouco
e acalmou meu coração. Conrado veio a seguir, dando-me um abraço
também, mas não disse muita coisa. Seu gesto foi como um “parabéns pelo
filho” e um “que droga a Mariana fez?”. Não muito tempo depois, eles
foram embora.
— Guto — Helô me chama —, o banho está pronto.
Desenrolo a toalha da minha cintura e entro na banheira. Heloísa faz
o mesmo, encaixando-se entre minhas pernas. Amarro seu cabelo em um
coque alto e beijo seus ombros.
— Ele dormiu fácil? — pergunto, ensaboando suas costas com
carinho.
— Dormiu. Sua família cansou o pobrezinho hoje. — Eu sorrio. —
Tive medo de que Cassandra o rejeitasse caso o exame tivesse dado
negativo.
Escorrego a esponja para cima, até seus ombros.
— Ela o teria rejeitado primeiro até termos certeza. — Pauso por um
instante. — Será que ela sabia? Talvez Mariana tenha contado e pedido
segredo. De verdade, semanas atrás, eu não esperava que minha mãe
aceitasse tão bem o menino, que o considerasse como neto sem saber se era
memo um Monteiro.
— Talvez — Heloísa murmura, acariciando minhas pernas. — Mas
também é estranho pensar que Cassandra manteria um segredo assim de
você por tanto tempo.
Engulo em seco e suspiro.
— Tanta coisa nessa história não faz sentido, Heloísa — pontuo. —
Ainda me pergunto por que Mariana não me contou nada.
Minha namorada permanece em silêncio por alguns segundos, como
se estivesse refletindo a cerca de alguma coisa.
— A Mariana me deixou uma carta — revela com um sussurro.
— Uma carta? — Fico surpreso.
— Encontrei hoje entre as folhas de um livro que era o nosso
favorito.
— O que dizia?
— Eu não sei. Não quis abrir. Fiquei com medo de o conteúdo
atrapalhar nosso domingo. E se Mariana estiver me culpando por tudo de
ruim que aconteceu na vida dela? Preferi esperar um pouco mais. Agora,
estou pensando se, por acaso, ela não contou sobre o Gustavo.
— Você vai abri-la?
Heloísa suspira lentamente e traz meus braços ao redor da sua
cintura.
— Tenho medo, Guto. Sabe que ainda me sinto culpada por
estarmos juntos, que mesmo que eu… — Ela engole em seco e vira o
pescoço para me olhar. — Não te disse as três palavras por que ainda não
acho certo o que estamos fazendo.
— Tudo bem, eu sinto que me ama, mesmo que não tenha dito. —
Beijo sua nuca. — Diga quando estiver confortável. Abra a carta quando
aceitar que não existe nada de errado entre nós. Se Mariana escreveu algo
escroto, não vai ser tão ruim se estiver bem com sua própria consciência.
— Obrigada, Guto. — Ela se vira e beija meus lábios, montando
meus quadris. — No fundo — sussurra, sua boca perto da minha, os braços
ao redor da minha nuca —, eu estou feliz que o Gustavo é seu. O risco de
perdemos o menino é quase inexistente.
Acaricio suas costas.
— Amanhã mesmo já vou juntar tudo o que preciso para registrá-lo
e vou até meu advogado. — Ela me dá um sorriso sincero. — Não quero ter
poder de tirá-lo de você com facilidade. — Afago seu rosto e coloco uma
mecha úmida de cabelo atrás de sua orelha. — Você é a mãe dele agora e
quero que tenha direitos legais tanto quanto eu.
Seus olhos brilham para mim e me pergunto onde está a Heloísa
que, mais de um ano atrás, me disse que nunca tinha desejado um bebê. Eu
não sei se ela mudou de ideia com a chegada do Gustavo, ou se ela mudou
de ideia muito antes, ou se foi algo muito específico daquela vez… Não
importa. Importa que, agora, eu vejo felicidade nos seus olhos em ser mãe
do Gu ao meu lado. E eu amo mais por causa disso.

Eu deveria mesmo estar aqui?, pergunto para mim enquanto espero


pela minha vez. Eu disse à recepcionista da clínica que seria uma conversa
breve, mas, ainda assim, ela me fez marcar uma consulta. Com um
ginecologista. Tudo bem, talvez seja melhor dessa forma. O doutor tem
uma agenda cheia e esperar que ele atendesse todas as suas pacientes para
me encaixar demoraria bem mais — e eu não seria indelicado de abordá-lo
no seu horário de almoço ou no fim do seu expediente.
Meu celular notifica uma mensagem. Abro um sorriso ao conferir o
vídeo que Heloísa me mandou de Gustavo engatinhando pela casa ou se
apoiando nos móveis para se locomover. Helô e eu achamos que, em breve,
ele vai andar sozinho, sem se firmar em nada. No vídeo, ela chama o
garoto, que se vira em sua direção e sorri.
— Mande um oi para o papai.
O sorriso dele se amplia e, mantendo uma mão apoiada no assento
do sofá para se equilibrar, Gustavo acena com a mãozinha livre,
murmurando um “Dadada”. Reajo à mensagem que ela me enviou e
guardo o telefone de volta ao paletó, engolindo em seco. Eu não disse à
Heloísa que estaria aqui hoje e não gosto de esconder as coisas dela, mas
achei que seria melhor assim por enquanto. Cerca de vinte minutos depois,
é a minha vez. O doutor Samuel me atende com um sorriso no rosto e uma
pitada de humor nos olhos.
— Eu nunca atendi uma paciente como você — ele brinca, dando
espaço para eu entrar no consultório. — A recepcionista me explicou seu
caso. Desculpe ter feito você marcar uma consulta.
Eu entro no espaço estilo clean e movo a cabeça em negativo,
dispensando sua desculpa.
— Tudo bem, não foi nada. — Viro-me para ele e estico a mão em
cumprimento. — Augusto Monteiro.
— Samuel. — Ele aperta minha mão de volta. — Sente-se, por
favor. — Aceito a oferta quando ele indica a poltrona e contorna a mesa
para se acomodar em seu próprio lugar. — Em que posso te ajudar,
Augusto?
— Minha ex-mulher foi sua paciente. Mariana Alvares Monteiro. Se
recorda dela?
— Mariana! Claro, claro que me recordo dela. Ótima moça. Como
ela está?
Forço um sorriso e suspiro.
— Infelizmente, ela faleceu há pouco mais de dois meses. Câncer na
coluna.
O rosto de Samuel se transforma na mesma hora.
— Ah, meu Deus, que notícia terrível. Sinto muito.
— Obrigado. — Entrelaço meus dedos, procurando uma maneira de
abordar o assunto. — Eu vim aqui hoje por que tem uma questão com a
Mariana que está me perturbando há alguns dias. Talvez o senhor possa me
ajudar.
Samuel acena em positivo.
— Eu te ajudo no que estiver ao meu alcance, Augusto.
— Quando a Mariana faleceu — prossigo —, eu descobri que ela
tinha um filho. Recentemente, descobri que é meu filho biológico também.
Ela o escondeu de mim por meses e não consigo entender o motivo, sabe?
Minha ex-mulher comentou algo com você nas consultas de pré-natal?
O médico parece confuso com a pergunta e balança a cabeça em
negativo.
— Mariana não fez o pré-natal comigo.
Entreabro os lábios, surpreso com a informação. Samuel era o
ginecologista de confiança da Mariana. Vinha religiosamente todo ano fazer
um check-up e não abria mão dele por nada.
— Estranho — murmuro.
— Quanto tempo tem o filho dela? — pergunta, interessado.
— Completou dez meses há quatro dias.
Samuel pisca um par de vezes e nega outra vez com um gesto de
cabeça.
— Impossível esse menino ser filho da Mariana.
Agora, sou eu que fico confuso com sua resposta.
— Como assim?
Ele se levanta e caminha até um arquivo ao lado da mesa. Puxa uma
gaveta e começa a procurar algo entre os diversos documentos enquanto
responde:
— Mariana vinha fazer exames de rotina anualmente, entre maio e
junho. — Ele empurra os óculos que estavam escorregando pelo nariz e
volta à sua tarefa. — Inclusive, estranhei a ausência dela esse ano. Então,
ela veio no ano passado e como sempre, fizemos uma bateria de exames.
Agora, ele encontra uma pasta branca, que acredito ser o prontuário
de Mariana, e volta para seu lugar na mesa. Samuel abre a pasta e vai
passando os diversos documentos ali, até encontrar o que precisa.
— Nessa bateria, incluía ultrassonografia. Acredite, Augusto, se sua
ex-mulher estivesse grávida no ano passado, e pelos meus cálculos, ela
estaria de cinco ou seis meses de gestação, eu saberia na mesma hora.
Samuel puxa uma ultrassonografia datada de junho do ano anterior e
a coloca em minha frente. Fixo meus olhos ali, lendo as informações da
imagem — tipo de exame, nome da paciente, data do ultrassom. Sinto meu
coração bater nos ouvidos conforme me dou conta do que está acontecendo.
Meu Deus, como isso é possível?
— Espera… — digo, meio catatônico. — Deve haver algum
engano.
— Não há — Samuel diz, firme.
Gesticulo com as mãos, completamente confuso.
— Samuel, você não está entendendo! Gustavo é meu filho, mas não
faz sentido não ser da Mariana. Eu nem mesmo estive com outra mulh… —
Refreio minhas palavras imediatamente aqui.
Eu nem mesmo estive com outra mulher.
Pisco duas vezes, meus olhos aterrorizados nos de Samuel. Não, isso
não seria possível, seria? Ele me pergunta se estou bem. Não, não estou.
Minha respiração se acelera. Eu me levanto em um ímpeto.
— Posso ficar com o prontuário dela?
— Não, mas posso providenciar uma cópia.
— Eu agradeceria. — Tiro um cartão de visitas da minha
construtora de dentro do bolso do paletó. — Não posso esperar, então se
importaria em mandar no meu e-mail, ainda hoje se possível? — Arrasto o
cartão em sua direção.
— Claro, tudo bem — concorda, confuso com minha reação.
— Obrigado pelo seu tempo — digo e deixo o consultório,
apressado.
Minha cabeça lateja. Corro até o estacionamento e entro no meu
carro, o coração disparado. Apoio a testa no volante e controlo meus
nervos. É a única explicação plausível, mas ao mesmo tempo, parece uma
loucura. Um pouco mais controlado, dou a partida e deixo a cidade,
rumando para o Hospital Regional de Santa Mônica. Pouco mais de uma
hora depois, estou na recepção.
— Preciso de uma informação sobre uma paciente — peço, sentindo
meu coração quase saltar pela boca.
A recepcionista me avalia por um segundo antes de negar meu
pedido:
— Senhor, as informações sobre os nossos pacientes são
confidenciais.
Travo o maxilar, segurando a vontade de dar um soco no balcão.
— Por favor, eu só preciso que me confirme se ela deu mesmo
entrada na maternidade em setembro do ano passado. Te passo o nome e
você procura no sistema. Por favor. Por favor. É urgente.
A mulher me encara com atenção antes de suspirar e perguntar:
— Qual o nome da paciente, data de nascimento e data de
internação?
— Mariana Alvares Monteiro. Data de nascimento: vinte e cinco de
março de noventa e dois. O bebê nasceu em oito de setembro de dois mil e
vinte e dois, às dezesseis e quatro. Acredito que ela tenha se internado no
mesmo dia.
Seus dedos digitam rapidamente no computador e os segundos de
espera parecem infinitos.
— Desculpe, senhor, mas nenhuma paciente com essas informações
deu entrada aqui — ela informa. Estou para fazer outra pergunta quando a
funcionária do hospital completa: — Mas há outra paciente que coincidem a
internação, data de nascimento e um dos sobrenomes.
Eu congelo em meu lugar, amedrontado, surpreso, aterrorizado.
Porra.
Inferno.
Mil vezes inferno.
Eu mal me vejo perguntando, a voz trêmula:
— Heloísa Alvares Mendes?
A recepcionista ergue os olhos para mim.
— Exatamente.

— Se lembra o que eu te falei sobre visitas inesperadas? — Conrado


pergunta, arqueando uma sobrancelha, assim que atende a porta do seu
apartamento.
Por um breve segundo, eu me esqueço do que vim fazer aqui,
porque toda a minha atenção é roubada para a bebê em seu colo. Ela usa
uma roupinha rosa e seus cabelos fininhos estão amarrados delicadamente
em duas chuquinhas.
— É sério o que eu disse sobre o boneco vodu — meu irmão
prossegue, fazendo-me erguer os olhos em sua direção. — Tenho um de
cada familiar.
— De quem é essa criança? — questiono, apontando para a menina
que se distrai agora com a gravata dele.
— Ah, essa Mariah. É filha da Laura. Te falei dela, lembra? De
Laura.
— Lembro — digo, entrando em seu apartamento. — Está mesmo
disposto a comer a sua vizinha, não é?
Ele encosta a porta e levanta um dedo em riste.
— Primeiro, não diga essa palavra na frente da menina. Segundo, eu
não estou cuidando da bebê porque quero — “comer” ele diz
silenciosamente — a Laura. É um favor. Ela teve que ir à reunião do filho
mais velho, o Nicolas, e me pediu para ficar com a Mariah. Sabe como
criança pequena é, não sabe?
A essa pergunta, eu me lembro do que vim fazer aqui. Passo a mão
pelo meu cabelo e fecho os olhos, exausto. Caio em seu sofá e logo meu
irmão nota meu abatimento. Ele coloca a menina dentro de um cercadinho e
a enche de brinquedos para distrai-la antes de se sentar de frente para mim.
— O que aconteceu?
Passo a mão no rosto, segurando minhas lágrimas nos olhos.
— O Gustavo é… filho da Heloísa também — digo, sem encará-lo.
Um segundo de silêncio.
— Como é?
Tiro de dentro da minha bolsa todo o prontuário da Heloísa que
consegui com o diretor do Hospital, o de Mariana que a recepcionista do
Samuel me enviou no e-mail e os espalho sobre a mesa de centro enquanto
narro como descobri a verdade — começando pela consulta com o
ginecologista.
— Heloísa quem deu a entrada em trabalho de parto, e a Mariana
assinou a internação dela, está vendo? — digo, apontando para a cópia que
consegui. — E aqui… — murmuro, pegando documentos do pré-natal que
ela fez no sistema público. — Aqui diz que… Heloísa ia entregar o Gustavo
para adoção.
Ergo os olhos para Conrado, estudando sua reação. Ele tem um
vinco entre as sobrancelhas e seus seu semblante está endurecido, os olhos
avaliando os documentos que levantei. Encosto-me no sofá outra vez e
passo a mão pelo rosto, querendo chorar.
— A Mariana deve ter impedido que o Gustavo fosse entregue para
o sistema — eu teorizo com um sussurro —, mas ainda não entendo por que
ela não confessou tudo no testamento, por que no registro do Gu, ela é a
mãe biológica, por que… a Heloísa está mentindo para mim. Não sei o que
fazer, Conrado. Não sei o que pensar dessa situação. Estou tão confuso e
cansado. Vim aqui em busca de algum conselho.
Calmo, Conrado toma os papéis em mãos e os avalia por mais um
instante.
— Acha que a Heloísa está mentindo sobre isso?
Ergo a cabeça e solto uma risada sem humor.
— Claro que está. Não sei os motivos, mas ela está atuando bem.
— Augusto, Heloísa não está mentindo. Por favor, ela pensa mesmo
que é tia do garoto.
Endireito a postura e encaro meu irmão mais velho. Ele desvia o
olhar por um segundo, apenas para se certificar de que Mariah está bem no
cercadinho a uma curta distância dele.
— O que está sugerindo? Que Heloísa se esqueceu que gerou e
pariu um filho?
Conrado dá de ombros.
— Não é impossível.
— Anda lendo romances demais, Conrado.
— Não fale dos meus romances — acusa, vindo até mim. Ele se
senta ao meu lado e me olha com carinho. — Escuta, Augusto, a situação da
Heloísa é séria. Eu não sei se ela esqueceu que teve um filho, ou se a causa
é algum transtorno ou algo assim, mas ela não está mentindo.
— Que tipo de transtorno?
— Eu não sei. Sou arquiteto, não psicólogo. Mas faria sentido, não
acha? Talvez alguma coisa relacionada a negação ou autopreservação?
Guto, a Heloísa sempre se sentiu terrivelmente culpada por ter dormido
com você, pelo seu divórcio. Se ela engravidou daquela noite, acho que é
natural ter desencadeado um sintoma que a protegesse de si mesma.
Fecho os olhos e suspiro, sem saber no que mais acreditar.
— Pode ser, mas… e se ela estiver apenas mentindo para mim?
— Ela não está, cara — insiste convicto.
Solto uma risada amarga.
— Claro, porque você reconhece uma mentirosa de longe, não é?
Eu me arrependo na mesma hora da idiotice que disse, mas é tarde
demais. Conrado se levanta do meu lado, afetado pelas minhas palavras, e
tenta disfarçar sua raiva de mim pegando a mocinha no cercado e lhe dando
um pouco de atenção.
— Existe uma diferença entre mentir dois anos da sua idade e
mentir que não sabe que deu à luz uma criança — ele diz, magoado, sem
olhar para mim. — Vá para casa e converse com sua namorada. Mas, por
favor, Augusto, não seja um babaca idiota.
Conrado deixa a sala cantarolando para Mariah.
E eu simplesmente me sinto um imbecil por tê-lo magoado.

Eu preciso de mais uns momentos sozinhos antes de voltar para


casa, então rodo de carro pela cidade por algum tempo até decidir que é
hora de encarar a situação. Respondo algumas mensagens preocupadas de
Helô e rumo para casa. Quando chego, já são sete e meia.
— Guto… — Helô murmura, vindo até mim com Gustavo no colo
—, você demorou hoje. Aconteceu alguma coisa?
Gustavo estica os bracinhos para mim, pedindo minha atenção. Eu o
seguro em meus braços e o beijo, apertando-o em meu tórax. Sinto seu
cheirinho de bebê, de talco e o aroma de quem já tomou um bom banho.
— Aconteceu — respondo, por fim.
Quero me aproximar e beijar a mulher que eu amo, mas antes
precisamos de uma conversa. Preciso ter certeza de que Heloísa Alvares
não está mentindo para mim.
— Papá — Gustavo balbucia, apoiando as mãos em meu rosto.
— O que aconteceu?
Suspiro e recorro ao cercado e à televisão para distrair o Gustavo.
Ele leva alguns minutos para se desapegar de mim e de Heloísa e só então
posso me sentar com ela no sofá e segurar em suas mãos. Olho em seus
olhos, procurando algum indício de mentiras e falsidades, mas só vejo uma
mulher confusa e assustada.
— Fiquei remoendo a questão da Mariana por todos esses dias desde
que abri o exame — digo, encarando nossos dedos entrelaçados. — Fui
procurar o ginecologista dela para tentar entender por que ela me escondeu
o Gu e descobri… — Pauso e mordo o lábio inferior, sem saber como
prosseguir.
— O que, Augusto? O que você descobriu?
Com cuidado, eu tiro todas as provas que trouxe comigo e as
espalho sobre o sofá, afastando-me dela para eu ter espaço para isso.
— Mariana não estava grávida. — Entrego o ultrassom do exame de
rotina dela e aponto para a data: onze de junho.
Procuro pelo registro de internação e coloco sob os seus olhos. Ela
toma o papel em mãos, seu rosto se transformando em pálido e confuso
com as informações diante dos seus olhos.
— Quem deu entrada no hospital em trabalho de parto para ganhar o
Gustavo foi você, Heloísa.
CAPÍTULO 17

— Augusto, você está se ouvindo? — questiono, assustada com o


que ele acabou de me dizer e volto meus olhos para os papéis em minhas
mãos, o ultrassom de Mariana e o registro de internação em meu nome. —
Isso não faz sentido nenhum!
Demoro a notar que estou trêmula e que meu coração está
disparado. Jogo os documentos de volta ao sofá e aperto os olhos, tentando
expulsar flashs da minha mente — os mesmo flashs que me causam
sensação de déjà-vu.
— Onde você esteve durante os quase dezessete meses que
perdemos contato? — Augusto pergunta, sereno. Sua mão acaricia meu
rosto e me faz encará-lo.
— Aqui. Sempre estive aqui.
— Não, Heloísa. Eu fui te procurar no início de fevereiro, queria
conversar com você, saber como estava. Não te achei no seu apartamento, e
o dono me disse que tinha se mudado na última semana de janeiro. Te
procurei no bar e me disseram que você tinha se demitido de repente, na
mesma época. Depois disso, nunca mais te vi. Até dois meses e dez dias
atrás.
Meu coração dispara novamente, batendo forte e acelerado. Aperto
os olhos e movo a cabeça em negativo, esforçando-me para me recordar dos
fatos. Eu não pedi demissão do bar, fui mandada embora. E isso tem poucos
meses, porque logo comecei a trabalhar no restaurante. Forço minha mente
a retroceder, mas nada vem. É como se os últimos mais de doze meses
fossem uma página em branco. Eu me recordo da noite de Natal, do nosso
sexo, de tê-lo mandado embora no dia seguinte, e então Mariana vindo até
mim, nossa discussão, seu tapa na minha cara, as palavras que me disse.
Eu me recordo dos dias seguintes, do ano novo que passei sozinha
com uma garrafa de champanhe, um petit gâteau que eu mesma fiz,
lágrimas nos olhos e um sentimento terrível dentro de mim. Me recordo de
conversar com Conrado e vagamente, me lembro dos primeiros dias no
novo ano, de como me ocupei com trabalho, pegando hora extra sempre que
podia. Em casa, sozinha, eu me afundava na minha própria culpa e solidão.
O último dia que me lembro, foi ter acordado com um mal-estar horrível e
de ter ido à farmácia.
Depois disso, é como se eu fosse uma página em branco.
— Helô? — Guto me chama, acariciando minha mão. —Você se
lembra onde esteve no último ano antes de nos reencontrarmos?
— Não — murmuro, com vontade de chorar. — Eu não me lembro
de nada, Guto.
As lágrimas são inevitáveis e começo a querer entrar em desespero.
Ele me toma em um abraço apertado, tentando me acalmar.
— Isso explica muita coisa — Augusto murmura, afagando minhas
costas, e eu escondo o rosto na curva do seu pescoço. — Seu sumiço, as
sensações de déjà-vu, o testamento da Mariana.
Eu me afasto e limpo minhas lágrimas.
— Por que ela não disse a verdade? — questiono, confusa. — Por
que ela tomou o Gustavo como seu? Como ela fez isso, Augusto?
Mais lágrimas escorrem pelo meu rosto. Amoroso, Augusto as
enxuga com os polegares.
— Eu não sei. Provavelmente você se mudou para esconder a
gravidez de todo mundo e foi para Santa Mônica. A Mariana ia para lá com
frequência por que tinha uma cliente na cidade. Por acaso, ela te encontrou
em algum momento, talvez com a gestação avançada, e te impediu de
entregar o Gu para adoção.
— Eu… eu ia entregá-lo para adoção? — pergunto, assustada.
Os olhos dele parecem abatidos e complacentes.
— Tudo indica que sim. Você estava conversando com uma
assistente social. — As mãos de Augusto se apertam mais em torno das
minhas. — Sei que ainda existem muitas lacunas a serem preenchidas e
acredito que a carta da Mariana é capaz de preencher esses espaços. E se
não preencher, nós vamos encontrar outro jeito.
Meu peito se aperta e quero desabar em choro. Minha cabeça lateja
de dor, tomada por informações demais. Escondi a gravidez, ia entregar o
Gu para a adoção, eu não me lembro de nada.
— Acho que está na hora de ler aquela carta, Heloísa — Guto
incentiva, carinhoso.
Engulo em seco e balanço a cabeça que sim.
— Posso ler sozinha? — Fungo, limpando o rosto com a manga da
minha blusa. — Preciso desse momento comigo mesma, com Mariana.
Prometo que… te chamo assim que terminar e leio com você.
Augusto se mostra compreensível e beija minha testa.
— Tudo bem, Helô. Tire o tempo que precisar.
Eu desvio os olhos para Gustavo, comportado dentro do cercadinho.
Ele é meu filho. Meu filho de verdade. Gerado dentro de mim. Um misto de
culpa, vergonha e arrependimento acerta o meu peito, me massacrando.
Meu Deus, como eu pude…? Vou até ele e o pego em meus braços. Aperto-
o contra meu tórax e choro baixinho, tentando afugentar essa angústia
dentro de mim.
— Mamãe… — murmura, e eu desabo ainda mais, porque é a
primeira vez que Gustavo me chama pela palavra completa.
— Ah, Gu. Me perdoa — peço, aos prantos.
Sinto Augusto se aproximar e nos envolver em seus braços.
Permaneço assim com eles por mais um minuto antes de entregar Gustavo
para o pai e ir até o quartinho dele. Pego o livro da prateleira, abro-o e
seguro a carta em minhas mãos. Sento-me na poltrona que costumo ninar o
menino, tiro as folhas dobradas de lá de dentro e as apoio em minhas
pernas. Encaro-as por longos instantes, pensando em tudo que Augusto me
disse e tentando forçar minha memória.
Eu quero me lembrar.
Eu preciso me lembrar.
Então forço minha mente.
E forço.
E forço.
Forço até que todas as lembranças perdidas ressurjam em minha
cabeça como um clarão.

Onze meses antes


Circulo o dia quatro de agosto e suspiro, colocando as mãos na
cintura. Meus olhos fixam na tinta vermelha e sinto o bebê mexer dentro de
mim. Completo hoje trinta e quatro semanas de gestação, segundo meu
médico. Trinta e quatro semanas. Mordo o lábio inferior, sentindo a culpa
em dose dupla. Culpa por esse bebê ser do Augusto. Culpa por não
conseguir amar o suficiente meu próprio filho. Uma paciente que conheci
meses atrás na consulta de pré-natal me disse que, com o tempo, eu ia
aceitar o bebê, ia amá-lo de verdade, porque toda mulher tem instinto
materno. Eu me sinto culpada por não ter desenvolvido isso ao longo desses
meses, mesmo acompanhando cada fase de crescimento do bebê.
Quero dizer, sinto alguma coisa e é por isso que tenho feito o pré-
natal e estou conversando com alguns casais interessados em adotá-lo.
Quero o seu bem, quero que seja feliz, quero que cresça em um lar saudável
e tenha pais que o desejem. Isso deve ser alguma forma de amor também.
Meu telefone toca e atendo no quarto toque.
— Heloísa, sou eu, a Lúcia.
— Oi, Lúcia — digo, deixando a cozinha, cansada.
A gravidez mexeu com meus hormônios e com meu ânimo. Só vivo
cansada e querendo dormir pelos cantos. Além de ter me tornado uma
grande mijona. Minha bexiga parece que diminuiu de tamanho. Meu Deus,
como odeio isso.
— Tenho outro casal interessado na adoção do seu bebê — a assiste
social informa. — Podemos marcar a entrevista com eles para a próxima
semana? Dia onze às quinze horas para você é bom?
— Sim, é bom.
Acertamos os detalhes do encontro e encerro a ligação. No quarto,
visto uma calça confortável e uma blusa mais soltinha. A gravidez também
mudou meu guarda-roupa. Até encontrei algumas boas peças que cabem em
mim, mas na maioria delas, me sinto horrível. Odeio a sensação de inchaço,
de estar enorme. Odeio as mudanças no meu humor e no meu corpo.
Confiro minhas mensagens uma vez mais antes de sair de casa e respondo a
minha cliente do horário, afirmando que já estou a caminho.
Estou em Santa Mônica há seis meses — longe e tempo o suficiente
para esconder a gravidez de Mariana e de Augusto. Descobrir que
engravidei daquela noite de Natal, do marido da minha irmã, me
desestruturou inteira. Eu chorei por dias, sem conseguir aceitar não só a
gravidez, mas que o bebê é do Augusto. Acho que nunca aceitei esse bebê
exatamente por esse motivo. Então, tudo o que eu queria era fugir. Com
alguns contatos aqui, consegui uma casa alugada, um emprego temporário
sem registro e fiz acordo com meu patrão em São José. O dinheiro do
acordo, do fundo de garantia e do seguro-desemprego me daria uma
segurança financeira quando eu não conseguisse mais trabalhar por causa
da gestação e do puerpério.
Chego ao shopping em que vou me encontrar com minha cliente e
ela já está aqui, sentada em uma das mesas do restaurante. Nós
conversamos por muitos minutos, acertando os últimos detalhes do buffet
para o seu casamento, dentro uma semana. É assim que tenho trabalhado
quase desde que cheguei — contratos esporádicos para casamentos,
aniversários, até em restaurantes, incluindo de hotéis. Nós nos despedimos
ao final da reunião e caminho com ela para fora do shopping. Ao passarmos
por uma famosa loja de roupas grifes, meu coração congela.
Mariana está ali, assessorando uma mulher bonita. Minha irmã
segura uma blazer vermelho e uma calça preta, apresentando a combinação
para sua cliente enquanto, provavelmente, explica sobre sua escolha — o
corte valoriza o corpo dela, as peças são elegantes, as cores combinam com
o estilo dela…
Eu penso em sair o mais rápido possível daqui quando ela
finalmente me vê — seu sorriso sumindo aos poucos e os olhos se
desviando para meu abdômen. Meu coração dispara e pareço ter criado
raízes. Deveria ir embora, mas não consigo. Mariana apoia as roupas sobre
o balcão, troca algumas palavras com sua cliente e vem até mim. A minha
própria cliente se despede ao notar que não irei mais acompanhá-la.
— É dele? — É a primeira coisa que a Mariana pergunta.
Eu já quero chorar.
Foi tão difícil lidar um dia por vez até aqui. Tão difícil controlar o
choro, a culpa, a tristeza, a raiva de mim mesma. Às vezes, eu me rendia a
todo esse misto de sentimentos negativos e me afundava em depressão. Não
sabia fazer nada além de chorar, dormir e ficar trancada em meu quarto.
Outros dias, eu estava bem, enérgica, aceitava meus erros, minhas decisões,
e dizia a mim mesma que tudo ia passar.
— Heloísa, é dele? — insiste, mas não ergue a voz, nem muda o
tom.
— É — respondo, deixando aflorar tudo que tentei soterrar até aqui.
Dor, vergonha, remorso.
Mariana suspira, volta para dentro da loja, conversa com sua cliente,
como se pedindo desculpas, e então pega sua bolsa e vem para mim.
— Precisamos conversar.
— Mari, por favor…
— Você me deve isso.
Suspiro e cedo, porque agora não tenho mais como fugir. Mariana
lidera o caminho até uma cafeteria aqui por perto. Eu a sigo logo atrás
pensando como vai ser uma conversa difícil, como foi em dezembro
passado.
No meio da tarde, Mariana apareceu em meu apartamento, os olhos
vermelhos de choro, abatidos, cheios de raiva e de tristeza. Eu tinha
esperanças de que Augusto fosse voltar atrás em sua decisão de contar a
verdade para a esposa, mas ela estava ali, bem na minha frente, a bolsa
pendurada no ombro, então significava que sabia de tudo.
Sequei minhas lágrimas com o dorso da mão e dei espaço para que
entrasse em meu apartamento. Ao mesmo tempo que temia que ela me
odiasse pelo que eu tinha feito, também tinha um pouco de esperança que
me perdoasse. Eu passei o dia todo aflita e abatida, tendo que lidar com
meu remorso por ter dormido com Augusto. Mariana entrou e colocou sua
bolsa no meu sofá.
— Não era para ter acontecido — eu disse, a voz envolta em
vergonha.
Mariana se virou para mim, o rosto severo.
— Ele alegou a mesma coisa.
— Foi só essa vez, Mari. Eu juro. Estou tão arrependida, por favor,
acredite em mim.
Ela moveu a cabeça de um lado a outro, indignada.
— Esse tipo de coisa não acontece se já não existir algo antes. Nem
que seja uma faísca. Você sempre desejou o meu marido e na primeira
oportunidade, dormiu com ele! —acusou, a voz amarga.
— Mariana, eu nunca…
Não terminei minha frase porque ela desferiu um golpe no meu
rosto. O tapa estalou, ardido, e eu não sabia se estava surpresa pela agressão
ou se dava razão à minha irmã.
— Não ouse dizer que nunca sentiu nada pelo Guto. Você sempre o
quis, Heloísa. Desde que se beijaram. Mas você me incentivou a ficar com
ele. Se o queria, deveria ter lutado por ele, não o cobiçado em segredo esses
anos todos.
Eu queria argumentar, me defender, mas no fundo, havia um pouco
de verdade no que me disse, então decidi não me defender em relação a
isso.
— Me desculpe — pedi de novo, lágrimas quentes escorrendo pelo
meu rosto.
Ergui os olhos em sua direção e vi suas próprias lágrimas.
— Não sei se vou conseguir — sussurrou, a voz embargada. —
Você afundou o meu casamento, Heloísa. Nós estávamos tão bem!
A acusação doeu fundo no meu coração. Eu sabia que ela ainda
queria manter a fachada de casamento perfeito, porque Mariana preferia
morrer a admitir que seu relacionamento estava em colapso muito antes da
traição, mas, ainda assim, flagelou o meu coração saber que minha irmã
poderia ter se acertado com Augusto se eu não tivesse dormido com ele.
Mariana tinha razão. Eu destruí o casamento dela.
— A culpa não é só sua, sabe? — prosseguiu, endireitando a postura
para não parecer vulnerável. — Foi o pau dele no meio das suas pernas,
certo?
— Mari… — supliquei.
— Augusto também nunca te superou — alegou, desdenhosa. — Foi
só um maldito beijo e vocês nem se conheciam direito, mas foi o suficiente
para você tomar conta do coração dele. É isso que chamam de amor
verdadeiro?
Não disse nada e apenas a encarei com lágrimas nos olhos.
— Eu me pergunto o que você tem que eu não tenho que o atraiu
tanto.
— Mariana, não fala bobeira — murmurei, cansada dessa conversa.
— Augusto ama você. Ele veio até mim abatido e magoado com a ideia de
divórcio.
Ela tinha razões para estar magoada comigo e com Guto, mas
duvidar do amor dele e ainda sugerir que ele passou os últimos mais de oito
anos apaixonado por mim era um absurdo.
— Tão abatido e magoado que comeu você.
— Estávamos bêbados — eu me defendi, segurando a vontade de
desabar.
— Chega dessa desculpa esfarrapada! — gritou. — Eu também
fiquei bêbada e estava magoada, mas eu não saí atrás do Conrado para
transar com ele!
Mariana exasperou e fechou os olhos, buscando se acalmar.
— O que ele viu em você, Helô? — perguntou, magoada. — O que
ele viu em você que não viu em mim? Nós somos iguais. Idênticas. — Uma
risada sem humor escapou por entre seus lábios. — Ele nem precisava te
comer de verdade para saber como é sua boceta.
Segurei o ímpeto de esbofeteá-la porque eu já tinha feito demais.
Então, apenas recuei até a porta e a abri.
— Eu errei com você — proferi — e queria que acreditasse em mim
que estou arrependida. Ainda que esteja no direito de me ferir e de me
humilhar pelo que fiz, não vou permitir isso, Mariana. Eu já estou tendo que
lidar com a minha consciência por ter dormido com o Augusto, não preciso
de você para rasgar ainda mais minhas feridas, está bem?
Ela me encarou cheia de dor e eu a encarei de volta, da mesma
maneira.
— Você pode ficar para resolvermos nossas diferenças como duas
pessoas adultas, mas se for para me ferir e apontar o dedo na minha cara,
então prefiro que vá embora.
Ela pegou a bolsa do sofá e a encaixou no ombro. Ao se aproximar
de mim, disse:
— Eu vou dar uma chance ao Guto. Ele foi sincero comigo e está
disposto a me acompanhar na terapia de casal. Quanto a você, acho melhor
nunca mais olhar na minha cara e ficar longe do meu marido.
Mariana passou por mim e bateu a porta. Eu me encostei à madeira
e escondi o rosto contra minhas mãos, desabando o choro que tinha
segurado até aquele momento.
Eu volto ao mundo real quando Mariana pede apenas um café preto
à funcionária que vem nos atender. Eu só quero uma água com gás. Assim
que a funcionária nos dá licença, ela interpela, sem rodeios:
— Por que não contou para mim? Por que não contou para ele?
— Porque não queria te magoar ainda mais — respondo, o choro
preso na garganta. — E por que você disse que eu deveria ficar longe do seu
marido.
— Ex-marido — me corrige. — Assinei o divórcio faz quatro
meses.
— Você disse…
— Eu sei o que eu disse, mas quando cheguei em casa depois de
conversar com você, decidi que não valia a pena. Eu não ia conseguir
perdoar o Guto o suficiente para manter o casamento. Ia ser apenas um
sofrimento desnecessário.
Nossos pedidos chegam e eu bebo um gole generoso da minha água.
— Sinto muito — murmuro, sincera. — Nunca quis prejudicar o seu
relacionamento com o Guto. Por isso escondi a gravidez e… por isso estou
disposta a entregar o bebê para a adoção.
Ela está levando seu café à boca quando para a xícara a meio
caminho.
— O quê?
Molho o lábio inferior, preparando-me para o peso do julgamento de
Mariana. Muito por isso, escondi a gravidez dela, de Augusto.
— Não quero esse bebê — digo, trêmula, porque sei o quanto
minhas palavras vão magoá-la.
Como posso não querer algo que Mariana sonha a vida toda? Que
tipo de mulher sou por causa disso? Isso faz de mim um ser humano
horrível, não faz?
— Um filho com o Guto era tudo o que você mais queria, ma sou eu
que estou grávida dele. — Desvio meus olhos para o outro lado da cafeteira,
observando as pessoas andarem pelo shopping. — Eu sei que isso te
machucaria e te machucaria ainda mais se eu disser que não amo esse bebê.
Bebo minha água, permanecendo na mesma posição covarde de não
a encarar.
— Ouvi isso muitas vezes de outras mães do sistema público —
continuo —, que é um absurdo eu não querer esse filho. Tantas esposas por
aí que querem engravidar e não conseguem. Eu recebi essa dádiva e estou
abrindo mão, então sou uma ingrata, uma mulher horrível. Talvez até
mereça morrer ou um castigo divino.
Uma lágrima escorre pelo meu rosto, acompanhada de uma risada
triste.
— Você está certa — Mariana diz e, por fim, volto meu olhar para
ela. — A vida parece tão injusta, não é? Com você, comigo. Eu quero um
filho e nunca engravidei. Você não quer um filho e na única noite com meu
marido, engravidou. E sim, te ouvir dizer que não quer esse bebê… Meu
Deus, isso me magoa demais porque eu daria muita coisa para estar no seu
lugar.
Abaixo meus olhos e reflito sobre o que me disse. Ter filhos ou não
nunca foi algo que eu tenha pensado a respeito com profundidade. Eu
sempre meio que fui indiferente ao assunto. Não dizia com todas as letras
que não queria casar e ter filhos, mas também não dizia que queria. Acho
que era questão de esperar pelo momento certo, pelo companheiro certo.
Mas essa gravidez não apenas foi inesperada, como aconteceu em um
momento que eu já estava envolta em muita culpa e remorso. A decisão de
entregar para o sistema veio depois de muito pensar e chegar à conclusão
que não teria condições psicológicas de criar esse bebê. Como eu olharia
para aquele rostinho, em especial se fosse parecido com o Guto, e
conviveria em paz com a minha mente sabendo que abalei o casamento de
uma das pessoas mais importantes para mim?
Não estou preparada para ter um filho agora, ainda mais fruto de um
erro que me afastou da Mariana e me consome dia após dia. Decidi entregar
para a adoção, mas não foi uma decisão fácil. Tantos dilemas que tive de
enfrentar comigo mesma antes de me convencer que era a escolha certa, que
era o melhor para esse bebê dentro de mim. Ele merece uma mãe que o
deseje, não uma que vá jogar suas frustrações e traumas em cima dele.
— Você já sabe o que é?
— É um menino.
— Como se chama?
— Ele não tem um nome, Mariana — respondo, exasperada. — Vou
deixar essa escolha para os pais adotivos.
— Você não pode fazer isso — ela intervém, mudando sua cadeira
para perto de mim.
— Mariana…
— Me deixa cuidar dele — pede, a voz suplicante.
Eu pisco duas vezes, surpresa com seu pedido. Balanço a cabeça em
negativo, achando a ideia um absurdo. A adoção exigiria que eu não
soubesse nada sobre o menino e isso ia ser o melhor para o meu emocional.
Mas deixá-lo com Mariana…
— Quer isso por você mesma? Ou vai correndo contar para o
Augusto que o filho é dele, que estou rejeitando esse bebê e vai tentar usar
essa criança para reatar com seu ex-marido? — indaguei, porque era bem
capaz de Mariana fazer isso mesmo.
Até me surpreende que ela não tenha engolido o orgulho e o
perdoado só para manter a fachada de casal impecável. A cidade toda agora
sabe que seu casamento era imperfeito, que Guto a traiu e que eles estavam
em crise.
— Eu vou contar para ele, sim — ela diz, calma — porque o Guto
merece saber, mas não existe a menor chance de eu reatar meu casamento.
Não quis meses atrás, não vou querer agora. Se o Augusto vai assumir o
menino, é outra história, mas eu quero cuidar do seu bebê.
— Não, Mariana.
— Heloísa… — Seu tom abaixa uma oitava, e minha irmã está
quase suplicando para mim. ­— Entendo os motivos por não o querer e não
vou te julgar por isso, mas não precisa entregá-lo para adoção, por favor.
Deixe-me cuidar do menino.
Noto toda a sinceridade do seu pedido em cada palavra pronunciada
e não consigo esconder a surpresa que seu desejo me causa. Achei que se
minha irmã soubesse, ia me odiar ainda mais, não ia querer contato com o
sobrinho, mas aqui está ela, disposta a dar o amor que eu sou incapaz de
oferecer.
— Como consegue? — sussurro. — Depois de tudo que fiz pra
você, como consegue?
Para a minha surpresa, Mariana segura minhas duas mãos,
entrelaçando com força os nossos dedos.
— Esse bebê não tem culpa de nada. Eu sei do que ele é fruto e é o
único inocente nesta história toda. Não posso condenar um inocente e não
consigo pensar em alguém que cuidaria dele melhor do que eu.
Fecho os olhos e suspiro, balançando a cabeça em negativo.
— Não sei se consigo — argumento. — Vou saber que ele está com
você e não sei se vai ser bom para minha saúde mental ter conhecimento
disso.
O aperto dela aumenta em torno dos meus dedos.
— Pense a respeito. Podemos fazer tudo direitinho, com advogado e
o que mais você quiser.
Encaro seus olhos idênticos aos meus e murmuro:
— Você me perdoa, Mari?
Ela cessa o toque em minhas mãos e desvia o olhar de mim.
— Ainda não posso te perdoar, Helô — responde, baixinho. —
Parece contraditório porque quero assumir seu bebê, mas talvez esse seja o
caminho. Por favor, considere o meu pedido.
Aceno em positivo.
— Vou pensar a respeito — prometo com um sussurro, segurando as
lágrimas para mim.
CAPÍTULO 18

Eu seco as minhas lágrimas e tento acalmar meu coração. Me


lembrei de tudo. De tudo. A culpa parece pesar ainda mais em meu peito.
Como eu pude rejeitar o Gustavo? A mesma criança alegre que eu amo, que
transformou os meus dias? Ao mesmo tempo que me recrimino pelo
passado, também entendo minhas motivações — eu não estava bem quando
reencontrei Mariana e meu estado piorou quando ela se mudou para Santa
Mônica no último mês da minha gestação. Tive meus motivos, mas, ainda
assim, me machuca tanto não ter sido a mãe que o Gu merecia.
Abaixo os olhos para os papéis e arrumo um pouco de coragem para
desdobrá-los. Outra lágrima escorre pelo meu rosto e me esforço para
controlar minhas mãos trêmulas. Respiro fundo e começo a ler a primeira
página.
Heloísa…
Eu não sei quando você vai encontrar essa carta entre as
páginas do nosso livro favorito e espero que quando acontecer, já tenha
se lembrado de tudo, ou ao menos, que esteja melhor. Se estiver lendo
isso agora, então eu estou morta. A cirurgia será em uma semana e não
estou tão confiante assim. Doutor Laurent foi muito recomendado e
gastei uma boa parte das minhas economias para trazê-lo ao Brasil,
mas sei que ele não vai poder fazer muito por mim.
Apesar disso, estou me agarrando à esperança do um por cento
de chance de sair viva dessa intervenção. Por favor, não me culpe. O
tratamento paliativo ia prolongar minha vida por mais alguns meses,
mas não ia me salvar. Eu ia sofrer, ficaria horrível e em certo momento,
nem poderia mais andar. Você me entende, não é? O sofrimento seria
pior para mim.
Então, estou morrendo e não quero partir sem que você saiba a
verdade Eu juro, Heloísa, que tentei te contar antes. Tentei algumas
vezes, mas você tinha crises de choro e de raiva. Tive muito medo de
que o machucasse por causa da sua negação. Me perdoe por ter te
forçado a tanto, me perdoe pelo que fiz. Achei mesmo que estava
fazendo a coisa certa.

Paro a leitura por um segundo, precisando respirar fundo e secar


minhas lágrimas por causa das lembranças. A Mariana se mudou para Santa
Mônica uma semana depois, mas preferi que não coabitássemos sob o
mesmo teto, então ela alugou uma casa a duas quadras da minha. Eu ainda
estava pensando a respeito de deixar o bebê com ela e minha irmã tomou a
iniciativa de se manter por perto de qualquer maneira. Não sei se era uma
forma de me pressionar a aceitar sua ideia ou se apenas queria me ajudar,
como alegou. Mariana realmente me ajudou, ainda que me dissesse que não
tinha me perdoado toda vez que eu perguntava.
Eu estava no último mês de gestação, e isso significava que estava
inchada, cansada, muitas vezes com o humor horrível e querendo chorar por
tudo. Mariana cuidou de mim, comprou coisinhas para o bebê, cuidou da
casa e da rotina, me fez dispensar algumas entrevistas com casais
interessados. Eu tive de dizer à assistente social que estava desistindo da
ideia de adoção, mas ainda não tinha muita certeza, que precisava pensar
um pouco mais.
Semanas depois, ele nasceu, sem nome. Ainda na maternidade,
Mariana começou a chamá-lo de Gustavo. Em momento nenhum eu o
peguei em meus braços ou o amamentei. Não queria criar nenhum vínculo
com medo de que a emoção do momento me fizesse tomar uma decisão
precipitada da qual, lá na frente, eu fosse me arrepender.
— Você já pensou a respeito de deixá-lo comigo? — Mariana
perguntou, segurando o pequeno em seu colo, amamentando-o.
Estava em minha casa e o menino tinha quatro dias.
— Não.
— Precisa se decidir, Helô. — Minha irmã abaixou os olhos para o
pequeno, com quem eu mal tinha contato.
Ainda me sentia cansada do parto de oito horas, usando dois
absorventes ao mesmo tempo porque estava sangrando horrores, inchada e
me sentindo horrível naquela situação. Eu caminhava pela casa por
recomendação médica, mas os pontos me machucavam e eu só queria
dormir e ficar deitada. Mariana cuidou de tudo, desde o primeiro momento.
Ela deu a primeira mamadeira, o primeiro banho, o fez dormir, arrotar…
Para isso, praticamente se mudou para minha casa e era mesmo mais mãe
dele do que eu.
— Eu tenho um bom advogado que vai saber nos orientar. Mas
precisa se decidir logo. Gustavo precisa ser registrado e Augusto tem que
saber sobre o filho.
Massageei minhas têmporas, cansada daquela conversa. Se eu
tivesse prosseguido na minha decisão de entregar para um dos casais
interessados, não teria que estar suportando a insistência da Mariana ou
tendo que me preocupar com burocracias.
— Me dá mais alguns dias apenas, pode ser? — pedi, suspirando. —
Mariana, eu ainda estou um caco de ser humano depois do parto. Não
consigo tomar nenhuma decisão agora.
— Tudo bem — concordou com um sorriso pequeno.
Volto meus olhos para carta, espantando as lembranças da minha
mente.

Agi contrariando sua decisão. Entende que entrei em desespero?


Eu queria tanto, tanto que deixasse o Gustavo comigo, mas você achou
melhor entregá-lo para o sistema e eu simplesmente não conseguia
aceitar. Não sei se você está compreendendo minhas palavras. Se sua
memória ainda estiver comprometida, talvez deva me achar uma
maluca. Não estou louca, juro que não estou. Por favor, se você se sentir
desconfortável com o que vou te dizer a seguir, se for demais para sua
mente e seu coração, pare a leitura da carta, converse com alguém,
respire fundo.
Você teve um filho, Helô. Um menininho lindo que batizei de
Gustavo. No começo, você não o queria e pretendia entregá-lo para
adoção por ser filho do Guto. Te encontrei por acaso em Santa Mônica,
a gestação já estava avançada e eu te propus que me deixasse criar o
pequeno.

Mariana narra um pouco do nosso encontro naquele café e sinto que


foi para garantir que eu soubesse todos os detalhes caso ainda estivesse sem
memória. Então, ela narra sobre aquele dia ruim.
Gustavo já estava com um mês. Minha irmã cuidou amorosamente
dele por todas aquelas semanas e eu me mantive longe e sem contato o
máximo que pude. Eu o peguei algumas vezes no colo, troquei uma ou
outra fralda e esquentei uma mamadeira. Nada mais que isso. Numa dessas
poucas vezes, Mariana até me disse se eu não queria tentar criá-lo, que ela
me ajudaria. Foi quando chorei e disse que não o queria, que não
conseguiria porque era filho do Augusto.
O bebê continuava sem registro, mas eu ainda tinha um prazo legal
para ir ao cartório. Eu adiei o momento porque demorei a me decidir sobre
o que fazer — entregá-lo para Mariana ou para a assistente social.
Até aquele momento.
Eu tinha que trocar uma lâmpada da sala de estar, então ajustei a
escada e estava dando o primeiro passo quando Mariana veio do quarto, me
perguntando, pela centésima vez naquela semana, se eu já tinha tomado
uma decisão.
— Precisa se decidir, meu Deus do céu. Quanto tempo mais vai
postergar isso, Heloísa? Estou aflita e ansiosa por uma resposta sua. Pare de
me fazer criar esperanças — disse, irritada. Ela segurava o pequeno em seus
braços, como se pudesse protegê-lo de mim.
Ainda mais irritada com sua insistência, eu aleguei:
— Já me decidi. Vou entregá-lo para o sistema! Satisfeita, Mariana?!
— O quê? Não pode colocá-lo para a adoção, Heloísa! Por favor,
deixe o Gustavo comigo.
— Não — respondi, firme na minha decisão. Apoiei o pé na escada
e subi alguns degraus. — O melhor pro Gustavo e para mim é que ele vá
para o sistema.
— E se ele crescer sem pais? — acusou, um tom de desespero na
sua voz. — E se pular de lar e lar e nunca, nunca conhecer o amor de um
pai e de uma mãe?
— Isso não vai acontecer. A Lúcia tem filas de pais esperando por
um bebê, Mariana. Conversei com alguns casais e já tenho um em mente.
São boas pessoas e vão cuidar do Gu com muito amor e carinho.
Deixei a lâmpada nova no último degrau da escada e comecei a
desenroscar a queimada. E ali, naquele pequeno segundo, eu me
desequilibrei, caí e bati a cabeça na mesa de centro.

Chamei uma ambulância para te levar ao pronto-socorro na


mesma hora. Tinha bastante sangue e você ficou desacordada por um
longo tempo. Ah, Helô, eu fiquei muito assustada. Não era daquele jeito
que eu queria ficar com o Gustavo, nem que você partisse sem saber
que eu te perdoava. Por sorte, a única sequela foi sua memória. De
algum modo, você se esqueceu apenas de uma parte da sua vida,
exatamente aquela que te causava tanta dor e sofrimento. Quando
acordou, não se lembrava que gestou, que deu à luz um menino lindo.
Se recordava de ter dormido com Augusto e implorou, entre lágrimas,
que eu te perdoasse — eu te abracei, te beijei e te dei meu perdão de
forma sincera —, mas se recusava a acreditar que teve um bebê fruto
daquela noite.
Eu o levei até você no dia seguinte, mas você o renegou. Chorava
e me pedia para parar de dizer que era seu, que era do Augusto. Eu via
como aquilo te machucava e só fui entender que era um mecanismo de
defesa da sua mente para lidar com a culpa quando conversei com seu
médico.
O mais provável era que você estava — ou ainda esteja —
sofrendo de amnésia dissociativa. Ela pode ser desencadeada por
alguns fatores, dentre eles estresse e traumas. Tudo indica que se aplica
ao seu caso — o estresse e o remorso com o seu bebê, fruto de uma
traição que, entendo hoje, também te machucou muito, somado ao
trauma da pancada. Eu não vou entrar em detalhes sobre sua condição,
mas se quiser entender melhor, você pode falar com algum especialista.
Por uns dois dias, tentei te fazer se sentir melhor em relação ao
Gustavo. Ainda que eu dissesse que não tinha mágoas de você, do Guto,
que não odiava meu próprio sobrinho, você tinha crises de choro, se
negava a acreditar que teve um filho nessas circunstâncias e me
empurrava, me pedindo para te deixar longe do bebê. Meia hora mais
tarde, você vinha até mim e dizia como aquele bebezinho em meu colo
era lindo e perguntava “de quem é?” Se eu ousasse dizer que era seu e
do Guto, suas crises recomeçavam.
Temia que te estressar dessa maneira, forçando sua memória,
fosse piorar sua situação. Temia que se continuasse dizendo que o Gu
era seu filho pudesse te fazer machucá-lo, ainda que, em sã consciência,
nunca fizesse isso. Então, tomei a decisão de cuidar do Gustavo.
Consegui um certificado no hospital, subornando um médico e uma
enfermeira, e o registrei como meu. Heloísa, me perdoe por isso, mas eu
estava com tanto medo e o queria tanto para mim, que fiz essa coisa
errada. Eu me aproveitei da sua falta de memória e do seu momento
frágil para levar vantagem. Não me arrependo, Helô, porque passei os
últimos meses cuidando do Gustavo, tornando realidade meu sonho de
ser mãe.

Aqui, eu preciso parar para respirar. Eu me recordo da queda, de


Mariana me contando sobre o Gustavo, das minhas crises, mas não fazia
ideia do que Mariana tinha feito. Não sei o que sinto em meu coração agora.
Eu não a odeio pelo que fez, mas também não aprovo sua atitude.
Entretanto, não posso julgá-la. Às vezes, movidos pelo desespero, nós
cometemos erros e sei disso mais do que ninguém. Enxugo outra lágrima e
continuo lendo:

Um dia, eu saí cedo com o Gu. Fui ao mercado e passei no


shopping com ele, comprei roupinhas e acessórios de bebê. Quando
voltei, no fim da tarde, encontrei meu notebook ligado e a casa vazia.
Fazia só uma semana da sua queda e eu tinha parado de insistir sobre
Gustavo ser seu filho. Na verdade, logo você se ocupou com seu
trabalho, agindo tão naturalmente que parecia estar bem. Você via
muito pouco o menino, e quando o via, não fazia qualquer comentário.
Tive a impressão de que sua mente simplesmente não o associava mais
a mim, que não o enxergava ali. Que não nos enxergava, porque comigo
também conversava muito pouco.
Então, neste dia, eu cheguei e vi que esteve procurando
apartamentos e trabalhos em São José. Você deixou um bilhete, dizendo
que viajou para lá para uma entrevista de emprego e que pretendia
voltar a morar na nossa cidade natal já que “meu trabalho aqui está
acabando”, além disso, o contrato com a imobiliária que alugara o
imóvel estava vencendo. Eu imaginei que sua mente estava criando
situações para ocupar as lacunas que a amnésia deixou. Foi aí que eu
pensei que, talvez, se você retomasse sua rotina de antes, sua memória
gradualmente ia voltar. Não ia mais te submeter a qualquer estresse e
eu lidaria com as consequências do que fiz quando você se lembrasse,
então acreditei que o melhor era te deixar ir.
Entrei em contato com alguns conhecidos e te consegui o
emprego no restaurante que, acredito, ainda esteja trabalhando.
Também consegui um bom apartamento, em uma localidade melhor,
por um preço que conseguiria pagar com seu salário. Eu te deixei ir,
Helô. Te deixei viver a sua vida normalmente enquanto cuidava do Gu
como se fosse meu. Acredite, eu amo tanto esse pequeno, tanto, mas
tanto. Tinha esperança de você se lembrar, ao mesmo tempo que
desejava que isso nunca acontecesse, porque… tinha medo de tirá-lo de
mim.
Permaneci em Santa Mônica para evitar o Guto — se ele
descobrisse sobre o Gustavo, ia fazer perguntas e não compraria a
mentiria se dissesse que era de outro homem. Ocasionalmente,
procurava saber de você sem que soubesse. Descobri que até do nosso
reencontro e de que convivemos por algumas semanas você se esqueceu
porque disse a uma amiga que a última vez que me viu foi no Natal,
quando te procurei para te confrontar. Não sei por que sua mente
também apagou essa parte da sua vida, mas acredito que tenha relação
em criar falsas memórias para preencher lacunas, uma autodefesa, um
modo de lidar com o remorso.
Então, três meses atrás, descobri o câncer. Preparei o
testamento, com lágrimas nos olhos e com medo da morte inevitável.
Eu não queria desencadear outra reação ruim em você contando a
verdade em papéis jurídicos, por isso minha decisão de mentir e omitir.
Eu esperava que a proximidade com o menino te fizesse lembrar de
tudo, como esperei que voltar à rotina tivesse o mesmo efeito.
Vou morrer sem saber se você se lembrou por causa disso.
Minha esperança era que se você se aproximasse do Gustavo,
cuidasse dele como seu sobrinho, desenvolvesse sentimentos por ele,
quando se lembrasse, sua reação não seria tão ruim.
Eu incluí o Guto no testamento, esperançosa que ele
desconfiasse de muitas coisas e, por fim, descobrisse a verdade. Se isso
já aconteceu — se o Guto já sabe que teve um filho com você —, espero
que tenha assumido o menino, que o ame. Eu poderia ter escrito uma
carta para ele também, ter contado tudo e pedido que tivesse paciência
até sua memória se restabelecer, mas tive medo de que, na verdade, ele
ou Cassandra usasse isso contra você para te tirar o Gu. Talvez ele te
odiasse por ter escondido a gravidez ou algo assim. Acho que descobrir
a verdade aos poucos — como eu acredito que pode acontecer — era
melhor do que de forma súbita.
Juro que pensei no que era melhor para todo mundo.
Por favor, não me odeie e diga ao Guto para não me odiar
porque eu não o odeio mais. Como não odeio você. Não mais. Saiba que
te perdoo. Que eu te perdoei há muito tempo. Se ainda estiver com a
culpa em seu coração, pode se livrar dela. Estou morrendo em paz,
Helô. Sem raiva dentro de mim, sem mágoas. Eu só queria… Ah Deus,
queria tanto poder me despedir de você e do Guto, dar um abraço em
cada um de vocês, mas não posso.
Do fundo do meu coração, desejo que encontre sua felicidade. E
se sua felicidade for estar ao lado do Augusto, então que seja assim.
Vou continuar desejando que sejam felizes juntos. Eu te amo, Heloísa, e
te perdoei por tudo…
… será que pode me perdoar também?

Com amor e em despedida, Mari.

Dobro a última folha da carta aos prantos. Minhas lágrimas são


incontroláveis, meu peito sendo bombardeado de emoção. De repente, não
consigo lidar com nada de forma racional e sinto o peso da culpa me
esmagar de novo, agora com uma força cem vezes mais potente. Não amei
meu próprio filho meses atrás e o amo tanto agora, mas isso por que eu…
por que eu acreditei que era meu sobrinho.
Aperto os olhos e tento limpar meu rosto, entretanto, as lágrimas
continuam descendo. Eu já me senti insuficiente dentro dessa casa e agora
sinto que não mereço estar aqui. Não mereço o Guto, nem o Gustavo,
tampouco o amor deles por mim. Não mereço nada e nem ninguém.
Eu me levanto em um ímpeto e aproveito que Augusto está distraído
com Gustavo no banho para deixar o apartamento sem que ele me note.
Pego só algumas coisas necessárias, coloco na mochila e rumo pela cidade.
CAPÍTULO 19

Demoro a notar que Heloísa não está em casa.


Ela me pediu por um momento sozinha para ler a carta de Mariana e
dei o espaço da qual precisava. Enquanto Helô estava no quarto do Gu, eu
terminei o jantar dele que ela havia começado, supervisionei-o comendo e o
fiz dormir depois do banho. Encaixei as grades de proteção na minha cama,
cobri o Gustavo com uma manta e deixei a porta entreaberta ao sair.
— Helô? — chamo, batendo de leve contra a madeira e a abrindo
devagar. Olho ao redor, encontro as folhas da carta sobre a poltrona e me
apresso a pegá-las. — Heloísa? — chamo mais alto, na esperança de que
ainda esteja por aqui.
Meu coração acelera e abaixo os olhos para os papéis em minhas
mãos. Eu prometi que leríamos juntos, mas estou tentado a quebrar essa
promessa. Coloco tudo no envelope outra vez e o guardo dentro do meu
paletó, deixando o quarto com um nó na garganta. Procuro pela minha
namorada por todo canto da casa, mas não a encontro. Ao voltar para o
quarto, então, me dou conta que ela levou algumas peças de roupa, uma
quantia em dinheiro que estava guardada em sua gaveta e o celular.
Meu Deus do céu.
Tento ligar para ela, mas a chamada é imediatamente direcionada
para a caixa-postal. Faço outras duas tentativas, sem sucesso. Passo a mão
pelos meus cabelos e telefono para Conrado.
— Me diga que deu tudo certo — pede, ao me atender.
— A Heloísa sumiu.
— Como você conseguiu perder a sua namorada?!
— Conrado, não tenho tempo para explicar nada agora. Você pode
cuidar do Gustavo para mim?
— Claro. Você o traz aqui ou eu vou aí?
— Eu o levo aí. Chego em vinte minutos.
Amarro Gustavo na cadeirinha e rumo para o apartamento do meu
irmão. São nove da noite quando eu chego. Meu filho ainda dorme nos
meus braços quando Conrado o pega no colo.
— Sabe onde ela está?
— Não tenho ideia. Vou procurá-la nem que seja a noite toda e
revirar todos os becos dessa cidade se for preciso.
— O que foi que aconteceu? — questiona, ajeitando o sobrinho.
— Não sei, Conrado. Você estava certo. A Helô se esqueceu, por
algum motivo, que engravidou e teve o Gu. — Então, eu explico sobre a
carta da Mariana. — Quando me dei conta, a Heloísa não estava mais em
casa.
— Você não leu a carta?
— Não posso me dar ao luxo de perder meu tempo agora. Preciso
achar a Helô.
— Vá — incentiva, gesticulando com a mão.
Rodo pela cidade por quase uma hora, procurando-a por todo lugar
que eu acho que pode estar enquanto telefono para pessoas próximas dela.
Ninguém sabe do paradeiro de Heloísa. Já estou entrando em desespero
quando decido procurar no bar onde ela trabalhava. Fico aliviado quando a
encontro sentada ao balcão com um copo de refrigerante do lado. Eu me
aproximo e me sento no lugar vazio.
— Guto…
Acaricio seu rosto e coloco uma mecha do seu cabelo atrás da
orelha.
— Achou que podia fugir de mim? — Dou um sorriso pequeno. —
O que está fazendo aqui?
Heloísa suspira e pisca duas vezes, derrubando algumas lágrimas.
— Vim me martirizar — ela diz, fungando. — Foi aqui que tudo
começou, não é? Eu deveria ter dito não para a balconista do turno quando
me pediu para cobri-la.
Rio baixinho e continuo o carinho em seu rosto.
— Eu sabia que estaria aqui naquela noite. Mariana tinha te
convidado para passar o Natal conosco, mas não aceitou porque estaria
trabalhando. De tantos bares para ir, eu… vim aqui, vim te procurar porque
gostava de você, porque era minha amiga.
Ela não diz nada, lágrimas ainda rolando timidamente pelo seu
rosto. Seco algumas delas e depois, puxo a carta do bolso do meu paletó,
apoiando-a no balcão.
— Vamos ler juntos?
— Não quero, Guto.
— Por favor. Preciso entender o que há nessas linhas que te fez
tomar a decisão de sair sem me avisar, de fugir de mim.
Heloísa balança a cabeça em negativo.
— Tenho medo do seu julgamento.
— Não vou te julgar.
— Você não sabe disso. — Ela prende os lábios, como se estivesse
segurando o choro.
— Heloísa, tive a chance de ser um babaca escroto no momento que
soube que você é a mãe do Guto. Por Deus, fiquei muito magoado e com
raiva, achando que estava mentindo para mim, mas te dei o benefício da
dúvida e ouvi seu lado da história. Não vou te julgar.
— Jura para mim, Guto.
— Juro.
Ela acena em positivo e pega a carta. A leitura leva alguns minutos e
ao terminarmos, Heloísa está ainda mais abatida e triste. Depois, ela
esclarece muitos outros pontos, terminando de montar o quebra-cabeça que
essa história sempre foi para nós. Noto que ela está envergonhada e evita
contato visual comigo.
— Por que você fugiu? — pergunto, amoroso.
— Guto… — Heloísa choraminga. — Você não acabou de ler a
carta? Ouviu o que te contei? Meu Deus, como pode ainda estar aqui depois
de todas as coisas horríveis que fiz?
Enxugo suas lágrimas e beijo seus lábios delicadamente.
— Que coisa horrível você fez, Helô? Saber que naquela época não
tinha condições psicológicas de cuidar do Gu e estava procurando o melhor
para ele?
Ela acena em positivo, quase envergonhada.
— Eu não o amava — sussurra, a voz trêmula. — Deveria tê-lo
amado, certo? É o que toda mulher deveria sentir pelo bebê dentro dela. É o
instinto da nossa natureza, não é? Mas não o amei, Guto. Não conseguia
amá-lo. Por que eu não era capaz disso, sendo que todas as mães são? —
Ela soluça baixinho e toma um pouco do seu refrigerante. — Por Deus, a
Mari o amou muito mais do que eu, com mais facilidade. Eu não…
— Helô, para — peço, suavemente. — Ei, onde está a garota que
conheci ao longo dos anos que vivia repreendendo a irmã gêmea por
romantizar a maternidade e idealizar mães como seres perfeitos?
Ela abaixa os olhos, um sorriso triste surgindo nos seus lábios
trêmulos.
— Nós discutimos uma vez sobre isso. Mariana batia o pé e dizia
que o instinto materno existe, que toda mulher é condicionada
biologicamente à maternidade, e eu dizia que não. — Helô ri, uma risadinha
baixa e triste. — Eu dizia que o instinto materno é mito e que é natural uma
mulher não querer filhos ou não… ­— Ela prende os lábios e olha para mim.
— Não conseguir construir um vínculo de afeto com o bebê, que isso não a
torna um ser humano sem empatia, incapaz de amar, ou qualquer coisa
assim.
Heloísa move a cabeça em negativo e suspira, como se espantando
os pensamentos da cabeça.
— Eu amo o Gu — diz, a voz engasgada. — Amo tanto aquele
menino, Guto. Não entendo por que não fui capaz… — ofega, prendendo o
choro — por que não fui capaz disso durante a gestação. Por que o
reneguei, por que queria entregá-lo para adoção.
Seguro sua mão e mantenho nosso contato visual. Não quero ser eu
a dizer o que Heloísa precisa ouvir. Quero guiá-la, na verdade, fazer com
que enxergue as coisas por si mesma.
— Você sabe, Heloísa.
Ela nega com um gesto.
— Não sei.
— É claro que sabe. — Heloísa olha para mim, cheias de dúvidas e
temor. — Você aprendeu a amar o Gu e sabe o motivo. Te garanto que nada
tem a ver com o instinto materno — digo ao concluir a complexidade do
seu caso.
Talvez eu esteja errado em minha conclusão, e só um psicólogo
pode confirmar ou descartar isso, mas, ao que tudo indica, é o que estou
pensando.
Mais lágrimas escorrem pelo seu rosto.
— Eu acreditava que ele… — murmura, mantendo o contato visual
como se quisesse ter certeza de que não está se precipitando em sua
conclusão — era meu sobrinho, então foi fácil amá-lo. Foi fácil amá-lo
porque não havia remorso envolvido.
Seus olhos se fecham e me aproximo mais dela, o suficiente para dar
um abraço em Heloísa, um abraço de carinho e de conforto que eu sei que
está precisando nesse momento. Ela se agarra em mim e me aperta forte,
desabando nos meus ombros.
— Eu ia ter coragem de entregá-lo para a adoção, Guto — ela chora,
inconformada, descartando tudo o que disse segundos atrás.
— Helô, não vou mentir para você, me deixa magoado ter escondido
a gravidez de mim. Eu sei que teve seus motivos e eu os entendo, embora
não concorde com sua atitude. Você deveria ter me dito, mas não vou te
julgar nem te condenar por nada.
Eu a afasto e limpo mais uma vez as suas lágrimas.
— Por nada — repito. — Nem por não ter me contado, nem por ter
considerado entregar o Gu para a adoção, tampouco por não ter o amado
durante a gestação. Cada um conhece os seus limites e você tinha o seu.
Cuidar de um bebê que te gerava tanto dor e culpa não ia ser saudável para
nenhum dos dois.
Ela concorda comigo, com um sorriso triste, as lágrimas em seu
rosto diminuindo gradualmente.
— Outras mães no meu lugar…

— Elas não são você — eu a interrompo, embora não devesse estar


tendo essa conversa com Heloísa porque deveria ser ela a estar me dizendo
esse tipo de coisa. — Somos seres humanos e não somos iguais. Agimos e
reagimos de formas diferentes. Uma garota pode amar e criar um bebê fruto
de um abuso sem qualquer problema, mas não podemos exigir que outra
garota ame e crie um bebê nas mesmas ou em diferentes circunstâncias.
Heloísa suspira devagar.
— É o tipo de coisa que diria para a Mari — comenta com um
sorriso triste. — É o tipo de coisa que deveria dizer a mim mesma. Não sou
um ser humano ruim, não é? Não sou menos mulher por isso, não sou uma
megera sem sentimentos.
— Não é. Você não estava bem, amor. — Acaricio seu rosto e lhe
dou um sorriso. — Acredito que ainda não esteja bem. Mesmo que ame o
Gustavo agora, mesmo que se livre da culpa depois do perdão da Mari, te
aconselho a voltar para a terapia que você parou de fazer por causa da
rotina com o Gu.
— Eu vou precisar mesmo — concorda, devolvendo o sorriso e
enxugando as lágrimas. — Porque sua mãe certamente vai me julgar por
não… me encaixar nos moldes de mãe perfeita que ela idealiza.
— Não só por causa da minha mãe — completo. — Todo mundo ao
seu redor vai te julgar, se não pelo fato de ter renegado o Gu no começo,
então por ter tido esse filho comigo, por estarmos juntos.
— Ser mulher é uma droga — reclama.
— É, deve ser mesmo. Mas tente não dar muita importância a
opinião dos outros, Helô. Você sabe, não é? Não importa qual fosse a sua
escolha: assumir o bebê, interromper a gravidez, entregar para a adoção,
entregar para a Mariana, deixar comigo… você seria julgada e condenada
de qualquer maneira. Se fosse uma boa mãe ou se não fosse. Se fosse uma
mãe presente ou se não fosse. Se fosse mãe ou se não fosse. Mariana
também teria sua dose de julgamento.
Ela parece querer chorar outra vez.
— Você me perdoa, Guto? — pede, a voz trêmula e carregada de
muitos sentimentos. — Me perdoa por tudo. Mesmo com essa nossa
conversa, não consigo… não consigo me livrar desse peso no meu peito, de
me odiar por não ter sido a mãe que o Gu merecia ter.
— É claro que eu te perdoo. — Puxo-a para um abraço forte e beijo
seus cabelos. — E tudo bem ainda se sentir mal, Heloísa. Você tem muita
coisa dentro do coração para lidar, muita coisa em sua cabeça para pôr em
ordem, muitos sentimentos para entender e expulsar. Vou estar aqui sempre
que precisar. Sempre.
Seus braços se apertam mais ao meu redor, o rosto dela escondido
na curva do meu pescoço.
— Obrigada, Augusto — ela desaba, seu choro agora de alívio e
emoção. Heloísa deve se sentir acolhida comigo. Talvez esperasse ódio,
ressentimento e julgamento, mas recebeu apoio, amor e compreensão.
Eu a aperto mais forte.
— Nós vamos fazer isso juntos, está bem? Eu também vou precisar
lidar com meu ressentimento por ter o escondido de mim, por ter…
pensando em entregá-lo para a adoção sem nem ter tentado falar comigo
antes. — Minha namorada tenta se afastar, mas não deixo. — Helô, não vou
fingir que o sentimento em mim não existe — murmuro no seu ouvido,
carinhoso. — Não vou te julgar nem te condenar, já disse isso. Quero um
relacionamento saudável entre nós três, mas não vamos funcionar se eu não
trabalhar minhas mágoas.
Heloísa não tenta mais se afastar e parece relaxada nos meus braços.
— Terapia em casal, então? — pergunta baixinho.
— Terapia em casal.
Eu a sinto sorrir na curva do meu pescoço e todo meu corpo
estremece quando ela diz:
— Eu te amo, Augusto.

Vamos buscar o Gustavo juntos. Conrado mal abre a porta e ela já


está disparando apartamento adentro, atrás do filho. Heloísa o encontra no
quarto de hóspedes, dormindo na cama de solteiro. Meu irmão colocou uma
grade de proteção — provavelmente emprestada da vizinha Laura — e
encheu a cama de almofadas também só por garantia.
— Ele deu trabalho? — sussurra, sentando-se no colchão e
acariciando o rosto do Gu.
— Está dormindo desde que chegou. Zero trabalho.
Ela se volta para Conrado com um sorriso de gratidão.
— Obrigada por ter cuidado dele.
— Não foi nada — meu irmão responde ao se aproximar e se sentar
do outro lado. Eu permaneço em pé, perto da Heloísa. — Como você está?
— Vou ficar bem. Guto te contou, não é?
— Contou, sim. Como sempre, dei conselhos valiosos — brinca,
fazendo a Heloísa rir um pouquinho. — Mas ainda estou perdido no meio
dessa novela.
Muito sem graça, Heloísa passa os próximos dez minutos
explicando toda a história. Conrado a ouve com atenção e não noto nenhum
traço de decepção, desaprovação ou julgamento em seu rosto ou na sua
postura.
— Sinto muito ter mentido pra vocês — ela pede ao final. — Espero
que, depois disso, não me odeie.
— Logo eu? — Conrado interpela com um sorriso compassivo. —
O cara que engravidou uma adolescente e deixou o filho para a adoção?
— Por favor, Con… — Heloísa o adverte usando o apelido dele. —
Primeiro, você não sabia que ela era uma adolescente. Segundo, você não a
engravidou. Terceiro, sempre esteve disposto a criar o bebê quando achava
que era seu. Diferente de mim. — Ela abaixa os olhos para Gustavo, que
suga a sua chupeta calmamente.
— Mas tenho minha parcela de culpa — Conrado argumenta em um
tom baixo. —É minha culpa quando sei onde está o meu irmão e não fiz
nada para trazê-lo para essa família. Mas, no fundo, Heloísa, minha decisão
foi como a sua. Pensei no que era melhor para o Liam. Com toda certeza,
trazê-lo para cá, para conviver com o desprezo do pai e da madrasta, não é o
melhor para ele, ainda que eu dê o meu melhor.
— Não lembro se já perguntei isso, mas, por que nunca enfrentaram
o seus pais? — Heloísa questiona, olhando de mim para Conrado.
— Estamos protegendo um ao outro — respondo, acariciando os
ombros dela.
— Sei que não deveria permitir essa situação, mas tenho medo do
que Saulo possa fazer se eu ousar… sujar a imagem dele. — Seus olhos
vêm aos meus e Heloísa faz o mesmo.
— Acha que Saulo seria capaz de… te atingir usando o Guto e vice-
versa? Seus próprios filhos?
— Não sei. Talvez. Talvez até o Gu agora. Não quero pagar para ver
— responde, olhando para o sobrinho agora.
— Não duvido — interpelo. — Eles não pensaram duas vezes em
jogar merda em cima do Conrado.
Heloísa engole em seco e acaricia o rosto do filho.
— Me perdoem por dizer isso, mas… nunca vou confiar o suficiente
em Cassandra e em Saulo. Promete que vamos tomar o dobro de cuidado
com o Gustavo, Guto?
— Claro que vamos. Também não confio nos meus próprios pais.
— Bem-vindos ao time ­— meu irmão graceja, em um tom fúnebre.
Heloísa ri baixinho e, por fim, pega Gustavo no colo.
— Obrigada de novo, Conrado. Por tudo. — Ela se aproxima e o
abraça como pode. E “por tudo” sei que ela quer dizer por tudo mesmo.
— Não se preocupe. Somos uma família e família serve para essas
coisas.
Heloísa se afasta do Conrado, me dizendo que vai ajeitar o Gustavo
no cadeirão para irmos embora e que me espera no carro. No caminho para
cá, eu disse que queria um minuto a sós com meu irmão. Assim que ela se
vai, enfio as mãos nos bolsos da minha calça e o encaro, cheio de remorso.
— Desculpe por mais cedo.
Conrado franze o cenho.
— Não entendi.
— As coisas que te disse. — Movo a cabeça de um lado a outro,
arrependido da idiotice que saiu da minha boca. — Acho que você já se
culpa demais por ter se envolvido com a Alexandra. Não preciso
intensificar sua culpa.
— Ah… — Seu sorriso triste se manifesta. — Esquece, Guto. A
gente fala bobeira de cabeça quente.
— Não justifica de qualquer forma. Não foi sua culpa a Alexandra
mentir a idade dela e você não tinha como saber com quem estava se
envolvendo. Os únicos culpados são nossos pais e aquela garota. Você
confiou nela e ela ainda tentou te prejudicar, mesmo que manipulada pelo
pai.
Eu dou um passo na direção dele e o abraço apertado.
— Me desculpe por ter te magoado.
— Eu já esqueci, Guto. Está tudo bem. — Ele me empurra e faz um
gesto com a cabeça: — Vá ficar com sua mulher e com seu filho.
— Eu vou. Obrigado, Conrado.
Eu o abraço uma última vez antes de deixar o seu apartamento.

As semanas seguintes correm tranquilas. Nós evitamos meus pais


que, mesmo sabendo sobre tudo pelo Conrado — autorizado a contar a
história —, respeitaram nosso espaço e nosso tempo. Heloísa ainda não
estava preparada para enfrentar minha mãe e o julgamento dela — que se
não viesse em palavras, viria em expressões. Confesso que fiquei surpreso
por Cassandra ter acatado nosso pedido de não ligar ou aparecer aqui em
casa.
Usamos esses dias para lidar com as burocracias. Auxiliados pelo
meu advogado, emitimos uma nova certidão para o Gustavo. Precisamos
levantar alguns documentos para provar que a Heloísa não participou da
fraude da Mariana, além de contar com algumas testemunhas. O testamento
da minha ex-mulher, a carta, o registro de internação da Heloísa, um laudo
com o psicólogo e o testemunho de amigos sobre os últimos meses da Helô
nos serviram de provas. Sendo assim, não enfrentamos qualquer problema
na justiça.
Como prometido, nós dois começamos a fazer terapia em casal.
Heloísa também achou melhor que ela tivesse sessões sozinha para
trabalhar outras questões sobre si mesma, sobre o Gustavo e sobre a
maternidade. Nós fizemos, juntos, só três sessões, mas nessas poucas
consultas, já senti que foi nossa melhor decisão.
Três semanas mais tarde, é hora de nos reunir em família. Minha
mãe insistiu que fôssemos em sua cobertura dessa vez. Contrariada, Heloísa
aceitou e aqui estamos, esperando que Cassandra venha nos receber.
Gustavo está no canguru em seu colo, conversando com a mãe no seu
linguajar de bebês. A porta se abre e fico aliviado que a primeira pessoa que
eu vejo seja o Conrado.
— Vocês podem beber? — pergunta. — Vão precisar se quiserem
sobreviver a essa noite — ele repete o que disse quando estivemos aqui três
meses antes.
Heloísa sorri.
— Oi, Con.
— Oi, cunhada. — Ele a cumprimenta com um beijo no rosto e
então olha, descontente, para o Gustavo. — Tira o menino dessa coisa! Meu
Deus do céu. Vem aqui com o titio, Gu. — Sem permissão, ele começa a
puxar o menino para cima.
Minha namorada ri e o ajuda, afrouxando as amarras do canguru.
— Seus pais parecem que te odeiam te carregando de um lado a
outro nesse negócio — Conrado recrimina e Gustavo sorri, feliz. Meu filho
sempre fica enérgico na presença do meu irmão.
— Diz isso porque não é pai — argumento. — Se um dia tiver um
bebê, duvido que não queira usar.
— Morro antes de carregar meu filho nessa coisa brega e horrorosa.
Minha mãe está terminando de colocar a mesa quando entramos na
sala de jantar. Para variar, meu pai está no sofá, apenas esperando o jantar
ser servido, apreciando uma taça de vinho e conferindo as notícias no
celular.
— Vocês chegaram! — Cassandra exclama vindo na nossa direção.
Primeiro, ela interage rapidamente com Gustavo, toda amorosa e
perguntando “como está o netinho da vovó?”, como se o menino pudesse
responder. Ele gosta da interação pelo menos. Só então, minha mãe vem nos
cumprimentar. Ela me dá um beijo no rosto e abraça a Helô meio
desajeitadamente, como se o fizesse só por educação.
— Venham, o jantar já está pronto.
Nós nos acomodamos em torno da mesa depois de trocar
cumprimentos com meu pai enquanto mamãe quer saber sobre a última
semana. Saulo se prontifica a pegar o neto no colo um pouco e eu conto
sobre alguns trabalhos na construtora e uma fofoca ou outra de amigos em
comuns que ouvi por aí. Heloísa aproveita para falar dos seus planos de
abrir um restaurante e que, inclusive, já pediu demissão. Ela vai cumprir o
aviso prévio para que encontrem um novo chef e em breve, começa a se
planejar para inaugurar o seu próprio negócio.
— Então — minha mãe menciona, comendo delicadamente uma
ervilha —, acho que já podemos falar sobre aquele assunto delicado, não é?
Conrado nos contou a história toda.
— Não sei se temos mais o que conversar — Heloísa responde, a
voz e a postura firmes. — Conrado não deve ter deixado uma vírgula de
fora. Por que precisamos voltar nesse assunto?
— Para entendermos o seu lado da história, é claro.
— Não acho que temos que falar disso — eu me intrometo.
Conrado vira um gole do seu vinho depois de dizer:
— Eu disse que íamos precisar beber.
Minha mãe inspira fundo e demonstra que alguma coisa a incomoda,
mas ela está se segurando para não fazer algum comentário desagradável.
Agora que Cassandra sabe que temos poder familiar sobre Gustavo, ela não
vai ousar irritar a Heloísa e correr o risco de minha namorada nunca mais
permitir que ela veja o neto.
— Vá em frente, Cassandra — Heloísa profere, para a minha
surpresa —, diga o que está entalado na sua garganta. Não quero que morra
sufocada pelo próprio veneno.
Cassandra arregala os olhos, assustada com a ofensiva de Helô.
Conrado precisa fazer um esforço para não cuspir o vinho que está
tomando, e eu só abro um sorriso de satisfação. Não me lembro de em
algum momento Helô ter enfrentado minha mãe assim.
— Estou bem.
— É claro que não está. Você quer tecer algum comentário sobre eu
ser a mãe do Gu, talvez sobre eu ter ponderado entregá-lo para a adoção e
não ter desenvolvido nenhum afeto pelo menino na minha gestação. Vamos
lá, diga.
Um silêncio recai sobre o ambiente. Eu sabia, de alguma forma, que
essa noite ia ser um desastre, mas vim mesmo assim. Não sei se me
arrependo ou não. Cassandra mantém contato com Heloísa, sempre altiva e
de queixo empinado, tentando demonstrar superioridade. Eu seguro a risada
ao ver Conrado na expectativa, como uma criança prestes a ver seu time
favorito marcar o gol da vitória. Esse desgraçado adora ver o circo pegar
fogo e está torcendo para a Heloísa.
— Tudo bem — minha mãe diz, apoiando os talheres sobre a mesa e
limpando os lábios —, se você insiste, então eu digo. Nunca achei que seria
boa para o Gu. Já não achava isso quando você era a “tia”, agora que sei
que é a mãe biológica e o rejeitou quando deveria tê-lo amado desde o
momento que soube que ele estava crescendo dentro de você, não acho
ainda mais que será boa mãe para ele.
Eu olho para meu pai, esperando que se posicione de alguma forma,
mas tudo que faz é interagir com o Gu, agora sentado no cadeirão e
comendo brócolis. É como se ele nem estivesse ouvindo essa conversa.
— Mãe… — tento intervir porque não quero que Cassandra remexa
nas feridas recentes da Heloísa.
— Deixa, Guto — Helô me interrompe, os olhos furiosos sobre
Cassandra. — Deixa sua mãe falar.
Um sorriso meio maldoso surge em Cassandra e tenho medo do que
vem a seguir.
— Você nunca vai ser uma boa mãe para o Gustavo — Cassandra
alfineta. — Nunca, Heloísa. Uma mulher que seria capaz de entregar um
coitadinho para a adoção? Que não pensou em se esforçar para ficar com o
seu filho? Que o rejeitou no passado? — Cassandra move a cabeça em
negativo. — Jamais será uma boa mãe. Tampouco uma boa esposa para o
Guto. Sinceramente, ainda não sei por que ele está com você.
Abaixo os olhos e aperto os punhos com raiva da minha mãe. Como
ela pode ser dessa maneira?
— Você tem razão, Cassandra — Heloísa diz, para a minha surpresa.
— Uma mulher que entrega seu filho para a adoção não seria uma boa mãe
naquele momento e ainda bem que ela teve consciência disso em vez de
decidir cuidar de uma criança estando com o psicológico ferrado.
— Heloísa um, Cassandra zero — Conrado murmura, e eu levo a
mão à boca para abafar minha risada.
— Uma mãe que não pensou em ficar com seu bebê não seria uma
boa mãe, você tem razão. Ela o desprezaria, o culparia por toda desgraça
em sua vida e não daria o amor que esse filho merece. Então, ainda bem que
ela decidiu o entregar para a adoção ou o deixou com algum familiar que
pudesse oferecer isso.
— Heloísa dois, Cassandra zero — eu digo dessa vez e faço um
high-five com Conrado.
Minha mãe olha para mim de cara feia.
— Mas boa mãe é você, não é, Cassandra? Engravidou e amou seus
filhos desde a concepção — diz, com um leve desdém na voz. — Eu sou
uma mãe ruim porque, em um momento frágil da minha vida, não amei meu
filho. Ainda que eu o ame agora, livrando-me dia após dia da culpa que
sempre me impediu de criar afeto pelo Gu, continuo não sendo uma boa
mãe na sua opinião. Mas você? A mulher que encobriu um escândalo do
marido jogando a responsabilidade no próprio filho é a mãe exemplar, não
é?
— Escute aqui…
— mamãe tenta dizer.
— Não — Heloísa ergue a voz, inabalável e confiante. Porra. —
Conrado e Augusto poderiam desmentir a farsa que é essa família, mas não
o fazem porque protegem um ao outro, porque temem que a boa mãe deles
os prejudique de alguma forma para encobrir o marido.
Saulo pigarreia, incomodado com o rumo do assunto. Eu sei que ele
odeia que Heloísa saiba sobre tudo, mas não teme que ela o espalhe por aí.
Meu pai tem poder de abafar o caso outra vez, sabe que nos intimida e
confia absolutamente no seu poder de nos manipular, intimidar e encobrir
suas mentiras.
— Posso não ter amado o Gu no começo — Helô continua, seu
timbre não tão firme agora, envolto em tristeza e vontade de chorar —, mas
eu pensei no melhor para ele. Sempre. Eu queria que ele estivesse em um
lar que o amasse e o desejasse, algo que, naquele momento, eu não podia
oferecer. Nunca faria algo para prejudicá-lo, para machucá-lo, como você, a
mãe perfeita que ama seus filhos, fez com o Conrado.
Espero por uma resposta amarga e má educada de minha mãe, mas
não acontece.
Devagar, Heloísa se levanta e se vira para mim.
— Podemos ir para casa?
— Podemos.
CAPÍTULO 20

Eu entro com cuidado no quarto do Gustavo, para não o acordar.


Heloísa está com ele em seu colo, sentada na poltrona, amamentando-o. O
ambiente está à meia-luz por conta do abajur aceso ao lado do berço. Paro
no limiar da porta, me encosto ao batente e sorrio para ela.
— Oi — Helô sussurra, puxando o cobertor azul sobre o corpinho
do filho.
— Oi. Quer que eu termine aí para você ir tomar um banho?
Ela nega com um gesto.
— Não. — Heloísa volta os olhos para o filho e beija a testa dele,
amorosa. — Ele já está quase dormindo.
Devagar, Heloísa afasta a mamadeira praticamente vazia e a apoia
na mesinha redonda ao lado. Depois de limpar a boquinha do Gu, ela o faz
arrotar e então o coloca no berço. Recuo um passo para fora quando ela
apaga o abajur e vem até mim, deixando a porta entreaberta.
— Conrado ligou — comento, entrelaçando nossos dedos. — Ele foi
embora logo depois de nós. Você deixou um clima estranho lá.
Seguimos para o nosso quarto quando ela responde:
— Não me surpreende. Você sabe que ele só aceita essas reuniões
em família por sua causa. Agora por causa do Gu. — Ela dá de ombros. —
E foi sua mãe quem começou.
Ao entrarmos, Heloísa começa a tirar a roupa. Faço a mesma coisa e
entramos juntos no banho. Retomo o assunto:
— Gostei de te ver enfrentando a minha mãe. — Ajudo-a a amarrar
o cabelo em um coque alto e esfrego seus ombros delicadamente com a
esponja. — Ela merecia ouvir tudo o que ouviu.
Beijo a linha do seu maxilar e atrás da orelha, sentindo o sorriso
crescer em seu rosto.
— Acho que estraguei todos os nossos próximos encontros com a
sua família.
Rodeio sua cintura e a aperto contra mim.
— Você e o Gu são minha família agora, além do meu irmão. Não
me importo muito com Saulo e Cassandra.
Heloísa se vira para mim, mantendo-se encaixada nos meus braços.
Seus lábios alcançam os meus, os braços em torno do meu pescoço. A
danada me provoca, transformando um beijo amoroso em lascivo. Eu não
demoro a estar duro, pronto e louco por ela. Eu a encosto contra a parede,
rude. Um sorriso sacana surge em seu rosto e o meu se contorce em prazer
quando a sinto rodear meu pau com sua mão pequena e macia.
Movo meu quadril contra sua mão, devagar, mantendo nosso
contato visual, ao passo que ela me masturba na mesma velocidade, o jato
duplo de água quente caindo sobre nossos corpos. Minha temperatura
corporal se eleva a cada nova investida dela e eu fico ainda mais duro
quando Heloisa se ajoelha e me chupa.
— Gostosa. — Agarro com força uma porção do seu cabelo e o
aperto entre meus dedos. — Desse jeito, amor. Engole inteiro esse pau.
Eu me empurro para o fundo da sua garganta, arrancando dela um
gemido delicioso. Ela olha para mim, cheia de malícia, e rodopia a língua
em minha glande, segurando-me com as duas mãos.
— Não me chama de amor — diz, abocanhando meu pau e o
levando até o fundo outra vez. Ela permanece assim, engolindo-me inteiro
até precisar respirar. — Não agora.
Eu a puxo para cima e a viro de costas para mim, prensando seu
corpo na parede e o meu corpo ao seu. Aproximo minha boca do seu ouvido
e sussurro:
— Gosta quando eu te trato como uma safada, não é?
Ela procura pelo meu pau e, ao encontrá-lo, me masturba de novo.
— Se não for pra você me comer me tratando como uma putinha, eu
nem abro as pernas.
— Puta safada — sussurro, separando sua bunda para ter o acesso
que preciso. — Esmague meu pau com essa boceta. Agora.
Eu me enterro todo dentro dela com um único golpe. Nossos
gemidos se misturam e eu a como com vigor, forçando suas paredes ao
entrar e sair rapidamente, fodendo e alargando sua bocetinha apertada. Ao
mesmo tempo, Heloísa se contrai ao meu redor, moendo meu pau,
habilidosa. Porra, isso me deixa louco. Mudo nossas posições ao agarrar em
seu cabelo e empurrá-la mais para baixo.
— Vadia — estalo um tapa em sua bunda. — Incline mais e abra
mais as pernas.
Ela geme de prazer e me obedece. Sua inclinação agora, com as
pernas bem separadas e as mãos quase tocando o chão, é incrível, obscena e
devassa. Agarrado à sua cintura para manter a posição e o equilíbrio, eu vou
muito fundo nela. Me pau escorrega com facilidade dentro de sua boceta, e
todo meu organismo parece a ponto de colapsar.
Heloísa geme a cada nova estocada funda, pedindo para ser fodida,
implorando por meu pau, esfregando desesperadamente o clitóris. Eu
desligo o chuveiro, seco nossos corpos sem muito zelo e a levo para o
quarto, beijando sua boca como se minha vida dependesse dela.
— De quatro na beira da cama.
Com um sorriso sacana, ela se ajoelha e olha por cima do seu
ombro. Sem delicadeza, empurro seu rosto contra o colchão e meu pau para
dentro de sua boceta quente, que eu fodo sem piedade. Ordeno que
mantenha a posição quando eu endireito a postura e passo a mão em seu
sexo molhado. Sinto os fluídos de sua excitação entre meus dedos e ao
estarem bem embebidos dela, eu subo meu toque até seu traseiro.
— Augusto… — ela murmura, esmagando-me.
Massageio seu rabo apertado com o polegar, sem parar de comer sua
boceta, e amo como, aos poucos, ela relaxa e aproveita o toque. Aproveita
bem mais quando meu polegar está enroscado no seu cu, massageando-o.
— Você quer comer aí? — oferece, entre gemidos, claramente
excitada com a ideia.
— Se eu me enterrar em seu cu, não duro um minuto.
— Não precisa durar um minuto — provoca, rebolando.
Puxo seu cabelo até suas costas estarem no meu tórax.
— Sua vadia… — murmuro, tirando meu pau de dentro dela e
encaixando em sua bunda. — Gosta de levar atrás? Quer sentir meu gozo
aqui?
Heloísa puxa minha mão até sua boceta encharcada, sugerindo que
eu toque seu clitóris enquanto como seu rabo. Atendo sua reivindicação e
esfrego seu ponto sensível. Seu corpo embebe meus dedos em fluídos
quentes, e ela deita a cabeça no meu ombro, sussurrado para que eu goze
em sua bunda.
— Vou gozar com você — murmura. — Goza para mim, Guto. Por
favor.
Eu não me seguro mais e explodo dentro dela, ao mesmo tempo que
Heloísa cobre minha mão em sua boceta para friccionar com mais força seu
ponto sensível e anuncia seu próprio orgasmo um instante mais tarde. Vinte
segundos depois, caímos lado a lado, cansados. Helô se ajeita no meu tórax,
o sorriso bobo, os cabelos bagunçados. Estalo um beijo no seu rosto e ela
diz:
— Podemos fazer uma festa de aniversário para o Gu? Mas, tipo…
bem grande?
— Nós mal assumimos um relacionamento e você já quer torrar
todo o meu dinheiro?
Heloísa ri e olha para mim.
— Perdi um tempo valioso da vida do Gustavo — sussurra, a
tristeza ameaçando tomar conta da sua voz. — Eu me arrependo de muitas
coisas, Guto, e estou no caminho de deixar de me culpar quando eu estava
pensando no melhor para mim e para ele.
Aceno em positivo e me ajusto de modo a ficar de frente para ela.
— Nós dois perdemos esse tempo precioso.
— Eu sei — diz baixinho, desviando os olhos de mim por um
instante. — Não vamos recuperar esses meses todos, mas quero…
compensar de alguma forma. Comemorar a vida dele, seu primeiro ano,
comemorar que estamos juntos, que teremos nossa segunda chance, que
somos uma família, que sou a mãe dele, ainda que imperfeita.
Sorrio um pouquinho e acaricio seu rosto.
— Vai ser a maior e melhor festa que essa cidade já viu. Eu juro.
O rosto dela se ilumina de felicidade.
— Vou começar a planejar tudo amanhã. Tenho limite de gastos?
Rio e beijo seus lábios.
— Não se esqueça que temos um filho para criar até a faculdade.
Helô ri comigo.
— Tudo bem. — Ela se aconchega melhor em mim, dando-me uma
sensação de paz e tranquilidade. — Eu te amo, Guto.
Beijo sua têmpora.
— Te amo, Helô.
Tínhamos planejado um final de semana no parque, mas o tempo
virou. Está frio e meio chuvoso lá fora, mas isso não desanimou Heloísa.
Ela preparou a sala com almofadas, escolheu um filme de Natal, ainda que
estejamos em agosto, nos vestiu com toucas e pijamas combinando — no de
Gustavo tem uma estampa de bateria cheia, enquanto nos nossos, a bateria
está acabando — e fez chocolate quente e pipoca.
Venho da cozinha carregando nossas xícaras quando paro no meio
do caminho e olho para os dois. Helô está sentada de pernas cruzadas em
borboleta, segurando nas mãozinhas do Gu para que ele fique em pé
enquanto canta uma cantiga infantil. Abro um sorriso pequeno, comovido
com a cena bonita e gostosa. O sorriso no meu filho e na minha namorada
aquece meu coração e me enche de felicidade também. É tão bom ver
Heloísa livrando-se dos seus remorsos, é bom vê-la apenas vivendo o hoje e
superando o passado, seus erros e falhas. Eu me aproximo, passando por
cima das almofadas, e apoio a xícara dela na mesa de centro.
— Papai… — Gu resmunga, soltando-se da mãe e vindo para mim,
apoiando no que encontra pela frente.
Preciso deixar minha xícara ao lado da de Helô para ajeitar o
menino no meu colo. Nós nos arrumamos entre almofadas e cobertas antes
de eu abaixar a luz do ambiente e dar play no filme — uma animação que
vai entreter Gustavo também. Ele fica sentado entre minhas pernas,
quietinho e atento ao desenho, o que permite que eu e Heloísa tomemos
nosso chocolate quente e comamos a pipoca sem qualquer problema.
O filminho nos arranca boas gargalhadas, que fazem o Gu rir
também. De vez em quando, eu me pego me distraindo do longa para
abraçar meu filho e enchê-lo de beijos. Como faço o mesmo com Heloísa.
Ela sorri para mim, afetada, cada vez que puxo seu queixo só para beijar
seus lábios e dizer que a amo.
Ao final do filme, eu junto toda louça e levo para a cozinha. Na
volta, Heloísa está em pé, afastada alguns passos do filho, Gustavo de
costas para mim, parado e se equilibrando sozinho. Eu sinto meu coração
vir na garganta quando noto o que pode acontecer. Helô ergue os olhos para
mim, emocionada.
— Não quero assustá-lo — sussurra.
Eu mantenho a calma.
— Gu… — chamo por ele, a voz branda.
Ele vira o pescoço em minha direção, o corpinho meio oscilante, e
abre um sorriso gostoso.
— Papai…
— Vem aqui com o papai. — E gesticulo.
Gustavo ameaça dar um passo para mim, mas Heloísa diz:
— Gu. — O menino se volta para a mãe agora. — Vem com a
mamãe.
— Isso virou uma competição? — questiono, erguendo uma
sobrancelha.
Heloísa ri baixinho e se senta no chão, os braços abertos.
— Mamãe…
— Vem com a mamãe, meu amor.
Eu sorrio e decido não competir com a Helô. Gustavo ri, ainda
parado no seu lugar, esforçando-se para manter o equilíbrio, e dá um passo
na direção da mãe. Ela vibra, mais feliz, e continua o chamando para si.
Cambaleante, o menino dá mais quatro ou cinco passos até cair nos braços
dela, que o aperta, abraça e o beija, feliz com o progresso dele.
— Ele andou, Guto! — exclama, enérgica e agarrada ao menino. —
Vai com o papai, amorzinho — diz, colocando-o em minha direção.
Eu me agacho, aproximando-me alguns passos, e chamo por ele.
Gustavo vem com um sorriso enorme, as perninhas oscilantes, e cai nos
meus braços com uma risada que é meu mundo todo. Aperto-o contra mim,
inspirando seu cheiro bom. De repente, sinto os braços da Helô em torno de
nós dois. Um abraço quente, aconchegante, cheio de afeto. Ergo o rosto
para ela, que me beija logo em seguida… Eu a beijo de volta e só tenho
uma certeza. Quero viver com Heloísa pelo resto dos meus dias.
— Você se casa comigo? — peço quando ela se afasta.
Ela me olha, surpresa mas também feliz.
— Caso. Ah, Guto, eu caso. — Heloísa se pendura em mim, toda
feliz.
Sua risada me contagia. Contagia o Gu. De repente, estamos em um
momento de felicidade imensurável.
CAPÍTULO 21

Augusto tem feito mistério desde que resolvemos fazer essa festa de
aniversário para o Gustavo. Ele fechou uns bons metros quadrados do
quintal dos fundos e trabalhou nas últimas quatro semanas no presente de
um ano do filho.
— Você não tentou espionar? — Conrado pergunta, olhando por
cima do meu ombro em direção à parte fechada do quintal.
Ele está me ajudando a servir os convidados, andando para cima e
para baixo com Mariah pendurada no canguru que tanto desdenhou e ainda
que eu tenha uma pequena equipe para essa tarefa. Na minha humilde
opinião, meu cunhado só está tentando evitar ficar perto da Laura, que,
tenho certeza, mexe com os sentimentos do Conrado.
— Não. Tive muita vontade, mas não quero estragar a surpresa —
respondo, colocado outro sanduíche na bandeja. Sorrio para o palito
espetado ali, com a silhueta de um dinossauro grudado na outra ponta.
Augusto escolheu o tema da festa e não me surpreendi que tenha
sido Jurassic Park. Meu noivo a vida toda foi apaixonado pela franquia e
tem feito de tudo para despertar o mesmo amor no filho. Não demora nada e
o quarto do Gu estará cheio de dinossauros e itens da saga.
— Você não é nada tóxica, né? Credo.
Eu rio e caminhamos cuidadosamente pelo jardim, oferecendo os
petiscos para os convidados espalhados por todo canto. Amo como a
decoração está muito linda. Olho ao redor, procurando o aniversariante —
encontro-o monopolizando o pula-pula a alguns metros longe,
supervisionado pelo pai. Gustavo usa uma fantasia de dinossauro que o
deixa uma gracinha e me faz sorrir. Logo atrás, uma fila de crianças espera
impacientemente.
— Oi, Laura — eu digo, quando ofereço o sanduíche.
— Oi, Helô. Obrigada pelo convite — diz, olhando ao redor e
acariciando os cabelos de Nicolas, seu filho mais velho. — A festa está
incrível — elogia, aceitando um sanduíche para o garotinho.
— Obrigada. Você ajudou bastante, sabe disso. — Ela sorri e acena.
Laura é promotora de eventos, então muita coisa aqui teve um olhar
criterioso dela.
— Querido, está mesmo tudo bem ficar com a Mariah?
Olho para o meu cunhado, suas bochechas um pouco vermelhas de
vergonha. Não sei pelo tom carinhoso em querido ou só por que está perto
dela. Conrado Monteiro corando, senhoras e senhores. Ele abre um sorriso
pequeno e beija os cabelinhos da menina.
— Claro, sem problemas, amor. Ela nem mesmo quer ficar com
você — aponta, bem-humorado. — Não viu o berreiro que aprontou quando
tentou pegá-la meia hora atrás?
Laura concorda com um sorriso divertido e um gesto de cabeça.
— Tudo bem, mas… uma hora vai quer entregá-la para mim.
Vicente não demora a acordar.
— Eu trouxe o carrinho duplo.
— Você não tem que dar conta de tudo, Con — ela diz amorosa.
— Eu tenho, sim — argumenta, convicto. Laura e eu trocamos um
olhar cúmplice, entendendo a motivação do Conrado. Ele bagunça o cabelo
de Nicolas e diz: — Ei, amigão, por que não está brincando com as outras
crianças?
— Estou com fome — o menino responde, de boca cheia. —
Quando vão cortar o bolo, tia Helô?
— Nico! — Laura o repreende em meio às risadas minhas e de
Conrado.
— Logo, logo, Nicolas.
Continuamos andando pelo jardim, mas sinto que Conrado está um
pouco tenso. Terminamos a rodada e vamos à cozinha trocar as bandejas. A
equipe está aqui, tomando conta de tudo, então eu o forço a ir em um
cantinho comigo.
— O que foi?
— Nada.
— Nada. Sei. Você está apaixonado de verdade pela Laura?
Ele olha para mim como se eu tivesse dito a maior besteira do
mundo. Rio quando Conrado tampa os ouvidinhos de Mariah, que é pouco
mais nova que o Gu, e sussurra:
— Está muito na cara?
— Você ficou corado perto dela.
— Droga.
— Não é uma coisa ruim, Conrado. Levando em consideração
que… — aproximo-me mais dele para murmurar: — vocês estão fingindo
que são uma família.
Conrado olha ao redor, em busca da assistente social que está no pé
dele. No começo de agosto, ele socorreu uma das estagiárias da construtora
em trabalho de parto. No hospital, descobriu que a menina, aos vinte e um,
queria entregar legalmente seu bebê para a adoção. E lá estava o Conrado,
disposto a adotar Vicente. O problema é que o escândalo que jogaram sobre
seus ombros pode ser um problema. Então ele achou que era uma boa ideia
dizer a assistente social que está noivo da Laura e eles formam uma família.
E Laura achou que era uma boa ideia aceitar essa maluquice do Conrado.
— Não fala isso em voz alta — pede, com um suspiro. — Olha, eu
não sei se é paixão ou só aquela palavra com T — menciona, censurando o
substantivo por causa da pequena. — Já faz mais de um mês que estou na
seca, Laura é bonita e não é de hoje que estou interessado em… Você sabe.
— Ele fecha os olhos e inspira fundo. — Não deve ser nada.
— Homens em geral, quando querem transar, ficam excitados, mas
você fica corado?
— Heloísa!
Eu rio, fazendo Mariah rir também.
— Não estou apaixonado — nega. — Não é nada. Vou ver como
Vicente está. Mamãe garantiu que o vigiaria esporadicamente, mas não
confio nela.
Conrado se afasta até o quarto do pequeno. Vicente completou um
mês há poucos dias e é um menininho lindo. Eu volto para a festa, para
continuar recepcionando meus convidados e garantindo que tudo está em
ordem. Ao longe, eu noto Cassandra. Nós ainda temos nossas diferenças.
Ela não gosta de mim, eu não gosto dela. Nós temos nos tolerado e não sei
como faremos com as festas de final de ano. Também não deixo Gu sozinho
com ela porque morro de medo de que ela comece a implantar coisas na
cabecinha dele desde cedo. Ela o visita e fico grata por ser zelosa com o
neto, mas não confio.
— Oi. — Guto aparece atrás de mim, plantando um beijo na curva
do meu pescoço. — Eu me viro e pego Gustavo de seu colo, chamando por
mim. Beijo suas bochechas e o aperto em meus braços. — Quero mostrar o
presente dele — diz. — Reúna os convidados.
Dez minutos mais tarde, todos estão à espera. Conrado e Augusto
desmontam a proteção — feita de placas de compensado — revelando, aos
poucos, uma estrutura de trilhos e um carrinho com quatro lugares, como
uma miniatura de montanha-russa.
— Surpresa! — Guto exclama, sob aplausos e assovios dos muitos
aqui presentes. — Agradeça por ter um papai engenheiro, Gu — diz,
pegando o menino no colo.
As crianças ficam malucas com o brinquedo no quintal enquanto
Guto afivela o filho no carrinho em formato de foguete, todo eufórico.
Augusto dá a primeira volta devagar, empurrando ele mesmo o brinquedo,
até que o menino esteja acostumado e sem medo. O circuito não percorre
toda a montanha-russa — com alguns sobe e desce e curvas sinuosas — e
foi adaptada para a idade do Gu. Conforme ele crescer, vai poder se
aventurar por todo o brinquedo e basta acionar uma alavanca para que os
trilhos se alinhem e o percurso fique completo. Depois da primeira volta,
Augusto empurra o carrinho e, movido pela energia mecânica, as rodinhas
deslizam pelo trilho, terminando no pé de uma pequena subida.
Gustavo gargalha durante os segundos que a brincadeira dura,
contagiando todo mundo à sua volta. Augusto ameaça tirá-lo do carrinho,
mas o menino protesta e chora, querendo se divertir um pouco mais. O pai
empurra o carrinho até o topo da subida, e a força da descida é o bastante
para carregar Gustavo pelo circuito.
Minutos mais tarde, Augusto consegue liberar a montanha-russa
para as crianças. Conrado bota ordem na casa falando alto com a garotada e
organizando uma fila para a brincadeira.
— Esse presente foi incrível, Guto — digo, abraçando-o pelo
pescoço.
Do outro lado, eu abro um sorriso para Laura, que supervisiona Gu e
Mariah brincando juntos.
— Eu sei.
Rio e belisco sua costela. Nós nos olhamos por um segundo e eu me
pego tão… mais apaixonada por esse homem. Mais do que já sou.
— Guto, se eu te disser que quero mais um filho, você ainda vai
querer se casar comigo?
Ele sorri, seus olhos brilhando.
— Pode encher nossa casa com um time de futebol que vou
continuar querendo me casar com você.
— Ainda não é o momento certo — murmuro, acariciando sua nuca,
e ele concorda. — Estou abrindo meu restaurante, Gu é pequeno e vamos
nos casar. Mas acho que podemos planejar para daqui a três ou quatro anos.
Quero uma menina.
Seus braços contornam meu quadril, amorosa e protetoramente.
— Em quatro anos é perfeito — murmura, alcançando meus lábios.
Ele me beija e nada mais ao nosso redor existe. Nem a música
infantil soando pelo sistema de som, ou as inúmeras conversas dos
convidados, ou os gritos das crianças na montanha-russa e brincando pelo
quintal. Abraço-o com toda minha força, e é uma das primeiras vezes que
faço isso sem me sentir culpada por amá-lo, por estarmos contando nossa
história e continuando de onde paramos. Não posso culpar a Mari por tê-lo
amado também, por tê-lo “roubado” de mim, e acredito que tudo aconteceu
como precisava acontecer. Talvez tivesse sido diferente se minha irmã
tivesse flertado com ele na academia, talvez tivesse sido diferente se eu
tivesse aparecido na barraca no beijo ou se eu tivesse lutado por ele, ao
invés de ter incentivado minha irmã a namorá-lo. Mas isso não importa
mais.
O que poderia ter sido não importa. O que importa é o que já
aconteceu e o que vamos fazer acontecer daqui em diante. Eu pretendo ser
feliz ao lado dele, fazê-lo feliz ao meu lado, sem remorso, ressentimentos
ou mágoas. Sei que ainda tenho que lidar com questões em minha mente e
em meu coração, mas estou me esforçando para superar tudo isso.
— Guto — murmuro contra seus lábios e ergo os olhos em sua
direção.
Ele sorri e dedilha minha coluna.
— Hum?
— Eu te amo.
Augusto se inclina para mim e me beija, sorrindo.
— Eu te amo.
Ele me toma em um abraço apertado e me tira do chão, me fazendo
rir. Nós nos divertimos durante a festa até que chega a hora dos “Parabéns”.
Batemos algumas fotos antes, incluindo algumas com o tio e os avós, e
assim que a algazarra começa, Gustavo se anima com as palmas, assovios e
cantoria, movendo-se alegremente no colo do pai, dentro da sua fantasia de
dinossauro. Nós estivemos ensinando o Gu a assoprar a vela e nessa hora,
ele faz como aprendeu, tendo um pouquinho da nossa ajuda.
Depois de entregar o pequeno tiranossauro para Conrado, Augusto
corta o primeiro pedaço de bolo lentamente. As piadinhas sobre esse
momento começam a surgir, assim como as apostas de quem será o
felizardo. Conrado tem certeza de que vai ser ele, um comentário sobre
Augusto ser egoísta e ficar com o primeiro pedaço surge, alguém menciona
a avó, e Maitê, mais nos fundos, diz que sou eu que devo recebê-lo. Por
fim. Guto se vira para mim, o pratinho com um pedaço generoso de bolo,
um cupcake dino, e dois docinhos.
— É claro que o primeiro pedaço vai para a mãe dele — alega,
esticando o prato em minha direção. — Por todo amor dedicado, por tudo
que passou, por todas as noites em claros e dias perdidos. Por todas as vezes
que se sentiu insegura, insuficiente e desmerecedora.
Ele dá um passo em minha direção e planta um beijo na minha
mandíbula.
— Guto… — digo, sem graça, enquanto os convidados aplaudem e
assobiam.
— Você merece por ser uma mãe maravilhosa, ainda que não ache
isso. — Ele acaricia minha bochecha e sorri. — Não precisa ser perfeita
para ser uma mãe incrível. Vou te lembrar disso todos os dias.
Meu rosto cora, ainda mais quando os assovios se intensificam.
Guto me beija, segurando meu rosto com as duas mãos, e então, damos
espaço para a equipe do buffet cortar e distribuir o bolo. Guto pega o
Gustavo com o tio e nós três nos sentamos no gramado do jardim com dois
pratinhos. Meu bebê come um cupcake, despreocupado.
— O pediatra do Gu vai morrer quando souber que demos açúcar
pra ele — digo com um sorrisinho, jogando uma bolinha de brigadeiro para
dentro da boca.
Augusto move a cabeça em negativo.
— Foi o primeiro bolinho dele. — Dá de ombros. — Gu também
sempre teve uma alimentação saudável e balanceada. Além disso —
sussurra, inclinando-se para mim —, pedi para fazer uma cota sem açúcar e
adoçados com frutas. Ele vai gostar.
Rio e beijo os lábios dele, em seguida, beijo as bochechas gordinhas
do Gustavo, todo lambuzado com chantili.
— Você acha que até o final do ano, aqueles dois formam uma
família de verdade? — Guto sussurra, indicando com o queixo em direção
ao irmão.
Eu me viro para trás e o encontro em sua mesa com as três crianças.
Enquanto Laura e Conrado conversam bastante animados, Nico está
sentado no colo dele, comendo sua porção de doces e bolos; a irmã, Mariah,
está no colo da mãe, que a alimenta cuidadosamente. Vicente está no
carrinho que meu cunhado embala bem devagar com o pé para manter o
menino dormindo. Sorrio frente à imagem, notando a felicidade que emana
dele.
— Acho que não vamos ter que nos preocupar em passar o Natal só
nós três — eu digo, virando-me em sua direção outra vez. — A família vai
crescer e bastante.
Ele ri e acena em positivo, apertando o menino em seus braços. Meu
coração transborda de felicidade pelos dois e às vezes, nem acredito que
seja real, que eu os mereço, que eu os ame. Augusto e Gustavo. Pai e filho.
Meu bebê e meu noivo.
Minha família.
EPÍLOGO

— Será que a mamãe vai gostar? — Gustavo pergunta.


Olho para ele pelo retrovisor central e o vejo erguendo a cartinha
que fizemos em casa ontem à noite — ela está dentro de um saquinho
plástico com algumas bombons sortidos e amarrado com um laço.
— A mamãe vai adorar — garanto, entrando à esquerda.
— Por que eu não posso ficar com o buquê e você com a cartinha?
— questiona e pisca duas vezes, inocente, enviando uma olhada para o
ramalhete no banco da frente. — A mamãe vai gostar mais do buquê.
Ele fecha a carinha e olha incerto para o seu presente.
— Claro que não, Gu. Diga, quantas rosas a mamãe tem em casa? E
quantos desenhos seus ela tem?
Faço contato pelo retrovisor de novo e noto a reflexão em seu rosto.
— Ela tem um montão de desenhos, né, papai?
Abro um sorriso.
— Mamãe guardou todas as lembrancinhas que já fez, diferente das
rosas — explico.
— Se ela não gosta das suas rosas, por que continua comprando?
Eu rio e estaciono o carro em frente ao restaurante da Heloísa,
fechado agora. Me passei por um cliente que queria alugar o espaço por um
dia e ela só deve aparecer aqui para começar os “trabalhos” no início da
tarde. Na porta, Conrado já me espera com Vicente, Nico e Mariah.
— Ela gosta das rosas, meu amor. — Eu saio do carro, aceno para
meu irmão. — Só não dá pra guardar todas as que eu dou. Mas a questão
não é — solto a fivela do cinto e o ajudo a descer — que presente você dá,
mas a intenção por trás. Eu juro, a mamãe ama seus desenhos e vai amar
saber que me ajudou a fazer o bombom de morango que está aí.
Ele parece satisfeito com minha resposta e logo fica animado ao ver
os primos. Destravo o alarme do restaurante e rumamos lá para dentro.
Trouxe um avental para cada um de nós porque vamos preparar um almoço
especial para Heloísa e Laura. Conrado é muito melhor nesse quesito, então
ele é o chef principal. Se abusar, as crianças têm mais habilidades do que
eu.
— Aqui, papai — Nico diz, apoiando duas latas de leite condensado
sobre a mesa de inox. — Eu posso abrir?
— Eu que quero abrir, pai! — Vicente protesta, e quase não consigo
vê-lo do outro lado da mesa por causa da estatura pequena. Rio ao ver o
esforço dele para se erguer nos pés e ser visto. — Nico já abriu a caixa de
leite.
Perto de mim e sobre um banquinho, Mariah está batendo uma
massa de bolo do jeitinho dela, enquanto eu supervisiono o seu trabalho.
— São duas caixas — ela diz, parecendo a adulta que precisa
intervir —, é só Nico abrir uma e você abrir outra, Vicente.
— Eu quero abrir as duas — o menino protesta.
— Tudo bem — Conrado limpa as mãos em seu pano de prato e
deixa o pedaço de carne que estava preparando para vir apartar a briga. —
Vamos fazer como a Mariah sugeriu, Vicente. Ainda temos muito trabalho
aqui e todo mundo vai conseguir ajudar. — Ele pega o filho no colo e beija
seu rosto. — Pode ser assim, seu encrenqueirinho?
— Pode.
Horas mais tarde, tudo está perfeitamente pronto. Conrado preparou
um cordeiro ao molho de vinho, arroz, purê de mandioquinha e batatas
palito — sem óleo — para as crianças. De sobremesa, fizemos bolo, pudim
e manjar. Tivemos que chegar bem cedinho para a surpresa e o trabalho foi
meio intenso — as crianças ajudaram um pouco, mas, na maior parte do
tempo, estiveram no salão do restaurante, distraídas com a televisão.
Nós usamos o banheiro dos funcionários para tomar banhos e trocar
de roupa. Já estamos todos prontos quando Heloísa e Laura chegam e
gritamos “Surpresa”. Cada criança corre para sua mãe para abraçar e
desejar um Feliz Dia das Mães! animado e estridente, trocando beijos e
abraços.
— Eu estava morrendo de remorso de ter que trabalhar hoje e você
me apronta essa? — Heloísa sussurra quando eu me aproximo.
Rio baixinho e beijo seus lábios, apoiando minha mão na sua barriga
de seis meses.
— Surpresa é surpresa, senhora Monteiro.
— Me diz que não foi você que cozinhou — brinca.
— Eu não cozinhei — respondo, fingindo que estou ofendido.
— Gostaram da surpresa? — as crianças perguntam ao mesmo
tempo, eufóricas.
Elas atropelam as palavras, cada um dizendo no que ajudou. Mariah
fez o bolo, Gu ajudou com o pudim, Nico e Vicente fizeram o manjar.
— Nós amamos, não é, Helô? — Laura responde, encaixada no
abraço do marido.
Helô segura Gustavo no colo e o enche de beijos.
— Eu amei.
— Tem mais presentes lá dentro — Nico lembra, apontando para a
cozinha. — Presentes que fizemos!
— Tudo bem, que tal comermos e depois abrimos os presentes? —
Conrado sugere, puxando a esposa em direção à mesa. — Venham,
crianças.
Os três correm para ele, que os acomoda cada um em um lugar.
Gustavo quer acompanhá-los, então a mãe o solta e o deixa ir. Ela
permanece mais um instante aqui comigo, seus olhos cheios de amor e
afeto.
— Esse foi o melhor presente.
— Você diz isso todo ano.
Ela ri e me abraça. Sinto Sophia se mexer dentro dela e meu coração
se enche de amor. Sou tão feliz com ela, com a família que somos. Aperto
os olhos, tentando afugentar os remorsos que eu ainda carrego dentro mim
ao pensar que a Mari nunca realizou o sonho dela completamente. Sinto
muito pela Mariana, de verdade, mas eu não mudaria nada em nossas vidas
— exceto pela noite com Helô — se eu pudesse voltar no passado. Não
estávamos bem naquela época e um filho não ia mudar isso. É o que eu
tenho me dito sempre para lidar com meus sentimentos.
Helô e eu ainda fazemos terapia em casal — com uma frequência
menor do que antes — e gosto de como lidamos com nossas questões e
sentimentos de forma aberta e comunicativa. Nosso casamento não é
perfeito e amo que Heloísa não tente demonstrar o contrário. Se não
estamos bem, ela demonstra que não estamos bem. Critica meus defeitos,
reclama das coisas erradas que faço, às vezes precisa de um tempo sem
mim. Da mesma forma que elogia minhas qualidades, comemora minhas
conquistas, me agrada quando quer e está do meu lado nos meus momentos
ruins.
Eu sou feliz ao lado dela e, em meio às nossas imperfeições, nossa
vida a dois é incrível e…
… perfeita.
LIVRO 2

Em agosto, Laura e Conrado vão contar sua história em Uma


Família por Acaso. Para não perder o lançamento, me siga nas redes
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Instagram: @autoraacnunes
Twitter: @acnunesautora
SANTA REFERÊNCIA

Personagens de outras histórias que foram referenciados ou têm


alguma ligação com os Monteiro para você se conhecer e se apaixonar.

Arthur Massari, que aparece rapidamente em uma reunião com


Augusto, é o protagonista de Operação Bebê a Bordo. Ele passa uma noite
com uma garota que conhece na internet, mas perdem contato. Eles se
reencontram três meses depois e ela está grávida de um filho dele. Conheça
aqui: https://www.amazon.com.br/dp/B09432ZC7H

Mattia Massari, o filho de Arthur, cresce e conta sua própria


história em Três Vezes Pai. Ao atender um bebê na emergência da pediatria,
ele descobre que o menino é seu filho e existem mais dois gêmeos. Conheça
aqui: https://www.amazon.com.br/dp/B09C56SY3D

Filippo Massari, o filho do meio de Arthur, troca mais de roupa do


que de mulher. Em Deliciosa Rendição, ao perder uma aposta para seu
melhor amigo Liam, ele precisa passar trinta dias com uma única garota e
está certo de que não vai se apaixonar por Bianca. Conheça aqui:
https://www.amazon.com.br/dp/B09LXV7GFY
Liam Azevedo, o meio-irmão perdido de Conrado e Augusto conta
sua história em Deliciosa Obsessão, sendo o par romântico de Paola
Massari, a filha caçula de Arthur. Ele é melhor amigo do irmão dela,
advogado do futuro ex-marido dela e a ama (quase) em segredo há dez
anos. Conheça aqui: https://www.amazon.com.br/dp/B09JNCC7X4

Apolo e Felipe, da INOVE, citados no capítulo 14, são personagens


da duologia Enlaçados, lançada como especial mês das mãe e mês dos pais
de 2022. Apolo, de Amor às Avessas, troca e-mails ofensivos com uma ex-
funcionária sem ter ideia de que a namora pessoalmente. Conheça aqui:
https://www.amazon.com.br/dp/B0B1Z73WQ8
Já Felipe, de Um Bebê para o Cafajeste, tenta ser um bom pai
depois de engravidar a irmã caçula do seu melhor amiga enquanto lida com
seus traumas de infância. Conheça aqui:
https://www.amazon.com.br/dp/B0BBMT2CDP

Étienne Laurent, o neurocirurgião da Mariana, é o francês de


Sedução Irresistível. Depois do sumiço da esposa, ele se tornou um pai
negligente. Quando está colocando a vida nos trilhos, uma brasileira
irritante vinte anos mais nova cruza seu caminho e seu filho o convence de
que ela é a babá perfeita. Leia:
https://www.amazon.com.br/dp/B0BKLD1BT3

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